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Técnica, Medicina e Ética: Sobre a prática do princípio responsabilidade
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Técnica, Medicina e Ética: Sobre a prática do princípio responsabilidade

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Ao resgatar filosoficamente o tema da vida, apoiado nos dados das ciências biológicas, o autor aponta os desafios e as ameaças contemporâneas lançadas pela técnica, diante dos quais seria preciso formular novos critérios éticos, visto que os modelos tradicionais já não dão conta da nova realidade. O tema central da obra é o fato de que a técnica transformou o homem em seu objeto. De sujeito da tecnologia, os avanços no campo da medicina e da moderna biotecnologia fizeram do ser humano um objeto, ou seja, uma espécie de artefato.Quais as consequências disso no campo ético, e quais as novas experiências e obrigações daí advindas? Até onde podem ir os experimentos com seres humanos? O que restará ainda da imagem do homem caso a técnica melhorativa realizar seu projeto utópico? Em que consiste o fato, ontológica e eticamente falando, de que o homem tenha se habilitado a "refabricar inventivamente" a si mesmo? Eis alguns dos problemas tão graves e urgentes quanto polêmicos que Hans Jonas enfrenta nesta obra.
LanguagePortuguês
Release dateMay 22, 2014
ISBN9788534939362
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    Técnica, Medicina e Ética - Hans Jonas

    INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

    Há pelo menos três anos um grupo de pesquisadores brasileiros assumiu a tarefa de falar a filosofia de Hans Jonas em língua portuguesa e de fazer ecoar no cenário filosófico nacional as ideias e as preocupações formuladas por este filósofo judeu-alemão. A tradução coletiva da presente obra é, por isso, mais do que um projeto editorial: é o testemunho da factibilidade e da fertilidade dessa articulação e a prova do interesse conjunto dos professores aqui envolvidos e de todos aqueles que, de norte a sul do país, vêm publicando livros, capítulos de livros e artigos em revistas especializadas, realizando os mais variados eventos, bem como orientando trabalhos de iniciação científica, monografias de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado não só a respeito da filosofia jonasiana, como também dos fecundos diálogos possíveis com seus interlocutores. Tal dinâmica evoca o êxito da iniciativa, que hoje é articulada pelo Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF e pelo grupo de pesquisa Hans Jonas do CNPq, nos quais pesquisadores de nível nacional e internacional têm a oportunidade de debater suas interpretações e enriquecer suas pesquisas.

    Hans Jonas é, sem dúvida, um dos nomes mais expressivos entre os discípulos de Husserl e Heidegger (aos quais acorreu, em Friburgo, no alto dos seus 18 anos), ao lado de Hannah Arendt (de quem foi amigo íntimo durante toda a vida), Leo Strauss, Gerson Scholem e tantos outros. Dos mestres ele herdou o método filosófico denso dos estudos iniciais sobre o gnosticismo e da fenomenologia – reinterpretada em suas próprias mãos, a partir da pergunta concreta sobre a vida. Deles também, como todo bom discípulo, recebeu a capacidade crítica capaz de provocar as rupturas necessárias para que uma filosofia própria seja formulada. No caso de Heidegger, tal ruptura fora ainda mais decisiva, porque, somadas às diferenças teóricas, estão as motivações político-ideológicas e as impossibilidades nascidas do flerte antissemita do mestre, que o discípulo, por motivos óbvios, nunca conseguiu entender ou desculpar. Sionista militante, Jonas foi vítima do nazismo, que, além de retirar-lhe e aos seus, a pátria e a dignidade, arrancou-lhe a mãe, morta num campo de concentração. Fez-se soldado de uma brigada inglesa contra o nazismo e na guerra viu o principal: que a morte é o limite da vida e que o modo moderno de fazer guerra (com uso de uma tecnologia inédita cujo auge é o assombroso evento da bomba atômica lançada sobre as cidades japonesas) não só ameaça a vida em termos individuais, mas também ameaça a própria vida em seu conjunto. Do campo de batalha, com os livros de Darwin nas mãos, escreve cartas formativas a sua esposa, Lore Jonas, as quais seriam o embrião de sua obra O fenômeno da vida.¹ Se a preocupação inicial da primeira fase de seu pensamento é com o marcante dualismo que passa a caracterizar a cultura ocidental desde quando as seitas gnósticas vindas do Oriente passaram a exercer forte e ambígua influência sobre o cristianismo nascente, depois da guerra, Jonas volta seus esforços para a formulação de uma filosofia que superasse tal dualismo na interpretação do que é a vida. Segundo tais intuições, a dualidade ontológica espírito-matéria interditou a questão sobre a vida, velando-a sob os monismos materialista e idealista que fracassaram na explicação do vivente. A interpretação tradicional teria, segundo Jonas, adentrado em equívocos de tal forma que a vida mesma teria permanecido esquecida e incompreendida em ambas as visões.

    Ao resgatar filosoficamente o tema da vida, em busca de uma teoria unificada da unidade psicofísica, apoiado nos dados das ciências biológicas, o autor passa a apontar os desafios e as ameaças contemporâneas lançadas pela técnica, diante dos quais seria preciso formular novos critérios éticos, dado que os modelos tradicionais já não dariam conta da nova realidade. Ao tentar romper o obstáculo do dualismo que impede uma compreensão mais adequada do fenômeno da vida, para estabelecer uma visão a partir da unidade, intersecção e contiguidade entre espírito e matéria, Jonas parte do horizonte filosófico da fenomenologia e do âmbito dos estudos biológicos e suas implicações filosóficas. Com isso, ele abre incontestavelmente a via, original, de uma fenomenologia da vida, segundo Renaud Barbaras.² Para Jonas a vida é, fenomenologicamente falando, um ato relacional marcado pela imediatez e não uma substância que se apresenta ao sujeito consciente. Como experiência originária do vivente, a vida é marcada pela relação com o meio, ou seja, por uma intersubjetividade radical com o mundo. Tal é a porta aberta pela fenomenologia até a vida que recusa a percepção objetivante para afirmar-se como um ato evidente que se afirma a si mesmo.

    Ora, na sua relação com a morte e como efetivação de uma resistência contra a ameaça trazida pela finitude, a vida pertence a um âmbito de riscos e passa a ser entendida de forma imediata a partir da experiência da fragilidade: porque pode morrer é que o vivo se mantém num frágil equilíbrio entre liberdade e necessidade. Para Jonas, desde as formas mais primitivas, a vida mantém com o meio uma relação de liberdade precária e de dependência que é, no primeiro estágio, explicitada pela ideia do metabolismo e, posteriormente, pela complexificação estrutural, pela percepção (ou sensação), pela emoção (desejo, afetividade, medo), pela ação e pela intelecção (imaginação, arte, espírito, consciência, busca pela verdade e fé). Sendo assim, vivendo e se abastecendo da matéria, que lhe fornece os nutrientes, a vida forja a si mesma num gesto de liberdade que expressa tanto a sua diferença em relação ao meio material, quanto a sua pertença a ele do ponto de vista do corpo vivo. Assim, a vida não seria marcada por nenhuma identidade estática, mas por uma constante mudança na matéria que a constitui e na forma que a materializa. Vida é sempre vida vivida ou ainda, vivente.

    Em sua condição instável, a vida seria marcada pela necessidade, mas também, e ao mesmo tempo, pela liberdade, pois, sendo livre, a vida também é frágil, ou melhor, justamente por ser frágil é que a vida é livre, de tal forma que, segundo Marie Geneviève Pinsart,³ a fenomenologia da vida é a história da liberdade através da evolução dos seres vivos. Porque ocorre como fragilidade, precariedade e vulnerabilidade da vida (desde suas formas mais primitivas até o ser humano), a liberdade pode ser compreendida, tal como sugere esta autora, como o fundamento ontológico da interpretação do fenômeno da vida, sendo que, no exercício dessa liberdade e na instabilidade da relação com o mundo exterior, o grande desafio da vida é manter a identidade.

    Essa atividade de intercâmbio e interação constitui a abertura do ser ao mundo, uma abertura perigosa presente tanto no ser humano quanto nos demais âmbitos do vivo, na forma de inúmeras possibilidades de realização no mundo. Todas as formas de vida, por realizarem o intercâmbio metabólico com o meio, estão submetidas a essa abertura arriscada no espaço e no tempo. Isso significa que a vida é também uma aventura de riscos e perigos, porque, parafraseando Hölderlin, onde habita a liberdade, também cresce o perigo.

    Para Jonas, a própria técnica é, ao mesmo tempo, uma expressão da abertura necessária da vida (especialmente humana) para o mundo e um risco sem precedentes, principalmente porque a ela se associa uma dimensão utópica baseada na ideia de progresso. O diagnóstico de Jonas evidencia o perigo dessa aposta, cuja magnitude e ambivalência passa a exigir um poder sobre o poder,⁴ ou seja, uma ética capaz de forjar uma reflexão sobre a técnica, com o fim de impor-lhe, quando for o caso, limites voluntários. Porque a vida diz um sim constante para si mesma, ela é a expressão – ontologicamente falando – de um dever ser. Por meio do princípio responsabilidade, Jonas dá contorno à sua proposta de uma ética para a civilização tecnológica, cujo mote central (que soa quase como um delito, o autor mesmo reconhece) é o fato de que ela se apoia sobre um diagnóstico do perigo trazido pela tecnologia e sobre a evidência de que a vida, em si mesma, guarda uma exigência ética. A vida (o ser) é o fundamento da ética jonasiana (do dever ser, portanto) e é nela que se apoia o princípio responsabilidade.

    Jonas conta a história da tecnologia como a história de uma ascensão do poder humano sobre a natureza e sobre si mesmo. Seriam cinco os estágios dessa elevação da técnica a dado existencial moderno: o estágio mecânico (tida pelo autor como o primeiro estágio do desenvolvimento tecnológico); o químico (que ofereceu a possibilidade de interferir, alterar e redesenhar os próprios padrões naturais, gerando um novo âmbito de artificialidade); o estágio da tecnologia elétrica (que ampliou o âmbito da artificialidade, já que a eletricidade é uma força manipulável criada pelo homem); da eletrônica (que descarta definitivamente a ideia de uma imitação da natureza, para inventar objetos, objetivos e necessidades próprias); e, por último, o estágio biológico (tida como a última fase e a mais poderosa e perigosa de todas).

    É justamente nesse último estágio que se concentra a obra Técnica, medicina e ética, apresentada como uma proposta de aplicação prática do princípio responsabilidade. O tema central da obra é o fato de que a técnica transformou o homem em seu objeto. De sujeito da tecnologia, os avanços no campo geral da medicina e da moderna biotecnologia, fizeram do homem um objeto, ou seja, uma espécie de artefato. Quais as consequências disso no campo ético e quais as novas exigências e obrigações daí advindas? Até onde podem ir os experimentos com seres humanos? O que restará ainda da imagem do homem caso a técnica melhorativa realize seu projeto utópico? Em que consiste o fato, ontológica e eticamente falando, de que o homem tenha se habilitado a refabricar inventivamente⁵ a si mesmo? Eis alguns dos problemas enfrentados por Jonas nessa obra que, em seu conjunto, foi publicada em 1985, mas é formada por onze artigos que foram escritos desde 1969 (alguns em inglês, outros em alemão), além de duas Conversas públicas⁶ sobre O princípio responsabilidade. Neles, o autor enfrenta problemas tão graves e urgentes quanto polêmicos, tendo inspirado decididamente, com suas reflexões, um amplo cenário de debates e legislações da bioética, para a qual a proposta de Jonas apresenta-se absolutamente fértil quanto ao fornecimento de fundamentos teóricos e filosóficos.

    O interesse de Jonas pela temática remonta a 1967. Segundo suas Memórias,⁷ nessa época, por ocasião de um convite da American Academy of Arts and Sciences, de Boston, para uma conferência sobre o tema das Reflexões filosóficas sobre os experimentos com sujeitos humanos. Sob indicação do famoso jurista de Harvard, Paul Freund, a partir desse momento Jonas teria se dado conta de que a sua reflexão ética deveria estar em conexão com o desenvolvimento da técnica moderna. Publicada na revista Daedalus, essa conferência deu a Jonas, segundo as suas palavras, uma inesperada fama pública". Alguns anos mais tarde, a conferência foi pronunciada em Heidelberg, num congresso médico que comprovou que Jonas precisava ultrapassar as reflexões ontológicas genéricas de sua obra anterior (O fenômeno da vida) para chegar a uma ética prática concreta.

    O texto, assim, é formado por vários ensaios, sendo que o mais antigo data de 1969, justamente o supracitado artigo, no qual o autor trata dos experimentos com seres humanos. Esse artigo foi escrito cinco anos depois da Associação Médica Mundial ter formulado a Declaração de Helsinque, considerado o primeiro documento que visava estabelecer parâmetros para o uso de seres humanos em pesquisas científicas. Jonas, como membro do respeitado Hastings Center⁸, aborda esse tema no artigo Reflexões filosóficas sobre experimentos com sujeitos humanos, que forma o capítulo 6 do presente livro.

    Os capítulos 1 e 2, por sua vez, datam de 1979 e de 1982, respectivamente e, juntamente com o capítulo 3 (de 1983) representam uma reflexão contundente sobre a técnica e os desafios éticos que ela guarda. O capítulo 4 (de 1983) e 5 (primeira versão de 1976) formam, juntos, a base da reflexão sobre a liberdade e a responsabilidade da investigação médica.

    O capítulo 7, Arte médica e responsabilidade humana, teve sua primeira versão publicada em 1983. O capítulo 8 é formado pelo ensaio intitulado Façamos um clone humano: sobre a eugenia, escrito originalmente em inglês no ano de 1974, sob o título de Biological Engineering – A Preview, antes mesmo da publicação d’O princípio responsabilidade. O capítulo 9 (Micróbios, gametas e zigotos: ainda sobre o novo papel criador do ser humano), por sua vez, foi escrito em 1984 como resultado da conferência apresentada por Jonas em 29 de maio de 1984, em Frankfurt/Main, no centenário da divisão Tharma de Hoechst A. G. Esse texto recebeu ainda mais uma publicação em inglês, com o título de Ethics and Biogenetic Art (Social Research, vol. 52, 1985, p. 491-504), sendo reeditado com o mesmo título num volume posterior da mesma revista (cf. Social Research, vol. 71, n° 3, Fall 2004, p. 569-582). O capítulo 10 (Morte cerebral e banco de órgãos humanos) teve uma versão inicial em 1969 e recupera um debate entre professores de Harvard em torno da definição da morte, contra a qual Jonas se opôs, o que o levou a ser convidado a acompanhar de perto os transplantes realizados pelos médicos do Medical Center da Universidade da Califórnia. O artigo teve outras duas versões (uma de 1974 e outra de 1980), nas quais Jonas mantém seu receio quanto aos abusos que essa nova definição sobre a morte poderia evocar. O último ensaio, de número 11 (Direito de morrer) enfrenta o tema da eutanásia e foi publicado originariamente em inglês no ano de 1978 e em alemão, em 1984.

    Por sua importância filosófica, ética, prática e política, o livro que o leitor tem em mãos interessa aos filósofos, pesquisadores e estudantes da filosofia, tanto quanto aos profissionais da área da saúde, cujos desafios éticos crescem na mesma medida dos avanços tecnológicos. Mas essa é uma obra ainda maior. Seu interesse alcança todos aqueles cidadãos preocupados em entender e sopesar os verdadeiros custos e os reais benefícios que se escondem sob as promessas utópicas e ao mesmo tempo apocalípticas do novo poder técnico. Se o entusiasmo dessas promessas é equivalente à medida da crise na própria imagem do homem que elas pretendem melhorar, alterar ou até mesmo recriar, esse é um sinal evidente da necessidade (que é, no limite, também uma obrigação) de que a nossa geração não somente desconfie dos êxitos tecnológicos, mas reflita sobre os perigos que os acompanham. No campo ético, não temos mais direito à ignorância. Sob pena de que sacrifiquemos parte da humanidade – justamente aquela que emite os mais fortes apelos à nossa responsabilidade. Ali onde o homem sofre, no leito de um hospital ou na hora mais sombria em que sua morte se aproxima, é onde cresce a obrigação dos demais membros da sociedade humana, principalmente dos profissionais responsáveis pelo seu cuidado. Qualquer promessa, bem como qualquer dissentimento ou negação de esperanças, nesse caso, são decisivos e devem ser tratados com a maior das responsabilidades.

    Ciente da vocação da filosofia em fornecer pistas para que os problemas da vida humana sejam enfrentados, Jonas retoma com fertilidade a relação, quase sempre conflituosa e sempre promissora, entre filosofia e ciência. Os resultados estão expressos já na ordem das palavras que dão título ao livro: uma reflexão sobre a técnica (os dois primeiros capítulos são, provavelmente, os textos mais diretos e objetivos de Jonas sobre esse tema, vindo a constituir a base do seu programa para uma filosofia da técnica), os seus impactos sobre a medicina e as suas consequências éticas. Em cada um dos capítulos que formam essa obra, o leitor encontrará um autor lúcido, sem afetações literárias ou teóricas, humano, modesto e engajado com os grandes desafios de sua época, que também é a nossa. Tudo isso faz da obra de Jonas não só um documento atual, como também atualizado em suas principais intuições.

    Essa é a principal razão para que alguns colegas que formam o GT Hans Jonas tenham reunido esforços para verter ao público de língua portuguesa uma obra ao mesmo tempo tão rica e tão aberta – detentora daquela espécie de inacabamento que soa como um convite para que os seus leitores e interessados sejam seus continuadores. Eis o nosso serviço.

    Jelson Oliveira

    , coordenação do GT Hans Jonas da ANPOF

    Curitiba, primavera de 2013.

    PREFÁCIO

    Oprincípio responsabilidade (1979) prometia uma parte apli­ cada na qual se ilustraria com exemplos selecionados o novo tipo de questões e obrigações éticas que a caixa de Pandora da tecnologia nos presenteia junto com seus dons e na qual, na medida do possível, se facilitaria a forma de responder corretamente a elas. Esse passo do geral para o particular e da teoria para as proximidades da prática é o que se intenta dar nos artigos reunidos aqui. Pretendem, portanto, começar com a casuística, cujo inexplorado território da responsabilidade tecnológica exige ainda mais do que a moral e o direito em geral pedem no terreno já conhecido. Desde que extremo do amplo espectro tecnológico se pode propor um começo assim? Sem dúvida o melhor será fazê-lo a partir daquilo que é mais próximo a nós, ali onde a técnica tem diretamente por objeto o próprio homem e onde o conhecimento de nós mesmos, a ideia de nosso bem e de nosso mal, tem uma responsabilidade direta, ou seja: no âmbito da biologia humana e da medicina . Aqui, entre homens a sós consigo mesmos, é onde a ética se encontra em seu terreno e necessita pouco conhecimento do grande mundo, do equilíbrio local e global da biosfera e do efeito remoto de suas perturbações, para encontrar seu caminho. O que é desde já visível aqui, inclusive imaginável, pode ser tratado desde já, à luz da nossa imagem do homem, com alguma certeza tanto teórica quanto prescritiva, e o achado pode ser seguido sem dificuldade, porque nesse terreno nenhuma pressão externa (exceto no caso do problema da população) empurra os conhecimentos à ação. Nesse horizonte, pois, têm seu ponto de partida as seguintes investigações.

    Sem dúvida, dada a escala da ameaça coletiva à qual a responsabilidade tem que fazer frente hoje em dia, podem existir coisas de maior e mais global urgência que as afinadas questões, em parte muito pessoais, da humanidade médica e genético-técnica. Pensamos, antes de tudo, na dura ameaça do holocausto atômico e, logo, na ameaça sutil da destruição ambiental. Mas sobre elas – sobre o suicídio da humanidade – a ética não tem nada a dizer, salvo um incondicional não em torno do qual todos estão de acordo, inclusive sem recorrer à filosofia. A ética e a metafísica fizeram sua entrada esotérica a respeito ao demonstrar por que ele não tem que ser incondicional, com um motivo válido na incondicional obrigação da humanidade em manter sua própria existência (fizemos uma tentativa a respeito disso n’O princípio responsabilidade). Como evitar a loucura – o pecado literalmente mortal – é coisa da política, onde, como se sabe, desaparece a unanimidade. A teoria ética tem tanto menos que fazer aqui quanto em relação à forma radical de eliminar o perigo, a total erradicação das armas nucleares – a diferença de outras erradicações ponderáveis de formas de poder tecnicamente perigosas –, não faz dano a ninguém, não impõe sacrifício algum do desfrute das bênçãos e maldições da tecnologia (à qual tais erradicações não afetam), cujo consumo e produtividade a serviço do bem-estar aumenta ainda mais ao poupar o gasto em potencial de aniquilação: de forma que não surge a questão, sem dúvida ética, de qual sacrifício é exigível conforme a uma justa partilha das cargas. Fora do fragor da política, para a razão e os costumes, tudo está claro como a luz do dia e não há lugar para sopesar direitos ou bens em conflito. Por isso, esse livro não fala dela.

    Não é tão claro o caso de outra ameaça apocalíptica da técnica moderna, a lenta destruição do meio ambiente, que pode terminar em uma não menor desolação e em sofrimentos quem sabe até maiores que uma repentina catástrofe. Sem dúvida o não à ruína final claramente visível será tão unânime como no caso da morte atômica. Mas o processo que conduz a ela avança por muitos caminhos e em mil pequenos passos, em toda parte cheio de desconhecimento em relação aos valores críticos; isto é, há questões abertas no que diz respeito até onde se pode chegar aqui ou ali; é um processo que não depende de dramáticas decisões, mas da banal cotidianidade e do uso de recursos em si mesmos inocentes, que favorecem a vida, que se tornaram necessários: toda a incansável tecnologia de nossa produção de bens, que alimenta o consumo mundial. Aqui já não se pode falar de prevenção indolor, como no caso dos arsenais de armas que esperam em silêncio, e se perde a unanimidade do não com respeito à ameaça abstrata para o futuro: a da ciência, porque é defeituosa; a da vontade, porque o distante que talvez exige um sacrifício não afeta as restrições da atual certeza. Inclusive o sim ético à obrigação geral diverge de si mesmo, porque a divisão desigual do sacrifício global exigido ofende a própria moral: quem vai defender proteção ambiental a populações famintas?

    Para o filósofo é muito cedo para penetrar nessa espessura, para ensaiar a casuística. Ainda não existe a ciência ambiental integral que seria o pressuposto para isso. Pelo menos as ciências competentes (tanto a da natureza quanto a da economia) devem começar por elaborar a partir da rede de causalidades as opções práticas sobre as quais aplicar concretamente a análise ética, e isso só está em seus começos. Ainda não podemos confundir o telescópio com a lupa. Entretanto, até que se deem as condições cognitivas prévias da concretização, o respeito e a cautela das que falava n’O princípio responsabilidade e a consciência do perigo, devem nos distanciar, em sentido mais geral, da perniciosa rapidez e fazer crescer em nós um espírito de nova abstenção. Por isso – pelo contrário da supersimplicidade do apocalipse nuclear –, este livro também guarda silêncio acerca da ética ambiental, onde se experimenta com paradigmas da prática.

    Esses paradigmas são também os que se inferem no terreno da biologia humana. Por mais que também esta, através do caminho que passa pelo problema da população, penetra na ecologia e, nesse sentido, como fator no destino do meio ambiente e função dele, é também assunto de cifras e magnitudes causais objetivas – uma peça de ciência natural biosférica, pois –, representa, contudo, em si mesma, uma dimensão da moralidade na qual questões essencialmente qualitativas, não quantitativas, de tipo puramente humano, exigem nossa resposta humana e valorativa. Para isso devemos escutar o nosso interior. Mas as questões que requerem aqui nossa resposta surgem da nova tecnologia, própria desse âmbito que pode ser incluído no conceito amplo de medicina. Sem dúvida, a medicina foi a mais antiga reunião de ciência e arte, pensada essencialmente – diferentemente da técnica saqueadora do domínio do meio ambiente – para o bem de seu objeto. Com a meta inequívoca da luta contra a enfermidade, a cura e o alívio, manteve-se até agora eticamente inquestionável e exposta tão só à dúvida de sua capacidade em cada momento. Mas hoje, com meios de poder inteiramente novos – sua cota de ganância no progresso científico-técnico geral – pode propor a si mesma objetivos que escapam a essa inquestionável beneficência; inclusive pode perseguir seus fins tradicionais com métodos que despertam a dúvida ética. As factibilidades que oferecem, sobretudo os mais inovadores e mais ambiciosos desses objetivos e caminhos, e que afetam especialmente o princípio e o final de nossa existência, o nosso nascimento e a nossa morte, tocam questões últimas da nossa existência humana: o conceito de bonum humanum, o sentido da vida e da morte, a dignidade da pessoa, a integridade da imagem do homem (em termos religiosos: a imago dei). Essas são autênticas perguntas para o filósofo, que pode abordá-las conforme os critérios do ser, livre, portanto, do hieroglífico das cifras e das intrincadas causalidades mundiais que governam em linhas gerais o efeito de nossa ação. Aqui, onde o paradigma individual já deve dizer toda a sua verdade, o filósofo pode fazer com que se produza experimentalmente o encontro da ética com a técnica no exemplo que eleja e com seus próprios recursos, e não precisa esperar pela ciência elaborada da enfermidade global e sua possível cura. Aqui também, como já dissemos, o seguimento do critério ético obtido não se torna, por sua vez, um problema.

    Até aqui nos referimos à especial temática que tratamos de precisar nas aplicações do princípio responsabilidade a casos concretos no campo tecnológico (capítulos 6-11). Considerações mais gerais sobre o tema ciência, técnica e ética, que também situem no quadro sistemático quem não leu a obra anterior, demarcam as discussões específicas. Essas surgiram por variados motivos ao longo de muitos anos: o artigo mais antigo é do ano de 1968. Sem dúvida, em sua atual publicação, na maioria dos casos sem modificações, incluem muitas coisas que, entretanto, dado o rápido crescimento da bibliografia, foram ditas também por outros. É um sinal alentador que a discussão pública esteja em marcha em muitos idiomas. Nela, as diferenças de opinião são tão importantes quanto as concordâncias. Será compreendido, por minha idade, que tenha de falhar na hora de fazer justiça ao estado atual dos conhecimentos mediante as correspondentes indicações. O exposto reproduz, ainda hoje – de forma experimental, como é adequado ao caso – minha opinião acerca das coisas.

    Hans Jonas

    New Rochelle, New York, USA,

    abril de 1985

    1 Em português, uma versão da obra foi traduzida como O princípio vida, ensaios de uma filosofia da biologia. A primeira versão, entretanto, que se encontra depositada nos arquivos da Universidade de Constança, na Alemanha, dá conta de que Jonas tinha inicialmente intitulado a obra de Organism and Freedom e muito provavelmente por sugestão de seu editor, acabou optando por Phenomenon of life. Como se nota facilmente pela leitura de tais manuscritos, não apenas o título foi alterado, mas também a própria organização do texto. A versão alemã foi publicada posteriormente, sob o título de Organismus und Freiheit. No prefácio de 1972, Jonas explica que a versão em alemão foi traduzida por ele e por Dr. Dockhorn (introdução e capítulos 3, 6, 7 e 8) e que os textos nos quais trabalhou sofreram algumas atualizações e revisões estilísticas. Além disso, ele repara que a versão alemã tem duas exceções em relação à inglesa: o capítulo 4 não figurava naquela; e o ensaio de número 10 (sobre Heidegger e a teologia) não fora incluído na versão alemã, porque o texto já havia sido publicado na língua materna do autor, em 1967.

    2 Cf. Renaud BARBARAS, Vie et intentionnalité, Recherches phénomenologiques, Paris, Vrin, 2003, p. 43 (Col. Problèmes et controverses).

    3 Cf. Marie-Geneviève PINSART, Jonas et la liberté, Dimensions théologiques, ontologiques, éthiques et politiques, Paris, Libraire philosophique J. Vrin, 2002, p. 79.

    4 Cf. Hans JONAS, Técnica, Medicina e ética, p. 48.

    5 Cf. Hans JONAS, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p. 57.

    6 A primeira refere-se a uma mesa-redonda realizada por ocasião de um simpósio realizado no Hotel Schlöss Fuschl, na Áustria, entre 7 e 10 de maio de 1981, na qual Jonas debateu com eminentes interlocutores de áreas tão diversas como a ciência e a filosofia política, a teologia, o direito penal e a jurisprudência, a física, a bioquímica e a tecnologia de materiais. A segunda dessas Conversas é uma entrevista concedida ao periódico Nachrichten aus Chemie, Technik und Laboratorium, em 1981.

    7 Hans JONAS, Memorias, Madri, 2005, p. 341.

    8 Jonas fora nomeado sócio-fundador desse importante centro de pesquisas médicas norte-americano que criou, em 1969, o Instituto de Bioética, o qual desempenhou um importante papel na atividade pública do autor a partir de então. A atuação de Jonas foi decisiva a partir de então no campo político e mesmo legal e seu interesse pelos problemas éticos ligados à técnica moderna, principalmente no campo da medicina. A fama do Hastings Center não tardou e sua influência alcançou comissões do Congresso de Washington. Atualmente o Hastings Center continua atuante e apresenta-se como um instituto independente, não partidário e sem fins lucrativos de pesquisa sobre bioética e tem como missão desenvolver reflexões sobre fundamentos éticos na área de saúde, medicina e meio ambiente, estudando como elas afetam indivíduos, comunidades e sociedades.

    Capítulo 1

    POR QUE A TÉCNICA MODERNA É OBJETO DA FILOSOFIA

    Dado que hoje em dia a técnica avança sobre quase tudo o que diz respeito aos homens – vida e morte, pensamento e sentimento, ação e padecimento, ambiente e coisas, desejos e destino, presente e futuro – em resumo, dado que ela se converteu em um problema tanto central quanto premente de toda a existência humana sobre a terra, já é um assunto de filosofia e é preciso que exista alguma coisa como uma filosofia da tecnologia. Esta é bastante incipiente e é preciso que se trabalhe ainda sobre ela. Para isso, é preciso começar analisando o fenômeno de forma descritiva e, a partir dele, obter analiticamente os aspectos parciais de dignidade filosófica com os que há de se continuar trabalhando na interpretação de conjunto. O que se segue pretende começar a fazê-lo perguntando pela especificidade desta nova tecnologia que, de imediato, parece dotada de atributos tão extremos como a promessa utópica e a promessa apocalíptica, com uma qualidade, em todo caso, quase escatológica.

    Nesse ponto, resulta útil para nosso objetivo a velha distinção entre forma e conteúdo, que nos permite distinguir como principais os dois temas seguintes:

    1. A dinâmica formal da tecnologia como uma empresa coletiva continuada que avança conforme "leis de

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