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CONTRIBUIQOES EM ANTROPOLOGIA HISTORIA SOCIOLOGIA 1 ANTROPOLOGIA SOCIAL DA RELIGIAO E. E. Evans-Pritchard coordenacde EDUARDO B. VIVEIROS DE CASTAC radugio JORGE WANDERLEY EDITORA CAMPUS LTDA. uma casa da Elsevier/North~ Holland Rio de Janciro 1978 Publicado orlginalmente em inglés sob o titulo ‘Theories of Primitive Religion © Oxford University Press, 1965. © 1978, Editora Campus Ltda. Todos os direitos para a lingua portuguesa reservados. Nenhuma parte deste livro poderd ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, eletrénicos, mecanicos, fotograficos, gravagéo ou quaisquer outros, sem a permissao por escrito da editora, Projeto Gréfico ‘Ana Luisa Escorel Editora Campus Ltda. Rua Japeri 35 Rio Comprido Tel 284 8443 20000 Rio de Janeiro RJ Brasil Ficha Catalogréfica (Preparada pelo Contro de_Catalogagto-na-fonte do ‘Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Fu) Evane-Pilichard, E. E. 99a Antropologia social da religifo; tradugtio /de/ Jorge War dorley, Rio de Janelro, Campus, 1078. (ContribulgSes em Antropoiogia, Historia e Soctologie) Do original em Inglds: Thoorlos of primitive religion Bibliogratia 1. Homem (Teologla) 1, Tilo Il. Sérte opp — 200.1 78-0074 cou — 21 INDICE Prefacio & Edigdo em inglés, 9 Introdugéo, 11 Teorias Psicolégicas, 36 Teorias Sociolégicas, 71 Lévy-Bruhl, 111 Conecluséo, 139 Bibliogratia, 169 Indico Remissivo, 181 us v ~ cnbuey nog witoioceny PREFACIO A EDIGAO EM INGLES Quatro dessas CONFERENCIAS SIR D. OWEN EVANS foram proferidas no Colégio Universitario de Wales, Abe- rystwyth, na primavera de 1962. Elas esto aqui apresenta- das praticamente tal como foram escritas para a referida ocasido, muito embora alguns paragrafos nao tenham entio sido lidos, uma vez que, se eu assim o fizesse, ultrapassaria © tempo que me havia sido concedide. A conferéncia que aqui aparece como a de ne IV foi esorita na mesma época, mas como me haviam pedido apenas quatro conferéncias, Ao fol ola incluida, na ocasido, entre as demais. Deve © leitor levar em consideragdo que estes textos foram programados para a audig&o @ nao para a leilura; © também que foram lidos para uma audiéncia altamente edu- cada em antropologia, embora incluindo também néio-espe- clalistas, Estivesse eu falando para colegas de profisséo ou mesmo para estudantes de antropologia, certamente toria, algumas vezes, utilizado linguagem algo diversa, embora de significado idéntico, Em meus comentérios roferentes a Tylor, Frazer, Lévy- Bruhl © Pareto, baseel-me macigamente em artigos publi- ® cados muitos anos atrés no BULLETIN OF THE FACULTY OF ARTS da Universidade Egipcia (Cairo), na qual ocupei por algum tempo a cdtedra de Sociologia; sao artigos que circularam desde entéo até agora em Departamentos de Antropologia Social em versées mimeografadas @ cujas par- tes principais aqui véo expostas. Por conselhos @ criticas formulados, devo agradecer ao Dr. R. @. Lienhardt, e aos Drs. J. H. M. Beattie, R. Needham, B. R. Wilson @ M. D. McLeod. EE EP, 10 INTRODUGAO Estas conferéncias examinam o modo pelo qual varios escritores que podem ser considerados antropélogos — ou, pelo menos, como escrevendo dentro do campo antropolé~ gico — tentaram compreender e interpretar as crengas © prdticas religiosas de povos primitivos. Devo esclarecer desde 0 inicio que estarel lidando basicamente apenas com toorias acerca das religiées do povos primitivos. Discuss6es mals gerais sobre roligléo, quando fora destes limites, séo poriféricas ao mou tema. Assim, procuraroi me manter nae queles que podem ser geralmente considerados como tex- tos antropolégicos, e, em sua maioria, de escritores ingleses. Pode-se notar que nosso interesse aqui se concentra menos em religides primitivas, do que nas varias teorias formuladas com a intengéo de explicé-las. Se alguém perguntasse qual o interesse que as religides dos povos mais simples poderia ter para nés, eu responderia em primeiro lugar que alguns dos mais importantes filésofos politicos, sociais ¢ morals, desde Hobbes, Locke @ Rousseau até Herbert Spencer, Durkheim @ Bergson julgaram os dados da vida primitiva como sendo dotados de grande signiti- n cago para a compreensio da vida social om goral; © assi- nalaria, ainda mais, que os principais responsaveis pelas modificagées do pensamento em nossa civilizagéo durante © Uitimo séoulo, os grandes “fazedores de mitos” que foram Darwin, Marx-Engels, Freud © Frazer (talvez eu dovesse in- cluir Comte), todos mostraram intenso interesse pelos povos primitivos @ usaram o que se conhecia a seu respeito para nos convencer de que — embora muito do que recebia crédito & estimulo no passado nao mais pudesse recebé-los hoje — nem tudo estava perdido; considerada com 0 devido distanciamento, a luta valeu a pena. Em segundo lugar, eu responderia que as religides pri- mnitivas so espécies do género Religiéo e todo aquele que tiver qualquer interesse pela religiéo deve compreender que um estudo das idélas ¢ praticas religlosas dos povos pri- mitivos, que séo muito variadas podem ajudar-nos a chegar a corlas conclusées acerca da religiio em geral, ¢ por extenséio, acerca das religides ditas mais elevadas, ou das religies histéricas ou positivas, ou das religiées de reve- ago, incluindo a nossa prdpria. Contrariamento a essas religides mais elevadas, que sao geneticamente relacionadas entre si (Judalsmo, Cristianismo, Islamismo, ou Hinduismo, Budismo e Jainismo), as reiigides primitivas em partes do mundo isoladas © amplamente apartadas entre si, dificil- mente poderao ser outra colsa sendo desenvolvimento in- dependentes, sem relagdes hist6ricas entre elas, de modo que fornecem valiosissimos dados para uma analise com- parativa que viso a determinagdo dos caracteres essenciais do fenémeno religioso e que pretenda efetivar afirmaces gerais, vélidas e significativas a este respeito, Estou evidentemento oiente de que tedlogos, historia- dores cléssicos, hebralstas e outros estudiosos da roligiao freqdentemente ignoram as religides primitivas, julgando-as de pequena importancia; mas me consolo com o pensa- mento de que menos de cem anos atrés Max Miller estava 12 batalhando contra as mesmas forgas — complacentemente entrincheiradas — para conseguir 0 reconhecimento das Iin- iSes da India e da China como importantes para ‘@ compreensdo da linguagem @ da religiéo em geral; uma luta que, é verdade, ainda esta por ser vencida (aonde esto 08 departamentos de lingiistica e religiéo comparadas des- te pals?), mas na qual jé se fez algum avango. Gostaria mes- mo de dizer mais: que para compreender plenamente a natureza da rellgido revelada, temos que compreender a natureza das chamadas religiées naturais, uma vez que nada poderia ser revelado acerca de qualquer coisa, se 0 homom néo estivesse jé dotado de uma idéla acerca da coisa mesma. Ou entio, talvez devamos dizer, a dicotomia entre religiéo natural 6 religiéo revelada ¢ falsa e suscita obscuridade, pois ha um sentido dentro do qual se pode dizer que todas as religiées sao religides de revelagéo: 0 mundo que as circunda © sua razio em toda parte revela- ram aos homens algo divino e algo de sua prépria natureza © seu proprio destino. Poderiamos pensar nas palavras de Santo Agostinho: “O que agora se chama de religido crista existiu entre 08 antigos, @ ndo estava ausente do alvorecer da raga humana, até que o Cristo velo em carne: @ a partir de entdo a verdadeira religiao, que ja existia, passou a ser chamada de cristé."* Nao hesito, ademais, em dizer que embora os estudiosos das religides mais altas olhem de cima dos sous pedestais, com desprezo, para nés outros antropélogos e nossas re- ligides primitivas — nés n&o dispomos de textos — fomos 1nés, mais que ninguém, os que reunimos 0 vasto material de cujo estudo nasceu a ciéncia da religido comparada, apesar de algo inseguramente; mais ainda, por mais ina- dequadas que possam parecer as teorias baseadas nestes 11 August, Retr 13, Citado por F. M. Miller, SELECTED ESSAYS ON LANGUAGE, MYTHOLOGY AND RELIGION, 108 115. 3 dados, poderiam servir @ algumas vozes tom servido a estu- diosos indo-europeus e a especialistas em estudos cléssicos € semiticos, assim como a egiptologistas, na interprotagao de textos de suas dreas de estudo. Aqui revisaremos, no curso destas conferénclas, algumas dessas teorias, de for- ma que devo me referir ao Impacto que causaram sobre ‘muitas disoiplinas especializadas os escritos de Tylor @ Frazer na Inglaterra, @ de Dutkheim, Hubert © Mauss, @ Lévy-Bruhl, na Franca. Podemos néo aché-los aceitévels hoje, mas,em seu tempo, oles desompenharam importante Papel na histérla do pensamento. Nao 6 facil definir 0 quo deveromos entender por religido a fim de alcangar 0 pro- pésito a que se destinam ostas conferénclas, Fosse con- veniente enfatizar crengas e praticas @ serfamos forgados a admitir iniciaimente a definigdo minima de religiéo de Sir Edward Tylor (embora haja al algumas dificuldades), como sendo a crenga em seres espirituais, mas desde que de- veremos enfatizar basicamente as teorias das religides pri- mitivas, néo me sinto suficientemente livre para escolher uma definigio em lugar de outra qualquer, pois que tenho que discutir certas hipéteses que ultrapassam os IImites da definigéo de Tylor. Algurnas dolas incluirdo, sob 0 rétulo de religiéo, tépicos tals como magia, totemismo, tabu @ mesmo bruxaria; ou seja, praticamente tudo o que Integra a ex- presséio ““mentalidade primitiva”, ou 0 que, para o erudito europeu, parece irracional ou supersticioso. Fare! forgosa- mente muitas referencias & magia, uma vez que muitos autores merecedores de crédito nao fazom qualquer dife- renga entre magia @ religiéo e falam de elementos magico- religiosos, ou as consideram geneticamente relacionadas num desenvolvimento evolutivo; outros ainda, embora dis- tingam uma coisa da outra, encontram, para ambas, ex- plicagdes_semethantes. s estudiosos vitorianos © eduardianos interessaram-se profundamente pelas religies dos povos simples, princl- 14 palmente porque entrentaram, eles mesmos, em seu tempo, uma crise; © escreveram muitos livros a respeito. Assim, se me fosse necessério roferir todos os autores desses eriodos, as conferéncias deste livro néo passariam de um recitativo de titulos e nomes. Preferi, portanto, selecionar 0s autores mais influentes ou tipicos de uma ou outra de- terminada forma de anélise dos fatos ¢ discutir suas teorlas como representatives de variantes do pensamento antro- polégico. Os detalhes que se perderem por esta escolha metodolégica se compensam pelo que ganharmos em clareza. ‘As teorias da religido primitiva podem ser adequada- mente consideradas sob a dosignagtio de pslcolégicas @ sociolégicas; sendo as psicolégicas subdivididas (° aqui ‘estou emprogando os termos de Wilhelm Schmidt) em in~ telectualistas e emocionalistas. Esta classificagdo, que, ademals, se coaduna grosselramente com o suceder his- torico, serviré aos seus propésitos expositivos, embora al- guns autores se situem entre as categorlas mencionadas ou se enquadrem em mais de uma delas. Meu tratamento em relago a estes casos pode parecer muito severo ou negativista, Mas creio que encontrarei ate- nuantes no fato de que freqtientemente se vé como séo inadequadas e mesmo ridiculas multas das interpretagoes escritas a respeito do fendmeno roligioso. Os Ieigos podem no estar alertados para o fato de que muito do que se escreveu no passado — e as vezes com muita seguranga — © que ainda hoje circula por escolas © universidades a res- pelto de animismo, totemismo, magia, etc., revelou-se, com © tempo, erréneo, ou, pelo menos, duvidoso, Assim, tenho © dover de ser critico, antes de construtivo, para mostrar por que teorias aceitas durante algum tempo so hoje indefenséveis © tém ou tiveram de ser rejeitadas no todo ou em parte. Se eu puder persuadir 0 leltor de que muito 6 ainda incerto © muito ainda obscuro, meu trabalho n&o 6 tera sido vaio. Nem terd, 0 leltor, ilus6es de que somos por- tadores de respostas definitivas para as questoes levantadas. Eietivamente, num other retrospectivo 6 as vezes dificil entender de que maneira algumas das teorias que preten- deram estudar as crengas dos homens primitivos @ 0 de- senvolvimento da religido chegaram a ser propostas. O es- Panto no depende apenas do fato de que agora, & luz da pesquisa moderna, muito se conhece que nao podia ser conhecido pelos autores de enlo. Isto 6 inegavel; mas mesmo a respelto dos fatos que estavam & mao desses autores, 6 espantoso que tanto se tenha escrito na direcdo ‘posta & do bom senso. E esses autores eram eruditos de grands conhecimento © habilidade. Para compreender o que agora nos parece terem sido interprotagées falsas, te- riamos que escrever um tratado a respeito do clima de Pensamento daquele tempo, das oircunstanclas intelectuais que limitaram os raciocinios dos autores: uma curiosa mistura de positivismo, evolucionismo, ¢ alguns remanescentes de uma religiosidade sentimental. Estaremos revisando algumas dessas teorias nas conferéncias, mas eu gostarla jé aqui © agora de recomendar como um “locus classicus” a IN- TRODUGAO A HISTORIA DA RELIGIAO, de F. B. Jevons que foi por muito tempo famosa e muito lida e difundida; a 6poca, em 1896, Jevons era professor de Filosofia da Uni- versidade de Durham. Para ele a Religiio era um desen- volvimento evolutivo uniforme do totemismo — sendo o ani- mismo “uma teoria filoséfica primitiva, muito mais do que uma forma de crenga religiosa”— que evoluirla para o politefsmo @ © monotelsmo. Mas nao pretendo discutir ou dissecar suas teorias. Apenas menciono 0 livro como 0 me- Ihor exemplo que conheco para demonstrar como as teorias sobro as religiées primitivas podem se revelar erroneas — 1 F, B. Jovons, AN INTRODUCTION TO THE HISTORY OF RELIGION, 1098, p. 208, 16 pois acredito que nao hé no tivro nenhuma afirmativa goral ou teérica que se possa defender hoje plenamente, Ele 6 uma colelénea de reconstrugdes absurdas, hipéteses @ con- jecturas insustentéveis, especulagées incultas, suposigies @ analogias inadequadas, incompraensées 0, especialmente no que o autor escreveu sobre o totemismo, é simplesmente puro disparate. Na eventualidade de algumas teorias que apresentarel nas conferéncias parecerem excessivamente simplérias, eu pedirla que se recordassem de alguns fatos. A antropologia estava ainda em sua infancia, na época — © dificilmente poderfamos dizer que jé so encontra em idade adulta, hoje. Até muito recentemente ela tem sido o afortunado campo de caga de beletristas, @ tem sido especulativa e fildsofica, na mais antiquada des maneiras. Se se pode dizer que & Psicologia comeca a dar os primeiros passos no sentido de uma autonomia cientifica por volta de 1860, mesmo sem se livrar de suas peias filoséticas sengo quarenta ou cin- qienta anos depois, a antropologia social, por seu turno, que deu seus primeiros passos A mesma época, s6 bem mais recentemente vem so libertando de estorvos seme- Inantes. Um fato notével a registrar & 0 de que nenhum dos an- tropélogos cujas teorlas sobre as religiées primitives oxor- ceram grande influéncia, tenha jamais estado entre um povo primitive. & como se um quimico julgasse desnecessério entrar em um laboratério. Assim, os antropélogos deviam se basear em informagbes que Ihes eram fornecidas por exploradores europeus, missionérios, administradores @ ne- goclantes. & evidente que tais dados sao altamente sus- Peitos. Nao digo que fossem todos fabricados, embora alguns realmente 0 fossem; ¢ mesmo alguns viajantes fa- mosos tais como Livingstone, Schweinfurth e Palgrave co- metiam grosseiros desculdos, 7 Multos desses dados, portanto, foram falsos, a maioria ndo morecia crédito , pelos modernos padrées da pesquisa profissional podem também ser julgados como casuais, su- perficiais, sem visdo perspectiva e distanciados do contexto real. At6 certo ponto, tais criticas se aplicam mesmo aos primeiros antropélogos profissionais. A este respelto, afirmo que as primeiras descrigdes das idéias dos povos simples e suas intorprotagées nzio podem ser consideradas tals como se apresentam, nem devem ser aceitas sem um exame cri- tico de suas fontes e sem 0 concurso de fortes evidéncias corroborativas. Qualquer pessoa que tenha realizado pesqulsas entre povos primitivos anteriormente visitados por exploradores @ outros, pode testemunhar que os dados fornecidos por estes stio freqiiontemente incertos, néio merecedores de confianga mesmo a respelto de matérias que podem ser avaliadas pola simples observacao, sendo a inseguranca mals grave em assuntos tals como as crengas religiosas, nos quais a simples observagéo de nada serve; aqui, as afirmativs podem ser flagrantemente falsas. Els um exem- plo de uma regio com a qual estou particularmente fami liarizado; diante de recentes trabalhos @ extensas mono- grafias acerca das religides dos Nilotas do Norte, fica es- tranhissimo ler 0 que o famoso explorador Sir Samuel Baker escreveu sobre elas, em uma comunicagio & Socle- dade Etnoldgica de Londres em 1866: “Sem qualquer ex- cegdo, eles nao tém qualquer crenga em um Ser Supremo, nem demonstram qualquer forma de culto ou idolatria. Tam- pouco é a obscuridade de suas mentes iluminada por se- quer um raio de superstigdo. Seu espirito 6 téo estagnado como 0 charco que compée 0 seu mesquinho mundo”, J4 em 1871, Sir Edward Tylor péde mostrar, a partir das 1S, W, Baker, THE RACES OF THE NILE BASIN, Transactions of the Ethnological Soclety of London, N. S. V 1967, 231 18 provas desde entéo disponiveis, que isto néo podia ser verdade!. As afirmagées referentes as crengas religiosas de um povo devem sempre ser tratadas com grande cautela, porque nestes casos estamos sempre tratando com 0 que nem europeus nem natives podem observar “diretamente”, ou. seja, com concepgées, Imagens mentais, palavras, que, todas, requerem, para o entendimento, um amplo conhe- iento da linguagem deste povo @ também boa percepcao de todo o sistema de idéias de que qualquer crenga par- ticipa, pois esta pode se tornar sem sentido desde que divorciada do conjunto de crengas e préticas a0 qual per tence. Muito raramente alguns daqueles observadores es- tavam dotados de uma mente com habitos cientificos. & verdade que alguns missionérios cram homens bem edu- cados e chegaram a falar a lingua nativa com fluéncla, mas falar fluentemente uma lingua & bem diferente de compre- endé-la; como freqlientemente observel ouvindo conversas entre europeus e africanos e arabes. € que al existe uma nova causa de incompreenséio. Os nativos © os missionérlos poderdo estar usando as mesmas palavras, mas as cono- tages so diferentes, carregam diferentes cargas de sen- tido. Para alguém que néo tenha estudado intensamente as instituigées nativas e: também hébitos © costumes do préprio moio nativo (Isto 6, coisa bem diferente dos postos de comércio, aldelamentos missionérios e postos adminis- trativos), no maximo se pode esperar que surja um dialeto mascavado no qual soja apenas possivel 0 comunicar-se acerca de experiéncias comuns e interesses comuns. To- memos como exemplo uma palavra nativa correspondente & nossa palavra “Deus”. O significado da palavra para o falante nativo pode ter apenas uma coincidéncia minima com 0 significado existente na lingua do missionério, ¢ num 7 E. B, Tylor, PRIMITIVE CULTURE, Torcoira odicdo, 1691, 1.420-4, 19 contexto muito restrito, O falecido professor Hocart cita um exemplo de tais desencontros, do Fiji: — quando o mis- siondrio fala de Deus como “ndina”, ele quer dizer que todos os outros deuses sao inexistentes. © nativo compro- ende que aquele 6 0 dnico Deus efetivo, 0 nico em que se pode crer; os demais deuses serlam eventualmente po- sitivos, porém néo merecedores de confianga absoluta ou continua, Este é apenas um exemplo de como o professor pode querer dizer uma coisa e 0 aluno compreender outra. Em geral, os dois participantes permanecem candidamente ignorantes do equlvoco. Nao hé remédio para isto, a ndo ser que 0 missionério adquira um amplo conhecimento dos Costumes nativos e de suas crengas', Além do mais, as informagées utilizadas pelos eruditos Para ilustrar suas teorlas no somente eram altamente ina- dequadas, mas também — e isto 6 0 que mais diz respeito ao assunto destas conferéncias — eram altamente seletivas. © que os viajantes gostavam de deltar no papel era o que mais impacto Ihes causava enquanto curioso, rude e sen- sacional. Magias, ritos religiosos bérbaros, crengas supers- ticiosas sempre tinham prioridade sobre as rotinas didrias fempiricas e enfadonhas que compreendem nove décimos da vida do homem primitive @ so seu principal interesse @ sua principal ocupagao: sua caga e pesca, a coleta de ralzes @ frutos, sua agricultura e seu rebanho, construgdes, fabricagéo do instrumentos ¢ armas e, em goral, suas ocu- pagdes com os afazeres didlos, domésticos & piblicos. Nada disso ganhava o espago que merecia, em tempo ¢ importancia, na vida daqueles cujo modo de vida estava sendo descrito, Em conseqiéncia, por dar excessiva impor- tancia ao que consideravam como superstic6es curiosas, 1AM. Hocarl, MANA, Man, 1914, 48, 20 fatos misteriosos © ocultes, os observadores tendiam a pin- tar um quadro em que 0 mistico (no sentido que Lévy-Bruhl da @ palavra), ganhava na tela uma porgao muito maior do que ocupava na vida real dos povos primitivos; de modo que 0 empirico, 0 comum, 0 senso comum e o mundo da faina didria pareciam ter apenas uma importancia secun- didria — @ os nativos apareciam como infantis, obviamente carentes de uma administragao paternal e de zelo missio- nario, especialmente se houvesse um toque de obscenidade ‘em seus rituais. Assim, os eruditos partiam para o trabalho com base em informagées que Ihes eram fornecidas ao acaso e provindas de todas as partes do mundo, e organizavam-nas em livros com titulos téo pitorescos como 0 RAMO DOURADO 0 A ROSA MISTICA. Estes livros apresentavam uma imagem composta ou caricatural da mente primitiva: supersticiosa, infantil, incapaz de pensar critica ou consistentomente, Exemplos deste processo, deste uso promiscuo de dados podem ser encontrados em qualquer escritor da época. Assim, "Os amaxosa bebem a bilis de um boi para se tornarem ferozes. Qs famosos Mantuana bebiam a bilis de trinta chetes, na crenca de que isto os faria fortes. Muitos povos, como 98 Yoruba, por exemple, acreditam que “‘o sangue 6 a vida” Os Nova-caledonianos comem os inimigos mortos para ad- quirir coragem @ forga, A carne de um inimigo morto 6 co- mida em Timorlaut para curar a impoténcia. O povo de Halmahera bebe 0 sangue dos inimigos vencidos para se tornarem bravos: Na Amboina os guerteiros bebem o Sangue dos inimigos que venceram para thes adquirir a coragem. © povo de Celebes 0 faz para ficar forte. 24 Os nativos de Dieri @ tribos das vizinhangas comerao um homem @ beberdo seu sangue para ganharem sua forga; @ gordura 6 friccionada nos doentes”. E assim por diante, volume apés volume... Malinowskl salirizou muito bom tais métodos, @ a le so dove a maior Parte do mérito de haver tornado fora de moda (pelo ridiculo © polo exemplo), tanto o tipo de investigagao que até entéio se fazia entre povos simples, quanto 0 uso que os eruditos davam a esses mesmos inquéritos. Malinowski fala das “longas litanias de afitmativas encadeadas que fazem com que nds antropdlogos paregamos idiotas @ 0s selvagens ridfeulos”, tais como “Entre os Brobdignacianos (sic), quan- do um homem encontra sua sogra os dois se agridem mu- tuamente © cada um se retira com um olho rox”; “Quando um Brodiag encontra um urso polar costuma fugir ¢ &s vazes © urso o persegue"; “Na antiga Caledonia quando um nativo acidentalmente encontra uma garrafa de ufsque pela es- trada, bebe tudo de um gole, apés 0 que comega imediata- mente @ procurar outra garrafa”®. J& vimos que a selegdo ao nivel da observagéio pura produzira uma distorgao inicial. 0 método de compilagao com tesoura ¢ cola-tudo, utilizado pelos eruditos em suas poltronas domésticas levou a distorgées adiclonals. No Conjunto, faltou-thes qualquer sentido de critica histérica, as regras que um historiador emprega quando avalia dados documentais. Entéo, se uma falsa impresséo era criada pelos observadores dos povos primitives, polo fato do at buirem excessiva importéncia ao mistico em suas vidas, logo passava a ser patrocinada polo método do “album de ecortes", este, por sua vez, dignificado pela designago 1 AE. Crawley, THE MYSTIC ROSE, 1927 (digo rovicta @ aumen- ada por Thoodora 'Bostorman), 1194-5, 2 B, Malinowski, CRIME AND ‘CUSTOM IN SAVAGE SOCIETY, 1925, p. 126. 22 do “método comparativo”. © processo consiste, no que in- teresa ao nosso assunto, na utilizagdo de recortes acerca de povos primitivos © de todas as partes do mundo, reu- nindo-os de qualquer maneira, fosse como fosse, retirando ainda mais os elementos de seus contextos reais, para aproveitar apenas 0 que se referisse ao estranho, sobrena- tural, mistico, supersticioso — usemos quaisquer palavras — um mosaico monstruoso que pretendia retratar a mente do homem primitivo. Assim, 0 homem primitivo tinha que aparecer, especial- mente nos primeiros livros de Lévy-Bruhl, como claramente itracional (no sentido usual do termo), vivendo num mundo misterioso de dividas @ temores, com medo do sobrenatural @ lidando com ele incessantemente. Creio que qualquer antropélogo dos nossos dias consideraré este quadro uma distorgao. Efetivamente, 0 “método comparativo” enquanto assim usado 6 um equivoco. Havia muito pouca comparagio, se nos referimos a comparagao analitica. Havia apenas um conglomerado de itens que pareciam ter algo em comum. Podemos mesmo dizer que tal "método” possibilitou aos autores a olaboragao de olassificagées proliminares em que \imeras observagées poderlam ser encalxadas, dentro do limitado némero de rétulos, 0 que dava a tudo uma certa impressdo de ordem; era o seu tinico valor. Mas este ora na realidade um método ilustrativo e nao comparativo; quase aquilo que os psicdlogos chamam de “método anc- dético”. Um grande nimero de exemplos era trazido em feixe para ilustrar alguma idéia geral @ para dar apoio as teses do autor acerca de tal idéia, Nao havia nenhuma ten- tativa de por & prova as teorias a partir de exemplos nao selecionados. As mais elementares precaugées eram negli- genciadas, enquanto vagas conjeturas se seguiam umas as outras (@ recebendo a designagao de hipéteses). As mais simples regras da Iégica indutiva (métodos de concordan- 23. cia, diferenga @ variagdes concomitantes) eram ignorados. Assim, para dar um simples exemplo, se Deus ¢, como Froud 0 diria, uma projegao da imagem paterna idealizada @ sublimada, tornar-se-ia necessario mostrar que concep- bes de divindade variam com as diferentes posigdes que ocupa a figura paterna na familia em diferentes tipos de socledades. E mais, exemplos negativos, se levados em consideragao (0 que era raro) eram logo descartados como sendo desenvolvimentos tardios, decadéncia, sobrevivencia ou qualquer outro capricho evolutivo. As primeiras teorias antropolégicas, como se veré em minha préxima conferén- cla, n&o apenas procuravam explicagdes para as religides primitivas em fundamentos psicolégicos, como também ten- tavam colocé-los numa gradagéo evolutiva ou como um estgio do desenvolvimento social. Uma cadela de desen- volvimento Idgico era assim construlda dedutivamente. Na auséncia de registros histéricos, nao se poderia dizer ‘com certeza que em qualquer exemplo em particular 0 de- senvolvimento histérico correspondesse ao paradigma I6- — na realidade, a partir da motade do século passado eclodiu uma verdadelra batalha entre aqueles que aceilam @ teoria da progressdo © aqueles que optam pela teoria da degradagao, os primeiros sustentando que as socieda- des primitivas se encontravam em um estado de desenvol- vimento iniclal e retardado, embora progrossivo, no caminho da civilizagao; © 0s segundos, detendendo o ponto de vista de que elas 4 haviam estado, em algum tempo anterior, em condigéo de mais alta clvilizagéo, da qual regrediram, © debate se concentrou especialmente na religiao, tendo um partido afirmado que aquilo que eles consideravam fos- sem elovadas idéias teoldgicas encontradas entre alguns povos primitives eram um primeiro lampejo de verdade, que mais tarde levaria a coisas mais altas, enquanto que © outro partido afirmava que tals crengas eram uma’ so- brevivéncia de estados anteriores mais civilizados. Herbert 24 Spencer preservou um espirito aberto a este respeito' mas outros antropélogos, com a excegéo de Andrew Lang © até um certo ponto Max Miller, eram, assim como os socidlo- gos, adeptos da progressdo. Nao havendo evidéncias his~ térlcas para demonstrar quals as fases por que haviam passado as sociedades primitivas, acreditou-se que eram ‘as mesmes de natureza ascendente © invarlével. Tudo 0 que se fazia necessérlo era encontrar um exemplo em al- ‘guma parte, pouco importava onde, @ que correspondesse a um ou outro estdglo do desenvolvimento !6gico — @ entéo inseri-lo como ilustragao; ou, como os cientistas pareciam consideré-los, tomé-los como prova da validade histérica deste ou daquele esquema do progressdo unilinear, Se eu estivesse mo dirigindo a um auditério composto de antro- pOlogos, a simples alusio a estes métodos passados seria considerada compardvel a chicotear cavalos mortos. Crelo ainda que as dificuldades se viram aumentadas, @ a distorgao resultant tornada alnda maior, pela cunha- gom do termos espectals na descrigdo de religiées primi tivas, 0 que dava a entender serem as mentes primitivas go diferentes da nossa que suas idéias no podiam ser expressadas por nosso vocabulério ¢ nossas categorlas. A religiéo primitiva era chamada de “animismo”, “pré-animis- mo”, “fetichismo", @ coisas que tals. Ocorreu também que alguns termos foram tomados de empréstimo das linguagens primitivas, como s@ nenhum equivalents pudesse ser en- contrado na nossa. & 0 caso de termos tals como tabu (da Polinésia), “mana” (da Melanésia), “totem” (dos Indios da América do Norte) e “baraka” (dos arabes da Africa do Norte). Nao nego que as dificuldades semanticas da tradugao sejam grandes, Elas so bastante consideravels no caso, digamos, de tradugdes entre o francés'e 0 inglés; 1H. Spencer, TRE PRINCIPLES OF SOCIOLOGY, 1802, 1.108. mas quando alguma lingua primitiva precisa ser traduzida para @ nossa prépria, as dificuldades se tornam enormes. Esta, na roalidade, 6 a maior dificuldade com que nos de- frontamos no assunto que agora discutimos, de modo que me permitirel alongar um pouco mals este aspect. Se um etnégrafo diz que na lingua de um povo da Africa Cen- tral a palavra “ango" quer dizer “co”, estara absoluta- mente correto; porém ele tera até ento trazido muito res- tritamente para nossa lingua o que significa a palavra “an- 90", pois o que ela significa para os nativos que a em- pregam 6 muito diferente do que a palavra “cdo” significa para nés. A significaggo que os cies tém para os primel- ros — eles cagam com os ces, eles os devoram @ assim por diante — nao 6 a mesma que para nés. Quéo mais provaveis sero esses deslocamentos quando comegamos a lidar com termos que contenham em si uma referdncla metafisica?! Pode-se, como jé se tem feito, emprogar pa- lavras nativas © depois demonstrar seu significado segundo © seu uso om diferentes contoxtos @ situagdes. Mas & ébvio que este recurso tem limites. Reduzido a0 absurdo eie seria como escrever uma descrigio de um povo na sua prdpria lingua, para uso de quem 0 desconheca. Pode-se padroni- zar 0 emprego de uma palavra primitiva como “totem” © us@-la para descrever fenémenos que ocorrem entre outros Povos © que se mostrem semelhantes aqueles do povo que deu origem ao vocdbulo; mas isto pode ser causa de gran- do confusdo, uma vez que as semelhangas podem ser su- Perficials e 0 fendmeno em questo tao diverso que o termo perca todo o seu sentido, 0 que alias, como notou Gol- donweiser, foi o destino da palavra totem’. 1A. A, Goldonweiser, EARLY CIVILIZATION, 1921, p. 282. Ver tam bém seu trabalho "FORM AND CONTENT IN TOTEMISM, American ‘Anthropologist, N. 8. XX (1918), 26 Chamo a ateng&o para este obstaculo porque ele tem alguma importancia na compreensao das teorias da religléio primitiva, Na verdade, pode-se encontrar na nossa lingua: gem alguma palavra ou frase com que traduzir um congeito nrativo de outro povo. Podemos traduzir uma palavra como significando “deus”, ou “espirito”, ou “alma ou “fantasma’" mas teremos que nos perguntar nao somente o que tal Palavra traduzida significa para os nativos, como ainda o que significa a palavra que escolhemos, enquanto tradu- tores, para nés ou nossos leitores. Temos que apontar os duplos sentidos; @ reconhecer que na melhor das hipdteses no ha senéo uma superposigao parcial de significages entre as duas palavras. As dificuldades semanticas so sempre consideraveis © podem ser superadas apenas parcialmente, Os problemas quo apresentam podem também ser considerados numa ordem inversa, como na tentativa dos missionétios de tra duzir a Biblia para linguas nativas. Foi muito diffoll x- pressar conceltos metafisicos gregos em lati e, como sa~ bemos, muitos equivocos ocorreram por ocasido do trans- Porte de uma lingua para a outra. Mais tarde, a Biblia fol ‘traduzida para diversas outras linguas europélas, como o inglés, francés, alemao, italiano etc., @ eu mesmo passel por esclarecedoras experiéncias ao cotejar alguns trechos, digamos um salmo em varias linguas, © voriticar de que modo cada uma delas 0 tratava dentro de suas caracteris- ticas préprias. Os que conhecem o hebraico ou qualquer outra lingua semitica podem completar 0 jogo traduzindo esas versées de volta ao seu Idioma e ver o que resultard, Muito mais desesperador 6 0 caso das linguas primitivas! Em alguma parte li a respeito das dificuldades que os mis- siondrios encontraram entre os esquimés na tentativa de verter para a sua lingua a palavra “cordelro", como na frase “Alimente meus cordeiros”. Poder-se-la, por exemplo, utilizar 0 nome de algum animal com o qual os esquimés ar estivessem acostumados, dizendo, por exemplo, “alimente minhas focas", mas se assim se fizer, troca-se a represen- taco que a palavra “cordeiro” tem para um pastor hebreu pola significagéo que uma foca tem para um esquimé. Como poderfamos traduzir a afirmativa de que “os cavalos dos egipcios sao carne @ nao espirito” para um povo que nunca viu um cavalo nem nada parecido, que pode nao ter um conceito semalhante ao conceito hebreu de espirito? Estes 8&0 exemplos corriqueiros. Poderia eu dar dois outros, mais complexos? Como traduzir para o hotentoto a frase “ Embora eu fale com as Iinguas dos homens ¢ dos anjos ¢ nao tenha caridade"’? Em primeiro lugar, 6 preciso deter- minar 0 que significava 0 trecho para os ouvintes de Séo Paulo; @, além das “lInguas de homens e anjos”, que co- nhecimento exegético fol necessério”.elucidago de pala~ vras como “eros”, “agape” e “caritas"! Depols 6 preciso encontrar equivatentes em hotentote e, uma vez que néo ha nenhum, procurar fazer o melhor possivel... Ou entéo, per- gunto. como traduzir para uma lingua amerindia a frase “No comego era o Verbo"? Mesmo na forma inglesa o sen- tido 86 pode ser determinado depois de uma andlise teolé- gica, Os missionérios tutaram ativamente e com grande sinoeridade para superar estas dificuldades, mas, em minha experiéncia, muito do que eles ensinam aos nativos Ihes 6 na realidade incompreensivel @ muitos 0 reconheceriam abertamente, crelo eu. A solugao mais freqtientemente ado- tada 6 a de transformar a mente das crlangas nativas em mentes européias; @ isto 6 uma solugéio apenas aparonte. Esperando ter trazido & vossa atengao estes problemas, devo agora abandond-los porque as conferéncias nao dirdo respeito as atividades missionérlas, um fascinante campo de pesquisa que até agora nao foi devidamente trabalhado. Igualmente evitarei discutir mais do que j4 0 fiz os proble~ mas mais gerals-da tradugao, pois nao 6 assunto de que. se possa tratar com brevidade. Todos nés conhecemos o di- 28 tado “tradutiore, traditore". Eu menciono o problema em minha conferéncla introdutéria, em parte porque devo ter ‘em mente, ao lidar com teorias da religiéo primitiva, que significagéo tém, nessas teorias, as palavras empregadas pelos eruditos. Se alguém quiser entender as interpreta- g6es que eles deram & mentalidade primitiva, devera co- Nhecer também a mentalidade dos autores; entender a max neira por como viam as coisas, a maneira que regia sua classe, seu sexo © perfodo em que viveram. No que con- ceme a religido, todos eles tinham, até onde sei, uma base religiosa de uma forma ou de outra, Cito alguns, cujos nomes devem ser familiares a todos: Tylor era um quacre, Frazer um presbiteriano, Marett pertencia a Igreja anglicana, Malinowski era catélico, enquanto Durkheim, Lévy-Bruhl @ Freud eram judeus. Mes, com uma ou duas excegdes, qual- quer quo fosse a base religiosa, os autores dos textos mais significativos eram, na ocasiéo em que os escreveram, ja agnésticos ou ateus. A religiéo primitiva, quanto & sua va- lidade, néo era senéo uma iluso, como qualquer outra forma de {6 religiosa, Nao 6 que eles perguntassem, como Bergson, da razéo por como “‘orengas e priticas que so tudo, menos coerentes, podem ter sido e sejam, ainda, acel- tas por pessoas coerentes”!, O que ocorre 6 que estavam implicitas, em sua forma de pensar, as convicgées otimistas dos filésofes racionatistas do século dezoito, segundo as quais as pessoas séo estpidas ou mas apenas porque tém més institulgbes © stio Ignorantes @ supersticiosas por terem sido exploradas em nome da religiio por padres es- pertalhes @ avaros, bem como pelas classes inescrupulosas que mantém os padres. Deveremos ter em mente quais as intengdes de muitos dos eruditos de que estaremos falando, s@ quisermos compreender suas construgées tedricas, Nas 11H, Bergson THE TWO SOURCES OF MORALITY AND RELIGIONED. 1956, p. 103, 29 religioes primitivas oles procuraram @ encontraram uma arma que poderla, segundo thes pereceu, ser usada com efeito letal contra a Cristandade. Se a roligiéo primitiva pudesso ser entendida como uma aberragéo intelectual, como uma miragem induzida pela tensao emocional ou por sua fungi social, estaria implicito quo as rellgiées mals altas poderiam sor desacreditadas © consideradas sob jul gamento idéntico, Tal intengao se oculta sutiimente em al guns casos. Como em Frazer, King e Clodd. Eu néo duvide de sua sincerldade e, como disse antes,' eles merecem minhas simpatias, porém nao minha aquiescéncia. No en- tanto, 0 fato de eles estarem certos ou errados esté além do que nos interessa, especificamente: que 6 ter 0 racio- nalismo passional da época intluldo em sua avallagdo das religides primitivas © dado a sous escritos, tals como os lemos hole, um sabor de presungéo que podemos achar irritante ou ridiculo, ‘A crenga religiosa era, para estes antropélogos, absurda, © 0 6 ainda para muitos antrop6logos de ontem @ de hoje. Mas parece que 6 preciso encontrar alguma explicagao para tal absurdidade, © isto vem sendo feito em termos psicologicos ¢ sociolégicos. Era Intengdio dos que escreveram sobre as rellgides pri- mitivas, explicé-las por suas origens, de modo que a expli- cagdo servisse aos dados essenciais de toda e qualquer religiéo, incluindo as mals altas. Quer explicitamente quer ndio, as explicagdes das religiées dos primitivos eram ela boradas com 0 fito de abarcar as origens de tudo 0 que so chama de “religides Iniciais", 0 que incluiria a rellgiéo israelita © implicitamente 0 cristianismo, que dela deriva. Assim, como diz Andrew Lang, “o tedrico que acredita em cultos ancestrais como sendo a chave de todos os credos, 1 RELIGION AND THE ANTHROPOLOGISTS, Blackfriars, Abril, 1960. Roeditado om Essays In Social Anthropology, 1962. 30 fs verd em Jeové um fantasma ancestral desenvolvido ou uma espécle de deus-fetiche, ligado a uma pedra, talvez uma velha estela sepulcral de algum xeque do deserto, 0 admi- rador exclusivo da hipétese do totemismo encontrara provas de sua teoria nos cultos as vacas © bols sagrados. O adepto dos cultos naturais insistira na conexéo existente entre Jeové e a tempestade, 0 trovéo @ 0 fogo do Sinai”, Podemos nos perguntar por que eles néo consideraram como seu campo inicial de estudo as religides superiores, sobre cuja histéria, teologia e ritos j4 se sabla muito mais do que sobre as religiées primitivas, o que levaria o estudo a seguir um curso do mais para 0 menos conhecido. Eles podem, até corto ponto, ter Ignorado as rellgiées superlores Para evitar controvérsias © constranglmento nas circuns- tancias em que se envolvessem, mas fol principalmente Porque desejavam descobrit a origem da religido, sua es- séncia, @ por julgarem que a encontrariam entre os primi- tivos, que assim orientaram seus estudos. Mas alguns deles poderdo ter declarado que por “orlgem” ndo so referiam 20 mais novo no tempo, sendo que ao mals simples em estrutura, suposigéo Implicita, pois serla de esperar que do mais simples em. estrutura se desenvolvessem as formas mais altas. Esta ambigilidade no conceito de “origem” causou muita confusdo na antropologia. No avangarel nes- te assunto por agora, mas voltarei a ele e a outros assun- tos gerais até agora mencionados de passagem, na minha conferéncia final, ocasiéo em que terel tido oportunidade de trazer algumas teorias antropolégicas da religiio & au- digncia, Podemos, entretanto, notar aqui, que, so os au- tores cujos textos vamos examinar tivessem lido algo’ pro- fundamente — digamos — teologia, histérla, exegesse, apo- logética, ritual © pensamento simbélico cristaos, teriam se 1 Andrew Lang, THE MAKING OF RELIGION, 1898, p. 204, 31 situado mothor para avaliar as Idélas © préticas referentes as rellgiées primitivas, Mas era s6 muito raramente que os eruditos que se situaram como autoridades a respelto das religides ivas mostravam em suas interpretagdes que tivessem algo mals que um conhecimento apenas superti- clal das religiées histéricas © daquilo em que os crentes respectivos acreditam, 0 quo significa para cles 0 quo fa- zem, @ 0 que sentem quando o fazem. O que acabo de dizer néo implica em que 0 antropélogo “deva" possuir, ele mesmo, uma religiéo, @ quero deixar isto bem claro, desde j4. Ao antropélogo ndo interossa, “qua” antropélogo, a verdade ou falsidade do ponsamento religioso, Do modo como compreendo o assunto, ele néo tem possibilidade de “saber” se os seres espirituais das-religides primitivas ou outros qualsquer séo dotados de existéncla ou ndo; ©, so assim 6, no the cabe levar em consideragao tal problema. As crengas séo, para ele, fatos socloldglcos, néo fatos teolégicos e sua Gnica preocupagio 6 a relagtio que tals fatos mantém entre sie com outros fatos soclolégicos. Seus problemas so cientificos @ n&o metafisicos, ou ontolégicos. © método que ele emprega 6 aquele que agora se designa freqlentemente como sendo fenomenolégico: um estudo comparativo de crengas @ ritos, temas tais como deus, sa- cramento, © sacrificio, com a finalidade do thes determinar a significagdo intrinseca @ social. A validade da crenga pertence ao dominio do que podemos chamar de filosofia da religido, Foi exatamente por haverem tantos antropélogos tomado posigao teolégica, embora negativa e implicita, que foram conduzidos & evidéncia de que uma explicagao dos fendmenos das religides primitivas em termos causals se fazia necesséria, vindo ela @ ser levada, segundo mo pa- rece, além dos limites legitimos do problema. Mais tarde |, numa reviséo geral, as teorias antropolégicas (0. Deixe-me apenas dizer que et Ii os livros que criticarel, uma vez que freqlentemente os estudiosos acel- 32 tam 0 que tercelras pessoas escrevem sobre textos de outros, em vez de lerem diretamente os textos (0 livro de Léwy-Bruhl, por exemplo, tem sido freqlentemente mal in- terpretado por pessoas que, estou seguro, nunca o leram ou o fizeram sem aplicagao). Ao fazormos as revisées, ve- remos que muitas vezes néo me sera necessério apontar 08 equivocos de um ou outro ponto de vista, porque a critica necessaria esté contida em livros de outros autores, mais tarde mencionados. Sendo assim, devo acrescentar —e todos concordaréo com isto — que néo podemos acel- tar a idéia de que exista apenas um tipo de afirmativa geral acerca de fenémenos socials © que as outras devam estar erradas se aquela esté certa, Néo hé nenhuma razéo aprioristica pela qual tais teorias que pretendem explicar 8 religides primitivas em termos de raciocinio, emogéo @ funcéo social ndo estejam certas, cada uma suplementando as outras — embora eu néo acredite que assim seja. As Interpretagdes podem so fazer em diversos nivels. Do mes- mo modo, néo ha razo por que varias explicagées dife- rentes no mesmo tipo e nivel no possam estar certas, desde que néo se contradigam entro si — pois cada uma delas pode explicar aspectos diferentes do mesmo fend- meno. Efetivamente, eu considero todas as teorias que nés examinaremos como apenas plausiveis e mesmo, como foram propostas, inaceitéveis, uma vez que contém con- tradigées @ outras Incompatibilidades légicas; ou ainda por- que néo so pode provar, como jé disse, que sejam verda- delras ou falsas; ou finalmente, @ agora, mais pracisamente, Porque a experiéncia etnografica freqlentemente invall- dou-as. Uma palavra final: algumas pessoas consideram hoje em dia embaragoso ouvir falar de povos designados como pri- mitivos ou nativos, 0 que tha soa como so estes estivessem sendo chamados de selvagens. Mas eu serel obrigado fre- alientemente a usar as expressées dos autores de quem 33 falarei e que escreveram na robusta linguagem de um tem po quando era praticamente impossivel ofender um povo sobre 0 qual se escrevesse; 0 bom tempo do progress e prosperidade vitorianos, e, podemos acrescentar, 0 do en- fado e da pompa de ontem. Mas as palavras serio usadas Por mim naquilo que Weber chama de sentido desprovido de valor endo serio censurdveis do pont de vista otimo- légico. De qualquer modo, 0 emprego da palavra “primitive” para descrever povos que vivem om sociedades de escala Pequena, com uma oultura material simples e desprovidos de literatura, j4 esté muito firmemente estabelecido para que possa ser eliminado, Isto é uma pena, porque nenhuma palavra causou mais confusdo nos escritos antropolégicos, ‘como veremos, uma vez que ela pode ter um sontido Iégico @ cronolégico, © os dols sentidos nem sempre estiveram apartados um do outro, mesmo nas mentes dos melhores eruditos. Basta, para estas notas Introdutérias que foram necessérias antes de embarcarmos na nossa viagem rumo ao oceano do pensamento do passado. Como 6 0 caso com qualquer e toda ciéncia, encontraremos em multas lihas as sepulturas de marinhairos que naufragraram; mas quando olharmos para trés, encarando toda a histéria do pensamento humano, ndo precisaremos entrar em desespero Por sabermos ainda téo pouco sobre as religiées primitivas, ‘ou sobre a religiéo em geral, ou por termos de descartar, por meramente conjeturais, apenas plaustvels, teorlas que tentaram explicé-las, Na verdade deveremos nos encher de coragem e prosseguir em nossos estudos com o espirito do marinheiro morto, do epigrama que se encontra na An- tologia Grega: um marinheiro naufragado que nesta costa se enterrou ordena-te que partas: muitos barcos formosos, 0 vento daqul destrulu. TEORIAS PSICOLOGICAS A teorla do presidente de Brosses,! um contemporaneo de Voltaire ¢ que com ole se correspondia, sustentando que a religiéo se originava do fetichismo, foi aceita até a metade do século passado. A tese, assumida por Comte,* era de que 0 fetichismo (0 culto, segundo marinheitos por tugueses, de animais ou coisas inanimadas pelos negros da Africa Ocidental).teria evoluido até politeismo, @ deste até 0 monotelsmo. Ela foi substitulda por outras teorlas, formuladas em termos intelectualistas @ sob a influéncia da Psicologia essociacionista da época, e que podem ser di- vididas em teoria do fahtasma e teoria da alma; ambas concordam emque o homem primitive & essencialmente racional, embora suas tentativas de explicar os fendmenos sejam grosselras e falazes. No entanto, antes de tals teorlas serem aceitas, tiveram que disputar o terreno com outras, da escola do mito na~ 1 Ch. R. do Brosses, Du cul‘e dos dloux t6'ichos ou par clenne réligton do I'Egypte avec Ia 2 Comte, COURS DE PHILOSOPHIE POSITIVE, 1906, lipbes 52-54, tural, uma wta tanto mais amarga quanto eram ambas per- tencentes ao mesmo género intelectualista, Quero inicial- mente discutir a teorla da origem da religiéo a partir da teoria do mito natural, em parte porque fol ela a primeira cronologicamente, e também porque o que aconteceu de- pois foi uma reagdo as teorias animisticas, logo deixando, a teoria da mitologla natural, de ter qualquer influéncia neste pals, A escola do mito natural era predominantemente alema estava basicamente interessada nas religiSes indo-euro- péias; sua tese era de que os douses da antighidade — o Por extensfio os deuses de todos os tempos e lugares — ram apenas fendmenos naturais personificados: sol, lua, estrolas, 0 alvorecer, a ronovagdio da primavera, rlos cau- ladosos, etc, O mals importante representante desta escola foi Max Miller (filho do poota romantico Wilhelm Miller), um eru- dito aleméo seguidor da teoria do mito solar, um ramo da escola (os diversos ramos mantinham disputas entre si), que passou a maior parte da sua vida em Oxford, onde fol professor e um Fellow of All Souls. Era um lingiista de ta- lento excepcional, um dos maiores especialistas em sans- tito do seu tempo e, em geral, um homem de grande cul- tura, que foi muito injustamente desereditado. Ele nfo estava disposto a Ir téo longe quanto foram os seus mais extremados colegas alemaes, néo porque na Oxford daque- les dias fosse perigoso ser um agnéstico, mas por convic~ go — ele era um luterano sincero e sensivel; mas ele che- gou bem perto da posigaéo dos demais e, realizando ma- nobras @ malabarismos em seus livros para evitar tal apro- xlmag&o, faz com que seu pensamento parecesse algumas vezes ambiguo e opaco. Em sua opiniao, tal como a com- preendo, os homens sempre tiveram uma Intuigé&o da divin- dado, da idéia de Infinito — a palavra que ele usava para Deus —, intulgéo esta derivada de experléncias sensoriais; 38 assim, no 6 preciso procurar sua fonte na revelagéo primi- tiva ou um instinto ou faculdade religiosos, como algumas pessoas entdo faziam. Todo 0 conhecimento humano vem pelos sentidos, sendo o do tato aquele que da a malor impressao de realidade, ¢ todo o raciocinio se basela neles, © que 6 também verdadeito para a religiéo: “nihil in fide quod non ante fuorit in sensu’. Mas as coisas intangivels, como o sol e o firmamento, dio ao homem a idéia de Infinito © fornecem material para a concepgao de deidades. Max Miller néo pretendeu sugerir que a religiéo surgisse pela deificagao, por parte dos homens, dos grandes objetos naturals; mas sim que estes thes davam um sentimento de infinitude e serviam de simbolo para o infinito. Miller estava basicamente interessado nos deuses da India e do mundo cléssico, embora também tivesse Incur- slonado um pouco pela interpretagdo de material primitivo, acreditando, certamente, que suas interprotagdes tinham uma validade geral. Sua tese era de que o Infinito, uma vez nascida a idéla, néo poderla ser pensado sendo em termos do metéforas ou simbolos, os quals 86 poderlam ser derl- vados do que parecesse majestatico no mundo conhecido: 08 corpos celestes ou seus atributos, Mas estes atributos, entio, perdiam sou sentido original, metaférico, e adqulriam autonomia, tornando-se personificados como deldades de existéncla prépria, Os “nomina” se tornavam “numina”. As- sim sendo, as religides poderiam ser descritas como sendo “doengas da linguagem", uma expresso vigorosa mas in- fellz, que mals tarde Miller tentou explicar, mas que nunca teve vida longa. Em conseqiléncia, dizia ele, a Gnica ma- nelra de encontrarmos o significado da religiaio do homem primitivo 6 através da pesquisa filolégica © etimolégica, que devolve aos nomes dos deuses e as histérias contadas sobre eles 0 seu sentido original. Assim, Apolo amava Daphne; Daphne fugiu dele e foi transformada em um lou- relro, Esta lenda nio faz sentido até o momento em que 37 sabemos que Apolo era originalmente uma deidade solar, e Daphne, 0 nome grego para loureiro, era 0 nome quo se dava & aurora. Isto nos dé o sentido original do mit © sol perseguindo 0 alvorecer. Miller trabalha com a orenga na alma humana e na sua forma espititual de modo semelhante. Quando os homens desejaram expressar a distingao entre o corpo algo que eles sentiam para além do corpo, 0 nome que Ihe velo & mente foi 0 do sopro, algo imaterial e inegavelmente Ii- gado a vida, Entéo, esta palavra, “psycho”, passou a expres- sat 0 principio vital e por extenséo a alma, a mente, o eu. ‘Apés a morte, a “psyche” vai para o Hades, 0 lugar do invisivel, Uma vez assim bem estabelecida a oposigéo entra corpo alma, nos planos do pensamento e da linguagem, a filosofia comegou a operar sobre ela @ surgiram os sis- temas espiritualistas © materialistas da filosofia. Tudo isto para reunir 0 que a linguagem apartara. Assim a linguagem exerce uma tirania sobre o pensamento e 0 pensamento esté sempre em luta contra ela, mas em véo. Da mesma forma a palavra espitito originalmente significava sopro, e a pa- lavra para fantasma (dos mortos) originalmente se referia sombra. Elas eram inicialmente expressdes figurativas que por fim alangaram concretude, Nao pode restar dividas de quo Miller © sous colegas adeptos da teoria do mito natural levaram suas teorias até absurdidade; ele afirmou que o sitio de Troia néo era sendo um mito solar; 8, com a intengéo de ironizar tal in- terpretagao, alguém perguntou se Max Miller por acaso nao seria também, ele mesmo, um mito solar... Deixando de lado 08 erros da erudig&o classica, tals como hoje sabemos que foram, 6 evidente que, por mais engenhosas que ex- plicagées semelhantes pudessem ser, elas nao estavam nem Podiam estar apoladas por provas histéricas adequadas @ no passavam, na melhor das hipéteses, de conjeturas eru- ditas, Néo prociso lembrar os ataques desferidos contra 38 08 adeptos da mitologia natural pelos seus contemporinecs, Porque embora Max Miller (0 principal nome) tivesse tido por algum tempo influéncia sobre 0 pensamento antropold- gico, a repercusséio néo demorou muito © cessou antes da morte de Miller. Spencer @ Tylor, este ditimo fortemente apoiado neste tépico por seu pupilo Andrew Lang, eram contrarios as teorias do naturale sua luta por um ‘enfoque diverso obteve sucesso. Herbert Spencer, a quem a antropologia deve alguns do ‘seus melhores conceitos metodolégicos, @ que depois fol esquecido, devota grande parte de seus THE PRINCIPLES OF SOCIOLOGY (vol. 1) a uma discusséio das crengas pri- mitivas @, embora as interpretagdes que Ihes dé sejam so- melhantes aquelas de Sir Edward Tylor, e, mais, tenham sido publicadas depois que Tylor publicou o sou PRIMITIVE CULTURE, suas opinides estavam formuladas desde muito antes do aparecimento do seu livro 6 ole chegou a olas Independentemente. O homem primitivo, diz ele, & racional @, considerado 0 seu pequeno conhecimento, suas inferén- clas séo razoaveis, embora débels. Fendémenos tals como sol @ lua, nuvens e estrelas, vém @ vao, € isto dé a ele a nogtio da dualidade, de condigdes visiveis invisiveis, @ esta nogdo se fortalece por observagdes outras, tals como © encontro de fésseis, a observacdo do pinto @ ovo, crisd- ja e borboleta; pois Spencer tinha enfiado na cabega que 0s povos simples néo podiam conceber as explicagdes naturals, como se pudessem ter chegado aos seus varios resultados de ordem pratica sem elas... E se outras coisas podiam ser dualidades, porque o homem mesmo nao seria uma? Sua sombra ¢ seu reflexo na agua também vom @ vo. Mas foram os sonhos, que séo experiéncias reais para 08 homens primitives, que deram ao homem a idéia de sua propria dualidade @ ele Identiticou 0 eu onirico que pervaga & noite com o eu-sombra que aparece de dia. Esta idéla do dualidade se reforga pela experiéncia de varias formas 39 de insensibilidade temporarla, como no sono, desfalecimen- to, catalepsia, etc., de modo que a morte mesma passa a ser encarada como uma forma de prolongada Insensibiti- dade. E se o homem tem uma alma, pelo mesmo raciocinio também devem t6-las os animals @ as plantas @ os objetos materials. ‘A origem da religiéo, no entanto, deve ser procurada na crenga nao em almas, mas em fantagmas. Que a alma tonha uma sobre-vida temporaria, 6 coisa que se admite com bese no aparacimento dos mortos em sonhos, enquan- to so lembrados; @ a primeira concepgéio de um ser so- brenatural 6 a de um fantasma, Esta concepgao deve ser anterlor & do fetiche, que implica a existéncla de um fan- tasma ou espirito interior. Igualmente, a idéia de fantasma 6 encontrada em toda a parte, ao contrario da idéia do fetiche, que nao é realmente caracteristica dos povos pri mitivos, A Idéla do fantasma, Inevitavelmente (esta 6 a pa- lavra favorita de Spencer) se desenvolve alé & idéia de deuses, os fantasmas de ancestrais remotos ou de pessoas superiores passando a divindades (a doutrina do Euheme- rismo), @ os alimentos e bebidas colocados nos timulos para que os mortos se alegrem transformam-se em sacriff- clos @ libagdes dedicadas aos deuses para abrandé-los. Assim, Spencer conclui que “o culto do ancestral 6 a ralz de toda religiso”. Tudo Isto 6 exposto em termos inadequados, tomados de empréstimo as cléncias tisicas, e de maneira decididamente didética, O argumento 6 uma especulagéo aprioristica, sal- picada de algumas ilustragdes, ¢ ¢ capcioso. € um perfelto ‘exemplo da falécla do psicdlogo introspeccionista, ou “Se eu fosse um cavalo”, & qual deverel me referir com tro~ qléncia. Se Spencer estivesse vivendo em condigées pri- mitivas, aquelas teriam sido, ele supés, as etapas através das quais chegarla as crengas que os primitivos manti- nham, Parece que no Ihe ocorreu Indagar como — jé que 40 8 idéias de tantasma e de alma surgem de raciocinios falazes acerca de nuvens ¢ borboletas @ sonhos @ transes — as crongas terlam persistido por miténios, sendo mantidas vivas por milhdes de pessoas em seu tempo e mesmo no nosso. A teoria do animismo de Tylor (na qual ele fica muito em débito para com Comte), sendo animismo uma palavra que ele cunhou, € muito semelhante a de Spencer, embora, como implicita na palavra “anima”, saliente basicamente a Idéia de alma, @ nfo a de fantasma. Nos textos antropo- légicos, a palavra animismo aparece com alguma ambigil- cade, sendo as vezes empregada no sentido de uma crenga, atribuida a povos primitives, em que néo s6 as criaturas, mas também os objetos mnaterlais estéo dotados de vida e personalidade, algumas vezes com 0 acréscimo de que tenham também ales. A teoria de Tylor cobre ambas as possibilidades, mas aqui nos interessa basicamente a segunda delas. A este respeito a teoria conta com duas teses principals, a primeira concernente ao problema da origem, @ a segunda referin- do-se ao desenvolvimento da alma. As reflexées do homem primitivo a respeito de experiéncias tals como morte, doen- as, transes, vis6es e, acima de tudo, os sonhos, levaram-no A conclusio de que so fendmenos que se devem a presenga ou auséncia de alguma entidade imaterial, a alma. Tanto a teorla do fantasma quanto a teoria da alma poderiam ser consideradas como versées de uma teoria ideal da origem da religiéo. © homem primitivo terla transferido a Idéia de alma para outras criaturas a ele semelhantes © mesmo para objetos inanimados que the despertassem 0 Interesse. A alma, passivel de se desligar da matéria em que esteja {soja ela qual for), pode ser pensada como independente daquilo que a contém em si; de onde surgirla a Idéia de seres imateriais, cuja suposta existéncia constitul a defl- inlg&o minima de religiéo segundo Tylor; pesso seguinte, 0 a desenvolvimento destes seres em deuses, entidades ampla- mente superiores ao homem @ capazes de controlar seu destino. ‘As objecdes j levantadas a teoria de Spencer apli- cam-se Igualmente & de Tylor. Sendo impossivel saber de que modo surgiram as idéias de alma e espirito, a mente do erudito impée uma construgio Idgica ao homem primi- tivo, e tal passa a ser a explicagio de suas crongas. A teoria é da mesma qualidade de estérias do tipo “de como © leopardo adquirlu as suas manchas”, As Idéias de alma @ espirito poderlam ter surgido como Tylor Imaginou, mas nao ha nenhuma evidéncia de que assim tenha sido. Quando muito poder-se-4 demonstrar que os primitivos citam os sonhos como prova da existéncia da alma e se apdlam nas almas para demonstrar a existéncia de espiritos, mas mesmo s0 isto fosse conseguido, nao se provaria que os sonhos fazem nascer uma idéia e a alma faz nascer a outra, Swanton protesta acertadamente contra essas explicagées causais, perguntando por que, quando um homem morre ¢ alguém mais tarde sonha com ele, isto pode ser chamado de “inferéncia ébvia" (Tylor) de que o morto tinha uma vida fantasmal divisivel de seu corpo. Isto é ébvio para quem? © mesmo autor também assinala que néo ha identidade de atitudes em relagdo aos mortos @ em relacdo aos sonhos entre os povos primitivos e que as diferengas devem neces- sarlamente ser levadas em consideragao se qualquer “infe- réncia ébvia” esté prestes a ser aceita como conclusdo causal valida’, Dizer que a idéia de alma leva a idéia do espirito, 6 uma suposigéo muito duvidosa, Ambas as Idélas estavam pre- sentes entre os entdo chamados selvagens Inferlores, que, numa perspectiva evolucionista, eram 0 que havia de mals 1/4. R. Swanton, THREE FACTORS IN PRIMITIVE RELIGION, Ame- Hlean Anthropologist, N. 8. XXVI (1924), 958-65, préximo do homem pré-histérico; @ os dois conceltos sio ndo apenas diferantes, mas também opostos, sendo o espl- Tito considerado como incorpéreo, estranho ao homem © invasive. Efetivamente, Tylor, nao conseguindo reconhecer uma distingdo téo fundamental entre os dols conceltos, cometeu um grave equivoco na sua representagtio do pen- samento hebraico antigo, como o Dr. Snaith assinalou', Do mesmo modo, ainda no se provou que os povos mals primitivos pensem que as criaturas os objetos imateriais tenham almas semelhantes & do homem. Se qualquer povo pode ser considerado como predominantemente animistico, no sentido que Tylor dé a palavra, ele hé de pertencer a culturas muito mais avangadas, um fato que, embora ndo tenha qualquer significagao histérica para mim, serla alta~ mente lesivo argumentac&o evolucionista. © mesmo para © fato de que a concepgao de um deus se encontra entre todos 0s povos cagadores e agricultores ditos inferiores. Finalmente, poderemos perguntar como 6 que, s@ a religiio & 0 produto de uma ilusdo téo elementar, Ihe foi possivel manter-so com to grande continuidade @ persisténcia, Tylor tentou demonstrar que a rellgiéo primitiva era racional, que surgia de observagées (embora inadequadas) e de dedugdes légicas que partiam destas (embora falhas); © quo constituiam uma filosofia natural grosseira, Em sou tratamento da magia, que distinguia da religido muito mais por conveniéncia de exposigao do que por motives etiolé- gicos ou de validade, ele igualmente salientou o elemento racional naquilo que chamou de “esta mixérdia de dispa- rates”. Ela também se basela om observagdes genuinas © repousa, sobretudo, na classificagéo de similaridades, o primeiro proceso essencial do conhecimento humano. Onde © magico erra & em inferir quo uma vez que as coisas +N. H. Snalth, THE DISTINCTIVE IDEAS OF THE OLD TESTAMENT, 1044, p. 148. 8 8&0 semelhantes elas esto dotadas de um elo mistico entre si, ocasiéo em que se confunde uma conexéo Ideal com uma conexao real, ou uma conexéio subjetiva com uma objetiva. E se nos perguntarmos como & que povos capazes de explorar a natureza @ té0 bem se organizarem social mente podem cometer tais erros, a resposta é que eles t@m razbes muito boas para néo perceber a futilidade de sua magia. A prépria natureza (ou a trucagem, por parte do mago), freqientemente 6a responsavel pelo aparecl- mento daquilo que se atribul & magia; e se a magia nao consegue atingir seu objetivo, o fato é logo explicado racio- nalmente por ter havido alguma desobediéncia ds regras, ou porque se Ignoraram certas prescrigées, ou porque algu- ma forga hostil se contrapds a pratica, Do mesmo modo, existe uma plasticidade em relagéo ao julgamento de sucesso ou fracasso e as pessoas em toda a parte acham muito diffcll aceltar a evidéncia, especialmente quando o peso da autoridade Induz & aceltagéo do que confirma uma crenga e a rejeitar o que a contrarla, Aqui as obser- vag6es de Tylor séo corroboradas pelas observagbes etnolégicas. Mencionei de passagem as discusses de Tylor acerca da magia, utlizando-as em parte como mais uma tlustracéo da interpretac&o intelectualista e em parte porque elas levam diretamente a uma estimativa das contribuigées de Sir James Frazer no que concerne 0 nosso assunto. Frazer 6, eu creio, 0 nome mais conhecido na antropologia @ todos devemos muito a ele, bem como a Spencer ea Tylor. Sou livro THE GOLDEN BOUGH, um trabalho de notével esforgo e grande erudigéo, se dedica as supersticdes primitivas. Mas no se pode dizer que ele tenha adicionado multas contribulg5es vallosas para além da teorla da religléo de Tylor; diga-se antes que introduziu alguma confuséo nela, sob a forma de duas novas suposig6es, uma pseudo-hist6- rica © outra psicolégica. Segundo Frazer, a humanidade 44 — em toda a parte e mais cedo ou mais tarde — atravessa {rs estégios de desenvolvimento intelectual, da magia & religiéo @ da religiao & ciéncia, um esquema que pode ter sido calcado nas fases de Comte — a teoldgica, a meta- fisica © a positiva, embora esta correspondéncia ndo se possa chamar de exata. Outros escritores da época, tals como King, Jevons @ Lubbock (¢ ainda, como veremos, por certa maneira de encarar o assunto — Marett, Preuss os escritores da escola da ANNEE SOCIOLOGIQUE), também acreditavam que a magia precedesse a religiéo. Em certo momento, diz Frazer, as inteligéncias mais atiladas prova- volmente descobriram que a magia nfo alcangava real- mente seus fins, mas, ainda incapazes de superar suas dificuldades por métodos empiricos do enfrentar suas crises por meio de uma filosofia refinada, pessavam a uma outra ilusdo: a de que havia sores espirituais capazes de Ines prestar ajuda, Com o decorrer do tempo, tals intell- géncias viam que os espiritos eram Igualmente falazes, um episédio de luminagéo que prenunciava o alvorecer da cléncla experimental. Os argumentos que apolavam esta tese eram, para dizer pouco, triviais; e etnologicamente muito vulneréveis. Multo particularmente as conclusdes baseadas em dados australianos passaram muito longe do alvo e, uma vez que os australianos foram trazidos a balla para demonstrar quo quanto mais simples a cultura maior a magia menor a religiéo, vale a pena assinalar que os povos cacadores @ agricultores, incluindo multas tribos australlanas, tm crengas e cultos animisticos @ telsticos. £ também evidente que tanto a variedade quanto o volume de magia em suas culturas deve ser menor — e na verdade © 6 —do que em culturas tecnologicamente avangadas; néo pode, por exemplo, haver uma magia da agricultura ou magia de trabalhar o ferro na auséncia de plantas tratadas @ na auséncia de metal. Hoje ninguém mais aceita a teorla dos estagios de Frazer, A parte psicolégioa de sua tese 6 a que’ opbe a magia @ a ciéncia a religiéo, as duas primelras postulando um mundo sujeito a leis naturais invarléveis, uma Idéla que ele compartihava com Jevons! @ a religiéo postulando um mundo em que os fatos dependeriam dos caprichos dos espiritos. Conseqdentomente, enquanto 0 magico e 0 clen- tista, estranha essociagao, executam suas operagies om tranqdila confianga, 0 padra realiza a sua com medo e tremendo, Portanto, psicologicamente, a magia e a ciéncla seriam semelhantes, embora acontega, entre ambas, que uma soja falsa © outra verdadeira. Esta analogia entre cléncla © magla, s6 se mantém enquanto ambas sao técnicas, 8, para a maioria dos antropélogos, ela é apenas artificial, Frazer aqui comete 0 mesmo erro de método que Lévy- Bruhl, quando da comparagéo realizada por este entre cléncia moderna e magia primitiva, em vez de comparar t6cnicas empiricas © magicas dentro das mesmas condigdes culturais. Entretanto, nem tudo 0 que Frazer escreveu a respelto da magia @ da religiéo era desprezivel. Havia alguma subs- tancia nos escritos. Ele foi capaz, por exemplo, de demons- trar, com seu trabalhoso método, aquilo que Condorcet @ outros tinham apenas mencionado, isto 6, quanto 6 fre- qiiente que entre povos mais simples do mundo os legis~ ladores sejam magicos ou padres. Além disso, embora ele tenha adicionado pouco & explicagao fornecida por Tylor da magia como uma aplicagao errdnea da assoclagao de idéias, contribulu com alguns termos classificatérios dteis, mostrando que essas associagdes s4o de dols tipos, aquelas de similaridade © as de contacto, ou magia homeopatica ou imitativa © magia de contagio, Porém nao fol além de mostrar que nas orengas ¢ ritos magicos podem-se discernir 1.F. B, Jovone, REPORT ON GREEK MYTHOLOGY, Folk-Loro, 1 2 (1091) p. 220. 46 certas sensagées elementares, Nem Tylor nem Frazer explicaram por qu 08 povos, em seus erros sobre o magico, como supunham os autores, tomavam conexdes Ideals por reals sem que o fizessom em outras atividades. ‘Além de tudo, as coisas nao ocorrem exatamente assim. O ‘erro aqui fol no reconhecer que as assoclages so este- restipos socials e néo psicolégicas © que, portanto, s6 podem ocorrer quando evocadas em especiticas situagdes rituals quo so também de duragdo limitada, como assinalel antes.! Acerca de todas estas teorlas, num certo sentido Inte- loctualistas, devemos dizer que, se por um lado elas néo podem ser refutadas, por outro, néo podem ser demons- tradas, pela simples razéo de que néo ha provas sobre 0 modo como se originaram as crengas religiosas. Os osti- gios de evolugéo que esses autores tentaram construir como meio de fornecer as provas de que careciam, pode ter tido uma certa consisténcia légica — porém nao tém qualquer valor histérico, Entretanto, mesmo se devemos nos descartar dos evolucionistas (ou adeptos da teorla da pro- ‘gressdo) ou se, as suas assertivas @ julgamentos, devemos dar 0 estatuto hipdteses vages, podemos conservar muito do que disseram a respeito da racionalidade essencial dos povos primitivos. Esses povos podem néo ter chegado as suas crengas do modo suposto por estes autores, mas mesmo assim o elemento de racionalidade permanece, ainda que as observagées tenham sido inadequadas, as inferéncias defeituosas, e as conclusdes erradas. As crengas sé sempre coerentes @ até certo ponto podem ser criticas ou céticas, @ até mesmo experimentais, no interior mesmo do sistema da crenga e em seu idioma; @ seu pensamento 1 THE INTELLECTUALIST (ENGLISH) INTERPRETATION OF MAGIC, Bullotin of the Faculty of Arts, Egypllan University (Cairo), 1, parte 2, (1999), pp. 202-011, aT 6 portanto inteliglvel para quem quer que culde aprender 1a lingua e estudar os modos de vida dos povos em questao. A teoria animistica, sob varias formes, permaneceu into- cével por muitos anos @ delxou suas marcas em toda a literatura antropolégica de seu tempo; como 6 0 caso, para dar apenas um simples exemplo, do trabalho em que Dor- mam apresenta uma avaliag&o geral da religitio dos indios ‘americanos: nela, qualquer crenga — totemismo, feiticaria, fetichismo — 6 apresentada em termos animisticos. Porém comegaram a surgir outras vozes protestando, tanto no que concere a origem da religiao, quanto em relacéo & sua ordem de desenvolvimento. Antes de comentarmos 0 que diziam, devemos lembrar que os crfticos tinham duas vantagens de que careciam os seus predecessores. A psicologla assoclacionista, que era mals ou menos uma teoria mecaniscista da sensacéo, estava dando lugar & psicologla experimental, sob a influén- cia da qual os antropélogos passaram a adotar novos termos, embora de modo convencional ¢ em seu sentido comum, pelo que passamos a ouvir falar menos das funcdes cognitivas, substituldas por fungao afetiva, fungao conativa @ elementos orécticos da mente; passamos a ouvir falar em instintos, emog6es, sentimentos ©, mais tarde; sob a influéncia da psicandlise, de complexos, inibicdes, proje- 9665, etc, sendo do considerar que a psicologia da GESTALT ¢ a psicologia das multidées ainda viriam a trazer sua marca para 0 novo vocabulério, Porém, 0 que era ainda mals importante, era o grande avango ocorrido na etnogratia durante as Gltimas décadas do século dezenove @ comecos do século atual, Isto municlou os autores que se seguiram com numerosas informagées © de melhor qualidade: pes- quisas como as de Fison, Howitt e Spencer e Gillen, acerca de aborigines australlanos; pesquisas de Tregear sobre os Maoris; de Codrington, Haddon e Seligman sobre os mela- néslos; de Nieuwenhuls, Kruljt, Wilken, Snouck Huraronja 48 @ Skeat Blagden sobre os povos da Indonésia; de Man sobre os das ilhas Andaman; de in Thurn @ von den Steinen sobre 0s amorindios; de Boas sobre os esquimés @, na Africa, Macdonald, Kidd, Mary Kingstey, Junod, Ellis, Den- net e outros. Ter-se- percebido que em um aspecto Frazer diferla radicalmente de Tylor: em sua afimativa de que a religiéo fora precedida por uma fase magica. Outros autores adota~ ram o mesmo ponto de vista. Um americano, John H. King, publicou em 1892 dois volumes intitulados O SOBRENA- TURAL: SUAS ORIGENS, NATUREZA E EVOLUGAO. 0 livro ‘ausou pouco impacto devido ao clima de animismo entéo reinanto e, tendo caldo no esquecimento, s6 mais tarde fol ressuscitado por Wilhelm Schmidt. Tao Intelectualista © evolucionista quanto outros de seu tempo, ele era de opi- nido que as idéias de fantasma e do espirito séo sofisticadas demais para homens rudes, opiniéo que segue logicamente © coneeito bésico do pensamento evolucionista da época, qual soja 0 de que tudo se desenvolve a partir de algo mais simples @ mais bruto. Ha de haver, pensava ele, um estagio ainda anterior a0 animismo, um estagio “mana”, em quo a Idéia de fortuna, de bom @ de mau augirio fossem o Gnico componente daquilo que ele chamava de supremo. Isto torla surgido de falsas dedugées a partir de observagbes de estades fisicos @ processos organicos, levando o homem primitivo a supor que a virtude, o “mana”, estivesse nos objetos @ fatos mesmos, como so fossem doles proprie- dades intrinsecas. Daf o surgimento de encantamentos @ feitigos, © 0 nascimento do estégio da magia. Depols, atra- vés de erros de julgamento @ raciocinios falsos a partir de sonhos ¢ estados neuréticos adquiridos, a idéia de fantas- mas; e finalmente, por uma sucesso de etapas, a de espl- ritos @ deuses, sendo que os varios estégios dependerlam de um desenvolvimento goral das institulgées socials. Assim, também para King a religi§o era uma |lusio. Plor: um 49 desastre que bloqueava o progresso moral @ intelectual. E ‘08 povos primitivos, que acreditavam em tals fébulas, soriam como criangas pequenas, 0 desenvolvimento ontogenético correspondendo aqui ao filogenético, 0 que os psicdlogos costumavam chamar de doutrina da recapitulagao, Que deve ter existido um estagio mais anterior e cru na teligléo que 0 animistico, 6 afirmativa felta também por outros autores além de Frazer @ King, sendo dois dos mals conhecidos deles, Preuss na Alomanha e Marett na Inglaterra, Eles apresentaram um desatio & teoria de Tylor, que por tanto tempo dominara 0 canério. Mas em alguns casos 0 desafio se referia apenas A questéo da ordem do desenvolvimento © os criticos do essunto néo conseguiram provar que houvesse existido um estégio de pensamento tal como os autores haviam postulado. O ataque mais radl- cal @ agressivo partiu de dois pupilos de Tylor: Andrew Lang @ R.R. Maratt. Como seus contemporaneos, Andrew Lang era um tedrico evolucionista mas recusava a idéia de que deuses se pudessem desenvolver a partir de fantasmas ou de espl- ritos. Ele esoreveu com muito bom senso — embora as vezes também cometesse disparates — mas, em parte porque @ origem animistica da religiéo fosse téo geralmente aceita como evidente, 0 que ele veio a dizer a respeito da religiéo primitiva passou ignorado até que Wilhelm Schmidt o Fecuperasse. Deve-se também ao fato de ele ter sido um homem de letras romAntico, capaz de escrover sobre assuntos tals como o Principe Charles Edward e Mary Stuart, que tenha sido considerado um simples Iiterato um diletante, Lang era um animista enquanto concordava com Tylor nisto de que a crenga em almas, e conseqien- temente em espiritos, poderia muito bem ter partido de fenémenos psiquicos (sonhos, etc.), mas, por outro lado, no estava disposto a aceitar a idéia de Deus como senda um desenvolvimento tardio das nogSes de almas, fantasmas 50. @ esplritos. Ele assinalou que a Idéia de um Deus criador, moral, paternal, onipotente e onisciente se encontra mesmo entre os povos mais primitives do globo e deve ser consl- dorada como pertencente ao assim chamado argumento do designio, uma concluséio racional do homem primitive segundo a qual o universo ao seu redor deve ter sido ‘obra do algum ser superior, Seja como for, nos critérios dos evolucionistas a Idéla de Deus, sendo encontrada entre povos culturaimente mais simples, néo pode ser um desen- volvimento tardio das idéias de fantasma e alma ou qualquer outra coisa, Ainda mais, continua Lang, o ser supremo de tais povos 6, em muitas circunstancias, pensado néio como um esplrito (pelo menos no nosso sentido do divino espi- rito — "Deus 6 um espfrito © aquoles que o cultuam devem cultud-lo em espirito @ em verdade") mas sim como uma espécie de pessoa. Assim, Lang conclui que a concepgio de Deus “ndo precisa ter evoluldo a partir de reflexdes acerca de sonhos e fantsmas”. A alma-fantasma ¢ Deus teriain origens totalmente diferentes, e © monoteismo pode- ia até ter antecedido o animismo embora a prioridade histérica.possa néo ser nunca esclarecida. Apesar desta afirmativa arguta, Lang achava que 0 monotefsmo era prio- ritério no tempo, corrompendo-se © degradando-so mais tarde pelas idéias animisticas. As duas correntes de pensa- mento religioso finalmente se reuniam, uma através das fontes hebraicas e a outra através das holenisticas, no Cristianismo. A linha de argumentagao de Marett era bem diversa, Ele néio apenas defendia a existéncia de um estagio pré-anl- mistico, mas questionava, com base em elementos metodo- légicos, toda a argumentagao das explicagées da religiéio até entéio surgidas. © homem primitive, segundo elo afir- 1 Lang, THE MAKING OF RELIGION, p. 2. 61 mava, no era absolutamente 0 filésofo “manqué" que haviam desenhado. Com o homem primitivo, nao séo as Idéias que déo lugar & agdo, mas sim 6 a agdo que dé lugar as idéias, Assim, "A religio selvagem no 6 tao Pensada quanto dangada"’. £ 0 lado motor da religiéio selvagem 0 que importa, n&o 0 seu lado rellexivo; @ a ago doriva do estados afetivos. Marett chegou & conoluséio de que, nos estagios iniclais, pré-animisticos, a religiéo n&o Pode ser diferengada da magia, enquanto pode sé-l0 mais tarde, quando esta 6 condenada pela religiéo organizada © adquire um significado oprobrioso. Ele achava melhor, quando falando de povos primitives, usar a expresso “mégico-religioso", expresso, aliés, a meu ver infeliz mas que fol adotada por muitos antropélogos, entre os quals Rivers © Seligman, Mas Marett preferia ainda falar de ambas as Idéias como “mana”, uma palavra da Melanésia que 08 antropdlogos acrescentaram ao sou vocabulério de conceitos com resultados a meu ver desastrosos; pois embora ndo possamos discutir assunto to complicado agora, parece claro que “mana” nto significa para os “usuarios natives da palavra aquela forca impessoal, uma concepgao quase metafisica, que Marett @ outros, tais como King, Preuss, Durkheim, Hubert © Mauss, soguindo a Infor- Mago entéo disponivel, atribulam a idéia. Segundo Marett, (08 povos primitives tm um sontimento de que existe um Poder oculto em certas pessoas e em certas coisas e 6 a Presenga ou auséncla deste sentimento que sopara o sagrado do profano, o mundo do maravilhoso do mundo do dia-a-dia, cabendo aos tabus proceder a esta soparagéo, Este sentimento seria a emogao do horror, um composto de medo, deslumbramento, admiragéio, interesse, respelto © talvez at6 amor. Soja o que for que tal sensagao evoque e 1. R.A, Marott, THE THRESHOLD OF RELIGION, segunda ed. (1914), p. XKKI, 62 que passe a ser tratado como mistério, ela 6 religido, Por que deveriam algumas coisas evocar tals respostas © néo outras, e por que Isto ocorreria entre certos povos e ndo entre outros, séo perguntas que Maret néo nos responde; aliés seus exemplos ilustrativos so Insuficiontes @ trazidos & argumentagao atabalhoadamente, Embora ele diga que neste estdgio a magia nao possa ser diferengada da rell- gido, Maret oferece para a magia uma explicagao igual- mente emocionalista. A magia surgiria de tens6es emocio- nais. O homem sucumbe 0 édio ou ao amor ou a outra emogio qualquer e, desde que nfo hé nada de prético que possa fazer a respeito, recorre ao fingimento para aliviar @ tensio, do mesmo modo que um amante traido pode Jogar ao fogo 0 retrato de sua amante, Isto é 0 que Maret chama de magia rudimentar (Vierkandt argumenta da mesma manoira). Quando tals situagSes se repetem com suficiente freqiéncla, a resposta se toma estabilizada sob a forma que designa como magia desenvolvida, um modo social mente reconhecido de comportamento habitual. A esta altura, 0 mago esta bem consciente da diferonga entre simbolo @ realizagio. Ele entio ja sabe que nfo esté fazen- do “a coisa real”, sabe que apontar uma langa para um Inimigo distante enquanto pronuncia palavras do feitigo contra ele néo ¢ a mesma coisa que Ihe atirar de perto contra 0 corpo a langa; ele no confunde, como queria ‘Tylor, uma conexéo Ideal com uma real; pelo que também no hd, como queria Frazer, verdadeira analogia entre magia ¢ cléncia, pois 0 selvagem entio conheca bem a diferenga entre causa magica @ causa real, entre a agéo simbélica © a ago empirica. Assim, a magia 6 uma ativi- dade de substituigéo nas situagdes em quo faltam melos praticos para conseguir um objetivo; e sua fungao 6 catér- tica ou simuladora, dando ao homem coragem, alivio, espe= ranga, tenacidade. No seu artigo sobre a magia na ENCI- CLOPEDIA DE RELIGIAO E ETICA de Hasting, Maret da 53 uma explicagao algo diversa, embora igualmente catartica, de certas formas da exprossdo magica, Situages ropo- tidas na vida social geram estados de emogao intensa que, ndo podendo encontrar expresso numa alividade que leve @ uma finalidado pratica (assim como cagar, lutar @ fazer amor) devem ser enfrentadas através de atividades secun- darias ou substitutas, como dangas que representem a caca, a luta, © ato amoroso; mas aqul a atividade substituta serve como valvula de escape para energias acumuladas. A partir deste ponto tais atividades substitutas passam a auxiliares da agdo emplrica, conservando sua forma mimética, embora sejam na realidade repercussées © ndo imitagdes. Marett disse muito pouca coisa importante sobre a religiéo primi- tiva, quando comparamos esta rea com sua contribuig&o na drea da compreensao da magia. Ele falou muito do ““sagrado”, no que, acho, esteve sob influéncia de Durkheim, mas suas afitmagdes pouco mais foram do que mero jogo de palavras. Talvez ele se tenha sentido, como membro de uma faculdade de Oxford, & época, numa posigio equi- voca; e, sendo um filésofo, ele conseguiu (pareceu) sair dela ao distinguir a tarefa da antropologia social na deter- minago da origem da religiéo (uma mistura de historia © procura de causas), da tarefa da teologia, que concerne a problemas de legitimidade': uma posigao que, de certa forma, nés todos assumimos, Sua conclusée 6 que "o fim © 0 resultado da religiéo primitiva 6, em uma palavra, a consagragao da vida, 0 estimulo a vontade de viver @ ao fazer" Marett era um escritor brilhante, mas embora fosse 1 Marott, in ENCICLOPEDIA DE RELIGIKO E ETICA, do Hasting, 1916, vol. Vil 2 Maret, ORIGIN AND VALIDITY IN RELIGION (1916) © MAGIC OR RELIGION? (1919), in Psychology and Folk-Lore (1920). Ver também artigo citado na nota soguinte, 3 "RELIGION (PRIMITIVE RELIGION)", Ency. Brit, 11° edigto, XIX . 105, 64 realmente um filésofo genial instigante, capaz de com um pequeno trabalho publicado se estabelecer desde logo como um Ider da escola pré-animistica, néo conseguiu somar as suas teorias 0 necessério peso empitico, pelo que sua Influéncla © sua reputago no demoraram muito, Real- mente néio bastava que ele dissesse (embora o tenha dito com muita graga @ haja um pouco de verdade em tudo Isso) Numa conversa que, para entender a mente primitiva néo havia necessidade nenhuma de ir viver entre os selvagens, bastando para tal fim, l-se a uma sala qualquer da univer sidade de Oxford, Falarei agora, brevemente, sobre os intimeros escritos de outro erudito classico, um chefe de escola, Ernest Craw- ley, cujos livros apareceram mais ou menos ao mesmo tempo que os de Marett. Ele empregou boa dose de bom senso para derrubar teorias erréneas ainda vigentes & época, tais como a do casamento grupal, comunismo pri mitivo, e casamento por captura; mes as suas contribuigdes Positivas préprias sao de menor valor. Ao discutir a religiao em THE IDEA OF THE SOUL, ele acompanhou Tylor ao supor que a concep¢éo de espirito desenvolve-se a partir da de alma , num estgio mais avangado da cultura, transforma-se na idéia de Deus; mas ele discordava de Tylor no que concerne génese da idéia de alma. A opiniéo do Tylor neste assunto, dizla Crawley, nada acrescenta a Hobbes ou Aristételes, o 6 psicologicamente impossivel que a Idéia de alma tonha se originado de sonhos, etc, Ela deve, sim, ter surgido das sensagées. O homem primitive podia visualizar qualquer pessoa que conhecesse quando tal pessoa estivesse ausonte e, de tal dualidade surgiram as idéias do alma e de fantasma; segue-se que tudo aquilo de que uma imagem mental possa ser formada pode ter uma alma, embora as almas dos objetos inanimados néo sejam mais “animadas” que os objetos mesmos, como acreditava Tylor, Assim, “a existéncia espiritual 6 a exis- + 55 téncia mental; 0 mundo dos espiritos 6 0 mundo mental” Quanto @ Deus ou aos deuses, so apenas agrupamentos de fantasmas ou fantasmas de individuos importantes, como isse Spencer. A religiéo &, portanto, uma ilustio. So isto fosse tudo o que Crawley esoreveu acerca da religido, ele poderia ser catalogado entre os da classe intelectualista € 08 comentarios gerais que se fazem sobre ela se aplica- ram também a ele, Mas em outros de seus escritos, incluindo seu trabalho inicial (e mais conhecido) A ROSA MISTICA, que eu, como alguns de seus contemporanoos, considero ininteligivel, Crawley parece ter uma teoria mais geral da religiéo. A totalidade dos habitos mentals do homem primitivo 6 religiosa ou supersticiosa, e por isto a magia no se deve distinguir da religido. Em sua ignordncia, ele vive num mundo de mistérlo em qiie nao diferencia a realldade objetiva da subjetiva; e a mola propulsora de todo ‘© seu pensamento 6 0 medo, especialmente o do perigo nas relagdes socials, muito especialmente aquelas que envolvem homem @ mulher. Tal sentimento seria parclal- mente instintivo © parcialmente devido a uma Idéla mals ou menos subconscientes de que as propriedades e qualidades, sendo infecciosas, se podem transmitir pelo contacto. As- sim, 08 homens se sentem particularmente vulnerdveis durante atos fisiolégicos tals como comer ou manter relagdes sexuals, polo que tals atos sfo Isolados como tabus, Crawley conclul que “todas as concepgées religiosas vivas surgem de origens funcionais mais ou menos constantes, de natureza fisiolégica ou psicolégica”". Ele choga a falar de um “pensamento fislolégico”, 0 processo pelo qual as fungdes, por um reflexo mais ou menos organicos, produ- zirlam “idéias" acerca das mesmas fungdes. Nesta teorla @ religiéo primitiva 6 praticamente o tabu, 0 produto do 1A. E, Crawley, THE IDEA OF THE SOUL, 1909, p. 78, 56 medo; os espiritos em que oréem os povos primitives serlam apenas um produto do medo @ do perigo. A mim me parece diffcil conciliar esta posig&o com a efirmativa felta em THE IDEA OF THE SOUL segunda a qual a “alma é a base de toda a religiéo”, Mas como eu jé disse, no considero Crawley um escritor muito Idcido, Seu tema geral, no entan- to, 6 0 mesmo em todos os seus livros: a religiéo 6, em ultima andllse, apenas um produto do medo do homem primitive, de sua hesitagéo, sua falta de iniciativa, sua ignorancia e sua inexperiéncia; néo chega a ser uma coisa mesma, um departamento da vida social, mas sim um tonus ou espirito que permeia suas partes e cuida dos processos fundamentais da vida organica © acontecimentos mais cri- tleos nela envolvidos. O instinto vital, o impulso para a vida, 6 idéntico ao sentimento religioso. A religido sacraliza 0 que promove a vida, a satide, a forga. Quando nos perguntamos © que vem a ser a emocao religiosa, respondem-nos que no @ nada espeoitica, “constituindo aquele tom ou qualidade de qualquer sentimento que resulta na sacralizagio de algo", Segue-se da argumentagao de Crawley, segundo ole mesmo disse, que quanto malor for o perigo, malor sera a religiosidade, assim, quanto mais primitive estagio de cultura, téo mals religiosa seré; © a mulher sempre mais losa que 0 homem, Mals ainda, Deus é um produto de processos psicoblolégicos. Antes de comentar as Idéias do Marett © Crawley a respeito de roligiéo 2 magia, consideremos alguns outros exemplos semelhantes. Acho que devo dizer alguma colsa sobre Wilhelm Wundt, um nome influente em seu tempo, embora em nossos dias raramente seja mencionado, Escritor eclético, fica dificil situé-lo. O enfoque do seu VOLKERPSYCHO- Tidy pet 2 Crawloy, THE TREE OF LIFE, 1906, p. 209, 87 LOGIE indubitavelmente Influenciou Durkheim, mas, no geral, pode-se dizer que suas explicagdes eram psicolé- gicas, assim como altamente evolucionistas © também espe- culativas, além de entediantes. Para ele, as idéias que se Toferem ao que néo 6 imediatamente apreensivel pela per- cepgio, o pensamento mitolégico, como ele o chama, originar-se-lam de processos emocionals, basicamente o medo ("Scheu") que “'séo projetados rumo ao melo-amblen- te", Em primelro lugar vem a crenga na magia e nos demd- nios, © nao 6 seno no préximo estagio de evolugéo, a Idade Totémica, que comega a religido propriamente, no Culto de animais, Entio, & medida em que o totemismo se evanesce, 0 totem-ancestral 6 substituldo por um ancestral humano como objeto de culto. O culto do ancestral se transforma em culto do herdi @ mais tarde em culto de deuses: a Idade dos Herdis @ Deuses, O estagio final é a Idade Humanistica, com seu universalismo religioso. Talvez tudo isto devesse se chamar filosofia da histéria, © ndo antropologia. Constitul cortamente uma leitura muito estranha para o antropdlogo de hoje. Chegamos entéo A era dos antropé- logos que se dedicaram ao trabalho de campo © quo estu- daram povos natives om primeira mao, em vez de se basearem em relatos de torceiros, de obsorvadores no treinados, AH, Lowie, cujo estudo dos indios Crow foi uma impor= tante contribulggo para a antropologia, informa-nos quo a religido primitiva se caracteriza por um “sentimento do Extraordindrio, do Misterioso ou do Sobrenatural",? (notar que escreve em maiiisculas) e que a resposta religiosa 6 de “assombro e terror; sua fonte & 0 Sobrenatural, o Extra- 1 W. Wiundt, ELEMENTS OF FOLK PSYCHOLOGY, 1916, p. 74. 2 RH. Lowio, PRIMITIVE RELIGION, 1925, p. XVI. 58 ordinario, 0 Fantéstico, 0 Sacro, 0 Santo, o Divino” (notar hovamente es maidsculas), Como Crawley, ele afirma que nao hd comportamento especiticamente rellgioso, mas sim sentimentos religiosos, de modo que a crenga dos Indios Crow na existéncia de fantasmas dos mortos néo é religiosa, Porque 0 assunto nfo 6 de Interesse emocional para os Indios; assim, tanto 0 ateu militante quanto 0 padre podem ser pessoas religlosas se experimentam os mesmos sentl mentos, @ 0 dogma cristéo @ a teorla da evolugao biolégica podem, ambos, ser chamados de doutrinas religiosas. O Positivismo, 0 igualitarismo, 0 absolutismo © 0 culto da Tazo, sdo indistingulvels da religiio; mais: a bandeira de um pais 6 um tipico simbolo religioso. Quando a magia se associa & emogéio passa a ser, também ola, religiéo, De outro modo, seria um equivalente psicolégico de nossa ciéncia, como disse Frazer. Paul Radin, outro americano, cujo estudo dos Indios inebago foi também notdvel, assumiu posigdes some- Ihantes. Nao ha comportamento religioso especitico, mas sim um sentimento religioso, uma sensibilidade maior que © normal para com certas crengas @ costumes, “que s manifesta por um frémito, uma sensagiio de regozijo, exal- tagao @ terror © numa completa absorgao nas sensagdes internas”, Quase todas as crengas podem estar associadas com este sentimento religioso, embora mais freqiiente- mente 0 estejam os valores de sucesso, felicidade e vida longa (¢ aqui sentimos ecoar William James e sua “religldo da mentalidade saudével"); 0 frémito religioso seria parti- cularmente evidente nos momentos criticos da vida, como os da puberdade e da morte. Quando aquilo que 6 geral- mente considerado como mégico faz despertar a emogao p. 22, 2,P, Radin, SOCIAL ANTHROPOLOGY, 1982, p. 244, 69 feligiosa, entio passa a ser religiéo. Caso contratio, 6 folotore, Para citar um ditimo antropdlogo americano, ¢ dos mais brithantes, mencionemos Goldenweiser: ele também diz que 0s dois reinos do sobrenatural, 0 magico @ 0 religioso do caracterizados por um “frémito religioso” Como trabalhador de campo, Malinowski deixou os antro- pélogos para sempre devedores seus, mas nos seus escritos explicitamente {e6ricos mostrou pouca originalidade ¢ pouea distingéo de pensamento. Fazendo diferenga, como outros, entre 0 sagrado e o profano, ele afirmou que o que istinguia o primeiro seria 0 fato de que os alos a ele ralacionados ocorreriam em melo a reveréncia @ temor. A magia difere da religiéo em que os titos religiosos no 16m propésito ulterior, estando 0° seu objetivo no ito mesmo, como nas cerlmdnias que ocorrem durante os nas- clmentos, puberdade © morte; enquanto que na magia se acredita que o fim “6 obtido” através dos ritos, mas néo esté neles mesmos, como ocorre nos rituals da pesca, ou da agricultura, Psicologicamente, no entanto, as duas sao semelhantes, uma vez que a fungdo é, em ambas, catértica, Diante das crises da vida, principalmente a morte, os homens em seu medo e ansiedade allviam suas tenses 0 superam seu desespero pela execugao de itos religiosos. A discussao de Malinowski, em seus escritos posteriores? segue t4o de perto a tese de Marett, que pouco precisa- remos dizer a respeito. Como a religio, a magia surge de @ funciona em situagées de tensdéo emocional. Os homens 1 Goldenwolser, EARLY CIVILIZATION, 1921, p. 346, 2 Malinowsky, “MAGIC, SCIENCE AND RELIGION", In Sclonco Roll- ‘lon and Reality, 1925, Em onsalo anterior, “THE ECONOMIC ASPECT OF THE INTICHIUMA CEREMONIES", In Festskrift Tilegnad Edvard Wes- tormarck, 1912, ele se Interessara mals pelo papel desemponhado pola magia, © olemonto mAigloo do totemismo om particular, om relagto a ‘evolugo aconémica. 60 no t8m conhecimentos adequados para superar por méto- dos empiticos as dificuldades que se contrapdem a seus objetivos, de modo que usam a magia como uma atividade de substituigéo, 0 que alivia a tenséo causada pela impo- téncia que ameaga o sucesso de seus empreendimentos. Dal a forma mimética dos ritos, a conversdio de atos suge- ridos pelos fins visados. Assim a magia produz 0 mesmo resultado subjetivo que a agéo empirica terla conseguido, restaura-se a confianga, ¢ seja qual for o programa em que as pessoas estejam engajadas, ele pode ser levado avante. Tal explicagéo 6 seguida por outros autores sem comen- tarlos criticos, entre eles Driberg! ¢ Firth’; efetivamente, explleagées emocionalistas deste tipo oram comuns entre ‘08 que escreveram sobre o assunto naquele periodo, Mesmo um equilibrado estudioso da vida primitiva como tol R. Thurnwald aderiu idéia de que os povos primitives tomam conexées ideais por conexées reals — a férmula Tylor-Frazer — dizendo que suas agdes magicas eram tao carregadas de emogdes, seus desejos téo fortes, que inl- biam os modos mals praticos de pensamento existentos em outros departamentos de sues vidas*, Talvez a melhor afirmativa deste ponto de vista (0 de que a magia é produto de estados emocionais, ou de desojo, medo, édio © assim por diante, e de que sua fungao 6 aliviar as tensdes do homem e Ihe dar esperanga e contianga) tenha vindo de um psieélogo, Carveth Read, em um livro que parece ter escapado completamente &s atengdes dos antropdlogos — AS ORIGENS DO HOMEM E SUAS SUPERSTIGOES', — no qual so discutidas a magia e 0 animismo sob o titulo 1 J. H. Driborg, AT HOME WITH THE SAVAGE, 1992, p. 168, 2. Firth, “MAGIC. PRIMITIVE", Ency. Brit, 1955, p. XIV. 3 R. Thumnwald. "ZAUBER, ALLGEMEIN", Realfoxlkon der Vorgechl cchte, 1929, 46. Re ‘THE ORIGIN OF MAN AND HIS SUPERSTITIONS, 1920, passim, 6 do “crengas imagindrias" por oposigéo ds “crengas de percepgao", aquelas do senso comum @ da cidncia, que derivam da percepedc sensorial © sao por ela controladas. preciso dizer alguma coisa, embora nao muito, sobre ‘a contribuigéo de Freud. Uma ponte utilizdvel na diregao do seu pensamento nos 6 fornecida por, entre outros, Van Der Leeuw. Os povos primitivos, diz ele, néo percebem as contradigées que estéo por trés de muito do que pensam, Porque “uma necessidade afetiva Imperiosa thes impossi- bilita a visio da verdade"’. Eles apenas véem aquilo que querem ver @ este é especialmente o caso da magia. Quan- do se defronta com um impasse, 0 homem pode escolher entre superé-lo através de sua habilidade e retirar-se para dentro de si mesmo, ultrapassando o obstéculo através da fantasia: poderé portanto, voltar-se para fora ou para dentro, sendo este 0 método da magia, o “autismo”, para usar o termo psicolégico. Os magicos acreditam que por palavras, encantamentos, podem alterar o mundo, assim pertencem @ nobre categoria das pessoas que supervalorizam o pensa~ mento: as crlangas, mulheres, poetas, artistas, amantes, misticos, criminosos, sonhadores @ loucos. Todos procuram lidar com a realidade através do mesmo mecanismo psico- légico. Esta supervalorizagao do pensamento, a convicgdo do que a dura muralha da realidade pode ser rompida na mente, ou de que ela néo existe absolutamente, fol o que Freud disse ter encontrado em seus pacientes neurdticos © que chamou de onipoténcia do pensamento (ALLMACHT DER GEDANKEN). Os ritos @ formulas magicas do homem Primitivo correspondem psicologicamente as agdes obsos- sivas @ formulas protetoras dos neuréticos; assim, o neuré- tico 6 como o solvagom, desde que “acredita poder trans- 1G, Van der Leouw, "LA STRUCTURE DE LA MENTALITE PRIMITIVE", La Revue d'Histoire et’ do Philosophio Roliglouso, 1928, p. 14. 62 formar 0 mundo exterior por um simples pensamento”. Aqul os vemos dianto de um novo paralelismo entre os desen- volvimentos ontogénico e filogénico: 0 individuo passa por lids fases da libido — o narcisismo, a descoberta do objeto, que se caracteriza pola dependéncia em relagéo aos pals, © 0 estado de maturidade, em que o Individuo acelta a realidade @ a ela se adapta; e estas fases correspondem psicologicamente aos trés estagios do desenvolvimento do homem, 0 animistico (aqui Freud parece referir-se ao que outros teriam chamado de magico), o religioso @ o clentl- fico. Na fase narcisica, que corresponds & mégica, a crianga, incapaz de satisfazer seus desejos através da atividade motora, se oferece uma recompensa, superando suas dificuldades através da imaginacao, substituindo 0 ato pelo pensamento; 6 uma condig&o psiquica semelhante & do magico; @ 0 neurético 6 como o magico também, pois como ele, superestima © poder do pensamento. Em outras pala- vras, 6 a tensdo, uma aguda sensagao de frustragéo que origina © ritual magico, @ este por sua vez se destina a aliviar @ tenséo. Assim, a magia 6 uma realizagao-de-desejo na qual o homem se gratifica através de alucinagdes motoras. i A roligiéo 6 Igualmente uma ilusio, Ela surgiu e 6 man- tida por sentimentos de culpa. Freud nos oferece tal expli- cago, algo que sé um génio poderia se aventurar a compor, uma vez que néo havia nem podia haver nenhuma Prova a apoié-la; embora, creio eu, se possa dizer que ela seja psicologicamente ou vittualmente verdadeira, no sen- tido de que um mito pode ser considerado verdadeiro mesmo quando literalmente © historloamente Inaceltivel, Certa vez, esta fabula merece uma abertura do tipo das dos contos de fadas, quando os homens eram criaturas 1/8. Freud, TOTEM AND TABOO, p. 145. mais ou menos semelhantes aos macacos, o chefe da horda reservou todas as mulheres para si!. Sous filhos se ergueram contra sua tirania e contra este monopélio, alme- Jando desfrutar também das mulheres @ mataram e come- ram o chofe numa festa canibalesca (uma idéia que Freud colheu de Robertson Smith). Em seguida os filhos come- garam a sentir remorso @ Institulram tabus a respelto da devoracdo de seus totens (identificados com o pal), embora © fizessem cerimonialmente do tempos em tempos, assim comemorando © renovando a culpa; estabeleceram, além disso, a interdig&o do incesto, que é a origem da cultura, pols a cultura resulta desta rentincia. A teorla de Freud acerca da religiéo esté contida nesta alegoria, porque o pal devorado 6 também Deus. Este pode ser considerado um mito etiolégico, que fornece uma base para os dramas encenados nas familias vienenses de cujos problemas Freud realizou anélises clinicas que julgou serem aplicdveis, em sua essénola, as familias de qualquer lugar, uma vez que eram derivadas da propria natureza da estrutura familial, No preciso me estender mais. Todos nés conhecemos os tragos gerals de sua tese, segundo a qual, para dizer crua- mente, as criangas amam e odelam seus pals, @ 0 filho, das profundezas de seu inconscionte, deseja mater o pai e possuir a me (0 complexo de Edipo), enquanto a filha, nas profundezas do seu Inconsciente, deseja matar a mae @ ser possulda pelo pai (o complexo de Electra). Na super- ficle, @ afelgéo @ 0 respeito vencem; e a confianga no pal @ dependéncia em relagdo a ele projetadas, idealizadas © sublimadas na imagem paterna de Deus. A religiéo 6 por- tanto uma iluséo © Freud deu a seu livro sobre o assunto, 4 Esta [déla, Froud obtove do J, J. Atkinson. Atkinson ora primo do ‘Androw Lang, que publicou seu ensaio "PRIMEL LAW" como suplemento 10 seu proprio SOCIAL ORIGINS, de 1903. Nada que corresponda a esta familia ciclépiea fol descoberta, 64 © titulo de © FUTURO DE UMA ILUSAO'; mas esta ilusio © 6 apenas objetivamente. Subjetivamente ela n&o 6 assim, por no ser produto de alucinagéio: o pal é real. Em linhas como estas, néo hd limites para a interpre- tagao. Do excelente livro de Frederick Schleiter acerca da religiéo primitiva quero citar as palavras irénicas que ele dedica a0 COMPENDIO DE DOENGAS MENTAIS de Tanzi. Ei-las: “Em cadéncia meliflua, metéforas equilibradas © com brilhantes artiffcios retéricos, ele prope 0 paralelismo (profundo, fundamental ¢ inabalavel) entre a religiéo primi tiva e a parandia... Entretanto, aqueles que, seja por predisposigées temperamentais ou argumentagées mais racionals se disponham a encontrar alguma justificativa ou dignidade na religiéo do homem primitivo, encontrardo, talvez, algum consolo no fato de que Tanzi rejelta o para- lelismo entre os processos mentais do homem primitivo © 08 da deméncia precoce™. ‘A magia @ a religiéo séo assim reduzidas, ambas, a estados psicolégicos: tensdes, frustragdes, emogdes e sentl- mentos, além de complexos @ delirios de qualquer tipo. Dei alguns exemplos de interpretagdes da religiao em bases emocionais. Que devemos agora fazer com elas? Na minha opiniao, estas teorias sto, na maior parte, espe- culagdes do tipo “se eu fosse um cavalo” (permito-me repetir), com a diferenga de que em vez do dizer: “Se eu fosse um cavalo eu faria o que um cavalo faz por esta ou aquela raztio", ela diz agora: “eu fara o que um cavalo faz, devido a um ou outro sentimento que podemos supor que os cavalos tém". Se tivéssemos que praticar ritos tal 1 THE FUTURE OF AN ILLUSION, 1020, 2 F, Schleiter, Religion and Culture, 1919, pp. 45-47 (Acerca de E. Tanzi, A TEXTBOOK OF MENTAL DISEASES, tradugdo Inglesa, 1909) 65 ‘como 08 primitives fazem, 6 provavel que nos encontrés- semos numa situagéo de perturbagdo emocional; caso contrério nossa razéio nos diria que os ritos nao tém fina- lidade objetiva e em nada resultam. A mou ver consegulu-so muito pouco material demonstrative em apoio a estas con- Glusdes; @ Isto fol 0 caso até mesmo daqueles que, além de fornecer a teoria, tiveram a oportunidade de testé-la em pesquisa de campo. E aqui devemos fazer algumas perguntas. Que temor 6 este que alguns dos autores que citel mencionam como caracteristico do sagrado? Alguns dizem que ele 6 a emo- ¢40 religiosa especifica. Outros, que néo ha emogao teligiosa espectfica, Seja como for, como 6 que se pode saber se uma pessoa esté sentindo terror ou um frémito emocional ou 0 que quer que s9ja? Como se pode reco- nhacer ou medir isto? E mais, assim como o admitiu Lowie © outros assinalaram, os mesmos estados emocionais podem ser encontrados em formas muito diferentes de comporta- mento; até mesmo em formas opostas, como, por exemplo, No comportamento de um pacifista e no de um militarista. ‘86 poderlamos chegar a um resultado caético, se os antro- Pdlogos classificassem os fendmenos socials polas emoges que se supde acompanhé-las, pols tais emogdes, se 6 que existem entdo, devem variar néo apenas de individuos para Individuo, mas também no mesmo individuo em ocasiées diversas ou mesmo em certas etapas do mesmo tito. & absurdo considerar sacerdote © ateu na mesma categoria, como faz Lowie; © seria ainda mals absurdo dizer que quando um padre esté dizendo a missa ndo esté executando lum ato religioso a menos que se encontra em determinado estado emoclonal. Mas quem poderia saber qual o sou estado emocional? Se quiséssemos classificar © explicar 0 comportamento social a partir dos supostos estados emo- cionais, poderfamos chegar a resultados verdadeiramente estranhos, Se a religiio se caracteriza pela emogao do 66 temor, entéio, poder-se-la dizer que um homem correndo desabaladamente de um bifalo em disparada esta prati- cando um ato religioso. E se a magia so caracteriza por sua fungdo catértica, um médico que alivia a tens de um paciente apenas com recursos clinicos estaria prati- cando um ato magico. H4 ainda o que comentar, Muitos ritos que praticamente todo mundo aceitarla como sendo de cardter religioso, tais como sacrificios, certamente néo séo efetuados em situa- es nas quais ha alguma causa que dé lugar a inquictago © sentimentos de mistério e terror. Eles se constituem em rotina padronizada e obrigatoria, Falar de tensdes e coisas que tais nesses casos 6 tio sem sentido quanto falar de tens6es nas pessoas que estdo indo para a igroja em nossa sociedade, Se falamos de ritos levados a efeito em horas, criticas, como por ocasido das dengas © da morte, ocasides ‘em que surgom sempre ansiedade e afligéo, nestes casos as tensdes estardo presentes. Mas mesmo aqui devemos ser culdadosos. A expresséio de emogao pode ser obriga- toria, uma parte essencial do rito, assim como nas lamen- tages ¢ outros sinais de sofrimento na morte @ nos funerals, Pouco importando que os atores estejam sofrendo ou nao. Em algumas socledades se empregam carpideiras profis- sionals. Entio, pode multo bem dar-se que nao seja a emogao a fazer surgir 0 rito, mas sim o rito a fazer surgir a emogao. E 0 mesmo velho problema de saber se rimos Porque estamos felizes ou se estamos felizes porque osta- mos rindo, & 6bvio que néo vamos a igreja por nos encon- trarmos num estado emocional elevado, embora nossa Participagio no rito possa desencadear tal estado, No que concerne a fungéo catértica da magia, que evl- déncla prova que um homem efetua rituais magicos de agricultura, caga @ pesca por estar frustrado? Ou qual a prova que hé do que a execugSo dos ritos Ihe allvia as tensGes? A mim me parece haver pouqulssima ou nenhuma 67 prova. Sojam quals forem seus sentiments, 0 mago tem que efetuar os ritos a todo custo, pois eles constituem parte costumeira © obrigatérla do process. Pode-se dizer com acerto que 0 homem primitive leva a efelto seus ritos porque acredita em sua eficdcia e que nao ha grandes motivos para frustrageds, pols ele sabe que dispSe de melos para combater as dificuldades que se lhe apresentem. Melhor que dizer que a magia allvia tens6es, seria dizer que 0 recurso da magia funciona preventivamente em rela- 0 as tens6es. Ou, dizer novamente que se ha algum estado emocional envolvido, ele pode ser, nfo a base do tito, mas 0 resultado do rite, com os gestos © férmulas produzindo as tais condigées psicolégicas que se imaginava terlam levado a ofetivagao do ito. Deveremos também tor em mente que muita magia @ muita religiéo tém caréter de substitulgfo, sendo 0 mago ou o sacerdote uma pessoa diferente daquela a quem se dirige o tito, o cliente, Assim, pessoa que se supde estar num estado de tenséo 6 alguém que n&o o contratado, esta pessoa desinteressada cujos gestos © palavras, espera-se, aliviaréo a tensio. Assim, se seus gestos manobras sugerem um estado emocional elevado, forgosamente serdo simulados; ou entéo © executante devera penetrar na emocao durante e por intermédio do rito, Devo acrescentar que, no caso de Mali- nowski, multos dos ritos que ele observou foram efetuados “para ele” @ em troca de pagamento, em sua tenda e fora dos métodos usuais; se assim for, dificilmente poderlamos aceltar que qualquer emogao entéo envolvida fosse causada Por tensfo ou por frustraglo. Além disso, como observou Radin', na experiéncia Indl- vidual a aprendizagem de ritos e crengas precede as emogdes que se diz estarom presontes mais tarde, na vida 1 SOCIAL ANTHROPOLOGY, p. 247. adulta. © individuo aprende a participar do ito antes de experimentar qualquer emogéio, de modo que o estado emocional, qualquer que seja ele, @ se é que existe, dificil mente podera ser a orlgem @ a explicagao do rito. O rito 6 parte da cultura em que nasce 0 individuo @ se impoe a ele de fora, como o restante da cultura. Ele 6 uma criagdo da socledade, nao das emogées ou cognigées individuais, embora possa satisfazer a ambas; ¢ é por isto que Durkheim nos diz que toda interpretagao psicolégica de um fato sdcial 6 Invariavelmente uma Interprotagéo errada, Pelo mesmo motivo, devemos afastar as teorlas da reall- zagaio de desejo. Ao comparar 0 nourdtico com 0 mago, elas Ignoram o fato de que as agées @ formulas verbais do neurético derivam de estados subjetivos _Individuais, enquanto que as do mago so tradicional e soclalmente Impostas a este por sua cultura ¢ sociedade, sendo ainda parte da estrutura institucional em que vive @ A qual deve se adapter. Mais ainda: embora em cerlos casos e sob certos aspectos possam haver semelhangas exteriores, néo se pode inferir que os estados psicolégicos sejam Idénticos ou que se devam a condigdes compardvels. Ao classificar 08 povos primitives como préximos as criangas, aos neuré- ticos, etc., erra-se ao admitir que, j4 que as coisas so parecem entre si em certos tracos particulares, entéo devem ser semelhantes em outros; trata-se da faldcia do “pars pro toto”. Tudo o que isto significa 6 que, aos olhos desses autores, estes diferentes classes do pessoas (primitivos, criangas, neuréticos, ete.) nfo pensam cientificamente o tompo todo. E, poderlamos perguntar, quem j4 encontrou um selvagem que pensasse podér transformar o mundo polo pensamento? Eles sabem muito bem quo néo podem. © que temos aqui é outra variant da espécie “se eu fosse um cavalo”, ou seja: se eu me comportasse como um mago solvagem, estarla sofrendo das doengas de mous pacientes neuréticos, 69 Nao devemos, 6 claro, afastar intelramente estas inter- pretagées. Elas foram uma reagéo saudével a uma posigéo excessivamente Intelectualista. Os desejos @ impulsos, cons- cientes ou inconscientes, motivam 0 homem, gulam seus Interesses, impelem-no & acéo; e cerlamente tém o seu papel dentro da religiéo, 0 que é preciso determinar 6 a sua natureza, e que papel exatamente desempenham. Aquilo contra que protesto é a mera afirmagéio especulativa, e 0 que ataco 6 uma explicagao da religiao om termos de pura emogao, ou de alucinagao. 70 TEORIAS SOCIOLOGICAS As explicagdes emocionalistas da religiao primitiva, que acabel de expor, tem todas um forte sabor pragmatista, Por mais que paregam absurdos os ritos @ crengas primitivas & mentalidade racionalista, 0 fato 8 que eles ajudam os povos mais rudes a lidar com seus problemas @ sous contra- tempos, assim eliminando 0 desespero que inibe a agdo e dando confianga para a busca do bem-estar do individuo, fornecendo-ihe um sentido renovado do valor davida @ das atividades que a compdem. O pra- matismo exercia grande influéncia na ocasiéo em que tais teorias foram propostas, @ a teoria de Malinowski acerca da religiaéo @ da magia poderia ter saldo diretamente das pagi- nas de William James, como de fato pode ter acontecidi religiéo 6 algo de valor © mesmo algo verdadeiro, no sentido pragmatista de verdade, desde que ela sirva ao propésito de dar conforto sentimentos de confianga, seguranga, alivio, apoio; quer dizer — se resultados tteis a vida decor- rem dela, Dentre os analistas do pensamento primitivo J& meneionados, 0 que talvez enuncle mais claramente o enfoque pragmatista 6 Carveth Read, em livro a que jé me a reterl, Por que, pergunta ele, serla a mente humana pertut- bada por Idéias de magia © de religiio? (Para ele a magia serla anteiror & religiéo ¢ suas origens deverlam ser pro- curadas nos sonhos e nas crengas em fantasmas). A res- posta 6 que, além do alivio psicolégico que elas promover, nos estégios inlciais da evolugao social tais superstigoes eram iitels aos IIderes, dando-Ihes apolo, assim ajudando a manter a ordem, 0 governo, os costumes. Ambas as Idélas so Ilusérlas, mas a selegao natural Ihes fol favordvel. As dangas totémicas, dizem-nos, “representam excelente exer- olcio fisico, estimulam 0 espirito de cooperagéo, constituem uma espécie de treinamento. .."', assim por diante. Vere~ mos que nas teorias soololégicas gerals da roligiéo se encontra 0 mesmo sabor: — a religido é valida enquanto colabora na manutengao da coesdo social e sua continuidade, Este modo pragmatista de encarar a religiéo & bastante anterior & organizagéo do pragmatismo como uma filosofia formal, Montesquieu, por exemplo, pai da antropologia social (embora alguns atribuam esta honra a Montaigne), ensina que embora uma religido possa ser falsa, pode ter fungao. social aproveitavel; e verificar-se-4 que ela se adapta ao governo ao qual esté assoolada, sendo a religiéo de um povo geralmente adequada a seu modo de vida; o que torna dificil transportar a religiéo de um pals para outro, Assim, fungéo @ legitimidade néo devem ser confun- didos, “As mais sagradas e verdadeiras doutrinas podem acarretar as plores conseqiiéncias quando nao esto liga- das aos principios da sociedade; e, por sua vez, as doutrinas, mais falsas podem alcangar os melhores resultados quando se aplicam na dedicagao a estes principios”’. Mesmo os ultra-racionalistas do lluminismo, como Condorcet, concor- dam em que a religiéo, embora falsa, Ja teve, em algum 1 Op. elt. p, 42. 2 Montesquiou, THE SPIRIT OF LAWS, 1750, II, 161. 72 tempo, uma fungdo social ail, desempenhando assim impor- tante papel no desenvolvimento da civilizagao. Visées sociolégicas semelhantes séo encontradas nos primeiros textos escritos a respeito da sociedade humana. Eles as vezes utilizam aquilo que hoje chamarlamos de termos estruturais. Aristételes, na POLITICA, diz que “todas as possoas afirmam que os deuses também tinham um rel, pois elas mesmas sempre tiveram um, no passado ou no presente; pois os homens criam os deuses @ sua Imagem, no apenas no que concerne a forma, mas também no que iz respeito a0 seu modo de vida". Hume diz praticamente a mesma coisa; e esta idéia da conexdo entre desenvolvi- mento politico © desenvolvimento religioso, nés podemos encontré-la em varlos dos nossos tratados de antropologia. Herbert Spencer diz que Zeus esté para os demals Celes- tials “exatamente na mesma relagdo existente entre um monarca absoluto e a aristocracia da qual ele é a cabega”®, Para Max Miller, 0 “henotefsmo” (uma palavra que creio Inventada por ele® para desorever uma religido em que cada deus a0 ser invocado assume todos os poderes de um ser supremo) ocorre em perfodos que antecedem a formagao das nagées a partir de tribos independentes, sendo esta uma forma comunal, ¢ no imperial, de religiéo. King tam- bém assevera que & medida em que.se desenvolvem os siste- mas politicos, suas partes componentes sao representadas por deuses tutelares; @ quando as partes se unem, no momento em que as tribos se agregam em nagées, aparece a idéia de um ser supremo. Este 6 0 deus tutelar do grupo dominante na fusdo. Finalmente surge 0 monotefsmo, 0 ser 14, 27. 2 Op. Git. p. 207. 8 A. Pettazzoni, no entanto, In ESSAYS ON THE HISTORY OF RELI- GION, 1954, p. 5, diz que a palavra fol Iniclalmente usada por Schelling, endo @ iddla mals tarde desenvolvida por Miller. 73 supremo como reflex do Estado universal, onlpotente, Ro- bortson Smith explicava 0 politefsmo da antiglidade clés- sica pelo contraste com 0 monoteismo da Asia, pelo fato de que em Grécia e Roma a monarquia caiu ante a aris- tocracia enquanto que na Asia manteve seus poderes. “Esta diversidade de destino politico se reflete na diversidade. de desenvolvimento religioso”!. Jevons segue a mesma linha de raclocinio, Tudo isto 6 um pouco simplério. Os escritos de Andrew Lang @ 03 muitos volumes de Wilhelm Schmidt contém inumeras demonstragées de que povos néo dotados de um modelo politico coerente com a concepgao de um ser supremo, os cagadores e coletores de produto silvestres 840, em larga escala, monoteistas, pelo menos no sentido em quo aceitam a existéncia de apenas um deus — con- quanto nao no sentido segundo o qual existe culto de um deus @ rejeigiio dos demais (porque para haver monotelsmo no segundo sentido — 0 que tem sido chamado de mono- telsmo explicito — 6 preciso que haja ou tenha havido alguma forma de politelsmo), Outros exemplos de andlises sociolégicas se encontram nos escritos de Sir Henry Maine sobre jurisprudéncia com- parada. Ele explica, por exemplo, a diferenga entre as teologias do Oriente © Ocidente pelo simples fato de que, nesta ultima, a telogia se combinou com a jurisprudéncia romana, enquanto que sociedade helénica “jamais mostrou ‘a menor capacidade de produzir uma filosofla do direito”®, A especulagéo teolégica passou de um clima de metafisica grega para um clima de direito romano. Porém o mais geral € extenso tratamento sociolégico da religido 6 0 de Fustel do Coulanges em THE ANCIENT CITY; este historiador francés (brettio) nos inieressa de perto, porque um de seus 4. W, Robertson Smith, THE RELIG:ON OF THE SEMITES, tercolra od. (1927), p. 73. 21H. S. Maino, ANCIENT LAW, od, do 1912, p. 969, 74 pupilos mais Influenclados fol Durkheim, cuja teorla da religiéo logo apresenterel. O tema de THE ANCIENT CITY € 0 de que a antiga sociedade classica estava centrada na familia, no sentido mais amplo que se possa dar a esta palavra, compreendendo familia conjunta ou linhagem, © que 0 que mantinha unido 0 grupo agnético como uma corporacdo, dando-Ihe permanéncia, seria 0 culto do ances- tral, no qual o chef da familia atuaria como um sacerdote. A luz desta idéia central e somente a partir dela — onde 08 mortos aparecem como as deidades da familia — todos 08 costumes do perlodo podem ser compreendidos: normas e ceriménias de casamento, monogamia, proibigao do divér- cio, interdigao do celibato, o levirato, a adogao, a autoridade Paterna, regras de descendénola, heranga @ sucesséo, lels, propriedades, os sistemas de nominagao, calendario, escta~ vidéo, cllentela e multos outros costumes. Quando os esta~ dos-cidade se desenvolveram, tomaram o mesmo padrao estrutural que havia informado a religiao nestas condigdes sociais iniciais. Outro autor que influenciou fortemente a teoria da religiao de Durkheim (assim como os escritos de F.B. Jevons, Salomon Reinach @ outros) fot o jd mencionado Robertson Smith, que foi professor de érabe em Cam- bridge. Tomando algunas de suas idéias basicas do pensa- mento do um outro escocés, JF. McLennan, ele eupds que as sociedades somfticas da Arabia antiga eram compostas de clés matrilineares, cada um dos quais mantinha um relacionamento sagrado com determinada espécie de animal que era para eles um totem. As evidénclas que apdiem tais suposigdes sfo restritas mas 6 nelas que Robertson Smith acreditava, Segundo ele os membros do cla deverlam tor um 86 sangue, assim como seus totens; do mesmo san- guo era também o deus do cla pols ele era concebido ‘como sendo o pal fisico do fundador do ola. Do ponto de vista sociolégico, o deus era o cl mesmo, Idealizado @ dl- Vinizado. Esta projegéo tinha sua representagao material 75 na crlatura totémica; @ 0 ola periodicamente expressava a unidade do seus membros entre si e com seu dous, revita- lizando-se pelo sacrificio da criatura totémica e comendo- he @ carne crua numa festa sacra, uma comunhao em que “o deus e seus adoradores se unem pela divisdo da carne © do sangue do uma vitima sagrada”?, No entanto, na me- dida em que 0 deus, os membros do cla © o totem eram todos de um s6 sangue, 03 membros do cla estavam em comunhao sagrada com seu deus, mas estavam também di- vidindo-o, cabendo a cada membro do cl incorporar uma Particula sacramental da vida divina A sua propria vida, Formas tardias do sacrificio hebreu se desonvolveram a partir desta forma comunal. As provas desta teorla, que vevons engollu com anzol, linha, chumbo ¢ tudo, so parcas, Tal teoria representava, para um pastor presbiterlano, che- gar muito perto do fogo; de modo que o préprio Robertson Smith ou quem quer que tenha sido responsével pela pu- blicag&o (péstuma) da segunda edigéo de THE RELIGION OF THE SEMITES em 1894 (a primeira era de 1889), suprimiu certas passagens que poderiam ser consideradas como desmentidos do Novo Testamento®. Tudo que se pode dizer da teoria como um todo, considerando que seus argumentos sfio a0 mesmo tempo tortuosos @ ténues 6 que comer o animal totémico pode ter sido a primeira forma de sacriffcio @ a origem da roligiio — mas nao ha nenhuma prova do que © tenha sido, Mais ainda, na vasta literatura mundial que trata do totemismo, hé apenas um exemplo, entre os aborigines australlanos, em que um povo come, durante uma ceriménia, seu animal totémico; e a significagao deste dado, mesmo se aceitamos que soja verdadelro, 6 duvidosa © questionéve!, Além disso, embora Robertson Smith pre- ‘endesse que sua teoria fosse genericamente verdadeira no 1 THE RELIGION OF THE SEMITES, p. 227, 2 J. G, Frazer, THE GORGONS'S HEAD, 1927, p. 269. 76 que concerne 03 povos primitivos, acentuemos que hé mui- tos povos dos mais primitives, inclusive, que no tém sa- crificios sangrentos, ¢ outros entre os quais no vigora ne- Inhuma idéia de comunhdo. Neste assunto, Robertson Smith » fez com que Durkhelm © Freud se equivocassem. £ também altamente duvidoso que a idéia de comunhao chegasse a estar presente nas formas mais antigas do sa- criticio hebreu como 0 conhecemos e, se estava, forcosa- mente estarlam presentes também a idéia de expiagdo & outras, talvez mesmo com cardter preponderante. De modo sumério, podemos dizer que tudo 0 que Robertson Smith realmente faz 6 especular acerca de um perfodo da histéria semftica do qual praticamente nada se conhece, Assim fa- zendo, ele pode ter protegido sua teoria da critica, mas a0 mesmo tempo Ihe nega legitimidade e poder de convic- Go. Efetivamente, ela ndo 6 nada histérica; é apenas evo- lucionista, como todas as teorlas antropolégicas da época, uma ressalva que também deve ser feita. A tendéncia evo- lucionista é bem marcada em toda esta teoria e mostra-se claramente através da crueza materialistica, aquilo que Prouss chamava de URDUMMHEIT, Imputada & religiéo do homem primitivo, assim colocando o concreto, por oposigao a0 espiritual, no comego do desenvolvimento; e também por enfatizar excessivamente 0 caréter social (por oposigéo a0 pessoal) das religiées Iniclals; tudo Isto revela a supo- siglo bésica de todos os antropélogos vitorianos, qual seja a de quo as roligiges mais primitivas em pensamento ¢ costumes devem ser o seu contrdrio @ antipoda, sendo a religldo destes antropélogos (¢ de sua época) vista como uma espécie de espiritualidade individualista, Para compreender o tratamento que Robertson Smith da religiéo semitica antiga e, por implicacdo, & religiso pri- mitiva em geral, 0 que, alls, se aplica Igualmente & analise do Durkheim assinalemos que R. Smith afirmava que as re~ ligides antigas no tinham credos, @ ndo tinham dogmas: 7 “Elas eram constituldas exclusivamente do institulg6es e praticas”', Os ritos, 6 verdade, estavam conectados com mas os mitos n&o explicam os ritos, e sim © oposto. Se assim 6, deveromos procurar entender as re- ligides primitivas através de seus rituals, e, conslderando que © ritual bésico numa roligiéo antiga 6 0 do sacrificio, 6 af que deveremos achar 0 entendimento procurado; mais ainda: desde que 0 sacrificio ¢ uma institulgao téo genera- lizada, devemos procurar sua origem em causas gerais. Fundamentalmente, Fustel de Coulanges @ Robertson ‘Smith estavam propondo 0 que se poderia chamar de teoria estrutural da génese da religido; isto 6, que esta surgiria da natureza mesma da sociedade, Este também fol o en foque de Durkheim, que procurou além disso mostrar a manelra pola qual se gerava a religiéo. A posigtio de Dur- kheim, talvez a maior figura da histéria da soclologia mo- derna, sé pode ser avaliada se recordarmos dois pontos principais. © primelto @ 0 fato de que, para ele, a religiéo 6 um fato social, isto 6, objetivo. Ele desprezava as teorias que tentavam explicar as religiées em termos de psicologia individual. Como, perguntava ele, se a religiéo se origina de um mero erro, uma fluséo, uma espécie de alucinagao, ‘como se pode ter tomado to universal, téo duradoura, @ como poderia uma fantasia va ter produzido lel, cléncia @ moral? © animismo @ sempre, nas suas formas mais tipleas @ desenvolvidas, encontrado néo em sociedades primitivas, mas em socledades relativamente avangadas como as da China, Egito, e do Mediterraneo do perlodo classico. Assim como o naturismo (a escola do mito natural) o propunha, deveria entio a religiéo ser mais satistatorlamente explicada ‘como uma doenga da linguagem, uma névoa de metaforas, a agio da linguagem sobre o ponsamento, do qua como 1 THE RELIGION OF THE SEMITES, p. 10. 78 sendo uma falsa inferénoia de sonhos @ transes? Além de tal explicagao ser tdo trivial como a animistioa, 6 fato olaro que os povos primitivos mostram pouquissimo interesse pelo. que podemos considerar como os mals impressionan- tes fendmenos da natureza: 0 sol, a lua, céu, montanhas, mar e assim por diante, cuja monétona regularidade acel tam trangiilamente como infalivel. Ao contrarlo, dizia ele, naquela que ele considerava a religido mais elementar de todas, 0 totemismo, 0 que se diviniza sao criaturas humil- dos (néo as imponentes), como patos, ratos, rs @ vermes cujas qualidades intrinsecas dificiImente toriam sido a ori- ‘gem do sentimento religioso que teriam inspirado. verdade, evidentemente, © Durkheim néo o negaria, que a religiéo & pensada, sentida, @ desejada por individuos — a sociedade néo tem mente para experimentar tais fun- ges — e sob este aspecto é um fendmeno de psicologia individual, um fenémeno subjetivo, podendo sor estudada deste ponto de vista. Mas nao deixa de ser também um fenémeno social e objetivo, independente de mentes indi- viduais, @ 6 assim que 0 socidlogo a encara. O que lhe da objetividade sdo trés caracteristicas, Em primeiro lu- gar, ela se(transmite de uma geragaéo para outra,) de modo que se num sentido ela est no individuo, em outro esta fora dole, pois oxistia antes dele nascer © existiré depois de sua morte. O individuo a adquire tal como o faz com a linguagem, desde que nascido numa sooiedade qual- quer. Em segundo lugar, a religiéo 6, pelo menos nas so- cledades fechadas, (de cardter geral. Todos tem o mesmo tipo do orenga religiosa, as mosmaé praticas roligiosas, sua generalidade ou coletividade the dé uma objetividade que a coloca acima das experiéncias psicolégicas de qual- 1 Hocart assinala (MAN, 1914, p. 99), que embora os furagdes das lihas Fiji selam um t6pico anual de conversa, jamais obsorvou "a menor sugostéo do uma toorla nativa a respelto, nem © menor tomor religioso". 79 i N quer individuo e de todos os individuos. Em tercelro lugar, ela(6 obrigatéria.)Além das sangées positivas @ negativas, © simples fato de que a religiéo é geral significa, novamente numa sociedade fechada, que ela 6 obrigatéria pois, mesmo que nao haja coergéo, um homem néio tem opgio, sendo a de aceltar © que todo mundo concorda em aceitar; tanto quanto nfio tem escolha no que se refere a linguagem que ele usa, Mesmo que seja um descrente, ele so poderd ex- Pressar suas dtvidas em termos referentes as crengas aceitas por todos ao seu redor. E, tivesse le nascido em outra sociedade, teria tido um outro sistema de crengas, assim como torla outra linguagem, Pode-se aqui notar que © interesse de Durkheim © seus colegas acerca das so- cledades primitivas, pode ter derivado do fato de que elas sdo ou eram comunidades fechadas. As sociedades abertes, nas quais as crengas podem néo ser transmitidas @ em que podem ser diversificadas e — assim menos obrigatérias — ‘so menos passiveis de interpretacdo sociolégica tal como eles propuseram. © segundo ponto que devemos ter em mente diz respeito 4 autonomia dos fenémenos religiosos. Eu o menciono aqui apenas de passagem, pois que ele emerge claramente do tratamento que Durkheim da a religido, 0 que logo estu- daremos. Durkheim nao ora td0 simplesmente determinista © materialista como querlam alguns. Na realidade, inclino- me a considerd-to voluntarista @ Idealista. As fungbes da mente no poderiam existir sem os processos do organis- mo; mas isto, diz ele, nao significa que os fatos psicol6- gicos possam ser reduzidos a fatos orgtinicos © por estes explicados; significa apenas quo oles tm uma base orga- nica, tal como os processos organicos tém uma base qui- mica, Os fendmenos t8m autonomla a cada nivel. Igual= mente néo poderia haver vida sécio-cultural sem as fungdes psiquicas de mentes individuals, mas os processos socials 80 transcendem estas fung6es através das quals operam e, se nao Independentes da mente, tm uma existéncia prépria, fora de.cada mente individual, A linguagem ¢ um bom exemplo do que Durkheim estava dizendo. Ela 6 tradicio- nal, geral e obrigatéria; tem historia, estrutura © fungdo, das quals todos os usuérlos tém pouguissima nogao; 2, embora individuos possam tor contribuldo para ela, nem por isto vem ela a ser um produto de qualquer mente in- dividual, € um fendmeno coletivo, auténomo © objetivo, Na sua andlise da religiéo, Durkheim val mais tonge. A religio 6 um fato social. Ela surge da natureza da vida social, estando, nas socledades mais simples, assoclada a outros fatos socials, & lol, & economia, &s artes, otc., que mals tarde so separam dela © vivem sua existéncia prépria, Acl- ma de tudo, ela 6 a maneira pela qual a sociedade se vé como algo mais que uma colegio de individuos, @ meio pelo qual mantém na solidariedade e continuidade. Isto néo significa, porém, que a religiao soja apenas um epifendme- no da sociedade, como os marxistas diriam. Uma vez ini- ciada pela ago coletiva, @ religiéo ganha um grau de au- tonomia e prolifera de varias maneiras, 0 que nao pode ser explicado com base na estrutura social que Ihe deu orlgem, 86 podendo sé-lo em termos de outras rellgiées © outros fendmenos socials num sistema especitico, Estabelecidas estas duas bases, ndo precisamos esperar mais para apresentar a tese de Durkheim. Ele partiu de quatro Idéias principals tiradas de Robertson Smith: a re- ligiéo primitiva 6 um culto do cli @ este culto 6 totémico (ele julgava que um sistema clanico segmentar eo tote- mismo implicavam necessariamente um no outro); 0 deus Uc cli 6 0 préprio cla divinizado; 0 totemismo 6 a forma mais elementar, mais primitiva e — neste sentido original — de religiéo que conhecemos. Com isto ele queria dizer que ela se encontra em sociedades dotadas de uma cultura et material e de uma estrutura Social as mais simples; © que 6 possivel explicar a religiéo, nestes casos, sem utilizar qualquer elemento tomado de empréstimo a outras religides. Assim, Durkheim concorda com aqueles que véem no to- temismo a origem da teligiéo, ou, polo menos, como a forma mais incipiente de religiéo: McLennan, Robertson Smith, Wundt, Frazer em seus primeiros escritos, Jevons, e Freud, Mas que base existe para que se considere o totemismo um fendmeno sequer religioso? Frazer, em sous cltimos esctitos, colocava-o na categoria da magia. Para Durkheim, a religio pertence a uma classe mais ampla, a do sagrado, sendo que tudo, 0 real e o ideal, pertence a uma de duas classes opostas, 0 profano e o sagrado. O sagrado se iden- tifica claramente pelo fato de que estd protegido e isolado Por interdigées; profanas so as coisas sobre as quais as Interdigdes se aplicam, O tabu recede aqui praticamente mesma fungao que Marett Ihe dou. Assim, ‘as crengas religiosas so as representagdes que expressam a natureza das coisas sagradas” e os ritos "sao as regras de conduta que prescrevem como um homem deve se comportar na Presenca de objetos sagrados”, Estas definigées cobrem magia © religiéo desde que ambas pertencem ao sagrado dentro dos critérios do Durkheim, razo pola qual ele pro- pos um novo critérlo para distinguir religiées de magia, A religiao & sempre um assunto coletivo, de grupo: nao ha religiéo sem igreja. A magia tem uma clientela, néo uma igreja, @ a relagio entre 0 mago e seu cliente 6 comparavel Aquela existente entre um médico @ seu paciente. Assim chegamos a uma definigao final de religido: “a religiio 6 um sistema unificado de crengas e praticas relacionadas a coisas sagradas, quer dizer coisas postas a parte e prol- bidas, sendo que crencas @ préticas congregam numa co- munidade moral nica chamada igreja todos os que a elas 82 aderem". As origens hebraicas de Durkheim, parece-me, ‘emergem vigorosamente, embora nao inadequadamente, nesta definiggo; mas sela como for, em seus critérios, 0 totemismo pode ser considerado uma religiéo: ele est . Sercado por tabus © 6 uma manifestaggo grupal. Qual 6 entio o objeto reverenciado nesta religido toté- mica? Nao é simplesmente um produto de imaginagao de- lirante; ele tem uma base objetiva, E 0 culto de algo que realmente existe, embora néo a colsa que os cultores su- ponham que é. & a sociedade mesma, ou algum segmento dola, que os homens cultuam nestas representagdes Ideals. E Isto 6 natural, diz Durkheim, porque a sociedade tem tudo o que 6 necessérlo para fazer surgir nas montes a sensagao do divino. Tem poder absoluto sobre todos, © Ihes dé a sensagdo de dependéncia perpétua; © 6 também objeto de respeito © veneragdo. A religiéo 6 portanto um sistema de idéias através do qual os individuos representam para si préprios a sociedade a que pertencem e as relagdes que com ela mantém. Durkheim tentou demonstrar a sua teorla com 0 exem- plo de alguns aborigines australlanos — usando como con- tra-prova os indios americanos — tomando-lhes a como experiéncia crucial @ admitindo ser aquela a forma mais simples do rellgiéo conhecida. Defendou o process, argumentando, com alguma razéo, que ao so fazer um ‘estudo comparativo de fatos socials, devem ser tomados fatos de sociedades do mesmo tipo, e que um Gnico ex- perimento submetido a bom controle 6 0 bastante para estabelecer uma lel; lima argumentagéio que me parece nado ser muito mais do que ignorar os exemplos que contradi- zem a protensa lel. Na época, a atengéio dos antropdlogos estava particularments dirigida para as recentes descober- 1. Durkhoim, THE ELEMENTARY FORMS OF THE RELIGIOUS LIFE, ‘radugio Inglesa 1915, p. 47. 83 tas feltas na Austrélia através das pesquisas de Spencer o Gillon, Strehlow © outros. Mesmo assim, a escolha daquela regiéo por Durkheim para o seu experimento, foi infeliz, pois a literatura existente acerca dos aborigines era entao Pobre © confusa, e ainda hoje o 6. Os “Blackfellows” australianos, tal como eram chamados, so (no restam muitos, vivendo como outrora, mas usarel © presente etnogrifico) cagadores @ coletores que vagam ‘em pequenas hordas em seus territérios tribais, procurando caga, ralzes, frutas, lavras @ assim por diante, Cada tribo se compée de um certo nimero de tals hordas. Além de ser membro de uma pequena horda e da tribo em cujo ter- ritérlo a horda vive, um Individuo 6 membro de um cla, havendo muitos clas espalhados pelo continente, Como membro do cif, 0 individuo compartitha com os demais membros de um relacionamento para com certos fendmenos naturals, na maioria espécies de animals e plantas. Tais es- pécles séo sagrades para o cla @ n&o podem ser comidas ou atacadas por seus membros. A cada cla correspondem fenémenos naturais diversos, de modo que toda a natureza pertence a um ou outro cla; assim, a estrutura social pro- vé um modelo para classificagéo dos fenémenos naturais. Uma vez que as coisas assim classiticadas com os clas se assoclam com seus totens, assumem também elas um cardter sagrado: @ uma vez que os cultos se implicam uns ros outros mutuamente, todos constituem partes coordenadas de uma religiéo Unica, tribal. Durkheim observou com agudeza quo as criaturas to- témicas nao stio de modo algum cultuadas, como pareciam pensar McLennan, Tylor, e Wundt; tampouco, como men- cionei antes, foram escolhidas como tals em virtude de sua aparéncia Imponente. Ademals, n&o stio as criaturas em sl que tém importancia maxima; elas séo sagradas, é verdade, mas apenas secundariamente sagradas. De primelra impor- tancia, stio, isto sim, 0s desenhos que as representam, 84 gravados em pegas oblongas de madeira ou pedra polida, chamadas de “‘churinga”, algumas vezes perfuradas © usa- das como zunidores. Efetivamente, as crlaturas totémlcas foram escothidas, como Durkheim parece sugerir, por serem modelos adequados @ representagio pictérica. Tals dese- nhos sto simbolos, em primeira instancia, de uma forga impessoal distribulda em imagens, animals e homens, mas que no deve ser confundida com nenhum deles, pols o cardter sacro de um objeto nao deriva de suas proprieda- des intrinsecas. Tal cardter se acrescenta, superposto, ao objeto. O totemisino é uma espécie de deus Impessoal ima- nente no mundo e difuso, numa numerosa multidéo de colsas, correspondando ao “mana” o a Idélas somelhantes dos povos primitivos: 0 “wakan” @ 0 “orenda” dos indios norteamericanos, por exemplo, No entanto, os australianos © concebem nao como forma abstrata, mas sob a forma de um animal ou planta, 0 totem, que 6 “a forma material sob a qual a Imaginagdio representa esta substancla Ima- terial". Uma vez que esta esséncia ou principio vital se encontra tanto nos homens como nos totens, constituindo em ambos sua caracterfstica mais essencial, podemos com- preender © que quer dizer um “blackfellow" quando afirma que os homens da fratria do corvo séo corvos, Os desenhos simbolizam, em segunda inst€ncia, os pré- prios ellis. O totem, portanto, 6 a0 mesmo tompo, tanto o simbolo tanto do deus ou principio vital, quanto da socio- dade, porque deus e sociedade séo a mesma coisa, “O deus do cla, 0 principio totémico, néio pode ser nada, seno 0 cli mesmo, personificado © representado para a imaginag&o sob a forma visivel do animal ou vegetal que serve como totem’. Nos s{mbolos totémicos os membros do cl exprimem sua identidade moral © sous sentimentos 1 Durkheim, op. cit, p. 189. 2 Durkheim, op. cit, p. 206. 85 fl de dependéncia reciproca e para com o grupo como um todo. As pessoas 56 podem se comunicar através de sig- nos, e, para expressar este sentimento de solidariedade, 6 preciso que haja um simbolo, uma bandeira, 0 que para esses nativos vem a ser os seus totens, expressando cada cla tanto a sua unidage quanto a sua individualidade atra~ vés do seu emblema totémico. Os simbolos concretos sao necessérios porque “o old 6 uma realidade complexa de- mais para que possa ser representada claramente em toda a sua complexa unidade por essas inteligéncias rudimen- tares"", As mentes néo sofisticadas nfo podem se ver a si préprias como um grupo social sendo através de simbolos materiais. O principio totémico, portanto, nada 6 sendo o ola concebido sob a forma material do emblema totémico. Pelo modo com que age sobre os seus membros, o old faz surgir dentro destes a idéia de forgas externas que do- minam e exaltam a todos, sendo tais forgas representadas Por coisas externas, as formas totémicas. 0 sagrado néio mais (nem menos) do que a sociedade mesma, representada em simbolos para os seus membros. Durkheim reconheceu que os aborigines australlanos tinham conceitos religiosos diferentes daquilo que se rotula como totemismo, mas afirmou que também, eles eram ex- plicdveis dentro dos termos de sua teoria/A iddia da alma 0 mesmo principio totémico do “mana”, corporificado em cada individuo: a sociedade individualizada. & a socie- dade em cada membro seu, sua cultura @ ordem social, que faz de um homem uma pessoa, ser social, em vez de simples animal. & a personalidade social, por oposigéo ao organismo individual. © homem 6 um animal racional moral, mas seus componentes moral © racional séio aqullo que a sociedade impos ao componente organico. E como 1 Durkholm, op. city p. 220. 86 diz a senhorita Harrison, parafraseando Durkhelm: “Sou corpo obedece & lei natural e seu esplrito é circundado pelo imperative social". Assim, a alma nao é o produto de pura ilusdo, como queriam Tylor @ outros. Nés “somos” feitos de duas partes distintas, opostes entre si, como o sagrado @ 0 profano. A sociedade ndo exerce sobre nés apenas um poder mobilizador externo e circunstancial. “Ela se Instala dentro de nés de modo duradouro... Somos, Portanto, feitos de dois seres que encaram diregdes dife- rentes, sendo opostas, sendo que um exerce uma predo- minancia real sobre 0 outro, Tal 0 profundo significado da antitese que todos os homens concebem mais ou menos claramente entre 0 corpo @ a alma, o ser material © o ser espiritual que coexistem dentro de nés. Nossa natureza é dupla; existe realmente uma particula de divindade dentro de nés, porque hd dentro de nés uma particula dessas grande idéias que so a alma do grupo", Néo hé nada de depreciativo para 0 homem ou para a religiéo nesta inter- pretacdio. Pelo contrério: “'a Gnica maneira que temos do nos livrarmos das forgas fisicas 6 contrapor-Ihes. forgas coletivas", Assim, 0 homem, como diz Engels, ascende do reino da necessidade para o reino da liberdade, / No que concerne os seres espirituais australianos, uma nogéio que Durkheim, como Tylor, pensou ser derivada da alma, eles devem ter sido totens em alguma época, acre- ditava Durkheim, Mas no momento corresponderiam @ gru- 1. J. E. Harrison, THEMIS, A STUDY OF THE SOCIAL ORIGINS OF GREEX RELIGION, 1912. p. 487. Do mesmo ano quo LES FORMES ELEMENTAIRES DE LA VIE RELIGIEUSE, do Durkhoim. A srta. Harrison fol lauenciada por “DE LA DEFINITION DES PHENOMENES RELIGIEUX", Année Sociologique, Il, 1899, publicacSo anterior de Durkheim, 2 Durkhoim, THE ELEMENTARY FORMS OF THE RELIGIOUS LIFE, pp. 262-4, 9 Ibid. p. 272. a7) pos tribais. Em cada territério muitos clés sio representa- dos, cada qual com sous emblemas totémicos distintos, ‘com seus cultos, mas todos pertencendo igualmente & tribo @ com a mesma raligiéio, sendo esta idealizada em douses, © grande deus 6 simplesmente a sintese de todos os totens, assim como as tribos sdo sinteses da totalldade do clas; 6 também Inter-tribal em cardter, espolhando relagdes so- ciais de tribo a tribo, especialmente no que diz respeito & presonga de membros de tribos outras em ceriménias tri- bais, de iniciagao © sub-incisdo. Assim, embora almas & espiritos néo existamy na realidade, correspondem a reali- dade, e, neste sentido, so reals, pols a vida social que simbolizam 6 bastante real, Até agora nada fol dito acerca do lado ritual do totemis- ‘mo australlano, E este 6 0 ponto mals central @ mals obs- cure da tese de Durkheim, ao mesmo tempo em que 6 também 0 seu ponto menos convincente. Periodicamente, membros do mesmo clé © presumivelmente componentes (pelo menos em sua maioria) da mesma tribo, se congre- gam para a realizado de ceriménias quo visam & multipll- cago das espécles com as quals mantém um rolaciona- mento sagrado. Uma vez que néo podem comer as suas préprias criaturas totémicas, os ritos so efetuados com a intengéio de beneficiar membros de outros clifs, que podem comé-los, de sorte que cada ola traz sua porcaio de allmen- to como contribuig&o para o conjunto./Os aborigenes ex- plicitam a finalidade dos ritos, mas o propésito manifesto © a fungo latente nfo séo a mesma coisa; e Durkheim tem uma interpretagdo sociolégica destes rituals que nao est em concordancia com a propria idéla dos aborigenes acerca do quo oles estdo fazendo;se 4 quo 6 esta a fi- nalidade da ceriménia para eles, 0 que no parece corto. © fato de que as ceriménlas (chamadas “intichluma") néo se destinam realmente ao aumento das espécies, 0 fato de 8B que Isto & uma racionalizagao, se demonstra pelo fato de que so levadas a efeito (diz Durkheim) mesmo quando um totem, 0 “wollunqua, 6 uma serpente inexistente, tida como nica @ incapaz de se reproduzir; e também porque a mes- ma cerlménla destinada ao aumento das espécles ocorre durante rites de iniciagéo e em outras ocasides. Tais ritos servem apenas para estimular certas Idélas @ sentimentos, ligar 0 presente a0 passado e o individuo ao grupo. A fi- nalidade alegada 6 completamente acessérla © contingente, como mais ainda se demonstra porque as vezes até mesmo as crengas que atribuem eficdcia fisica aos ritos estéo au- sentes, sem que isto altere nada. Os defensores de teorlas racionalistas da rellgido tém | considerado os conceltos @ crengas como os fatos ossen- clais da religléo, sustentando que os ritos sio apenas a ‘sua tradug&o externa. Mas, como j4 ouvimos de outros, & a “agéio" que realmente domina a vida religiosa, Durkheim | escreve: “Vimos que, se a vida coletiva desperta 0 pensamento religioso levando-o a certo grau de intensidade, Isto se dé porque ela faz surgir um estado de efervescéncia que mo- difica as condigdes da atividade psiquica. As energias vitais esto superexcitadas, as palxées mais ativas, as sensagoes mais fortes; algumas, até, aparecem apenas neste momento. (© homem deixa de se reconhecer a si mesmo, ele se sente transformado @ conseqiientemente transforma o melo que © clrcunda. Para entender as téo peculiares Impressées que recebe, ele atribui &s colsas com que esta em contato mals direto, propriedades que elas néo tém, poderes excep- cionais e virtudes que os objetos da experiéncia didria nfo possuem. Em uma palavra, acima do mundo real onde sua vida profana se passa, ele colocou um outro que, num certo sentido, no existe exceto no pensamento, mas ao qual ele atribui um tipo de dignidade mals alto aue o do 89 primeiro. Um mundo, portanto, ideal de duas maneiras”, Para que uma sociedade se torne consciente de si! mesma © conserve seus sentimentos no grau necessario de inten- sidade, 6 preciso que so retina © se concentre periodica- mente, Esta concentragtio provoca uma exaltagao da vida mental, que toma a forma de um grupo de concepgdes Ideais. Assim sendo, no 6 0 propésito declarado dos ritos que nos diz. de suas fungdes. Sua significado real 6, primeira- mente, congregar os membros do cl e, em segundo lugar, renovar, pela encenagao dos ritos nestas ocasiées de con- centrago, os sentimentos de solidariedade dos participan- tes do grupo. Os ritos geram uma efervescéncla na qual todos os sentimentos do individualidade so perdem ¢ as pessoas se sentem a si mesmas como sendo uma coleti- vidade, a partir © através das coisas sagradas, Mas, quan- do os membros do cla se separam, 0 sentimento de soli- dariedade lentamente diminul e deve ser racarregado pe- riodicamente por outra assembiéia @ pela repetigéo das ceriménias em que o grupo novamente se reafirma, Mesmo se os homens acreditarem que os ritos tém atuagao sobre coisas, é na realidade apenas a mente que se deixa “atuar”. Notemos que Durkheim nao esta dizendo aqui, como fa- zem autores emoclonalistas, que os ritos so levados a efelto para liberar estados emgcionais exaltados. So os ritos que produzem tais estados. Eles podem, portanto, neste aspecto, ser comparados aos ritos expiatérios camo 8 do luto, nos quals as pessoas procuram afirmar a sua {6 © cumprir um dever para com a sociedade sem que os- tejam sob qualquer tens%io emocional; esta, enfim, pode estar completamente ausente da ocasiéo. | Durlm, THE ELEMENTARY FORNS OF THE RELIGIOUS LIFE, p. 422, 90 Esta era a teoria de Durkheim. Para Freud, Dous 6 0 pa, para Durkheim, Deus 6 a sociedade. Se esta teoria ¢ suf cientemente boa para os aborigines australianos, se-lo-d tam. bém.para a religido em geral, pois (diz Durkheim) a roligiéia totémica contém todos os elementos de outras religides, Incluindo as mais avangadas. Durkheim fol ingénuo o bas- tanto para admitir isto, 0 que equivale’a dizer que o que 6 molho para o ganso 6 molho para o pato, Se a idéia do sagrado, da alma e de Deus, pode ser sociologicamente explicada no caso dos australianos, entéo, em principio, a mesma explicagéo & valida para todos os povos entre os quals as mesmas idéias so encontradas com as mesmas caracteristicas essencials. Durkhelm preooupava-se em ndo ser acusado de estar meramente repetindo 0 materialismo histérico, Demonstrando que a religiao 6 algo essencialmen- te social, ele nao queria dizer que a consciéncia coletiva soja um mero opifenémeno de sua base morfolégica, assim como a consciéncia individual néo é apenas uma mera eflo- rescéncia do sistema nervoso, As idéias religiosas sao pro- duzidas por uma sintese de mentes individuals reunidas em agdo coletiva, mas, uma vez produzidas, passam a tor vida prépria: os sentimentos, idéias, e imagens, “uma vez nascidos, obedecem a lels proprias”. Por outro lado, so @ teoria da religiéo de Durkheim esté certa, 6 ébvio que hinguém mals aceltara as crengas rellgiosas. Apesar do fato de quo elas, segundo ele mesmo disse, séo goradas pola vida social, sendo ao mesmo tempo necessérias a manutengéo da mesma. Isto 0 colooa nos cornos do um dilema, ¢ tudo 0 que poderia dizer para se livrar seria que, Jembora a religic no sentido espiritual soja condenada |uma assombiéia secular pode produzir idéias e sentimentoe \que terdo a mesma fungao; e, em apoio a esta idéia, ele cita a revolugéo francesa, com sous cullos & Patria, Li | berdade, Igualdade, Fraternidade @: Razdo. Pols néo 6 vor dade que om seus primeiros anos a revolugdo tornou estas ldéias sagradas, tornou-as em deuses, @ A propria sociedade entdo surgida em deus também? Ele esperou, como Saint- Simon © Comte, que & medida em que declinasse a roligiao espiritual, uma religiéo secular de tipo humanistico a subs- Uituisse. A tese de Durkheim 6 mais do que apenas concisa; ola 6 brilhante @ imaginativa, quase poética; e ele demonstrou boa percepgio quanto a um dos fundamentos psicolégicos da religiéo: a eliminagao do eu, a negagao da individuali- dade, a visio de que a Individualidade nao tem significagao ‘ou mesmo existéncia exceto enquanto parte de algo maior @ alheio ao eu. Mas receio ter de dizer mais uma vez que a teorla 6 também especulativa, O totemismo poderla ter surgido a partir do uma vida gregaria, mas nao ha provas de que assim tenha sido; e outras formas de religiéo po- deriam ter-se desenvolvido — como so apreende da teoria de Durkheim, efetivamente assim o fizeram — a partir do totemismo, ou do que ele chama de principio totémico; mas Rovamente, no h provas de que assim tenha sido. Podo- se admitir que as concepgées teligiosas devam manter alguma relagéo com a ordem social, estando, em certo grau, de acordo com fatos econémicos, politicos, morais & socials outros; @ mesmo que elas sejam um-produto da la social, no sentido de que nao poderia haver religléo sem sociedade, assim como néo poderia haver pensamento ou cultura de qualquer espécie. Mas Durkheim esta dizendo multo mais do que Isto. Ele afirma que idélas religlosas tais como as de elma, espfrito, o outras, sao projegdes da socledade ou de seus segmentos e se originam de condi- ges que fazem surgir um estado de efervescéncia. Meus comentarios deverdo ser poucos e breves. Embora varlas objegdes l6gicas e filoséficas pudessom ser levanta- das, eu prefiro basear os argumentos de acusacao no as- pecto das provas etnogréticas. Seré que elas corroboram @ rigida dicotomia que Durkheim impée acerca do sagrado 92 @ do profano? Eu néo crelo. Por certo, 0 que ele chama de sagrado © de profano pertencem ao mesmo nivel de experiéncia e, longe de serem nitidamente demarcados em seus limites de vigéncla, s&o tdo Intimamente tigados que se mostram quase insepardveis. Tais conceitos, portanto, nao podem, quer para o Individuo, quer para a alividade soclal, ser dispostos em departamentos fechados que negam um ao outro, deixando um de existir quando o outro entra ‘em cena. Por exemplo, quando alguma desgraga como a doenca é atribulda a algum erro prévio, os sintomas {isicos, © estado moral do Individuo envolvido e a intervengao es- piritual formam uma experiéncia objetiva unitaria, que di- ficilmente pode ser atomizada na mente. Meu método de veriticagéo para formulagées como esta & bem simples: averiguar se elas podem ser decompostas em problemas quo permitam a verificagéo através de pesquisa de campo ou se pelo menos podem ajudar numa classificagio de fatos observados. Jamais constatei que a dicotomia entre sagrado @ profano fosse de qualquer utilidade em nenhuma das duas diregbes. Pode-se também dizer aqui que as definigdes de Dur- kheim néo delxam muito espago para a flexibilidade de situagées, como por exemplo para o fato de que o que 6 “sagrado" pode sé-lo apenas em certos contoxtos @ em certas ocasiées, ¢ ndo em outras. Este aspecto j4 havia sido mencionado antes. Darei aqui um exemplo simples. O culto Zande dos ancestrais se organiza em tomo de san- tuarios erigidos no meio dos patios @ as oferendas sao postas neles durante cerlménias ou, 8s vozes, em outras ocasi6es. Porém, quando nfo estéo em uso ritual, para assim dizer, os Azande utilizam os santudrios como con- venientes escoras contra as quals repousam suas langas; ‘ou néo thes d&o a minima atengéio, Do mesmo modo, a demarcacdo do sagrado por interdigbes deve ser verdade Para muitos povos, mas néo pode ser universalmente valida, 93 como Durkheim supés — se é que estou certo em erer que 08 participantes dos complicados ritos sacrificials entre Povos do Nilo néo esto submetidos a qualquer interdigao, No que concere & prova fornecida pelos australianos, devo dizer que uma das fraquezas da posigéio de Durkhelm & 0 fato concreto de que entre os aborigines australianos 6 @ horda (@ a seguir a tribo) quo constitul o grupo cor Porado, no os clas, amplamente dispersos. Assim, se a fungao 6 manter a solidariedade dos grupos, que freqien- temente necessitam de um sentimento de unidade, entao deverdo ser as hordas ¢ tribos @ nao os clas, que deveriam efetuar os ritos geradores de ofervescéncia!, Durkheim per- Cebeu isto e tentou se esquivar respondendo — a meu ver Inadequadamente — que 6 precisamente por faltar coesao 08 clés, que néio 18m chefes nom territérios comuns, que a8 concentragées periédicas se tornam necessérias, Qual 6 0 Interesse de manter, através de ceriménias, a solida- riedade de grupos socials que no sao corporados © que no tém qualquer ago conjunta sendo nas ceriménias? . Durkheim preferiu defender sua tese com a prova do totemismo e quase que exclusivamente com o totemismo australiano. Ora, 0 totemismo australano 6 muito allpico 6 altamente especitico, © conclusées oblidas a partir dele, mesmo se precisas, nfo podem ser consideradas como validas para 0 totemismo em geral, Ademals, 0 fenomeno fotémico néo 6 0 mesmo em todas as partes da Austrélia, Durkheim comportou-se muito seletivamente em sua esco- tha de material, restringindo-se basicamento a Australia central © na maioria das vezes aos Arunta, Suas teorias nao levam em consideragéo que em outras partes do con- 1 olar que « teminoloia para os grupos polos dos abort upc pol loos sestaaco ‘no 8 apes entign: ead” Dich saber 8 aae's i nao, ord, anf ee, Yor‘'0. Unvoles tie Sy AND INTERTRIBAL RELATIONS IN AUSTRALIA, 1910, passim, a 94 tinente as coriménias “intichiuma” parecem ter um signi ficado bastante diverso, sem importancla equivalente, po- dendo mesmo inexistir de todo. Portanto, 0 totemismo entre outros poves ndo tem as caracterlsticas que Durkholm salionta mals marcadamente (tals como concentragdes, ce- riménias, objetos sagrados, desenhos, etc). A defesa de que 0 totemismo em outras regiées seja uma institulgao mais desenvolvida ou uma instituigéo em decadéncia 6 uma alegaggo que n&o podemos aceitar, uma vez que néo ha meios de saber algo a respeito da histérla do totemismo nem na Australia nem em parte alguma. A afirmativa de que o totemismo australiano seja a forma original de tote- mismo 6 muito arbitréria @ repousa na pressuposigtio de que a forma mais simples da religiéo ha de ser, necessaria~ mente a de povos com a organizagéo social e cultura mais elementares, Mas mesmo se aceitamos tal critérlo, deverta- mos levar em consideragio 0 fato de que alguns povos ca- gadores © coletores téo subdesenvolvidos teonologicamento quantos os australianos, ¢ com organizagao social bem mais simples, no tém totens (nem cls), ou os totens que pos- suem néo tém importancia para eles; mas so dotados, apesar de tudo Isto, de crengas @ ritos religiosos. Poderla- mos assinalar também que para Durkheim 0 totemismo ora essencialmente uma religiéo clanica, um produto deste ti- Po de segmentagdo social e que portanto, onde haja clés, haverdo eles de ser totémicos @ onde haver totemismo a sociedade tera uma organizagao & base de clés; uma su- osiggio em que ele esta enganado, pols sabe-se agora que existem povos organizados em cliis e sem totens e vice- versa‘. Efetivamente, como assinalou Goldenweiser, a afir- mativa de Durkheim segundo a qual a organizagio social dos australianos se faz & base de cls fol totalmente con- 1 Lowio, PRIMITIVE SOCIETY, 1921, p. 197. 95 trariada por provas etnogréficas, @ 86 este fato torna toda @ sua teoria questiondvel!. Assim, ao por énfase nas re- presentagdes figuradas das criaturas totémicas, Durkheim também se delxou vulnerével as poderosas argumentagdas de que em geral os totens no so, na realidad, represen- tados de modo figurativo, Pode-se dizer também que existe muito pouca prova de que os deuses da Austrdlia sejam sinteses de totens — muito embora isto seja uma tentativa esperta de se livrar da sua incmoda presenca, As vezes ficamos a penser sobre como néo teria sido tudo se Tylor, Marett, Durkheim @ todos os outros tivessom passado pelo menos umas poucas semanas entre os povos sobre os quais escreveram tio livremente. .. Menclonel alguns pontos que me parecem suficientes ara levantar dividas acerca da teorla de Durkheim se 6 que néo a invalidam completamente. Mais se poderia dizer, como se diz na critica devastadora de Van Gennep, que se torna ainda mais vigorosa e céustica & medida em que Durkheim @ seus colegas excluiram @ ignoraram o autor? Deverel, portanto, antes de passar rapidamente em revista algumas construgdes tedricas semethantes a esta que temos comentado, fazer um comentério final sobre a teoria da génese do totemismo — e, portanto, da religiao, em geral. Ela contrarla suas préprias regras de metodologla socio- 6gica, pois, fundamentalmente, oferece uma explicagéo Psicolégica para os fatos socials, © 0 proprio Durkheelm afirmou que tals explicagées sao invariavelmente erradas. Estava muito bem para ele desprezar os outros por julgarem que a religido derivasse de alucinagdes motoras, mas isto 6 exatamente 0 que ele fez. Nenhum malabarismo verbal 4 Goldenwoiser, RELIGION AND SOCIETY: A CRITIQUE OF EMILE DURKHEIM'S THEORY OF THE ORIGINS AND NATURE OF RELIGION, Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Methods, XII, (1917), 2A, Van Gennep U'état Actuel du probldme totémique, 1920, p. 40, 96 tal como 0 uso de palavras do tipo “‘intensidade” e “efer- vescéncia” pode esconder a evidéncia de que ele faz de- rivar a religido totémica dos “blackfellows" da excitagdo emocional de Individuos reunidos numa pequena multidao, isto 6, daquilo seria uma espécie de histeria das multidées. Algumas de nossas objegdes iniciais 0, neste aspecto, al- gumas feltas pelo proprio Durkheim, devem ser aqui situa- das. Qual 6 a prova de quo 0s “blackfellows” esto, durante a reallzag&io de suas ceriménias, afetados por um estado emoclonal particular? E se estdo, fica evidente que a emo- 80 6 produzida, como o préprio Durkheim assinalou, pelos ritos © crongas @ no o contrario. Assim, a emogo exalta- da, seja ela qual for, ¢ s9 6 que esta envolvida nos rituals, Poderia ser realmente um importante elemento dos ritos, dando-thes uma significagéo mais profunda na mente de cada individuo, mas dificilmente poderia ser uma explicagéo causal adequada para o ito enquanto fendmeno social. Tal argumentagao, como freqlentemente acontece entre argu- mentos sociolégicos, é tautolégica: como o problema da galinha @ do ovo. Os ritos oriam a efervescéncia, que criam as crengas, que levam & realizacao dos ritos. Ou o simples fato de haver uma reuniéo 6 que Ihes da origem? Portanto, fundamentalmento, Durkhelm faz surgir um fato social da psicologia das multidées. Efetivamente n&o 6 um grande salto, o que vai da teorla de Durkheim — embora ele so chocasse se ouvisse isto — a uma explicagao biolégica da religido, tal como a que Trotter parece propor; ela serla um subproduto do instinto grupal, do instinto de gregarismo, um dos quatro que avul- tam na vida humana (sendo os outros trés 0 de auto-preser- vagao, 0 do sexo ¢ 0 da nutricdo). Eu digo que esta 6 a tese que Trotter “parece” propor porque neste aspecto ele ndo é muito preciso; a Intima dependéncia para com o re- banho “compele o individuo na direcao de existéncias maio- 97 Tes quo a sua prépria, na direcao de algum ser abrangente através de quem ele encontrarla uma solugdo para as suas dificuldades © apaziguamento para seus desejos. O livro de Trotter é, no entanto, mufto mals uma polémica moral do que um estudo cientifico. Devemos assinalar nelo o fervor Idealistico (sociallstico) que se encontra no de Dur- kheim. Algumas das idélas que Durkheim oxpés em sou livro, _ foram desenvolvidas por seus colegas, por estudantes © outros que ele Influenciou. Se paso a comentar alguns doles e, ademais, apressadamente, 6 porque as presentes conferéncias tencionam mostrar diferentes manelras de olhar para 0 mesmo assunto ou problema, longo do pretenderem ser uma histéria completa de idéias ou catélogo amplo de escritores que sobre elas escraveram, Um dos mais conhe- cidos ensaios publicados na revista que Durkheim fundou © editou (L'ANNEE SOCIOLOGIQUE) era um estudo da li- teratura existente acerca dos esquimés, da autoria do seu sobrinho Marcel Mauss, em colaboragéo com M, H. Beu- chat®. © tema geral deste ensalo 6 uma demonstragdo da tese de Durkheim de que a religiéo 6 um produto da con- contragao social e se mantém viva as custas do gregarismo perfodico, de forma que o tempo, como as coisas, ganha dimonsées sagradas @ seculares. Nao precisamos entrar om detalhes: basta dizer que 0 autor mostrou como os esqui= mos, durante parte do ano, — o verdo — quando os mares esitio sem gelo, se dispersam em pequenos grupos familia- tes vivendo em tendas. Quando o gelo se forma ja néo thes 6 mais possivel procurar caga, de modo que passam esta 1 W. Trotter, INSTINCTS OF THE HERD IN PEACE AND WAR, quinta ed. (1920), p. 113, 2M, Mauss, ESSAl SUR LES VARIATIONS SAISONNIERES DES SOCIETES ESKIMOS: ETUDE DE MORPHOLOGIE SOCIALE, L’Annéo sociologique, 1X (1906). 98 parte do ano (0 inverno) em grupos maiores @ mais concen- trados em habitagdes comunais, varias famtitas ocupando um mesmo cémodo, de sorte que quando as pessoas se encontram numa fase de relagdes sociais mais amplas (sen- do, portanto, a ordem social entio néo apenas de diferen- tes proporgées mas também bastante diferente em arranjo estrutura), a comunidade 6 néo apenas um grupo de fa- milias vivendo juntas por conveniénolas, mas uma nova forma de agrupamento social em que os individuos se re- lacionam de modo diverso. Com este padréio alterado, surge uma diferente escala de leis, da moral e costumes, adap- tada as novas clrounstancias © que cessa durante 0 porlodo de disperséo, & quando se formam os grupos amplos que as cerim6nias religiosas anuals ocorrem; assim, poder-se-ia dizer quo os esquimés confirmam a tese de Durkheim’, Por mais engenhosa que possa ser tal exposigao, ela demonstra apenas que para a execugéo das cerlménias religiosas, so necessérias multas pessoas e boa parcela de tempo livre. Diga-se também que o argumento so refere a cirounstancias bastante diversas daquelas concernentes aos aborigines australianos, onde os membros do cla se retinem periodicamente para a realizagéo de suas cerimd- nias totémicas. Os esquimés se congregam por motivos diferentes, © 86 se dispersam por necessidade. Mauss, como Durkheim, afirmou que se pode formular uma lei a partir de um 86 experimento bem controlado, mas a verdade 6 que tal formulagdo nao é uma lei e sim uma hipétese; acontece que eu mesmo estudei um povo, os Nuer, entre 08 quais 0 perfodo de maior concentragao nao 6 aquele 1.0 ensalo do. Mauss fol publicado antes do aparecimento do LES FORMES ELEMENTAIRES DE LA VIE RELIGIEUSE, mas Durkholm Ja hhavla divulgado suas opinies antes de tangar este livro; # as pesquisas ‘© excritos dos dois (Mauss © Durkheim) so de tal modo entrelagadas, quo 6 dificil separar um do outro, em que ocorrem as ceriménias, 0 quo se dove a razées de conveniéncia, na sua maioria, Em outro ensaio da ANNEE, Mauss, juntamente com o excelente historiador Henri Hubert, tinha anterlormente dis- tinguido a magia da religiéo, como Durkheim, © realizara um exaustivo estudo daquela parte do sagrado — 0 magi- co —' do que Durkhelm néo tratou no seu THE ELEMENTA- RY FORMS OF THE RELIGIOUS LIFE; a mesma dupla de eruditos tinha também publicado, na mesma revista, uma magistral andlise dos sacrificios védico @ hebreut, Mas, em- bora magistral, como era a anélise, suas conclusées séo uma pega pouco convincente de metatisica soclolégica. Os deuses so representagdes de comunidades, so socledades concobidas Idealtstica ¢ Imaginativamente, Assim, as randn- clas através do sacriticlo nutram as forgas socials com energias mentais © morais. O sacrificlo 6 um ato de abno- gacdo através do qual o Individuo reconhece a sociedade; ele leva as consciéncias particulares a presenga de forgas coletivas, representadas por seus deusos, Mas embora o ato de abnegacéo Implcito em qualquer sacrificio sirva para manter as forges coletivas, 0 individuo também en- contra vantagens no ato, porque nele a forga total da so- cledade Ihe transmitida além da obtengéio de meios para recuperar equilfbrios perdidos ou perturbados; um homem, através da expiagao, se redime da reprovagao soclal — con- sogiiéncia de erros — e reingressa na sociedade. Assim se Preenche a func&o social do sacrificlo, tanto para o Indl- viduo, quanto para a coletividade. Tudo Isto me parece sor uma mistura de especulagées, conjecturas e reificagdes Para as quais no hé provas. Sao conclusées nfo derivadas 1H, Hubert © M. Mauss, ESQUISSE D'UNE THEORIE GENERALE DE LA MAGIE, L’Annéo Sociologique, Vil (1904). 2.11 Hubert and Mauss, ESSAI SUR LA NATURE ET LA FONCTION DU SACRIFICE, L'année Soclologique, LL, 1899, 100 mas impostas a uma andlise brilhante do mecanismo do sacrificio ou, talvez devéssemos dizer, de sua estrutura I6- gica ou sua gramatica, Quero mencionar também, como exemplos do método soclolégico, dois notéveis ensalos de um jovem mambro do grupo da ANNEE, Robert Hertz'. Num desses ensaios, ele relaciona a dicotomia sagrado-profano de Durkhelm as idélas de direlto e esquerdo representadas pelas duas m&os que, em todo © mundo, séo tidas como opostos, sendo a direita © bem, a virtudo, a forga, masculinidade, ocidente, vida, etc., @ a esquerda 0 contrario de tudo Isto. O outro ensaio 6 uma tentativa de explicar por que tantos povos tm néo somente maneiras de se descartarem dos sous mortos, 0 que 89 comproande faciimente, como ainda possuem cerl- mOnlas mortuérias e, especialmente o costume, existente na Indonésia, de dar um “‘duplo” tratamento aos mortos, O corpo 6 deixado temporariamente até se decompor, quando entdo se recolhem os ossos, a seguir colocados no ossud- rio da familia, Este processo representa, no simbolo material do corpo em decomposicao, a prolongada passagem da alma do morto do mundo dos vivos para o mundo dos fantasmas, uma transigéo de um estado para outro, os dois movimentos correspondendo a um tercelro: a tibertagio dos vivos do suas ligagdes para com 0 morto, Nas segun- das exéquias, os trés movimentos atingem harmonicamente © sou climax © seu término, S40, na realidade, facetas di- ferentes de um mesmo processo, 0 ajustamento da socie- dade @ perda de seus membros, um proceso lento porque as pessoas ndo so reconciliam facilmente com @ morte, soja ela encarada como fato fisico ou moral. Na Inglaterra, as teorlas sociolégicas da religido, espe- clalmente a de Durkheim, exerceram grande Influéncia sobre 1 R, Hartz, DEATH AND THE RIGHT HAND., 1950. 101 uma geragiio de eruditos cléssicos como Gilbert Murray, A. B. Cook, Francis Conford outros, fato admitido por Jano Harrison, que lida com a religiio grega @ por extensiio com toda a religido, em termos de pensamento e sentimento coletivos. Ela seria o produto da efervescéncia induzida Pola atividade durante a coriménia, a projegdo da emogao do grupo, 0 éxtase do grupo “thiasos”, Embora a autora confesse que “os selvagens me cansam e desagradam, talvez porque eu passe longas horas lendo a respeito de seus tediosos hébitos”, ela transplanta para solo grogo a Suposta mentalldade dos aborigines. & la, em formas grogas, encontramos os mesmos velhos frutos... Os sacramentos “86 podem ser entondidos & luz do pensamento totémico"!, Os fendmenos religiosos gregos “dependem da ou expres- sam © ropresentam a estrutura social dos praticantes do culto"’. “A estrutura social, © a consciéncia coletiva que 8e manifesta nela, estéo por trés de toda religiéo"’. A re ligléo baquica se baseia na emogao coletiva do “thiasos”, Seu deus 6 uma projegao da unidade grupal. © Dr. Verrall, om seu ensaio acerca das Bacantes de Euripides, acerta no alvo em um luminoso fragmento de tradugéio: — 0 éxtase dos iniciados, diz ele, jaz essencialmente nisto: “sua alma esta congregacionalizada’. © homem também reage cole- tivamente ao universo: “vimos sua emogio se estender, Projetar-so aos fenémenos naturais © notamos como esta projegao faz nascor nele concepgées tais como as de mana, orenda”s, com as quals a autora compara as concepgoes gregas de poder (‘‘kratos”) © forga ("bia"). O totemismo “6 uma fase ou estigio do pensamento coletivo pela qual 1 Harrison, op. elt. p, XI, 2 Ibidem p. XVI 3 Ibidem, p. XVII, 4 Ibidor p48, 5 Ibidem p. 73, 102 @ mente humana tem que passar”!. O sacriffcio @ 0 sacra- mento sdo “apenas formas especiais de manipulagéo do “mana” que nés concordamos em chamar de magia’, “A religido tem portanto em si dois elementos: o costume social, @ consciéncia coletiva, ¢ a énfase @ representagéo desta consciéncla coletiva, Contém, portanto dois fatores intima- mente ligados: 0 ritual (costume, ag&o coletiva) @ 0 milo ou teologia, representagdo da emogo coletiva, consciéncia coletiva. E, ponto de extrema importdnoia, so ambas in- cumbentes, interdependentes”s. As falhas da teorla do Durkhelm, que se devem basica- mente & procura que ele faz da géneso @ causa da religido, se acentuam ainda mais nos esoritos de outro erudito clés sico, muito conhecido Francis Cornford, que também deve muito @ Durkheim, Também para ele o individuo nao conta, salvo enquanto organismo, nas comunidades mais primiti- vas. Em outros aspectos, sé 0 grupo importa. E 0 mundo da natureza 6 categorizado no padréo da estrutura do gru- po social. No caso da religiéo, as almas @ deuses de um tipo ou de outro sao apenas representages da mesma es- trutura, Em ambos os casos, a manelra de conceber a na- tureza © as crengas religiosas, as categorias do pensamen- to so projegdes da mente coletiva. A alma ¢ a alma cole- tiva do grupo; 6 a sociedade mesma, que esta por dentro @ por fora do individuo a ela pertencente; e 6 portanto imortal pois, embora seus membros individuais morram, @ sociedade perdura. Da nogtio de alma desenvolve-se a re- presentagéio de um deus, quando um certo grau de com- plexidade politica, individualizagéo © sofisticagdo. 6 alcan- gado. Em ditima instancia, porém, todas as representagdes religiosas so iluses causadas polo que Conford chama 1 Harrison, op. cit 2 Ibidom p. 134, 8 Ibidom p. 486, p. 122, 103 de sugestéo do rebanho. Assim ele conolui que “a primeira epresentacao religiosa € uma representagéo da propria Conscléncia coletiva — 0 Gnico poder moral que pode vir & ser sentido como imposto de fora © que assim sendo, precisa ser representado”, Embora o enfoque de Durkheim em relagdo a religléo Possa ter sido valioso, como 0 enfoque sociolégico em geral, sugerindo novas maneiras de encarar os fatos da an- {ighidade cléssica, deve-se admitir que afirmativas tals como 88 que mencionel aqui no sao sendo conjecturas, @ mais, ue elas se aventuram até bem mals longe do que o per. mite a especulacao legitima. As provas Invocadas para apolé-tes so, em qualquer padrao oritico, insuticlentes © duvidosas, Nos tempos moderos, 0 maior expoente da intorprotas $0 soclolégica das religises primitivas deste lado do Canal {oi 0 durkheimiano inglés A. R. Radclife-Brown®, (Digo dur- Khelmiano mas acho que ele deveu igualmente ou mals a Herbert Spencer). Ele tentou restaurar a teorla durkheimia- na do totemismo para torné-la mais abrangente, embora 80 fazé-lo, na minha opiniéo, tenha-a tornado num dis« Parate’, Ele quis demonstrar que o totemismo ora apenas uma forma especial de um fenémeno universal na sociedade humana, constituindo-se tet geral que qualquer objeto ou fato que tenha importantes efeitos sobre o bem-estar mate- rial ou espiritual de uma sociedade tenda a se tornar ob- Jeto de uma atitude itualistica (uma generalizagao muito 1 F. M. Conford, FROM RELIGION TO PHILOSOPHY, 1912, p, 82, 4 {Na andllso da posigdo do Redclif-Brown, 6 importante seber que le terminou suas pesquisas entre os lhéus de Andaman antes do ce femillarzar com os escrios de Durkheim, sob a influgncia dos ‘quale le viria a publicar os sous resultados. SAR. Radciife-Brown, “THE SOCIOLOGICAL THEORY OF TOTE- MISM", Fourth Paciic Science Congress, Java, 1929, Biological Papore, pp. 296-800, 104 w duvidosa). Assim, 0 povo que depende da caga da coleta Para sobreviver tem uma atitude ritual para com os animais € plantas que Ihe sojam mais ttels. 0 totemismo surge desta atitude geral quando comega a segmentagao social. Na sua discussao do totemismo, Radclitfe-Brown divergiu claramen- te da explicagao que dava Durkheim do sua génese a par- tir da psicologia das multidées; porém, em outras partes, como por exemplo em sua descrigéo das dangas entre os lhéus da Andaman, ele assume praticamente a mesma po- sigo que Durkheim‘. Na danga, diz ele, a personalidade do individuo se submete a acdo que sobre ole exerce a comunidade, © 0 concerto harmonloso dos sontimentos Individuals com suas ages produz uma unidade maxima e maxima concordancia dentro da comunidade, 0 que 6 in- tensamente sentido por cada um de sous membros, Este Pode ou néo ser o caso entre os Andamaneses, mas em um de meus primeiros trabalhos fui obrigado a protestar contra a aceitagao da afirmativa como uma generalizagao, Porque as dancas que observel na Aftica Central eram uma das mais freqentes ocasides em que imperava a desarmo- nia; e minha experiéncia subseqiiente confirmaria meu ce- ticismo de jovem. A forca de uma corrente se pe a prova através do seu elo mals fraco. Vemos nos escritos de Radcllife-Brown quéio Insatisfatérias podem se mostrar estas explicagées sociolé- gicas dos fendmenos roligiosos. Em uma de suas iltimas conferénclas, (a Henry Myres Lecture)? ele diz que a reali- gido ¢ sempre a expresso de uma sensagéo de depen- déncia para com um poder moral ou espiritual fora de nés mesmos: 0 que 6 se deixarmos Schleiermacher e outros filésofos parte, um lugar-comum de pilpitos... Mas Rad- "7 om, THE ADAMAN ISLANDERS, 1922, 246 2 Radelife-Brown, RELIGION AND SOCIETY, Journal of tho Royel Anthropological Instituto, LXV (1945). 105 cliffe-Brown estava tentando formular uma proposigiio so- ciolégica que val muito além deste conceito vago @ geral. Se a tese de Durkheim devesse ser demonstrada, verificar- se-ia, que a concepgao do divino varia de acordo com as diferentes formas das sociedades, uma comprovagéo pela qual Durkheim nao se interessou. Assim, diz Radcliffe- Brown, desde quo a religiio tem a fungdo de manter a solidariedade da sociedade, ela deve varlar em forma com 08 diferentes tipos de estrutura social. Nas sociedades com sistema do linhagem, deveremos encontrar o culto de an- cestrais. Os hebrous o os estados-oidade de Grécia e Roma tinham religiao nacional, de acordo com seus tipos de es- trutura polltica, Isto 6 realmente dizer, como fez Durkheim, que as entidades postuladas pela religiéo nao so sendo a sociedade mesma @ o raciocinio é, na melhor das hipéteses, apenas razoavelmente aceitével. Quando deixa de ser uma mera reafirmagéo do ébvio, ele 6 mult freqdontemente contrariado pelos fatos. Por exemplo, o culto de ancestrais 6 freqentemente a religiio de povos que néo tém linha- gens, como & 0 caso de muitos povos africanos; e talvez © mais perfelto exemplo de um sistema de linhagem seja © dos Arabes beduinos, que séo mugulmanos. E néo 6 ver- dade que tanto o cristlanismo quanto o islamismo foram adotados por povas com tipos bem diferentes de estrutura social? Existem graves objegdes a todas ossas teorias sociolé- gicas (ou deverfamos dizer sociologisticas?) que temos es- tado considerando, inclusive quanto a inadequada coleta de dados que, como eu disse antes, so freqiientemente con- fusos @ geradores de confusdo. Entéo, temos novamente que enfatizer aqui, 08 exemplos negallvos néo podem- ser simplemente ignorados. Eles devem ser Incorporados & analise da teoria proposta, ou entéo 6 melhor abandonar~ @ teoria. Como encaixar os povos primitives que tam cls mas ndo tém totens? Os que créem na sobrevivéncia da 106 a= alma, mas nao tém segundas exéquias ou ritos mortudrios? Os que ndo assoclam a orientagao correta a qualldades mo rais superiores? Os que tém linhagens porém nao culto de ancestrais? E assim por diante. Na ocasiaio em que todas as excecées estiverem registradas @ verificadas, 0 que sobrar das teorias hd de ser pouco mais do que especulagdes razodveis de um carater téo vago e geral que ser pouco © seu valor cientifico, tanto mais que ninguém sabe o que fazer dos resultados, pois nada se podera confirmar nem Regar numa andilise final. Se alguém quisesse testar a toorla do Durkheim ¢ a de Mauss acerca da orlgem e significagao da religiao, como conseguitia obter suporte para elas ou demonstrar que estéio erradas? Se questiondssemos a ex- plicago que Hertz da das duplas exéquias, coloca-se o mesmo problema, Como saber se a religiéo mantém ou nao @ solidariedade de uma sociedade? Todas essas teorias tanto podem ser verdadeires como falsas. Podem parecer claras @ consistentes mas tendom a ridicularizar Investiga- ‘ges mais profundas, porque a medida que vo alm da simples descricéo dos fatos © fornecem explicagées, por outro lado como que evitam a verificagéo experimental. A suposigfo de que um certo tipo de religié decorre de ou acompanha um certo tipo. de estrutura social s6 terla_um alto grau de probabilidade se se pudesse provar historica- mente néo apenas que as alteragdes na estrutura_social ‘Se acompanham de alteragdes no pensamento religioso, mas também que esta correspondéncia seja regular. Ou se se pudesse demonstrar que todas as sociedades de um certo tipo tém sistemas religiosos semelhantes, o que para Léw- Bruhl era um axloma; @ sua contribuigéio neste assunto sard o toma da préxima conteréncia, Em conclusdo, devemos chamar a atengdo para algumas ‘semelhancas que hé entre certas teorias que mencionamos © 08 escritos marxistas, ou pelo menos alguns deles, que s casos @ de mullos modos apresentam a mais 407 linear, direta @ Iticlda exposigio de um ponto de vista so- ciolégico. A religiéo é uma forma de “superestrutura” social, um “espelho” ou “roflexo” das relagdes socials que re- Pousam na estrutura econdmica bésica da sociedade. As nogées de espirito, alma, etc., derivam de um tempo em que havia Iideres de cla, patriarcas, “em outras palavras, quando a diviséo do trabalho levava a segregac&o do labor administrativo™, Assim, a religiéo comega pelo culto de ancestrais @ dos mals velhos do cla: na origem, isto é um “reflexo das relagdes de producdo, principalmente daquelas entre senhores @ escravos, e a “ordem polltica da socie- dade" por elas condicionada”®, Assim, a religido tende sem- pre a tomar a forma da estrutura econdmico-politica da sociedade, embora possa haver um lapso de tempo no ajustamento de uma A outra. Numa socledade formada por clas frouxamente entrelacados, a religiao assume a forma do politetsmo; onde ha uma monarquia centralizada, ha um deus nico; onde houver uma republica comercial escrava- gista (como em Atenas, no século VI A.C), os deuses se organizam como numa repdblica. E assim por diante. E evi- dentemente verdade que as concepgdes religiosas dovem forgosamente derivar da experléncla, e a experléncia das relagdes socials deve fornecer um modelo para tals con- cepgées. Esta tese pode, polo menos ocasionalmonto, ox- plicar as formas conceituais assumidas pela religido, mas no suas origens, suas fungdes, sou significado. Em qual- quer caso, nem a etnografia nem a histérla comprovam a tese. &, por exemplo, falso — ao contrario do que afirma Bukharin — que durante a Reforma os principes governan- tes se alinhassem unanimemente ao lado do papa’. 1 Ni Bukharin, HISTORICAL MATERIALISM, A SYSTEM OF SOCIO- Loay, 1925, p. 170, 2 ibldem’ pp. 170-1, 8 Ibidem p, 178, 108 Conquanto no me seja possivel discutir mais demora- damente 0 assunto aqui, eu dirla que entre a escola fran- cesa de sociologia @ os tedricos marxistas existe, no que concerne & abordagem do estudo dos fendmenos sociais, muitos pontos comuns, embora com roupagens diferentes. Embora os teéricos marxistas considerassem Durkheim um Idealista burgués, a verdade & que ele poderia multo bem ter escrito 0 famoso aforlsma de Marx segundo 0 qual néo a consciéncia do homem que determina sua esséncia mas sim 0 seu ser social que determina sua conscléncla. Bu- kharin cita Lévy-Bruhl com aparente aprovagao. E é a este que nos referiremos a seguir. 109 LEVY-BRUHL Nenhuma revisdo das teorias da religido primitiva estaria apropriada se néo devotasse especial atenglio aos volu- mosos escritos de Lévy-Bruhl acerca da mentalidade pri- mitiva, uma expresséo que deriva do um de seus livros, LA MENTALITE PRIMITIVE. Suas conclusdes sobre a natu- reza do pensamento primitivo foram por muitos anos um assunto de acesa controvérsia, ¢ muitos antropdlogos da época se sentiram compelidos a abordé-las. Apés expor e criticar suas opiniges, farei uma breve reviséio do que Pa- reto tem a oferecer as nossas questées, em parte por ser ele um acesso util ao estudo de Lévy-Bruhl, e em parte porque 0 que ele tem a dizer serve como uma ponte efi- ciente na diregao da discusséo geral e do resumo que se the seguird. Lévy-Bruhl era um filésofo que ja tinha erguido uma grande reputagdo através de livros notévels sobre Jacobi Comte antes de voltar sua atengdo, como aconteceu com seu contemporaneo Durkheim, também filésofo, para 0 es- tudo do homem primitive. A publicagdo do seu LA MORALE ET LA SCIENCE DES MOEURS em 1903 marca a mudanga 11 dos sous Interesses na diego do estudo da mentalidade primitiva, 0 que vitia 8 ser sua dnica preocupagao até sua morte, em 1999, Embora suas suposigdes fundamentals se- jam sociolégicas, sendo portanto possivel classifica-lo entre aquoles autores de que estive falando, Lévy-Bruhl no se ajusta multo faciimente a esta categoria, e sempre recusou sua incluso no grupo de Durkheim; portanto, 6 apenas num sentido formal que ele pode ser chamado, como faz Webb, um dos colaboradores de Durkheim‘. Ele conservou- se mais um filésofo, puro e simples, dal seu interesse se voltar mais para os sistemas primitives de pensamento do que para as institulgdes primitivas. Afirmava que se pode comegar 0 estudo da vida social tdo legitimamente pela andlise das maneiras de pensar quanto pela andlise das formas de comportamento. Talvez possamos dizer que ele as estudou basicamente como um Iégico, pols a questéo da légica € fundamental em sous livros, como se deve, aliés, esperar que seja em qualquer estudo dos sistemas de pensamento, Seus primeiros dois livros acerca dos povos primitives traduzidos para o inglés sob os titulos de HOW NATIVES THINK @ PRIMITIVE MENTALITY expunham a teoria geral do pensamento primitivo através da qual seu autor se tor- Rou to conhecido. Seus trabalhos ulteriores eram amplia- 960s destes dols, embora ele parega ter modificado len- tamente sua visio original & luz das moderas pesquisas de campo; ele era um homem modesto e humilds, Ao tim do sua vida, ele pode ter modificado sua posic&o ou pelo menos ter considerado esta possibilidade, so 6 que podo- mos julgar a partir dos seus CARNETS, péstumos. Seja como for, foram suas opinies do modo como apareceram 16. C. J. Webb, GROUP THEORICS OF RELIGION AND THE INDIVIDUAL, 1918, pp. 13 0 14, 112 ‘em seus livros inicials que formaram o corpo de sua notével contribuicéo tedrica & antropologia; e & a respeito delas que falarel. ‘Assim como Durkheim, ele recusa a orientagzio da escola inglesa por tentar ela explicar os fatos socials através de processos individuals de pensamento (processos da prépria escola) que so 0 produto de condigdes diferentes daquelas que moldaram as mentes que se pretende compreender. Os eruditos pertencentes a esta escola se auto-interrogam so- bre como teriam eles préprios chegado as crengas e pré- ticas dos povos primitivos, @ depois admitem tacitamente que os primitives chegaram a tais resultados seguindo os mesmos passos. & sempre indtil tentar interpretar as men- tes primitivas em termos de psicologia individual. A menta- lidade do individuo deriva das representagées coletivas de sua socledade, para ele, obrigatérias estas representagdes, Por sua vez, sao fungao das instituicdes. Conseqiientemen- te, certos tipos de representagdes e portanto certas ma- neiras de pensar, pertencem a tipos determinados de estru- tura social. Em outras palavras, assim como variam as es- truturas socials, variam também as representagdes @ con- sequentemente 0 pensamento individual. Cada tipo de so- ciedade tom, portanto, seu tipo distinto de montalidade, uma vez que cada uma tem seus costumes e Instituicdes especificos, 0s quals so, fundamentalmente, apenas um certo aspecto das representagées coletivas. Estes costumes @ Instituig5es so, por assim dizer, a soma das representa- 960s considerada objetivamente, Lévy-Bruhl n&o quis dizer ‘com Isto que as representagdes de um povo séo menos reais do que suas instituigdes. Mas as sociedades humanas podem ser classificadas se- gundo varios tipos diferentes @ no entanto, diz Lévy-Bruhl, julgando da maneira mals ampla possivel, existem dois tipos principais: — 0 primitivo @ 0 civilizado, com dois pensa- mentos correspondentes @ opostos a eles assoclados, pelo 13 que podemos falar de mentalidade primitiva @ mentalidade civilizada; @ estas so, diferentes néo apenas em grau mas também em qualidade. Observar-se-4 que Lévy-Bruhl pro- cura enfatizar as diferengas entre os povos primitives @ os civilizados; esta ¢ talvez a mais importante observagéo a fazer acerca do seu posicionamento teérico e 6 © que Ihe d& muito de sua originalidade. Por varias razées, multos dos que escreveram acerca dos povos primitivos inclinaram- se a por énfase nas semelhangas (ou no que thes parecta ‘serem semelhangas) entre os primitivos e nés outros; Lévy- Bruhl achou que seria igualmente correto chamar a aten- cdo para as diferengas. Elo 6 freqientemente criticado por do ter percebido 0 quanto nos parecemos com os povos primitivos em muitos aspectos; mas tal critica perde multo de sua forga desde que reconhegamos a intengao que o norteava; ele queria realgar as diferengas e, para torné-las mais claras, dirigiu 0 foco sobre elas e deixou as semelhan- as na penumbra. Ele sabia que estava incorrendo em dis- torcées, no caso, o que algumas pessoas chamam de cons- trutor ideal, mas nunca distargou isto, e 0 seu procedimento 6 motodologicamente justificavel. Nés na Europa, diz ele, temos por trés de nés muitos séculos de andlise © especulagao intelectual rigorosas. Logo, somos orientados logicamente, no sentido de que normal. mente procuramos as causas dos fenémenos em processos naturals; e mesmo quando nos defrontamos com um fend- meno que nao podemos explicar cientificamente, estabele- cemos que assim & porque nosso conhecimento 6 ainda deficiente. © pensamento primitivo, porém, tem um cardter completamente diferente. Ele so orienta na directo do so- brenatural, Diz Lévy-Bruhl: “A atitude da mente do homem primitivo 6 bem diversa. A natureza do melo em que cle vive se Ihe apresenta de modo muito diferente. Todos os objetos © seres pertencem a uma rede de participacées e exclusées misticas. £ 0 que constitui suta toxtura © sua or- 14 dom, Estas imediatamente se impdem a atengéo do homem Primitivo e a dominam. Se um fendmeno parece a ele in- teressante @ se ele nao se contenta, por assim dizer, om apenas, percebé-lo, passivamente © sem reagdo, pensar& imediatamente, como por agao de um reflexo mental, num Poder oculto ¢ invisivel do qual o fendmeno é apenas uma manifestagao”’, Se se perguntar por que os primitivos néo mergulham, como nés fazemos, na procura das conexdes causais ob- Jetivas, a resposta seré que cles no podem fazé-lo, uma vez que suas representagées coletivas so pré-légicas 0 misticas. Estas afirmativas foram recusadas por antropélogos bri- tanicos, cuja tradigéo empirica leva a quo desacreditem de qualquer coisa que tenha a natureza da especulagio filoséfica. Lévy-Bruhl, para eles, 6 apenas um tedrico de gabinete que, como os sous colegas franceses, nunca viu um homem primitivo © multo menos chegou a falar com algum deles. Acho que posso declarar que sou um dos Poucos antropélogos aqui e na América que tomaram sua defesa, ndo porque eu esteja de acordo com ele mas por- que sempre me pareceu que um erudito deva ser criticado pelo que disse @ nao pelo que se supde que ele tenha dito. Minha defesa tem portanto de ser exegética* uma tontativa de explicar v que ele pretendeu dizer com suas express6es- chave © seus conceitos-chave — que tanta hostilidade des- pertaram. Tais expressées © conceitos sdo por exemplo, “pré-l6gico", “mentalidade", “representag6es _colotivas” “m{stico” © “participagées". Esta terminologia tora seu pensamento obscuro, pelo menos para um leitor inglés, do 1 L, Lévy-Brull LA MENTALITE PRIMITIVE, 14% digo (1947), pp. 10. 2 EE. Evans-Prtchard, “Lévy-Bruht's Thoory ot Primitive Mentality", BULLETIN OF THE FACULTY OF ARTS, Egyptian University, (Cairo), 1904, 115)

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