13 Origens do estilo cldssico: a sonata, a sinfonia ea opera no século xvitt As luzes «A misica ¢ um luxo inocente ¢, em boa verdade, desnecessdrio & nossa existén- cia, embora seja grandemente proveitosa e agradével ao sentido do ouvido.» Assim proclamava Charles Burney no 1.° vol. da sua Histéria Geral da Musica, publicada em Londres em 1776. Menos de cem anos antes Andreas Werckmeister dissera ser a mésica «uma dédiva de Deus para ser usada apenas em Sua honra»'. O contraste entre estas duas afirmagées ilustra a evolugdo do pensamento que se verificou 20 longo do século xvut e afectou todos os aspectos da vida. O movimento complexo conhecido pelo nome de iluminismo-comegou como uma revolta do espf- Fito: uma revolta contra a religido sobrenatural c a Igreja, em prol da religido natural ¢ da moral pratica; contra a metaffsica, em pro! do senso comum, da psicologia empfrica, da ciéncia aplicada e da sociologia; contra o formalismo, em prol da naturalidade; contra a autoridade, em prol da liberdade do individuo; contra os pri- vilégios, em prol da igualdade de direitos e da instrugdo universal. A aumosfera das luzes foi, assim, secular, céptica, empfrica, prética, liberal, iguali- \Gria € progressista. Os seus primeiros chefes de fila foram Locke ¢ Hume, em Ingla- terra, e Montesquieu ¢ Voltaire, em Franga. A fase inicial do iluminismo foi predo- minantemente negativa, mas o vazio criado pela critica_destrutiva em breve foi Preenchido por uma nova ideia: a de que a Natureza ¢ os instintos ou sentimentos "A. Werckmeister, Der Edlen Music-Kunst, Gebrauch und Missbraxch (Valor, Uso e Abuso da Nobre Arte da Musica), Frankfurt, 1691, pretécio. ATS.naturais do homem eram a fonte do verdadeiro conhecimento € da acgao justa, Foi Rousseau © principal apéstolo desta fase de luzes, que tomou corpo a partir de 1760 ¢ influenciou os poetas-filésofos Lessing ¢ Herder € 0 movimento literdrio alemao conhecido como Sturm und Drang (tempestade € impulso). Duas ideias-chaves do pensamento do século xvi —a crenga na eficécia do conhecimento experimental aplicado ¢ a crenga no valor dos sentimentos naturais, comuns a todos os homens — eram concordes em considerar o individuo como ponto de partida da investigacdo ¢ como critério tiltimo da acgdo, A religiio, os sistemas filoséficos, a ciéncia, as artes, a educag’o, a ordem social — tudo devia ser avaliado em fungao do modo como contribuia ou n3o para o bem-estar do indivividuo, «O individuo comprazendo-se na sua vida intenor [..,] € o fenémeno caracierfstico da era das luzes’.» As consequéncias deste ponto de vista foram evidentes em muitos dominios, como, por exemplo, nos sistemas éticos caracteristicos do século xvii, que tanto afirmavam consistir 0 supremo bem no desenvolvimento harmoniaso das capa- cidades inatas do individuo como — segundo os principios do utilitarismo — encon- uavam o ideal ético na formula «a maior felicidade para 0 maior némero». Exami- naremos brevemente os efeitos desta perspectiva individualista sobre as artes, em particular sobre a musica. E preciso dizer que a vida nao foi mais governada pelos filésofos no século xvin do que em qualquer outro periodo da histéria; os sistemas de pensamento respondem, ¢ sofrem a influéncia, das condigdes de vida, pelo menos no mesmo grau em que influenciam essas mesmas condi¢des. Deste modo, as doutrinas acerca dos direitos do individuo, por oposigao aos direitos do Estado, algumas das quais vieram a ser Cronotogia 1151: pablicagsa dos prim Encictopédia. fos volumes da 1776: Histérias Gerais da Miisica de Sit John Hawkins © Charles Burney; Declarasdo da 1982: Pergolesi, La sera padrona apresentada ‘em Paris; «guerra dos buftese. 1785: Hayda, prmeiros quaietos; Karl Graun, Der Tod Jesu 1759: Votaire, Candido. 1760: coroagio de Jorge I de Inglaterra (rei até 1820). 1762; Gluck. Orfeo ed Euridice em Viena; Jean- ~ecqucs Rousseau, O Contrato Social. 1764: Johann Winckelmann (1717-1768), Geswhichie der Kunsi der Altertums (Hisid- ria do Ade Aniiga), 1770: Mozan. primeiros quartetos; Thomas ‘Gansborough (1727-1788), The Blue Boy, 1774 Gluck, Orphee et Euridice em Paris; pri- ‘meiro congresso continental em Filadéllia; ‘Luis XVI coroade rei de Franga (até 1792), 1775: revoluséo americana (até 1783), Independéncia; Adam Smith, A Riqueza das Nacées. 1778: inavguragdo do teatro de épera La Seals em Milio. 1781; Immanuel Kant (1724-1804), Criitea da Razdo Pura 1784, Martin Gerbert, Scriptores ecclesiastici 1785: Mozart, Quarteios Haydn, 1787; Mozart, Don Giovanni 1788: Edward Gibbon (1737-1794), Histéria da Decadencia e Queda do Império Romano. 1789; Revolugdo Francesa (uté 1794). 1791; Haydn, primeiras Sinfonias de Londres: James Boswell (1740-1795), A Vida de Samuel Johnson. 1799: Beethoven, 1.* Sinfonia. 1800: Jacques Louis David (1748-1825), Madame Récumier: Haydn. As Esiagdes W Wisdelband. A History of Philosophy, wad, de J. H. Tufts, Nova torque, 1923, p- 500 476incorporadas na Declaragao de Independéncia e na Constituigdo americanas, nasce- ram a partir da eritica das enormes desigualdades entre o cidadao comum e as classes privilegiadas no continente curopeu. Esta critica social foi particularmente viva em Franca nos anos que precederam a revolugdo. progresso na aplicagao das descobertas cientificas avangaram a par dos come- os da revolugdo industrial. Entretanto, a crescente difusao da filosofia do sentimento ea glorificagao do homem «natural» coincidiu com a ascensdo da classe média. AsptcTos DA VIDA NO SECULO xvi —O século xvii foi uma era cosmopolita, As diferengas nacionais eram minimizadas, enquanto se sublinhava a natureza comum de todos os homens. Eram aumerosos os monarcas de origem estrangeira: reis ale- mies na Inglaterra, na Suécia e na Poldnia, um rei espanhol em Népoles, um duque francés na Toscdnia, uma princesa alema (Catarina II) como imperatriz da Réssia. O francés Voltaire fez uma estada relativamente longa na corte francéfona de Frede- rico, « Grande, da Prissia, ¢ 0 poeta italiano Metastasio na corte imperial alema de Viena. A internacionalizagdo da vida e do pensamento no século xvur reflectiu-se tam- bém na misica deste periodo. Os compositores alemaes de sinfonias exerciam a sua actividade em Paris € os compositores e autores de dpera italianos na Alemanha, na Espanha, na Russia e em Franca. Quantz, escrevendo em Berlim no ano de 1752, postula como estilo musical ideal aquele que inclua os melhores aspectos da musica de todas as nag6es (ver vinheta). «Hoje ha apenas uma musica em toda a Europa [...] esta linguagem universal do nosso continente», declarava Chabanon em 1785°. O século xvi mostrou-se receptivo em relago & influéncia de éperas remotas, bem como de lugares remotos: 0 movimento classico foi buscar inspirago ¢ exemplo a J. J. QUANTZ DEFENDE A SUPERIORIDADE DE UM ESTILO MISTO, COM ELEMENTOS DAS VARIAS NACIONA- LuDADES Num estilo que, como o da Alemanha actual, consiste numa mistura dos estilos dos diferentes poves, cada na¢do encontra alguma coisa com que tem afinidades e que, deste modo, ndo pode desagradar-the, Ao reflectir sobre todas as ideias e experiéncias acima citadas a propdsito das diferencas entre estilos, deveré dar-se a preferéncia ao puro estilo italiano sobre 0 puro estilo frances. Porém, um vez que 0 primeiro jd nao assenta sobre fundamentos 1do sélidos como outrora, tendo-se tornado arrevesado e bizarro, e uma ver que o segundo permaneceu excessivamente simples, todos concordardo que um estilo onde se conjuguem e misturem os bons elementos de ambos serd, sem dhivida, mais universal e mais agraddvel. Pois um estilo musical que é acothido e aprovado por muitos povos, ¢ ndo por uma tinica terra, uma tinica Provincia, ou uma iinica nagdo, um estilo musicial que, pelos motivos acima apontados, no pode merecer sendo aprovacdo, terd, por forca, de se basear também no bom senso e num Sentir escorreito, 0 methor de todos. Johann Joachim Quantz, On Playing the Flute, trad. ing. de Edward R. Reilly, Nova lorque, 1966, xvin, 89, p. 342. CE RE RSL eSNEES, ——_. Michel Paul Gui de Chabanon, De la musique considérée en elle-méme et dans ses rapporis: feic.), Paris, 1788, p, 97. 47}