Luciano Amaral
Julho de 2005
Numa discussão mantida com Manuel de Lucena a propósito do PREC, tentei demonstrar a
ambiguidade democrática do Partido Socialista português na década de 70 relembrando o seu
programa de então, onde se previa (ao estilo comunista) a nacionalização integral da economia.
Aí, Manuel de Lucena acusou-me de resvalar para uma “espécie de marxismo de direita”, que
atribuiria ao “demo-liberalismo político uma base económica que ele não tem forçosamente de
ter”. Isto permitiu-lhe ainda elaborar um pouco sobre uma distinção clássica na ciência política,
aquela que separa a democracia do liberalismo: “tendo a democracia e o liberalismo começado
por se hostilizarem (...), estamos hoje para aqui a invocar uma tradição demo-liberal como se o
casamento celebrado pelo hífen fosse coisa óbvia”.
De facto, o casamento não é óbvio, mas existe. Antes de lá chegar, porém, gostaria de devolver
a Manuel de Lucena a acusação de “marxismo”, não de “direita” nem textual, mas para dizer
que o seu raciocínio me parece padecer de um certo vício marxista. O qual consiste em
separar a economia da política, o que no marxismo foi baptizado com as expressões
“infra-estrutura” e “super-estrutura”. Se a separação tem alguma utilidade académica, já em
termos doutrinários parece-me não existir nem dever existir. Dito de forma simples: a “liberdade”
(independentemente da forma como a definir, o que dava para aí mais uns dez artigos) ou
compreende o conjunto das actividades humanas (economia, política e o resto) ou não existe.
Assim como restrições sérias à liberdade política permitem definir uma ordem política como
não-livre, o mesmo o permitem restrições sérias à liberdade económica, até porque
(comprovando a interligação de todas as esferas de actividade humana) estas restrições
económicas conduzem inevitavelmente a restrições de tipo político. Não foi por acaso que John
Locke definiu a “propriedade” como o conceito essencial para a existência de liberdade. Só que,
em Locke, a “propriedade” não era apenas a posse de bens, mas um conjunto de direitos,
incluindo o direito a essa posse mas também uma série de outros direitos a que chamaríamos
“cívicos” e “políticos”. Para Locke, a “propriedade” era a esfera individual (material e imaterial)
que protegia os indivíduos da interferência estatal.
A democracia não tem que coincidir com isto. Um regime democrático pode violar aquela esfera
de liberdade e permanecer democrático. Schumpeter, numa famosa elaboração sobre o
problema, chegou mesmo a explicar que o socialismo integral (do tipo existente nos regimes
comunistas do século XX) podia coexistir com a democracia como a entendemos hoje: a
propriedade poderia ser inteiramente pública e, mesmo assim, sobreviver a capacidade dos
cidadãos para, de quatro em quatro anos, substituir o governo. Para tanto bastaria a existência
de equipas de pessoal diferentes, dispostas a competir, dentro de um contexto de propriedade
inteiramente estatal, em cada ciclo eleitoral pela conquista do poder. Mas é aqui que chegamos
ao tal hífen juntando as palavras demo e liberal. Será que um regime deste tipo poderia ainda
ser considerado livre? Não creio, e se a democracia ocidental fosse isto, eu não estaria pronto
a defendê-la.
Para a existência do tal regime demo-liberal que quero celebrar e defender é essencial a
separação entre Estado e Sociedade Civil, e para esta distinção são essenciais a propriedade
privada e um mercado onde interagem agentes privados, separados do Estado. Um Estado
absorvendo o conjunto da actividade económica seria um Estado totalitário, mesmo se
democrático. Que liberdade restaria quando todas as escolhas de produção e distribuição
estivessem politizadas e, consequentemente, dependentes de decisões administrativas? Esse
seria um regime tirânico, onde a substituição do governo resultaria apenas de uma escolha
sobre a equipa mais “eficiente” na gestão sem limites do conjunto da vida.