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a condicao humana as aventuras do homem em tempos de mutacoes Organizacao: Adauto Novaes edicoes A SESCSP —__$__—_— AGIR DELICADEZA Maria Rita Kehl Por QUE ESCOLHI A delicadeza como parte essencial da condicao humana? Por ndo ser uma qualidade intrinseca do humano. Isso é justamente o que a faz necesséria. A delicadeza nao é causa de nossa humanidade, é efeito dela. Nao é meio, é finalidade. O homem nao é necessariamente delicado — dai a urgéncia de se preservar, na vida social, as condicées para a vigéncia de alguma delicadeza. Erramos ao chamar os atos que nos repugnam de desumanos. O homem, nao o animal, usa de violéncia contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da crueldade: o animal s6 mata para sobre- viver. 0 homem destréi o que ama — pessoas, coisas, lugares, lembran- cas. Se perguntarem a um homem por que razio ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso, ele dira: eu fiz porque nada me impediu de fazer. 0 abuso da forca é um gozo ao qual poucos renunciam. Além disso, o homem é capaz de indiferenca, essa forma silenciosa e obsce- na de brutalidade. O homem atropela 0 que é mais fragil que ele — por pressa, avidez, sofreguidao, rivalidade —, sem perceber que com isso atropela também a si mesmo. 0 cientista politico Renato Lessa, autor nesta mesma coletanea, utilizou o naufrégio como metéfora do humano em nossos tempos. Proponho acrescentar a essa a met4fora do atropelamento, que expres- sa perfeitamente a relacado do sujeito contemporaneo com o tempo. Nao por acaso a palavra jd est4 incorporada a linguagem cotidiana para expressar os efeitos da pressa sobre a subjetividade. Dizemos, com frequéncia, que fomos atropelados pelos acontecimentos — mas 453 Marita Rita Kent quais acontecimentos tém poder de atropelar 0 sujeito? Aqueles em direc&o aos quais ele se precipita, com medo de ser deixado para tras. Deixamo-nos atropelar, em nossa sociedade competitiva, porque me- dimos o valor do tempo pelo dinheiro que ele pode nos render. Nesse ponto remeto o leitor, mais uma vez,’ palavra exata do professor Antonio Candido: “O capitalismo é 0 senhor do tempo. Mas tempo nao é dinheiro. Isso € uma brutalidade. 0 tempo é 0 tecido de nossa vida.” A velocidade normal da vida contemporanea nao nos permite parar para ver o que atropelamos; torna as coisas passageiras, irrele- vantes, supérfluas. Tenho grande ternura pela lembranca de meu pai, nas viagens de carro que faziamos na minha infancia: cada vez que uma mariposa se estatelava contra o para-brisas, a noite, ele lamenta- va o fim abrupto daquela vidinha mindscula cujo voo erratico era tao desproporcional a velocidade do automével. Tudo que vive é sagrado? Corremos na inten¢do de ndo perder nada e perdemos 0 essen- cial: o desfrute do préprio caminho. A vida, no entanto, nao é exata- mente isso: travessia? E 0 que dizem os versos da bela cancao de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: Artomove la nem se sabe se é homi ou se 6 muié Quem 6 rico anda em burrico Quem é pobre anda a pé Mas 0 pobre vé nas estrada O orvaio beijando as fuld Vé de perto 0 galo-campina Que quando canta muda de cor Vai moiando 04 pés no riacho Que agua fresca, Nosso Sinhé Vai oiando coisa a grané Coisas que pra mode vé O cristéo tem qui andar a pé? Nossa condicdo pedestre talvez seja uma boa medida da ne- cessidade da delicadeza. Em uma pequena crénica de 1915, escrita por Freud a convite da Sociedade Goethe de Berlim e intitulada “A transi- toriedade”? 0 pai da psicandlise inicia suas consideracdes ao descrever 454 DeLICADEZA um passeio que fizera a pé, pelas montanhas nos arredores de Viena, durante um belo veriio austriaco. Durante 0 passeio, ficticio ou ver- dadeiro, um poeta que acompanhava o psicanalista teria lamentado 0 fato de que a chegada do inverno deveria por fim a beleza das flores que enfeitavam o caminho. Freud inicia, eno, uma série de conside- racées sobre a transitoriedade, nao apenas das flores e das belezas na- turais, mas das mais sublimes criagdes humanas: lembrem-se de que a Europa atravessava entao a Primeira Guerra Mundial. Ao final, conclui que a transitoriedade nao diminui o valor das coisas — ao contrario, acrescenta-Ihes valor. A delicadeza ¢ possivel justamente nas culturas em que a perda é parte da vida. Ao contr4rio, os que nada admitem per- der talvez desprezem tudo o que é efémero, fragil, transitério. “Depoia de te perder/ Te encontro, com certeza/ Talvez num tempo/ Da delicadeza...” (Chico Buarque) Aconsciéncia da transitoriedade é a mesma consciéncia do valor e da delicadeza de tudo o que existe. A capacidade de amar o transi- t6rio, como no belo poema do pernambucano Carlos Pena Filho, seria um poderoso antidoto contra as paixdes agenciadas pelo capitalism paixdes de acumulacao, dominio, posse. Quando mais nada resiatir que valha A pena de viver e a dor de amar € quando nada maiz interessar (Nem 0 torpor do sono, que se espalha), Quando, pelo desuso da navalha A barba livremente caminhar € até Deus em ailéncio se afastar Deixando-te sozinho na batalha A arquitetar na sombraa despedida Do mundo que te foi contraditério, Lembra-te que afinal te reata a vida 455 Marta Rita Keune Com tudo o que é insolvente e proviaério E de que ainda tens uma saida: Entrar no acaso e amar o transitério.4 Transitoriedade, finitude, tédio e estagnacéo A finitude 6 0 modo fundamental do ser, escreve Heidegger. “Se quisermos vir a ser 0 que somos, nao podemos abandonar a finitude ou nos iludirmos quanto a ela. Muito ao contrario, precisamos protegé- -la.”5 0 fildsofo cita o poeta romantico Novalis, para quem a necessida- de de filosofar decorre de uma saudade da patria, um desejo muito hu- mano de recuperar o sentimento de totalidade — como se fosse possivel sentir-se, por toda parte, em casa. Mas justamente porque somos arre- messados para fora da totalidade, justamente porque nossa condicao é 0 desterro da totalidade, que somos impelidos a pensar, a perguntar, a buscar sempre uma centelha de infinito no meio do finito. Além da finitude, outra condi¢do do pensamento (isto 6, da filo- sofia) para Heidegger é 0 tédio, em alemao Langeweile, literalmente “tempo longo”: “No tédio, trata-se de um espaco de tempo, de uma de- mora, de uma permanéncia peculiar, de uma duragao.”° Como Walter Benjamin, a quem devo me referir mais adiante, Heidegger valoriza 0 tempo dilatado do tédio, ou do 6cio, como condigao do pensamento. No entanto, 0 fildsofo nao se propée a medir a extens&o desse tempo longo. Ao contrdrio, ele questiona os critérios de medida a partir do qual avaliamos nosso uso do tempo. Mas o tempo deve andar mais depressa: em que rapidez? Que ve- locidade deve ter afinal o tempo? O tempo podaui, antes de mais nada, uma ve- locidade? O tempo anda evidentemente em seu curso constante e uniforme, se desenrola quase como a batida constante e uniforme do pulso de um monatro intangivel: em cada minuto 04 seus 60 segundos e em cada hora seus 60 minutos. Mas o tempo se constitui a partir de horas, minutos e segundos? Ou sera que 456 DELICADEZA estas nGo passam de medidas nas quais nda o abar- camo porque nos movemos enquanto habitantes da terra neste planeta, em uma ligacao determinada com o sol? Sera que s6 precisamos deatas medidas e da uni- formidade constante af envolvida para a mensuracdo do tempo?” O tempo nos pertence — mas, de maneira geral, néo somos capazes de simplesmente estar nele. Assim “nés 0 matamos, o dis- sipamos, 0 desperdigamos”.® Ao descarté-lo como um “tempo que passa”, ao nos fecharmos para o “fluxo da duracao”, acabamos por nos instalar, nao no tempo do tédio, mas no da estagnacao. 0 tempo estagnado, “fechado para o fluxo da duracdo”, é o tempo do presente absoluto — tempo do esquecimento, portanto. “(...) com o passado essencial caindo em esquecimento, fecha-se o horizonte posstvel para toda anterioridade. O agora s6 pode permanecer agora.”° Ora: o blo- queio do passado compromete também a fantasia do futuro. “Nada pode vir porque o horizonte do futuro esta desarticulado. Bloqueio do passado e desenlace do futuro nao colocam de lado o agora, mas retiram dele a possibilidade de transicdo de um ainda-naio para um ndo-mais: o fluir (...) Sem a possibilidade de transicdo, s6 lhe resta o subsistir: ele tem que ficar Eatagnado.”” Que nao se imagine, portanto, que amar o transitério é o mesmo que se entregar a velocidade aparentemente irrecusdvel de nosso tempo, a qual as vezes nos parece nao mais um dos possiveis modos humanos de apropriacao do tempo, mas uma imposicao do Real. A velo- cidade 6 que pede 0 “bloqueio do passado e o desenlace do futuro” a que se refere o filésofo. Ao contrario, o tempo longo a que chamamos tédio — sera apropriada essa denominagdo? — é que permite a experiéncia subjetiva da duracdo. A mesma que confere algum valor a nossa breve passagem pelo reino deste mundo. Devo fazer ent&o algumas consideracées sobre a perda da delica- deza no mundo (ao menos 0 ocidental, que nos é mais familiar) con- temporaneo. Carlos Drummond de Andrade j4 se perguntara, no fim do poema “Anoitecer”," escrito ao final da Segunda Guerra: 457 Maria Rita Keau Hora da delicadeza; gasalho, sombra, siléncio; haverd disso no mundo? & antes a hora dos corvos, bicando em mim, meu pas- ado, meu futuro, meu degredo Desta hora, sim, tenho medo. Muitas pessoas podem imaginar que ao falar de perda da delicade- za estaremos lamentando as mudancas nos costumes, 0 esquecimento de certos habitos de cortesia, a chamada m4 educacao dos jovens, etc. NAo é disso que se trata. Afinal, na segunda metade do século XIX, no apogeu da grande era burguesa, o jovem Rimbaud ja se lamentara em versos: (...) par délicatease, j’ai perdu ma vie.? Bem antes dele, um pensador seiscentista da estatura de Michel de Montaigne escreveu que a delicadeza (no sentido da politésse) seria a qualidade oposta aquelas que fazem um “honétte homme”, que deve em certas circunstancias ser capaz de se mostrar franco, direto, quan- do nao até mesmo rude. N&o é facil encontrar, entre os filésofos contemporaneos, quem se dedique ao tema da delicadeza. Encontrei, por exemplo, no Pequeno tratado das grandes virtudes, de André Comte-Sponville, considera- ¢des interessantes sobre uma espécie de irma cacula da delicadeza: a polidez. Sponville escolhe a polidez como a primeira de suas “grandes virtudes” — embora a considere uma pequena virtude (“a mais pobre, a mais superficial, a mais discutivel”)," afirma que a polidez esta na origem de todas as outras. Mas, para 0 autor, a polidez é um valor ambiguo, pelo menos do ponto de vista moral. Um nazista polido nao é menos terrivel do que um grosseirao; talvez seja até pior, escreve, invocando a “polidez in- sultante dos poderosos” a que se referia Diderot, a qual corresponde a “polidez servil” dos fracos: “Seriam preferiveis o desprezo sem frasea- do e a obediéncia sem mesuras.”4 “Virtude formal, virtude de etiqueta, de aparato! Aparéncia de virtude, somente aparéncia! (...) E um artificio, e desconfiamos dos artificios. E um enfeite, e desconfiamos dos enfeites.”° Mas a desconsideracio inicial da polidez logo se revela um ar- tiffcio retérico. O autor, mais adiante, comeca a defender a polidez, justamente por seu carater artificial, ou seja: nao natural. Afinal de 458 DeLtircaveza contas, nenhuma virtude é natural. Assim sendo, “(...) j4 que € preciso tornar-se virtuoso, comecemos por uma virtude modesta, acessivel, ‘treinavel’, que faz 0 homem parecer, por fora, o que deveria ser por dentro. (...) Dizer por favor, desculpe, é simular respeito. Dizer obrigado é simular reconhecimento. Ai comecam 0 respeito e 0 reconhecimento. A moral imita a polidez, que a imita”.® A polidez no se confunde com a delicadeza, mas pode criar con- digdes para ela. Mas sabemos que um tirano pode ser polido, assim como os mais refinados sadicos também. Por outro lado, uma pessoa excessivamente adestrada nas atitudes polidas pode perder a coragem, a autenticidade, a ousadia, caracterfsticas que nao se opdem a delica- deza. A conclusao de Sponville merece ser citada aqui, pela fineza do estilo: “A polidez nao é tudo, é quase nada. Mas o homem, também, é quase um animal.”” A polidez nao garante, mas ao menos tenta aumentar um pouco a distancia que separa o homem do animal. Voltamos assim ao ponto de partida: é por nao ser uma qualidade naturalmente humana que valorizamos a polidez, assim como a delicadeza. Essa nfio se confunde com a minticia, o ornamento, a firula — formas faceis, as vezes vazias, de arremedo da delicadeza. Busco entao outro caminho de aproximacao ao tema da delicade- za. O escritor Italo Calvino escolheu, para abrir o ciclo de conferéncias que foi convidado a proferir, em 1985, na Universidade de Harvard, sob 0 titulo “Seis propostas para o préximo milénio”;® o tema leveza. Nao que tenha algo contra, escreve ele, o peso e a austeridade. Apenas ponderou que teria mais a dizer sobre a leveza. Para o autor, a leveza é a substancia nao mortal do homem. Participa do pensamento, do espi- rito, da criago poética, caracterfsticas humanas capazes de “vencer”, ou superar, a morte corpérea. Perseu, por exemplo, usou sandalias aladas para cortar a cabega de Medusa. A leveza do gesto imaginado, no entanto, ndo exclui o peso do ato de decapitar o monstro. Para Calvino, a leveza nao seria a qualidade do que é vago e alea- torio, mas o que é preciso e determinado — imaginemos, mais uma vez, a exatidao do ato de Perseu ao cortar com um s6 golpe a cabeca de Medusa antes que ela acabasse com ele. Trata-se de ser leve “como 0 passaro, n&o como a pluma’, escreve Calvino, citando Paul Valéry.? 459 Marta Rita Keune Mas a leveza ainda nao é delicadeza. E uma qualidade quase estética, ou pelo menos estilfstica. Continuo a me aproximar de meu objeto pelas beiradas. Penso que no caso da delicadeza, a modéstia que permite a um sujeito aproximar-se de qualquer outro, da mais insig- nificante condi¢do, sem uma atitude abusiva no se dissocia de certa bravura do coragdo. “Para dar uma volta por cima”, disse 0 compositor brasileiro Paulo Vanzolinni, é preciso antes ser capaz de “reconhecer a queda”. S6 quem reconhece a propria queda, ou a possibilidade dela, sabe ser delicado com os que cafram? Reconhecer a queda é condicao da coragem para se viver perto de abismos? 0 poeta e ensafsta Octavio Paz, em Tempo nublado, dedica um en- saio ao suposto sentimento de decadéncia vivido pelos norte-america- nos no final da década de 1980, logo apés a derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietna. Paz manifestou, nesse ensaio, a esperanca de que a derrota pudesse ser 0 comeco do fim de um ciclo de dominacao da “democracia imperial” norte-americana. Nao me importa hoje, quase trés décadas depois, se na época o autor acertou ou nao seu diagnésti- co; interessam-me agora as associagées que ele foi capaz de fazer entre decadéncia e delicadeza. Octavio Paz refere-se ao triunfo do capitalis- mo como uma brutalidade, um “galope incessante em diregdo ao reino do futuro”.*? Ora, ora: cd estamos nés outra vez as voltas com o tempo. O futuro, escreve Paz, seria uma “terra feita de uma substancia eva- nescente: 0 tempo. Tao logo é tocado, o futuro se dissipa. O progresso é fantasmal”* 0 progresso despreza o passado e atropela o presente em nome de um tnico tempo que, a rigor, nao existe. O progresso é brutal e insens{vel, desconhece 0 matiz e a ironia, fala através de proclamas e “Ordens, anda sempre depressa e jamais se detém. A decadéncia mistura suspiro e sorriso (...) E uma arte de morrer, isto é, de viver morrendo”.* Saber morrer é condicao para se viver do lado da delicadeza? “Filosofar € aprender a morrer”, escreveu Montaigne. Voltamos, por linhas tortas, a finitude e seu valor para o humano como “ser para a morte”. Paradoxalmente, o ensaio de Octavio Paz nos faz pensar que 0 valor da finitude nao é tributdrio da aceleracao que precipita os su: jeitos rumo ao futuro, isto 6, & morte. Muito pelo contrério. A finitude adquire valor na medida em que o sujeito desiste de se tornar “senhor 460 DELICADEZA do tempo”. Uma vez que faz da vivéncia temporal experiéncia. Do contrario, observa ainda Octavio Paz, a vida perde o sentido. Por tras da enorme variedade de bens que nos fazem correr como condenados — condenados a aproveitar ao maximo nosso tempo — existe o qué? “Nada, nao encontro nada. Tudo sao meios, tudo serve, tudo é meio para se obter — 0 qué?” (coisas e mais coisas que nao temos tempo para des- frutar...). Eis af mais um autor que nos leva a pensar que a delicadeza depende do uso que fazemos do tempo. Aproveitar o tempo! Mas 0 que é 0 tempo, que eu o aproveite? Aproveitar o tempo! () - Desde que comecei a eacrever passaram cinco mi- nutos. Aproveitei-os ou nao? Se ndo sei se od aproveitei, que saberei de outros mi- nutos?! (Alvaro de Campos) Oartista brasileiro Sérgio Fingermann faz uma articulacao entre a delicadeza, o uso do tempo e a voracidade do mercado, na mesma linha do ensaio de Octavio Paz. Para Fingermann, a delicadeza “é uma posicdo ética. Protege o que esta 4 margem do mercado. A ideia do valor ilimitado da expansdo (expansao de dinheiro, poder, visibilidade, objetos, etc.) produz efeitos fascistas. A delicadeza protege a memoria daquilo que a expansao do capitalismo destruiu”.™ O valor ético e estético da delicadeza reside, por um lado, na in- tengo de frear a maquina que expande o poder e concentra a riqueza do capitalismo (que no ser4 superado, entretanto, através de recursos delicados) e, por outro lado, em dar lugar ao que tende a desaparecer por ficar exclufdo dessa légica. 0 poeta inglés John Berger assim se referiu ao que fica excluido da légica dos meios a que se refere Paz: “Os poemas, que nao lidam com desfechoa de nenhuma ordem, atravessam os campos de batalha, cuidam dos feridos e ouvem os mondlogos de- lirantes de triunfantes e derrotados. Trazem consigo uma espécie de 461 Marta Rita Keut paz. Nao por qualquer virtude anestesiante ou de facil consolagao, mas por conterem o reconhecimento e a promessa de que as experiéncias ndo podem desaparecer como se nunca tivessem existido.” Delicadeza e experiéncia No trecho citado, reconhecemos a relacao entre a delicadeza, a transitoriedade, a poesia, a memGria e o valor da finitude. Chegamos agora, nao numa abordagem frontal, mas pelas margens, ao filésofo que melhor compreendeu o valor da delicadeza, assim como os estra- gos causados por seu desaparecimento como efeito da aceleracao do tempo na modernidade: Walter Benjamin. Em “Experiéncia e pobreza”, escrito no perfodo entre guerras, na Alemanha, Benjamin analisou a impossibilidade de os soldados que voltaram do front depois da Primeira Guerra transmitirem as pessoas proximas o que tinham vivido. Depois de algumas consideracées sobre a velocidade dos primeiros bombardeios aéreos da historia, Benjamin estabelece uma importante diferenga entre experiéncia (Ehrfdrung) e vivéncia (Ehrlebniz) para explicar por que os soldados, cuja vida psiqui- ca ficara limitada durante o perfodo da guerra a atividade de “aparar choques”, tinham ficado mais pobres, nao mais ricos em experiéncia. Nesse ensaio, um dos mais conhecidos de Walter Benjamin, a desmoralizacao da experiéncia esta diretamente ligada a aceleracao da temporalidade, nas primeiras décadas do século XX. Assim como 0 filésofo Henry Bergson” e na trilha aberta por Freud, Benjamin con- sidera que o trabalho psiquico de aparar os choques a que a vida mo- derna expée ininterruptamente as pessoas — e nesse caso, a imagem dos bombardeios seria a metéfora exata — reduziria a vida psiquica (a “vida do espirito”, no dizer de Bergson) a sua dimensdo mais pobre: a das fungées do sistema batizado por Freud de percep¢do-consciéncia. Tanto Bergson quanto mais tarde Walter Benjamin foram unanimes em considerar que o que chamamos propriamente de vida psfquica tem a ver com o trabalho das camadas consideradas profundas da mente —o pré-consciente e o inconsciente. Esse é 0 trabalho responsavel pela memoria, que confere ao eu um sentimento de permanéncia ao longo do tempo, assim como de continuidade da existéncia. Também o de- 462 DeLicaveza vaneio, a fantasia, todas as capacidades criativas da imaginacdo sdo gestados nos sistemas pré-consciente e inconsciente. A experiéncia participa dessas atividades. Ela é 0 que da sentido a vida: transmite a sabedoria de um anciao em seu leito de morte, passa de geracdo em geracao versdes fantasiosas das peripécias vi- vidas pelos antepassados, perpetua velhas lendas narradas por um contador de histérias (0 “narrador” que da titulo ao texto) em volta da fogueira, e as aventuras do viajante que volta a aldeia para contar suas aventuras em lugares distantes. A transmissao da experiéncia através das narrativas propicia um modo de estar no tempo muito diferente do que conhecemos: 0 sujeito que escuta uma narrativa serd o mesmo a transmiti-la posteriormente. Mas, ao contar a historia, sempre ha de inserir parte de sua experiéncia na trama. Com isso, deixa de ser © “proprietario” individual de sua passagem pelo mundo. Vive-se em uma temporalidade distendida, em que a vida de cada individuo se liga ade seus antepassados e ade seus contemporaneos, como elos em uma delicada corrente tecida de experiéncias através das geracées. Essa corrente foi bruscamente interrompida, no século XX, por dois eventos complementares: o rapido desenvolvimento da tecnologia ea Primeira Guerra Mundial, chamada de Grande Guerra pelos que sofreram seus efeitos devastadores. E O trecho seguinte é tao importante na critica A modernidade feita pelo fil6sofo, que depois de “Experiéncia e pobreza” ele o reproduziu, sem tirar nem pér, em “O narrador”.*® Assim ele exprime o choque vivi- do por quem atravessou a guerra: Uma geragdo que ainda fora & escola num bonde pu- xado por cavalos se encontrou ao ar livre numa pai- sagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forcas de torrentes e explosées, o fragil e mintisculo corpo hu- mano.” Em “O narrador”, a consideragdo sobre o “fragil e mintisculo corpo humano” exposto ao campo de forcas de torrentes e explosdes encerra 0 capitulo 1, enquanto em “Experiéncia e pobreza” o paragrafo seguinte a esse comeca com uma 4cida consideracao sobre a técnica: 463 Marita Rita Keanu “Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvi- mento da técnica, sobrepondo-se ao homem.”” A aparente seguranca fornecida pela eficdcia técnica desmoraliza a experiéncia. A experiéncia nao tem a forca de autoridade das tradi- ¢6es, por exemplo: ela depende da imaginaciio para se sustentar, e assim permite que cada um formule sua propria versdo do que foi transmitido. Mas fornece um conjunto de referéncias coletivas que ajudam os indivi- duos a avaliar os acontecimentos e tomar decisdes diante de novas in- formagées. Desgarradas dessas referéncias, as pessoas ficam ao mesmo tempo esvaziadas de sabedoria e disponiveis para qualquer coisa que Ihes for oferecida ou imposta. “Pois qual 0 valor de nosso patriménio cultural se a experiéncia nao mais 0 vincula a nés?”> (..) e aoa olhos das pessoas, fatigadas com as compli- cacdes infinitas da vida didria e que veem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa intermindvel perspectiva de meios, surge uma existéncia que se basta a si mesma, em cada episddio, do modo mais simples e mais cémodo, e na qual um automovel naéo pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na drvore se arredonda como a géndola de um balao.* Nesses pardgrafos, Walter Benjamin articula o “desenvolvimen- to monstruoso da técnica”, a aceleracdo que ela propicia, o rompi- mento do elo entre as geragées que fornecia sentido e continuidade a vida e, consequentemente, a perda do valor da experiéncia. Embora nao empregue essa palavra, penso também que esse tenha sido o filésofo que melhor avaliou as formas de sofrimento, individual e coletivo, que a perda da delicadeza trouxe as sociedades industrializadas do Ocidente. Mesmo sem afirmé4-lo diretamente, a leitura de Walter Benjamin nos permite pensar que a delicadeza nao é um valor que se possa cultivar sozinho; ela depende de condicdes que devem estar presentes na vida social. Do contrario, s6 sobrevive como atitude decadentista para entediados, como ornamento ou sinal de sofisticagao, quando nao de pedantismo. 464 DELICADEZA A nao ser, é claro, na voz de alguns poetas. Como contraponto A visdo pessimista de Benjamin, termino com um poema do francés Boris Vian, que expressa 0 obstinado apego de um condenado a morte a coisas que, para ele, sao preciosas e delicadas. Com lirismo e ironia, “Ils cassent le monde” (“Eles quebram o mundo”) preserva a delica- deza diante da brutalidade, salva o sujeito da dessubjetivacao que pode ocorrer em situagées de perda total da liberdade e afirma o amor mundi em situagdes em que predominam a indiferenca e 0 6dio. Eles quebram o mundo &m pedacinhos Eles quebram o mundo A marteladas Mas para mim tanto faz, Para mim, nao faz diferenca Ainda me sobra muito Sobra muito para mim Basta que euame Uma pena azul Uma trilha de areia Um péasaro assustado Amim, basta amar Um capinzinho Uma gota de orvalho Um gafanhoto Eles que quebrem o mundo &m caquinhos Sobra muito para mim Ainda sobra muito Terei sempre um pouco de ar Um filetinho de vida Um brilho de luz no olhar €o vento nas urtigas E mesmo se, Mesmo se Me enfiarem na cadeia Sobra muito para mim Ainda sobra muito 465, Maria Rita Keuat Me contento em amar Essa pedra gasta €sse8 ganchos de ferro Onde ha sangue grudado Eu amo, eu amo A madeira gasta da cama O estrado e a palha A poeira do sol Amo 0 postigo que se abre Esses homens que entram Que avancam e me levam Ao encontro da cor Amo as traves compridas A lamina triangular Os senhores de preto E minha festa e me orgulho Eu amo, eu amo O ceato cheio de palha Onde hei de pousar a cabega Ah, eu amo para valer Me contento em amar Um ramo de erva azul Uma gota de orvalho Um passaro assustado Eles quebram o mundo Com seus martelos pesados Mas ainda me sobra muito Sobra muito para mim, meu amor? Notas 1 Ja fiz uso dessa mesma citacdo em crénica para a revista Teoria e Debate, do PT (Sao Paulo: Fundacao Perseu Abramo, 2007) e na segunda parte de meu livro O tempo e 0 cdo — a atuali- dade das depressdes. Sio Paulo: Boitempo, 2009). 2 GONZAGA, Luiz; TEIXEIRA, Humberto. “Estrada de Canindé” (1950). 466 DELICADEZA 3 SIGMUND, Freud. “El perecedero”. In: Obras completas, vol. I. Traducao de Luis Lopes Ballesteros. Madri: Biblioteca Nueva, 1976, p. 2.118-2120. 4 PENNA FILHO, Carlos: “A solidio e sua porta” em: http:/www.revista.agulha.nom.br/cpe- naorp.html 5 HEIDEGGER, Martin. Qa conceitos fundamentais da metafisica: mundo, finitude, solidao (1929-30). Traducao de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p-7- 6 Idem, p. 16. 7 Idem, p.117. 8 Idem, p.147. 9 Idem, p.149. 10 Idem, idem, u1_ ANDRADE, Carlos Drummond de. “Anoitecer”, In: A rasa do povo. Rio de Janeiro, Record, 2002. 12, RIMBAUD, Arthur: “Chanson de la plus haute tour” [Cango da torre mais altal (1872): “Oisive jeunesse, a tout asservie, par délicatesse, j'ai perdu ma vie” [Mocidade presa; a tudo oprimida; por delicadeza; perdi minha vida). Tradugdo de Ivo Barroso. 13 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes (1995). Tradugdo de Eduardo Brandao. Sdo Paulo: Martins Fontes, 2007, p.13. 14 Idem, idem 15, Idem, idem, 16 Idem, p.17. 17 Idem, p. 21. 18 CALVINO, Italo. Seis propostas para o préximo milénio. S4o Paulo: Companhia das Letras, 1988. Tradugo de Ivo Barroso. 0 escritor morreu antes de proferir a sexta das Charles Eliot Norton Poetry Lectures. As cinco primeiras foram Leveza, Rapidez, Exatidao, Visibilidade e Multiplicidade. 19 Ap.28. Cit. VALERY: “Il faut étre léger comme loiseau, et non comme la plum 20 PAZ, Octavio. Tempo nublado. Rio de Janeiro: Guanabara, 1946. a1 Idem. 22 Idem, 23 Idem, 24 Sérgio Fingermann, em conversa particular com a autora. 25 Agradeco ao poeta Fernando Paixao a referéncia, em trabalho inédito, do pardgrafo de John Berger. 26 BERGSON, Henry. Matéria e meméria. Sao Paulo: Martins Fontes, 2006. Traduc&o de Paulo Neves. 27 BENJAMIN, Walter. “Experiéncia e pobreza’, In: Obras escolhidas. Vol. 1, p. 14-119. Traducao de Sergio Paulo Rouanet. Sao Paulo: Brasiliense, 1985, p.115. 467 Marta RITA KEL 28 “0 narrador” (1934). In: Obras eacolhidas. Vol.1,cit., p.197-221. 29 Idem, p. 198, 30 Idem, p. 15, 31 BENJAMIN, Walter. “Experiéncia e pobreza". In: Obras eacolhidas. Vol. 1. Sao Paulo: Brasiliense, 1985, p. 115. 32 Idem, p. 119. 33 Livre adaptaco a traducao de Ruy Proenca em: Boris Vian — poemas e cangées. Sdo Paulo: Nanquim, 2001. Edic&o bilingue. 468

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