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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(¡n memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDIpÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico • filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
tn SUMARIO

"Sou Filha da Igreja!"

Secularidade, Secularizacao e Secularismo


LU

O
H O Domingo
oo
UJ
Casáis que se Dissolvem

Igreja Favorável ao Aborto?

O Mercado de Drogas

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O
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ANO XXX MAIO 1989 324


3UNTE E RESPONDEREMOS MAIO- 1989
Publicacáo mensal NP324

ator-Responsável: SUMARIO
ístévao Bettencourt OSB
<\utor e Redator de toda a materia "Sou Filha da Igreja!" 193
publicada neste periódico
Tres vocábulos densos:
etor-Adm ¡nistrador: Secularidade, Secularizado e
D. Hildebrando P. Martins OSB Secularismo 194

O dia da festa crista:


ministracao e distribuicao:
O Domingo 207
Edicoes Lumen Christi
Dom Gerardo. 40 - 5? andar, S/501 O doloroso fen&nemo dos
Tel.: (021) 291-7122 Casáis que se Dissolvem 219
Caixa Postal 2666
20001 - Rio de Janeiro - RJ Está no ar:
A Igreja foi Durante Séculos Favorável
ao Aborto? 231

Comunicacao - O Mercado de Drogas. 239


I "MAXQUESSARAIVA"
ca4feos t toiToats s *

NO PRÓXIMO NÚMERO:

325 - Junho - 1989

Os Fiéis Leigos na Igreja. - A declaracao dos Teólogos de Colonia. - As


Seitas e seu Avance - 0 Linguajar do Cristao Marxista. - "Os Versos
Satánicos".

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

5INATURA ANUAL: NCzS 10.00


Paoamento (á escolha)-

1. VALE POSTAL ¿Agencia Central dos Correios do Rio de Janeiro.

3. No Banco do Brasil, para crédito na Conta Corrente n° 0031, 304-1 em


nome do Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, págável na Agencia da
Praca Máuá (n? 0435):
"Sou Filha da Igreja!*1
(Santa Teresa de Ávila)

O fiel crista*o que acompanha a historia de nossos tempos, pode


sentír-se incitado a recordar uma famosa exclamacao de Sta. Teresa de Ávila'
(fi582): "Sou filha da Igreja!" A Santa, que tinha um temperamento
fogoso e, ao mesmo tempo, muito feminino, vivía numa época difícil: o
Renascimento disseminava certo naturalismo pagáo até em ambientes
cristáos; os pastores da Igreja se viam a bracos com a invasio do mundanis
mo e a efervescencia religiosa protestante na Alemanha, na Suica e na
Inglaterra... Teresa de Ávila, em sua juventude, cedeu um tanto á mentalida-
de hedonista e mundana da sua época; depois, porém, resolveu responder
aos desafios do momento abracando com a máxima fidelidade as normas de
espiritualidade do Carmelo sintetizadas ñas palavras: Oracao e Penitencia.
Tornou-se assim a renovadora dos Carmelos, aderindo corajosamente aos
principios que sempre nortearam a vida da Igreja: esta é sustentada nao pela
forca dos homens, mas pela graca de Deus. Teresa podia entao dizer: "Sou
filha da Igreja!" em meio as tempestades e contradicoes.

A grande mestra compreendeu, com todos os Santos, que é impossfvel


aderir a Deus Pai sem ser fiel a Cristo, que, como Cabeca, leva os homens
ao Pai (cf. ICor 15,28). Tal convicclo é tafo clássica e típica da fé crista que
no secuto III S. Cipriano, bispo de Cartago (t 258), escrevia em época
arriesgada por correntes e divisdes: "A Esposa de Cristo ná"o pode ser adulte
rada; Ela é incorrupta e pura, nao conhece mais que uma so casa, guarda
com casto pudor a santidade do único Tálamo. Ela nos conserva para
Deus, entrega ao Reino os filhos que gerou... NAO PODE TER DEUS POR
PAI QUEM NAO TENHA A IGREJA POR MÁE" {Sobre a Unidade da Igre
ja, cap. 4).

Estes dizeres, aos quais muitos outros se poderiam acrescentar, tirados


da hagiografía, sugerem algo que é fundamental para o crisíao até os nossos
dias: o sentir-se filho da Igreja ná"o apenas por ser esta uma instituicá*o
cultural e beneficente, mas principalmente por ser o Sacramento ou o sinal
sensível que nos transmite a vida de Jesús Cristo, fazendo-nos, pelo Batismo
e a Eucaristía, filhos no FILHO, a fim de voltarmos ao Pai.

A espiritualidade crista", bem entendida, sabe ver na Igreja a prolonga-


c3o do misterio da EncarnacSo. Este implica, da parte do Verbo, um assumir
a própria fragilidade humana para fazer déla precisamente o canal do Trans
cendental ou da vida divina. Já o Apostólo observava: "Quanto mais palpa-
ve I é a fraquera dos homens, tanto mais se evidencia que é a forca de Deus
que age na Igreja" (cf. 2Cor 12,9s).
BIBLIOTECA ¡ EB
C K hJ T ►< A L ;

193
"PERúUNTE E RESPONDEREMOS"

Ano XXX - N9 324 - Maio de 1989

Tres vocábulos densos:

Secularidade, Secularizado
e Secularismo

Em lint ese: Secularidade significa a autonomía relativa que as ciencias


humanas possuem em relacSo é religiao (o vocábulo opóe-se a curandeiris-
mo, magia, supersticao, artes que pretendem fazer da religiao a chave para
resolver de ¡mediato problemas temporais).

Secularizado é o tornar secular, nao sacral. Pode ser sadia (se elimina
a falsa religiosidade supersticiosa), como pode ser nociva (se elimina a pro-
pria Religiao); neste caso tem-se o secularumo ou a teología da morte de
Deus.

A teología da morte de Deus foi cultivada na década de 1960 por cris-


taos que se baseavam sobre duas premissas: urna, de ordem sociológica (o
homem contemporáneo ¡é nSo se interessa por valores religiosos, de modo
que Deus Ihe ó um nome mono); outra, de ordem filosófica (as imagens que
em nossa mente formamos de Deus, ficam muito longe de Deus; sao ídolos).
Por conseguínte, diz'tam tais teólogos, o cristSo nao deve falar de Deus nem
dos valores transcendentais. Faca-se um Cristianismo nao religioso ou sem
Deus, visando apenas ao sen/ico do homem, a exemplo de Jesús Cristo,. que
foi "o homem para os outros".

Estas idéiasperdenmsua voga na década seguintg (1970), pois os estu


diosos verificaran) que, apesar de tudo, o senso religioso persiste nos homens
contemporáneos; apenas pedo novas expressdes, mals correspondentes és mu
dencas culturáis dos nossos tempos. Por isto, alguns dos teólogos da morte
de Deus (ou do secularismo) voltaram atrás; tenhase em vista especialmente
Harvey Cox. Todavía no Catolicismo ficaram serías marcas de secularismo:
parda do senso de oracSo, de sacralídade, de pecado, de ortodoxia (preterida
em favor da ortopraxis), de espirito missíonério... Em conseqüéncia. tam-
bém se registra a defeccSo de muitos fiéis cató/icos, que, diante do silencio

194
SECULARIDADE, SECULARIZACAO, SECULARISMO 3

ou da morte dos valores religiosos na cateqyese e no culto da Igreja, preferí-


ram passar-se para denominares cristSs recentes e seitas, mensageiras de
falsa sacralidade, de portentos fantasiosos e proposicoes irracionais...

A tomada de consciéncia destes fatos é urna etapa importante para se


levar remedio á críse por que passa o Catolicismo, vulnerado pelo secularís-
mo ou por falsa filosofía.

* * *

Vivemos numa época de ambigüedades: certas palavras, pelo duplo ou


múltiplo sentido que podem ter, deixam os interlocutores e o público con
fusos. Tais sao "liberdade, democracia, socialismo, autenticidade...". Entre
estas, enumeram-se também, no vocabulario da fé, os tres termos "seculari-
dade, secularizado e secularismo". O mundo atual está "secularizado" é,
por exemplo, urna locucao cujo sentido á primeira vista nao está claro, mas,
apesar de tudo, serve de ponto de partida para conclusoes diversas. Eis por
que nos voltaremos para um estudo mais profundo destes termos e da pro
blemática que eles conotam.

1. Secularidade

Século vem do vocábulo latino saeculum, que significa nao somente


urna medida de tempo, mas também o mundo ou o espapo deste mundo. O
mesmo duplo sentido está ligado ao termo hebraico olam e ao grego aion.

Por conseguinte, "viver no século" pode significar nao apenas "viver


em tal segmento de tempo", mas também "viver no mundo". Secular é o
que tem cem anos de existencia, mas pode ser também o equivalente a mun
dano ou próprio do mundo. Este último sentido faz antftese com o sagrado;
o secular (mundano) pertence a urna esfera diferente da do sagrado, e vice-

Portanto, quando se fala de secularidade de alguma coisa, designa-se a


índole mundana ou nao sagrada da mesma. Últimamente os pensadores enfa-
tizam a secularidade das ciencias humanas e do próprio universo, querendo
assim dizer que tais coisas nSo slo diretamente regidas pela religiao; a reli-
giao nao as comanda com ditames, receitas e solucoes... Assim, por exemplo,
a medicina tem sua secularidade, que deve ser respeitada; ela possui, sim,
seus principios e suas conclusoes deduzidas de pesquisas. A religiao nao tem

1 Sinónimo de secular é o vocábulo profano, que vem de pro (= na frente


de) e fanum (templo). Por conseguinte, profano é o que está fora do templo
ou do ambiente sagrado.

195
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

receitas para a cura de doencas ou nao é curandeirismo... A economía tem


também sua autonomía frente a religiao no sentido de que ninguém aprende
economía na escola da fé, mas, ao contrario, deve procurar mestres de eco
nomía, que tém premissas e normas adequadas ao respectivo setor. A políti
ca, igualmente, é urna arte e um saber construidos a partir de principios pro-
prios.

Claro está que indiretamente todas as ciencias e ativídades humanas es-


tao subordinadas á fé no sentido de que nenhuma de suas proposicoes pode
ser verídica se discorda de algum artigo de fé ou de Moral católica. Estas sao
criterios negativos, que podem indicar erros, mas nao substituem a pesquisa
humana. De resto, nunca urna auténtica proposicáo científica será contraria
a um artigo de fé, pois tanto o mundo como a mensagem do Evangelho tém
sua fonte em Deus.

A própria natureza, que o homem deve estudar e explorar, tem suas


leis naturais, dadas pelo Criador; merecem respeito da parte do homem, de
modo que a medicina, por exemplo, embora seja urna ciencia, nao deve rea
lizar pesquisas, experiencias ou ¡ntervencóes que violem as leis da natureza
ou que reduzam o ser humano á categoría de mero produto de laboratorio.
Numa palavra: o homem e as criaturas que o cercam, estao intimamente rela
cionados com Deus Criador, de sorte que toda a atividade humana, para ser
realmente construtiva, há de manter essa harmonía com as leis incutídas por
Deus a cada urna das suas criaturas. Veja-se a respeíto a Constituícao Gau-
dium et Spes n? 36, do Concilio do Vaticano II.

Assim a secularidade bem entendida é legítima; mas pode tornar-se ilí


cita se rompe o relacionamento (ao menos indireto) com o Criador. Pódese
até dizer que o reconhecimento da secularidade é precisamente urna das ca
racterísticas do Cristianismo, pois este se opds e opóe á medicina "curandei-
ra", á divinizacao do rei, do imperador, do Chefe de Estado ou do próprio
Estado,... a qualquer forma de supersticao e magia (estas atríbuem poderes
divinos ou superiores a criaturas que nao os tém}, a qualquer tipo de fatalis
mo; em suma, ... a qualquer modalidade de idolatría (o cientificismo, o po
der absoluto ditatorial, os mitos dos séculos passados ou da atualidade).

Examinemos agora os conceitos de

2. Secularizado e Secularismo

2.1. Secularizado

O substantivo Mcularizacáb, derivado do verbo secularizar significa


tornar secular. Pode ser entendido em dois sentidos:

196
SECULARIDADE, SECULAR IZACÁO, SECULARISMO 5

1) ou é tornar secular, removendo urna componente falsamente reli


giosa... Tal ocorre quando se diz Nao ao curanderismo, por exemplo; entSo
seculariza-se a medicina;... quando se diz Náb ás supersticóes e á magia; en
tapo secularizam-se as virtudes da prudencia, da previdencia e o próprio uso
da razao humana. Tais atitudes sao cristas;

2) ... ou é tornar secular, removendo nao urna componente falsamente


religiosa, mas a própria dimensao religiosa da realidade. Trata-se da recusa
dos valores religiosos, recusa que, nao obstante, professa e tenta promover
os valores meramente humanos ou seculares. Tal sistema se chama secularis
mo. É a secularizado extremada ou radical. Estudemo-la mais detidamente.

ZZ Secularismo

A secularizacao extremada ou o secularismo exprimiu-se, na década de


1960, no sistema dito "Teología da Morte de Deus", expressao aparente
mente contraditória. Este mesmo sistema é também conhecido como "Cris
tianismo sem Deus, arreligioso ou ateu". Teve grande voga e, embora hoje
nao seja citado explícitamente, exerce influencia sobre alas do pensamento
cristao.

Que diz a "Teología da Morte de Deus"?

Foi elaborada por protestantes, como Dietrich Bonhoeffer (1906-1945),


W. Hamílton, Th. J. Altizer, Harvey Cox, J.A. Robinson... Trata-se, portan-
to, de homens que acreditava m em Deus, mas afirmavam que Deus se tornou
um nome morto ou sem significado para o homem contemporáneo; por isto
o cristao nao o deve apregoar, nem assinalar medíante símbolos ou instituí-
coes sagradas (igrejas, escolas, jomáis, hospitais... confessionais), mas, para
poder encontrar audiencia junto aos cidadSos deste mundo, deve ¡nteressar-
se tao somente por valores humanos ou pela construcáo da cidade do ho
mem; de resto, dizem, quem constrói a cidade dos homens, já está construin-
do a Cidade de Deus ou está implícitamente sen/indo a Deus. Com outras pa-
lavras: o cristao deve vi ver ac ti Deus non daretur, como se Deus nao existis-
se, enfrentando os desafios deste mundo, sem recorrer á "hipótese" Deus;
apenas cultuará a Deus em seu coracáo.

ZZ1. Dietrich Bonhoeffer

Um dos primeiros arautos dessa mentalidade é o pastor luterano ale-


máo D. Bonhoeffer, que se manífestou em Cartas escritas ao seu amigo E.
Bethge e reunidas num volume sob o título "Resistencia e Submissáo". Nes-
ses textos percebe-se o estado deprimido em que se achava o autor: encon-

197
6 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

trava-se no cárcere de Tegel em Berlim (1943-44), prisioneiro dos nacional


socialistas, sem outra prospectiva a nao ser a condenacao á morte. Foi preci
samente nesse contexto que nasceu o programa de um "cristianismo nao re
ligioso" (carta de 30/04/1944).

Como o concebe Bonhoeffer?

Diz o autor que o Deus cultuado pela Religiao é um Deus "tapa-bura


co", ou seja, urna explicarlo á qual os homens recorrem para cobrir as lacu-
ñas que a ciencia deixa aberta nos sucessivos momentos da historia. Aconte
ce, porém, que o Deus da Religiao está sempre a perder terreno, visto que a
ciencia consegue elucidar novos e novos problemas (cartas de 30/04/44 e
29/05/44). Verdade é que ficam questoes para as quais a ciencia nunca deu
resposta nem é prováve I que a dé: a da morte, por exemplo, a da Moral, a do
heroísmo de muitas pessoas que renunciam aos valores ¡mediatos por causa
de bens transcendentais. Mas Bonhoeffer acaba achando que mesmo as limi-
tacóes da ciencia exigem o recurso a Deus, pois há homens que conseguem
enfrentar a morte ou viver honestamente sem recorrer á ñoclo de Deus1
(cartas de 30/04/1944 e 29/05/1944).

Supressa a dimensao religiosa, pode-se continuar a falar de Cristianis


mo? Bonhoeffer acredita que sim: o Cristianismo, diz ele, é seguir a Cristo;
ora Cristo foi o prototipo do homem nao religioso; na cruz, abandonado
pelo Pai (cf. Me 15,34), Jesús enfrentou a morte sem recorrer a Deus (cartas
de 27/06/1944 e 16/07/44). E durante toda a sua vida Jesús foi "um ho
mem para os outros".

Assim se apresenta o Cristianismo nao religioso: tendo despojado o


próprio Cristo da sua dimensao religiosa, vem a ser um estilo de vida voltado
exclusivamente "para os outros". Ao propor esta concepcao, Bonhoeffer se
deixa mover fortemente por seu estado psicológico deprimido, enfatizando
exageradamente em Cristo a solidáo que ele mesmo experimentava. Jesús
quis, sem dúvida, sentir o que o homem pecador senté (embora Ele nao fos-
se pecador), mas morreu entregando-se ao Pai (recorrendo ao Pai), pois ex-
clamou antes de expirar: "Pai, em tuas maos entrego o meu espirito"
(Le 23,46). Assim nao se pode dizer que a vida de Jesús teve únicamente
urna dimensío horizontal; ao contrario, o evangelista S. Lucas refere nume
rosas ocasióes em que Jesús rezou ao Pai; cf. Le 3,21; 5,16; 6,12; 9,18.28s;

1 Bonhoeffer nao trata de saber se tais homens representan!, estatisticamen-


toe sociológicamente, urna cota ponderável ou se safo excecoes pouco fre
quemes, a ponto de n§o poder fundamentar a sua argumentado. Teña sido
me/hor que Bonhoeffer nio fosse tSo sumario ao abordar esta questSo.

198
SECULARIDADE. SECULARIZAQAO, SECULARISMO 7

11,1s; 22,32.42; 23,34.46. Foiessa uniá"ocom o Pai que possibilitou á hu


manidade de Jesús o cumprimento fiel da sua missao ou da entrega aos ho-
mens (cf. Gl 2,20; Ef 5,2.25).

Ademáis a ciencia nao destrói a religiao. Verdade é que o progresso da


ciencia contribuiu para a secularizapao no bom sentido, exposto atrás á p. 197.
Mas a ciencia, além de caminhar hesitante e temerosa de errar, deixa, e dei-
xará sempre, sem solucao questoes fundamentáis do ser humano: Donde
venho? Para onde vou? Por que existo? Qual o sentido do sofrimentó,... da
morte,... do trabalho? Se alguns homens prescindem da resposta para estas
indagacoes, constituem urna minoría, pois espontáneamente todo homem
quer conhecer os pontos cardeais que norteiam sua caminhada.

Note-se ainda que, se se priva Jesús da sua dimensao religiosa ou trans


cendental, surge a pergunta: por que haveria de ser Ele, um distante aldeSo
da Galiléia, o prototipo para nos, em vez de algum líder dos nossos días,
como Gandhi, Albert Schweitzer, Martín Luther King, John F. Kennedy íu
outro personagem dotado e generoso na sua entrega ao bem da humanidade?
Em nossos tempos há também pioneiros que sao "homens para os outros"...
e que poderiam substituir Jesús, se nos atemos á tese do secularismo.

Donde se vé que o Cristianismo nao religioso se descaracteriza como


Cristianismo.

2.2.2. Outros teólogos da morte de Deus

As idéias de Bonhoeffer, um tanto sufocadas pelo clima da guerra


(1939-45) e do ¡mediato pos-guerra, foram retomadas poucos anos depoís
em ambientes culturáis diversos; apresentaram-se com vigor novo, na base
de premissas da filosofía neopositivista anglo-sax&nica (a base filosófica de
Bonhoeffer era mais existencialista). Distínguiram-se entáo os nomes de
John Robinson, bispo anglicano, autor do livro Honest to God (Um Deus
diferente, na traducao brasileira) e Harvey Cox, com sua obra "A Cidade
Secular".

Tais autores partem da premissa de que Deus nao pode ser objeto dire
to de nossos atos. Com efeito: Deus ó totalmente diverso daquilo que nos
concebemos a respeito dele, dizem. Ora, para que algum ato nosso se possa
dirigir a Deus, é necessário que previamente pensemos nele ou que cons-
truamos urna imagem de Deus. Essa imagem, poróm, é, na verdade, um ído
lo, pois representa Deus de modo totalmente diverso do que Ele é. Por con
seguí nte, sempre que nos queremos voltar diretamente para Deus, interpoe-
se inevitavelmente um ídolo, que nos faz correr o risco da idolatría. Daf con-

199
8 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

cluir-se que a procura de urna d¡mensá*o religiosa ou vertical da nossa vida


deve ser tida como utopia idolátrica. Por isto também o Cristianismo religio
so vem a ser Idolatría; só Ihe resta a dimensao horizontal de entrega ao bem
dos homens, tendo por prototipo o próprio Jesús: em conseqüéncia, os cris-
tSos devem renunciar a favorecer atitudes específicamente religiosas para
construir tao somente a "cidade secular" ou para resolver os problemas que
angustiam a vida dos homens - o que se obtém, antes do mais, mediante um
serio compromisso político.

2.2.3. Urna avaliacao

a) Idolatría

O neopositivismo dos teólogos da morte de Deus incide numa falacia:


confunde conhecimento imperfeito e conhecimento falso. Sao Paulo in-
sistiu na possibilidade de conhecermos a Oeus a partir das criaturas (Rm 1,
20); o Apostólo mesmo reconhece que tal conhecimento é imperfeito OCor
13, 12), mas nao o considera falso. Quando falamos de Deus, abordamos o
Ser Perfeito, mas esse Ser nao é radicalmente diferente de nos; entre ele e a
criatura existe o que em Filosofía se chama "analogía". Isto quer dizer: as
perfeicóes que vemos ñas criaturas, podem ser atribuidas a Deus, pois elas
realmente se realízam em Deus, isentas das imperfeícoes que em nos elas
tém. Por isto Deus será sempre maior do que qualquer nocao que dele te-
hamos; mesmo assim as nopoes de perfeício que formulamos, afirmam algo
de verdadelro e real; por isto elas nao sSo ídolos. Assim, por exemplo, quan
do afirmamos que Deus é amor, nao estamos dizendo algo de falso ou equi
vocado, e, sim, algo de real, pois o amor é urna perfeicao que existe em
Deus, mas sem as límítacoes que ele tem em nos. É isto que permite afirmar:
entre Deus e nos nao há total diversidade, mas analogía.

b) Dimensao vertical

O Cristianismo certamente dá grande importancia ao amor do próxi


mo e á erradícacao dos males temporais, mas nem por ¡sto o Evangelho há
de ser mutilado. O primeiro mandamento, disse Jesús, é "amar o Senhor
Deus de todo o coracSo e de toda a alma... O segundo é amar ao próximo
como a nos mesmos" (Me 12, 29-31; cf; cf. Mt 22, 37-39; Le 10,26-28).

O amor cristao é expresso no Novo Testamento mediante urna palavra


rara em grego clássico: agápe {cf. ICor 13,1-13) - o que se explica pelo fato
de ser um amor novo ou inédito. Com efeito; 6 o amor gratuito ou benévolo
que tenta imitar o amor de Deus, o qual primeiro e gratuitamente amou os
homens (cf. Uo 4,19). É amor que vé no próximo a imagem de Deus, cujo

200
SECULARIDADE, SECULARIZACÁO, SECULARISMO 9

resgate custou o sangue de Cristo; por istq o cristao considera o homem nao
apenas como o próximo, mas como o filtio de Deus; Sao Joao fala nao raro
de amor aos irmáos (cf. Uo 2,10; 3,10-14; 4,20) e amor aos filhos de Deus
(cf. Uo 5,2). - Em conseqüéncia, percebe-se que nao se pode eliminar do
Cristianismo a dimensáo vertical; é esta precisamente que dá sentido e forca
á dimensao horizontal; sorrtente num quadro de adorapfo e amor ao .Pai
existe o auténtico seguimento de Jesús, Sumo Sacerdote entre Deus e os ho-
mens.

A teología da morte de Deus, como tal, perdeu sua voga na década de


1970, pois se verificou que era falsa a premissa de que o homem moderno
se desinteressou dos valores religiosos ou do próprio Deus; a efervescencia
religiosa dos dois últimos decenios, tanto na Europa como na América, da
qual temos urna viva experiencia no Brasil, desmentiu a idéia de que Deus é
um nome morto ou sem ressonSncia a ser silenciado pelos cristaos. Nao obs
tante, o secularismo implicado por tal corrente deixou no Catolicismo atual
marcas, que passamos a analisar.

3. A penetracao do secularismo

Eis sete chagas de que se ressente o Catolicismo atual, afetado pelo


contagio da teología da morte de Deus:

1) O declínio do sentó de adoracáb e oracao em muitos ambientes.


"Reza-se pouco ou quase nada", observam muitos católicos. A orapao é ge-
raímente substituida pelo servico ao próximo, sob a alegacao de que "traba-
Ihar é rezar" ou "nao se deve subtrair ao próximo o tempo que se daria a
Deus na oracao". Entre as causas explicativas do fenómeno, está o pensa-
mentó de Bonhoeffer, segundo o qual Deus é o "tapa-buraco" para os pro
blemas que o homem nao consegue resolver; a maturidade do cidadao mo
derno devena levá-lo a enfrentar os desafios sem recorrer ao Senhor, "como
se Deus nao existisse"; a atitude fundamental do cristao, seguidor de Jesús,
"o homem para os homens", seria a entrega ao próximo. Ademáis, segundo
o neopositivismo, Deus está fora do nosso horizonte; o homem nao o alean-
ca pela oracao.

— Na verdade, Deus está longe de ser o "tapa-buraco" ou a muleta do


homem fraco e ignorante. Deus é o Sumo Ser, do qual a inteligencia humana
reconhece a dependencia; voltar-se para Ele na orapao é fazer o que o homem
pode realizar de mais nobre. A oraplo nio é só petipao, mas é também ado-
rapao, agradecí mentó, louvor e expiapao. Pelas suas súplicas o homem apre-
senta a Deus os legítimos anseios, cíente de que a orapao nada tem de mági
co, mas é diálogo filial com o Pai. — A orapao nao excluí o esforpo do ho-

201
10 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

mem por prover as suas nncessidades; ao contrario, ela rechaca toda acornó-
dacSo indolente e covarde. Eis o que ensina o Concilio do Vaticano II:

"Aínda que re/eite absolutamente o ateísmo, a Igreja contado declara


com sinceridade que todos os homens, crentes e nao crentes, devem prestar
seu auxilio á construcSo adequada deste mundo,, no qual vivem comunita
riamente. Isto cortamente nSo é possfvel sem sincero e prudente diálogo"
(Constituido Gaudium et Spes/i? 21j.

2} Abusos litúrgicos, que fazem das celebracóes. sagradas a ocasilo de


exprimir e promover teses ou reivíndicacóes de ordem secular ou profana.
Fala-se de "celebrar a vida do povo, suas lutas e campanhas", em vez de "ce
lebrar o sacrificio de Cristo perpetuado sob forma sacramental". Isto acarre-
ta a perda da reverencia que o santuario e sua liturgia exigem dos participan
tes; dessacralizam-se as funcoes rituais em favor de interesses profanos ou
meramente horizontais.

3} A preponderancia do político ñas pregacoes e ñas atividades pasto-


rais. Era Harvey Cox quem julgava que o sociopolftico é primordial para os
cristáos. Muitos fiéis se surpreendem por já nfo ouvirem a explicacao do
Evangelho ñas prédicas; aborrecem-se e, entediados, bandeiam-se para comu
nidades cristas onde a linguagem e os interesses sao mais nítidamente inspira
dos pela fé (embora, muitas vezes, de fraco e discutfvel conteúdo). A dimen-
sá"o transcendental se apaga de tal modo que os cristáfos "seculares" ou dessa-
cralizados nSo recusam, por vezes, colaborar com facedes de ideología materia
lista e anticristS, para as quais a religiao é "opio do povo". A ortodoxia ou
os principios doutrinários da fé nao Ihes importam; o que pesa, é a ortopra-
xis ou a atividade "correta" (correta segundo os difames de ideologías nfo
cristas). Observa o Concilio do Vaticano 11:

"Quando os defensores de tais ideologías chegam ao governo de urna


nacSo, perseguem com veeméncia a religiio, servindo-se, na difusao do ateís
mo, sobretodo na educacSo da juventude, dos meios de pressao ao alcance
do poder público" (ConstituicSo Gaudium et Spes n? 20).

4) As vocacoei sacerdotal e religiosas decrescem e rarefazem-se nos


setores impregnados de preocupacóes sócio-polftico-economicas, nosquaisse
apcesenta o modelo do Cristo e, por conseguinte, do padre como sendo apenas
o do "homem para os outros", em vez de ser o do "dispensador dos misterios
de Oeus" (1Cor 4,1). Na verdade, para realizar o trabalho secular ou profano
que a teología da morte de Deus apregoa, nato é necessário tornar-so padre.
Religioso ou Religiosa; basta ser um líder sociopolftico ou um animador de
tarefas tamporais. O clérigo que assuma as propostas do secularismo, faz pa
pel ambiguo; traz um rótulo tradicíonalmente sagrado, que nao corresponde

202
SECULARIDADE, SECULARIZACÁO, SECULARISMO 11

as suas atividades profissionais.- o que o leva freqüentemente a desertar das


fileiras sacerdotais.

5} O arrefecimento do ideal missionário. Se a esséncia do Cristianismo


está na dedicacao aos problemas do próximo, o pagao que trabalha pelos
seus semelhantes, é um "cristao anónimo". Nao se trata, pois, de convertirlo
propriamente. Mais: o pressuposto de que nao atingimos diretamente a
Deus, leva a indiferenca doutrinária; as crencas pagas entao sao consideradas
como patrimonio cultural, que deve ser respeitado, sem que o cristao se ar
rogue o direito de Ihes propor o substitutivo do Evangeiho ou da mensagem
revelada pelo único Deus. A ortodoxia tem pouco valor, pois mais interessa
a ortopraxis.

É por isto que muitos ¡mpressos de ¡nstituicoes missionárias (re


vistas, jomáis, cadernos...) mais se interessam pelo desenvolvimento hu
mano e cultural dos povos pagaos do que pela catequese e o Batismo dos
mesmos. Há até agentes de pastoral que querem fomentar os cultos pagaos
em sincretismo relativista.

Ora, se as missoes entre os "pagaos" (nao civilizados e civilizados) se


reduzem á promocSo humana e cultural, perdem a sua nota especffica enun
ciada pelo Senhor em Mt 28,18-20'; nao apresentam razao de ser ou atrati-
vo mais fortes do que qualquer outro movimento humanitario e beneficen-
te; as vocac8es para as missoes católicas nao se distinguiriam dos chamamen-
tos para trabalhar em Organismos de colaboracáo internacional.

Além disto, levem-se em conta dois pontos: de um lado, existe, sim,


a necessidade de respeitar a heranca cultural e religiosa dos povos nao cris-
taos; isto implica que nSo se escarnecam as crencas alheias nem se procurem
conquistar adeptos para o Cristianismo mediante chantagem ou meios espu
rios (promessas de emprego, salario, viagens ao estrangeiro, assistdncia mé
dica e escolar...); tais procedimentos se chamam protelitismo; s3q explora-
cao da indigencia do próximo e derrogam a dignidade humana. — De outro
lado, a pregacao do Evangeiho fica sendo dever primordial de todo fiel cató
lico, consoante a ordem deixada pelo Senhor Jesús em Mt 28,18-20; Me 16,
15-20. O anuncio de que Deus é Pai e convida o homem ao consorcio da sua
vida, é de primeira importancia; é o que dá sentido á existencia de todo ho-

1 "Toda a autorídade sobre o céu e a térra me foi entregue. Ide, portante,


e fazei que todas as nafdes se tomem meus discípulos, batizando-as em no-
me do Pai, do Filho e do Espirito Santo e ensinando-as a observar tudo
quanto vos ordenei. E eis que estou convosco todos os días até a consuma-
fSo dos sáculos".

203
12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

mem, rico ou pobre, o qual nSo pode deixar de indagar por que e para que
vive.

Mais: o ser humano, dotado de inteligáncia e vontade, tem o direito de


que se Ihe aprésente a Verdade, e nao se I he apregoe apenas o amor, a bon-
dade, a dedicacao; sim, a inteligencia foi feita para a Verdade, principalmen
te no campo religioso ou no tocante aos pontos cardeais que orientam a ca-
minhada humana. É por isto que nao basta promover a boa f¿, a sinceridade,
a lealdade em todos os homens, mas é necessário ajudá-los a encontrar a ver-
dadeira fé ou a mensagem crista tal como Cristo a entregou á Igreja confia
da a Pedro {cf. Mt 16,16-19; Le 22,31s; Jo 21,15-17; Jo 14,25s; 16,13-15).
Se o fiel católico eré convictamente que Ihe foi dado o conhecimento da ver
dade religiosa, ele há de sentir o desejo de a transmitir aos irmaos, pois "as
coisas boas" sao espontáneamente compartí Ihadas. Somente se a fé titubeia,
pode ela ser relativizada ou colocada no plano de qualquer outra cosmovi-
sSo. — Como dito, a evangelizado nao significa proselitismo ou desrespeito
ao próximo, mas é antes um servico de caridade, o mais construtivo, decisivo
e profundo de todos os servicos que se possam prestar aos semelhantes.

6) Ecumeniímo indiferentista. O ecumenismo é o movimento tenden


te a extinguir as rupturas que através dos sáculos separaram os discípulos de
Cristo entre si. É o diálogo que tenta restaurar a untdade violada, fomentan
do o amor fraterno á luz da única e indivísivel verdade revelada por Jesús
Cristo. Isto significa que o ecumenismo visa a superar preconceitos e pai-
xoes, mantendo, porém, íntegra a mensagem evangélica.

Ora a teologia da morte de Deus subestima a verdade doutrinária ou a


ortodoxia. Se Deus é totalmente diverso e fica além dos horizontes do nosso
conhecimento, as fórmulas de fé professadas pelos diferentes grupos cristaos
sao relativas e secundarias; todas nos deixam longe de Deus. Em conseqüén-
cia, o ecumenismo consistiría apenas na procura do amor fraterno, prescin-
dindo do plano doutrinário.

Tal concepcSo já nao é a do Catolicismo ou, melhor, nao é a do Cris


tianismo como tal. Este professa a objetividade das verdades da fé:nao sao
enunciados filosóficos provenientes da razSo ou do bom senso dos homens
(como os principios de um Partido político); s3o, antes, proposicces que
tém seu fundamento em Deus Pai, que nos fala em Jesús Cristo e na Igreja
por Ele fundada. Em conseqüéncia, n3o é lícito aos cristSos prescindir délas,
relativizá-las ou adaptá-tas ás conveniencias de aliancas e pactos. Dizia ó
Apostólo: "Praticai a verdade na caridade" (Ef 4,15), associando assim o
amor fraterno e a verdade. E também o que propoe o Concilio do Vaticano
11 no Decreto Unitatii Redintegratio n? 11:

204
SECULARIDADE. SECULAR IZACAO, SECULARISMO 13

"É absolutamente necessárío que a doutrina inteira seja lucidamente


exposta. Nada 6 tao alheio ao ecumenismo quanto aquele falso irenismo, pe
lo qual a pureza da doutrina católica sofre detrimento e seu sentido genuino
e certo é obscurecido".

7) O apagamento do tenso do pecado. Se o homem nao se pode dirigir


diretamente a Deus mediante os seus atos bons, segue-se que também nao o
pode mediante os atos maus. Disto se depreende que nao há pecado que seja
ofensa a Deus. Desta mane ira o conceito de pecado é esvaziado; poderá ser
tido como violacao do amor fraterno, sem conseqüéncias no foro das rela-
coes com Deus. Isto implica urna radical revisita da Moral; com efeito, o bem
e o mal se distinguiriam apenas no relacionamento com o próximo. Tal men-
talidade vai-se difundindo, fazendo do homem (e nao de Deus) o grande re-
ferencial do comportamento cristao.

Ora estas concepcoes encontram na própria Biblia a sua refutacao.


Basta lembrar como os Profetas do Antigo Testamento censuram pecados
que nao causam daño algum ao próximo, como sao os pecados de idolatría;
cf. Is 1,2-4; 48,5-11; 57,3-13; Ez 16,23-43; Os 1,2-3,5... No Novo Testamen
to, o Apostólo Sao Paulo recrimina outrossim os desmandos dos pagaos que,
em vez de reconhecer o único Deus mediante o testemunho das criaturas,
adoraram animáis e ídolos;cf. Rm 1,18-27.

Estes poucos dados mostram que, se a teología da morte de Deus ou o


secularismo nem sempre é teóricamente professado em nossos días, ela está
presente através de suas conseqüéncias práticas; suscita urna atmosfera den
tro da qual se desenvolve a atual crise da Igreja. A tomada de consciéncia
deste fato vem a ser importante, pois é um diagnóstico que pode servir de
passo decisivo para se promover a cura da enfermidade.

4. Conclusao

Como dito, a teología da morte de Deus surgí u, em grande parte, da pre-


missa de que os valores religiosos já nao interessavam ao homem de hoje.
Dar a tentativa de se fazer urna reinterpretacao nao religiosa do Cristia
nismo (cf. D. Bonhoeffer). Acontece, porém, que o homem é um animal
essencialmente religioso, como ele é sapiens, faber, oeconomicui... Por isto
a premissa em foco nao era mais do que um equívoco. Talvez se possa di-
zer que os arautos da teología da morte de Deus confundiam a necessidade
de procurar novas expressóes de culto religioso (bem compreensfveis num
mundo de grandes transformacoes culturáis) com o desinteresse pela pró
pria R eligí ao. A busca de novas expressóes religiosas, na medida em que era
legítima, foi assumida pelo Concilio do Vaticano II na Liturgia, na Cate-

205
14 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

quese, na Pastoral em geral... Quanto ao desinteresse pela Religiao, certos


sociólogos, entre os quais A.M. Greeley, mostraram que na verdade'ele nao
existe. Cf. A.M. GREELEY, El hombre no secular. Persistencia de la Reli
gión. Madrid 1974.

Fato curioso: quando se tornaram conscientes de que o ponto de par


tida sociológico e psicológico era falso, alguns defensores do secularismo em-
preenderam urna guiñada de vulto: Harvey Cox, por exemplo, escreveu o li-
vro "A Festa de Loucos. Para urna teología feliz", exaltando a importancia
da festa como expressao do senso religioso. É de lamentar que nem todos os
seguidores do jovem Harvey Cox o tenham acompanhado em sua evolucao
teológica; até hoje, em ambiente católicos, continuam a disseminar slogans
de época já ultrapassada.

Entrementes o espapo deixado vazio pela falta de pregacao propria-


mente dita foi infelizmente preenchido por urna serie de substitutivos ¡nade-
quados. Novas e estranhas expressóes do senso religioso foram-se propagan
do entre os próprios cristSos: a magia, o culto do demonio, as denominac5es
protestantes modernas, as seitas orientáis, o sincretismo e o ecleticismo, nao
raro com índole exploratoria da boa fé e do bolso do povo... Sao mais do
que modas extravagantes; revelam sintomáticamente a fome do sagrado per
sistente no homem contemporáneo. Era natural que se desse tal reacio,
pois a fome n3o saciada auténticamente procura suprímentos, embora falsos,
que Irte sirvam de resposta ou aparente resposta.

Estes acontecimentos todos sugerem.seria reflexá*o aos clérigos católi


cos. Julgando corresponder melhor aos anseios do homem de hoje, deixaram
de atender ás suas aspiracdes mais profundas e germinas, ocasionando o des
vio de numerosos fiéis para "cisternas furadas, incapazes de conter agua"
(Jr 2,13); tais cristaos sao por vezes vftimas do ridículo em seitas e grupos
movidos por um entusiasmo irracional ou em corren tes imobilistas de pensa-
mentó pré-conciliar cegamente conservadoras. - Em última análise, sao estes
os frutos do apagamanto do específicamente religioso em ambientes outrora
sujeitos ao secularismo ou á "teología da morte de Deus". A verificacáo dos
fatos seja penhor de recomposicio do que foi vulnerado.

"Dá-me alguém que. ame, e ele sentirá o que digo. Dá-mealguóm que
desoje, que caminhe neste deserto, qua ten ha sede e suspire em demanda da
patria celeste. Dá-me esse homem, e ele saberá o que quero dizer" (S. Agos-
tinho, In lohannem 26, 4).

206
O dia da festa crista:

O Domingo

Em tíntese: Muitos fiéis católicos tém perdido o sentido do domingo


com a sua Eucaristia e corto lazer restaurador do corpo e do espirito. Em
vista disto, deve-se recordar que a observancia do domingo é pedra de toque
da ídentidade crista desde os tempos dos Apostólos (cf. 1Cor 16, 1-3; At
20, 7s; Ap 1,10). A Igre/a, herdeira desta prática, formulou os preceitos da
Missa dominica/ e do repouso respectivo. Para compreender e viver plena
mente estas normas, o cristio deve reavivar em si a consciéncia de que ele 6
membro do Corpo de Cristo, que se reúne e consolida mediante a Eucaristia.
O preceito dominical tem sentido pedagógico; é um apoio para que o cristio
freqüente e aprofunde o significado do domingo e da Eucaristia, passando a
fazer espontáneamente o que a principio tenha feito apenas por dever.

No mundo secularizado em que vivemos, a observancia do domingo é


dificultada, pois a vida civil ocupa o domingo com varias solicitacoes de or-
dem profana. Para nSo ser arrastado pela descristianizacao, o fiel católico de-
ve ter sua consciéncia bem formada e fazer lúcida escala de valores. A Igre/a
facilita a participacao da Missa dominical, ampliando o horario das Missas
desde o sábado ¿ tarde até o domingo á noite. A Missa transmitida pelo ra
dio e a televisao é importante subsidio para a piedade católica, mas nao
atende ao preceito dominical, visto que este requer a presenca física dos
membros da assembféia litúrgica.

0 domingo também é o dia dos valores humanos (que sao cristaos): fa


milia, parentes, amigos, prática da caridade..., além da oracao pessoal e co
munitaria.

* * *

Sao cada vez mais numerosos os católicos que, sem querer abandonar
a sua religiao, nSo freqüentam a celebracSo eucarfstica no domingo, nem se
preocupam com a especial observancia deste dia. Muitos sabem que existe o
preceito da Missa dominical, mas ¡gnoram o porqué e o significado do mes-
mo. Por isto sentem-se pouco motivados para cumprir sua obrigapáo na igre-

207
16 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

ja. Alias, de modo ge ral verifica-se que está muito empalidecida a nocao do
domingo na espiritualidade crista, o que torna anémica a vivencia de grande
número de fiéis.

No intuito de reanimar a fé e a prática desses cristaos, as páginas se-


guintes desenvolverlo o sentido do domingo e dos deveres religiosos que se
Ihe prendem.

1. O valor teológico do domingo

Relatam os documentos antigos que um grupo de fiéis cristaos da pro


vincia romana da AbitCnia, no Norte da África, foi detido em 304, tendo
consigo o sacerdote Saturnino. Eram acusados de praticar a fé, numa época
em que o Imperador Diocleciano proibia severamente o culto cristao. Tendo
¡ncorrido em desobediencia formal, foram submetidos a tortura e, por fim,
interrogados... Responderam entao aos seus algozes: "Muito conscientemen
te celebramos a Ceia do Senhor no domingo, porque nSo é Ifcito omitir a
Ceia do Senhor e nao podemos viver sem celebrar o dia do Senhor" (Atas
dos Mártires. Ed. BAC 75, pp. 981 s).

Tais cristSos ficaram conhecidos como "mártires do domingo". Mos-


traram-se enérgicamente fiéis a urna prática que devem ter aprendido junta
mente com as verdades da fé, tao fundamental era, e é, para um fiel cristao.
- Com efeito; o domingo comecou a ser caracterizado solenemente pelos
cristá*os desde' a primeira hora do Cristianismo e as suas varias facetas foram
sendo aos poucos desdobradas, como passamos a ver.

1.1. Origem apostólica

É de notar que Jesús ressuscitou na man ha do primeiro dia da semana


judaica, após o sábado da Lei de Moisés e nesse mesmo dia a noitinha apare-
ceu aos Apostólos reunidos para Ihes manifestar a sua vitória sobre a morte e
confiar-lhes o dom do Espirito (cf. Me 16,14-18; Le 24,36-49; Jo 20,19-
23). Oito dias depois, voltou a aparecer-lhes manifestando-se particularmen
te a Tomé {cf. Jo 20, 26-29).

O próprio evento de Pentecostés ocorreu no 50? dia, como diz o nome,


ou seja, após sete semanas (49 dias) - o que quer dizer: no primeiro dia da
semana judaica (49 + 1 = 50).

Em 56 Sao Paulo atesta a observancia do domingo como dia de reu-


n¡3o e culto cristao: "Em cada primeiro dia da semana, cada um de vos po-
nha de lado o que conseguir poupar" para ajudar a comunidade de Jerusa-

208
O DOMINGO 17

lém (cf. 1Cor 16, 1-3). Os fiéis deviam conhecer o alcance desta expresslo:
"primeiro dia da semana".

Em Trdade (Asia Menor) semelhante prática é atestada pelo livro dos


Atos: "No primeiro dia da semana, estando nos reunidos para a frapfo do
pao, Paulo entretinha-se com eles..." (At 20,7s). Vé-se aqui que a Eucaristia
(fracáo do pao) era solenemente celebrada no domingo, dia em que o Se-
nhor ressuscitara.

O nome novo desse primeiro dia da semana judaica é-nos transmitido


por Sao Joao em Ap 1,10: "No dia do Senhor fui movido pelo Espirito".
Dia do Senhor por excelencia, porque dia da consumacao da vitória de
Cristo... Em grego diz-se kyriaké hemera, ou seja, día senhorial; em latim,
dominica dies; donde dominga, domingo, em portugués.

Vé-se, pois, que a Igreja comecou a celebrar o domingo por institui-


cao dos Apostólos, que assim professavam a identidade do Cristianismo, fren
te ao seu preámbulo, que fot o Antigo Testamento, caracterizado pelo sába
do. Por conseguinte, antes de ser objeto de preceito, o domingo foi pedra
de toque da identidade crista.

Ao preterir o sábado em favor do domingo, os Apostólos nao viola-


vam a Lei de Moisés, pois esta manda santificar todo sétimo dia com um re-
pouso (shabbath); nao indica, porém, qual seja o primeiro dia da contagem.
Os Apostólos continuaram a manter a observancia do sétimo dia da semana
ou do thabbath (repouso); apenas transferiram o primeiro dia da contagem
para a segunda-fe ira. Nao há um sétimo dia no calendario cristao que nao se
ja dedicado ao shabbath (repouso); o sétimo dia cristáo é precisamente o da
ressurreicio do Senhor, e nao aquele que a precedeu ou aquele em que Jesús
permaneceu sepultado.

Consideremos agora as varias facetas do dia do Senhor.

1.2 Dia da Igreja e da Eucaristia

1.21. Dia da Igreja

Vé-se que no tempo dos Apostólos o domingo era o dia da assembléia


crista; os fiéis se reuniam com os Apostólos ou com os seus pastores para a
celebracao da Eucaristia. Era, pois, o dia em que o Corpo Místico de Cristo
afirmava a sua índole comunitaria. Ser cristáo nao é apenas ter fé e amor,
mas á viver emcomunhSo com Cristo existente na Eucaristia (muito singular-

209
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

mente) e nos irmaos... Mas nao é qualquer agrupamento de cristaos que sa


tisfaz a essa exigencia comunitaria; é necessário que o cristao se integre na-
quela assembléia que Cristo constituiu e da qual Ele quer ser Cabepa,... as-
sembléia que Cristo chamou "minha Igreja" quando Ele a fundou (cf. Mt
16, 18). Por conseguinte, ná"o me é lícito criar minha assembléia, meu grupo
próprio (ao meu gosto) ou minha igrejinha, esquecendo a comunidade que o
Senhor Jesús mesmo instituiu.

A vida em comunhao com a Igreja é um sinal de autenticidade do Cris


tianismo. Nao se deve separar Cristo Cabeca de Cristo Corpo (Igreja), nem
separar do tronco os ramos da videira; estes so potíem dar fruto a partir da
seiva do tronco que passa por todos os seus intermediarios visi'veis.

A unidade dos cristaos na Igreja é um sacramento ou canal de santifi-


cacao, que prolonga o sacramento da humanidade de Jesús e que, por sua
vez, se prolonga no sacramento da Eucaristía.

A consciéncia desta verdade se exprime num texto do século III, cha


mado Didascalia Apostolorum (Ensinamento dos Apostólos); aludindo á
assembléia dominical, exorta:

"Que ninguém seja causa de detrimento para a Igreja pelo fato de nao
comparecer; nem seja o Corpo de Cristo destituido de um de seus mem-
bros... NSo vos engañéis a vos mesmos nem privéis Nosso Senhor de seus
membros, nem esfaceleis ou disperséis o seu Corpo. Nao anteponhais vossos
assuntos á Palavra de Deus; mas deixai tudo no día do Senhor e acudí com
diligencia ás vossas assembléias, pois aquí está o vosso título de louvor. Se
nao o fízerdes, que desculpa terao diante de Deus os que nao se reúnem no
diá do Senhor para escutar a Palavra da vida e nutrirse do alimento divino,
que permanece eternamente?" (n? 13).

Estas concepcoes explicam a énfase com que o Concilio do Vaticano


11 recomenda a participacao dos fiéis na vida da sua paróquía, que é a comu
nidade eclesial em miniatura: "É preciso esforcar-se para que floresca o sen
tido comunitario paroquial, principalmente na celebracao comum da Missa
dominical" (Sacrosanctum Concilium n? 42).

O Corpo de Cristo se empobrece pela ausencia dos que nSo compare-


cem á Missa dominical, como também por causa daqueles que, fugindo de
urna assembléia maior, procuram formar grupinhos desligados da comuni
dade paroquial. A propósito vém as palavras de Hb 10, 24s:

"Velemos uns pelos outros para nos estimulamos á caridade e ás boas


obras. NSo deixemos as nossas assembléias, como alguns costumam fazer.

210
O DOMINGO 19

Procuremos, antes, animar-nos sempre mais, á medida que vedes o Dia se


aproximar". Cf. Tg 2,1-4; 1Cor 11.17-25.

1.2.2 Diada Eucaristía

Os textos do Novo Testamento atrás citados evidenciam a ligacaó exis


tente entre domingo e Eucaristía. Esta é a perpetuapao da Páscoa do Senhor;
por isto o dia do Senhor nao pode deixar de ser marcado pela celebracao eu-
carfstica.

Desde o ¡nfcío, a Igreja assocíou doís elementos á Eucaristía: a leitura


previa da Palavra do Senhor (At 20,7s.11) e a subseqüente distríbuicao de
bens aos irmaos necessitados (cf. 1Cor 16,2).

O próprio Senhor parece ter incutido o nexo entre o Pao da Palavra e


o pao sacramental. Assím, quando se encontrou com os discípulos de
Emaus, fez-lhes primeramente um comentario das Escrituras, comecando
por Moisés e continuando por todos os Profetas (cf. Le 24,27); depois sen-
tou-se á mesa com eles para partir o pao (Le 24,30-32). Algo de semelhante
pode-se ter dado em outra ocasiao, quando Jesús apareceu aos Apostólos,
explicando-lhes Moisés, os Salmos e os Profetas e corriendo com eles (cf. Le
24,36. 43-45). Fundamentando-se na praxe mais antiga, a Igreja até hoje
mantém a Liturgia da Palavra como antecedente necessário da Liturgia euca
ristía.

Quanto ao exerefeio da caridade fraterna (agápe), percebe-se também


que estava em íntimo nexo com a Eucaristía já nos primordios da Igreja:

"Os discípulos mostravam-se assfduos aos ensinamentos dos apostólos,


é comunhao fraterna, á fracao do pao e ás oracoes... Todos os que tinham
abracado a fé, reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suasproprie-
dados e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada
um" (At 2.42.44s). Ver A14, 3237.

Este nexo se explica bem pelo fato de que a participacao na oblacao


eucarística de Cristo obriga o cristao a fazer de sua vida um dom ou urna
oferta unida á do Senhor em prol dos seus irmaos; cf. Rm 12,1; IPd 2,5.

No século II Sao Justino ( T 165) atestava a conexao dos tres elemen


tos: liturgia da Palavra, liturgia do sacramento e ágape ou caridade fraterna:

"No dia que se chama do Sol, celebrase urna reuniao dos que moram
ñas cidades ou nos campos e a/i se léem, quanto o tempo permite, as Memo-

211
20 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

rías dos Apostólos ou os escritos dos Profetas. Assim que o leitor termina, o
presidente faz urna exortacao g convite para imitamos tais belos exemplos.
Erguemo-nos todos, entao, e elevamos em conjunto nossas preces, após as
quais se oferecem pao, vinho e agua, como já dissemos. O presidente tam-
bóm, na medida de sua capacidade, eleva a Deus suas preces e acoes de gra
pas, respondendo todo o povo 'Amém'. Segue-se a distribuicao e participa-
(So, que se faz a cada um, dos alimentos consagrados pela acao de gracas, e
seu envió aos ausentes, por meio dos diáconos. Os que tém, e querem, dio o
que Ihes parece, conforme a sua livre determinacao, sendo a coleta entregue
ao presidente, que com ela auxilia os órfaos e viúvas, os enfermos e outros
necessitados, os encarcerados, os forasteiros de passagem, constituindo-se,
numa palavra, o provedor de quantos se acham em necessidade" ("Apología
167).

Este testemunho de Sao Justino mostra que a Eucaristía nao se esgota


no ámbito da assembléia litúrgica, mas a ultrapassa sob forma de amor aos
irmSos. Primeiramente, os diáconos levavam o pao eucarfstico aos ausentes
(enfermos ou impedidos de participar). Depois os fiéis colocavam ñas maos
do celebrante as suas dádivas para que este as fizesse chegar aos mais caren
tes.

Isto quer dizer que o cristao que participou da Eucaristía, se bem a


compreendeu, deve sentir-se devedor em relacao aos irmáos. Poderá desem-
penhar-se dessa dfvida ou ajudando materialmente os mais pobres (com di-
nheiro, roupas, alimentos... como faziam os primeiros cristáos; cf 2Cor 8,
14; Rm 15,25-27) ou levando o amor de Cristo aqueles que nao puderam fre-
qüentar a igreja ou nao o quiseram; nenhum fiel católico pode permanecer
insensfvel diante da indiferencia religiosa de tantos que ou nunca foram au
ténticamente evangelizados ou, se o foram, se afastaram por algum motivo.

1.3. Oitavo dia

Muitas vezes os antígos escritores da Igreja referiram-se ao domingo


como sendo o oitavo día. Supunham a contagem hebraica dos dias da sema
na, na qual o sábado é o sétimo dia. O domingo seria o primeíro dia da sema
na seguinte; mas foi considerado o dia oitavo. Com isto, os escritores cris-
taos recorriam ao simbolismo dos números: 7 significaria o mundo atual e o
seu curso, visto que, conforme Gn 2,1-3, o mundo foi feito em seis dias e o
Criador repousou no sábado; 7 + 1, no caso, significaria sair fora do curso
deste mundo e entrar no dia único, ou sem ocaso, da eternidade. Assim o
domingo passava por antegozo da vida definitiva, dia em que o cristao pro-
curava esquecer, tanto quanto possfvel, o rebolico das coisas temporais para
entregar-se mais plenamente ao encontró com Deus e com os valores eternos
mediante a S. Eucaristía. É o que Sao BasClio ( f 479) assim exprime:

212
O DOMINGO 21

"O dia do Senhor é grande e solene. A Escritura conhece este dia sem
noite. sem sucessSo e sem fim. O salmista o chamou também dia oitavo,1
porque está fora do tempo septenario... Chamem-no dia ou sáculo..., o senti
do é o mesmo; destinase a transportar o nosso espirito para a vida futura"
(\n Hexaemeron 2, 21).

Em suma, a designacao de domingo como oitavo dia incute a expecta


tiva dos bens celestes, que sao Paulo recomenda aos Colossenses: "Procurai
as coisas do alto, onde Cristo está sentado a direita de Deus. Pensai ñas coi
sas do alto" (3,1s). 0 mesmo Apostólo nos diz que o mundo material todo
espera ansiosamente ver-se libertado da servidao a que o pecado o subme-
teu; a desordem existente entre as criaturas que o homem utiliza para o mal,
sugere ao Apostólo a idéia de que elas gemem na expectativa do fim dos
tempos, quando o homem estará totalmente isento de pecado (cf. Rm 8,
18-22). Consciente disto, o cristao também anseia pela "chegada da gloria
do grande Deus e Salvador nosso Senhor Jesús Cristo (Tt 2,13). Ora o do
mingo é o dia em que tais verdades sao mais intensamente vividas pelos cris-
taos; assim abastecidos, eles assumem durante a semana as suas tarefas tem-
porais destinadas a colaborar para a instauracao da harmonía final. A expec
tativa do fim nao aliena o cristao, mas torna-o ainda mais cioso de bem de-
sempenhar a sua missao, pois este fiel desempenho, de certo modo, anteci
pa a plenitude do Reino de Deus.

Entre os 52 domingos do ano, há um que sobressai como o domingo


por excelencia: é aquele em que explícitamente a Igreja celebra a Páscoa do
Senhor. Os demais sao miniaturas daquele; sao a Páscoa semanal. — Sabe-se
que a data da Páscoa varia de ano para ano. A razao disto é que ela é calcula
da na base do ciclo da Lúa, que nao é o dos meses solares; conforme Ex 12,
1-3. 6-8.18, ela deve ser celebrada na primeira Lúa cheia após o equinócio
da primavera do hemisferio setentrional. Os cristaos esperam o domingo sub-
seqüente a essa fase da Lúa para celebrar a Páscoa.

Vejamos agora

2. O preceito dominical

2.1. Dados históricos

Vimos que o domingo, desde os primordios da Igreja, foi santificado


pela celebracSo da Eucaristia e que os pastores admoestavam os fiéis a que

1 Alguns Salmos, como o SI 6, tém no seu título a indicacao "Sobre a oita-


va", que era uma rubrica de índole musical. Os escritores antigos entende-
ram essa rubrica como se fosse uma alusao ao oitavo dia da semana ou ao
domingo.

213
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

nao faltassem a esta. Todavía, enquanto o Imperio era pagao e mesmo perse
guidor, ou seja, até 313, nao era sempre fácil aos cristaos responder a este
apelo, visto que o domingo era dia de trabalho. Sabe-se que no sáculo II a
Eucaristia era celebrada ñas primeiras horas do domingo, visto que Cristo
ressuscitou de man ha cedo.

O primeiro vestigio de preceito de Missa dominical é o canon 21 do


Concilio de Elvira (Espanha), datado de 305 aproximadamente:

"Se alguóm, encontrándose na cidade, deixar de comparecer á igreja


durante tres domingos, será privado, por aigum tempo, da Comunhio para
que veja que precisa de se emendar".

Outros testemunhos de Concilios e de Bispos exortavam os fiéis a nao


antepor trabalho ou negocio aigum a celebracao eucarística do domingo,
pois esta era essencial.

Em 321 o Imperador Constantino decretou festivo em todo o Imperio


"o dia do Sol" (domingo). Era entao de crer que a freqüentacao da Eucaris
tia seria facilitada aos cristá"os.

Eis, porém, que novas dificuldades comecaram a aparecer, derivadas


do próprio ocio dominical; a populacao, principalmente nos centros urba
nos, entregava-se a divertimentos varios, nem sempre edificantes. Os pastores
da Igreja redobraram entao suas exortacoes ao culto dominical, a oracSo e a
prática da caridade; e, a fim de reforcar estas normas, deram-lhes como
base bíblica o terceiro mandamento da Lei de Deus, que mandava san
tificar o sábado. Em conseqüéncia, as prerrogativas religiosas do sábado (en
tre as quais o preceito de nao trabalhar e o de cultuar o Senhor) foram trans
feridas para o domingo, embora os cristáos soubessem que o domingo per-
tence a nova ordem de coisas.

Na Alta Idade Media (sáculos XI-XIII), os moralistas e canonistas es-


miucaram as regras da observancia dominical. A partir do sáculo XII, ficou
estabelecida com toda a clareza a obrigacáb, sob pecado grave, de freqüen-
tar a S. Missa e n3o trabalhar. Os doutores insistiam especialmente na proi-
bicSo de trabalhos servís ou trabalhos dos servos e criados, trabalhos pesa
dos e exaustivos, ás vezes exigidos pelos senhores em.domingo.

Assim a casuística da observancia dominical se desenvolveu; todavía


nSo foi suficientemente acompanhada por explícacoes doutrinárias e teológi
cas, de modo que ficou, na mente do povo de Deus, o domingo assocíado a
um preceito muito mais do que a urna mística.

214
O DOMINGO 23

Em nossos dias, diante da baixa freqüentacao da Eucaristía dominical


por parte dos fiéis, há autores que preconizam a abolicao do preceito de Mis
sa. Outros querem ao menos diminuir a gravidade desse preceito; mais ou-
tros acham que deverá ficar a criterio de cada católico participar ou nao da
assemblóia dominical, alegando que "quem nao tem vontade de ir, nao deve
forcar-se, pois o que é feito sem espontaneidade nao tem valor".

Todavía a Igreja, apesar dessas diversas sentencas, renovou em seu no


vo Código de Direito promulgado em 1983 a obrigacao da Missa dominical
formulada nos seguintes termos:

"Canon 1247 - No domingo e nos outros dias da festa de preceito, os


fiéis tém a obrigacao de participar da Missa; além disto, devem abster-se das
atividades e negocios que impecam o culto a ser prestado a Deus, a alegría
própria do dia do Sanhor e o devido descanso da mente e do corpo".

"Canon 1248 - § 1. Satisfaz ao preceito de participar da Missa quem


assiste á Missa em qualquer lugar onde é celebrada em rito católico, no pro-
prio dia da festa ou na tarde do dia anterior".

Notemos que no texto ácima nao se fala de "ouvir Missa", e sim de


participar da Missa. Ao mesmo tempo, a Igreja procura despertar nos fiéis
a consciéncia do sentido do domingo e da Eucaristía dominical. A principal
motivacao para que os fiéis participem da S. Missa nao há de ser o preceito
jurídico, mas a conviccao de que "nao podemos viver sem celebrar o dia do
Senhor" (mártires de Abitina).

3. Aprofundando...

Distinguiremos aínda tres aspectos da temática.

3.1. O Sacramento

Nao é possi'vel a um cristSo compreender e estimar a Missa dominicrl


se n3o possui urna sólida formacáo doutrinária. Muitos sao inclinados a ver
no Cristianismo um código de Moral, de modo que quem vive honestamente
e pratica a caridade, parece guardar a esséncia do Cristianismo, ficando a
dimensao cúltica reservada "para quem goste" ou "para quem possa"...

Ora tal Cristianismo nao pode deixar de ser anémico, equiparando-se


talvez á religiosidade natural de todo homem. Na verdade, o aspecto primor
dial do Cristianismo nao é o da Ética, mas é o do Sacramento; o cristao tem
que ser ontologicamente um homem novo (cf. Ef 4,22-24) para poder agir

215
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

segundo urna Ética nova <cf. Ef 4, 25-32). Isto quer dizer: o cristao é chama
do a participar da vida do próprio Deus (cf. Gl 2,20; Rm 8,15); para tanto
ele é atingido por Deus Pai em Cristo (Deus feito homem), que exerce a sua
acSo salvífica mediante os sete sacramentos, dos quais a Eucaristía é o cen
tro... Assim enxertado em Cristo e comungando com a vida do Pai, do Filho
e do Espirito Santo é que o cristao desenvolve a sua conduta moral; esta é
mero efluxo da inserpao do cristao no Corpo de Cristo prolongado (= a Igre-
ja) mediante o Batismo e a Eucaristía. Por isto é que o cristao deve ter urna
consciéncía muito viva de ser membro da Igreja, integrante do Corpo de
Cristo, cujo ato central é a celebracao da Eucaristía. Mediante esta, o cristao
participa da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, vitória que ele tenta
difundir através do seu traba I ho e da sua luta cotidianos.

Estes conceitos hSo de pairar em primeiro plano ante os olhos do crís-


tSo. E a eles que a catequese deve dedicar o máximo de sua atencáo. Quem
os assimilou, nSo precisará de preceito para freqüentar a Missa dominical,
mas experimentará a necessidade espontánea de participar déla. O preceito
dominical é mantido pela Igreja como estfmulo pedagógico, como auxilio á
fragilidade da criatura, que, motivada pela lei, poderá aos poucos descobrir
o auténtico sentido desta norma e fazer por amor e fidelidade espontánea
o que fazia por dever.

É de notar, porém, que, mesmo quando alguém "ná"o tem vontade" de


freqüentar a Missa, a obrigacao persiste. Com efeito; o ser humano deve
guiar-se pela inteligencia e a vontade e nao pelos caprichos ou sentimentos;
o "sentir vontade" é algo de muito superficial, que n3o pode reger o com-
portamento de alguém nem mesmo no plano meramente natural; nao posso
comer só quando "tenho vontade"; devo tratar da minha saúde mesmo
quando nSo tenho vontade. Pode-se até dizer que chegam a ter mais valor
diante de Deus os atos que cumprimos á revé lia de nossos caprichos, se tais
atos sao ditados pela sá razáo ou pela fé.

3.2 Num mundo secularizado

Verdade é que em nossos tempos a prática da Missa dominical sofre


obstáculos por parte do contexto do mundo em que vive o cristao.

Os fins de semana sao, para muitos, ocasiSo de repouso fora da cidade,


em lugares distantes de igreja; varias atividades (concursos, exames, vacina-
c5es...) sá"o colocadas em sábado e domingo; o esporte, cada vez mais atra-
ente, ocupa tais días; comicios, reunióes e concentracoes de ordem política
solicitam também os fins de semana dos ¡nteressados... Em suma, varias
ameacas (justificadas ou nao) tendem a dificultar a observancia dominical.
É preciso, pois, que o fiel católico saiba fazer sua escala de valores de acor-

216
O DOMINGO 25

do com sua consciéncia bem formada, a fim de ná"o ser vítima de correntes
laicistas ou do hedonismo do ambiente contemporáneo. Requerem-se con-
viccoes sólidas e lúcidas da parte de todo cristáo a fim de que possa dar o
devido testemunho de que Oeus nao é palavra morta, mas o Grande Tu e o
primeiro valor na vida de um homem.

A fim de facilitar a prática dominical, a Igreja tem ampliado o horario


de Missas: desde o sábado a tarde até o domingo á noite, o católico tem
oportunidade de freqüentar a Eucaristía. Desde o sábado a tarde..., pois, se
gundo a contagem bfblica, os dias vao de por do sol a por do sol... Nao há
restricSo alguma á participacao da Missa no sábado á tarde, desde que al-
guém que ira assim garantir a sua fidelidade ao Senhor.

Alguns fiéis propoem que se desloque o preceito da Missa para qual-


quer dia da semana. Isto seria relativizar o sentido grandioso do domingo.
Este é o dia da festa crista por excelencia, o dia da familia de Deus reunida
na Casa do Pai...; deve, portanto, ser um dia de convergencia de todos os
fiéis para a igreja e a Missa. Se alguém, por motivo de forga maior, nao pode
participar da Eucaristía dentro do prazo definido, está dispensado da mes-
ma; é claro, porém, que muito louvavelmente pode procurar a Eucaristía
em dia de semana; assim nutre a sua vida espiritual, que é preciosa.

Também para contrabalancar os obstáculos á participacáo da Eucaris


tía na igreja, a Missa é irradiada ou televisionada em muitos lugares. Isto é
de grande valor principalmente para quem na*o pode sair de casa, detido
pela ve I hice ou pela doenca ou por outros motivos; a pessoa no seu lar ouve
a Palavra de Deus e une-se á oragao do sacerdote celebrante; quanto á Co
mún nao Eucarística, pode-lhe ser levada por um ministro extraordinario.
Mas é preciso notar que a assisténcia á Missa pelo radio ou pela televisáo
nao atende ao preceito dominical, pois falta entao a primeira condicao para
a participacao, que é a presenca f i'sica na assembléia litúrgica.

Deve-se também registrar que, quando dois dias de preceito se suce


de m na semana — o domingo e um sábado ou urna segunda-feira que seja
dia santo1 —, nao é suficiente ao fiel católico participar de urna só Missa,
ainda que seja a Missa vespertina limítrofe entre os dois dias de preceito;
mas requer-se que o católico participe da Missa correspondente a cada um
dos dois dias festivos; poderá, por exemplo, participar da Eucaristia no do
mingo de manha e no domingo de tarde, se nao Ihe for possfvel ir á Missa
segunda-feira.

1 Tal caso ocorre no Brasil, por exemplo, quando a festa da Imaculada Con-
ceicao (sempre aos 8 de dezembro) cai num sábado ou numa segunda-feira.

217
26 .-,- "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

3.3. O rapouso dominical .'. ■'

As normas concernentes ao repouso dominical foram, pelo novo Códi


go de Direito Canónico, expressas em termos que manifestam principalmen
te a finalidade desse descanso:

"Canon 1247 - No domingo e nos outrós días de festa de preceito, os


fiéis tém a obrigacSo de particpar da Missa; além disso, devem abster-sedas
atívidades e negocios que impecam o culto a ser prestado a Deus, a alegría
própria do dia do Senhor e o devido descanso da mente e do corpo".

Depreende-se do texto ácima que o descanso é considerado como con-


dic3o necessária para que possa haver o culto do Senhor e a elevacao da alma
a Deus no domingo. É preciso que o homem saiba distanciarse periódica
mente dos afazeres que o materializam a fim de poder levar urna vida autén
ticamente humana e crista. Assim torna-se-lhe mais fácil realizar a justa esca
la de valores e urna s(Vítese harmoniosa das diversas solicitacoes que tendem
a dilacerá-lo.

O ocio dominical, além de facilitar a freqüentacao da Eucaristía, pode


também propiciar o exercfcio de alguma atividade recreativa que tenha dig-
nidade: passeio e esportes sao saudáveis também para o espirito, contanto
que nao suscitem paixSes obsessivas (como, por vezes, acontece ñas compe-
ticoes atléticas). Mas seria desejável que o cristáo se lembrasse de que o dia
do Senhor é o dia oportuno para a oracfo pessoal e tranquila, para a leitura
de alguma obra de espiritualidade, inclusive a S. Escritura.

Os valores humanos (que também sao cristaos) deveriam ser reavivados


igualmente pelo domingo: assim o convfvio em familia (especialmente a re-
feicao familiar em torno da mesma mesa como ocasiao de partilha de inte-
resses e afetos), a visita a parentes vizinhos ou distantes, a amigos, a enfer
mos (familiares ou nao).

Observadas estas sugestoes, o sentido do domingo pode ser recuperado


com grandes vantagens para os fiéis católicos e o testemunho que devem dar
aos seus concidadaos neste mundo.

"O Verbo, tendo auumido um corpo, tornou-se homem. Assim nos,


homens, auumido) na carne do Verbo, somos por Ele divinizados a nos tor
namos herdeiros da vida eterna" (S. Atanásio. 3? Discurso Contra os Aria-
nos 24).

218
O doloroso fenómeno dos

Casáis que se Dissolvem

Em sínteje: Q triste fato dos numerosos casamentos que se dissolvem,


tem múltiplas causas, entre as quais a volubilidade da vida contemporánea;
esta quer arrastar consigo também os valores perenes da fidelidade, da res-
ponsabilidade, do brío, da honra..., assim como os próprios difames da fé.
Há, porém, remedios para esta situacao: a preparacao para o casamento há
de ser mais esmerada, numa época em que, para o exercfcio das principáis
profissoes, o ¡ovem se prepara intensamente. Além do qué, é de Sembrar que
quem semeia amor, colhe amor; o amor, porém, nSo há de ser identificado
simplesmente nem com genitalidade nem com a felicidade terrestre. 0 amor
auténtico consiste num querer bem, que é sempre portador de renuncia ao
egoísmo; significa querer construir o outro, em vez de querer o outro cons
truido — o que so pode ocorrer num clima de paciencia e magnanimidade,
penhor da verdadeira alegría interior.

É isto que se há de incutir aos jovens chamados ao casamento, a fim


de que possam assumir a sua missSo com ánimo adulto e maduro, evitando
o espirito aventureiro e superficial, penhor de fracassos penosos.

* * *

É freqüente hoje em día a ruptura de casamentos, com suqs dolorosas


conseqüéncias tanto para os cdnjuges como para os ftihos. Os ¡nteressados se
lamentam, e com razao. Mas nao basta prantear... É preciso analisar de perto
os fatos, suas causas e procurar pistas de solucao que atenuem as desgracas
de tantas pessoas chamadas ao matrimonio. É o que taremos ñas páginas
subseqüentes, valendo-nos dos estudos de peritos no assunto.

1. Um fato constante é ¡lustrado

Em todos os tempos, o casamento aparece como urna instituicao mui-


to frágil. Por sua índole mesma é algo de estável e duradouro, mas, vivido
por criaturas sempre sujeitas a influencias e oscilacoes, torna-se planta tenue.

219
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

1.1. No paitado

Para se ter urna idéia do que era o problema nos tempos de Cristo, se-
jam lembrados alguns trapos da vida da Roma antiga. O povo do Lacio origi
nariamente constava de camponeses, de índole dura e corajosa, que vivía da
agricultura e do pastoreio. Produziu a figura do paterfamiliai (pai de fami
lia) esbopada posteriormente pelo Direito Romano, e a da matrona, ornada
de virtudes domésticas. Com o tempo, porém, Roma foi dilatando suas fron-
teiras e seu poder, tornando-se vrtima da corruppao sexual desde as carnadas
da plebe até o cume do Capitolio. O Imperador Augusto, contemporáneo de
Jesús, promulgou entao a lei Papia Poppea, que prescrevia sob pena de seve
ras multas, o casamento a todos os homens livres; puniu o adulterio com a
sentenpa de morte e premiou com isencao de tributos os casáis que tivessem
tres filhos. A corruppao, porém, era tal que no século I o filósofo estoico
Séneca (t 65 d.C.) registrava em tom burlesco: as damas romanas trocavam
de companheiro tantas vezes que o seu calendario pessoal se pautava "nao
pelos Cónsules de Roma, mas pelo número de maridos". Além do mais, sa-
be-seque Sao Paulo em Rm 1,18-32 no ano de 58 teceu com vivas cores o qua-
dro de degradacao que afetava a situapfo da familia no Imperio Romano...1

1.2. Urna ¡magem

O mal se prolongou através dos sáculos, como dito, visto que o casa
mento é urna instituí pao que se poderia comparar a urna célula viva (nao sem
razio se diz que a famflia é a primeira célula da sociedade). Na verdade, a cé
lula consta de um núcleo central cercado do seu protoplasma; neste atuam
forpas diversas, das quais algumas sao centrípetas ou produzem coesáo e
uniáo das diferentes partes do conjunto, e outras sao centrífugas ou tenden
tes á separapSo e a dispersao dos respectivos elementos. Ora em qualquer
conjunto submetido a forpas contrarias vigora urna lei universal: prevalecem
as mais poderosas. Se estas sá"o as centrípetas, o todo permanece unido; se,
ao contrario, sSo as centrífugas, o conjunto tende a romperse.

1 Eis o trecho da Rm 1,24-27:


"Daus os entregou (os gentíos), segundo o desejo dos seus coracoes, á
impureza em que eles mesmos desonraram seus corpos. E/es trocaram a
verdade de Daus pela mentira a adoraran) e serviram á criatura em tugar do
Criador, que é bendito pelos sáculos. Amém.
Por isso Daus os entregou a paixoes aviltantes: suas mulheres mudaram
as ralacoes naturais por relacoes contra a natureza; igualmente os homens,
deixando a relacSo natural com a muihar, arderam em desojo uns para com
os outros, praticando torpezas homens com homens a recebando em si mes
mos a paga da sua aberracSo ".

220
CASÁIS QUE SE D1SSOLVEM 29

Pois bem; em todo casal há forcas. centrípetas ou de coesao e forcas


centrífugas ou de dispersao; urnas e outras podem ter origem dentro ou fora
do casal. Concretamente:

Exemplo de torca centrípeta oriunda de dentro: o amor e a confianca


mutua existentes num casal XY.

Exemplos de forca centrípeta oriunda de fora: o código de Moral ou


de Religiao adotado pelos cdnjuges. Ou a pressao exercida pelos respectivos
familiares, que nao aceitam o divorcio.

Exemplo de forca centrífuga proveniente de dentro: antipatía e aver-


sao oriundas do fato de que um dos dois cdnjuges nao aceita as mentiras
que o outro Ihe conta para justificar suas ausencias.

Exemplo de forca centrífuga externa: o surto de um terceiro indivi


duo {homem ou mulher) que dé origem a um triángulo afetivo. Ou ainda: a
interferencia da sogra na vida do marido.

1.3. Dois casos típicos

Aplicando estes dados teóricos a realidade, podem-se imaginar os dois


seguintes casos:

1.3.1. Helena-Januário

Januário é um músico famoso, que trabalha numa orquestra de espeta-


culos noturnos. Ganha vultosas quantias em troca de intenso trabalho. Num
dos saldes de festa que freqüenta, Januário conheceu Helena, estudante de
certo nivel social e intelectual. Entre os dois surge um "amor" fulminante,
que os leva a conceber um filho; para resolver a delicada situacáo, resolvem
casarse, estando Helena grávida.

Feita esposa e máe, Helena nao pode sair de noite, acompanhando o


marido para os festivais noturnos, de modo que se senté cada vez mais só.
Sobrevem-lhe urna segunda gravidez, que a varios títulos Ihe é pesada...
Ouve dizer outrossim que no horizonte de Januário apareceu urna artista,
colega de espetáculos noturnos. Interrogado, Januário Ihe confessa que sim,
mas que "nao há nada de grave entre eles". Helena, porém, desconfia obses-
sivamente e consulta um advogado, amigo de seu pai, a respeito de possívál
separacao, pois tem a impressáo de que vive com um desconhecido.

Analisemos agora o campo de forcas que atuam entre Januário e


Helena.

221
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

Forcas centrípetas:

a) casaram-se porque estavam, ou ao menos acreditavam estar, enamo


rados um pelo outro. Quiseram ter seu filho e educá-lo num auténtico lar -
coisa que nem todos fazem;

b) já existe urna segunda enanca a caminho;

c) a situacá*o económica é boa, de sorte que o casal nao tem as preocu-


pacoes que afetam muitos outros;

d) alern do mais, existe em Helena urna básica aceitacao da vida notur-


na de Januário, pois se enamorou e casou com ele sabendo que era "ave no-
turna".

Há, porém, forcas centrífugas:

a) a falta de convivencia é penosa. Urna coisa é aceita-la teóricamente;


outra coisa é experiméntala todas as noites ao som do relógio;

b) Helena casou-se precipitadamente, a revelia dos país, que nao Ihe


dfo apoio em seu lar. De resto, as fami'lias dos dois cónjuges nao se en ten-
dem e nao colaboram;

c) no plano cultural, Helena e Januário pertencem a ambientes diver


sos: ela é de familia de classe media e abastada, que Ihe deu boa formacao,
ao passo que ele é de origem rude e pouco instruido. Mas é ele quem pes-
soalmente triunfa mediante a sua vida de artista;

d) neste contexto aparece um fator desagregador externo, que é urna


colega de traba I ho de Januário, també m ela "ave noturna". Isto tira a confi-
anca de Helena no marido e nela mesma; insegura, ela tende a ampliar imagi
nariamente os problemas que a cercam;

e) as forcas externas centrípetas faltam a Helena, porque, além de nao


contar com o apoio da famflia, nSo tem a fé que a poderia fortalecer nesse
transe difícil.

ConclusáTo: o casal Helena-Januário está num campo de forcas antagó


nicas desiguais; as centrífugas $9o mais poderosas,...; comeca a haver ruptu
ra, que provavelmente terminará em total desagregacSo.

222
CASÁIS QUE SE DISSOLVEM 31

1.3.2 Dora-Ricardo

Deixando a metrópole, transferimo-nos para uma cidade do interior.


Dora pertence a uma famClia de classe media, na qual o pai foi primeiramen-
te humilde agricultor e depois se tornou um próspero comerciante, almejan-
do sempre subir na escala social e profesional. Dora, educada em Colegio
religioso, conhece um rapaz chamado Ricardo, formado em Economia. A fa
milia déla muito se empenha pelo casamento, que parece vantajoso para o
pai e os irmaos de Dora; com efeito, Ricardo ¡nteressa-se por trabalhar nos
negocios do futuro sogro, contribuindo para a modernizacáo e a ampliacao
da empresa.

Realizam-se as nupcias. O jovem é inteligente e dinámico, bom mari


do e bom pai, dando plena satisfacao ao sogro. Acontece, porém, que Ricar
do viaja muito para a capital, onde abríu um escritorio a fim de intensificar
os negocios. Dora, aos poucos, pergunta a si mesma se tantas ausencias se
devem únicamente a interesses profissionais; nao haveria outra mulher em
foco,... mulher de nivel social e económico mais elevado, mulher mais seme-
Ihante ás colegas de Faculdade que Ricardo conheceu como estudante? Um
belo dia, certa amiga intrometida I he diz que Ricardo chegou a montar um
apartamento para essa outra mulher na grande cidade. Dora se cala; continua
a ter amor por seu marido e vé que é sempre bom pai para os filhos. Mas as
ausencias se multiplican-), inclusive para o estrangeiro. Assim a tensao sobe.
Romper-se-á tal casamento?

Ponderemos as forcas que atuam no binomio Dora-Ricardo.

Forcas centrífugas:

a) Talvez nunca tenha havido profunda compreensao mutua entre os


dois conjuges. É possível que Ricardo tenha subconscientemente encarado
o casamento como uma fase promissora de sua carreira profíssional mais do
que como uma doacao de amor.

b) A origem social e a formacáo religiosa de Dora diferem das de


Ricardo.

c) As viagens repetidas, especialmente quando para o estrangeiro, em-


bora profissionalmente justificadas, aumentam a tensao de Dora, mormente
em seu último período de gravidez.

Forcas centrípetas

a) Dora, com tres filhos e seis anos de casada, tende naturalmente a re-
produzir o modelo de familia que ela viu em casa dos país; estes nunca cogí-

223
32 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

taram de separacao e ajudam a filha, acompanhando-a principalmente nos


momentos diffceis.

b) Dora, embora um tanto perplexa, continua a amar Ricardo e ser-lhe


fiel; por isto rejeitou a sugestao, de urna amiga, de mandar vigiá-lo durante
as suas andancas palas grandes cidades.

c) Dora é profundamente religiosa. Por isto considera a sua tribu lacao


como partí I ha da Cruz de Cristo a ser carregada generosamente.

Conclusío: as forcas centrífugas e as centrípetas sao poderosas no


caso. Acontece, porém, que Dora é valiosamente sustentada por sua familia
e sua fé pessoal. Do seu lado, Ricardo nSo parece pensar em separacáo; ama
os filhos e nao deseja dissolver o lar. É de crer entao que o casal nao se des
trocará.

Estes dois casos, que sao espelho fiel de certa faixa da realidade, aju
dam a compreender o problema da estabiiidade do casamento; vé-se quanto
é complexo pelo fato de que muitas variantes nele entram.

Examinemos agora mais precisamente quais sejam os fatores que, em


nossos dias, mais ameacam desagregar os lares (forcas centrífugas).

3. As causas hoje mais deletérias

Apontaremos os oito seguintes fatores.

3.1. As mudancas topográficas

Outrora os casáis novos permaneciam na órbita dos respectivos genito


res, de modo que os avós podiam transmitir aos netos o patrimonio humano,
moral e religioso característico de suas tradicoes. Podia-se falar de "familias
patriarcais", das quais a estabiiidade era urna nota clássica.

Em nossos dias, sao muitas as ofertas de em prego e iniciativas que le-


vam os casáis novos a procurar em outras regióos oportunidades mais vanta-
josas para se realizar económica ou profissionalmente. Essas migracoes con-
tribuem para que os jovens percam a identidade de suas tradicoes; ñas gran
des cidades existe massificacáo; os atrativos e as necessidades provocam dis-
persSo dos conjugas e dos filhos - o que gera instabilidade e ameacas de de-
sagregacSo.

224
CASÁIS QUE SE DISSOLVEM 33

3.2 A mentalidade da mudanca

As mudanzas de domicilio, justificadas como sao, vém a ser apenas


um aspecto de fenómeno mais ampio, que afeta a sociedade e o mundo, re-
percutindo na estabilidade do casamento.

Seja lembrado o consumismo acelerado, que incita os cidadaos a com


prar e vender sempre mais e melhor. A publicidade se encarrega de suscitar
os desejos ou as necessidades de adquirir novos aparelhos, novas pecas de
roupa, novas comodidades... Comprar o último e o mais funcional modelo
vem a ser um projeto que afeta a economía de urna familia modesta.

Ora esse afa pode solapar também os valores moráis, como é, por
exemplo, o amor fiel. Quando o(a) consorte vai envelhecendo e se desgasta,
pode sugerir a tentacao de trocá-lo(a) por ou trola).

3.3. A recusa do permanente

O homem moderno tem aversá"o a instituicoes e normas permanentes.


Existe medo do futuro, tido como ¡ncerto;daf também a recusa de compro-
missos vitalicios. Este fator produz nao somente a instabilidade matrimo
nial, mas também a proposta de "casamento provisorio ou temporario...
enquanto for conveniente". O "amarrarse para sempre" parece sufocar a
liberdade humana e sua capacidade típica de fazer novas e novas opcoes.

Mais: há quem diga que tudo evolui nao só no mundo físico, mas tam
bém no plano ético: o que hoje é verdade, amanhá poderá ser falso; o que
hoje é moralmente bom, aman ha será mau, como diz a filosofía existen-
cialista.

3.4. Os meios de comunicacáb social

É notorio o poder de influencia dos meios de comunicacao social, es


pecialmente da televisao. Esta, particularmente, cria hábitos e dependencia,
dos quais o telespectador ná"o se defende se nao possui um senso crítico
agudo e inteligente. Perante o televisor a pessoa adota freqüentemente, sem
ter consciéncia disto, urna atitude passiva, que bloqueia a funcao crítica;
após urna novela ou um filme, muitos emitem, sim, urna sentenpa, limitada, po-
rém, a dizer "se gostaram ou nao gostaram", "se oespetáculofoi interessante
ou molesto"; os aspectos educativos e moráis... escapam a esse julgamento.

Ora as imagens e os enredos colhidos na televisao sao geralmente mais


vivazes e penetrantes do que os da escola e da familia; sao absorvidos sem re-

225
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

flexao nem jufzo crítico e vao construindo a tessitura secreta ou a trama do


modo de pensar de muita gente, especialmente dos que se habituaram ás no
velas e aos filmes. Assim o televisor é o permanente visitante do lar, cuja
presenca foi ató mesmo paga e ao qual os familiares permitem diga coisas
que nao seriam toleradas da parte de outros visitantes. Infelizmente os dados
fornecidos por tais meios sao, muitas vezes, deletérios: exibem a infidelidade
conjugal, o adulterio, o hedonismo ou a procura do prazer baixo em lugar da
renuncia nobre - o que redunda em detrimento do conceito de familia está-
vel; o telespectador vai-se insensibilizando para os grandes desmandos ou es
cándalos, que (he váo sendo exibidos como fatos consumados, aos quais se
ria tolice querer resistir no mundo de hoje.

3.5. Dificuldades económicas

O fato económico pode afetar negativamente os casáis que estejam nos


extremos da escala socio-económica.

Ñas carnadas mais modestas a penuria ou a falta de bens materiais, ás


vezes de primeira necessidade, excita os ñervos dos cónjuges: o marido assu-
me múltiplas oportunidades de trabalhar, que nao o deixam mais viver com
a familia; ou um dos cónjuges culpa o outro seja de nao ganhar o suficiente,
seja de gastar demais...

Ñas carnadas mais abastadas, a riqueza faz que se pense mais em ter
do que em ser, justamente ao contrario do que o Papa Joáo Paulo II apresen-
tava as familias da Espanha, que o ouviam em 1982: "A familia é a única
comunidade em que todo ser humano é amado por si mesmo, por aquilo que
ele é e na"o por aquilo que ele tem". O hábito de gozar e desfrutar suscita a
dificuldade de renuncia; quando necessária, neqhum dos dois cónjuges está
disposto a aceitá-la para salvar a harmonía do lar. É neste sentido que a vul-
tosa riqueza pode atuar como elemento desagregador do lar.

Quanto á classe media, nao escapa á influencia do consumismo, que


mais valoriza o ter do que o ser; se ela sucumbe a esta filosofía, será vitima
da desagregacá"o.

3.6. Supersensibilidade sexual

Ná"o há dúvida de que sSo altamente chamativos os apelos á genitalida-


de no nosso mundo, onde os muráis, os comerciáis, as bancas de jomáis...
estao impregnados de erotismo e incutem a idéia de que amor e genitalidade
nffo se separam; donde a expressao "fazer amor"... Em conseqüéncia, a no-
ca"c~de vida conjugal se empobrece, reduzindo-se ás suas expressoes corporais

226
CASÁIS QUE SE DISSOLVEM 35

e eróticas. Visto que os aspectos corpóreos do ser humano se desgastam com


relativa rapidez, desvaneoem-se, para muitos, os encantos do matrimonio; se
guardassem a consciéncia de que o valor de alguém está, antes do mais, em
suas prendas espirituais e moráis (que, em vez de definhar, podem até o fim
da vida intensificar-se), nao aborreceriam tá*o fácilmente o casamento.

3.7. Ofator religioso

A fé ensina que o matrimonio sacramental é monogámico e ¡ndissolú-


vel. 0 elemento religioso é o fator unitivo mais forte de todos, apto a supe
rar as seducoes desagregadoras; faz que o amor ao consorte seja unido ao
amor a Deus, que é o amparo mais sólido possfvel para qualquer iniciativa
humana lícita. A fé, traduzida em amor, inspira a oracao para pedir a grapa
de Deus e suscita a imitacáo de Cristo em sua entrega aos homens, entrega
que significa também renuncia; na verdade, nao há amor (especialmente
amor conjugal) que nao inclua renuncia; esta, exercida de parte a parte,
constituí a chave da solucao de muitos problemas do casal.

Sendo assim, pode-se avaliar quá*o deletéria é, para um casal, a falta de


valores religiosos; permite a expansáo do egoísmo e leva muitas vezes á recu
sa de qualquer autoridade, em favor do capricho momentáneo dos cónjuges.

Existe hoje urna tendencia á "privatizapao do matrimonio", que rejei-


ta dar satisfacao tanto á Igreja quanto ao Estado e á sociedade, admitindo
que homem e mulher contraiam e dissolvam o vínculo matrimonial segundo
seus interesses pessoais. Na verdade, porém, o casamento nao é ¡nstituipfo
de índole meramente privada, mas possui urna dimensao social que é da
competencia do Estado, guarda e intérprete do bem comum; além disto, o
casamento de um cristáo católico é um sacramento, regulamentado pela
Igreja em obediencia ao Evangelho.

3.8. SilSncio e comunicacao

Por último, assinalese, entre as causas de ruptura do casamento, o si


lencio e a palavra indevidos.

O silencio inoportuno ou a falta de comunicacao é evidentemente de-


sagregador, como, alias, registra a locupáo popular: "Eles nao falam um com
o outro"; "Deixaram de conversar entre si". O silencio inoportuno pode ex-
plicar-se por temperamento fechado, absorcao de cada qual no seu mundo
de trabalho, ñas suas preocupacoes dentro ou fora de casa, por ressentimen-
to ou mágoa... Estas atitudes corroem o amor e a confianca mutua, fazendo
que a vida conjugal deixe de ser urna vida a dois. Requer-se, de parte a parte,

227
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

um esforco grande para superá-las e manter no casal o diálogo sincero, que


é, por assim dizer, a respirapao da vida conjugal.

De outro lado, as palavras inoportunas sao tambám mortfferas para o


casal; quando inspiradas pela paixío, ofendem o interlocutor, exprimindo
jufzos precipitados unilaterais e atingindo por vezes a familia do(a) consor
te. Os grandes conflitos comecam verbalmente e terminam em fatos doloro
sos; as brechas abertas ñas discussóes váo-se dilatando, a ponto de tornar-se
agressoes físicas e ruptura total.

Pergunta-se agora:

4. E quais sao os remedios?

A própria denuncia dos fatores centrífugos do matrimonio já incluí a


indicacao dos respectivos remedios; estes hao de ser o antídoto dos males
apontados. Como quer que seja, vao aqui frisados alguns pontos mais impor
tantes.

4.1. Samear amor para colher amor

O amor benévolo (nao interesseiro), que quer o bem do outro por cau
sa do outro (e do Cristo), é a forca centrípeta mais poderosa; vem a ser a
raíz e o compendio de todos os remedios para manter o matrimonio. Esse
amor verdadeiro "é paciente, prestativo, nao procura o próprio interesse,
nao se irrita, nao guarda rancor, tudo desculpa, tudo espera, tudo suporta"
(ICor 13,4-7).

4.Z O mundo em mudencas

A evolucSo e as mudancas no mundo de hoje sao fatos ¡ncontornáveis,


com os quais é preciso saber conviver sem se deixar afetar negativamente.

Os deslocamentos geográficos nao sao propriamente causas de ruptura


do casamento; apenas podem favorecer o desabrochamento de gérmens de
desagregapffo já existente nos dois cdnjuges. Donde se vé que estes tém que
.ser preparados e esclarecidos antes do casamento para que saibam sustentar
seu nobre ideal em meio a circunstancias diversas urbanas e habitacionais,
sem precisar de "estufa" para se conservar.

Quanto a mentalidade das mudancas ou á volubilidade de pensamento


e conduta que marca o mundo de hoje, o casal cristáo há de se convencer
deque

228
CASÁIS QUE SE DISSOLVEM 37

- existem valores perenes, que fazem a grandeza do ser humano, na


riqueza e na pobreza, na saúde e na doenca, na alegría e na tristeza. Tais sao
a fidelidade, a honra, o brío, a lealdade, o senso de responsabilidade, o amor
benévolo e altruista... Tais valores sao corroborados pela fé e o senso religio
so naqueles que reconhecem Deus e sua Santa Palavra;

— o compromisso definitivo ou vitalicio, que amedranta a muitos, é


algo de grande, pois contribuí para emancipar o individuo do egoísmo, da
veleidade e dos caprichos infantis; concorre para tornar a pessoa adulta e
madura. Mas, como se compreende, no mundo volúvel de hoje, é necessário
seja assumido após seria deliberacao. Precisamente o fracasso de muitos casa-
memos se deve á precipitapáo dos nubentes. É necessário que estes se com-
penetrem de que casamento nao é aventura, mas tarefa vital; amar nao é
querer o outro construido, mas é querer construir o outro.

Está claro que, mesmo após razoável preparapao, o matrimonio fica


sendo um risco, pois o futuro é sempre urna incógnita. Mas ninguém pode
fugir de todo perigo; para crescer, é necessário aceitar certos riscos previa
mente ponderados. Quem corre o risco do compromisso matrimonial com
sinceridade, pode estar certo(a) de que a grapa de Deus nSo Ihe faltará, para
que, através das vicissitudes inerentes ao convivio de duas criaturas limitadas,
ambas se engrandecam e santifiquem. A felicidade plena nesta vida á utopia
inatingfvel; existe já grande felicidade na fidelidade, na honradez, na digni-
dade de conduta...; tal felicidade será plena na vida postuma, consumadlo de
urna caminhada militas vezes ardua e penosa. "Sei em quem acreditei", dizia
Sao Paulo (2Tm 1,12), certo de que sua fidelidade ao Senhor Jesús ná*o o ha-
via frustrado.

4.3. Dif¡cuidadas económicas

Estas certamente agravam a situacao de muitos casáis, suscitando ner


vosismo e paixoes. Mas nao sao insuperáveis. O cristüo deve ter.em si a soli
dez suficiente para saber manter os valores moráis mesmo ñas grandes tem
pestades que por fora o ameacam. Toda personalidade bem formada deve
trazer seu lastro interior, que a defenda dos adversarios exteriores, inclusive
da agressividade dos modelos dos meios de comunicapao social. Tal grandeza
espiritual há de ser entregue pelos pais como heranca preciosa aos filhos, pa
ra os quais o exemplo dos genitores é freqüentemente a escola mais marcan
te e influente de toda a sua vida.

4.4. Preparacao

É sempre melhor prevenir que remediar. Daí as referencias á prepara-


pao matrimonial nestas páginas. É paradoxal o fato de que, para assumir ta-

229
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

refas menos vultosas e delicadas, os jovens tenham que passar por anos de
preparado, ao passo que, para o casamento (convivencia fntima de duas
pessoas), se registra muita leviandade e irresponsabilidade.

Esta preparapao nSo incluí relacoes sexuais, como se fossem o princi


pal do casamento. Ao contrarío, a abstinencia pré-matrimonial educa a von-
tade e a habilita a resistir a seducoes que os cónjuges tenham de enfrentar
posteriormente. Mesmo que se ajustem sexualmente, doís jovens podem nao
ter condicoes de conviver ou de partilhar entre si seus interesses e sua vida.
O amor é algo de muito mais ampio do que o exercfcio da genitalidade;
esta só se enquadra bem dentro de um lar constituido estavelmente e assim
apto a receber e educar novas criaturas. Onde ná"o há a estabilidade de espo
so e esposa, nao há o clima necessário para formar os pequeninos.

O Papa Joab Paulo 11, em sua Exortacao Apostólica Familiar» Consor-


tio, distingue tres momentos principáis na preparacáo para o casamento:

a) a preparacáo remota, que ocorre desde a infancia, na escola do lar,


onde pai e má*e ensinam a seus filhos os auténticos valores humanos e cris-
tSos; trata-se, em grande parte, de formar o caráter, incutir-lhe o amor ao
brío e á responsabilidade, para que saiba moderar dignamente as inclinacoes
da natureza;

b) a preparacáo próxima, que se realiza na adolescencia. A catequese


deve contribuir para o discernimento vocacional dos pupilos e ministrar aos
que sentem o chamado matrimonial, as nogoes nobres e profundas que ca-
racterizam esta vocaca*o;

c) a preparacáo ¡mediata, que antecede de perto o sacramento do matri


monio. Geralmente compreende o Curso de Noivos ministrado ñas paróquias
e que merece todo o carinho da parte tanto dos instrutores como dos discí
pulos; há de oferecer a ocasiao de urna reflexao concreta e profunda sobre a
vida matrimonial, pondo ante os olhos dos futuros nubentes a rosa com
seus espinhos, que simboliza o convivio matrimonial.

Eis algumas ponderacdes que a delicada questSo da ruptura de casa-


mentos sugere a luz da sS razao e da fé. Possa o discurso ter sua continuida-
de nos coracdes dos interessados!

230
Está no ar:

A Igreja foi Durante Séculos


Favorável ao Aborto?

Em síntsse: A Igreja sempre foi contraria ao aborto, ou seja, ao morti-.


cínio de uma enanca contida no seio materno. Já no sáculo I se encontra um
testemunho deste repudio na Didaquá. Os Concilios regionais, desde o de El
vira (inicio do sáculo IV), foram impondo penas severas aos réus de aborto.
0 Dimito Canónico hoje vigente, fazendo eco ás diretrizes do passado, prevé
a excomunhao latao sententiae para quem provoque o aborto (seguindo-se o
efeito).

Todavía até época recente os dentistas hesitaram sobre o momento


em que tem inicio a vida humana: seria ¡mediatamente após a concepcao ou
após a fecundacSo do óvulo? Ou haveria, conforme pensava Aristóteles, um
intervalo (de 40 ou 80 días) entre a concepcao e a animafio do feto? A hesi-
tacao da ciencia, bem compreensivel, dada a falta de meios de pesquisa, fez
que varios teólogos católicos julgassem com menos severidade a eliminacao
do feto antes do 40? dia (no caso dos individuos masculinos) ou antes do
80? dia (no caso dos individuos femininos). Note-se bem: sempre foi conde
nada a ocisao de uma crianca; a hesitacSo versava apenas sobre a questao de
saber se já existe verdadeiro ser humano desde o momento da concepcao.

-.. * *

Aos 20/02/1989 num programa de televisSo sobre o aborto foi consi


derada a posicao da Igreja em termos que deixaram interrogacoes na mente
do público. Entre outras coisas, foi dito que a Igreja ná*o tem autoridade pa
ra impugnar o aborto, pois que ela o permitiu desde o sáculo IV até o sáculo
XIX. A afirmadlo foi realmente surpreendente e exige esclarecimientos e re-
tificacSes. Encararemos, a seguir, o assunto, tratando primeiramente dos
pronunciamentos oficiáis da Igreja sobre o aborto através dos sáculos; após
o que voltar-nos-emos para a questao do inicio da vida humana, que deixou
dúvidas em escritores de todos os séculos até época recente.

231
40 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

1. Os pronunciamientos da Igreja

1. Desde o século I manifesta-se na Igreja a consciéncia de que o abor


to é pecaminoso. Assim, por exemplo, reza a Didaqué, o primeiro Catecis
mo cristáo, datado de 90-100:

"Nao matarás, nao cometerás adulterio... NSo matarás crianza por


aborto nem crianza Jé nascida" (2,2).

"O caminho da morte é... dos assassinos de enancas" (5¿2).

Na segunda metade do século II, o autor da Epístola a Diogneto obser


va:

"Os crístaos casam-se como todos os homens; como todos, procriam,


mas nio rejeitam os filhos" fV 67.

O autor da Epístola atribuida a S. Barnabé no século II e depois Ter


tuliano (t 220 aproximadamente), S. Gregorio de Nissa (t após 394), Sao
Basilio Magno (1379) fizeram eco aos escritores precedentes.

2. A legislacao da Igreja oficializou esse modo de pensar, estipulando


sancoes para o crime do aborto.

Assim o Concilio de Ancira (hoje Aneara) na Asia Menor em 314, ca


non 20, menciona urna norma que os conciliares diziam ser antiga e segundo
a qual as muiheres culpadas de aborto ficavam excluidas das assembléias da
Igreja até a morte; o Concilio atenuou o rigor dessa penalidade, reduzindo-
a para dez anos:

"As muiheres que fornicam e depois matam os seus filhos ou que pro-
cedem de tal modo que eliminem o fruto de seu útero, segundo urna leí an
tiga sio afastadas da Igreja até o fim da sua vida. Todavía num trato mais
humano determinamos que Ihes sejam impostos dez anos de penitencia se
gundo as etapas habituáis" (Hardouin, Acta Conciliorum París 1715 t I
col.279)1. '
Outros Concilios repetiram a condenagáo do aborto: o de Elvira (Es-
pan ha) em 313 aproximadamente, canon 63; o de Lérida, em 524, canon 2;

"De mulieribus quae fornicantur et partus suos necant, vel quae agunt se-
cum ut útero conceptos excutiant, antiqua quidem definitio usque ad exi-
tum vitae eas ab Ecclesia removet. Humanius autem nunc definimus ut eis
decem annorum tempus secundum praefixos gradus paenitentíae largiamur".

232
IGREJAFAVORÁVELAO ABORTO? 41

o de Trullos ou Constantinopla, em 629', canon 91; o de Worms em 869,


canon 35...

Em 29/10/1588, o.Papa Sixto V publicou a Bula Effraenatam: refe-


rindo-se aos Concilios amigos, especialmente aos de Lérida e Constantino-
pía, condenou peremptoriamente qualquer tipo de abordo e ¡mpós severas
penas a quem o cometesse, penas que só poderiam ser absolvidas pela San
ta Sé. Além disto, a Bula nao distingue entre feto nao animado e feto ani
mado por alma intelectiva, distincSo esta de que falaremos ás pp. 234-236
deste artigo e que na época parecía muito importante.

Tal Bula era rigorosa demais para poder ser observada, principal
mente pelo fato de reservar á Santa Sé a absolvipSo das penas infligidas aos
réus de aborto. Por isto foi substituida poucos anos depois pela Bula Sedes
Apostólica de Gregorio XIV, datada de 31/05/1591; este documento distin
gue entre feto animado e feto nao animado por alma humana: o abortu de
feto animado ou verdadeiramente humano seria punido com a excomunhSfo
para os culpados, mas sem reserva da absolviólo á Santa Sé; quanto ao abor
to de feto n3o animado ou nao humano, ficaria a questao como estava antes
da Bula de Sixto (seria passivo de sancáb menos severa do que o aborto de
feto animado).

Como se vé, a questao da animacáo mediata ou ¡mediata era ardente


na época. Diante das posicoes extremadas que alguns autores professavam, o
Papa Inocencio XI condenou em 02/03/1679, como escandalosas e na práti
ca perniciosas, as seguintes sen tencas:

"34. £ lícito efetuar o aborto antes da animacáo para impedir que


urna jovem grávida se/a morta ou desonrada.

35. Parece provável que todo feto carece de alma racional enguanto
está no seio materno; só é dotado de tal alma quando é dado á luz. Em con-
seqüéncia. deve-se dizer que nenhum aborto implica homicidio" (Deñzinger-
SchOnmetzer, Enquirídio de Símbolos e Definicoes n? 2134s).

Como se vé, o Papa nao quis abonar a tese do aborto sob pretexto de
que nao afeta um ser humano propiamente dito. Embora nao se soubesse
com certeza no século XVII quando comeca a vida humana, Inocencio XI
ná"o se prevaleceu desta incerteza para legitimar a eliminacao do feto conti-
do no seio materno.

No século XIX o Papa Pió IX renovou a condenapao do aborto, sem


distinguir animacáo mediata ou ¡mediata:

"Declaramos estar su/'eitos a excomunhao latae sententiae (anexa diré-


tamente ao críme), reservada aos Bispos ou Ordinarios, os que praticam o

233
42 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

aborto com a eUm'macSo do concepto" (Bula Apostólicas Sedis de 12/10/


1869).

Esta sentenca categórica persistiu na Igreja até o Código de D'ireito Ca


nónico atual, que prevé a excomunháo para o delito:

"Canon 1398. Quem provoca o aborto, seguindo-se o efeito, incorre


em excomunhao latae sententiae".

Vé-se, pois, que a Igreja desde os seus primordios se manifestou con


traria ao morticinio de urna crianca contida no seio materno. Existia, po-
rém, para os teólogos a grave questao de saber quando comeca a vida huma
na; a falta de conhecimentos genéticos adequados levava alguns a crer que,
em determinadas circunstancias, nao havia verdadeira vida humana no seio
materno. É o que passamos a examinar mais detidamente.

2. Animacáo mediata ou ¡mediata?

Os seres vivos sao compostos de um corpo organizado e um principio


vital (chamado anima, em latim). AnimacSo, portanto, é o ato de se unirem
o principio vital (anima) e o corpo organizado. No homem, a animacáo
ocorre quando a alma (anima) é criada por Deus e infundida nos elementos
materiais orgánicos, aptos a exercerem as funcoes da vida humana (que é ve
getativa, sensitiva e intelectiva). Pergunta-se, pois, quando se dá a animacáo:
logo por ocasiáo da fecundacao do óvulo pelo espermatozoide? Tem-se en-
tao a animacáb ¡mediata... Ou a certo intervalo após a fecundacao? Tem-se
assim a animacáb mediata.

Vejamos como os pensadores responderam á questao.

Na antiguidade pré-cristá* somente o filósofo grego Aristóteles (|322


a.C.) tratou do assunto. O seu raciocinio nao é claro, mas parece defender a
animacáo mediata: o embriao humano teria primeramente um principio vi
tal meramente vegetativo; depois seria animado por um principio vital vegeta
tivo e sensitivo, e só posteriormente por um principio (anima) vegetativo,
sensitivo e intelectivo ou por urna alma humana propiamente dita.

Passemos agora aos pensadores cristaos, distinguindo gregos e latinos.

2.1. Os escritores gregos

A maioria destes era partidaria da animacáo ¡mediata.

Foi principalmente S. Gregorio de Nissa (t após 394) quem marcou a


tradicSo grega. Rejeitava a teoria da preexistencia seja da alma, seja do cor-

234
IGREJAFAVORÁVELAO ABORTO? 43

po, e afirmava a origem simultánea de'um e outro elemento; desde o primei-


ro instante da existencia do embriao, a alma encontra-se nele com todas as
suas potencialidades, que se vao manifestando á medida que o corpo se de-
senvolve.

Sao Basilio Magno (t 379), irmao de S. Gregorio de Nissa, adotou o


pensamento deste. Por isto considerava assassinos os que provocam o abor
to de um feto.

Sao Máximo Confessor (t 662) abracou a mesma tese, fundamentan-


do-se do seguinte modo: se o corpo existe antes de ter uma alma, é um cor
po morto, pois todo vívente possui uma alma. Se preexiste á alma racional,
tendo uma alma meramente vegetativa ou sensitiva, segue-se que o ser huma
no gera uma planta ou um animal irracional — o que é impossfvel, pois toda
planta provém de outra planta e todo animal irracional nasce de outro ani
mal irracional, e nao do homem.

Entre os defensores da animapao mediata, está Teodoreto de Ciro


(t 466 aproximadamente). Apela para o livro do Génesis, onde Ihe parece
que Moisés propoe a formapao do corpo humano primeiramente e só depois
a infusSo da alma humana (cf. Gn 2,7).

É certo, porém, que entre os gregos prevaleceu a tese da animapao


¡mediata.

ZZ Os escritores latinos

Entre estes destaca-se Tertuliano (t 220 aproximadamente). Era favo-


rável a animapSo ¡mediata, argumentando, porém, a partir de um principio
que Ihe valeu a réplica dos pósteros. Com efeito; Tertuliano defendía a ani
mapao ¡mediata, julgando que as almas dos genitores desprendiam de si uma
sementé (tradux) da qual se originaria a alma da prole; por conseguinte, jun
tamente com os óvulos e os espermatozoides, os genitores transmitiriam se
men tes de alma humana. Esta doutrina, chamada traducianismo, nao preser-
vava devidamente a espiritualidade da alma, mas reduzia a psyché humana á
materialidade. Por isto os escritores latinos, desejosos de ressalvar a espiri
tualidade da alma, puseram-se a combater o traducianismo e, com este, a dou
trina da animapao ¡mediata. Afirmavam: a conceppao é obra dos genitores,
mas a animapSo é obra direta de Deus que cria e infunde a alma humana. Pa
ra bem distinguir uma da outra, distanciaram-nas também cronológicamente:
a animapao se daria tempos após a concepcao da crianpa.

O autor do livro De spiritu et anima falsamente atribuido a S. Agosti-


nho (t 430) afirmava que o corpo vive a vida vegetativa e cresce no seio ma-

235
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

temo antes de recebar a alma intelectiva ou humana. Outro autor anónimo,


que foi confundido com S. Agostinho, comparava a formacao de cada ser
humano a formacao de AdSo: Oeus só daría a alma intelectiva ao corpo hu
mano depois que este estivesse formado, como aconteceu no caso de Adao
(Quawtiones ex Vetare Testamento c. XXIII). Cassiodoro (t 580) raciocina-
va do mesmo modo e acrescentava o testemunho dos módicos que estabele
ciam a animacSo do corpo humano no quadragésimo dia após a concepcao
(De anima c. Vil). Cassiodoro, porém, observava que, em assuntos tao obs
curos, seria melhor confessar a própria ignorancia do que talar com temeri-
dade arriscada.

Na Alta Idade Media a sentenca da animacSo mediata foi reforcada pe


la difusSo das obras de Aristóteles a partir do século XI11. S. Tomás de Aquí-
no (t 1274) a adotou com outros pensadores da época, estipulando a infu-
sao da alma humana ou racional no 40? dia para os individuos masculinos e
no 80? dia para os individuos femininos. Houve também aqueles que, se-
guindo urna insinuacfo do médico grego Hipócrates, estabeleciam o 30? dia
para o sexo masculino e o 40? para o sexo feminino.

A partir do século XIII, algumas vozes, principalmente dentre os médi


cos, comecaram a se fazer ouvir contra a hipótese dos pensadores medievais,
de modo que aos poucos foi predominando a sentenca da animacáo ¡media
ta. A Genética contemporánea, com seus apurados estudos, só contribuí pa
ra confirmar definitivamente esta nocao científica.

Os defensores da animacSo mediata apelaram para tres textos bíblicos,


cujo alcance nos compete agora considerar.

3. Tres textos bíblicos

Vfim ao caso Ex 21,22s; Lv 12,2-5 e Jó 10,9-12.

3.1. O texto de Ex 21,22»

Segundo a traducSo grega dos LXX, este texto supoe que um homem
imprudente dé um golpe numa mulher grávida e provoque o aborto. Se a
mulher morre ou se o fruto de seu ventre estava formado, a punicffo para o
delinqüente será a morte ("morte por morte"). Se, porém, a mulher nao
morre e seu fruto nao estava formado, o réu pagará apenas urna multa. Este
texto parece supor que existe feto formado, plenamente humano, e feto nao
formado, nSo plenamente humano. S. Agostinho e outros autores latinos
(que usavam a Biblia traduzida do grego para o latim) e gregos se apoíaram

236
IGREJAFAVORÁVEL AO ABORTO? 45

em tais versículos bíblicos para propugnar a animacao mediata; cf. S. Agos-


tinho, In Heptateuchum, II c. LXXX.

Em resposta, deve-se observar que a traducao grega citada nao corres


ponde ao texto original hebraico, nem ás versoes latina (da Vulgata), sarfiari-
tana, siria, árabe. Eis o mais verossímil teor do texto segundo o original he
braico:

"Se homens brigarem e ferirem mulher grávida, e forem causa de abor


to sem maior daño, o culpado será obrigado a indenizar o que /he exigir o
marido da mulher, e pagará o que os arbitros determinarem. Mas, se houver
daño grave, entio dará vida por vida".

Esta lei quer dizer o seguinte: se o delínqueme provocar expulsao do


feto, mas sem morte nem da mae nem da crianca, a punicao será uma multa.
Se, porém, houver morte ou da mae ou da crianca, o réu será condenado á
morte. Como se vé, nato há ai distincSo entre feto formado e feto ná"o for
mado.

O próprio texto dos LXX, ao falar de "feto formado" e "feto n3o for
mado", nSo tem necessariamente em vista os períodos de pré-animapao e de
animacao; pode apenas referír-se á fase em que o embríáo ainda é quase indi-
ferenciado e áquela em que já pode ser identificado como ser humano.

Como quer que seja, só pode ser utilizado, no caso, o texto hebraico
como instrumento de argumentagao, e nao o texto grego.

3.2. Oidizeres de Lv 12,2-5

A Lei de Moisés prescreve quarenta dias de purificacáo ás mulheres


que tenham dado á luz um menino, e oitenta dias no caso de terem gerado
uma menina. — Ora esta lei nada tem que ver com períodos de formacao
do feto no seio materno; mas foi por numerosos autores antigos considerada
como símbolo de fases de animacSo. Esta consideracáo, porém, nada prova,
pois um símbolo nSo é demonstrado nem prova.

3.3. As palavras de Jó 10,9-12

Eis os dizeresde Jó:

"Lembra-te de que me fizeste da barro, e agora me farás voltar ao pó?


NSo me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? De pele e carne
me revestiste, de ossos e de ñervos me teceste. Oeste a vida e o amor, e tua
solicitude me guardou".

237
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

Neste texto o autor sagrado menciona primeramente a formacáo do


corpo (pele, carne, ossos, ñervos) e, depois, a entrega da vida como dom da
misericordia divina. Por conseguinte, a alma humana teria orígem posterior
ao corpo. Esta conclusao parece corroborada pelo paralelismo que o texto
tece entre a formacáo do corpo de Jó e a do corpo de Adáo, ambas partindo
do barro, que só depois de plasmado recebeu a aima humana.

Em resposta, notamos que o autor sagrado quer apenas referir a ordem


que vai do menos importante (corpo) ao mais importante (principio vital);
nao há ai sucessao cronológica de fases de formacaó do ser humano. De res
to, sabemos que o autor sagrado nao tencionava oferecer urna descrigao
científica dos fenómenos que ocorrem na origem de urna criatura, de modo
que é despropositado querer deduzir de tais dizeres urna sentenca de Genéti
ca ou de Embriología. Adao e Jó sao comparados entre si nao sob o aspecto
geneticista ou biológico, mas, sim, na medida em que ambos sao objeto da
Providencia Divina.

Passemos agora a urna

4. Conclusao

Como se deduz das declaracoes dos Concilios e dos Papas atrás cita
dos, a Igreja sempre foi contraria á ocisao de urna enanca no seio materno.
Acontece, porém, que, nlo sabendo quando o feto se torna crianca (ser hu
mano) propriamente dita, os doutores antigos distinguiam a eliminagio do
feto antes do 409 ou 80? dia e o aborto propriamente dito. Nfo chegaram a
legitimar ou aprovar aquela, mas julgaram que nao podia ser considerada
com tanto rigor como o aborto propriamente dito; veja-se a ¡ntervencao de
Gregorio XIV em 1591 (p. 233 deste fascículo). Na verdade, a extracao de
um elemento nao humano nao pode ser tida como aborto.

Os antigos estavam, pois, condicionados pelo seu insuficiente conheci-


mento de Genética, mas por certo nao toleravam o morticinio de urna crian
ca, por mais incómoda que parecesse aos pais. Hoje em dia tal condiciona-
mento desapareceu, de modo que se pode com mais nitidez e firmeza repu
diar o aborto desde a concepcao no seio materno, qualquer que seja a fase
de evolucao do feto.

A propósito ver:

BEUGNET, A., Avortement, em Dictionnaire de Théologie Catholi-


que 11/2, cois. 2644-2652.

CHOLLET, A., Animation, em Dictionnaire de Théologie Catholique


1/2. cois. 1306-1320.

238
IGREJA FAVORÁVEL AO ABORTO? 47

CONFERENCIAS EPISCOPAIS, A Igreja e o Aborto. Ed. Paulinas


1972.

HÁfíING, B.. Etica Médica, Roma 1973;


Medicina e Manipulapao. Ed. Paulinas 1977.

VARGA ANDREW, Problemas de Bioética. Untónos, Sao Leopoldo


1982.

VIDAL, MARCIANO, Ética de Atitudes, vol. 2°. Ed. Santuario Apa


recida 1979.
***

Comunicagáo
O MERCADO DE DROGAS
A pedido, publicamos a seguinte advertencia emanada da Policía nor
te-americana, que chama a atencao para um problema existente nao s6 nos Es
tados Unidos, mas também na Argentina e quicá também no Brasil.

AOS PAÍS
O Departamento de Policía nos informou que há um novo perigoem
nossas comunidades.

É urna tatuagem chamada "ESTRELA AZUL", vendida em todos os


Estados Unidos.

Consiste em uma pequeña folha de papel que contém "ESTRELAS


AZUIS" do tamanho de uma borracha de apagar. Cada estrela está impreg
nada de LSD (ácido lisérgico).

Cada estrela pode ser removida e levada á boca. O LSD pode também
ser absorvido através da pele, simplesmente ao manipular o papel, que apre-
senta cores brilhantes, semelhantes aos solos do correio, e trazem impressas
as figuras do Superman, borboletas, palnacos, o rato Mickey e outros perso-
nagens de Walt Disney, tá"o atraentes para todas as enancas. Estas estampas
vfim em caixas vermelhas de papelao, envolvidas em película. Esta é uma
nova forma de vender ácido e criar severos problemas por estar dirigida ás
nossas pequeñas enancas.

Uma enanca pode deparar-se com isto e fazer uma "viagem" fatal. Sa-
be-se, inclusive, que uma enanca pequeña pode receber estes selos das maos
de enancas maiores, que se queiram divertir com eles, ou por meio de adul
tos, que os repartem gratuitamente para conquistar novos clientes de drogas.

239
48 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

Urna estampa vermelha chamada "Pirámide Vermelha" está sendo dis


tribuida junto com "Micropontos", que tém varias cores; outra forma é o
"Vidro deJanela", que tem um pontilhado, o qual pode ser recortado.

Tudo isto está ligado a drogas! Por favor, avise seus filhos sobre esta
nova forma de distribuicSo de drogas. Se seus filhos virem algo parecido ao
que foi aqui mencionado, NAO O DEVEM TOCAR. Sabe-se que estas dro
gas provocam reacio rápida e algumas estáo contaminadas com estriquinina,
que é um alcaloide muito venenoso. Os síntomas sao:

- Alucinares - Mudanca de caráter


- Vómitos intensos - Mudancas de temperatura do corpo

LEVE A CRIANCA MEDIATAMENTE AO MÉDICO E CHAME A


POLICÍA.

DISTRIBUA ESTA MENSAGEM E COMPARTÍLHE-A COM PAÍS


DE CRIANCAS E AUTORIDADES ESCOLARES.

Este alerta foi emitido pelo Condado de Gloucester - New Jersey,


atencáfo de Beverly Ockney, Jackson Laboratorios, voluntarios do Comité
H.O.K.

Na Argentina já se iniciou a fabricapá'o e distribuicáo de tais produtos


através de bancas de jornais e particulares. A Policía Federal está a par e se
sabe de urna prisao na zona de Palermo, Capital Federal. Esta traducao foi
feita por DUCILO; outras empresas internacionais colaboraram na sua distri
buidlo, mas certamente ainda ná"o chegou a todos os pais nem a todos os
Colegios.

QUEM RECEBER ISTO, COPIE-0 E DISTRIBUA-0 O MAIS


AMPLAMENTE POSSlVEL.
* **

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A fim de facilitar aos cristábs o testemunho mais convicto da sua fé,


todos tém á sua disposicdb seis Cursos por Correspondencia:
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Teología Moral; 4) Curso de Historia da lgreja;5) Curso de Liturgia e Esplri-
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lingüe. José Oroz Reta u Manuel C. Diaz. 1982, 1450 p . NCz$115,00
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los Papas de Pedro a Joao Paulo II. 1986, 272 p NCzS 50,00
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especial y Los Sacramentos. Antonio Royo Marín. 1986,
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Gallarate. Ediciones Rioduero. 1986, 1445 p NCz$215,00

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ra, poderao contudo admirar a beleza arquitetónica desse monumento co
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mesmo que fotografou Ouro Preto e Salvador (BA) - Texto portugués-
inglés por D. Marcos Barbosa.

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