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Aunerto Da Costa & SILVA ‘A MANILHA E O LIBAMBO AAfrica ¢ a escravii 2, de 1500 « 1700 3 mpessio ~_WAE.COPIAS | ~ ‘SOPIADORA DA BALA JUCUINEA Pose - 3o4 A Nas terras do Jslame € 1m 632 mortia Maomé, Nas décadas seguintes, os érabes, por ele unifi- cados, abalaram Bizincio ¢ conquistaram o Iraque, a Sirs, 2 Palestina, 4 Persia, a Artnia, a Asia Menor 0 Egitoe os ltoris da Aftica do Norte até a Tunisia. Antes de findar 0 século, cles acrescentariam 0 Afeganistio a seus dominios, caminhariam para a india e se fariam senhores de quase todo. o norte da Aftica. Un historiador militar, para quem essas conquistas s6 se comparam, em extensio ¢ rapidez, is de Alexandre Magno, relembra que os érabes io trouxeram para os campos de batalha novas armas nem novas titicas, mas transformaram inteiramente o modo de fxzer a guerra, 20 mover os exécitos ‘com 0 entusiasmo e a forga de uma ida.’ Maomé era um mereador, mas j& fora um guerzeio. E a fE que pregara era militante e se afirmava tanto pela palavra quanto pelas armas. ’Penso que 0 Alcorio & claro: impunha-se dar combate ¢ vencer quem ino se convertesse, quem nio aceitasse haver um s6 Deus, que tinha Maomé por seu profeta? O bed ou guerra santa, destinado a ampliar 0s terttérios sob a lei divina e o govemo dos fiis, era uma das obrigagGes do crente. Nas batalhas, ganhavam-se 0 paraiso. e os bens da terra ‘Ao impio, cumpria bater-lhe na nuca até chaciné-lo Se eaisse vivo nas mios do devoto, hava que apertar com forga as cordas que o amarravam, ‘embora, terminada a campanha, pudesse vir a receber o favor da liberdade ou ser objeto de reagate* Nas primeiras décadas do Islame, 0 mais provivel & que ficasse em paz, de todo subordinado 20s conquistadores.drabes ¢ a trabalhar em seus campos ¢ em suas vilas para sustentar 0 que aspirava a ser ‘uma casta militar dixigente 4 qual estava vedada a posse o'trabalho da tecra ~ 32m Ader Co Sie ¢ qualquer outro oficio que no o das armas. Muitos dos aprisionados nas batalhas foram, no entanto, escravizados. E esta viria a ser a regra, muito mais tarde, na Africa, Pois no figura nas respostas de Al-Maghili, o grande jurista do fim do século XV, 20 dquia (ou rei) Muhamed, de Songai (ou Sonrai), set dever do mugulmano fervoroso “fazer a guerra santa contra 0s infiis, matar-thes os homens, escravizar-lhes as mulheres e as criansas € ticarlhes todas as riquezas"? © (0 Alcordo nio justifica nem condena a escravidio. Tem-na como natural. Se dela fala em algumas passagens, & para recomendar, como obra pia, reparadora ou expiatéria, a manumissio dos escravos,” preceituar que devem ser tratados com bondade® ¢ estabelecer regras de comportamento ‘entre os escravos e entre eles e seus senhores.? Em outros textos que obrigam 6 fiel — como a suna ou pritica do Profeta, seus atos ¢ palavras conforine incorporados nos hadith ou tradigSes, as sentengas dos primeiros califas € a sari (sbar'a) ou diteitoislimico —, preceitua-se que o senhor abrigue, vista e aliments de forma correta 0 esctavo © 0 poupe de trabalhos excessivos. Maomé, ele proprio dono de escravos, teria advertido: “Se gostas de um ‘escravo, mantém-no em tua posse; se nio, vende-o, Mas nio causes softi- mento a uma criatura de Deus. Assim como 0 Todo-Poderoso dispés que fosses dono do escravo, poderia ter feito deste o teu senhor.”” Para o islame, acondigio normal do homem €a liberdade, Foi a partir desse principio que as viras escolas jurdicas mugulmanas, fossem sunita, aiitas ou carijitas, compuseram as doutrinas, leis ¢ jurisprudéncias sobre a cscravidio."" Nenhama pessoa livre podia ser eseravizada por crime, divida cou indigéncia. Nao era lcito, como na Grécia ou em Roma) fazer escrava, por exemplo, a crianga abandonada, Escravo era quem nascia nessa condisio fou era a ela reduzido em guerra santa. Ou, ainda, quem era importado de terras de inftis, Pois o mundo divide-se em metades inconciliéveis: de um lado, a comunidade dos crentes (unm), a casa da paz, da submissio ¢ da obeditncia (0 Dar al-Llan), , do outro, a casa da infidelidade e da guerra (o (Dar al-Har). Quem pertence a esta s6 pode estar naquela como dhinia ou “ protegido”, se zoroastiano, judeu ou ctistio (os dois dltimos, “povos do Livro” adeptos de uma religiio revelada, ainda que imperfeita), ou como cscravo, caso idélatra ou pagio. 'S6 como escravo — €, por isso, o ato de escravizar era um ato pio, ‘quase obrigagio do homem de verdadeira f& — podia enderegar-se & salva Anestecatbede 33 so aquele que nfo se converte ao primeiro chamado. O id contribuia, assim, para purificar 0 mundo, eliminando fisicamente o infel, ou Ihe arran- cando, pela escravizacio, a existéncia legal-e moral. A essincia humana do ceseravizado.nio lhe seria devolvida senio com a alfortia, para o que era indispensivel que antes se houvesse convertido, Pois s6 © maometano — € também, para a maioria dos sunitas, 0 dhimma — podia set manurnisso.”* Era como se a excravidio — isto li em John Ralph Willis!” — eatin- ‘guisse a culpa do impio, Como se, por meio dela se expiasse o sangue derra- ‘mado no jihad pelos fiis. Como se 0 dono fosse credor do excravo © este devesse aquele a propria vida, pois devia ter sido morto, uma vez que no se convertera no devido tempo. Escravo, tomava-se uma espécie de diya (ou reparasio a ser paga por um ofensor 4 parte ofendida), uma di destinada a compensar as vidas que o'Tslame perdeu durante a guerra santa. Ainda assim, devia ser 0 escravo tratado com compaixio ¢ boa vontade, porque o estado servil Ihe estava, de certo modo, desde sempre predestinado. E, embora fosse tle definido como absoluta propriedade do dono, a xarié dava énfase & sua capacidade humana." (O islame melhorou, sem diivida, o estado do eseravo na Ardbia, onde sempre fora tido como um bem semovente, como gado, recebendo do dono, — repito o que jf se disse” — a mesma protesio que um camelo. Como quase sempre sucede, hava, no entanto, grande diferenga entre a pritica e a \ “ipregagio em nome do Profeta. Essa diferenga alargou-se & medida que os frabes foram acumulando éxitos em sua empresa de conquista, se conver cendo de que etam 0 povo eleito, se enriquecendo com o butim ¢ o tributo, se urbanizando e, concomitantemente, arabizando as populagSes submeti- das, Nao cessou de aumentar entre eles © miimero de escravos e escravas. Para concubinas, cantoras ¢ misicas. Para © cuidado dos jardins e das hortas. ara o trato dos cavalos e dos camelos. Para trabalharem o barto, as fibras, 0 couro, os metais e a madeira. Para as minas, Para os servigos domésticos de ‘uma aristocracia em formasio, que abandonava as tendas ¢ os acampamen- tos militares e construiaalcdceres, palacetes ¢ mansdes, enquanto aumentava ‘© tamanho de seus serralhos. Para acompanhar os senhores nas batalhas ¢, mais tarde, combater como soldados. A demanda de mio-de-obra cativa, as guerras santas deram, de inicio, resposta, Das tribos berberes da Africa do Norte, pot exemplo, arrancaram- seus 34 Ale de Cute She se, as cencenas, escravos e mais escravos, sobretudo mulheres jovens, tio requisitadas pelos haréns, ¢ meninos ¢ rapazolas para serem treinados para 0 exército e servirem de ghdam, ou pajemn, e, como tal se exulereyatens is vezes| as priticas da pederastia Como, porém, a expansio drabe deu-se, em seu primeiro século, sobretudo as expensas de Bizincio e da Pérsia e, portanto, sobre territérios habitados por povos de convicglo cristi, mosaica ou ‘oroastriana, o ntimero de escravos obtidos quase nunca correspondia as expectativas do califa e dos que mandavam em seu nome, Com a estabiliza- slo das fronteiras entre © Dar al-Islam e 0 Dar al-Harb — jf na metade do século VIII elas se situavam na Espanha e na fndia—, a tendéncis era dimi- nur 0 niémero de pessoas reduzidas disetamente pelas armas. E 0s islamitas passaram a abastecer-se de escravos oriundos de terras ainda mais distances, de terras de idélatras que se podiam licitamente comprar, porque, perten- cendo a0 Der al-Hlarb, contra eles cabia fazer-se a guerra santa, Eram, por isso, escravos em potencial.” Havia,aliés, um tipo de escravo que os moslins tinham forzosamente de receber por compra ou tributo: 0 eunuco, indispensivel & administragio do harém. Como Maomé condenara 0 fabrico de eunucos, mas no o seu uso € posse, pois ele proprio fora dono de um capado,"® nfo restava 20 smugulmano sengo obté-ls fora dos tertérios do Islame. Tal qual em Roma, onde a castragio era proibida e os eunucos tinham de ser adquiidos além dlos lindes do império.” A fim de atender i demanda, desenvolveram-se ceentros produtores de castrados na periferia do mundo mugulmano. Em smosteiros cristios. Nos Baleas. Em Praga. Em Verdun, No mar Cispio. Na ‘Amménia, Na Nibia. Na Ei6pia. No Darfur. Em Bagirmi. Em Nupe. ‘As cidades arabes acolhiam escravos de toda parte, até mesmo da fn- dia, da China do sudeste da Asia. O grosso vinha, no entanto, da Europa, das estepes asiaticas e da Africa. Era antiqiissimo 0 comércio de negros, sobretudo de mulheres etiopes, apreciadissimas concubinas, com a peninsula Ardbica. Os escravos mais comuns, os abexins e os somalis, atravessavam 0 mar Vermelho. E possivel que os outros passassem pelo Egito, trazidos da Nébia, do Darfur, do Cordofi e do Fezzan, ¢ att mesmo que uns poucos embarcassem nas praias Ammileco lhe me 35 do fndico, nos dbows ¢ outros barcos frabes. Em determinados momentos hist6ricos, os escravos negros seriam numeroses. Em outros, de se conta- rem pelas mos No sabemos qual a situagio na Aribia da época de Maomé, mas provavelmente os negros eram, entre os escravos, minor Pelo menos € isso © que se deduz da lista de escravos e libertos do Profeta e de seus camara- das Uma lista com alguns nomes ilustres. Como o de Bilal ibne Rabsh, © primeiro almuadem a chamar os fitis 2 oragio, Bilal, de origem abissinia, rasceu excravo, Escravo também ¢ também etiope foi Abu Bakre,alforriado pelo proprio Profera# ‘Com a ocupasio do Bgito e do norte da Africa, multiplicaram-se os cescravos pretos. Em pouco tempo, os drabes seus corteligionécios organi zaram ¢ desenvolveram © comércio a distincia de negros, dando-the uma dlimensio que jamais tivera. Pastiram para isso dos pecuenos mercados jé cexistentes no Egito e no Magrebe, de rotas mileniias, como as da Nabia, ou de jtinerdvios que datavam dos primeiros séculos de nossa era, de quando a adogio do camelo permitiu aos berberes que awavessssem regularmence 0 Sara ¢ fossem pilhac as estepes e as savanas 20 sul do deserto e ali prear snegros, para pé-los nos ofsis, a cultivar cereas e tamara, ¢talvez para vend®- los na Africa do Norte. Talvez — e uso 0 advézbio, porque hi quem julgue {que 86 apés a conquista érabe, ou, melhor, entre o fim do século VITe a metade do VIM, os berberes recém-convertides ao islamismo vincularam comercialmente o norte da Africa 20 Sudio e passaram a teaficar em cati- ‘vos negros, tansformando-se de escravizados em eseravizadores. Para quem assim pensa, escravos provenientes do sul do Ssara s6 reriam comegado a parecer em ntimeros expressivos nos mercados norte-afticanos no fim do século VIL Em 641, mal se ematara a ocupagio do Ego, a cavalara Stabe ata- cou, sem éxito, 0 reino cristo nuibio da Macitia2® Dez anos depois, os deabes volearam a carga e stiaram Dongola, a capital macurra, Talvez por- que da lata nao tivesse saido um vencedor claro, firmou-se um tratado entre © Egito musulmano ¢ 0 reino niibio, o famoso bag, vigente durante cerca de 600 anos. Por esse acordo, os ntibios forneceriam anualmente 360 es- cxavos a0 imame dos moslins ¢ 40 a0 governador (ou wall) de Assua. Em toca, receberiam trigo, cevada, vinhos ¢ tecidos,além de duas éguas de grande saga Q BE Als de (eae She © entedo repetiu-se mais adiante, Tio pronto se instalaram na ripolitinia, os drabes, que certamente nio ignoravam que os garamantes forneciam escravos i costa, avangacam com seus exércitos para © sul. Em 669 (ou dois anos antes), apés vencer Garama, Uqha ibne Nafiimpés 2 sua gente um tributo de 360 cativos.* que nfo sabemos se seriam berberes ou fnegtos. E outros tantos a Wadan, a0 Fezzan e a Kawa, se acreditarmos na veracidade do que escreves, no século TX, Ibne Abd al-Hakam.” Nessas partes, como na Nibia, o principal interesse dos conquistadores parece ter sido o de obter regularmenteexcravos. Mas, num e noutto caso, nlo se pode dlescartar que procursssem sobretudo our Desde a metade do século XVI aC, explorava-se ouro nas proximi- ides de dois uédis (ou tos, geralmente secos, do deserto), o Alaqui e seu afluente, o Cabagba, na Nabia. Etalvez entre os séculos Ile V de nossa era, ‘os berberesjé fossem buscar ao sul do Saara o metal amarelo, Assenhoreando- se do deserto, grasas a0 camelo, eles estabeleceram virias rotas entre, de um ado, 0 Marrocos, a Argéia, a Tunisia, a Libia ¢ 0 Egito e, do outro, 0 rio ‘Senegal 0 sul da Mauritinia, a curva do Niger € 0 lago Chade.# ‘A principal mercadoria que trocavam por ouro era o sal. © sal encon- tzado em estado sélido em virios pontos do deserto, Talvez nos mesmos Tugares que mais tarde se tornariam produtores famosos:Idjl, Taoudeni, “Taguza. Para corté-lo em blocos e transports-l para o dorso dos dromedirios, suspeita-se que se empregassem, desde o infcio, xcravos. Escravos preados zo Saele na savana ou adquicidos também com sal. Se muitos deles ficavam as minas e nos ofsis do Suara, outros continuavam a caminhar a0 lado dos camelos até os mercados do norte da Africa. Tém-se 0 ouro ¢0 sal como os responsiveis, a partir talvez do século IV, pela consolidagio do reino de Gana Adiciono um terceiro elemento: o excravo. Tanto os saracolés, que criaram Gana, quanto muitos dos grupos que estiveram na base dos numerosos reinos € cidades-estado da savana sudanesa e dos impérios do Mali e de Songai, organizaram-se militarmente para defender-se dos ndmades do deserto, que atacavam suas aldeias, sa- dqueando-Ihes os celeres, roubando-thes o gado e Ihes arrancando as mu- Iheres e as criangas. Quando se sentiram fortes nas armas, os sudaneses passaram a empreender razias contra os vizinhos mais débeis e a oferecé- los como escravos aoe antigos agressores,j& conciliados pelas vantagens do comércio, Ananitarsibame me 37 Os arabes logo souberam da existéncia de Gana. Tanto que Gana aparece como “o pais do ouro” nos escritos de um autor da segunda metade do século VII, Al-Fazari.*® Deve ter sido sua procura que Habib ibne Abi Ubaida al-Fihri, neto de Ugba ibne Nafi, comandou, em 736, uma expedi- (glo a0 Suz, no sul do Marrocos, e 20 pais dos negros. Conta Ibne Abd al- Hakam que ele regressou coberto de ouro ¢ com um butim em que havia escravos." Seu filho, Abd al-Rahman, marearia, para uso dos arabes, por volta de 745, uma pista caravaneira que ligava o Suz 4 outra praia do deser- to, recuperando pogos antigos e furando cacimbas novas.®* Essa histéria nos diz mais do que literalmente nos conta. Ela nos diz ue 0 século VIII ainda nao havia chegado a0 meio ¢ ji 0s irabes procura~ vam controlar e melhorar os caminhos que levavam ao Bilad al-Sudan, o “Pais dos Negros” e do ouro, a fim de vinculi-lo ao enorme mercado que, tendo por niicleo a Aribia, 0 Egito e o Crescente Fértil, se estendia da Espanha a0 Sind, ¢ se enlagava com Bizincio, a Europa Ocidental, a fndia hinduista budista, o sudeste da Asia, a China e 0s litorais afticanos do Indico. Nesse imenso espaso, circulavam, de uma ponta a outra, a seda ¢ as potcelanas chinesas, 0 estanho espanhol, os algodées da India, o incenso do Iémen, os brocados da Pérsia, 0 trigo do Egito, os cavalos da Arabia, ¢ 0 azeite, e as pimentas, ¢ as timaras, e os tapetes, e 0 cobre, ¢ 0 anil, 0 vidro, € o coral, ¢ (os perfumes, e as lousas, ¢ as plumas de avestruz, ¢ a prata, € 0 Ouro, € 0 marfim, € 08 escravos. De pastores némades e comerciantes urbanos, Maomé fizera a aristo- cracia rica e poderosa de um grande império. & bem verdade que os arabes, a partir do final do século VIN, tiveram de partilhar cada vez mais as posigbes de elite, primeiro, com os persas ¢, depois, com as demais nagbes que se islamizavam. E certo também que a unidade religiosa ¢ politica legada por ‘Maomé e mantida pelos quatro primeiros califas se foi danificando, 20 lon- go do eempo. Divergéncias sobre a condugio espiritual ¢ temporal do Islame tomaram forma no sunismo, no xiismo, no carijismo. Modos distintos de interpretar as suas leis separaram os hanafitas dos hambalitas, ¢ estes dos ‘aliquitas ¢ dos xafita. Proliferaram centros auténomos de poder, que ape- nas prestavam vassalagem nominal e simbélica 20 califa (ou sucessor de BB Abr de Cute She ‘Maomé),€ 0 proprio califado dividiu-se, no sfculo X, em ees: 0 abissida, 0 fomiada ¢ 0 fatimida. Essas cisdes e desavengas nfo afetavam, contudo, a inteieza bisica do islamismo. Qualquer que fosse a natureza das dissenses, © Alcorio era sempre © mesmo, e a8 mesmas as cinco principais obtigagdes do crente. © baj ou peregrinacio a Meca, fortalecia esse sentimento de intensa comunhio numa s6 fé. Em todo o mundo musulmano, teceram-se hibitos comuns de vida, gastos compartilhados, modos de pensar semelhan- tes. De um extremo 20 outro de sua ampla gcografia,liam-se os mesmos livros, discutiam-se as mesmas idéias filos6ficas e cientificas e predomina- ‘vam, com pequenas variantes, os mesmos estilos de arquitetura, artes decora- tivas, misica © poesia. Para um maometano de entio, 0 mundo civilizado ‘estendia-se da Espanha a {ndia islamita, passando pelo Magrebe, o Egito, a “Aribia, o Iraque’e a Pésia. Respeitavam-se a China, Bizincio e a India hhindufsta e budista, ainda que suas culturas fossem mancas, pot apartads da verdade, O resto — os grupos humanos que viviam 20 norte, como francos, germanos e eslavos, ou a0 sul, como os negros da Africa — pertencia a barbirie, sem cultura, ate, ciéncia e discernimento. ‘Que tenham ido a0 Suz e a0 Fezzan, mostra-nos que os Srabes no ignoravam que dali saiam dois caminhos que levavam & outa praia do Suara — caminhos cuja importincia passar dos steulos 36 confirmaria. Nao lograram, contudo, os érabes controlar 0 comércio transtariano, Continuow cle em grande parte nas mios dos berberes — islamizados, & bem verdade, em titima anilise a servigo do ectimeno mugulmano. [Na sua conversio, a maioria dos norte-afticanos prefer, a ortodoxia sunita ou ao xiismo, as conviesSes ¢ as priticas dos carijitas, tanto em sua versio sufvta, mais radical, quanto na ibadita, mais acomodadora, Os caijitas sustentavam a absoluta igualdade entre os maometanos ¢ o direito de qual- quer devoto a ser eleito imame, 0 chefe supremo da comunidade dos ftis. Advogavam, por isso, como um dever, a reeigio de um califado iegitimo, como 0 abissida. Os primeitos pregadores dessa heterodoxia vieram provavelmente do Ixaque e do Ir e trouxeram com eles nio s6 as suas interpretagSes teol6gicas, morais e politicas do islame, mas eambém copiosos capitais ¢ uma longa pritica do comércio a distincia, uma experiéncia que transmiticam a seus conversos berberes,fossem citadinos ou némades do deserto. Os suftitas, fandadores, a0 que consta, em 757, de Sijlmessa.” no Tafilelte, predomi- Arana cetbers 39 nariam no Marrocos. Os ibaditas, na Tripolitinia, Tunisia e Argélia, onde estabeleceram um sultanato em Tahert ¢ se impuseram em Tremecém (ou Tlemcen). Aqueles dominariam os caminhos no Saara Ocidental. Os ibaditas, as rotas que passavam pelo Fezzan e pelo Kawat. Os itinerdtios no deserts trasavam-se em funsio dos pontos de égua e da resisténcia dos camelos, Estes so capazes de ficar sem beber de dez.a 15 dias ¢ podem marchar, com uma carga de 120 a 150kg, uns 30 a 4Skm por jornada. Um caminho com um minimo de seguranca deveria tet, por isso, ‘a0 menos uma cacimba a cada 200 ¢ poucos quilémetros. Convinha ademais {que 0s posos se amiudassem nos trechos a screm percorridos na tiltima se- ‘mana da travessia, quando os homens estariam mais fatigados e fartos da * Sgua choca que traziam nos ocres. Alguns desses itineritios talvez fossem anteriores & islamizagio dos berberes. Fariam parte, asim, dos primeiros episédios daquilo a que ja se chamou “a revolugio do camelo”™S e que fez do Saara um mar interior. (Outros desenvolveram-se no svangar dos séculos, substituindo rotas mais antigas caidas em desuso, E outros, ainda, s6 bem mais tarde foram, por assim dizer, descobercos. Um dos roteiros menos rigorosos, porque abrandado na maior parte de seu traeto pela proximidade do oceano, saia dos isis do sul do Marro- 0s, acompanhava em arco litral afticano até 0 cabo Branco, dali nfletindo, numa curva para o oriente, af o Sael, onde se dividia em visios caminhos — para o Tacrur, para Audagoste e Gana, para Sila e para Ga6, no cotovelo do rio Niger. Com posos distantes entre si dois ou trés dias de viagem, percorsé- lo demorava de més e meio a dois meses, no easo de nfo sera caravana muito grande nem levar demasiada carga. Mais antigo do que ess tlvez fosse o roteito que partia da Tripolitinia ¢ atravessava o Fezzan, de onde um de seus ramos se drigia, pelo Adrar dos foras, para G26, ¢ 0 outro, pelo Ait, até a Haugalindia ou, num esgalhar pata sudeste, até 0 lago Chade De Tlemcen ou de Tabert, ia-se por Wargla até Tadmekka dali a Ga, E um outro caminho comegava na Tunisia, corava Gadamés, chegava 40 Alar de Coe Sis ‘0 Gate e ali se dividia: uma senda levava ao Canem ¢ outra a Ga6. Do Gate ¢ do Fezzan podia-se atingir Sius (ou Siwa), no noroeste do Egito. Hhavia outro modo dealcangar-se 0 Egito, a partir do Adrar Mauritano: seguir para Gab, depois para 0 Air e 0 Tibesti e, em seguida, para os ofsis de Kharga e Dakhla, Quando Ibne Hawkal esereveu o seu tratado de geografia, nna segunda metade do século X, esse roteto jétinha sido abandonado, pot ‘causa das tempestades de areia.® (Ver o mapa “Rotas caravaneiras”,) Na época de Ibne Havekal, uma rota muito freqiientada sera recente: a que saia de Tahere ou de Sijdmess, passava por Tamdult, cruzava o Dara (ou Dras), ganhava o Adrar Mauritano, seguia para Audagostee dali, jé no Sael, para o Tacrus ox para Gana. Mais novo ainda etalvez mais importante ‘era 0 caminho quase em linha reta de Sijilmessa a Audagoste, 8s portas de Gana, atravessando tuma vasa drea de completo deserto. (Outros havia, igualmente difices, a passar junto as bases de enormes dunas de areia ou a percorrer extensissimos trechos de pedra, Em certas partes do deserto, podia-se ter de suportar quatro, cinco, seis ou até mesmo Td jornadas sem um ponto de Sgua. E nio se estava jamais livre de ser sur- preendido por uma tempestade de arcia. Em compensasio, podis-se chegar ‘um olsis. Ou ter o alivio de alguns espinheitos, de uma estepe rala e de algumas acicias no leto de um uédi. Ou, ainda, com muita sore, presenciar a chuva e ver, por alguns das, das areias surgir uma pastagem. Partia-se alta madrugads. E caminhava-se, enquanto 0 sol eo calor da terra o permitissem. Ao tornar-se 0 ar insuportivel, descartegavam-se 0s ceamelos, abriam-se as tendas e se repousava, até o antincio do erepiisculo. Voltava-se a carregat 0s animais — uma trabalheiral — ¢ retomava-se a ‘marcha até 0 escurecer, Era assim que se viajava no deserto.”” Desde o principio, as cifils seriam empreendimentos coletivos, nos aquais tomatiam parte numerosos mercadores. Bram organizadas com cuida- ddo e postas sob uma chefia enérgica e conhecedora do deserto. Ajustada a data de partis, reuniam-se os animais € a carga. O niimero de camelos era enorme: muitas centenas ¢ até milhares, nfo causando surpresa caravanas ‘com mais de cinco mil dromedirios. Provavelmente, ja entio — refiro-me auvaeados do século IX — levavam-ce do norte da Aftien para a8 savanas Amaiic se enle 41 sudanesas cavalos, espadas, tecidos, cobre, contas de vidro e peda, conchas, perfumes, coral de Ceuta e outros artigos suntufrios. Além de dois produtos do deserto,o sal — pesa bisica desse comércio — e as timaras. As caravanas procuravam parar, para abastecer-se da mercadotia para a qual havia procura sempre certa, junto as minas de sal-gema. Em Trarza, na rota que acompa- anhava a costa atlintica. Em Idjl. Bes Taoudeni. Em Taguza. Em Aulil, Era essa provavelmente a norma, sempre que as cifilasndo partissem desses luga~ res e de portos mercantis em cujas proximidades também havia sal, ainda que em menor volume, como Tuate e Sijilmessa. ‘Antes da partida, encharcavam-se os estmagos dos dromeditios. Boa parte (talvez um tergo) da capacidade de earga dos animaisficava por conta dos odres de Sgua, dos sacos ¢ amarrados de alimentos € co material neces- sério para armar as tendas ¢ acender as fogueiras — o que, somado & lenti- dio com que avangava e aos perigos que corra, fazia das cravanas, como jf se disse e comprovou, um meio bastante ineficiente de cransporte,** Aos ceamelos de carga ¢ de sela — nestes ¢ em cavalos finos montavam os merca~ dores ricos! — havia que acrescentar as camelas que fornsciam leite e mar- chavar sem fardo, com um pequeno peso ou tm vajante as costa, os eqiinos de raga berbere que se iam vender do outro lado do desert, algumas malas, alguns jumentos e os dromedirios esbeltos ¢ velozes dos némades embusa- dos e senhores dos segredos do deserto, pagos para guiar ¢ proteger as cara~ vvanas, e imprescindiveis 20 éxito da viagem. Pois bastava um engano de rota — e nada matcava os caminhos, a nio set as estrelas — para 0 extravio transformar-se em morte, Tinha, além disso, a catavana de marchar perma- nentemente em armas, sempre sob o risco de ser atacada por ndmades, se rio thes comprasse protegio e direito de passagem. Algumas tribos berberes controlavam os pontos de paragem, aguada'e repouso, ¢ também vendiam 0s caravaneiros camelos, para substitu os abatidos ou mottos no percurso. Era toda uma cidade que caminhava. A acordar ao som das trombetas a marchar muitas vezes a0 rufar dos tambores, Podiase, no decurso da jornada, interrompt-la ou nio, para as preces coletivas, na direso de Meca. em todos os momentos, ninguém ignorava o que Ihe cabia fazer. Alguns ‘morriam durante 0 trajeto. Outros detinham-se a comerciar num ponto de ‘paragem ¢ ali ficavam & espera da caravana de volta, Cada vez que arribavam uma cidade ou a um ofsis, era uma festa — para a gente da terrae para os 42 Aer de oe Ss ‘Chegada a cifila ao Sael, espalhavam-se pelo pasto os dromeditios. Os condutores berberes ¢ alguns mercadores armavam tendas 20 lado da cidade ou da aldeis sudanesa. Outros abrigavam-se nas cabanas de barro € palha da gente da terra, que cedo aprendeu a servis 4s caravanas e a lucrar com elas. Nesses portos saelianos cobravam-se tributos, prestavam-se servi= 0 de carga e recarga de animais, construiam-se colmados para a guarda de ‘mercadorias, armazenavam-se escravos e cereais para exportasio, conserta- vvam-se cabrestos,selas ¢ odres. compravacse ¢ vendia-se, Nio deixava de prosperar uma s6 das atividades ligadas ao recebimento, a hospedagem e i partida das caravanas. Além disso, cada porto do Sael e da savana transfor ‘mava-se numa grande feira para os povos da vizinhanga ¢ até mesmo de tercas distantes. Deles salam, a eabega das mulheres e também no lombo de bois e jumentos, o sal, 0 cobre e os outros produtos que se iam trocar, ‘ais ao sul, pelo ouro de Bambuk, Buré, Geba e outros sitios mineiros, plas gomas, pelo sorgo, pelos milhetes, pelo Ambar, pelo almiscar, pelas peles e pelo marfim. E de tudo isso se carregavam, de torna-viagem, as caravanas, além, cada vez mais, de escravos, Pois a demuanda por eles sumentars. Na metade do séeulo IX, 05 cativos homens, fossem meninos, pazolas ‘ou adultos, comegaram a ter mercado certo no Magrebe. Nio mais se desti- navam apenas as Iabutas agricolas, aos servigos de carrego, aos trabalhos nas ‘inas ¢ & abertura de pogos e canais de irrigaso; passaram a ser incorpora- dos em niimero crescente 20s exércitos. Com 0 rompimento da unidade politica do mundo mugulmano, a muitos dos novos detentores regionais de poder faltava 0 apoio da maioria dos governados, que no os reconhecia como legitimos para conduzir os crentes, Um emir sunita que exercesse 0 mando sobre uma populagio xia tinha, por isso, de escorat-se em tropas que the fossem pessoalmentefitis e que nfo tivessem maiores ligasées com a agente da terra. Ninguém melhor que © escravo para comp6-las. Na Iftiquia (a arual Tunfsia, arescida de uma porgio do nordeste da ‘Argélia ¢ outra do noroeste da Libia), impusera-se, no inicio do século IX, a dinistia dos Aglabidas, Sunita, os seus sucessivos emites, embora protestas- semfidelidade ao califa abissida, construfram um verdadeiro sultanato. Sem a sustentagio dos stiitos, que eram predominantemente carijta, e descren- Ammibecs nls 43 teda fidelidade dos militares érabes, com cuja disciplina nao podia tampouco contar, © primeiro desses emizes, Ibrahim ibne al-Aghlab, formou uma guat= da pessoal com escravos adquiridos ainda jovens e enquadrados num regi mento ghular, do qual safam os seus homens de confianga. Hi quem julgue ue seriam negros! — todos ou, 20 menos, bos parte dees. E hi quem isso ponha em diivida e sustente que eram sakalibes, ou europeus, provavelmente eslavos. Para quem assim pensa, s6 no iiltimo quartel do século, o tetraneto de Thrahimn ihne al-Aghlah, Theshim TI, se apoiaris em compos de tropas de escravos indubitavelmente pretos." Tanto 0 califa em Bagdé como um outro contemporineo de Ibrahim TL, Ahmed ibne Tulun, 0 wali ou governador do Egito, contavam com regi- mentos de infantaria compostos por escravos negros. Eram tio numerosos esses soldados, que somavam, por casio dx morte de Ahmed, 45 mill? Muitos foram adquiridos na Nabia. Mas talvez um grande mimeo viesse do Sudo Central, passando pelos mercados de Zawila, no Fezzan Por essa época, Al-Yacube referindo-se a0 comércio de eseravos no Fezzan, eserevia que 0s betberes os traziam éo Sudio, onde eram vendidos pelos res, sem pretexto de guerra, Quem sabe se nfo tinha em vista a regiio cdo lago Chade, origem do grosso da mexcadoria humana vendida no Fezzan? Quase cem anos mais tarde, Al-Muballabi*® descreveria o soberano dos zagauas, aos quais alguns atribuem a fundagio do seino de Canem, como um chefe divino e diria que sua autoridade sobre os siditos era tio grande, que podia fazer escravo quem dentre eles quisesse. O que esses textos poderiam indicar € que os némades do deserto e os moradores dos oisistinham deixa- do de ter no ataque de surpresa as populagées negras a principal fonte de cativos. Transferiram 0 6nus de produzir escravos & aristocracia guerreira sudanesa, ‘Ao redor do lago Chade, no havia ouso nem marfim em quantidade expressiva, Se 0 reino de Canem.** que ali tomava corpo, exportava para o norte da Africa almiscar, pedra-ume, peles, cezas e plumas de avestruz, bem 44 me A Coe Sie como sal e nattio para as terras que Ihe ficavam 20 sul, tinha no eseravo a principal mercadoria, Seus eunucos conseguiam alto prego. E suas mulheres ‘eam famosas, no mundo mugulmano, pela dogura e pela beleza. Os escravos plo serviam, entretanto, apenas como artigo de exportagso. A maior parte dos capturados ficava em Canem” Era com eles que se pagavam os tributos se aleangavam aliados. Numa regito pouco povoada, como a que se esten~ de a leste do lago Chade, a escravaria era indispensivel & montagem dos texéritos, 20 cuidado dos cavalos, cameos, cabras ¢ bois, 20 amanho da terra ¢ 20s trabalhos mais humildes. Embora 0 escravo, sobrenudo © vendido para longe, pudesse ser um infra social, um inimigo interno do rei (ow mat) ou parte do tributo pago pelas populagdes vassals, era quase sempre fruto do seqiesto, da embosea- dda, do ataque de surpresa a pequenos vilarejos e da guerra. Tanto para ad- aquitirtrabalhadores e soldados, quanto para lograr mercadoria de troca, de- pendiam os nobres de Canem da violencia armada. E ali, como em outras ppartes da Affica e do mundo, a guerra tomourse um modo de produsio. ‘Acsede de cativosfavoreceu a expansio de Canem para o sul. Regular- mente, as suas tropas atacavam 0s povoados agricolas. Os mais proximos tiveram seus habitantes incorporados 4 populagio do reino. Outros, mais apartados, acomodaram-se 3 vassalagem, a fim de se proteger das gizuas. E produziam escravos, para nfo serem escravizados, Contra os que moravam ainda mais longe, muitas vezes a centenas de quilémetros do centro de poder de Canem, & que se desatava a atividade predatéria da sua cavalaria. ‘A dependéncia do eseravo tornou ferozes as relagbes de Canem com cs vizinhos. Suas tropas tinham de ser engrossadas por escravos, € a renova- lo de suas cavalatigas — base do poder do rei ¢ dos aristocratas — proces- ‘sava-se conforme o nimero de cativos que fosse capaz de tocar por eqiinos no Egito e no norte da Africa. Compravam-se cavalos para produzir mais cescravos, € uns e outros atravessavam 0 deserto. Por volta de 850, Zawils, no Fezzan, comou-se a capital de uma di- nastia berbere ibadita, a Banu Khittab, uma familia de mercadores que fizera fortuna com as caravanas do Sudio e, portanto, com otrifico negro, Zawila aprovisionava-se sobretudo no Canem e obtinha tamanhos lucros nesse co- rércio, que cunhava moeda de ouro puro. Pelo Fezzan transitavam escravos para todos 0s quadrantes do mundo snugulsnany. Vindos do Sado, muitos ceriam certamente vendidos a0 Iraque, Arana rsibeny 45 ‘centro do poder abissida. Do mercado de escravos de Samarra (cidade que substituiu por algum tempo Bagels como residéncia do califa) ficou uma descrigio em Al-Yacube: um vasto quadtilétero cortado por vielas, nas quais se alinhavam casas téreas com muitos cémodos ¢ lojas.* Por ele deve ter passado boa parte dos negros destinados 4 regido de Bagoré (ou Basra), onde, nos séaulos VII, VIII e IX, por virias vezes se ergueram em armas 0s escra- vos zarjes. [A palavea Srabe zanjaplica-se, no sentido estrito, 20s nativos da Aftica Indica, da Somilia a Mogambique. Desde muito (pelo menos, desde o inicio de nossa era) eram eles embarcados, em pequenos niimeros, nas costas do fndico e fevados para a Arabia e para a Pérsia. O volume do trifico deve ter aumenado no século VI, depois que os sassinidas se apoderaram do Témen «do extreito de Bab-el-Mandeb. Cem anos depois, ao conquistar a Pérsia, 05 Srabes herdaram ¢ ampliaram esse comércio, .pregavam-se escravos, na hinterlindia de Bagors, para drenar os pintanos salinos, cobertas de vegetacio alta, ¢ transformé-los em terras agricultiveis. Numa érea paricularmenteinsalubre o trabalho devia ser duro, repetitvo € penoso, envolvendo grupos numerosos de escravos, que viviam fem condigies miseriveis,tratados como gado.” Como a maioria dos pro- prietirios dessas grandes extensées de terra era absenteista,® somavam qua- se nada os cuidados com a excravaria — ¢, de resto, também com os eampo~ neses livres que ali trabalhavam ¢ cuja situagio em pouco era melhor que a dos esiravos. Nio se sabe com preciso 0 que uns ¢ outros nelas planta- vam, apés recuperar as terrasalagadas. Provavelmente arroz, cevada, sorgo, rifhetes, cebola, mel6es. E provavelmente aquela graminea que, vinda da {ndia, por toda a parte se vinculou a escravidio: a cana,*' pois, desde pelo menos o fim do século VI, eseravos negros a cultivavam e dela tiravam agticar ali bem perto, a leste do baixo Tigre, na planicie do Khuzistan, na Pérsia ocidental:® Labutavam na Baixa Mesopotimia dezenas ¢ dezenas de milhares de cescravos. Mal abrigados, mal vestidos e mal alimentados, a dieta restringin- do-se a punhados de farinha, semolina e témaras.® Al-Tabari menciona ‘grupos de 500 a cinco mil eativos a trabalharem nas terras de Batiha e coloca Sa 46 Abe de Qe Sie 15 mil nos campos de Al-Ahwaz."* Tamanha concentragao de escravaria nio se vira antes na hist6ria. Se boa parte dela provinha da Aftica Indica, da Etiépia, da Nubia ¢ da Somilia, outra provavelmente percorrera os cami- inhos do Saara. [Embora por 2anj se entendesse um banto da Africa Oriental, 0 termo passou ater sentido mais amplo e deprecativo.® A imprecisio ea vaguidade com que os gedgrafos érabes desenhavam a Africa e nela punham os grupos humanos fez com que a palavra se deslocasse para oeste e se confundisse ¢ amalgamasse com “zagaua” e “Songai”.* Tanto era assim, que AlMasudi, escrevendo no século X, incluiu os zanjes entre os povos do Sudio.” Zanje tomou-se sindnimo de negro, viesse donde viesse. Qualquer que fosse a composicio da massa escrava que penava nas proximidades de Bagors, as péssimas condigées em que era mantida — em completa discordincia com os preceitos do Islame — estimulavam a revolta ¢ abtiam os ouvidos as pregages milenaristas. Data de 689 (ou 690) a primeira rebelito de eseravos zanjes na Baixa Mesopotimis. Foi um movimento de reduzida importincia, facilmente de- belado pelas tropas do califa. Uns cinco anos depois, a evolta se reacendeia ‘com mais forsa, os insurgentes s6 sendo dominados apés viras batalhas. J6 ‘em 749 (ou 750), seriam necessétios quatro mil soldados para dobear uma nova rebeliio, desta feita em Mossul, no norte da Mesopotimia, Cerca de ‘um lustzo mais tarde, em 765, uma outra insurreigio foi ainda mais violenta, Mas a grande guerra dos zanjes s6 se verificaria um século mais tarde, a partir de 869. E estendeu-se por quase 15 anos. Essa guerra dos zanjes foi mais que um levantamento de escravos. Foi uma fa, uma guerra civil entre ‘moslins, uma revolusio antiabissida, tendo por meta substituir a eabega do Islame, pr no comando dos fidis um novo calif Tudo comesou com um certo Ali ibne Muhamed, um drabe que se dizia descendente direto de Fatima, a filha de Maomé, ¢ de seu gento, Ali. Nio consta, contudo, que ele se tivesse como um xiita ¢ talvez tampouco fosse um carijta, como querem alguns.” Poeta e professor, pos-se a pregar contra 6 século ¢ contra os Abassidas, que qualificava de usurpadores, Ten- ‘tou primeiro catequizar os beduinos para a sua doutrina, Diante do malo- ‘0, voltou-se para os zanjes da Baixa Mesopotimia. Affou-thes as mégoas ¢ os ressentimentos, prometeu-lhes virar o mundo as avessas'e advogou a de~ ‘capitagiosdos.sénhores, por sistematicamente violarem as regras do istame Anatase liens 47 que regiam a escravatura. Os escravos 0 seguiram com violento entusiasmo. E suas tropas incharam-se de camponeses pobres, beduinos irrequietos, deserdados de toda a sorte ¢soldados negros que abandonavam os exércitos do calif. Durante dez anos, os zanjes acumularam vitbrias, De seus refigios no meio das pintanos cobertos de canigos, eles saiam para fustigar as tropas, as cidades os portos da Baixa Mesopotimia ¢ do sul da Pérsia. Em 871, tomaram e saquearam Bagors, queimando os navios ali fundeados, matando rilhares de érabes e reduzindo & escravidio as mulheres e as criangas. Tendo ‘ocupado, além de Bagord, os portos de Ubulla ¢ Abadan, os revoltosos cor- taram o acesso de Bagdi e Samarra 20 mar. E desorganizaram por muito tempo o comércio maritimo naquela parte do golfo Pérsico. Os mercadores cestabelecidos nos portos, ou conheceram a morte nas mios dos insurretos, ‘ou foram obrigados a fugis:® Eos que fugiram nfo retomaram. Por volta de 879, mudou a fortuna da guerra. As tropas zanjes, que, de inicio, somavam uns 50 mil homens! e deviam superar em mimero € centusiasmo as de seus adversérios, foram obrigadas a passat & defensiva, quando se vitam inferorizadas em volume de soldados ¢ em abundincia e qualidade de armas. Esconderam-se nos canigais dos pintanos. Recorteram as eiticas de guerrilha, Resistiram como puderam. Mas foram perdendo, um aps ou- tro, 0s seus redutos. Em 883, apds um cerco de trés anos, rendew-se a capital rebelde, Mukhtara. E a cabesa de Ali ibne Muhamed, espetada num pau, desfilou por Bagds. David Brion Davis! adverte-nos contra a tentasio romantica de fazer dessa guerea dos zanjes um movimento igualitirio, iberirio ou antiescrava- gista. Os zanjes sublevaram-se contra seus senhores,é certo, mas, 20 fazf-lo, buseavam acima de eudo endireitar © governo do Dar al-Llen, devolvé-lo i pureza dos quatro primeiros califas, colocar de novo a sua frente um homem. de Deus que era também descendente do Profeta. Como os xiitas € como os carjitas. Ao aderir guerra santa, deixaram de ser esravos, mas, caso vitori= 0s0s, no aboliriam a escravatura, Mostraram isso claramente, 20 fazer ¢ ter escravos. Numa sociedade quase sem méquinas e com uma experiéncia rmultissecular € solidificada de trabalho forsado, s6 ratissimas pessoas se- slam, aliis, capazes de imaginar um mundo sem escravdio. Esta era tida com tum fato natural, como parte da ordem do mundo tal como concebida por Deus. O que os rebeldes queriam era mudar de estado, deixar de ser escravos 48 Ab de CS cu eeduzir suas misérias. Bons islamitas, reclamavam 0 comportamento que «© proprio Deus consignara no Alcorio como devido aos escravos ¢ sobre 0 qual Maomé deicara tantas palavras em seus hails, Essa mudansa de modo de proceder nio mais se aplicaria a eles, que tinham passado, gragas 8 forsa das armas, para o grupo dos senhores, mas aos escravos que certamente vii am a possuir e que Ihes prometera, em sua pregagfo, Ibne Muhamed. ‘Finda a guerra, mortos ou reescravizados os revoltosos,restou 0 trau- sma, Nas terras mugulmanas, 0 negro da Africa Oriental ficou com fama de insubmisso, rebelde ¢ traigoeiro. Sua importaglo, por algum tempo, foi restringida e controlada, Em contrapartida, cresceu consideravelmente 0 anximero de cativos da outza margem do Saara. A tal ponto que Al-Tstakhi*™ afirmava, nas primeiras décadas do século X, que provinham do Sudio os escravos negros vendidos nos paises islimicos, acrescentando que a maioria passava pelos mercados de Zawila, no Fezzan. ‘Ao comecar aquele século,alterou-se novamente © mapa politico do Magrebe. Surgiu ali, a contrapor-se 20 omfada de Cérdova e 20 abissida de Bagdé, um novo calif, Ubayd Allah, outro descendente de Fitima ¢ Ali ¢ tido como o esperado Mahi, o Messias que livrgtia o mundo dos opressores ¢ do pecado, Em pouco tempo, esse imame xiita derrorou os Aglibidas, dlestruin 0 sultanato de Taherte outros pequenos estados ibaditas ¢ conquis- cou os redutos sufttas, entre os quais Sijilmessa. Nio conseguiu, porém, Jmpor-st aos berberes zanatas, de confisio ibadita, que dominavam a franja cestepitia ao norte do desertoe controlavam os portos de parida das earava~ nas para Ga6 e 0 lago Chade. A preocupasio de Ubayd Allah e da dinastia a quedeu origem, os Fatimidas, precia concentrar-sena ota que ia de Sijlmessa 2 Audagoste e dali a Gana. — no itinerdtio do ouro, do metal amarelo de aque dependia a consecusio de seu projeto de dominio universal do Islame.‘* (Os Fatimidas também tiveram tropas negras na Africa do Norte. Mas apoiaram-se sobretudo em contingentes eslavos, Era entre eles que recruta- vam seus soldados de maior confianca. E, se adquiriam escravos no Sudo ¢ nos Bileis, capeuravam-nos também em grandes nimeros, durante as agres- ses de sua aguerrida e poderosa marinha contra as cidades costeiras da Ilia ecda Catalunha. S6 mais tarde, depois que 0 califa Al-Muizz li-Din Allah Arnis slenle —e 49 abandonow a Ifriquia, para instalar, em 973, 0 governo no Egito, foi que os Fatimidas imitaram os Aglsbidas. Para proteger-se de siditos majortaria~ ‘mente sunitas, fizeram do abd suden, 0 escravo negro, € do mamelul, 0 ex- cescravo das estepes asidicas, os seus soldados de elite, os seus combatentes de confiatiga e membros de sua guarda pessoal, © preposto que Al-Muizz deixou a reget 0 Magrebe, o azenegue Bulukkin ibne Zisi — iniciador de uma nova dinasti a primeira de origem berbere, &"Zitiada —, no deixaria igualmente de procurat apoio em tropas de escravos negros, a fim de proteger-se da excessiva influéncia ¢ da volubili- dade das cabildas berberes e melhor poder mediar suas constantes disputas. Esse esctivo.negro, eles 0 iriam buscar sobretudo no Fezzan. © coinércio de escravos trouxe a prosperidade a Zawila, Tadmekka, ‘Ankalas ¢ Bilma (no Kawar). Mais rica ainda, gragas ao constante ir ¢ vie das caravanis, tornou-se Sijilmessa, conforme o testemunho de Ibne Hawkal,® que a visitou em 951 ou 52. Suas trocas eram, no encanto, sobretudo com Gana, Sila ¢ 0 Tacrur. E, sem desprezat 0 escravo, giravam em tomo dé'vure. Esetéve Ibne Hawkal, sem surpresa, que vivia e comerciava em Sijlmessa gente de Bagord, Kufa e Bagds. Carijtas, sem divida. Nao 36 ali ‘como em outros entrepostos das duas margens do deserto, estabeleceram-se, em busea do alto lucro que davam 0 ouro € o escravo, mercadores das mais diversas origens e conviesSes — ibaditas, sobretudo, mas também judeus, suftitas, sunitas e xitas, berberes, egipcios, andaluzes, érabes ¢ persas, pes- soas vindas desde as fronteiras da Espanha até os limites da india mugulma- nae do Iémen, Muitos delesinstalaram-se, por conta prépria ou como agen tes de outros, nos portos sudaneses. Algumas familias dividiram-se, para melhor controlar as duas pontas do trifico: uma parte ficava nas cidades do sul do Magiebe, abastecendo ¢ formando as cifilas destinadas a0 Sudo; a ‘outra; no Sael ena savana sudanesa, adquiria 0 ouro e os escravos ¢ organiza- vas ficiras ie dromedérios que seguiam para o norte, Os que se estabelece- ram pot' conta préptia a0 sul do deserto eram, em sua maioria, negociantes ‘com pouco capital ou representando firmas do tipo familiar. Gente que pro- ccurava seguir um aforisma atribuido ao profeta Maomé: “Assim como 0 piche € o remédio para 4 sama dos camelos, 0 Sudio € o remédio para a pobreza dos homens."® De que buscavam enriquecer rapidamente, a partir de funds limitados, e nfo inspiravaiti paride confianga entre seus parceiros, 50 Als de Cee She bio forte indicio de que nio se encontrou uma s6 letra de crédito aplicivel um desses mercadores do outro lado do Saara, embora fossem corriqueiras na sua margem setentrional, em Sijilmessa ou Gadamés.® Esses comerciantes no se assentaram somente nos nés caravancitos do sul do deserto, como Audagoste ¢ Tadmekka. Fixaram-se também nas cidades do Sudio. Tanto era assim, que Al-Bakri— e 0 confirmam outros autores mugulmanos —, a0 deserever Sila, Ga6 e a capital de Gana, ressalta que cada uma delas se dividia em duas partes, em praticamente duas cidades. ‘Numa viviam os naturais da tera, com seu rei; na outa, 0s islamitas — isto 6 os negociantes estrangeiros.° [No deserto, eram senhores os némades berberes. Com a parte inferior do rosto coberta por um véu — o than dos Srabes —, os azenegues ou sanhajas controlavam, do alto dos camelos, os caminhos das cifilas, 0s ofsis € 08 pocos da parte ocidental do Saara. Cobravam dos caravancitos dititos de passagem, protegio, descanso e aguada, bem como os servigos que thes prestavam como guias e guards. E comerciavam com eles, pois eram donos, das minas de Tagaza e Aull ede outros depésitos de sal-gema. Como se isso aio bastasse, passaram, a partir da segunda metade do século IX, a reger ‘Audagoste, uma das principais portas do comércio com 0 Sudo. Cem anos mais tarde, embora sob um soberano azenegue, boa parcela da populaséo da cidade provinha de uma faixa que corresponderia arualmente 3 Argélia oriental, 4 Tunisia ao oeste da Libia, enela se contavam pessoas de virias regises do mundo islimico. ALBakri, de quem recolhemos a informagio, a enfeita e Jhumanizs com esta nota: uma sximia coainheita negra especialista em doces| ce guloseimas — e dessas escravas havia muitas —, alcangava o alto preso de 472g de ouro ox até mais” No século XI, os azenegues, unificados pelo movimento almorsvida,” expandiram-se para fora do deserto. Armados de um sunismo maliquita se- ‘vero, rigoroso, intransigente ¢ militante, os berberes embusados derroraram nilitarmente os zanatas, que controlavam os portos caravaneiros da franja setentrional do Saara, ocuparam 0 Marrocos, conquistaram Sijidmess3, vol- tain subimeter'Audagoste (que haviam’ perdido para os ibaditas), toma Amite rotianty me SL ram seus virios outros entrepostos do Sze, ocupacam ereunificaram a Espana ‘mugulmana e acabaram por constnuir um império, do Ebro ao Sael, que teve como uma de suas molas 0 ouro do Suelio. Sob os almorividas, aumentaram a feeqiéncia e 0 tamanho das cara- vanas, Novos roteitos somaram-se aos antigos ese fizeram preferidos. [ase dizeto de Gana A serea Bafor, de onde se continvava até 0 Dara, com a escala principal em Azogui. Ou se calcava, durante dois meses, um caminho em linha reta de Gana a Sijilmessa, atravessando desertos absolutos, com até quatorze dias de marcha sem um s6 pogo d’égua. Dessas novas rotas, a de maior fortuna teria sido a que passava por Tagaza, onde se trocavam mer- cadorias trazidas do Magrebe pelo sal que se is vender 20 Sudio. E nio sb se expandiu 0 comércio do ouro, mas também o do escravo para a Africa do Norte. De excravos negros iriam povoar-se os canaviais ¢ as plantagées de algodio do Suz e dos arredores de Ceuta e Mareaquexe” Escravas negras compunhazm os haténs e faziam os servigos domésticos nos palicios e gran- des casas do Magrebe ¢ da Espanha, E escravos negros combatiam nos exét- citos do almorividaYusufe ibne Tashfin. Enquanto os almorividas empreendiam « guerra santa no Marrocos ¢ no Saara Ocidental, outros guerreitos némades, vindos dos desertos do sul do Egito, os beduinos de Banu Hilal ¢ Banu Sulaym, derramavam-se pela Libia, com seus rebanhos. Nio s6 reduzitiam: eles a quase nada 0 poder ziciada, mas também desmontariam boa parte da rede mercanti ibadita. Nao desceram, porém, no mapa até o Fezzan, que continuow a vender escravos 20 Egito, por um roteiro que ligava Zawila a0 Cairo, passando por Awdjila, Os ibaditas £6 viriam a perder a supremacia no Fezzan depois que o escravo de tum inno de Saladino, chamado Caracuxe (ou Qaraqush),invadiu a drea, em 1174, e derrocou a dinastia de Banu Khiticb, Durante todos esses séculos, em pouco se alteraram, ¢ em geral para pior, as celagdes entre os senhores, os escravos negros ¢ as sociedades para a5 uss eram levados. Mudaram as normas de alguns de seus oficios ¢ certos instrumentos com que trabalhavam. A maioria das situagSes continuow, entretanto, a mesma. Os anos, as décadas e os séculos nfo modificavam © 4 52 Abend eve he riemo, a freqiéncia € 0 modo de rachar lena, de buscar égua, de ceifar iilhete, de cother azeitonas, de lavar cavalos ¢ limpar cocheiras, de abrir canais, de remar barcos, de corr sal-gema ¢ cavar nas minas, para nfo sair de alguns exeinplos. ( eseravo vinha cada vez de mais longe, pois o processo de transfe- séncia do Onus da captura reproduzia-se, em seqiéncia, de grupo em grupo: para deixar de set vtima, pasava-se, primeito, a pagar 20 predador um tri- buto em cativos e, depois, a venderlhe aqueles que, por seu tumo, se preavam a0s vizinhos. De barago 20 pescogo, os escravos iam, na maioria das vezes, tmudando de dono, ao longo da viagem, ¢ nio raro esta durava meses ¢ até anos, pois podiam ficar a trabalhar pelo eaminho, No porto do Sael, eram, ‘para usat a palavra justa estabulados,& espera das caravanas, uma espera que ppodia ser longa, pois parece que apenas uma, como regr, safa por ano de cada centro comercial do sul do Magrebe. ‘Apés a chegada, uma caravana demorava meses a aparclhar-se. Mui- tos eram os mercadores,e cada um deles necessitava de tempo para concluit fs seus neg6cios,juntar a mercadoria e dispor-se a parts. Cerra madrugada, tudo ajustado, safaa cifila. Com menos camelos do que viera, porque a carga que conduziam para 0 Magrebe ou o Egito era menor em volume. O ouro, por natureza, ocupava pouco espaso. E os escravos caminhavam a pé, 20 lado dos dromedirios. Estes levavam Agua ¢ mantimentos para os mercado- es, 05 cameleiros ¢ 0s cativos. E 0 que tinham obtido no Bilad al-Sudare akimen, gomas, era, madras, curos, peles, plumas de avestruz. Al-Shaishi, lum escrtor drabe falecido em 1222, afiema que um comerciante que levasse trinta camelos de Sijilmessa a Gana, retornaria com apenas erés ou dois. [Num levaria Agua € no outro iria montado. A mercadoria que trouxera em tuts dezenas de dromeditios transformara-se, por troca, em algo que cabia rium saco de viagem.”® ‘Aos escravos, a travessia do deserto, que durava entie dois e trés me- ses" pareceria interminivel. Exaustiva. Durissima. Mais que softida, dolo- rosa. De como seta, s6ficaram alguns poucos relatos coxos. Mas imagino {que os escravos, amarrados uns a0s outros por tima corda ao pescogo, iriam a pé, provavelmente descalgos, de sandilias ou com os pés protegidos por csteiras ou enrolados em panos, a marchar sobre a areia ¢ as pedras quentes, ‘a nudez interrompida por uma tanga diminuta, a cabega talvez coberta por ‘hapéu ou gorro, Se faltava Sgua, eles seriam os primeitos'a deixar de beber. A mantels me 53 0 sonho da fuga, que, nas terras 20 sul do deserto, sempre acalentaram, transformava-se em pesadelo, Escapar da cifila equivalia a morte. Penso que boa parte dos donos procurava, durante a travessia, prote- ‘ger a sua propriedade e abrandar, em conseqiiéncia, o softimento dos escra- vos. Hi tum testemunho disso — isolado, é certo, Um mercador ibadita de ‘Wargla queixava-se, no século XI, do mau negécio que era traficat com escravos. Estes 0 consumiam, antes, durante ¢ apés a viagem, de trabalho € preocupagio. Una escrava emagrecera demais. Outta adoecera. Aquele fugi- ra, Este estava atacado de verme-da-guiné. E, quando acampavam, 0 merca- dor nio tina repouso, a cuidar de uns e outros.’ Eram naturas eses cuida~ dos. Afinal, 0 escravo, além de ser obtido do outro lado do Szara, apés rmuitas dficuldades e repetidos perigos, era um investimento arriscado, por- que podia fugir ou morrer a qualquer momento ¢ deixar o investidor de iilos abanando. E 0s escravos mortiam em grande niimero. No Sael, & espe- ra da putida das caravanas, Durante 0 trajeto no deserto, de sede, fome, cansago, insolasio, desidratagio, doencas que jf traziam dentro de si ou scabavam por contrair. Hi quem julgue que nfo exam muito elevadas, nos séculos IX ¢ X, as argens de luero do comércio negreiro.”* Tenho minhas diividas. Sabemos que, num determinado momento, um escravo custava, nos mercados do ‘Magrebe, entre 30 ¢ 60 dinares — ou seja, entre 141 ¢ 283g de ouro. No Egito, uma rapariga negra valia uns 40 dinates, ¢ um eunuco, mais de 65.” CCreio que esses presos deviam ser bons ¢ dar um excelente ou, 20 menos, um bbom ganho, pois, caso contritio, ninguém enfrentaria tantas canseiras ¢ riscos para it buscar e trazer escravos. Ainda que houvesse mercadores dispostos a inelui-los nas caravanas, como tum item a mais, desde que por cles pudessem obter mais do que custava manté-los durante a travessia do deserto.” Ralph A. Austen clculou em um milho, 740 mil os escravos negros que chegaram 20 mundo islimico pelas rotas transaarianas, entre 650 € 1100. E, ‘estimou em trés mil a média anual, no século IX, ¢ em 8,700, nos séeulos X € XL” Estamos diante de nimeros hipotéticos ou, quando muito, de aproxima- $8es, a partir de dados escassos e imperfeitos. Talvez tenha sido mais. Talvez tenha sido menos, De cada porto transaariano — e ja se propés que fossem, no Sudio, somente meia dia? — sairia, em condises normais, apenas uma gran- de caravana por an0, 54 Aes dQ Sie Quantos escravos, nos séculos IX a XI, a comporiam? Nio sabemos, ‘Algumas ou muitas centenas. Fm 1353, Ibne Batuta juntow-se a uma carava- na de Takedda para 0 norte, com cerca de 600 escravas* O nimero talvez fosse fora do comum, do contririo nio teria merecido a anotasio do grande viajante. © que ele no diz é quantos escravos homens, se é que os havia, completavam a carga. Os mercados maometanos tinham preferéncia por sulheres — para os serralhos e para os trabalhos domésticos e agricolas —, mas os homens, sobretudo os castrados e os meninos ¢ tapazolas para serem treinados no oficio das armas, no deixariam de figurar nas cifilas. Se os homens nifo tivessem certa expressio numérica em cada caravana, como ex- plicar os regimentos inteiros de soldados negros mantidos pelos Aglabidas, Tulunidas, Fatimidas e Zisiadas? E de onde vinham os magotes de eunucos negros nas cortes dos soberanos Srabes ¢ nos haréns dos potentados? S6 a corte do califa abassida, em Bagdi, tinha, no comego do século X, sete mil castrados negros, além de quatro mil brancos.* Os antigos autores Srabes passam por cima do eréfico negreito teansaariano da compra e venda de escravos nos mercados, por serem coi- sas Go corriqueiras e tio naturais, que no thes mereciam cuidado, A insti- tuisio da escravatura 8 aparece nos escritos dos gedgrafos,hiseoriadores, viajantes e cronistas isLimicos como uma espécie de vinheta, para ressaltar a impropriedade de certos processos de redugio 20 cativeto, descrever alguns tusos pouco comuns dados aos escravos, enumerat distingdes de aptidio en- tre cles e destacar uma especial qualidade que este ou aquele pessoalmente tinha, Em compensasio, desde cedo manifestou-se o interesse em transmitit conhecimentos sobre como conseguir melhores resultados com os escravos. Bernard Lewis lembra que, j& no século X, se produziam textos com conse- Ihos priticos sobre como avaliar, na hora da compra, o estado de saide, a resisténcia e o temperamento do cativo, E menciona um médico cristo de Bag- 4, Ibne Butlan, autor de uma espéeie de vade man do mercador de escravos. Para guardas, ele recomendava os mubios e os indianos; para eunucos, do- ésticos e os servigos brutos, os zanjes ou negros; para soldados, os tur- cosie-os.eslavos..Das mulheres zanjes, diz que nfo serviam para a cama, ‘porém davam boas dangarinas ¢ agiientavam os trabalhos mais pesados. © Amita estimne 55 Via-se gente das mais variadas origens nos mereados de escravos do ‘mundo mugulmano, Havia um deles em cada cidade de alguma imporcancia, ‘A escravaria permeava a vida urbana e a rural, Bscravos podiam ser virios dos mais importantes funcionirios do estado, até mesmo 0 proprio vizit. E escravos recolhiam os dejetos das casas, Nas moradas dos poderosos e dos ricos, 0s escravos estavam em toda parte, desde o harém, com as concubinas, as servisais, as amas-de-leite ¢ os cunucos, até a entrada, com © porteito. ‘Assim como se adquitiam rapazes, com o objetivo de treini-los para os exér- citos, ¢ eunucos, para instrui-los nas tarefas de administragio do palicio e do estado, compravam-se mosas, para ensiné-las a tocar instrumentos de miisi- ca, a cantar € a dangar, Nas ruas, os escravos misturavam-se, nas mais dife- rentes tarefas, a0s homens lives ¢ aos libertos. Estes contavam-se em grande mimero, pois era comum a alforria, concedida como um gesto de louvor a Deus, um pedido de grasa ou de perdio. A cescrava que dava um filho 20 senhor e era, por isso, alforriada, a ele se ligava pelo concubinato. Tanto esse filho quanto o de uma escrava com ‘um homem livre no acompanhavam a condig3o materna, ea meméria desta apagava-se logo ou no correr de uma ou duas geragies. Os libertos homens tinham, também eles, de pertencer a uma familia ea uma tribo. Nao podiam de forma alguma ficar sem lagos no conjunto da sociedade, Como escravos, a ela nfo pertenciam. Libertos, eram constrangidos a se vincularem 20s ex- senhores, como clientes (ou malas). E continuavam a trabalhar para eles, a prestar-thes obediéncia e a softer, de modo mitigado ou nfo, 0s preconceitos que cereavam 0 escravo e contribuiam para domé-lo e controli-lo, Os seus descendentes nfo se desvinculavam dos filhos e netos de seus ex-senhores. E, como em todas ou quase todas as sociedades em que houve escravidio, 0 estigma de desonra persistia no liberto e, por virias geragées, em seus des- cendentes. Como acentua Orlando Patterson, a alforria nfo era o fim da mar- ginalizagio social (¢, acrescento, de humilhagdo pessoal). Sendo o término de uma fase, ra 0 comeso de outra, na qual o ex-escravo ¢ seus descendentes continuavam na borda da comunidade, mas num processo, que podia durar Virias geragbes, de integrasio social e de desalienagio pessoal. Enquanto isso durava, oliberto, seus filhos, netos ¢ bisnetos continuavam manchados pela escravidio, a eles aplicando-se geralmente os esterebtipos — de fia, sujei- 13, preguisa, deslealdade, estupidez, covardia — empregados para inferiorizar 56 Abe de Qe Sins ocescavo. A petsstinca da nédoa ignominiosa tornava-se mais visvel, quando 6 exescravo pertencia a um grupo de aparéncia fisica distinta da predomi- ante entre os senhores, Como o franco de cabelos fouros ¢ olhos azuis. Ou como 0 africano de pele escura e cabelo encarapinhado, A essas caractetisticasfsicas passara-se a ligara condiso servil. Aqueles {que as possulam, alm de excravizdveis por infiis, pagios ou id6lateas,eram tidos como escravos por natureza — 0 conceito estava carregado do prest- gio de Aristételes — e #6 escravizados podiam ingressar na esfera da civi- lizagio. Para essa gente, a melhor ¢ mais vantajosa de todas as condigdes cra, alifs, esta: a de escravos — como argumentot um filésofo Arabe do século X, Al-Farabi,Pouco depois, 0 grande Avicena, ao declarar ser da boa ordem dis coisas haver senhores e escravos, aduziria ter 0 Todo-Po- deroso colocado nas regides de grandes frios ¢ de grande calor povos inca- pazes de altos feitos destinados naturalmente & escravidio, como os tur- cos € os negros.* ‘A estranheza, a desconfiansa, 0 temor, 0 desconforto ¢ a arrogincia diante do outro, do estrangeizo, do pagio, do idélatra, do homem de pele alva qual um leproso e de olhos azuis como um cego, ou de pele escura, nariz chato ¢ cabelo encarapinhado, foram-se acentuando em estereétipos negati- vv0s. De inicio, nio se distinguia entre os birbaros, entre 0s otiundos do Reno, da Grécia, da Itilia, do Céucaso, da Asia Central ou do Sudio, Pouco a pouco, porém, foi-se estabelecendo uma hierarquia, uma escala de valores entre os incréus ¢ 08 esravos. E desceu-se 0 negro para o patamar mais baixo, ‘Um século apés Maomé, os érabes pareciam no mais se lembrar de «que o etiope vinha de Anum, o reino que por tantas vezes dominara o sul da ‘Arabia, ¢ de que era o mesmo abexim temido militarmente e admirado por ‘sua cultura, Se o punham, numa gradagio entre negros, acima dos demais, rio o exclufam do retrato que de todos desenhavam € que consta de um texto escrito, em 902, por um iraquiano, Tne al-Fakih al-Hamadani, no qual cles aparecem como fedorentos, de membros tortos, com inteligéncia deficiente e paixdes depravadas. Pela mesma época, Al-Masudi recorria a Galeno, 0 mestre grego da medicina, para se fortalecer na idéia de que © negro possula cérebro defeisuoso, dat derivando a debilidade de sua intel géncia. Um tratado pers, escrito em 982, ia mais longe: os negros no se afinavam com os padrées humanos, e os piores deles, 0s zanjes, possuiam a natureza dos animaisselvagens. Anmilatelondy we ST © processo de desumanizagio do negro jf andara um bom caminho. “Tanto assim que, no século XI, Said al-Andalusi escreveria, em Toledo, que os pretos careciam de autocontrole e de firmeza de mente, eram facilmente dominados pelos caprichos, pela tolice e pela ignorincia, ese assemethavam mais aos bichos do que aos homens. Duzentos anos mais tarde, 0 persa Nasit al-Din dava mais um passo, Para ele, 0 zanje s6 se distinguia dos animais por no andar com as mios no solo. E acrescentava, sem énfase: muitos jf observaram que os macacos aprendem com mais facilidade e sio mais inteligentes do que os zanjes No século XIV, Al-Dimashki descre- veria 03 negros como curtos de inteligéncia, por terem os cétebros resseq dos acrescentando que as caractriticas morais da mentalidade deles se apro- ximava das caractesisticasinstintivas encontradas naturalmente nos animais:” $6 nos falta arrematar o quadro com © maior dos historiadores mugulma- nos, Tbne Kaldum. Dicou ele que as nagSes negras, como regra acetavam sais faclmente a escravidio, porque os negros de humano tinham pouco, sendo mais semelhantes as bestas itracionais. °° Esse processo ideoldgico de afastamento do negro da espécie humana — tao bem descrito por Bernard Lewis em seu lio sobre as relagdes entre rasa ¢ escravidio no Oriente Médio™ — acompanhou a multiplicasio, a partir do século X, dos escravos provenientes da Africa subsaariana. Foram sendo eles, até por mais baratos do que os utcos eos eslavos, encaminhados 20s trabalhos menos qualficados, mais penosos ¢ mais degradantes — nas rminas, nas plantagies, nas pedreras. Os senhores fizeram deles remadores de batco, jardineiros, porteiros, carregadores e servigais domésticos. Excetuadas as exiopes, tio louvadas pela suavidade e frescor da pele, as nibias, que Al-dsisi punha acima de todas, pela dosura da companhia e Incxeedivel grasa,” eas de Bormu, nae quai ce reconhecia uma doce beleza, as mulheres negras foram-se apoucando nos haréns dos ricos e poderosos, que preferiam as brancas para concubinas. Continuaram, porém, a ser nume- rosas como amas-secas ¢ servigais dos serralhos, ¢ na cozinha, e no lava- douro, e nos pitios de servigo, a carregar Agua, cortar lenha e cuidar da hhorta. E no cram desprezadas pelo homem comum, em toda a Africa do Norte, ‘nem muito menos pelos mercadores que paravam nos portos do Sael. Num relato do intcio do séeulo XII, vemos magrebinos a adquirirem escravas negras, para servirlhes de concubinas, durante a estada em Gana. Al- Sharishi, a quem devemos 0 texto, diz delas que, além de cheitosas, pos- ep 58 me Abe de Coe Sie suiam corpo gracioso, pele brlhante, lindos olhos, nariz bem conformado e dentes alvos.*! (© escravo branco podia ser enderegado desde meninote as carreitas do estado e chegar — como excesio, claro, pois o grosso da escravaria fosse bbranca ou negra, tinha destino duro, amargo ¢ vil — a general, chefe das alfindegas, governador de provincia e até mesmo vizit. O negro sé tinha condiges de aspitar a isso, se eunuco. E, mesmo castrado, suas possibilida- des de ascensio na administragio piblica ou na condusi0 de um palicio ‘eram menotes do que as de um turco ou um eaucasiano. O famoso eunuco negro Abul-Misk Kafur, que foi, no século X, regente do Egito, ficou famo- 450 por isto mesmo — por ser negro e sair da norma. No proprio modo de capar-se um menino, distinguia-se freqientemente o eseravo negro do bran- co: aquele era amputado rente ao abelémen; a0 branco s6 Ihe cortavam, em agetal, os testiculos.” Soldado, ao eseravo preto (ou ahd) estava vedado, em quase todo 0 espago muculmano, 0 acesso & cavalaria (pretrogativa do branco, ou mumelil), contando-se algumas excegBes no Magrebe e na Espanha, ‘como as tropas negras montadas a cavalo que o almorivids Yusuf dbne Tashfin Tevou para a Andaluzia”® (s drabes ¢ berberes, os mamelucos libertos ¢ os soldados escravos, fossem eslavos, gregos, curdos, arménios ou italianos, ressentiam, als, no apenas o prestigio, os prvilégios e © poder de que gozaram, em alguns mo- _mentos, 0s militares de cor negra, mas a propria presensa deles nos exércitos € 08 hostilizavam. A histéria esté cheia de conffitos entre os dois grupos, 0 soldado preto e sua familia pagando sempre caro 0 apoio dado, como escra- vo, a1um poderoso que cala. Assim, quando os Tulunicas foram derrocados ‘em 905, a cavalaria branca massacrou os infantes negros, embora esses jé houvessem baixado as armas. Em 930, em Bagd, a cena repeti-se. E nova- ‘mente em 1021, no Egito, onde se prolongou de 1062 2 1069, uma verda- deira guerra pelo poder entre, de um lado, turcos ¢ berberes ¢, de outro, ndbjos ¢ sudaneses. Cem anos mais tarde, quando Saladino mandou decapi- taro vizirfatimida, um eunuco negro, a cavalaria mameluca gastou dois dias cm lutas ferozes para dominar a revolta das tropas pretas. Essa disesiminagio por raga fazia-se 20 arrepio dos ensinamentos do islamismo, Para este, os homens s6 se dstinguem entre fis ou inftis, entre pertencerem A uima (ou comunidade dos crentes) ou estarem fora dela, © -aumgnto-da eécravizagio dos negros foi acompanhado, no entanto, por una Aneibere tants me 59 engenhosa construsio ideolégica, segundo a qual se fundava a justiga do cativeito no 36 no fato de serem eles incréus, pagios ou idélatras, mas tam- bbém no anitema langado por Noé contra os filhos de Cam.* Embora no texto biblico se expresse claramente que a maldigio deveria cair sobre Canai € nio sobre Cuxe,’* de quem descenderiam os negros, ganhou foros de ver~ dade a versio de que a praga de Noé fizera dos filhos de Cam no apenas, escravos mas também pretos. Foi em autores arabes que essa adulterasio, aque jf figurara em alguns escrtos jucleus e cristios e ira ter ampla voga na América escravista, tomou forma ¢ se tomou 0 fandamento de um vineulo estreto entre a cor da pele ea escravidio. Teria sido no mundo islimico — esereveu o historiador queniano Bethwell A. Ogot®* — que a pele negra se tomou simbolo de inferioridade e a Africa sinénimo de eseravidio, Ignoramos se havia mercados especializados em negros. Provavelmente nfo, O que haveria, decerto, seriam vendedores dedicados a fornecer certos tipos de escravos, conforme a origem ot os atributos. Assim como existitam negociantes que adquiriam meninas para trein‘-las como miisicas, dangari- nas ou cantoras, outros se consagratiam 20s garotos exstrados, aos adoles- centes que instrufam para serem marceneizos ou cavalarigos, aos bilgaros, 3s abissinias, 4s circassianas ou a0s negros do Sudo — e os teriam em tenda propria no suk al-rakit (ou mercado de escravos), ou os conduzitiam de porta fem porta até aos fregueses, destes também recebendo encomendas, ‘A pritica de comprar criangas a baixo prego, educt-las num oficio ¢ vyendé-las caro tinha longa tradigio, Cato, o Censor, dois séculos antes de Cristo, jf a exercia em Roma. Quem nos conta isto € Plutareo, em seu elogio a0 bom pai, a0 excelente marido e 20 cidadio exemplar, que tudo fez para corrigir os maus costumes dos romanos de seu tempo, Plutarco diz-nos, sem ppejo, pois parece té-los como atos normais e até louvaveis, que o virtuosissimo Catio cobrava dos seus numerosos eseravos homens uma taxa para terem acesso sexual as mulheres de que também era dono e dava morte diante dos demais Aquele que julgasse merecer tal castigo.” Encaminhavam-se os escravos para onde houvesse procura. Dentro de ‘uma espécie de mercado tinico que se estendia da Espanha a {ndia mugulma~ nave-passara, com os Fatimidas e Aiubidas no Egito, a ter o seu principal 60 Abe de oe Sie trago-de-unio no mat Vermelho, As transagées alongavam-se, concudo, até muito além das fronteiris do mundo islimico. Pois o Egito, com seus portos tmutitimos, fluviaise caravaneiros, comara-se, na segunda metade do século X, 0 eixo do comércio entre 0 {ndico ¢ 0 Mediterréneo, envolvendo a China, ‘a india hindu e budista, a Indonésia ¢ a Africa Oriental, Veneza, Amalfi, Génova, Marselha e Barcelona, 0 Sudo, os Balcas e a Nabia. ‘Chegavam ao Egito escravos de toda a parte. E, se dali safam mulhe- res, eriangas e rapazes escravizados na Africa para a {ndia, o sudeste da Asia ‘¢.China, outros era adquitidos pelos navios frabes e persis nos portos da Eriépia ¢ do norte da Somilia ¢ levados para o Extremo Oriente. Deviam também os Srabes e os persas, juntamente com os malaios de Sisi Vijaia ¢ os cholas do Sind, comprar escravos nas costas da Africa Oriental, se bem que s haja sinais claros desse comércio a partic do século XII ou XIIL? Antes disso, 25 noticias que encontramos nos autores drabes e chineses sio de cap- tura pelo engodo ou peas armas. ‘Conta-nos Buzurg ibne Chariyar, um autor érabe do século X, que, em 945 [46], uma flotiha de mil pirogas com balancins atacou Cambalu (na ilha de Pemba? em Zanzibar? em Lamu?) e outros entrepostos do litoral, \Vinham das ihas de Waq-Waq, em busca de marfim, cazapaga de tartaruga, peles de pantera, mbar ¢ escravos zanjes, para os quais havia bea procura em suas tertas — supde-se geralmente que 2 Indonésia”” — e na China. ara atender a essa demands — narra Chao Juckus, em Dacrigio dos povs bibaros, um lvzo de 1226, mas composto a partir de fontes mais antigns ‘—, 0s rabes desembarcavam numa tera habitada por negros de eabelos encarapinhados, rica em presas de elefante e chifres de rinoceronte. Com ofertas de comida, atrafam os nativos, agarravam-nos € os levavam mar afora até a Ardbia, onde obtinham por eles pregos elevados."® © niimero dos que ram vendidos atingia os milhares — acrescenta um outro eseritor chinés, Chou Chia-fei (ou Zhou Qufei)!® Alguns certamente chegavam 4 China, ¢ jiino século X, se nfo antes. Ali, eram conhecidos como “escravos de Kun- Tun (ou Cambalu’, “escravos diabos” e varios outros nomes." Deviam ser artigo raro ¢ de alto prego. Tanto assim, que apareciam escoteiros, ou 208 pares, em mais de um rol de presentes ou tributos recebidos pelos imperado- res chineses. No fim do século XI ou inicio do XI, jé seriam, entzetanto, ‘um pouco mais numerosos, pois, sum livro de L119, Chu Yu afiema que a rmaioria da gente rica de Kuang-chou (Guangzhou ou Canto) possuta escra- Aanecotiomie 61 vvos negros.!™ E possvel que fosse elegante exibi-los, como criados e portei- 10s. Chu Yu os define como muito fortes, podendo carregar grandes pesos, sas actescenta que morriam facilmente, sobretudo de diarréia, por estranha~ rem a comida. E Chao Ju-kua acrescenta uma outra informasio: os chineses ‘os empregavam para reparat, sob as dguas, 0s cascos dos navios.® E dificil acredicar-se que, antes do século XII, os escravos embarcados nas enseadas 20 sul do cabo Guardafui fossem, todos ou em sua maioria, apreendidos em gizuas ou seqiestrados, Em pouco tempo, a violéncia das tripulagdes dos navios Srabes, persas, indonésios ou indianos criaria tama- nha atmosfera de incerteza, desconfianga e medo, que afugentaria 0 comér- cio. Ninguém acudiria is enseadas com 0 marfim, © ouro, 0s toros de madei- 1a, as plumnas de avestruz, as peles de felinos, as carapagas de tartaruga € 08 ‘comos de rinoceronte, caso corresse stro risco de ser aprisionado e levado a fora para 0 desconhecido. ‘Sabemos, alifs, que o comércio na costa oriental da Africa nio deixou de crescer, muito, no passar dos séculos VIII a XII, sendo responsivel por ‘uma fieira de cidades mercantis em suas ilhas ¢ angras. Shanga e Manda (no arquipélago de Lamu), Unguja Ukuu (em Zanzibar) ¢ Chibuene (em “Mogambique) jé davam sinais de importincia no século IX ou intcio do X. E ene os séculos X e XII aumentaram as exportagdes de ouro (proveniente sobretudo de Zimbabué) e de presas de elefante, dando resposta 3 expansio da moedagem urea no mundo mugulmano e na Cristandade ocidental, € & ultiplicasio dos trabalhos em marfim na fndia, na China ¢ na Europa, onde a presa do elefante se tomara a mais nobre matéria-prima da esculcura religiosa, Dat a prosperidade de Mogadixo ¢ Quiloa. (© mais provavel é que em cada uma dessas cidades se oferecessemm cescravos trazidos do intesior. Que nelas se repetisse o que 0 chinés Tuan ‘Cheng-shih (ou Duan Chengsi), eserevendo nos meados do século IX, con- tou sobre a gente de Bobali ou Po-pa-li (provavelmente Berbera, no litoral norte da Somalia): seqdestravam mulheres ¢ as vendiam aos estrangeiros pot ‘ptegos muito superiores aos que podiam obter localmente.!® E € bem pos- sivel que esse comércio fosse antigo — como atestariam os zanjes que se revoltaram em Bagord, nos séculos VIL, VIII e IX. 62 Abe de Cee ‘Ainda que parce daqueles escravos pudesse ter vindo das savanas sudanesas, da Eti6pia e ca Somilia,é provivel que predominassem entre eles os bantos da Aftica Indisa. Em tamanha quantidade, os arabes nio os pode- rim ter obtido somente pelas armas das pequenas tripulagdes de seus na- vios. Tinham de ter comprado boa parte deles nas cidades costeiras. Nio figurava entre os zanjes de Bagori uma categoria conhecida como bunbula? no derivaria hinbula de Cambalu” ‘A partic do século XII, temos sinais evidentes do comércio de escrax ‘vos nos litorais da Africa Indica. S6 ento, possivelmente, comecaria ele a alcangar os niveis do trifico que se processava a partir da Etibpia e da Nébia. Segundo Al-Idrisi, Zeila,o mais importante escoadouro da Abissinia no mar ‘Vermelho, esava sempre cheio de navios, a carregarem sobretudo escravos ¢ rata" Estas mesmas mercadorias e virias outras salam também pelos por- tos dis ilhas Dahlak. Sobre ease comércio de eseravos, Ralph Austen fez suas estimativas: de 650 a 1.500, entre dois milhées e dois milhées ¢ meio de cesceavos teriam saido das costas da Africa indica, « entze dois milhées e meio ce tis milhdes dos portcs do mar Vermelho.!” Maior, bem maior, seria 0 niimero de cativos que atravessavam 0 Sara. Na parte central do deserto e sobretudo no Fezzan, o escravo conti- znuow a ser a principal z230 das caravanas ea ter como primeico produtor © seino de Caner. Talvez jé no fim do século X ou inicio do XI, Canem exercesse algu- ‘ma forma de controle sobre o Kawar ou, quando menos, sobte Bilima, de onde retirava, para suas transag6es com 0s povos meridionais, o natrio ¢ 0 sal, Com 0 fortalecimento do poder do mef ou rei de Canem, comou-se cada vvez maior sua dependéncia do comércio de esctavos, com os quais obtinha ‘avalos ¢ espadas. Por isso, quando, apés a queda da dinastia Banu Khittab, se esgargou a estabilidace politica em Zawila eno resto do Fezzan, o sobera- no cantiri viu-se pressionado a ali intervie militarmente, para garantit 0 trin- sito livre e seguro das earavanas, Na metade do século XITL, 0 maf Dunama Dibalemi marchou sobre o Fezzan, derrotou os berberes que controlavam Zawila e, numa nova capital, Traghen,,pés no mando um homem de sua confianga, possivelmente um tubu, que viria a fundar uma dinastia, a de Arie stianle 63 Banu Nasur." © maf continuou, porém, a exercer sobre a drea algum tipo de tutela, se nfo a plena soberania, pois uma guamigio subordinada ao rei de CCanem ¢, depois, a0 seu sucessos, 0 rei de Bornu, ali estac‘onava entre 1300 e 1500." (© monarea de Canem ter-e-ia convertide 20 islame no fim do século XI. O de Gas, algumas décadas antes. © de Tacrur, pela mesma época. E entre os mandingas, que dariam origem 20 império do Mali,o maometanismo foi criando taizes no correr do século XII. Nio se fique, porém, com a impressio de que a crenga mugulmana se imps e se espalhou rapidamente pelo Biled al-Sudan. © sew avango foi lentissimo, pois teve de enfrentar a oposigio firme, constante ¢ eficaz das religides africanas.° Em muitos ku- {gares, prevaleceram por muito tempo — em alguns casos, até agora — as estruturas de poder fundadas na fteadicional, que fazia do rei a encarnasio cde um deas, ou 0 descendente de um deus, ou 0 companheiro dos deuses, ou © interlocutor privilegiado deles e, por iss0, 0 responsivel pela ordem e 0 ‘equilbrio do universo. Em outras partes, 0 soberane e a aristocracia aderi- ram 20 novo credo que os mereadores haviam trazido do outro lado do deserto, mas 6 povo continuou a dialogar diretamente com os seus deuses de sempre, a sacrificar aos antepassados e a cumprir 0s ritos essenciais as boas colheitas e & fertilidade das mulheres ¢ dos rebanhos. E hé exemplos, em ‘outros sitios, de adesio completa, de nobreza ¢ povo, ao islamismo. ‘As primeiras noticias de sudaneses em peregrinasio a Meca refesem- se a reis devotos — como seria de esperar, pois os cronistas tinham como personagens os poderosos. O maf de Canem, Dunama Dibalemi, foi 20s lu- {gares santos na primeira metade do século XIII. © manu Uli eo usurpador Sacura, do Mali, poucas décadas mais tarde. Mas nlo s6 es reis procuravam cumprir essa obrigagio e seguiam para 0 Cairo, acaminho de Mecs, servidos por enormes caravanas. Também o homem comum. © pobre, a mendigar ppiamence, © rico, com seu saquinho de ouro, para pagar as despesas. Ou ‘com escravos, dinheiro que.tinha pés e caminhava. ‘As caravanas anuais de peregrinos do Tacrur, Ga ¢ Canem torna- ram-se distribuidoras de escravos, pois com eles os seus donos iam saldando pelo caminho © que deviam com alimentagio e hospedagem. A maior parte dos eseravos ficava no Cairo, em Meca e em Medina, onde os gastos eram ‘maiores, Assim seria jf no século XII ow XIII e rio apenas muito mais tarde, no século XV, quando vivia Ab-Mactizi.! Este anotou, em 1416, a chega- GE Alene dCi Sie dda ao Cairo de uma caravana de peregrinos com grande quantidade de ouro fm p6 € 1.700 escravos, entre homens ¢ mulheres, sendo de suporse que fossem a partida muito mais numerosos. E refer, em outra pigina, wma cifila do Tacrur, eujos membros seguiram pata Meca, em 1439, apés teem ‘yendido no Cairo os seus escravos. Destes, a maioria morceu (possivelmente om a chegada do frio ou de doensas para as quais no tinha defesas), com prejutzo para os novos proprietérios _* “Tal como algumas vezes se passava com 0s cristiogietiopes que se dligiam, em grande compankia,a Jerusalém, na experanga de rezat no Santo Sepulero ena igreja da Verdadeira Cruz, os peregrinos mugulmanos podiam também, ainda na Africa ou j4 na Arabia, transformar-se em cativos. Eram seqiestrados num ponto de paragem ou capturados durante ataques de sal- teadores, que 0s vendiam ilegalmente, como se fossem infiis, ou 0s coloca- ‘vam nos ofsis ou nos mereados crstios, © aj contribuiu também para introduzir nas cortes do Sudio novos inétodos de govemo e titicas de guerra, para alterar hibitos de consumo, para criar novas necesidades e, conseqiientemente, exigi que se produzis- fem, para pagilas, mais escravos. Sio conhecidas as mudangas no Mali, 2p6s a famosa peregeinagio do manss Musa, em 1324!" Das que promoreu, fem seu retomo de Meca, cem anos antes, o maf Dunama Dibalemi, quase nada sabemos. Hi indicios, porém, de que teria comesado a importar de forma sistemitica corctis do Egito e da Africa do Norte. Gragas talvez a ele, a sela com estribos, a espora ¢ 0 freio foram acolhidos por Canem.!'6 E também — quem sabe? — a cota de malha, o Idi (uma cobertura de pano acolchoado, com que se vestiam os homens ¢ 0s cavalos, para amortecer impacto das flechas) € 0 capacete de ferro. Com a adosio, a partir do século XIII, do fivio e da sela com estribos pelos reinos sudaneses, ransformou-se a arte da guerra pois da infantaria fnontada surgiu uma verdadeira cavalaria. Com @ mudangs, reforgou-se a necessidade de imporar corctis, pois os animais que existiam na Africa a0 sul do Saara, embora robustos e resistentes, tam pequenos demais — mui~ tos ficavam entre 90.¢ 110cm de altura na cemelha'"” — para um chogue de langis ou um combate de expadas. Tinham esses petigos uma boa tradisio Anantisss ibmic me 65 de uso militar e continuaram a ser usados na guerra em pleno século XIX. ‘Quem os montasse ficava, contudo, em evidente desvantagem diante de um adversirio cavalgando um animal da Barbaria ou de Dongola, com seus 135 a 16Sem de altura. ara adquiti cavalos grandes no Magrebe eno Egito, a principal moeda era 0 escravo, Quanto mais escravos se fosse capaz de colocar nos mercados ‘mediterrinicos, maior o numero de eqiinos a atravessarem o deserto, E com ‘muitos cavalos, mais facil era fazer prisioneitos, pois os fugitivos, apés uma batalha, uma escaramusa ou uma raza, dificilmente conseguiam fugit de um ‘grupo montado, Cavalos produziam escravos, ¢ escravos compravamm cava los, Ambos eram bens frigeis ¢tinham de ser constantemente repostos, pois ‘morriam com faclidade. O negro, por inadaptasio ao clima do Magrebe, do Egito ou da Aribia. O cavalo érabe, berbere ou dongola, por nio se ajustar As novas pastagens, nio ter imunidade contra as picadas da tsé-tsé, nem con- ‘xa as doengas das savanas subsaarianas. ‘Al-Umari"® escreveu, por volta de 1337, que o rei do Mali despendia grandes somas na aquisisio de cavalos érabes e que em dez mil deles monta- ‘vam o seus soldados. Dos balalis, causadores, no fim do século XIV, do éxodo para Bomu dos reis de Canem, di2-se que tinham mais e melhores cavalos do que os ma, seus adversirios,"? cavalos das ragas de Dongola, ttazidos talvez pelos Srabes que se deslocavam do Nilo para o lago Chade."* Esse comércio prolongou-se por muitos séculos, até quase o fim do Oito- centos." E dele, no inicio do século XVI, recolhemos em Leio African tumas poucas informagées que, excetuada a tltima, bem podiam datar de cem anos antes: Canem (se © Ganga do escritor granadino for realmente a CCanem dos bulaas) tzocava com 0 Egito cavalos por escravos; Tombuetu, entio sob o controle de Songai,o: adquiria na Africa do Norte; e, em Bornu, tum corcel da raga berbere valia entre 15 ¢ 20 escravos. Hii noticias de que, no fim do século XIV e inicio do XV, 0 escambo de cavalos por escravos estendeu-se entre os povos do Sudo. Conta-se do -arqui Kanajeji, que reinou sobre a cidade-estado de Kano, entre 1390 ¢ 1410, ue vestiu parte de suas tropas com cotas de malha e lids e cobriu-lhes as cabesas com capacetes de ferro. Possuia tantos eqiiinos, que os permutava por escravos com os cuararafas do vale do rio Benué. De um outro sang, Tacubu, diz-se que, meio século mais tarde, trocou com o rei dos nupes dez cavalos por doze eunucos!™ © que as tradigdes no esclarecem & se esses 66 Alene dane 5 animais eram reexportados por Kano ou jf produzidos localmente, a parti de matrizes berberes ou dongolas. Por muito tempo, também se importavam do Eg ¢ da Magrebe as cespadas, as cotas de malha e os capacetes. E pagavam-se em boa parte com cescravos, Estes eram também produzidos para servirem de moeda para a aquisigio de um outro tipo de eseravos, pois, a partir, a0 que parece, da ppereprinasio do manta Musa, desenvolveu-se no Mali em outtos reinos sudaneses 0 gosto pelos guardas pessoais mamelucos ¢ por mogas e castrados turcos e etiopes. Segundo Al-Umari, o rei do Mali, nas horas de audincia, mostrava atris dele uma trintena de turcos e outros soldados brancos com- pprados no Cairo. O comércio de escravos passou a dar-s, assim, nas duas diresBes."* Bscravos baratos, do Mali para 0 Egito e, dispendiosos, do Egi- to para o Mali ‘Seriam poucos, e destinados, acima de tudo, 2 demonstrat poder, ri queza e requinte, os escravos brancos e etiopes nas cortes do Mali, de Gad ou de Boru, Jé nas grandes cidades do mundo mugulimano, contavam-se 20s milhares os escravos provenientes do Sudio Ocidental e do Sudo Cen- tral, assim como 0s do Sudio Oriental, da Nubia, da Somilia ¢ da Bxibpia. Regitaran-se também reportage, Chae constant por ‘exemplo, ra 0 flwxo de escravos negros da Africa do Norte para o Egito, Podiam chegar a dois mil por ano,” entre o fim do século XIIT € o inicio do XV, quando 0 comércio entre 0 Cairo ¢ 0 Magrebe atingiu o seu auge or essa época, mas sobretudo durante o reinado, na primeira metade do Trezentos, do sultio mameluco Al-Nasit Muhamed, expandiram-se 35 atividades dos mercadotes egipcios, nio s6 na Africa do Norte ¢ na faixa sudanesa, mas também na Nabia, na Abissinia, nos litoraisafticanos do Indico, za Indonésia e no sul da China. Na Eti6pia, eles adquiriam marfim, especia- rias ¢, mais que tudo, escravos, que tinham excelente mercado até na India. Entre os cativos que desciam do planalto, muitos eram eunucos, de que 0 reino de Hadia, no sudoeste da Etiépia, se transformara num dos mais im- portantes centros de exportagio. Para alimentar esse extensssimo mercado, que ia da ponta da Europa 20 fim da Asia, os mugulmanos adquiriam escravos 20s reis € potentados africanos. Mas no deixavam de recorrer, quando a ocasifo se apresentava, violéncia direta, Sabemos, por exemplo, por uma carta enviada, em 1391, pelo rei de Boru 20 sultio mameluco, Barcuque, que tribos érabes vindas do Ananiees ene 67 Egito e do Darfur apresavam os siiditos do mai e, embora esses fossem isla- ritas, 0s vendiam aos mereadores egipcios e sitios. Na missiva, o mal solici- tava a Barcuque a devohicio dos incevidamente escravizados ¢ o castigo dos escravizadores. A partir de 1169, quando a cavalaria de Saladino deu batalha a 50 mil soldados negros (muitos dos quais, expulsos do Cairo, se refugiaram na Nébia e ali continuaram a lutar), os regimentos de homens de cor desapareceram dos exércitos egipcios. Sob os governos mamelucos, os negros prestavam 3s tropas os servigos mais baixos: lavavam cavalos ¢ estrebarias e eram criados dos militares. No chegavam sequer a pajens ou ordenangas. O negro ficou, portanto, de fora, quando se estruturou, a partir da escravizagao para produzit soldados, o sistema de poder mameluco, Nio teve ele lugar nessa aristocracia guerrera, fdas nio nos lagos de sangue mas na fidelidade do ex-escravo, Do ex-eseravo branco, pois a0 negro estava vedado 0 acesso a ssa elice militar!” ‘Comprava-se um meninote nos territérios limitrofes do Islame. No infcio, quase sempre entre as tribos eavaleias da Asia Central. Do infil fazia-ge um mugulmano, 20 mesmo tempo em que o submetiam a uma rigo- rosa aprendizagem militar. Era, depois, manumisso ¢ se ligava como cliente um cavaleito mameluco, que também fora, rapazola, escravo. Comegava, assim, uma carreira, na qual podia chegar aos mais altos postos. O negro, io, Levavam-no para 0 exército como escravo. E nee continuava eseravo, a fazer os trabalhos mais humildes. Podia ser alforriado, mas no ganhava com isso posigio melhor nas tropas Em algum momento, porém, formaram-se novos pelotdes de escravos nnegtos, Pois, no fim do século XV, havia um pequeno corpo de arcabuzziros no exército dos sultSes mamelucos. E talvez pretos fossem também os atti- Iheitos."" Isto deveu-se possivelmente 20 desprezo que os mamelucos ti- nnham pelas armas de fogo. Usiclas estava abaixo da dignidade de um cava leizo, Este ia a guerra de arnés, na sua montaria e com as armas nobres: 0 arco, a langa, a espada, Se exa de todo necessiio usar 9 canhio ¢ © areabuz, aque ficassem esses nas mos de quem nfo chegava a ser propriamente um 68 Ali da Conn eSis soldado. Mas nada de descuidos: forgoso era manter sob estrito controle ¢ fem pequeno nimero essa infantaria desprezada. (O soldado negro nao podia erguer a cabega. Por isso, em 1498, quan- do 0 sultio quis mostrar 0 seu favor ao chefe dos arcabuzeiros da cidadela, dando-the por mulher uma escrava citeassiana e presenteando-o com uma tlinica de mangas curtas, roupa caracteristica dos mamelucos, estes se rebela- ram. Vestiram suas armaduras ¢ atacaram os soldados negros. Mataram cin- Gqidenta deles. Os sobreviventes, pouco menos de quinhentos, fugicam, € © sultio foi obrigado a comprometer-se a vendé-los aos turcomanos."* Na Espanha, no Magrebe e em outras partes do mundo islamita, 0 escravo negto continuot, 20 longo dos séculos, a ser soldado, Na india, por exemplo, deixou fama. No Guzerate, desde 0 século XII, se no antes.” Em Bengala, onde, no terceiro quartel do século XV, o rei tinha em suas tropas cerca de oito mil escavos afticanos, virios deles em posigies de co- mando. Ali, em 1486, um eunuco negro, comandante da guarda palaciana, matou 0 soberano e assumiu o poder. Foi, por sua vez, assassinado por um ‘outro comandante negro, que se fez te, para logo softer igual destino. Quem rmarasse o rei, assumia o seu lugar. O tltimo dessa série de usurpadores ne- {gr0s foi morto em 1493. O exército desse rei contava cinco mil abissinios, ¢ todos os seus oficais foram expulsos de Bengala.* A freqiéncia com que se mencionam pessoas escravas a exercerem, fangies de relevo na coree, na administragio e no exército, a serem mies de caifis, sultdes, emires, vizites, cadres ¢ ulemés, tem distraido 0 nosso expi- rito da natureza real da escravidio nos paises mugulmanos, Esses escravos de éxito safam da norma e, por isso e por serem uma escassa minoria, icaram na smeméria € nas erSnicas. Poucas eram as concubinas que gozavam do privilé- gio, ainda que passageito, de ser favoritas; a maioria apagava-se no ramerr30 ddos haréns. Podia-se chegar a general ou chefe dos eunucos, para cair na _quinzena seguinte. Pois 0 poder que o escravo alcangava nfo era dele, mas de seu senhor. Havia excesées, é claro, pois alguns construiam, & socapa ou abertamente, com certos setores da corte esquemas de apoio ¢ comunhio de inceresses, tornando dificil a0 amo despi-los das fansSes, a nto ser pela mio do carrasco ot do siciro, Alguns foram tio competentes, que derrocaram © senhor ¢ assumiram o seu lugar. ‘Como norma, umm escravo ascendia a posigSes de mando no palicio porque era propriedade do soberano. Seus flhos também a este pertenciam, Armsniterettenie —~ 69 Se eunuco, estava de todo impedico de criar uma estirpe que pudesse som- brear a casa real ou com ela competir, Por isso, abriam-se para ele 0s acessos 420 poder. Mas podia perdé-lo com a mesma facilidade, pois, a0 menos teo- ricamente, um vizit escravo estava sujeito a ser reduzido a nada, se assim decidisse o seu senor, que dele era dono, como era dono do que the lavava (0s cavalos ou carregava 4 cabeca o esterco para adubar os jardins, ‘A impressio que nos fica dos antigos autores mugulmanos € a de que (0 grosso da escravaria se destinava a tarefas urbanas. Nos primeitos séculos de sua expansio, os irabes ¢ arabizados nio se interessaram em se apossar das texas conquistadas para explori-las diretamente na produgio agricola. elas queriam receber os beneficios por meio de impostos. E as wxavam, € 08 que nelas viviam, ferozmente. No Egito, imitaram os faraés e os Prolomeus continuaram montados nos felis. Na Africa do Norte, sustentaram 0 po- der e pompa com as taxas sobre uma produgio agricola baseada na pequena propriedade. ‘Seriam poucos, entre 0s proprietirios rurais, os que podiam ter escra~ vos. Estes escravos raramente passariam da meia dlizia ¢ trabalhariam no ‘campo, ao lado do dono e de sua familia. © quadto nio fica, porém, assim completo, pois nio,deixou de existir no mundo mugulmano a grande pro- priedade agricola, onde se cultivavam 0 algodio, o arroz, 2s thmaras ea cana- dde-agticar, com sua tropa de escravaria, No século X, era escrava, por exemplo, a mio-de-obra que cuidava das tamareiras nas grandes plantagdes de Al- ‘Absa, perto de Bahrain, e dos canaviais do Khuzistan, na Pérsia."° E nas cennirias seguintes, a presenga do escravo sb aumentou. Nés o veremos, n0 século XV, a cultivar extensivamente a cana e 0 algodio na Africa do Norte (Gobretudo no sul do Marrocos) ¢ na Andaluzia. E a trabathar a terra na Sicilia mugulmana. Podia ter ele ainda um destino mais pesado, Ser conduzido as pedrei- ras de Aden, onde, no século XIII labutavam eseravos zanjes. Ou as mi- ras de ouro de Alaqui, em pleno deserto, exploradas por mio escrava desde pelo menos © Novo Impétio egipcio e até 0 século XTV, quando secaram. (Ou, ainda, aos depésitos de sal-gema do Saara, onde nenhum escravo sobre- vivia por mais de cinco anos. John Keegan, A History of War, Nova Yorks Alfred A. Knopf, 1994 p. 192+ 3 TL 21245; V, 7681, 96-8, 102%, 36-52, 124; XLVI, 4,37, entre outros venculs.Sigo a trad, Joe Pedro Machado, 2. ed, Lisboa: Junta de Investiga ses Cienifias do Ultamar, 1980. Aor, XLV, 4. Alordo, XLVI, 4 8 Tea M, Lapidus, A History of le Seis, Cambridge: Cambridge University Pres, 1988, p. 42-5. Joseph M. Cog, Rene ds Sous Ares cnceran Afrae Odea du VIP ex XV? sid, Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1975, p. 415. 1, 172; V, 91; 1X, 60; XXIV, 33; XC, 13. 1.40 Poc exemplo, sobre casamento entre esravoe, XXIV, 32; sobre escravas como concubinas ou esposas, IV, 29; XXX, 52: € LXX, 30. J.0. Hunwic, “Black Slaves inthe Medierancan World: Introduction 9 2 Neglected Aspect ofthe African Diaspora”, em Th Hmen Commodi Prpcives nthe Trns-Ssbern See Toe, org. Elizabeth Savage, Londres: rank Cass, 1992, p.7. Um bom resume, endo por base a ecola malig, que fi mais influence ta Africa, no verbete Lave Islamic Law", que John O. Hunwck escrevew paca A Hore Guide World Shey, ong. Seymour Drescher e Stanley L. Engerman, Nova Yorks Oxford University Pres, 1998, . 248-252. Berard Lewis, Ra and Sawer int Mie Fas, Nova York: Onfod Universi Pres, 1990, p. 106, nota 18. “had and the Ideology of Ensavemen", em Sas & Sey in Masi Af, ag, John Ralph Willis. I, Londres: Frank Cas, 1985, p. 223. Divi Brion Davis, Sow and Hieman Prigres, Nova York: Orford University Press, 1986, p. 39. AresleesMande

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