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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDKJÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
;■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
,. dissipem e a vivencia católica se fortaleca
J~ no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
índice

Fág

O SEGREDO DA FELICIDADE 421

A linguagem do passado:

"NUM PERGAMINHO, OUTRA VERSAO DOS DEZ MANDAMIENTOS" . . 423

U.m livro em foco:

ANJOS E DEMONIOS: REALIDADE OU MITO? 435

Um problema bíblico:

O CHAMADO "COMA JOANEIT (' Jo 5,7b-8a) 451

Vale ludo?

"O ADULTERIO NAO MAIS SERÁ CONSIDERADO CRIME"? 462

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO :

Relacoes sexuais antes rio casamento: o debctíc contem


poráneo. — As cruzadas medievais: obscurantismo ou
heroísmo? — E a mensagem do galo?

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS >-

Assinatura anual CrS 30 Ofi


Número avulso de qualquer mes .... CrS 4,00
Volumes cncadernados de 1958 e 1959 (proco unitario» .... CrS 35,00
tndice Geral de 1957 a 1964 Cr$ 10,00
tndice de qualquer ano CrS 3,00

EDITORA LAUDES S. A.
REDACAO DE PB ADMINISTRAgAO
Caixa Postal 2.666 Rúa Sao Rafael. 38. ZC0Í)
ZC-00 20000 Rio de Janeiro (GB)
20000 Rio «le Janeiro <GB> Tels. : 268-9981 c 268-270ÍÍ
O SEGREDO DA FELICIDADE
A procura da Felicidade corresponde a um dos anseios mais
espontáneos do ser humano. Embora os filósofos tenham con
cebido as mais diversas «receitas» para proporcionar o encon
tró da felicidade, a rotina da natureza sugere que ela se encon
trará em boa parte (se nao exclusivamente) no «preservar-se
de incómodos»: «Para que fazer por mais... quando posso fazer
por menos?» É esta a filosofía da poupanga de si mesmo e da
subtracáo.

A experiencia muitas vezes — mas nem sempre — com-


prova esta filosofía ou «receita» de felicidade. Por mais iró
nico que isto pareca, o poupar-se nao é sempre fonte de alegría
e bem-estar; ilude o homem e, depois, deixa-o decepcionado.

Consciente desta verdade, a escritora Marina Colasanti


leva-nos a olhar em torno de nos e refletir um pouco:

EU SEI, MAS NAO DEVIA

"Eu sei que a gente se As bacterias da agua potável.


acostuma. A contaminagáo da agua do
mar. A lenta morte dos ríos.
Mas nao devia.
Se acostuma a nao ouvir pas-
A gente se acostuma a mo sarinhos, a nao ter galo de
rar em apartamento de fundos madrugada, a temer a hidro
e a nao ter outra vista que nao fobia dos caes, a nao colher
as janelas ao redor. E, porque fruta no pé, a nao ter sequer
nao tem vista, logo se acostu urna planta.
ma a nao olhar para fora. E,
porque nao olha para tora, lo A gente se acostuma a coi
go se acostuma a nao abrir de
sas demais, para nao sofrer.
todo as cortinas. E, porque
Em doses pequeñas, tentando
nao perceber; vai afastando
nao abre as cortinas, logo se
urna dor aqui, um ressenti-
acostuma a acender mais ce
mento al i, urna revolta acola.
do a luz. E, á medida que se
Se o cinema está cheio, a
acostuma, esquece o sol, es-
gente senta na primeira fila e
quece o ar, esquece a ampli-
torce um pouco o pescogo. Se
dáo...
a praia está contaminada, a
A gente se acostuma á po- gente molha só os pés, e sua
luicao. As salas fechadas, de no resto do corpo. Se o traba-
ar condicionado e cheiro de Iho está duro, a gente se con
cigarro. A luz artificial, de li- sola pensando no fim de se
geiro tremor. Ao choque que mana. E, se no fim de sema
os olhos levam na luz natural. na, nao há muito que fazer, a

— 421 —
gente va¡ dormir cedo e aínda faca e da baioneta, para pou-
fica satisíeita, porque tem par o peito.
sempre um sonó atrasado.

A gente se acostuma para A gente se acostuma para


nao se ralar na aspereza, para poupar a vida... A vida que
preservar a pele. Se acostu- aos poucos se gasta e que,
ma para evitar feridas, sangra- gasta de tanto se acostumar,
mentos, para esquivar-se da se perde de si mesma".

A poetisa foi feliz na redagáo de seus versos. Fazendo o


leilor percorrer a realidade da vida cotidiana, mostra como
esta se acha marcada por um conjunto de deficiencias, cuja
tiranía bem sentimos. Pelo fato, porém, de serem cotidianas,
essas deficiencias acabam subjugando as aspiragóes do ser hu
mano a algo de mais elevado. A pessoa aos poucos vai crendo
que o melhor partido, na vida, é mesmo o de aceitar as reali
dades negativas e tentar anestesiar-se, a fim de nao se des
gastar na luta.

Infeliz, quem assim pensa! Tal pessoa nao percebe que,


de todo modo, a vida se vai desgastando? Sim; ela nos escapa
todos os dias. Em conseqüéncia, há apenas duas alternativas
para o homem: aceitar o desgaste da vida, sem a marcar pela
inteligencia e a vontade, sem a viver propriamcnte, como um
caramujo encolhido em sua casa... Ou aceitar o desgaste da
vida de maneira consciente, procurando vivé-la intensamente,
desdobrando as energías latentes em nos, a fim de assim cons
truir algo de melhor em torno de nos.

Diante de tal dilema, o cristáo nao tem opqáo senáo pela


segunda alternativa. Verdade é que nem sempre Ihe é possí-
vel deixar de morar em apartamento de fundo... Mas é-lhe
possível e deveroso despertar sempre a sua consciéncia e a de
seu próximo para certos valores que a vida nao tem, mas que
ela poderia ter. A procura de tais valores exige luta, mas é
a única maneira de dar sentido á vida. É também o grande
segredo de sermos felfees, pois, como dizia o Senhor, «há mais
felicidade em dar do que em receber» (At 20, 35).

Em outros termos: melhor é que a vida se desgaste por


ser bem aplicada e desabrochada com inteligencia, fé e amor,
do que permitir que se desgaste por simples efeito das leis do
sistema vegetativo e sensitivo de quem se encolhe e esconde.

E.B.

422 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XIV — N? 166 — Outubro de 1973

A linguagem do passado:

"num pergaminho, outra versao dos dez


mandamentos"
Em sintese: A imprensa do Brasil em abril de 1973 notlciou a deseo-
berta, em Israel, de um "manuscrito do Templo", no qual os mandamentos
de Deus estariam redigldos de novo modo e novas lels haveriam sido acres*
contadas ás classicamente conhecldas.

Na verdade, trata-se de um documento oriundo de Qumran, a NO do


Mar Morto, onde vivia urna comunidade de monges judeus (talvez essénlos),
que se opunham fortemente ao judaismo oficial de Jerusalém; julgavam
que os sacerdotes e mestres na Cidade Santa haviam pervertido as tradi-
cóes sagradas de Israel, pactuando com os costumes e os Interesses dos
estrangeiros que haviam penetrado no pafs. Dai a retirada de bom número
de sacerdotes e seus seguidores para o deserto de Judá (Qumran), onde
se alimentavam espiritualmente pela oragao e por severa disciplina de vida.
Em Qumran, tais monges se dedicavam á confeccSo de escritos de esplrl-
tualidade; é a esta colecáo que pertence o chamado "Manuscrito do Tem
plo", que, depois de séculos de laténcia, em 1967 chegou ás mSos do Prof.
Yigael Yadin, de Jerusalém. Este divulgou sem demora o conteúdo do ma
nuscrito, mostrando a índole rigorista dos seus dizeres, que assim preterí*
dlam opor-se á Mlchná ou ás normas do judaismo oficial de Jerusalém.

Nao se trata, porém, de nova verseo do Decálogo ou dos dez manda


mentos da Leí de Deus, nem íiá no famoso manuscrito algo que Interesse
seriamente á critica ou reconstitulc3o do texto da Biblia. — Em suma, o
documento em foco vem a ser um entre muitos outros textos que exprlmem
a espiritualidade da seita de monges judeus localizados em Qumran, ás
margens do Mar Morto entre o séc. II a.C. e o séc. I d.C.

Comentario: O «O Estado de Sao Paulo», de 6 e 8/IV/73,


noticiou urna descoberta «sensacional» feita na térra de Israel
e assim divulgada pelo mesmo jornal em sua edicáo de 6/TV/73:

i"O Estado de Sio Paulo" 8/IV/73

— 423 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 160/1973

"TEL-AVIV — Urna nova versáo dos Dez Mandamentos, com prescrisóes


mais rigorosas do que as comidas na bioiia e que pos&iveimeme intiuun-
cíou os primen os cusíaos, toi descooeita e traüuzida pelo arqueólogo e
general ¡sraelense Yigael Yadin.

O documento, escrito dois sécutos antes de Cristo, contém, além dos


mandamentos, os seguintes assuntos: leis nao mencionadas na tsíDiia, como
a de que os judeus aevem escoiner um rei e construir um templo; comple
xas explicares para a construcao de um templo em Jerusaiem; proiDlcao
da bigamia e do divoicio e a exigencia de que os sacerdotes devem ser
ceiibaiários.

O pergaminho é escrito na primeira pessoa, como se losse o próprio


Deus queni esiívesse talando e nao um pioleta, em seu nome, como acon
tece no Antigo Testamento.

Segundo Yadin, o pergaminho serviu de norma para a seita dos essé-


nios, que viveu na regiao oe Qumran. O arqueólogo acredita que essas leis
foram posienormente transcritas do chamado 'Peigaminno do Templo'.

O Pergaminho de Qumran traz lambém normas para a defesa militar


do povo judeu. Segundo o documento, urna decima parte do txérciio deve
pieparar-se ao primeiro sinal de perigo. Posteriormente, na proporcáo das
ameayas do inimigo, devem ser mobinzados um quinto, um terco, a meta-
de, dois tercos e nnalmente todas as forjas militares. 'Sem revelar qualquer
segredo militar, posso assegurar que esse plano é idéntico ao que seguimos
desde que o exercito egipcio penetrou no deseito do binai, ñas vesperaa
da Guerra-dos Seis Días', comentou Yadin.

O arqueólogo revelou que comprara o pergaminho a um comerciante


árabe de antigúidades em Belém por um prego equivalente a 600 mil cru
zeiros, durante a guerra de junho de 1967. Foi encontrado ñas margens do
Mar Morto e está em relativamente bom estado de conservacao. O general
espera decifrar e publicar o texto integral do pergaminho ainda este ano".

O leitor deste noticiario é naturalmente incitado a desejar


pormenores e precisóes sobre a famosa descoberta: implicará
em alteragóes do texto bíblico? Há de modificar nossos conhe-
cimentos da historia do Cristianismo? — É a estas e outras
dúvidas que procuraremos oferecer resposta no decorrer destas
páginas.

1. Fundo de cena: os manuscritos de Qumran

O chamado «Pergaminho» ou «Manuscrito do Templo»


nos leva ao ambiente de Qumran.

Qumran é urna localidade situada no deserto de Judá, á


margem NO do Mar Morto. Em urna gruta daquela regiáo, um
pastor beduino, que andava á procura de urna ovelha (ao
menos, esta é a versáo mais comum do episodio), descobriu em
fevereiro de 1947 sete jarros de argila, dos quais um continha

_ 424 —
OUTRA VERSAO DOS MANDAMENTOS?

tres rolos de pergaminho. Esse material, a principio nao clara


mente identificado, chegou finalmente as máos dos estudiosos
de Israel e dos Estados Unidos da América. Estes reconhece-
ram que se tratava de manuscritos bíblicos de alto valor, pois
eram extremamente antigos.

Em 1949, tendo sido de certo modo pacificada a situagáo


na térra de Israel, o Prof. G. Lankester Harding, Diretor do
Departamento de Antigüidades da Jordania, e o P. Roland de
Vaux O.P., Diretor da «Ecole Biblique» de Jerusalém, deram
inicio a procuras e escavagóes sistemáticas na regiáo de Qumran.
Essas pesquisas duraram até 1958 e se estenderam por toda a
regiáo vizinha, abrangendo Murabba'at, Khirbet Mird, Ain
Feshkha, Massada. Ao todo descobriram-se onze grutas, ñas
quais se acharam cerca de 900 manuscritos, somente dez destes
estáo mais ou menos integralmente conservados; os demais
sao fragmentos de leitura ora mais, ora menos difícil. A con-
feccjio desses escritos estende-se do séc. II a.C. ao séc. I d.C.

Uma quarta parte desses textos sao livros ou fragmentos


bíblicos. Todos os livros da Biblia hebraica estáo ai represen
tados, exceto o de Ester; há mesmo diversos manuscritos de
um mesmo livro bíblico — o que mostra quais eram os textos
mais estimados e usados na regiáo: Isaías, Deuteronómio, os
Profetas Menores, os Salmos.

Alguns manuscritos de Qumran e adjacéncias sao copias


de textos bíblicos muitos próximas, cronológicamente, dos seus
origináis ou autógrafos. Assim um manuscrito de Daniel encon
trado em Qumran é apenas cem anos posterior aos autógrafos
de Daniel, que a crítica atribuí geralmente ao ano de 165 a.C.
Também um manuscrito do Eclesiastes achado em Qumran
dista do seu autógrafo apenas um século. — Para se avaliar a
importancia deste fato. seja lembrado oue até 1948 os mais
antigos manuscritos que se tinham da Biblia hebraica, data-
vam dos séc. K eX depois de Cristo. Ora os manuscritos de
Qumran permitem retroceder cerca de mil anos na historia do
texto de ateuns livros b'blicos. Verificou-se, pelo confronto dos
manuscritos, que o texto geralmente usado ñas traducóes e
edigóes da Biblia em nossos dias é substancialmente o mesmo
que se usava já cerca de 2.000 anos atrás.

Além dos textos bíblicos, as grutas de Qumran continham


dois outros tipos de manuscritos: 1) apócrifos, tais como esta-

— 425 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

vam em uso no judaismo do tempo de Cristo; 2) os escritos de


urna comunidade religiosa judaica, que tinha sua Regra ou Ma
nual de iDsciplina e seus comentarios da S. Escritura, os quais
revelavam urna mentalidade fortemente caracterizada por
expectativas messiánicas.

Se a historia das pesquisas ñas grutas dos arredores do


Mar Morto estava encerrada em 1958, o mesmo nao se podia
dizer no tocante á exploragáo e posse dos manuscritos. Com
efeito, em muitos casos foram os beduinos os primeiros a pene
trar ñas grutas e retirar os jarros e pergaminhos. Ora nao se
sabia se tudo o que os beduinos haviam descoberto já fora
vendido aos arqueólogos e cientistas. Registrou-se, por eexmplo,
urna surpresa em 1967, quando, após a Guerra dos Seis Dias,
os israelianos anunciaram a aquisicáo de um manuscrito do
comprimento de 8,60 m, portador de um texto inédito que se
dispóe em 66 colunas. Esse manuscrito, que veio ser chamado
«o Rolo do Templo» (porque, entre outras coisas, descreve mi
nuciosamente o Templo de Jerusalém), parece ter sido o último
a ser adquirido pelos sabios. Resta agora a ingente e paciente
tarefa de ler, decifrar e publicar o conteudo da vasta biblioteca
de Qumran — trabalho este que poderá estender-se por um
total de cinqüenta anos.

É precisamente do «Rolo do Templo» que trata a noticia


do «O Estado de Sao Paulo» atrás citada. Ela se refere a urna
publicacáo feita pelo arqueólogo que estuda tal Rolo, o Prof.
Yigael Yadin, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Tal pu-
blicacáo descreve o mencionado Rolo no periódico «Nouvelles
Chrétiennes d'Israel», vol. XVIII (1967) n" 3-4, dezembro
1967, pp. 40-48.

O manuscrito, antes de ser transferido as máos do Prof.


Yadin, passara alguns anos em condigóes extremamente des-
favoráveis la sua boa conservagáo (sem se contarem os dois mil
anos de sua estada na gruta de Qumran). Todavía, tratado por
processos técnicos, pode ser aberto de modo que o seu conteudo
é hoje legível aos estudiosos.

Antes de entrarmos na consideragáo mais detida desse


importante pergaminho, impóe-se urna breve apresentagáo da
comunidade religiosa que deu origem ao mesmo e á grande
maioria da biblioteca da regiáo de Qumran.

— 426 —
OUTRA VERSAO DOS MANDAMENTOS?

2. O ambiente humano de 'Qumran

1. As escavacóes levadas a efeito em Qumran nos anos


de 1951, 1953-1956 e 1958 (so se podía trabalhar no invernó,
quando há um pouco de chuva e a temperatura é menos quente
nos arredores do Mar Morto) deram a ver alguns estágios de
habitagáo humana na regiáo.

O mais antigo estrado faz retroceder até os séc. VII/VII


a.C. Parece ser o de urna fortaleza, á qual se prendía urna
cisterna redonda (a única de tal tipo no local). Essa construcao
pode ser atribuida ao reinado de Ozias, reí de Judá (781-740
a.C.; cf. 2 Crón 26,10); o nome da fortaleza é talvez indicado
por Jos 15,62: Ir-ham-melah, cidade do Sal.

Essa fortaleza deve ter caído em ruinas quando caiu o


reino de Judá em 587 a.C. No séc. n a.C, o lugar foi de
novo povoado por um grupo de sacerdotes judeus e seus segui
dores, que julgavam estar sendo profanada a Cidade Santa de
Jerusalém pela dinastía hasmonéia, amiga da cultura grega.
As primeiras construcóes dessa nova fase de habitagáo parecem
datar de 130/120 a.C; grande valor era dado aos aquedutos
e cisternas, pois a comunidade tinha que captar toda a agua
das chuvas da regiáo. A vida deve-se ter desenrolado tranqui
lamente em Qumran, num clima monástico de oragáo e traba-
lho, até 31 a.C, quando um terremoto (mencionado por Flávio
José) terá obligado os habitantes a abandonaren! o local; des-
locamento de construgóes e vestigios de incendio atestam tal
abalo cismico. Aproximadamente no ano 4 a.C (é o exanw
das moedas encontradas no local que permite datar), os monges
de Qumran voltaram ao seu deserto, reconstruindo ai os diver
sos recintos do mosteiro; essa segunda fase de vida monástica
deve ter sido assaz intensa e próspera ;■ terminou, porém, em
junho de 68 d.C, quando as tropas da X Legiáo Romana,
desejando atacar Jerusalém, fízeram ímpeto em direcáo de
Jericó e do Mar Morto. Apressadamente, entáo, os monges,
antes de fugir, ocultaram ñas grutas das vizinhancas os seus
numerosos manuscritos, esperando poder encontrá-los de novo,
quando lá voltassem após a borrasca da guerra!... Tal espe-
ranca nao se cumpriu; os romanos se apoderaram do local (tal
vez tenham vitimado parte dos habitantes remanescentes) e lá
estabeleceram um fortim, que subsistiu até o fim do séc. L

Em Qumran refugiou-se ainda um pequeño grupo de judeus


rebeldes durante a insurreicáo anti-romana de 132-135 d.C.

— 427 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

— Terminada, porém, esta guerra, a localidade, com seus te-


souros culturáis, ficou deserta e, por assim dizer, ignorada do
mundo até 1947! As ruinas do antigo mosteiro foram sendo
recobertas por areia e pedras.

2. Os estudiosos geralmente identificam os monges de


Qumran com os essénios, de que falam Filáo de Alexandria
(t 44 d.C), Flávio José (f 100 d.C. aproximadamente) e
Piínio o Anciáo (t 79 d.C). Eis, por exemplo, o que a respeito
dos essénios refere Plinio o Anciáo, naturalista e geógrafo
romano:

"A margem ocldental do Mar Morio, (ora da aleada da influencia nociva


das suas aguas, encontram-se os essénios. Povo solitario, o mais extraordi
nario povo que exista, sem mulheres, sem amor, sem dirrheiro, vlvendo em
companhia das palmelras... Assim, já há milhares de séculos (colsa incrl-
velt), subsiste uma raga eterna em que ninguém nasce... Abaixo da mansfio
dos essénios, situava-se a cidade de Engadi, á qual só se pode preferir
Jericó quanto á fertilldade e quanto ás palmelras" (Hlst. Nat. V 17, 4).

Mesmo que se reconhega nestes dizeres uma larga parte


de retórica, eles aproximam o leitor da realidade histórica.

Também Filáo de Alexandria deixou uma noticia sobre os


essénios:

"Moram juntos em comunidades fraternas... Há. uma só caixa para


todos, e as desposas sao comuns; comuns sSo as vestes, e comuns os
alimentos. Com efeito, adotaram o costume das refeicSes em comum. Um
tal recurso ao mesmo teto, ao mesmo género de vida e á mesma mesa,
nos o procuraríamos em vfio albures" ("Quod omnis probus" 65).

É certo que os habitantes de Qumran levavam um género


de vida muito semelhante ao que descrevem os textos ácima.
Conservavam o celibato, talvez com algumas excegóes (pois
no cemitério anexo ao mosteiro se encontraran! alguns poucoF
cadáveres de mulheres e criangas). Realizavam numerosos
atos em comum: encontraram-se ñas ruinas do mosteiro duas
salas de reuniáo, uma destinada a sessóes de conselho, e a outra
mais adaptada as refeigSes; junto a esta, em pequeño compar
timento havia mais de mil pegas de cerámica (jarros, tigelas,
pratos, copos...); os ossos de animáis existentes ñas proximi
dades incücam que os qumranitas consumiam carne em refei-
góes que deviam ter índole religiosa. Descobriram-se também
oficinas entre as ruinas do mosteiro: carpintaria, olaria com
dois fornos, paSaria assim como um grande escritorio com
uma mesa de 5 m de comprimento e dois tinteiros, onde eram
copiados os numerosos manuscritos da biblioteca. Nao falta-

— 428 —
OUTRA VERSAO DOS MANDAMENTOS?

vam recintos para depositar víveres (dispensa) c instrumentos


de trabalho. Ao sul de Qtunran, ou seja, no oasis de Ain-
-Feshkha, os monges cultivavam a térra e proviam á alimen-
tacáo da comunidade. Todavía nao se encontraram dormito
rios ñas ruinas de Qumran; é o que leva a crer que os monges
— todos ou quase todos — passavam as noites em tendas ou
grutas dos arredores do grande edificio onde oravam e traba-
lhavam conjuntamente. Levando-se em conta o número de tú
mulos encontrados no cemitério, que deve ter servido ao mos-
tciro durante dois séculos, julga-se que no periodo áureo da
ocupacáo monástica a comunidade podía constar de duzentos
membros.

Embora, como dito atrás, numerosos historiadores identi-


ilquem os habitantes de Qumran com os essénios, há quem
prefira guardar reserva sobre o assunto. Como quer que seja.
esses moradores do deserto eram judeus movidos de espiritua-
lidade férvida e rigorosa.

3. Com efeito, o dia em Qumran era consagrado ao tra


balho manual e urna terga parte da noite (o seráo) decorria
em estudo de textos bíblicos e oracáo. o sábado era rigorosa
mente observado, com abstencáo de toda atividade profana.
Os monges trajavam a veste sacerdotal de cor branca e subme-
tiam-se durante o dia a diversas ablucóes e banhos rituais; a
pureza exterior devia exprimir e fomentar a pureza interior.

O candidato que quisesse anexar-se á comunidade, devia


exercitar-se durante um primeiro ano (que hoje se chamaría
«postulantado»), ao qual se seguiam dóis anos de provagáo
severa. As etapas de admissáo na comunidade eram assina-
ladas pela entrega da veste branca, a participacáo nos banhos
rituais e, por fim, o acesso á refeigáo sagrada, que tornava o
candidato membro da comunidade com plenos direitos. Antes
da admissáo definitiva, o novico se comprometía por juramento
solene a «converter-se á lei de Moisés, segundo tudo que ele
prescreveu, com todo o coragáo e toda a alma».

Os bens que o novo membro possuisse, eram entregues


ao superintendente da comunidade. Caso nao respeitasse as
regras do convivio fraterno, era submetido a sancóes, entre as
quais a exclusáo temporaria ou definitiva ou mesmo a pena
capital.

A comunidade de Qumran era distribuida em grupos de


dez membros, cada um dos quais tinha á frente um sacerdote,

— 429 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

filho de Sadoc. O fundador dessa instituigáo monástica é cha


mado, nos documentos respectivos, «o Mestre de Justica»; este
foi certamente um personagem de grande valor moral, que
marcou profundamente a historia da comunidade. Pouco se
:;abe a seu respeito; todavía pode-se dizer que tinha um adver
sario — o Sacerdote Impío —, que devia oficiar em Jerusalém,
em conivéncia com os costumes helenizantes ali introduzidos.
Álguns estudiosos dos manuscritos de Qumran afirmam que
morreu mártir, enquanto outros intérpretes pensam que teve
fim tranquilo. Parece certo que os membros da comunidade
aguardavam o retorno desse personagem na qualidade de Gráo-
-Sacerdote dos tempos messiánicos.

É no ambiente assim caracterizado que teve origem o cha


mado «Manuscrito do Templo». Já nos será mais fácil agora
passar a um exame desse documento.

3. O «Manuscrito do Templo»

Escreve o Prof. Yadin que tal manuscrito em 1967 lhe


chegou as máos sob forma de um rolo de 5 cm de diámetro. Foi
aberto cautelosamente por processos especializados: exposto
durante certo tempo (sob vigilancia continua) á umidade de
75 9& , o pergaminho amoleceu-se, dando finalmente urna longa
folha de 8,6 m de comprimento e 0,1 mm de espessura.1 Os seg
mentos que por este processo nao se descolaram ou abriram.
foram fotografados, em infra-vermelho, ultra-violeta e com o
auxilio de raios X o que possibilitou obter informacáo fiel
do conteúdo do manuscrito em foco.

Este foi copiado por um escriba hábil de Qumran, que usou


o estilo chamado «herodiano»; isto quer dizer que a data de
origem de tal manuscrito oscila entre 50a.C. e 30 d.C.; pode-
-se crer mesmo, com bom fundamento, que seja anterior a
50 a.C.

O texto do rolo aborda quatro temas:

1) prescricóes religiosas referentes, entre outras coisas,


á pureza e á impureza rituais; o Pentateuco (ou a Lei de

JNote-se que o mals longo dos manuscritos anteriormente descobertos


era um rolo de Isaías, com 7,30 m de comprlmonto.

— 430 —
OUTRA VERSAO DOS MANDAMENTOS? 11

Moisés) é entáo citado com numerosos acréscimos, omissóes e


variantes interessantes;

2) sacrificios e ofertas concernentes as diversas festas do


calendario judaico;

3) descrigáo minuciosa do Templo;

4) os estatutos do rei e do exército.

Visto que quase a metade do rolo trata do Templo, o Prof.


Yadin deu-lhe o nome de «Manuscrito do Templo».

Vejamos sumariamente os tragos principáis de cada urna


destas secgóes.

3.1. Prescribes rituais

Um dos tópicos mais estranhos do manuscrito consiste em


que o autor eré — ou deseja que seus leitores creiam — que o
texto respectivo é Lei do Senhor dirigida ao povo por meio de
Moisés. Em conseqüéncia, todos os preceitos sao apresentados
como se o próprio Deus os formulasse na primeira pessoa do sin
gular; mesmo quando cita o Pentateuco, o autor troca sistema-
ticamente a terceira pessoa do singular do texto tradicional pela
primeira pessoa. Tenha-se em vista, por exemplo, Núm 30,2,
que nos manuscritos bíblicos tem o teor seguinte: «Se um ho-
mem fizer um voto diante do Eterno», e que no Pergaminho
do Templo é assim redigido: «Se um homem fizer um voto
diante de Mim». O mesmo processo (uso da primeira pessoa do
singular) ocorre na redagáo dos numerosos preceitos suple-
mentares que o autor acrescenta por própria conta e que fal-
tam por completo nos manuscritos da Biblia. Esses preceitos,
alias, tém índole notoriamente sectaria e polémica, tendendo
a opor-se as leis e normas promulgadas pelos sabios e mestres
do judaismo oficial; chegam a atitudes extremistas no tocante
a todas as questóes de pureza e impureza rituais. Tome-se, por
exemplo, o caso de urna mulher grávida cujo filho venha a
morrer em seu seio; a propósito diz a Michná (legislagáo ofi
cial dos rabinos):

"Se o filho de urna mulher morrer no ventre de sua mSe..., esta


permanecerá pura até que a crlanga tenha sido retirada" (Tract. huilln 4,3).

Pois bem; eis a proposigáo correspondente do Manuscrito


do Templo:

— 431 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

"Se urna mulher estiver grávida (literalmente: cheia) e seu filíio morrer
em seu ventre, ela será impura como um túmulo durante todos os dias em
que a crianca ai ficar".

Com referencia á casa de um defunto, o mesmo documen


to de Qumran é muito mais severo do que a Michná. O mesmo
se diga a propósito de enterras e cemitérios; o autor receia que
a térra de Israel se torne impura por causa de cadáveres; pelo
que preceitua o seguinte:

"NSo seguirás os costumes dos gentíos, que enlerram seus morios em


toda parte, mesmo em suas casas. Reservarás lugares especiáis das tuas
térras para enterrar teus morios; designarás esses lugares entre quatro
cidades".

Normas de semelhante Índole sao formuladas com vistas


aos leprosos, aos trópegos, as relagóes sexuais e ao tipo de re
cipiente nos quais as oferendas deviam ser levadas ao Templo.

3.2. Festas e sacrificios

Grande parte do rolo é dedicada a pormenores da cele-


bragáo das festas e dos sacrificios que nelas se devem oferecer:
além de Páscoa, Tabernáculos, Pentecostés, Expiagáo, o autor
prescreve as festas do «vinho novo» e do «óleo novo». Em
alguns tópicos esta secgáo se afasta dos costumes do judaismo
tradicional.

3.3. O Templo

O autor do Manuscrito, exprimindo, alias, o pensamento


dos monges de Qumran, julgava que o templo existente em
Jerusalém (construido após o exilio de 587-538 a.C.) nao cor
respondía as ordens de Deus. Por isto propóe, em nome do pro-
prio Deus («Tu farás..., Tu construirás...»), instrugóes mi
nuciosas sobre a maneira de construir e ornamentar um novo
Templo; nisto segué o estilo de Éxodo 25-30. Difere, porém, de
todas as normas atinentes á construgáo do primeiro Templo
(por obra de Salomáo no séc. X) e do Segundo Templo (por
obra de Zorobabel e Josué nos séc. VI/V); afasta-se, pois,
dos livros dos Reis I, das Crónicas, de Ezequiel e da Michná. O
autor parece querer transmitir aos seus leitores o estatuto da

— 432 _
OUTRA VERSAO DOS MANDAMENTOS? 13

construgáo do Templo, desaparecido, mas mencionado em


1 Crón 28, 11-19:

"Davi deu a SalomSo, seu lilho, os plenos do pórtico e das construcSes


... e dlsse: 'Tudo isto se encontra exposto num escrito da mfio do Eterno'".

Esse escrito da máo do Eterno, entendido como rolo ma


terial, era procurado pelos antigos judeus, que o juigavam desa
parecido. Ora o autor do Manuscrito do Templo o terá descober-
to e revelado aos seus leitores.

O novo Templo preconizado pelo monge-escrito de Qum-


ran ainda nao seria o Templo definitivo, pois deveria ser feito
por máos humanas, ao passo que o Templo escatalógico e de
finitivo seria obra «feita sob medida» pelo próprio Deus «no
dia em que criarei eu mesmo o meu Templo».

3.4. Os estatutos do re¡ e do exército

A quarta secgáo comega com a citagáo de Dt 17,14:

"Quando tiveres entrado na térra que o Senhor teu Deus te há de dar


e tiveres tomado posse déla e al te estabeleceres, se entSo disseres: 'Quero
ter sobre mlm um rei como o tém todos os povos que me rodeiam', poras
sobre ti o rei que o Senhor teu Deus tiver escolhido".

Este texto bíblico dá entrada a dois temas que, neste


particular, interessavam especialmente ao autor: o corpo de
guardas do rei e os planos de mobilizagáo das tropas a ser
adotadas cada vez que a térra de Israel estivesse ameagada de
guerra de exterminio.

Quanto ao corpo de guardas, o Senhor manda, conforme


o autor, que seja constituido de 12.000 soldados (mil de cada
tribo de Israel). Sejam «homens verazes, tementes a Deus.
que tenham odio a beneficios injustos». A finalidade principal
dos guardas do rei será a de proteger o rei e sua esposa «dia
e noite» para que nao caiam em máos aos gentíos. O manus
crito prescreve a pena de morte para todo homem que traía o
povo de Israel ou dé informacóes ao inimigo. Em suma, o autor
inspirou-se em Éx 18, mas fez seus acréscimos aos estatutos
bíblicos, a fim de atender á política da época em que escrevia.

A mobilizaíáo das tropas de Israel é concebida segundo


os diversos casos que possam ocorrer.

— 433 —
14 ^PERGUKTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

Assim, por exemplo quando o rei percebe o perigo prove


niente de um inimigo «que se queira apoderar de tudo o que
pertence a Israel», deve mobilizar a décima parte das forgas da
nagáo. Se o inimigo é numeroso, a quinta parte deve ser cha
mada á luta. Se o inimigo vem «com seu rei, seus carros, em
grande multidao», urna terga parte dos defensores da nagáo há
de ser mobilizada, enquanto dois tergos ficam no pais para pro
teger as cidades e fronteiras deste, impedindo que «üm bando
de inimigos penetre no interior do país». Todavía «se a batalha
for furiosa», o rei mobilizará a metade das suas forgas de guer
ra e a outra metade ficará ñas cidades para defendé-las!

Eis, em síntese, o conteúdo do apregoado «Manuscrito do


Templo». Como se vé, nao se refere ao Decálogo ou aos Dez
Mandamentos da Lei de Deus promulgados por Moisés; os
judeus eram demasiado ciosos da fidelidade ao texto bíblico
para o retocar. Os preceitos abordados pelo autor de Qumran
sao concernentes a ritos e particularidades das observancias
judaicas. Contrariam, em parte, aos costumes vigentes do ju
daismo oficial dos séc. I a.C. — Id.C.em oposigáo aos sa
cerdotes e mestres de Jerusalém; estes seriam profanadores
e traidores das tradigóes sagradas de Israel, pois faziam con-
cessóes aos estrangeiros e helenistas que queiram impor seus
costumes e interesses ao povo de Israel representado pela di
nastía dos hasmoneus. As citagóes do Pentateuco em redagáo
retocada (primeira pessoa do singular, em lugar da terceira)
nao implicam em revisáo do texto oficial da Biblia em nossos
dias, pois tais retoques carecem de autoridade.

Após o artigo do Prof. Yigael Yadin, publicado em 1967,


no qual parece basear-se a noticia recente da nossa imprensa,
nada mais foi escrito de novo sobre o «Pergaminho do Templo».
Aguarda-se a publicagáo do texto original com seu aparato
crítico para uso dos estudiosos. Essa publicagáo terá interesse
principalmente para os especialistas em historia da espirituali-
dade judaica.

434 —
Um livro em foco:

anjos e demonios: realidade ou mito?

Em sfntese: O presente artigo aprésente o conteúdo do livro de G. Ta-


vard sobre os anjos. Datada de 1971 em sua traducSo (rancesa, essa obra
de abalizado autor percorre os textos da Escritura e da TradlcSo crista,
vivamente a crenca nos anjos), parte porque a pledade para com Maria
demonios. Tavard, poróm, nota que essa fé tem-se apagado nos últimos
tempos, parte por causa de exagerada "depuragáo" das tradicñes cristSs,
parte por perda de contato dos fiéis com a liturgia (que sempre expiressou
vivamente a crenga nos anjos), parte porque a piedade para com María
tomou o lugar outrora reservado aos anjos. Todavia o autor julga que o
Concillo do Vaticano II lancou principios de nova valorizacSo da piedade
pare com os anjos: tais serlam o ressurgimento litúrgico, a reaflrmacfio
da doutrlna dos Concilios anteriores (a nota fortemente crfstológlca do Var
ticano II nSo permitirá os exageras de outrora no tocante aos anjos),
assim' como o despertar da consciéncia de que a salvacfio trazlda por Cristo
tem dimensSes cósmicas e envolve também o mundo transcendental dos
anjos na grande familia dos filhos de Deus.

O leitor que de imedlato nao possa percorrer todo o presente artigo,


é convidado a ler ao menos o inciso "Recapitulacáo e Perspectivas" ¿s
pp. 448-450, onde se encontra em sfntese o que o proprio autor G. Tavard
propde como resultado dos seus estudos e reflexdes.

Comentario: A guestáo da existencia de anjos bons e maus


(estes, com o nome de demonios) volta freqüentemente & tona.
A procura de urna fé adulta, liberta de concepgóes infantis, leva
muitas pessoas a discutir ou até negar a realidade dos mesmos.
Anjos e demonios seriam criacóes subjetivas de urna mentalida-
de hoje ultrapassada. — Ha, porém, quem oponha a esta tese
numerosas passagens bíblicas, assim como a doutrina da Tra-
digáo crista e do magisterio da Igreja, que afirmam a existen
cia dos anjos bons e maus.

Na verdade, o problema assim colocado nao pode ser re-


solvido por simples assergóes. A filosofía ou o raciocinio tam
bém nao é suficiente para dirimi-lo, pois o assunto é de teología
e de fé; por conseguinte, para um cristáo, somente a partir
das fontes da Revelacáo Divina (S. Escritura e Tradicáo) a
questáo pode ser auténticamente elucidada. Conscientes disto,
os autores nos últimos tempos vém publicando estudos bíblicos

— 435 —
.J0L _ _ «Pk'RGUNTK E RESPONDEREMOS» 1CG/1973

concornentes aos anjos e demonios. Dentre esses varios escritos,


merece especial atengáo, pela riqueza de seus dados e pela
seriedade com que os aborda, o livro de Georges Tavard (em
colaboragáo com André Caquot e Joharm Michl): «Les Anges»
(colecáo «Histoire des dogmes», tomo II: «Dieu Trinité, La
Création, Le Peché», fascículo 2 b).1

Visto que se trata de urna das obras mais recentes e do


cumentadas sobre o assunto, apresentaremos, ñas páginas
que se seguem, um resumo do seu conteúdo, visando assim
contribuir para esclarecer urna questáo que muito interessa ao
nosso público no Brasil.

1 . Fundamentos bíblicos

O mencionado livro de Tavard consta de 245 páginas,


distribuidas em sete capítulos, que abordam a mensagem bíblica
referente aos anjos e á historia dessa doutrina até nossos dias
(incluindo a consideragáo do pensamento dos cristáos orientáis
e da teología protestante).

A presente resenha dará énfase principalmente á análise


bíblica, que se deve a André Caquot (Antigo Testamento) e
Johann Michl (Novo Testamento).

1.1. A mensagem do Antigo Testamento

O autor comega a sua exposigáo fazendo ponderagóes


metodológicas:

"Nao se deve procurar no Antigo Testamento urna 'angelologia' cons


tituida em corpo de doutrina. O antigo Israel nao tentou elaborar um sistema
dogmático do qual a angelologia seria um capitulo... Mas nem por Isto a
angelologia do Antigo Testamento é um simples repertorio de procederes
narrativos; os anjos nao sao símbolos, mas objetos de fé; os antigos israe
litas acreditaran! que Oeus se serve dos anjos para dirigir o mundo e a
historia, de que Ele é soberano. Essa crenca é atestada pelas lontes mais
antigás da Religláo israelita, e é preciso considerá-la como um dos com
ponentes primordiais da fé judaica. Nao se pode retroceder além das
fontes para encontrar urna 'origem' da crenca nos anjos. Urna tal tentativa
corre o risco de ser urna especulagáo gratuita, marcada pejorativamente

]O livro fol traduzido do alemáo para o francés por Maurice Lelévre,


tendo por titulo original "Ole Engel", na colecáo "Handbuch der Dogmen-
geschlchte". O original apareceu em 1968 ñas Edicoes Herder, de Friburgo
(Alemanha).

— 436 —
ANJOS: MITO Oü REALIDADE? 17

peto apriorismo evolucionista... O historiador das religiócs elevo descre-


ver as crencas; mas, se Ihe toca também explicá-las, ele só o pode fazer
em funcáo das condiedes históricas e sociais ñas quais olas se dosenvol-
veram. é o que tentaremos tazer aqui no tocante a angeio;ogia ¡siaellia"
(P- 11s)

Com outras palavras: Caquot quer dizer que a crenga is


raelita nos anjos, atestada por numerosos documentos bíblicos,
nao há de ser preconcebidamente reduzida a categorías de filo
sofía ou psicología, que, embora paregam ilustrar tal arenga,
na verdade nao se enquadram dentro da realidade histórica e
social de Israel. É esla que, antes do mais, deve ser evocada
para se entender o pensamento do judaismo antigo.

2. Feita esta observagáo, o autor nota que quem percor-


re as tradigóes eloistas do Pentateuco, nelas encohtra freqüen-
temente a mengáo do «anjo do Senhor» (mal'ak Yahveh) ou
dos «anjos do Senhor» (mal'akim Yahveh); com freqüéncia ela
ocorre também ñas tradigóes javistas. Assim, por exemplo, o
anjo do Senhor aparece na versáo javista da historia de Agar
(cf. Gen 16,7s), como também na eloísta (cf. Gen 21,17). Um
anjo intervém para suspender a imolagáo de Isaque (Gen
22,lls), para guiar o servo de Abraáo na estrada (cf. Gen
24,7. 40) e o povo posto em marcha no deserto (cf. Éx 14,19;
23,20. 23; 32, 34).

O anjo (mal'ak, em hebraico), ñas mais antigás páginas


da Biblia, é um enviado de Deus que na térra exerce determi
nada missáo: anunciar a vontade de Deus aos homens, guiar
um homem ou um povo, conjurar um perigo exortando o povo,
castigar os transgressores da lei de Deus... Em suma, a pa-
lavra mal'ak deriva-se da raiz 1' k, donde procede o verbo que
significa «enviar» em diversas linguas semíticas. Essa fungáo
de «enviado» aparece bem caracterizada pela visáo de Jaco, a
quem apareceu urna escada pela qual os anjos desciam e su-
biam entre o céu e a térra.

3. Os israelitas, na época dos reis, concebiam os anjos


á semelhanga de homens. Em Gen 18 e 19, por exemplo, é rela
tada a visita de tres personagens a Abraáo, que sao chamados
ora homens, ora mal'akim. Gedeáo e os pais do Sansáo julgam
estar falando com um homem (cf. Jz 6,13 e 12,6.8), mas
esse homem tem algo de extraordinario em seu aspecto e em
sua palavra (cf. Jz 13,6).

' Em algumas narragóes, o anjo do Senhor e o próprio Senhor


se revezam como sujeito, de sorte que parecem ídentificar-se

— 437 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

entre si. Note-se, por exemplo, o caso da visita dos tres perso-
nagens a Abraáo em Gen 18s (um deles fala como se fosse o
próprio Senhor); o aparecimento do anjo do Senhor e do pró-
prio Senhor na sarga ardente, em Éx 3, 2-12; a vocagáo de Ge-
deáo devida a um anjo do Senhor e ao próprio Senhor (cf.
Jz 6,11-18)... A confusáo, nesses casos, entre o anjo e o
Senhor nao é senáo ilusoria; segundo as regras literarias dos
antigos, o mensageiro ao enunciar a mensagem de quem o en
viou, usa sempre a primeira pessoa do singular, repetindo pa-
lavra por palavra o que o seu Senhor lhe disse. Por conseguin-
te, nos textos bíblicos citados é o anjo quem aparece e fala, de
tal modo, porém, que o próprio Deus por ele quer manifestar
seus designios aos homens.

4. Um dos títulos, que caracterizan! os anjos nos textos


poéticos, é o de beney Elcfoim, filhos de Deus. Sao, por exem
plo, os filhos de Deus que aclamam o Senhor, segundo o salmo
28,1 e Jó 38,7, como o aclamam os anjos em SI 102,20 e 148,2. O
f título evoca um motivo comum da poesía e da mitología dos po-
' vos de Canaá pré-israelitas; estes concebiam a Divindade Su
prema, El, assentada em seu trono em meio a urna corte ou mul-
tidáo de divindades subalternas, que tinham os nomes genéricos
de «deuses» (Um), «santos» (bn qdsh) e «fihos de eus» (bn Um).
A instauracáo da monarquía em Jerusalém deve ter inspirado
entre os israelitas semelhante concepgáo: Javé, o único Deus,
foi entendido como Rei elevado, cercado de sua corte de «filhos
de Deus» (que, no caso, sao os anjos), os quais O adoram e
Lhe servem, e entre os quais Ele recruta, como um Soberano
da térra, os seus embaixadores e encarregados de missáo. O
prólogo do livro de Jó é típico a este propósito, pois mostra
como Deus reúne periódicamente os «filhos de Deus» ou anjos
para ouvir os seus relatónos (cf. Jó 1,6; 2,1).

5. As mais antigás tradigóes nao distinguem, entre os


anjos, personagens diferenciados uns dos outros por tragos par
ticulares. Após o exilio (587-538 a.C), porém, nota-se a indi-
vidualizagáo de certos anjos, que chegam a ter nome próprio,
muitas vezes relacionado com a fungáo específica que exercem.
O contato de Israel exilado com os documentos da cultura ba
bilónica pode ter inspirado urna nova maneira de representar
a corte divina, maneira mais variada e mais rica. Tenham-se
em vista, por exemplo, as visees do profeta Zacarías: o anjo
do Senhor ai aparece como personalidade distinta e eminente,
á guisa de Primeiro Ministro da corte divina, pois é ele quem
recebe os relatos dos inspectores que Deus enviou para visitar

— 438 —
ANJOS: MITO OU REALIDADE? 19

a térra (cf. Zac 1,11); ele dispóe de certa autonomía, em vir-


tude da qual intercede em favor de Jerusalém (cf. 1,12).

6. A evolucáo da doutrina dos anjos entre os ju3eus


posteriores ao exilio é típicamente ilustrada pela figura do
anjo-adversário. No prólogo do livro de Jó, um dos filhos de
Deus tem o designativo Sata (em hebraico, adversario), nome
comum precedido de artigo. A fungáo é a de acusador de Jó e
espiáo dos homens. Tal fungáo é pouco simpática, mas — note-
-se bem — o anjo só a exerce em consonancia com Deus; mes-
mo quando submete Jó á prova, só o faz com a permissáo do
Senhor. — Papel semelhante cabe a Sata em Zac 3,ls: tem
por vitima o Sumo Sacerdote Josué, que representa a comuni-
dade judaica após o exilio; é rejeitado pelos anjos do Senhor,
defensor do povo.

No fim do séc. IVa.C, duzentos anos após Zacarías, re-


gistra-se nova etapa da evolucáo de conceitos: em 1 Crón 24,1,
Sata já é nome próprio (sem artigo); designa o anjo que leva
Israel ao mal, pois inspira a Davi o recenseamento do povo,
contrariamente á vontade de Deus; em conseqüéncia, a peste
sobrevém a Jerusalém. O texto paralelo, e muito anterior, de
2 Sam 24 atribuía diretamente ao Senhor a provocagáo de Davi
ao mal (o que se entendía outrora pelo fato de que os antigos
viam a causalidade de Deus a agir em tudo, sem distinguirem
entre vontade e permissáo do Senhor).

Por fim, no séc. I a.C., a figura de Sata, inimigo de Israel,


aparece como a do inimigo do género humano, pois ao «diábo-
los» (= acusador, em grego) é atribuida a introducáo da morte
na historia da humanidade (cf. Sab 2,24).

7. A tendencia a caracterizar os anjos se manifesta tam-


bém na atribuicáo de nomes próprios a esses servidores do
Senhor: assim no livro de Tobias o anjo que cura, é chamado
Rafael (cf. 3,16) — o que significa «Deus (El) curou»; Ga
briel (= homem de Deus) é o intérprete das visóes de Daniel
em Dan 8,16; 9,21; e Miguel (= Quem é como Deus?) é o patro
no e defensor do povo judeu.

8. Fora dos livros canónicos da Biblia, ou seja, na vasta


literatura apócrifa dos judeus, a crenga nos anjos inspirou
longas divagagóes, dependentes de géneros literarios diversos,
principalmente do apocalíptico. Também os escritos ortodoxos
do judaismo, encerrados no Talmud dos rabinos, fazem alusóes

— 439 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1GÜ/1973

freqücntes aos anjos. O mesmo se diga no tocante aos docu


mentos de Qumran. — Ao lado destas fontes doutrinárias, exis-
tem numerosos documentos mágicos judeus, aramaicos e gregos,
que recorran aos anjos e á sua intervengáo; assim a angelo-
logia dos judeus entrou no sincretismo helenístico. O recurso
mágico aos anjos benfeitores e malfeitores explica que se te-
nham multiplicado, segundo o gosto fantasista dos interessados,
os nomes próprios dos anjos, nomes que figuram nos papiros
populares dos primeiros séculos do Cristianismo, como também
na Kabala dos judeus c na literatura islámica.

Na literatura judaica extra-biblica dos últimos séculos antes de Cristo


e dos prlmelros séculos da era crista, os escritores, a fim de melhor sal
vaguardar a transcendencia de Deus, admitiam multiplicadas ¡ntervencoes
dos anjos na térra. A funcáo dos anjos flcou sendo, por excelencia, o ser-
vico e Deus; os anjos presidem, conforme tal menlalidade, á marcha dos
ostro, ao mar, á chuva, á geada, ao destino das nacdes...; transmltem
a Deus as oracóes dos homens e prestam outros servigos de meduacáp.

A figura de Sata foi tomando importancia crescente, o


que se depreende dos varios nomes que se Ihe atribuiram: «anjo
das trevas» (no Rolo da Regra de Qumran), «Mastema» (Qum
ran e Livro dos Jubileus), «Belial» (Qumran, Martirio de Isaías,
Testamento dos XII Patriarcas), «Samuel» (Apocalipse grego
de Baruque)... O Talmud babilónico, Sanedrim 38b, e a apó
crifa «Vida de Adáo e Eva» 12-16 explicam a perversáo de Sata
pela hipótese de que se tenha revoltado contra Deus no mo
mento em que o homem foi criado.

Ora precisamente a figura de Sata ou do anjo mau aparece


a muitos estudiosos como elemento suspeito ñas concepgóes
judaicas. Lembra-lhes a religiáo persa, segundo a qual existem
dois Principios antagónicos para explicar o bem e o mal sobre
a térra; os judeus, durante e após o exilio (587-538 a.C.), teri-
am assumido o conceito persa do Principio mau, dando-lhe co
lorido israelita... A esta tese observa André Caquot o seguinte:

"O Amigo Testamento conslderava os anjos como capazes de desobe


diencia orgufhosa... Segundo o modo de pensar dos antlgos israelitas,
existían! seres superiores ao homem, que devlam, á semelhanca do ho
mem, optar entre duas vidas: a submissáo, o servigo e a vida, ou a desme
dida, a rebellño » a decadencia. A angelologia assim se integra na rell-
glao Israelita, cuja estrutura fundamental nunca foi modificada pelas con-
tribuicSes extrínsecas. Após A. Kohut, a escola dita da 'historia das reli-
gióss* insistiu sobre a influencia, tlda como preponderante, que o iranismo
teria exercido sobre o desenvolvlmento da angeiologia judolca. Na verdade,
Oo a.i,o. tío juaa.smo nao podem ser compa acios aos "¡moríais bentazejos'
do mazdefsmo. Avatares das antigás divindades funcionáis do paganismo
iranianos reabsorvidas cm Ahura Mazda, os arcanjos zoroastrianos sflo

_ 440 —
ANJOS: MITO OU REALIDADE? 21

aspectos do Deus único, ao passo que os anjos do judaismo sao criaturas


do Senhor" (p. 26s).

1.2. O Novo Testamento e seus mensageiros

A semelhanga dos livros da Antiga Alianga, também os da


Nova Alianga nao contém ensinamento sistemático sobre os
anjos e os demonios. As suas afirmagóes a propósito tém por
base a tradigáo bíblica e extra-bíblica do judaismo, centradas,
porém, em torno da idéia fundamental do Novo Testamento:
Deus enviou o Messias ao mundo, de sorte que o Reino de
Deus, aguardado outrora, já tem inicio germinalmente na rea-
lidade presente.

A variegada mensagem do Novo Testamento concernente


aos anjos pode ser compreendida sob tres títulos:

o) Os cmjos a servijo de Deus e dos homens

Os anjos constituem o mundo celeste (cf. Le 15,10), onde


assistem a Deus á guisa de multidáo incalculáve] (cf. Hebr 12,
22; Apc 5,11).

Desde o inicio da era messiánica, intervém freqüentemente


na historia como servidores de Cristo. Anunciam a conceigáo e
a natividade de Jesús a Maria (Le 1,26-38), a José (Mt l,20s),
aos pastores de Belém (Le 2,9-14). Servem ao Senhor no deser
to (Me 1,13; Mt 4,11); reconfortam-no no jardim das Oliveiras
(Le 22,43). Anunciam a sua ressurreigáo dentre os morios
(Me 16,6; Mt 28,5s ; Le 24,5-7; Jo 20,13). Aparecem ainda na
cena final da vida de Jesús; anunciando aos Apostólos a segunda
vinda do Senhor recém-elevado aos céus.

Embora desempenhem papel importante na vida de Jesús,


os anjos estáo subordinados a Cristo, pois «foram criados pelo
Cristo e para o Cristo» (Col 1,16; cf. 1,20; Ef 1,10).

Alguns anjos fazem as vezes de mensageiros celestes jun


to aos homens. Cf. Mt 1,20; 2,13.19; Le 1,11.26; 2,9; At
8,26; 10,3; 12,7-10; 27,23; Me 16,5s; Jo 20,12. Vém ao encontró
dos homens em apuros e angustias; cf. At 5,19; 12,7-11; 27,23s.
Em suma, a carta aos Hebreus os chama «espiritos encarrega-
dos de um ministerio, enviados a servigo daqueles que devem
herdar a salvacáo» (1,14).

— 441 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS!» 166/1973

Embora mereeam grande estima da parte dos homens, nao


se lhes deve prestar cuito supersticioso ou afim á mitología;
cf. Col 2,18; Apc 19,9s; 22,8s.

É no Apocalipse que os anjos aparecem com o máximo de


freqüéncia, exercendo missóes diversas, que Deus lhes confia.

b) Outros seres celestiois

As cartas de S.Pedro e S.Paulo mencionam seres celes-


ttais intermediarios entre Deus e os homens, que tém os nomes
de «virtudes» (dynámeis; cf. Rom 8,38; 1 Cor 15,24; El 1,21.
1 Pe 3,22), «potestades» exousíai; cf. 1 Cor 15,24; Ef 1,21;
3,10; 6,12; Col 1,16; 2,10-15; 1 Pe 3,22), «principados» (arxai;
cf. Rom 8,38; 1 Cor 15,24; Ef 1,21; 3,10; 6,12; Col 1,16. 2,10-15).
«dominagóes (kyriotétes; cf. Ef 1,21; Col 1,16), «tronos»
(thrónoi; cf. Col 1,16). Nao se pode indicar com certeza a
razáo de tais designagóes; poderiam significar abreviadamente
os anjos do poder de Deus, os anjos do dominio de Deas, os
anjos do trono de Deus; exprimiriam assim a relagáo dos an
jos ao poder, á autoridade, á soberanía, ao trono de Deus...
Como quer que seja, esses seres foram criados pelo Cristo e
para o Cristo (Col 1.16); Este é o Senhor de todas as criaturas
na térra e no céu (cf. Col 2,15-17; Ef l,20s; 3,10; 1 Pe 1,12.
3,22). Os «principados» e as «potestades» reconhecem na Igreja
de Cristo a sabia realizagáo do designo de Deus em favor da
salvagáo dos homens (cf. Ef 3,10; 1 Pe 1,12).

Muitas passagens do Novo Testamento dúo a entender


que os seres celestiais aqui mencionados sao fiéis a Deus e
ministros dos designios divinos. Todavía nao faltam trechos que
lhes atribuem tragos demoniacos: Deus, por exemplo, pela
morte de Cristo, arrebatou o poder aos principados e ás potes
tades, tratande-os como inimigos vencidos (Col 2,15). Embora
nem os anjos, nem os'principados nem as potestades possam
separar do amor de Deus o cristáo (Rom 8,38s), este deve
lutar contra os principados e as potestades, que sao senhores
do mundo sujeito ao poder das trevas (cf. Ef 6.12). Sao espi-
Titos do mal, posto em relagáo com o diabo (Ef 6,lls; 2,2). Esses
espirites maus perderáo sua possibilidade de agir no mundo
quando Cristo concluir a obra da Redengáo, sujeitando a si
todas as criaturas para entregá-las a Deus Pai (cf. 1 Cor
15,24).

— 442 —
ANJOS: MITO OU REAUDADE? 23

O antagonismo de tais seres celestiais ao plano de Deus e


ao bem dos homens nao é claramente elucidado pelos textos
bíblicos. O fato de alguns se mostrarem fiéis a Deus, enquanto
outros se lhe opóem, poderá ser explicado, como no caso dos
anjos propriamente ditos, por urna opgáo livre e perversa que
principados, dominagóes, tronos... fizeram no inicio da sua
historia. ,

Note-se que principados, potestades, tronos..., como


também os querubins e serafins do Antigo Testamento, jamáis
sao chamados «anjos» ñas Escrituras. — Isto se explica pelo
fato de que «anjo» é nome derivado da fungáo exercida por
certos seres celestiais; estes sao ditos anjos quando fazem as
vezes de emissários ou mensageiros. Todavía os nomes diver
sos das criaturas celestiais nao nos obrigam a crer que tenham
naturezas diferentes; a Tradigáo crista sempre viu nos seres
celestiais de que fala a Escritura, urna so grande categoría de
criaturas.

c) Safó e o reino dos demonios

1. Sabemos que a figura de Sata ou do diabo, adversario


de Deus e dos homens retos, aflorou á consciéncia do judaismo
no livro de Jó, isto é, após o exilio (587-538 a.C). Foi reto
mada pelo Novo Testamento.

Sata assume ai outros nomes: Beliar ou Belial (cf. 2 Cor


6,15); Beelzebul ou Beelzebub (cf. Me 3,22; Mt 10,25; 12,27).
£ «o Maligno» (Mt 13,19; Ef 6,16? 1 Jo 2,13s; 5,18), «o príncipe
deste mundo» (Jo 12,31; 14,30; 16,11), «o Deus deste mundo>
(2 Cor 4,4), «o Dragáo» (Apc 12,2s), «a Serpente Antiga»
(Apc 12,9; 20,2, em alüsáo a Gen 3).

Sata está cercado de anjos maus ou demonios, sobre os


quais reina; cf. Mt 25,41; Me 3,26; 2 Cor 12,7; Apc 12,7.
Esses espiritos malignos tendem a prejudicar o homem, pro
vocando mutismo (Me 9,17.25; Mt 9,32), surdez (Me 9,25; Mt
12,22; Le 11,14), cegueira (Mt 12,22) e outras enfermidades
(Le 13, 11). —Nem todas as doengas, porém, sao atribuidas di-
retamente ao demonio, embora, em última análise, sejam tidas
como obra do Diabo (cf. At 10,38).

Os maus espiritos podem atormentar os homens (cf. Me


5,5; 9,18) e manipulá-los como instrumentos sem vontade (cf.

— 443 —
■24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 163/1973

Me 1,26; 5,3-7; 9,18-26; Le 4,35; 8,29), lornando-os como que


dementes (cf. Le 7,33; Jo 7,20; 8,48s. 52; 10,20). Tal c o estado
■que se costuma chamar «possessáo diabólica».

Quem diz Sata, diz pecado: «O diabo é pecador desde a


origem» (1 Jo 3,8). O homem que peca, faz as obras do Diabo
(ib.).

2. Éem particular contra Jesús que o demonio se arre-


messa. Tentou o Senhor no deserto (cf. Me 1,13; Mt 4,3-13) e
acometeu-o por ocasiáo da Paixáo. Com efeito, ao terminar o
relato das tentacóes, S. Lucas escreve que «o demonio se
afastou de Jesús para voltar no tempo marcado» (4,13); Sata
«entrou» em Judas antes que este fosse tramar a entrega de
Jesús (Le 22,3s). Nesta perspectiva, S.Lucas cita as palavras
4e Jesús a Simáo Pedro: «Simáo, Simáo, eis que Satanás vos
reclamou para vos joeirar como o trigo» (Le 22,31).

Sao Joáo, mais aínda do que Sao Lucas, descreve a Paixáo


do Senhor como combate contra o Maligno. O conflito entre
Cristo e Sata tem inicio quando o Senhor se manifesta em
público: os judeus, que se fecham a Palavra de Jesús, «tém
por pai o diabo» (Jo 8,44; cf. 8,38.41); é Sata quem inspira a
Judas o designio de entregar o Mestre (cf. Jo 13,2); entra em
Judas depois que Jesús dá a este um bocado de pao (Jo 13,27).
A Paixáo de Jesús vem a ser «o julgamento deste mundo»,
pelo qual «o Príncipe deste mundo» é deposto (Jo 12,31);
quando Sata agride Jesús padecente, «nada pode contra Ele»
(Jo 14,30). O Espirito Santo dá a saber que pela morte de
Jesús «o Principe deste mundo foi condenado» (Jo 16,11).

3. Embora o Maligno haja sido vencido em principio


pelo Senhor Jesús, aínda lhe é concedida a faculdade de per
seguir os discípulos de Jesús e a Igreja. Tenha-se em vista,
por exemplo, a parábola do joio que o inimigo langa em meio
ao trigo (Mt 13,39). Sao Paulo sabe que Satanás está em acáo
quando seus planos de viagem sao entravados (1 Tes 2,18),
quando sofre um aguilháo na carne (2 Cor 12,7), quando o
cristáo se entrega a desordens sexuais (1 Cor 7,5) ou recusa
reconciliar-se (2 Cor 2,11). Segundo Sao Pedro, «o diabo, como
leáo a rugir, anda tm torno, procurando a quem devorar»
(1 Pe 5,8).

Os escritos dos Apostólos lembram aínda que existen^ espí-


ritos sedutores, os quais afastam os homens da verdadeíra fé
(1 Tim 4,1; 1 Jo 4,6), disseminam falsas doutrinas (1 Tim 4,1)

444
ANJOS: MITO OU REALIDADE? 25

e urna sabedoria diabólica (Tg 3,16). Nos últimos tempos cxer-


ceráo aeáo especialmente enérgica para provocar a apostasia
dos discípulos de Jesús (1 Tim 4,1; cf. 1 Jo 4,1-6; Apc 16,13s).
O Apocalipse descreve em cenários ricos de imagens o confuto
entre Sata e a Igreja, confuto que termina com a ruina de
finitiva do Maligno (cf. Apc 20,7-10).

4. Os escritos do Novo Testamento nao identificam for


malmente «os anjos do diabo» e «os demonios». No decorrer
dos tempos, a teología passou a considerar os demonios como
anjos decaídos. Os primeiros cristáos perguntavam qual seria
a origem do diabo, dos seus anjos e dos demonios. O Novo Tes
tamento nao fornece resposta clara; apenas em algumas passa-
gens refere-se ao pecado de certos anjos e ao castigo corres
pondente (cf. Jud 6; 2 Pe 2,4). Na verdade, admitir que Deus
tenha criado anjos maus é incompatível com a imagem que a
Biblia apresenta do Senhor Deus; por conseguinte, se aqueles
existem, só podem ser espíritos que Deus criou bons, mas que
se desviaram do Criador e se perverteram. Como e quando se
deu essa queda?... Eis questóes a que a Escritura nao dá res-
posta clara.

Em conclusáo desta rápida análise do Novo Testamento,


observa Johann Michl:

"Serla ocioso queremos basean-nos sobre a Escritura para construir


um sistema de angelologla ou demonologia bíblica. Todavía o que a Biblia
diz, pode-nos dar tdéla das potencias que o homem deve levar em conta
no seu relaclonamento com Deus, mesmo que ele nSo salba multa colsa
sobre a natureza própria e a atlvidade dessas potencias" (p. 48).

2. Trad¡$5o crista

No decorrer da historia do Cristianismoi a fé nos anjos


professada pelos textos bíblicos foi sendo objeto de aprofunda-
mento. Este nao esteve isento de desvios e aberracóes, que a
consciéncia da Igreja denunciou oportunamente.

Abaixo realcaremos apenas um ou outro tópico da histo


ria da crenca nos anjos após os escritos do Novo Testamento.

1. Nos primeiros sáculos, o agnosticismo e a filosofía


neoplatónica sugeriram interpretacóes nao cristas da doutrina
dos anjos. Estes seriam emanagóes da substancia divina — o
que redundaría em professar o panteísmo, em lugar do mono
teísmo biblico.

— 445 —
'¿ti *PEKGUNTE E RESPONDEREMOS> KiG/1973

O chamado «origenismo» (séc. III-VI) é outra expressáo


de abuso da filosofía neoplatónica no Cristianismo: os discípulos
do famoso mestre Orígenes de Alexandria (t 254) conceberam
os homens como espíritos preexistentes (ou anjos) que se en-
carnaram em conseqüéncia de um pecado pré-cósmico; esta-
riam sujeitos á lei da reencarnagáo; no fim da historia os es
píritos maus voltariam ao seu estado inicial de fidelidade a
Deus (tese que Giovanni Papini, há decenios, renovou na Italia).

2. A questáo da espiritualidade dos anjos custou a ser


devidamente penetrada pelos cristáos. A filosofía estoica tendía
a identificar realidade e materia. Daí admitirem muitos cristáos
que os anjos, por serem reais, tinham um corpo (ainda que
sutil).

3. Próxima a esta tese está a suposigáo de que o pecado


inicial dos anjos foi o convivio carnal com mulheres, convivio
do qual teriam nascido gigantes. Esta sentenga já era professa-
da pelos judeus anteriores a Cristo, que julgavam poder funda
mentar seu ponto de vista na secgáo de Gen 6,1-4: Os «fiíhos
de Deus» (anjos) se uniram as filhas dos homens (mulheres);
em conseqüéncia, gigantes habitavam sobre a térra antes do
diluvio... — De passagem, diga-se que tais idéias nao repre-
sentam a auténtica exegese do texto bíblico citado.

4. O pecado dos anjos é explicado por S. Tomás de


Aquino e sua escola como sendo o de soberba, a falha mais
compativel com a natureza das criaturas espirituais.

5. O dualismo maniqueísta teve sua repercussáo na ma-


neira de se conceberem os anjos maus ou demonios, principal
mente na península ibérica dos séc. IV-VI. O diabo foi tido
como ser nao criado por Deus, mas oriundo das trevas; seria
o principio substancial do mal. O diabo e seus demonios seriam
os plasmadores do corpo humano no seio materno; toda carne
viria a ser obra dos anjos maus. Tais idéias foram condenadas
pelo Concilio de Braga (Portugal) em 561.

6. Os teólogos procuraram coordenar de maneira siste


mática as diversas designagóes com que a S. Escritura se re
fere aos seres celestiais. O principal mestre nesta tarefa foi
Dionisio o Areopagita no séc. VI. Em sua obra «Sobre a hie-
rarquia celeste», este autor admite nove coros de seres celes
tes (ou anjos, em sentido ampio) distribuidos por tres ordens:
1) Serafina, Querubins e Tronos; 2) Dominagóes, Potestades
e Virtudes; 3) Principados, Arcanjos e Anjos.

— 446 —
ANJOS: MITO OU REALIDADE? 27

Esta classificagáo dos anjos tornou-se comum na teología


católica, mas nao é de fé.

7. A crenga nos anjos bons e maus tomou traeos popula


res e fantasistas na Idade Media, principalmente nos séc. XIV
e XV, que foram períodos de decadencia inteletual; a magia, a
bruxaria, as crendices entáo se desenvolverán!, deturpando as
concepgóes biblicas e teológicas que os grandes mestres escolás
ticos do séc. XIII haviam cuidadosamente elaborado.

8. Frente as teses maniqueístas que campeavam por


agáo dos cataros ou albigenses da Idade Media, o Concilio do
Latráo IV em 1215 emitiu «urna dedaraeáo que ficou sendo até
nossos dias o documento oficial mais solene da Igreja no to
cante aos anjos e demonios» (Tavard, obra analisada, p. 154).
Ei-la em traducáo vernácula:

"As tres Pessoas Divinas sao um principio único de todas as coisas,


Criador de todos os seres vislveis e invislvels, espirituals e corporals. Por
sua (orea todo-poderosa, desde o Inicio do tempo, crlou simultáneamente
a partir do nada urna e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, os
anjos e o mundo terrestre; depois criou a criatura humana, que consta de
espirito e corpo. O dlabo e os outros demonios foram por Deus criados
naturalmente bons, mas por si mesmos se tornaram maus" (Denzlnger-
■Schonmelzer, Enquiridio 800 [428]).

Comenta Tavard:

"Se queremos levar em conta o contexto histórico ¡mediato, podemos


afirmar a plena autoridade do Concilio no tocante aos pontos seguiñtes:

1) As criaturas espiritual foram criadas pela onipoténcia de Deus;


o ato criador assim se opñe á emanacSo;

2) a criacüo comecou no tempo, contrariamente á idéla de urna crla-


55o eterna;

3) todas as criaturas foram criadas boas;

4) algumas dentre elas tornaram-se más por própria Iniciativa" (p. 155).

9. A teología dos orientáis separados de Roma conservou


a crenga nos anjos, bons e maus até nossos dias, exprimindo-a
de maneira enfática mormente por ocasiáo das celebragóes li
túrgicas.

10. Quanto ás denominagóes protestantes, a partir do


séc. XVIII comegaram a por em xeque a existencia dos anos
bons e maus como sendo dogma «papista». Esta atitude se
pode explicar por dois fatores:

— 447 —
28 PERGUNTK K RESPONDEREMOS» 160/1973

— a carencia de celebracoes litúrgicas, entre os protes


tantes, acarretou aos poucos o apagamento da crenga nos
anjos, pois estes foram constantemente tidos como participan
tes da sagrada Liturgia, no decorrer dos séculos. Os sacramen
tos sempre foram a ocasiáo de se afirmar e alimentar a con-
viegáo de que os anjos estáo presentes aos homens;

os progressos das ciencias exatas, bem como os da socio-


logia, antropología, psicología..., contribuiram para dissipar
afirmagóes supersticiosas e folclóricas do povo cristáo. Muitos
fenómenos, outrora explicados por recurso ao sobrenatural,
foram reconhecidos como acontecimentos ñauarais. Esta des-
mitóagáo foi levada ao extremo de se negar a própria existen
cia dos anjos bons e maus.

3. Recapitulagóo e perspectivas

Ao conjunto dos sete capítulos, cujo conteúdo acabamos


de apresentar sintéticamente, Georges Tavard acrescenta al-
gumas reflexóes com o titulo «Recapitulacáo e perspectivas».
Visto que constituem urna das mais importantes secgóes do
livro, transmitimo-las aquí na integra:

"A fé na existencia de anjos bons e maus faz parte do


dogma católico; isto é evidente. Ela está contida na S. Escri
tura; é proclamada por Concilios ecuménicos, confirmada pelo
consentimento unánime dos Padres da Igreja e ensinada por
todos os teólogos.

A formulagao oficial desta verdade hoje ainda está no


ponto em que a deixou o 4? Concilio do Latráo em 1215. O
19 Concilio do Vaticano em 1870 confirmou a definlcáo do
Latráo retomando-ia na sua Constituigáo solene De Fide Ca-
tholíca...

O aprofundamento teológico da fé nos anjos e nos demo


nios nao realizou progresso algum desde o fim da Escolástica1.
Isto se deve, sem dúvida, ao fato de que, comparada com os
problemas modernos, a angelologia nao se reveste de mui
grande Importancia. Os teólogos ocupam-se naturalmente

i Para Tavard, a Escolástica se estende ató o séc. XVII, sendo Fran


cisco Suare2 S. J. (1548-1617) o último teólogo da Escola que ele cita e
estuda.

— 448 —
ANJOS: MITO OU REALIDADE? 29-

com questóes que constituem o campo de visáo dos seus


contemporáneos. Por isto voltaram sua atencáo para proble
mas mais urgentes do que os dos anjos e demonios. Por
muito compreensfvel que isto seja, acarreta um perigo: o espi
rito naturalista e racionalista dos tempos modernos poderia
¡ntroduzir-se se nao como tal na teoiogia, ao menos talvez na
atitude prática dos fiéis. A encíclica 'Humani generis' de 1950
parece ter formulado esse recelo, pois ela lamenta que alguns-
'se perguntem se os anjos sao seres pessoais'. Já no decurso
do séc. XIX, muitos Concilios provincials haviam sentido a
necessidade de recomendar ao povo maior veneracáo dos
anjos e, em particular, dos anjos da guarda. Obras de teólo
gos e escritores leigos, nos tempos modernos, chamaram de.
novo a atencáo para a existencia de Sata como ser pessoal
perverso1.

Nossos sistemas ou nossos cursos de teoiogia nao apre-


sentam mais tratados de angeloiogia de grande relevo. Tam-
bém o lugar que os anjos ocupam na vida católica é cada
vez mais reduzido. Para esse estado de coisas, parece que.
se podem apontar tres razoes principáis:

— Os leigos se tornaram cada vez mais estranhos á litur


gia celebrada em língua sacra — o que lancou um véu sobre a
presenca familiar dos anjos evocada pelos textos litúrgicos.
— Os progressos da mentalidade moderna deram ocasiáo
a que se originasse o ceticismo no tocante a certos pontos da
angeloiogia que nao fazem parte da Revelagao propriamente
dita.

— Por último, na piedade popular, Maria tomou aos pou-


cos o lugar outrora reservado aos anjos.

A renovacáo litúrgica inaugurada no mundo inteiro peto


Concilio do Vaticano II é, sem dúvida, capaz de revalorizar de*
certo modo a piedade para com os anjos; o uso do vernáculo
permitirá meihor compreensáo do lugar que os anjos ocupam-

»Ver principalmente "Satán", em "Études Carmélltalnes". Burges-Parls


1948; A. Winkemofer, "Dle Welt der Engel" (Ettal s.d.); Id., "Traktat über.
den Teufel" (Frankfurt 1962).
Se bem que a obra de Glovanni Papini intitulada "II Diavoio. Appunti per
una futura diabologia" (Firenze 1954) nSo pretenda exigir atencto multe
seria, constituí urna prova a mais da orlentacáo ácima mencionada.

— 449 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 16(5/1973

na liturgia. Acrescentemos que o Concilio do Vaticano II apro-


vou decididamente a doutrina ensinada anteriormente pelo ma
gisterio da Igreja e a confirmou; mas, dado que insistiu forte-
mente sobre a Cristologia, ele nao permitirá que a angelologia
se torne autónoma...

Novo despertar do interesse pelos anjos poderá ser tam-


bém suscitado pelo esforco realizado pelos homens no mundo
moderno para se tornarem senhores das dimensóes cósmicas
de um universo em expansáo e pelo ardente desejo que a in
teligencia tem, de tudo conhecer. O Concilio do Vaticano II
levou em conta esses dois fatores para instaurar o diálogo
com o mundo; teve o cuidado de englobar os anjos na vasta
familia de Deus e no processo de salvacao que se vai reali
zando em Cristo por todo o universo. O Concilio, porém, nao
foi além de simples verificagóes. Temos a esperanga de que
os aspectos que acabamos de apontar poderiam, gragas á in
terpretado da Tradigáo e aos progressos continuos da teolo
gía, despertar em nosso século urna renovagáo do interesse
pelos anjos" (obra analisada, pp. 241-244).

4. Conclusao

Num setor como a angelologia, em que a Palavra revelada


por Deus é criterio decisivo, o livro de Georges Tavard tem
importancia capital, pois coloca em relevo as diversas e cons
tantes afirmacóes dessa Palavra e dos seus porta-vozes qualifi-
cados no tocante aos anjos através dos séculos. Há casos, sem
dúvida, em que certos textos bíblicos e os testemunhos da Tra
digáo tém que ser entendidos como expressóes de urna cultura
momentánea (assim, por exemplo. o uso de véu das mulheres
em sinal de sujeicáo, por causa dos anjos, em 1 Cor 11,10); a
própria Tradigáo, relendo esses textos, reconhece que nao cons-
tituem patrimonio de fé. Há, norém, outros casos em que as
fontes da Revelacáo apresentam seus temas com clareza meri
diana como proposicóes de fé; é o que se dá com a existencia
dos anjos e demonios. Nessas circunstancias, nao é lícito ao
cristáo desvirtuar tais afirmacóes, pois trairia a fé, cedendo
ao racionalismo. Tavard insinúa essa conclusao e sugere que
a fé nos anjos, depurada de tradicóes folclóricas, como tam-
bém de preconceitos filosóficos, volte a constituir elemento
vital e sadio da teología e da piedade do povo de Deus.

— 450 —
Um problema bíblico:

o chamado "coma joaneu" (1 jo 5,7b-8a)

Em aínteso: A questio do Coma Joaneu (1 Jo 5, 7b-8a) foi pela pri-


meira vez levantada no séc. XVI por Erasmo de Rotterdam. O Samo Oficio
em 1897 declarou que nfio se poderla, sem perlgo de erro, negar a auten-
ticidade do Coma. Essa medida, porém, nao tinha o slgnlilcado de urna de-
finlcSo dogmática, mas vlsava apenas lembrar que a última palavra no caso
compete ao magisterio da Igreja, á qual Cristo confiou a guarda fiel das
Escrituras Sagradas.

Os estudiosos, pesquisando os manuscritos orientáis e ocidentais do


texto bíblico, nio hesitam em dizer que "o versículo das tres testemunhas
nfio pertence ao teor original grego da 1 Jo, mas é urna Interpolacio,
que deve ter sido felta na península ibérica durante o século IV. AS.
Igreja aceita tranquilamente este resultado dos estudos críticos. Ela nunca
definíu a autenticidade ou canonicidade do Coma Joaneu, nem mesmo quan-
do o Concillo de Trento no séc. XVI declarou sagradas e canónicas as Es
crituras tradicionalmente usadas na Igreja e contidas na Vulgata Latina; o
Coma Joaneu nSo preenche nem urna nem outra destas condlcOes.

Em conseqúéncla, ao estudioso cristáo nSo deve surpreender o fato


de que o Coma Joaneu já nao se encontré ñas edicdes recentes do Novo
Testamento.

Comentario: Quem compara as sucessivas edigóes e tradu-


góes do Novo Testamento feitas nos últimos decenios, pode ve
rificar o seguinte:

As edigóes latinas ditas «da Vulgata»1 e as tradug5es ver


náculas que desse texto latino se faziam antigamente, traziam
o texto de 1 Jo 5,7-8 (primeira carta do Apostólo Sao Joáo.
cap. 5, versículos 7 e 8) conforme o teor abaixo:

1 Jo 5: "7... Quoniam tres sunt qui testimonium dant [in


cáelo: Pater, Verbum et Spiritus Sanctus, et hi tres unum sunt.

]A Vulgata é a traducio latina da Biblia que se deve, quase por com


pleto, a Sao Jerónimo e que, a partir do séc. V, se fol tornando usual na
Igreja. O Concillo de Trento (1543-1565) declarou esse texto auténtico, no
sentido de que nio contém en os dogmáticos: era essa isenc.áo de erros
teológicos que interessava a tal Concilio acentuar, quando no séc. XVI
multas edic&es da Biblia confeccionadas por protestantes transmitiam erros
de traducio que Incutiam erros teológicos e heresias.

— 451 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

8 Et tres sunt qui testimonium dant in térra]: Spiritus et aqua


et sanguis, et h¡ tres unum sunt".

Ou em portugués:

"7... Pois tres sao os que dáo testemunho [no céu: o Pai,
o Verbo e © Espirito Santo; e estes tres estáo de acordó entre
si. 8 E tres sao os que dáo testemunho na térra]: o Espirito, a
agua e o sangue, e estes tres estáo de acordó entre si".

A secgáo 7b-8a, posta entre colchetes, «no céu: o Pai, o


Verbo... na térra» tomou o nome de Coma. Joaneu1 ou «versí
culo das tres testemunhas»-.

Foi o humanista Erasmo de Rotterdam quem no séc. XVI


levantou o problema da autenticidade do Coma. Com efeito, ao
editar o Novo Testamento em 1516 e 1519, esse estudioso ex-
cluiu tanto do texto latino como do texto grego os dizeres que
ácima se acham entre colchetes. Assim levantou-se a contro
versia referente ao Coma Joaneu, que até os últimos tempos
parecía ter sua gravidade, pois, a quanto se julgava, estaya
em xeque um elemento integrante do texto sagrado, elemento
de grande valor teológico.

■A palavra coma vem do vocábulo grego komma, que significa seccáo


ou Inciso. O verbo grego kóplo se traduz por cortar. Donde se vé que a
•expressáo coma Joaneu designa determinada seccSo de um escrito de Sao
Joáo (no caso, de 1 Jo 5).

-A fim de ajudar o leitor a acompanhar o desenrolar deste artigo, se*


•gue-se aqui urna expllcacáo do pensamento de Sao Joáo ao talar do tes
temunho unánime do Espirito, da agua e do sangue.

O Apostólo tinha em vista certas correntes ditas "docetistas" do <¡m


do séc. I. Ensinavam que o Filho de Deus tomara um corpo humano
aparente apenas e que, por conseguinte, o Verbo nSo padecerá na cruz.
Tendo-se manifestado durante a sua vida pública na térra mediante a apa-
réncia de um homem, o Verbo se teria retirado desse seu aparente corpo
humano no momento da Paixáo; alguns chegavam a dizer que se retirara
quando SimSo Cireneu foi chamado a carregar a cruz de Cristo.

Em vista deste erro é que Sao Joáo insiste, segundo o seu estilo, em
que Jesús era verdadeiro Deus e verdadeiro homem tanto no momento
do seu batismo (o Espirito Santo sob forma de pomba sobre a áaua o ates-
tou) como também na Cruz (o sangue o atestou). Da! a expressáo: "o Es
pirito, a agua e o sangue atestam'..", atestam, sim que o verdadeiro ho
mem Jesús (reconhecldo no batismo como Deus, Filho do Pai Eterno) esteve
Insertaravelmente unido á Divindade até derramar a última gota do seu
sangue.

_ 452 _
O CHAMADO «COMA JOANEU» 33

Aos 13 de Janeiro de 1897, o S. Oficio, interpelado por


mestres católicos, declarou \que nao se podía, sem perigo de
erro, negar ou por em dúvida a autenticidade do Coma. Cf.
«Enriquiridio Bíblico» 120-121.

Perguntavam, porém, os estudiosos se tal declaragáo equi


valía a urna definicáo doutrinária (isto é, ligada com as verda
des da fé) ou, antes, a uma norma meramente disciplinar. En-
quanto a hesitagáo existia, os teólogos e exegetas nao se sen-
tiam obrigados a abandonar o exame da autenticidade de
1 Jo 5,7s.

Seis meses após a publicacáo da resposta do S. Oficio, o


Cardeal Vaughan, desejoso de tranquilizar os ambientes cató
licos da Inglaterra, obteve de pessoas abalizadas na Curia
Romana um esclarecimento oportuno: o S. Oficio nao quisera
dar por encerrada a discussáo do problema, de sorte que a cri
tica bíblica católica podia prosseguir seus estudos. Em conse-
qüéncia, muitos autores se distinguiram na pesquisa do assunto,
principalmente o estudioso alemáo Bludau, que, a partir de
1902 e durante vinte e cinco anos, publicou numerosas mono
grafías sobre a historia do Coma. Mais*. em 1905, o arcebispo
de Friburgo na Alemanha autorizou a publicagáo de um «Me
morial» de Künstle, que negava a autenticidade do Coma e o
atribuía a uma interpolado feita por Prisciliano na Espanha
do séc. IV. Por esta ocasiáo, Mons. Jansens, Secretario da
Pontificia Comissáo Bíblica, chamou a atengáo dos estudiosos
para a importancia dessa aprovacáo de um arcebispo dada á
nova tese; ela bem exprimía o modo de sentir da Igreja. Em
breve quase todos os autores católicos negavam a autenticidade
do Coma, sem que as autoridades da Igreja se pronunciassem
em contrario.

O próprio S. Oficio, longe de censurar tal pesquisa, deu


sucessivas interpretagóes benignas da declaragáo de 1897; dizia-
-se mesmo que tais interpretagoes provinham de autoridades
altamente credenciadas em Roma e até do S. Padre Leáo xm.
Finalmente, para dissipar todas as dúvidas, o S. Oficio, aoa
2 de junho de 1927, acrescentou á Declaragáo de 1897 (que ia
ser publicada em um «Enquirídio Bíblico») o seguinte esclare
cimento:

"O decreto de 1897 foi promulgado para coibir a audacia de certos


mestres que, por própria iniciativa, se arrogam o dlreito de rejeitar ou por
em dúvida a autenticidade do Coma Joaneu. Tai decreto, porém, n§o impe
dia que os autores católicos investlgassem o assunto. Caso tivessem razSes

— 453 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

bem ponderadas, moderadas pelo cuidado que a importancia da quest&o


exige, podeiiam inclinar-se a negar a auiemioidade ae i jo 5,7-8, desde
que professassem submissáo ao julzo da Igreja, a quem Jesús Cristo
contiou a tateta nao someme de interpretar, mas tambem de gua/üar lid-
mente as Sagradas Escrituras".

Este esclarecimento do S. Oficio faz que nao naja entrave


á indagagáo das razóes existentes em favor ou em contrario
da genuinidade do Coma Joaneu. A atitude do S. Oficio em
1S9Y nao visava dirimir o problema, mas encarava apenas urna
questáo de competencia: já que a Igreja recebeu de Cristo o
encargo de guardar as Escrituras, teis. reserva a si o clireito
de dizer a última palavra no tocante á autenticidade dos textos
sagrados. Esta questáo há de ser resolvida pela aplicacáo de
criterios científicos, ou seja, pelo exame e a crítica dos manus
critos que através dos séculos nos transmitiram a 1* carta de
Sao Joáo. Se esses manuscritos atestam, com evidencia, que o
Coma Joaneu sempre constou do texto sagrado, a ciencia (e,
com ela, a fé) reconhecerá a genuinidade do mesmo. Todavía,
se se depreender que a tradigáo dos códigos biblicos antigos é
faina ou negativa no tocante ao Coma Joaneu, dever-se-á dizer
(com a certeza que os argumentos científicos permitirem ou
exígirem) que o Coma nao é senáo urna interpolagáo feita ao
texto original bíblico interpolagáo que em sá consciéncia
poderá (ou mesmo deverá) ser eliminada. A esta eventual
conclusáo o magisterio da Igreja e a doutrina da fé nada teráo
a opor, pois a Igreja nunca definiu de maneira explícita a au
tenticidade do Coma Joaneu; Ela o aceitou ñas edigóes da Biblia
enquanto nao havia suspeita fundamentada de que nao fosse
genuino.

Dirá, porém, alguém: o Concilio de Trento (1543-1565)


declarou sagradas e canónicas todas as secgóes da Biblia tra-
dicionalmente usadas na Igreja Católica e pertencentes a Vul-
gata Latina. Em conseqüéncia, nao se deverá dizer que o Coma
Joaneu está incluido entre as secgóes da Vulgata Latina e, por
isto, toi, pelo Concilio de Trento, declarado texto sagrado e
canónico? — Nao. É preciso dizer, como adiante se verá com
clareza, que os cristáos orientáis nao utilizaram o Coma Joaneu
em sua tradigáo e que a insergáo do Coma na Vulgata Latina
é bastante discutível.

Eis, pois, como desde 1927 se coloca a questáo do estudo


do Coma Joaneu. Hoje em día os exames de critica do texto
manifestam, sem hesitagáo, que realmente o Coma nao per-
tence á redagáo original o primitiva da 1 Jo. É por isto que tal

— 454 —
O CHAMADO «COMA JOANEU» 35

texto nao consta mais das edigóes bíblicas, que assim apresen-
íam a passagem em foco:

"7 Porque tres sao os que dáo teste mu n rio: 8 o Espirito,


a agua e o sangue; e os tres estáo de acordó".

Algumas edigóes portuguesas ou brasileiras da Biblia aínda


referem ao pe da página a antiga yersáo ampia, portadora da
mengáo do Pai, do Verbo e do Espirito Santo. Outras edigóes,
porém, nao se referem em absoluto ao Coma.

Importa-nos agora analisar quais as razóes que levam a


recusar a autenticidade das palavras controvertidas de 1 Jo 5,7s.

Tais razóes derivam-se, como dito, do exame dos manus


critos que nos transmitirán! através dos séculos o texto de 1 Jo.
Esses manuscritos sao gregos (ou orientáis, de modo geral) e
latinos. Note-se que o texto original de 1 Jo é o grego, e nao o
latino.

Comecemos por examinar a tradicáo oriental para depois


passar aos manuscritos latinos.

1. Trodijao oriental
1. Dentre as centenas de manuscritos gregos que apre-
sentam através da historia o texto de 1 Jo, apenas quatro (e
quatro manuscritos que tiveram origem no Ocidente) contém
o chamado «Coma Joaneu». Ei-los:

1) Codex Regius, conservado em Ñapóles e datado do


séc. XII. O Coma Joaneu ai se encontra nao no texto, mas em
margem. Parece ser urna glosa introduzida por um bibliotecario
do séc. XVII.

2) Codex Eavianus, de Berlim, datado do séc. XVI. O


Coma ai figura normalmente, mas o «Codex Ravianus» parece
ter sofrido acréscimos para se tornar conforme a outras edigóes
da Biblia.

3) Codex Ottobonianus, conservado no Vaticano. Data


dos séc. XV ou XVI. É código bilingüe (grego e latino). Con
tém o Coma no texto grego, mas, como julgam os críticos, o
Coma ai resulta da tendencia dos copistas a harmonizar o
texto grego com o texto latino de 1 Jo. O Coma nao parece,
pois, escrito de primeira máo no texto grego.

— 455 —
3G tPERCUNTE E RESPONDEREMOS»_lti6/1973

4) Codex Montfortanus, existente em Dublim c oriundo


do séc. XVI. Apresenta o versículo das tres testemunhas celes
tes, mas provavelmente como tradugáo grega do texto latino
da Vulgata.

Em suma, os estudiosos nao conhecem um só manuscrito


grego no qual o Coma Joaneu possa ser considerado como ele
mento integrante da redagáo original. Esta conclusáo é impor
tante, pois, como se sabe, o idioma original de 1 Jo c o grego.

2. Dentre os antigos escritores cristáos de língua grega,


pode-se dizer que. desde S. Ireneu (f 202 aproximadamente) a
S. Joáo Damasceno (t 749), nenhum citou o Coma Joaneu,
embora muito se prestasse a ser utilizado ñas controversias
trinitarias e cristológicas dos primeiros sáculos do Cristianismo.

É ñas obras do escritor dominicano grego Manuel Calecas


(f 1410) que pela primeira vez se encontra o Coma. Trata-se
porém, de um autor de formagáo latina.

A seguir, José Bryennios (t 1436) cita o Coma na sua


««Oratio XII». O tato, porém, é estranho, pois se trata de um
autor de formagáo integralmente grega e hostil aos latinos. Daí
as dúvidas sobre a genuinidade desse citagáo encontrada num
escrito de José Bryennios.

Quanto as traducóes da Biblia para o sirio, o copta, o


etiope, o armenio, o árabe, verificou-se, após a pesquisa cuida
dosamente efetuada por Bludau (bispo de Ermland) e Künstle,
que nao contém o Coma.

Passemos agora a análise da

2. Tradigáo ocktental

Distinguiremos o texto da Vulgata Latina (que data do


séc. V), as versees latinas anteriores á Vulgata e o testemunho
dos escritores cristáos antigos do Ocidente.

2.1. Vulgata Latina

Logo de inicio convém notar que S. Jerónimo mesmo


(t 421), a quem se deve a Vulgata Latina, nunca cita o Coma
Joaneu, parecendo mesmo ignorá-lo. Verdade é que, no Tratado
sobre o salmo 91 de S. Jerónimo, o erudito Mangenot quis en-

— 456 —
O CHAMADO «COMA JOANEU» 37.

trever urna alusáo ao Coma; é, porém, vaga demais para se


poder dizer que S. Jerónimo utilizou o versículo das tres teste-
munhas celestes.

Quanto aos manuscritos da Vulgata, nota-se que oscilam


na transmissáo do Coma. Dentre os mais antigos que se tenham,.
o Codex Fuldensis (que data de 546), o Codex Harleianus (séc.
VI/VII) e o Codex Amiatinus (séc. VII/VIII) nao tém o Coma.
O Codex Toletanus (séc. VIII), o Monacensis (séc. IX) e o
Cavensis (séc. Vni/JX) o apresentam. A diversidade de formas,
como o Coma é reproduzido, a índole secundaria de sua inser-
Qáo em varios manuscritos chamam a atengáo, suscitando a
suspeita de que nao seja elemento integrante da versáo jero-
nimiana. O teor das variantes desses textos é táo variegado que
vai da mais flagrante heresia á estrita ortodoxia.

Das duas edigóes carolíngias da Vulgata, a de Teodulfo-


(entre 795 e 818) tem o Coma, ao passo que a de Alcuíno (801)
nao o apresenta. Note-se que a recensáo de Teodulfo coloca a
mengáo do Pai, do Fimo e do Espirito Santo depois, e nao antes,,
da referencia ao Espirito, á agua e ao sangue:

"Quta tres sunt qui testimonium dant In tena, Spiritus, aqua et sanguis,
et tres unum sunt; et tres sunt qui testimonium dlcunt In coelo, Pater et
Filius et Spiritus Sanctus, et h¡ tres unum sunt".

Em conclusáo, verifica-se que o próprio texto da Vulgata


nao oferece testemunho unánime no tocante ao Coma Joaneu..

2.2. Ve«sóes latinos anteriores á Vulgata

As versees latinas do Novo Testamento anteriores á Vul


gata parecem ter sido numerosas; muitos eram aqueles que,
sem autoridade e competencia, empreendiam a tarefa de tradu-
zir o texto grego do Novo Testamento para o latim. Dessa dis-
persáo de tradügóes, resultaram no Ocidente confusóes e em-
baragos na leitura e na citagáo da Biblia, no decorrer dos séc.
II/V. Foi justamente para por termo a essa variedade de tra
duces latinas, nem sempre fidedignas, que o Papa S. Dámaso
pediu a S. Jerónimo que se encarregasse de preparar urna tra-
dugáo latina apta a substituir as anteriores e a favorecer o
estudo. Urna vez divulgada a tradugáo latina de Jerónimo, as.
mais antigás cairam em desuso, de sorte que nao há nem mesmo.
códigos que nó-las apresentem de maneira completa.

— 457 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

O texto da chamada «Vetus Latina» (antiga versáo latina)


— que na verdade é um texto cheio de variantes, porque varios
eram os tradutores — tem que ser procurado ñas obras dos
escritores latinos antigos que citam a Biblia; estes devem ter
usado urna das formas do antigo texto latino da Biblia. Por
conseguinte, procuraremos agora ñas obras dos escritores lati
nos dos séculos II-V os possiveis testemunhos em favor do
Coma Joaneu.

a) O primeiro desses testemunhos é o de Prisciliano ou


talvez o do bispo priscilianista Instando, discípulo de Prisci-
liano1 no «Liber apologeticus», que data de 380 a 384. Ai se
lé o seguinte:

"Sicut Johannes ait: Tria sunt quae testimonium dicunt in térra: aqua,
caro et sanguls, et haec tria in unum sunt. Et tria sunt quae testimonium
dicunt in cáelo: Pater, Verbum et Spiritus, et haec unum sunt In Chrlsto
lesu" ("Corpus Scriptorum Eccleslae latlnae", t. XVIII, p. 6).

Como se vé, a trilogía «Pai, Verbo e Espirito» segue-se á


de «agua, carne (nao Espirito) e sangue», em vez de a prece
der, como no texto que se tornou usual posteriormente.

b) Pouco depois de 389, foram redigidos na Espanha os


«Tres Livros contra Varimado», que se devem a um escritor
chamado Kdacius claras Hispanus (Idácio, ilustre da Espanha).
Ai se lé a seguinte citacáo:

"ítem Ipse Joannes ad Parthos: Tres sunt, Inquit, qu¡ testimonium


perhibent In torra, aqua, sanguis et caro, et tres In nobis sunt. Et tres
sunt qul testimonium perhibent In cáelo, Pater, Verbum et Spiritus, et II
tres unum sunt" (Patr. lat., ed. Migne, t. LXII, col. 359).

De novo a menguo «Pai, Verbo e Espirito» é posterior á


de «agua, sangue e carne» (nao Espirito).

c) Entre 540 e 570, Cassiodoro em sua obra «Complexio


nes canonicarum epistularum septem» parafraseia 1 Jo 5,7,
mencionando as duas tríades do Coma Joaneu.

Vé-se, pois, que o Coma Joaneu aparece pela primeira


vez no súc. IV em ambiente ibérico. Antes dessa data, nao há
vestigio de sua presenga no texto bíblico grego ou latino. Con-

iO prlscilianismo era urna heresla dualista (a materia seria má) da


Espanha do séc. IV.

— 458 —
O CHAMADO «COMA JOANEU» 39

jetura-se que tenha sido introduzido no texto da Vulgala de


S. Jerónimo sob a influencia da antiga versáo latina; a inser-
gáo talvez se deva ao bispo Peregrino, do séc. V, que assim
terá intencionado assemelhar a Vulgata ao antigo texto latino
do Novo Testamento.

Merece atencáo ainda o fato de que, embora figurasse


em algumas recensóes do texto bíblico latino do séc. IV, o
Coma Joaneu nunca foi utilizado pelos bispos latinos do séc. IV
na famosa controversia antiariana; é de crer que, se o tivessem
conhecido e se julgassem ser parte integrante do texto do Novo
Testamento, os mestres latinos o teriam amplamente aprovei-
tado para desfazer as teses do arianismo, que impugnava a
fé na SS. Trindade. Nenhum argumento bíblico mais eficaz
do que tal texto se poderia encontrar para refutar os arianos.
Todavía o texto nao foi absolutamente explorado em vista de
tal fim, o que bem mostra que no séc. IV os mestres latinos
nao o conheciam como Palavra de Deus inspirada.

Feitas estas diversas averiguacóes, pergunta-se agora:

3. Qual o origem do Coma?

Investigando a literatura latina anterior ao séc. IV, de-


preende-se que o texto de 1 Jo 5, falando do testemunho unáni
me do Espirito, da agua e do sangue em favor de Cristo, se
prestava fácilmente a comentarios místicos; sugeriu, sim, o pa
ralelo das tres Fessoas Divinas, que, em sua Trindade, sao
também Unidade, ou seja, um so Deus. Esse paralelo era tecido
e explanado á guisa de meditagáo sobre o texto bíblico.

O primeiro autor que tenha feito essa interpretagáo místi


ca do texto de 1 Jo, é, a quanto se sa"be, S. Cipriano, bispo de
Cartago (t 258). É o que refere Facundo de Hermiane, que
entre 546 e 551 escreveu o livro «Pro defensione trium capitu-
lorum». Nesse escrito o autor afirma:

"O bem-aventurado Cipriano, bispo de Cartago e mártir, apllcou o tes


temunho de Joio Apostólo ao Pai, ao Fllho e ao Espirito Santo na carta
ou livro que escreveu a respelto da Santtssima Trindade. Com efelto diz:
'O Senhor afirmou: o Pai e eu somos um só. E a respeito do Pai, do Filho
e do Espirito Santo está escrito: Estes fres sao um só"' (Patrología Latina,
ed. Mlgne, t. LXVII, col. 536).

E Facundo explica como o Espirito, a agua e o sangue sig-


nificam alegóricamente o Pai, o Filho e o Espirito Santo:

— 459 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

— a palavra Espirito designa o Pai, pois disse Jesús á


mulher samaritana: «O Espirito é Deus» (Jo 4,24);

— a agua significa o Espirito, em consonancia com o


texto de Jo 7, 37: «Jesús exclamou: 'Se alguém tem sede, venha
a Mim e beba... Como diz a Escritura, rios de agua viva corre-
ráo do coraeáo (do Messias)'. Jesús assim falava do Espirito
que deveriam receber aqueles que nele acreditassem». Nesta
passagem do Evangelho, notamos que a agua simboliza real
mente o Espirito Santo;

o sangue designa o Filho, pois este comunicou a vida


da SS. Trindade a carne e ao sangue.

Assim Facundo de ¡Hermiane, no séc. VI, atesta urna ma-


neira alegorizante de entender o texto de 1 Jo 5, que teve sua
primeira expressáo (a quanto sabemos) numa obra de S. Ci
priano de Cartago no séc. III (cf. «Corpus Scriptorum
Ecclesiae Latinae» t. m, p. 1).

Eis no seu teor original latino o texfo de Facundo:

"Nam et loannes apostolus ¡n epístola sua de Patre et Filio et Spirltu


Sancto sic dlcit: 'Tres sunt qul testimonium dant in térra, Spiritus, )aqua
et sanguis, et hl tres unum sunt'. In Spiritus significans Patrem sicut Domi-
nus mullerl samarltanae secundum Ipsius loannis Evangelium loquitur
dtcens... lo 4,21 s. tn aqua vero Spiritum Sanctum significans, sicut in
eodem Evangelio exponit verba Domlni dicentis... lo 7,37. In sanguino
vero Flllum stgnlflcans, quoniam ipse ex sancta Trinitate comunicavit carni
e sangulni".

A seguir, Facundo cita Sao Cipriano como iniciador de tal


tipo de comentario.

Note-se, porém, que a mencáo do Pai, do Filho e do Es


pirito Santo, tanto no livro d^ Facundo nuanto na carta de
S. Cipriano, é apresentada como comentario pessoal do escritor
cristáo, e nao como parte integrante do texto de Sao Joio. É
de crer, porém, que, a partir de Sao Cipriano, o comentario
alegorista iniciado pelo bíspo de Cartago se tenha tornado mais
e mais usual entre os cristáos. Foi aos poucos sendo formulado
de maneira concisa e estereotípica; esta fórmula passou a ser
escrita á margem do texto bíblico de 1 Jo 5,7 por alguns co
pistas, que assim queriam proporcionar ao leitor urna medita-
Cáo sobre os dizeres do Apostólo. Todavía com o tempo outros
copistas, nao tendo mais consciéncia de que se tratava de mero
comentario do texto biblico, julgaram que deviam transcrever

— 460 —
O CHAMADO «COMA JOANEÜ» 41

tal reflexáo nao á margem de 1 Jo 5,7, mas no corpo mesmo


da epístola. Naturalmente, o lugar mais indicado para inserir
a mengáo do Pai, do FUho e do Espirito Santo era o que se
seguía a referencia do espirito, da agua e do sangue. Por isto
é que em textos atrás citados se encontra primeiramente a tri
logía «espirito, agua e sangue», e depois a do Pai, do Filho e
do Espirito Santo. Ainda no séc. VIII. como vimos, a recen-
sáo da Vulgata de Teodulfo apresentava tal seqüéncia. Com o
tempo, porém, os copistas e comentadores teráo julgado que o
lugar mais apropriado para se mencionar a SS. Trindade era
o inicio da passagem; dai a antecipagáo de «Pai, Filho e Espi
rito Santo» a «espirito, agua e sangue».

Em suma, o comentario alegorista que está na origem do


Coma Joaneu aparece pela primeira vez no Norte da África
no séc. III. Esse comentario, mais e mais difundido, é tido
explícitamente pela primeira vez como parte integrante do
texto bíblico em fins do séc. IV na Espanha. Todavía nao se
pode dizer que tenha sido o próprio Prisciliano quem Jfez a
transposicáo do comentario da margem dos códigos para
dentro do texto bíblico mesmo; Prisciliano apenas cita o texto
de 1 Jo como ele já era usado anteriormente na Espanha.

Eis, em grandes linhas, a historia do Coma Joaneu. Quem


a conhece, nao hesita em reconhecer que nao deve ser mantido
ñas edigóes do Novo Testamento. É por isto que hoje ele nao
figura mais no texto bíblico. Eliminando-o, nao se elimina par
te da S. Escritura, nem se fazem concessóes ao racionalismo
ou á heresia, nem se derroga ao magisterio da Igreja, mas se
restabelece mais límpidamente a face da Palavra de Deus —
o que é altamente positivo. Ao cristáo só resta adorar a con
descendencia de Deus, que se quis sujeitar as vidssitudes do
trato humano, quando quis que a sua Palavra se fizesse Pala
vra dos homens na Biblia.

A propósito veja-se:

"La Salnte Bible" de Plrot-Clamer, t. XII. París 1946. pp. 510-514.

A. Lemonnyer, "Comma johannique", em "Dictionnalre de la Blblo.


Supplément publié sous ta direction de Louis Pirot". t. I. París 1928,
col. 67-73.

E. Riggenbach, "Das Comma Johanneum". Gutersloh 1926.

J. Lebratón, "Histolre du dogme de la Trinité des origines au Conche


de Nicée", t. I. Paris, 2». ed., p. 1927 (nota K).

— 461 —
Vale tu do?

"o adulterio nao mais será considerado


(rime11?1

Em sínlese: A revista "Veja" de 5/IX/1973, p. 60, publicou urna cró


nica que a muitos leilores pareceu insinuar libertinismo e revolugao de cos-
tumes nos próximos tempos da Igreja: adulterio, estupro, sodomía... nao
mais seriam considerados crimes. „

Ora a noticia se ressente de redacáo Inexata e sensacionalista. Na


verdade, acontece que a Igreja está procedendo á revisao do Oireito Ca
nónico, a fim de torná-lo instrumento que assegure ainda com mais eficacia
a dignidade de costumes nos ambientes católicos. Entre os objetos de re-
visáo, está o Código Penal que recorre freqüentemente a censuras (ex-
comunháo, suspensao, interdito) em termos que hoje em dia nao preenchem
mais a finalidade de toda e qualquer pena (que lía de ser sempre medici
nal). A possivel supressáo de certas penas ou censuras de foro externo
está longe de significar que as faltas ou os pecados aos quais tais penas
ostavam anexas, deixarao de ser faltas ou pecados. Por conseguinte, adul
terio, sodomía e males congéneres jamáis seráo (nem poderáo ser) legiti
mados pela S. Igreja; seráo sempre pecados, embora nao sempre punidos
por tal ou tal pona pública.

Quanto á indissolubilidade do casamento, que a crónica de "Veja"


parece deixar sob interrogacáo, ela foi reafirmada recentemente por impor
tante documento da Santa Sé, que va¡ transcrito na segunda parte do presen
to aríigo.

Comentario: A revista «Veja», em sua edic.áo de 5 de se-


tembro de 1973, p. 60, publicou urna crónica com o título
«Abertura canónica», referente á reforma do Código de Direito
Canónico que está sendo realizada na Igreja Católica. O texto
dessa noticia se abre com as seguintes palavras:

"O adulterio nao mais será considerado crime. Os estupradores, os


incestuosos, os bestiais, os sodomitas, os exploradores do lenocinio nfio
mais seráo declarados infames e excluidos dos atos eclesiásticos... Parece
urna revolucao completa. Mas sao exatamente essas algumas das modifi-
cacóes propostas pela comissao encarregada de reformar o Código de Di
reito Canónico, inalterado desde 1917. Os 170 membros e consultores pon-

Revista "Veja", 5/IX/1973, p. 60.

— 462 —
VALE TUDO? 43

tifícios, nomeados há dez anos para mudar a legislagSo eclesiástica, leva-


ram em conla nao apenas a evolucáo da ciencia jurídica, mas sobretodo
o espirito do Concilio do Vaticano II".

A primeira vista, esta noticia sugeriu (ou mesmo sugere)


a muitos leitoreá que em breve será possivei cometer adulterio,
estupro, sodomía e muitos outros males, sem que a Igreja te-
nha algo a dizer. O novo Código de Direito Canónico daría co
bertura a todo tipo de desatino moral, legitimando o «Vale tudo!»
do libertinismo degradante.

Já que o assunto é de capital importancia, váo, a seguir,


propostos alguns esclarecimentos sobre o que a S. Igreja vem
proíessando a realizando em sua reforma de leis.

1. A renovajóo do Direito Canónico

1. Em 1917 foi promulgado o Código de Direito Canó


nico que até hoje está em vigor. Resultava de cuidadoso tra-
balho, elaborado anos a fio por peritos, que consultaran! fontes
e tradigóes da Igreja a fim de aprimorar urnas, confirmar outras
e reunir num só código uma legislacáo apta a regrar e fomentar
a vida da sociedade eclesiástica e de seus membros.

Após quase cinqüenta anos de vigencia do Código de Di


reito Canónico, a S. Igreja verificou que ele supunha circuns
tancias, situacóes e costumes de vida que já nao correspondem
•á realidade de nossos dias. Com efeito, a historia coloca os ho
mens diante de questóes sempre novas, de tal sorte que uma
auténtica legislacáo tem que ser periódicamente revista a fim
de que atenda realmente ao bem comum dos homens colocados
frente a essas renovadas interrogagóes. É por isto que, sob o
pontificado do Papa Joáo XXIII, teve inicio o trabalho de re-
visáo cuidadosa do Código de Direito Canónico, a fim de se lhe
dar a eficacia necessária ao fomento da vida da Igreja em nos-
sos dias. Nessa obra trabalham centenas de peritos de diversas
nacionalidades, entre os quais figura o Pe. Waldemar Puhl, de
Porto Alegre, canonista sabio, experimentado e extremamente
fiel aos principios da fé e da moral católica.

Ora uma das secgSes do Código que passaráo por refor-


mulacáo, é certamente o Direito penal respectivo. O atual Di
reito impóe nao raro as censuras de excomunháo, suspensáo e
interdito; as vezes tais penas recaem sobre a pessoa culpada

— 463 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 166/1973

sem que haja processo previo; sao penas ditas «latae senten-
tiae», isto é, devidas a urna sentenga proferida de antemáo, urna
vez por todas, sobre todo e qualquer réu desse crime ou daque-
le delito. Pessoas atingidas por certas penas podiam ser consi
deradas doravante infames; outras, depois de excomungadas,
deveriam ser evitadas pelos fiéis católicos Verífica-se, porém,
que o grande número de tais penas ou censuras nao logra o
efeito desejado, que há de ser sempre medicinal. Com outras
palavras:... nao concorre para reprimir os delitos, mas, ao
contrario, ocasiona situagóes jurídicas embaracosas e novos pro
blemas moráis. Na verdade, pode acontecer, entre outras coisas,
o seguinte: muitas pessoas que cometem delitos aos quais urna
censura está anexa, ignoram tal censura e suas conseqüéncias.
Além disto, nao se entende bem, hoje em dia, que alguém deva
ser punido no foro externo sem ser anteriormente julgado me
diante um processo que verifique o grau de responsabilidade
e culpa que lhe tocou.

Por conseguinte, sao as censuras ou punigóes de foro ex


terno ou público que os canonistas da Igreja estáo revendo; em-
penhar-se-áo para que nao entrem no novo Código de Direito
sem que haja probabilidade real de serem medicináis e concor-
rerem para o bem da Igreja e da sociedade.

Estas ponderagóes, porém, nao querem dizer que os crimes


aos quais nao se anexará mais tal ou tal sancáo (excomunháo,
suspensáo, interdito), deixaráo de ser crimes ou de ser faltas
moráis. O adulterio, por exemplo, a fornicagáo, o estupro, a
sodomía e males semelhantes continuaráo a ser sempre con
siderados faltas em si graves e abomináveis, que um cristáo
jamáis poderá cometer licitamente.

Numa palavra: a reforma do Direito Canónico nao se re


ferirá, em absoluto, á nogáo de pecado; nada inovará na concei-
tuagáo e classificacáo dos pecados. Estes sao julgados pelos cri
terios da Moral, que sao criterios baseados, em última análise,
na lei natural (leí perene e universal, impressa por Deus na
consciéncia de todo homem e explicitada pelas auténticas leis
positivas dos homens).

2. O citado artigo de «Veja» menciona também a legis-


lagáo matrimonial da Igreja. Entre outros tópicos, ao abordar
o casamento «rato e consumado», afirma:

"Qualquer violencia cometida por um dos cónjuges poderá dar direito


ao outro de pedir a anulacSo do casamento a um tribunal eclesiástico".

— 464 —
Esta frase, ambigua e lacónica, parece insinuar a alguns
leitores que a Igreja pensa em aceitar o divorcio (anulagáo de
casamento válido e consumado). Ora nao é realmente esta a
intengáo da S. Igreja: a indissolubilidade do casamento consu
mado tem fundamento no conceito de matrimonio sacramental,
que a Igreja nao tem autoridade para retocar.

A fim de evidenciar quanto seria erróneo julgar que a S.


Igreja se está encaminhando para a aceitacáo do divorcio, vai
abaixo transcrito um documento dirigido pela Santa Sé aos
bispos do mundo inteiro em data recente.

2. Significativo documento

Eis o documento em foco, proveniente da Sagrada Con-


gregacáo para a Doutrina da Fé e traduzido do latim:

00193 Roma, 11 de abril de 1973


Piazza del S. Uffizio, 11
Prot. n? 1284-66 e 139-66
Excelentíssimo Senhor,

Esta Sagrada Congregacáo, a cuja responsabilidade está


confiada a defesa da doutrina da fé e dos costumes em todo
o mundo católico, com vigilante cuidado observa a difusáo de
novas opinióes, que negam ou se empenhcm para por em dú-
vida a doutrina relativa á indissolubilidade do matrimonio cons-
tantementa proposta pelo Magisterio da Igreja.

Tais opinióes sao difundidas nao só por escrito em livros


e revistas católicos como também nos Seminarios e Escolas
Católicas, como ainda comecam a se insinuar na praxe mesma
de alguns Tribunais Eclesiásticos em urna ou outra Diocese.

Tais opinióes, além disso, sao apresentadas com argumen


tos, juntamente com outras razóes doutrinais ou pastorais, para
justificar os abusos contra a disciplina vigente na admissáo aos
sacramentos, dos que vivem em uniáo irregular.

Diante disso, este Sagrado Dicastério, na sua Congrega-


cao Plenária de 1972, submeteu tal questáo a exame e deter-
minou, com a aprovacáo do Sumo Pontífice, exortar insistente
mente V. Excelencia a urna vigilancia diligente para que todos
aqueles aos quais está confiada a tarefa do ensino da religiao
ñas escolas de qualquer grau como em outras instituicóes ou
o encargo de Oficial em Tribunal Eclesiástico, permanecam
fiéis á doutrina da Igreja relativa á indissolubilidade do ma
trimonio e a respeitem na praxe dos Tribunais Eclesiásticos.

No que diz respeito á admissáo aos sacramentos, queiram


igualmente os Ordinarios do lugar1, de urna parte, urgir a ob
servancia da disciplina vigente na Igreja e, de outra, empenhar-
-se para que os pastores de almas cuidem, de modo especial,
daqueles que vivem em uniáo irregular, usando, na solugáo de
tais casos, além dos meios de direito, a praxe da Igreja relativa
ao foro interno.

Comunicando-lhe tais coisas, sou-lhe com toda a reveren


cia o afeicoadíssimo

Francisco, Card. Seper, Prefeito

Jerónimo Hamer, Secretario

Como se vé, este documento reafirma a indissolubilidade


do casamento, apesar das mais diversas razóes que se tenham
apresentado contra a mesma. Lembra que pcssoas que se unam
maritalmente sem o sacramento do matrimonio, se privam do
direito e da graca de receber a Comunháo Eucarística. Por cer-
to, é duro á autoridade suprema da Igreja reiterar tais prin
cipios; a um pastor de almas mais fácil e «simpático» seria s¡-
lenciá-los ou reformá-los. Todavía, ao propo-los de novo, a S.
Igreja manifesta a consciéncia de que o assunto é extremamen
te serio, nao podendo ser moldado a criterio de nenhuma au
toridade humana. O zelo de um pastor de almas, diante de ca
sos matrimoniáis infelizes, tenderá principalmente a excitar fé,
magnanimidade e confianca ñas pessoas em foco.

Em suma, possam tais dados projetar luz sobre alguns


tópicos da resenha de «Veja» e desfazer a impressáo de que
as normas da Moral católica estáo para desmoronar sob a onda
da dissolucáo de costumes!

Estéváo Bettencourt O.S.B.

1 Bispos ou outros Prelados com junsdiQáo de Bispos.

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