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Subjetividade no Pensamento do Século XX: Uma Introdução
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Subjetividade no Pensamento do Século XX: Uma Introdução

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Um livro para atender a uma dupla demanda: uma cobertura historiográfica de uma questão fundamental da filosofia contemporânea – a subjetividade – e uma introdução temática aos autores e às questões desse período. Eis a que se propõe Subjetividade no pensamento do século XX: uma introdução. Resultado de um trabalho conjunto entre vários especialistas – cada um dando o tom do modo pelo qual a subjetividade foi e é o tema da filosofia contemporânea –, o livro enfrenta com franqueza o desafio de dirigir-se, até onde for possível, aos diferentes públicos: dos leitores iniciantes àqueles mais familiarizados com a História da Filosofia Contemporânea. São 11 capítulos sobre os seguintes filósofos: Nietzsche, Freud, Lacan, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Paul Ricoeur, Bergson, Foucault e Searle.
LanguagePortuguês
Release dateOct 1, 2018
ISBN9788547313753
Subjetividade no Pensamento do Século XX: Uma Introdução

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    Subjetividade no Pensamento do Século XX - Giovana C. Temple

    Contemporâneo.

    Sumário

    APRESENTAÇÃO

    Ernani Chaves

    1.NIETZSCHE E UM NOVO TINO PSICOLÓGICO: A CRÍTICA DA NOÇÃO DE SUJEITO MODERNO

    Regiane Collares

    2.SUBJETIVIDADE NO PENSAMENTO DO SÉCULO XX: FREUD, CONFLITO E ESTRANHEZA

    Carlota Ibertis

    3.LACAN E A CRÍTICA DO SUJEITO

    Malcom Guimarães Rodrigues

    4.HUSSERL 

    Marcus Sacrini

    5.HEIDEGGER E O PROJETO DE SUPERAÇÃO DA SUBJETIVIDADE

    Acylene Maria Cabral Ferreira

    6.SUBJETIVIDADE, LIBERDADE E ANGÚSTIA EM SARTRE

    Silene Torres Marques

    7.SUBJETIVIDADE EM MERLEAU-PONTY

    Matheus Hidalgo

    8.SUBJETIVIDADE EM PAUL RICOEUR:

    A COMPREENSÃO DE SI MESMO ENTRE A HERMENÊUTICA E A ÉTICA

    Cristina Amaro Viana Meireles

    9.A SUBJETIVIDADE EM BERGSON: UMA ABERTURA PARA A METAFÍSICA

    Fernando Monegalha

    10.SOBRE A QUESTÃO DO SUJEITO EM MICHEL FOUCAULT

    Marcio Luiz Miotto e Giovana Temple

    11.SUBJETIVIDADE ONTOLÓGICA NO NATURALISMO BIOLÓGICO DE JOHN SEARLE

    Maxwell Morais de Lima Filho

    sobre os autores

    Apresentação

    Se abrirmos um dicionário de referência da língua portuguesa, como no caso o Aurélio, podemos constatar, com algum espanto e surpresa, que o verbete subjetividade é extremamente lacônico. No seu sentido mais geral e mais usual, ele seria a qualidade ou caráter de subjetivo e no único sentido específico assinalado no verbete, não por acaso o seu sentido filosófico, trata-se do domínio do que é subjetivo. Em compensação, se lermos um pouco mais adiante o verbete subjetivo, veremos que ele não é apenas mais extenso, como já comporta graus de complexidade: ele é relativo ao sujeito, é o que é existente no sujeito ou ainda o que é individual, pessoal, particular. No sentido filosófico, por fim, ele seria o que provém de um sujeito enquanto agente individual ou coletivo. Assim, na lógica do dicionário, subjetividade remete a subjetivo e ambos, por sua vez, a sujeito. Ora, enquanto esses dois verbetes acima mencionados mostram-se demasiadamente condensados na sua versão dicionarizada, o último, o sujeito, ao contrário, ganha em extensão e, ao mesmo tempo, eleva e muito o grau de complexidade da questão, uma vez que os três termos juntos, enlaçados, constituem e remetem a uma questão, a qual, não por acaso, coloca o último termo, o sujeito, como aquele que adquire o caráter de centralidade, do qual derivam os outros dois termos. Assim sendo, subjetividade e subjetivo remetem, em última instância, a sujeito.

    Ora, depois de indicar a significação etimológica da palavra subjectu, de origem latina e que significa posto debaixo, podemos ver que sujeito remete a uma rede semântica extremamente problemática e negativa: súdito, escravizado, cativo, obrigado, constrangido, adstrito, que se sujeita à vontade dos outros, obediente, dócil, dependente, submetido. Mais ainda, um sujeito é um indivíduo indeterminado, cujo nome se quer omitir. É só depois que essas significações pelo negativo como que se esgotam, que as significações pelo positivo começam a aparecer: o sujeito como tema, assunto, o sujeito da oração no sentido gramatical, mas também o sujeito no sentido filosófico. Aqui, ele aparece tanto no sentido prático quanto no sentido teórico: no prático, como agente da ação, no teórico, como sujeito do conhecimento, que se opõe ao objeto. Mas, para além desses dois sentidos, a organização do verbete parece fazê-los depender de um outro sentido, igualmente filosófico, mas que na ordem do dicionário vem enunciado antes desses outros dois: um sujeito é um indivíduo real, que é portador de determinações e que é capaz de propor objetivos e praticar ações.

    Podemos, portanto, dizer que a versão dicionarizada desses termos, não somente nos mostra a intrínseca relação entre subjetividade, subjetivo e sujeito com aquilo que pertence ao domínio da sujeição, mas também nos remete a um outro domínio, francamente positivo, do qual sua acepção filosófica é parte integrante e fundamental. Como se a filosofia tivesse imprimido nessa rede semântica um sopro de dignidade, retirando esses termos de sua acepção exclusivamente negativa. Essa operação, como sabemos, tem suas origens na filosofia grega, uma filosofia, mas também uma cultura, que desconhecia essas palavras, que não faziam parte de sua língua. Jean-Pierre Vernant, em conhecida coletânea de ensaios¹, prefere chamar de indivíduo. Entretanto, ao colocar a questão, da qual trata seu livro, Vernant a enuncia de tal modo, que nela podemos reconhecer, com alguma clareza, uma questão que ainda é a nossa, de tal maneira que, se por um lado, nossa definição desses termos é marcada pela diretriz que opera implicitamente no dicionário – o sujeito como sujeito da consciência, capaz de determinar e discernir a sua ação e, ao mesmo tempo, capaz de alcançar a verdade de um objeto – por outro, as questões que os gregos nos legaram continuam aí, atuantes. A esse propósito, pergunta Vernant, logo nas linhas de abertura de seu livro:

    O que é, para um grego da antiguidade, ser si-mesmo em relação aos outros e a seus próprios olhos? Em que consiste, no contexto da civilização helênica, a identidade de cada um? Qual é seu fundamento e quais formas ela utiliza? Como se manifesta o caráter singular dos indivíduos no decorrer da vida e o que subsiste nele para além da morte²?

    De fato, é como se as questões que o grande helenista coloca, deslocassem a versão dicionarizada do seu conforto, de tal modo que a questão do sujeito – da qual depende o destino das duas outras, a da subjetividade e do subjetivo – passa a ser tomada a partir de outros referentes, para os quais o dicionário não aponta: em primeiro lugar, pela implicação com os outros e consigo mesmo; em segundo lugar, pelo enraizamento histórico dessa implicação, o que resulta no problema da identidade; em terceiro lugar, pelo seu fundamento, pelas suas formas de expressão e, por fim, por sua vinculação a um regime de crenças. Alteridade e identidade, natureza e cultura, vida e morte, são assim os pares conceituais que atravessam a nossa indagação pelo sujeito desde os gregos.

    O pensamento moderno, que numa delimitação mais usual, se estende de Descartes a Kant, acabou por privilegiar, por razões históricas bem conhecidas, aquela concepção teórica e prática que, em parte, o dicionário nos apresentara. Certamente aqui, corremos o risco da demasiada simplificação, tendo em vista as enormes diferenças entre as diversas concepções de sujeito nos séculos XVII e XVIII. Cumpre, por exemplo, assinalar, que as questões que apontei a partir da referência a Vernant estão o tempo todo implícitas ou explícitas nos pensadores modernos. O Iluminismo, nas suas variadas vertentes, sempre se confrontou com a questão da identidade e da alteridade. Entretanto, o que une essas diversas concepções é, sem dúvida, a reafirmação do papel que a razão desempenha tanto no âmbito teórico quanto no prático, mesmo que a própria razão passe a ser investigada e avaliada quanto aos seus limites. Apontar com clareza os limites da razão não significa, de modo algum, descredenciá-la ou enfraquecê-la, mas, pelo contrário, habilitá-la cada vez mais para cumprir com eficiência o seu papel. Assim, o que passamos a entender por subjetividade, depende dessa rede de relações, nas quais uma concepção de razão esclarecida e esclarecedora está diretamente implicada.

    O objetivo deste livro é, justamente, o de apresentar, a partir de onze diferentes pensadores, o modo pelo qual a nossa contemporaneidade pensou, expressou e problematizou, a questão da subjetividade, mais especificamente, por meio de Nietzsche, Freud, Lacan, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Ricoeur, Bergson, Foucault e Searle. Lidos atentamente, os artigos que compõem este livro mostram-nos à exaustão o quanto é impossível considerar a singularidade da reflexão contemporânea sem os laços que a mantém, em diversas medidas, presa ao que lhe antecede, seja com o mais longínquo, com os gregos, seja com o mais próximo, a reflexão moderna.

    Por outro lado, ao incluir os nomes de Freud e Lacan, que não pertencem, de fato, ao panteão dos filósofos – daí que ter designado o conjunto dos autores presentes no livro como pensadores – desse livro sinaliza para aquela que seja, talvez, a grande singularidade do pensamento contemporâneo sobre a subjetividade, qual seja, a consideração do conceito de inconsciente, entendido no seu sentido psicanalítico. Uma singularidade que encontra uma potente formulação já no pensamento de Nietzsche. É evidente, que não podemos desconhecer as diferenças enormes entre a psicologia nietzschiana e a psicanálise freudo-lacaniana. Mas, trata-se tão somente de destacar que é a problemática dos afetos, dos instintos e das pulsões, tal como tematizada no século XIX desde os primeiros românticos, que abre novas perspectivas. Trata-se então de repensar, a partir da própria categoria de sujeito, os destinos do que chamamos de subjetividade. Ora, já com Nietzsche, marco inicial desta coletânea, é preciso redefinir o que, na época, entendia-se como psicologia e restabelecer uma ligação entre investigação psicológica e investigação filosófica, que pudesse dar conta da formação de compromisso que sintomaticamente se estabeleceu na história de nossa cultura, entre a razão e os afetos. Como se essa história não pudesse ser compreendida sem que essa tensão ou melhor, esse antagonismo, entre razão e afetos, não estivesse colocada em primeiro plano. Mais ainda: se tal questão é necessária, se ela se coloca no nosso horizonte, impregnada pela historicidade que a constitui, por outro lado, não é possível pensá-la sem remetê-la a uma outra questão, a da linguagem. Se podemos definir a nossa humanidade como aquela de seres falantes, então nada pode ser pensado, muito menos formulado, fora da linguagem, cuja extensão e cujos limites é também necessário investigar. O empreendimento genealógico enquanto procedimento historiográfico que se posiciona criticamente frente ao Historicismo do século XIX é também uma análise da linguagem e, como tal, o exercício de uma filologia crítica, a qual, longe de proceder de acordo com a pretensa objetividade e neutralidade da filologia aliada ao Historicismo, redescobre, na origem das palavras não o liame natural entre significante e significado, mas intrínsecas relações com formas de dominação. Assim, razão, subjetividade e linguagem constituem o tripé em torno do qual gira a questão da subjetividade no pensamento contemporâneo.

    Michel Foucault talvez tenha sido, dentre os pensadores presentes nesta coletânea, o que mais insistiu na ideia de que a questão filosófica por excelência de nossa época, é a do sujeito. Não por acaso, nas suas inúmeras tentativas de encontrar um fio condutor para a sua filosofia, ele o atribui à questão do sujeito. E, ao fazê-lo, não deixa de atá-la a Heidegger, a Freud e a Lacan ou ainda de lembrar de Husserl e de seu texto sobre a crise das ciências naquele começo de século, como um interlocutor fundamental. Mas, além disso, pareceu-lhe absolutamente necessário encontrar nas origens de nossa cultura, nas formulações da antiguidade greco-romana, uma concepção de sujeito que pudesse nos auxiliar a romper com as aporias que o pensamento moderno nos legara. Sujeito, sujeição, subjetividade, formas de subjetivação, passaram a fazer parte do nosso léxico interrogativo, de tal modo que, sem ele, parece que não podemos mais pensar o mundo e a nós mesmos. Léxico que nos remete, sem cessar, às questões mais candentes, que assolam nossos posicionamentos éticos e políticos atuais. Em seus últimos cursos no Collège de France, assim como nos dois últimos volumes da História da sexualidade, ele irá esboçar a ideia de uma ética como uma estética da existência, ou seja, na qual a nossa relação conosco mesmos só teria uma regra a seguir, a do artista, ou seja, a da permanente criação e recriação dos valores.

    Foucault, de um lado, legatório dos mestres da suspeita, como disse Ricoeur³ referindo-se a Freud, Nietzsche e Marx, Sartre e Marleau-Ponty, de outro, herdeiros dos famosos três Hs, Hegel, Husserl e Heidegger. Duas facetas das mais importantes da filosofia francesa do pós-segunda guerra, antecedidos por Bergson e seu projeto de reabilitação da metafísica, a despeito de uma tendência geral, no pensamento contemporâneo, de uma espécie de superação da metafísica, que acompanha, nas suas linhas gerais, a condenação kantiana (nos limitamos aqui, evidentemente, a problemática questão da metafísica em Kant, ao modo pela qual ela aparece na Primeira Crítica). Bergson, como sabemos, deixou-nos um conjunto de questões muito importantes e que gravitam em torno do modo pelo qual ele problematizou a subjetividade. Talvez, dentre elas, a questão da duração seja a mais importante, pela repercussão que teve em toda a discussão posterior em torno das relações entre tempo e memória. Com isso, o livro também nos apresenta uma pequena mostra do que houve de mais importante na filosofia francesa contemporânea, com todas as vicissitudes que a atravessaram. Nesses filósofos, o tema da subjetividade não apenas é um tema central, ramificado em toda extensão de suas filosofias, como também é colocado em relação com a tradição filosófica, mas também com a psicologia e a antropologia. Em especial com Sartre e Foucault, nas polêmicas teóricas nas quais se envolveram, terreno privilegiado no qual suas diferenças cresciam, mas cuja afinidade subterrânea também crescia nos posicionamentos comuns acerca do engajamento político dos intelectuais, a questão da subjetividade é fortemente marcada pelos grilhões que a acorrentam às formas de sujeição. Se o momento cartesiano em Foucault (pensemos por exemplo, no curso A hermenêutica do sujeito) tem uma função diametralmente oposta ao lugar que Descartes ocupa em Sartre, se pensarmos no opúsculo O existencialismo é um humanismo⁴, de tal modo que a questão da subjetividade depende da sua relação com a consciência (e Foucault invoca Freud e Lacan, justamente para livrar-se do cartesianismo), não podemos esquecer que, de todo modo, ao dizer que a existência precede a essência, Sartre não deixa de apontar para o fato de que não se nasce sujeito, torna-se sujeito⁵. Desnaturalizado, o sujeito encontra-se assim, necessariamente, em meio aos embates políticos e destinado a fazer uso de sua liberdade.

    Nesse diapasão, podemos dizer que a tradição francesa do pós-guerra que este livro invoca e evoca, da qual Ricoeur faz parte com todas as honras, não deixou, incessantemente, de pensar a subjetividade, tendo em vista a ideia de sua constituição ou ainda de sua construção. Merleau-Ponty destacará essa questão, quando afirma que a subjetividade foi ao mesmo tempo descoberta e inventada ou ainda quando insere a questão na história da filosofia, quando procura distanciar-se do cartesianismo e apontar, às vezes por meio de uma comparação com os gregos, o que torna singular a nossa concepção de subjetividade. Ricoeur, por sua vez, ao colocar sob o signo do cogito ferido a sua própria reflexão sobre a subjetividade, não deixa de fazer ecoar aí a célebre proposição freudiana de que a psicanálise imputou, ao lado de Copérnico e Darwin, uma das feridas do nosso narcisismo, ao desalojar o Eu da condição de senhor de sua própria casa. Nessa perspectiva, a questão da subjetividade não estaria mais atrelada à questão o que é o sujeito? e sim à questão quem é o sujeito?. Passagem da questão clássica acerca da natureza, da essência do sujeito, para a do enraizamento histórico e para a posição autoreflexiva daquele que se autodenomina de si mesmo. Daí a importância que Ricoeur concederá, em especial em Tempo e narrativa, às formas de enunciação literária da condição do sujeito.

    De Nietzsche a Foucault, passando por pensadores franceses e alemães, vimos descortinar diante de nós uma espécie de fio condutor e comum, que é justamente o de mostrar a dimensão ética da discussão da subjetividade e, ao mesmo tempo, em vários deles, a sua dimensão política. A coletânea se fecha, entretanto, abrindo-se à discussão para um domínio mais recente, em plena expansão nos estudos filosóficos brasileiros, que é o da filosofia da mente, por meio do pensamento do filósofo norte-americano John Searle, bastante conhecido por sua filosofia da linguagem e, muito especialmente, por sua teoria dos atos da fala. Esse capítulo apresenta uma outra perspectiva de entendimento da subjetividade, cuja premissa fundamental, a do naturalismo biológico é a de que fenômenos mentais são fenômenos biológicos. Nessa perspectiva, a pergunta pela subjetividade se desloca, radicalmente, para o funcionamento do cérebro. Não se trata de uma questão menor, se levarmos em consideração o nosso presente, uma vez que se insere no mesmo cenário do resto da coletânea, uma vez que é impossível não pensar nas questões éticas e políticas que decorrem dessa perspectiva.

    As indicações dicionarizadas, com as quais iniciamos essa introdução, parecem ganhar consistência e força a partir de sua inserção nos debates, aos quais acabamos de aludir, elas saltam do dicionário, para fazer parte do mundo nos quais elas foram criadas e, ao mesmo tempo, para justificar sua sobrevivência e legitimidade nos dias de hoje. Isso quer dizer, em outras palavras, que se o tema da subjetividade impõe-se de maneira tão forte nas nossas reflexões atuais, se a questão do sujeito, como o queria Foucault, é mesmo a nossa questão mais importante e decisiva, então esta coletânea, ao trazer à luz essa confrontação permanente, terá alcançado seu objetivo. Se o subtítulo deste livro indica que se trata apenas de uma Introdução, que o leitor não veja nisso uma declaração antecipada de modéstia ou de desculpas por este ou aquele filósofo ou pensador ter ficado de fora dela. Trata-se, antes, de pensar a ideia de introdução como uma apresentação às múltiplas alternativas do debate, deixando, de certa forma, que o leitor escolha por onde quer caminhar, sem, entretanto, esquecer as possíveis conexões que unem, aqui e ali, esses diversos textos. Desse modo, esta coletânea deixa em aberto as possibilidades que o seu objeto central deixa ainda entrever sem, entretanto, deixar que o leitor descanse satisfeito. Ao contrário, ela pode nos incitar a encontrar, numa atitude ética e política, alternativas às formas dominantes, que fazem da subjetividade um campo fértil de intervenção, que tentam, a todo custo, deixar que o sujeito continue num permanente estado de sujeição.

    Ernani Chaves

    Professor Titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA)

    1. NIETZSCHE E UM NOVO TINO PSICOLÓGICO:

    A CRÍTICA DA NOÇÃO DE SUJEITO MODERNO

    Regiane Collares

    1. APRESENTAÇÃO:

    NIETZSCHE E SUA DIMENSÃO CRÍTICO-PSICOLÓGICA

    Como um recurso crítico à noção de sujeito moderno, Nietzsche, em 1888, um ano após a escrita da Genealogia da Moral, considera em um fragmento póstumo intitulado Filosofia como décadence, com o subtítulo Para a psicologia dos psicólogos, que o trabalho psicológico seria infrutífero se se voltasse para o caráter objetivo do autoconhecimento do sujeito, e, para escapar a isso, admite adotar em sua filosofia um excêntrico ângulo psicológico. Vejamos:

    Psicólogos, como eles são possíveis a partir do século XIX: não mais ficarem parados em um ângulo, três, quatro passos aproximadamente são suficientes para se olharem, para se escavarem por dentro. Nós psicólogos do futuro – nós temos pouca boa vontade para auto-observação: nós tomamos isso quase como sinal de degeneração quando um instrumento procura se autoconhecer: nós somos instrumentos da descoberta e gostaríamos de ter a total ingenuidade e precisão de um instrumento; - logo, nós não deveríamos nos autoanalisar, nos conhecer [...]. Somente porque nós estamos num excêntrico ângulo psicológico. (NIETZSCHE, KSA13, FP 14[27], p. 230)⁷.

    Na intenção de circundarmos a decorrente crítica ao sujeito que se apresenta nas entrelinhas desse fragmento nietzschiano, Foucault, no texto intitulado A psicologia de 1850 a 1950, auxilia-nos em dizer que a psicologia constituída sob a atmosfera do primado do sujeito pensante estabeleceu

    [...] determinação das relações quantitativas, elaboração de leis que se apresentam como funções matemáticas, colocação de hipóteses explicativas, esforços através dos quais tenta aplicar, não sem sacrifício, uma metodologia (FOUCAULT, 2006, p. 133).

    Já Birman (2005, p. 22), ao endossar essa compreensão, comenta que a psicologia clássica, fomentada pela filosofia de Descartes, do cogito cartesiano – penso, logo existo – se definiu no panorama da modernidade a partir da categoria de existência do sujeito essencialmente atrelada ao registro do pensamento, e, segundo o autor, a partir dessa abordagem se inauguraria o fundamento e a certeza da subjetividade.

    Nietzsche pretende assim nos conduzir para a consideração da psicologia como investigação da formação do sujeito sobre a esfera caótica que comporia a vida. No entanto, antes de entrarmos no mérito dessa questão e da configuração do sujeito alvo da crítica nietzschiana, faz-se pertinente indagar sobre o que Nietzsche entende por uma nova postura psicológica, uma vez que tal perspectiva de crítica aparece de forma recorrente em sua obra, sobretudo no último período de sua produção filosófica; afinal, o que o filósofo quer dizer ao se considerar o primeiro psicólogo (NIETZSCHE, 1995, §6, p. 114), ou quando afirma que em seus escritos fala um psicólogo sem igual? (NIETZSCHE, 1995, §5, p. 58).

    Na sequência de uma passagem de Além de Bem e Mal, Nietzsche provoca seu leitor afirmando que é capaz de tornar cada um, embora talvez mais inseguro, mais novo do que nunca, cheio de esperanças ainda sem nome, cheio de uma nova vontade e energia, nova relutância e apatia (NIETZSCHE, 1992, §295, p. 195-197). Nietzsche, como psicólogo, parece querer se pronunciar como aquele que, em vez de buscar o autoconhecimento, compreende que os modos de existência são uma constante criação, mesmo que a princípio impliquem relutância e apatia do sujeito assegurado pela consciência.

    Em consonância com essa acepção de psicologia, em outro fragmento de 1888 intitulado O Psicólogo (NIETZSCHE, KSA 13, FP 14 [28], p. 231), Nietzsche lança mais uma vez suas invectivas referentes ao sujeito moderno. Nesse fragmento é comparada a inclinação para o auto-observação com os olhos do pintor (Maler- Auge), pois há uma degenerescência no instinto psicológico tal qual quando tenta-se ocultar nos olhos do pintor a vontade de ver por ver. Com isso, Nietzsche parece reafirmar sua compreensão de que buscar a verdade pelo autoconhecimento do sujeito seria um grande erro psicológico, pois qualquer apreensão do sujeito já surgiria como uma figura degenerada, uma falsificação que escamotearia as determinações da aparência, do imediatamente sentido e do acaso na sua formação.

    Não é à toa que Althusser, na percepção de um colapso da filosofia no século XX, veja em Nietzsche e Freud, os precursores da crise, a coincidência de fazerem, cada qual a seu turno, uma contundente crítica ao sujeito moderno, ou seja, ambos teriam perturbado uma tradição de pensamento que colocou a consciência e o pensamento como provas da autonomia e superioridade do sujeito por sua capacidade de controle dos instintos (BIRMAN, 2005). Marcuse em confluência com essa visão, mesmo que a ênfase do seu livro Eros e Civilização recaia sobre Freud, não deixa de reconhecer em Nietzsche a inauguração de uma nova ótica (ao lado de Freud) de leitura das civilizações; a filosofia nietzschiana seria responsável por denunciar pela primeira vez que a cultura normativa e pacificadora sob a perspectiva do sujeito é, com suas altas exigências morais e intelectuais, um forte processo de repressão e destruição, em que por detrás dela repousaria um fundo de crueldade e barbárie. No rastro de Marcuse, Bento Prado Jr., no ensaio intitulado Entre o alvo e o objeto de desejo: Marcuse crítico de Freud, diz:

    Freud encontra seu lugar real (isto é, de rei) na história do pensamento ocidental ao lado de Nietzsche e de Marx. Os três, no fundo, depois de fechado o ciclo de rememoração histórica de todas as formas de alienação recuperadas pelo pensamento, dizem a mesma coisa: algo ficou de fora. (PRADO, 2005, p. 61).

    A partir dessas considerações, destacamos, então, que o fato de Nietzsche se expressar como psicólogo em uma obra filosófica surge como um movimento de desvencilhamento dos fundamentos filosóficos que asseguram um sujeito que procura cada vez mais se autoconhecer, afinal, para Nietzsche, não há nada de si para se conhecer; toda forma de consciência de si seria apenas uma organização frágil e provisória, uma aparência. Destarte, a psicologia em questão comporia uma demolição da noção de sujeito moderno, contudo sem implicar um salto no abismo, enfatizando-se, portanto, uma espécie de ampliação das possibilidades do sujeito de constantemente se apresentar em várias formas, livrando-se de seus mais importunos e inviáveis fantasmas modernos: verdade, emancipação, certeza, progresso, controle, autoconhecimento etc.

    Nesse sentido, inferimos de antemão que Nietzsche como psicólogo, com sua visão direcionada para os recantos da alma, no seu entendimento de que algo ficou de fora do exame moderno do sujeito, vem oferecer, em sua vocação para os subterrâneos da subjetividade, um exame feito a contrapelo da tradição do pensamento moderno em seu ideal de chegar à verdade objetiva e clara da alma humana. Portanto, o texto que aqui se desenvolve é na intenção de poder acompanhar Nietzsche até o caos incandescente (NIETZSCHE, KSA 10, FP 9 [48], p. 362) que estaria sob a suposta consciência prodigiosa do sujeito moderno.

    2. PROJETO FILOSÓFICO:

    A CRÍTICA DO SUJEITO MODERNO A PARTIR DO COGITO

    Concebido no contexto de uma crítica que se estende sobre o sujeito moderno, o enfrentamento do cogito cartesiano realizado por Nietzsche pode ser caracterizado como um esfacelamento dos alicerces seguros do

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