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PODER CONSTITUINTE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO Alexandre Bernardino Costa Professor Adjunto da Universidade de Brasilia ~ UnB Doutor em Direito Constitucional pela UFMG Resumo: Considerando as profundas modificagées sociais ¢ as alterages na concepciio de ciéncia e de direito, o autor trabalha, em uma abordagem transdisciplinar, o problema da tenso entre democracia e constitucionalismo. Na andlise, 0 autor, mantendo a sua tradigZo intelectual, critica a separagdo entre constitucionalismo e democracia, aponta situagées de autoritarismo na praxis e na teoria constitucional, sustentando, enfim, um poder constituin- te em construgo, pela sociedade e na rua, um direito achado na rua. Palavras-chave: Poder Constituinte; democracia; constitucionalismo; di- reito achado na rua. PODER CONSTITUYENTE EN EL ESTADO DEMOCRATICO DE DERECHO Resumen: Considerando las profundas modificaciones sociales y las alteraciones en el conceptismo de ciencia y del derecho, el autor trabaja, en un abordaje tras-disciplinar, el problema de la tension entre demo- cracia y constitucionalismo. En el andlisis, el autor, manteniendo su tradicion intelectual, critica la separaci6n entre constitucionalismo y democracia, apunta situaciones de autoritarismo en la praxis yenla teoria constitucional, sosteniendo, en fin, un poder constituyente en construccién, por la sociedad y en la calle, un derecho encontrado en la calle. Palabras clave: Poder Constituyente; democracia; constitucionalismo; derecho encontrado en la calle. Veredas do Direto,BeloHorizont,«v.3-n.§ + p. 91-45. Janeiro -Junho de 2008 31 PODER CONSTITUINTE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO A temética do poder constituinte tem sido objeto de reflexdo por parte de cientistas politicos, juristas ¢ socidlogos desde a sua concepgao, esbocada na prética constituinte norte-americana e elaborada por Steves! no século XVIII, no curso da Revolugiio Francesa. Teoria de cunho claramente iluminista, afirma apossibilidade de se criar uma ordem juridico-politica ex novo, rompendo total- mente com o passado, inaugurando o futuro pelo préprio ato presente da ruptura politica. Embora diretamente tributério dessa pretensio racional iluminista ex- cessiva, foi precisamente esse 0 cerne da teoria mantido intacto ao longo de mais de dois séculos de experiéncia constitucional”. Os tedricos do poder constituinte possuem tamanha dificuldade de lidar com a idéia desse poder que usualmente ela € apresentada por meio de metéforas como as forgas da natureza, e é pouco trabalhada em termos conceituais3. Assim Sanches Agesta, por exemplo, se refere ao conceito: O poder constituinte nfio pode ser localizado pelo legislador, nem formulado pelo fildsofo, porque nao cabe nos livros € rompe 0 quadro das Constitui- ‘ges. Surge como 0 raio que atravessa a nuvem, inflama a atmosfera, fere a vitima e desaparece* sa abordagem aproximativa ¢ indicativa do fendmeno sera des- crita por NikLAs LUEMANN, de modo incisivo e nada mitico, como a invengao do mecanismo de acoplamento estrutural entre o sistema do direito ¢ o da " Ser utilizada a0 longo do trabalho a grafia do nome do autor francés sem acentos, seguindo a orientagdo de PasQuaLe Pasquino: “L’ortographe sans accents samble la plus vraisemblable; cf. Mathiez (Albert), “Liorhographe du nom de Sieyes”, Annales historiques de la Révolution Francaise, 2, 1925, p. 487." Emmanuel Sieyes, Benjamin Constant € 0 governo dos modernos: contribuigdo a histéria do conceito de representacdo politica. Belo Horizonte. 1994, p. 214. 2 “Las revoluciones del fin del siglo XVII, primero la americana y después la francesa, representan cen este sentido un momento decisivo en la historia del constitucionalismo, porque sitéan en primer plano un nuevo concepto y una nueva préctica que estén destinadas a poner en discusién la oposicién entre 1a tradici6n constitucionalista y la soberanfa popular. Se trata, en pocas palabras, del poder constituyente que las colonias americanas ejercieran primero en 176, con la finalidad de declarar su independencia de la madre inglesa y, después, en los afos siguientes, con la finalidad de poner en vigor las constituciones de las distintos Estados y la constitucién federal de 1787. Poder constituyente que los mismos revolucionarios franceses ejercitaran a partir de 1789, con la finalidad de destruir las instituciones del antiguo régimen y de generar una nueva forma politica.” FIORAVANTI, Maurizio. Constirucién: de la antigiiedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira, Madrid: Trotta, 2001, p. 103. > Sobre mudanga conceitual e politica na histéria, ver POCOCK, J. G. A. Polites, language and time: essays on political thougth and history. Chicago: University of Chicago Press, 1989. ¢ FARR, James. Conceptual change and constitutional innovation. In: BALL, Terence e POCOCK, I.G.A. (ed.). Conceptual change and the constitution. Kansas: University Press of Kansas, 1988, 1s. PAGESTA, Luts Sanches, Principios de teora politica, 6, ed. Madeid: Nacil, 1976, p. 363 32 \Voredes co Direto,BeloHorzont,-v.3+n.5+ p.Gt-45. Janeiro ~Junho de 2006 Aloeanste Bernardino Gosia politica: a Constituigao que, a um sé tempo, os diferencia e articula, ocultan- do, através da distingao entre direito constitucional eo restante do direito, 0 paradoxo de que na modernidade o direito cria a si préprio, a violéncia institucionalizada cria o direito. E mediante a Constituigao que a politica, a0 se deixar regular pelo direito, pode receber a legitimidade que o direito é capaz de Ihe fornecer, e que, por outro lado, as normas gerais e abstratas do direito moderno podem ganhar a densificagdo social que somente 0 aparato politico da organizacao estatal pode Ihe emprestar’, Assim, a teoria sobre 0 momento mesmo da criagio origindria de uma ordem jurfdico-politica que inicialmente focalizava essa forga instituinte como vinculada e adstrita 4 implementagdio do que denominava direitos na- turais do homem, pela inveng’io mesma da Constituigdo, logo comega a se emancipar da compreensio jusracionalista, descartando a idéia de direito natural, € a reduzir a idéia de direito 4 do ordenamento positivo. A obra de KELSEN pode ser vista como 0 apice dessa trilha que comeca a ser percorri- da no inicio do século XIX. No segundo pés-guerra, as tentativas frustradas de retomada da idéia de direito natural seguiu-se a compreenstio mais plau- sivel de que a nova concepcio de legitimidade e a idéia do novo direito que dao forga ao movimento de ruptura institucional antecedem a sua posit tivagiio, autolimitando e autocondicionando 0 exercicio do proprio poder constituinte. A proposta constitucionalista que, como demonstram Froravanti* e outros, sempre fora vista como oposta A democratic, com o aprendizado decor- tente de sua pr6pria vivéncia hist6rica, nao mais pode ser sequer pensada fora do contexto democratico e nem a democracia pode ser assim concebi- da se nao se der nos limites constitucionais. A democracia sem constitucionalismo é a pior das ditaduras, tal como provado pelos regimes totalitarios do século XX, e o constitucionalismo sem democracia é 0 seu Oposto, 0 governo arbitrério, totalitdrio. Essas idéias so co-originarias reciprocamente complementares. Desta forma foi que, conquanto preservado o cerne da teoria do poder constituinte origindrio — que se destina a explicar as rupturas institucionais que originam novas ordens juridico-politicas -, ela sofreu ao longo da historia do constitucionalismo profundas alteragdes de significagdo * LUHMANN, Niklas. La constituzione come acquisizione evolutiva, In: ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jing. 1! futuro della constituzione. Torino: Einaudi, 1996. p. 83 ss. “ FIORAVANTI, Maurizio. Constirucién: de la antiglledad a nuestros dfas. Trad. Manuel Martinez Neira, Madrid: Trotta, 2001 \Veredas do Direto, Bolo Horizonte, 3-n, 8+ p.91-48- Janeio- Junho de 2008 33 PODEA CONSTITUINTE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO no que toca ao sentido atribufdo ao “direito” a ser constitufdo e, portanto, no que se refere & matizagio de suas caracteristicas distintivas especificas: a ilimitago, a incondicionalidade, a originariedade’. Dessa longa trajetéria, cabe destacar também um outro aspecto interessante, relativo a uma mudanga recente ocorrida na teoria constituci- onal da Europa. Até os anos 70 do século passado, a doutrina européia era praticamente unnime em condenar 0 emprego da expresso poder consti- tuinte de segundo grau ou poder constituinte derivado (de reforma), salien- tando a contradigdo interna presente na expressio ao qualificar de constitu- inte um poder constituido pela Constituigio, portanto limitado e condiciona- do por ela. Recomendava-se & época o uso da expresso poder de reforma. Hoje, a maior parte da elaboragio tedrica, precisamente por considerar a consolidagaio da democracia constitucional irreversfvel, tem defendido o emprego da expresso poder constituinte sem qualquer outro qualificativo para designar o poder de reforma constitucional previsto na prépria Consti- tuigdo®. Nao mais sao colocadas alternativas 4 democracia constitucional, 0 que equivaleria para autores como DocLianni ao esgotamento do tema do poder constituinte originario’. Vira Moreira nos coloca 0 problema de forma exemplar. Em seminario ocorrido no Brasil, ao tratar da Constituigao portuguesa, expde a necessidade de mudangas e sugere uma mudanga no proprio conceito de poder constituinte diante dos desafios que se apresentam: (O que esté aqui em causa, e que a meu ver tem perpassado todos os nossos és dias de debate, é saber se hoje, perante as Constituigdes conjunturais que 0 tiltimo quartel do século trouxe —a primeira delas foi exatamente a Consti- tuigdio da Repiiblica Portuguesa — a idéia do poder constituinte como ato unigénito da Constituic&o pode enfrentar a prova da vida constitucional, e se a essa versio do poder constituinte unigénito ¢ unimomentneo, nio temos 7 “Como vimos, na aventura histérica do poder constituinte, vamos encontrar o cere da teoria inteiramente preservado até hoje. Contudo, o que vai softer signficativa alteragio no curso dessa histéria é 0 conceito de Direito.” CARVALHO NETTO, Menelick de. A Revisdo Constitucional ea Cidadania: A Legitinidade do Poder Constituinte que deu Origem & Constituigao da Repiiblica Federativa de 1988 e as Potencialidades do Poder Revisional Nela Previsto. Forum ‘Ano 2000. N° 10, Belo Horizonte: Forum, margo, 2000, p. 883 " AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer ~ 0 poder soberano € a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 46-47. O autor italiano deixa bastante clara essa perspectiva de que somente se trabalha a revistio, mas no por causa da estabilidade democritica. © DOGLIANNI, Mario. Potere constituente e revisione constitucionale. In: Quaderni Constituzionali. Bologna: 1995, p. 7. 34 Veredas do Dirsko, Salo Honzonte,- v.3-n.5- p.91-45+ Jansiro-Junho de 2006 Aloxancte Bemnarcino Costa de admitir algum espago para o poder constituinte evolutivo e para um Processo constituinte transgeracional. Eis a provocagao que nao queria deixar de vos oferecer", Embora 0 professor ViraL Moreira consiga perceber com clare- za o problema central que se apresenta, parece-nos que a problematica do poder constituinte nos dias atuais deve ser enfrentada de forma tal que Possamos pensar, junto com ele, o préprio conceito de direito e a praxis constitucional que atualiza 0 ato fundador. Tudo isso, como bem sabe 0 autor portugués, deve ser associado 4 democracia. E, como salienta Habermas “esse processo [...] no é imune a recafdas e interrupgdes™"!, A teoria brasileira sobre o poder constituinte originario ainda con- templa a possibilidade de um poder constituinte autoritério. E preciso ressal- tar que a urgéncia de se tratar do tema a luz de um marco te6rico atual, por incorporar as mais recentes ligdes que a teoria foi capaz de extrair da pré- pria vivéncia constitucional, néo reside apenas na demonstraco da ilegiti- midade do emprego da terminologia constitucional contra o constitucionalismo que, nao somente em regides de democracias menos consolidadas 6 um Tisco sempre presente, mas pode interferir, e de fato interfere, na possibili- dade mesma de consolidagao da democracia, na medida em que a auséncia de reflexao tedrica e prética adequadas ao constitucionalismo possibilita abusos e desrespeito a direitos dos cidadiios, gerando a descrenga na demo- cracia € no constitucionalismo. O caso recente sobre direito adquirido, jul- gado no Supremo Tribunal Federal, suscitou observagdes sobre o poder cons- tituinte por parte de seus membros, e é possivel identificar uma visio segun- do a qual 0 conceito poderia ser associado a uma abordagem autoritéria do direito, As principais questdes relativas a origem, exercicio, limites, for- mas de manifestacdo, poder originario, poder derivado, emendas, reformas, Continuam sendo pautadas por duas visdes bésicas que de certa forma s¢ completam: a primeira que traz 0 conceito de poder constituinte para dentro do sistema normativo estatal, buscando operacionalizé-lo através de institui- g6es do proprio Estado, estabelecendo limites e formas predeterminados 1 MOREIRA, Vital. Constituigdo e democracia na experiéncia portuguesa. in: MAUES, Antonio G. Moreira (org) Constinigao e democracia. S40 Paulo: Max Limonaé, 2001p 27a \ HABERMAS, Jurgen, Era das transigdes. Trad, ¢ introd. Flavio Siebeneichley Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 165 Supremo Tribunal Federal, ADIN n° 3.105-8, 2008 ‘Veredias do Direto, Belo Hozonte,.v.9-n. 8+ p. $1.48. Janoiro-Junho de 2008 35 PODER CONSTITUINTE NO ESTADO DEMOCAATIOO DE DIREITO para o seu exercicio; e a segunda, que entende o poder constituinte como uma manifestagiio de carter politico que nao integra o préprio direito, sen- do caracterizado como meta-juridico, uma forga social que cria o direito, mas a partir desse conceito recolhe-se para que a organizago normativa da sociedade seja feita no Ambito estatal sem sua participagao. Ainda hoje se busca estabelecer taxionomias para 0 poder consti- tuinte que designariam sua natureza e sua forma de expressdo. Contudo, tais classificagdes pouco ou nada contribuem para explicar o tema nos dias atuais: origindrio e derivado, limitado e ilimitado, tipos de Assembléia Nacio- nal Constituinte, poder de reforma e poder de revisao (além de outras). Tam- bém as nocées de representagdo do povo, da nagdo, remetem ou aos paradigmas de Estado liberal ou de Estado social, posto que nao servem para acontemporaneidade de uma sociedade hipercomplexa, plural e multicultural. A tensio existente entre 0 liberalismo ¢ 0 republicanismo mani- festa-se também em relagiio ao poder constituinte: por um lado parte-se da idéia de indiv{duos livres que se associam e criam 0 Estado e a Constituigao, mantendo sua individualidade e liberdade para compor uma estrutura normativa minima; por outro, mais utilizado na literatura constitucional, par- te-se da idéia de nao como uma identidade coletiva que forma um substrato para a possibilidade do exercicio do poder. Ora no individuo, ora na nago, 0 poder constituinte é reduzido ao momento de fundagéo do direito, de forma manipulada, manifestando-se a partir daf controlado e limitado pelo direito. As profundas modificagGes sociais, bem como as alteragdes na concepeiio de ciéncia ¢ de direito exigem um novo olhar sobre a teoria do poder constituinte. Se o direito toma-se cada vez mais central na organizagao da sociedade contempordnea e essa centralidade se assenta em grande parte na Constituigo, poder constituinte deve ser pensado como possibilidade cons- tante de fortalecimento do constitucionalismo e da democracia. Diante disso, devemos tentar identificar a teoria juridica que nos auxiliard nessa tarefa. £ importante salientar que 0 poder constituinte sera estudado aqui como categoria juridica, dentro de uma abordagem transdisciplinar, tal como na proposta de Mutter segundo a qual “...] a expressio poder constituin- te interessa-nos aqui como texto juridico (nfo como texto ideoldgico); € isso quer dizer como parte integrante normal dos documentos constitucio- nais nos quais ele aparece”13. MULLER, Friedrich. Fragmento (sobre) pader constituinte do povo. Trad. Peter Naumann. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 20. 36 ‘veredas do Diteto, Bolo Horizonte -v.3-n.5» p. 31-45. Janeito-Junho de 2008 Nxandre Bernadine Costa O problema central que se pretende responder tem seu cerne na tensao entre democracia e constitucionalismo. Uma teoria do poder consti- tuinte que nao problematize essa tensto pode gerar conseqtiéncias praticas graves, como verificaremos ao longo do trabalho ao analisarmos uma deci so do Supremo Tribunal Federal que, ao tratar de direitos adquiridos, abor- dou a tematica do poder constituinte'’. A partir da fundamentacio tedrica dos votos dos ministros do STF poderemos estabelecer uma ligaciio com a teoria do poder constituinte produzida e reproduzida no Brasil. O problema que se revela para nés é, precisamente, e paradoxalmente, a aparente au- séncia de problema na relago entre democracia e constitucionalismo. A Sociedade contempordnea exige da teoria do poder e do constitucionalismo o enfrentamento das questdes concernentes 4 democracia. A hipétese central do trabalho consiste na idéia de que o poder constituinte no paradigma do Estado democratico de direito somente pode ser democratico, e isso se revela na tensio entre a democracia e ° constitucionalismo. Caso isso n&o acontega, néio se trata de poder constitu- inte, mas de arbitrio e ditadura. E necessério perceber que os conceitos do direito nao ficam res- tritos A mera especulacio teorética, pois eles sio reproduzidos no de ensino juridico e, sobretudo, na pratica cotidiana dos profissionais do direito, da Administragao Publica e dos cidadaos. Dessa forma, identificar 0 carter autoritério da formulagao do conceito é também trabalhar com seu lado pratico, pois, como vimos anteriormente, uma vez que o conhecimento Juridico torna-se senso comum teérico ele passa a permear a praxis consti- tucional em toda a sociedade. A teoria do poder constituinte no Brasil busca sua fundamentagdo em duas visdes te6ricas antagGnicas. Trata-se, na verdade, de duas faces da mesma moeda, que partem de pontos de vista que sio inconcilidveis, Falaremos de uma postura te6rica que busca associar o pensamento de Hans Ketsen ao de Cart ScuMirt, expondo a dicotomia entre ser e dever- Ser para a andlise do conceito de poder constituinte, para em seguida reduzi- lo& vontade politica: istema Ora, o Poder Constituinte como fendmeno juridico situa-se, assim, entre 0 mundo do sere do dever- no podendo e nem devendo ser Jevado.a um ou ' ADIN 3.105-8. \Veredas do Direito, Belo Horizon, v.9-n.5- p.91-45- Janeiro - Junho de 2008 37 PODER CONSTITUINTE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIRETTO outro extremo sob pena de nao se conseguir defini-lo na sua plenitude. [...) Outrossim, o Poder Constituinte é vontade politica, é um poder unitério, indivisivel, Nao admite tal poder procedimentos regulados para sua ativida- de, Nao esté organizado, pois é partindo dele que se organiza um Estado'®. Essa visio ndo-democritica de poder constituinte e de direito permeia o pensamento jurfdico nacional, de tal forma que ainda se reconhe- ce como direito aquilo que é identificado até mesmo pelos préprios autores como arbitrio, E 0 senso comum te6rico de cunho positivista continua a ser reproduzido: Firmou-se, desta feita, que normas intolerdveis, como as que estabeleceram 0 regime escravagista, 0 anti-sionismo e mais recentemente o regime do apartheid na Africa do Sul, sio sim normas juridicas e, portanto, precisam ser admitidas como Direito positivo do Estado e, por isso mesmo, devem ser relatadas pelos cientistas do Direito, pois o seu trabalho é o de descrever o Direito positivado", Dessa forma, ao analisarmos essa postura tedrica sob 0 aspecto da ndio-inovaciio do poder constituinte, de sua impossibilidade de iniciar uma nova sociedade a partir do “ponto zero”, é interessante observar que ocorre justamente 0 contrério: s6 é possivel elaborar uma constituigao rompendo definitivamente com o regime e a constituigio anteriores a partir deles pr6- prios. Ademais, para que seja possivel o surgimento de uma nova constitui- co, é necessério que todos os elementos que a compdem estejam jé na sociedade, caso contrario essa nova constituigao nao existiria. Hé na prati- ca social cotidiana um fundo de siléncio compartilhado que possibilita a co- municagao voltada ao direito nos novos termos. A tese do poder constituinte ilimitado, auténomo e incondicionado, ainda muito presente nos manuais de direito constitucional brasileiros, reproduz a idéia de que o poder constituinte tudo pode em razio de “dar infcio a uma nova ordem”. E essa visio, com- 8 GONGALVES, Silvia Dias Soares de Lima, Poder constituinte: filosofia ou dogmiética juridica. In: Cademnos de Direito Constitucional e Ciéncia Politica. a.3, n. 10. $80 Paulo: Revista dos ‘Tribunais, janeiro/margo de 1995, p. 72. © MARTINS FILHO, Alberto. Indagagdes ¢ conclusdes acerea da fungio ¢ dos limites do poder constituinte. In: Cadernos de Direito Constitucional ¢ Ciéncia Politica, 2.7, n. 26. Sa0 Paulo: Revista dos Tribunais, janeiro/margo de 1999, p. 29. Acrescenta ainda o autor: “Muito tem-se dito que 86 hé Constituigéo onde houver Democracia ¢ respeito a tais direitos. Nao se pode concordar com isso. Acredita-se que haverd Constituigdo sempre que for elaborado, por qualquer modo. um corpo de normas que tenha 0 minimo constitucional (estrutura interna do Estado ¢ diseiplina do processo normativo)”, p. 26. 38 \Veredas do Dita, Bel Hovizona, v.9-n. 5+ p.21-45+ Janeiro Junho do 2008 Alexandee Dernading Costa partilhada na teoria e na pratica constitucional brasileira por muitos juristas, termina por possibilitar uma associacio entre autoritarismo e poder consti- tuinte, que chega a explicar e justificar 0 golpe de Estado de 1964 ea produ- ¢ao constitucional sob a ditadura”’, Isso chega a tal ponto que levou um pro- fessor de direito constitucional a afirmar o seguinte: “Simples e até repetitivo: Poder Constituinte é poder de fato, exercido por quem tem condi¢ées concretas de exercé-lo” (grifo nosso). E acrescenta ainda 0 autor: De nada adianta colocar inadequadamente num texto constitucional, como Ocorre entre nds, de que o titular do Poder Constituinte é povo (eleitorado).. Isso ndo impediu que no Brasil, em 1969, doente o presidente Costa e Silva, 08 ministros militares “assumissem a Presidéncia da Reptiblica” ¢ outorgas- sem uma nova Constituigao, muito embora disfargada sob o nome de emenda constitucional. Com certeza, esté implicita a declarago de quem exerce o Poder Constituin- te, a0 editar uma nova Constituigdo: “Quem nao concordar, se apresente!” Se ninguém se apresentou, foi porque todos concordaram ou consentiram,o que mesma coisa em termos concretos'®, Outro autor de grande relevancia no cenério politico nacional pela sua teoria autoritaria do poder constituinte foi Celso Ribeiro Bastos. Esse autor, que teve forte influéncia na re-produgao do direito constitucional no Brasil defendeu a legitimidade do Golpe de 1964, e, como nao poderia dei- xar de ser, afirmou que os atos decorrentes desse golpe foram emanados do poder constituinte: "” Para que tenhamos uma nogio dessa forma de pensamento podemos citar o jurista Micue, REALe, tuinte de 1987, defendeu a manutengo da ordem constituci- onal anterior com pequenas alteragdes (sete ou ito), pois considerava desnecessaria uma convo- cago: “Surge, desde logo, uma pergunta: - Se no se segue o caminho de uma Assembléia Constituinte, qual seria a via constitucional indicada? Nao me parece que seja possivel proceder- se & convocagio de uma Assembléia Nacional Constituinte, porquanto esse caminho representa- ria, sem divida nenhuma ~ quer por parte do Executivo, quer por parte do Legislativo - um ato incompativel com as normas constitucionais vigentes e, portanto, um ato revolucionério REALE, Miguel. A crise constitucional do Brasil. in: Digesto Econémico, a.38, n. 283. Sto Paulo: agosto de 1981, p. 22. " FERREIRA FILHO, Manoel Gongalves. 0 poder constituinte. Sio Paulo: Saraiva, 1999, p. 97- 8. O pensamento de Ferreira Fittio muito influencia a nogio de poder constituinte entre os autores brasileiros: “Deflagrado 0 processo revoluciondrio ~ qualquer que seja a sua forma e sua motiva- 20 — formalizada a vitéria de um grupo revolucionério pela conquista do poder de fato, esse triunfo, na expressio de FERREIRA FILHO, importa em sua formalizagao jurfdica, a qual pode ser chamada de ato constituinte.” LOPES, Mauricio AntOnio Ribeiro. Poder constituinte origind- tio, Int Revista dos Tribunais, 0.85, v. 727. So Paulo: Revista dos Tribunais, maio de 1996, p. 634. \Veredias do Direto, Belo Hovizonte,. v.3-n. 5+ p. 81-48. Janeio- Junho do 2006 39 PODER CONSTITUINTE NO ESTADO DEMOCRATICO OE DIREITO Com a revolugiio vitoriosa de 1964, uma Junta Militar assumiu o Poder Constituinte e, através do Ato Institucional de 9 de abril, outorgou nova Constituigdio a0 povo brasi ‘0 [+] © Poder Constituinte se manifestou posteriormente intimeras vezes, através da Junta Militar e do presidente da Repiblica, com a edigao de outros atos institucionais, No Ato Institucional n° 6 esté declarado: a Revolugio brasileira reafirmou nfo se haver exaurido © seu Poder Constituinte, cuja ago continua ¢ continuard, em toda a sua plenitude [...] Deve-se ressaltar, porém, que existem honrosas excegdes A pers- pectiva do poder constituinte nfio democrdtico no Brasil. Cumpre observar, nesse sentido, a obra de Paulo Bonavides, que vincula 0 conceito a teoria da legitimidade e desenvolve sua anilise, inclusive da histéria constitucional do pais, a esse fundamento, pois “quem diz poder constituinte est a dizer ja legitimidade desse poder, segundo esta ou aquela idéia basica perfilhada, numa opgao de crengas ou principios”.” Também merece destaque a atuagdo tedrica e pratica de Josaphat Marinho durante a Constituinte de 1987 eo perfodo que a precedeu, quando combateu firmemente as vozes autoritdrias que tentavam falar em nome do poder constituinte: “Constituigio outorgada nao é carta do povo, nem para o povo, mas usurpagiio e negacio de direito inaliendvel da sociedade nacio- nal”?! ‘ais posicionamentos, preocupados com aspectos democraticos, so reflexos das profundas modificagdes ocorridas nos tempos recentes, na teoria do direito e, notadamente, no direito constitucional. Isto se deve a varios fato- res, em especial as profundas transformagGes ocorridas na sociedade con- tempordnea, que fizeram os tedricos do direito modificarem suas visdes sobre © fendmeno juridico e sobre seu proprio saber. Em todos os campos do direito essas transformacées se fizeram sentir através de uma mudanga radical de ® BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. S30 Paulo: Saraiva, 1979, p. 21 ® BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. Sao Paulo: Malheiros, 2000, p. 126 umpre estigmatizar sempre a subtragio de competéncia, para que prevalega no procedimen- to regular dos governantes, ¢ nao somente na teoria, a certeza de que ao povo cabe 0 Poder Constituinte e a faculdade de atribuir seu exercicio a um colegiado, que the expresse a vontade soberana. [..] Somente a Assembléia Constituinte, nascida do voto popular, é representagio genuina para conferir & Nagio o instrumento basilar disciplinador de sua vida, e aceito pela generalidade dos cidadios.” MARINHO, 1985. p. 22. Ver ainda, nesse sentido, a partir de uma perspectiva contemporanea, a obra de CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e Pairiotismo Constiucional, Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. 40 \Verodas do Diteito, Belo Horizonte, v.9-n. 5+ p. 31-45. Janeiro - Junho de 2008 Alaxandee daraasing Costa supostos tedricos, categorias, conceitos ¢ métodos de trabalho. Contudo, apesar de uma mudanga radical nas concepgées de Es- tado e de direito, 0 conceito de poder constituinte tem sido majoritariamente ignorado nessa nova visao teérica. Os manuais de introdugao ao direito e de direito constitucional ainda tratam do tema da mesma forma como era feito no perfodo pés-guerra, ou ent&o reproduzem teorias do inicio do século XX. Uma das obras mais citadas no Brasil sobre o tema posiciona-se sobre a titularidade do poder constituinte da seguinte forma: “... é quase imposstvel, ou € impossivel mesmo, num estudo cientifico, determinar quem € 0 titular do Poder Constituinte”.” Em seguida 0 mesmo autor atribui a titularidade ao povo que exer- ce 0 poder constituinte por meio de uma elite, revelando claramente o autoritarismo da visio teérica: reconhecimento de que 0 povo € 0 titular do Poder Constituinte pouco esclarece quanto ao exercicio deste mesmo poder. Quer dizer, o povo pode ser reconhecido como titular do Poder Constituinte mas no é jamais quem o exerce. Ele € um titular passivo, ao qual se imputa uma vontade constituinte sempre manifestada por uma elite. O autor, porém, reserva um papel ao povo no processo constituin- te que, segundo ele, validaria a Constituigao: “Ele, ¢ s6 ele (povo), vai dar efetividade ou eficdcia, cumprimento global, & Constituigio adotada”.* Esse tipo de abordagem, ainda que nao seja voluntariamente arbi- tréria, écomum em muitos dos autores de direito constitucional. Chega mesmo a chamar atengfo a afirmagao de Butos, segundo a qual o poder constituin- te é meta-juridico, e insere tal assertiva em um t6pico de sua obra intitulado “concepgao atual do poder constituinte” ao fazer a seguinte generalizacao: Atualmente, os estudiosos conclufram que 0 poder constituinte, ao ser exer- ido, divide-se em duas etapas bem definidas: uma de elaboragao constituci- ® FERREIRA FILHO, Manoel Gongalves, O poder constituinte. Sio Paulo: Saraiva, 1999, p. 31 Esse autor € 0 representante dessa cortente mais citado no ambiente jucidico brasileiro. ® FERREIRA FILHO, Manoel Gongalves. 0 poder constituinte. $40 Paulo: Saraiva, 1999, p. 31. Ressalte-se que essa passagem é reproduzida como correta no manual de direito constitucional mais yendido ¢ utilizado nos cursos de diteito € nos concursos piblicos, inclusive das carreiras Jurfdicas, no Brasil: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16° edigdo. Sio Paulo: Atlas, 2004 . p. 57. * FERREIRA FILHO, Manoel Gongalves. 0 poder constituinte. Sio Paulo: Saraiva, 1999, p. 32, ‘ered do Direto, Beto Hovizonte,. .3-n.8+ 91-45. Janeio- Junho de 2008 41 PODER CONSTITUINTE NO ESTADO DEMOGRATICO DE OIREITO onal, onde o poder criador da Lei Magna no se restringe a limites formais, possuindo o caréter politico ou extra jurfdico; outra, de mudanga formal, para alterar a Carta Suprema mediante certas limitagdes. Aqui, 0 poder constituin- te adquire 0 starus de juridico, com tarefa imediata de reformara Lex Legu.?5 © que podemos identificar como mais problemdtico nessa abor- dagem é a separagao ainda existente entre o conceito de direito e democra- cia, e, sobretudo para nosso trabalho, entre constitucionalismo e democra- cia. Em relagao ao nosso tema, isso significa a possibilidade de uma cons- trugdo tedrica que admite a existéncia de um poder constituinte autoritério, quando, sob o atual paradigma, somente pode ser considerado poder consti- tuinte se ele for democratico. Para que seja possivel problematizar adequadamente 0 tema, é necessario que nés tenhamos em mente as modificagdes sociais, epistemol6gicas e juridicas que afetam diretamente 0 conceito de poder constituinte. Tais problemas podem ser expostos pela inadequagao com a qual tem sido tratado o assunto. Em um processo de globalizacao no qual a soberania dos Estados foi relativizada em favor de um suposto poder global, alguns autores chegam a afirmar que o poder constituinte origindrio nao mais existe.?° Tal como expde GiorGio AGAMBEN: Contra a tese que afirma o carter originério e irredutivel do poder constitu inte, que ndo pode ser de modo algum condicionado ¢ constrangido por um ordenamento juridico determinado e se mantém necessariamente externo a todo 0 poder constituido, encontra hoje sempre maior consenso (no Ambito da tendéncia contemporanea mais geral de regular tudo mediante normas) a tese contrdria, que desejaria reduzir o poder constituinte ao poder de revisiio. previsto na Constituigdo, e pde de lado como pré-jurfdico ou meramente factual 0 poder do qual nasceu a constituigao.”” £ interessante observar que 0 consenso maior identificado por AGAMBEN, embora tenha uma face conservadora, traduz um determinado % BULOS, Uadi Lammégo, Mutacdo constitucional. Sio Paulo: Saraiva, 1997, p. 19. % DOGLIANNI, Mario. Potere constituente e revisione constitucionale. In: Quaderni Constituzionali. Bologna: 1995, p. 7 ¢ ss. A tese de DoctiaNni é que somente se pode invocar hoje © poder de revisio constitucional, sobretudo nos pafses que jé possuem uma tradigao no constitucionalismo. 2 AGAMBEN, Giorgio, Homo Sacer ~ 0 poder soberano ¢ a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 47. 42 ‘Veredas do Dieto, Belo Horzonte,« .G-n. 5+ p. 31-48. Janeiro ~Jurho de 2006 Alexandre Gemardino Coste movimento na Europa ¢ nos Estados Unidos que revela uma certa estabili- dade democratica constitucional, hipétese em que o poder constituinte origi- nario somente seria invocado para contrapor-se a uma ordem juridica ilegi- tima e antidemocratica. Essa tese, de que o poder constituinte estaria esgo- tado, embora nao seja partilhada por nés, reforga nosso argumento central de que nao pode existir constitucionalismo e poder constituinte hoje sem democracia. Por outro lado, com um viés marcadamente semintico de direito, chega-se a afirmar que o poder constituinte tem sua manifestacao irrestrita e incondicionada, mas ao mesmo tempo sé existe na deliberagao represen- tativa da Assembléia Nacional Constituinte. Essa linha de pensamento est muito vinculada a idéia de representagio politica ¢ ao paradigma do Estado social. Embora contenha uma ret6rica do poder popular, reforga a autorida- de do Estado, sem democracia. Ha ainda um determinado tipo de interpretagao da Constituicio que busca a vontade do legislador, no caso a vontade do constituinte, como se fosse possivel voltar no tempo e ali identificar a manifestagao originaria do poder constituinte para aplicar a constituigao. Aliada a esses problemas também esta a idéia de que 0 constituinte tragou diretrizes politicas que devem ser consideradas como normas programiticas, que, embora nao te- nham possibilidade de eficdcia imediata, 0 terdo tao logo o Estado-Nagao alcance um determinado nfvel de desenvolvimento econémico e social. A tentativa de se classificar as normas constitucionais por meio de taxonomias, como se fosse possivel dizer sobre tipos normativos por seus textos, enqu: drando a realidade constitucional em modelos preestabelecidos, e isso reve- laa inadequagao te6rica da prépria nogao de ciéncia na contemporaneidade. Aestagnagao da doutrina brasileira, mantendo as dicotomias clas sicas como opostos excludentes, possibilita a manutengdo de uma teoria puramente instrumental do poder constituinte capaz de servir até mesmo os regimes ditatoriais ainda hoje. Torna-se possivel, assim, uma apropriagaio da teoria do poder constituinte por parte dos tribunais, sobretudo do STF, marcada profundamente por um pobre viés empiricista e pretensamente descritivo, associada a uma ampla divulgacao de teorias antidemocréticas sobre o tema, corroendo 0 sentimento constitucional necessério consolidagiio da democra- cia, fundamental para a identidade constitucional. Deve-se chamar a atengiio também para uma tendéncia existente hoje no Brasil de se interpretar a constituig%o como uma ordem concreta de valores. Tal perspectiva tedrica valorativa trata a prética argumentativa do \eredas do Direto, Belo Hovzonte,- v.3-n. 5+ p. 81-45. Janeiro Junho de 2006 43 PODER CONSTITUINTE NO ESTADO DENOGRATICO DE DIREITO direito com base em argumentos morais e, conseqiientemente, transfere para a autoridade estatal a tarefa de dizer quais so os valores que devem nortear a sociedade, gerando autoritarismo. Os resultados sao ainda mais graves se notarmos as transforma- ges que o controle de constitucionalidade vem sofrendo no Brasil, rompen- do, sem discusséo democratica, com uma tradigao de mais de cem anos. O controle abstrato de constitucionalidade, associado a uma abordagem axiologizante do direito e 4 vinculagao das decisées do STF corre 0 risco de gerar como conseqiiéncia a transformagdo exatamente daquele que deve- ria ser 0 guardio da constituigao, ou seja, da abertura para o pluralismo do sujeito constitucional, o STF, em um “superego da sociedade” e em uma espécie de poder constituinte permanente, como alerta Maus, em relagio & Corte Constitucional alema. Dessa forma, corre-se 0 risco de transformar 0 poder constituinte em autoritarismo e a praxis constitucional em ditadura. Sabemos hoje que a pratica constitucional democratica é tarefa de toda a sociedade, e nao podemos nos restringir & andlise institucional em sentido estrito do direito. Sabemos também que a legalidade do direito pres- supde procedimentalmente a plausibilidade da crenga em sua legitimidade. Portanto, para que a crenga na democracia seja vidvel, é necessdria a com- preensio do direito como permanente vir-a-ser, aberto para o futuro, que se constrdi na vida cotidiana de homens livres e iguais, dotados de autonomia piiblica e privada, que legislam eles préprios enquanto uma comunidade de principios. A afirmacdo do direito passa pela afirmagao dos movimentos so- ciais que legitimamente (re)constroem o projeto constitucional que tem no ato fundador um pardmetro bésico para a verificago dessa legitimidade. A pluralidade e a complexidade da sociedade contempordinea exi- gem, portanto, um direito aberto constitufdo procedimentalmente, sensivel ao espaco ptiblico de sua formagao, a rua. Poder constituinte somente pode assim ser chamado se for direito achado na rua, caso contratio, € arbitré- rio e ditadura ou delirio de constituigdo teérica idealizante, que por fim tam- bém resulta em autoritarismo, O conceito de poder constituinte somente tem sentido se for pen- sado em articulagéio com 0 conceito de democracia. Por sua yez, ambos necessitam de uma praxis constitucional que também seja democratica e tenha como referéncia o poder constituinte do ato fundador. A perspectiva te6rico-pratica do direito achado na rua, compreendida procedimentalmente possibilita essa ligagdio. A democracia de uma determinada sociedade de- 44 \Veredas do Direto, Belo Horizonte,» v.3+n.5+ p, 91-45 Janel - Junho de 2008 Alexandre Sernardino Coste pende de seus membros levarem a sério 0 direito. A préxis constitucional que atualiza o direito nao se faz somente por meio das instituicdes estatais. O direito se constréi e reconstréi no seio da sociedade, nas lutas dos movimentos sociais, nos espagos ptiblicos onde cidadiios dotados de autonomia piblica e privada vivem sua autolegislacao: na rua, ‘ered do Direto, Belo Horzor 30n.5+ p.31-45- Janeito-Junno de 2006 45

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