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CONVERSANDO COM

KARAJAN

RICHARD OSBORNE
RICHARD OSBORN

CONVERSANDO COM
KARAJAN

Tradução
J. E. Smith Caldas

Editora Siciliano
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Karajan, Herbert von, 1908-1989


Conversando com Karajan / Herbert von Karajan;
[entrevistas por] Richard Osborne. Tradução J.E. Smith Caldas
- São Paulo:
Siciliano, 1992

ISBN 85-267-0393-5

1. Karajan, Herbert von, 1908-1989


2. Maestros – Entrevistas I. Osborne, Richard, 1954 – I. Título

92-0853 CDD-784.2092

Índices para catálogo sistemático

1. Maestros : entrevistas 784.2092

Título
C 1990 by Richard Osborne
Direitos exclusivos para o Brasil cedidos à
Agência Siciliano de Livros, Jornais e Revistas Ltda.
Av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3305
CEO 05145 – São Paulo – Brasil
Coord. Editorial: Ana Emília de Oliveira
Revisão: Roger Trimer, Augusto Domingues e Sheila Tonon Fabre
Arte: Carlos Perrone
Capa: A partir de elementos de pintura de Pirt Mondrian
Composição: Lasergraph Editoração Ltda.
Editora Siciliano 1992
SUMÁRIO

Prefácio, 9
Perfil de um músico, 15
Conversando com Karajan, 59
1. Os anos de formação, 61
2. A ligação com a Itália, 103
3. A Filarmônica de Berlim, 119
4. A arte de reger, 135
5. Sibelius, Richard Strauss e
a segunda escola vienense, 153
6. O disco e o filme:
a herança gravada, 179
7. Conclusões, 195
8. Epílogo, 207

Karajan e Oxford, 209


Karajan e a produção lírica, 213
Bibliografia selecionada, 21
Página 9
Prefácio

Herbert von Karajan morreu em 16 de julho de 1989 em sua


casa perto de Salzburg. Apenas seis semanas antes, eu havia
passado o dia com ele naquela mesma casa, dando os retoques
finais no texto deste livro. Talvez a sua aposentadoria, em abril,
do cargo de regente que ocupou por toda a vida na Orquestra
Filarmônica de Berlim o tivesse deixado com uma tendência
oculta à melancolia, mas aparentemente estava animado, tão
cheio de novidades extra-oficiais, idéias já oficializadas e
reminiscências como costumava estar desde que o conheci em
1977. embora a escolha do momento de sua demissão da
Filarmônica de Berlim houvesse chegado de surpresa, seus
amigos íntimos já adivinhavam há algum tempo que alguma
coisa acabaria por acontecer. Sua agenda daquele último inverno
foi anormalmente cansativa para uma pessoa de 81 anos;
concertos, gravações, uma turnê pela Europa com a Filarmônica
de Berlim, a primeira gravação que fez de Um baile de máscaras
de Verdi, uma viagem a Nova York em fevereiro com a
Filarmônica de viena, além

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de horas e horas de montagem de filmes para o tão amado
projeto de videodiscos. Tudo aquilo acabou sendo demais.
Ele leu a prova datilografada deste livro com olhos de revisor
traquejado, mas sugeriu muito poucas alterações: absolutamente
nenhuma no ensaio de apresentação e nos rodapés e apenas
algumas mudanças de ênfase e enunciado nas conversas
propriamente ditas. Ele falava abertamente em sair da
Filarmônica de Berlim, mas não queria definir nada quanto à
separação final. Karajan nunca deixou de ser paciente e sempre
gostou de adotar a perspectiva adequada a cada coisa. De
qualquer modo, era experiente demais para encarar a separação
em termos puramente pessoais. Depois de 60 anos na profissão,
havia testemunhado fatos desse tipo em outros tempos e outros
lugares, mas creio que ficou triste por causa da extensão do
rompimento às relações de trabalho que mantinha em algumas
das maiores orquestras européias e americanas destes últimos
anos.
As conversas registradas aqui baseiam-se em entrevistas
formais e conversas particulares que tive com Karajan num
período de 12 anos. As primeiras foram em Salzburg e Berlim,
respectivamente em maio e dezembro de 1977; as mais recentes
foram em Salzburg e Berlim no período de março de 1988 a junho
de 1989, com sessões adicionais em Viena em 1982 e janeiro de
1989.
Alguns trechos das primeiras conversas foram publicadas na
revista britânica Grammophone e suscitaram uma boa dose de
interesse. A sugestão de tentarmos continuar as conversas com o
objetivo de publicá-las em forma de livro veio, por um feliz acaso,
de Bruce Phillips, da Editora da Universidade de Oxford. Em 1978
Karajan recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade
de Oxford e, numa tarde inesquecível de maio de 1981, levou
alguns membros da Filarmônica de Berlim ao Sheldonian Theatre
para que tocassem músicas de J.S. Bach, Mozart e Richard
Strauss, de-

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monstrando o interesse que tinha pela universidade. Karajan
estava encantado com o que denominou “a idéia de Oxford” e
prometeu dedicar-lhe mais tempo e atenção quando acabasse de
filmar e fazer a montagem básica dos 50 videodiscos do
repertório principal, que deveria ser apresentada nos primeiros
meses de 1990. Foi uma promessa que cumpriu com a presteza
que lhe era característica.
Um dos inúmeros mitos que cercavam Karajan era o fato de
raramente dar entrevistas. Isso não é exatamente correto. A
verdade é que, com algumas exceções, os críticos e jornalistas
aparentemente queriam entrevistar mais a imagem pública do que
o músico e homem particular. No meu ensaio de apresentação
discuto alguns dos temas levantados pela carreira notável de
Karajan e observo como até pessoas competentes e
razoavelmente informadas entrevistaram Karajan e escreveram a
seu respeito de uma forma que aparentemente prefere confirmar
idéias preconcebidas a ajudar a vislumbrar aspectos de sua
pessoa.
Talvez seja um tanto irônico o fato de um grande músico nem
sempre ser ouvido com a atenção que o seu trabalho merece;
mas Karajan, que era um homem ao mesmo tempo prático e
paciente, provavelmente sempre soube disso. Em 1977, disse-me
que estava esboçando um livro sobre regentes e regência.
Naturalmente, eu não pretendia ter preferência na compra dos
direitos do material, mas quando mencionei isso ele sacudiu a
cabeça: “Não tem importância. A gente diz uma coisa uma vez e
ninguém ouve. Pode ser que, dizendo 20 vezes a mesma coisa...”
Parece que há pouco tempo surgiu um interesse mais amplo e
mais sério pelo Karajan músico, tanto o intérprete como um dos
pioneiros da revolução músico-tecnológica do século, e pelo
homem Karajan.
Ao editorar as conversas, reexaminei e remontei todas as
gravações e notas das sessões iniciais. Algumas vezes, nos

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pontos em que as opiniões de Karajan poderiam ter se modificado
ou invertido, retomei os assuntos em conversas posteriores,
apagando as entradas anteriores, para garantir que o material
apresentado aqui fosse o mais claro e representativo possível.
Karajan falava bem inglês devido aos três meses que passou na
Inglaterra em 1922, quando ainda era um menino de 14 anos;
aliás, Walter Legge descreveu o seu inglês como “seletivamente
articulado”. Mas sempre que surgia algum ponto a esclarecer ou
uma melhoria a introduzir na linguagem, não hesitei em fazê-lo.
Também procurei remediar algumas das minhas próprias
incompreensões iniciais. Voltando em certas conversas originais,
percebo agora que algumas vezes Karajan esboçava idéias e
dava pistas de projetos que se estendiam para o futuro. O que
parecera irrelevante em 1977 poderia adquirir um significado novo
12 anos depois.
Uma das maiores qualidades de Karajan era o planejamento a
longo prazo, não apenas de um espetáculo que estivesse
regendo, mas também de uma carreira que procurava sempre as
melhores condições para interpretar a música. Por isso algumas
vezes foi difícil fazê-lo voltar àqueles 60 ou mais anos de
produção musical na Europa, assunto sobre o qual tinha um
conhecimento enciclopédico e ainda muito preciso; mas espero
que estas conversas estabeleçam um equilíbrio entre
reminiscências e expectativas, oferecendo ao mesmo tempo a
possibilidade de uma penetração intuitiva de interesse
permanente na arte da regência como Karajan a via.
Do ponto de vista de colegas famosos ou do público em geral,
ninguém discute que Karajan foi um grande regente, mestre da
orquestra e na infinidade de tipos de música que regia. Mas é
preciso tratar com muito cuidado uma carreira que inclui não só a
música mas também a ciência e a tecnologia, além de alguns
aspectos da política e de uma

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teologia que tem tanto a ver com os pensamentos oriental como
com o ocidental. Um dia vai ser preciso escrever uma biografia
adequada que situe a vida e a obra de Karajan no seu contexto
musical, cultural e histórico; nesse sentido, o estudo sobre
Klemperer que Peter Heyworth está iniciando indica parcialmente
o caminho.
Na preparação das conversas, senti-me muito grato pela ajuda
logística que durante muitos anos recebi de várias pessoas, em
particular o dr. Uli Märkle da Télémondial e as sras. Lore
Salzburger e Antje Henneking, da gravadora Deutsche
Grammophon de Hamburgo, além de Anthony Pollard e
Christopher Pollar, da revista Grammophone, Siegfried
Lauterwasser, guardião do vasto arquivo fotográfico de Karajan, e
Richard Abram da gravadora EMI, que conseguiu para mim
algumas fotografias dos anos que Karajan passou na Orquestra
Philharmonia. A minha tarefa também foi facilitada e se tornou
mais agradável devido à hospitalidade e à ajuda que sempre me
foram oferecidas por Herbert e Eliette von Karajan e seus
empregados da casa nos arredores de Salzburg, o tipo de retiro
rural despretencioso que qualquer inglês tenderia invejar, sem
falar no jardim de Eliette von Karajan, no qual a única
excentricidade eram três lhamas e um velho burro encantador
que um dia apareceu na Carmen. Era sempre um prazer
conversar com Karajan longe do burburinho da vida de trabalho,
naquela bela casa de campo situada num prado rodeada de
montes e bosques de pinheiros. Naquela época ele estava
fazendo no andar superior uma galeria de quadros pintados pela
esposa, mas no andar térreo tudo estava disposto numa
simplicidade quase cisterciense. Em junho apareciam enormes
vasos de flores, dispostos no assoalho de pinho da sala de estar.
Com toda aquela vista que atravessava as campinas e chegava
ao pé do gigantesco Untersberg, não havia necessidade de muito
refinamento ou brilho. Provavelmente Karajan poderia ter

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tudo o que quisesse, mas na vida diária exigia muito pouco.
Quanto ao próprio Karajan, várias vezes me perguntaram o que
significava conhecê-lo. Neste ponto, imagino que as minhas
impressões não são muito diferentes daquelas dos que o
conheceram pessoalmente e não por meio das páginas dos
jornais. Dezenas de cantores e instrumentistas continuam
admirados com o cuidado e interesse que ele demonstrava pelas
suas vidas e carreiras, aliás um cuidado e interesse muito
maiores do que os demonstrados pelo pequeno grupo de
músicos, principalmente músicos de orquestra, cujas memórias
rebarbativas aparecem publicadas de vez em quando. Há alguns
anos Robert Layton, meu colega na revista Grammophone, crítico
e autoridade famosa em música escandinava, visitou Karajan em
Berlim para discutir com ele a música de Sibelius. Posteriormente,
escreveu o seguinte; “A impressão predominante que me ficou
desse encontro é muito diferente da imagem popular do
superastro cheio de brilho; ele é completamente direto e nada
afetado, inteiramente dedicado à verdade como ele próprio a vê”.
Falando com Karajan durante muitas horas, era impossível não
sentir uma mistura de fascínio e respeito e, no fim, uma grande
afeição. Foi um dos homens mais admiráveis de nossa era e se
estas reflexões e conversas nos ajudarem a compreender melhor
a sua obra e a honrar-lhe a memória, terão preenchido a sua
finalidade.

Richard Osborne
17 de julho de 1989
Perfil de um
músico
Hans Sachs Mein Freund! In holder Jugendzeit,
wenn uns von mächt’gen Trieben
zum sel1 gen ersten Lieben
die Brust sich schwellet hoch und weit,
ein schönes Lied zu singen
mocht’ vielen da gelingen:
der Lenz, der sang für sie.

Kam Sommer, Herbst und Winterzeit,


viel Not und Sorg’ im Leben,
manch’ ehlich Glück daneben,
Kindtauf’, Geschäfte, Zwist und Streit:
Denen’s dann noch will gelingen
Ein schönes Lied zu singen,
Seht, Meister nennt man die!

RICHARD WAGNER – Die Meistesinger, Act III


Página 17

Agora que o nosso século está para terminar, a vida dos


homens e mulheres famosos cujas carreiras abrangeram seu
decorrer adquire um interesse e um significado especiais.
Provavelmente Herbert von Karajan teria sido um fenômeno em
qualquer época, pois um talento musical daquela ordem, uma
inteligência superior e uma tal singeleza de propósitos raramente
passam despercebidos, mas o contexto do século XX tornou-lhe a
carreira invulgarmente fascinante, embora nem sempre fora muito
bem compreendida pelos biógrafos aprendizes ou jornalistas que
vêem Karajan como uma fonte irresistível de material para
publicação.
Sem dúvida, desde o tempo de Nikisch tem sido um problema
para os regentes famosos o fato de poderem vir a parecer mais
carismáticos que a música que regem. Não que isso seja para
nós motivo de preocupação indevida, se considerarmos o
entusiasmo e o senso de ocasião que esses grandes músicos
geram. Certa vez Leonard Bernstein disse que cada concerto de
Koussevitsky era “uma ocasião de
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gala”. Isso não é nada mau. E não é nada mau o fato de Karajan,
cujos concertos sempre foram ocasiões de gala durante quase 40
anos, também vender cerca de 100 milhões de discos desde que
começou a gravar seriamente, em 1946. Houve até algumas
tentativas de pintar essa proeza extraordinária como uma forma
de consumismo musical. Robert Chesterman insinuou isso numa
entrevista que fez há poucos anos com Karajan para a emissora
de rádio americana CBC. Mas o público musical não é tão
ingênuo como alguns críticos gostariam que fosse. Sem a menor
dúvida, o que gerou esse sucesso foi o profissionalismo de
Karajan em matéria de interpretação musical (aliás, venerado por
seus colegas músicos) combinado com uma série de espetáculos
excelentes que abrangiam um vasto repertório.
Infelizmente, é uma história de sucessos que põe Karajan num
pedestal distante numa era em que o autoritarismo, parte
essencial da arte da regência, se tornou mais suspeito
politicamente que o normal. Isso por sua vez, permitiu que
escritores e críticos criassem uma imagem de Karajan (homem e
músico) consideravelmente afastada da realidade, distorcendo
seus objetivos e ideais e, até certo ponto, desviando a atenção do
seu verdadeiro significado histórico. No caso de Karajan, é uma
distorção exagerada provocada por uma série de suposições a
respeito de interpretação musical e coisas como o chamado culto
ao perfeccionismo, assim como suposições a respeito das
relações entre música e tecnologia e música e política, que
geralmente têm uma credibilidade concreta ou intelectual muito
pequena.
Praticamente em qualquer nível, as atitudes em relação a
Karajan sempre foram mescladas com paradoxo e incoerência.
Desde seu notavelmente breve reinado como Generalmusik-
direktor (diretor geral de música) da europa (pois no fim da
década de 50 Karajan ocupou cargos importantes
simultaneamente em Viena, Berlim, Salzburg, Milão e Londres),

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até certo ponto, nos países de língua inglesa, onde há uma
desconfiança naturalmente sadia no que se refere a super-heróis
culturais, ele também era visto com reserva.
O aprendiz de maestro Karajan, trabalhando arduamente,
esfregando o palco do teatro de Ulm ou mudando os instrumentos
de lugar com um carrinho de mão, combina mais com o gosto
inglês. E também o sobrevivente Karajan, o homem atingido pela
doença, que não obstante isso compareceu, contra todas as
expectativas, para conduzir uma interpretação elevada e
espiritualmente profunda da Sinfonia Nº 1 de Brahms, como fez
no outono de 1988 em Londres, recebendo aplausos grandiosos
e sinceros. Há alguns anos, Hugh Maguire, veterano da cena
orquestral inglesa e admirador declarado de Karajan, expressou-
se muito bem a respeito disso: “Ele é muito forte, muito poderoso
e muito rico: está totalmente fora da regra geral. Faz 25 anos,
infelizmente, que não trabalho com ele”. 1 Sociologicamente, foi
dito o que era preciso, mas é o ‘infelizmente’ da frase, intercalado
como foi, que revela o sentimento do músico.
As pessoas que o conheciam afirmam que ele possuía certo ar
de isolamento, aliás uma característica dos homems poderosos.
Quando Christian Steiner fez alguns perfis fotográficos (aliás
muito discutidos) de Karajan em 1972 2, comentou a introspecção
evidente do modelo. Como Karajan tinha uma relação de amor e
ódio com a câmera fotográfica, detestava sua intrusão quando
estava regendo numa sala de concertos, além de se sentir pouco
à vontade com retratos formais. As observações de Steiner
precisam ser encaradas no seu contexto, embora sem dúvida
houvesse mesmo em Karajan uma propriedade de frieza e
afastamento que moldou uma parte da sua arte musical e
contribuiu, entre outras coisas, para torná-lo um intérprete tão
formidável de
_________________
1. Orchestra, editado por André Previn (Londres, 1970), 180.
2. Opera people (Londres, 1982), 87-89.

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Sibelius e das últimas obras de Mahler. Por outro lado, qualquer
pessoa que o tenha conhecido bem provavelmente falará de um
homem cheio de enorme encanto pessoal, direto e sem nenhuma
afetação, dotado de um espírito divertidamente sarcástico. Esta
última propriedade é interessante porque alguém sugeriu que
faltava humor na música deste maestro, uma dessas típicas
afirmações generalizantes que postulam um julgamento sem a
preocupação de examinar as provas. Nunca houve
absolutamente nada gratuitamente grosseiro ou vulgar na música
de Karajan, e de fato é verdade que ele nunca tentou enxertar
piadas adicionais ou gargalhadas em partituras como a do
Falstaff de Verdi. Embora em todos os aspectos ele fosse
favorável à idéia sugerida pela própria gravadora Decca de dar
um tom de festa à famosa gravação de O Morcego, feita em
1960, era impensável que a opereta propriamente dita fosse
sujeita à uma ênfase cômica vulgar. De tempos em tempos,
quando Karajan regia uma abertura de Offenbach com uma força
e uma verve fora do comum, vinha-nos à lembrança o fato de
Bismarck ter sido um dos maiores admiradores desse compositor
francês; mas, por mais que a personalidade do próprio Karajan
penetrasse na sua maneira de reger música cômica, o que
transparecia era certa mordacidade de espírito. O humor negro da
cena do patíbulo de Um baile de máscaras de Verdi é muito
verdiano e também muito karajanesco; e apesar de geralmente
Karajan considerar os críticos de Ein Heldenleben (Uma vida de
herói) de Strauss muito mais exigentes do que provavelmente
eram, ainda estou para ouvir uma interpretação mais maldosa da
polca Tritsch-tratsch do que a regida por Karajan numa das
últimas gravações que fez com a Orquestra Philharmonia em
setembro de 1960.
O fato de Karajan ser um homem de um humor considerável, ter
um bom lastro de histórias e casos musicais

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e um grande talento para a mímica musical não obscurece a
existência do seu eu mais íntimo que Steiner afirma ter visto de
relance e que também estava evidente em sua preocupação
constante em esquiar, voar e velejar, atividades não de playboy
rico e sim de uma pessoa que desde a infância não se sentia à
vontade com o gregarismo e a vida urbana. O desejo de ficar
sozinho com a natureza, que seu irmão mais velho levava ao
ponto de excentricidade, também estava nele próprio; era um
impulso ao mesmo tempo deliciado e desapaixonado de descartar
as coisas mundanas. Karajan teria concordado com o poeta
Hardy: “As cadeias da mente não rangem quando o nosso vizinho
mais próximo é o céu”.
Schönberg descreveu o Mahler da sinfonia nº 9 como um
homem “à vontade com o frescor espiritual”, uma coisa que
Karajan, na qualidade de intérprete da música de Mahler, sem
dúvida compreendia. Isso também está na maneira altivamente
bela e penetrante com que regeu Madama Butterfly de Puccini
para Maria Callas na gravação que fizeram em 1955 em Milão. E
está na sua maneira de reger o Prélude à l’ après-midi d’um faune
(Prelúdio à tarde de um fauno) de Debussy, que o wagneriano
inglês Reginald Goodall destacou certa vez como um tipo de
regência que conseguia, por meio de algum tipo de alquimia
inigualável, captar simultaneamente um sentido de fogo e gelo,
um calor opressivo e uma calma marmórea.
Em 1956 o crítico francês Bernard Gavoty publicou uma
monografia que mostrava uma grande preocupação com o
temperamente e a habilidade musical de Karajan numa época em
que ele estava sendo cada vez mais considerado um superastro
ambicioso que um músico totalmente dedicado. No ápice do
ensaio escrito por Gavoty, há uma descrição de Karajan regendo
a Sinfonia litúrgica de Honegger no Festival de Lucerna. Gavoty
conhecia Honegger, com quem
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havia discutido aquela obra impressionante – “um drama em três
atos, uma prece sem forma, articulada por um mundo tumultuado”
–, escrito no inverno entre 1945 e 1946. Depois de descrever a
sinfonia numa prosa rica em metáforas, Gavoty chegou à coda,
uma espécie de dona nobis pacem (daí-nos a paz), e chegou
também a Karajan:

“A cidade está morta e as pedras estão fumegando, mas o dia


vem surgindo e um pássaro inocente pipila acima das ruínas. A
flautinha pratica seu exercício, e depois tudo é silêncio, pois tudo
já foi dito. Para quem estou falando? Não mais para você, Herbert
von Karajan, e sim para a multidão anônima a quem Honegger
está se dirigindo do pináculo do seu gênio. Vamos acalmar agora
e retomar as nossas equanimidades e o fio interrompido da nossa
discussão. É que esta febre imprevista que acabou de me deixar
prostrado não foi induzida por Honegger sozinho, mas também
por você. O maior compositor do mundo, se não tiver um
intérprete adequado, é como um homem impedido de falar por
uma mordaça; e esta noite foi você quem agiu como intérprete
para desatar a mordaça, como mensageiro para levar as boas
novas. Executou a sua parte como grande ator trágico que é. Não
que estivesse dissimulando emoções que não sentiu: você foi
apenas seu tradutor e transcendeu àquelas emoções conferindo-
lhes o calor de fornalha que faz uma obra de gênio emitir luz
quando levada à temperatura desejada. Mesmo quando ordenava
a marcha dos seus soldados, fez algumas daquelas descobertas
súbitas que lançam mais luz do que uma análise laboriosa. No
final, quando a orquestra inteira pronunciava a súplica tríplice Do-
na-no-bis-pa-cem, um gesto maravilhoso escapou de repente de
você: Eu o vi mergulhar o punho esquerdo para baixo como se
estivesse aproximando a tocha do lado de uma pira fúnebre.
Imediatamente a orquestra toda se in-

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flamou. Do meu lugar, consegui ver o seu perfil. E na verdade já
não era mais, como eu pensei, uma questão de astro que corteja
o sucesso adotando afetações de prima-dona; tratava-se de um
homem que se entregou num transe. Você era um mediador, na
total acepção da palavra, um mediador que mantinha o elo sutil
que há entre a obra musical e a platéia. Por um instante eu o vi,
ereto na ponta dos pés, regendo a sua orquestra e transfigurado
por uma expressão de conquistador. Um fogo luciferino o estava
consumindo, o que significa que naquele momento você estava
emitindo luz. Assim, num instante foi levantado o véu que me
impedia de vê-lo como é. O que confundia com afetação não era
senão concentração. No ato de reger, você fez tamanho esforço
interior que não lhe sobrou energia suficiente para cuidar da
aparência exterior. E você apenas parecia artificial na medida em
que desprezava os dispositivos costumeiros da falsa
simplicidade.3

A resposta de Karajan para a Sinfonia litúrgica de Honegger e


para a quase contemporânea Metamorphosen (Metamorfoses) de
Strauss, que ele gravou pela primeira vez em 1974, oferece
especialmente a prova musical das prioridades e compromissos
de sua fidelidade, que eu ainda estou para ver considerados
pelas pessoas que ficaram tão preocupadas em analisar e reciclar
informações em geral errôneas sobre suas supostas simpatias
políticas antes e durante a segunda guerra mundial.
Sem dúvida nenhuma, Karajan pôde observar de perto a
política do poder na música, tendo se tornado por algum acaso
maligno entre 1937 e 1938 um possível rival do politicamente
obstinado Furtwängler. Mas a carreira de Karajan de 1929 a 1949,
vista em toda a sua perspectiva histórica, esteve tão sujeita a
traumas, perturbações e
__________ __
3. Herbert von Karajan, de Bernard GAvoty (Genebra, 1956), 13-15.

Página 24
caprichos dos tempos como a de qualquer pessoa. Quem lesse
algumas das peças de propaganda ad hominem dirigidas contra
ele nos anos seguintes ao fim da guerra poderia imaginá-lo um
importante protagonista naquele drama horrível. Na realidade,
falando em termos enxadrísticos, ele era mais peão que jogador,
talentoso, trabalhador e sem bases firmes. Despedido de Ulm em
1934 por excesso de talento, viveu em Aachen só até 1942.
depois da guerra, teve a carreira interrompida pelos tribunais de
investigação dos aliados e parcialmente bloqueada em Berlim,
Viena e Salzburg pelas maquinações de Furtwängler. Certa vez,
Walter Legge disse que Karajan não estava interessado em
política, com exceção da variedade musical, da qual se tornou
mestre consumado. Mas até mesmo essa observação expressa
apenas uma parte da verdade. A despeito da ascensão meteórica
de Karajan a posições de poder e influência depois da morte de
Furtwängler em 1954 e após a demissão de Bohm da Filarmônica
de Viena alguns meses mais tarde, está claro que o objetivo final
de Karajan não era o poder, era a independência: isso explica o
contrato vitalício com a Filarmônica de Berlim, a fundação do
Festival de Páscoa de Salzburg, em 1967, brilhantemente
engendrada e financiada por Karajan depois que voltou a ter
influência em Salzburg e após o seu reinado de oito anos na
Ópera de Viena. Quando os políticos o desafiavam, ele os
manobrava até que seu trabalho estivesse terminado: então (em
1964 em Viena e em 1989 em Berlim), simples e rapidamente se
retirava para começar novos projetos.
Karajan sempre deixou bem claro dentro de si mesmo qual era
o seu propósito na vida. No inverno entre 1945 e 1946, quando se
retirou para as montanhas para fazer um retiro espiritual,
escreveu o seguinte a um dos adidos culturais americanos de
quem ficou muito amigo;

Página 25
Sua carta me deu uma grande satisfação; foi uma mensagem de
outro ser humano que se aproxima do próprio trabalho com a
mesma seriedade com que eu a aproximo do meu, e por causa
disso sofreu como eu com as insanidades da nossa época... No
começo deste ano retirei-me aqui para cima a fim de levar uma
vida tranqüila de estudo e meditação concentrados,
redescobrindo-me na vastidão e na solidão das montanhas. Sinto-
me ótimo por dentro e por fora; foi o período mais produtivo em
muitos anos. Precisarei estar com os nervos mais firmes do que
nunca... Meus planos ainda estão completamente no ar; só tenho
certeza de retornar meu trabalho quando a nova temporada
estiver em andamento, e então vou fazer música somente quando
me oferecerem as melhores condições para isso.4

Posteriormente, quando não lhe ofereciam essas condições, ele


próprio as criava.
A despeito de tudo isso, e mais do que qualquer biografia bem
pesquisada de Karajan poderia revelar, o fato curioso é que vários
escritores influentes continuam a exibir suas fantasias estranhas
quando escrevem a respeito do Herbert von Karajan de ficção,
uma espécie de Frankenstein dos nossos dias criado por eles
mesmos. Felizmente, a carreira de Karajan está tão bem
documentada (oficial e não oficialmente) em gravações, que
qualquer pessoa pode verificar por si mesma se as interpretações
coincidem com algumas das descrições mais esquisitas que
temos dele. E no entanto temos aqui, como em tantos outros
assuntos que cercam a obra e a reputação de Karajan, a questão
mais ampla de saber até que ponto o que ouvimos que existe é o
oposto do que imaginamos que existe. Karajan não é o primeiro
regente a ser afetado por isso. Durante muitos anos dizia-se
________________
4. Citado em Herbert von Karajan: A biographical portrait, de Roger Vaughan
(Londres, 1986), 142 e 143.

Pág. 26
que o “fanático” Toscanini regia tudo muito depressa, embora
esteja provado que o seu Parsifal apresentado no Bayreuth foi o
mais lento da história do teatro e o seu famoso Faustaff, para não
falar de grande parte dos seus Mozart e Brahms, tinha um
andamento amplo completamente fora do comum.

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