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ARTIGO ORIGINAL / RESEARCH REPORT / ARTÍCULO

Bioética: das origens à prospecção


de alguns desafios contemporâneos *

Bioethics: from the origins to the prospection of some contemporary challenges


Bioética: de los orígenes a la prospección de algunos desafíos contemporáneos
Leo Pessini**

RESUMO: Este artigo divide-se em três seções. Na primeira seção analisa-se o pioneirismo de Van Rensselaer Potter, apresentando a
pessoa, seu legado intelectual, sua concepção de ciência e religião juntas com o objetivo de garantir o futuro da vida no planeta terra e
seu credo bioético, além de uma apreciação crítica de sua obra a partir de dois de seus discípulos, Gerald M. Lower e Peter J. Whitehouse.
Na segunda seção apresentamos a Encyclopedia of Bioethics, com alguns comentários que sinalizam a evolução da obra que espelha o
desenvolvimento do campo da bioética, nas três edições que foram publicadas até o presente momento (1978, 1995 e 2004). A partir da
3ª edição, prospectamos, juntamente com seu editor-chefe, Stephen Post, alguns desafios da contemporaneidade e nos perguntamos
sobre o futuro da bioética. Finalmente, na terceira seção acompanhamos os últimos desdobramentos da bioética em nível mundial a
partir do VII Congresso mundial de Bioética, realizado em Sidney, Austrália, entre 10 e 14 de novembro de 2004, o qual abordou o tema
“Ouvir profundamente: construir pontes entre ética local e global”. Na conclusão chamamos ressaltamos que os desafios do presente em
relação ao meio ambiente e à ecologia estão no centro do entendimento potteriano da bioética.
DESCRITORES: Bioética–história, Bioética-tendências, Ética
ABSTRACT: This article is divided in three sections. In the first one we present the pioneering work of Van Renseelaer Potter, the man
who coined the name “bioethics” in 1970, and his concept of bioethics. We are introduced to some important aspects of his personal
history and outstanding academic work. One special issue is the discussion of the relation between science and religion in the quest for
the global survival both of humankind and biosphere. Potter´s bioethical creed for individuals is presented as well as a critical appraisal
made by two of Potter´s followers, Gerald M. Lower e Peter W. Whitehouse. In the 2nd part the reader is introduced to the most
authoritative academic work for the field of bioethics — The Encyclopedia of Bioethics. Some discussions are made regarding each of the
three editions published so far (1978, 1995 and 2004), showing how the field evolved since the first edition of 1978. A special look is
given to the 3rd edition, with its Editor-in Chief, Stephen Post, focusing on the challenges for bioethics in the contemporary world.
Finally, in the third session, we present some commentaries from the VII World Congress of Bioethics, held in Sidney (Australia, November
10-14, 2004), that dealt with the theme: “Deep Listening: Bridging the Divides between Local and Global Ethics”. We conclude pointing
out that today’s challenges concerning the environment and ecology are at the heart of the Potterian understanding of bioethics.
KEYWORDS: Bioethics–history, Bioethics-trends, Ethics
RESUMEN: Este trabajo se divide en tres secciones. En la primera sección se analiza el pionerismo de Van Rensselaer Potter, cono-
ciendo su persona, su herencia intelectual, su concepto de ciencia y de religión juntas y dirigidas a garantizar el futuro de la vida en
el planeta Tierra, su credo bioético, bien así un aprecio crítico de su obra a partir de dos de sus discípulos, Gerald M. Lower y Peter J.
Whitehouse. En la segunda sección presentamos la Enciclopedia de Bioética [Encyclopedia of Bioethics], con algunos comentarios
que señalan la evolución de la obra que espeja el desarrollo del campo de la bioética, en las tres ediciones que han sido publicadas
hasta el actual momento (1978, 1995 y 2004). De la 3ª edicion, nosotros prospectamos, junto con su editor-jefe, Stephen Post,
algunos desafíos de la contemporaneidad y nos interrogamos acerca del futuro de la bioética. Finalmente, en la tercera sección,
vemos los más recientes despliegues de la bioética en el nivel mundial a partir del VII Congreso Mundial de Bioética, ocurrido en
Sydney (Australia), del 10 al 14 de noviembre de 2004, que acercó al tema “Oír profundamente: construir los puentes entre la ética
local y global”. En la conclusión, llamamos la atención para el hecho de que los desafíos presentes, vinculados al medio ambiente y a
la ecología, están en el cerne del concepto potteriano de bioética.
PALABRAS LLAVE: Bioética-história, Tendencias de Bioética, Ética

*
Trabalho apresentado no XXVII Congresso de Teologia Moral da Sociedade Brasileira de Teologia Moral realizado em São Paulo,
de 7 a 10 de dezembro de 2004, no Instituto Teológico XI sob o tema central: Biotecnologias: desafios à Teologia Moral.
* Teólogo. Doutor em Teologia Moral — Bioética. Superintendente da União Social Camiliana.
Vice-reitor do Centro Universitário São Camilo. Membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética.

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Introdução guns apontamentos em relação ao é somente autor do neologismo


VII Congresso Mundial de Bioética, “bioethics” seria não fazer justiça
A bioética, sem sombra de dúvi- que teve lugar em Sydney, Austrá- com a estatura de sua pessoa como
da, constitui-se numa espetacular lia, de 10 a 14 de novembro de 2004, pesquisador e pioneiro da bioética,
história de sucesso considerando-se e do qual participamos. já que acabou sendo marginalizado
o pouco tempo de sua existência. pelos seus compatriotas.
Estamos distantes apenas 35 anos Poucos dias antes de sua parti-
O pioneirismo de
do surgimento do neologismo da, Potter deixou uma mensagem
bioethics, intuição de Van R. Potter,
Van Rensselaer Potter
final endereçada aos amigos da sua
e a pouco mais de duas décadas da CONHECENDO A PESSOA “rede de bioética global”. Nessa men-
fundação dos primeiros institutos de sagem ele demonstra ressentimento
No dia 6 de setembro de 2001,
bioética nos EUA — o de Kennedy pelo não reconhecimento de seu
em Madison, pequena cidade do
em Washington e o de Hastings, em trabalho em bioética em seu pró-
Estado de Wisconsin, no meio-oeste
Nova York. prio país.
dos Estados Unidos falecia o dr. Van
Após o estabelecimento de inú- Por um longo período de tempo
Rensselaer Potter. Nascido no Esta-
meros institutos e programas em (1980 a 1990), ninguém reco-
do de Dakota do Sul, em 27 de agos-
universidades em todo o mundo, nheceu meu nome e quis ser
to de 1911, morreu pouco depois de
entramos na fase de implantação parte de uma missão. Nos EUA
completar 90 anos. Seu avô, do qual
dos primeiros programas de mes- houve uma explosão imediata
herdou o nome, vindo a se chamar
trado e doutorado na área. Pros- do uso da palavra bioethics pelos
Van Rensselaer Potter II, morreu de
pecção de futuro em contato com médicos, que falharam ao não
câncer aos 51 anos, um ano antes
as origens é o desafio enfrentado mencionar meu nome ou o títu-
de seu nascimento. Sua mãe mor-
neste texto, que dividimos em três lo das minhas quatro publicações
reu num acidente de carro, quando
partes fundamentais. [no período de] 1970 a 1971. In-
tinha 7 anos, o que, desde então,
Na primeira, exploramos o pio- felizmente, a sua imagem de
reforçou sua ligação com o pai. Ao
neirismo de Van Rensselaer Potter, bioética atrasou o surgimento
morrer, Potter deixou esposa, três
conhecendo um pouco a pessoa, do que existe hoje (Dear Global
filhos, seis netos e duas irmãs.
seu legado intelectual, o credo bioé- Bioethics Network, 2004).
Recebemos um comunicado de
tico potteriano, bem como uma
sua neta Lisa Potter, que trabalhou A biografia de Potter é particu-
apreciação crítica de dois de seus
muito próxima a seu avó de 1994 larmente relevante para a história
discípulos, Gerald Lower e Peter J.
a 1997, auxiliando-o nas publica- de uma idéia, o conceito de auto-
Whitehouse.
ções de bioética e em conferências. nomia, que desempenha até hoje
Num segundo momento dis-
O seu comunicado, textualmente, um papel predominante na ética
corremos sobre a Encyclopedia of
informava: biomédica norte-americana. Antes
Bioethics (Enciclopédia de Bioética),
Lamentamos informar que Van de enfocar direitos individuais, ele
obra fundamental e referencial da
faleceu ontem (6/09) às 5h20 enfatiza responsabilidades pes-
bioética nascente e contemporânea,
da tarde. Ele estava confortável soais. Potter, inclusive, não só ela-
comentando sua concepção e sua
e a família mantinha-se presen- borou, mas viveu seu credo de ati-
evolução ao longo do tempo nas
te ao lado do leito. Eu segurava vista, que enfatiza responsabilidade
três edições que surgiram (1978,
sua mão quando exalou o últi- social e ambiental. Na condição de
1995 e 2004). Aqui traçamos a ca-
mo suspiro. Sei que ele sentiu o bioeticista virtuoso que era, não
minhada com o idealizador e editor-
apoio e amor da família. Ele
chefe das duas primeiras edições, apenas viveu sua visão de bioética,
morreu logo após seu 90º ani-
Warren Thomas Reich, da George- como também convocou outros a
versário e teve a chance de ver
town University, D. C. Uma atenção fazê-lo, alertando que para alguém
muitos membros da família.
especial merece a última edição da merecer ser chamado de bioeticista
Sentiremos muito sua falta.
Enciclopédia, lançada em 2004, da deveria seguir tal credo, que apre-
qual prospectamos, com seu editor- Foi ele quem cunhou o neolo- sentaremos na íntegra ao longo des-
chefe, Stephen Post, algumas das gismo bioethics em 1970. Chamá-lo te texto, após análise de seu legado
questões candentes da bioética na de “pai da bioética”, como muitos intelectual. Destaca-se portanto
contemporaneidade. o fazem, seria exagerado segundo uma forte ênfase na ética das virtu-
Num terceiro e último momen- alguns estudiosos na área da histó- des na bioética potteriana, que adqui-
to, apresentamos objetivamente al- ria da bioética, embora dizer que ele re quase um tom de pregação.

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Potter era considerado um dis- ganizações científicas de grande pres- que, inspirando-se nele, torna-
tinto membro da “Unitarian Society tígio nos EUA. ram-se proeminentes em vários
of Madison” [Sociedade Unitariana Após sua aposentadoria da Uni- campos da ciência, sendo que
de Madison], uma organização de versidade, praticamente passou a um deles foi agraciado com o
inspiração cristã que segue o espírito residir em sua casa de campo, em Prêmio Nobel. [....] Para Van, a
de Jesus de Nazaré e que defende a meio a um bosque nas cercanias de ciência não era um “trabalho”,
perspectiva de uma religião liberal. Madison, onde, na varanda feita de mas uma experiência ética, apai-
Dentre outros objetivos dessa orga- madeira rústica, recebia amigos, es- xonada e criativa. Além do mais,
nização destaca-se, como sendo o tudantes, e sentia-se em comunhão ele não separava o cientista do
primeiro, “a integridade de vida”, com a natureza. Nos últimos anos processo científico ou o cientista
que significa totalidade (wholeness). de vida dedicou-se ao cuidado de sua do contexto social do empreen-
Para pessoas de genuína integrida- esposa, Vivian, tragicamente defi- dimento científico. Essa filosofia,
de, todos os objetivos e questões de ciente por causa de artrite. Por op- motivada pelo seu conceito de
vida estão inter-relacionados. Os ção, deixa de viajar e dar conferên- “humildade com responsabili-
unitarianos constituem-se numa cias pelo mundo afora para perma- dade”, o conduziu à fase final de
confraria de livre pensamento, na necer junto de sua companheira. sua produtiva carreira” (Memo-
qual são aceitos como membros A última viagem de Potter ao ex- rial Resolution of the Faculty
“pessoas de todas as opiniões teológicas, terior foi à Itália, em 1990, a convi- of the University of Wisconsin).
que desejam se unir a nós na promoção te do prof. de Antropologia da Uni-
versidade de Florença, Bruneto Chia- Esta fase final é justamente a fa-
da verdade, justiça, reverência e caridade
relli, para falar sobre Bioética Glo- se da bioética em seus últimos trinta
entre os homens”. Trata-se de uma as-
bal. Então com 79 anos, e não mais anos de existência.
sociação aberta, em que o ateu ho- A pessoa de Potter é lembrada
nesto pode se declarar como tal, viajando devido à idade, mas rece-
bendo inúmeros convites para par- pelo seus colegas de docência na
sem nenhum medo, bem como o Universidade de Wisconsin como
crente piedoso falar de sua ligação ticipar de eventos de bioética, pas-
sa a produzir e enviar vídeos de suas “um ser humano iluminado, preo-
pessoal com o universo e com Deus cupado com o cuidado humano de
palestras. Temos assim três vídeos:
sem embaraço. tudo, para que todos pudessem vi-
1) 1998: sobre Bioética Global, por
Textualmente, lemos: “a única exi- ver, não numa utopia, mas em um
ocasião do IV Congresso mundial de
gência que fazemos e que esperamos é que mundo esteticamente belo e susten-
Bioética (Tóquio), a convite do prof.
sejamos honestos conosco mesmos e com tável, uma vida satisfatória e feliz”
Hyakuday Sakamoto; 2) 1999: um
os outros” (www.harvardsquarelibray. (idem, 2002).
vídeo para o Congresso Mexicano
org/unitarians/madison.html).
de Bioética, a convite do prof. Ma-
Embora não tenha lido nenhum co- nuel Velasco Suares, que faleceu
O LEGADO INTELECTUAL
mentário em que se faça esta ligação pouco tempo depois; e 3) 2000: um Potter, que chamou a bioética de
com a organização dos unitarianos, vídeo para o Congresso Internacio- “ciência da sobrevivência humana”
percebe-se uma profunda ligação do nal de Bioética organizado pela So- (Potter, 1971), traçou uma agen-
credo bioético potteriano e a filoso- ciedade Internacional de Bioética da de trabalho para a mesma que
fia da referida organização. (Gijón, Espanha), a convite do prof. vai desde a intuição da criação do
Potter trabalhou por mais de Marcelo Palácios. neologismo, em 1970, até a possi-
cinqüenta anos na Universidade de Uma resolução elaborada pelo bilidade de encarar a bioética como
Wisconsin, em Madison, nos Labo- corpo docente da Universidade de uma disciplina sistêmica ou profun-
ratórios MacArdle para a pesquisa Wisconsin em memória de Van Rens- da, em 1988. Alguns lances mais im-
de Câncer, aposentando-se em selaer Potter, além de destacar a im- portantes deste itinerário são inte-
1982. Doutorou-se em bioquímica. portância de sua vida profissional co- ressantes de recordar, iniciando pela
Pela sua contribuição original sobre mo pesquisador e professor de on- pergunta de como surgiu o neolo-
a compreensão do metabolismo das cologia no Laborátório McArdle de gismo bioética.
células cancerígenas, foi reconheci- Pesquisa de Câncer por mais de cin- Nos anos 1970 a 1971, Potter
do por sua eleição para a Academia qüenta anos, enfatiza que cunha o neologismo “bioethics”, uti-
Nacional de Ciências. Foi Presidente sua maior contribuição para a co- lizando-o em dois escritos. Primeira-
da Sociedade Americana de pesqui- munidade científica são os mais mente, num artigo intitulado “Bio-
sa sobre o Câncer em 1974, além de de 90 pós-doutorados que orien- ethics, science of survival” (Potter,
ter servido em inúmeras outras or- tou, e estudantes de graduação 1970), e no livro Bioethics bridge to

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

the future. Esta publicação é dedica- Potter pensa a bioética como dinâmica e interação entre o ser hu-
da a Aldo Leopold, um renomado uma ponte entre a ciência biológica mano e o meio ambiente. Ele perse-
professor na Universidade de Wis- e a ética. Sua intuição consistiu em gue a intuição de Aldo Leopold, e,
consin que pioneiramente começou pensar que a sobrevivência de gran- neste sentido, antecipa-se ao que
a discutir uma “Ética da terra”. O de parte da espécie humana, numa hoje se tornou uma preocupação
neologismo apareceu na mídia em civilização decente e sustentável, mundial que é a ecologia.
19 de abril de 1971, quando a revista dependia do desenvolvimento e É importante registrar que exis-
Time publicou um longo artigo com manutenção de um sistema ético. te um outro pesquisador que reivin-
o seguinte título “Man into superman: Em 1998 ao olhar este primeiro dica a paternidade do termo bioéti-
the promisse and peril of the new momento de sua reflexão afirma: ca. É o obstetra holandês André
genetics”, em que o livro de Potter O que me interessava naquele Hellegers, da Universidade de Geor-
foi citado. momento, quando tinha 51 getown, em Washington, D. C., que
Na contracapa do seu Bioethics: anos, era o questionamento do seis meses após a aparição do livro
bridge to the future, lemos: progresso e para onde estavam pioneiro de Potter, Bioethics: bridge to
Ar e água poluída, explosão po- levando a cultura ocidental to- the future, utiliza esta expressão no
pulacional, ecologia, conserva- dos os avanços materialistas nome de um novo centro de estu-
ção — muitas vozes falam, mui- próprios da ciência e da tecnolo- dos: Joseph and Rose Kennedy Ins-
tas definições são dadas. Quem gia. Expressei minhas idéias do titute for the Study of Human Re-
está certo? As idéias se entrecru- que, segundo meu ponto de vis- production and Bioethics. Este cen-
zam e existem argumentos con- ta, se transformou na missão da tro é hoje conhecido simplesmente
flitivos que confundem as ques- bioética: uma tenîtiva de res- como Instituto Kennedy de Bioéti-
tões e atrasam a ação. Qual é a ponder à pergunta frente à hu- ca. Hellegers animou um grupo de
resposta? O homem realmente manidade: que tipo de futuro te- discussão de médicos e teólogos
está colocando em risco o seu remos? E temos alguma opção? (protestantes e católicos) que viam
meio ambiente? Não seria ne- Por conseguinte, a bioética trans- com preocupação crítica o progresso
cessário aprimorar as condições formou-se numa visão que exi- médico tecnológico que apresenta-
que ele criou? A ameaça de so- gia uma disciplina que guiasse a va enormes e intricados desafios aos
brevivência é real ou se trata de humanidade como uma ‘ponte sistemas éticos do mundo ocidental.
pura propaganda de alguns teó- para o futuro’. (Congresso Mun- Para Warren Thomas Reich, histo-
ricos histéricos? dial de Bioética 4, 1998) riador da bioética e organizador das
[...] duas primeiras edições da Encyclo-
Esta nova ciência, bioethics, com- Na introdução de seu livro Bio- pedia of Bioethics (1978 e 1995), “o
bina o trabalho dos humanistas ethics: Bridge to the Future, afirma: legado de Hellegers” está no fato de
e cientistas, cujos objetivos são sa- Se existem duas culturas que pa- que ele entendeu sua missão em re-
bedoria e conhecimento. A sabe- recem incapazes de dialogar — lação à bioética como “uma pessoa
doria é definida como o conheci- as ciências e humanidades —, e ponte entre a medicina, a filosofia
mento de como usar o conhe- se isto se apresenta como uma e a ética”. Foi esse legado que aca-
cimento para o bem social. A razão pela qual o futuro se apre- bou por ganhar hegemonia e tor-
busca de sabedoria tem uma no- senta duvidoso, então, possivel- nar-se um “estudo revitalizador da
va orientação porque a sobrevi- mente, poderíamos construir ética médica” (Reich, 2003).
vência do homem está em jogo. uma ponte para o futuro cons- Portanto, no momento de seu
Os valores éticos devem ser testa- truindo a bioética como uma nascimento, a bioética tem uma du-
dos em termos de futuro e não ponte entre as duas culturas. pla paternidade e um duplo enfo-
podem ser divorciados dos fatos (Potter, 1971) que. Temos duas perspectivas bem
biológicos. Ações que diminuem distintas, de um lado problemas de
as chances de sobrevivência hu- No termo bioética (do grego macrobioética, com inspiração na
mana são imorais e devem ser “bios”, vida, e “ethos”, ética) “bio” perspectiva de Potter, de outro, pro-
julgadas em termos do conhe- representa o conhecimento bioló- blemas de microbioética ou bioética
cimento disponível e no moni- gico, a ciência dos sistemas vivos e clínica, com clara inspiração no le-
toramento de “parâmetros de “ética” representa o conhecimento gado de Hellegers. Potter não dei-
sobrevivência que são escolhidos dos valores humanos. Potter alme- xou de expressar sua decepção em
pelos cientistas e humanistas” java criar uma nova disciplina em relação ao curso que a bioética se-
(Potter, 1971). que acontecesse uma verdadeira guiu. Reconheceu a importância da

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

perspectiva de Georgetown, afir- qual todas as nações e povos das e a religião em relação à sobrevi-
mando porém que “minha própria mais diferentes tradições culturais vência humana e da biosfera.
visão da bioética exige uma visão e crenças devem se responsabilizar. Durante séculos, a questão dos
muito mais ampla”. Pretendia que Ressalta que o coração da ética glo- valores humanos foi considera-
a bioética fosse uma combinação bal de Küng está no humano, o que da como estando para além do
de conhecimento científico e filo- é louvável. Embora sua ética global campo científico, e como de pro-
sófico (o que mais tarde chamou não seja bioética, seus preceitos bá- priedade exclusiva dos teólogos
de Global bioethics), e que não fosse sicos parecem aceitáveis por todos, e filósofos seculares. Hoje, deve-
simplesmente um ramo da ética perspectiva que não é suficiente, pois mos sublinhar que os cientistas
aplicada, como foi entendida em é preciso explicitar o respeito pela não somente têm valores trans-
relação à medicina. natureza e diferentes culturas, para cendentes, mas que também os
No ano de 1988, Potter amplia a além das culturas judaica e cristã. valores que estão embutidos no
bioética em relação a outras discipli- Em 1998, Potter expõe a idéia ethos científico necessitam ser
nas, não somente como ponte entre da bioética profunda, retomando o integrados com aqueles da reli-
a biologia e a ética, mas com a di- pensamento do prof. Peter White- gião e filosofia para facilitar pro-
mensão de uma ética global. Diz ele: house, da Universidade de Cleve- cessos políticos benéficos para a
A teoria original da bioética era land (Ohio). Whitehouse assumiu saúde global do meio ambiente.
a intuição da sobrevivência da a idéia dos avanços da biologia evo- (Potter, 1994)
espécie humana, numa forma lutiva, em especial o pensamento Na busca de companheiros para
decente e sustentável de civiliza- sistêmico e complexo que compor- esta causa, Potter registra que mui-
ção, exigindo o desenvolvimen- ta os sistemas biológicos. A bioéti- tos livros e artigos abordaram os
to e manutenção de um sistema ca profunda pretende entender o problemas do meio ambiente e saú-
de ética. Tal sistema (a imple- planeta como grandes sistemas bio- de humana, mas relativamente
mentação da bioética ponte) é lógicos entrelaçados e interdepen- poucos enfocaram a questão da so-
a bioética global, fundamenta- dentes, em que o centro já não cor- brevivência da espécie humana no
da em intuições e reflexões fun- responde ao homem como em épo- futuro. Entre os autores citados te-
damentadas no conhecimento cas anteriores, mas em que o ho- mos: Hans Jonas, com seu The impe-
empírico proveniente de todas mem é somente um pequeno elo rative of responsibility: In search of an
as ciências, em especial, porém, da grande rede da vida, parafra- ethic for the technological age (Univer-
do conhecimento biológico. [...] seando Fritjof Capra. sity of Chicago Press, 1993); o soció-
Na atualidade, este sistema éti-
logo Manfred Stanley, com The tech-
co proposto segue sendo o nú- CIÊNCIA E RELIGIÃO JUNTAS FRENTE
nological conscience: Survival and
cleo da bioética, ponte com sua AO DESAFIO ÉTICO DE GARANTIR O
dignity in an age of expertise (Univer-
extensão para a bioética global, FUTURO DA VIDA NA TERRA
sity of Chicago Press, 1981); e Hans
o que exigiu o encontro da éti-
Num artigo publicado na Revis- Küng, conhecido teólogo católico,
ca médica com a ética do meio
ta The Scientist com o sugestivo título autor de inúmeras obras teológicas,
ambiente numa escala mundial
“Science, religion must share quest e que foi o mentor e redator da fa-
para preservar a sobrevivência
for global survival” [A ciência e a re- mosa “Declaração para uma Ética
humana. (Potter, 1998)
ligião devem partilhar da mesma Global”, documento final do Parla-
Em sua apresentação de vídeo busca em relação à sobrevivência mento Mundial das Religiões, que
para o IV Congresso Mundial de global], Potter (1994) afirma que não se reuniu em Chicago em 1993
Bioética, Potter fala também de Hans podemos mais ficar confortáveis (Kung, Schmidt, 1998)1.
Küng, da Universidade alemã de com a idéia de que no futuro, se as É sobre este último que Potter
Tubinga, célebre teólogo católico, coisas piorarem, a ciência terá as vai tecer alguns comentários que
mundialmente conhecido, inclu- respostas. O momento para agir e nos interessam aqui, na perspectiva
sive no Brasil, com várias de suas provar nossa competência ética, de construção de uma ponte entre
obras traduzidas para o português. bem como técnica é hoje. a ciência e a religião. Potter tem
Lembra que Hans Küng chamou Uma questão central para os uma apreciação crítica em relação
atenção para uma Ética Global para nossos esforços deve ser a pro- à perspectiva da ética global de
a política e economia, em relação a moção do diálogo entre a ciência Küng. Afirma que no cerne da mo-

1. Ver a íntegra dessa declaração em português na obra: Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais da bioética. 7ª ed. São Paulo: Centro Universitário São
Camilo/Edições Loyola; 2004.

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

ral religiosa defendida por Küng concretização de uma ética mundial se se não se poderia construir um
não está incorporada a preocupação comum a todos os humanos. consenso e uma aceitação política
com o rápido crescimento popula- Os cientistas devem aplaudir os pelos governos. A busca por uma
cional. Destaca que as maiores reli- esforços de Hans Küng ao apon- ética mundial, partilhada tanto pela
giões mundiais, em particular o ca- tar para construção de uma alian- religião como pela ciência não po-
tolicismo e o islamismo, estão en- ça reconciliatória entre crentes deria ser expressa em princípios
tre as que mais contribuem para a e aqueles que não são funda- concretos para a ação? Fica a inquie-
“atual e assustadora taxa de cresci- mentalmente caracterizados co- tação angustiante dessa busca, sem
mento populacional”. mo religiosos, incluindo entre a certeza, porém, de se encontrar
Segundo Potter, somente a ciên- estes, penso, a maioria dos cien- uma resposta satisfatória no presen-
cia tem as técnicas para analisar tistas. Precisamos unir forças te momento histórico. Nesse diálo-
mudanças populacionais e seu im- frente à responsabilidade global go entre ciência e religião, sinteti-
pacto. Hans Küng, pelo menos ao da sobrevivência humana e seu zando as questões chaves dessa
formular uma Ética Global, apon- apelo pelo “respeito mútuo”; é questão, vale destacar o que Potter
algo necessário para uma ética diz a propósito da “Declaração das
tou que a sobrevivência humana é
mundial comum. (Potter, 1994) Religiões sobre uma Ética Global”.
uma questão chave, idéia esta que
Estamos conscientes de que as
nenhum outro teólogo até então se- Em vários de seus escritos Potter religiões não podem resolver
quer tinha mencionado. Embora manifesta uma profunda preocupa- os problemas econômicos, po-
outros líderes religiosos tenham ção com o rápido crescimento da líticos e sociais da terra. Contu-
proclamado que a vida é sagrada e população mundial, lembrando que do, elas podem prover o que
têm defendido os direitos humanos, os demógrafos projetam que para não podemos conseguir através
somente Küng colocou a sobrevi- meados do século XXI, a população dos planos econômicos, progra-
vência humana na agenda da refle- do mundo dobrará. A abordagem mas políticos e regulamentações
xão ética. Os cientistas, por sua vez, dessa questão revela o lado de um legais. As religiões podem causar
há muito tempo abraçaram no co- militante obcecado com a questão mudanças na orientação inte-
ração de seus esforços o desafio do populacional, que tem um viés um rior, na mentalidade, nos cora-
bem estar humano, e, implicita- tanto alarmista. Hoje, a questão de- ções das pessoas e levá-las para
mente a sobrevivência humana, es- mográfica tem uma série de novos uma “conversão” de um “falso
tando portanto credenciados para fatores cruciais preocupante, que caminho” para uma nova orien-
colaborar na causa pela sobrevivên- Potter sequer mencionou. Sua pre- tação de vida.
cia humana e da biosfera. gação de que o crescimento popula- As religiões são capazes de dar
Potter vai além, ao dizer que não cional deveria ser interrompido fica às pessoas um horizonte de sen-
somente os teólogos, mas também ironicamente visível na placa de seu tido para suas vidas, e um lar es-
os filósofos seculares falharam em velho carro, na inscrição das letras piritual. Certamente, as religiões
pensar sobre a sobrevivência huma- YES ZPG (Zero Population Growth), que
poderão agir com credibilidade
na e da biosfera como uma questão significa Sim, crescimento popu- somente quando eliminarem
ética. A reflexão ética ficou restrita lacional zero (Whitehouse, 2001). os conflitos que surgem entre
a relações interpessoais ou sociais No seu credo bioético, que apresen- elas mesmas e desmantelarem
entre os humanos, excluindo por- tamos na íntegra mais adiante nes- imagens hostis de preconceitos,
tanto questões de comportamento medos e desconfiança mútuas.
te trabalho, explicita que o compro-
relacionadas com crescimento po- (Potter, 1994)
misso em relação à saúde pessoal e
pulacional e problemas ecológicos. familiar, se expressa em “limitar os Enfim, ciência e religião têm,
Potter destaca da famosa Declara- poderes reprodutivos de acordo ambas, uma longa batalha histórica
ção sobre Ética Global os importan- com objetivos, nacionais e interna- de hegemonia pela verdade (Peters,
tes alertas de que não pode haver cionais”. Potter pensa que a gravi- Nennet, 2003). Quando hegemô-
sobrevivência sem uma ética mun- dade do problema da superpopu- nica, uma tenta negar a outra, mas
dial, que não existirá paz mundial lação não poderá ser resolvido en- precisam agora andar juntas, de
sem a paz entre as religiões, e de quanto as maiores religiões se opu- mãos dadas em função de um obje-
que uma aliança entre crentes e serem a qualquer tentativa de limi- tivo maior, uma causa que interessa
não-crentes (ateus, agnósticos e ou- tação da fertilidade. Claro que este a toda a humanidade: garantir o
tros), respeitando-se mutuamente, diálogo entre ciência e religião não futuro da vida (humana e cósmico-
pode ser também necessária para a é fácil, razão que o faz perguntar- ecológica) no planeta Terra.

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Um dos documentos mais reve- ria, e reconhecerei o papel do 7. Creio que cada pessoa adulta
ladores da personalidade de Potter, compromisso emocional em tem uma responsabilidade pes-
que fez da bioética sua causa de vida produzir uma ação efetiva. soal em relação a sua saúde, bem
— e conclama os seus seguidores a 4. Creio na inevitabilidade do so- como uma responsabilidade pa-
fazê-lo o mesmo, se quiserem ser frimento humano que resulta ra o desenvolvimento dessa di-
chamados de bioeticistas —, expres- da desordem natural das criatu- mensão da personalidade em
sa-se no chamado “credo bioético”. ras biológicas e do mundo físico, sua descendência.
mas não aceito passivamente o Compromisso: Esforçar-me-ei
O CREDO BIOÉTICO DE POTTER (1988)
sofrimento que é resultado do por colocar em prática as obri-
1. Creio na necessidade de uma tratamento desumano de pes- gações descritas como compro-
ação terapêutica imediata para soas ou grupos. misso bioético para a saúde pes-
melhorar este mundo afligido Compromisso: Enfrentarei meus soal e familiar. Limitarei meus
por uma grave crise ambiental próprios problemas com digni- poderes reprodutivos de acor-
e religiosa. dade e coragem. Assistirei os ou- do com objetivos, nacionais ou
Compromisso: Trabalharei com os tros na sua aflição e trabalharei internacionais.
outros para aperfeiçoar a formu- com o objetivo de eliminar todo
lação de minhas crenças, desen- sofrimento desnecessário na As palavras finais de Potter no
volver credos adicionais e pro- humanidade. vídeo apresentado no IV Congresso
curar um movimento mundial 5. Creio na finalidade da morte Mundial de Bioética constituem-se
que torne possível a sobrevivên- como uma parte necessária da numa agenda desafio futura para a
cia e o aprimoramento do de- vida. Afirmo minha veneração bioética. Resgatamos esta fala ao
senvolvimento da espécie hu- pela vida, creio na necessidade concluirmos a apresentação de sua
mana em harmonia com o meio de fraternidade agora, e tam- pessoa, obra e legado para a bioética:
ambiente natural e com toda a bém que tenho uma obrigação À medida que chego ao ocaso de
humanidade. para com as futuras gerações da minha experiência sinto que a
2. Creio que a sobrevivência futura espécie humana. bioética ponte, a bioética profun-
bem como o desenvolvimento Compromisso: Viverei de uma for- da e a bioética global, alcançaram
da humanidade, tanto cultural, ma tal que será benéfica para as o umbral de um novo dia que
quanto biologicamente, é forte- vidas de meus companheiros foi muito além daquilo que eu
mente condicionado pelas ações humanos de hoje e do futuro, e imaginei. Sem dúvida, necessi-
do presente e planos que afetam que [permitirá que] serei lem- tamos recordar a mensagem do
o meio ambiente. brado com carinho pelos meus ano de 1975, que enfatiza a hu-
Compromisso: Tentarei adaptar entes queridos. mildade com responsabilidade
um estilo de vida e influenciar 6. Creio que a sociedade entrará como uma bioética básica que
o estilo de vida dos outros, bem em colapso se o ecossistema for logicamente segue da aceitação
como ser promotor para um danificado irreparavelmente, a de que os fatos probabilísticos,
mundo melhor para as futuras não ser que se controle mun- ou em parte a sorte, têm conse-
gerações da espécie humana, e dialmente a fertilidade huma- qüências nos seres humanos e
tentarei evitar ações que colo- na, devido ao aumento conco- nos sistemas viventes. A humil-
quem em risco seu futuro, ao mitante na competência de seus dade é a conseqüência caracterís-
ignorar o papel do meio am- membros para compreender e tica que assume o “posso estar
biente natural na produção de manter a saúde humana. equivocado”, e exige a respon-
alimentação e fibras. Compromisso: Aperfeiçoarei as sabilidade de aprender da expe-
3. Creio na unicidade de cada pes- habilidades ou um talento pro- riência e do conhecimento dis-
soa e na sua necessidade instin- fissional que contribuirão para ponível. Concluindo, o que lhes
tiva de contribuir para o aprimo- a sobrevivência e aprimoramen- peço é que pensem a bioética
ramento de uma unidade maior to da sociedade e manutenção como uma nova ética científica
da sociedade, de forma que seja de um ecossistema saudável. que combina a humildade, res-
compatível em longo prazo com Ajudarei os outros no desenvol- ponsabilidade e competência
as necessidades da sociedade. vimento de seus talentos poten- numa perspectiva interdiscipli-
Compromisso: Ouvirei os pontos ciais, mas ao mesmo tempo cul- nar e intercultural e que poten-
de vistas dos outros, sejam de tivando o autocuidado, a auto- cializa o sentido de humanidade
uma minoria ou de uma maio- estima e o valor pessoal. (Potter, 1998).

O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005 311

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Dando um passo avante, veja- mundo. Trata-se de conceitos que em relação à sobrevivência e susten-
mos como dois pesquisadores que são infinitamente mais poderosos tabilidade da vida no planeta. Embo-
trabalharam muito próximos de que os fatos, que foram praticamen- ra Potter tivesse explorado as impli-
Potter analisam sua obra. te não reconhecidos ou simples- cações clínicas de seu trabalho na
mente ignorados pela comunidade bioética, estava mais preocupado
APRECIAÇÃO CRÍTICA DA OBRA DE biomédica norte-americana, mar- com as relações básicas entre biologia
POTTER POR GERALD LOWER E PETER cada pelo mercado e sem uma filo- e valores humanos, antes que com
J. WHITEHOUSE sofia biomédica coerente de base. aquelas questões levantadas pelos
Gerald M. Lower Jr. (2002) Potter era considerado sempre avanços clínicos e científicos da me-
Gerald M. Lower Jr, um de rápido em apontar que uma ética dicina. O interesse de Potter em valo-
seus estudantes que completava o viável deve estar fundamentada res e biologia eram prioritários, devi-
doutorado no McArdle Laboratories num conhecimento científico de do a seu conhecimento específico da
quando Potter publicou seu livro pio- base, viável, e as implicações aqui biologia do câncer e das implicações
neiro (Bioética: Ponte para o futuro), são claras: uma ética global deve do crescimento descontrolado das
diz o seguinte: “Naquele momento, estar baseada numa filosofia glo- células e formas de vida em geral. A
Potter não estava imune da crítica bal. Neste sentido, seu pioneiro li- sua contribuição científica para com-
dos pesquisadores locais por se vro de 1970, Bioética: Ponte para o preender o metabolismo das células
aventurar numa área de filosofia e futuro, contem vários insights que cancerígenas foi fundamental, no
fornecem a base para a emergên- sentido de o capacitar para com-
ética e não em seu laboratório”. O
cia de justamente isto, uma filoso- preender as complexidades dos sis-
que seus críticos viram como um
fia científica global que abraça não temas biológicos e sua influência na
erro, com isso justificavam seu não
somente a evolução biológica, mas vida humana.
envolvimento público, vi como sen-
também a cultural. Embora Potter nunca tivesse en-
do uma das mais profundas e signi-
contrado Aldo Leopold, um pesqui-
ficativas contribuições de Potter. Peter J. Whitehouse (2002) sador da mesma Universidade de
Historicamente, o termo “bioethics”
Logo no início do artigo em que Wisconsin onde trabalhava, inspirou-
foi rapidamente assumido pela co-
procura resgatar a memória intelec- se nele, a quem dedicou seu segundo
munidade médica como um rótulo
tual de Potter, o Prof. Whitehouse livro, Global Bioethics. Foi Leopold
para seus próprios esforços para ga-
afirma: “Van Rensselaer Potter foi a quem criou o conceito de “land ethics”,
nhar apoio em perseguir a ética de
primeira voz a emitir a palavra “bio- articulação pioneira no Ocidente de
uma medicina de alta tecnologia.
ethics”, mas ele é muito pouco apre- uma ética do meio ambiente.
Programas de bioética emergiram
ciado pela comunidade bioética” Potter estava essencialmente
em muitas partes dos EUA, e o neo- (Whitehouse, 2002). preocupado com o desenvolvimen-
logismo “bioethics” popularizou-se Warren Reich (1994) afirma que to de uma ética que pudesse guiar
sem mencionar Potter ou sua publi- Potter foi o primeiro a cunhar o ter- o comportamento para permitir a
cação pioneira. Para tornar as coisas mo “bioethics”, em 1970. Embora sobrevivência da humanidade e de
piores, o tipo de bioética promovi- possamos discutir a respeito de um outras espécies. A bioética de Potter
da nos EUA, de cunho pragmático nascimento em dois lugares, parece era explicitamente orientada para
e não-conceitual, realmente não ti- claro que Potter cunhou, usou e pu- o futuro, e, como sugere o título de
nha nenhuma relação com a bioé- blicou os termos antes do seu uso seu primeiro livro, Bioethics: Bridge
tica potteriana. em Washington, pelo Instituto Ken- to the Future, Potter (1997) conside-
Em 1988, quando Potter publi- nedy de bioética. O teor de acurá- rou o desenvolvimento do campo
cou Global Bioethics: Building on the cia da reconstrução histórica, em- da bioética como um aspecto essen-
Leopold Legacy, rapidamente ganhou bora seja algo interessante, não é cial da sobrevivência humana.
admiração, primeiramente não dos tão importante no que concerne às A perspectiva potteriana era des-
americanos mas dos Europeus. Os diferenças fundamentais entre as de o início abrangente, e tornou-se
esforços de Potter prepararam o ca- concepções da bioética de Potter e até mais quando este desenvolveu
minho para o estabelecimento da aquela que se tornou a forma domi- a noção de bioética global. Como
bioética em termos globais. nante do pensamento corrente da Reich aponta, o conceito de “global”
A maior contribuição de Potter ética biomédica. A ética de Potter tem vários significados. O primeiro
foi conceitual e não factual, que tem era inspirada por uma compreensão é a idéia de que uma bioética precisa
mais a ver com a maneira como nós profunda da biologia, bem como por abranger as preocupações sobre os
vemos e pensamos as coisas e o uma profunda preocupação pessoal diversos ecossistemas e culturas

312 O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

humanas. A bioética de Potter era Diz ainda Whitehouse que, du- mais continuam a ser elimina-
também intelectualmente abran- rante seu trabalho com Potter, ele das, as preocupações com um
gente e incorporou uma variedade também testou o termo “priviledge meio ambiente saudável tomam
de domínios de deliberação ética, pa- ethics” para enfocar os problemas cada vez mais vulto, o que pro-
ra além daqueles associados com que dividem os que têm e os que vavelmente faça com que a
medicina clínica. Talvez a mais im- não têm em nosso mundo. Potter perspectiva Potteriana de bioé-
portante diferença entre a bioética também considerou o conceito de tica ganhe maior proeminência.
de Potter e as outras formas de ética “bridge ethics” para focar na necessi- Por outro lado, preocupações
biomédica seja o seu credo pessoal, dade de conectar diferentes formas com a profissionalização da ética
que apresentamos acima, um con- de ética, seja médica, ambiental, so- em torno de certos conceitos li-
junto de valores vividos concreta- cial ou religiosa. Já no final de sua mitados de ética médica tam-
mente. Nessa perspectiva, para ser vida, trabalhava com um grupo de bém continuarão. O enfoque
um verdadeiro bioeticista é necessá- bioeticistas internacionais a pers- sobre a autonomia individual
rio adotar alguns comportamentos pectiva de desenvolver a noção de como um princípio ético domi-
e decisões pessoais em relação ao cui- uma ética de sustentabilidade da nante nos EUA deve mudar pa-
dado com o meio ambiente, incluin- vida humana e qualidade de nosso ra questões mais amplas de res-
do o uso dos recursos naturais, o con- meio ambiente e, neste sentido, or- ponsabilidade comunitária e
trole populacional e o compromisso ganizava-se para criar um centro de cuidado com o meio ambiente.
com a sustentabilidade do planeta. bioética na Universidade de Wiscon- Podemos ter efeitos devastado-
Whitehouse comenta que Pot- sin. Contudo, na raiz de todos esses res de conflito de interesses se a
ter tinha grande habilidade em cons- neologismos, está a sua concepção bioética envolver-se e compro-
truir palavras para capturar concei- original da própria bioética. meter-se com questões merca-
tos complexos. “Assim, durante mais Para o prof. Whitehouse, o con- dológicas. O ressurgimento da
de cinco anos de trabalhos juntos, ceito de bioética de Potter não in- ética das virtudes pode gerar in-
viu Potter construir novos conceitos fluenciou o desenvolvimento da éti- teresse no conceito de Potter de
para descrever esta forma de bioéti- ca biomédica porque desde o início que, para alguém se chamar de
ca. Ele diz que cunharam juntos o a identificação da palavra “bioethics” bioeticista, são necessários a
termo “deep bioethics”, como uma com o Instituto Kennedy, próximo adoção de valores pessoais e
mistura de ecologia profunda e bioé- do coração do poder em Washing- um comportamento consisten-
tica global. Bioética global, como ton, D.C., permitiu uma influência te com seu sistema intelectual
uma metáfora, comunica o sentido maior na medicina clínica. Nos anos de crença.
de preocupação para com todo o pla- 1970 as pessoas estavam preocupa- É tempo de os bioeticistas levan-
neta, bem como a abrangência do das com as implicações da tecnolo- tarem questões mais profundas
sistema intelectual. Os ecologistas gia médica, particularmente com a sobre os objetivos da pesquisa e
profundos nos apresentam questões tecnologia reprodutiva. Este enfo- dos sistemas de saúde. Se consi-
com o objetivo de que reflitamos so- que das implicações éticas relacio- derarmos como um dos objetivos
bre nossas conexões espirituais com nadas às descobertas médicas sobre subjacentes da medicina o de
o mundo natural, como o fez Leo- os valores humanos continua domi- promover a sobrevivência da hu-
pold, por exemplo, em seu famoso nante na ética biomédica. A trágica manidade e a vida no planeta,
ensaio sobre olhar nos olhos de um falta de preocupação do sistema de então o conceito potteriano de
saúde com as questões de saúde pú- bioética merece um renascimen-
lobo agonizante. Portanto, existe al-
blica e meio ambiente pode estar as- to. Isto exigirá um tipo de sabe-
go explicitamente espiritual em re-
sociada às mesmas forças sociais que doria ainda não tão evidente em
lação à ética de Potter que exige al-
nossos sistemas de saúde. Potter
gum tipo de conexão sagrada aos sis- levaram Potter a não considerar, na
realmente antecipou-se aos tem-
temas naturais, talvez relacionado ao sua visão de bioética, as questões de
pos, ao definir a bioética como
conceito de biofilia de Wilson. “Quan- medicina de alta tecnologia e medi-
sendo uma ponte para o futuro,
do cunhamos o termo ‘bioética pro- cina genética, por estarem orienta-
porque sem esse pensamento
funda’, tivemos o sentimento de eu- das pelas forças do mercado.
bioético do qual foi pioneiro
reka, justamente como Potter descre- Whitehouse fazendo uma au-
poderemos não ter um futuro
veu seu estado mental original quan- tocrítica da própria bioética elabo-
(Whitehouse, 2002).
do, ao estar andando de bicicleta, teve rada em seu país, os EUA, afirma:
o insight do termo ‘bioethics’” (White- Na medida em que a população Numa visão prospectiva, o prof.
house, 2002). mundial cresce e as espécies ani- Whitehouse, fala do renascimento

O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005 313

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

da bioética, em termos de ir além dos últimos 25 anos, a partir dos co- tes e ciências, como um indicador
das formulações originais de Potter: mentários, escritos ou não, de espe- da responsabilidade em criar uma
O campo da bioética encontra- cialistas na área, pode ser resumido coletânea abrangente do conheci-
se hoje num estágio crítico de da seguinte forma: mento, geral e específico, necessá-
evolução, após trinta anos de de- [...] a 1ª. edição da EB (Reich rio à bioética como um campo de
senvolvimento de programas de 1978) teve um papel importan- aprendizagem e uma área de ação
bioética. Encontra-se numa fase tíssimo no estabelecimento do responsável nos níveis individual,
de profissionalização, respon- novo campo da bioética, formu- social, político e profissional.
dendo a demandas éticas do con- lou a mais ampla definição de O termo enkuklios (enciclo), ou
texto clínico e consultoria bioé- bioética que foi aceita, definiu o cíclico, significa “círculo de apren-
tica para a indústria biotecno- objetivo do novo campo, apre- dizagem”, no sentido de que deve-
lógica, bem como, no nível aca- sentou a primeira organização mos organizar a informação de tal
dêmico organizacional, surgem de conhecimento e articulou maneira que uma pessoa não ini-
os primeiros departamentos e modelos de ensino da bioética. ciada pode mover-se facilmente de
programas de doutorado na área. (Reich, 2003) um conjunto de informações para
(Whitehouse, 2003) outro, movendo-se em círculo de
Daniel Callahan, no final dos artigo para artigo, buscando um co-
anos 1980, quando Reich iniciava o nhecimento mais completo sobre
A bioética e sua obra processo de criação da segunda edi- um determinado tópico. O tamanho
fundamental ção da EB, comentou que, além de do círculo é determinado pelo inte-
ser uma ferramenta constante de uso resse do pesquisador (Reich, 2003).
Em busca de uma compreensão como referência, “a EB serviu como
das raízes históricas da bioética, bem A segunda edição da enciclopé-
um importante documento central, dia é na verdade uma nova obra, in-
como de um conceito fundamental, provendo unidade, coerência e
é imperioso que consultemos a refe- corretamente denominada de “revi-
direção para o campo. Ninguém sed edition”, representou um grande
rência primordial, ou seja a Encyclo- poderia ter isto junto a partir de
pedia of Bioethics. Essa obra foi publi- avanço em relação à versão original
uma simples consulta de livros e da obra. Segundo seu editor-chefe,
cada nos Estados Unidos em três edi- artigos que definem a maioria dos foi um trabalho muito mais difícil
ções, completamente revistas e atua- campos”(Reich, 2003). que a primeira edição, em parte por-
lizadas, em três momentos distintos Reich considera que a 1ª. edição que o campo da bioética mudou
de evolução histórica da bioética, em da EB cumpriu a grande função de muito nos anos que vão desde os tra-
1978, 1995 e 2004, respectivamente, desenhar o campo, enquanto que balhos preliminares para a elabora-
e a partir do surgimento do neologis- a 2ª. ed. começou a refletir o campo, ção desta, no início dos anos 1970,
mo bioethics, com Potter, em 1971. ao mesmo tempo em que continua até o processo de elaboração da edi-
As duas primeiras edições tiveram a função de desenhá-lo. Acredito ção posterior, no início dos anos 1990.
como editor-chefe a Warren Thomas que é essencial que nenhuma des- No intervalo, ocorreram mudanças
Reich, da Georgetown University, lo- tas funções contrastantes seja aban- dramáticas no campo da bioética,
calizada em Washington, D. C., sen- donada. A medida que o tempo pas- não somente por causa dos avanços
do que a terceira tem como editor sa, haverá sempre mais e mais pres- científicos, médicos, e nos compo-
chefe Stephen G. Post, da Case Wes- são em ver que a EB simplesmente nentes legais, mas também no cam-
tern Reserve University, de Cleve- reflita e acuradamente resuma os po mesmo da ética, que evoluiria
land, Ohio. Vejamos como a bioética desenvolvimentos em curso do muito nos anos subseqüentes à edi-
foi definida nas três diferentes edi- campo da bioética, mas a responsa- ção original da enciclopédia.
ções dessa obra referencial para o bilidade pelo campo exige que a EB Para se ter uma idéia do traba-
campo da bioética. O que apresen- continue criativamente, também a lho desenvolvido com a segunda
tamos a seguir, na sua substância, desenhá-lo” (Reich, 2003). edição, vejamos o que diz seu edi-
encontra-se em grande parte no pre- tor-Chefe:
fácio e introdução da segunda e ter- COMO FOI CONCEBIDA A ENCICLOPÉDIA?
Enquanto que a edição de 1978
ceira edições da Enciclopédia. Conforme Reich, foi o conceito tinha 315 artigos de 285 colabo-
“enciclopédia” que capturou a bus- radores em 4 volumes, a edição
A ENCYCLOPEDIA OF BIOETHICS (EB)
ca, composto por duas palavras de 1995 expandiu-se para 464
Segundo Reich, editor–chefe das gregas, enkuklios paidéia. Tomou-se artigos de 435 autores em 5 vo-
duas primeiras edições da EB (Reich, a palavra Paidéia, que significa a lumes. Somente alguns artigos
2003), o significado da EB ao longo educação formal do jovem nas ar- clássicos da primeira edição, ela-

314 O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

borados por luminares intelec- ao mesmo tempo. Velho no sentido mente indefinida. Nessa primeira
tuais tais como Talcott Parson, de que os médicos desde sempre re- edição, a bioética é entendida como:
Pedro Laín Entralgo, Jay Katz e fletiram sobre os seus deveres profis- o estudo sistemático da conduta
Joseph Kitagawa foram trans- sionais com seus pares, e novo no humana no âmbito das ciências
portados para a segunda edição sentido de que essa reflexão estava da vida e da saúde, enquanto es-
da EB. Não tenho dúvida que a se- ocorrendo num diálogo aberto com sa conduta é examinada à luz de
gunda edição colocou a EB num teólogos e filósofos, e muito atento valores e princípios morais.
novo e mais alto patamar, mar- com a preocupação pública relacio- [...]
cando uma posição muito mais nada aos direitos civis e ao declínio A bioética abarca a ética médi-
forte para o campo. (Reich, 2003) do valor atribuído à autoridade. A ca, porém não se limita a ela. A
discussão emergente envolveu rapi- ética médica, em seu sentido
CONTEXTO DO NASCIMENTO DA
damente a todas as profissões da saú- tradicional, trata dos problemas
BIOÉTICA NA PERSPECTIVA DOS
de. Os médicos, ao abordar a ética relacionados com valores, que
AUTORES DA ENCICLOPÉDIA
médica, estavam conversando com surgem da relação médico–pa-
É importante registrar o que foi a sabedoria acumulada sobre a mes- ciente. A bioética constitui um
dito em relação às origens da bioéti- ma matéria pelos católicos, judeus e conceito mais amplo, com qua-
ca. A palavra bioethics foi cunhada protestantes, bem como com a dos tro aspectos importantes:
no início dos anos 1970, por biólo- filósofos da moral. Muitos filósofos, • engloba os problemas relaciona-
gos, com o objetivo de encorajar a nesse momento inicial, se engajaram
reflexão pública e profissional em dos aos valores que surgem em
num diálogo mutuamente frutuoso todas as profissões de saúde, in-
duas questões de urgência: 1) a res- e enriquecedor com pensadores re-
ponsabilidade em manter a ecologia clusive nas profissões afins e aque-
ligiosos. Tal diálogo não somente les vinculados à saúde mental;
generativa do planeta, da qual de- contribuiu para a vitalidade do cam-
pende a vida e a vida humana; 2) as • aplica-se às pesquisas biomédi-
po, mas também refletiu a dinâmica cas e comportamentais, indepen-
futuras implicações dos rápidos avan- de uma democracia liberal em que
ços nas ciências da vida em relação dentemente de influírem ou não
os cidadãos de todos os backgrounds
a potenciais modificações de uma de forma direta na terapêutica;
e linhas de pensamento, no início
natureza humana maleável. Em seu • aborda uma ampla gama de ques-
dos anos 1970, foram motivados pa-
livro pioneiro, intitulado Bioethics: tões sociais, relacionadas com a
ra as questões morais importantes
bridge to the future, publicado em saúde ocupacional e internacio-
relacionadas com os cuidados da
1971, Van Rensselaer Potter discor- nal e com a ética do controle de
saúde, medicina, pesquisa e relação
reu sobre a biologia evolutiva, uma natalidade, entre outras;
profissional–paciente.
habilidade humana crescente de al- • vai além da vida e saúde huma-
A bioética definida pela tradição
terar a natureza e a natureza huma- nas, enquanto compreende ques-
da Enciclopédia desenvolveu-se a
na, bem como sobre as implicações tões relacionadas à vida dos ani-
partir dessas duas linhas centrais de
de seu poder para nosso futuro glo- mais e das plantas, por exemplo,
questões, trazidas pelos cientistas da
bal. Outros cientistas da vida naque- no que concerne às pesquisas em
vida, e pelas novas questões éticas
le momento, tais como Bentley animais e demandas ambientais
emergentes a partir dos avanços
Glass, Paul Bert e Paul Ehrlich esta- conflitivas. (Reich, 1982)
da medicina. Nesse sentido, a obra
vam entre os muitos interessados
integra os aspectos dos cuidados de A edição de 1978 foi considera-
em refletir sobre a revolução bioló-
saúde e ética médica, sem perder da como sendo o livro de referên-
gica em relação à eugenia, à enge-
nharia de novas formas de vida e de vista o contexto maior apresen- cia do ano nos EUA pela Associação
sobre a ética da população. A bioé- tado pelos cientistas da vida no iní- Americana de Bibliotecas. O emi-
tica surge a partir de preocupações cio dos anos 1970, com inquieta- nente bioeticista Daniel Callahan,
dos biólogos que se sentiram obri- ções ligadas com o meio ambiente em sua revisão crítica, a denomi-
gados a refletir sobre o significado e saúde pública. nou como sendo “uma suma de
moral da biosfera e sobre as implica- ética médica”, e a prestigiosa revista
AS TRÊS EDIÇÕES DA ENCICLOPÉDIA
ções fantásticas de suas descobertas Hastings Center Report a considerou
DE BIOÉTICA: 1978, 1995 E 2004
e inovações tecnológicas. “uma conquista incrível”. No decur-
Ao lado da bioética como um A primeira edição: 1978 so dos anos 1980, com o surgimen-
momento intelectual entre os cien- Em 1978, quando surgiu a pri- to de inúmeros programas em bioé-
tistas da vida, emergiu o campo da meira edição da Enciclopédia, a tica e de humanidades médicas, a
ética médica, que era velho e novo Bioética era ainda nova e relativa- inserção da bioética nos currículos

O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005 315

Bioetica_da origem a prosp.p65 315 25/11/2005, 15:47


BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

formativos de escolas profissionais, defini-la como sendo o estudo das quais destacamos, dentre outras
de graduação e pós-graduação, bem sistemático das dimensões mo- de maior relevância, as seguintes: re-
como o surgimento de sociedades rais — incluindo visão, decisão, lação profissional–paciente; bioética
acadêmicas, a Enciclopédia tornou- conduta e normas morais — das e ciências sociais; cuidados em saú-
se uma obra fundamental em ter- ciências da vida e da saúde, utili- de, fertilidade e reprodução huma-
mos de referência e consulta, con- zando uma variedade de meto- na; pesquisa biomédica e compor-
tribuindo muito para a vitalidade dologias éticas num contexto in- tamental; história da ética medica,
intelectual no campo. terdisciplinar. (Reich, 1996) saúde mental e questões comporta-
Embora essa primeira edição se- mentais; sexualidade e gênero; so-
Nessa segunda edição já não se bre a morte e o morrer; genética,
ja sempre importante, mantendo o
usa a expressão princípios. Reich ética da população; doação e trans-
fascínio em quem a lê, se fazia ne-
explica que o termo havia sido utili- plante de órgãos, bem-estar e trata-
cessária uma revisão, a partir do fi-
zado na primeira edição com o sen- mento dos animais; meio ambiente;
nal dos anos 1980, para que todo
tido de fonte, porque se objetivava códigos, juramentos e outras inúme-
aquele que estivesse interessado na
uma definição que permitisse que ras diretrizes éticas de organismos
histórica da bioética pudesse ficar a
o campo da bioética permanecesse nacionais e internacionais.
para do avanço das questões, seja na
aberto a qualquer metodologia. Es-
área tecnológica ou ética, ocorrido
pecificamente, se fazia necessária A terceira edição: 2004
nesse período. Uma obra de referên-
uma definição que encorajasse o
cia que trata da interface da biologia, Após uma trajetória de pouco
uso das fontes da meta-ética e do
tecnologia, cuidados em saúde e éti- mais de três décadas, a bioética já tem
conhecimento moral normativo,
ca torna-se datada devido aos rápi- um reconhecimento importante na
que não eram correntes nos anos
dos desenvolvimentos e mudanças área científica e pública. Com o pas-
1970, quando o modelo deontoló-
no sistema de saúde e ao surgimen- sar dos anos 1990, a Enciclopédia,
gico/teleológico da ética rule-based,
to de importantes novas vozes, pois uma vez mais, precisou passar por
fundamentada em preceitos e re-
tratam-se de campos que se desen- uma completa revisão e atualização.
gras, era tão popular. A palavra “va-
volvem com extrema velocidade. Warren Thomas Reich, editor–che-
lores” foi incluída na primeira defi-
Embora em certos aspectos o mo- nição para acentuar essa abertura fe das duas versões anteriores, e pro-
vimento da bioética moderna te- a todas as fontes do conhecimento fessor emérito da Georgetown Uni-
nha se iniciado nos Estados Unidos, moral. Logo após a primeira edição versity, profundamente envolvido
ele também teve raízes em muitos da EB, um sentido reducionista de num novo projeto sobre a história
países do mundo durante os anos “princípios” começou a ser domi- do cuidado, decide não participar do
1980. Surge então a “revised-edition”, nante, isto é, uma definição concisa processo de preparação dessa tercei-
ou, segunda edição, em 1995. de uma regra ou norma de compor- ra edição, indicando como seu subs-
tamento, um guia de ação. Conse- tituto a Stephen Garrard Post, liga-
A segunda edição: 1995 do ao Departamento de Bioética da
qüentemente, a definição da segun-
A edição de 1995, com cinco vo- da edição, para fugir desse reducio- Faculdade de Medicina da Case Wes-
lumes, começou a ser planejada em nismo, não utiliza o termo princípios, tern Reserve University (Cleveland,
1990, ainda sob a responsabilidade preferindo falar de “uma variedade Ohio), que fora seu editor assistente
do mesmo editor–chefe da obra ori- de metodologias éticas num contex- na preparação da segunda edição,
ginal, Warren Thomas Reich. Nela to multidisciplinar” (Reich, 1996). para ser o editor–chefe desta nova
foi realizado um extraordinário tra- As dimensões morais examina- versão da Enciclopédia (Reich, 2003).
balho de inclusão da histórica da éti- das pela bioética estão constante- Segundo Post, a definição de bio-
ca médica, do movimento moderno mente evoluindo, mas tendem a ética da “revised edition”, que a consi-
da bioética, de pensadores euro- enfocar as questões maiores, tais co- derava como o exame moral in-
peus, de ética religiosa e filosofia mo: Qual é, ou deve ser, a visão mo- terdisciplinar e ético das dimensões
moral e de questões clínicas. Como ral de pessoa ou de sociedade? Que da conduta humana nas áreas das
era então compreendido este novo tipo de pessoa devemos ser, ou que ciências da vida e da saúde, dá forma
campo do saber humano, a bioética? tipo de sociedade necessitamos cons- à terceira edição, continuando a am-
Assim o definia essa segunda edição truir? O que deve ser feito em situa- pliar os tópicos da edição de 1995.
da Enciclopédia: ções específicas? Como vivermos Nessa mais recente versão da Enci-
Bioética é um neologismo deri- harmoniosamente? clopédia há 110 novos verbetes e
vado das palavras gregas bios Nessa segunda edição foram in- aproximadamente o mesmo núme-
(vida) e ethike (ética). Pode-se cluídas inúmeras questões novas, ro de novos artigos, que aparecem

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

sob os títulos antigos. Portanto, me- tivas de companhias farmacêuticas de ou saúde pública deve ser pro-
tade da terceira edição é completa- e de empresas de biotecnologias. posta como uma alternativa para a
mente nova, enquanto que a outra Embora isto não signifique que al- tradição anglo-americana de micro
metade consiste de artigos revistos guns bioeticistas não sejam mais li- ética e ética clínica. Maior ênfase de-
e atualizados da edição anterior, na vres para pensar determinadas ques- ve ser colocada na importância da
maioria das vezes um trabalho feito tões éticas, significa, outrossim, que medicina social, na questão da justi-
pelos próprios autores dos artigos estão sujeitos à várias pressões, e ça e eqüidade na alocação de recur-
anteriores, quando isto foi possível. que devem ser totalmente transpa- sos, bem como no acesso aos servi-
rentes de qualquer interesse finan- ços de saúde. É lembrado que dois
NOVOS TEMPOS: QUESTÕES
ceiro que possa estar influenciando congressos Mundiais de Bioética fo-
EMERGENTES SÃO ENFATIZADAS
suas opiniões. Reich enfatiza: “de ram realizados na América Latina,
Uma ampla gama de novos as- todos os campos, a bioética deve um em Buenos Aires, em 1994, e o
suntos são incluídos na terceira edi- manter-se longe de qualquer man- VI no Brasil, em Brasília, em 2002
ção, do bioterrorismo, holocausto, cha por conflito de interesse, uma que teve como tema central: “Bioé-
imigração, questões éticas de saúde vez que sua credibilidade pública tica, poder e injustiça”. A América
humana, nutrição e hidratação arti- está sempre em risco”. Latina não perdeu a esperança de
ficiais, até questões éticas relaciona- Uma outra área de questões, que ser o continente da justiça. Na visão
das com diagnóstico e tratamento em também nas edições anteriores da de Mainetti, “a revolução bioética
oncologia, demência, diálise renal e Enciclopédia mereceu um cuidado sumarizada num bios de alta-tecno-
ordens para não reanimar. Além dis- especial, mas que nessa última ga- logia e por um ethos individualista,
so, são apresentados diversos artigos nha uma amplitude maior, são os deve ser complementada na Améri-
sobre clonagem e pediatria. Ques- artigos de fundo sobre teoria ética, ca Latina por uma bios humanista e
tões tais como reprodução e fertilida- bem como novos textos que lidam um ethos comunitário”. Duas ques-
de, transplantes de órgãos e tecidos, com as abordagens éticas religiosas. tões instigantes são levantadas pelo
sobre a morte e o morrer, teoria ética, No âmbito da teoria ética destaca- editor–chefe, o pluralismo e o dis-
bioética e políticas públicas (legisla- mos, entre outros: direito de cons- curso público e o pós-humanismo.
ção), saúde mental, genética, religião ciência, contratualismo e bioética,
e ética, foram completamente revis- O PLURALISMO E DISCURSO PÚBLICO
comitês de ética, consultoria ética,
tas e são, na essência, novas. dignidade humana, direitos huma- A tradição da Enciclopédia apre-
Uma área nova de reflexão ex- nos, status moral, principialismo, uti- senta uma contribuição instrutiva
tremamente delicada e sensível na litarismo e bioética, valores e cuida- em relação ao futuro da bioética na
contemporaneidade é a questão da dos de saúde. No âmbito das aborda- academia, uma vez que inclui uma
ética dos negócios na área dos cuida- gens éticas religiosas foram acrescen- ampla gama de vozes que abordam
dos da saúde, que merece vários ver- tadas reflexões sobre: autoridade nas as questões de bioética, em consis-
betes, dentre os quais, elencamos: se- tradições religiosas, bioética no cris- tência com a diversidade e pluralis-
guros de saúde, conflitos de interes- tianismo, aspectos religiosos da cir- mo típico das democracias liberais.
se, políticas públicas de saúde nos cuncisão, amor compassivo, Teste- Para que a área acadêmica da bioéti-
EUA, ética nos serviços de adminis- munhas de Jeová e a recusa da trans- ca permaneça relevante e criativa, é
tração da saúde, ética organizacional fusão de sangue, bioética e os mór- sábio incluir representantes de todo
nos cuidados da saúde, lucro e co- mons. Além desses artigos de fundo esse espectro de posicionamentos.
mercialização etc. A abordagem des- sobre teoria ética, bioética e reli- Como Alasdair MacIntyre afir-
sas questões na Enciclopédia cresceu giões, acrescentam-se verbetes so- mou, cada sistema de filosofia ou
a partir da preocupação que surgiu bre antropologia e bioética. Em ter- ética religiosa tem suas próprias ver-
nos anos 1990 em diante das trans- mos de América Latina, essa última dades fundacionais a respeito do
formações da área dos cuidados de edição, sob o verbete “História da que constitui a natureza humana e
saúde num negócio, visando basica- Ética Médica nas Américas”, de au- o bem humano, seus contextos his-
mente o lucro econômico. Quando toria de José Alberto Mainetti, da tóricos e questões únicas, bem co-
se fala de conflitos de interesse, é bom Argentina, fala do movimento da mo seus limites conceptuais ineren-
lembrar que de forma crescente, es- bioética nesse continente, subli- tes. A bioética é conseqüentemente
pecialmente nos centros da acade- nhando suas questões maiores: re- aprimorada pelo diálogo com as di-
mia médica das maiores universida- produção, a morte e o morrer, ética ferentes tradições de pensamento,
des, os próprios bioeticistas aceita- da pesquisa, ética da saúde e meio sejam elas de vertente secular ou
ram recompensas financeiras lucra- ambiente. Uma macro ética da saú- religiosa, refletindo a diversidade da

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

esfera pública. Tal diálogo exige um nanotecnologia, o envelhecer e o que um dia usaremos a biotecno-
conjunto de virtudes em relação ao idoso; intervenções anti-envelhe- logia para nos tornar mais fortes,
discurso global, dentre outras, o res- cimento e questões ético-sociais. mais inteligentes, menos violen-
peito mútuo, tolerância, civilidade Coletivamente, esses artigos acen- tos, assim como para ampliar
e abertura para mudar a partir da tuam a questão do que significa ser nossa vida — será de fato tão bi-
clarificação dos fatos empíricos e humano. O pós-humanismo, diz o zarro? Uma espécie de transu-
persuasão dos outros. O monismo, editor-Chefe da Enciclopédia, manismo já está implícito em
ou seja, a visão de que somente é um puro cientificismo que pro- grande parte do programa de pes-
uma voz é válida, seja ela de versão põe alterações fundamentais na quisas da biomedicina contem-
secular ou religiosa — elimina o diá- natureza humana, superando os porânea. Novos procedimentos
logo, inibe a participação plena e limites biológicos e transcenden- e tecnologias que estão surgindo
compromete o avanço conceitual. do o humano pela tecnologia. O em laboratórios de pesquisa e
A Enciclopédia de Bioética, na pós-humanista tem como obje- hospitais — como medicamentos
visão de seu editor-chefe é: tivo desacelerar ou até mesmo que alteram o humor, substân-
[...] uma obra única, porque sem- parar o processo de envelheci- cias que aumentam a massa mus-
pre incluiu muitas vozes e tradi- mento, mas somente como uma cular ou apagam seletivamente
ções num esforço para incenti- pequena parte de uma visão as memórias, exames genéticos
var o diálogo, evitar o estreita- maior de reengendrar a natureza pré-natais, terapia genética —
mento do campo e engajar uma humana, e, portanto, criar bioló- podem ser facilmente empre-
ampla leitura internacional. Esta gica e tecnologicamente seres gados tanto para aperfeiçoar a es-
edição, como as anteriores, con- humanos superiores, que nós, pécie como para aliviar ou curar
templa abordagens intercultu- seres humanos de hoje, dese-
doenças. (Fukuyama, 2005)
rais, a história completa da bioé- nharemos para o amanhã. Como
tica, ética religiosa comparativa tal, os pós-humanos, não serão A genética, a nanotecnologia, a
e filosófica, bem como as pers- mais humanos. (Post, 2004) clonagem, a cibernética e as tecno-
pectivas globais. Os artigos sobre logias de computador são todas par-
Essa questão do pós-humanismo
a história da ética médica são um te de uma visão pós-humana, que
ou do trans-humanismo vem sendo
exemplo do esforço para destacar inclui até a idéia de formar uma
explorada na atualidade por um co-
o grau em que nossas teorias mente computadorizada, livre da
nhecido professor de economia po-
contemporâneas de ética e bioé- lítica internacional da Universidade carne mortal e, portanto, imortali-
tica evoluem a partir de um de- Johns Hopkins (EUA), Francis Fu- zada. Os pós-humanistas não acre-
terminado contexto social, cultu- kuyama, que gerou polêmica mun- ditam que a biologia seja um desti-
ral-religioso e histórico. Contu- dial com a sua famosa obra O fim da no, mas antes algo que deve ser su-
do, os artigos históricos sobre a história e o último homem. Uma de perado, porque segundo eles, não
‘época contemporânea’ nos dão suas mais recentes publicações é existe “lei natural”, mas somente
importantes informações sobre justamente sobre aquela temática: maleabilidade humana e liberdade
o desenvolvimento de questões Nosso futuro pós-humano: Conseqüên- morfológica. Enfim, a ciência está
tais como ética na China, o sui- cias da revolução da biotecnologia avançando tão rapidamente que
cídio assistido na Holanda e a le- (Fukuyama, 2003)2. Fukuyama fala necessitamos de sérias discussões
gislação sobre a morte cerebral dos transumanistas, que pretendem para distinguir entre as transforma-
no Japão. (Post, 2004) nada menos do que libertar a raça ções que são salutares, daquelas que
humana de seus limites biológicos. são destrutivas.
O PÓS-HUMANISMO E O ANTI
Para os transumanistas, os seres A natureza humana tal como a
PÓS-HUMANISMO
humanos precisam assumir o conhecemos é, para uma mente
Importante destacar novos arti- controle de seu destino biológi- pós-humanista, um mero obstáculo
gos que refletem sobre o transuma- co, desvinculá-lo do cego pro- a ser superado. Para alguns, a ambi-
nismo e pós-humanismo, ciberné- cesso evolutivo de variação ale- ção dos pós-humanistas em criar
tica, clonagem, dignidade humana, atória e adaptação, e assim inau- um novo pós-humano, que não é
embrião e feto; pesquisa com célu- gurar uma nova era como espé- mais humano, é uma atitude arro-
las tronco embrionárias, tecnologia cie. [...] Todavia, o princípio bá- gante, pretensiosa e que desconsi-
médica e melhoramento humano, sico do transumanismo — o de dera a apreciação pela dignidade hu-

2. Confira uma apreciação crítica desta obra.

318 O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

mana natural. Para outros, todos es- bitos de mente necessários. A Reich indica algumas questões a
ses esforços são vistos como poten- bioética é inevitavelmente su- serem abordadas. Ele escreve tais
cial para um progresso no desenvol- jeita ao criticismo daqueles que sugestões ainda quando a terceira
vimento dessas forças tecnológicas. acreditam que as respostas para edição não tinha sido publicada,
A nossa época está começando inúmeras questões novas tra- mas percebe-se que muito do que
a considerar seriamente possibi- zidas pelas revoluções, biológi- sugeriu foi integralmente assumi-
lidades de “transumano” através ca e dos cuidados de saúde, são do na edição coordenada por seu
de melhoramentos biotecnoló- imediata e simplesmente fáceis. discípulo, como:
gicos das capacidades humanas Mas, afinal, o que é um bom pro- 1. nas duas primeiras edições da
biológicas tais como, tempo de fissional da ética, seja esse secu- EB, constata-se a ausência de
vida, tipo de personalidade e in- lar ou religioso, senão aquela qualquer discussão em termos
teligência. Qual era o status da pessoa que levanta uma nova de ética na pós-modernidade. A
generatividade altruística que questão que ninguém tinha an- questão da pós-modernidade
Erik Erikson associou com a ve- tes formulado e que propicia um em bioética, com a integração do
lhice à medida que os seres hu- debate aprofundado como uma papel da experiência deverá ser
manos aventureiramente envi- alternativa à superficialidade? considerada.
dam esforços para alterar o tem- (Post, 2004) 2. durante os trinta primeiros anos
po de vida? Será a compaixão de desenvolvimento da bioética,
QUAL O FUTURO DA ENCICLOPÉDIA a fenomenologia foi amplamen-
deixada de lado em favor da bus-
DE BIOÉTICA?
ca biotecnológica de músculos te ignorada, e deverá ter seu lu-
mais fortes, maior longevidade, Segundo Reich (2003), a EB deve gar. Mais do que qualquer outra
disposições de felicidade e be- ser perpetuada através de revisões abordagem de bioética, ela exa-
leza permanentes? Ou seriam adequadas quando necessário, ofe- mina sistematicamente o senti-
o cuidado e a compaixão que es- recendo uma informação qualifica- do e as implicações morais das
tão em nós “o último aperfei- da e abrangente do campo, que um experiências vividas de doença,
çoamento humano?” Os leitores livro apenas simplesmente não é ca- deficiência, dor e sofrimento, de-
da Enciclopédia são encorajados paz de oferecer. Muitos livros, e até ficiência mental, cuidado, empa-
a refletir sobre tais questões e mesmo muitas ferramentas de re- tia, relação terapêutica e outras
tirar suas próprias conclusões. ferência, têm vida limitada. experiências humanas relacio-
(Post, 2004) Reich lembra que Denis Diderot nadas com essa disciplina.
escreveu em 1755 que o objetivo da 3. ética feminista e a ética do
Vale destacar o que é dito no Encyclopédie era nada menos que cuidado.
final da introdução dessa obra a “mudar a maneira de geral de pensar”. 4. a questão da vulnerabilidade. A
respeito do discurso civil e da hu- A publicação da EB foi considerada filosofia contemporânea está
manidade: um “evento maior”, com a promessa sempre mais encarando a vulne-
Por causa das questões que a bio- de cumprir o objetivo assinalado por rabilidade como parte da identi-
ética lida serem profundamente Diderot, porque compilou em qua- dade básica de todos os huma-
relevantes para o futuro da natu- tro volumes a maneira como a pró- nos. Por causa de sua própria
reza, da natureza humana e para pria bioética foi “mudando nossa ma- vulnerabilidade e dependência
a área da saúde, elas são freqüen- neira de pensar [e] alimentando sé- recíproca, o ser humano necessi-
temente contenciosas. Contudo, rias reflexões e discussões em geral”. ta constantemente de cuidado,
na dialética entre objetivismo A edição de 1995 ainda não con- e tem a responsabilidade moral
moral e relativismo moral, en- seguiu ser realmente internacional. dar uma resposta frente à vul-
quanto muitas dessas questões Tal lacuna deve-se em parte à dificul- nerabilidade dos outros. Lem-
permitem uma resolução plausí- dade de preparar uma EB que con- bra-se de Jurgen Habermas, Paul
vel, existem outras para as quais templasse diferentes crenças morais, Ricoeur e Alasdair MacIntyre.
não emerge nenhuma resolu- ética e leis nas diferentes partes do 5. o papel da religião e das idéias
ção. Tolerância, civilidade, res- mundo. “Fica como um grande de- religiosas no discurso bioético.
peito e a vontade sincera de en- safio para que a terceira edição seja 6. globalização. Levando em con-
gajamento sério com a visão dos um instrumento efetivo de referên- sideração dois sentidos distintos,
outros que possuem diferentes cia internacional”, assinala Reich. a saber: a) a preocupação com a
tradições, sejam essas seculares Ao olhar e pontualizar o futuro aplicação de princípios bioéticos
ou religiosas, são virtudes e há- em termos de uma terceira edição, universais e concretos em todo

O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005 319

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

o mundo; b) a garantia da sobre- ofício tenho viajado para todos os mente, em muitas seções em que
vivência da humanidade, esme- quadrantes do planeta pela causa estivemos presente, a sensação obti-
rando com cuidados de saúde e bioética, participando dos últimos da foi de reprise do nosso Congresso
meio ambiente, segundo Potter. seis congressos mundiais. Estando de Brasília. Os australianos devota-
diretamente envolvido no processo ram um dia inteiro com uma dinâ-
Últimos desdobramentos de escolha de temáticas e lugares de mica criativa para abordar a questão
da bioética: congressos, é importante registrar dos aborígines, não só intelectual-
que o congresso realizado em Brasí- mente, mas levando os congressis-
O VII Congresso Mundial (Sidney, lia em 2002 foi o maior de todos até tas a fazer uma experiência de “deep
10 a 14 de novembro de 2004) hoje, com a presença de 1.352 con- listening”, naquele que foi denomi-
A entidade de bioética de maior gressistas, sendo que 900 brasileiros nado de “indigenous day”, o primeiro
expressão mundial é a Internatio- e 452 estrangeiros, procedentes de dia do congresso. Todos conhecemos
nal Association of Bioethics (IAB), fun- 62 países. Sem dúvida, esse evento a questão dos aborígines na Austrá-
dada em 1992 e que desde então cravou na agenda da bioética mun- lia, e sua relação com os brancos,
organizou sete congressos mundiais, dial uma perspectiva política da de- eivada de sérias questões raciais, de
a saber (Pessini, 2000): sigualdade, da exclusão e da injusti- exclusão e discriminação.
ça, realidades corriqueiras e cotidia- Registramos dois depoimen-
1st) 1992 - Amsterdam, Holanda.
nas do mundo em desenvolvimen- tos realizados na solene seção de
2nd)1994 - Buenos Aires, Argentina. to (Garrafa, Pessini, 2003)3. encerramento do congresso (www.
3rd) 1996 - São Francisco, EUA. O VII Congresso Mundial de bioethicsworldcongress.com) 4,
Tema: Bioética num mundo Bioética teve como tema: Ouvir pro- Pessini). São de Ruth Maclin, co-
interdependente. fundamente: Construir pontes entre éti- nhecida bioeticista norte-america-
4th) 1998 - Tóquio, Japão. ca local e Global. Um evento muito na que trabalha na Faculdade de
Tema: Bioética Global: importante em termos de desenvol- Medicina Albert Einstein em Nova
norte-sul/leste-oeste. vimento da bioética para toda Ásia York, e Angela Wasunna, da Ni-
5th) 2000 - Londres, Inglaterra. e região do pacífico, contou com a géria, que atualmente se encontra
Tema: Ética, lei e políticas presença de 550 participantes de 34 no Hastings Center em Nova York.
públicas. países. Registramos a ausência nes- Ruth Macklin, faz seu comen-
se congresso de Peter Singer, que tário em três pontos:
6th) 2002 - Brasília, Brasil. trabalha hoje na Universidade de
Tema: Bioética, Poder e Injustiça. Princeton nos EUA, e Helga Kuhse, 1) O que vi e ouvi
7th) 2004 - Sidney, Austrália. que se aposentou da Universidade Desde a recepção notei um en-
Tema: Ouvir profundamente: de Monash, em Melbourne; justa- foque sobre os temas principais
construindo pontes entre ética mente os australianos, que foram os do congresso: saúde da popula-
local e global. pioneiros na fundação da Associa- ção e saúde pública, muito maior
O oitavo deles está sendo pre- ção Internacional de Bioética. que nos congressos preceden-
parado, e deve se dar em Pequim, A perspectiva sociopolítica da tes. Um segundo enfoque diz
na China. O tema principal já foi bioética teria sido esquecida nessa respeito às questões multi e
definido: Um mundo mais justo e sau- passagem de Brasília para Sidney, trans-nacionais, incluindo pes-
dável. Os subtemas serão os se- podemos perguntar? Inúmeras con- quisa multinacional e globali-
guintes: a) Questões éticas em saú- ferências, simpósios e seções descre- zação. O programa incluiu um
de pública; b) mercado e medicina: veram a situação de desigualdade, número significativo de seções
conflitos de interesse nos serviços exclusão e pobreza relacionadas sobre assuntos quentes, tais co-
médicos e pesquisa; c) Proteção dos com saúde e economia no mundo, mo clonagem e pesquisa com
sujeitos humanos: ética, regula- e conclamaram os presentes a um células tronco. Finalmente, fi-
mentações e legislações; d) Genô- pensamento novo e ação transfor- quei agradecida por não ouvir
mica e ética; e) Dimensões cultu- madora. Claro que um evento rea- algo que sempre esteve muito
rais da Bioética. lizado num país desenvolvido vai presente nos congressos ante-
Tenho participado do Board of acentuar e ler as questões a partir riores: simplesmente esmagar o
Directors da IAB desde 1997, e neste de sua própria realidade. Sincera- principialismo!

3. Trata-se de publicação que recolhe em coletânea 47 apresentações do Congresso.


4. Confira os depoimentos na íntegra no seguinte site. Ver o item Reflections on the Congress. Reports. Acessado em: 6 dez. 2004.

320 O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

2) Algumas tensões gem. Numa seção, um pales- em desenvolvimento. Os pró-


a) o enfoque relativamente novo trante expressou sua hostilidade prios bioeticistas foram acusa-
sobre saúde da população, em em relação aos EUA em seu pa- dos de debater essas questões
contraste com a tradicional aten- pel de manter os preços dos re- entre eles de forma elitista, mui-
ção com a ética no contexto clíni- médios altos, ao controlar o co- to distante das realidades de saú-
co, foi notável. Isto gerou preo- mércio mundial. Tal hostilida- de enfrentadas pelas pessoas no
cupações no sentido de que a de é merecida. Em outra seção, seu dia a dia. Contamos mais de
ética clínica vai ser abandonada os apresentadores defenderam vinte seções devotadas às ques-
no futuro, e substituída pelo no- o standard único na pesquisa, tões em torno de pobreza mun-
vo enfoque de saúde da popula- seja o estudo conduzido num dial, relações de poder global,
ção e saúde pública. Existe pou- país industrializado ou em de- práticas injustas de comércio ou
co risco de que isto aconteça, e senvolvimento. Essa é a posição ordem econômica injusta, direi-
palestrantes encarregaram-se de que apoiamos e advogamos em tos humanos, justiça e eqüida-
reafirmar aos céticos que a ética nossos escritos. Em muitas se- de. Essas questões não foram
clínica continua viva e saudável, ções das quais participamos, os simplesmente “discutidas”, mas
e a perspectiva é de que assim apresentadores, bem como os ocorreram propostas práticas,
permaneça. participantes, defenderam obri- concretas e, em algumas ins-
b) Este congresso viu a reprise da gações para com o pobre e apon- tâncias, radicais, para avançar,
histórica tensão da primazia em taram para a implementação de para passar da retórica à ação.
bioética, da autonomia em que programas com o objetivo de se Ouvimos também a respeito dos
o indivíduo é proeminente e a atingir mais justiça social e glo- desafios enfrentados pelas po-
abordagem comunitária que en- bal. Concluindo, pessoalmente, pulações indígenas em termos
fatiza a solidariedade, o bem co- este congresso foi uma reafirma- dos cuidados de saúde na Aus-
mum e público. ção dos princípios éticos e pers- trália. Muitos dos problemas dis-
c) Uma possível tensão entre a pectivas que existem em todo o cutidos são similares àqueles
abordagem dos direitos huma- mundo, mas que são largamen- que encontramos em outras po-
nos e as abordagens tradicio- te ausentes na maioria das pes- pulações indígenas em torno no
nais às questões de bioética: São soas do nosso país. mundo. Estas, bem como outras
estas na essência idênticas? Ou apresentações sobre questões de
englobam abordagens diferen- Instigante é o depoimento de globalização, pobreza e direitos
tes, levantando questões dife- Angela Wasunna, Queniana, ativis- humanos, levaram-nos às se-
rentes? A questão dos direitos ta em direitos humanos na Nigéria, guintes conclusões: que os bioeti-
humanos seria um aspecto ou e que atualmente trabalha nos pro- cistas internacionais estão final-
um subtema da bioética? Pode gramas internacionais do Hastings mente levantando as questões
a bioética ser adequadamente Center. Wasunna diz que aprendeu corretas; que estão levando em
entendida ou abordada inteira- uma lição: conta o grande quadro, o contex-
mente na linguagem e concei- O crescente interesse em iniqüi- to geral dos problemas de saúde
tos da bioética, ou é necessário dade, pobreza e justiça global. global de uma forma pragmática
suplementá-la com a perspecti- Conferencistas, um após o ou- e fundamentados em princípios
va dos direitos humanos? Nos- tro, nos desafiaram a examinar éticos; que são cidadãos globais,
sa resposta pessoal para esta o contexto em que ocorrem as preocupados e informados.
questão é que são duas aborda- disparidades globais. Fomos con- Sinto-me encorajada, porque a
gens diferentes, mas que se en- vidados a desafiar entendimen- bioética como disciplina é tão re-
trelaçam e que podem e devem tos já tradicionais de como o levante hoje para uma ativista
se reforçar mutualmente. mundo funciona, e a começar a em direitos humanos na Nigé-
examinar a ordem mundial sob ria, quanto para um professor
3) Reflexões pessoais uma nova perspectiva. de bioética no Canadá. Embora
Neste congresso encontramos Por muito tempo, o campo da existam controvérsias em rela-
muito mais concordância com bioética foi acusado por céticos ção às origens, ou nascimento
nossos próprios valores morais, de ignorar as questões mais im- da bioética como disciplina, não
compromissos políticos e preo- portantes de saúde que o mundo existe dúvida em relação à sua
cupações com justiça social e hoje enfrenta, particularmente contribuição em termos globais.
global, que em nosso país de ori- aquelas que afetam o mundo Este congresso validou e confir-

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BIOÉTICA: DAS ORIGENS À PROSPECÇÃO DE ALGUNS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

mou minha própria convicção pode ser justificado por nenhuma ração de uma ética global, e conclui
— que a bioética é uma discipli- consideração política ou moral. O dizendo: “a exemplo do grande es-
na progressiva e inclusiva, sóli- segundo desafio é a luta contra a critor americano William Faulkner,
da em princípios, mas também pobreza no mundo. Como pode o eu me recuso a aceitar a possibili-
pragmática na sua abordagem “milhão dourado” de pessoas bafe- dade do fim da humanidade, quais-
em relação aos problemas mais jadas pela sorte permanecer indife- quer que sejam as provações que
cruciais de saúde que o mundo rente diante do espetáculo da misé- tenha que enfrentar. Este é o meu
enfrenta hoje. Já percorremos ria em que se debate a metade da credo, o de um incorrigível otimis-
um longo caminho como pro- população do planeta, reduzidas a ta” (Gorbachev, 2003). Lembrando
fissão, mas existe muito a cami- viver com um ou dois dólares por a Carta Terra, da qual foi um dos
nhar para frente. dia, passando fome todos os dias, principais líderes de todo o proces-
so, fez votos para que nosso tempo
Após esta incursão das origens à sem acesso a água potável e sem
seja lembrado “pelo despertar de
contemporaneidade que nem de condições decentes de higiene? O
uma nova reverência diante da vi-
longe esgotou a riqueza histórica da terceiro desafio identificado está li-
da, por um compromisso firme de
bioética, mas tão somente apontou gado ao meio ambiente. Entramos
alcançar a sustentabilidade, pela
para algumas questões e marcos fun- em sério conflito com o nosso pró-
rápida luta pela justiça, pela paz e
damentais no curto espaço de trinta prio habitat — com a mãe natureza. pela alegre celebração da vida”
e cinco anos de história da bioética, Esses três desafios são interdepen- (Gorbachev, 2003).
é hora de finalizar a reflexão. dentes. Sem combater a pobreza se- Neste momento a UNESCO, es-
rão inúteis também todas as medi- tá realizando eventos e consultas
Conclusão das ecológicas. Mas se não nos preo- em todo o mundo para a elaboração
cuparmos com a ecologia, todos os de uma “Declaração sobre normas
Nas origens da bioética temos o nossos esforços para construir um universais de bioética”, que deverá
encontro da intuição original de mundo mais justo estarão fadados estar pronta em 2005. Do esquema
Potter com a obra referencial do ao fracasso e nossos descendentes da terceira redação (24 a 27 de agos-
campo, que é a Enciclopédia de Bio- terão que pagar pelo nosso compor- to de 2004), entre os objetivos da
ética. Curiosamente, no curso histó- tamento insensato e depredador da declaração é destacado o de “pro-
rico das origens, a perspectiva de natureza. A própria vida na Terra mover o respeito da biodiversida-
Bioética de Georgetown (bioética corre o risco de desaparecer, tornan- de” e entre os princípios fundamen-
médica clínica) que vai produzir a do-se somente um episódio efême- tais, o da “responsabilidade para
Enciclopédia de Bioética, praticamen- ro na história do nosso universo. com a biosfera” (art. 7), proteção
te ignorou Potter na sua perspectiva Os três desafios propostos não da biodiversidade e biosfera em que
da ética global e da sustentatilidade dizem respeito somente aos gover- o ser humano vive (www.portal.
ecológica para garantir o futuro da nos e às organizações internacio- unersco.org).
vida no planeta Terra. Esse encon- nais, mas a cada um de nós. Che- Finalizamos com um conceito de
tro contribuiu no desenvolvimento gou a hora de todo cidadão do pla- bioética, elaborado a partir de um
da reflexão bioética dos últimos neta Terra pensar na contribuição seminário convocado pelo governo
anos, na compreensão que temos pessoal que pode dar para essa argentino, realizado em Buenos
hoje de bioética. tarefa comum. Aires nos dias 4 e 5 de novembro de
A reflexão Potteriana de bioética “…somos responsáveis, diante das 2004, buscando contribuir para a
se antecipa a toda a problemática gerações futuras, pela conservação da elaboração do documento sobre nor-
ecológica de hoje, e tem muita sin- vida na Terra”. (Gorbachev, 2003) mas universais de bioética da Unes-
tonia com a causa ecológica das Na- “…Hoje, a humanidade precisa co, que tem tudo a ver com a agenda
ções Unidas, e de ilustres ativistas de uma nova filosofia de vida, de uma ibero-americana de bioética:
na área, dentre outros, Mikahil Gor- nova ética que cristalizará os valores Convencidos de que a bioética
bachev, que identifica três grandes fundamentais, comuns a todas as tra- não se ocupa somente dos pro-
desafios a serem enfrentados em dições religiosas, uma ética baseada blemas éticos originados do de-
nosso tempo. O primeiro trata da no consenso entre as nações e os po- senvolvimento científico e tec-
necessidade de manter a paz no nológico, mas também das con-
vos do mundo.” (Gorbachev, 2003)
mundo. A comunidade internacio- dições que tornam o meio am-
nal tem de estar unida também na Gorbachev nomeia este projeto biente humano ecologicamen-
luta contra o terrorismo, que não como sendo um processo de elabo- te equilibrado na biodiversida-

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de natural, e de todos os proble- mos que a bioética vai avançando Potter, lá nas origens da bioética,
mas éticos relacionados ao cui- globalmente (geograficamente) am- na década de 1970, se antecipa e
dado da vida e da saúde. Por is- pliando sua compreensão epistemo- aponta para um dos maiores desa-
to tem como pressuposto bási- lógica, ampliando sua abrangência fios que a humanidade tem neste iní-
co o conceito de saúde integral temática, enfrentando os desafios cio de milênio: garantir o futuro da
entendido na perspectiva bio- emergentes e sinalizando priorida- vida no planeta terra. Resgatarmos a
lógica, psicológica, social e am- sua contribuição intelectual para o
des a seguir. Todo o processo dos con-
biental, como o desenvolvi- campo da bioética é uma questão de
gressos, dos seis eventos realizados
mento das capacidades huma- justiça histórica. Foi a tentativa deste
num curto espaço de tempo, ape- texto. É sempre saudável voltarmos
nas essenciais que viabilizem nas doze anos, no final e início de
uma vida longeva, saudável e às origens e, como diz T. S. Eliot:
milênio, precisa ser visto, analisado, “Não cessaremos de explorar
alcançável por todos, o quanto
criticado em conjunto, e não apenas e no final de toda nossa busca
seja possível.
considerado um evento de forma Chegaremos onde começamos
A partir dos apontamentos do VII isolada, para entendermos de onde e conheceremos o lugar pela
Congresso Mundial de Bioética, ve- viemos e para onde caminhamos. primeira vez!”

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Recebido em 8 de março de 2005


Versão atualizada em 29 de março de 2005
Aprovado em 6 de abril de 2005

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