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VI Seminário Internacional

políticas
culturais
26 a 29 de maio de 2015
Rio de Janeiro

edição
Fundação Casa de Rui Barbosa
ISBN 978 - 85 -7004 -332- 0
IVIVSeminário
SeminárioInternacional
Internacional

políticas
organizadores
Lia Calabre
Mauricio Siqueira

culturais
Deborah Rebello Lima
Adélia Zimbrão

16,1717ee1818dedeoutubro
16, outubrodede2013
2013
RiodedeJaneiro
Rio Janeiro
Edição:Fundação
Edição: FundaçãoCasa CasadedeRui
RuiBarbosa
Barbosa

realização Realização
Realização
Organizadores
Organizadores
LiaCalabre
Lia Calabre
MauricioSiqueira
Mauricio Siqueira
AdéliaZimbrão
Adélia Zimbrão
Anais do VI Seminário
Internacional de Políticas
Culturais
[Digite o subtítulo do documento]

Organizadores:

Lia Calabre
Mauricio Siqueira
Adélia Zimbrão
Deborah Rebello Lima

Rio de Janeiro
De 26 a 29 de maio de 2015
Edições: Fundação Casa de Rui Barbosa
Seminário Internacional Políticas Culturais (6. : 2015 : Rio de Janeiro, RJ)
Anais do VI Seminário Internacional de Políticas Culturais, 26 a 29 de maio de
2015, Rio de Janeiro / Organizadores: Lia Calabre... [et al.] – Rio de Janeiro : Fundação
Casa de Rui Barbosa, 2015.

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Modo de acesso: World WideWeb:
<http://wwwhttp://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/>
ISBN: 978-85-7004-332-0

1. Política cultural. I. Calabre, Lia, org. II. Siqueira, Mauricio, org. III. Zimbrão,
Adélia, org. IV. Deborah Rebello Lima, org. V. Fundação Casa de Rui Barbosa. VI. Título.

CDD 306
Sobre o Evento
O Seminário Internacional de Políticas Culturais é um evento que tem por objetivo
promover o encontro de especialistas, estudiosos e interessados nas questões
relativas à área de políticas culturais, a fim de divulgar trabalhos e promover
debates no campo das ações políticas, das reflexões históricas, teóricas e das
práticas.

Ficha Técnica
Realização
Setor de Pesquisa em Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa

Comissão Organizadora
Lia Calabre
Mauricio Siqueira
Deborah Rebello Lima
Adélia Zimbrão

Equipe Técnica
Clarissa Semensato
Raquel Moreira

Equipe de Apoio
Bolsistas do Setor de Estudos em Políticas Culturais

Editoração dos Anais


Clarissa Semensato
Renata Duarte
Flávia Lages Castro

Parceria
Itaú Cultural e Observatório Itaú Cultural

Realizado entre os dias 26 e 29 de maio de 2015, na Fundação Casa de Rui


Barbosa, Botafogo, Rio de Janeiro.

Informações: politica.cultural@rb.gov.br

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V V
PROGRAMAÇÃO GERAL
26 de maio, terça-feira
13h | Inscrições

14h | Mesa de abertura – MINC, FCRB e Itaú Cultural - Auditório

15h | Mesa Redonda – Auditório

:: Aspectos das políticas culturais na Bahia ::


Dilemas das políticas culturais na Bahia
Antonio Albino Canelas Rubim (Doutor em Sociologia pela USP. Professor titular da Universidade Federal da
Bahia. Ex-secretário da SecultBA)

Política de financiamento à cultura na Bahia


Carlos Beyrodt Paiva Neto (Especialista em Educação Estética, Semiótica e Cultura. Integrou a SecultBA.
Secretario de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC)

Formação em cultura na Bahia


Laura Bezerra (Doutora em Cultura e Sociedade pela UFBA. Foi assessora de Formação em Cultura na SecultBA)

Dispositivos de participação cultural na Bahia


Taiane Fernandes (Mestre em Cultura e Sociedade. Integrou a SecultBA e foi assistente do Conselho Estadual de
Cultura da Bahia)

18h | Lançamentos de livros

________________ :: ________________

27 de maio, quarta-feira
8h30 | Comunicações I – Auditório :: Programa Cultura Viva: experiências e novos olhares

8h30 | Comunicações II – Sala de cursos :: Políticas Culturais Setoriais: Livro e leitura

8h30 | Comunicações III – Porão :: Manifestações tradicionais e políticas culturais

11h | Comunicações IV – Auditório :: Direito e Cidadania Cultural

11h | Comunicações V – Sala de cursos :: Cultura e Cidadania

11h | Comunicações VI – Porão :: Política para as Artes

::: INTERVALO :::

14h30 | Comunicações VII – Auditório ::Economia Criativa

14h30 | Comunicações VIII – Sala de Cursos :: Sistemas de Cultura: experiências e balanços

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V V
14h30 | Comunicações IX – Porão :: Políticas Culturais: reflexões históricas

17h30 | Mesa Redonda – Auditório

:: Participação, cidadania e diversidade cultural: a experiência da III Conferência


Municipal de Cultura de São Paulo ::

Ana Paula do Val (Especialista em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris.


Mestranda em Estudos Culturais - EACH-USP)

Luciana Piazzon Barbosa Lima (Mestre em Estudos Culturais - EACH-USP e Assessora


Técnica da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo)

Maria Carolina Vasconcelos Oliveira (Mestre e doutora em sociologia – FFLCH/USP.


Pesquisadora e professora nas áreas de políticas culturais, artes e cultura)

Viviane Cristina Pinto (Mestranda em Estudos Culturais - EACH-USP. Especialista em


Gestão Cultural – CELACC/USP)

________________ :: ________________

28 de maio, quinta-feira
8h30 | Comunicações X – Auditório :: Políticas Culturais Setoriais: audiovisual

8h30 | Comunicações XI – Sala de Cursos :: Políticas Culturais: mapeamento e indicadores

8h30 | Comunicações XII – Porão :: Políticas culturais: novas cenas políticas

11h | Comunicações XIII – Auditório :: Sistema Nacional de Cultura

11h | Comunicações XIV – Sala de Cursos :: Políticas, territórios e identidades

11h | Comunicações XV – Porão :: Políticas Culturais: Universidades e Localidades

::: INTERVALO :::

14h30 | Comunicações XVI – Auditório :: Políticas Culturais: acervos e memória

14h30 | Comunicações XVII – Sala de Cursos :: Patrimônio Material I

14h30 | Comunicações XVIII – Porão :: Cidades Criativas

17h30 | Comunicações XIX – Auditório :: Financiamento e Fundos para Cultura

17h30 | Comunicações XX – Sala de Cursos :: Políticas Culturais e Contornos Internacionais

17h30 | Comunicações XXI – Porão :: Cultura como estratégia para o desenvolvimento

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V V
29 de maio, sexta-feira
8h30 | Comunicações XXII – Auditório :: Financiamento da cultura: balanços e perspectivas

8h30 | Comunicações XXIII – Sala de Cursos :: Acessibilidade Cultural: políticas e ações

8h30 | Comunicações XXIV – Porão :: Política de Cultura e Educação: novas aproximações

11h | Comunicações XXV – Auditório :: Patrimônio Imaterial

11h | Comunicações XXVI – Sala de Cursos :: Patrimônio Material II

11h | Comunicações XXVII – Porão :: Políticas, Cultura e Participação

:: INTERVALO ::

15h | Conferência I - Auditório

Intelectualidad latinoamericana y el pensamiento cultural para El desarrollo en la agenda


internacional
María Paulina Soto Labbé (Fundou e Coordenou o Departamento de Estudos e Documentação do
Consejo Nacional de la Cultura y las Artes de Chile)

16h30 | Conferência II – Auditório

Retroceder ya no es uma opción: políticas culturales públicas em Lima 2011 – 2015


Glória Maria Lescano Mendez (Gestora cultural pela Universidad de Piura)

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V V
PROGRAMAÇÃO DAS COMUNICAÇÕES

26 de Maio, Terça-Feira
13h | Inscrições
14h | Mesa De Abertura – Minc, FCRB e Itaú Cultural – Auditório
15h | Mesa Sobre Políticas Culturais Na Bahia – Auditório
18h | Lançamentos

27 de Maio, Quarta-Feira

8h30 | Comunicações

Auditório – Programa Cultura Viva: experiências e novos olhares


Por uma sinergia da diversidade: pesquisa ação participativa na rede de Pontos de Cultura
Marcella Francelina Vieira Camargo e Aline Andrade de Carvalho

Economia viva: ação de fomento ou prêmio de reconhecimento?


Luana Vilutis

Pontos de Cultura em Pernambuco: pontos e contrapontos


Cesar de Mendonça Pereira

Programa Cultura Viva: primeiras aproximações de um campo político


Ariel Nunes

O fazer arte nos Pontos de Cultura: uma ação em rede


Ana Carênina de Albuquerque Ximenes e Liduína Moreira Lins

Sala de Cursos – Políticas Culturais Setoriais: Livro e leitura


A necessidade de políticas públicas culturais que despertem o público infanto-juvenil brasileiro para a
literatura hispano-americana
Nivia de Andrade Lima

Uma experiência de mediação em biblioteca-parque


Maria Antonieta Sampaio Rodrigues

A enciclopédia brasileira no âmbito das políticas públicas para a cultura e a educação do estado novo
Ana Lorym Soares e Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos

Uma “nação enciclopédica” – ensaio sobre a história do instituto nacional do livro através do projeto
cultural da enciclopédia brasileira
Mariana Rodrigues Tavares

Porão do Museu – Manifestações tradicionais e políticas culturais


A cultura popular e o estado brasileiro: para começar o debate
Flávia Salazar Salgado

Nata: manifestações culturais e construção imaginária do candomblé


Fernanda Barros e Pedro Almeida

Artesanato brasileiro: uma colcha de retalhos


Selma Maria Santiago Lima

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V V
O bloco rasgadinho e a costura de uma política cultural em Aracaju (SE)
Mirtes Rose Menezes Da Conceição

11h | Comunicações

Auditório – Direito e Cidadania Cultural


A igualdade como fundamento moral das políticas culturais
Weslaine Wellida Gomes

Brasil criativo e Brasil sem miséria: um encontro possível?


Tereza Ventura

Cidadania e reconhecimento cultural: pistas de uma trajetória institucional no MinC


Mariana Luscher Albinati E Rodrigo Fagundes Bouillet

Direitos culturais e políticas públicas de cultura: possíveis intersecções


Giuliana Kauark

Diversidade e pluralidade como política cultural: o direito à diversidade na perspectiva dos tribunais
Allan Rocha De Souza, Alexandre De Serpa Pinto Fairbanks e Wemerton Monteiro Souza

Sala de Cursos – Cultura e Cidadania


Lona cultural itinerante: uma proposta de intervenção política e cultural
Márcia Barros Ferreira Rodrigues, Clarkson Machado Diniz E Rosely Maria Da Silva Pires

A diversidade em foco: política cultural e patrimônio imaterial na cidade de Curitiba

A descentralização no carnaval multicultural do Recife: festa, política e cidade


Rafael Moura De Andrade

“Baile modelo!”: reflexões sobre práticas funkeiras em contexto de pacificação


Pâmella Passos e Adriana Facina

Porão do Museu – Política para as Artes


Residências artísticas: notas sobre a apologia à preguiça e a importação da economia criativa
Silvia Leal de Oliveira e Thiago Novaes

Quo vadis, Funarte?


Marcelo Gruman

O teatro como espaço de resistência e as políticas públicas de cultura


Beatriz Helena Ramsthaler Figueiredo

:: Intervalo ::

14h30 | Comunicações

Auditório – Economia Criativa


Economia criativa, política cultural e o trabalho da música: entendendo as relações e descobrindo os
agentes
Karina Poli

Economia criativa: empreendimentos culturais


Felipe da Silva Duque

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V V
A relação entre cultura e desenvolvimento e a estratégia de fomento de arranjos criativos na Amazônia
Valcir Bispo Santos

Economia criativa e cadeia produtiva do livro: estudo e diagnóstico sobre as editoras da Bahia
Calila das Mercês Oliveira, Raquel Machado Galvão e Roberto Henrique Seidel

Sala de Cursos – Sistemas de Cultura: experiências e balanços


O Siscult e os sistemas de cultura: realidades, políticas e história
Aline Pessôa da Ascenção Alcoforado

Notas sobre a implantação do sistema nacional de cultura (SNC) em municípios mineiros


Adebal De Andrade Júnior

A implantação do Sistema Municipal de Cultura em Rio das Ostras a partir de uma perspectiva da cultura
enquanto recurso
Rodrigo Cazes Costa

Para pensar as cidades em sua dimensão cultural


Alysson Felipe Amaral

Porão do Museu: Políticas Culturais: reflexões históricas


Uma interface de política cultural e patrimônio cultural: "a experiência da tentativa do resgate do portal da
Escola Nacional de Belas Artes do Rio do Janeiro, durante a vigência do Conselho Federal de Cultura, no ano
de 1976"
Monike Garcia Ribeiro

A influência marioandradiana nas políticas culturais no Brasil por meio das errâncias e da carnavalização do
espírito moderno
Lucas Garcia

Para além de pedra e cal: as reformulações do conceito de patrimônio cultural a partir dos debates do
Conselho Federal de Cultura (1966-1974)
Jéssica Suzano Luzes

O Iphan sob o signo da ditadura – notas de pesquisa (1967-1979)


Daniela Carvalho Sophia

Cinema e educação: o Instituto Nacional de Cinema Educativo e a série brasilianas de Humberto Mauro
Wolney Vianna Malafaia

17h30 | Mesa Sobre Políticas Culturais em São Paulo


28 de Maio, Quinta-Feira
8h30 | Comunicações

Auditório – Políticas Culturais Setoriais: audiovisual


Políticas culturais para o audiovisual no Brasil: notas sobre os governos Lula e Dilma
Renata De Paula T. Rocha de Souza e Fernanda Argolo Dantas

As políticas públicas para o audiovisual brasileiro: novas perspectivas


Marcelo Ikeda

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V V
Ensaios de encontros entre cinema e televisão: percursos da política pública brasileira nos anos 2000
Lia Bahia

Impactos do investimento público em difusão audiovisual na configuração do espaço urbano paulistano:


um ensaio metodológico para avaliação de políticas culturais
Ana Carolina Louback Lopes

Sala de Cursos – Políticas Culturais: mapeamento e indicadores


O Observatório de Políticas Públicas Culturais e a pesquisa em política cultural no Brasil
Maria De Fátima Rodrigues Makiuchi

Mapeamento de residências artísticas no Brasil: uma breve avaliação


Ana Vasconcelos e André Gonçalves Da Silva Bezerra

Ponderações sobre o uso de indicadores na análise de políticas públicas de cultura: um estudo sobre a
distribuição da oferta cultural sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro
Daniele Cristina Dantas

Projetos de mapeamento de patrimônios materiais e imateriais para o reconhecimento de uma paisagem


cultural do café
Bruno Bortoloto do Carmo

Porão do Museu – Políticas culturais: novas cenas políticas


A multidão em revolta e seus personagens na cena política
Ana Lúcia Pardo

A inserção da cultura na agenda do governo federal a partir do modelo de equilíbrio pontuado


Samira Chedid

Novas notas sobre a indústria cultural e a sociedade “excitada”


Nina Reis Saroldi

11h | Comunicações

Auditório – Sistema Nacional de Cultura


O segundo tempo da institucionalização: o Sistema Nacional de Cultura no governo Dilma
Alexandre Barbalho

O Sistema Nacional de Cultura no desenho federativo brasileiro e a expectativa do repasse fundo a fundo
Clarissa Alexandra Guajardo Semensato

Evolução dos orçamentos públicos da cultura no Brasil do século XXI


Álvaro Santi

Mudança do modelo de planejamento governamental e o processo de elaboração do PPA 2012-2015 da


cultura
Adélia Zimbrão

Sistemas Nacionais em formação: SNC e SUAS em perspectiva comparada


Tony Gigliotti Bezerra

Sala de Cursos – Políticas, territórios e identidades


Afroreggae e suas práticas territoriais em vigário geral: o caso do projeto vigário colorido geral
Guilherme do Nascimento Rodrigues

Oscar Niemeyer: tecendo identidades – subsídios para as políticas culturais com foco no território
Luiz Augusto Rodrigues

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V V
Baixada Fluminense em redes de conversas: notas introdutórias para políticas culturais realizadas por e
com os praticantes
João Guerreiro

Abordagem de aglomerações produtivas para o setor cultural: uma análise dos arranjos produtivos locais
Carmen Lúcia Castro Lima

Músicas, territórios e identidades: políticas públicas para a musica e seu alcance na gestão pública da
cultura na Bahia atual
Cassio Leonardo Nobre de Souza Lima

Porão do Museu – Políticas Culturais: Universidades e Localidades


UFRGS 80 anos | gestão cultural na universidade pública
Cláudia Boettcher e Rafael Derois

Cultura, universidade e sociedade: reflexões a partir da política institucional da cultura da Universidade


Federal do Paraná
Carla Cristina Dutra Burigo e Renata Pletsch Reis

Show no céu ou céu é show: uma política cultural sob a luz dos holofotes
Naiene Sanches Silva

Para além da primavera: os índios, um museu, um livro e quase nenhum amigo. Mato Grosso e a política
cultural
Maria Fátima Roberto Machado

Encontro de saberes: política de inclusão de mestres das culturas tradicionais na docência do ensino
superior
José Jorge de Carvalho, Letícia Vianna e Carla Águas

:: Intervalo ::

14h30 | Comunicações

Auditório – Políticas Culturais: acervos e memória

Interações sociais e afetações: uma análise crítica sobre as visitas mediadas no Museu Casa de Rui Barbosa
João Alcântara de Freitas, Telma Lasmar Gonçalves e Thaís Costa da Silva

Políticas públicas para museus: gestão e sustentabilidade


Danielly Dias Sandy e Heloisa Helena Costa

Museu das coisas banais: cultura material e virtualidade


Daniele Borges, Juliane Conceição Primon Serres e Rafael Teixeira Chaves

Refletindo sobre o campo das políticas culturais para povos indígenas


Renata Curcio Valente

Museus no Brasil: análise socioeconômica de perfis


Nayara De Souza, Larissa Machado e Ana Flávia Machado

Sala de Cursos – Patrimônio Material I


Diretrizes para um plano setorial de patrimônio na política de cultura de Pernambuco
Terezinha de Jesus Pereira da Silva, Marcos Germano dos Santos Silva e Augusto Eugenio Paashaus Neto

Memória e espaço urbano: uma análise da eficácia do tombamento no centro histórico de Salvador
Milena Guimarães Andrade Tanure

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V V
Sistema Cultural do Exército Brasileiro dos primeiros trabalhos até o surgimento da diretoria do patrimônio
histórico e cultural do exército: uma reflexão
Lecinio Alves Tavares

Políticas de preservação na perspectiva da cidadania cultural: um estudo do processo de tombamento do


centro histórico de Natal/RN
Fernanda Gabriela Biondo e Fernanda Rocha de Oliveira

Reflexões sobre as normas de preservação do patrimônio cultural


Fernanda Rocha Oliveira, Mariana Kimie da Silva Nito e Raissa Balthazar

Porão do Museu – Cidades Criativas


Política de requalificação dos centros históricos no contexto das operações urbanas consorciadas: o caso do
Porto Maravilha
Júlia Erminia Riscado

Políticas culturais para cidades mais criativas no Mercosul: uma análise da paradiplomacia e cooperação
descentralizada na Rede Mercocidades
Cássia Camila Cavalheiro Fernandes e Maria De Fátima Bento Ribeiro

Políticas públicas de cultura e usos turísticos do patrimônio no Cariri cearense


José Ítalo Bezerra Viana

Políticas de fomento ao audiovisual: reflexões sobre o polo cinematográfico de Paulínia


André Ricardo Araujo Virgens

17h30 | Comunicações

Auditório – Financiamento e Fundos para Cultura


Núcleo de fomentos culturais: uma experiência de gestão pública de direito à cultura
Carlos Antonio Moreira Gomes, Kéroly Gritti Fontalva e Marcus Vinícius Moreno e Nascimento

A construção de políticas públicas de cultura municipais: democracia, diversidade e financiamento em Angra


dos Reis/RJ
Martha Myrrha Ribeiro Soares

A contribuição do Fundo de Incentivo à cultura - Funcultura no patrimônio de Pernambuco


Celia Maria Medicis M. de Q. Campos, Renata Echeverria Martins e Terezinha de Jesus Pereira Da Silva

O gênero edital cultural no Brasil e processos de informação na esfera político-cultural


Inti Anny Queiroz

Sala de Cursos – Políticas Culturais e contornos internacionais


O eucalipto seca tudo em volta: o desafio das políticas públicas de cultura em Portugal
Simone Amorim e João Teixeira Lopes

Difusão da cultura brasileira no exterior: os acordos de cooperação cultural do Itamaraty no governo lula
Yves Finzetto

Política cultural da diplomacia ao desenvolvimento: trajetória pública de um termo no século XX


Gabriela Toledo Silva

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V V
Porão do Museu – Cultura como estratégia para o desenvolvimento
Políticas públicas de cultura e a promoção de desenvolvimento: questões teóricas
Mariana de Araújo Aguiar

Cultura política e política cultural: ouvindo ruídos


Maria Souto de Carvalho

Política cultural e cultura como dominação econômica


Wilq Vicente dos Santos

Organização Cultural da sociedade e do estado: uma perspectiva histórica das políticas culturais
brasileiras
Viviane Cristina Pinto

29 de Maio, Sexta-Feira
8h30 | Comunicações
Auditório – Financiamento da cultura: balanços e perspectivas
Políticas públicas culturais e incentivos fiscais em âmbito estadual: breve comparativo entre as leis do Rio
de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul
Pedro Bastos de Souza

A fiscalização da Lei Sarney


Renata Duarte e Lia Calabre

Reflexões sobre o campo do audiovisual na captação de recursos incentivados no país


Carolina M. H. Ficheira

Financiamento da cultura: significação e apropriação do tema nas políticas culturais. O caso Procultura
Raquel Moreira

Sala de Cursos – Acessibilidade Cultural: políticas e ações


Acessibilidade de pessoas com deficiência ao cinema: ação de política pública de garantia de direito à
cultura
Osvaldo Emery, Patrícia Dorneles e Marina Helena Chaves Silva

Reflexos da política cultural para acessibilidade tanto em projetos culturais quanto para gestão pública de
cultura
Helen Cristina Patrício De Novais

Políticas de inclusão da pessoa com deficiência no Brasil: “o plano viver sem limite” e sem Cultura
Francine de Souza Dias

A pessoa com deficiência no patrimônio histórico


Fabiano dos Santos Silva

Biblioteca acessível: política de cultura para pessoas com deficiência visual


Mércia Carvalho Andrade, Patrícia Dorneles e Marina Helena Chaves Silva

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V V
Porão do Museu – Política de Cultura e Educação: novas aproximações
Cultura quilombola no alto sertão da Bahia: história, literatura e identidade
Jaqueline Santana

Educação patrimonial e arqueologia: a interface entre universidade e sociedade


Elaine Ignácio e Teresa Rachel Dias Pires

O canto como ferramenta de disseminação da diversidade étnica nas histórias infantis


Clarissa Bittencourt De Pinho e Braga, Dielma Castro Soares e Rosselinni Brasileira Rosa Muniz Gonçalves

Políticas de cultura e juventude na Bahia: prioridades elencadas nas Conferências de Cultura e Juventude
Nilton dos Santos Lopes Filho

11h | Comunicações
Auditório – Patrimônio Imaterial
Política para o patrimônio ou os eleitos: a lei do registro do patrimônio vivo de Pernambuco
Jaqueline Silva

Estudo preliminar sobre o processo de INRC e registro das congadas mineiras: manutenção da tradição
do reinado, políticas culturais e tentativas de construção de diálogos entre o Iphan e os detentores em
Santo Antonio do Monte
Francimário Vito dos Santos

Culturas populares, políticas públicas e processos de "alfabetização patrimonial": (des)encontros na folia


de reis em Valença, Rio de Janeiro
Marluce Magno e Regina Abreu

Processos de patrimonialização e políticas culturais: uma análise sobre as memórias da experiência da


escravidão e da experiência quilombola na comunidade negra rural do Alto do Caixão (Pelotas , RS)
Cristiane Bartz Ávila, Ângela Mara Bento Ribeiro e Maria De Fátima Bento Ribeiro

Museologia social, políticas públicas de memória e patrimônio e museus: o contexto do ponto de


memória da Terra Firme
Ana Claudia dos S. da Silva e Silvio Lima Figueiredo

Sala de Cursos – Patrimônio Material II


Cemitérios enquanto patrimônio cultural – o caso de Juiz de Fora/MG
Leandro Gracioso de Almeida e Silva e Fábio Vergara Cerqueira

Destombamento, explorando uma política pública controversa: o caso de São João Marcos
Mariana Freitas Priester e Mariana Kimie da Silva Nito

O PACCH em vassouras: entre a inclusão e o esquecimento


Iran Souza da Conceição

Ruínas de São Miguel Arcanjo: políticas culturais, memória e patrimônio


Vânia Lima Gondim e Mauro Meirelles

A privatização do patrimônio: os diversos interesses sobre um sítio arqueológico em Niterói/RJ


Rodrigo Pereira e Frederico Antonio Ferreira

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V V
Porão do Museu – Políticas, Cultura e Participação
Cultura e participação social
Janaina Santos Dias e Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves

Ensaio sobre as possibilidades de democratização das políticas públicas culturais


Silmara Costa De Oliveira e Márcia Maria De Oliveira

Políticas culturais e comunicação: interdisciplinaridade para uma política participativa


Gabriela Sobral

Espaços culturais públicos e sociedade civil organizada: a busca por um modelo participativo de
políticas públicas de cultura
Plínio Rattes

Uma universidade popular de cultura em Juazeiro do Norte?


Felipe Teixeira Bueno Caixeta

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V V
Índice dos Trabalhos

Adebal de Andrade Júnior


NOTAS SOBRE A IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA (SNC) EM MUNICÍPIOS MINEIROS....................22

Adélia Zimbrão
MUDANÇA DO MODELO DE PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL E O PROCESSO DE ELABORAÇÃO
DO PPA 2012-2015 DA CULTURA...........................................................................................................................................................................34

Alexandre Barbalho
O SEGUNDO TEMPO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO: O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA NO GOVERNO DILMA................49

Aline Pessôa da Ascenção Alcoforado


O SISCULT E OS SISTEMAS DE CULTURA: REALIDADES, POLÍTICAS E HISTÓRIA...........................................................................65

Allan Rocha de Souza, Alexandre de Serpa Pinto Fairbanks e Wemerton Monteiro Souza
DIVERSIDADE E PLURALIDADE COMO POLÍTICA CULTURAL: O DIREITO À DIVERSIDADE
NA PERSPECTIVA DOS TRIBUNAIS........................................................................................................................................................................77

Álvaro Santi
EVOLUÇÃO DOS ORÇAMENTOS PÚBLICOS DA CULTURA NO BRASIL DO SÉCULO XXI..................................................................88

Alysson Amaral
PARA PENSAR AS CIDADES EM SUA DIMENSÃO CULTURAL..................................................................................................................105

Ana Carênina de Albuquerque Ximenes e Liduína Moreira Lins


O FAZER ARTE NOS PONTOS DE CULTURA: UMA AÇÃO EM REDE.......................................................................................................118

Ana Carolina Louback Lopes


IMPACTOS DO INVESTIMENTO PÚBLICO EM DIFUSÃO AUDIOVISUAL NA CONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO URBANO
PAULISTANO: UM ENSAIO METODOLÓGICO PARA AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS...................................................132

Ana Claudia dos S. da Silva e Silvio Lima Figueiredo


MUSEOLOGIA SOCIAL, POLITICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA E PATRIMÔNIO E MUSEUS: O CONTEXTO DO PONTO DE
MEMÓRIA DA TERRA FIRME..................................................................................................................................................................................147

Ana Lorym Soares e Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos


A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA E A EDUCAÇÃO
DO ESTADO NOVO.......................................................................................................................................................................................................161

Ana Lúcia Pardo


A MULTIDÃO EM REVOLTA E SEUS PERSONAGENS NA CENA POLÍTICA..........................................................................................171

Ana Vasconcelos e André Gonçalves da Silva Bezerra


MAPEAMENTO DE RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS NO BRASIL: UMA BREVE AVALIAÇÃO................................................................184

André Ricardo Araujo Virgens


POLÍTICAS DE FOMENTO AO AUDIOVISUAL: REFLEXÕES SOBRE O POLO CINEMATOGRÁFICO DE PAULÍNIA..............193

Ariel Nunes
PROGRAMA CULTURA VIVA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES DE UM CAMPO POLÍTICO................................................................206

Beatriz Helena Ramsthaler Figueiredo


O TEATRO COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA.............................................................220

15

V V
Bruno Bortoloto do Carmo
PROJETOS DE MAPEAMENTO DE PATRIMÔNIOS MATERIAIS E IMATERIAIS PARA O RECONHECIMENTO DE UMA
PAISAGEM CULTURAL DO CAFÉ.....................................................................................................................................................................233

Calila das Mercês Oliveira, Raquel Machado Galvão e Roberto Henrique Seidel
ECONOMIA CRIATIVA E CADEIA PRODUTIVA DO LIVRO: ESTUDO E DIAGNÓSTICO SOBRE
AS EDITORAS DA BAHIA....................................................................................................................................................................................244

Carla Cristina Dutra Burigo e Renata Pletsch Reis


CULTURA, UNIVERSIDADE E SOCIEDADE: REFLEXÕES A PARTIR DA POLÍTICA INSTITUCIONAL DA CULTURA
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ................................................................................................................................................259

Carlos Antonio Moreira Gomes, Kéroly Gritti Fontalva e Marcus Vinícius Moreno e Nascimento
NÚCLEO DE FOMENTOS CULTURAIS: UMA EXPERIÊNCIA DE GESTÃO PÚBLICA DE DIREITO À CULTURA..............271

Carmen Lúcia Castro Lima


ABORDAGEM DE AGLOMERAÇÕES PRODUTIVAS PARA O SETOR CULTURAL: UMA ANÁLISE DOS
ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS....................................................................................................................................................................283

Carolina Marques Henriques Ficheira


REFLEXÕES SOBRE O CAMPO DO AUDIOVISUAL NA CAPTAÇÃO DE RECURSOS INCENTIVADOS NO PAÍS.................294

Cássia Camila Cavalheiro Fernandes e Maria de Fátima Bento Ribeiro


POLÍTICAS CULTURAIS PARA CIDADES MAIS CRIATIVAS NO MERCOSUL: UMA ANÁLISE DA PARADIPLOMACIA E
COOPERAÇÃO DESCENTRALIZADA NA REDE MERCOCIDADES.......................................................................................................306

Cassio Leonardo Nobre de Souza Lima


MÚSICAS, TERRITÓRIOS E IDENTIDADES: POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MÚSICA E SEU ALCANCE NA GESTÃO
PÚBLICA DA CULTURA NA BAHIA ATUAL..................................................................................................................................................320

Celia Maria Medicis M. de Q. Campos, Renata Echeverria Martins e Terezinha de Jesus Pereira da Silva
A CONTRIBUIÇÃO DO FUNDO DE INCENTIVO À CULTURA - FUNCULTURA NO PATRIMÔNIO DE PERNAMBUCO..328

Cesar de Mendonça Pereira


PONTOS DE CULTURA EM PERNAMBUCO: PONTOS E CONTRAPONTOS.....................................................................................343

Clarissa Alexandra Guajardo Semensato


O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA NO DESENHO FEDERATIVO BRASILEIRO E A EXPECTATIVA DO
REPASSE FUNDO A FUNDO...............................................................................................................................................................................353

Clarissa Bittencourt de Pinho e Braga, Dielma Castro Soares e Rosselinni Brasileira Rosa Muniz
Gonçalves
O CANTO COMO FERRAMENTA DE DISSEMINAÇÃO DA DIVERSIDADE ÉTNICA NAS HISTÓRIAS INFANTIS..............368

Cláudia Boettcher e Rafael Derois


UFRGS 80 ANOS: GESTÃO CULTURAL NA UNIVERSIDADE PÚBLICA.............................................................................................376

Cláudia Sousa Leitão e Luciana Lima Guilherme


ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL: UMA ALTERNATIVA DE DESENVOLVIMENTO A PARTIR DE SISTEMAS DE
INOVAÇÃO E PRODUÇÃO DE SETORES CRIATIVOS FORTALECIDOS POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS..................392

Cristiane Bartz Ávila, Ângela Mara Bento Ribeiro e Maria de Fátima Bento Ribeiro
PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO E POLÍTICAS CULTURAIS: UMA ANÁLISE SOBRE AS MEMÓRIAS
DA EXPERIÊNCIA DA ESCRAVIDÃO E DA EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA NA COMUNIDADE NEGRA RURAL DO
ALTO DO CAIXÃO (PELOTAS, RS)....................................................................................................................................................................407

Daniela Carvalho Sophia


O IPHAN SOB O SIGNO DA DITADURA – NOTAS DE PESQUISA (1967-1979) ..........................................................................421

16

V V
Daniele Borges, Juliane Conceição Primon Serres e Rafael Teixeira Chaves
MUSEU DAS COISAS BANAIS: CULTURA MATERIAL E VIRTUALIDADE..........................................................................................433

Daniele Cristina Dantas


PONDERAÇÕES SOBRE O USO DE INDICADORES NA ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA: UM
ESTUDO SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DA OFERTA CULTURAL SOB A GESTÃO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE
CULTURA DO RIO DE JANEIRO..........................................................................................................................................................................444

Danielly Dias Sandy e Heloisa Helena Costa


POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MUSEUS: GESTÃO E SUSTENTABILIDADE........................................................................................459

Elaine Ignácio e Teresa Rachel Dias Pires


EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ARQUEOLOGIA: A INTERFACE ENTRE UNIVERSIDADE E SOCIEDADE..............................467

Fabiano dos Santos Silva


A PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO PATRIMÔNIO HISTÓRICO...............................................................................................................477

Felipe da Silva Duque


ECONOMIA CRIATIVA: EMPREENDIMENTOS CULTURAIS...................................................................................................................487

Felipe Teixeira Bueno Caixeta


UMA UNIVERSIDADE POPULAR DE CULTURA EM JUAZEIRO DO NORTE? ..................................................................................498

Fernanda Barros e Pedro Almeida


NATA: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA DO CANDOMBLÉ..........................................................515

Fernanda Gabriela Biondo e Fernanda Rocha de Oliveira


POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO NA PERSPECTIVA DA CIDADANIA CULTURAL: UM ESTUDO DO PROCESSO DE
TOMBAMENTO DO CENTRO HISTÓRICO DE NATAL/RN......................................................................................................................525

Fernanda Rocha Oliveira, Mariana Kimie da Silva Nito, Raissa Balthazar


REFLEXÕES SOBRE AS NORMAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL..................................................................540

Flávia Salazar Salgado


A CULTURA POPULAR E O ESTADO BRASILEIRO: PARA COMEÇAR O DEBATE..........................................................................553

Francimario Vito dos Santos


ESTUDO PRELIMINAR SOBRE O PORECESSO DE INRC E REGISTRO DAS CONGADAS MINEIRAS: MANUTENÇÃO DA
TRADIÇÃO DO REINADO, POLÍTICAS CULTURAIS E TENTATIVAS DE CONSTRUÇÃO DE DIÁLOGOS ENTRE O IPHAN E
OS DETENTORES EM SANTO ANTONIO DO MONTE...............................................................................................................................567

Francine de Souza Dias


POLÍTICAS DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL: “O PLANO VIVER SEM
LIMITE” E SEM CULTURA...................................................................................................................................................................................582

Gabriela Sobral
POLÍTICAS CULTURAIS E COMUNICAÇÃO: INTERDISCIPLINARIDADE PARA UMA POLÍTICA PARTICIPATIVA..........591

Gabriela Toledo Silva


POLÍTICA CULTURAL DA DIPLOMACIA AO DESENVOLVIMENTO: TRAJETÓRIA PÚBLICA DE
UM TERMO NO SÉCULO XX................................................................................................................................................................................601

Giuliana Kauark
DIREITOS CULTURAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA: POSSÍVEIS INTERSECÇÕES..................................................615

Guilherme do Nascimento Rodrigues


AFROREGGAE E SUAS PRÁTICAS TERRITORIAIS EM VIGÁRIO GERAL: O CASO DO PROJETO
VIGÁRIO COLORIDO GERAL................................................................................................................................................................................624
17

V V
Helen Cristina Patrício de Novais
REFLEXOS DA POLÍTICA CULTURAL PARA ACESSIBILIDADE TANTO EM PROJETOS CULTURAIS QUANTO PARA
GESTÃO PÚBLICA DE CULTURA........................................................................................................................................................................634

Inti Anny Queiroz


O GÊNERO EDITAL CULTURAL NO BRASIL E PROCESSOS DE INFORMAÇÃO NA ESFERA POLÍTICO-CULTURAL......648

Iran Souza da Conceição


O PACCH EM VASSOURAS: ENTRE A INCLUSÃO E O ESQUECIMENTO............................................................................................661

Janaina Santos Dias e Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves


CULTURA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL...............................................................................................................................................................673

Jaqueline de Oliveira e Silva


POLÍTICA PARA O PATRIMÔNIO OU OS ELEITOS: A LEI DO REGISTRO DO PATRIMÔNIO VIVO DE PERNAMBUCO..686

Jaqueline Santana
CULTURA QUILOMBOLA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA: HISTÓRIA, LITERATURA E IDENTIDADE....................................697

Jéssica Suzano Luzes


PARA ALÉM DE PEDRA E CAL: AS REFORMULAÇÕES DO CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL A PARTIR DOS
DEBATES DO CONSELHO FEDERAL DE CULTURA (1966-1974) ......................................................................................................706

João Alcântara de Freitas, Telma Lasmar Gonçalves, Thaís Costa da Silva


INTERAÇÕES SOCIAIS E AFETAÇÕES: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE AS VISITAS MEDIADAS NO MUSEU CASA DE
RUI BARBOSA............................................................................................................................................................................................................721

João Guerreiro
BAIXADA FLUMINENSE EM REDES DE CONVERSAS: NOTAS INTRODUTÓRIAS PARA POLÍTICAS CULTURAIS
REALIZADAS POR E COM OS PRATICANTES...............................................................................................................................................730

José Ítalo Bezerra Viana


POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E USOS TURÍSTICOS DO PATRIMÔNIO NO CARIRI CEARENSE................................745

José Jorge de Carvalho, Letícia Vianna e Carla Águas


ENCONTRO DE SABERES: POLÍTICA DE INCLUSÃO DE MESTRES DAS CULTURAS TRADICIONAIS NA DOCÊNCIA DO
ENSINO SUPERIOR..................................................................................................................................................................................................760

Júlia Erminia Riscado


POLÍTICA DE REQUALIFICAÇÃO DOS CENTROS HISTÓRICOS NO CONTEXTO DAS OPERAÇÕES URBANAS
CONSORCIADAS: O CASO DO PORTO MARAVILHA...................................................................................................................................774

Karina Poli
ECONOMIA CRIATIVA, POLÍTICA CULTURAL E O TRABALHO DA MÚSICA: ENTENDENDO AS RELAÇÕES E
DESCOBRINDO OS AGENTES..............................................................................................................................................................................785

Leandro Gracioso de Almeida e Silva e Fábio Vergara Cerqueira


CEMITÉRIOS ENQUANTO PATRIMÔNIO CULTURAL – O CASO DE JUIZ DE FORA/MG............................................................800

Lecinio Alves Tavares


SISTEMA CULTURAL DO EXÉRCITO BRASILIERO DOS PRIMEIROS TRABALHOS ATÉ O SURGIMENTO DA DIRETORIA
DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DO EXÉRCITO..................................................................................................................812

Lia Bahia
ENSAIOS DE ENCONTROS ENTRE CINEMA E TELEVISÃO: PERCURSOS DA POLÍTICA PÚBLICA
BRASILEIRA NOS ANOS 2000.............................................................................................................................................................................828
18

V V
Luana Vilutis
ECONOMIA VIVA: AÇÃO DE FOMENTO OU PRÊMIO DE RECONHECIMENTO? ..............................................................................843

Lucas Garcia
A INFLUÊNCIA MARIOANDRADIANA NAS POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL POR MEIO DAS ERRÂNCIAS E DA
CARNAVALIZAÇÃO DO ESPÍRITO MODERNO................................................................................................................................................858

Luiz Augusto Rodrigues


OSCAR NIEMEYER: TECENDO IDENTIDADES – SUBSÍDIOS PARA AS POLÍTICAS CULTURAIS
COM FOCO NO TERRITÓRIO..................................................................................................................................................................................872

Marcella Francelina Vieira Camargo e Aline Andrade de Carvalho


POR UMA SINERGIA DA DIVERSIDADE: PESQUISA AÇÃO PARTICIPATIVA NA REDE DE PONTOS DE CULTURA..........880

Marcelo Gruman
QUO VADIS, FUNARTE? ...........................................................................................................................................................................................892

Marcelo Ikeda
AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O AUDIOVISUAL BRASILEIRO: NOVAS PERSPECTIVAS...........................................................905

Márcia Barros Ferreira Rodrigues, Clarkson Machado Diniz e Rosely Maria da Silva Pires
LONA CULTURAL ITINERANTE: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO POLÍTICA E CULTURAL..............................................915

Maria Antonieta Sampaio Rodrigues


UMA EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO EM BIBLIOTECA-PARQUE.............................................................................................................930

Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi


O OBSERVATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E A PESQUISA EM POLÍTICA CULTURAL NO BRASIL...........944

Maria Fátima Roberto Machado


PARA ALÉM DA PRIMAVERA: OS ÍNDIOS, UM MUSEU, UM LIVRO E QUASE NENHUM AMIGO. MATO GROSSO
E A POLÍTICA CULTURAL.......................................................................................................................................................................................955

Maria Souto de Carvalho


CULTURA POLÍTICA E POLÍTICA CULTURAL: OUVINDO RUÍDOS........................................................................................................965

Mariana de Araújo Aguiar


POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E A PROMOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO: QUESTÕES TEÓRICAS............................977

Mariana Freitas Priester e Mariana Kimie da Silva Nito


DESTOMBAMENTO, EXPLORANDO UMA POLÍTICA PÚBLICA CONTROVERSA: O CASO DE SÃO JOÃO MARCOS............989

Mariana Luscher Albinati e Rodrigo Fagundes Bouillet


CIDADANIA E RECONHECIMENTO CULTURAL: PISTAS DE UMA TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL NO MINC..............1002

Mariana Rodrigues Tavares


UMA “NAÇÃO ENCICLOPÉDICA” – ENSAIO SOBRE A HISTÓRIA DO INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO ATRAVÉS DO
PROJETO CULTURAL DA ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA..........................................................................................................................1015

Marluce Magno e Regina Abreu


CULTURAS POPULARES, POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSOS DE "ALFABETIZAÇÃO PATRIMONIAL":
(DES)ENCONTROS NA FOLIA DE REIS EM VALENÇA, RIO DE JANEIRO.........................................................................................1028

Martha Myrrha Ribeiro Soares


A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA MUNICIPAIS: DEMOCRACIA, DIVERSIDADE E
FINANCIAMENTO EM ANGRA DOS REIS/RJ................................................................................................................................................1038

Mércia Carvalho Andrade, Patrícia Dorneles e Marina Helena Chaves Silva


BIBLIOTECA ACESSÍVEL: POLÍTICA DE CULTURA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL..........................................1053
19

V V
Milena Guimarães Andrade Tanure
MEMÓRIA E ESPAÇO URBANO: UMA ANÁLISE DA EFICÁCIA DO TOMBAMENTO NO CENTRO
HISTÓRICO DE SALVADOR..................................................................................................................................................................................1068

Mirtes Rose Menezes da Conceição


O BLOCO RASGADINHO E A COSTURA DE UMA POLÍTICA CULTURAL EM ARACAJU (SE)......................................................1083

Monike Garcia Ribeiro


UMA INTERFACE DE POLÍTICA CULTURAL E PATRIMÔNIO CULTURAL: "A EXPERIÊNCIA DA TENTATIVA DO
RESGATE DO PORTAL DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES DO RIO DO JANEIRO, DURANTE a VIGÊNCIA DO
CONSELHO FEDERAL DE CULTURA, NO ANO DE 1976".........................................................................................................................1093

Naiene Sanches Silva


SHOW NO CEU OU CEU É SHOW: UMA POLÍTICA CULTURAL SOB A LUZ DOS HOLOFOTES..................................................1107

Nayara Souza, Larissa Machado e Ana Flávia Machado


MUSEUS NO BRASIL: ANÁLISE SOCIOECONÔMICA DE PERFIS...........................................................................................................1122

Nilton dos Santos Lopes Filho


POLÍTICAS DE CULTURA E JUVENTUDE NA BAHIA: PRIORIDADES ELENCADAS NAS CONFERÊNCIAS
DE CULTURA E JUVENTUDE...............................................................................................................................................................................1135

Nina Reis Saroldi


NOVAS NOTAS SOBRE A INDÚSTRIA CULTURAL E A SOCIEDADE “EXCITADA” .........................................................................1145

Nivia de Andrade Lima


A NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS QUE DESPERTEM O PÚBLICO INFANTOJUVENIL BRASILEIRO
PARA A LITERATURA HISPANO-AMERICANA.............................................................................................................................................1155

Osvaldo Emery, Patrícia Dorneles e Marina Helena Chaves Silva


ACESSIBILIDADE DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA AO CINEMA: AÇÃO DE POLÍTICA PÚBLICA DE GARANTIA
DE DIREITO À CULTURA.......................................................................................................................................................................................1166

Pâmella Passos e Adriana Facina


“BAILE MODELO!”: REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS FUNKEIRAS EM CONTEXTO DE PACIFICAÇÃO.................................1181

A DIVERSIDADE EM FOCO: POLÍTICA CULTURAL E PATRIMÔNI IMATERIAL NA CIDADE DE CURITIBA.......................1191

Pedro Bastos de Souza


POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E INCENTIVOS FISCAIS EM ÂMBITO ESTADUAL: BREVE COMPARATIVO ENTRE AS
LEIS DO RIO DE JANEIRO, MINAS GERAIS E RIO GRANDE DO SUL....................................................................................................1206

Plínio Rattes
ESPAÇOS CULTURAIS PÚBLICOS E SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA: A BUSCA POR UM MODELO PARTICIPATIVO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA.................................................................................................................................................................1221

Rafael Moura de Andrade


A DESCENTRALIZAÇÃO NO CARNAVAL MULTICULTURAL DO RECIFE: FESTA, POLÍTICA E CIDADE...............................1236

Raquel Moreira
FINANCIAMENTO DA CULTURA: SIGNIFICAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO TEMA NAS POLÍTICAS
CULTURAIS. O CASO PROCULTURA..............................................................................................................................................................1246

Renata Curcio Valente


REFLETINDO SOBRE O CAMPO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA POVOS INDÍGENAS.........................................................1262

Renata de Paula T. Rocha de Souza e Fernanda Argolo Dantas


POLÍTICAS CULTURAIS PARA O AUDIOVISUAL NO BRASIL: NOTAS SOBRE OS GOVERNOS LULA E DILMA..................1280
20

V V
Renata Duarte e Lia Calabre
A FISCALIZAÇÃO DA LEI SARNEY.....................................................................................................................................................................1296

Rodrigo Cazes Costa


A IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA MUNICIPAL DE CULTURA EM RIO DAS OSTRAS A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DA
CULTURA ENQUANTO RECURSO......................................................................................................................................................................1311

Rodrigo Pereira e Frederico Antonio Ferreira


A PRIVATIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO: OS DIVERSOS INTERESSES SOBRE UM SÍTIO
ARQUEOLÓGICO EM NITERÓI/RJ ....................................................................................................................................................................1321

Samira Chedid
A INSERÇÃO DA CULTURA NA AGENDA DO GOVERNO FEDERAL A PARTIR DO MODELO
DE EQUILÍBRIO PONTUADO...............................................................................................................................................................................1338

Selma Maria Santiago Lima


ARTESANATO BRASILEIRO - UMA COLCHA DE RETALHOS..................................................................................................................1346

Silmara Costa de Oliveira e Márcia Maria de Oliveira


ENSAIO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE DEMOCRATIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS............................1361

Silvia Leal de Oliveira e Thiago Novaes


RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS: NOTAS SOBRE A APOLOGIA À PREGUIÇA E A
IMPORTAÇÃO DA ECONOMIA CRIATIVA.......................................................................................................................................................1371

Simone Amorim e João Teixeira Lopes


O EUCALIPTO SECA TUDO EM VOLTA: O DESAFIO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA EM PORTUGAL.............1380

Tereza Ventura
BRASIL CRIATIVO E BRASIL SEM MISÉRIA: UM ENCONTRO POSSÍVEL? ......................................................................................1394

Terezinha de Jesus Pereira da Silva, Marcos Germano dos Santos Silva e Augusto Eugenio Paashaus Neto
DIRETRIZES PARA UM PLANO SETORIAL DE PATRIMÔNIO NA POLÍTICA DE CULTURA DE PERNAMBUCO...............1410

Tony Gigliotti Bezerra


SISTEMAS NACIONAIS EM FORMAÇÃO: SNC E SUAS EM PERSPECTIVA COMPARADA...........................................................1424

Valcir Bispo Santos


A RELAÇÃO ENTRE CULTURA E DESENVOLVIMENTO E A ESTRATÉGIA DE FOMENTO
DE ARRANJOS CRIATIVOS NA AMAZÔNIA....................................................................................................................................................1439

Vânia Lima Gondim e Mauro Meirelles


RUÍNAS DE SÃO MIGUEL ARCANJO: POLÍTICAS CULTURAIS, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO......................................................1454

Viviane Cristina Pinto


ORGANIZAÇÃO CULTURAL DA SOCIEDADE E DO ESTADO: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS
POLÍTICAS CULTURAIS BRASILEIRAS............................................................................................................................................................1467

Weslaine Wellida Gomes


A IGUALDADE COMO FUNDAMENTO MORAL DAS POLÍTICAS CULTURAIS..................................................................................1484

Wilq Vicente dos Santos


POLÍTICA CULTURAL E CULTURA COMO DOMINAÇÃO ECONÔMICA..............................................................................................1495

Wolney Vianna Malafaia


CINEMA E EDUCAÇÃO: O INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA EDUCATIVO E A SÉRIE
BRASILIANAS DE HUMBERTO MAURO..........................................................................................................................................................1511

Yves Finzetto
DIFUSÃO DA CULTURA BRASILEIRA NO EXTERIOR: OS ACORDOS DE COOPERAÇÃO CULTURAL DO
ITAMARATY NO GOVERNO LULA......................................................................................................................................................................1519
21

V V
NOTAS SOBRE A IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA
(SNC) EM MUNICÍPIOS MINEIROS
Adebal de Andrade Júnior1

RESUMO: Neste trabalho analiso fatores políticos, administrativos e econômicos que


determinaram a condução do processo de implementação do Sistema Nacional de Cultura
(SNC) em nove municípios de Minas Gerais. O baixo grau de institucionalização das políticas
culturais, a desqualificação técnica de gestores e outros profissionais da administração pública
municipal, bem como os orçamentos reduzidos para a área da Cultura são apontados neste
estudo como complicadores para o processo de adesão municipal ao SNC e sua implantação.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema Nacional de Cultura, Políticas Públicas, Gestão Municipal,


Cultura.

1 Introdução
O formato das políticas culturais, adotado pelo Estado brasileiro, baseado em
mecanismos de renúncia fiscal foi consolidado a partir da segunda metade da década de 1980,
durante o governo Sarney. Nesse período e nos anos seguintes houve o fortalecimento da
concepção liberal de gestão da cultura, o Estado deixou a condução das políticas culturais por
conta do setor de marketing das empresas, uma vez que a Lei Federal de Incentivo à Cultura,
a Lei Rouanet2, firmou-se como a principal linha de financiamento das ações culturais
(CARVALHO; GUIMARÃES; SILVA, 2009). Nas décadas posteriores, o recrudescimento
dessa concepção, como base para orientação das linhas de ação da política cultural, não
impediu as críticas a esse modelo e o surgimento de propostas para a democratização das
políticas culturais, mas fez esse processo ganhar contornos complexos e, por vezes, sem a
força necessária para atingir seu objetivo.
Artistas, produtores culturais, intelectuais e militantes da área criticavam o formato da
política cultural desenvolvida no país e defendiam que o Estado deveria garantir a formulação
democrática das políticas públicas e de gestão da cultura, bem como o exercício dos direitos
culturais a todos, conforme definido pela Constituição Federal de 1988. A resposta do
governo brasileiro às críticas realizadas a política cultural veio com a realização, em 2003,

1
Doutorando em Antropologia Cultural (IFCS/UFRJ) e mestre em Ciências Sociais (PUC-Minas). Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. adebaldeandrade@gmail.com
2
A Lei Federal de Incentivo à Cultura nº 8.313/91 assegura benefícios às pessoas e empresas que aplicarem
parte do seu Imposto de Renda em projetos e ações culturais. Pessoas jurídicas podem deduzir até 4% do valor
aplicado na cultura do seu imposto, enquanto para as pessoas físicas o percentual chega a 6%.
22

V V
dos seminários Cultura para Todos, com o objetivo de aprimorar a discussão sobre a
reestruturação da Lei Rouanet. Em 2005, foi realizada a primeira Conferência Nacional de
Cultura que indicou diretrizes para a formulação do Plano Nacional de Cultura (PNC),
aprovado pelo legislativo em 2010 e com vigência até 2020. Em maio de 2012, a Câmara dos
Deputados aprovou a proposta de emenda constitucional que acrescentou à Carta Magna
brasileira o artigo 216-A, criando o Sistema Nacional de Cultura (SNC), instrumento de
gestão que busca garantir a continuidade das políticas culturais e é o principal articulador
federativo do Plano Nacional de Cultura (PNC)3.
O SNC entrou na agenda política do Estado brasileiro a partir do primeiro governo
Lula (2003-2006) que levou à revisão do papel do Estado na gestão cultural e à sua abertura
para a participação de todos os atores envolvidos neste campo para a elaboração e condução
das políticas para a área (SILVA, 2013). Nesse caminho, o Governo Federal criou espaços de
diálogo entre os diversos setores artístico-culturais, segmentos sociais e com os outros entes
federados, estados e município, além do Distrito Federal. Assim, iniciou-se um processo com
o objetivo de democratizar, descentralizar e ampliar o acesso à cultura no Brasil 4.
O artigo 216-A definiu o Sistema Nacional de Cultura como um processo de gestão e
promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas
entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento
humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais5. O SNC orienta-se
por princípios como a valorização da diversidade das expressões culturais; a universalização
do acesso aos bens e serviços culturais; a cooperação entre os entes federados, os agentes
públicos e privados atuantes na área da cultura; o fomento à produção, difusão e circulação de
conhecimento e bens culturais; a integração e interação na execução das políticas, programas,
projetos e ações desenvolvidas; a complementaridade nos papéis dos agentes culturais; a
transversalidade das políticas culturais; a autonomia dos entes federados e das instituições da
sociedade civil; a transparência e compartilhamento das informações; a democratização dos
processos decisórios com participação e controle social e a descentralização articulada e
pactuada da gestão, dos recursos e das ações (BARRETO, 2007; CALABRE, 2013).

3
As 53 metas que formam o Plano Nacional de Cultura (PNC) estão disponíveis no site <pnc.culturadigital.br>.
4
Nesse contexto foi realizada a I Conferência Nacional de Cultura em dezembro de 2005, contando com 1300
participantes, entre delegados e observadores (MINC, 2006). A II Conferência Nacional de Cultura ocorreu em
março de 2010, dessa vez com 1400 pessoas entre delegados e observadores (MINC, 2010) que debateram temas
ligados à cultura. Pode-se afirmar que propostas deliberadas dessas conferências influenciaram tanto na tomada
de decisão das atividades legislativas, como também na ação do Executivo, pois a pauta elaborada pelo MinC
nos anos seguintes contempla temas deliberados nas duas conferências realizadas anteriormente.
5
O artigo 216-A pode ser encontrado em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc71.htm>.
23

V V
O SNC definiu uma série de rotinas e procedimentos para a sua implantação, visando
descentralizar e organizar a gestão cultural do país. Entre elas está a organização de uma
estrutura administrativa mínima contendo um órgão gestor permanente da política cultural,
um conselho de políticas culturais, a organização regular de conferências de cultura, um plano
de cultura e um sistema de financiamento que, preferencialmente, não seja por meio de
renúncia fiscal, mas baseado em um fundo de apoio e subsídio da produção cultural. Além
disso, os estados e municípios foram estimulados a assinarem um termo de cooperação
federativa comprometendo-se a implantar sistemas locais de cultura com a mesma
organização administrativa proposta pelo SNC. “O SNC envolve, desse modo, sistemas
organizativos e institucionalizados nos três níveis federativos, numa articulação institucional
regulada por normativas, instrumentos, aparatos e negociações imprescindíveis”
(CARVALHO; GUIMARÃES; SILVA, 2009).
O arranjo elaborado para o SNC mostra-se alinhado ao texto constitucional de 1988
que instituiu os municípios como entes federados, com maior poder decisório e novas
responsabilidades, entre elas a função de realizar a gestão da área cultural. Mas, como observa
Marta Arretche (2009), a Carta Constitucional não aboliu a autoridade da União em legislar
sobre políticas que estavam sendo transferidas para estados e municípios, como podemos
perceber na implantação do SNC. É importante frisar que o fato de os governos locais
assumirem novas competências na área cultural não implica que essa esfera disponha de
recursos financeiros, materiais e humanos para a sua realização. Muitos também não têm
competência estabelecida e experiência acumulada para elaboração e execução das políticas
culturais, produzindo um quadro bastante problemático, como veremos adiante.
Para que ocorra a implantação do SNC é necessário que as municipalidades e estados
façam a adesão ao modelo, assumindo compromissos para sua efetivação. Cada ente da
federação deve assinar o termo de cooperação federativa e implantar a estrutura adequada ao
desenvolvimento de sistemas locais congêneres ao SNC. O desafio para a implantação do
SNC encontra-se na necessidade em conduzir as ações dos entes subnacionais para a direção
considerada como “ótima” pelo SNC. Para esse fim, o Governo Federal, valendo-se da sua
condição de coordenador da política, pode criar instrumentos legais que vão direcionar as
medidas adotadas pelas administrações locais, objetivando a implantação do SNC, e/ou criar
incentivos financeiros, ou de outro caráter, para estimular as ações municipais e estaduais para
um sentido pertinente e alinhado à política formulada pela esfera federal.

24

V V
Portanto, o objetivo deste texto é apresentar algumas considerações sobre aspectos
políticos, administrativos e financeiros observados em municípios mineiros no ano de 2013
que influenciaram a decisão desses entes federados em assinar ou ignorar o termo de
cooperação federativa para implantação do SNC. Assim, espero contribuir para a
compreensão do Sistema Nacional de Cultura e estimular outras investigações sobre o seu
processo de efetivação no país. Em Minas Gerais, 210 municípios, dos 853 que compõe o
estado, assinaram o acordo de cooperação para implantação do SNC até janeiro de 2015,
segundo informações divulgadas pelo Ministério da Cultura (MinC)6.
Para desenvolver meu trabalho apoio-me em informações obtidas de gestores das
cidades mineiras de Uberaba e Cachoeira Dourada (Região do Triângulo Mineiro), Muriaé,
Laranjal e Dona Euzébia (Região da Zona da Mata), Pains e Dores do Indaiá (Região Centro-
Oeste), Taiobeiras (Região Norte) e Malacacheta (Região do Jequitinhonha e Mucuri). A
coleta dos dados que subsidiaram esse texto ocorreu durante a realização da etapa municipal
da III Conferência Nacional de Cultura, entre os meses de junho e agosto de 2013, por meio
de conversas realizadas com os gestores culturais locais, da observação da estrutura e das
práticas administrativas das municipalidades. Para evitar constrangimentos para os gestores
optei por apresentar as informações sem citar nomes ou identificar de qual município
referiam-se os acontecimentos expostos em seguida.

2 Notas sobre a implementação do SNC em Minas Gerais


O processo de adesão de alguns municípios mineiros ao Sistema Nacional de Cultura
(SNC) mostrou-se problemático no período referente ao final do ano de 2012 e início de 2013.
Um dos principais fatores para esse cenário foram as eleições municipais ocorridas em
outubro de 2012, conforme apontou um gestor cultural entrevistado. Para ele, as eleições
trouxeram mudanças nas administrações municipais e os prefeitos eleitos, ou parte deles,
assumiram seus respectivos cargos com novas prioridades, deixando a área da Cultura em
segundo plano. As eleições representaram, para vários municípios mineiros, um processo de
ruptura que interrompeu políticas públicas e obras iniciadas na gestão que deixou o executivo
local. Esse fato foi bastante comum em casos em que um grupo de oposição assumiu a
administração e também quando a mesma gestão permaneceu à frente da prefeitura.
A mudança na gestão municipal ainda é um desafio para a continuidade das políticas
públicas. O processo de transição dos cargos do executivo é falho e geralmente destina-se às
6
O Ministério da Cultura divulga regularmente a situação dos municípios e estados em relação à adesão ao SNC.
Os dados são disponibilizados no site <www.cultura.gov.br/snc/situacao-dos-estados-e-municipios>.
25

V V
áreas vistas como prioritárias na administração pública, como a Fazenda, a Saúde, a Educação
e Obras. Ou seja, mesmo havendo um processo de transição de um governo a outro ele é
limitado a certas pastas do governo, sem contemplar a Cultura. Assim, em função da falta de
conhecimento, diversos projetos e ações encaminhados no governo anterior são interrompidos
ou ficam paralisados até que a nova administração conheça seu conteúdo e as providências
necessárias para seu encaminhamento.
As mudanças de gestão também são responsáveis por outra situação que inviabiliza a
continuidade de ações iniciadas na administração anterior. A entrada de novos gestores
representa em um primeiro momento, principalmente na pasta da Cultura, uma
desqualificação técnica na administração. Tal fato é fruto da escolha dos gestores ser pautada
por questões políticas e não técnicas, resultando na entrada de sujeitos sem conhecimento da
área em que vai atuar e, muitas vezes, sem capacitação para lidar com questões pertinentes ao
Estado brasileiro e às políticas públicas.
O quadro descrito acima é bastante frequente nos municípios de pequeno e médio
porte de Minas Gerais, mas não uma exclusividade desses. A área da Cultura é vista dentro da
hierarquia administrativa como secundária e é frequentemente ocupada por membros de
partidos coligados à legenda que assumiu a prefeitura municipal e que precisam cumprir
acordos de campanha. Portanto, não há uma preocupação com a capacidade técnica de quem
está assumindo o cargo. Acredito que isso se deve, em parte, à ausência de uma mentalidade
administrativa que valorize a cultura como recurso para o desenvolvimento social e
econômico local, nos termos propostos por George Yúdice (2013). Além disso, o arcabouço
legal que institucionaliza as ações da gestão cultural enquanto uma política de Estado está
sendo elaborado, propiciando a atuação dos gestores a partir do seu interesse particular e
fazendo da área um tema secundário em alguns governos.
Não é novidade dizer que estamos dentro de um processo de construção de políticas
públicas de Estado para a cultura. Historicamente as políticas culturais no Brasil são
caracterizadas pela sua baixa institucionalização e precários orçamentos. A partir de 2005,
com a proposta de implantação do SNC, a discussão sobre a Cultura passa a enfatizar o
fortalecimento das estruturas institucionais, a procura por critérios mais democráticos de
alocação de recursos financeiros, além do papel ativo do Estado na formulação e
implementação de políticas culturais e a ampliação da participação da sociedade nesse
processo.

26

V V
Aspecto que deve ser considerado é o número reduzido de recursos humanos
qualificados para atuar no campo da cultura. Em geral, os sujeitos que formam o corpo
técnico na gestão cultural ou são administradores de outra área e pouco sensíveis às
manifestações culturais que estão administrando, embora bons conhecedores da máquina
governamental, ou, no outro extremo, pessoas sensíveis ao fenômeno cultural, mas que não
conhecem adequadamente os métodos e técnicas administrativas que lhes permitiriam um
melhor desempenho (SARAIVA, 2008). Há também uma terceira via composta por pessoas
que não conhecem a máquina estatal e o campo da cultura. O que se observa é a formação dos
gestores durante o próprio processo de atuação. Isso explica também porque algumas ações
são interrompidas nas mudanças de administração. Os novos gestores assumem suas funções
sem conhecimento prévio o que pode retardar alguns processos até que ele compreenda seu
campo de atuação. Sendo assim, é sempre problemática a composição das equipes que
conduzirão as políticas públicas municipais nesta área.
Os dados apresentados até aqui permitem considerar que dentro do “ciclo de políticas
públicas” (KINGDON, 1995) a fase de implementação de uma política talvez seja um dos
momentos mais delicados do processo, pois é o momento em que estruturas físicas e recursos
humanos inadequados, bem como disputas políticas podem inviabilizá-la.
Podemos dizer que a discussão sobre política cultural, com o viés proposto pelo SNC,
ainda é um tema novo na agenda política dos estados e municípios. A definição dos direitos
culturais tornou o campo mais compreensível, mas é matéria mais recente que, por exemplo,
os direitos sociais ou a saúde pública e, portanto, não ocupa lugar de destaque na estruturação
das administrações estaduais e municipais. Em cidades de pequeno porte, com baixos
orçamentos e envolvidas com demandas estruturais, tais como saneamento básico e saúde
pública, a cultura pode ficar reduzida a departamentos sem expressão nas administrações7.
Em conversa com uma gestora cultural, ela disse que o seu departamento de cultura
era independente, pois mesmo estando dentro da estrutura da Secretaria de Educação era
completamente autônomo, “não sofria nenhuma interferência da secretária de educação”. A
afirmação da gestora é ambígua, pois ela relata o fato demonstrando orgulho da sua
independência, mas, ao prosseguir no diálogo, a gestora revela que a política cultural não

7
A Constituição Federal de 1988 afirma que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais,
mas não define quais seriam esses direitos. Para a estruturação do SNC foi necessário definir quais seriam esses
direitos: direito à identidade e à diversidade cultural (ou direito à memória ou de proteção do patrimônio
cultural); direito à participação na vida cultural; direito à livre criação; Direito à livre fruição (ou acesso); direito
à livre difusão; direito à livre participação nas decisões de política cultural; direito autoral e o direito ao
intercâmbio cultural nacional e internacional.
27

V V
consta no orçamento da Secretaria de Educação e que também não dispõe de recursos
humanos para cumprir as obrigações do seu departamento. Portanto, a autonomia do
departamento de cultura da gestora entrevistada deve-se ao fato da administração considerá-lo
como um órgão sem relevância e importância para a cidade, confirmando a ideia apresentada
no parágrafo anterior.
É importante considerar que a mudança do governo municipal, principalmente quando
a oposição está assumindo a administração, é marcada, muitas vezes, por atitudes de
sonegação de informações sobre as ações desenvolvidas pelo corpo que ocupava o executivo
anteriormente com o objetivo de dificultar o trabalho dos seus sucessores e também para
evitar possíveis críticas pelos novos administradores. Alguns chefes de executivos relatam
que ao assumir o cargo encontram computadores vazios e nenhum registro de documentos e
medidas realizadas pelo prefeito anterior. Assim, várias ações não são continuadas de
imediato, pois há uma ausência em informações para prosseguir com políticas públicas
desenvolvidas pela administração anterior.
A mudança no executivo local também pode ser caracterizada por um abandono
proposital de ações iniciadas no governo passado. Tentando não se vincular às ações do
governo anterior, novas administrações ignoram ou renunciam às políticas públicas iniciadas
pelos seus antecessores. Dessa forma, são interrompidos processos que poderiam manter na
memória dos eleitores referências da legenda que governou o município no mandato passado.
Nesse ponto, cabe destacar que muitas tomadas de decisão são pautadas por questões políticas
e não por uma avaliação criteriosa dos resultados que podem ser gerados por determinada
política pública. Além disso, certos projetos políticos pessoais são desenvolvidos conectados
a determinada política pública, fazendo com que a imagem de uma personalidade política seja
vinculada a um projeto. Ou seja, para não reforçar a imagem de uma pessoa certas políticas
públicas podem ser abandonadas e/ou identificadas como negativas para o município.
As eleições presidenciais também influenciaram a implementação de políticas
públicas. Para José Ângelo Machado (2008), os governos subnacionais, dotados de autonomia
político-administrativa, representando interesses de grupos locais, podem se omitir na
condução de políticas propostas pela União cujos resultados dependam de sua cooperação ou,
ainda, atuar em sentido contrário a fim de neutralizá-las. Municípios mineiros governados por
legendas que eram oposição ao governo federal distanciaram-se de políticas formuladas pela
União que poderiam, caso obtivessem sucesso, divulgar a presidência da república e ofuscar o

28

V V
executivo local. Portanto, em função de interesses políticos, políticas públicas são executadas
ou descartadas.
O arranjo do SNC coloca o governo federal como um articulador que estimula os entes
subnacionais a cooperarem para implantação de um modelo de gestão para a cultura no país.
Nesse formato o governo federal se arrisca ao transferir o êxito do SNC à adesão e
cooperação dos municípios e estados. Mas, por outro lado, as administrações municipais
entendem que o SNC é uma política vertical, concebida pelo governo federal e a sua
implantação, bem como seu sucesso local será creditado ao governo federal e não ao
municipal.
A implementação perfeita de uma política pública é “ilusória”, devido ao que
Exworthy, Berney e Powell (2002) chamaram de “lacuna de implementação”. O governo
federal define ações e espera que elas sejam implantadas da maneira como foram formuladas
e, muitas vezes, sem prever possíveis dificuldades, “lacunas” que podem surgir em nível
local. Os responsáveis pela execução da política no nível subnacional detêm certa autonomia
e algum poder discricionário, permitindo que eles reinterpretem as diretrizes do poder central
e programem suas ações de acordo com sua realidade e suas convicções (LIMA, 2011). Sendo
assim, nem sempre atingem as expectativas do governo central.
Há também uma preocupação dos gestores locais com as responsabilidades assumidas
pelo município a partir do momento em que o acordo de cooperação federativo é assinado. A
estruturação dos componentes do SNC demanda recursos financeiros que não são compatíveis
com os baixos orçamentos destinados à cultura. A criação de um órgão gestor para a cultura é
visto como uma das principais dificuldades para implantação do Sistema. Vários municípios
ainda mantém a pasta da Cultura conectada à Educação, ao Turismo, ao Lazer ou ao Esporte.
Ou seja, criar um órgão gestor próprio para a Cultura e a estrutura necessária para mantê-lo
significa aumentar o recurso financeiro disponível para esse setor da administração e, em
muitos casos, isso significaria diminuir a verba de outras áreas, o que não é visto com bons
olhos pelos grupos políticos que ocupam pastas tradicionalmente com orçamentos maiores e
que podem ser afetadas. Além disso, como a Cultura ocupa posição secundária nas
administrações públicas, aumentar os recursos financeiros para seu financiamento não parece
trazer benefícios locais.
Alguns gestores apontaram que a política federal é incerta na medida em que se vale
de um quadro hipotético para induzir a adesão ao SNC e sua estruturação. Muitos municípios
aderem ao SNC na expectativa de aumentar seus recursos financeiros para a cultura com as

29

V V
transferências fundo a fundo que poderão vir a acontecer caso seja aprovada a Proposta de Lei
6.722/2010, que tramita no congresso nacional e prevê mudanças no sistema de financiamento
da cultura no país. Os gestores argumentam que a política federal deveria ser mais clara em
indicar caminhos a serem adotados para a implantação do SNC e quais os ganhos para os
entes subnacionais que cumprissem as etapas propostas.
A adesão ao SNC gera um aumento de gastos para o município sem uma contrapartida
financeira da União. Os poucos recursos financeiros destinados à Cultura nos orçamentos
municipais e sua não vinculação a área, permitindo que sejam transferidos para outro setor da
administração pública, são complicadores para o desenvolvimento dos sistemas locais de
cultura. Nesse sentido, podemos considerar que para incentivar que os municípios assumam
as responsabilidades do setor cultural demanda também uma atuação consistente do governo
federal em elaborar mecanismos de repasse de recursos econômicos aos entes subnacionais.
As eleições mostraram que as políticas culturais ainda estão no campo de uma ação de
governo e não de Estado. Quando a administração municipal é substituída, as ações do setor
cultural podem desaparecer. Esta descontinuidade é tão mais provável quanto menos
institucionalizada for a gestão cultural no município. Assim, a existência de instituições que
preservem a prioridade do setor através de várias administrações é um fato positivo para a
gestão cultural, pois favorece a continuidade e o seu crescimento (MIRANDA, 2009). Além
disso, a análise de Miranda (2009) permite considerar que os municípios enfrentam
dificuldades em assumir responsabilidades em função de uma fragilidade administrativa.
Quanto maior a quantidade e a qualidade de pessoas que compõe as equipes do setor da
cultura e dos equipamentos disponíveis, maior o desenvolvimento da gestão cultural
(MIRANDA, 2009). Entretanto, o que se percebe nos municípios mineiros pesquisados são
poucos equipamentos e equipes reduzidas, sem qualificação técnica para realizar a gestão
cultural. Além disso, a gestão cultural, frequentemente, está subordinada à secretaria de outra
pasta, relegando as demandas culturais a um segundo plano.
Outro aspecto interessante observado refere-se aos municípios que contam com a
sociedade civil organizada atuando e mais participativa na gestão cultural, bem como
governos mais permeáveis às demandas vindas da sociedade. Esses executivos apresentam
uma gestão cultural mais eficiente e com menor grau de descontinuidade das ações. Mesmo
quando há alternância na gestão pública os novos administradores tendem a dar continuidade
às políticas anteriores, quando a sociedade acompanha e participa das decisões da nova
gestão. Ou seja, o fortalecimento de arenas de participação, aprimorando os arranjos de

30

V V
contato e diálogo entre poder público e sociedade civil, por meio dos conselhos, conferências
e fóruns permanentes, bem como incentivando o associativismo e elaborando estratégias para
mobilizar diversos setores da população a participarem da gestão cultural pode apresentar
ganhos para a institucionalização das políticas culturais locais.
É importante frisar que fatores apontados no texto, como o baixo grau de
institucionalização das políticas culturais, a desqualificação técnica de gestores e as
dificuldades administrativas e de gestão dos municípios são complicadores para o processo de
adesão municipal ao SNC e foram potencializados em função das mudanças no executivo
local no início de 2013. Contudo, eles não se limitam apenas a esse momento, continuando a
interferir nas políticas culturais após a organização das novas administrações. São pontos
frequentes e que devem ser considerados para elaboração de estratégias visando a abordagens
dos municípios para sua adesão e estruturação do SNC.
Por fim, o objeto das políticas culturais não é um consenso e os conceitos que as
norteiam ainda são de difícil compreensão e aplicação local para aqueles ligados à
administração municipal. Em uma entrevista realizada com um gestor da área, ele afirmou que
a realidade do seu município estava bastante distante do que era proposto pelo SNC. Ele
argumentou que a produção cultural em sua cidade resumia-se a uma festa local, realizada há
57 anos, e aos eventos musicais, com forte apelo comercial, envolvendo bandas de forró,
arrocha e axé, ficando bastante distante dos princípios norteadores do SNC de valorização da
diversidade cultural e das manifestações tradicionais.
O entendimento do que é cultura para o SNC, pelos gestores públicos, pode gerar uma
situação em que o modelo de gestão proposto pelo governo federal não encontre ressonância
na administração subnacional, uma vez que, para o administrador local, o SNC não contempla
sua realidade, pois suas diretrizes são, em sua maioria, formuladas a partir de ideias
generalistas sobre cultura e sem fundamentação na realidade local, ou seja, elas não são
pertinentes para a cidade. Além disso, a heterogeneidade existente entre os municípios
analisados com contextos políticos distintos, cenários financeiros diversos e sua capacidade
de gestão coloca limites à adesão ao SNC e sua implementação (SILVA, 2005). Sendo assim,
a implantação do Sistema está ocorrendo de forma gradual, pois estados e municípios
apresentam cenários distintos para a estruturação das ferramentas organizacionais definidas
pelo SNC para a gestão das políticas culturais.

31

V V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora
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33

V V
MUDANÇA DO MODELO DE PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL E O
PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PPA 2012-2015 DA CULTURA

Adélia Zimbrão1

RESUMO: O texto tem o propósito de trazer para o debate das políticas culturais reflexões
que estimularam e embasaram a mudança do modelo de planejamento governamental,
expressa no Plano Plurianual 2012-2105. As questões problematizadas nos PPAs anteriores e
2
que fundamentaram a reestruturação da metodologia de planejamento podem ser pertinentes
às discussões empreendidas na produção de políticas públicas de cultura. Para isso, fez-se
uma breve análise de como foi a assimilação da nova estrutura do PPA, assim como de efeitos
e reflexos dessa mudança, durante o processo de elaboração do PPA setorial de cultura do
Ministério da Cultura. O estudo foi feito com base em documentos oficiais e observação
participante analisados à luz de referencial teórico apropriado.

PALAVRAS-CHAVE: Planejamento governamental; Plano Plurianual; Políticas Públicas de


Cultura

1. Introdução
Num contexto em que prevalece, na cúpula do governo federal, perspectivas teóricas
de que o planejamento, não obstante tenha conteúdo técnico, é um processo político,
notadamente nas sociedades que almejam a transformação das estruturas econômicas e sociais
(Bercovici, 2006), assim como o entendimento de o Estado tem papel ativo no
desenvolvimento do país, o modelo do Plano Plurianual, baseado no orçamento-programa,
vigente até 2010, foi considerado inadequado por vários motivos. Entre as questões
diagnosticadas está a de que o Plano Plurianual (PPA) foi afastado da missão constitucional
para o qual foi concebido, em razão de uma concepção restrita de planejamento, vinculada às
teorias da administração (Santos, 2011), que na década de 90 estavam fortemente marcadas
pelo discurso “gerencialista”3. Conceito no qual se trata de um instrumento técnico a cargo de
especialista do corpo burocrático. Além disso, esse modelo de PPA foi concebido num
período sob o domínio da ideologia neoliberal em que o Estado tem papel mínimo,
prevalecendo o mercado como instância determinante da vida social.
1
Adélia Cristina Zimbrão da Silva é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Doutoranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Com mestrado em Administração Pública (EBAP-FGV 2001),
especialização lato sensu em Sociologia Urbana (UERJ 1998) e formação em Psicologia (UERJ 1995).
2
3
De forma muito sintética, a administração pública gerencial, prevista no Plano Diretor da Reforma do Estado –
1995, visou implantar na administração pública uma racionalidade administrativa usada em organizações
privadas.
34

V V
Nesse movimento de atualização e ressignificação do planejamento governamental no
Brasil, com objetivo de qualificar o plano como instrumento efetivo de planejamento de
políticas públicas, o Governo Federal apresentou um novo modelo de PPA, no início dessa
década. Nesse sentido, a nova estrutura proposta de Plano Plurianual tem a finalidade de dotar
o planejamento de maior capacidade para viabilizar o desenvolvimento do país.
O texto tem o propósito de trazer para o debate das políticas culturais reflexões que
estimularam e embasaram a mudança do modelo de planejamento governamental, expressa no
Plano Plurianual 2012-2105. As questões problematizadas nos PPAs anteriores e que
fundamentaram a reestruturação da metodologia de planejamento podem ser pertinentes às
discussões empreendidas na produção de políticas públicas de cultura. Para isso, fez-se uma
breve análise de como foi a assimilação da nova estrutura do PPA, assim como de efeitos e
reflexos dessa mudança, durante o processo de elaboração do PPA setorial de cultura do
Ministério da Cultura. O estudo foi feito com base em documentos oficiais e observação
participante analisados à luz de referencial teórico apropriado.

2. Questões problematizadas nos PPAs anteriores e Mudança do modelo de


planejamento governamental
É importante para o propósito do texto que se tenha uma visão geral sobre a
construção do PPA e suas conexões com o projeto político legitimado pelas eleições, neste
caso para a presidência da República, posto que se trata do PPA do governo federal. Nesse
sentido, seguindo a descrição de Paulo (2010) acerca da dinâmica “simples e lógica”
(2010:175) de construção do PPA, esta se inicia com a apresentação de um plano de governo,
pelos candidatos, durante a campanha eleitoral, que expressa compromissos a serem
assumidos caso sejam vitoriosos no pleito. Com o término do processo eleitoral, o plano de
governo do candidato vencedor deverá servir como principal insumo para a elaboração de
uma orientação estratégica para o novo governo. Essa orientação estratégica deve dar
subsídios para a construção das diretrizes estratégicas de cada setor, de modo que se obtenha
sinergia e cooperação entre as políticas governamentais. Com base nessas diretrizes devem ser
definidas as políticas propriamente ditas, que serão concretizadas por meio dos programas e
ações (orçamentárias ou não) que os formam. É necessário também, além dessas definições,
uma projeção do cenário fiscal para o período do plano, com o fim de dimensionar a
disponibilidade de recursos orçamentários para a implementação dos programas (Paulo,
2010).

35

V V
Essa visão geral teve como base principalmente o PPA 2008-2011, que apresentava a
seguinte estrutura:

Fonte: Manual de Elaboração Plano Plurianual 2008-2011, pág.16.


Entretanto, conforme Franke, Navarro, et all (2012), essa estrutura de PPA
apresentava fragilidades relacionadas à capacidade de mostrar diversos aspectos próprios do
planejamento, isto é, da função planejamento. Tal fato estaria criando dificuldades adicionais
para que o instrumento realizasse o papel de organizar, orientar e viabilizar a ação
governamental, com vistas a cumprir os objetivos fundamentais da República (Franke,
Navarro, et all, 2012; Brasil, 2011b). Além disso, a forma de construção e apresentação das
informações, neste modelo, não estava contribuindo para que o plano dialogasse com o
funcionamento da administração pública. Situação esta considerada um grande problema,
ainda mais em um contexto onde havia maior pressão para que o Poder Público exercesse o
papel de provedor e indutor do desenvolvimento (Franke, Navarro, et all, 2012). Nesse
sentido, a dificuldade desse formato de PPA na produção de subsídios para aprimorar a
capacidade do governo teve como consequência a perda de valor do PPA enquanto
instrumento de planejamento e gestão (Franke, Navarro, et all, 2012). Tal avaliação, frente a
experiências bem-sucedidas na formulação e implementação das principais agendas do
governo federal, impulsionou um processo de ressignificação deste instituto (Franke, Navarro,
et all, 2012). Essas experiências inspiradoras são o Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), o Programa Bolsa Família, o Plano de Desenvolvimento da Educação e o Programa
Minha Casa Minha Vida (Franke, Navarro, et all, 2012; Cardoso Júnior, Rocha, et all, 2013).

36

V V
O processo de ressignificação do PPA é decorrente de análises, conforme Cardoso
Júnior, Rocha, Navarro & Santos (2013), que estão associadas às mudanças conceituais no
modelo de gestão e à revalorização do planejamento das políticas públicas no Brasil.
Mudanças conceituais relacionadas com o resgate do planejamento governamental no Brasil,
que deriva da interpretação que se faz da natureza do PPA, concebido como instrumento
constitucional destinado a organizar e viabilizar a ação publica, para que os fundamentos e
objetivos da República sejam cumpridos (Cardoso Júnior, Rocha, et all, 2013, Franke,
Navarro, et all, 2012, Brasil, 2011b).
Essa leitura, que remete a conceitos distintos de transparência, gestão e da própria
função planejamento, diverge da feita no período anterior (FHC – 1995-20024), que
preconizava a instituição de um estado social-liberal (ideologia dominante à época), no qual o
Estado tem papel reduzido, por isso subtraído de instrumentos (como as estruturas de
planejamento governamental construídas até então) para exercer sua missão (Nogueira apud
Franke, Navarro, et all, 2012). Todo o esforço passou a se concentrar no curto prazo, tendo
como foco principal o chamado “ajuste fiscal”. Além disso, na análise de Nogueira (apud
Franke, Navarro, et all, 2012), caberia investigar com mais cuidado a contribuição efetiva do
discurso do gerencialismo no aprimoramento da gestão pública, pois há muitas
inconsistências, entre elas, “o discurso da melhoria de gestão, que foi aplicado a partir da
reorganização de processos e procedimentos com vistas à redução de custos, enxugamento
administrativo e remodelagem organizacional, como se isto, associado à introdução de
indicadores de qualquer natureza, fosse capaz de alçar o Estado a um patamar mais elevado de
prestação de serviços públicos” (Franke, Navarro, et all, 2012:27).
O Estado social-liberal pretendido, com seu discurso de ajuste fiscal e de reforma
gerencial, levou a implementação da reforma orçamentária de 2000 e também reformulação
da estrutura do PPA de 2000-2003 (é o que se argumenta conforme Franke, Navarro, et all,
2012). Essa reforma orçamentária foi posta em execução com principal objetivo de
racionalizar o PPA e integrá-lo ao orçamento por meio do programa5. Este, definido como
uma categoria que deveria ser comum aos instrumentos e ao qual estariam associados

4
No cenário político, a predominância de uma agenda neoliberal, com a imposição do livre mercado, o Plano
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, os discursos do gerencialismo no aprimoramento da gestão pública e
do cidadão-cliente, as privatizações, as terceirizações, e a crise socioeconômica.
5
A base dessa reforma foi a instituição do orçamento-programa, um instituto que pretende combinar análise de
políticas com elaboração de orçamento, conforme Franke, Navarro, et all, (2012). Segundo Cardoso Júnior,
Rocha, et all, (2013), a integração entre plano e orçamento por essa forma sofreu influência do Modelo
Orçamento-Programa introduzido nos Estados Unidos da América, no final da década de 50, sob a denominação
de PPBS (Planning Programning Budgeting System).
37

V V
indicadores. Nesse sentido, organizou-se um instrumento de planejamento voltado para
controlar as ações (programa como centro de custos) com a finalidade de redução dos gastos
públicos O resultado foi um alinhamento entre a estrutura do plano e do orçamento6, que
levou a uma sobreposição do plano ao orçamento. Essa sobreposição acarretou dois resultados
negativos (entre outros), que foram a baixa capacidade de diagnóstico, dado que a análise das
políticas não era o foco da reforma; e a redução do planejamento e da gestão às categorias
delineadas pela contabilidade pública, já que o poder das estruturas orçamentárias
predominou na delimitação do PPA (Franke, Navarro, et all, 2012).
Nesse processo de combinar os dois instrumentos7, reconheceu-se uma tensão entre a
racionalidade do planejamento e a do orçamento e suas categorias. Essa lógica orçamentária
gerou uma perspectiva própria sobre a ação governamental. E esta perspectiva desvela que
dependendo da forma como o Estado e seus instrumentos estão sendo estruturados e que
prevaleceu a classificação orçamentária, profundamente influenciada pela Lei nº 4.320/64
implicará no reconhecimento ou não de públicos, de direitos, de políticas, etc (Franke,
Navarro, et all, 2012).
Outra questão levantada relativa à aplicação do modelo anterior se refere à forma pela
qual o instrumento foi apropriado8 pela Administração Pública (Santos apud Franke, Navarro,
et all, 2012; Santos, 2011), ou seja, a demarcação das ações orçamentárias é vista, às vezes,
como um espaço para resguardar os recursos dentro das organizações. Esta situação fragmenta
as ações, distanciando-as da perspectiva do planejamento e da gestão, além de ter reflexo
também sobre os programas (Franke, Navarro, et all, 2012).
Além disso, a sobreposição plano-orçamento estimulou apropriações e entendimentos
acerca da função planejamento que reduziram, de modo significativo, o monitoramento dos
programas para o acompanhamento físico e financeiro do orçamento, bem como as análises
provenientes dele. Esse acompanhamento, baseado principalmente na ação orçamentária,
pouco refletia a situação da política e as principais realizações do governo (Cardoso Júnior,
Rocha, et all, 2013). Nesse sentido, conforme Franke, Navarro, et all (2012), alega-se que o
plano estruturado exatamente como um orçamento plurianual não teve êxito no cumprimento

6
De acordo com Franke, Navarro, et all, (2012), plano e orçamento apresentavam ações orçamentárias com as
respectivas metas físicas e financeiras além dos indicadores do programa, quantificados apenas no plano. O
sistema de gestão desenvolvido para o plano foi com base nas as categorias orçamentárias comuns (programa,
indicador e ação).
7
Dois instrumentos, que segundo Cardoso Júnior, Rocha, Navarro & Santos (2013), são de planejamento mas
que, apesar de complementares, possuem diferenças essenciais de natureza, conteúdo e forma.
8
Santos (2011) refere-se à apropriação do conceito de planejamento - apropriações parciais que teriam
influenciado nas características do PPA 2008-2011 e anteriores - a partir de análises ancoradas nas reflexões de
Pierre Bourdieu, especialmente as teorias relacionadas aos conceitos de habitus, campo e doxa.
38

V V
de expor alguns dos principais desafios para o país, assim como não produziu espaço
apropriado para dar vazão às declarações políticas, “visto que o processo era dominado pela
linguagem e racionalidade técnica a partir das ‘categorias técnicas do orçamento’” (2012:29).
Na aposta por resgatar a função Planejamento9 e superar a sobreposição entre plano e
orçamento dentre outros problemas diagnosticados, foi concebida uma nova arquitetura de
plano, o PPA 2012-2015, Plano Mais Brasil. Este PPA possui estrutura inovadora em relação
aos três planos anteriores10 - que tiveram, como já foi explicado, desenho e estrutura
inspirados no modelo técnico-racional orçamento-programa (Franke, Navarro, et all, 2012;
Cardoso Júnior, Rocha, Navarro & Santos, 2013) - principalmente porque o Plano tem como
foco a organização da ação de governo nos níveis estratégico e tático, e o Orçamento
responde pela organização no nível operacional (Brasil, 2011b). Isso significa que:
“O sentido geral das mudanças é o da busca por um caráter mais estratégico
para o Plano, criando condições efetivas para a formulação, a gestão e a
implementação das políticas públicas. Além disso, a nova estrutura define os
espaços de atuação do Plano e do Orçamento, e qualifica a comunicação com
a sociedade” (Brasil, 2011b:9).

Desse modo, de acordo com as Orientações para elaboração do Plano Plurianual


2012-2015 (Brasil, 2001), o binômio “Programa-Ação”, que estruturava tanto os planos
plurianuais como os orçamentos, é substituído por Programas Temáticos (e de Gestão),
Objetivos e Iniciativas, convertendo-se a Ação uma classe exclusiva dos orçamentos. Essa
separação, de acordo com o citado documento, não traria prejuízo à integração, pois o novo
arranjo define claramente uma relação de complementaridade entre os dois instrumentos.
A proposta de estruturar o plano a partir de programas temáticos veio de um esforço,
da Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento
Orçamento e Gestão (MPOG), de ordenamento conceitual de como conformar e tratar as
políticas públicas no âmbito da coordenação do governo (Franke, Navarro, et all, 2012).
Nesse sentido, conforme Franke, Navarro, et all, (2012), esse formato que possibilita nível
mais adequado de agregação das categorias do PPA (em temas), confirma o argumento de que
no PPA 2012-2015 a coordenação do governo se estruturou para organizar o plano a partir do
conhecimento sobre as políticas públicas. Isso em oposição ao modelo anterior, que trazia
detalhamento tal como um orçamento plurianual, ou seja, era mais orientado para o desenho

9
Contribuiu na argumentação para esse resgate, a alteração na compreensão jurídica conferida ao PPA. “Passou-
se de uma interpretação literal do artigo 165 da Constituição Federal, que condiciona a perspectiva do
instrumento ao título da tributação e do orçamento, para outra, sistemática e em consonância com os novos
paradigmas e categorias da interpretação constitucional” (Franke, Navarro, et all, 2012:29).
10
PPA 2000-2003; PPA 2004-2007 e PPA 2008-2011.
39

V V
dos programas a partir de formas de classificação da despesa (tensão planejamento-
orçamento) (Franke, Navarro, et all, 2012).
Assim, a estrutura do PPA 2012-2015 - que coloca no plano, conforme discurso oficial
(Brasil, 2011b), o papel de indicar os meios para a implementação das políticas públicas,
como também orientar taticamente a ação do Estado para o alcance dos objetivos almejados,
além de manifestar as escolhas do Governo e da sociedade - é representada da seguinte forma:

Dimensões do Plano

Fonte: Brasil, Orientações para elaboração do Plano Plurianual 2012-2015, pág.11.

Nas Orientações para elaboração do Plano Plurianual 2012-2015 (Brasil, 2011b)


consta que a Dimensão Estratégica - visão de longo prazo do Governo Federal - é a orientação
estratégica que tem como base os Macrosdesafios. Já a Dimensão Tática é aquela que define
caminhos factíveis para o alcance dos objetivos e das transformações definidas na dimensão
estratégica, levando em conta as variáveis inerentes à política pública tratada. Tem a função
de vincular os Programas Temáticos para obtenção dos Objetivos pretendidos, que serão
materializados pelas Iniciativas expressas no Plano. Quanto à Dimensão Operacional, é
especialmente tratada no Orçamento, referindo-se ao desempenho da ação governamental no
nível da eficiência (otimização na aplicação dos recursos disponíveis e qualidade dos produtos
entregues). Os Macrodesafios são diretrizes que tem como finalidade orientar a formulação
40

V V
dos Programas do PPA 2012–2015, e que foram elaboradas com base no Programa de
Governo e na Visão Estratégica. De um modo geral, Programas são instrumentos de
organização da ação governamental que buscam a realização dos objetivos almejados. Por sua
vez, o Programa Temático – que se desdobra em Objetivos e Iniciativas - retrata no Plano
Plurianual a agenda de governo organizada pelos Temas das Políticas Públicas. O Objetivo
declara o que deve ser feito, sinalizando as situações a serem alteradas pela implementação de
um conjunto de Iniciativas, com desdobramento no território. Já a Iniciativa revela as entregas
à sociedade de bens e serviços. Estes resultam da coordenação de ações orçamentárias e
outras (ações institucionais e normativas), assim como da pactuação entre entes federados,
entre Estado e sociedade e da integração de políticas públicas. Por fim, os Programas de
Gestão, Manutenção e Serviços ao Estado são responsáveis por um conjunto de ações
destinadas ao apoio, à gestão e à manutenção da atuação governamental (Brasil, 2011).

3. A nova arquitetura do Plano e o PPA da Cultura 2012-2015


A elaboração do PPA da Cultura 2012-2015 se deu com a realização de oficinas, no
período de abril a junho de 2011, com a participação de representantes de todas as secretarias
e vinculadas (autarquias e fundações) do Ministério da Cultura (MinC). A condução do
processo ficou a cargo da Diretoria de Gestão Estratégica (DGE) da Secretaria Executiva do
MinC, com assessoria da Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos do MPOG,
responsável pela consolidação do PPA de todo o governo federal.
Um dos pontos de partida das oficinas foi a apresentação de questões problematizadas
no PPA 2008-2011 da Cultura, pela DGE, já com base na reflexão que levou ao novo arranjo.
A análise realizada mostrou que houve manutenção/repetição dos programas do PPA 2004-
2007, o que pode apontar para o questionamento de como foi então a incorporação de novas
propostas, constantes no plano de governo escolhido pelo processo eleitoral da época, mesmo
se tratando de uma reeleição. Assim como o exame também expôs que a dimensão estratégica
estava baseada em quatro Objetivos Setoriais, situação que pode estar sinalizando a
fragmentação da política setorial de cultura. Além disso, a análise detectou como problema o
número excessivo de Programas (11 programas); o número excessivo de ações por Programa;
o sombreamento de ações dentro do mesmo Programa e também em Programas diferentes, o
que geraria a pulverização de recursos; ações demasiadamente genéricas em suas finalidades
e/ou descrições; e indicadores deficientes, que não estariam refletindo os objetivos do
Programa ou da Instituição. Outras questões também levantadas referiam-se à dificuldade de

41

V V
aplicação de novas iniciativas da política setorial nos Programas e Ações vigentes à época; à
verificação de que havia Programas defasados em relação à dinâmica institucional; e à
existência de “Programas de Fato” que não constariam no PPA (como o Mais Cultura,
integrante da Agenda Social do governo). E considerou-se como um problema também a
ausência de avaliação interna ou externa de Programas (informações extraídas de
apresentações utilizadas nas oficinas de elaboração do PPA 2012-2015).
Sobre os pontos críticos levantamentos, quando confrontados com as razões das
alterações do modelo de PPA alegadas e expostas pelo governo federal nas oficinas (inclusive
setoriais), cabe destacar o que se pode considerar o cerne da questão, como foi visto na
primeira parte desse texto: o plano estruturado justamente como um orçamento plurianual,
com predominância de linguagem e racionalidade técnica a partir das ditas categorias técnicas
do orçamento, sendo que essa lógica orçamentária gerou uma perspectiva própria sobre a ação
governamental, que disputa sentido11 com a ótica pautada pela concepção e planejamento das
políticas públicas no Estado brasileiro. E quais seriam essas razões acionadas para justificar a
reestruturação? De acordo com material utilizado nas oficinas, seriam: o resgate da função
planejamento; a incorporação ao PPA dos Objetivos de Governo tais como declarados (os
compromissos de governo); a criação de possibilidade para o efetivo monitoramento dos
Objetivos de Governo, ou seja, dos compromissos de governo, especialmente dos Fóruns de
Gestão (pobreza extrema, direitos e cidadania, desenvolvimento econômico e infraestrutura);
a indução de arranjos de Gestão dos Objetivos de Governo no PPA; a criação de espaço para
abordar, no PPA, políticas transversais e multissetoriais, assim como espaço para tratar a
regionalização das políticas; a reorganização gradual do orçamento na lógica da execução; e o
uso de linguagem capaz de comunicar dentro e fora do Governo.
Outro elemento para subsidiar o processo de construção do PPA foi a Proposta Prévia
de Objetivos MinC organizada a partir da correspondência entre os elementos do PPA 2008-
2011 e o novo modelo, feita pela DGE. A apresentação da Proposta Prévia contribuiu - além,
é claro, do material preparado especificamente para orientar a elaboração - para ajudar no
entendimento da nova estrutura e iniciar o debate a respeito de como e o que deveria compor
o novo PPA. Além disso, as principais mudanças no que tange à composição e aos conceitos
do Plano foram explicadas nas oficinas da seguinte forma:

11
Santos (2011), com base em Pierre Bourdieu, a respeito das disputas pelo conceito e apropriações parciais da
função planejamento, faz a reflexão de que cada modo de explicar ou conceituar o termo está relacionada a uma
forma particular de criar o próprio objeto e explicá-lo à luz das conveniências das áreas específicas. Nesse
sentido, “compreender as motivações que levam os grupos a defenderem o que se entende por planejamento
governamental remete, portanto, ao desvelamento dos interesses destes grupos” (2011:308).
42

V V
• “Programas e Objetivos expressam imediatamente políticas públicas do governo
federal, reconhecidas como tais.
• Programas devem nascer de uma política de governo e de Estado e as ações são
consequências dos Objetivos.
• Processos distintos e complementares: Plano formaliza Objetivos e Iniciativas.
Orçamento organiza ações.
• O Plano conterá Objetivos e Iniciativas (atributos específicos do Plano). Plano e
Orçamento vinculados pela correspondência Iniciativa (Plano) – Ações (Orçamento).
• Cria-se espaço para monitoramento, avaliação e gestão do Plano (Objetivos e
Iniciativas).
• Regionalização das Metas dos Objetivos conforme o tratamento da temática. Ex:
Biomas, Região Hidrográfica e Territórios de Identidade” (extraído de apresentações
utilizadas nas oficinas de elaboração do PPA 2012-2015).

Na construção da Proposta Prévia de Objetivos MinC houve todo um esforço de dar


um sentido/corpo de política pública setorial aos onze programas do PPA 2008-2011, no
processo de correspondência e adaptação para o novo modelo. Este exercício foi feito já
considerando o aspecto recomendado pela SPI/MPOG na formulação dos programas
temáticos pelos órgãos: “a programação proposta deve no seu conjunto ser representativa do
conjunto das políticas públicas do órgão” (extraído de Apresentação utilizada nas oficinas).
Todavia, cabe uma indagação, qual seja, tomar o PPA 2008-2011 como base para organizar a
proposta prévia poderia ser considerado um complicador do processo de construção do PPA
2012-2015, uma vez que os programas do PPA anterior (à exceção do programa de gestão)
praticamente espelham as atividades fins das secretarias e vinculadas do MinC12 daquele
período. Situação que pode mostrar uma organização do PPA 2008-2011 da Cultura marcada
pela ótica institucional e não de políticas públicas, o que estaria consonante com o diagnóstico
já exposto na primeira parte desse texto. Nesse sentido, a ação governamental na área tenderia
a ser menos sistêmica e mais verticalizada. Como já foi explicado, o modelo de base
orçamento-programa acabou acentuando uma lógica de estruturação da atuação

12
Secretarias finalísticas: Secretaria de Cidadania Cultural; Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural;
Secretaria do Audiovisual; Secretaria de Articulação Institucional; Secretaria de Políticas Culturais; Secretaria de
Fomento e Incentivo à Cultura. Vinculadas: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Instituto
Brasileiro de Museus; Fundação Cultural Palmares; Fundação Nacional de Artes; Fundação Biblioteca Nacional;
Fundação Casa de Rui Barbosa; Agência Nacional do Cinema.
43

V V
governamental que buscou, por meio da demarcação das ações orçamentárias, criar espaço
para resguardar os recursos dentro das organizações.
Em contraposição aos quatro objetivos setoriais do PPA 2008-2011, a orientação
metodológica, pautada pelo conceito de Programa Temático, foi de que a área da Cultura
estruturasse apenas um único Programa, ou seja, a política setorial da cultura. E como já
exposto “programas devem nascer de uma política de governo e de Estado”. Nesse sentido, o
Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010), deveria ser tomado como principal diretriz e
insumo. Entretanto, é pertinente levantar algumas questões relacionadas à dificuldade de
assimilação do novo modelo pelos participantes e dirigentes, uma vez que este foca em
políticas públicas e não na peça orçamentária. A elaboração do PPA tem sido
tradicionalmente atribuição de equipes técnicas de planejamento e orçamento que, em geral,
não têm a perspectiva das políticas públicas justamente porque o PPA era praticamente um
orçamento plurianual. Isso em razão das apropriações parciais, por parte da burocracia, das
funções de planejamento e orçamento desvinculadas de políticas públicas, decorrentes do
contexto de desvalorização do planejamento governamental e das políticas públicas, durante
as décadas 80 e 90, de hegemonia neoliberal.
Ainda com base na análise acima, foi possível observar que durante as oficinas de
elaboração do PPA 2012-2015 houve certa dificuldade dos participantes de ver e fazer
conexões com o Plano Nacional de Cultura. Pode-se aventar uma explicação, que passa pela
incompreensão no que se refere à importância de uma visão estratégica da relação entre
planejamento de políticas públicas e organização orçamentária. Tal fato ocorre principalmente
por serem as instituições organizadas com foco na gestão do cotidiano e não no planejamento,
em consonância com a explicação de Franke, Navarro, et all (2012).
Como o modelo anterior era mais voltado para o desenho dos programas a partir de
formas de classificação da despesa (Franke, Navarro, et all, 2012), sair dessa lógica de
construção gerou inquietação e resistência dos participantes nas oficinas. No novo arranjo de
PPA, conforme nos conceitos explicados acima, as Ações estão dispostas somente na peça
orçamentária justamente para acabar com a sobreposição do plano ao orçamento, que teve
como um dos efeitos reduzir o primeiro ao segundo. Fato este considerado, como já exposto
anteriormente, um grande problema, porque subtrai da função planejamento a sua principal
característica, que é a de fixar diretrizes para a atuação do Estado (Bercovici, 2006). Assim, a
nova estrutura coloca Plano (Objetivos e Iniciativas) e Orçamento (Ações) como processos
distintos, mas complementares, vinculados pela correspondência Iniciativa (Plano) – Ações

44

V V
(Orçamento). Dessa forma, o entendimento é de que o orçamento passa a ser um instrumento
do plano que contribui com recursos da União para viabilização da Iniciativa (Franke,
Navarro, et all, 2012). Porém, pesa nesse processo de construção a disputa por espaços de
poder, que necessariamente passa pela disputa interinstitucional de recursos orçamentários
dentro do próprio setor da Cultura. Uma das estratégias para resguardar recursos dentro das
organizações, como já exposto, tem sido a demarcação de ações orçamentárias. Então, ficou
difícil convencer os representantes das secretarias e vinculadas a pensarem e planejarem de
outro lugar, de outro ponto de vista, em que há a exclusão do detalhamento das ações no PPA
e há um único Programa e que os Objetivos devem ser comuns e compartilhados por todo o
setor da Cultura.
Em razão do exposto no parágrafo anterior, a tendência dos participantes das oficinas
foi repetir, na construção do PPA 2012-2015, uma atuação verticalizada/setorializada dentro
da própria área da Cultura. Nesse sentido, fizeram, de certo modo, vista grossa a outro aspecto
que precisaria ser observado13 para o novo PPA, que refere-se a “considerar ao máximo as
possibilidades de multisetorialidade e transversalidade” (extraído de Apresentação utilizada
nas oficinas). Esse jogo de forças, que se dá de forma disfarçada, entre as instituições e o
próprio Ministério da Cultura poderia ser explicado parcialmente por conta das trajetórias
histórico-institucionais de cada fundação/autarquia em relação ao MinC. A Biblioteca
Nacional tem mais de 200 anos. A Casa de Rui Barbosa tem mais de 80 e o IPHAN é da
década de 30. Já o Ministério da Cultura é de 1984. Essas vinculadas tinham “carreira solo” e
agora há o Sistema MinC14, buscando uma articulação harmônica (ou, para ser mais coerente,
“concertação”) entre todos esses setores. Todavia, a verticalidade foi suavizada pelo formato
mesmo do novo desenho. Neste, os Objetivos e as Iniciativas apresentam nível mais agregado
de conteúdo e informações que vão além da dimensão do gasto orçamentário presente no
modelo anterior, que trazia informações fragmentadas pela via das ações (Franke, Navarro, et
all, 2012), contribuindo desse modo para “disfarçar” interesses de grupos nas organizações.
Por mais que se tenha debatido a respeito da lógica e desenho do novo modelo e suas
razões, o cálculo da provável perda do comando sobre recursos, no decorrer do processo, por
conta da reformulação e agregação de conteúdo que necessariamente teria impacto sobre a

13
Além dos dois aspectos já relatados, constam: “dotar os programas e seus componentes de elementos que
possibilitem seu uso efetivo como ferramenta de gestão tático/estratégica e de aferição de resultados; incorporar
sempre que possível as expectativas da sociedade civil interessada ou beneficiária, sobretudo em aspectos que
favoreçam o acompanhamento da execução dos programas” (extraído de Apresentação utilizada nas oficinas).
14
Decreto5.520/2005 - Institui o Sistema Federal de Cultura integrado pelo Ministério da Cultura e seus entes
vinculados.
45

V V
organização do orçamento, levou à defesa e permanência ainda, na estrutura do orçamento, de
alguns excessos, fragmentações e sombreamentos de ações orçamentárias. Este fato pode ter
como consequência a pulverização de recursos, tal como detectado nos PPAs anteriores,
prejudicando, desse modo, a otimização na aplicação dos recursos disponíveis.
Entre o que se pretendeu com o novo modelo e o que se obteve de sua aplicação, ou
seja, sua experimentação, há claramente, no caso do PPA da Cultura, hiatos. Por um lado, a
nova estrutura teve êxito porque possibilitou a construção de um discurso que procurou dar
conexão entre as atuações institucionais (inclusive as diversas secretarias do MinC) em prol
de uma política da cultura, uma vez que a estrutura conduz a uma combinação entre objetivos,
metas e iniciativas dentro do Programa Temático (da Cultura15). Dessa forma, pode-se dizer
que houve, de certo modo, com o novo arranjo, o cumprimento da intenção de criar uma
linguagem capaz de melhor “comunicar dentro e fora do Governo” a agenda governamental
com seus compromissos políticos, uma vez que conseguiu superar, parcialmente, os limites da
linguagem técnica e da linguagem orçamentária (Franke, Navarro, et all, 2012), como pode
ser observado na redação da Dimensão Estratégica e Dimensão Tático-sociais referente à
Cultura e seu papel (Brasil, 2011a). Um bom exemplo a ser dado, nesse sentido, diz respeito à
Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), cujo processo de elaboração do novo PPA contribuiu
para que a instituição pudesse refletir mais detidamente acerca de sua missão e melhor
expressá-la e divulgá-la no Plano Plurianual16. Porém, por outro lado, a nova modelagem do
PPA não conseguiu provocar o deslocamento da perspectiva orçamentária dos participantes e
dirigentes das secretarias e vinculadas, posto que ainda prevalece como base da organização
da atuação institucional uma “mentalidade” orçamentária.

4. O que faltou considerar? O que ainda pode contribuir para novas reflexões?
No que se refere à nova estrutura do PPA e seus limites, Franke, Navarro, et all
(2012), com base em Pierre Bourdieu, faz a leitura de que é importante considerar a
apropriação, em geral, que a burocracia faz dos instrumentos, conferindo-lhes um sentido
próprio à luz do conforto burocrático, num ambiente incerto no qual não é possível saber com
certeza “quem é adesão e quem é oposição”. A linguagem técnica da burocracia cria

15
Foi elaborado um único Programa para o setor, no PPA 2012-2015, o Programa: 2027 - Cultura: Preservação,
Promoção e Acesso, com onze Objetivos e 67 Iniciativas.
16
Nos PPAs anteriores, uma das principais finalidades da FCRB – produção de conhecimento/estudos e
pesquisas - encontrava-se subsumida em ações e programas do PPA da Cultura. No PPA 2012-2015, tal
finalidade ganhou visibilidade por meio do “Objetivo: 0788 - Produzir e difundir pesquisas e conhecimento
constitutivo da cultura brasileira e desenvolver política nacional de integração entre cultura e educação”.
46

V V
perspectiva própria sobre a ação pública justamente por não ser neutra. As classificações
utilizadas pela burocracia, ainda que pretensamente neutras, impõe sentido próprio às coisas e
tem desdobramento nas políticas públicas, uma vez que organizam a ação governamental a
partir de uma linguagem que revela ou omite políticas, públicos e direitos. Portanto, Franke,
Navarro, et all (2012), com base em Santos (2011), afirma ser essencial para comparar a
diferença entre qualquer modelo teórico e a estrutura aplicada, considerar a atuação do corpo
burocrático, principalmente porque “parte do diagnóstico informa que a burocracia se
apropriou da modelagem anterior para reservar um espaço de atuação” (2012:44). No que diz
respeito à análise do objeto desse estudo, pode-se verificar comportamento similar quando
houve resistência a uma composição de atuação integrada no âmbito do Sistema MinC, em
razão do cálculo de perda do controle sobre os recursos alocados estrategicamente nas ações
orçamentárias. Portanto, é possível observar tensões entre os objetivos definidos como
institucionais pelos dirigentes e os objetivos da política governamental para o setor da cultura,
especialmente num cenário de recursos escassos.
Há diluída... disfarçada... nesses embates... uma luta ideológica relativa ao papel do
Estado na prestação de políticas públicas, por mais que a Constituição brasileira vigente seja
clara quanto à essa obrigatoriedade para garantir direitos da cidadania, direitos igualitários, ou
seja sem distinção, inclusive de classe e de origem. Nesse sentido, o que está em jogo não é só
a competição por recursos orçamentários, mas a disputa por ideias e valores referentes à qual
deve ser a responsabilidade do Estado frente aos desafios econômicos e sociais. Não se trata,
como muitos acreditam, de uma discussão superada. Ao contrário, a observação permite dizer
que há significativa presença de partidários do discurso do Estado social-liberal em segmentos
da burocracia federal, que defendem basicamente políticas focalizadas e residuais, deixando
que a “mão livre do mercado” resolva o resto. Esse debate também atravessa o campo das
políticas públicas de cultura.
Após toda essa exposição, ainda é pertinente a pergunta se o novo arranjo de PPA
conseguiu, mesmo que parcialmente, superar o domínio do processo de elaboração pela
linguagem e racionalidade técnica orçamentária na área da Cultura. No que tange ao processo
de ressignificação do planejamento, é necessário investigar mais detidamente, no âmbito do
PPA da Cultura, se houve apropriação do discurso de revalorização do planejamento das
políticas públicas no Brasil. Quanto a efeitos e reflexos da mudança no processo de
construção do PPA da Cultura, como já foi exposto, houve reações ao novo modelo
especialmente por conta das implicações que este ocasionaria na organização do orçamento.

47

V V
Como o objetivo do texto não foi analisar a peça PPA da Cultura 2012-2015, mas sim
a assimilação, efeitos e reflexos da nova modelagem no processo de elaboração do PPA,
caberia, em outro momento, um exame do próprio PPA e uma avaliação ex post para fim de
melhor dimensionar se as finalidades pretendidas pelo novo modelo foram de fato atingidas.

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48

V V
O SEGUNDO TEMPO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO:
O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA NO GOVERNO DILMA
Alexandre Barbalho1

RESUMO: O artigo analisa a atuação das ministras Ana de Hollanda e Marta Suplicy e
respectivas equipes no que diz respeito à implantação do SNC durante suas gestões. Para
tanto, situo os agentes e suas posições nesse processo que diz respeito à institucionalização do
campo cultural com forte relação com o campo político. O Estado como detentor de meta-
capital, pois concentra não só capital político, mas também econômico, social e cultural, é um
espaço de convergência e embate entre os diversos campo. Nesse sentido, compreender uma
política pública de cultura é levar em consideração os necessários cruzamento de interesses
entre agentes do campos cultural e político e aqueles que integram ambos simultaneamente.
Com esse objetivo, construí um corpus de entrevistas com ex-gestores e de documentos do
MinC.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema Nacionsl de Cultura; Governo Dilma; Campo político;


Campo cultural

1. Aquecimento
Em entrevista recentemente concedida ao jornal Folha de São Paulo, o holandês Rem
Koolhaas, arquiteto e curador da Bienal de Veneza de 2014, defendeu a necessidade do
Estado voltar a exercer a sua imaginação e desenvolver planos em contraposicão aos
interesses do mercado que, em sua perspectiva liberal, desencoraja tal atitude tida como
“intervencionista”. Na sua análise sobre os arquitetos metabolistas japoneses, publicada no
livro Projec Japan: Metabolism Talks, Koolhaas afirmou que “mostra o Estado como uma
imaginação e quão importante é isso”, pois “a ausência do Estado como um parceiro pensante
é um desastre completo, de qualquer ponto de vista” (KOOLHAAS, 2015, p. 4).
Koolhaas estava se referindo ao papel do Estado no urbanismo e à função social da
arquitetura, contudo, entendo que sua defesa pode ser estendida a todos os setores que são, ou
podem ou deveriam ser, afetados pelas políticas públicas, em especial a cultura que, por sua
própria “natrureza”, exige uma potência imaginativa. A esse respeito, lembro a observacão de
Toby Miller e George Yúdice de que a política cultural costuma ser mais burocrática do que
criativa ou orgânica, o que exige disputar esse sentido, visando concebê-la “como uma esfera
transformadora frente a considerá-la uma esfera funcionalista” (MILLER; YÚDICE, 2004, p.
13).

1
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UECE e em Comunicação da UFC.
49

V V
Essas considerações vêm a propósito da análise da política cultural proposta e, em
parte considerável, implementada no Ministério da Cultura (MinC) a partir do primeiro
governo Lula. Uma ampla literatura aponta como a área da cultura, objeto de políticas
públicas no Brasil, tem sido historicamente relega a planos secundários. As ações e
instituições voltadas para a cultura sofreram, ao longo das décadas, com as descontinuidades
de suas políticas, as restrições financeiras, a deficiência de quadros técnicos e as relações
clientelistas que, se estão presentes em amplos setores do poder público, se fazem mais
intensas na cultura decorrentes de fragilidades do campo, o que resulta em maior dependência
de seus agentes dos favores de gestores governamentais e seus intermediários (BARBALHO,
1998; BARBALHO; RUBIM, 2007; CALABRE, 2009).
No entanto, avalio que tal contexto foi sendo modificado de forma estrutural nos
governos Lula (2003-2010), com as gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC, e isso a
partir de uma capacidade de imaginar novas formas de relação entre Estado e cultura no Brasil
que já estavam anunciadas no documento “A imaginação a serviço do país. Programa de
Políticas Públicas de Cultura” da Coligação Lula Presidente (COLIGAÇÃO LULA
PRESIDENTE, 2002).
No que diz respeito ao primeiro governo Dilma, que teve como ministras Ana de
Hollanda e Marta Suplicy, se a expectativa era de continuidade, ela foi em grande parte
frustrada, pois se de fato algo continuou, inclusive com mais empenho por parte do MinC,
como é o caso do Sistema Nacional de Cultura (SNC), como se verá, muito do que
permaneceu sofreu instabilidades, como, por exemplo, a ação dos Pontos de Cultura e o
engajamento em torno das licenças livres e alternativas no que se refere ao direito autoral 2.
Algo, por sua vez, foi extinto, como as Secretarias de Cidadania e da Identidade e da
Diversidade, fundidas em uma só, o que despotencializou a articulação entre a política pública
de cultura (cultural policy) e as políticas de cultura (cultural politics) postas em ação pelos
movimentos político-culturais. Ou como o DocTV que descentralizou a producão audiovisual
no país e foi replicado em outros países latino-americanos, mas cuja última edição nacional, a
quarta, aconteceu em 2010 (MOREIRA, 2014).
Por outro lado, as novas gestões do MinC apontaram para importantes mudanças de
rumo. Refiro-me especificamente à criação da Secretaria de Economia Criativa que, a

2
As críticas a essa instabilidade marcou o debate cultural brasileiro. A esse respeito, por exemplo, ver o texto de
Bruno Cava, “De que Ana de Hollanda tem medo?”, publicado no site Cultura e Mercado, disponível em
http://www.culturaemercado.com.br/pontos-de-vista/de-que-ana-de-hollanda-tem-medo/. Acesso em
04.fev.2015.
50

V V
despeito do esforço teórico em se diferenciar da trajetória de tal noção, propondo a pactuacão
de um conceito de economia criativa brasileira (MINC, 2012), traz ao Brasil uma opção de
política cultural que remonta às reformas liberais no contexto anglo-saxão. Guiseppe Cocco
(2015) denomina essa noção como uma “ideia fora do lugar”, em referência ao texto clássico
de Roberto Schwarz, pois “velha de mais de duas décadas e imaginada na Inglaterra de Tony
Blair”3.
Tal perspectiva converge com os interesses dos agentes privados e de setores do poder
público mais propícios a uma perspectiva mercadológica da criatividade. A tese de João
Domingues sobre a tensão entre a regulação urbana e os movimentos culturais insurgentes na
cidade do Rio de Janeiro revela, por exemplo, como a lógica da economia criativa guia o
plano “Pós-2016, o Rio mais integrado e competitivo”, responsável, entre outras coisas, pela
gentrificacão do centro da cidade e pela expulsão dos indígenas da Aldeia Maracanã
(DOMINGUES, 2013).
Contudo, se houve instabilidades e mudanças de rumo, houve também, como já
indicado, continuidades. É o caso, por exemplo do SNC. O Sistema objetiva estabelecer, em
conjunto com a sociedade, um sistema federativo de políticas públicas específico para a
cultura. Ao exigir a criação de mecanismos mínimos para o seu funcionamento nos estados e
municípios do país (órgão gestor específico, conselho, plano e fundo de cultura), possibilitará
algum grau de efetividade das políticas culturais independente do governo vigente
(BARBALHO; BARROS; CALABRE, 2013).
Minha tese é a de que o processo de implantação do SNC ganhou um novo impulso no
governo Dilma (BARBALHO, 2014a). Isto se deveria, entre outras causas, ao reforço da
corrente a favor do Sistema na lógica de poder interna ao Ministério com a saída de agentes
ligados aos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, agentes estes que não priorizaram a
implantação do referido programa. Pensando com Norbert Elias (2008), o que ocorreu foi um
equilíbrio após um momento de disputas mais acirradas no jogo de relações de poder.
O que proponho nas reflexões que seguem é analisar com maior acuidade a atuação
das ministras Ana de Hollanda e Marta Suplicy e respectivas equipes no que diz respeito à
implantação do SNC durante suas gestões. Para tanto, irei situar os agentes e suas posições
nesse processo que diz respeito à institucionalização do campo cultural com forte relação com

3
O governo Blair criou o Ministério da Indústria Criativa fundamentado por economistas liberais da cultura que
subordinam a criatividade à inovação e aos direitos de propriedade intelectual e seu direcionamento às demandas
do mercado, avolumando os “negócios culturais” (LOPES; SANTOS, 2011).

51

V V
o campo político. O Estado como detentor de meta-capital, pois concentra não só capital
político, mas também econômico, social e cultural, é um espaço de convergência e embate
entre os diversos campos (BOURDIEU, 2012). Nesse sentido, compreender uma política
pública de cultura é levar em consideração os necessários cruzamento de interesses entre
agentes do campos cultural e político e aqueles que integram ambos simultaneamente. Para
alcançar o objetivo proposto, construí um corpus empírico composto de entrevistas com ex-
gestores e de documentos do MinC.

2. Sistema Nacional de Cultura: primeiro tempo


A origem mais imediata do investimento do MinC no SNC é o programa de governo
do então candidato Lula. O documento “A imaginação a serviço do país. Programa de
Políticas Públicas de Cultura” da Coligação Lula Presidente expõe os parâmetros que
deveriam nortear a atuação na área da cultura. Desse documento, irei extrair apenas a
discussão mais centrada em torno do “sistema nacional de política cultural”.
“Gestão Democrática” é um dos seis temas que organizam o documento. Nele se
encontram, entre outras, as propostas de implantação da Política Nacional de Cultura (PNC) e
do Sistema Nacional de Política Cultural (SNPC). Especificamente sobre o segundo, defende-
se que deve ser implantado segundo as “precrições constitucionais” de modo a garantir a
“efetivação de políticas públicas de cultura de forma integrada e democrática, em todo o país,
incluindo aí, especialmente, a rede escolar” (COLIGAÇÃO LULA PRESIDENTE, 2002, p.
20).
O SNPC é entendido como fundamental para a descentralização da PNC, pois
integraria não apenas as três esferas de governo, mas também as instituições privadas e do
terceiro setor. Integrar o Sistema seria a condição prévia para que qualquer instituição, pública
ou privada, acessasse recurso do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Com isso, os recursos
obtidos por meio do SNPC deveriam ser feito pelos conselhos de cultura de cada esfera, posto
que a sua existência era um dos pré-requisitos de integração no Sistema.
Ainda no âmbito da gestão, o documento prevê a definição de Instituições Nacionais
de Referência Cultural que seriam responsáveis pela formacão na área cultural, nos mais
diversos segmentos artísticos, incluindo capacitacão para os técnicos da gestão cultural nas
três esferas. Este processo formativo permanente é considerado essencial para o
fortalecimento do SNPC, de modo que as instituições devem ser “criteriosamente
selecionadas e integradas ao Sistema, de tal forma a que atendam demandas de regiões do país

52

V V
desassistidas de pessoal qualificado para desenvolver localmente políticas públicas de
cultura” (COLIGAÇÃO LULA PRESIDENTE, 2002, p. 21).
Antes, o documento já tinha afirmado que a política cultural a ser adotada deveria
garantir “a abertura dos canais institucionais e financeiros, por meio da constituição do
Sistema Nacional de Política Cultural, a amplos setores tradicionalmente atendidos pelas
‘políticas de recorte social ou assistencialistas’” (COLIGAÇÃO LULA PRESIDENTE, 2002,
p. 16).
Tais propostas, a saber, a criação de um plano e de um sistema de cultura, a elaboração
de uma política de formação de gestores e a participação da sociedade, além dos entes da
federação, como veremos, pautaram a atuação dos agentes envolvidos com o SNC do
primeiro governo Lula ao governo Dilma.
No entanto, a nomeação de Gil e sua equipe provocou uma relação de poder não
prevista no MinC, muitas vezes colocando em posições antagônicas seu grupo e aquele de
gestores oriundos do PT, ainda que essas disputas não tenham sido publicizadas, apesar de se
revelarem em momentos de ruptura. De todo modo, coube ao segundo grupo, entre outras
funções, a de implementar o sistema, agora denominado Sistema Nacional de Cultura, sob
coordenação de Márcio Meira4. Meira assumiu a Secretaria de Articulação Institucional
(SAI), criada na reestruturacão do MinC em 2003, com o objetivo de promover a articulação
das políticas culturais das esferas federal, estadual e municipal, bem como do Distrito Fedeal
e da sociedade civil e que teria no SNC seu principal instrumento.
Contudo, somente em 2005, foram tomadas as primeiras medidas mais efetivas no
sentido de criação do SNC, como, por exemplo, o estabelecimento do Sistema Federal de
Cultura, articulando todos os programas e ações do governo federal na área, e do “Protocolo
de Intenções visando ao desenvolvimento de condições institucionais para a implantação do
Sistema Nacional de Cultura”. O Protocolo funcionou como uma espécie de sondagem sobre
a receptividade do SNC junto aos governos estaduais e municipais, posto que estes deveriam
aderir ao documento e ao fazerem isso tinham que efetivar diversas obrigações que visavam a
existência futura do Sistema. Entre as obrigações estavam incluídas a criação de orgão gestor,
conselho, plano e formas de financiamento, além da realização de conferência de cultura.
No mesmo ano, ocorreu a I Conferência Nacional de Cultura (CNC), precedida de
centenas de conferências municipais e de dezenas de estaduais, configurando-se em um

4
Márcio Meira é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, instituição ligada ao Ministério da Ciência.
Militante do PT no Pará, foi presidente da Fundação Cultural do Município de Belém entre 1998 e 2002, durante
a gestão petista daquela capital.
53

V V
importante esforço de articulação do poder público nos três níveis federativos e com a
sociedade. A CNC definiu como uma de suas prioridades a implementação do SNC. Também
foi enviada ao Congresso Nacional, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 416/2005
que acrescenta o art. 216-A para instituir o SNC. Em estreita relacão com o SNC, o MinC ia
construindo o Plano Nacional de Cultura cuja Emenda Constitucional n. 48 que o institui foi
aprovada em 20055.
Após a Conferência, o passo seguinte foi a realização, em 2006, das Oficinas do SNC
que consistia de um ciclo de 30 módulos de oficinas de formação voltadas para os agentes
culturais de municípios que tinham assinado ou manifestassem intenção de assinar o
Protocolo. O objetivo era fortalecer o diálogo do MinC com os demais entes federados e
entidades da sociedade civil sobre a ampliação da abrangência das diretrizes formuladas para
o SNC (LIMA, 2006).
Em 2007, no início do novo governo Lula e ainda com Gil à frente do MinC, o
secretário Márcio Meira foi destituído do cargo, o que provocou reações contrárias por parte
de vários agentes culturais do país, além do PT, que, por meio da Secretaria Nacional de
Cultura, lançou uma nota sobre as demissões6. A saída de Meira deve ser lida dentro da
disputa interna ao MinC entre o grupo mais afinado aos programas de governo e aqueles
agentes que não se sentiam compromissados com tais formulações, mesmo que não
discordassem necessessariamente de todas elas.
No lugar de Meira, o ministro nomeou Marco Acco que acumulou o cargo com o de
secretário de Fomento e Incentivo à Cultura (SEFIC)7. Os passos seguintes de maior
relevância no que se refere diretamente ao SNC só vão se dar em 2009. Nesse ínterim, como
define Leonardo Brant, no site Cultura e Mercado, “o Sistema ficou sem pai, nem mãe” e seu
maior defensor foi João Roberto Peixe, integrante do Conselho Nacional de Política Cultural,
que lutou pela retomada do programa e acabou por assumir posteriormente a coordenação do
SNC8.

5
O PNC só foi aprovado pelo Congresso Nacional em 2010, mesmo ano em que é sancionado pelo Presidente da
Lula na forma da Lei no 12.343/2010.
6
Além de Meira, foi também demitido Antônio Grassi, presidente da Fundação Nacional da Arte (Funarte). Ver a
nota na íntegra em http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,AA1413429-5601,00-
SECRETARIA+DO+PT+DIVULGA+NOTA+SOBRE+DEMISSOES+NA+CULTURA.html. Acesso em
26.05.2014.
7
Economista de formação, Marco Acco entrou no MinC em 2004 como assessor de políticas culturais. Entre
2006 e 2007, assumiu a SEFIC, substituindo Sérgio Xavier.
8
“A volta do Sistema Nacional de Cultura”. Disponível em http://www.culturaemercado.com.br/analise/a-
retomada-do-sistema-nacional-de-cultura/. Acesso em 26.05.2014. João Roberto Peixe é arquiteto, designer e
54

V V
Em entrevista concedida a mim, Peixe confirma que com a saída de Meira “a questão
do Sistema ficou quase que paralisada nos dois primeiros anos da segunda gestão [do governo
Lula]”, e que só foi retomada quando, em agosto de 2008, Juca Ferreira assume o Ministério e
Silvana Meireles a SAI9, mas ainda assim “em um patamar de estrutura e de condições bem
abaixo do que existia no primeiro governo”10.
Naquele ano, ocorreram a aprovação no Conselho Nacional de Política Cultural do
documento “Proposta de Estruturação, Institucionalização e Implementação do Sistema
Nacional de Cultura”; a realização de uma nova rodada de seminários sobre o SNC em 24
estados, envolvendo gestores e conselheiros de cultura de 2.323 municípios; e a retomada do
pacto federativo, ensaiado em 2005 com o Protocolo de Intenções, com a assinatura do
“Acordo de Cooperação Federativa do SNC”. Contudo, até o fim do governo Lula (2010),
somente 363 (6,5%) Municípios e 1 (3,7%) Estado tinham formalizado sua integração ao
Sistema.
Para Bernardo Novais da Mata-Machado, diretor do Sistema Nacional de Cultura e
Programas Integrados da SAI, durante a gestão de Hollanda, o documento “Proposta...”
representou um marco divisório entre dois períodos. O primeiro, entre 2002 e 2009, operava o
SNC a partir dos direitos sociais. O segundo passou a compreender o Sistema na lógica dos
direitos culturais. Por sua vez, tais direitos são tidos como de características mistas, pois
“simultaneamente civis, políticos, econômicos e sociais”, o que necessita, para sua efetivação,
da ação compartilhada de indivíduos, comunidades e Estado” (MATA-MACHADO, 2011, p.
16).
Em março de 2010, a II Conferência Nacional de Cultura confirma como uma de suas
32 propostas prioritárias, “Consolidar, institucionalizar e implementar o Sistema Nacional de
Cultura (SNC)”11. Nesse mesmo ano, o MinC elabora as “Guias de Orientações do SNC”,
voltados para estados e municípios e que são disponibilizados on-line no blog do SNC.

gestor cultural. Militante do PT pernambucano do qual foi um dos fundadores, atuou como secretário de Cultura
de Recife entre 2001 e 2008.
9
Silvana Mireles é servidora da Fundação Joaquim Nabuco, do Ministério da Educação, com especialização na
área de política cultural e Integrou a equipe da SAI durante a gestão de Meira.
10
Entrevista concedida ao autor. Salvador, 13 de setembro de 2013.
11
Ver o “EIXO 5: GESTÃO E INSTITUCIONALIDADE DA CULTURA
 SUB–EIXO: 5.1 - Sistemas
Nacional, Estaduais, Distrital e Municipais de Cultura” do documento "Conferindo os conformes. Resultados da
II Conferência Nacional de Cultura”, disponível em http://pnc.culturadigital.br/wp-content/uploads/2012/10/1-
Resultados-II-Conferência-Nacional-de-Cultura.pdf. Acesso: 06.06.2014
55

V V
3. O Sistema Nacional de Cultura: segundo tempo
Em 2011, no governo Dilma, e com Ana de Hollanda como Ministra da Cultura, a SAI
passa por uma reformulação na qual, significativamente, a implantação do SNC passa a ser
seu foco principal. É também sintomático que Roberto Peixe, que estava à frente do SNC
como Coordenador Geral de Relações Federativas e Sociedade da SAI, assuma a Secretaria.
Este momento configura-se, portanto, como um marco no sentido do Sistema voltar a ocupar
uma centralidade entre os projetos do Ministério.
No lugar de Peixe como coordenador do SNC, assume Mata-Machado que já vinha
trabalhando junto ao Sistema desde o período de Silvana Meireles. Em entrevista ao
Observatório da Diversidade Cultural, em março de 2012, Mata Machado reconhece que
houve um “crescimento muito expressivo” de adesões ao SNC e diagnostica as causas:
aos esforços da Secretaria de Articulação Institucional, que foi
reestruturada no começo do ano para concentrar-se nesse objetivo; à
presença constante de seus dirigentes em encontros para debater o
Sistema Nacional de Cultura em todo o país; à publicação do “Guia de
Orientações para os Municípios; SNC – Perguntas e Respostas”, que
disseminou de forma didática as vantagens e os procedimentos de
integração ao Sistema; e à percepção, pelos entes federados, de que as
políticas públicas caminham, progressivamente, para se estruturarem
com base em sistemas nacionais, aí incluídas as transferências de
recursos fundo a fundo12.

Nos anos de 2011 e 2012, foram publicados e distribuídos nacionalmente o referido


documento-base do SNC, “Estruturação, Institucionalização e Implementação do SNC”,
(20.0000 exemplares), e as cartilhas “Guia de Orientações do SNC (Perguntas e Respostas) –
para Municípios” (50.000 exemplares) e “Guia de Orientações do SNC (Perguntas e
Respostas) – para os Estados“ (10.000 exemplares). O esforço visível do MinC é publicizar o
máximo possível o Sistema com o intuito de garantir o maior número de adesões. O retorno
foi o crescimento de 363 municípios e 1 estado no fim de 2010 para 1407 municípios, 22
estados e o Distrito Federal, em dezembro de 2012, integrados ao SNC por meio da assinatura
do Acordo de Cooperação Federativa (BRASIL, 2013a, p. 08).
Na apresentação ao documento “Estruturação...”, a ministra Ana de Hollanda defende
a implantação do SNC como uma política que foge do antagonismo entre liberalismo e
autoritarismo, situando-a no campo da “política cultural democrática”, cujos fundamentos

12
Disponível em http://observatoriodadiversidade.org.br/site/“a-expectativa-e-que-o-snc-se-torne-um-poderoso-
instrumento-de-protecao-e-promocao-da-diversidade-cultural-brasileira”/. Acesso em 05/06/2014.
56

V V
estariam no Artigo 215 da Constituição Brasileira que garante a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e transforma a cultura em obrigação do poder público.
Conjugada à nocão ampla de cultura, também presente na Constituição, a política
cultural democrática demanda um aparato institucional “bem mais robusto” ao existente até
então. O SNC visa responder a essa demanda, institucionalizando e fortalecendo a gestão
pública da cultura, reunindo a sociedade civil e os três níveis da Federacão com seus sistemas
de cultura organizados de forma autônoma, mas em regime de colaboração. Na avaliação da
ministra, o SNC, tal como os outros sistemas de políticas públicas, “pretende dar
organicidade, racionalidade e estabilidade às políticas públicas de cultura – definidas como
políticas de Estado”, garantindo “a todos os brasileiros o efetivo exercício de seus direitos
culturais” (HOLLANDA, 2011, p. 13).
Se desde o início o SNC vivenciou avanços e recuos, estes, provocados, em grande
parte, “pelas incertezas sobre a melhor forma de organizar as novas atribuições do poder
público na área da cultura”, seriam sanados pelo documento que se tornava público. A
expectativa é que funcionasse como “uma ferramenta de pesquisa e trabalho nas mãos de
gestores, conselheiros de cultura e da sociedade, tendo em vista a implantação plena e
compartilhada do Sistema Nacional de Cultura” (HOLLANDA, 2011, p. 13).
Para Peixe, então secretário de Articulacão Institucional, os desafios que a política
cultural deveria enfrentar no governo Dilma eram, de um lado, “assegurar a continuidade das
políticas públicas de cultura como políticas de Estado, com um nível cada vez mais elevado
de participação e controle social”, e, de outro, “viabilizar estruturas organizacionais e recursos
financeiros e humanos, em todos os níveis de governo, compatíveis com a importância da
cultura para o desenvolvimento do país” (PEIXE, 2011, p. 14). Na sua avaliação, o SNC
respondia de forma eficaz a ambos os desafios implantando uma gestão articulada e
compartilhada entre os três níveis de governo e a sociedade.
É relevante, no texto do secretário, a constatação de que a construção do SNC já
estava se dando nos estados e municípios, na medida que se implantavam, ainda que em
estágios bem diferenciados e sem uma visão sistêmica, os instrumentos básicos previstos:
órgãos gestores da cultura; conselhos de política cultural; conferências; planos de cultura;
fundos específicos para a cultura; de sistemas de informações e indicadores culturais;
programas de formação.
Para Mata-Machado, responsável direto pelo Sistema, se “são múltiplas e complexas
as ações que envolvem a implantação” do SNC, isso não significa que “se trata de colocar

57

V V
uma ‘camisa de força’ na cultura, como pensam críticos isolados, mas de fortalecer a política
pública de cultura” (MATA-MACHADO, 2011, p. 16), críticos estes que, como vimos,
também residiam no interior do próprio MinC. Para assegurar o fortalecimento da política,
seria necessário:

(1) assegurar que a liberdade de criar não sofra impedimentos; (2)


garantir aos criadores as condições materiais para criar e usufruir dos
benefícios resultantes das obras que produzem; (3), universalizar o
acesso de todos os cidadãos aos bens da cultura; (4) proteger e
promover as identidades e a diversidade cultural; e (5) estimular o
intercâmbio cultural nacional e internacional (MATA-MACHADO,
2011, p. 16).

Em 2012, foram dados dois passos fundamentais para a efetiva institucionalizacão do


SNC: o encaminhamento à Presidência da República para posterior envio ao Congresso
Nacional do Projeto de Lei do Sistema Nacional de Cultura e a aprovação e promulgação pelo
Congresso Nacional da Emenda Constitucional n° 71/2012 que introduz o Sistema Nacional
de Cultura na Constituição Federal. A Emenda, que resulta originariamente da PEC 416/2005,
acrescenta o Art. 216-A que fixa:
O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração,
de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão
e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e
permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade,
tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e
econômico com pleno exercício dos direitos culturais13.

Também no mesmo ano, inicou-se o reforço do apoio técnico da SAI à elaboração dos
planos estaduais e municipais de cultura no sentido de disseminar as bases do Sistema nestes
dois níveis da Federação. O ápice desse processo no governo Dilma, mas já na gestão da
ministra Marta Suplicy, foi a realização da III Conferência Nacional de Cultura, que ocorreu
entre 27 de novembro e 01 de dezembro de 2013, e cujo tema era, significativamente, “Uma
política de estado para a cultura. Desafios do Sistema Nacional de Cultura” (BRASIL,
2013b), antecipada pelas conferências estaduais e municipais que contaram com a
participação de milhares de pessoas.
Até aquele momento já tinham aderido ao SNC todos os 26 estados brasileiros e
respectivas capitais, além do Distrito Federal, bem como 2.068 municípios14. Assim, é

13
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc71.htm
14
O que equivale a 37,2% dos municípios brasileiros. Dados atualizados pelo MinC em 19.11.2013 e disponível:
http://www.cultura.gov.br/documents/10907/1030302/Quantitativo+de+Munic%C3%ADpios+e+Estados+com+
Acordo.pdf/82735882-d103-4953-bdba-c031d0e9f008. Acesso em 02.12.2013.
58

V V
possível afirmar que houve em torno do SNC um processo de hegemonização, ou seja, de
construção de uma ampla identidade social com essa política cultural, tendo o MinC como
agente principal na articulação das diferentes posições de sujeito, tornando-o uma proposta
consensual nos campos político e cultural brasileiros (BARBALHO, 2014b).
No documento “III Conferência Nacional de Cultura: uma política de estado para a
cultura. Desafios do Sistema Nacional de Cultura. Texto-base” encontram-se os 19 objetivos
definidos de acordo com a missão do MinC de “garantir a todos os cidadãos brasileiros o
pleno exercício dos seus direitos culturais”. Divididos em quatro grandes áreas de atuação,
Criação/Produção/Desenvolvimento; Difusão e Acesso à Cultura; Memória e Diversidade
Cultural; e Planejamento e a Gestão, os objetivos que se relacionam mais diretamente ao SNC
estão nessa última:

(15) Assegurar a participação da sociedade na formulação e


implementação das políticas; (16) Promover a integração com os entes
federados na execução da política; (17) Integrar e consolidar as políticas
de fomento e incentivo no sistema MinC; (18) Aperfeiçoar os marcos
regulatórios; e (19) Aperfeiçoar os processos de monitoramento e
fiscalização (BRASIL, 2013b, p. 02).
Por sua vez, levando em consideração que “Planejar é, sobretudo, priorizar”, o MinC
elegeu 4 programas: 1. Criar e descentralizar equipamentos culturais por meio da construção
dos Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs); 2. Implantar o Vale-Cultura; 3.
Fortalecer a presença do Brasil no mundo por meio do soft power; e 4. Implantar o SNC,
posto que “a articulação entre a Sociedade e o Estado (representado pelos entes federados) é a
garantia da construção de políticas culturais com bases sólidas e permanentes” (BRASIL,
2013b, p. 03).
O texto base da III CNC se organiza em 4 eixos: I – IMPLEMENTAÇÃO DO
SISTEMA NACIONAL DE CULTURA; II - PRODUÇÃO SIMBÓLICA E DIVERSIDADE
CULTURAL; III - CIDADANIA E DIREITOS CULTURAIS e IV – CULTURA COMO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. O eixo I tem como foco os “Impactos da Emenda
Constitucional do SNC na organização da gestão cultural e na participação social nos três
níveis de governo (União/Estados/ Distrito Federal e Municípios)” (BRASIL, 2013b p. 04).
Os quatro desafios colocados a esse eixo são: 1 - Marcos Legais, Participação e
Controle Social e Funcionamento dos Sistemas Municipais, Estaduais/ Distrito Federal e
setoriais de cultura, de acordo com os princípios constitucionais do SNC; 2 - Qualificação da
Gestão Cultural: Desenvolvimento e Implementação de Planos Territoriais e Setoriais de
Cultura e Formação de Gestores, Governamentais e Não Governamentais e Conselheiros de
Cultura; 3 - Sistemas de Informação Cultural e Governança Colaborativa; 4 - Fortalecimento
59

V V
e Operacionalização dos Sistemas de Financiamento Público da Cultura: Orçamentos
Públicos, Fundos de Cultura e Incentivos Fiscais.
A III CNC elegeu 64 diretrizes, com 20 dentre elas consideradas como prioridades,
divididas equitativamente entre os quatro eixos referidos acima. A cinco diretrizes priorizadas
no eixo I foram:
 1a) “Que o Congresso Nacional aprove com urgência a PEC 150”; 2a)
“Garantir que pelo menos 10% dos recursos do Fundo Social do Pré-Sal sejam destinados à
Cultura”; 3a) “Aprovar com urgência no Congresso Nacional Projeto de Lei Complementar
(PLC) 383/2013 de regulamentação do SNC (…) e apoiar a implantação e o pleno
funcionamento dos seus componentes, em todos os níveis da Federação”; 4a) “Criar,
desenvolver, fortalecer e ampliar as estratégias para a formação e capacitação em gestão
cultural de forma permanente e continuada”; e 5a) ‘Fortalecer o Fundo Nacional de Cultura,
como principal mecanismo de financiamento público da cultura”15.
Em junho de 2013, Roberto Peixe é substituído por Marcelo Pedroso16 que só fica até
julho do mesmo ano. Em seu lugar, assume Mata-Machado17 que deu continuidade ao que
vinha sendo feito na SAI. Ele foi que iniciou, no último ano de gestão de Marta Suplicy, o
processo de transferência de recursos do MinC via Sistema aos estados e municípios.
O instrumento que o MinC criou para efetivar a transferência de recursos foi um
edital, lançado em março, “Processo seletivo de fortalecimento do Sistema Nacional de
Cultura”, ou mais especificamente, um “processo seletivo de apoio a projetos do Fundo
Nacional da Cultura ao Orçamento-Geral da União de 2014, destinado aos entes federados
estaduais e distrital”18. O edital, além de atender aos ensejos de repasse de verba via Sistema,
tanto que só podiam concorrer os governos estaduais que tinham instituído seus sistemas por
lei própria, também procurava responder às metas estabelecidas no PNC19.
O total de recursos disponibilizados foi de R$30 milhões distribuídos em 3 eixo
relacionados com as metas do PNC a serem atendidas: EIXO 01 – Promoção da Diversidade
Cultural Brasileira. (Meta 6); EIXO 02 – Fomento à Produção e Circulação de Bens Culturais.

15
Disponível em
http://www.cultura.gov.br/documents/10907/945028/Propostas+aprovadas+na+III+CNC/d4021391-7293-4005-
bb6c-043bfd79ead6. Acessado em 02.06.2014.
16
Marcelo Pedroso é funcionário da Prefeitura Municipal de Santos e foi secretário de Turismo de Guarujá.
Antes de ir para o MinC, estava há sete anos diretor da Embratur.
17
Mata-Machado é historiador e cientista politico, com especialização em gestão cultural, e pesquisador da
Fundação João Pinheiro (MG). Também atua como ator e diretor de teatro.
18
Disponível em http://www.cultura.gov.br/documents/10180/0/editalfinalsnc/30bf6f62-f622-4d28-bb31-
4b3f3ebbdcb7. Acessado em 05.06.2014
19
Foram nove as metas do PNC contempladas nesse edital: 6, 22, 24, 29, 30, 31, 32, 33 e 34.
60

V V
(Metas 22 e 24); EIXO 03 – Implantação, Instalação e Modernização de Espaços e
Equipamentos Culturais. (Metas 29, 30, 31, 32,33 e 34).
Foram classificados para a fase preliminar 5 projetos para o eixo 1, propostos pelos
estados da Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará, Roraima e Acre; 6 projetos para o eixo 2,
propostos pelos estados da Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará, Roraima, Paraíba e Acre; e 5
projetos para o eixo 3, propostos pelos estados da Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará, Paraíba e
Acre20.
Avaliando a situação da política cultural brasileira em fins de 2013, Francisco
Caballero observa que “una de las principales conclusiones del actual proceso de innovación
cultural de Brasil es el lento y difícil encaje del SNC en las políticas locales, un problema por
otra parte más que habitual en toda estructura federalista de gobierno”. E acrescenta que a
avaliação de cumprimento das metas previstas para 2014 não são nada satisfatória, ainda mais
que “nuevas dificultades que, en el contexto de crisis y desaceleración relativa del crecimiento
interno, complican su consecución a medio plazo” (CABALLERO, 2014, p. 03). O Edital
reflete essa dificuldade financeira e de encaixe com as políticas culturais estaduais,
preconizada por Caballero, ao envolver poucos estados e recursos, levando em consideração
tantos anos de esforço na implantação do Sistema.

4. Sistema Nacional de Cultura: prorrogação?!


O SNC situa-se entre os programas mais ambiciosos do MinC, por institucionalizar a
cultura como um sistema federativo de políticas públicas, mas somente no governo Dilma, o
Sistema ganha o impulso que os agentes político-culturais, em especial aqueles ligados ao PT,
reinvidicavam desde a gestão Gil, a despeito das trocas das ministras e dos secretários da SAI.
Certamente, o Sistema não está implantado e muito esforço político e institucional
deverá ser dispendido para que, de fato, se torne um programa relativamente estável. E aqui
entra o papel decisivo dos agentes culturais externos ao governo e de seus movimentos. Em
outras palavras, caberá, em grande parte, ao modo como a sociedade vem se apropriando, ou
não, do Sistema a continuidade das ações.
O retorno ao MinC de Juca Ferreira que, como foi visto, fazia parte do grupo que não
tinha um maior comprometimento com o SNC pode levar, no mínimo, a uma reformulação do
caminho percorrido até o fim do primeiro governo Dilma. Aliás, é isso que anunciou na

20
Disponível em http://www.cultura.gov.br/documents/10883/1170919/RESULTADO+PRELIMINAR+-
+FASE+CLASSIFICAÇÃO+-+LISTA.pdf/2329cb5c-9f12-436c-9ebd-0fe214e79e54. Acessado em 05.06.2014

61

V V
conversa que teve com vários agentes culturais no dia de sua posse. Ferreira afirma que se foi
na sua gestão que o Sistema foi aprovado, ele não é um seu defensor, pelo menos no seu
formato atual.
Na avaliacão de Ferreira, trata-se de um projeto mistificado, uma ilusão, sem
eficiência e burocrático, por ter se modelado a partir dos Sistemas Único de Saúde e de
Educação, nos quais o Estado é provedor dos serviços, o que não ocorre na área cultural.
Articular as políticas nos três níveis seria apenas um detalhe no todo da cultura21. Também é
sintomática a substituição na direção da SAI de Mata-Machado por Vinicius Wu, um agente
cultural estranho ao esforço de construção do Sistema22.
A questão que se coloca é se e como caminhará a implantação do Sistema nessa nova
correlação de forças com o retorno ao governo federal de agentes contrários a essa política e a
demanda criada tanto no âmbito dos gestores públicos estaduais e municipais, bem como dos
agentes culturais atuantes na sociedade civil, pela sua efetivação.

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_____. Oficina de implementação de sistemas estaduais e municipais de cultura. Brasília: MinC,

21
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-Q4Uka42YB8. Acesso em 04.fev.2015.
22
Graduado em História pela UFRJ, Wu é especialista em cultura digital. Até o final de 2014, atuou como
secretário geral de governo e coordenador-geral do Gabinete Digital do estado do Rio Grande do Sul. Foi
também assessor especial do Ministro da Justiça, chefe de gabinete da Secretaria de Reforma do Judiciário do
Ministério da Justiça e membro do Conselho Nacional de Juventude da Presidência da República.

62

V V
2013a. Disponível em http://www.cultura.gov.br/documents/10907/963783/Apostila+-
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64

V V
O SISCULT E OS SISTEMAS DE CULTURA: REALIDADES, POLÍTICAS E
HISTÓRIA
Aline Pessôa da Ascenção Alcoforado1

RESUMO: O artigo apresenta o Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do Comando da


Aeronáutica (SISCULT), por meio de um breve histórico e uma reflexão sobre a política e a
legislação existente. O estudo aborda as diferenças e semelhanças com outros sistemas de
cultura e busca compreendê-las de acordo com a realidade na qual cada sistema está inserido.
Para as análises comparativas, foram selecionados o Sistema Brasileiro de Museus (SBM) e o
Sistema Nacional do Patrimônio Cultural (SNPC), por terem como foco Museu e Patrimônio
Cultural, atividades presentes no SISCULT. O trabalho não apresenta juízo de valores entre
os sistemas, apenas demonstra que, em realidades distintas, atividades semelhantes
necessitam de ações (e legislações) diferenciadas.

PALAVRAS-CHAVE: Legislação Cultural, Política Cultural, SNPC, SISCULT, SBM.

1 INTRODUÇÃO
Criar sistemas no Brasil não é algo recente. Existem sistemas sem os quais é difícil
imaginar a estrutura do país, como é o caso do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema
Único da Assistência Social (SUAS), do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA),
do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (SNUC). Esses sistemas possuem muitas diferenças entre si e três
semelhanças que podem ser consideradas como pilares. São elas: canais institucionais, onde é
possível compartilhar decisões e responsabilidades entre o Estado, os comitês gestores e a
sociedade; existência de um fundo de recursos públicos; e planejamento elaborado com a
participação social.
São vários os Sistemas Nacionais que existem ou estão em processo de criação. Os
sistemas na área cultural são bem recentes, se comparados aos já consolidados a nível
nacional. Os dois grandes sistemas da área cultural, que motivaram a criação de outros mais
específicos, foram o Sistema Federal de Cultura (SFC) e o Sistema Nacional de Cultura
(SNC).

1
Bacharel em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) com MBA em
Gestão Cultural pela Universidade Candido Mendes. Chefe da Seção de Patrimônio Cultural Material do
Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER). E-mail: alinepessoa.daa@gmail.com.
.
65

V V
Com o interesse de apresentar o Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do
Comando da Aeronáutica (SISCULT), o presente trabalho aborda a estrutura do supracitado
sistema, comparando-o com outros dois sistemas de âmbito nacional que lidam com questões
relativas ao Patrimônio Cultural e Museus: o Sistema Brasileiro de Museus (SBM) e o
Sistema Nacional do Patrimônio Cultural (SNPC). A comparação entre eles visa analisar as
especificidades da realidade de cada sistema, razões e consequências legais e estruturais.

2 SISTEMA DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DO COMANDO DA


AERONÁUTICA (SISCULT)

2.1 Desenvolvimento histórico e ações


A decisão de instituir o Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do Comando da
Aeronáutica teve motivação na Constituição Federal de 1988, com base nos artigos que
determinam a ação do Estado na preservação do patrimônio cultural e na respectiva
divulgação. Todavia, os esforços efetivos para a constituição do sistema da Força Aérea
Brasileira (FAB) ocorreram após a criação do Sistema Federal de Cultura (SFC), estabelecido
pelo Decreto nº 5.520 de 24 de agosto de 2005, que visava articular todos os órgãos e
programas culturais federais.
Para a implantação do sistema da FAB, foi realizado um estudo entre os anos de 2007
e 2008, o qual mapeou e analisou a realidade cultural dentro do Comando da Aeronáutica
(COMAER). Este estudo concluiu que, apenas uma pequena parte das atividades culturais do
COMAER eram administradas de forma centralizada, o que não explorava todo o potencial
das ações realizadas. O modo disperso com o qual ocorriam as atividades não possibilitava
mecanismos que favorecessem o direcionamento de recursos e a capacitação de seus
integrantes. A inexistência de uma política e de uma gerência centralizada impediam a
consolidação de uma estratégia de gestão do patrimônio cultural do COMAER.
Sendo assim, no dia 26 de fevereiro de 2010 foi assinada a Portaria nº 119/GC3, que
instituiu o Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do Comando da Aeronáutica
(SISCULT). O sistema em questão tem por finalidade planejar, orientar e coordenar as
atividades culturais no âmbito da Força Aérea Brasileira, tendo como órgão central o Instituto
Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER), que é um órgão de Assistência Direta e
Imediata ao Comandante da Aeronáutica.

66

V V
São integrantes desse sistema todas as Organizações Militares (OM) existentes no
COMAER. Assim, todas as OM devem encaminhar para o INCAER sugestões, objetivando a
melhoria do sistema, e fornecer dados ao Órgão Central que possibilitem o planejamento
orçamentário das atividades relacionadas ao Patrimônio Histórico e Cultural. Também tem o
dever de gerir de maneira adequada o Patrimônio Histórico e Cultural sob sua
responsabilidade, bem como realizar suas atividades conforme as normas publicadas pelo
INCAER, quais sejam: atividades relacionadas à Museologia, Documentação Histórica,
Heráldica, Patrimônio Cultural Material e Imaterial, Música, Literatura, Produções Artísticas
e Cerimonial Militar.
A capacitação é uma preocupação comum em todos os sistemas, porém esta é evidente
nas ações do SISCULT. Dada peculiaridade é fruto da realidade das organizações que
compõem o sistema. Considerando que as atividades culturais não são a finalidade da missão
da maioria dos elos do sistema, não é difícil supor a inexistência de pessoal técnico capacitado
para lidar com tais assuntos. Por esta razão, o INCAER elabora e divulga instruções
normativas que buscam orientar e ensinar didaticamente procedimentos necessários ao trato
do patrimônio e demais atividades culturais. Essas instruções são claras e objetivas, pois
precisam atender as diversas demandas da imensidão territorial e de realidade do Brasil.
Além da elaboração e publicação de instruções normativas, o INCAER realiza
palestras e Visitas de Assessoramento Técnico, com o propósito de acompanhar o
desenvolvimento das atividades culturais. Estas surgiram nas OM do COMAER de forma
espontânea, como resultado da necessidade do ser humano vivenciar e difundir os seus
valores, por meio da história e da arte, cabendo ao SISCULT gerenciar e aprimorar essas
iniciativas.
As atividades relativas à Música, também são gerenciadas pelo sistema em questão e
contam com pessoal especializado nas localidades onde são previstas Bandas, de Música ou
Marcial, as quais exercem importante papel no cumprimento do cerimonial militar.
Importa salientar que o órgão gestor não aprova ou desaprova nenhuma iniciativa
cultural, ele apenas orienta, assessora e emite pareceres técnicos. O SISCULT foi criado para
coordenar e orientar a crescente demanda cultural do COMAER, porém sem retirar a
autonomia de cada organização.

67

V V
2.2 Legislação
O SISCULT foi criado e regulamentado por meio de instrumentos legislativos internos
ao Comando da Aeronáutica, já que a gestão do sistema ocorre dentro do mesmo.

2.2.1 Portaria nº 119/GC3, de 26 de fevereiro de 2010.


O Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do Comando da Aeronáutica foi
instituído por meio da Portaria nº 119/GC3, de 26 de fevereiro de 2010, com o propósito de
planejar, orientar, coordenar e controlar as atividades culturais no âmbito do Comando da
Aeronáutica.
O artigo segundo expõe o que visa o sistema, conforme mencionado abaixo:
I - ampliar a capacidade de gerenciamento de assuntos relacionados com a
Cultura no âmbito do COMAER;
II - disciplinar as ações do Sistema, convertendo-as em fatores de
capacitação, coesão e motivação da Força;
III - racionalizar os recursos materiais e humanos na gerência de assuntos
culturais;
IV - integrar-se com os demais Sistemas do COMAER, utilizando-se de seus
recursos ou fornecendo-lhes suporte para a consecução de suas finalidades
normativas;
V - integrar-se com os Sistemas e Órgãos externos, públicos ou privados, no
trato de assuntos culturais de interesse do COMAER e da sociedade
brasileira;
VI - promover o desenvolvimento cultural no âmbito do COMAER; e
VII - ampliar o conhecimento aeronáutico junto ao público interno e externo,
por meio da divulgação do patrimônio histórico e cultural do Comando da
Aeronáutica. (COMANDO DA AERONÁUTICA, 2010)

O INCAER é estabelecido como órgão central do SISCULT e recebe as seguintes


competências: normatizar, orientar, supervisionar, coordenar e controlar as atividades;
implementar ações para aquisição e capacitação de recursos humanos; prover suporte e
planejamento financeiros para as atividades relacionadas com o Patrimônio Cultural; prestar
apoio técnico aos elos; promover a integração com os outros sistemas do COMAER e com os
sistemas e órgãos externos no interesse do Patrimônio Cultural; coordenar convênios com
entidades públicas ou privadas; promover, apoiar e incentivar o desenvolvimento de projetos
e ações pelos elos do sistema; implementar ações necessárias ao melhor funcionamento do
Sistema; e elaborar as normas de sistema e das atividades, bem como fiscalizar sua aplicação.
A portaria define que todas as organizações do Comando da Aeronáutica são elos do
Sistema, pois todas elas transmitem e vivenciam os valores culturais da Força Aérea, como
também possuem bens culturais materiais e imateriais. Como atribuições dos elos, a portaria
determina: desenvolver, executar ou participar das atividades de acordo com as normas

68

V V
elaboradas pelo Órgão Central; enviar ao Órgão Central sugestões que visem ao
aperfeiçoamento do Sistema; fornecer ao INCAER os elementos necessários ao planejamento
e à elaboração das propostas orçamentárias; e zelar pelo Patrimônio Cultural sob sua
responsabilidade.

2.2.2 Política Cultural do Comando da Aeronáutica (DCA 14-11)


A Política Cultural do Comando da Aeronáutica foi instituída por meio da Portaria nº
682/GC3, de 20 de dezembro de 2011. A discriminação dos objetivos da cultura no
COMAER é uma questão fundamental da política. São eles:
1º OBJETIVO
Gerir o patrimônio histórico e cultural do Comando da Aeronáutica,
assegurando aos nossos integrantes e aos demais cidadãos o direito
constitucional à cultura.
2º OBJETIVO
Divulgar o Comando da Aeronáutica para o público interno e externo,
através do seu patrimônio histórico e cultural, seja de natureza material ou
imaterial.
33º OBJETIVO
Desenvolver a Cultura no âmbito do COMAER, enfatizando seus valores,
crenças e tradições.
4º OBJETIVO
Adequar e integrar a atividade de Cultura ao preparo e emprego da Força
Aérea Brasileira.
5º OBJETIVO
Capacitar, valorizar e adequar os recursos humanos do Sistema de
Patrimônio Histórico e Cultural da Aeronáutica.
(COMANDO DA AERONÁUTICA, 2011. p11)

2.2.3 Estratégia de Cultura do Comando da Aeronáutica (DCA 15-2)


A DCA 15-2 é um documento oficial do Comando da Aeronáutica que apresenta a
estratégia para a área da cultura. A Estratégia de Cultura do Comando da Aeronáutica foi
aprovada pela Portaria nº 688/GC3, de 20 de dezembro de 2011. Este documento relaciona
todos os objetivos apresentados na DCA 14-11 “Política Cultural do Comando da
Aeronáutica” e especifica as ações estratégicas que devem ser tomadas para atingir os
objetivos determinados. A Estratégia, vinculada ponto a ponto com os objetivos da Política,
demonstra a responsabilidade em executar todos os objetivos determinados. Nota-se a clareza
de que todo bom pensamento tem efeito quando se estabelecem meios para colocá-lo em
prática.

69

V V
2.2.4 Organização e Funcionamento do Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do
Comando da Aeronáutica (NSCA900-1)
A NSCA 900-1 foi aprovada por meio da Portaria nº 820/GC3, de 13 de maio de 2013.
Esta publicação determina a finalidade, objetivos, estrutura do SISCULT, além das
atribuições dos atores existentes. A finalidade e os objetivos descritos são os mesmos
constantes na portaria de criação, havendo assim uma lógica coerente entre os documentos.
As atribuições dos elos e do Órgão Central são reforçadas nesta publicação.

2.2.5 FCA, ACA e ICA


Os Folhetos do Comando da Aeronáutica (FCA), as Instruções do Comando da
Aeronáutica (ICA) e os Almanaques do Comando da Aeronáutica (ACA) são documentos
normativos usados pelo SISCULT que visam dar orientação técnica para os elos do sistema.
São publicações didáticas, com fins de incentivar e capacitar os elos no exercício das
atividades culturais.

3 ANÁLISES COMPARADAS
3.1 Órgão Central
Em todos os sistemas analisados, o órgão central atua de maneira diferenciada no
respectivo exercício de organizar e gerir o sistema. Estas diferenças estão associadas ao
posicionamento político e hierárquico que cada um desses órgãos possui em relação aos elos.
O órgão central do SBM era inicialmente o DEMU/IPHAN (Departamento de
Museus). Com a criação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) este passou a ser o órgão
central do sistema. Hierarquicamente o IBRAM possui trinta museus subordinados. Pode-se
afirmar que a maioria dos elos do SBM não estão subordinados ao IBRAM. A gestão do
sistema pelo órgão central efetiva-se por meio de uma proposta de análises e ações conjuntas,
não possuindo este órgão poder autoritário atribuído por lei na fiscalização do funcionamento
dos elos (além dos trinta acima mencionados). O órgão central pode propor e sugerir medidas
que visem à melhoria das atividades museais, mas jamais interferir nos processos decisórios
de cada elo.
O IBRAM, como órgão coordenador do SBM, tem o dever de fixar as diretrizes do
sistema, buscar o cumprimento dos objetivos específicos previstos em lei, regular as
orientações normativas e a realizar supervisão técnica
O Órgão Central do SISCULT é o INCAER e este possui apenas um elo subordinado
diretamente: o Museu Aeroespacial. O INCAER, órgão de assessoria direta e imediata ao
70

V V
Comandante da Aeronáutica, atua como fiscalizador e orientador das Organizações Militares
do COMAER, todas elos do sistema, apesar de não possuir ingerência sobre cada uma, por
não estarem hierarquicamente subordinadas ao INCAER. Portanto, o órgão central orienta a
respeito dos procedimentos adequados no exercício das atividades culturais e incentiva a
realização das mesmas pelos elos, bem como tem a atribuição fiscalizadora no que se refere
ao registro histórico dos elos e na preservação do patrimônio cultural.
Os processos de organização e a estrutura política demonstram que o SNPC terá como
órgão central o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Analisar a
postura hierárquica e política em relação aos elos do futuro sistema é algo complexo, isso
porque um dos problemas na estruturação do referido sistema é ter diversos atores envolvidos
no trato de um mesmo patrimônio cultural. A necessidade de criação do SNPC existe para que
os interesses diversos sejam administrados. Aqueles que lidam com o patrimônio cultural
devem ser os elos do Sistema, porém serão muitos os interessados em um mesmo patrimônio,
afinal um patrimônio cultural é assim tido por ser relevante para um grupo e não apenas para
um único ser. Sendo assim, não é possível analisar a postura do órgão central em relação aos
elos. Não é possível quantificar rapidamente o patrimônio cultural brasileiro e delinear quais
possuem ou não administração direta do IPHAN, é necessário um trabalho anterior (e
contínuo) de inventário desse patrimônio.
Possivelmente o IPHAN, como órgão central do SNPC, terá por atribuição realizar
gestões com a finalidade de conciliar os interesses distintos dos diversos atores que atuam
junto ao patrimônio cultural, além de realizar as respectivas atribuições legais de fiscalização
da preservação do patrimônio cultural, em especial dos bens tombados.

3.2 Elos
A forma de ingresso e o posicionamento dos elos nos sistemas analisados ocorre de
forma distinta.
No SBM, são elos do sistema, sem a necessidade de cadastro ou formulação de
ingresso, todos os museus federais do poder executivo, independentemente de qual Ministério
estejam vinculados. Os demais museus e instituições afins passam a integrar o sistema
mediante adesão de cadastro voluntário. Não há determinação legal para que todas as
instituições participem do sistema, é uma proposta que possui livre acesso de participação
para todos os interessados. O elo decide a própria participação em face de interesses comuns
com o grupo. Com a finalidade de ampliar o número de participantes o SBM usa a

71

V V
publicidade. Todos os elos, por características da própria natureza, possuem de forma
explícita o agente responsável por suas ações administrativas, o que facilita a realização das
atividades contextualizadas com o sistema.
A criação do SISCULT estabeleceu que são elos do sistema todas as Organizações
Militares do Comando da Aeronáutica, posicionamento esse oposto ao do SBM. Para o
SISCULT, os elos precisam exercer as atividades culturais, mesmo que estas não sejam as
atividades fins da Organização. Já para o SBM os elos precisam se enxergar como
realizadores das atividades museais para participarem do sistema.
A ação de definir todas as organizações do COMAER como elos do SISCULT deixa
claro, em primeira instância, a abrangência do sistema, ou seja, abarca todo o COMAER.
Com a mesma ação, o sistema deixa claro que tem uma intenção motivacional, visando que as
organizações reconheçam a importância do desenvolvimento das atividades culturais.
A cultura ganha local de destaque no Comando da Aeronáutica ao criar um sistema
que prevê a importância do desenvolvimento dessas atividades em todas as organizações. Um
pensamento avançado e necessário, que retira de forma clara a obrigatoriedade dos órgãos
culturais serem os únicos responsáveis pela preservação patrimonial e difusão histórico-
cultural, delegando esta função a todas as organizações independente de sua atividade fim.
No SISCULT, o Profissional de Comunicação Social, figura existente em todas as
organizações, possuí a atribuição de gerência das questões relativas ao Sistema, devendo
manter contato com o Órgão Central sempre que julgar necessário.
Nos moldes em que se discute o desenvolvimento do SNPC, serão elos do sistema
todos os que possuem interesses e possibilidades de ação na preservação do patrimônio
cultural brasileiro. Ou seja, é difícil de estabelecer nitidamente quem são os seus agentes e
quais as relações que possuem entre si. Por exemplo, uma construção de propriedade privada
pode ser tombada na esfera federal, estadual e municipal e cada um dos quatro agentes citados
terem intenções e visões diversas quanto às formas e necessidades de preservação. Todos os
agentes supracitados serão elos do sistema, podendo ter mais de um objeto de interesse, mais
de um bem sobre a sua tutela e em condições diferenciadas. Essa ideia esboçada ajuda a
concretizar o emaranhado de teias e de interesses de relacionamentos que abarcará o sistema.
A necessidade de que todos os envolvidos em qualquer ação patrimonial façam parte do
SNPC é uma das características que parece tocante na análises realizadas

72

V V
3.3 Missão e objetivos
A análise comparada da missão e dos objetivos de todos os sistemas descritos conduz
à percepção de que, de uma forma geral, todos buscam a integração de ações semelhantes,
visando o fortalecimento da atividade. Entretanto, a forma escolhida para gerir esse objetivo
comum diferencia-se de acordo com a realidade de cada sistema. A ideia central pode ser a
mesma, porém a realidade faz com que se constituam de estruturas muito distintas em
processos e ações.
No que tange ao SBM, nota-se que os objetivos do referido sistema, previstos no
Decreto Lei nº 5.264, de 5 de novembro de 2004, possuem um foco maior no estímulo ao
desenvolvimento e na integração de projetos da área. Destacam-se, nas palavras da
própria legislação, os seguintes termos como objetivos: promover a articulação; respeitar a
autonomia; estimular o desenvolvimento; divulgar, apoiar, incentivar e promover; contribuir;
propor a criação; propor medidas; incentivar a formação; e estimular práticas. Por meio das
expressões supracitadas, observa-se que o foco do SBM é promover ações que integrem e
desenvolvam a área museal. Tudo se constitui em elaboração de propostas e ideias. É algo
sugestivo e não impositivo.
O SISCULT possui como missão a ampliação da capacidade gerencial dos assuntos
relativos à Cultura no âmbito do COMAER. A legislação que apresenta os objetivos do
sistema em questão cita as seguintes expressões: gerir, divulgar, desenvolver, adequar,
integrar, capacitar e valorizar. Constata-se que o SISCULT tem por finalidade a integração e
o desenvolvimento da área, com intuito gerencial do seu universo de ação, o COMAER. Suas
ações não têm por alvo apenas propor medidas para a melhoria, mas executar medidas para a
melhoria. O SISCULT, por meio do seu órgão central, possui respaldo para realizar dentro do
COMAER ações que visem o desenvolvimento.
Não há ainda legislação que regulamente o funcionamento do SNPC, pela simples
razão do sistema ainda não estar em vigor. Devido aos debates realizados, é possível supor
que os objetivos do SNPC tenham um foco regulador. Para gerir de forma integrada, é preciso
regular a capacidade legal de ação de diversos atores sobre o patrimônio. Observa-se ser essa
uma preocupação existente, a partir da qual se vê a necessidade da criação de um sistema para
a área.
Sinteticamente, pode-se caracterizar os três sistemas estudados por meio de seus
objetivos. O SBM tem o foco da divulgação da área, o SISCULT da gestão e o SNPC da
regulação dos processos. Integração e fortalecimento de ações é algo comum em todos.

73

V V
3.4 Legislação
O formato da regularização utilizada pelos sistemas também está associado à realidade
dos mesmos.
O SBM foi criado e regulamentado por Lei Federal. Por ser uma estrutura que agrega
todas as esferas de poder e organizações públicas e privadas, suas normatizações devem ser
expressas por meio de instrumentos legais de alcance a todos os entes da Federação. A
divulgação de programas e projetos e orientações técnicas ocorre por meio de eventos e
publicações que visam uma grande circulação.
O SISCULT tem por abrangência todo o COMAER. Por essa razão as
regulamentações devem ter este âmbito de ação. O sistema possui todas as suas
regulamentações em formatos de legislação interna existente no COMAER. Estas legislações
são disponíveis para as organizações que integram o Comando. Cada atividade do sistema é
regida por meio de um documento normativo específico.
Por possuir características similares no que diz respeito à abrangência do sistema, o
SNPC terá a mesma forma de regulamentação do SBM: Legislação Federal.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diferenças na forma de constituir e gerir os sistemas analisados não os fazem
melhores ou piores. As divergências na maneira de ação estão fortemente associadas à
realidade na qual se insere cada sistema.
A análise abarcou dois sistemas já constituídos e um em processo de criação: o SNPC.
A complexidade, realidade a ser considerada para a implantação do SNPC, possibilita
entender as dificuldades para a efetivação do referido sistema. Um dos pontos mais
conflitantes a ser considerado é o grande número de atores envolvidos no processo de
preservação do patrimônio cultural. O IPHAN, no SNPC, não tem mecanismo e direitos legais
para zelar, conforme os seus interesses, por todo o patrimônio cultural brasileiro, mas deve
buscar mecanismos para lidar com todos os interesses dos atores envolvidos.
Diferenças explícitas também foram percebidas entre o SBM e o SISCULT. O SBM
busca integrar as ações e instituições existentes da área, fazendo deles elos do sistema. Já o
SISCULT definiu a área de ação e instituiu seus elos, motivando-os a implementarem e
gerirem eficientemente atividades na área.

74

V V
Independentemente da área de atuação do sistema, é importante que ele se construa e
se fortaleça por meio de apoio da sociedade. Um sistema deve existir para servir a população,
ela é a beneficiaria de toda a política de integração que visa o desenvolvimento das
organizações afins e, na medida em que estas se desenvolvem e aprimoram suas atividades, a
sociedade colhe os frutos do trabalho realizado. Por esta razão, construir o sistema junto
daqueles que serão os seus principais beneficiários é fundamental para o sucesso e a eficácia
das ações.
De forma sintética, pode-se concluir que os sistemas são redes organizadas de ações a
serviço da sociedade. Eles possuem o ideal comum de integração de ações para o
fortalecimento da área, mas realizam medidas diferenciadas para atingir o seu objetivo, pela
razão de estarem inseridos em meios diferentes. Assim como todas as pessoas, que, por mais
que tenham aparentemente o mesmo objetivo, realizam caminhos diversos para atingi-los,
influenciadas pelo próprio olhar e pelas ferramentas que possuem à disposição.

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histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. In: Diário Oficial [da] República
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______. Decreto nº 8.124, de 17 de outubro de 2013. Regulamenta dispositivos da Lei nº 11.904, de


14 de janeiro de 2009, que institui o Estatuto de Museus, e da Lei nº 11.906, de 20 de janeiro de 2009,
que cria o Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM. In: Diário Oficial [da] República Federativa do
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75

V V
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5/05/2014.

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V V
DIVERSIDADE E PLURALIDADE COMO POLÍTICA CULTURAL: O DIREITO À
DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DOS TRIBUNAIS
Allan Rocha de Souza1
Alexandre de Serpa Pinto Fairbanks2
Wemerton Monteiro Souza3

RESUMO: Na medida em que os direitos constitucionais, em especial os fundamentais e


humanos, impõem ao mesmo tempo em que limitam as políticas públicas de Estado,
identificar os fundamentos jurídicos de determinada política pública é essencial para revelar
suas diretrizes e orientações obrigatórias, dentro da qual poderá e deverá ser formulada e
efetivada. Isto tem especial para os direitos culturais e demais políticas sociais. Tendo em
vista que um dos pilares dos direitos e políticas culturais é a diversidade, o objetivo deste
trabalho é analisar especificamente de que maneira os Tribunais superiores e órgãos
reguladores entendem e aplicam o direito à diversidade cultural e, para tal,
metodologicamente recorremos fortemente a uma análise das decisões relevantes destes
órgãos, revelando assim seus sentidos jurídicos e limitações políticas.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Culturais; Diversidade Cultural; Identidade Cultural.

Introdução

Na medida em que os direitos constitucionais, em especial os fundamentais e


humanos, impõem ao mesmo tempo em que limitam as políticas públicas de Estado,
identificar os fundamentos jurídicos de determinada política pública é essencial para revelar
suas diretrizes e orientações obrigatórias, dentro da qual poderá e deverá ser formulada e
efetivada. Isto tem especial para os direitos culturais e demais políticas sociais.
A construção dos espaços de livre trânsito cultural que possibilitam a plena
concretização dos direitos culturais - objetivo deste conjunto de direitos, deve atentar à
pluralidade e diversidade, característica elementar da cultural nacional, também
constitucionalmente protegida. (SOUZA, 2012)
Esta pluralidade está estampada nos §§ 1º e 2º do artigo 215 e caput do artigo 216,
quando se refere às manifestações dos grupos formadores da brasilidade. Este aspecto é

1
Doutor em Direito Civil pela UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professor Adjunto de Direito
Civil e Propriedade Intelectual da Faculdade de Direito da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio do
Janeiro. Professor Permanente do Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED/UFRJ).
E-mail: allanrsouza@gmail.com
2
Acadêmico de Direito da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail:
alexandre_spf@hotmail.com
3
Acadêmico de Direito da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail:
wemertonmonteiro@hotmail.com
77

V V
reforçado pela diretriz do Plano Nacional de Cultura que prevê a valorização da diversidade
étnica e regional.
Seu sentido jurídico é informado também pela Convenção para Proteção e Promoção
da Diversidade Cultural. Não menos importantes para elucidar seu conteúdo são os tratados
de não discriminação e em favor da inclusão, capitaneados pela Organização das Nações
Unidas.
O reconhecimento constitucional do pluralismo cultural e da consequente diversidade
como formadores da nação e proclamadores das particularidades pátrias é expresso, por
exemplo, na obrigação de proteger e promover as manifestações populares, indígenas, afro-
brasileiras e de qualquer dos muitos grupos constituintes da identidade nacional.
Interessa, contudo, neste artigo, ir além dos discursos legitimadores do pluralismo e
analisar especificamente de que maneira os Tribunais superiores e órgãos reguladores
entendem e aplicam o direito à diversidade cultural. E para tal recorremos fortemente a uma
análise das decisões relevantes destes órgãos.

Diversidade e identidade
O pluralismo foi reconhecido e valorado mesmo com relação a grandes agrupamentos
étnicos, como os grupos indígenas, cuja identidade cultural é enormemente diversificada. O
Supremo Tribunal Federal afirmou esta posição quando do julgamento da Petição n. 3.388,
sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima, ao esposar o
entendimento de que “o substantivo ‘índios’ é usado pela Constituição Federal de 1988 em
um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas
etnias” e que o “propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto
interétnica quanto intra-étnica” 4.
A revelação do sentido atribuído pela Constituição quando fala de processo
civilizatório nacional é direcionada pelas disposições que asseguram o pluralismo e pelos
tratados que afirmam o valor da diversidade cultural. Com isto, protege todos os grupos
étnicos, religiosos, regionais ou ligados por quaisquer traços que marquem sua identidade
distinta, integrantes que são do processo cultural plural e diverso de formação do Brasil.
Esta é a visão expressa recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, ao tratar do
relacionamento cultural entre índios e não índios,

4
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n. 3.388-RR. Tribunal Pleno. Relator: Min. Carlos Brito, Brasília,
19 de março de 2009. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
78

V V
Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-
índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de
identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma
subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a
caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. 5

O próprio modelo de reconhecimento e ocupação das terras indígenas “tanto preserva


a identidade de cada etnia como sua abertura para o relacionamento de mútuo proveito com
6
outras etnias indígenas e outros grupamentos não indígenas” . Isto equivale ao
reconhecimento jurídico tanto do direito à identidade como do direito ao pluralismo quanto
dos princípios de interação respeitosa, democrática, igualitária e inclusiva entre os muitos
grupos reunidos por elementos de identificação cultural.
A extensão da proteção estendida aos indígenas, em razão de suas características
culturais próprias reconhecidas constitucionalmente, afeta, por exemplo, a própria
competência para julgamento das ações judiciais envolvendo este grupo, pois “a competência
da justiça federal em relação aos direitos indígenas não se restringe às hipóteses de disputa de
terras, eis que os direitos contemplados no art. 231, da Constituição Federal, são muito mais
extensos” 7.
Inclui mesmo atos que afrontem à cultura das comunidades indígenas, ainda que na
instância criminal, como “o fato dos acusados terem se utilizado da condição étnica das
vítimas para a prática das condutas delituosas, o que representa afronta direta à cultura da
comunidade indígena” 8. O deslocamento para a competência da Justiça Federal, todavia,
“somente ocorre quando o processo versa sobre questões ligadas à cultura indígena e aos
direitos sobre suas terras” 9, sendo que este último está intimamente vinculado ao primeiro,
não alcançando esta competência especial “os delitos isolados praticados sem qualquer
envolvimento com a comunidade indígena” 10.
Nota-se que a questão do direito à diversidade está fortemente marcado pelo respeito à
identidade e ao reconhecimento da existência de várias formas de ser brasileiro. Isto não quer

5
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n. 3.388-RR. Tribunal Pleno. Relator: Min. Carlos Brito, Brasília,
19 de março de 2009. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
6
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n. 3.388-RR. Tribunal Pleno. Relator: Min. Carlos Brito, Brasília,
19 de março de 2009, p. 47. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
7
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 91.313-RS. Segunda Turma. Relatora: Min. Ellen
Gracie, Brasília, 02 de setembro de 2008. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
8
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 91.313-RS. Segunda Turma. Relatora: Min. Ellen
Gracie, Brasília, 02 de setembro de 2008. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
9
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 81.827-MT. Segunda Turma. Relator: Min. Maurício
Corrêa, Brasília, 25 de maio de 2002. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
10
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 75.404-DF. Segunda Turma. Relator: Min. Maurício
Corrêa, Brasília, 27 de junho de 1997. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
79

V V
dizer, porém, que os desígnios identitários tenham tal força a ponto de serem super direitos,
ou direitos ilimitados.
Este foi o caso, por exemplo, da farra do boi em Santa Catarina. No Recurso
Extraordinário 153.531, o Tribunal enfrentou o conflito potencial entre os direitos culturais e
o impedimento de crueldade aos animais, como se extrai da decisão:
“A obrigação de o Estado garantir todos o pleno exercício de direitos
culturais, incentivando a valorização e a difusão de manifestações, não
prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 215 da
Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais
à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado
“farra do boi”.11

Cultura e território
Este reconhecimento do direito à pluralidade e à identidade está igualmente estampado
na discussão sobre a comunidade quilombola da Restinga de Marambaia, no Estado do Rio de
Janeiro. A questão principal a ser decidida é se os membros de tal comunidade são ou não
remanescentes de quilombos, o que implica no reconhecimento de sua identidade como tal.
Para efeitos legais, os quilombos são “as chamadas ‘terras de preto’ ou ‘comunidades
negras rurais’”. Estas comunidades, em consonância com os estudos históricos e
antropológicos existentes, são constituídas no tempo “através das fugas com ocupação de
terras livres e isoladas, mas, igualmente, através de heranças, doações, compras, recebimentos
de terras como pagamento de serviços prestados, entre outras formas, anteriores ou
posteriores à abolição” 12.
Os elementos comuns e a continuidade histórica da gênese comunitária são elementos
balizadores da formação identitárias de seus membros e, por isso, lhes são garantido o
reconhecimento da propriedade das terras sobre as quais detêm a posse. O laudo histórico
sobre a ocupação deste espaço de convivência é categoricamente conclusivo neste aspecto
quando assevera que
De todo modo, a ilha de Marambaia expressou outrora o poder do grande
cafeicultor do Império, Joaquim José de Souza Breves, o Rei do Café. Ela –
a ilha – expressa hoje a legitimidade da ocupação de ex-cativos e o
reconhecimento, ainda que tardio, do Estado em relação ao direito das
minorias, um exemplo emblemático do que se convencionou chamar de terra
de preto. (MOTTA, 2008, p. 17)

11
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.153.531- SC. Segunda Turma. Relator: Min.
Francisco Rezek, Brasília, 03 de junho de 1997. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 01 mar. 2015.
12
BRASIL. Justiça Federal – Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro. Ação Civil Pública n.
2002.51.11.000118-2. 01ª Vara Federal de Angra dos Reis. Juíza Maria de Lourdes Coutinho Tavares, Angra dos
Reis, RJ, 25 de setembro de 2008. Disponível em: <www.jfrj.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
80

V V
Este pleito tem sido objeto de grande polêmica, na medida em que envolve questões
de segurança nacional e o controle das terras reclamadas pela Marinha do Brasil, opondo
inclusive órgãos governamentais federais. A sentença de primeira instância, que se encontra
hoje em sede de recurso necessário, foi bastante elucidativa na interpretação constitucional do
conflito, apontando para a dignidade humana como princípio norteador da ponderação. 13
A questão do reconhecimento das terras quilombolas é enfrentada, in abstrato,
também na Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada contra o decreto regulamentador
n. 4.887/2003. 14 Argumenta o impetrante – o antigo Partido da Frente Liberal – que o decreto
almeja reconhecer os intitulados por meio de auto-atribuição “antes de levar em conta os
estudos históricos e antropológicos”, que a pretensão de regular normas constitucionais por
Decreto é ilegítima, e que não há de se falar em desapropriação – nem da consequente
compensação – uma vez que estes direitos são reconhecidos e não atribuídos pelo Poder
15
Público. A União contesta a questão da ilegitimidade do Decreto para regular a norma
constitucional em questão alegando que, por ser auto-aplicável, o decreto apenas institui
procedimentos normativos a cargo do Poder Executivo. Atenta para o fato de que a auto-
atribuição apenas conhece que a identidade deverá ser considerada critério fundamental no
reconhecimento. Por fim, argumenta que a desapropriação das terras ocupadas por
particulares almeja simplesmente compatibilizar os direitos de propriedade privada porventura
existentes com o reconhecimento da propriedade dos quilombolas, assegurando àqueles
indenização. 16

13
Conforme elaborado pelo Juízo: “Assim, o art. 68 do ADCT e seus termos não deve ser interpretado de forma
restritiva. Pelo contrário, sendo a interpretação constitucional um processo que tem como objetivo revelar o
alcance das normas que integram a constituição, aplicando-se o método valorativo, bem como o princípio da
hermenêutica constitucional da unicidade da constituição, verifica-se que o comando constitucional acima citado
deve ser cotejado sistematicamente com os princípios fundamentais do nosso Texto Constitucional, notadamente
o princípio que garante a dignidade da pessoa humana”. BRASIL. Justiça Federal – Seção Judiciária do Estado
do Rio de Janeiro. Ação Civil Pública n. 2002.51.11.000118-2. 01ª Vara Federal de Angra dos Reis. Juíza Maria
de Lourdes Coutinho Tavares, Angra dos Reis, RJ, 25 de setembro de 2008. Disponível em: <www.jfrj.gov.br>.
Acesso em: 25 fev. 2015.
14
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 3.239-DF. Relator: Min. Cesar
Peluso, Brasília. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.
15
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 3.239-DF. Tribunal Pleno.
Relator: Min. Cesar Peluso, Brasília. Petição Inicial. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=2227157>. Acesso em: 25 fev. 2015.
16
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informações prestadas pela Presidência da República na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 3.239-DF. Tribunal Pleno. Relator: Min. Cesar Peluso, Brasília. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=2227157>. Acesso em: 25 fev. 2015.
81

V V
A análise dos conflitos que envolvem o reconhecimento da propriedade de terra aos
quilombolas deixa claro que é central ao problema a questão do direito à identidade, devendo-
se, para a solução dos casos, recorrerem aos direitos culturais.

Religião, Cultura e Entorpecentes


A questão do direito à identidade é tão relevante em nosso ordenamento que afeta
inclusive decisões do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). Em 04 de
fevereiro de 1986, as espécies vegetais que compõem a Ayahuasca, popularmente conhecido
como ‘chá do santo daime’, foram suspensas da lista de substâncias proibidas pelo então
Conselho Federal de Entorpecentes. Após estudos em 1987 e 1992 esta suspensão tornou-se
definitiva. Em 2004, já pelo CONAD, após parecer técnico reiterando as posições anteriores,
um novo grupo multidisciplinar para “identificar normas e procedimentos compatíveis com o
uso religioso da Ayahuasca e implementar o estudo e a pesquisa sobre o uso terapêutico da
Ayahuasca em caráter experimental”, cujo relatório final foi aprovado na 2ª Reunião
Ordinária do órgão, realizada em 6 de dezembro de 2006. 17
Em janeiro de 2010, o CONAD publica a Resolução n. 1, que regulamenta o seu uso e
incorpora integralmente o parecer do grupo multidisciplinar já aprovado desde 2006. Esta
Resolução trata da observância pelos órgãos da Administração Federal “sobre normas e
procedimentos compatíveis com o uso religioso da Ayahuasca e dos princípios deontológicos
que o informam” 18.
Entre as conclusões emitidas pelo Grupo Multidisciplinar de Trabalho –
AYAHUASCA, destacam-se, para as finalidades deste trabalho, duas em especial. A primeira
– letra b – refere-se ao mau uso da substância e sugere a proibição de sua comercialização e
uso terapêutico. 19 A segunda conclusão relevante aponta claramente para os direitos culturais

17
BRASIL. Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD. Resolução nº. 01, de 26 janeiro de 2010,
que dispõe sobre a observância, pelos órgãos da Administração Pública, das decisões do Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas - CONAD sobre normas e procedimentos compatíveis com o uso religioso da Ayahuasca
e dos princípios deontológicos que o informam.
18
BRASIL. Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD. Resolução nº. 01, de 26 janeiro de 2010,
que dispõe sobre a observância, pelos órgãos da Administração Pública, das decisões do Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas - CONAD sobre normas e procedimentos compatíveis com o uso religioso da Ayahuasca
e dos princípios deontológicos que o informam.
19
Concluem, neste ponto, da seguinte forma: “b. Considerando que o GMT, após diversas discussões e análises,
onde prevaleceu o confronto e o pluralismo de idéias, considerou como uso inadequado da Ayahuasca a prática
do comércio, a exploração turística da bebida, o uso associado a substâncias psicoativas ilícitas, o uso fora de
rituais religiosos, a atividade terapêutica privativa de profissão regulamentada por lei sem respaldo de pesquisas
cientificas, o curandeirismo, a propaganda, e outras práticas que possam colocar em risco a saúde física e mental
dos indivíduos.” RELATÓRIO do Grupo Multidisciplinar de Trabalho – AYAHUASCA. Disponível em:
<www.obid.senad.gov.br/portais/CONAD/index.php>. Acesso em: 14 jan. 2015.
82

V V
como fundamento da autorização do uso da substância para fins religiosos, pelo fato de ser
um elemento constituinte da identidade dos grupos que a utilizam, assim dispondo
Considerando, por fim, que o uso ritualístico religioso da Ayahuasca, há
muito reconhecido como prática legitima, constitui-se manifestação cultural
indissociável da identidade das populações tradicionais da Amazônia e de
parte da população urbana do País, cabendo ao Estado não só garantir o
pleno exercício desse direito à manifestação cultural, mas também protegê-la
por quaisquer meios de acautelamento e prevenção, nos termos do art. 2o,
“caput”, Lei 11.343/06 e art. 215, caput e § 1º c/c art. 216, caput e §§ 1º e 4º
da Constituição Federal.

O Comércio Cultural e as identidades locais


A internacionalização dos direitos culturais expõe à possibilidade de choque com os
preceitos liberais vigentes do comércio internacional, como pode ocorrer também com relação
ao Acordo TRIPS e a Convenção da Diversidade.
Em disputa julgada procedente junto à Organização Mundial do Comércio (OMC),
iniciada pelos Estados Unidos da América em face da China, por restrições à exibição e
distribuição de filmes americanos em seu território, alega-se que o governo Chinês descumpre
as obrigações comerciais assumidas frente à OMC. Em sua defesa levantaram a questão do
20
pluralismo e, implicitamente, do direito à identidade. Ao final, foi concluído que as
restrições ao comércio e à atuação de empresas estrangeiras na distribuição dos produtos
culturais ofendem os compromissos comerciais assumidos pelo país. A China também alegou
a proteção da moralidade pública como elemento justificador das restrições, não tendo este
argumento sido acatado. 21

20
“The US claims under the GATS concerned various Chinese measures relating to the distribution of reading
materials, AVHE distribution services, and sound recording distribution services. The panel found that Chinese
measures prohibiting foreign-invested enterprises from engaging in: (i) the wholesale of imported reading
materials, (ii) the master distribution (exclusive sale) of books, periodicals and newspapers and (iii) the master
wholesale and wholesale of electronic publications are inconsistent with China's national treatment commitments
under Article XVII of the GATS. The panel further found that Chinese measures imposing requirements relating
to registered capital and operating terms for the distribution of reading materials are, likewise, inconsistent with
China's national treatment commitments. In addition, the panel concluded that China's prohibition on foreign-
invested enterprises with regard to the supply of sound recording distribution services are inconsistent with
China's national treatment commitments. Furthermore, the panel found that Chinese measures limiting
commercial presence for the distribution of videocassettes, DVDs, etc. to joint ventures with Chinese majority
ownership, and measures limiting the operating term for joint ventures, but not for wholly Chinese-owned
enterprises, are inconsistent with China's market access commitments under Article XVI of the GATS or its
national treatment commitments under Article XVII.” ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. China –
Measures Affecting Trading Rights and Distribution Services for Certain Publications And Audiovisual
Entertainment Products. Summary of the Case. Disponível em:
<http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds363_e.htm>. Acesso em: 14 jan. 2015.
21
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. China – Measures Affecting Trading Rights and Distribution
Services for Certain Publications And Audiovisual Entertainment Products. Panel Report. Disponível em:
<http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/363r_e.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2015.
83

V V
O interessante, para as finalidades desta análise, foi a alegação, com pedido de
consideração, sustentada na Declaração Universal sobre Diversidade Cultural e na Convenção
para Proteção e Promoção da Diversidade Cultural, de que os bens culturais – como os filmes
- têm características especiais e um papel crucial na influência e definição das características
22
de uma dada sociedade. Ainda que não tenha sido parte integrante da disputa, a União
Européia, como terceiro interessado aceito no caso, diz estar convencida de que a China pode
desenvolver e implementar sua política cultural dentro dos limites estabelecidos pelas
obrigações comerciais junto à Organização Mundial do Comércio. 23
Ao final, fica a conclusão de que a Convenção pela Preservação e Promoção da
Diversidade Cultural pode ter efeitos concretos sobre o comércio dos bens culturais, devendo
ser compatibilizada com as regras internacionais do comércio, para a aplicação de ambos os
conjuntos normativos.

Conclusões
O objetivo do processo civilizatório plural de que trata a Constituição não é, portanto,
um processo de imposição de determinada visão de mundo, mas um processo de interações e
influências múltiplas e contínuas.
Pluralismo e diversidade culturais resultam na promoção inclusiva dos variados grupos
culturais componentes da nação e estão relacionados à formação das identidades.
O reconhecimento do pluralismo cultural como característica nacional a ser apoiada,
incentivada, valorizada e difundida, junto ao robustecimento e democratização do acesso ao
patrimônio cultural brasileiro, são alicerces do direito à identidade dos diversos segmentos da
nação e, consequentemente, da própria identidade nacional, representada nas diversas
maneiras possíveis de ser brasileiro.

22
“China points out that cultural goods and services have a very specific nature "[a]s vectors of identity, values
and meaning", in that they do not merely satisfy a commercial need, but also play a crucial role in influencing
and defining the features of society. Noting that this specificity of cultural goods has been affirmed by the
UNESCO Universal Declaration on Cultural Diversity and by the UNESCO Convention on the Protection and
Promotion of the Diversity of Cultural Expressions, China requests the Appellate Body to be "mindful" in the
present appeal of the specific nature of cultural goods”. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. China
– Measures Affecting Trading Rights and Distribution Services for Certain Publications And Audiovisual
Entertainment Products, p. 13. Panel Report. Disponível em:
<http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/363r_e.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2015.
23
INTELLECTUAL Property Watch. WTO Adopts Appellate Body Report On US-China Film Distribution
Dispute. Disponível em: <http://www.ip-watch.org/weblog/2010/01/19/wto-adopts-appellate-body-report-on-us-
china-film-distribution-dispute/>. Acesso em: 14 jan. 2015.
84

V V
Afirma a decisão do STF a “concretização constitucional do valor da inclusão
24
comunitária pela via da identidade étnica” e, com isso, relaciona a inclusão ao direito à
identidade, que, em razão do próprio pluralismo, não se limita aos vínculos étnicos, se
estendendo a outras formas de relações comunitárias identitárias.
É, portanto, um dever do Estado não só respeitas, mas também apoiar e incentivar
tanto a valoração quanto a difusão das variadas manifestações culturais constituintes do país
e, assim, a materialização do apoio e incentivo culturais deve ser informada pela preservação
e promoção da diversidade cultural.
A preservação – que também se dá com a promoção - do pluralismo cultural nacional
é um determinante cultural constitucional. Afirma-se, protege-se e promove-se o pluralismo
cultural.
Tanto a proteção das datas de ‘alta significação’, como as especiais referências à ação,
memória e identidade dos grupos formadores da nação demonstram ser a proteção dos
elementos constitutivos e formadores das identidades um princípio finalístico, portanto
constitutivo, dos direitos culturais. Os direitos à identidade e ao pluralismo cultural não
foram, assim, esquecidos nem pelo constituinte nem pelo poder judiciário.
A restrição do acesso aos bens culturais também é ilegítima na medida em que o
patrimônio cultural brasileiro é fonte referencial de identidade, portanto bem público
essencial, que deve ser protegido da apropriação privada, mormente aquela restritiva de
acesso, que só excepcionalmente é justificada.
Neste sentido, o direito à identidade também substancia e justifica o direito de acesso,
que, por sua vez, igualmente assegura a participação e o exercício dos direitos culturais para a
satisfação das relações existenciais que suportam as identidades.

Referências

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RODRIGUES, Ricardo José Pereira (Org.). Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988
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BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. Rio de Janeiro:
Saraiva, 2006.

24
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n. 3.388-RR. Tribunal Pleno. Relator: Min. Carlos Brito,
Brasília, 19 de março de 2009. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 14 jan. 2015.
85

V V
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2002.51.11.000118-2. 01ª Vara Federal de Angra dos Reis. Juíza Maria de Lourdes Coutinho Tavares,
Angra dos Reis, RJ, 25 de setembro de 2008. Disponível em: <www.jfrj.gov.br>.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informações prestadas pela Presidência da República na Ação
Direta de Inconstitucionalidade n. 3.239-DF. Tribunal Pleno. Relator: Min. Cesar Peluso, Brasília.
Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronic
o.jsf?seqobjetoincidente=2227157>. Acesso em: 25 fev. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 3.239-DF. Relator:


Min. Cesar Peluso, Brasília. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 75.404-DF. Segunda Turma. Relator: Min.
Maurício Corrêa, Brasília, 27 de junho de 1997. Disponível em: <www.stf.gov.br>.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 81.827-MT. Segunda Turma. Relator: Min.
Maurício Corrêa, Brasília, 25 de maio de 2002. Disponível em: <www.stf.gov.br>.

86

V V
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 91.313-RS. Segunda Turma. Relatora: Min.
Ellen Gracie, Brasília, 02 de setembro de 2008. Disponível em: <www.stf.gov.br>.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição n. 3.388-RR. Tribunal Pleno. Relator: Min. Carlos Brito,
Brasília, 19 de março de 2009. Disponível em: <www.stf.gov.br>.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.153.531- SC. Segunda Turma. Relator:
Min. Francisco Rezek, Brasília, 03 de junho de 1997. Disponível em: <www.stf.jus.br>.

87

V V
EVOLUÇÃO DOS ORÇAMENTOS PÚBLICOS DA CULTURA NO BRASIL DO
SÉCULO XXI
Álvaro Santi1

RESUMO: O estudo analisa séries históricas de dados da contabilidade pública, do início


deste século, sobre o gasto em cultura no Brasil, em termos globais e por esfera de governo
(União, estados e municípios). São comparados dados das 27 Unidades da Federação e das
capitais, que apresentam grandes disparidades entre si. No conjunto, houve aumento dos
recursos em termos percentuais e, em valores, o aumento superou a inflação. Destaca-se o
incremento de recursos federais, embora os municípios sigam sendo a fonte principal, tendo
havido aumento na participação do interior em relação às capitais. Recursos destinados ao
patrimônio cultural são particularmente escassos e irregulares. Variações extremas entre os
diversos estados e capitais evidenciam a necessidade de se estabelecerem parâmetros mínimos
que permitam o cumprimento das atribuições constitucionais do poder público.

PALAVRAS-CHAVE: Contas públicas, Orçamento público, Função Cultura, Sub-função


Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico, Sistema Nacional de Cultura.

A gestão de Gilberto Gil frente ao Ministério da Cultura do Brasil (MinC) (2003-


2008) constituiu um marco divisório das políticas do Estado brasileiro para este setor. Datam
deste período um conjunto de ações e programas estruturantes, em cuja gestação colaboraram
diversos atores sociais  de artistas a gestores, de empresários a acadêmicos  alcançando-se
“um novo e promissor patamar das políticas culturais nacionais” (Rubim, 2010).
Entre essas iniciativas, destacam-se a realização da primeira Conferência Nacional de
Cultura (2005); a instalação do Conselho Nacional de Política Cultural (2007) e de seus
órgãos colegiados setoriais; a aprovação do primeiro Plano Nacional de Cultura (PNC), sob a
forma da Lei 12.343/2010; o Programa Cultura Viva; e a aprovação da Emenda
Constitucional 71/2012, que instituiu o Sistema Nacional de Cultura (SNC).
Passada mais de uma década do início deste processo, renovaram-se os discursos e
abordagens do poder público sobre a cultura, assumindo crescente relevo e suscitando debates
expressões como diversidade cultural, cidadania cultural, patrimônio imaterial, economia
criativa e mesmo política cultural.
Para a continuidade e institucionalização dessas políticas, restam ainda por vencer
enormes desafios, como os de assegurar patamares mínimos de recursos orçamentários e

1
Prefeitura de Porto Alegre/Observatório da Cultura. Mestre em Letras e Bacharel em Música (UFRGS).
asanti@smc.prefpoa.com.br
88

V V
reformular os perversos mecanismos de renúncia fiscal, fixados pelas Leis Rouanet e do
Audiovisual, ambos objeto de proposta do Executivo em tramitação no Congresso, sob pena
de perpetuar-se o conflito entre tais políticas e seus modos de financiamento (Rubim, 2010).
Também são ainda escassos e incipientes os mecanismos de avaliação e
monitoramento das políticas de cultura, em todas as esferas de governo. Na ausência de metas
e indicadores para a maioria das ações – ainda que muitas vezes constem em leis, convênios e
outros documentos oficiais, somente para legitimar tais programas, sob acordo tácito de serem
logo esquecidas – e de políticas para a coleta, armazenamento e publicação de dados que
permitam avaliar o seu sucesso em termos dessas metas (e não da repercussão midiática),
gestores, cidadãos e pesquisadores em geral têm de se contentar com três dados básicos:
número de eventos, público participante e dinheiro gasto.
Este último dado é brandido amiúde pelas autoridades como suposto indicador de
reconhecimento da importância da cultura. Analisado friamente, contudo, tal discurso
equivale – como bem notou Fonseca (2007)  ao de um gestor da área da saúde que se
orgulhasse da quantidade de medicamentos que adquiriu, mas nada soubesse do seu efeito
sobre a saúde da população.
Ainda que tal situação seja deplorável, merecendo urgente reparo, feita a ressalva
sobre a limitação dos dados disponíveis, julgamos ser de interesse público analisar a evolução
dos recursos executados pelas três esferas de governo, senão por outro motivo (como adiante
se verá), pela importância de se dispor de patamares orçamentários mínimos, destinados com
regularidade e executados sem oscilações extremas ou contingenciamentos imprevisíveis,
permitindo assim o planejamento a médio e longo prazo, com a crescente institucionalização
de políticas de Estado, em substituição a ações esporádicas.
Esta pesquisa foi possível graças à disponibilidade, pela Secretaria do Tesouro
Nacional (STN) do Ministério da Fazenda, dos dados de execução orçamentária de Estados,
Municípios e União, desagregados por função de governo, tendo sido desmembrada a função
Cultura a partir do ano 2000 para a União e de 2002 para as demais esferas (até então
agrupada em “Educação e Cultura”). A partir de 2004, encontram-se desagregados os dados
da função Cultura nas sub-funções "Patrimônio histórico, artístico e arqueológico" (que
abordaremos adiante), “Difusão Cultural”, e “Outras”. Parte dos dados que aqui analisamos
foram por antecipados no blog do Observatório da Cultura.2
Evolução por esfera de governo

2
http://culturadesenvolvimentopoa.blogspot.com
89

V V
Tomemos inicialmente a evolução do gasto público em cultura, total e por esfera de
governo, em termos percentuais (Fig. 1).

1,2%

1,0%
% cultura União

% cultura estados
0,8%
% cultura municípios

% cultura setor público


0,6%

0,4%

0,2%

0,0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Figura 1: Evolução do percentual dos orçamentos aplicados na função Cultura, 2000-


20123. Setor público e por esfera de governo. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das
Contas Públicas.

Na estrutura centralizada do Estado brasileiro, a União responde pela maior fatia do


gasto público, tendo executado em 2012 cerca de R$ 1,8 trilhão, ou dois terços do total, que
foi de R$ 2,8 trilhões. Em segundo lugar vêm os estados e Distrito Federal (DF), que
gastaram juntos R$ 590 bilhões (21% do total). E em último, os mais de cinco mil municípios,
responsáveis por R$ 341 bilhões (12%). Não obstante, foram estes que mais destinaram
recursos à cultura, em termos percentuais, conforme evidencia a Fig. 1. Embora o percentual
aplicado pela União tenha aumentado de forma sustentada (chegando pela primeira vez a

3
Os dados da função Cultura para a União estão disponíveis a partir de 2000; para estados e municípios, a partir de 2002.
O dado de 2002 para o gasto de cultura dos estados, fornecido pela base Consolidação das contas públicas (utilizada para
este gráfico) foi descartado da série, devido à grande divergência (76% maior) em relação à soma dos gastos dos estados,
apurada por nós com base nos dados da base Execução Orçamentária dos Estados para cada estado.
90

V V
0,1% em 2012), a média federal para o período 2003-2012 foi de apenas 0,06%, dezoito vezes
menor do que a dos municípios, de 1,04%. A média dos estados ficou em 0,42%.
Em consequência, conforme vemos na Fig. 2, são os governos municipais que
respondem pela maior parcela dos recursos para a cultura, também em valores absolutos,
tendo aportado em 2012 R$ 3,6 bilhões, contra R$ 2,4 bilhões dos estados e DF, e R$ 1,8
bilhão da União. Essa repartição, contudo, vem se modificando ao longo do tempo, no sentido
de um maior equilíbrio entre as esferas, principalmente devido ao aumento dos recursos
federais, conforme vimos na Fig. 1. Ao longo de uma década, a União mais que dobrou sua
participação, que em 2003 era de apenas 10,8%, contra 54,2% dos municípios e 35% dos
estados e DF. No quadro atual, portanto, somente os municípios (em média) atingem o
percentual proposto como parâmetro mínimo pelo Executivo, através da Emenda
Constitucional 150/2003, em tramitação no Congresso Nacional, que seria de 2% para União;
1,5% para estados e DF; e 1% para municípios.

Figura 2: Repartição do gasto público entre as esferas de governo, 2012. Fonte:


Minfaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

91

V V
800

700

600

500
%

400

300

200

100

-
CULTURA- ORÇAMENTO CULTURA- ORÇAMENTO CULTURA- ORÇAMENTO CULTURA- ORÇAMENTO
União União Estados Estados Municípios Municípios Setor público Setor público

Figura 3: Crescimento percentual do gasto público em cultura, por esfera de governo,


comparado ao crescimento da despesa total, 2003-2012. Fonte: MinFaz/STN.
Consolidação das Contas Públicas

No cômputo geral, ao longo de uma década, cresceu o financiamento público à cultura,


pois enquanto o gasto público total cresceu 131%, a despesa em cultura aumentou mais que o
dobro, 268% (Fig. 3). Descontada a inflação, medida pelo IPCA em 76,6 % (dez. 2002 a dez.
2012), os aumentos reais foram, respectivamente, de 54% e 191 %, ou seja, o gasto público
em cultura quase triplicou, em valores reais. Ao olharmos separadamente os dados de cada
esfera, destaca-se o orçamento federal como principal responsável por este incremento, tendo
aumentado em 700%, muito acima do total da despesa federal (110%). Nos estados e
municípios, o gasto em cultura aumentou bem menos (226% e 209%, respectivamente),
superando mesmo assim os aumentos dos orçamentos totais (179% e 201%, respectivamente),
cujo crescimento por sua vez foi superior ao do orçamento federal.
Situação dos estados e DF
Passemos à comparação do desempenho entre os estados e DF, segundo o percentual
aplicado em cultura em relação ao orçamento total, sintetizada na Fig. 4 (onde cores distintas
identificam as regiões a que pertencem).

92

V V
1,2%

1,0%

0,8%

0,6%

0,4%

0,2%

0,0%
DF

RN

RR
CE

RS
RO
AM

AC

SC
PR

RJ

MT
PA

BA
MA

AP
SP

PE
MS

SE
TO

GO

ES
MG

PB
AL
Estados

PI

Figura 4: Estados e DF: Percentual da despesa total executada na função cultura, 2002-
2013. Fonte: MinFaz/STN: Execução Orçamentária dos Estados.

Tomados em conjunto, estados e DF gastaram em média 0,43% de seus orçamentos


em cultura, no período 2002-2013. Nenhum deles, individualmente, atingiu o percentual
mínimo proposto na Emenda Constitucional 150/2003, de 1,5%. Destaque para a Região
Norte, a que pertencem os dois estados líderes: Amazonas, com 1,15% e Pará, com 0,97%.
Outros dois dessa Região, Acre e Amapá, estão entre os nove que gastaram mais que a média.
Completam a parte de cima do ranking o Distrito Federal, São Paulo e três estados da Região
Nordeste (Bahia, Maranhão e Rio Grande do Norte). Outros seis estados dessa região
gastaram menos que a média, assim como os da região Sudeste (com exceção de SP), Centro-
Oeste (com exceção do DF) e Sul.
Independente de considerarmos os valores dos atuais orçamentos justos ou suficientes
para atender às políticas do setor cultural, chama a atenção a enorme disparidade entre os
estados, sendo o maior percentual (Amazonas, com 1,15%) dez vezes superior ao menor
(0,11%, no estado vizinho de Rondônia). Comparando-se os valores per capita, as
desigualdades parecem ainda maiores. Por exemplo, em 2013, último ano da série, em que o
gasto médio por habitante foi de R$ 13,44, o Distrito Federal gastou R$ 75,03 por habitante,
34 vezes mais do que o estado vizinho de Goiás (R$ 2,17).
93

V V
0,60%

0,50%

0,40%

0,30%

0,20%
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Figura 5: Estados e DF: Percentual médio do orçamento executado na Função Cultura,


2002-2013. Fonte: MinFaz/STN: Execução Orçamentária dos Estados.

A média dos orçamentos de estados e DF ao longo do período (Fig. 5) evoluiu


positivamente, se considerarmos a diferença entre o último valor da série, 0,42%, e primeiro,
0,38%. Contudo, após atingir o pico de 0,52% em 2010, seguiram-se três anos consecutivos
de queda, o que torna arriscado inferir desses dados qualquer tendência a longo prazo.

Situação das capitais


A seguir, compilamos os dados dos orçamentos das capitais entre 2002 e 2011,
conforme disponibilizado pelo Tesouro nas bases de dados Finbra. No último ano desse
período, o gasto em cultura das 26 capitais alcançou R$ 984,5 milhões, representando 1,04%
da soma das despesas totais desses municípios, que foi de R$ 94,4 bilhões.

94

V V
3,0%

2,5%

2,0%
%

1,5%

1,0%

0,5%

0,0%
SA ES S

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PO OI A

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VI

AN
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A

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TO

O
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D

JO
O

LO
IO

FL
R

C
BE

Figura 6: Capitais, segundo percentual da despesa total aplicado na função cultura,


2002-2011. Fonte: Minfaz/STN. Finbra.

Assim como nos estados, os orçamentos de cultura das capitais apresentaram extrema
variação entre si, em termos percentuais (Fig. 6), chegando a dez vezes a diferença entre o
maior (Boa Vista, com 2,49%) e o menor (Salvador, com 0,24%). Menos da metade das
capitais (11 de 26) atingiram o patamar de 1%, proposto pela PEC 150; enquanto outras
quatro não alcançaram sequer 0,5%.

95

V V
1,50%

1,25%
%

1,00%

0,75%

0,50%
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
Ano

Figura 7: Capitais: Evolução do percentual da despesa total aplicado em cultura. 2002-


2011. Fonte: Minfaz/STN. Finbra.

Considerados em conjunto, ao longo do período enfocado, os orçamentos de cultura


das capitais oscilaram em torno de 1%. Sua evolução, vista na Fig. 7, assim como a dos
estados, não permite vislumbrar uma tendência de longo prazo.
Municípios do interior x capitais
Bilhões

3,5
Despesa cultura capitais
3,0 Despesa cultura municípios

2,5

2,0

1,5

1,0

0,5

0,0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Figura 8: Crescimento da despesa de cultura das capitais x municípios, 2002-2011.


Fonte: MinFaz/STN. Finbra e Consolidação das Contas Públicas.

96

V V
Um aspecto interessante a analisar é a participação relativa das capitais no conjunto da
despesa de cultura dos municípios (Fig.8). Na comparação, observa-se que a despesa do
conjunto dos municípios cresceu em ritmo maior do que a das capitais, inclusive as
relacionadas à cultura. Enquanto a despesa total municipal cresceu, entre 2002 e 2011, de R$
83 para R$ 308 bilhões (268%), os gastos em cultura subiram mais, de R$ 870 milhões para
R$ 3,46 bilhões (297%)4. Já nas capitais, a tendência se inverte: enquanto a despesa total
cresceu de R$ 31,5 para R$ 94,4 bilhões (199%), os gastos em cultura subiram apenas 172%
(de R$ 360 para R$ 984 milhões). Em suma, no conjunto das capitais houve redução dos
gastos de cultura em percentuais da despesa total, seguindo tendência inversa às três esferas
de governo e ao gasto público total (cfe. Fig. 3).

50%
Partic. Capitais na Desp. Cultura Municípios

Partic. Capitais na Desp. Total Municípios


40%

30%

20%

10%

0%
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Figura 9: Participação das capitais no total das despesas e nas despesas em cultura dos
municípios, 2002-2011. Fonte: MinFaz/STN: Finbra e Consolidação das Contas Públicas.

A Fig. 9 mostra a progressiva redução da parcela das capitais na despesa pública


municipal como um todo, bem como no tocante às despesas em cultura. Em 2002, o
orçamento de cultura das capitais representava 37,7% do gasto de todos os municípios nessa
área. Já em 2011, caiu para 30,6%, demonstrando aumento da participação dos municípios do
interior, significativo para o período de uma década.
Sub-função Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico

4
Note-se que o período analisado aqui difere do da Fig. 3 (2003-2012), daí a divergência entre os percentuais.
97

V V
A partir de 2004, os dados do Tesouro referentes à execução orçamentária da função
Cultura encontram-se desagregados em três sub-funções: Patrimônio Histórico, Artístico e
Arqueológico; Difusão Cultural e Outras Sub-funções. Uma leitura rápida permite constatar
que a esmagadora maioria das despesas classifica-se como Difusão. Sendo, assim, sempre
insuficientes os recursos para as sempre urgentes e crescentes ações relacionadas ao
patrimônio cultural (como de resto é do conhecimento de quantos atuam no setor), é nesta
sub-função que vamos nos deter a seguir.

250

200

150
%

100

50

-
União: ORÇAMENTO Estados: ORÇAMENTO Municípios: ORÇAMENTO Setor Público ORÇAMENTO
Patrimônio União Patrimônio Estados Patrimônio Municípios - Patrimônio Setor público
Hist. Art. Hist. Art. Hist. Art. Hist. Art.
Arqueol. Arqueol. Arqueol. Arqueol.

Figura 10: Brasil: Crescimento do gasto público na subfunção "Patrimônio histórico,


artístico e arqueológico", por esfera de governo, comparado ao crescimento da despesa
total, 2004-2012. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

O gasto público na sub-função Patrimônio também evoluiu positivamente, seguindo,


na soma das três esferas, a tendência de aumento verificada nos orçamentos para a cultura,
ainda que de forma mais branda. Enquanto a despesa com patrimônio subiu 139%, o gasto
público total cresceu 119% (Fig. 10). Descontada a inflação de 61,58% (IPCA entre dez. 2003
e dez. 2012), o crescimento real ficou em 78% e 57%, respectivamente. Aqui, no entanto,
tendo crescido a participação dos estados e União, houve notável redução na fatia dos
municípios que, embora tenham praticamente triplicado seu orçamento em valores nominais,
aumentaram em apenas 71% este tipo de despesa, pouco acima da inflação.

98

V V
Figura 11: Evolução do percentual dos orçamentos aplicados na sub-função
"Patrimônio histórico, artístico e arqueológico", 2004-2012. Setor público e por esfera
de governo. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

Contudo, a evolução desses dados, dispostos na Fig. 11, não é tão animadora como
com os mostrados na Fig. 1, sobre os orçamentos da função cultura, no que se refere a
tendências de aumento a longo prazo. O aumento do percentual federal para o patrimônio, de
0,007% para 0,010% é muito menos significativo do que o observado no orçamento federal da
função cultura. Já os municípios reduziram drasticamente seus gastos em patrimônio do
primeiro para o segundo ano da série, de R$ 114 milhões (0,098% da despesa total) para R$
61 milhões (ou 0,052%), permanecendo até o final em percentuais semelhantes. Já os estados,
após aumento significativo entre 2006 e 2010, apresentarem redução nos dois exercícios
seguintes.

99

V V
Municípios: União: Patrimônio
Patrimônio Hist. Art. Hist. Art. Arqueol.
Arqueol. 29,9%
31,1%

Estados: Patrimônio
Hist. Art. Arqueol.
39,0%

Figura 12: Brasil: Repartição do gasto público na sub-função "Patrimônio histórico,


artístico e arqueológico", por esfera federativa, 2012. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação
das Contas Públicas.

De um total de R$ 631,8 milhões despendidas em Patrimônio em 2012 –


correspondentes a 8% do gasto público em cultura naquele ano – a maior parte, 39%, veio dos
estados (Fig. 11). Como dissemos, a participação dos municípios caiu no período, já que
representava 43,5% em 2004. A União aumentou sua fatia de 25,2% para os atuais 29,9%.

100

V V
0,20%

0,15%

0,10%

0,05%

0,00%
RN

DF
CE

RO

RS
AM

AC

MT

SC

RJ
PA
BA
ES
SP

AP
PB
GO
SE
MG

TO
MA
PE

AL
PI
Estados

Figura 13: Estados, por percentual do orçamento aplicado na sub-função "Patrimônio


histórico, artístico e arqueológico", 2002-2013. Fonte: MinFaz/STN: Execução
Orçamentária dos Estados.

A disparidade entre os orçamentos dos estados e DF, mostrada na Fig. 12, é ainda mais
gritante do que a verificada na função Cultura (Fig.4). Somente três estados – Amazonas, Pará
e Bahia  superaram 0,1%, enquanto três outros (excluídos do gráfico) não registraram
quaisquer despesas na subfunção: Mato Grosso do Sul, Paraná e Roraima. Outros 17 ficaram
abaixo da média, de 0,041%. Os mesmos dois estados da Região Norte, Amazonas e Pará,
lideram novamente; com destaque também para a região Sudeste, que tem São Paulo e
Espírito Santo bem posicionados. Tomando-se os valores de 2013 como referências, o gasto
médio por habitante dos estados foi de R$ 1,53, sob a liderança isolada do Amazonas, com R$
12,32. Apenas sete estados gastaram mais de R$ 1 por habitante, enquanto dez não gastaram
nenhum centavo.

101

V V
0,30%

0,25%

0,20%

0,15%
%

0,10%

0,05%

0,00%
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Figura 14: Capitais, segundo percentual aplicado na sub-função Patrimônio Artístico,


Histórico e Arqueológico. 2004-2011. Fonte: Minfaz/STN. Finbra.

Na Fig. 14, vemos os gastos das capitais na sub-função Patrimônio, cuja média ficou
em 0,048%, praticamente o mesmo percentual dos estados. Uma vez mais, são enormes as
variações. Destaca-se na liderança a capital catarinense, com 0,29%, seguida por Belém e
Recife. Das 26 capitais, 21 não atingem 0,1%; nove não atingiram sequer 0,01%, das quais
duas (excluídas do gráfico) não destinaram nenhum centavo ao Patrimônio em oito anos:
Teresina e Salvador (esta última notável por seu patrimônio histórico).
Conclusões e desdobramentos
Em suma, os dados aqui reunidos demonstram uma tendência global de aumento nos
recursos destinados à cultura, em todas as esferas, em parte condizente com os avanços
institucionais observados no plano federal, cuja disseminação vem sendo estimulada pelo
MinC através do SNC. Ainda que em si não bastem, como afirmamos, para verificação do
sucesso, prestígio ou permanência das políticas públicas de cultura, oferecem um patamar
mínimo de informação ao debate sobre como essas políticas podem ser planejadas, avaliadas e
aperfeiçoadas.
Uma última ressalva diz respeito ao fato das despesas relativas à cultura, realizadas
pelos governos estaduais e municipais através dos mais variados órgãos e divisões, serem
classificadas também de diversas formas, ora como “cultura”, ora como “turismo”,
“comunicação” ou mesmo “educação”, na elaboração dos balanços públicos, aspecto que
102

V V
recomenda cautela no uso das comparações aqui estabelecidas, sujeitas a revisão por
investigações mais detalhada.
Julgamos oportuno sugerir questões que emergem dos dados apresentados, a requerer
estudos que transcendem os limites deste trabalho. Uma delas é a aparente falta de relação
direta (que o senso comum tende a estabelecer), entre os níveis de riqueza e do investimento
em cultura. Igualmente interessante seria estabelecer cruzamentos com indicadores de
desenvolvimento humano, desigualdade ou violência, por exemplo, no quadro de uma
possível tendência de fortalecimento do papel dos municípios do interior em relação às
capitais, conforme indicam os dados que analisamos. Em relação às notáveis desigualdades
encontradas entre estados e capitais, há indícios de que elas ocorrem também ao longo do
tempo, de um ano a outro, num mesmo ente. Outra hipótese a ser testada é a existência de
relações de complementaridade entre os orçamentos dos estados e de suas capitais, tomando-
se como exemplo Manaus, capital do estado com o maior orçamento percentual, que possui o
quarto menor orçamento entre as capitais; e sua antípoda Boa Vista, maior percentual de
cultura, capital de Rondônia, último colocado entre os estados. Por fim, caberia investigar as
outra possível relação de complementaridade, entre o volume de recursos orçamentários e
aqueles oriundos de leis de renúncia fiscal, adotadas amplamente desde os anos 1990 pela
União, estados e capitais5.
Em artigo dedicado à arquitetura jurídico-política do SNC, Cunha Filho (2010), após
constatar que a Constituição brasileira não atribuiu, no campo da cultura, competências
específicas a cada esfera de governo, referindo-se em geral ao “Estado” ou ao “Poder
Público”; aponta como o “grande desafio para os que entendem a importância e a necessidade
da organização sistêmica das políticas culturais” a tarefa de “desenhar com a maior clareza
possível as responsabilidades dos entes públicos”.6 Ou seja, a tarefa de planejamento ressente-
se, ainda antes da falta de recursos, de uma definição clara das responsabilidades de cada ente
federado, que precisa em alguma medida ser feita pela regulamentação do SNC.
O mesmo vale, em nossa opinião, para o estabelecimento de parâmetros mínimos de
orçamento, em termos percentuais, buscando-se através da articulação entre os entes reduzir
as enormes disparidades existentes, incompatíveis com os princípios do SNC, sob pena de
estarmos multiplicando, de forma irresponsável, institucionalidades meramente decorativas,
sem condições de desempenharem as funções que delas se esperam. Após mais de uma

5
Com a dificuldade que em geral esses dados, com exceção dos referentes à União, não se encontram
acessíveis pela Internet.
6
No campo da educação, por exemplo, encontram-se definidas as competências de cada esfera de governo.
103

V V
década de tramitação, não parece sensato depositar na PEC 150 – cuja aprovação nos termos
propostos multiplicaria por seis o orçamento público de cultura  todas as esperanças de
solução para a falta crônica de recursos. Resta porém saber como a União, ente com os
menores percentuais de cultura, poderá exigir que estados ou municípios ampliem os seus,
como condição para aderir ao SNC.

Referências

Brasil. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Consolidação das contas


públicas. Demonstrativos da despesa por função (Consolidado, União, Estados e Municípios).
[Arquivo MSExcell] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/balanco-do-setor-publico-
nacional-bspn-. Acesso em 23 fev.2015.

. Execução Orçamentária dos Estados 1995-2013. [Arquivo MSExcell]


http://www3.tesouro.gov.br/estados_municipios/index.asp;
http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/contas-anuais. Acesso em 23 fev.2015.

. Finanças do Brasil (Finbra). Dados contábeis dos municípios. [Arquivos MSAccess]


http://www3.tesouro.gov.br/estados_municipios/index.asp;
http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/contas-anuais. Acesso em 23 fev.2015.

Cunha F°, Francisco Humberto da. Federalismo cultural e Sistema Nacional de Cultura:
Contribuição ao debate. Fortaleza, Edições UFC, 2010. 155p.

Fonseca, Ana Carla. Audiência Pública da Comissão de Economia e Desenvolvimento da


Assembléia Legislativa do Estado do RS, tendo como pauta “A cultura enquanto geradora de
emprego e renda – uma política pública capaz de fomentar o desenvolvimento econômico, a
geração de empregos e a sustentabilidade nas diversas regiões do Estado.” 26 set. 2007.
[áudio gravado pelo autor]

Rocha, Paulo et alii. Proposta de Emenda à Constituição n° 150/2003. Câmara dos


Deputados. Página eletrônica.
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=131237.
Acesso em 23 fev.2015.

Rubim, Antônio Albino Canelas. Políticas Culturais no Governo Lula. In: Rubim, Antônio
Albino Canelas (org.). Políticas Culturais no Governo Lula. Salvador, EdUFBA, 2010. p.9-
24.

104

V V
PARA PENSAR AS CIDADES EM SUA DIMENSÃO CULTURAL
Alysson Amaral1

RESUMO: Este artigo pretende identificar os desafios para a construção de uma agenda
pública para a cultura no Brasil que contemple a diversidade local, tendo como ator
protagonista as cidades e seu corpo cultural. O Sistema Nacional de Cultural- SNC, legitima o
desenvolvimento e o acionar das instâncias locais, tanto aquelas de participação cidadã
(Conselhos de Políticas Culturais e/ou de Patrimônio, por exemplo) como aquelas vinculadas
diretamente à gestão pública (Secretarias de Cultura Municipais e/ou similares). É, pois,
nosso intuito, perceber a dinâmica na construção dessa agenda coletiva identificando seus
principais avanços e fragilidades.

PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Sistema Nacional de Cultura, Cidade.

“- As cidades também acreditam ser obra da mente ou


do acaso, mas nenhum nem o outro bastam para
sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não
aproveitamos as suas sete ou setenta e sete
maravilhas, mas a resposta que dá às nossas
perguntas.
- Ou as perguntas que nos colocamos para nos
obrigar a responder, como Tebas na boca da
Esfinge.”
ITALO CALVINO2

A posta em cena: a cidade e o Sistema Nacional de Cultura.


Em função da demanda emergente para a implementação de um modelo de gestão para
as políticas culturais no cerne das administrações municipais no Brasil, é que buscaremos
compreender como a agenda da cultura se localiza tanto nos procedimentos administrativos
das cidades como no cotidiano de sua política cultural e urbana.
Como ponto de partida para nossa argumentação explora-se as linhas de abordagem
desenvolvidas pelo próprio Ministério da Cultura – MinC para o universo das políticas

1
Mestre em Sociologia da Cultural e Analise Cultural pelo Instituto de Altos Estudios Sociales IDAES/USAM
(Argentina) e membro da Red CLACSO de Políticas Culturais. Como fundador da DHARMA- Cultura e
Desenvolvimento é consultor na área cultural atuando na gestão e desenvolvimento de projetos inovadores para a
área, assim como no monitoramento e avaliação de políticas setoriais, entre os principais trabalhos
desenvolvidos destaca-se consultoria para a UNESCO e o Ministério da Cultura. Atuou como diretor do Teatro
Francisco Nunes, analista de políticas culturais do Centro de Cultura Belo Horizonte e gerente de Coordenação,
Planejamento e Monitoramento de Projetos na Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Correio
eletrônico: alfelipe10@gmail.com.
2
Em “As Cidades Invisíveis”, 1990, Cia das Letras, SP, p. 44.
105

V V
culturais a partir de três pilares: a cultura em sua dimensão simbólica – no qual a arte e a
cultura se conectam com a interpretação do que fazemos no mundo e que no Brasil se
expressa concretamente a partir das relações sociais permeadas pela ampla diversidade
cultural; a cultura em sua dimensão cidadã – no qual a cultura é um fator de inserção social e
tratada como um direito fundamental e uma necessidade básica dos cidadãos; e por fim, a
cultura em sua dimensão econômica – na qual as noções de empreendedorismo, inovação e
sustentabilidade se conectam ao seu papel como fator de desenvolvimento local e regional.
O processo de descentralização das políticas culturais no Brasil se constitui, na
atualidade, como um vetor de forte reflexão e debate no âmbito local que versa sobre a
aplicabilidade dessas políticas nas cidades. Dessa forma, a cidade se converteu no principal
ator para a gestão da práxis cultural, correspondendo a ela, em suas instâncias tanto de poder e
decisão como nos processos participativos abertos, situar a pauta cultural no âmbito das
políticas públicas, urbanas e de desenvolvimento local.
No Brasil, o universo das políticas públicas e das instituições que a executam foi
afetado, nas últimas décadas, pela promulgação da Constituição Federal de 1988 através,
principalmente, do rearranjo do pacto federativo proposto em seu texto. A agenda pública, a
partir de então, orientou-se pela articulação, o deslocamento e a criação de novas
institucionalidades, fato recorrente também em função dos compromissos advindos do
processo de redemocratização e do diálogo crescente entre o poder público e a sociedade civil.
Entretanto, as transformações das políticas públicas que afetam a área da cultura são
muito mais recentes. O ponto de inflexão ocorreu a partir do primeiro mandato do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), com Gilberto Gil à frente do Ministério de Cultura no
qual se reformulou as atribuições do próprio ministério (Decreto 4.805/2003), permitindo o
estabelecimento de um novo significado para o papel da cultura na esfera pública. Assim,
foram estabelecidos novos canais de diálogo com as outras esferas subnacionais de poder e a
sociedade civil. Em 2005, através da realização da I Conferência Nacional de Cultura, as
diretrizes participativas, deliberativas e da gestão compartilhada no campo das políticas
culturais começaram a fundamentar-se de maneira mais institucionalizada3. O MinC,
paralelamente ao processo da I CNC, concentrou seus esforços para criação do Sistema
Nacional de Cultura – SNC cujo objetivo central é o fortalecimento da estrutura institucional

3
A I CNC é uma das etapas do processo de elaboração do Plano Nacional de Cultura – PNC, instituído pela
Emenda Constitucional nº 48 de 1º de agosto de 2005. O PNC é aprovado em 2010 por meio da LEI 12.343/2010
(ele está constituído por 53 metas nas quais há catorze - quase um terço delas - que citam e afetam
explicitamente a realidade municipal). Também é fruto dessa Conferência a institucionalização do Conselho
Nacional de Políticas Culturais – CNC, por meio do Decreto nº 5.520/2005.
106

V V
da área da administração pública responsável pelo campo da cultura, de maneira a
descentralizar e universalizar a gestão das políticas culturais no Brasil. Finalmente, em 2012,
o Sistema Nacional de Cultura – SNC é incluído, ao texto constitucional, por meio do artigo
216 A:
“O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de
forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e
promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e
permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade, tendo por
objetivo promover o desenvolvimento - humano, social e econômico - com
pleno exercício dos direitos culturais”. (CF, Art. 216A)

Portanto é nosso interesse ressaltar, dada incipiência e o impacto dessas políticas para
o setor cultural e cujos reflexos e consequências se fazem diretos no campo organizacional da
cidade, a importância para a conjugação e articulação dialógica entre o campo de
conhecimento das políticas culturais e o do planejamento e política urbana.
O SNC, por exemplo, estimula a inauguração de elementos estruturantes que afetarão
diretamente o desenho institucional das administrações locais. Do ponto de vista da gestão e
institucionalidade prevê a criação de:
i) Órgãos Gestores para a Cultura (Secretarias Municipais de Cultura e/ ou
similares);
ii) Conselhos Municipais de Políticas Culturais, de cunho paritário; e,
iii) Estabelecimento periódico de Conferências Municipais de Cultura.

Como ferramentas para a gestão irá propor o desenvolvimento de:


i) Sistema Municipal de Financiamento à Cultura;
ii) Programas de Formação para a área da cultura;
iii) Sistema Municipal de Informações e Indicadores Culturais; e,
iv) A definição em Lei, de um Plano Municipal de Cultura, com metas previstas para
10 anos.
Cabe mencionar, ainda, a consolidação de programas orientados às ações da sociedade
localizadas no âmago das cidades e ou regionais que também afetam o universo local das
políticas culturais como, por exemplo, o Programa Cultura Viva (Portaria 156/2004,
atualizada por meio da Lei Cultura Viva – LEI nº 13.018/2014). Por outro lado, a agenda da
cultura é inserida no escopo de programas de grande envergadura do governo federal como,
por exemplo, no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que lançou o Programa Mais
Cultura (Decreto nº 6.226/2007) da ordem de 4,7 bilhões de reais (até 2010) cujo objetivo
107

V V
principal tem foco na “qualificação do ambiente social das cidades e do meio rural por meio
da ampliação de equipamentos e do acesso à produção e à expressão cultural”, com metas
quantitativas claras. Mais recente destaca-se no PAC II a linha de investimento denominada
“Cidades Históricas” (2013) e que destinou 1,3 bilhões de reais para 44 cidades brasileiras.
Assim, imagina-se que a consolidação do Sistema Nacional de Cultura, nos próximos
anos, implicará no aprofundamento das transformações do campo da gestão pública para a
área cultural nas três esferas de poder do país. Uma das características centrais para o êxito
dessa política se relaciona com a prática de transferências de recursos que fomentará e
viabilizará a execução da agenda em desenvolvimento para a área4. Dessa forma, cobra-se
agilidade gerencial das cidades para que todos os processos e mecanismos sejam estruturados
segundo o desenho institucional citado num rápido espaço de tempo.

Interpretes e encenação: cidades imaginadas.


De certo modo, ainda que ditas políticas estejam explicitadas no texto constituinte, não
há a garantia para que os processos de institucionalização e governança local sejam uniformes
e equitativos. Pelo contrário, verifica-se a capacidade desigual dos governos locais para a
promoção de serviços públicos e para a manutenção e gestão de procedimentos democráticos
nas instâncias municipais. Por ora nos interessa destacar o rol de transformações que está em
jogo nas cidades brasileiras no que tange a sua capacidade gerencial e institucional para o
atendimento da agenda cultural. Identifica-se uma demanda insurgente, um cenário
multifacetado e realidades díspares com relação ao pertencimento/cumprimento da métrica ou
modelagem inerente à condição de “município adepto” ao SNC.
Primeiramente e vinculando-se às três dimensões de cultura já explicitadas (simbólica,
cidadã e econômica), cabe abordar nessa sessão, um ponto crítico de inflexão do nosso estudo
que se relaciona com a própria definição “do cultural” e, mais especificamente, com as
motivações que orientam o quadro ideológico das políticas culturais na contemporaneidade.
É, portanto, necessário identificar o valor específico da política cultural uma vez que essa faz
parte das superfícies de significações que darão base à intervenção política, dimensionada
tanto pelo “domínio político”, pela crítica social, como pelo processo de dominação
econômica.
O debate conceitual de cultura que margeia esse artigo, se relaciona com o ingresso da
diversidade cultural no centro dos debates teóricos em função do crescimento dos processos

4
Tal mecanismo está em vias de aprovação por meio da PEC 150 e do PROCULTURA.
108

V V
de interconexão global e da multiplicação das relações interculturais no cotidiano das cidades.
A diversidade cultural trás consigo, no entanto, problemas estruturantes complexos: por um
lado ela é celebrada como o vetor de desenvolvimento social, humano e até econômico e em
outros casos é aquela que aniquila a própria diferença. Homi K. Bhaba (2003) contribui com
esse debate, ao identificar o momento atual como transitório e como aquele no qual o espaço
e o tempo produzem figuras complexas de diferença e identidade, no qual há uma consciência
do sujeito enquanto categoria estendida – raça, gênero, geração, localidade, orientação sexual,
etnias, etc. – em movimento e disputa constante para definição de espaços/territórios de
reconhecimento (seja ele social ou simbólico).
São muitos os referenciais de análise que mediam as implicações práticas da
diversidade cultural como intervenção ético-política na contemporaneidade: a ideia de que o
globo é um “arquipélago de culturas diversas”; de interposição de fronteiras, de que as
tecnologias de comunicação geram uma “aldeia global”, as conexões entre os processos
migratórios e de circulação de bens simbólicos e serviços para o domínio ideológico, entre
outras. Assim, no plano das políticas culturais, uma geração de intelectuais começou a
sistematizar e aprofundar o debate a partir da inclusão da diversidade cultural no campo
prático da ação. Miller e Yúdice (2004) destacaram que as políticas culturais têm suas bases
na performatividade em contraponto a uma ação constante e que por isso são políticas
formuladas “ao toque”. Compartilhamos com eles a visão de que as políticas culturais
consistem em “mecanismos” para administrar, sistematizar e regular as instituições; e, que
cumprem metas e atendem tanto as esferas burocráticas e estatais como aquelas criativas e
orgânicas da sociedade.
Por outro lado, as indústrias culturais e a crescente circulação e fluxo de bens
simbólicos hegemônicos no mundo, determinando relações de desigualdade e assimetrias
entre países centrais e periféricos, fez com que o debate sobre a diversidade cultural se
potencializasse globalmente. Tal contexto tencionou e estimulou a agenda internacional para a
consagração de um espaço que englobou a “diversidade cultural” como “bandeira” para as
políticas culturais e o desenvolvimento sustentável. Nos países latino-americanos, por
exemplo, as políticas culturais passaram a ser consideradas como estratégias para garantir a
capacidade nacional de produção simbólica local num cenário competitivo desfavorável5.

5
No entanto, é notória nos territórios nacionais dessa região a replicação da mesma lógica das indústrias
culturais de capital concentrado, tal como na formulação frankfurtiana, gerando, assim, centralidades e
subalternidades no contexto simbólico local.
109

V V
Jeremy Rifkin (2001) propôs, nesse cenário, a ideia de “capitalismo cultural” para uma
avaliação crítica sobre a produção e circulação de bens culturais. Já Mattelart (2002) e Simiers
(2004) defenderão o “pluralismo cultural” como antítese ao “imperialismo cultural”.
Para nosso estudo nos interessa a gênese das políticas culturais locais formuladas em
diálogo com a sociedade. Nesse sentido, destacamos as contribuições de George Yúdice
(2006) que descreveu a cultura como recurso a ser gerenciado pelo estado em articulação com
a sociedade. O autor considera a “cidadania cultural”, elemento para a garantia das diferenças
culturais e da diversidade cultural, como recursos intangíveis6.
Bayardo (2008) irá propor uma tipologia para descrever a evolução das políticas
culturais a partir de quatros gerações em sintonia com a práxis internacional para a
consolidação dos direitos universais. A primeira geração das políticas culturais corresponde
aquelas nas quais ocorre a institucionalização pública da área cultural com o objetivo de
legitimar os bens simbólicos nacionais (o estado aparece como o ator principal para sua
realização); as de segunda geração são aquelas políticas que fazem referência à expansão
conceitual e pragmática da cultura até os domínios das indústrias culturais e meios de
comunicação; as de terceira geração são aquelas que imbricaram a cultura e o
desenvolvimento a partir da fusão da área cultural com outros segmentos de negócio (turismo,
gastronomia, lazer, patrimônio cultural, etc.), elaboradas a partir da assertiva do “recurso”
como necessário para o desenvolvimento econômico e social das nações. Estaria em marcha,
na atualidade, uma quarta geração de políticas culturais, formulada a partir de um ideal de
transformação político que altera a redistribuição de poder, nas quais a diversidade cultural e a
justiça social são os fins para dito movimento.
Néstor Garcia Canclini (1987) é quem desenvolverá como paradigma da gestão
cultural a política via “Democracia Participativa”. Por meio deste paradigma, se defende a
coexistência de múltiplas culturas em uma mesma sociedade propiciando um
desenvolvimento autônomo e relações igualitárias de participação7.

6
Néstor Garcia Canclini (2005), caminhará no mesmo sentido para a afirmação da “cidadania cultural” no estado
nacional, estruturada a partir da avaliação de que a globalização é um processo de fracionamento das relações
socioeconómicas que gera um reordenamento das diferenças e desigualdades em escala planetária. Para ele o
papel da política cultural deve apoiar-se no projeto do multiculturalismo.
7
Segundo a teoria dos paradigmas das políticas culturais desenvolvida pelo autor, o contraponto ao paradigma
da “Democracia Participativa” pode ser notado em práticas unidimensionais e elitistas que compõe outros
paradigmas do campo da gestão cultural – mecenato, tradicionalista, estadista e privatizante – apontando para
uma linha evolutiva que demarca conflitos, assim como a hierarquização da cultura segundo padrões
hegemônicos de produção e apropriação.

110

V V
Segundo esse novo paradigma as políticas culturais deveriam representar os grupos
que compõem uma sociedade em sua totalidade e diversidade. Aponta para o entendimento da
cultura num sentido continuo, e não a reduz a um caráter discursivo ou estético, já que
estimula a ação coletiva, através de uma participação organizada e plural.
Através da métrica SNC, portanto, caberá dimensionar os estágios e processos para a
concretização das políticas culturais aliados ao viéis da participação. De fato, há a
interlocução entre as instâncias de poder local e a demanda da sociedade no campo cultural?
São ideais e legítimos os espaços participativos? Como ocorre o controle e a regulação
cultural num processo de cogestão? Os resultados produzidos por meio da participação são os
desejados? Como são compatibilizados os interesses das esferas econômicas, sociais e
políticas no seno das ações das políticas culturais? Há, de fato, uma transformação do campo
das políticas públicas e do universo das cidades rumo à consagração de equilíbrios e
igualdades?

A boca da Esfinge: para uma autonomia do campo cultural nas cidades.


Um problema que irá tangenciar a resposta para essas perguntas corresponde ao fato
de que historicamente no Brasil as políticas culturais executadas no âmbito federal se
caracterizaram pela sua evolução disforme, ou seja, foram políticas abruptamente
interrompidas e que se desenharam sem o princípio de continuidade. Tal diagnóstico resulta
em assumir que o campo para o planejamento das políticas culturais é altamente complexo na
atualidade e visa reverter um déficit histórico com relação ao desenvolvimento do setor no
país em todas as instâncias públicas de poder. A seguir apontamos algumas questões e
problemáticas relevantes para o campo das políticas públicas a partir da redemocratização do
país.
Segundo Celina Souza (2004) as políticas públicas recorrem ao princípio federativo
como elo para a transferência ou aumento do poder político e tributário para as entidades
subnacionais (estados e municípios), baixo a consigna de ideal democrático, através do
empoderamento (empowerment) das comunidades locais no processo decisório sobre as
políticas públicas.
Para Mônica Starling (2012) a descentralização das políticas públicas irá abarcar
quatro tendências para a gestão local:
“ (...) a) a repartição de responsabilidades em torno da formulação, da
implementação e do controle de políticas entre as esferas nacional, estadual e
municipal; b) a transferência de recursos para as esferas subnacionais de
poder, de forma a possibilitar a provisão de bens e serviços públicos; c) a
111

V V
existência de mecanismos de coordenação intergovernamental e d) a
estruturação de um sistema de gestão que envolva o diálogo com a sociedade,
ou seja, a ampliação da participação da sociedade organizada na gestão das
políticas públicas.” (STARLING, 2012, p. 145.)

O impulso à descentralização pode ser apreciado principalmente a partir dos anos 90


por meio da municipalização exitosa dos serviços de educação e saúde. Como já demonstrado
em outros setores e serviços, o universo cultural também passa a ser estimulado para gerar
uma agenda descentralizada na atualidade e cujo expoente, ou a célula, será a cidade.
Por sua vez, o redimensionamento das políticas culturais pode ser percebido por meio de
uma série de evoluções que ocorreram nas últimas décadas e que afetaram sua abordagem
enquanto campo de conhecimento e prática. Néstor Garcia Canclini (1987) indicou algumas
dessas transformações, parte delas já vivenciadas pelo campo das políticas culturais no Brasil:
i) Os modelos e publicações sobre as políticas culturais deixaram de ser meramente
burocráticos com foco apenas na descrição do aparto institucional, das atividades
realizadas e da forma jurídico-adminsitrativo que a rege. Atualmente as políticas
culturais proporcionam uma reflexão crítica sobre sua capacidade de gerar um
desenvolvimento cultural na sociedade. Em outras palavras: as políticas culturais
são dimensionadas a partir da ideia de proteção e promoção dos bens simbólicos
locais, da preservação do patrimônio e memória nacional, das desigualdades
sociais, dos fluxos e circulação de bens culturais bem como na democratização do
acesso em âmbito global e do reconhecimento da diversidade cultural.
ii) Muitas práticas de políticas culturais foram registradas e publicadas a título de
relatório de gestão pública, atendendo à dimensão mais política já citada. Na
atualidade novos aportes são feitos para se relevar o grau de abrangência dessas
políticas culturais segundo estudos empíricos os mais diversos.
iii) O protagonismo para a proposição e execução de políticas culturais se desloca da
ação governamental quase exclusiva para uma ação mais participativa e inclusiva
que diversifica as vozes por meio do diálogo com novos atores, a saber:
movimentos sociais, ONGs, redes de networking, sociedade civil organizada entre
outros. Dessa forma, aparece um modelo de “cogestão” e cooperação que visa
legitimar tais políticas.

112

V V
iv) Os intercâmbios e acordos internacionais, com destaque para a Convenção sobre a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais8 - CPPDEC -
ampliam o debate das políticas culturais para além da perspectiva nacional com
uma perspectiva de ação tanto regionalizada como global.
v) A política cultural passa a ser compreendida como uma política de continuidade e
que deve ser planejada e administrada segundo parâmetros que relacionem seus
resultados em função da sua finalidade e atores involucrados, tendo nas instâncias
locais, ou seja, nas cidades, o nicho especializado para seu acionar.

Em linhas gerais, as transformações do campo das políticas culturais têm como base as
crises econômicas sucessivas do modelo capitalista, tanto dos modelos keynesianos como
marxistas, que evidenciaram a incapacidade de soluções econômicas e políticas para o
controle das contradições sociais. Ou seja, as questões apenas materiais são insuficientes, em
si mesmas, para a promoção de um desenvolvimento sustentável nos estados modernos. Dessa
forma, o papel da cultural e da diversidade cultural, começa a ser associado ao
desenvolvimento econômico e à solidariedade ética para uma coesão social. O significado do
trabalho, da recreação, da produção e hábitos de consumo é valorado a partir dos sentidos
sociais que estes geram na sociedade e, portanto, começam a ser agenda do estado para a
criação de formas alternativas de desenvolvimento local.
Por exemplo, Canclini (1987) sugere que na América Latina, a partir dos movimentos de
oposição, dos debates sobre as ditaduras e da redemocratização, é reestruturado o papel
especifico para as culturas populares. Dessa forma, a cultura se destaca como importante para
a construção de uma hegemonia e do consenso nos estados latino-americanos. Para o autor:
“A redefinição do conceito de cultura facilitou seu reposicionamento no
campo político. Ao deixar de designar unicamente o universo dos livros e
belas artes, ao conceber a cultura – em um sentido mais próximo à concepção
antropológica – como o conjunto de processos onde se elabora a significação
das estruturas sociais, e as reproduz e transforma mediante operações
simbólicas, é possível vê-la como parte da socialização de classes e de grupos
para a formação de concepções políticas e dos diferentes modelos de
desenvolvimento adotados pelas sociedades.” (CANCLINI, 1987, p.21.)

Essa redefinição do conceito de cultura aponta para sua diversificação temática. Nos
países latinos americanos a função da cultura revela-se nas problemáticas campesina e urbana,

8
A “Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais”, é, juridicamente,
contemplada a partir de 2005, por meio da UNESCO e países signatários, dentre os quais figura Argentina,
Brasil e o México.
113

V V
migratória e ecológica, além da formação de memória nacional e consensos políticos. Para
Canclini (1987) essa “visibilidade social” do universo cultural é o que levou os estados a
desenvolver políticas mais orgânicas para o setor. Ao mesmo tempo, significa a própria
pressão social à agenda pública.
Contudo, as últimas décadas se distinguiram por convergências sociais diferentes
àquelas que definiram a antiga ordem urbana industrial e os significados e valores
compartilhados naquele tempo. O recrudescimento das relações capitalistas gerou
instabilidades tanto trabalhistas como em relação à noção de identidade e pertencimento do
individuo com relação ao seu habitat. Assim, as políticas culturais são formatadas e
influenciadas pelas próprias transformações socioeconômicas e espaciais que afetam a cidade
contemporânea, mais notadamente, os grandes centros urbanos. Dentre as mudanças mais
relevantes (e que afetarão tanto o desenho das políticas culturais como o das políticas
urbanas) podemos citar: a reestruturação dos fluxos de capital e a trasnacionalização de bens e
serviços em nível global; o surgimento da sociedade informacional com novas vertentes
técnicas e científicas; a transição de uma economia industrial para uma economia de serviços;
a mutabilidade das identidades em função do deslocamento e cruzamento das fronteiras
culturais (hibridismo cultural). Tal painel tende a deslocar e consagrar novos mecanismos de
interação para a formulação, execução e legitimação das políticas públicas nas instâncias
subnacionais de poder (estados e municípios). Em parte, as políticas compartilhadas buscam
responder à problemática urbana, social e econômica consequentes da interdependência global
que acirrou as desigualdades socioeconômicas, contradições e assimetrias territoriais e
regionais.
Sendo a cidade protagonista, alvo/objeto privilegiado das políticas culturais, torna-se
necessária a consideração e análise das suas interfaces, dinâmicas e impactos com/no espaço
urbano através da sua rede complexa de inter-relações e vivências. O espaço urbano é onde se
faz notar os efeitos de assimilação e integração socioeconômica, ambiental e cultural assim
como os processos que evidenciam separações e marginalizações nessa instância. Doreen
Massey proporá uma nova perspectiva para se pensar o espaço (e as espacialidades) na
contemporaneidade a partir do processo indentitário que lhe atravessa e que cobra novas
práticas de gestão e resultado com relação a ele (a autora utiliza a ideia de responsability para
articular o uso e os sentidos do espaço). Rogério Haesbaert analisará os processos de
desterritorialização política (advinda da crise do estado-nação e do livre fluxo do capital) e
das identidades culturais (frutos de processos comunicacionais, migrações, etc.) como um fato

114

V V
que desembocará na necessidade para o encontro de lógicas multiterritoriais (em efeito
dialético) que contemplem a diversidade social e cultural inerentes ao campo analítico da
cidade.
Dessa forma, se evidencia as cidades como espaço social e simbólico, cenário onde se
formam, afirmam e reestruturam as identidades, onde se reinventa o cotidiano, esse último
relacionado às práticas sociais, às relações interculturais e as diversas modalidades de
integração, e onde desembocam interesses e estratégias da agenda internacional. Como já
explicitamos a cultura, na atualidade, adquire uma centralidade na transformação da vida local
e cotidiana, afetando o universo da cidade. Por sua vez, a dinâmica social da cidade provoca
deslocamentos culturais, que em última instância irão afetar as identidades e subjetividades de
seus habitantes.
É, pois, nesse jogo relacional que encontraremos os hiatos e pontos de silêncio que
devem ser explorados a partir do desenvolvimento de políticas culturais na esfera da cidade.
Os estudos urbanos e as ciências sociais produziram várias questões de confluência que
podem ser contempladas no exercício cotidiano para que as cidades decifrem, como Édipo em
Tebas, caminhos possíveis para a plena consagração de uma política cultural orgânica e em
sintonia com seu corpus social, seja através da estrutura estanque proposta pelo SNC ou por
meio de formas criativas e flexíveis da gestão. Como a cabeça e o busto de mulher, as patas
de leão, o corpo de cão e cauda de dragão da Esfinge de Tebas deve-se observar todos os
nortes e impactos comuns ao universo cultural no seno das cidades a título de decifrar toda a
complexidade imposta à área. Que se decifrem seus aspectos simbólicos e estéticos, que se
compreenda a função estratégica da cultura para gerar valor de branding aos centros urbanos;
que se critique o consumo cultural que conduz à práticas culturais orientadas à
espetacularização e gentrificação do espaço público; e que se negue que a agenda das políticas
culturais permita a incorporação da lógica privada do capital concentrado em muitas de suas
zonas de intervenção. Só assim será possível caminhar em sintonia e livremente rumo à pauta
da diversidade cultural.
Tais questões vão ao encontro do que Lefebvre definiu filosoficamente com o direito à
cidade e a necessidade corrente para se reinventar um programa político de reforma urbana,
nos quais os simulacros relativos aos valores de uso e troca na cidade devem ser
desmascarados. Embora cético em suas conclusões, o autor, chega a revisar o processo de
autogestão, de participação e de integração como possibilidades (ainda que não puras e

115

V V
destituídas de interesses econômicos, políticos e de poder) para a realização e
amadurecimento do campo de intervenção das políticas urbanas, culturais e sociais.
Assim, a cidade como expressão política organizada local, a cultura como sistema de
significados, a identidade com espírito essencial, básico e estruturante do território são
elementos que simultaneamente ajudam a inovar na concepção das políticas públicas sobre as
quais se debruçará a cidade futura.

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117

V V
O FAZER ARTE NOS PONTOS DE CULTURA: UMA AÇÃO EM REDE
Liduína Moreira Lins1
Ana Carênina de Albuquerque Ximenes2

RESUMO: Este artigo tem como objetivo elucidar a ação em rede dos Pontos de Cultura no
território brasileiro, em especial sua relação com o fazer artístico manifestado sob formas
coletivas e colaborativas que compõe os modos de ação de cada Ponto. Para tanto, fez-se uso
de metodologia qualitativa, com pesquisa descritiva que incluiu o levantamento empírico
acerca de alguns casos que ilustram as ações dos Pontos enquanto política que se constrói e se
estabelece no fazer comunitário, onde a ação em rede, a memória, a tradição e a cultura digital
são combinados e interligados numa teia original que fundamenta o norte de uma política
cultural com a potência das energias criadoras que tecem a cultura brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: arte; criação; pontos de cultura; política cultural; rede.

1. Introdução
Os Pontos de Cultura são concebidos como rede, independente da institucionalidade
adotada – ONG, associação etc. - e possuem formações variadas, abordando questões
cotidianas e articulando o espaço de convivência, de sociabilidade. Constituem comum
interesse de transformar artistas em agentes políticos fora do circuito legitimado pelas
instituições do campo da arte. Lidam com temas da diversidade da cultura brasileira e
questões relacionadas a diversas lutas: indígenas, afrodescedentes, quilombolas, tradição,
ecologia, espaço urbano, interação de mídias e cultura digital etc.
Para compreensão dos modos de ação dos Pontos, faz-se necessário explicitar alguns
aspectos e o caráter da política que os fundamentou, bem como os princípios que os
sustentam. Destaca-se que as instituições reconhecidas como Pontos de Cultura já existiam e
atuavam como espaços de produção simbólica - entendida como construção coletiva de
sentidos e como forma do seu modus vivendi - e passaram a ser estimuladas com o apoio e
aporte de recursos subsidiados pelo poder público.

1
Graduada em Administração. Mestranda do Curso em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade de
São Paulo – PUC/ SP. Produtora Cultural. Gestora da ONG Ciclocidade - Associação dos Ciclistas Urbanos de
São Paulo. E-mail: liduinalins@gmail.com
2
Mestre em Administração. Doutoranda do Programa de Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento –
PPED do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IE/ UFRJ. Professora efetiva do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE. E-mail: carenina6@yahoo.com.br

118

V V
O Programa Cultura Viva, com o qual se originou a nomenclatura Pontos de Cultura,
foi concebido como uma rede orgânica de criação e gestão cultural, e incute aos Pontos o
caráter de mediação desse processo em rede. Seu foco está na potência, na capacidade de agir
das pessoas e grupos e não na carência de serviços ou bens. A concepção da rede que dele
advém estabelece que cada Ponto deva colaborar com outro Ponto e assim por diante. A
relação de troca deve ser estabelecida entre iguais que aprendem entre si e se respeitam na
diferença. São diretrizes e princípios observados nos documentos de elaboração e
acompanhamento do Programa Cultura Viva e que demonstram em certa medida, o modus
operandi dos Pontos.
Os projetos desenvolvidos pelos Pontos de Cultura, de acordo com os termos
administrativos da gestão pública e pela natureza do Programa Cultura Viva, são projetos
voltados para a coletividade ou realizados de forma colaborativa. Isso se confirma nos marcos
que delineiam o Ponto de Cultura como uma instituição cultural de atuação pré-existente nas
comunidades.
O que de fato tem-se conformado como principio direcionador e mantenedor dos
Pontos de Cultura? Uma das verves que auxilia na busca de resposta para tal pergunta se
encontra nos elementos que constituem a organicidade dos modos de ação, voltados para a
arte por meio do uso propositado de políticas em forma de rede. Neste sentido, o artigo tem
como finalidade explicitar os determinantes e algumas trajetórias empíricas da ação em rede
dos Pontos.

2. Proposição teórica para fundamento da ação do Ponto de Cultura


Os Pontos combinam múltiplas atividades, públicos e interesses em organizações que
atuam com grande abrangência em termos territoriais, mas de pequena escala em termos de
estrutura. De formações diversas, múltiplas, dão ênfase à interdisciplinaridade e não fazem
separação de mídias. Expressam o caráter da relação onde processos de criação são
transformados em obras e na qual a obra é o processo.
De acordo com Salles (2011), acerca da relação entre processo e obra, pode-se
destacar duas relações verificadas com os modos de ação dos Pontos de Cultura. A primeira
relação é dada pelos processos de criação que são transformados em obras; a segunda relação
indica que as obras são o processo, quando são transformadas no contato com o público, pois
tendem a ser realizadas na constante mobilidade da forma.
Nos Pontos de Cultura e nas redes culturais que os constituem, as obras e os processos
de criação diluem suas fronteiras. Assim, com a integração das linguagens e das mídias, as
119

V V
fronteiras desaparecem porque o sentido de toda produção cultural, nesses casos, só se efetiva
com o público que é a comunidade. Os processos de criação e obras dos Pontos são
agenciados e mediados pelos encontros que também se estabelecem como espaços de
convivência de sociabilidade: oficinas como espaços formativos e de troca de saberes, as
exposições e apresentações são construídas e praticadas na e pela comunidade; são processos
e os seus registros, muitas vezes, que são levados a público, como é o caso das rádios livres,
as intervenções urbanas, ou mesmo os cineclubes que mostram os vídeos produzidos por esses
coletivos.
As atividades artísticas promovidas e realizadas pelos Pontos buscam efetuar ligações,
interações, desobstruir passagens, pôr em contato realidades apartadas, ou seja, estreitar o
espaço das relações. Para Bourriaud (2009, p. 23), “o contexto social atual restringe as
possibilidades de relações humanas e, ao mesmo tempo, cria espaços para tal.” Assim como
“(...) hoje a prática artística aparece como um campo fértil de experimentações sociais, como
um espaço parcialmente poupado à uniformização dos comportamentos” (Idem, 2009. p.13).
As ações dos Pontos são investidas da necessidade de compartilhar, de comunicar o
que realizam e como pensam os habitantes das localidades em que atuam. Todo o modo de
ação se dá pelo diálogo, laborado nas diversas formas de encontro e pelas interações
provocadas a partir das experiências e saberes; as redes culturais, que compõem e são
geradoras, representam o caráter dialógico dos modos de ação dos Pontos e a importância da
comunicação.
Comungando ainda com Bourriaud (2009), a comunicação surge como uma
possibilidade dessas passagens. Considera-se que a comunicação se opera dentro de espaços
de controle que encerram os contatos humanos, decompondo o vínculo social, já que são
realizadas a partir de modelos rígidos, respaldados pela lógica de mercado – reduzindo-nos à
condição de consumidor -, e impedindo que outras formas expressivas e comunitárias, locais,
possam alcançar ou mesmo se fazer comunicar.
O uso que os Pontos dão às experimentações artísticas, o modo como integram
linguagens e temas, a adoção de modos diversos de realizar e expor suas produções artísticas,
apropriando-se de materiais pouco convencionais – xilogravura, cordel, sambada de coco - e
de mídias como fotografia, vídeo e as chamadas novas tecnologias – software livre –
enaltecem o caráter cultural do local nas suas produções: destacam histórias do lugar,
personagens, situações e temas complicadores da convivência social, por exemplo. Assim, é
possível identificar arranjos singulares da produção artística dos Pontos em diálogo com o

120

V V
modo de mediar dos agentes (artistas, gestores, público etc.) e promover a leitura de discursos
e práticas ligados à constituição dos modos de vida e da criação. Dessa forma, os modos de
ação dos Pontos de Cultura revelam aspectos da multiplicidade de atividades, da interação e
da dinamicidade da sua produção artística.
Sob este prisma, ressalta-se outra interação nos modos de ação dos Pontos, promovida,
articulada e ampliada nas suas redes culturais, que é o espaço, expresso nas múltiplas
configurações: lugar de convivência, modo de levar e apresentar ao público suas produções,
meio de estabelecer diálogos, trocas e intercâmbios dos seus processos de criação. Neste
sentido, adota-se, para a compreensão dos espaços que os Pontos e suas redes possibilitam e
promovem o conceito de ‘interstício social da arte’ de Bourriaud (2009, p. 22), que afirma: “O
interstício é um espaço de relações humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos
aberta e harmoniosa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca além das
vigentes nesse sistema”.
Nesta perspectiva, a cidade apresenta-se como um regime de “encontro fortuito
imposto aos homens”, expressão de Louis Althusser (apud BOURRIAUD, 2009, p. 21), de
encontro casual intensivo, possibilitando uma arte cujo o tema central é o de estar-juntos,
assim como a elaboração coletiva do sentido, potencializado por uma regra de civilização.
Esse regime cria práticas artísticas e culturais correspondentes, substanciadas pela
intersubjetividade.
Supõe-se que essa possibilidade de arte que conforma o caráter da proximidade, do
estreitamento do espaço das relações, da iminência da discussão imediata sobre o que se
apresenta ao público e que incorpora o coletivo, apresenta-se como elemento de ligação, como
dispositivo relacional, capaz de provocar e gerar encontros casuais, individuais e coletivos,
um princípio de aglutinação dinâmica, integrada ao regime de encontro fortuito.
Estes aspectos atribuídos às relações artísticas estariam, de certa forma, revelando uma
forma de arte cujo fundamento é dado pela intersubjetividade, no sentido que o conhecimento
é fruto da relação interpessoal ou intersubjetiva, e que, por sua vez, é produto da linguagem,
vista como uma prática linguística de uso comum, dada pelas inteligências coletivas. “A arte é
definida como um processo de semiotização não verbal, e não como uma categoria separada
da produção global” (BOURRIAND, 2009, p. 123).
Na concepção teórica do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura está previsto
que a consolidação dessa iniciativa política se dá no resultado de um processo contínuo, em
que se funde experiência pessoal, o ato de fazer, leituras e trocas de ideias. O intuito é

121

V V
aproximar pessoas, contextos, formas de interpretação, desvendar e apontar caminhos,
compreender realidades. Segundo Turino (2010, p. 15), “Ponto de Cultura não se enquadra
em fôrmas (...) é um conceito de autonomia e protagonismo sociocultural.”

3. Modos de ação dos Pontos de Cultura: um breve relato empírico


O Programa Cultura Viva inverteu a lógica clássica da criação dos “centros culturais”,
porque ao invés de construir estruturas físicas com altos custos de manutenção e contratação
de funcionários. Desse modo, os Pontos de Cultura possuem como proposta mais abrangente
valorizar os processos culturais que já existem, dando visibilidade a expressões que não eram
até então objeto da política governamental (LACERDA, 2010).
Considera-se o programa como ‘cultura viva’ porque “(...) diminui a segregação social
do País, multiplica os espaços e as chances reais de cada um. Oportunidades de voz, de
comunicação e de vida” (FERREIRA, 2004, p. 11). Trata-se de incluir no circuito de trocas
simbólicas uma população que, “sobrevivendo em meio a violentas contrariedades, oferece
imprescindível contribuição à formação cultural de todos os brasileiros” (Idem, p.11).
Rubim (2009, p. 21), no Seminário Internacional do Programa Cultura Viva, encontro
que reuniu Pontos de Cultura e seus diferentes interlocutores, e cujo objetivo foi reconhecer,
sistematizar e compreender, principalmente, as experiências sociais que estavam em curso,
afirmou que: “[...] integrar o Estado com tais modalidades culturais e seus atores, expõe de
modo contundente o carácter excludente da nossa sociedade e denuncia a grave inadequação
existente no país entre Estado e sociedade”.
De acordo com a definição da atuação dos Pontos de Cultura dada pelo idealizador,
coordenador e secretário do Ministério da Cultura - MinC no período de 2004 a 2010, Célio
Turino (2010), havia o direcionamento das políticas e do financiamento para àquelas
organizações que lidam com agenciamentos das questões relacionadas à sociabilidade, à
convivência, à produção artística que não aparecem nos espaços institucionais da arte.

3.1.1. Pontos de cultura: compartilhamento e articulação


Segundo Turino (2010) e os princípios que regeram e regem o Programa Cultura Viva,
evidenciou-se que a aplicação do conceito de Gestão Compartilhada e Transformadora ao
modo de agir dos Pontos de Cultura tem por objetivo estabelecer novos parâmetros de gestão
e democracia entre Estado e sociedade. O princípio é de que são as pessoas que fazem cultura
e não o Estado.

122

V V
Como parceiros na relação entre Estado e sociedade, e dentro da rede, os Pontos de
Cultura agregam agentes culturais que articulam e impulsionam um conjunto de ações em
suas comunidades, e destas entre si. São tratados como a referência de uma rede horizontal de
articulação, recepção e disseminação de iniciativas culturais. Não tem um modelo único, nem
de instalações físicas, nem de programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a
transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e a sociedade civil.
Tomando como base tais premissas, o Ponto Casa da Arte de Educar tem sido
referência para programas do Ministério da Educação que integram cultura e educação e
aproximam sociedade e Estado. O projeto desenvolvido nesse Ponto, com título “Cultura e
Educação em Periferias do Rio de Janeiro” desenvolveu oficinas de Contos e Literatura, Artes
Plásticas, Memória e Cidade, Informática, Fotografia e Vídeo para estudantes do ensino
fundamental com objetivo de qualificar o processo de educação (Figura 1).

Figura 1 - Oficina do Projeto “Cultura e Educação em Periferias do Rio de Janeiro” no Ponto de Cultura Casa da
Arte de Educar3.

Em 2012, o referido Ponto realizou pesquisa-ação do projeto chamado “Um plano


articulado para cultura e educação”, em parceria com o Ministério da Cultura, com o apoio do
Ministério da Educação e do Instituto Lidas, para formulação de princípios capazes de
orientar as políticas da cultura voltadas para a educação. Esta pesquisa foi realizada em cinco
municípios-pólo, um em cada região brasileira e formou uma rede de 1.664 atores, de 22
estados e 175 municípios.
Para alguns Pontos é oferecida uma experiência mais avançada em teatro, outros em
cultura digital, em vídeo, em artes visuais, ou seja, os intercâmbios que são a base do
3
(http://www.artedeeducar.org.br/blog/2012/06/02/casa-da-arte-de-educar-mangueira/)
123

V V
incremento da rede a qual os Pontos tecem, acontecem pelas afinidades de linguagem ou de
temas por eles abordados, pelas aproximações territoriais ou mesmo pela troca de
experiências entre em si e em rede.

3.1.2. Pontos de cultura: ação em redes


Os Pontos de Cultura são tidos como espaço de sedimentação da macrorrede Cultura
Viva, uma organização da cultura em nível local e de mediação na relação entre Estado e
sociedade e entre outros Pontos de Cultura, que constituem assim, redes por afinidades. O
modo de atuar do Ponto de Cultura Vídeo nas Aldeias revela esse caráter de rede com equipe
de cinegrafistas formada por indígenas. Fazem-se presentes em encontros que debatem a
etnia, registram e disseminam nacionalmente e internacionalmente suas questões. Captam
com olhar de quem integra uma aldeia, abordam aspectos relevantes aos modos de habitar e
existir das aldeias e distribuem por meio da venda suas obras audiovisuais (Figura 2).

Figura 2 - Guarani-Mbya: oficina de vídeo do Ponto de Cultura Vídeo nas Aldeias de Porto Alegre - RS, em 20074.

O uso do vídeo pelas aldeias que formam a rede de Pontos permite a troca de saberes,
proporciona às comunidades indígenas a seleção e a afirmação de manifestações culturais que
serão conservadas para as futuras gerações quando apresentadas como parte de suas
identidades. A produção audiovisual funciona como documento histórico e apoia-se na força
da palavra e na memória oral para adaptar o suporte vídeo às formas tradicionais de produção
e transmissão cultural, e, todas as realizações utilizam software livre.

4
(Site do MinC http://www2.cultura.gov.br/site/2010/01/27/encontro-dos-povos-guarani-3/)
124

V V
3.1.2.1.a. Cultura digital na ação das redes
Devido à natureza mediadora dos Pontos a respeito da mobilização e articulação
política, construção de espaços de comunicação e de disseminação e promoção de uma cultura
livre, ou seja, não submetida aos padrões mercadológicos, o Programa necessitou difundir o
caráter da cultura digital na elaboração das atividades e ações propostas.
... a inclusão digital se refere ao acesso aos meios tecnológicos
(computador e internet) e cultura digital se refere aos usos sociais da
internet, sua capacidade de interconectar cultural e socialmente um
número significativo de pessoas, grupos e comunidades (BARBOSA:
2011, p. 13).

Neste sentido, a inclusão da concepção de cultura digital ao modo de atuar dos Pontos
fez-se necessário como instrumento catalizador de suas redes: instrumentos para a formação
de públicos para a criação artística, para educação continuada, para o compartilhamento de
sentidos de comunidade, pertencimento local e atualização das tradições. As políticas de
cultura digital adicionam possibilidades à proteção, à valorização e à disseminação dos
valores ligados ao patrimônio cultural. Permitem a circulação de exposições virtuais, criação
de obras coletivas, disseminação de músicas, troca de textos e imagens etc. Desta forma, a
concepção de uma cultura digital nas redes tecidas pelos Pontos denota como ação transversal
que se destinou a fortalecer, estimular, desenvolver e potencializar as redes virtuais e
presenciais entre os Pontos de Cultura.
Destaca-se no seu papel de mediação da rede, a apropriação e o acesso às ferramentas
multimídia em software livre pelos Pontos de Cultura para gerar autonomia. É também de
natureza experimental a incorporação da cultura digital junto aos Pontos, que também
pesquisa as possibilidades das novas tecnologias para usos sociais e culturais e contribui para
a elaboração de estudos sobre novas formas de colaboração e cooperação. Desse modo, a
internet tem sido o instrumento mais presente para disseminação e comunicação, e é um dos
principais organismos na articulação de aldeias indígenas, dentro do Programa Cultura Viva.
Outro modo de ação de produção e apropriação da cultura digital é o Ponto de Cultura
“Índios On-line” onde atuam 07 comunidades: Pataxó-Hãhãhãe - BA, Tupinambá - BA, Kiriri
- BA, Tumbalalá - BA, Pankararú - PE, Cariri-Xocó -AL, Xucuru-Kuriri - AL. Índios
voluntários que buscam autonomia, demarcação do seu território, promovem ações que
fortalecem e afirmam suas manifestações e suas tradições, contribuindo para o resgate e
resistência da cultura brasileira, por meio de uma rede. Contam com a salvaguarda da ONG
Thydêwá que responde formalmente pelos convênios e recursos públicos para as ações da

125

V V
rede Índios On-line. Este Ponto de Cultura serve como canal de diálogo, encontro e troca,
facilitando a informação e a comunicação para vários povos indígenas e para a sociedade de
maneira geral. Pelas suas características, ele já surge com o trabalho em rede, promovendo a
constituição de outros Pontos. Sendo assim, amplia sua atuação e torna-se Pontão de Cultura,
cujo caráter está respaldado no fomento de outros Pontos em rede.
Índios On-line tem como projeto principal, a ‘Oca Digital’ que desenvolve ações
diversas junto às outras instâncias competentes para lidar com questões específicas e
demandas das aldeias indígenas. A Oca Digital funciona como uma “Célula de Inteligência
Coletiva, onde converge e dialoga a diversidade cultural”, afirma o coordenador do projeto e
presidente da ONG Thydêwá, Sebastián Gerlic. Conforme vídeo do ‘Canal Celulares
Indígenas’, mantido na plataforma Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=74Oo-
iLnOiM#action=share), a Oca Digital é apresentada como um espaço midiático, próprio para
tratar da resistência do povo indígena, sua cultura e tradição (Figura 3).

Figura 3 - Oficina “Mapas Afetivos” realizada em outubro de 2010, na Oca Digital, Olivença - BA5.

Na Oca Digital cada célula participa com um número diferente de pessoas, jovens e
adultos. A premissa é direcionar as atividades não pela necessidade dos participantes, mas sim
pela comunidade indígena. Sete comunidades indígenas integram a Oca, aquelas que já
possuíam grupo de gestão, de ação, cujos autonomia e propósitos são definidos na luta pela
defesa da comunidade. Com o Ponto de Cultura essas comunidades encontram uma nova

5
(http://ocadigital.art.br/mapas-afetivos-bruno-tarin/).
126

V V
forma de se verem e serem vistas.
O Ponto de Cultura Índios On-line produz vídeos cuja maioria não tem autoria, usam
frases do coletivo em nome de seus grupos, utilizam a plataforma para expor suas vozes e
apresentar suas experiências, com a demonstração do quanto se apropriaram das linguagens
usadas, misturando, por exemplo, o ato de experimentar a linguagem audiovisual aos
discursos cotidianos que marcam suas lutas e busca por espaços de convivência, sociabilidade
e lazer.
Para a exibição desses vídeos eles realizam cineclubes, como o recém-criado 1º Cine
Cultural no Museu Escola da Aldeia Brejo dos Padres, localizada em Tacaratu-PE, no qual
alunos e professores da Escola Indígena Pankararu Dr. Carlos Estevão participaram da
exibição dos vídeos que retratam as semelhanças e diferenças dos rituais de antes com os de
hoje. Os vídeos têm a função educacional, sobretudo, de reconhecimento da própria história e
relação identitária da comunidade (Figura 4).

Figura 4 - Cineclube Pankararu: 1º Cine Cultural PCI no Povo Pankararu, Aldeia Brejo dos Padres, Tacaratu-PE6.

3.1.2.1.b. Tradição, memória e cotidiano


Os Pontos de Cultura que utilizam a cultura digital como modo de ação, também se
utilizam dos instrumentos de comunicação como parte de suas produções, apropriando-se de
diversas linguagens e, principalmente, do audiovisual como forma de difusão e promoção de
espaços de exibição e de encontros. Esses encontros acontecem entre agentes que vivem e
atuam na comunidade onde atuam os Pontos, constituindo espaços de sociabilidade, de
conhecimento e percepção da própria história do lugar, do seu contexto.

6
(http://www.indiosonline.net/1o-cine-cultural-pci-no-povo-pankararu/).
127

V V
O que é produzido e mostrado ao público pelos Pontos de Cultura é considerado parte
do processo, pois não há segmentação entre processo e obra. Há sempre algo a ser
incorporado e conquistado em suas produções artísticas. Muitas vezes, é na própria
comunidade onde se tecem espaços de arte para esses Pontos, e são considerados como
estrutura alternativa para a sociabilização diante da ausência de espaços de encontros e de
lazer.
A ECOS integra, articula e promove a formação do Ponto de Cultura ‘Rede de
Memórias Serras do Ceará’ (ver Figura 5), cinco Pontos de Cultura existentes em duas regiões
serranas do estado (Serra de Baturité e Serra da Ibiapaba), com foco na valorização das
culturas da pessoa serrana, a exemplo do Ponto de Cultura Serra do Evaristo, em Baturité, e,
do Ponto de Cultura da Comunidade Indígena dos Índios Kanindés, em Aratuba.

Figura 5 - Festival AGUA 20 anos: oficina de fotografia para ECOS, realizada entre os dias 26 de novembro e 01 de
dezembro de 2012, Guaramiranga - CE7.

Destaca-se que o Ponto Rede de Memórias das Serras do Ceará implantou memorial
em rede, descentralizado, físico e virtual da cultura dos povos serranos, com desdobramentos
em três vertentes: capacitação de agentes culturais de Pontos de Cultura, preservação e
difusão da memória, e, geração de produtos de comunicação. Além disso, desenvolve um
conjunto de atividades de formação, pesquisa e produção em Comunicação para implantação
de uma Rede de Pontos de Memória das Serras do Ceará.8

7
(http://ecosdeguaramiranga.blogspot.com.br/2012/11/festival-agua-20-anos-dia-1.html).
8
(http://memorias.agua.art.br/serras/institucional.php).
128

V V
3.1.2.1.c. Espaço de criação
Os modos de ação dos Pontos de Cultura são consequências de formações, atividades,
diálogos, promoção de encontros que acabam por promover e incentivar formas diversas de
interações abrem espaços para a sua produção nos campos que lidam e acolhem as lutas e
temas, exterior ao campo das instituições vigentes na arte: galerias, bienais, por exemplo.
Compõem-se de associações, ONGs, institutos, instituições mantidas e organizadas pela
sociedade, constituindo ações de cultura digital e alternativas de mídias, produção de
conteúdos diversos: audiovisual (rádio, vídeos para TV e Web), espetáculos e encenações,
literatura, artes visuais, intervenções urbanas etc., relacionando-os com o espaço de
convivência, com o modo de habitar o bairro, a comunidade, o município.
O Ponto de Cultura Coco de Umbigada, com a colaboração do Lab. Cultura Viva
realizou e produziu o vídeo autoral “Radio Amnésia” e realizou a gravação do primeiro
documentário da "Sambada de Coco", durante o evento (a Sambada) que acontece todo
primeiro sábado de cada mês, em Olinda, Pernambuco, conforme Figura 6. Como narrou
Daniel Luís, do Centro Cultural Coco de Umbigada: “...todos estavam bem empenhados na
construção coletiva do processo do vídeo. Acredito que o resultado vai ser maravilhoso. No
Guadalupe, o Coco é de Umbigada: a autoestima de uma comunidade com a brincadeira do
coco"9.

Figura 6 - Sambada de Coco e Gravação Doc Coco de Umbigada: Sambada de coco e gravação do doc no Centro Cultural
Coco de Umbigada, realizados em 03 de setembro de 2012, Olinda - PE10.

Baseando-se nas considerações de Salles (2011), ao mapear as características da arte


contemporânea relativas à interatividade, ao espaço e à ação dos artistas como agentes,
permite supor que os aspectos levantados sobre os modos de ação dos Pontos de Cultura, seus
processos de criação e o que deles resultam, refletem a inexistência de uma delimitação de

9
(http://labculturaviva.org/node/832)
10
(Idem)
129

V V
mídia e indefinição de fronteiras.
4. Considerações
Há de se destacar que nos modos de ação dos Pontos de Cultura é intrínseca a relação
entre o processo e o que é apresentado ao público. O que é mostrado ao público é o modo dos
Pontos atuarem na comunidade. Neste sentido, considera-se que as produções culturais e
atividades promovidas pelos Pontos – vídeos, cineclubes, teia, oficinas, encontros, discussões
em torno da arte produzida por esses etc. – são espaços alternativos de experimentação
artística, que é externalizado ao público é considerado como algo em potencial.
Segundo Salles (2011), os espaços de experimentação artística estão baseados na
ausência de fronteiras de mídias que compõe a relação entre processo e o que é apresentado
ao público. Esse caráter de aproximação da produção artística e da integração das mídias para
experimentar modos de atuar, produzir linguagens e apreendê-las, são os modos próprios dos
Pontos de Cultura de atuarem. Tecem suas ações por meio da experimentação de diversas
linguagens, integram mídias e o que é mostrado ao público é parte do processo, inclusive o
modo de apresentação.
Os Pontos de Cultura, enquanto foco das reflexões supracitadas, impelem o
observador a atentar para os processos que estimulam e provocam a criação, tendo a
valorização e o desenvolvimento da cultura plural como finalidade, ainda que a ação política
seja inerente e o social, a finalidade. Mas, sempre considera-se a desigualdade de condições e
oportunidades e, portanto, o processo de subalternização produzido pelo capitalismo.
Todos os Pontos de Cultura supracitados têm inserção na comunidade que atuam e,
portanto, não só são orientados, como existem para promover algo nos espaços onde atuam ou
localizam-se. Assim, os modos de ação dos Pontos de Cultura sinalizam para o campo da arte
as seguintes possibilidades:
● Interação das experimentações artísticas;
● Articulação das questões cotidianas relacionadas ao lugar que se habita e ao como se
habita;
● Mobilização das experiências com artistas, agentes, outros Pontos;
● Experimentação de linguagens múltiplas e apropriação dos diversos meios para
propagar suas ações; e,
● Participam e compõe diversas formas de redes, inclusive voltadas para o intercâmbio
de processos de criação. São processos de criação que são transformados em obras e
obras que são processos.

130

V V
5. Referências bibliográficas
BARBOSA, Frederico. In: IPEA. Pontos de Cultura – Olhares sobre o Programa Cultura Viva. Orgs:
Frederico Barbos e Lia Calabre. Brasília, 2011.

BOURRIAUD, Nicolas; tradução Denise Bottmann. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009.

FERREIRA, Juca. In: MinC. Cultura Viva - Programa Nacional de Arte, Educação, Cidadania e
Economia Solidária – 3ª Edição. Brasília, 2004.

IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Orgs: Frederico A. Barbosa da Silva e
Herton E. Araújo. Cultura Viva – avaliação do programa arte, educação e cidadania. Brasília, 2010.

LACERDA, Alice Pires de; Marques, CAROLINA de Carvalho e ROCHA, Sophia Cardoso.
Programa Cultura Viva: uma nova política do Ministério da Cultura. In: RUBIM, Antonio Albino
Canelas (org.). Políticas culturais no Governo Lula. Salvador, EDUFBA, 2010.

RUBIN, Albino. In: Seminário Internacional do Programa Cultura Viva: Novos Mapas Conceituais,
Brasília, 2009. Disponível em: http://www2.cultura.gov.br/culturaviva/wp-
content/uploads/2012/01/SeminarioCulturaViva_final.pdf

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado – processos de criação artística. 5. ed. São Paulo:
Intermeios, 2011.
________. Arquivos de criação: arte e curadoria. São Paulo: Editora Horizonte, 2010.
________. Crítica genética - Fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação. 3. ed.
São Paulo: Educ, 2008.
________. Redes da criação – construção da obra de arte. 2. ed. São Paulo: Horizonte, 2008.

TURINO, C. Ponto de cultura: a construção de uma política pública, 2010. Disponível em:
http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/viewFile/61/76. Acesso em: março.
2013.

131

V V
IMPACTOS DO INVESTIMENTO PÚBLICO EM DIFUSÃO AUDIOVISUAL NA
CONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO URBANO PAULISTANO: UM ENSAIO
METODOLÓGICO PARA AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS
Ana Carolina Louback Lopes 1

RESUMO: Este artigo propõe um mecanismo de avaliação de políticas culturais que visa
apreender os impactos dos projetos contemplados por programas de fomento na configuração
do espaço urbano. Para tanto, recorre-se a um ensaio metodológico baseado na espacialização
dos investimentos. Como estudo de caso são avaliados projetos de difusão audiovisual
realizados em São Paulo no ano de 2013, contemplados por três programas culturais distintos:
Lei Rouanet, ProAC e Programa Vai.

PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais; audiovisual; metodologia de avaliação;


territorialidades.

INTRODUÇÃO: UM ENSAIO METODOLÓGICO PARA AVALIAÇÃO DE


POLÍTICAS CULTURAIS

Que cidade nossas políticas públicas vêm construindo?

Sem dúvida, um dos grandes desafios a ser encarado pelas políticas públicas para as
cidades brasileiras de hoje é a redução das desigualdades entre centros e periferias. A
segregação espacial, e o consequente abismo entre cidades formais e informais, tende a
acentuar os conflitos sociais e gerar espaços urbanos hostis. Neste contexto, o direcionamento
das políticas públicas assume caráter potencial, podendo atuar tanto na acentuação, quanto na
redução dessas desigualdades. Buscando verificar as políticas em curso sob este aspecto, este
estudo ensaia uma metodologia para análise de programas de apoio à cultura, focando,
sobretudo, na relação entre o investimento público e seus impactos no espaço urbano.
A metodologia experimentada consiste na espacialização de investimentos públicos
em ações culturais, buscando analisar a distribuição do recurso na cidade. Por afinidade
pessoal do autor e pela ampla possibilidade de ações – com formatos variados, em espaços
diversos e inclusive, de forma simultânea -, o setor escolhido foi o audiovisual. Sendo a
relação territorial o foco da análise, delimitou-se o estudo aos projetos voltados à difusão de
acervo e exibição cinematográfica, ou seja, aqueles relativos a mostras e festivais

1
Arquiteta e Urbanista pela FAU-USP, Mestre em Políticas Urbanas (Habitat) pela mesma instituição e
especialista em Gestão Cultural pelo SESC-SP. Atualmente é Coordenadora de Difusão da Spcine. E-mail:
lopes.a@gmail.com.
132

V V
audiovisuais. Em termos de escala, o campo é o município de São Paulo e, em termos
cronológicos, os projetos aprovados em 2013.
A opção por restringir o estudo a apenas projetos de difusão de acervo e exibição
cinematográfica deve-se ao fato destes contarem com uma relação territorial direta em sua
execução. Como o método empregado parte da espacialização dos investimentos, visando
avaliar o impacto das políticas na construção de territórios culturais, optou-se por avaliar
apenas os projetos vinculados à realização de eventos, sejam eles mostras e festivais.
No intuito de apenas ensaiar esta nova metodologia, assumiu-se como estudos de caso
três programas governamentais de fomento ao audiovisual, cada um vinculado a uma
esfera de governo distinta: 1) Programa de Incentivos Fiscais – Lei Rouanet; 2) Programa de
Ação Cultural – ProAC ICMS; e 3) Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais –
VAI.
O Programa de Incentivos Fiscais via Lei Rouanet é um mecanismo do Programa
Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), instituído pela Lei de Incentivo à Cultura (Lei nº
8.313/ 91), popularmente conhecida como Lei Rouanet. Este mecanismo permite que parte do
Imposto de Renda (IR) devido, por pessoas físicas ou jurídicas, seja investida em ações
culturais. Os projetos que buscam financiamento por este mecanismo passam inicialmente por
uma seleção do governo federal, para então buscarem seus investidores. O limite de valor dos
projetos apresentados é de R$3.000.000,00. Neste estudo foram incluídos todos os projetos
aprovados pelo Ministério da Cultura para captação de recurso.
O Programa de Ação Cultural – ProAC ICMS, programa de incentivo fiscal do
Governo do Estado de São Paulo, funciona por meio da destinação de parte da arrecadação do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) à produção cultural. Da mesma
forma que os projetos incentivados pela Lei Rouanet, o programa conta com um processo
inicial de seleção, a partir do qual a captação de recursos é aprovada. O limite de valor por
projeto é de R$800.000,00. Assim como na Rouanet, neste caso o estudo considerou todos os
projetos aprovados pela Secretaria de Estado da Cultura para captação de recursos.
Ao contrário dos demais programas apresentados, o Programa para a Valorização de
Iniciativas Culturais - VAI, não consiste em mecanismo de incentivo fiscal. Embora o
Município conte com a Lei Municipal n° 10.923/90, também conhecida como Lei Mendonça,
que autoriza a utilização de parte dos recursos do Imposto sobre Serviços de Qualquer
Natureza - ISS ou do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU em ações culturais, este
programa encontra-se em fase de revisão. Por este motivo, optou-se pela inclusão do VAI,

133

V V
política que, apesar do pequeno porte do investimento, vem se consolidando enquanto uma
política potencial para as ações culturais na cidade2.
O Programa VAI, criado pela Lei 13.540 e regulamentado pelo decreto 43.823/ 2003,
tem por finalidade apoiar financeiramente, com recursos do orçamento e por meio de
subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões
do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais. Destinado a projetos de
grupos e coletivos compostos por pessoas físicas, em sua edição 2013 (10ª edição) o VAI
apoiou projetos com orçamento de até R$ 25.500,00. Todos os projetos apoiados nessa edição
foram considerados no âmbito deste estudo.
Definido o campo de análise, a pesquisa partiu para a construção dos bancos de dados a
serem trabalhados. Todos os dados utilizados foram coletados via internet, seja nos bancos de
dados disponibilizados pelos programas, seja nas páginas específicas dos projetos quando
disponíveis, constituindo, portanto, informações de domínio público. Pesquisas mais
aprofundadas poderiam contar com consultas aos órgãos financiadores, ou até mesmo contato
telefônico com os proponentes, para aquisição de informações complementares.
Como a disponibilização dos dados de cada um destes programas segue formatos
específicos, foram empregados critérios para uniformização de algumas informações, de
modo a permitir a contraposição de dados comuns a todos os programas.
Elaborados os bancos de dados, e verificadas as informações disponíveis comuns aos
programas em análise, mapas temáticos puderam ser gerados, a partir de cruzamentos de
informações e localização dos projetos. Enquanto um exercício crítico, breves considerações
serão esboçadas acerca da relação entre os programas analisados e a construção de
territorialidades urbanas na Cidade de São Paulo.

ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS: ONDE ESTÃO OS INVESTIMENTOS?


Enquanto questão inicial, o estudo partiu da hipótese de que a maior parte dos
investimentos públicos em audiovisual vem contemplando basicamente eventos ambientados
nas regiões centrais da cidade, acentuando as diferenças entre centro e periferia no que se

2
Em 2014 o Programa VAI passou a ser organizado em duas modalidades (Lei 15.897), VAI 1 e VAI 2, sendo o
primeiro uma continuação do formato já em curso e o segundo, uma nova modalidade de investimento, voltada a
apoiar projetos de grupos e coletivos compostos por pessoas físicas, não só de jovens mas também adultos de
baixa renda, que tenham histórico de, no mínimo, 2 anos de atuação em regiões da cidade carentes de
equipamentos culturais ou que foram contemplados na modalidade VAI 1, desde sua instituição. Nesta edição o
VAI 1 aceitará projetos com orçamento de até R$30.000,00, enquanto a nova modalidade contará com
investimentos de até R$ 60.000,00 por projeto.
134

V V
refere à oferta de programação cultural. A análise de dados a seguir buscará verificar esta
afirmação.

Primeiras análises
A partir dos recortes apontados no item anterior, foram então selecionados 82
projetos: 45 projetos aprovados na Lei Rouanet, 33 projetos pelo ProAC e 4 projetos
pelo Programa VAI. Em termos proporcionais, estes projetos – classificados como difusão
de acervo/ exibição – representam, respectivamente, 34%, 15% e 50% dos totais de projetos
audiovisuais apoiados por cada programa. Dentre os projetos selecionados, apenas 63
tiveram os locais de realização apurados, não necessariamente a partir dos dados fornecidos
pelos programas, mas muitas vezes por meio de pesquisas na internet.
Em relação aos investimentos, pode-se dizer que o número de projetos aprovados por
cada programa acompanha o volume de recursos investidos, e ambos coincidem com a
hierarquia das esferas de governo financiadoras, sendo o maior investimento o da Lei Rouanet
e o menor o do Programa VAI. Vale notar que o valor médio investido por projeto é bastante
variável, o que influencia diretamente nos tipos de projetos apoiados por cada programa.

Tabela 1: Quadro geral dos projetos analisados.


quantidade de projetos com investimento investimento
programa
projetos locais definidos médio/ projeto total
Lei Rouanet 45 34 R$ 828.641,82 R$ 37.288.882,06

ProAC 33 25 R$ 541.021,38 R$ 17.853.705,48

Programa VAI 4 4 R$ 25.500,00 R$ 102.000,00


Fonte: Elaboração própria.

A partir da apuração dos locais de realização dos projetos, uma primeira análise buscou
verificar os tipos de locais contemplados por cada projeto, classificando-os da seguinte forma:
_ Associação: organizações da sociedade civil (associações de bairro, entidades de
classe, associações profissionais, pontos de cultura, entre outras);
_ Circuito regular: salas de cinema que integram a rede comercial da cidade (rede
Espaço Itaú, rede Cine Mark, Centro Cultural São Paulo (CCSP), entre outros);
_ Equipamento púbico: instituições de uso público, que não salas oficiais de cinema
(escolas, CEUs, unidades SESC, casas de cultura, bibliotecas, teatros, entre outros);
_ Espaço público: espaços públicos abertos que recebem exibições ao ar livre e/ ou
locais de passagem/ circulação de pessoas (praças, parques, ruas, entre outros);

135

V V
_ Local privado: estabelecimentos comerciais ou de prestação de serviços, voltados a
públicos específicos (lojas, espaços para convenções, bares, entre outros).
A partir destes critérios, foram eleitos perfis de locais de realização dos projetos,
buscando-se verificar tipologias de atuação territorial para cada caso. Por este mecanismo
constatou-se uma significativa predominância de projetos realizados exclusivamente em
salas do circuito regular. Interessante notar ainda que, à parte deste, o perfil
consecutivamente mais recorrente foi a composição do circuito regular com espaços públicos.

Tabela 2: Projetos por perfil de locais de realização.

Lei Programa
Perfil de locais de realização 1 ProAc TOTAL
Rouanet VAI
associação 0 1 0 1

associação; equipamento público 2 2 1 5

associação; equipamento público; local privado 1 1 0 2

associação; espaço público 0 0 1 1

circuito regular 22 9 0 31

circuito regular; equipamento público 1 2 0 3

circuito regular; equipamento público; espaço público 0 1 0 1

circuito regular; equipamento público; local privado 1 0 0 1

circuito regular; espaço público 4 4 0 8

circuito regular; local privado 0 1 0 1

equipamento público 0 2 0 2

espaço público 2 1 2 5

local privado 1 1 0 2

sem informação 11 8 0 19

TOTAL 45 33 4 82
Fonte: Elaboração própria.
1
Não foi verificado nenhum projeto que contemple os quatro tipos de locais.

Embora os projetos priorizem em seu formato o circuito regular, ao analisar


individualmente as ações realizadas por cada projeto, verificou-se a predominância de eventos
em equipamentos públicos, que configuram 44% das ações, em contraposição aos 36% de
ações no circuito regular3. Ou seja: os projetos que beneficiam equipamentos públicos

3
Neste estudo foram consideradas apenas as ações realizadas no Município de São Paulo. Como o cálculo do
investimento por ação foi estimado a partir do fracionamento do recurso total atribuído ao projeto, e alguns pros
englobam ações também em outros municípios, algumas ações contarão com distorções no valor atribuído.
136

V V
realizam, em geral, um número de ações superior àqueles direcionados ao circuito
regular.

Tabela 3: Ações por tipo de local de realização.

Lei ProAc Programa % ações Investimento Investimento


Tipo de local 1
Rouanet VAI por tipo total por tipo2 médio por tipo
associação 9 9 2 5% R$ 1.837.582,16 R$ 91.879,11

circuito regular 65 73 0 36% R$ 26.336.066,04 R$ 190.841,06

equipamento público 74 92 1 44% R$ 4.101.371,87 R$ 24.559,11

espaço público 18 7 5 8% R$ 6.468.469,60 R$ 215.615,65

local privado 3 3 0 2% R$ 2.466.347,39 R$ 411.057,90

sem informação 11 8 0 5% R$ 14.034.750,48 R$ 738.671,08

TOTAIS 180 192 8 100% R$ 55.244.587,54 R$ 145.380,49


Fonte: Elaboração própria.

1
A quantificação por tipo de local considera as ações – e não os projetos, registrando ocorrências múltiplas nos casos de
projetos que contemplem mais de um tipo de local, chegando, por isso, a valores totais superiores aos totais de projetos.

2
Para cálculo de investimento por tipo de local, foram considerados os números de ações e as respectivas frações do
investimento total no respectivo projeto, de modo que para um projeto com 5 ações, considerou-se para cada ação o
corresponde a 1/5 do recurso total do projeto.

Em termos dos investimentos, no entanto, alguns pontos merecem ser exaltados.


Embora o maior número de ações se dê em equipamentos públicos, os eventos nestes locais
consomem apenas R$ 4.101.371,87, enquanto as ações no circuito regular contam com um
montante R$ 26.336.066,04. Se verificado o corresponde valor médio por ação, tem-se R$
24.559,11 para cada ação em equipamentos públicos e R$ 190.841,06 para aquelas realizadas
no circuito regular. Curioso notar que as ações em espaços públicos e locais privados, por sua
vez, contam com investimentos médios por ação ainda superiores aos praticados no circuito
regular, chegando a dobrar, no caso dos locais privados.
No que se refere aos programas, vale notar que não foram verificadas ações no
Programa VAI nem em salas do circuito regular, nem em locais privados, o que comprova ser
o valor do aporte determinante na definição das tipologias de projetos, neste caso, por
exemplo, desvinculando-as da iniciativa privada, dados os custos para acesso a estes espaços.
Ao analisar os locais específicos de realização destas ações, a concentração em alguns
pontos é bastante acentuada. No topo do ranking, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB)
e o CineSESC concentram 14 ações cada um, seguidos pelo Cine Olido e pelo MIS, cada um
com 12 ações identificadas. Vale atentar que no caso do CCBB a contribuição pela Rouanet é

137

V V
bastante superior à do ProAC, ao contrário dos demais locais, onde os dois programas
incidem de forma equilibrada. Tal fato relaciona-se, provavelmente, ao porte financeiro da
instituição bancária e seu consequente potencial de investimento via renúncia fiscal.

Gráfico 1: Locais com maior número de ações previstas (incluídos apenas locais com 3 ou mais ações).

0 2 4 6 8 10 12 14 16

Centro Cultural Banco do Brasil


CineSESC
Cine Olido
MIS - Museu da Imagem e do Som
Centro Cultural São Paulo
Cine Livraria Cultura
Espaço Itaú de Cinema – Augusta
Reserva Cultural
Cine Sabesp
CINUSP Paulo Emílio
CFC Cidade Tiradentes
Matilha Cultural
CCJ Ruth Cardoso
CINUSP Maria Antônia
Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca
FAAP
JAMAC - Ponto de Cultura
Praça Victor Civita

Lei Rouanet ProAC


Fonte: Elaboração própria.

Espacialização dos dados


Feitas as análises iniciais, os dados apurados foram então espacializados, buscando-se a
visualização da distribuição dos investimentos no território. Esta espacialização priorizou três
aspectos considerados fundamentais para o entendimento do cenário de investimentos na
cidade, os quais serão apresentados a seguir.

Distribuição das ações no território


Confirmando a hipótese inicialmente levantada, a espacialização das ações analisadas
aponta para uma maior concentração de ações nas regiões centrais do município, sendo
inclusive significativa a sobreposição de ocorrências nos mesmos locais de realização. Esta
sobreposição acontece, sobretudo, nos cinemas do circuito regular.
Ainda em relação à tipologia dos locais, curioso notar que as ações situadas nas regiões
centrais são, em geral, vinculadas a salas do circuito regular, enquanto as ações situadas nos
bairros mais periféricos referem-se, predominantemente, a eventos em equipamentos

138

V V
públicos, no que pesa sobremaneira a presença dos CEUs. Nestes casos, a sobreposição de
ações não se mostra muito recorrente, configurando um quadro de maior diversidade de
espaços por um lado, porém menor frequência de eventos, por outro.
Importante notar que 27 dos 96 distritos do município não contabilizaram ações.

Distribuição das proponentes no território


O mapeamento dos endereços das proponentes revelou um quadro de ainda maior
concentração: há raros casos de produtoras situadas na zona leste e nenhuma ocorrência nas
periferias norte e sul da capital. Além da maioria absoluta das proponentes estarem
concentradas no miolo central da cidade, o investimento nestes casos é esmagadoramente
superior àquele direcionado às proponentes situadas em distritos periféricos.

Distribuição dos investimentos no território


A análise da distribuição dos investimentos na cidade partiu da divisão administrativa
por distritos, organizando-os segundo faixas de investimentos. Esta espacialização confirmou
mais uma vez a hipótese inicialmente colocada: os bairros centrais são contemplados por
volumes de investimentos bastante superiores aos bairros periféricos. Conforme mapa
que segue, os investimentos mais elevados estão nos distritos Vila Mariana e Pinheiros,
seguidos por Bela Vista, Consolação, Barra Funda e Sé, ou seja, todos distritos concentrados
no miolo central da cidade. Os distritos periféricos, por sua vez, enquadram-se nas faixas de
investimento mais baixas, havendo 27 distritos sem investimento algum.
Em termos de valores, enquanto alguns distritos contam com valores inferiores a
R$20.000,00, os distritos mais favorecidos – Vila Mariana e Pinheiros – contam,
respectivamente, com R$ 6.489.680,01 e R$ 4.662.568,16.
Apesar da nítida concentração de investimentos nos distritos centrais, vale mencionar a
presença de ações em diversos distritos periféricos, o que está vinculado, sobretudo, à
realização de eventos em equipamentos públicos, entre eles os CEUs e os Centros Culturais
de Cidade Tiradentes e da Vila Nova Cachoeirinha.

139

V V
Mapa 1: Distribuição das ações de difusão audiovisual no Município de São Paulo, por programa.

LEI ROUANET PROAC PROGRAMA VAI

Fonte: Elaboração própria. Disponível em http://www.coletivo.info/mapas/investaudiovisual.html.

140

V V
Mapa 2: Distribuição das proponentes no Município de São Paulo, por porte de investimento.

Fonte: Elaboração própria. Disponível em http://www.coletivo.info/mapas/investaudiovisual.html.

141

V V
Mapa 3: Distribuição do investimento em difusão audiovisual no Município de São Paulo, por distrito.

Fonte: Elaboração própria. Disponível em http://www.coletivo.info/mapas/investaudiovisual.html.

142

V V
CONCLUINDO...
SOBRE INVESTIMENTOS PÚBLICOS E TERRITORIALIDADES URBANAS

Território, assim, em qualquer concepção, tem a ver com poder, mas não
apenas o tradicional ‘poder político’. Ele diz respeito tanto ao poder no
sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais
simbólico, de apropriação. (...) A territorialidade, além de incorporar uma
dimensão estritamente política, diz respeito também às relações econômicas
e culturais, pois está ‘intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam
a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão
significado ao lugar’. (HAESBAERT in: HEIDRICH et al., 2008: 20-21)

Segundo Haesbaert (2008), a definição de “território” caminha sempre entre duas


referências extremas - uma de caráter funcional e outra de caráter simbólico -, as quais se
revezam em intensidade, mas estarão sempre simultaneamente presentes. Para o autor, num
esquema genérico de extremos, esta relação funcionalidade versus simbolismo se expressaria,
por exemplo, e respectivamente, nas relações “processo de dominação” versus “processo de
apropriação”, “territórios da desigualdade” versus “territórios da diferença”. Neste estudo, que
busca avaliar processos culturais, interessa discutir, sobretudo, os territórios ditos simbólicos,
particularmente em seus processos de apropriação e consolidação de relações afetivas entre a
população e o espaço urbano. A estes processos denominam-se territorialidades.
A análise dos projetos aqui apresentada, ao classificar as ações em tipos de locais, partiu
da constatação de tipologias espaciais distintas vinculadas à atividade de exibição: salas de
cinema (circuito regular), equipamentos públicos, espaços públicos, locais privados e
associações. Se considerado o conceito de territorialidade, ou seja, as dinâmicas pela qual
estes espaços são ocupados, alguns arranjos podem ser claramente identificados:
_ as salas regulares de cinemas de rua;
_ as salas regulares de cinemas de shoppings;
_ as exibições em equipamentos públicos;
_ e as exibições em espaços públicos.
Em relação às salas de cinema regular, embora compartilhem entre si a semelhança de
formato de uso, o que as define enquanto territorialidades são as relações que estes públicos,
atraídos pela atividade de exibição, desenvolvem com o espaço. E, neste sentido, as dinâmicas
são bastantes particulares a cada uma destas tipologias.
As salas de cinema de rua, não só por se configurarem exclusivamente como salas de
cinema, mas também por contarem, em geral, com programações preferencialmente voltadas
a filmes ditos “de arte”, concentram prioritariamente um público cinéfilo, ou seja,
particularmente interessado em cinema e que frequenta com regularidade estes espaços
143

V V
(STEFANI, 2009). Este público muitas vezes tece relações interpessoais a partir do interesse
comum, o que transforma estes espaços em requisitados pontos de encontro.
Já as salas de shoppings, em geral integrantes dos chamados multiplex, tendem a atrair
um público variado, que busca lazer, e não necessariamente a sessão de cinema. No entanto,
embora seja um contexto menos especializado, as salas de shoppings constituem também uma
territorialidade fortemente definida: apesar do público não cinéfilo e da vinculação destas
salas aos shoppings centers, tecem-se também neste caso relações interpessoais e territoriais,
contudo a partir de outros interesses, sejam de socialização, de consumo, entre outros4.
Além de configurações arquitetônicas diversas - as salas de rua comunicam-se
diretamente com o espaço público enquanto as salas de shoppings não se conectam com o
espaço exterior -, em termos de localização, fica visível a concentração das salas de cinema de
rua nas regiões mais centrais, com ênfase para o eixo da Avenida Paulista, enquanto as salas
de shoppings mostram-se distribuídas pelo anel intermediário da cidade.
Já no que se refere às exibições em equipamentos públicos, verificou-se que as ações,
em geral, vêm sempre atreladas a atividades de formação, como oficinas e workshops, e/ ou
contam com temática pedagógica, como meio ambiente, direitos humanos, etc. Como a
maioria destes equipamentos são escolas, as sessões são predominantemente compostas por
alunos, numa espécie de atividade extracurricular.
No caso das exibições em espaços públicos, formatos específicos costumam ser
desenvolvidos, como, por exemplo, os projetos em formato drive-in ou os projetos itinerantes.
Nestes casos, o público-alvo é variado, composto basicamente pelas populações locais.
Considerando a vinculação entre o formato dos projetos e o tipo de espaço onde se
realiza, fica nítida a divisão da cidade em três anéis concêntricos: enquanto as salas de
cinema de rua se concentram no miolo central, com as mostras de festivais de maior
porte, no anel intermediário estão as salas de shoppings, com eventos mais pontuais e,
nas periferias, mostras temáticas e ações prioritariamente voltadas à formação de
público, situadas, em geral, em equipamentos públicos e associações locais.
Interessante notar que são raros os casos que combinam diferentes tipologias de
espaços. Em geral, os projetos são direcionados já em sua definição para tipos de locais
específicos. Tal procedimento poderia ser um ponto positivo, enquanto reconhecimento das

4
Vale mencionar que poucas salas de cinema de shoppings são contempladas pelos projetos aqui avaliados. Isso
se deve, provavelmente, ao fato das mostras e festivais trazerem, em geral, títulos mais densos e com menor
apelo comercial, o que as faz optar pelas salas mais alinhadas a estes formatos.

144

V V
particularidades locais, seja de público, seja de vocação, etc. No entanto, o que se percebe é
que mostras e festivais de maior porte pouco chegam aos bairros periféricos, o que torna
privilégio de apenas uma parcela da população o acesso a estes ambientes. Nota-se uma
espécie de estereotipagem das ações, não havendo de fato um diálogo com as dinâmicas
locais, mas sim uma suposição do que se imagina que “caiba” em cada local.
Embora a busca por fazer dos bairros cidades de pequeno porte seja um caminho
desastroso - “prejudicial ao planejamento urbano” conforme avalia Jacobs (2011: 123) -, a
oferta de serviços e opções de lazer nas periferias é fundamental, sobretudo numa cidade do
porte de São Paulo e com as dificuldades de mobilidade que a caracterizam. Nesse sentido,
fortalecer e estender as redes torna-se uma estratégia fundamental para desafogar as regiões
centrais e ampliar o acesso da população às atividades oferecidas. Dessa forma, estimulam-se
ainda relações de apropriação simbólica dos territórios, favorecendo a identidade local.
Mais do que garantir o acesso ao cenário cultural da cidade, a ocupação de espaços por
programações variadas, comuns ao circuito oficial da cidade, tende a inibir a consolidação de
territórios de dominação e estimular a configuração de territórios simbólicos, uma vez que
evita a apropriação individual dos espaços e consequente direcionamento aos interesses de
determinados grupos. Neste contexto cabe à política cultural enfatizar a realização de ações e
projetos, sobretudo, nas regiões menos inseridas na dita cidade formal.
No entanto, para que os projetos dialoguem com estes espaços, faz-se fundamental
conhecer as realidades locais e reconhecer estas dinâmicas na definição das ações a serem
contempladas. Entender os bairros periféricos como uma única “periferia” é já sabidamente
um equívoco. A diversidade coloca-se como a característica por excelência das grandes
cidades e as periferias são protagonistas nestes processos. Diversas territorialidades se
configuram, cruzando limites administrativos, o que se acentua a partir da potencialidade das
ferramentas virtuais. Já não cabe mais falar em bairros enquanto territórios específicos,
mais sim enquanto cenários de diversas territorialidades. A discussão do espaço urbano
passa a contar com um novo ponto de partida, que é a mutiterritorialidade.
O território, como espaço dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um
sentido multiescalar e multidimensional que só pode ser devidamente
apreendido dentro de uma concepção de multiplicidade, de uma
multiterritorialidade. E toda ação que efetivamente se pretenda
transformadora, hoje, necessita, obrigatoriamente, encarar esta questão: ou
se trabalha com a multiplicidade de nossos territórios, ou não se alcançará
nenhuma mudança positivamente inovadora. (HAESBAERT in: HEIDRICH
et al., 2008, p.34)

145

V V
Em síntese, o estudo aqui colocado atesta que a política pública de suporte à difusão
audiovisual vem fortalecendo territorialidades urbanas na cidade, o que, por um prisma, pode
ser encarado de forma positiva; contudo estas territorialidades ainda estão muito atreladas a
delimitações espaciais da cidade, o que reforça as diferenças entre centro e periferia. Neste
contexto, enxergar os territórios como estruturas capazes de abrigar múltiplas
territorialidades, constitui ponto importante a ser considerado na definição de ações culturais
para a cidade. Se bem direcionada, a política pública poderia impactar nestes arranjos, de
modo a preservar as territorialidades, contudo estimulando-as a cruzar os limites territoriais.

* A espacialização de dados gerada para este estudo está disponível temporariamente na página virtual
http://www.analouback.com.br/investaudiovisual. Créditos de programação: Fábio Andrade.

BIBLIOGRAFIA

HAESBAERT, R. Territórios alternativos. Niterói: EdUFF; São Paulo: CONTEXTO, 2002.

HEIDRICH, A.L.; COSTA, B.P. da; PIRES, C.L.Z.; UEDA, V. (orgs.). A emergência da
multiterritorialidade. A ressignificação da relação do humano com o espaço. Canoas: Ed.ULBRA;
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

STEFANI, E.B. A geografia dos cinemas no lazer paulistano contemporâneo: redes e


territorialidades dos cinemas de arte e Multiplex. Dissertação de Mestrado – FFLCH, USP. São
Paulo, 2009.

Páginas web:

Lei Rounet: http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php#

ProAC: http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/PAC/consultapublica/

Programa VAI: http://programavai.blogspot.com.br/p/projetos.html; www.programavai.cc.

146

V V
MUSEOLOGIA SOCIAL, POLITICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA E PATRIMÔNIO
E MUSEUS: O CONTEXTO DO PONTO DE MEMÓRIA DA TERRA FIRME.
Ana Claudia dos S. da Silva1
Silvio Lima Figueiredo2

RESUMO: Este trabalho apresenta reflexões sobre a Política Nacional de Museus e a criação
Programa pontos de memória do Instituto Brasileiro de Museus. Enfatiza a criação do Ponto
de Memória da Terra Firme em Belém do Pará. Faz uma breve caracterização do Bairro e a
implantação do Ponto de Memória no Bairro. Analisa a importância da participação dos
moradores de bairros periféricos na criação de espaços de memória que buscam a
potencialização do sentido de comunidade e a transformação social.

PALAVRAS CHAVES: Memória Social, Museus, Políticas Públicas, Ponto de memória,


Terra Firme.

INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta considerações sobre as políticas públicas de Museus e de
Memória no Brasil com foco nos Pontos de Memória. Enfoca a memória social e a
valorização da memória de comunidades de bairros periféricos das cidades brasileiras, com
ênfase para o bairro da Terra Firme em Belém do Pará, Brasil.
O objetivo do texto é analisar a política de museus e memória no Brasil sob a ótica da
museologia social destacando como os pontos de memória se constituem em espaços de
sociabilidade, onde se percebe a disputa pelo poder da memória.
A memória aqui é tratada como um dispositivo de coesão e articulação dos grupos
sociais em busca de sua identidade e de conquistas em prol do desenvolvimento local. Nesse
sentido trazemos para discussão a política de memória e museus instituída a partir de 2003
durante o Governo Lula, no bojo da Política Nacional de Cultura. A constituição dessa
política, em primeiro lugar, foi participativa, com presença de diversos segmentos da
sociedade civil organizada e serviu de base para as políticas do campo cultural do País, como

1
Turismóloga (UFPA), Especialista em Educação Ambiental (NUMA/UFPA), Mestre em Memória Social
(PPGMS/UNIRIO), Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico
Úmido (PPGDSTU/NAEA/UFPA), Técnica do Museu Paraense Emílio Goeldi. anacsilv3@hotmail.com
2
Mestre em Planejamento do Desenvolvimento (PPGDSTU/NAEA/UFPA). Doutor em Comunicação
(ECA/USP) e Pós-Doutor em Sociologia na Université René Descartes-Paris V. Sorbonne. Docente do Programa
de Pós Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU/NAEA/UFPA).
slima@ufpa.br
147

V V
o Programa Cultura Viva, Pontos de Cultura, Política Nacional de Museus, Pontos de
Memória, etc.
A pesquisa foi participativa e dirigida para os integrantes do Ponto de memória da
Terra Firme em reuniões e eventos realizados pelo grupo no período de 2012 a 2014 e na
observação e participação nas reuniões do conselho gestor no período de 2011 a 2012.
Também foram realizadas entrevistas com representantes de pontos de memória de outras
localidades do Brasil durante o encontro da VI Teia da Memória realizada em Belém do Pará
em dezembro de 2014.
Iniciamos este trabalho apresentando considerações sobre a política pública de Museus
e sua gênese, sob a ótica da museologia social, destacando o surgimento dos Pontos de
Memória. A seguir apresentamos o Ponto de Memória da Terra Firme, caracterizando seu
espaço social e o processo de seu surgimento. Finalizamos apresentando algumas
considerações sobre o programa pontos de memória como espaços de sociabilidade e de
experiências de afirmação da memória.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE MUSEUS E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO


INTEGRAL E DA MEMÓRIA SOCIAL.
Com a ampliação da noção de patrimônio e da concepção de museus, as políticas
públicas para essas áreas se multiplicaram, entendendo os museus como parte do patrimônio e
ambos partes da memória social e coletiva. Diversas políticas direcionadas para cada uma
dessas áreas começaram a ser definidas a partir do Governo Lula (2003-2010). Nesse
Governo, no Ministério da Cultura, foi dada grande ênfase as áreas de Memória, Patrimônio e
Museus, e foram criadas estratégias de gestão voltadas para a valorização dos museus como
agentes de desenvolvimento local e para a afirmação e valorização da memória social de
diversos grupos até então não contemplados nas políticas governamentais de cultura e
patrimônio.
Nesse período há a reformulação na estrutura do Ministério da Cultura (MINC) com a
criação do Instituto Brasileiro de Museus-IBRAM, que ficou responsável pela proposição das
políticas de museus e memória no País, bem como pelas ações direcionadas para a memória
de comunidades e grupos diversos da sociedade civil.
Também é lançada pelo Ministério da Cultura, a Política Nacional de Museus em
2003, que teve como princípios norteadores:
O estabelecimento e consolidação de políticas públicas para o campo de
patrimônio e museu; desenvolvimento de práticas e políticas educacionais
148

V V
orientadas pela diversidade cultural do povo brasileiro; valorização do
patrimônio cultural sob a guarda dos museus; reconhecimento e garantia dos
direitos de participação das comunidades, nos processos de registro e de
definição do patrimônio a ser musealizado; incentivo a sustentabilidade e a
preservação do patrimônio submetido ao processo de musealização e
respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígena e afro
descendente, de acordo com as suas especificidades (AMAZONAS, s/d,
p.4).

A construção da Política Nacional de Museus foi dividida em quatro etapas: A


primeira constou da elaboração do documento básico para a discussão com representantes de
entidades e organização museológica, que se fundamentou na Carta de Rio Grande3 e no
Texto “Imaginação museal a serviço da cultura” 4; A segunda etapa apresentou o documento
básico para debate público, com participação de diretores de museus, representantes de
secretarias estaduais e municipais de cultura, professores de universidades, representantes de
organizações museológicas nacionais e internacionais; Em seguida, é realizada uma ampla
divulgação do documento por meio digital e reuniões presenciais. Participaram das reuniões
diversos atores sociais (professores, estudantes, pesquisadores, aposentados, jornalistas,
técnicos e gestores culturais, lideres comunitários, educadores, artistas) que contribuíram para
o aprimoramento da proposta inicial; e a quarta e última etapa foi a consolidação do
documento por uma equipe formada por representantes do poder público e da sociedade civil
(POLÍTICA NACIONAL DE MUSEUS, 2007).
A Política Nacional de Cultura com ênfase no Patrimônio Material e Imaterial e nos
Museus contempla a memória social e coletiva a partir do novo sentido e do lugar que os
museus ocupam na sociedade. Para Moutinho (2004) isso ocorre com a “Criação do Sistema
Brasileiro de Museus (SBM) que tem como principal função articular os museus brasileiros
seja eles federais, estaduais, municipais ou privados; de qualquer porte e tipologia”.
A criação da Política Nacional de Museus e do Sistema Brasileiro de Museus
propiciou a elaboração de uma legislação direcionada para o setor de Museus que
regulamentou várias das diretrizes propostas pela esta política, tais como: a obrigatoriedade
de Plano Museológico do IPHAN como ferramenta para o planejamento estratégico dos
museus; criação de museus regionais e centros culturais; criação associações de amigos que
aparecem como sistema e representantes da comunidade local. Outro ponto importante foi a

3
Documento resultante do 8º Fórum Estadual de Museus realizado em Porto Alegre em maio de 2002 em
comemoração aos 30 anos da Mesa Redonda de Santiago do Chile, sob o tema Museus e Globalização.
4
Documento elaborado pelo Conselho Federal de Museologia em 2002 que também serviu de base para a
Política de Museus.
149

V V
instituição do Estatuto de Museus que definiu o conceito de Museu para efeito desta lei5, além
de estabelecer como princípios fundamentais: a promoção da cidadania; o cumprimento da
função social; a universalidade de acesso, o respeito e a valorização à diversidade cultural,
entre outras definições.
O programa de financiamento Memória e Cidadania propiciou um maior alcance de
recursos para Museus em todo o Brasil a partir de 2004. Segundo o documento da Política
Nacional de Museus, estas ações permitiram que diversos museus do país tivessem
financiamento para suas ações. Isso possibilitou a democratização e descentralização do
funcionamento público da cultura e o acesso de um maior número de pessoas aos espaços
museais e a garantia da preservação da memória sob a guarda dos Museus.

A VONTADE DE MUSEUS E A CRIAÇÃO DOS PONTOS DE MEMÓRIA


A Política de Museus proposta pelo Ministério da Cultura estabeleceu um debate sobre
a questão dos museus brasileiros com diversos segmentos culturais relacionados com o tema.
A sua construção seguiu uma linha participativa, com reuniões que envolveram pessoas de
diversos setores, dentre as quais as responsáveis por museus e os profissionais de entidades
museológicas de diferentes tutelas, além de representantes de meios acadêmicos entre outros.
Este documento ressalta ainda que essa política teve como premissa a democratização do
acesso aos bens culturais produzidos, bem como dos dispositivos de estímulo e incentivo à
dinâmica de produção de bens culturais representativos de diferentes grupos sociais e étnicos
existentes no País.
Nesta perspectiva surgem em todo o território nacional espaços museais voltados para
a valorização e preservação do patrimônio das comunidades e ao incentivo a inclusão social e
cidadania por meio do desenvolvimento de ações voltadas para novos processos de
institucionalização da memória. Os museus comunitários e os Pontos de Memória se inserem
neste processo de afirmação e valorização da memória social. Para Chagas (2008 apud
MORAES, 2011) “estas experiências são baseadas na musealização do território e na ênfase
dada as relações sociais, valorizando os processos naturais e culturais e não os objetos
enquanto produtos da cultura”.

5
Art. 1o Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam,
investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer
outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. Parágrafo único.
Enquadrar-se-ão nesta Lei as instituições e os processos museológicos voltados para o trabalho com o patrimônio
cultural e o território visando ao desenvolvimento cultural e socioeconômico e à participação das comunidades.
150

V V
O discurso apresentado pelo poder público é o de “vontade de memória”, que
possibilita o empoderamento dos agentes que participam das ações de preservação da
memória social, direcionado para os grupos considerados “à margem da sociedade” e os
menos favorecidos residentes em bairros periféricos das grandes metrópoles, buscando
atender o papel dos museus como estimuladores do desenvolvimento local e de transformação
social.
Entender como a memória coletiva se articula nos grupos é importante para se
compreender como o indivíduo constrói sua memória e consequentemente sente-se parte do
grupo a que pertence. No contexto da política de memória os indivíduos devem ser
protagonistas e recontar sua própria história. Neste sentido começam a surgir iniciativas de
grupos em bairros ou associações comunitárias, com ações voltadas para a memória e o
patrimônio de suas comunidades. Isto implica na percepção do patrimônio dessas
comunidades tendo em conta as suas trajetórias de luta, dentro dos diversos grupos que
formam tais comunidades.
A Política Nacional de Museus deve contribui para o “empoderamento” destas
comunidades em relação ao seu “direito de Memória”. Para Chagas:

Ainda que as vontades de memória, de patrimônio e de museu não sejam


exclusividades da contemporaneidade, na atualidade elas ganham uma
dimensão especial, em virtude de seu vínculo com o campo da comunicação
e da política. Memória, patrimônio e museu acionam possibilidades
comunicativas e estéticas, e também possibilidades políticas. De outro modo:
projetos poéticos e políticos distintos e muitas vezes conflitantes são
acionados por diferentes vontades de memória, de patrimônio e de museu.
Por esse caminho, pode-se compreender o quanto há de tensão e de disputa
no exercício do direito à memória, ao patrimônio e ao museu (CHAGAS,
2010, p. 05).

Com base nestes pressupostos o Instituto Brasileiro de Museus lança o Programa


Pontos de Memória, que foi apresentado em 2010, no IV Seminário Internacional de Museus.
A ideia desse programa surgiu como iniciativa do Ministério da Cultura/Minc, a partir da
experiência Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania (Cultura Viva), com o
objetivo de contribuir para que a sociedade conquiste espaços, troque experiências e
desenvolva ações de incentivo à cultura e à cidadania, de forma proativa buscando articular a
parceria entre sociedade civil e poder publico (CHAGAS et al, 2010, p.261).
Em dezembro de 2009, o Programa é lançado em Salvador durante a I Teia da
Memória, na qual são apresentados os 12 pontos de memória pioneiros, escolhidos com base
em dados do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), em

151

V V
locais de alta vulnerabilidade e que já vinham manifestando sua vontade de memória, por
meio de ações como registros, por fotos ou vídeos, exposições sobre história do lugar contada
por seus moradores, entre outras.
O Programa tem como objetivo apoiar a criação de museus em localidades que
possuem comunidades caracterizadas pelo alto índice de violência, além de trabalhar na
reconstrução e proteção da memória social e coletiva a partir de moradores, origens, histórias
e valores dessas comunidades. Este é o caso do Bairro da Terra Firme em Belém, Pará, que
foi incluído no Programa pelo seu histórico de violência, mas também pelas articulações da
comunidade local com o Museu Paraense Emilio Goeldi, por meio de parcerias em oficinas de
memória social, festivais, e exposições desenvolvidas.
Segundo depoimentos de participantes dos pontos de memória de Taquaril, Pavão,
Pavãozinho e Cantagalo, o programa veio contribuir para reafirmar as ações que já estavam
sendo executadas pelos moradores destes bairros. “A comunidade tinha diversas ações de
memória quando chega o ponto de memória acontece uma sistematização das ações dentro
da identidade do programa (representante do Ponto de memória do Taquaril)6”
Na perspectiva do Programa pontos de memória, as comunidades dos bairros
periféricos se empoderariam no sentido de buscarem afirmação de seu capital social e
simbólico (BOURDIEU, 1987), a partir do protagonismo dos sujeitos nas ações voltadas para
a memória social e patrimônio, interessados na construção de uma memória coletiva que
organize um discurso de identidade. Nesse contexto político se destacam as disputas
simbólicas e tensões entre essas redes de memória dos sujeitos e lutas por revisão da memória
que acabam se tornando um recurso em busca de mudanças e melhorias para as comunidades
envolvidas no Programa.

A TERRA FIRME NO CONTEXTO DO PONTO DE MEMÓRIA


O Bairro da Terra Firme faz parte da bacia do rio Tucunduba (figura 1), e teve sua
ocupação a partir da expansão urbana em direção às áreas de baixadas, que se intensificaram
em Belém principalmente a partir da década de 1940. Nas décadas de 1960/70 e 80 começa
um intenso processo de ocupação espontânea da periferia, estimulado por crises do capital,
pelo êxodo rural e pela valorização imobiliária do centro das cidades, ocasionando a expulsão
da população para áreas mais precárias (SANCHES e COUTO, apud ALVES, 2010).

6
Entrevista concedida por Wellington Pedro da Diretoria do Ponto de Memória do Taquaril/Belo Horizonte
(MG) em Dez/2014 durante a VI Teia da Memória realizada em Belém do Pará.
152

V V
Figura 3 - Mapa de Localização do Bairro da Terra Firme
Fonte: LAENA/NAEA/UFPA, 2014

Devido ao processo de ocupação de vários bairros de Belém às proximidades dos rios


e pela distância do núcleo urbano inicial da cidade, essa ocupação se deu com a vinda de
migrantes do interior do estado, de áreas ribeirinhas próximas de Belém e de outros estados
vizinhos, como Maranhão, Ceará e outros (RODRIGUES, 2008; PENTEADO, 1968;
CASTRO, 2006). Talvez por isso, a memória do bairro por seus moradores converge para um
ponto em comum, que é o igarapé do Tucunduba, pois, no início, aproximadamente 90% de
sua área era alagada e o igarapé circulava toda aquela região, que foi aterrada com lixo para
que fossem construídas as moradias hoje existentes, tanto que se pode ver ainda no período de
grandes chuvas o alagamento de muitas vias existentes no bairro.
A Terra Firme ganhou este nome por ser formado por terras firmes e altas, próximas
às áreas alagadas pelo rio Tucunduba, no limite dos bairros de Canudos e Guamá, como
descreve Alves (2010, p. 83). Possui quase 84% de sua área alagada, perdendo apenas para os
bairros do Jurunas e Condor. Essa configuração é expressa na fala de seus moradores:

A rua era feita de estivas depois veio ponte de madeira, depois ponte de
concreto, depois veio um lixão com muita mosca. Agora a Rua Lauro Sodré
onde estou me referindo é aterro com muita lama (Leandro Costa, Inventário
participativo, p.40).

O Bairro da Terra Firme tem aparecido nos noticiários e nas diversas falas dos
habitantes de Belém (evidenciadas em pesquisas acadêmicas) como um lugar violento, com
pobreza, exclusão social, falta de infraestrutura e saneamento básico, resultado da expansão

153

V V
urbana que ocorre nas grandes metrópoles, inclusive com casos de mortes e chacinas
ocorridas no inicio de novembro de 2014.

Uma onda de homicídios provocou pânico na população de Belém. Na noite


desta terça-feira (04), após confirmação da execução do cabo Figueiredo, da
Ronda Ostensiva Tática Metropolitana (Rotam) da Polícia Militar, boatos de
retaliação começaram a invadir as mídias sociais - que contavam ao menos
20 homicídios na região metropolitana. Após a morte do policial militar,
internautas começaram a espalhar conteúdo audiovisual que retrata suposto
enfrentamento entre policiais e bandidos, nos bairros do Guamá, Terra
Firme, Jurunas, Canudos e outros. Ao menos cinco homicídios foram
confirmados até o final da noite de hoje e início da madrugada desta quarta-
feira (05) (Diário on line, 04/11/2014).
Os moradores mais antigos ressaltam que a violência presente hoje no bairro não
existia há uns 30 anos atrás: “Todos se conheciam e tinha um objetivo que era a casa, todos
eram amigos (Dona Zuleica)” 7.
Ao mesmo tempo em que concentra boa parte da população de baixa renda da capital,
o bairro da Terra Firme sofre com a carência de serviços básicos (saneamento, em especial).
Nesse bairro, como os demais de periferia, percebe-se dificuldades e problemas como o
crescimento populacional, a falta de serviços e infraestrutura, violência, falta de emprego, que
podem afetar a sociabilidade entre seus moradores. Raramente este bairro é referido pelos
seus fazeres e saberes culturais, e as suas histórias de conquistas raramente são detalhadas, a
não ser em relação às lutas dos movimentos sociais que ali se estabeleceram, principalmente
nas décadas de 1970 e 1980 (SILVA, FIGUEIREDO, 2014).
O cotidiano dos moradores dos bairros, sobretudo os periféricos, apresenta-se bastante
propício para a construção de laços de amizade e reciprocidade. Almeida (2011, p.339)
observa que são sorrisos, saudações, cumprimentos, que fazem dos bairros verdadeiros palcos
de reconhecimento, de ser conhecido e reconhecido, apreciado e estimado.
O Programa Ponto de Memória, que desde 2010 vem atuando neste bairro e faz parte
da política pública de memória do Ministério da Cultura (MINC), conduzido pelo Instituto
Brasileiro de Museus-IBRAM, propõem valorizar/resgatar as vozes dos sujeitos que não são
ouvidos em sua história social, como os feirantes das diversas categorias e os moradores do
bairro que em sua quase totalidade se caracterizam como de baixa renda e muitos oriundos do
interior do Estado.
A criação de um Ponto de Memória no bairro vem reforçar a luta pela identidade e
auto-reconhecimento destes cidadãos que constroem sua história de luta e conquistas e que

7
Líder comunitária em Roda de memória Museu, Mulheres e cidadania, durante a Primavera de Museus em 21
de Setembro de 2011 realizada na Escola Brigadeiro Fontenelle.
154

V V
guardam memórias das vários momentos vividos. Dessa forma, tem-se a valorização de
práticas comunitárias que buscam o desenvolvimento e a coesão social, em prol de melhorias
das condições de vida e o reconhecimento de sua identidade dos diversos atores participantes
deste processo. A fala da vice-presidente do Conselho do Ponto de Memória da Terra Firme
demonstra o sentimento de pertencimento ao Bairro quando afirma: “Os moradores do Bairro
da Terra Firme tem orgulho de morarem no Bairro e se identificam eu sou da Terra Firme”8.
A Terra Firme foi um dos 12 bairros selecionados pelo Instituto Brasileiro de Museus-
IBRAM para fazer parte do programa piloto dos Pontos de Memória. Entre os critérios de
seleção, estava o grau de vulnerabilidade social do bairro. Esta característica está associada
não apenas ao alto índice de violência do bairro, mas também à pobreza, e às condições
precárias de moradia e de saneamento.
Em outubro de 2009, o Bairro recebeu a visita dos consultores do IBRAM para o
reconhecimento das práticas sociais da comunidade. Houve um encontro na principal praça do
Bairro, onde se apresentaram vários grupos culturais e associações que mostraram para os
consultores o seu vasto capital cultural e o poder de articulação e organização.
Em dezembro de 2009 aconteceu a 1ª Teia da Memória, em Salvador, com o encontro
dos 12 pontos selecionados. Nesse momento foi apresentada a proposta do programa e as
experiências de cada localidade. Em 2010 inicia-se a implementação dos 12 Pontos de
Memória, e na Terra Firme foi realizado um seminário no Museu Emilio Goeldi, localizado
no bairro. Nesse evento foi constituído o conselho gestor do Ponto, composto de 12 membros
que foram indicados durante a plenária. Também foram apresentados vários grupos culturais.
Estavam presentes para o lançamento do ponto aproximadamente 100 pessoas, entre
moradores, lideranças comunitárias, convidados e os representantes do IBRAM.
Após o lançamento do plano houve um período de encontros dos conselheiros para a
elaboração de um plano de ação conforme as orientações do IBRAM. Foram aprovados
projetos com recursos que resultaram em um jornal, um vídeo e no inventário participativo do
Bairro. Ao longo de dois anos foram varias oficinas, reuniões, encontros com segmentos
específicos como professores, donas de casas, e estudantes. A culminância do Programa em
sua primeira etapa resultou em uma cartilha e na exposição Na Terra Firme tem de tudo um
pouco, inaugurada em 2012. Essa exposição é itinerante e foi elaborada em parceria com o

8
Eliete Santana conhecida como NECI (Vice Presidente do Conselho Gestor).

155

V V
Museu Emilio Goeldi9, a partir de oficinas realizadas com moradores do Bairro (SILVA &
QUADROS, 2012). O recurso aplicado nesta exposição foi do próprio programa que, nesse
primeiro momento subsidiou as ações realizadas pelos 12 pontos pilotos.
O Ponto de Memória da Terra Firme, único da região norte do país, foi formalizado
para a comunidade do Bairro em maio de 2010, em um seminário durante a Semana Nacional
de Museus. Nesse encontro que aconteceu no Museu Goeldi, na Av. Perimetral, no próprio
bairro, reuniram-se representantes de vários segmentos (educação, segurança, comércio,
associação de moradores e representantes de várias instituições de pesquisa, museus, turismo).
Durante o seminário foi deliberada a constituição do conselho gestor do Ponto, constituído
por 12 membros moradores e representantes de instituições públicas presentes no Bairro.
Em 2011 o IBRAM, através do Departamento de Difusão Fomento e Economia dos
Museus – DDFEM, lançou o 1º edital dos pontos de Memória na modalidade concurso, que
consistia em reconhecer e premiar quarenta e oito iniciativas de práticas museais e processos
dedicados à memória social (IBRAM). Além disso, o edital objetivava também, reconhecer e
estimular estas iniciativas, a fim de fomentar sua continuidade e sustentabilidade, na
perspectiva da museologia social, no âmbito do Programa Pontos de Memória, do Instituto
Brasileiro de Museus.
Na fala dos representantes dos pontos de memória é recorrente a referência aos
recursos disponibilizados para a estruturação dos pontos pioneiros e a necessidade dos
“produtos” que retratam as ações de museologia realizadas pelos comunitários. No entanto
estes recursos não foram suficiente para a conclusão de todos os objetivos propostos, fazendo
com que estes pontos de memória fossem buscar parcerias com outras instituições ou
participação em editais para cumprir os planos propostos pelos grupos.
Nesse sentido, se forma o cenário das políticas pública de cultura e, por conseguinte,
da memória e do patrimônio, nas quais os sujeitos sociais tornariam-se protagonistas no
processo de construção e implementação destas políticas que se voltam para grupos sociais, e
que não tiveram suas histórias expostas ou narradas oficialmente (MOURA, 2012, p.88). O
direito à memória ou a mencionada “vontade política de memória”, a que se refere a política
de museus, focaliza no vínculo aos direitos culturais e humanos, concernente ao direito à
participação do indivíduos na vida cultural.

9
O Museu Paraense Emílio Goeldi, instituição de pesquisa mais antiga da Amazônia, há 30 anos vem
desenvolvendo atividades com as comunidades residentes no bairro da Terra Firme, com o projeto Museu Leva
Educação à Periferia (QUADROS, 1996).
156

V V
A Política Nacional de Museus vem contribuir para o enquadramento desses grupos no
processo, seja pela participação nos grupos de articulação, como agentes da memória, seja
pela sua atuação como expectador ou observador, mas de alguma forma, esses sujeitos se
inserem na arena pública (CEFAI; VEIGA & MOTA, 2011, p.32) onde a memória social esta
em constante disputa de poder.

AS EXPERIÊNCIAS DE AFIRMAÇÃO DA MEMÓRIA NOS MUSEUS


COMUNITÁRIOS E PONTOS DE MEMÓRIA: LUGARES, SABERES E AS
TÁTICAS
Os pontos de memória, que hoje chegam a centenas no Brasil, apresentam diversas
conformações a partir do lançamento do edital de 2011, desde associações de moradores até
sociedades culturais. Os produtos e projetos resultantes das ações financiadas pelo IBRAM
em sua maioria são exposições que contam as histórias destes grupos. O comprometimento
dos sujeitos nessas ações resulta não de uma conscientização sobre a importância de sua
participação, mas de um reconhecimento das ações algumas vezes apenas como espectador e
não como protagonista.
O lugar de memória, no caso dos 12 pontos iniciais, é o bairro, com seus espaços de
sociabilidades tecidos por complexidades e singularidades, que se expressam na memória das
pessoas que deles se apropriam da ressignificação do vivido. O cotidiano dos moradores dos
bairros, sobretudo os periféricos, se apresenta bastante propício para a construção de laços de
amizade e reciprocidade em espaços públicos urbanos. No contexto dos pontos de memória os
bairros começam a existir segundo novas modalidades oriundas de seus enquadramentos
narrativos (CEFAI, 2011, p.79).
Os pontos de memória articulam, inventam, reinventam ações que materializam as
memórias dos lugares por meio das articulações que o conselho gestor do ponto vai conduzir.
Durante esses contatos ocorrem os engajamentos imediatos, através da manifestação de
simpatia de alguns moradores, e da demonstração de desdém pela causa por outros
moradores.
A partir de conversas com alguns representantes de pontos de memória presentes na
IV Teia da Memória e de pesquisas realizadas nos sites de alguns dos pontos pioneiros pode-
se dizer que, dos três pontos entrevistados: Taquaril em Belo Horizonte; Pavão, Pavãozinho e
Cantagalo, RJ (sendo esses pioneiros do IBRAM) e o Ponto de Memória do Ponteú-MG,
todos já contavam com uma associação que articulava as ações de memória no local. No caso
do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, já existia inclusive um museu organizado pela

157

V V
comunidade, o Museu de Favela-MUF. Nesse caso já existia um grupo consolidado que
conduzia o Museu, e que depois agregou outros membros quando se tornou ponto de
memória.
“Nos já realizávamos ações com a comunidade, nós fomos referência para o
IBRAM para a criação dos pontos por isso fomos considerados como ponto
de memória modelo (Representante do Ponto de Memória Pavão,
Pavãozinho e Cantagalo, 2014)10”.

Analisando as entrevistas e os registros dos sites percebe-se que a maior parte desses
pontos teve uma ação mais intensa em termos de atividades nos bairros nos dois primeiros
anos da implementação do programa, período em que foi destinado recurso para a execução
do plano de ação, que tinha como objetivo um inventário participativo, algumas oficinas de
capacitação e o produto final que seria a criação de um museu comunitário ou uma exposição
sobre o bairro. Estas ações ocorrem mediante atuação destes grupos que são compostos de
moradores e de indivíduos indicados ou eleitos para atuarem como representantes da
comunidade. Alguns conselhos têm o caráter consultivo e deliberativo e se reúnem apenas
eventualmente, neste caso existe a diretoria executiva responsável por conduzir a rotina do
ponto. Outros pontos não tem conselhos e sim um consultor que representa o ponto no âmbito
nacional, como é o caso de Pavão/Pavãozinho e Cantagalo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Política Nacional de Museus foi resultado de uma ação democrática participativa, e
a sua implementação segue os mesmos princípios, pois por meio de fórum de discussões,
seminários, programas de capacitação, criação de cursos de museologia por todo o Brasil e
surgimento de museus das mais variadas formas, incentivou-se uma ampla participação da
sociedade civil. Um exemplo disso são os Fórum Nacionais de Museus, realizados a cada 2
anos em diferentes cidades do Brasil, abrangendo diversas temáticas relacionadas aos museus
e ao patrimônio.
A participação também é garantida por meio da Teia da Memória, evento que
congrega os pontos de memória com objetivo de promover a troca de experiência entre as
iniciativas de museologia comunitária e fortalecer as ações desenvolvidas pelas diversas
organizações e associações locais com a finalidade de valorização da memória social e do
patrimônio local. Além destes fóruns existem também outros eventos que possibilitam as mais

10
Entrevista concedida por Antônia Duarte do Ponto de Memória do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo (RJ) em
Dez/2014 durante a VI Teia da memória realizada em Belém do Pará.

158

V V
diversas formas de participação social na área da museologia em todo país durante todo ano,
esse é o caso da Semana de Museus realizada em maio, e a Primavera dos Museus, em
setembro. Este é o atual cenário da políticas públicas de museus no Brasil, as várias esferas
onde se promovem a democratização dos Museus.
O direito de processar o passado no presente é que faz compreender a vida em
sociedade, e a necessidade de referenciais coletivos para a construção identitária dos cidadãos.
Esse direito alude também ao dever do Estado, em cooperação, de executar políticas que
fomentem processos de construção de memórias, garantindo o respeito, a valorização e o
convívio entre diferentes. Compreende não a memória em uma idealização de componente
identitário remoto e nostálgico, mas sim referindo seu valor simbólico e como meio para
conquistas políticas e efetivação de outros direitos.

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160

V V
A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
A CULTURA E A EDUCAÇÃO NO ESTADO NOVO
Ana Lorym Soares 1
Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos 2

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo refletir acerca da instituição de políticas públicas
para as áreas da cultura e da educação no Brasil, durante a Era Vargas, a partir da análise do
plano de elaboração da Enciclopédia Brasileira, de 1939-1940. A Enciclopédia foi projetada
pelo intelectual modernista Mário de Andrade, no âmbito do Instituto Nacional do Livro
(INL) e encomendada pelo ministro Gustavo Capanema. A forma como o projeto foi
conduzido e o desfecho desta ação dentro da burocracia estatal põe de manifesto vários
elementos característicos do campo da cultura e da educação no período em foco.

PALAVRAS-CHAVE: Enciclopédia Brasileira, Políticas Culturais, Identidade Nacional,


Instituto Nacional do Livro, Estado Novo.

INTRODUÇÃO
Ao compreendermos a noção de política cultural, em sentido jurídico, como um
conjunto de iniciativas tomadas pelo Estado – ou entidades detentoras de estatuto jurídico
aproximado – visando à promoção, produção, distribuição e ao usufruto da cultura; bem como
ao ordenamento do aparelho burocrático por ela responsável (COELHO, 1997, p. 292),
seremos levados a considerar, no caso do Brasil, as décadas de 1930 e 1940, como
paradigmáticas para esse tipo de iniciativa.
Por essa via, teremos o Estado Novo (1937-1945) como marco da institucionalização de
políticas públicas culturais, mesmo que se reconheça que a relação entre o Estado e a cultura
tenha uma longa história e esteja presente, no Brasil, desde as ações de D. João VI, na
primeira metade do século XIX (CALABRE, 2005). Mas foi durante a Era Vargas que o
Estado, ao cumprir seu papel de promotor da produção e mediação cultural, possibilitou a
criação de várias instituições responsáveis por gerir ações no campo da cultura, em seu

sentido lato. Nesse influxo foi criado em 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), voltado para as questões de preservação do patrimônio cultural material

1
Graduada em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC; Mestre em História pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio;
Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História Social, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – PPGHIS/UFRJ. E-mail: analory@mgmail.com
2
Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC; Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em História das Ciências e da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz/RJ; Professor Efetivo do Curso de
História da Universidade Estadual de Goiás - UEG. E-mail: eduardo.vasconcelos@ueg.br
161

V V
do país e, um ano mais tarde, o primeiro Conselho Nacional de Cultura, que ajudaria a definir
o conceito de cultura com o qual se operaria e as linhas de ações pelas quais se pautariam a
atuação governamental para o setor (CALABRE, 2007, p. 02).
Com o intuito de gerir a interseção entre cultura e educação o Estado criou, também,
em fins dos anos 30, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e o Instituto Cairú –
posteriormente vertido em Instituto Nacional do Livro (INL) –, no intuito de promover o
acesso aos produtos culturais da indústria livreira e cinematográfica mediados pela chancela
do Estado. Além disso, intencionava-se utilizar esses bens culturais como meios de
propagação ideológica e como instrumentos de criação e disseminação de um discurso de
unidade e homogeneidade cultural que tinha no Estado-nação varguista a sua justificativa e
legitimação.
É com o olhar voltado para essa intenção que neste texto examinamos como o projeto
de elaboração da Enciclopédia Brasileira encarnava, ao mesmo tempo, o propósito estatal de
dirigismo e ideologização cultural e um exercício de democratização do acesso à cultura e à
educação, conforme compreendia o autor do projeto da Enciclopédia, Mário de Andrade.

O INSTITUTO CAIRÚ, O INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO E A


ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA
Ao dar início ao seu governo constitucional, em 1934, o presidente Getúlio Vargas
passou a contar, ao que concerne aos assuntos culturais, com o auxílio de Gustavo Capanema
na pasta do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP). O político mineiro, contudo,
jamais renunciaria explicitamente a sua pretensão intelectual mantida “pela preocupação com
questões relativas à educação e cultura, pela amizade pessoal que cultivava com escritores,
pintores e artistas em geral, e pelo hábito pessoal de estudo e leitura”, assim, “ele procurava
ser, sempre, um intelectual no poder” (SCHWARTZMAN, BOMENY e COSTA, 1984, p.
24). Razão pela qual buscou manter em torno de seu ministério grande parte da
intelectualidade da época, reunindo tendências políticas e estéticas as mais variadas.
Guiado pela preocupação com a cultura e a educação, bem como pelas formas de sua
transmissão, o ministro nutria desde o início de sua gestão, em 1934, a aspiração de
concretizar o projeto de elaboração de uma enciclopédia brasileira que atendesse, na sua
concepção, às peculiaridades da cultura nacional (SILVA, 1992, p. 43). Desejo que pode ser

162

V V
lido como algo plenamente de acordo com a questão da formação da identidade nacional que
estruturava, em larga medida, o debate ideológico do país naquele momento.
Nesse sentido, em fevereiro de 1936, Capanema convidou Alceu Amoroso Lima,
Rodolfo Garcia e Luís Camilo de Oliveira Netto3 para integrar uma comissão que ficaria
responsável pela preparação de um plano para a já intitulada Enciclopédia Brasileira. Depois
de reunidos, os intelectuais passaram a analisar vários empreendimentos semelhantes – com
destaque para a Enciclopédia Britânica e a Enciclopédia Universal –, o que os levou a
concluir pela impossibilidade de reproduzir a empresa ipsis litteris, visto que, ao projeto
brasileiro faltavam recursos materiais e culturais. O parecer da comissão foi favorável à
preparação de um plano menos grandioso, mas factível (SILVA, 1992, p. 43).
Para levar a cabo o planejamento da enciclopédia nacional foi criado, em 1937, através
de um artigo específico na lei que reorganizava o ministério, o Instituto Cairú.4 Destarte, o
instituto teria por finalidade exclusiva “organizar e publicar a Encyclopedia Brasileira”. 5
Conforme o plano que deu origem à agremiação, ela seria organizada através de uma
Diretoria Técnico-Administrativa e um Conselho Superior, formado pelo diretor do instituto,
pelo ministro que o presidiria e por mais três intelectuais brasileiros considerados de notável
saber e escolhidos pelo Presidente da República (SILVA, 1992, p. 43-44).
Sem concretizar o seu propósito o Instituto Cairú deixou de existir em dezembro do
mesmo ano, quando foi substituído pelo Instituto Nacional do Livro (INL), tendo suas
atribuições consideravelmente ampliadas, mas mantendo o intuito inicial de construir e dar a
ler aquela que seria a primeira enciclopédia nacional do Brasil, conforme queriam seus
cultores.

3
Alceu Amoroso Lima (Rio de Janeiro 1893/Petrópolis-1983), também conhecido pelo pseudônimo Tristão de
Ataíde, fez parte do movimento modernista de 1922, sendo considerado por muitos analistas como um dos
principais críticos literários desse movimento, ao lado de Mário de Andrade. Além de ter sido membro da
Academia Brasileira de Letras, tornou-se um dos grandes líderes da renovação católica brasileira, nos anos 20 e
30, findando em 1932 o Instituto Católico de Estudos; Rodolfo Augusto de Amorim Garcia (Ceará Mirim- RN
era um intelectual potiguar que se radicara no Rio de Janeiro no início do século XX, onde desenvolveu estudos
e publicou dicionários, glossários e bibliografias nas áreas de linguística, antropologia e geografia. Foi membro
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras, além de diretor do Museu
Histórico Nacional e da Biblioteca Nacional; já Luiz Camillo de Oliveira Netto (Itabira-MG 1904/Rio de Janeiro
- 1953) atuava nas áreas de letras, história e política e esteve à frente da Casa de Rui Barbosa, entre 1934 e 1938,
onde organizou a biblioteca do patrono da instituição. Deixou a direção da Casa por expressar seu
descontentamento com as ações políticas de Getúlio Vargas, o que suscitou divergências com a autoridade
superior e com o amigo Gustavo Capanema. Depois disso, por intermédio de Rodolfo Garcia, passou a trabalhar
na Biblioteca do Itamaraty, até o ano de sua morte.
4
O Instituto Cairú foi criado pelo Art. 44 da Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, que deu nova organização ao
MESP, que doravante seria denominado Ministério da Educação e Saúde (MES).
5
Cf. Art. 44 da Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. In: Diário Oficial da União (DOU) – Seção 1, 15/01/1937,
p. 1210.
163

V V
Ainda em 1937 o ministro Gustavo Capanema solicitou a criação do INL ao presidente
Vargas, justificando que, além de assumir as funções do Instituto Caiurú, o INL construiria
uma ponte com o recém-elaborado Plano Nacional de Educação (PNE). O PNE de 1937
previa seu alcance para atividades tidas como extraescolares dentre elas: a organização e
manutenção de bibliotecas públicas e a edição e publicação de livros, revistas e jornais de
interesse educativo – atividades que de doravante poderiam ser realizadas pelo INL (SILVA,
1992, p. 43-44). O resultado do funcionamento dessa estrutura ensejaria um impulso
importante na formação educacional e cultural dos brasileiros, especialmente por garantir ao
Estado, o controle sobre o que se produzia e difundia nessas áreas.
O Presidente da República e chefe do Estado Novo respondeu ao apelo do ministro com
um decreto-lei que garantia a implementação do INL e definia as linhas de sua atuação e
competência, da seguinte forma:

a) organizar e publicar a Enciclopédia Brasileira e o Dicionário da Língua


Nacional, revendo-lhes as sucessivas edições;
b) editar toda sorte de obras raras ou preciosas, que sejam de grande interesse
para a cultura nacional;
c) promover as medidas necessárias para aumentar, melhorar e baratear a edição
de livros no país bem como para facilitar a importação de livros estrangeiros;
d) incentivar a organização e auxiliar a manutenção de bibliotecas públicas em
todo o território nacional.6

Para por em funcionamento esses objetivos o INL seria estruturado a partir de três
Seções Técnicas e um Conselho de Orientação. Das seções, a primeira se encarregaria do
objetivo relacionado à Enciclopédia e ao Dicionário da Língua Nacional; a segunda seção
assumia as funções inscritas nos itens “b” e “c”, relativas à edição e distribuição de livros; ao
passo que a terceira seção ficaria incumbida de cuidar da rubrica “biblioteca”. Já ao Conselho
de Orientação, que parece ter sido criado em substituição ao antigo Conselho Superior do
Instituto Cairú, caberia a criação do plano para a Enciclopédia e o Dicionário, assim como
fornecer pareceres necessários ao desenvolvimento das atividades do INL.7
A direção do instituto coube ao escritor gaúcho Augusto Meyer que, em resposta ao
convite de Gustavo Capanema, tomou posse no novo cargo em fevereiro de 1938. Meyer, no

6
Cf.: Decreto-lei nº 93, de 21 de dezembro de 1937. In: Diário Oficial da União (DOU) – Seção 1, de 27 de
dezembro de 1937, p. 255-286.
7
Cf.: Decreto-lei nº 93, de 21 de dezembro de 1937. In: Diário Oficial da União (DOU) – Seção 1, de 27 de
dezembro de 1937, p. 255-286.
164

V V
Rio Grande do Sul, atuou como diretor da Biblioteca Pública do Estado por seis anos e
enquanto intelectual, pertencia à vertente gaúcha do modernismo, e imprimia nos textos os
contornos da sua terra natal. Caberia a ele, agora, à frente do INL conduzir os trabalhos do
instituto sem perder de vista a missão nacionalista que antecedera e possibilitara a sua criação.
Para chefiar a seção responsável pela Enciclopédia e Dicionário, o ministro Capanema
escolhera Mário de Andrade, que recusou o convite justificando que o diretor do INL já havia
se comprometido com o escritor cearense Américo Facó8 para ocupar tal função (SILVA,
1992, p. 54). Diante da recusa do escritor paulista, Capanema decidiu enquadrá-lo no projeto
como membro do conselho técnico, tendo sobre si a responsabilidade de elaborar o plano para
a Enciclopédia Brasileira e o Dicionário da Língua Nacional.

A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA: UM PROJETO DE INTERVENÇÃO NA


CULTURA E NA EDUCAÇÃO
Durante o Estado Novo buscou-se construir uma unidade artificialmente orgânica para o
Brasil que serviria de base para a formação de uma identidade cultural partilhada por todo o
território nacional. Nesse momento sui generis na história do país a cooperação de intelectuais
com o regime foi intensa e atendia aos anseios de renovação nacional guiada pelo ideal de
brasilidade. Assim, lograram os intelectuais modernistas, em suas mais variadas vertentes,
serem considerados aptos pelo Estado para tornarem digna, em seu nome, a produção do
passado e da cultura que seria oferecida aos brasileiros e protegida para a posteridade
(CAVALCANTI, 2000, p. 12). Porém, entre os posicionamentos intelectuais desses grupos,
os que mais agradavam ao regime eram os que poderiam ser veiculadas como exaltação da
pátria e das glórias nacionais, visão ufanista da cultura que o governo pretendia utilizar para
elaborar uma imagem de Brasil grandioso.
Em consonância com seu projeto patriótico, Vargas viu na elaboração da Enciclopédia
Brasileia uma forma de evidenciar, segundo Hallewell, “...a necessária e paternal
preocupação com a cultura de seu país. Inspirado na magnífica enciclopédia italiana Treccani,
então recentemente completada no governo de Mussolini ...” (HALLEWELL, 1985, 313).
Após o empreendimento cultural italiano ter sido importado por Portugal, sob os auspícios do
ditador Salazar, o presidente brasileiro alimentou o desejo de concretizar projetos semelhantes

8
Américo de Queiroz Facó (Beberibe-CE -1885/ Rio de Janeiro – 1953), desde 1911 esteve inserido nos
principais círculos literários cariocas e dentre as suas atividades profissionais trabalhou no Instituto Nacional do
Livro e no Senado Federal, além de ter sido diretor da parte literária da Revista Fon-Fon.
165

V V
para o país, fato que atesta a inspiração fascista que cimentava o plano de renovação da
cultura e da educação no período governado por Vargas.
Quando Mário de Andrade iniciou a sua colaboração com o INL em 1939, deixou
patente o sentido que o projeto da Enciclopédia representava para o governo, constituindo-se,
em algo que, mais do que uma simples ideia, era visto como “... um verdadeiro ideal, pelo alto
cometimento que representa para a cultura do país” (ANDRADE, 1940, p. 31). O autor de
Macunaíma ratificou o valor do empreendimento ao assegurar que:

As encyclopedias, em qualquer terra e tempo, são fecundos instrumentos de cultura.


Mas à medida que o conhecimento humano se enriquece, obrigando a
especializações cada vez mais limitadas, o valor de cultura das encyclopedias ainda
mais se eleva. Para o Brasil a necessidade de uma encyclopedia se torna cada vez
mais premente, tanto mais que dentre das grandes linguas vivas, talvez seja o
vernaculo a unica ainda não dotada de uma encyclopedia excelente (ANDRADE,
1940, p. 31).

Envolvido pelo ethos do enciclopedismo, que reinou na Europa nos séculos XVII e
XVIII e se manteve mais ou menos regular na primeira metade do século XIX (OLIVERO,
1999), Mário de Andrade elaborou um plano para a Enciclopédia Brasileira que não só
recenseasse o saber sistematizado no país, mas que o fizesse de maneira objetiva, democrática
e eminentemente de acordo com a realidade social e cultural autóctone. Orientado por um
espírito prático, o escritor descartou de início a elaboração em paralelo do Dicionário, visto
que a Enciclopédia já representava um enorme esforço e investimento por parte do Estado e
dos intelectuais responsáveis por torná-la objeto concreto.
A metodologia de elaboração da Enciclopédia sugerida por Andrade também
apresentava inspiração pragmática: o projeto deveria, além de objetivo, ser elástico para
assegurar a autonomia dos que fossem concretizá-la, mas também, para dar conta da realidade
cultural e educacional brasileira que mantinha uma irregularidade abismal. Ela teria ainda, a
seu favor, uma dupla importância econômica: em âmbito privado e na economia do Poder
Público. Primeiro porque, uma enciclopédia valeria por uma biblioteca inteira evitando que as
famílias despendessem mais recursos financeiros para a aquisição de obras sobre assuntos
variados. Em segundo lugar, porque o Estado teria seu investimento financeiro compensado
pelo aprimoramento cultural do povo, diminuindo, portanto, a necessidade de tantos
investimentos para o mesmo fim (ANDRADE, 1940, p. 31).

166

V V
O escritor modernista orientou seu projeto a partir de duas questões: a quem deveria
servir a Enciclopédia e qual seria o seu caráter nacional (ANDRADE, 1940, p. 31). Sobre a
primeira questão registrou a seguinte opinião:

Somos um país de muito pequena elite cultural, larga massa camponesa analphabeta
e populações urbanas irregularíssimas em sua cultura. A população dos
analphabetizados tende a crescer, sobretudo nas cidades, e faz-se grande urgência
servir-lhe às necessidades geraes e technicas de conhecimento intelectual. E é
incontestável que a produção literária, tanto nacional como portugueza, de livros e
manuaes technicos de artes e officios, é quasinulla, principalmente como valor, de
formula que as classes dos artifices e operarios em geral não encontram onde
alimentar e desenvolver intellectualmente o conhecimento dos seus oficios, e sequer
a sua cultura geral (ANDRADE, 1940, p. 31).

Após analisar o contexto nacional, chegou à conclusão de que para cumprir a sua
vocação de disseminação do conhecimento sistematizado sobre a realidade cultural do país, a
Enciclopédia Brasileira deveria ser posta à disposição do consumidor a um preço baixo e
servir de veículo de saber útil para pessoas de variados níveis educacionais e classes sociais,
de modo que, todos pudessem encontrar comodamente, no conjunto de verbetes nela
elencados, uma fonte de instrução e de formação cultural eficiente. Sobretudo porque havia no
Brasil uma enorme deficiência de acesso a livros e manuais que sistematizassem esse saber
considerado útil.
Mário de Andrade colocou ainda que, para ter seu caráter nacional contemplado, a
Enciclopédia deveria ao mesmo tempo, trazer o Brasil nas suas páginas e prestar serviço de
cultura geral à gente brasileira em sua tão variada generalidade. Seria, portanto, a
“multivalência” o conceito fundante do projeto de intervenção cultural idealizado dentro do
ministério da Educação e Saúde e dado a ler pelo investimento intelectual de Mário de
Andrade. Tal qual a cultura e a sociedade do país, a Enciclopédia Brasileira deveria conciliar
os diferentes níveis culturais do povo, mantendo-se conceitualmente mista em relação “à
classe de cultura a que se dirige” (ANDRADE, 1940, p. 32), somente assim, “abrangerá todas
as camadas da cultura e de leitores possíveis, dando a cada assunto ou verbete um peso
cultural diverso, de acôrdo com a sua própria área intellectual de vida” (ANDRADE, 1040, p.
32).
Dentro desse quadro metodológico e conceitual os conteúdos privilegiados seriam
aqueles que mais dissessem a respeito do Brasil. O folclore e arte popular seriam, por
exemplo, um tipo de conteúdo que deveria gozar de maior atenção na coletânea, por
expressarem com pertinência o caráter nacional do país, mas por ser, também, objeto de
167

V V
desconhecimento generalizado entre a população. Os heróis da história brasileira teriam mais
importância do que aqueles que compunham o panteão da “história universal”. Assim, um
Duque de Caxias teria mais relevância na Enciclopédia do que um Pedro, o Grande
(ANDRADE, 1940, p. 32). Vemos, portanto, que na economia interna da Enciclopédia
Brasileira os temas nacionais ganhariam relevo em relação aos temas ditos universais, e tanto
mais se conseguisse sucesso no sentido nacional, mais valor universal teria a Enciclopédia do
Brasil. Para o escritor paulista, seria justamente o foco na matéria autóctone o seu diferencial
entre as várias enciclopédias europeias que circulavam naquele momento.
Engavetado ainda no governo de Getúlio Vargas, o plano elaborado por Mário de
Andrade para a Enciclopédia Brasileira jamais fora concretizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Expostas as linhas gerais do processo de elaboração do plano para a Enciclopédia
Brasileira, culminando com o naufrágio do projeto, podemos esboçar algumas conclusões a
respeito desse caso específico. O que significava, naquele momento, em termos de política
pública estatal, a criação de uma enciclopédia nacionalista como forma de solução dos
problemas presentes no país nos setores cultural e educacional? E o que nos demonstra o
fracasso na implementação do plano elaborado por Mário de Andrade?
Primeiramente deve-se considerar que projetos de construção nacional em períodos
históricos caracterizados por governos autoritários – como era o Estado Novo – costumam
tratar a educação e a cultura como instrumentos por excelência de fabricação de tipos ideais
de homens capazes de assegurarem a construção e a continuidade de tipos também ideias de
nações. Assim, a ação educativa e o uso utilitário da cultura podem ser vistos como um
recurso de poder e, por isso, ardorosamente disputado (SCHWARTZMAN, BOMENY e
COSTA, 1984, p. 176), pois através dele se poderia lograr êxito na propaganda ideológica do
regime. A partir dos interesses nacionalistas e ideologizantes de Vargas, operou-se uma
aproximação do regime à esfera intelectual, de modo que o Estado autoritário pudesse se
estruturar de forma significativa em relação aos setores cultural e educacional. A relação com
Mário de Andrade e a Enciclopédia Brasileira sintetizam essa aproximação. E mais do que
isso, põe de manifesto a visão instrumentalizadora que se tinha em relação à cultura e à
educação e as ambiguidades advindas da colaboração de artistas e pensadores com a esfera do
poder político.

168

V V
Como conselheiro do INL Mário Andrade esboçou um plano que concretizaria parte
de suas ideias a respeito do uso do saber como ferramenta para a democratização do Brasil. O
sentido nacional e democrático do seu plano para a Enciclopédia, recuperava, em muitos
aspectos, o anteprojeto que realizara em 1936 para o Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN) (CAVALCANTI, 2000, p. 37-52) e o conjunto de ações que
implementara na gestão do Departamento de Cultura de São Paulo, a partir de 1937
(AMARAL, 1999, p. 293-417). Contudo, mesmo mantendo como norte a ideia de que a
cultura como base para a formação da nação, sua leitura multivalente e democrática não
coincidia na totalidade com o programa autoritário do governo, que preferia, por outro lado,
operar com uma noção menos elástica e menos democrática de cultura.
Por outro lado, a não concretização do plano andradiano da Enciclopédia pode ser
parcialmente compreendida como resultado das disputas internas aos órgãos administrativos
da cultura e da educação ligados ao Ministério. Pois tendo encontrado muitos limites ao seu
trabalho, desde cedo, Augusto Meyer – hierarquicamente superior a Mário de Andrade –
sentia-se ameaçado com a sua provável substituição na direção do INL pelo escritor
paulistano. Deste modo, o não desenvolvimento do projeto de Mário de Andrade, pode estar
também relacionado com o esforço particular do diretor do INL para esse fim.
O caso específico da Enciclopédia Brasileira é extremamente relevante para se pensar
acerca da noção de política cultural e educacional na Era Vargas. Temos por um lado o
exercício de democratização do acesso à cultura e à educação de Mário de Andrade, que
pretendia levar ao conhecimento dos letrados os conteúdos culturais de origem popular e de
cor local, ao mesmo tempo em que possibilitaria às classes populares o acesso a um conjunto
de saberes criado e/ou organizado por intelectuais. De outro lado, temos a concepção de que
caberia a esses pensadores atuar na criação e na mediação da cultura, enquanto caberia ao
Estado proporcionar os meios adequados para a criação e a veiculação dessas ações. Por
último, o caso da Enciclopédia Brasileira expõe a fragilidade das políticas públicas para as
áreas da cultura e da educação, visto que o seu planejamento e desenvolvimento flutuavam ao
humor da ideologia e do dirigismo estatal, limitando, em larga medida, a implementação de
políticas regulares e efetivamente democráticas.

169

V V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Adriana Facina Gurgel do. Uma enciclopédia à brasileira: o projeto ilustrado de
Mário de Andrade. In: Revista Estudos Históricos, 1999, p. 293-417.
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BRAGANÇA, Aníbal. As políticas públicas para o livro e a leitura no Brasil: o Instituto
Nacional do Livro (1937-1967). In: Matrizes, ano 02, n. 02, 2009, p. 221-246.
CALABRE, Lia (org.). Políticas culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro: Edições
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___. Políticas e Conselhos: um estudo do conselho federal de cultura. In: CALABRE, Lia
(Org.). Políticas culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui
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CAVALCANTI, Lauro. Modernistas na Repartição. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ: MinC-
IPHAN, 2000.
COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. Cultura e imaginário. São Paulo:
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HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil (sua história). São Paulo: T. A. Queiroz Editor;
EDUSP, 1985.
OLIVERO, Isabelle. L’invention de lacollection: de la difusion de lalittérature et dessavoirs à
laformation Du citoyen au XIXesiècle. Paris: IMEC, 1999.
SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena; COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos
Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Edusp, 1984.
SILVA, Suely Braga. O Instituto Nacional do Livro e a institucionalização de organismos
culturais no Estado Novo (1937-1945): planos, ideias e realizações. Dissertação de mestrado
em Ciências da Informação no IBICT/UFRJ. Rio de Janeiro: 1992.

170

V V
A MULTIDÃO EM REVOLTA E SEUS PERSONAGENS
NA CENA POLÍTICA
Ana Lucia Ribeiro Pardo1

RESUMO: Este ensaio trata dos protestos ocorridos no Brasil desde 2013, assim como a
magnitude e proporção que tomaram nas diversas regiões e cidades do país. Buscamos
analisar, a partir das entrevistas nas ruas, documentos e interpretações da imprensa, quais são
os marcos de identificação e estratégias que esses jovens usam quando se manifestam? Nessa
polissemia de significados e subjetivações, há um conjunto de símbolos, máscaras,
personagens, corpos que ocuparam a arena pública. Seguir essas trilhas da potência na
multidão e seus múltiplos atores implica assumir seus riscos e incertezas...

PALAVRAS-CHAVE: Multidão, juventude, protestos, subjetivação, potência

Inquietada com as recentes manifestações que estão movimentando nosso país, desde
junho de 2013, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, decidi ir pras ruas e me embrenhar na
multidão, resultando em extenso trabalho aqui resumido neste artigo. Esta experiência me
revelou que estou tão diretamente envolvida ao participar dessas movimentações, quanto
instigada a entender o fenômeno e considerar diferentes olhares para interpretá-lo.
Antes de tudo, minha principal motivação é o devir revolucionário, mesmo sabendo que
as revoluções não têm um curso determinado, inventando a cada momento seu itinerário. Ao
mesmo tempo, me parece importante ampliar o debate neste seminário, até mesmo para se
repensar as políticas culturais dentro deste cenário social, político e cultural, ultrapassando a
complexidade e as limitações que estão implicadas em toda e qualquer tentativa de se fazer
uma leitura de algo tão recente, que ainda está em curso e se desenhando a cada dia.
No entanto, há uma potência da qual é impossível desviar o olhar, que me instiga a fazer
parte e me posicionar. Estamos sendo provocados, diariamente, por uma infinidade de vozes,
de imagens e narrativas ocupando o espaço público, principalmente de jovens, que estão
expressando novos comportamentos da sociedade e seus desejos de futuro. Isso à revelia das
tradicionais formas de se fazer política, cobertura jornalística e, quem sabe também escrita
acadêmica. Nesse universo, busco analisar quais são os marcos de identificação que esses
jovens usam quando se manifestam?

1
Doutoranda e Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana na UERJ.
anapardo.teatralidade@gmail.com
171

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A partir daí, poder-se-ia perguntar quais são os princípios/horizontes utópicos da
juventude brasileira? Como se mobilizam? O que estão tentando dizer? Até onde esses
mecanismos, que saem do controle e estão numa fronteira entre insurgências e atos de
vandalismos, são capturadas? Mais do que isso, interessa focar nessa polissemia de
significados, pois há uma estética que atravessa esses manifestos, um conjunto de símbolos,
gestos, comportamentos, máscaras, personagens, corpos que ocupam os espaços da cidade,
que me impulsionam não somente a seguir essas trilhas como observadora, como também, me
deixar impregnar deste devir revolucionário de modo a inventar e a dar espaço para que o
corpo encontre uma nova forma de registrá-las que não seja apenas pela via escrita.
Nesse contexto, não me vejo como observadora, mas como participante do processo, de
certa forma como a antropóloga Mônica Wilson que negava esse estatuto de observadora, ao
afirmar “o intérprete é o que ouve, mas também, o que fala,” por entender que ser intérprete é
uma opção política. É um sujeito político coletivo que interpreta, mas também propõe e sobre
o qual recaem as políticas públicas e ações políticas. Além de tomar como referência Mônica
Wilson, para falar do lugar do intérprete, o antropólogo português João de Pina Cabral, avalia
que o relativismo epistemológico é perverso porque é possível traduzir sem viver. O gesto
etnográfico faz parte da história. “Nos afastamos da questão simbiótica, porém, não somos
agentes neutros, os antropólogos não são tradutores, são intérpretes”, afirma o autor
(CABRAL, 2013). Para romper com essa lógica, Pina Cabral toma por base Julian Pitt-Rivers,
ao propor uma des-etnocentrificação, uma intertextualidade, onde deixamos de ser uma
máquina semiótica e passamos a ser um agente humano.
Nessa perspectiva, como então se posicionar e interpretar o mundo? Creio que, com
toda a incerteza que isso possa implicar, assumindo riscos. A palavra mundo joga um papel
social. É habitar o mundo, ser parte do mundo, confrontar o mundo no sentido de participar,
de pertencer. Nesses caminhos comuns de humanidade, só dentro deles faz sentido ser
cientista social. Que assim seja...
Embora esteja escrevendo na primeira pessoa sobre minhas motivações de escolha, na
condição de intérprete, sou Ninguém, me coloco na mesma posição dos jovens que iniciaram
os protestos no país. O Movimento Passe Livre, com sua pauta restrita, teve uma sabedoria
política inigualável, nas palavras do filósofo Peter Pal Pelbart:

172

V V
Soube até como driblar as ciladas policialescas de repórteres que queriam
escarafunchar a identidade pessoal de seus membros ‘Anota aí: eu sou
ninguém’, dizia uma militante, com a malícia de Odisseu, mostrando como
certa des-subjetivação é condição para a política hoje. Agamben já o dizia,
os poderes não sabem o que fazer com a ‘singularidade qualquer
(PELBART, Peter, In: Folha de São Paulo: “Anota aí: eu sou ninguém”,
19/07/2013, página Opinião).

Esses protestos, inicialmente desencadeados pelo Movimento Passe Livre (MPL) em


São Paulo, um movimento de estudantes e trabalhadores que vem se articulando desde 2005,
ganharam uma magnitude inesperada. Não só se replicou em inúmeras manifestações desde
então nas diversas regiões e principais cidades do país, como ganhou uma dimensão ainda
maior e grande repercussão nos veículos de comunicação, multiplicando a pauta de
reivindicações para muito além do aumento dos 20 centavos do transporte público. Com um
agravante decisivo: o comportamento ostensivo dos policiais no conflito armado durante as
manifestações acabou por acirrar os ânimos de parte dos ativistas e transformar as ruas em
verdadeiras arenas de guerra. Esse poder de dominação da polícia e seu sistema penitenciário
entram em ação na sociedade disciplinar, “atuando sobre uma massa confusa, desordenada e
desordeira, o esquadrinhamento disciplinar faz nascer uma multiplicidade ordenada no seio da
qual o indivíduo emerge como alvo de poder. (MACHADO, In FOUCAULT, 1984, p. XIX).
Na avaliação de sociólogos2 que debateram, em Sessão Especial, As manifestações de
Rua no Brasil: algumas reflexões, com a participação, no Congresso da Associação Latino-
Americana de Estudos do Trabalho - ALAST3, a grande mídia imediatamente se manifestou
em favor da ação da polícia, caracterizando os protestos como “vandalismo”. Porém, diante
da indignação crescente e a intensificação dos protestos, resolveu mudar rapidamente de
postura:...passou a fazer uma cobertura simpática, distinguindo sistematicamente dentre os
manifestantes uma “minoria violenta”, cuidando de blindar o governo de São Paulo e demais
governos de oposição e procurando (acintosamente) induzir uma pauta de seu interesse
(corrupção, “mensalão”, governo federal, superfaturamento nas obras da Copa) (ALAST,
2013, p 5).

2
Documento intitulado Protestos de Junho: elementos iniciais de análise, resultante da abordagem dos
sociólogos Pedro Véra (UFPB), Ricardo Antunes (Unicamp) e Graça Druck (UFBA), feita na Sessão Especial:
As manifestações de Rua no Brasil: algumas reflexões, com a participação, durante o Congresso da Associação
Latino-americana de Estudos do Trabalho (ALAST), realizado na USP, no período de 2 a 5 de julho de
2013.

173

V V
Esses protestos, inicialmente desencadeados pelo MPL, ganharam uma magnitude
inesperada. Porém, depois de incorporar outras bandeiras sociais, políticas e morais, inclusive
conservadoras e reacionárias, perderam fôlego, embora permaneçam na forma de
manifestações mais específicas (sociais e políticas; de esquerda e de direita; locais e gerais).
Tudo isso passa ao largo das antigas agências sociais que constituíram o
chamado Campo Democrático Popular (Movimentos Sociais, sindicatos,
partidos... mesmo os que estão na oposição) no auge das manifestações,
quando esses tentam “entrar em cena”, se deparam com feroz hostilidade
(uma cena emblemática) (ALAST, 2013, p.7).

Das doze hipóteses levantadas no Encontro da ALAST, um dos fatores, que se constitui
como décima hipótese, é a onda de protestos que tem percorrido o mundo (Primavera Árabe,
Ocuppy Wall Street, protestos e greves na Europa) e que influenciam especialmente os jovens,
cada vez mais ligados nas redes sociais. No entendimento dos sociólogos, a Copa do Mundo
significa uma oportunidade, tanto para o Movimento Passe Livre, em termos de mobilização e
de poder de pressão, quanto para a mídia, a oposição de direita e as classes médias
conservadoras, de repercutir sua perspectiva e operar associações que lhes interessam,
aparecendo como a décima primeira hipótese do documento. A abordagem sociológica sobre
os acontecimentos de junho de 2013 procura focar nos processos sócio-históricos que
concorreram para a sua eclosão e que concorrerão para a direção dos seus possíveis
desdobramentos. São levantados no final alguns aspectos que provavelmente sofrerão
alterações: agenda e dinâmicas dos poderes nas três esferas; o quadro político de instabilidade
política que repercute negativamente na economia; a relação entre os partidos de esquerda
(governistas e oposicionistas); a agenda das centrais sindicais e dos movimentos sociais; o
quadro eleitoral de 2014 e o debate acadêmico.
Após identificarmos algumas das principais motivações que impulsionaram os jovens a
se mobilizarem nas ruas do País, seguimos acompanhando através de uma pergunta, feita pela
revista Caros Amigos, aos representantes de entidades que organizaram os atos: “Qual o
modelo de sociedade que vocês defendem? ”Seguida da resposta de Érica de Oliveira,do
Movimento Passe Livre, afirmando que eles acreditam mais no processo coletivo do que no
modelo pronto de sociedade.
A gente é um movimento social com uma pauta, mas na nossa carta de
princípios está escrito claramente que a gente é um movimento
anticapitalista. Quer, de fato, construir uma nova sociedade. Não pensamos
num modelo pronto, acreditamos que é um processo coletivo, tanto que
trazemos isso para nossa organização. E a maneira de fazer isso, é romper
com a desigualdade dentro do nosso próprio processo. Daí o apartidarismo,

174

V V
daí a horizontalidade, daí a nossa independência (CAROS AMIGOS,
16/07/2013).

A exemplo do intelectual e ativista político brasileiro Éder Sader, que estudou a


formação de novos movimentos sociais entre o fim dos anos 70 e início dos anos 80 e uma
nova sociedade civil, com atores atuando com uma nova política diferente dos partidos de
esquerda tradicionais, durante um movimento de vigência autoritário, descrevendo como
esses movimentos influenciaram decisivamente os desdobramentos da cena política no Brasil
(FIGUEIREDO, 2013), o presente trabalho pretende também interpretar o comportamento de
novos atores que surgiram no cenário a partir dos protestos de 2013 nas ruas e redes sociais
do país. Se a multidão assume a dimensão corpórea ocupada por um corpo múltiplo, se não
tem unidade, ganhando contornos de uma multiplicidade expressiva, no espaço do entre, da
chamada comunidade dos sem comunidade, o que seriam, então, esses corpos enquanto
unidade, o “entre” entre pessoas diferentes? Isso se entendermos que esses agenciamentos
coletivos têm uma lógica própria que está se construindo na corporeidade da multidão de
processos comunicacionais intrínsecos cujo alcance dessas mídias nas redes sociais é cultural,
performático no âmbito do corpo, do discurso, do gesto.
Depois de entrevistar alguns desses jovens nas ruas e de analisar as diferentes
interpretações que foram dadas pela imprensa, sejam os jovens representantes de entidades
que deram início aos protestos, sejam os chamados de Black Blocs, ativistas acampados, ou
ainda outros tipos de manifestantes na multidão, é interessante observar esses personagens e
perceber que há uma estética nos protestos. No livro Estamos vencendo (2004) em que o
fotógrafo André Ryoki dividiu a autoria com o historiador Pablo Ortellado, ele registrou
muitas imagens dos protestos em São Paulo, entre 2000 e 2002. Embora o livro fale de
Seattle, já que era um movimento internacional antiglobalização, que aglutinou anarquistas,
intelectuais e políticos com a alternativa “outro mundo é possível”, André Ryoki identifica
uma diferença estética nas manifestações, pois existia uma especificidade no Brasil: o caráter
lúdico. “Essa proposta lúdica era uma especificidade da época, não vejo isso nas
manifestações atuais”. Segundo ele, a ideia era ocupar a cidade, pois a metrópole concretiza
as relações entre o capital e o trabalho de forma muito cruel. Os manifestantes queriam ir pra
rua inverter essa lógica e “brincar” para subverter a ordem urbana. (RYOKI, André apud
SAYURI, Juliana. Reviver a utopia. O Estado de São Paulo, página E6. Caderno Especial
Aliás. 04/08/2013). Essas manifestações se ancoravam em movimentos horizontais, sem
hierarquia nem líderes; eram organizações autônomas que bebiam nas fontes do anarquismo.

175

V V
“Os anarquistas não estão ‘voltando’, porque nunca foram embora. Esses movimentos se
contrapõem à organização partidária, que visa ao poder institucional. O alvo é outro: eles
querem viver a própria utopia nas manifestações” (RYOKI, André. Op. Cit. Jornal Estado de
São Paulo 04/08/2013).
Os protestos de junho no Brasil, carregados de símbolos, significados, narrativas e
subjetividades, produziram uma estética trazendo todos os elementos de um espetáculo: a rua,
como palco, a arena pública que concentrou milhares de ativistas, mas também as casas
legislativas, como a Câmara Municipal de Vereadores, a Assembleia Legislativa do Estado e
o poder executivo, no Congresso Nacional, em Brasília. Personagens diversos, com seus
figurinos – escuros ou coloridos, de botas ou coturnos, máscaras do Anonymous ou máscaras
de gás, calças jeans ou uniformes policiais, - empunhando seus objetos de cena – cartazes,
faixas, coquetéis molotov, bombas de gás lacrimogênio, armas e cassetetes, vinagre, etc.,
usando palavras de ordem, gritadas, cantadas ou escritas – “O gigante acordou” ou “Vem pra
rua vem”, com intensos momentos de clímax, de conflito armado entre manifestantes e
policiais, tumulto, correria, focos de incêndio e muitos holofotes da imprensa, que também
entrou na guerra, nos sobrevôos de helicópteros, tanto da polícia quanto da imprensa. Essa
multidão produziu subjetividades. De um lado, estavam posicionados os policiais,
representando o Estado, em nome da defesa do patrimônio público e privado, como também,
os traficantes que se misturavam aos ativistas, que, assim como a polícia, representam o poder
regulado pelo consumo. Nesse caso, a subjetivação se dá em torno do consumo e do valor. De
outro lado, os chamados Black Blocs, que escondem tudo e resistem a esse poder estabelecido
e à política do consumo. São um fenômeno estético tendo como principal estratégia separar a
forma do conteúdo. Além dos conhecidos Mídia Ninja, que, ao contrário, trazem tudo
exposto, tudo revelado, assumindo uma Atitude Ninja.
Esse anti-capitalismo defendido pelos jovens nas ruas ganhou um tom bem mais
anarquista com os Black Blocs, que passaram a se diferenciar dentro dos movimentos por suas
intervenções mais radicais de enfrentamento direto aos bloqueios policiais e com a quebra dos
bancos como um dos fortes símbolos do capitalismo. Ainda na direção de entender as
motivações e táticas usadas e com as possíveis expectativas com relação a este Movimento,
encontrei diferentes abordagens, algumas bem reativas a essas atitudes por parte de
determinados veículos de imprensa e grupos políticos que tentaram concentrar no combate ao
governo federal com fins eleitorais.

176

V V
A máscara do soldado inglês trazida no filme hollywoodiano V de Vingança (2006),
passou a ganhar fotografias no Facebook, no Instagram e na imprensa. O rosto por trás da
máscara tem, segundo a jornalista Juliana Sayuri, uma história controversa. Foi o soldado
católico que tentou explodir o Parlamento britânico no dia 5 de novembro de 1605, na
Conspiração da Pólvora. A ideia era derrubar o rei protestante, os parlamentares e a nobreza.
Expert e de posse de explosivos, o soldado de 35 anos era o responsável pelos barris de
pólvora. Mas o complô católico não deu certo; o golpe fracassou e Fawkes, acusado de
traição, preso e torturado, se suicidou pra escapar da condenação de morte. Esse “rosto” ficou
diluído entre os manifestantes na rua, nas agitações sociais efervescentes no País e em festas.
Alguns empunhavam cartazes “V de Vinagre”, uma referência ao “subversivo”, ácido acético
proibido na manifestação paulistana no Movimento Passe Livre.
Bem, o fato é que milhares de, não somente rostos, mas corpos protestaram nas ruas,
usando máscaras ou não, de uma forma mais branda ou radical, saíram da rede pra rua,
fazendo o país trepidar como numa avalanche que saiu arrastando o que encontrou pela frente.
Os protestos ganharam tanta dimensão e grandiosidade que, mesmo tendo eclodido no curto
tempo de menos de dois meses e pequenos focos de continuidade, conseguiu produzir abalos
em todas as organizações, estruturas e instituições existentes: sindicais, partidárias,
governamentais, legislativas, empresariais, comunicacionais, religiosas, acadêmicas. O
sociólogo francês Michel Maffesoli interpreta que é o fim da política moderna. Ele cita outro
sociólogo Julien Freund (1821-1923), que dizia que o político é a ideia de um projeto, de um
programa, da dimensão nacional, seja de esquerda ou de direita e identifica que há uma
saturação, um tipo de indiferença. “Esses jovens não se reconhecem mais num programa, num
partido ou sindicato. Não é mais programático, e sim emocional. A modernidade é racional, e
a pós-modernidade é emocional” (EICHENBERG, O Globo, 23/06/2013, p.7). No entanto, o
economista João Pedro Stédile, líder do Movimento Sem Terra, pondera:
“A juventude é uma espécie de termômetro da luta de classes, quando
esquenta, sobe a temperatura ela vai pra rua, mas ela por si não faz as
mudanças, quem faz as mudanças é a classe trabalhadora. A juventude grita,
protesta, anuncia, berra, denuncia, mas esses processos não têm concretude
se a classe trabalhadora não se mexer.“ (Stédile, palestra proferida no dia
15/03/2014).

Já o cientista político Emir Sader faz um alerta de como o governo e os partidos devem
dialogar com os jovens:
“Este governo e os partidos populares ainda tem uma oportunidade de
retomar diálogos com os jovens, mas para isso tem assumir como prioritários
temas como os ecológicos, os culturais, os das redes alternativas, os da
177

V V
libertação nos comportamentos, sexuais, de drogas, entre outros. Tem que se
livrar dos estilos não transparentes de comportamento, não podem conciliar
nem um minuto com atitudes que violam a ética publica, tem que falar aos
jovens, mas acima de tudo ouvi-los, deixá-los falar. Com a consciência de
que eles são o futuro do Brasil. Construiremos esse futuro com eles ou será
um futuro triste, cinzento, sem a alegria e os sonhos da juventude brasileira”
(Blog do Emir, wwww.cartamaior.com.br 22/06/2011).

Mas afinal, o que quer a multidão? “Eu quero transformações radicais, fazer as pessoas
pensarem de forma diferente” diz Raquel Glória, 24 anos, estudante de Ciências Sociais da
UERJ, que mora em Vila Isabel. E continua: “revolução por causa disso, muita gente nunca
tinha ido pra rua, só isso já é válido; isso aqui é revolucionário, ocupar a Câmara Municipal e
discutir política”. Embora participando das manifestações, ela não soube me dizer o que
mudou, apenas que se tornou mais radical. O conceito de multidão, produzido por Hardt e
Negri (2002, p.420) nos auxilia a interpretar essas manifestações que emergiram nas ruas.

“Uma mitologia material da razão começa, portanto, a ser formada e


construída nas linguagens, nas tecnologias e em todos os meios que
constituem o mundo da vida. É uma religião material dos sentidos que separa
as massas de todos os resíduos de poder soberano e de todos os “longos
braços” do Império. A mitologia da razão é a articulação simbólica e
imaginativa que permite a ontologia da multidão expressar-se como
atividade e consciência.”(HARDT, NEGRI, 2002, p.420).

Os motivos que explicam os protestos são diversos e se somam: tem a ver com a certeza
de que o transporte deveria ser um bem comum, assim como o verde da praça, o aumento do
aluguel, a remoção das favelas, as condições de atendimento nos hospitais, a melhoria da
educação, a violência policial, assim como a água, a terra, a internet, os códigos, os saberes, a
cidade, não nos faltam motivos para protestar. E não se trata da falta de foco ou de uma pauta
específica de reivindicações, quando o organismo todo do país padece. O filósofo Peter Pál
Pelbart define que é a expropriação do comum pelos mecanismos de poder que ataca e
depaupera capilarmente aquilo que é a fonte e a matéria mesma do contemporâneo – a vida
(em) comum. E para ele, não se trata de reivindicações, mas de desejos:

...quando arrombaram a porteira da rua, muitos outros desejos se


manifestaram. Falamos de desejos e não de reivindicações, porque estas
podem ser satisfeitas. O desejo coletivo implica imenso prazer em descer à
rua, sentir a pulsação multitudinária, cruzar a diversidade de vozes e corpos,
sexos e tipos e apreender um “comum” que tem a ver com as redes, com as
redes sociais, com a inteligência coletiva (PELBART, Peter, Folha de São
Paulo, 19/07/2013, página Opinião).

178

V V
Porém, afirma que não se deve subestimar a potência psicopolítica da multidão, que se
dá o direito de não saber de antemão tudo o que quer, mesmo quando ocupa os jardins do
palácio, “pois suspeita que não temos fórmulas para saciar nosso desejo ou apaziguar nossa
aflição...como diz Deleuze; falam sempre do futuro da revolução, mas ignoram o devir
revolucionário das pessoas”. Ele acredita que possivelmente uma outra subjetividade política
e coletiva esteja (re)nascendo, aqui e em outros pontos do planeta, para a qual carecemos de
categorias. Mais insurreta, de movimento mais do que de partido, de fluxo mais do que de
disciplina, de impulso mais do que de finalidades, com um poder de convocação incomum,
sem que isso garanta nada, muito menos que ela se torne o novo sujeito da história.
Neste cenário político, social, cultural, artístico, há uma infinidade de agentes,
personagens, mascarados ou não, jovens de diferentes perfis, mas não somente jovens.
Radicais ou menos radicais, há os acampados, os intitulados Black Blocs, enfim, uma mescla
de subjetividades tão urgentes de se expressar que resiste a todo o aparato de repressão do
Estado, ao apelo do governador, às investidas da imprensa de colocá-los no foco, como heróis
ou vilões. Que propósitos sustentam essas manifestações que fazem jovens e nem tão jovens
participar? O que esperam ao enfrentar a polícia, ao acampar, enfim, ao se manifestarem
descontentes com a realidade atual? Diz Isabela “Eu espero um país onde tudo é igual pra
todo mundo, quero isso pros meus filhos. Ou vou preferir não ter filhos se não se pode vir pra
rua lutar pelos seus direitos. É uma ditadura disfarçada”. Já a estudante Raquel Glória amplia
sua compreensão do que espera.
“Talvez o que seja mais perto seja o anarquismo, mas não tenho certeza.
Estou cansada de coisas velhas, estou cansada desse tipo de sociedade. Ter
liberdade para usar e fazer o que tem direito. As instituições têm que mudar
de caráter. Acho que tenho pouca maturidade para vislumbrar algo deste
tamanho. Quando eu não vou poder transformar algo no meu trabalho de
antemão, não sou artista, não tenho talento, no trabalho não tenho autonomia
pra isso, só na rua. Se eu tivesse um violão para envolver gerações. Só posso
mudar na educação dos filhos. Nem quando se abre seu próprio negócio,
você está sujeito a leis e dentro do sistema. Quando as pessoas vão pra rua
elas procuram muito o sentido, o prazo, a meta. Vai sem esperar, porque ter
algo escrito? Objetivo é coisa que tem meta a cumprir. Se eu fosse esperar já
teria desistido” (Entrevista, 2013).

De fato, “o poder imperial já não pode resolver o conflito de forças sociais pelo
esquema mediador que substitui os termos do conflito. Os conflitos sociais que constituem o
político confrontam-se diretamente, sem qualquer espécie de mediação” (HARDT; NEGRI,
2002, p. 417). Para Negri e Hardt, a crise generalizada da representação coloca no centro da
agenda política a necessidade de experimentar novas formas de repercussões e formas não

179

V V
representativas de organização democrática. Esses autores defendem que precisamos de um
novo vocabulário e enquadramentos conceituais novos para entender o mundo contemporâneo
e as possibilidades que ele nos proporciona. Para eles, parece que esse tipo de engajamento
filosófico ou de renovação conceitual está em curso muito mais abrangentemente do que se
possa imaginar.
Ainda que possam estar imbuídos de um certo heroísmo, os manifestantes, ao mesmo
tempo em que se contrapõem ao sistema do qual são integrantes, pretendem ocupá-lo e
transformá-lo, como protagonistas da história. Mesmo quando assumem a linha de frente
dispostos a apanhar, aspirar o gás lacrimogêneo ou serem presos, procuram preservar a
identidade se escondendo atrás da máscara do Anonymous. Porém, eles parecem perceber que
esses personagens, assim como suas máscaras, são deslizantes. Mesmo quando conseguem
colocar na centralidade do país o difícil cotidiano das pessoas nas grandes cidades, e ainda
que sejam criticados e deslegitimados, principalmente pela grande imprensa conservadora e
reacionária, por não apresentarem uma proposta de mudança ou por assumirem posturas
radicais, irem para o embate ou quebrarem carros, bancos e lojas, os ativistas não arriscam
apontar o caminho, o modelo, o projeto, a pauta, temendo repetir a mesma lógica do que não
concordam de se perpetuar.
A constatação evocada com insistência por pensadores como Antonio Negri, Giorgio
Agamben, Paolo Virno, Jean Luc-Nancy, Maurice Blanchot, é de que vivemos uma crise do
“comum”. As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum, e
asseguravam alguma consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entram
definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública, até os modos de associação
consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais.
“Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a encenação
política, os consensos econômicos consagrados, mas igualmente as recaídas
étnicas ou religiosas, a invocação civilizatória calcada no pânico, a
militarização da existência para defender a “vida” supostamente “comum”,
ou mais precisamente pra defender uma forma-de-vida “comum”. No
entanto, sabemos bem que esta “vida” ou esta “forma-de-vida” não é
realmente “comum”, que quando compartilhamos esses consensos, essas
guerras, esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos de
agremiação, ou mesmo esta linguagem que fala em nosso nome, somos
vítimas ou cúmplices de um seqüestro” (PELBART, 20003, p.28).

Diferente do comum considerado e também vivido antes como aquele espaço abstrato
que conjugava individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público ou política,
hoje o comum é o espaço produtivo por excelência. Dentro disso, Pelbart avalia que o
trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto
180

V V
da emergência do comum, o saber, a linguagem, a inteligência, os saberes, a cognição, a
memória, a imaginação e, por conseguinte, a inventividade comum. Mas também requisitos
subjetivos relacionados à linguagem, como a capacidade de comunicar, de relacionar-se, de
associar, de cooperar, de compartilhar a memória, fazer conexões e proliferar as redes. Ele
menciona que o comum para Heráclito era o logos e que a expropriação do comum numa
sociedade do espetáculo é a expropriação da linguagem, seqüestrada por um regime
democrático-espetacular, de modo que já não revela nada e ninguém se enraíza, entrava a
própria comunicação e atingimos o ponto extremo do niilismo. Para isso, Agamben evoca
uma resistência vinda, não de uma classe, um partido, sindicato, grupo, minoria, mas de uma
singularidade qualquer, de qualquer um, que não reivindica uma identidade, que constitui uma
multiplicidade inconstante, mas manifesta o seu ser comum “é a condição – diz Agamben, de
toda a política futura, Bento Prado Júnior referindo-se a Deleuze utilizou uma expressão
adequada a uma tal figura: o solitário solidário.
Volta a pergunta insistente: Como pensar as subjetividades em revolta? Talvez o
desafio atual seja intensificar esses estalos e rachaduras a partir da biopotência da multidão.
Afinal, o poder, como diz Negri inspirado em Espinosa, é superstição, organização do medo;
Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação,
nos diz Pelbart. Neste percurso, de uma comunidade ausente, dos sem comunidade, quem
sabe se possa descobrir comunidade lá onde não se via comunidade, possíveis linhas de fuga.
Assim como novos desejos de comunidade emergentes estão surgindo, novas formas de
associar-se e dissociar-se, de compartilhar os afetos. Na contramão do seqüestro do comum,
da expropriação do comum, trata-se de pensar o comum ao mesmo tempo como imanente, ou
seja, que está dado, e por outro, que ainda está por se construir. Como vimos, o roteiro dessa
história, - assim como os seus múltiplos atores, e suas subjetividades individuais e coletivas, -
está em processo de construção, onde a insurgência das ruas revela-se um importante motor
de transformação.

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183

V V
MAPEAMENTO DE RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS NO BRASIL:
UMA BREVE AVALIAÇÃO
Ana Vasconcelos1
André Gonçalves da Silva Bezerra2

RESUMO: O “Mapeamento de Residências Artísticas no Brasil” foi um estudo publicado em


2014 pela Fundação Nacional de Artes – Funarte. A pesquisa teve o objetivo de traçar um
perfil básico do campo das residências artísticas, que vem demonstrando expressivo
crescimento no país na última década. Foram levantadas informações sobre localização
geográfica, características institucionais, fomento e fontes de recursos acessadas, áreas de
atuação, linguagens artísticas e processos e produtos resultantes das ações e programas. O
presente artigo visa difundir seus resultados e também revisitá-los, levando os autores a uma
breve avaliação crítica sobre os dados obtidos e os métodos utilizados.

PALAVRAS-CHAVE: Residências artísticas, mapeamento cultural, gestão cultural,


estatísticas e indicadores culturais.

APRESENTAÇÃO
O Mapeamento das Residências Artísticas no Brasil surgiu a partir da percepção da
emergência desse campo na produção cultural, especialmente de novas modalidades de
pesquisa e criação artística, em diversos segmentos. O crescimento expressivo do número de
iniciativas de residências artísticas no país, notado em convocatórias de instituições públicas e
privadas de diversos estados, além de presença marcante em programas e editais de fomento
administrados pela Funarte, apontou para a necessidade de uma delimitação mais clara e
precisa sobre as características, potenciais e demandas dessas atividades, que tem sido
responsáveis por originar novas obras, processos e sistemas de produção das artes.
A realização deste Mapeamento foi uma demanda surgida a partir do II Encontro
Funarte de Políticas para as Artes, realizado em 2012 pela Funarte, em parceria com a
Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, que teve como
foco de discussão as Interações Estéticas em Rede. Durante o evento, foram abordados temas
como “O lugar das ocupações artísticas na difusão cultural”, “O papel das redes na produção
cultural” e “Trânsitos: deslocamentos e residências”, numa proposta de reflexão voltada para

1
Mestre em história pela Universidade Federal Fluminense e servidora da Fundação Nacional de Artes, onde é
coordenadora pedagógica da Escola Nacional de Circo. anavasconcelos.funarte@gmail.com
2
Especialista em jornalismo cultural pela UERJ e jornalista do Instituto de Comunicação e Informação
Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. andrebezerra@gmail.com
184

V V
a construção de uma política cultural que atentasse para a produção artística inserida num
paradigma contemporâneo de mobilidades e impermanências.
Uma vez detectada essa demanda, o Centro de Programas Integrados da Funarte
(Cepin), responsável por diversas ações interdisciplinares de gestão cultural no âmbito do
Ministério da Cultura, inclusive a Bolsa Interações Estéticas – Residências Artísticas em
Pontos de Cultura, propôs um estudo estatístico que revelasse dados e informações sobre os
programas de residência artística, como seus modos de atuação, localização, gestão,
financiamento e perfil dos projetos.
O levantamento foi concebido e realizado em 2013 e as informações coletadas foram
analisadas no ano seguinte, pela equipe do Cepin, e divulgadas por meio de relatório
impresso, acompanhado de artigos de autores convidados a contribuírem conceitualmente
sobre o tema3. Foram convidadas a participar instituições públicas e privadas, organizações
não governamentais, Pontos de Cultura, associações e outras entidades que desenvolvem
programas ou ações de residência artística.
Essa ação se somou a esforços empreendidos pelo Ministério da Cultura para levantar
dados e informações sobre a produção cultural brasileira, a exemplo do Perfil dos Municípios
Brasileiros – Cultura, ou Pesquisa de Informações Básicas Municipais, conhecida também
como MUNIC, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísca (IBGE), em 2006, e
o Anuário Estatístico da Cultura – 2009, realizado pelo Ministério da Cultura, além do
Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC.

DELIMITAÇÃO DO CAMPO
Apesar de experiências esparsas desde o período modernista, como a célebre Casa de
Paschoal Carlos Magno e a Aldeia de Arcozelo4, no Estado do Rio de Janeiro, as residências
artísticas são um fenômeno relativamente recente no campo da produção cultural. Estima-se
que os formatos contemporâneos de residências tenham se moldado no Brasil em meados dos
anos 90, culminando em uma acentuada expansão nos últimos anos. No exterior,

3
A publicação completa encontra-se disponível em www.funarte.gov.br/residenciasartisticas .
4
A Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes - RJ, que hoje pertence à Funarte, foi inaugurada por Paschoal
Carlos Magno, em 1965, para ser um lugar onde jovens e artistas de todo o país pudessem desfrutar de todas as
formas de criação e artística. As instalações contavam com dois grandes teatros, sendo um ao ar livre e outro
com palco fechado, sala de música, espaços para as artes plásticas, galerias, sala de vídeo, biblioteca, coreto,
além do edifício colonial, com 54 quartos, salões e varanda. Fonte: Brasil Memória das Artes/Funarte, em
http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes.

185

V V
especialmente na Europa, observa-se um crescimento expressivo na última década das
instituições que promovem o intercâmbio entre linguagens, artistas, metodologias e práticas.
Diversas atividades culturais podem ser concebidas no âmbito de uma residência
artística. Segundo Moraes estas representariam “a necessidade de buscar maneiras de
experimentar e vivenciar o mundo em que nos relacionamos, marcado pela mobilidade,
globalização e afirmação do lugar como forma de marcar esta transitoriedade” 5. Ao mesmo
tempo “seria como nova forma de inserção no circuito artístico, oferecendo novos espaços de
formação, criação, produção, difusão e reflexão no campo da cultura”6.
Para este mapeamento, são especialmente relevantes as residências estruturadas em
torno de programas, o que implica em atividades organizadas a partir de um esquema
específico de gestão, envolvendo espaços, metodologias, recortes temporais e atores sociais,
resultando em obras de arte, produtos culturais, processos, vivências, aprendizados ou trocas
simbólicas. Para isso, não é obrigatório que os organizadores tenham sede própria, mas se
relacionem com espaços de criação ou pesquisa, esquemas de produção ou divisão de tarefas,
permuta de serviços e, possivelmente, programação de encontros com outros agentes culturais
ou público amplo.
Na etapa preliminar do mapeamento, a partir de análises de editais da Funarte e outras
instituições e da comparação de algumas convocatórias, foi possível delimitar três formas
básicas de organização de residências artísticas. A primeira é a constituição de espaços de
criação e pesquisa com a finalidade específica de sediar residências artísticas, em especial
voltadas ao segmento de artes visuais ou artes integradas, se constituindo em diversos
formatos e modelos de gestão. Outra modalidade comum é a realização de residências por um
determinado período em um ateliê, centro cultural, Ponto de Cultura, sede de uma companhia
ou grupo de espetáculos, institutos de ensino, dentre outros, que não se configuram como
atividade principal da instituição, sendo um mecanismo complementar de sua programação
para o estímulo à criação e troca artística.
Por fim, no campo das artes cênicas, é muito comum a noção de residência atrelada à
presença de um criador convidado, como diretores ou coreógrafos residentes, a fim de
realizarem novas criações e trabalhos. Apesar da diversidade de estruturas observadas, os
programas tem em comum a vocação de captarem artistas para projetos de criação e pesquisa
ou intercâmbios e trocas, seja entre profissionais de maior experiência e iniciantes ou entre
pares de semelhante grau de experiência e projeção, ou seja, entre artistas e públicos presentes
5
MORAES, 2009.
6
VASCONCELOS, 2012.
186

V V
nesses locais de atuação. É importante frisar que nenhum equipamento cultural é
automaticamente uma residência artística, apesar do grande potencial que possuem para
implementá-la.
Cursos de formação e qualificação de artistas, bem como programas de pós-graduação
e outras formas de ensino e pesquisa em arte também têm projetos específicos voltados à
capacitação técnica e acadêmica dos profissionais das artes, sendo atores importantes no
campo das residências. Cabe destacar uma última diferenciação entre a noção de intercâmbio,
profissional ou acadêmico, da noção de residência. Esta pode ser realizada durante um
processo de intercâmbio, contudo, se utilizarmos a própria noção estabelecida pelos editais de
intercâmbio e difusão internacional do Ministério da Cultura, esses processos também
contemplam a circulação, a participação em eventos, seminários, simpósios, festivais e feiras
de negócio, não implicando, necessariamente, em atividades de residência. As noções
expostas aqui não esgotam o tema das residências artísticas nem pretendem estabelecer
critérios rígidos de classificação desses programas, que ainda merecem bastante atenção em
estudos de gestão e políticas culturais. O campo delimitado aqui serve como guia e ponto de
partida para o mapeamento e contribuindo para estabelecer um recorte do objeto da pesquisa.
Objetivos
Estimar o número de residências artísticas em atividade no país;
Conhecer sua distribuição geográfica no território nacional;
Conhecer características da gestão dos programas, os perfis dos artistas apoiados, as
formas de apoio, os aspectos dos projetos realizados e os resultados obtidos.
Justificativa
Devido ao enorme potencial das residências artísticas como instâncias de criação,
pesquisa e inovação no campo das artes, o Mapeamento de Residências Artísticas no Brasil
pode contribuir para a elaboração de políticas públicas que estimulem a qualificação de
artistas, gestores e pesquisadores, fomentando a produção cultural no âmbito da criação,
difusão, documentação e preservação da memória artística nacional.

ASPECTOS METODOLÓGICOS
Foi desenhada uma pesquisa de sondagem que pudesse levantar estatísticas de cunho
descritivo, incluindo seus potenciais e demandas, por meio de um questionário dividido em
cinco partes: responsável pelo preenchimento, identificação da instituição, programas, artistas

187

V V
e projetos. O mesmo foi disponibilizado via internet pelo site da Funarte7 durante dois meses.
Foram convocados curadores, gestores culturais ou interlocutores de instituições públicas e
privadas, organizações não governamentais, pontos de cultura, associações e demais entidades
que desenvolvessem esse tipo de programa.
O mapeamento das residências artísticas se estruturou em 4 partes de forma que
pudéssemos contemplar uma visão ampliada do cenário deste campo em todo o Brasil,
percebendo as peculiaridades das instituições, de seus programas, dos artistas residentes e dos
projetos realizados.
Assim a primeira parte foi destinada ao conhecimento do perfil da instituição que
realiza programas de residência artística. Era, portanto, fundamental termos aqui um quadro
que nos fornecesse informações sobre a localização geográfica, sua natureza jurídica, sua
fonte de recursos (patrocínio, doações, transferências internacionais, fundos governamentais,
orçamento próprio), tamanho (número de funcionários), se possui ou não sede própria e se
tem ou não fins lucrativos. Esta parte do mapa nos permitirá compreender quem são e onde
estão nossos interlocutores institucionais, elementos cruciais para iniciarmos nosso diálogo.
A segunda parte tinha como objetivo conhecer efetivamente os programas de
residência destas instituições. Neste caso, foi importante frisar que um programa de
residências artísticas consiste num conjunto de ações voltadas para o incentivo à
experimentação, inovação, pesquisa e criação no campo das artes. Isto se dá, em geral, através
do apoio (financeiro ou não) concedido a artistas que, na maior parte das vezes, saem de seu
lugar de origem para realizar residências em outras localidades. A instituição pode realizar o
programa de residências artísticas por meio de recursos oriundos de outros editais públicos e
privados, por meio de seus próprios editais/recursos ou qualquer outra forma de
financiamento direto ou indireto. Os programas podem ainda conceder ou não apoio
financeiro ao artista, sendo a instituição a responsável por arcar com parte dos custos ou com
a totalidade deles. Os locais de realização das residências variam conforme o programa,
podendo abranger desde um município até os mais diferentes países. Os programas podem ter
como foco uma ou mais linguagens artísticas (circo, dança, teatro, artes visuais, música, arte
digital, literatura, cinema) e no que se refere à periodicidade, podem acontecer em períodos
pré-estabelecidos, anualmente, semestralmente, etc. Este quadro nos aponta para uma
multiplicidade de perfis de programas de residência artística que o mapeamento poderá nos
apontar.

7
www.funarte.gov.br/mapeamento_residencias
188

V V
Na terceira parte, nosso foco era conhecer os artistas apoiados pelos programas de
residência. Número de artistas apoiados, possibilidades de intercâmbio nacional e
internacional, duração média das residências e a nacionalidade dos residentes são dados que
podem nos dar pistas importantes sobre o público alvo das residências.
Já a quarta e última parte do mapeamento tinha como objeto de investigação os
resultados e produtos gerados pelas residências. Cabe destacar que os artistas residentes
podem desenvolver diversas ações em quaisquer linguagens, que podem ser realizadas em
inúmeros locais como praças, teatros, museus, etc. Indiretamente, as ações em residência
podem envolver diversos públicos: outros artistas, cidadãos locais, pesquisadores, etc. Ao
término da residência o artista pode ter elaborado uma série de produtos: filmes, pinturas,
publicações, livros, exposições, artigos etc. Este cenário nos permite pensar em que medida
uma residência artística tem impacto sobre outros aspectos da produção artística e cultural.
O público-alvo privilegiado para convocação à pesquisa foi originário das ações da
Funarte, além disso, buscou-se dar ampla divulgação em diversos meios, como as redes
sociais da Funarte e do Ministério da Cultura, além de comunicações junto a instituições
culturais, universidades, centros de ensino no maior número possível de unidades da
federação e órgãos públicos municipais e estaduais de cultura. Foi elaborado um banco de
dados, e foram estipulados alguns critérios de validação dos cadastros. Primeiro, foram
considerados apenas os cadastros preenchidos na íntegra, em seguida, foi realizada uma
análise sobre o teor das respostas e considerando apenas os cadastros que comprovam
experiências de residência no período anterior à pesquisa. Foram desconsiderados os
cadastros de instituições não afeitas ao campo da cultura, de experiências individuais de
residência ou aquelas que manifestaram apenas a intenção de realizá-las a partir daquele
momento. O sistema que hospedou o questionário recebeu um total de 690 cadastros, apenas
360 preencheram todas as seções. Após a validação, 194 registros comprovaram experiências
com residências artísticas, resultando daí a análise de dados definitiva deste estudo.

RESULTADOS E REFLEXÕES
Após concluída a fase de análise dos dados do mapeamento, a Funarte lançou em 2014
uma publicação impressa e on line com os principais resultados da pesquisa acompanhada de
textos que abordam questões teóricas e práticas a partir de visões de acadêmicos e artistas
sobre o setor.

189

V V
Essa publicação foi apresentada no Seminário Funarte de Residências Artísticas
realizado em novembro de 2014 no Rio de Janeiro. O evento reuniu cerca de 180 participantes
durante 3 dias e 24 palestrantes de diferentes partes do Brasil. Estiveram envolvidos
representantes do Ministério das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil, da
Diretoria de Relações Exteriores do Ministério da Cultura além de gestores de programas de
residência, produtores e artistas.
Alguns dados da pesquisa merecem ser aqui destacados. O primeiro deles diz respeito
à concentração regional dos programas de residência. A região com mais residências é a
sudeste (57%), seguida do nordeste (21%). Os estados com maior número de programas são:
São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Ceará. Há um equilíbrio entre a
presença de residências nas capitais e em outros municípios da unidade da federação.
A maioria é dedicada às artes visuais (9%) e às artes integradas (9%). Também
estiveram bastante presentes residências voltadas ao audiovisual (aproximadamente 9%),
fotografia (8%), teatro (8%) e dança (7%). Houve outros temas presentes como literatura,
circo, arte e cultura digitais, mas também performance, crítica e curadoria de artes, e pesquisa
teórica.
Cabe ainda destacar que boa parte das residências acontece em sedes próprias (18%),
mas também em centros ou espaços culturais (14%) e até mesmo em locais públicos, como
praças, vias ou lugares de grande circulação de pessoas (14%). Também houve registro de
residências em reservas ecológicas, praias ou em áreas rurais.
A maioria está aberta a artistas nacionais e internacionais e afirmam haver
possibilidade de intercâmbio (89%), a públicos de qualquer nacionalidade, ou especificamente
de blocos regionais, especificamente a América do Sul, Europa, América do Norte e África.
Há residências que funcionam em acordos bilaterais com países como a Alemanha e a França.
Outro ponto importante é o crescimento do setor. A primeira residência registrada
ocorreu em 1995 e, de 2006 a 2012 houve um crescimento expressivo da quantidade de
residências em atividade, sendo que esse número quadriplicou nesse período, indo de 28 a 118
programas ativos. Ao mesmo tempo, cerca de metade dos programas utiliza recursos públicos,
sejam eles diretos ou indiretos, enquanto metade realiza suas atividades com recursos
próprios, doações ou financiamento privado.
Este cenário nos permite compreender que se por um lado assistimos a um
crescimento significativo deste setor no país, por outro percebemos a concentração regional
marcante como também ocorre no restante da produção cultural brasileira. Além disso, este

190

V V
campo emergente vem se sustentando de maneira incipiente, uma vez que muitas vezes não
obtém financiamento e depende de financiamento próprio ou dos artistas envolvidos. No caso
dos recursos públicos, utilizam-se sobretudo de editais e financiamentos internacionais, mas
não contam com fomento continuado, uma vez que não há nas esferas de poder público
políticas estruturadas para o segmento.
Cabe ainda registrar alguns pontos sobre a pesquisa que merecem ser revisitados e
analisados. O primeiro deles é justamente a opção metodológica utilizada, ou seja, a
realização de um mapeamento on line que parte do interesse do usuário externo em entrar no
site da Funarte, cadastrar seu programa e responder todo o questionário. É certo que esta
opção possui suas limitações tendo em vista as dimensões territoriais de nosso país, e o
próprio alcance da internet em regiões mais longínquas. Por outro lado, estamos certos que
como primeiro olhar sobre este campo, esta pesquisa nos traria um retrato inicial sobre o
comportamento destes programas no Brasil. E portanto, qualquer política construída a partir
dele, levará isto em consideração.
Da mesma forma, é necessário o estabelecimento de marcos conceituais mais
aprofundados sobre o tema, uma vez que o assunto ainda é emergente na produção acadêmica
de gestão e política cultural. Nesse sentido, uma contribuição do mapeamento das residências
artísticas foi ampliar o conhecimento sobre o conceito de residência. Albuquerque (2014) nos
mostrou que embora as residências sejam amplamente divulgadas em todo o mundo, no
Brasil, qualquer encontro institucional deveria ser precedido por um “exercício de catequese e
introdução aos programas”.
A trajetória do Instituto Sacatar, situado na ilha de Itaparica na Bahia, reflete este
cenário. Para a instituição, sempre foi mais fácil o diálogo com os órgãos institucionais que
com as instâncias nacionais. Isto também ficou claro para nós durante a delimitação da
pesquisa. Se por um lado havia a confusão entre residência e workshops/intercâmbios, por
outro, foram descobertas pessoas e instituições que faziam ou ofereciam residência mas não
sabiam disso pois desconheciam o conceito.
Outro ponto, que merece ser observado uma vez que não foi objeto de preocupação no
momento da criação do questionário, é de que forma a economia impacta o crescimento ou
não destes programas. Um bom exemplo é o caso dos programas existentes no Rio de Janeiro
que sofrem com a especulação imobiliária e com o alto custo de vida na cidade. A violência
urbana e a mobilidade também são questões fundamentais neste cenário pois interferem
diretamente no “estar em residência”.

191

V V
Assim, para além da contribuição no que se refere à pesquisa sobre as residências
artísticas, o mapeamento que ora apresentamos é a primeira inserção efetiva do governo
federal neste setor. E justamente por isso, mostra o interesse público em contribuir com a
dinamização de um campo que embora em crescimento possui diversas dificuldades de ordem
econômica e estrutural.
Por fim, acreditamos que o mapeamento das residências artísticas se constitui em um
instrumento fundamental para a reflexão sobre este setor no Brasil e sobretudo para a
construção de políticas públicas que deem conta da diversidade e multiplicidade das
experiências existentes. Mais que fomentar via editais, o desafio que este quadro nos impõe é
estabelecer elos e diálogos, construir redes que coloquem as mais diferentes experiências em
contato. Afinal, “estar em residência” é estar com o outro e com você mesmo aqui e acolá.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, Augusto. “Instituto Sacatar: uma esquina do mundo em Itaparica”. In:
Vasconcelos, Ana (Org.) Políticas para as Artes - Prática e Reflexão. Volume 2. Rio de Janeiro:
Funarte, 2014, páginas 43 a 68.

MORAES, Marcos José Santos. “Residência artística: ambientes de formação, criação e difusão”.
Programa de Pós-graduação da Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
São Paulo, 2009. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16136/tde-29042010-

VASCONCELOS, Ana. “Residências artísticas como política pública no âmbito da Funarte”. III
Seminário Internacional de Políticas Culturais. Fundação Casa de Rui Barbosa: Rio de Janeiro, 2012.

192

V V
POLÍTICAS DE FOMENTO AO AUDIOVISUAL:
REFLESÕES SOBRE O POLO CINEMATOGRÁFICO DE PAULÍNIA
André Ricardo Araujo Virgens1

RESUMO: Desde o início do século XX, o modelo de produção desenvolvido por


Hollywood conseguiu se fortalecer e se consolidar tanto do ponto de vista da linguagem,
quanto do ponto do modelo de negócios. Ainda nesse contexto, percebemos que iniciativas de
estruturação de polos de produção locais, seguindo esse modelo dos EUA, tem ganhado força
no país. E uma das principais delas se localiza em Paulínia, cidade pertencente à Região
Metropolitana de Campinas que ganhou visibilidade nacional ao investir no fomento ao setor
cinematográfico. Experiência, essa, que apresentaremos aqui.

PALAVRAS-CHAVE: cinema brasileiro, produção, polos de produção cinematográfica,


Paulínia.

INTRODUÇÃO
O mercado cinematográfico, conforme conhecemos hoje, começou a se consolidar em
meados do século XX. Inicialmente hegemonizado por produções europeias, a I Guerra
Mundial acabou ocasionando uma mudança desse cenário e fez que os EUA despontassem
como principal produtor e exportador de filmes no mundo. O paradigma Hollywoodiano
acabou servindo como ideal a ser atingido por diferentes contextos, sendo algo propagado (e
estimulado), por diversos mercados, inclusive o brasileiro.
Hollywood também surge como um marco fundamental para o raciocínio que
realizamos aqui, pois foi a primeira iniciativa que associou a noção de produção
cinematográfica com a partir de um “polo”. Ou seja, dotar uma determinada região de
infraestrutura técnica e de mão de obra especializada para o desenvolvimento de uma
determinada atividade econômica.
Nesse contexto, também percebemos, nas últimas décadas, a existência de
experiências que tentam criar/ consolidar “novos” polos de produção no país. E uma das
principais experiências dessa natureza desenvolvidas no país se localiza no município de
Paulínia, interior de São Paulo.
É importante reconhecer que a noção de “território” é fundamental para a realização
dessas reflexões, especialmente porque o agente municipal (ou distrital, no caso de Brasília)

1
Diretor de Produção vinculado à Escola de Teatro da UFBA, é mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-
Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA. E-mail: <andre.arauj@gmail.com>.
193

V V
toma corpo como incentivador do mercado cinematográfico. Isso representa uma mudança
significativa já que, até então, esse era um papel ocupado, basicamente, pela esfera federal e
por alguns governos estaduais. Estamos falando de um conjunto de políticas adotadas num
espaço geográfico muito específico e de uma nova forma de atuação do Estado, e do mercado,
no campo das políticas públicas de fomento a esse campo.
A apresentação do Polo Cinematográfico de Paulínia será feita, então, com base em 04
categorias de análise, escolhidas a partir da proposição de Robert Stake para estudos de caso:
1) Contexto – caracterização geral da região; 2) Histórico – caracterização e constituição de
marco legal fundacional; 3) Natureza – Caracterização de arranjo institucional/ modelo de
gestão, infraestrutura construída, projetos implementados; e 4) Informantes, com breve
caracterização dos agentes envolvidos no processo. E vale salientar que essa análise levou em
consideração ações implementadas até maio de 2014.
A primeira versão desse artigo foi apresentada no XVIII Encontro Socine de Estudos
de Cinema e Audiovisual, realizado em outubro de 2014.

CONTEXTO
A história da cidade de Paulínia é relativamente recente. Em 30 de novembro de 1944,
o então bairro seria elevado à categoria de distrito de Campinas; e, em 28 de fevereiro de
1964, seria emancipada e elevada à condição de município. Ele se localiza a pouco mais de
100 km da cidade de São Paulo e integra, com outros 18 municípios, a Região Metropolitana
de Campinas.
Em 1968, foi anunciada a construção da Refinaria de Paulínia (REPLAN), a partir de
uma negociação direta entre os agentes municipais e o governo militar, e que, ainda hoje, é a
maior dessa natureza no país. A partir de então, diversas empresas do setor petrolífero (e
derivados) passaram a se instalar na cidade. “Em 1972 a Du Pont do Brasil, em 1974 a CBI
Industrial, em 1975 a Shell do Brasil, e em 1981 a Galvani” (BRANCO, 2011, p. 33).
Empreendimentos que ajudariam a modificar de vez a sua economia rural, convertendo-a num
grande centro industrial.
Esse processo acabou contribuindo, também, para uma mudança radical em relação à
distribuição e aumento populacional na cidade. Se na década de 1950 apresentava uma
população de 7.359 habitantes, eminentemente rural, em 2014, a população de
aproximadamente 92.000 pessoas é eminentemente urbana, com grande proliferação,
inclusive, de condomínios fechados. O município também é marcado por altos índices de
qualidade de vida, apresentando um IDHM de 0,795, renda per capita de R$ 96.896,80 e um
194

V V
PIB total aproximado de R$ 8,2 bilhões de reais, explicado por conta dessa forte atividade
industrial (IBGE, 2013).
A junção de todos esses fenômenos citados deu ao município suas conformações
atuais. Chamam à atenção duas questões principais, mencionadas por pesquisadores que
discutem sobre a urbanização e as transformações no município de Paulínia nos últimos anos:
a expansão urbana, com a proliferação de condomínios habitacionais fechados (horizontais e
verticais), e a construção de megaprojetos na cidade (BRANCO, 2011; FARIAS, 2010; e
WASSAL, 2011).
Em relação a esse último aspecto, percebemos uma forte vinculação dessa concepção à
figura de Edson Moura, que foi prefeito da cidade por 12 anos, entre 1993 e 1996 e,
posteriormente, entre 2001 e 2008. O marco inicial foi a criação do Parque Brasil 500,
concebido a partir 1993, e que consiste num complexo para realização de eventos de grande
porte. Em 2004, foi inaugurada a Rodo-Shopping, estrutura que agrega os serviços de
transporte (municipal e intermunicipal) e um centro de compras. Em 2007 foi inaugurado
novo Paço Municipal e, em 2008, o Theatro Municipal Paulo Gracindo. Todo esse complexo
de estruturas citadas ocupa uma faixa contínua que aparece como uma nova centralidade na
cidade (WASSALL, 2011).

Figura 01: Fachada do Theatro Municipal de Paulínia Paulo Gracindo

Foto: Retirada pelo próprio autor

195

V V
Figura 02: Fachada do Paço Municipal de Paulínia

Foto: Retirada pelo próprio autor

HISTÓRICO
Seguindo a concepção de construção de megaprojetos na cidade, a iniciativa intitulada
“Paulínia Magia de Cinema” começou a ser concebida a partir do ano de 2005, durante a
segunda gestão de Edson Moura como prefeito da cidade e contando com a consultoria de
agentes como o crítico Rubens Edwald Filho e do cineasta Luís Carlos Barreto. A proposta de
investimentos no campo audiovisual surgiu como uma estratégia da cidade se tornar um
centro de atração de investimentos na indústria do entretenimento.
Conforma salienta a reportagem da Folha de São Paulo publicada no dia 02 de
dezembro de 2012, a proposta do então prefeito de Paulínia, Edson Moura, seria criar as bases
para a estruturação de um complexo nos moldes da Disney, projeto de R$ 2 bilhões iniciado
por seu pai em 1992. (MAGENTA, 2012).
A partir daí, a cidade começou a aprovar uma série de marcos legais que propiciaram a
continuidade da proposta, dos quais comentaremos os mais importantes. No final de 2006, a
construção do polo foi autorizada através da Lei nº 2.842 de 21 de dezembro de 2006. E, um
dos principais pontos trazidos por ele é que conforme aponta seu artigo 6º, ficaria autorização
da realização de convênios com entidades públicas e privadas no processo sua implantação.
Isso será feito com os Estúdios Quanta, através de uma parceria público-privada (PPP) – um
processo que será mais bem abordado adiante.
Importante salientar que os objetivos iniciais da proposta não vislumbravam, apenas, o
fomento ao mercado cinematográfico. Ela também visava o setor de turismo, fato que
explicaria a participação da Secretaria Municipal de Turismo e Eventos na operacionalização

196

V V
da proposta. E também o fato de, em seu artigo 5º, inciso IV, fazer referência à criação de
uma cidade cenográfica, citando o exemplo da Rede Globo, “localizada na periferia do Rio de
Janeiro, que recebe um número considerável de visitantes, dispondo de serviços para
atendimento a turistas”.
A sua estruturação também se encontra presente no artigo 52 do Plano diretor do
município, aprovado como a Lei Municipal 2.852, de 22 de dezembro de 2006:
Art. 52 - O Plano Diretor sugere para a Cultura promover,
implementar e incentivar as atividades culturais e, principalmente:
(...)
VII - implantar o Polo Cinematográfico de Paulínia, Projeto "Magia
do Cinema".

Outros três conjuntos de marcos legais foram importantes nesse processo. O primeiro,
aprovado através da Lei 2.845 de 21 de dezembro de 2006, ofereceu as bases para realização
do Festival de Cinema da cidade. Dois anos mais tarde, seria alterado pela Lei nº 2913 de 03
de abril de 2008, que deu sua configuração final. Ficou previsto o pagamento de 650.000 em
prêmios e que o custeio do festival seria pago integralmente pela própria prefeitura municipal.
Comentaremos mais sobre o festival mais adiante.
O segundo permitiu a criação do Fundo Municipal de Cultura e de um mecanismo de
fomento através de renúncia fiscal. Isso foi possível através da Lei nº 2.837 de 18 de
dezembro de 2006 e do Decreto 5.519 de 18 de abril de 2007, que regulamentou a mesma.
Seriam investidos, através do mecanismo de renúncia fiscal, até 10% da receita do município
provenientes do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN - e do Imposto Sobre
a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU. Para o Fundo Municipal de Cultura, seria
destinado o valor mínimo de 0,5% da receita líquida do Município. É do Fundo Municipal de
Cultura que vem a fonte de receitas para o financiamento dos filmes patrocinados pelo projeto
do polo cinematográfico.
E, por fim, foi regulamentado o funcionamento da Paulínia Film Comission, com o
Decreto 5.522 de 24 de abril de 2007. Através desse marco legal, ficou estabelecido que
ficaria responsável por atrair e oferecer suporte operacional às produções realizadas no
município, especialmente na manutenção de cadastro de potenciais prestadores de serviço a
elas.
Ainda estava prevista a criação do Museu do Cinema e das Comunicações , através da
Lei 2.844, de 21 de dezembro de 2006. Chamado também de Cinecom, o museu teria a
finalidade, segundo seu artigo 2º:

197

V V
captar, organizar, preservar e divulgar registros iconográficos e
sonoros, através da produção audiovisual e da comunicação social, que
documentam a história social e cultural do Município e do País, bem como
realizar eventos culturais relativos às artes e veículos da imagética e do som.

Entretanto, essa é uma das propostas vinculadas ao polo que ainda não saiu do papel.
O mesmo acontece com outra iniciativa criada com a Lei nº 2923, de 27 de junho de 2008, e
modificada pela Lei nº 2987, de 24 de dezembro de 2008, que criou a “Paulínia Filmes”, cuja
finalidade era de produzir, distribuir, exibir e comercializar filmes, entretenimento e lazer,
inclusive por meio de participação acionária em projetos e companhias através de sua holding
ou subsidiárias.
Esse projeto de lei foi aprovado no último ano de gestão de Edson Moura. Entretanto,
ainda em 2009, o novo prefeito da cidade, José Pavan Júnior, abandonou-a, sob a justificativa
de inviabilidade econômica. Dois anos depois, o próprio José Pavan foi o protagonista da
primeira grande crise pública enfrentada pelo polo, a partir do cancelamento do Festival de
Cinema de Paulínia de 2012. Alguns veículos locais relatam, inclusive, que esse teria sido o
motivo da cisão ocorrida entre o grupo político do ex-prefeito, Edson Moura, e o do então
prefeito, José Pavan Jr.
Constituído a partir de um espectro legal amplo, podemos resumir estes e outros não
relacionados acima na tabela abaixo:
Tabela 01 – Marco legal – Polo Cinematográfico de Paulínia

Tipo Número Objeto


Dispõe sobre a reforma organizacional da estrutura
Lei 2736 de 24 de junho administrativa da cidade de Paulínia, incluindo o
municipal de 2005 desmembramento da Secretaria de Cultura da anterior
Secretaria de Turismo, Cultura e Eventos.
Lei 2829 de 16 de outubro Dispõe sobre a realização de parcerias público-
Municipal de 2006 privadas no município.
Lei 2836, de 18 de Dispõe sobre incentivos fiscais para instalação de salas
Municipal dezembro de 2006 de exibição no município.
Dispõe sobre a renúncia fiscal para o fomento à
Lei 2837 de 18 de
cultura, cria o Fundo Municipal da Cultura - FMC - no
Municipal dezembro de 2006
município de Paulínia e dá outras providências.
Lei 2.842 de 21 de Dispõe sobre a criação do Parque do Cinema e das
Municipal dezembro de 2006 Comunicações no Município de Paulínia.

Lei 2.844 de 21 de Cria o Museu do Cinema e das Comunicações já


Municipal dezembro de 2006 previsto na Lei 2.842.

Lei 2.845 de 21 de Dispõe sobre a criação do Prêmio do Cinema, do


Municipal dezembro de 2006 Audiovisual e das Comunicações.
198

V V
Lei 2.852, de 22 de
Aprova o Plano Diretor do Município de Paulínia.
Municipal dezembro de 2006

Regulamenta a Lei nº 2.837, 18 de dezembro de 2006,


Decreto 5519 de 18 de abril de que dispõe sobre a renúncia fiscal para o fomento à
Municipal 2007 cultura, cria o Fundo Municipal da Cultura – FMS - no
município de Paulínia e dá outras providências.

Decreto 5522 de 24 de abril de Regulamenta o funcionamento da Paulínia Film


Municipal 2007 Comission.
Lei 2913 de 03 de abril de Cria o ‘Prêmio Paulínia de Cinema, do Audiovisual e
Municipal 2008 das Comunicações’ e o ‘Festival Paulínia de Cinema’.
Dispõe sobre o ‘1º Festival Paulínia de Cinema’ e
5645 de 08 de abril de
Decreto sobre o ‘Prêmio Paulínia de Cinema, de Audiovisual e
2008
das Comunicações’.
Lei 2923 de 27 de junho Autoriza o Poder Executivo a constituir a Empresa
Municipal de 2008 Paulínia Filmes e Participações S/A.
Lei 2987 de 24 de Promove alterações na lei que criou a Empresa
Municipal dezembro de 2008 Paulínia Filmes e Participações S/A.

NATUREZA
A gestão do Polo Cinematográfico de Paulínia e de suas ações relacionadas estão sob
responsabilidade da Secretaria Municipal de Cultura. Entretanto, para o processo de
construção e gestão da infraestrutura de estúdios, a estratégia adotada foi a realização de uma
Parceria Público-Privada (PPP). Após realização de processo licitatório no ano de 2007, a
empresa “Quanta”, especializada em locação de infraestrutura, logística e pós-produção para o
setor cinematográfico, ganhou a concorrência pública no valor de pouco mais de 147 milhões
de reais, num contrato de vigência de 10 anos e prorrogável por até 35 anos.
Conforme reforça Moraes (2012, p. 40), compõem a estrutura do Polo de Paulínia: a
Escola Magia do Cinema, voltada para a formação de mão de obra; o Festival de Cinema de
Paulínia e uma infraestrutura de cinco estúdios de filmagem e de uma film comission para
captação de produções, gerenciamento dessa estrutura e intermediação entre as produtoras e o
poder público local.
Além disso, a cidade tem patrocinado a produção de filmes através de editais anuais,
tendo como contrapartida a realização de filmagens na cidade e o investimento mínimo de
40% do montante recebido com fornecedores da própria região. Estima-se que, entre os anos
de 2006 e 2009, foi investido na implementação do polo cerca de R$ 550 milhões em editais,
ações de infraestrutura, formação de profissionais e marketing e verba proveniente das
iniciativas pública e privada (PACHECO, 2011).

199

V V
Em princípio, esse era um empreendimento tido como um modelo promissor.
Entretanto, nos últimos meses, sua continuidade tem sido alvo de diversos questionamentos,
especialmente após o cancelamento do seu festival anual no ano de 2012 2. Coincidência ou
não, nesse mesmo ano, o contrato estabelecido entre a Prefeitura de Paulínia e os Estúdios
Quanta foi questionado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP). Em voto
tornado público em 20 de agosto de 2013, o conselheiro Renato Martins Costa afirmou:
Não me parece que a operação de polo cinematográfico resulte em
proveito de toda coletividade ou possa ser desfrutada individualmente pelos
administrados, em especial por constatar que a exploração da área se dá
diretamente por sociedades empresárias, não pelos cidadãos daquela
localidade (SÃO PAULO, 2013).

Além disso, apontou como um dos principais problemas do processo licitatório a falta
de repartição de riscos entre o poder público e a iniciativa privada, no processo de contratação
via PPP; considerou irregular o processo de licitação e o contrato, que envolve o processo de
construção e manutenção da infraestrutura do polo; e condenou o ex-prefeito, Edson Moura, a
pagar mil UFESPs, equivalentes a, aproximadamente, R$ 20 mil. Decisão para a qual ainda
caberia recurso.
Para complicar ainda mais a questão, a prefeitura da cidade passou por um período de
grande instabilidade institucional, devido ao fato de o processo eleitoral de 2012 ter
permanecido em aberto por cerca de seis meses. No referido pleito, Edson Moura Júnior (filho
de Edson Moura, prefeito responsável pela implementação do polo cinematográfico) fora
eleito, mas estava com sua candidatura sub judice, pois, na verdade, o candidato no pleito era
seu pai, e a mudança de nome na chapa foi feita de última hora, para evitar o seu
enquadramento na lei da ficha limpa. Nessa situação, assumiu o segundo colocado, José
Pavan Júnior, que iria para o seu segundo mandato.
O clima de instabilidade política na cidade era generalizado, e isso foi percebido em
uma visita técnica realizada durante o mês de abril de 2013. Pairava um clima de incerteza, e
nenhuma grande ação estava sendo tomada (para reativar o polo ou para desativá-lo de vez),

2
Durante os meses de abril e de junho de 2012, o jornal “Folha de São Paulo” publicou quatro matérias
intituladas: “Polo Cinematográfico de Paulínia sofre com descaso”, disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1078063-polo-cinematografico-de-paulinia-sofre-com-descaso.shtml>,
disponível em: ; “Polo cinematográfico de Paulínia é Holywood fantasma em SP”, disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/1079374-polo-cinematografico-de-paulinia-e-holywood-
fantasma-em-sp.shtml>; “Prefeito de Paulínia coloca cinema em segundo plano”, disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1079671-prefeito-de-paulinia-coloca-cinema-em-segundo-
plano.shtml>; e “Tribunal de Contas mostra que polo de Paulínia saiu pelo dobro do preço”, disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1103377-tribunal-de-contas-mostra-que-polo-de-paulinia-saiu-pelo-
dobro-do-preco.shtml>.
200

V V
já que a gestão local poderia ser modificada a qualquer momento. Assim, em julho de 2013, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) emitiu uma decisão favorável para Edson Moura Júnior, e
ele foi conduzido ao cargo de prefeito. Nesse mesmo dia, foi anunciado que a Secretaria de
Cultura, responsável pela gestão das políticas relacionadas ao polo, ficaria sob a
responsabilidade de Mônica Trigo, ex-representante regional do Ministério da Cultura para a
Região Nordeste.
Segundo dados da gestão municipal, no período em que o polo esteve em pleno
funcionamento, foram produzidos, na região, 42 filmes (entre longas e curtas-metragens), o
que resultou em um investimento de cerca de 30 milhões de reais neles. Isso incluindo obras
de grande repercussão, como Tropa de Elite 2 e O palhaço, ambos grandes sucessos de
bilheteria, mas também produções menos conhecidas e de diretores iniciantes, como o
premiado “Trabalhar cansa” de Juliana Rojas e Marcos Dutra. Entretanto, tendo em vista o
montante investido, o processo de mobilização da classe cinematográfica e as expectativas
criadas em torno desse polo, certamente, são necessárias análises mais aprofundadas sobre o
impacto da produção cinematográfica local, seja do ponto de vista das modificações na
dinâmica da cidade, seja na própria cadeia da produção nacional, o que é dificultado pela
ausência de estudos mais específicos e aprofundados acerca desses impactos.

FESTIVAL DE CINEMA
O I Festival de Cinema de Paulínia foi realizado entre 05 e 12 de julho de 2008.
Seguindo a lógica do star system, e numa tentativa de se firmar como um dos mais
importantes do país, ele contou com o tradicional tapete vermelho e reuniu alguns dos atores e
atrizes mais conhecidos do público brasileiro (a maioria vinculada à Rede Globo de
Televisão). Em suas três primeiras edições, ele contou com a figura central de Rubens Edwald
Filho, ora como curador, ora como membro do júri. Segundo dados presentes em relatório
elaborado pela Secretaria Municipal de Cultura, em suas primeiras edições, ele envolveu um
público de 16.000 pessoas, em 2008, e 33.000, em 2009, sendo que as sessões do festival são
gratuitas e abertas ao público em geral.
Algo que também chama atenção é o montante investido na premiação dos filmes que
concorrem na mostra competitiva do festival sendo, atualmente, aquele com o maior montante
em dinheiro direcionado para essa área. Na edição de 2011, por exemplo, a premiação de
melhor longa rendeu R$ 250 mil reais para o filme ‘Febre do Rato’, de Cláudio Assis, como o
melhor filme de ficção; R$ 35 mil reais ao ator/diretor Selton Mello, pelo prêmio de melhor
diretor do filme ‘O Palhaço’; R$ 100 mil reais para o melhor lonfa documentário, “Rock
201

V V
Brasília”, de Vladmir Carvalho; e R$ 25 mil reais, para o filme ‘Tela’, de Carlos Nader, como
melhor curta-metragem nacional. No total, o festival de 2011 distribuiu R$ 800 mil reais em
prêmios.
Em 2013, com a proposta de retomada do Polo Cinematográfico, percebemos uma
mudança sutil, mas significativa. Ele passou a se chamar Paulínia Film Festival,
provavelmente pelas pretensões de se tornar um evento internacional, de tentar inserir a
cidade num circuito internacional ou mesmo como estratégia de marketing. Essa edição, de
“retomada”, acabou sendo menor e funcionou como uma mostra de filmes produzidos no
polo, e também contou com a exibição de filmes brasileiros contemporâneos. Mas não houve
mostra competitiva, e isso seria retomado, segundo os planos do poder público municipal,
com a realização da 6ª edição do festival em julho de 2014.

INFORMANTES
No município de Paulínia, percebemos uma grande concentração das ações em torno
Poder Público, através da Secretaria Municipal de Cultura. Algumas iniciativas, em conjunto
com a iniciativa privada, acabaram não tendo continuidade, como uma parceria com o
SENAC, para oferecer cursos de formação, e com a empresa Lego, para manter um estúdio
voltado para animação stop motion. Assim, elas não serão incluídas no escopo de agentes
envolvidos na estruturação do polo cinematográfico de Paulínia.
Poder público: A Secretaria Municipal de Cultura aparece como o principal agente
responsável pelo planejamento, pelo acompanhamento, pela execução e pelo controle de
ações relacionadas ao Polo Cinematográfico de Paulínia. O Fundo Municipal de Cultura é o
principal mecanismo de financiamento (em conjunto com o mecanismo de incentivo fiscal); a
Paulínia Film Comission aparece como órgão que assessora as produções externas na cidade;
e a Escola Magia do Cinema aparece como espaço de formação e qualificação de mão de
obra. Porém, tanto as atividades da film comission quanto a da escola estão interrompidas.
Iniciativa privada: A construção e a manutenção da infraestrutura de estúdios
construídas na cidade são feitas através de parceria do público e do privado com os Estúdios
Quanta, que venceram processo licitatório para cumprir tal função.

202

V V
Figura 03 – Polo cinematográfico de Paulínia – Estrutura institucional de fomento

Fonte: Produzido pelo autor

CONCLUSÕES INICIAIS
O primeiro aspecto que chama a atenção em relação à experiência de Paulínia é a
centralidade ocupada pelo poder público nas ações relacionadas ao fomento da atividade
cinematográfica na cidade. Essa iniciativa não surgiu de uma demanda popular, e nem de um
histórico de relação da cidade com o tema. Mas sim da vontade de um grupo político que
entendeu que o fomento ao cinema (atrelado também ao ramo do lazer e do entretenimento)
poderia se tornar num novo vetor econômico para o município. Ou seja, há um processo de
personalização das políticas públicas.
Relacionado a isso, chama atenção o fato que Paulínia ainda carece de organizações
locais voltadas para o campo cinematográfico, como uma classe artística e/ou uma classe de
produtores, de forma que a iniciativa de realização de ações não fique restrita ao setor público.
Ou que a legitimação do polo não se dê, apenas, pelo processo de atração de produções de
fora da cidade. Em seu último edital (lançado já no ano de 2014), houve uma restrição maior,
dando foco especial a produtoras paulistas e da Região Metropolitana de Campinas,
entretanto, ainda é uma ação de pequena escala para solucionar esse gargalo.

203

V V
Nesse contexto, acreditamos que o maior desafio dessa política de fomento local seja
construir na cidade uma rede de agentes voltados para o campo cinematográfico de forma que,
com uma classe mais ativa e organizada, a própria gestão do polo possa ser acompanhada com
maior fiscalização pela sociedade civil, e que a descontinuidade de ações sejam mais difíceis
de ocorrer. O próprio processo de paralisação das atividades do polo, entre 2011 e 2013,
demonstra que, apesar de ser respaldada por um extenso arcabouço legal e pelo investimento
de vultosas quantias de dinheiro público, isso não foi suficiente para que mudanças na gestão
municipal promovessem alterações substanciais nessa política.
Até porque, o processo de paralisação das atividades do projeto entre 2011 e 2013
demonstra que, apesar de ser respaldada por um extenso arcabouço legal, e também pelo
investimento de vultosas quantias de dinheiro público, isso não foi suficiente para que
mudanças na gestão municipal promovessem alterações substanciais nessa política.
Poderíamos fazer questionamentos também ao modelo adotado pela cidade, que talvez
se aproxime (ideologicamente) da experiência da Vera Cruz, uma iniciativa nacional com
inspiração direta nos grandes centros. Hollywood aqui é a grande inspiração, começando pelo
slogan difundido em diversas campanhas locais de divulgação do polo – “A Hollywood
Brasileira”; pela reprodução de um modelo de valorização de um star system nacional, com
direito à implementação de uma “calçada da fama” nas imediações do Theatro Municipal, e
também pelo forte investimento em infraestrutura (o cinema de estúdios).
Essa grandiosidade perpassaria uma concepção planejada e devidamente estruturada
de política de fomento ao desenvolvimento da produção cultural e da economia da região ou
não passaria de uma estratégia voltada para o citymarketing, em que os grandes projetos
fossem uma matriz de visibilidade e gerasse outros tipos de consequências, como a
intensificação da especulação imobiliária na cidade?
De toda forma, essa é uma experiência recente e que ainda carece de tempo de
maturação para dar respostas melhores. Ainda assim, acreditamos que ela deve ser ajustada de
forma que a cidade (e não apenas o seu poder central) possa fazer parte, de fato, da iniciativa.

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V V
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concessão administrativa, da prestação de serviços ao Estado, por meio da disponibilização, operação,
manutenção e conservação, precedida da execução de obra pública, de infraestrutura cultural.
Autoridade Responsável pela Abertura do Certame Licitatório, pela Homologação e Ordenador da
Despesa: Edson Moura (Prefeito). Autoridades que firmaram os Instrumentos: Edson Moura
(Prefeito), Hamilton Campolina Júnior (Secretário dos Negócios Jurídicos) e Vanderli Aparecida
Facchini (Secretária Chefe de Gabinete). Relator: Conselheiro Renato Martins Costa. TC-
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205

V V
PROGRAMA CULTURA VIVA:
PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES DE UM CAMPO POLÍTICO
Ariel Nunes1

RESUMO: Este artigo é ao mesmo tempo, fruto de algumas reflexões da pesquisa de


mestrado e a primeira versão do projeto de doutorado em Antropologia Social. Aqui proponho
um estudo com gestores que fazem ou fizeram parte dos processos de formulação e
manutenção do programa Cultura Viva - inaugurado pelo Ministério da Cultura em 2004,
durante a gestão do então Ministro Gilberto Gil. A principal ação do programa Cultura Viva
são os Pontos de Cultura, compostos por artistas, grupos e coletivos culturais contemplados
pelo programa via editais públicos. Os Pontos de Cultura, assim como o Cultura Viva operam
através do modelo de gestão compartilhada entre MinC, Secretarias estaduais e municipais de
Cultura, artistas, produtores e agentes culturais. Para este momento, proponho uma etnografia
com os gestores no intuito de compreender o processo de construção de políticas culturais nas
quais o Cultura Viva está inserido, assim como os elementos discursivos que reforçam a
diversidade cultural como um instrumento importante na construção de um outro projeto de
nação.

PALAVRAS-CHAVE: cultura viva, diversidade cultural, políticas públicas culturais,


antropologia política.

Apresentação: A outra ponta dos Pontos


O objetivo da pesquisa de doutorado é analisar os processos de formulação e
implementação do Programa Nacional de Promoção de Cidadania e da Diversidade Cultural,
também chamado de Cultura Viva, propondo um estudo com os gestores que participam ou
participaram da idealização e implementação do Cultura Viva - inaugurado pelo Ministério
da Cultura em 2004, durante a gestão do então Ministro Gilberto Gil. Neste presente artigo
sintetizo as principais etapas da pesquisa, assim como as possibilidades e dificuldades
metodológicas em se projetar um estudo com agentes públicos de cultura inseridos em um
campo político e institucional.
A proposta de uma etnografia com gestores culturais será aqui dividida em quatro
momentos: o primeiro se refere aos obstáculos de acesso aos gestores, instituições e
informação públicas. Procuro aqui problematizaras dificuldades metodológicas no contexto
institucional no intuito de alavancar categorias importantes como Estado, público, privado.
Em seguida trago uma reflexão sobre o domínio da linguagem, dos discursos e metáforas
presentes nesse campo institucional. O terceiro momento, ainda sobre o tema da linguagem,
1
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (Dan-UnB)
.
206

V V
sugiro a abordagem de certos eventos políticos sob o ponto de vista da performance e do
ritual político. Ao final, trago uma breve reflexão sobre outros atores importantes que
compõem o programa Cultura Viva, como estão inseridos em uma mesma comunidade que
deflagra relações entre artistas, idealizadores, produtores e gestores públicos.
O Programa Cultura Viva está inserido em uma política de reconhecimento, inclusão e
fomento daqueles que não protagonizaram as políticas públicas culturais antecedentes, a
dizer: artistas populares, mestres e griôs, artistas circenses, atividades culturais de periferias,
de mídias digitais comunitárias, assim como atividades culturais produzidas por comunidades
indígenas e de terreiros. O programa descentralizou convênios, criou coletivos organizados
em redes e veio acompanhado de expectativas de participação de novos atores, mas também
encontrou obstáculos na sua execução, como descontinuidades de gestão e atrasos no repasse
das parcelas dos convênios com os Pontos.
Durante o mestrado convivi com artistas e agentes culturais envolvidos nos Pontos de
Cultura de Goiânia, Brasília, Mato Grosso e Rio de Janeiro, e desde a conclusão da pesquisa,
venho construindo diálogos com agentes culturais que idealizaram, formularam ou que ainda
estão envolvidos com o Cultura Viva. Esses agentes culturais operariam “institucionalmente”
o programa, fazendo parte da engrenagem necessária para regulamentação, implementação e
manutenção do Cultura Viva, são aquilo que eu poderia chamar aqui de “a outra ponta dos
Pontos”: uma comunidade política e institucional que está em relação nem sempre
harmoniosa com os artistas que coordenam os Pontos, também conhecidos como ponteiros2.

Procedimentos metodológicos
A pesquisa de campo realizada com os ponteiros, durante a gestão da então Ministra
Ana de Hollanda veio carregada de novas reflexões sobre o programa, mas naquele momento,
o meu foco era realizar uma pesquisa com artistas e agentes culturais. Para o momento, “na
outra ponta dos Pontos”, estou pisando em um terreno muito diferente, de atores muito
distintos. O que chamo aqui de “gestor” implica em Secretários (e Ex-Secretários) de Cultura,
(estadual, municipal), Secretários (e Ex-Secretários) do MinC, agentes que ocuparam ou
ocupam cargos de confiança, e também, agentes culturais administramente envolvidos no

2
Neste sentido, há o interesse em contrastar e/ou incluir os resultados da pesquisa realizada junto aos ponteiros
com a atual pesquisa com os gestores que atuam na implementação e formulação do Cultura Viva. Assim feito,
caberia refletir como esses discursos se comunicam. É importante destacar que não proponho uma analise sobre
a execução do Programa Cultura Viva, seus modos de organização em rede, e o cotidiano dos artistas
contemplados por esse programa nacional, uma vez que durante o mestrado tal análise já foi realizada. Ao
mesmo tempo, compreendo que as articulações entre os ponteiros e instituições, acabam por compor uma parte
indissociável do Programa
207

V V
lançamento e implementação do Cultura Viva. A etnografia com esses atores pode ser
realizada através de conversas e entrevistas semi estruturadas nos seus ambientes de trabalho,
ou sejafrequentemente, nas Secretarias e no Ministério da Cultura.
Ao propor uma pesquisa com os gestores de cultura, estamos diante daquilo que a
antropóloga Laura Nader (1972) definiu como studyingup: a pesquisa com elites, grupos
prestigiados, ou com esferas de poder. A etnografia em contextos up permite análises sobre a
estrutura social e sobre a organização institucional, ao mesmo tempo em que revela barreiras
etnográficas, principalmente ao que se refere à observação participante. Se a etnografia
freqüentemente implica em viagens para “comunidades exóticas”, ou em pesquisas em
ambientes privados (famílias, grupos e comunidades), na convivência e envolvimento diário
com os nativos; o estudo com sociedades up inverteria a mística antropológica de observação
participante (Nader, 1972). A inversão metodológica no estudo com sociedades up da qual
fala Nader (1972), implica aqui em uma reorganização de debates importantes sobre poder
público, Estado e sociedade.
O primeiro limite metodológico da observação participante aplicada ao estudo com os
gestores - que por sua vez, pertencem uma comunidade up - implica nos obstáculos de acesso
às instituições, agentes, e informação públicas. Os gestores envolvidos com o Cultura Viva
participam de uma comunidade especializada que media as políticas públicas culturais e
elaboram ações de governo, que são formuladas na convivência burocrática com seus pares.
Sendo assim, creio que eu não estou incluída nessa comunidade e portanto, problemas como
“dificuldades de acesso” à esses atores e à essas instituições podem ocorrer.
Lidar com grupos de poder impõe ao antropólogo outras possibilidades de observação
e, portanto, outras reflexões sobre o método etnográfico. Nessa discussão podemos questionar
sobre como a dificuldade de acesso aos gestores e à informação pública pode revelar um
aspecto privativo nas relações entre os up. Podemos questionar ainda sobre como a gestão
pública engendra percepções de lei e de gestão compartilhada. Essas questões nos permitiria
reorganizar a posição dos burocratas na construção da cidadania em contextos democráticos.
Isto porque o Cultura Viva é um programa construído através da “participação popular”, de
modo que o próprio programa sugere uma reorganização de categorias como público, privado,
Estado e sociedade. Nesse debate, cidadania e democracia também são termos que precisam
ser retomados, especialmente quando tratamos do tema da participação popular, um dos
motores de funcionamento do Programa Cultura Viva. A pesquisa com gestores da área

208

V V
cultural nos permitiria portanto, reprocessar conceitos e categorias tão repetidas em contextos
institucionais.
Se a observação participante implica em limites para esta pesquisa, ela é também a
propulsão para muitas perguntas sobre conceitos fundantes e sobre o próprio fazer
antropológico. Dentre os limites metodológicos com os quais me deparo ao realizar este
estudo, muitos que já foram apontados por outros pesquisadores, cada qual com estratégias
distintas, para diversas experiências de campo. Cris Shore e Susan Wright (2005) retomam o
problema do studying up, enquanto um esforço metodológico em focar nas corporações, elites
e centros de poder em contraste com a tradicional ênfase antropológica no studying down.
Todavia, os dois autores investem no studying through enquanto possibilidade de traçar
caminhos no qual o poder cria redes de relação entre atores, instituições e discursos através do
tempo e espaços. Os dois autores demonstram um interesse especial nos instrumentos
lingüísticos e metafóricos que legitimam as políticas públicas e como esses constroem sujeitos
e objetos de poder que modelam identidades. Os dois autores propõem o desafio de mobilizar
o discurso político para compreensão de ideias como “cultura nacional” ou “políticas de
cultura e identidade”, metáforas operantes no contexto desta pesquisa.
A proposta do studying through acaba por ser a condição para esta etnografia, uma vez
que o Cultura Viva é um programa nacional que enreda indivíduos de diversas esferas
artísticas, institucionais e políticas. Como já foi dito aqui, esta pesquisa com gestores não
ignora a contraparte fundamental do programa: artistas, produtores, agentes culturais e
público em geral. E mesmo quando focamos no contexto institucional, estamos diante de
redes de poderes locais, municipais, federal, internacional e multilocal. Neste campo político-
cultural e multilocal, também estamos lidando com discursos, conceitos e metáforas que são
modelados nessas diversas esferas de poder.

A política cultural como linguagem: discursos e metáforas


O potencial analítico da linguagem foi explorado por George Marcus (1995), que
apontou para as metáforas e expressões discursivas de instituições legais como possibilidades
de análise. Associada à proposta de uma etnografia multi situada Marcus sugeria que as
análises com sociedades complexas exigiriam do pesquisador explorar expressões discursivas
cotidianas3. Ao analisarmos a política cultural através do seu potencial lingüístico (discurso,

3
Tal discussão foi desenvolvida por outros autores que refletiram sobre o tema dos discursos sobre a noção de
tradução no trabalho do antropólogo (Geertz, Gadamer, Rabinow, entre outros). Acultura poderia ser tomada
como um texto (para usar os termos de Geertz) e atuaria na fronteira entre comportamentos e a interpretação
209

V V
metáforas, conceitos e categorias) vale refletir sobre as operações internas das instituições,
buscando compreender como as instituições se legitimam em analogias fundantes, para usar o
termo de Mary Douglas (1998). Como essas expressões metafóricas, discursivas produzem
efeitos, ou em que são fundamentadas, por quais analogias a estrutura social pode ser
observada.
Para Douglas, essas analogias se encontram sempre “ou no mundo físico ou no mundo
sobrenatural ou na eternidade ou em qualquer outro lugar, contando que não seja encarada
como um arranjo socialmente elaborado” (:58, 1998). Quais analogias eu encontraria em
instituições que formulam políticas públicas de cultura. A princípio, podemos pensar que o
próprio nome do programa, Cultura Viva, sugere algo “vivo”, “pulsante”, que tem vida, e que
portanto possui em alguma medida, um fundamento na natureza. Isto poderia estar de acordo
com outra afirmação de Douglas: “as instituições se prendem à analogias elaboradas a partir
do corpo” (:59, 1998). Se as instituições são fundadas em categorias fundantes e se isso se
aplica ao caso do MinC, Cultura Viva, ou dos discursos ou dos seus gestores, já é uma
questão que merece ser verificada empiricamente. Essa problemática todavia, reforça questões
sobre os modos como os discursos e analogias se legitimam publicamente.
Sob uma perspectiva simbólica e interpretativa, Marcus e Fischer (1986) enfatizaram a
polifonia em multi localidades como uma possibilidade de pesquisa antropológica. Tal
abordagem foi criticada por Cris e Shore (2005), que consideraram polifonia e
multilocalidade apenas termos que ofereceriam uma “ilegítima eqüidade às vozes dos
desprivilegiados”. “Quais vozes prevalecem” ou “quais seriam os discursos que legitimam ou
produzem autoridade”são questões que interessam para esta pesquisa, mas merecem ser
verificadas empiricamente. De todo modo caberia aqui indicar aqui o interesse em analisar os
discursos sobre diversidade cultural que orientam o Cultura Viva, refletindo sobre como a
linguagem política é organizada e como esta produz efeitos.
É importante aqui frisar um ponto importante sobre esse interesse nos discursos: esta
pesquisa não possui o objetivo de operar como um porta voz ou um amplificador dos gestores
ou de qualquer instituição, grupo ou classe artística. Aqui o interesse é produzir uma
interpretação ou um conhecimento localizado, ambientado em uma comunidade política que
formula programas nacionais de cultura e que atua como mediadora nas relações com os
artistas. Essa comunidade política opera como codificadora e organizadora de informação,

cultural. Esses autores produziram narrativas sobre os obstáculos da observação participante e a urgência de
acionar outras instâncias analíticas. Esses esforços instrumentalizaram os antropólogos para a construção de
textos que analisam o discurso como uma ferramenta importante.
210

V V
especialmente quando tratamos do caráter burocrático da manutenção do Cultura Viva, do
lançamento de editais para os Pontos de Cultura e das assinaturas e prestações de contas dos
convênios.
Durante a pesquisa de mestrado pude acompanhar o cotidiano de artistas que
participam de editais e que, uma vez selecionados, começaram a lidar com problemas de
ordem administrativa, que não faziam parte da sua vida de artista. E neste sentido, um dos
principais impasses do Cultura Viva talvez esteja na burocratização do programa. No
processo seletivo dos Pontos de Cultura, por exemplo, os concorrentes aos editais submetem
seus projetos, que em seguida serão avaliados por membros especializados4. É essa
comunidade política e especializada que instaura convênios e estabelece uma relação
institucionalizada com artistas, agentes e produtores culturais.

A política pública cultural se faz com o Estado:


Aqueles que atuam diretamente na administração pública para a implementação de um
programa nacional, como é o caso do Cultura Viva, também estão inseridos no campo das
políticas públicas culturais, que é parte e se faz com o Estado. Neste sentido, quando
proponho um estudo com gestores eu também estou lidando com um campo institucional,
político e que compõe aquilo que genericamente definimos como Estado - conceito já
naturalizado. Todavia, não proponho aqui uma teoria sobre o Estado ou uma concepção
diferente para este conceito. A questão é que estou lidando com efeitos de Estado e que,
portanto, esse termo merece um tratamento nessa pesquisa. Também não se trata de reduzir o
Estado às suas instituições, mas de compreendê-las como são processadas com (ou no)
Estado5.
Quais efeitos de estado podemos observar em uma etnografia com gestores que
formulam um programa nacional de cultura, o Cultura Viva, e como o Estado é acionado
institucionalmente. O esforço aqui é de evitar uma abordagem que reforça uma centralidade
autônoma. Tal abordagem acabaria por naturalizar tanto o “Estado”, como outras categorias

4
Os membros dessas comissões de análises dos projetos nem sempre são gestores mas podem atuar como
avaliadores especializados, mas frequentemente prestam algum serviço na área administrativa de Secretarias ou
das redes virtuais dos Pontos de Cultura. Não são necessariamente burocratas, mas se movimentam entre espaços
institucionalizados e são personagens importantes para esta pesquisa.
5
As práticas de governo não são aqui pensadas como operações racionais e reduzidas a um núcleo impenetrável.
Tais práticas estão articuladas a muitas esferas de poder de diferentes modalidades de organização que vão para
além das paredes institucionais, dentre as quais poderia citar as ONGs, os coletivos, organizações e organismos
multilaterais - articulações que podem ser verificadas, inclusive no programa Cultura Viva.
211

V V
como “sociedade”, “público” e “privado”, admitindo-as como auto explicativas6. Tais
categorias são importantes para esta pesquisa, mas serão abordadas de modo a evitar análises
essencialistas, que pouco rendem no debate e na pesquisa empírica.
Proponho lidar com essas categorias empiricamente, acompanhando os meios pelos
quais essas são acionadas durante o processo de formulação e manutenção do Cultura Viva.
Os gestores de cultura se fazem com o Estado, através da construção de políticas públicas
culturais. Trabalham diretamente com categorias importantes para esta pesquisa: como
sociedade, poder público e privado, democracia, Nação... e Estado, acaba por compor um
conceito importante que se articula com todas essas redes de conceitos e categorias.
Reforço aqui o caráter público-privado nesse contexto institucional, que pode ser
observado desde a execução do Cultura Viva, quanto nas relações políticas dos gestores. No
entanto, estamos lidando com a parte institucional, burocrática e pública da cultura. Neste
sentido, estudar políticas públicas sob o ângulo da antropologia social implica de inicio, a
suspensão da ideia de público como qualificativo para os fins das ações do Estado (Souza
Lima, :369, 2008). Quais são os momentos na pesquisa em que as distinções entre público e
privado são embaçadas e como são acionadas pelos gestores, que podem, inclusive, dificultar
o acesso às instituições e informações públicas? Philip Abrams (1988) traz um argumento
importante para esta discussão quando afirma que a presunção de que o setor público é um
setor privado sobre qual o conhecimento não deve ser tornado público é um dos principais
fatores que dificulta uma análise importante sobre o Estado.
Mais uma vez estamos diante de obstáculos metodológicos que dificultariam o acesso
à informações públicas. No entanto, ao mesmo tempo em que a observação participante se
torna um obstáculo, é também um motor que questiona a produção antropológica, e neste
sentido, seria importante repensar a etnografia nesse contexto institucional que opera com as
categorias de público e privado. A observação participante no estilo “imersão e cotidiano face
a face”, para captação da “totalidade” de uma organização, aqui já não é realizável. Tal
modelo etnográfico, cânone da disciplina, encontra obstáculos na sua realização em contextos
institucionalizados. Mesmo havendo dificuldades no acesso à instituições e gestores, há
outros caminhos metodológicos que podem me ligar à essa comunidade política, tais como:
entrevistas por telefone ou e-mail, o acompanhamento da repercussão nas mídias e entre os
ponteiros, e o estudo dos documentos que formulam o Cultura Viva. Todos esses caminhos

6
Uma reflexão sobre o Estado em ação pode ser um bom ponto de partida para pensar em práticas de governo
que desafiam fronteiras clássicas como Estado, sociedade e mercado. O Estado tem sua história. Essa
problemática ainda não foi desenvolvida para a apresentação deste projeto.
212

V V
nos permitiriam compreender, dentre outros processos, a construção da auto-imagem desses
gestores e de suas instituições.
Portanto, o que proponho é um estudo sobre um conhecimento local, de uma
comunidade que formula programas nacionais de cultura e que está em consonância com
outras formulações e políticas mais amplas que a esfera nacional. A política será aqui
analisada enquanto categoria cultural e enquanto linguagem através de uma etnografia que
investe e interpela não só a formulação de políticas públicas culturais, mas também a
produção de conhecimento antropológico.
Estamos lidando com uma comunidade política de múltiplos atores que operam na
implementação do Cultura Viva, programa inserido no campo das políticas pública culturais,
que por sua vez são produzidas com o Estado. As políticas públicas culturais também são
Estado, e estão enredadas institucionalmente. A política se manifesta nesses espaços de poder,
se faz através deles. Neste sentido, a política seria por excelência o espaço decisório sobre um
grupo social, um domínio onde se exercita o poder (Teixeira: 14, 2014). A cultura em suas
práticas e técnicas atua como um elemento estruturante na construção do Estado, que se
legitima través da linguagem.

A linguagem das Teias: rituais políticos e performance entre gestores


Neste campo político e institucional no qual se desdobra esta pesquisa, uma
ferramenta potente é a análise de rituais. Como já afirmava Leach (1966), os rituais não
precisam estar necessariamente subordinados ao sagrado, eles podem ser observados através
de seu aspecto comunicacional, que estabelece relações e posições na estrutura social. A
comunicação pode se dar por intermédio de palavras, atos e gestos que podem ser
interpretados pelo pesquisador. Para além dos discursos oficiais e pesquisas de documentos
que são importantes para esta pesquisa - a comunicação direta com os gestores pode implicar
em um evento que pode ser analisado como ritual político.
Segundo Mariza Peirano (2001), os rituais são tipos especiais de eventos mais
formalizados e esteriotipados e, portanto mais suscetíveis à análises porque já estão
recortados em termos nativos. Em determinados contextos, a fala pode vir acompanhada de
uma performance ou pode estar inserida em um contexto ritual. Não só as entrevistas com
gestores são eventos em potencial. Proponho aqui, rapidamente, dar destaque às Teias,
encontros altamente performatizados e que podem ser compreendidos como rituais políticos.

213

V V
As Teias são encontros em nível nacional que ocorrem bienalmente, reunindo todos
aqueles que compõem o Cultura Viva: artistas, ponteiros, políticos, representantes do MinC,
simpatizantes de partidos, produtores, gestores, administradores da área cultural e público em
geral. Na Teia nacional7, além de apresentações artísticas, oficinas, rodas de conversas,
apresentação de trabalhos em GTs, há também os fóruns, onde os ponteiros se encontram com
os gestores e representantes do MinC para discutirem os impasses do Cultura Viva. Ao que
pude presenciar, esses eventos amplificam as relações de tensão entre gestores e artistas. Os
fóruns que ocorrem nessas Teias podem ser analisados como um momento particular que
envolve diferentes níveis de relação entre artistas, gestores e público. Esse encontro pode ser
observado como um poderoso aparelho comunicacional que põe em evidência e uma
determinada comunidade.
A Teia é um encontro político entre ponteiros e gestores públicos, mas é também um
momento para manifestações culturais públicas, performaticamente apresentadas pelos
diversos artistas durante todos os dias do evento. As apresentações são abertas e funcionam
como uma “vitrine” onde os espectadores são, inclusive os gestores públicos. Esses eventos
podem ser capturados etnograficamente através da observação dos gestores, (e demais
envolvidos) no sentido de estar atento para aquilo que é performaticamente pronunciado. A
oralidade e traz consigo efeitos perlocucionários, e neste sentido se fazem coisas com
palavras (Austin, 1962). Esses efeitos só podem ser analisados posteriormente, mas implicam
na necessidade do pesquisador estar presente nesses encontros, e de estar profundamente
envolvido com o campo. Exatamente por essa condição eu ainda não posso antecipar
resultados de pesquisa sob análise de ritual político, mas indico aqui tal possibilidade analítica
com os gestores.
O tipo de linguagem que estamos considerando aqui pertence aquilo que Austin
(1962), definiu como “expressões lingüísticas que se disfarçam”, ou que sintetizam

7
Além das Teias nacionais, que são encontros itinerantes que ocorrem bienalmente, há também as Teias
regionais, municipais, estaduais ou temáticas (de mídia, cultura popular etc) que ocorrem anualmente. Durante a
pesquisa de mestrado participei da Teia regional do centro-oeste de 2011, que ocorreu em Cuiabá e que foi
naquele momento analisada como um ritual político marcado por um pólo ideológico e um pólo sensível, que
oscilava entre sentimentos de pertença e cisão. Tal análise foi calcada na observação (nem tanto participante)
das performances exageradas dos gestores e artistas. Neste encontro entre “formuladores” e “executores” do
Cultura Viva, pude observar que os diálogos nem sempre são harmoniosos. Na citada Teia, presenciei o embate
entre o discurso do Ministério da Cultura representado pela bancada de secretários do MinC, e as demandas dos
ponteiros, e compreendi este evento como um ritual político que evidenciava a interação entre brokers: os
ponteiros, como “grupos orientados comunitariamente”, e os gestores públicos como “grupos orientados
nacionalmente” (Wolf, 1955 e 1956) evidenciaram diferentes níveis mediação local, regional e nacional. A Teia
Centro-Oeste 2011 reforçou uma dinâmica comunicacional complexa desses encontros e que merecem ser
retomados para a pesquisa de doutorado.
214

V V
qualidades. Neste sentido, realizar uma etnografia nas Teias sob a perspectiva do ritual e da
performance, implica em uma observação que leva em conta o aspecto comunicativo e o
contexto da situação, que se revelam nos múltiplos sentidos dos encontros sociais (Peirano:
11, 2001).
A centralidade do ritual é notavelmente observada no trabalho de Victor Turner
(1972), que o analisa através de suas propriedades comunicacionais que (re) ligam diferentes
fases e interesses da sociedade. Turner (1972) analisou esse processo através do conceito de
drama social, que se dividia em quatro fases: reconhecimento de uma crise, ampliação da
crise, regeneração e rearranjo (ou ruptura). A crise se caracterizaria pela distorção, ampliação
ou subversão de uma ordem, e é caracterizada por momentos nos quais os atores envolvidos
estão em crise, em conflito.
Tal situação poderia ser observada etnograficamente nos fóruns das Teias, que
sintetizam os conflitos entre gestores e artistas. Esses conflitos são protagonizados pela fala e
performance dos envolvidos. E portanto, cada etapa do drama deverá ser observado
etnograficamente. Neste sentido, o drama operaria como uma ferramenta, ao mesmo tempo,
descritiva e analítica dos processos de mudança, conflito e unidade do programa Cultura
Viva. O conceito da drama social considera o conflito e a instabilidade como aspectos
latentes da organização social, e que esses conflitos são produzidos por princípios estruturais
contraditórios. Esses princípios por sua vez não são assumidos conscientemente ou
diretamente pelos atores, mas produzem efeito sobre suas condutas. É justamente esse caráter
latente dos conflitos que instaura um lugar crítico do ritual, pois uma vez o conflito
instaurado, decorre a instalação da crise e a suspensão da ordem e da estrutura operante.
A disputa e os conflitos são inerentes a todos os campos sociais e, portanto, também se
manifestam em espaços institucionalizados, afetando todos os envolvidos em um contexto ou
evento. A expressão da fala nessas situações é um ingrediente performático e pode ser
articulado às análises de rituais políticos. As falas só podem ser apreendidas
etnograficamente, e a partir de então são interpretada e narradas pelo pesquisador. Carla Costa
Teixeira (2001) ao analisar o processo de cassação do deputado Sérgio Naya no Congresso
Nacional, reforçou as qualidades intrínsecas das bravatas; ações de desculpas individuais
proferidas por deputados cassados. As bravatas se mostraram para aquele contexto, uma ação
individual intencionada, um ato de fala que faz coisas com palavras.
No campo dos gestores públicos de cultura eu poderia encontrar ações performáticas
desses atores, especialmente em ambientes públicos, como é o caso dos encontros que

215

V V
ocorrem nas Teias. A linguagem comunicada pelos gestores é um instrumento importante
para análise que proponho e ela pode ser apreendida desde a análise de documentos e
discursos oficiais, quanto sob um ponto de vista performático e ritual desses atores em
determinadas circunstâncias.

Cultura Viva: outros atores, novas identidades, outras comunidades


Além dos ponteiros, outros atores não podem ser ignorados na construção,
consolidação e implementação do Cultura Viva - muito embora, para este momento, também
não façam parte do foco de pesquisa - pois atuam como mediadores no processo de
construção e consolidação do Cultura Viva. Me refiro ao ideólogos do programa, que nem
sempre são gestores ou artistas. E às vezes, são os dois. Fazem parte de um contexto
específico, mas importante da dinâmica do programa. Atuam direta e indiretamente na
formulação do Programa Cultura Viva e ocupam uma posição de referência8.
Poderia dizer que os idealizadores do Programa Cultura Viva estão entre duas
instâncias, aquilo que Roberto Cardoso de Oliveira (2006) chamou de comunidade de
argumentação e comunidade de comunicação. Na comunidade de comunicação poderíamos
incluir o papel da imprensa e da mídia em criar uma comunidade imaginada (Anderson,2008)
para a construção de uma outra ideia de nação através da diversidade cultural 9. A
“comunidade de comunicação” é uma instância constitutiva de qualquer tipo de conhecimento
e é marcada pela intersubjetividade – inerente por sua vez, a toda comunidade de
argumentação (Cardoso de Oliveira 2000) A comunidade de comunicação remete à
comunidade de argumentação, esta última opera como um núcleo duro da comunidade de
comunicação.
Para se comprovar a validade dos argumentos, pressupõe-se a existência de uma
“comunidade de argumentação” para avaliá-lo. A comunidade de comunicação e a
comunidade de argumentação são, portanto, termos co-dependentes, são constituídas tanto por
indivíduos de um grupo cultural qualquer, quanto por elementos de um determinado segmento
profissional (científico, técnico ou administrativo) de uma mesma sociedade (Cardoso de
Oliveira, 1994 e 2006). Em qualquer comunidade de argumentação, os seus integrantes estão

8
Dentro dessa esfera de atores fronteiriços, gostaria de destacar aqui, rapidamente, um outro grupo importante
na construção do Programa, pelo menos indiretamente, ou diretamente naquilo que se refere a submissão de
projetos aos editais dos Pontos e de outras captações ou incentivos: os produtores culturais, que também são
peças chaves para a tradução da linguagem dos editais para os artistas contemplados pelo Cultura Viva.
9
Podemos aí entrar na arena da informação e opinião pública que até o momento não foram desenvolvidas para
esta exposição. No entanto, destaco aqui que a mídia também produz e mantém comunidade imaginadas.

216

V V
comprometidos com “um conjunto de acordos tácitos ou explícitos; configurados em normas
estandardizadas no seu próprio meio” (Cardoso de Oliveira, p. 85, 2006) O mesmo não
aconteceria com o Ministério da Cultura, enquanto uma comunidade de
comunicação/argumentação? Como os idealizadores, produtores e demais envolvidos se
movimentam nessas comunidades e como essas estão em relação com as noções de cultura
nacional?
A nação seria o exemplo máximo de uma comunidade socialmente construída e
imaginada por pessoas que compartilham sentimento de pertença. Neste sentido, esse termo
possui um peso para a construção de uma política nacional de cultura. Cabe questionar em
que medida os “Estados Nacionais” continuam atuando um papel decisivo nas populações.
Mesmo que estudiosos contestem as categorias de Estado e Nação, elas ainda são
engendradas pelas instituições e ainda produzem efeitos diversos. Expressões como
“identidade nacional” e “cidadania cultural”, reforçam essas categorias e têm se tornado
frequentes na linguagem de governo.
Segundo Anderson (2008), uma comunidade política é imaginada - e imaginada tanto
como limitada quanto soberana por excelência. Essa comunidade é imaginada pois membros
de uma nação, mesmo da menor delas, nunca conhecerão a maioria de seus conterrâneos,
nunca os encontrarão ou até mesmo ouvirão a seu respeito; ainda assim, eles terão em suas
mentes a imagem de sua comunhão (Anderson 2008). Podemos com essa definição, reforçar
um ponto importante: assim como o Estado-Nação procura delimitar e zelar por suas
fronteiras geopolíticas, ele também se empenha em marcar suas fronteiras culturais,
estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação. Através desse processo se constrói
uma identidade nacional que procura dar uma imagem à comunidade abrangida por ela.
Observamos que a diversidade cultural pode operar como fio condutor para análise dos
documentos e dos discursos que reforçam o caráter nacional como um aspecto latente. Tal
investimento nos permitiria ainda incluir uma reflexão sobre as articulações do programa com
outras esferas internacionais - uma vez que o programa Cultura Viva foi criado em um
contexto onde as políticas públicas culturais brasileiras estavam sendo redirecionadas, e as
reformulações conceituais e administrativas que reestruturaram o Ministério da Cultura a
partir de 2003, por sua vez, estão articuladas a outros contextos: como as rodas de negociação
com a UNESCO, a OMC e outros organismos multilaterais10. Em nível internacional,

10
A exemplo das mudanças ocorridas no Ministério da Cultura - e que por sua vez estão em diálogo com outras
discussões internacionais - está a criação da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID) em 2004,
que responderia pelo debate acerca da diversidade cultural em contextos global e nacional. A formulação de
217

V V
observamos um consenso em termos de políticas que contemplam e promovem a diversidade
cultural. Em nível nacional temos a formulação de uma política em consonância com esses
princípios.

Considerações finais
Considerei neste projeto algumas possibilidades de análise para o estudo com gestores
culturais. O processo de escrita está em andamento e este presente texto passará por outras
revisões e acréscimos. Na discussão bibliográfica deste texto priorizei os autores que foram
trabalhados durante o curso de Antropologia Política, ministrada pela Professora Carla Costa
Teixeira no segundo semestre de 2014. Compreendo que na pesquisa etnográfica a ser
realizada com os gestores, outros problemas teóricos e metodológicos surgirão. De todo
modo, para concluir este projeto, gostaria agora de resumir os pontos mais importantes que
aqui foram destacados:
Ao propor um estudo com gestores e secretários, em ambientes institucionalizados, eu
estou lidando com uma comunidade política, especializada e que ocupa uma posição de
poder, o que pode ser observado sob a ótica do studying up.
A política é aqui analisada através de sua linguagem como um fenômeno
antropológico. A linguagem política pode ser analisada nos arquivos e documentos, nos
discursos oficiais e nas conversas com os gestores.
A linguagem também pode ser observada através do caráter performático, com a
observação dos gestores nas Teias. Aqui destaco a importância da oralidade, que é
acompanhada de uma performance desses gestores nesses contextos.
Os fóruns que ocorrem nas Teias podem ser analisados como rituais políticos, pois
esses eventos imprimem o conflito e a unidade como aspectos importantes na dinâmica dos
fóruns. A análise ritual das Teias implica também no aspecto acima citado: na oralidade dos
gestores e seus efeitos discursivos.
A diversidade cultural pode operar como fio condutor para análise dos documentos,
dos discursos oficiais e pronunciamentos públicos.
A diversidade cultural pode estar articulada a uma outra concepção de nação, poder
público e privado, estado e sociedade.

programas nacionais de cultura podem estar, portanto, em negociação com outras articulações políticas que vão
além da relação do contexto nacional.
218

V V
Bibliografia:
ABRAMS, Philip. Notes on the difficulty os the studying State. In: Journal of Historical Sociology, n.
1, 1988.

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem e a difusão do


nacionalismo. Trad. Denise Bottman. Compahia das Letras, 2008.

AUSTIN, John L. How to Do Things with Words.Cambrige: Harvard University Press, 1962.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Antropologia e Moralidade. In: Revista Brasileira de Ciências


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_______________________________O trabalho do Antropólogo. São Paulo: Unesp, 2006.

DOUGLAS, Mary. Como as Instituições Pensam. Trad: Carlos Eugênio Marcondes de Moura, São
Paulo: Universidade de São Paulo, 1998.

LEACH, Edmund R. Ritualization in man in relation to conceptual and social development. In:
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MARCUS, George. Ethnography in/of the World System: The emergence of Multi-Sited Ethnography.
Annual Review of Anthropology, v. 24, 1995.

________________; FISCHER, Michael J. Anthropology as Cultural Critique: An experimental


moment in the human sciences. Chicago: The University of Chicago Press, 1986.

NADER, Laura.Up the Anthropologist – perspectives gained from studying up. In: Hyme Dell (ed).
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PEIRANO, Mariza. Rituais como estratégia analítica e abordagem etnográfica. In: Peirano, Mariza
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2005.

SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. Política(s) Pública(s). In: Revista Raça: perspectivas
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TEIXEIRA, Carla Costa. Das Bravatas: mentira ritual e a retórica da desculpa na cassação de Sérgio
Naya. In: Mariza (org). O Dito e o Feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume-
Duramá/Núcleo de Antropologia Política da UFRJ, 2001.

___________________. Pesquisando Instâncias Estatais: reflexões sobre o segredo e a mentira. In:


Antropologia das Práticas de Poder: reflexões entre burocratas, elites e corporações. RODRIGUES
CASTILHO, Sérgio Ricardo, SOUZA LIMA, Antônio Carlos de e TEIXEIRA, Carla Costa (orgs).
Rio de Janeiro: Contra Capa,2014.

TURNER, Victor. Schism and Continuity in an African Society: a study of Ndembu village life.
Institute of African Studies: University

219

V V
O TEATRO COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA E AS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE CULTURA
Beatriz Helena Ramsthaler Figueiredo1

RESUMO: A lógica de mercado aplicada ao contexto da produção cultural é um traço


histórico das políticas públicas de cultura desenvolvidas no Brasil. A primeira Lei de
Incentivo à Cultura que tivemos (a chamada Lei Sarney) já operava a partir da perspectiva do
“mecenato”. Hoje, apesar de grandes mudanças a partir da administração Gil e Juca (2003-
2010), nosso principal mecanismo de apoio à cultura continua sendo a Lei Rouanet, que opera
pela lógica neoliberal de isentar o Estado de suas responsabilidades, passando para a iniciativa
privada o poder de escolher aquilo que vai ou não ser patrocinado no campo da cultura.
Porém, é preciso destacar a existência de grupos, ações, artistas e espaços que lutam para
coexistir de formas distintas diante da lógica de mercado aqui apresentada, configurando uma
posição de resistência e oposição.

PALAVRAS-CHAVE: Teatro, Políticas Culturais, Lei Rouanet/Procultura.

Na análise sobre a relação entre políticas públicas de cultura e a cena teatral brasileira,
começamos por destacar a existência de grupos, ações, artistas e espaços que lutam para
coexistir de formas distintas diante da lógica de mercado reforçada pelo mecenato e pela
lógica neoliberal que isenta o Estado de suas responsabilidades, passando para a iniciativa
privada o poder de escolher aquilo que terá certa sobrevida no campo da cultura. Estes
espaços, ações e grupos citados, configuram um campo de resistência e oposição. É o caso de
sites de financiamento coletivo, que quebram a lógica hegemônica que reforça que o poder de
decisão sobre a “vida” de um projeto cultural é única e exclusivamente decisão do
departamento de marketing das grandes empresas. A partir da reconfiguração do olhar e da
elaboração de ações de educação que visem apresentar uma nova lógica de financiamentos,
operada por uma via de muitas mãos, é possível construir caminhos coletivos (como é o caso
do site do Catarse2), quebrando as forças exclusivistas das grandes mídias e dos grandes
conglomerados de empresas. É possível à pessoa física (sem a vírgula) contribuir para o
surgimento de um projeto. É possível a pequena ação fazer grande diferença. É possível a
reconstrução do campo da cultura que ficou, por anos, sob a batuta da lógica de mercado.
No contexto da resistência e oposição à lógica de mercado e diante da transformação
1
Doutoranda junto ao Departamento de Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Desenvolve pesquisa sobre
políticas públicas de cultura para elaboração da tese “Por trás da cena: as relações entre televisão e espetáculos
teatrais apresentados entre 1991 e 2012”, sob orientação da Prof. Dra. Helena Katz. E-mail:
biaramsthaler@uol.com.br
2
O site Catarse pode ser acessado por meio do endereço eletrônico <catarse.me>.
220

V V
das políticas públicas para o teatro em São Paulo, o movimento “Arte Contra a Barbárie” teve
um papel central. Organizado em 1998 e composto por grupos e agentes do campo cultural
que se organizaram de forma não hierárquica, juntos conseguiram, dentre outras coisas, a
aprovação da Lei nº 13.279/02, mais conhecida como Lei do Fomento ao Teatro, a partir da
qual o cenário do financiamento de produções teatrais na cidade sofreu profunda
transformação. Trata-se de uma lei municipal que objetiva apoiar a criação e manutenção de
projetos continuados de pesquisa e produção teatral para grupos com trajetória comprovada na
cidade de São Paulo. O diretor teatral Luiz Carlos Moreira, que se tornou um dos “porta
vozes” do movimento, em entrevista concedida ao site Cultura e Mercado
(www.culturaemercado.com.br), em 2005, destacou que o movimento se opunha à
mercantilização da cultura por acreditar que não é papel da cultura gerar valor financeiro.
O Arte Contra a Barbárie considera a cultura enquanto fenômeno
artístico, manifestação de direitos humanos e questão prioritária de Estado, o
que, segundo Luiz Carlos Moreira, implica em luta por políticas públicas de
fomento e acesso à cultura, já que o Estado não vem dando conta dessa
tarefa. “Quando se fala em políticas públicas, ela é confundida com leis de
incentivo e ação de governo. Política mercadológica é confundida com
política cultural”. Ele entende que não é o governo quem faz cultura, e sim
os artistas e envolvidos na área. “Somos mão-de-obra a serviço do governo
de plantão” (FONSECA, 2005).
Fizeram parte desse movimento artistas e grupos como Companhia do Latão, Folias
D`Arte, Parlapatões, Pia Fraus, Tapa, União e Olho Vivo, Monte Azul, Hugo Possolo,
Fernando Peixoto, Beto Andretta, Aimar Labaki, Umberto Magnani, entre outros. Outro
exemplo foi o do Grupo Satyros, que surgiu em São Paulo no final da década de 80 e teve,
desde a sua fundação (1989), um olhar social para a arte. A ideia do grupo, segundo Ivam
Cabral (seu fundador, ao lado de Rodolfo Garcia Vásquez) é transformar a realidade por meio
da arte. Quando chegaram à Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, o local era palco de
traficantes de droga. Antes disso, o Satyros já havia iniciado junto à comunidade do Jardim
Pantanal um trabalho que continua a realizar até os dias de hoje, dentro da mesma proposta de
transformar o território por meio de atividades artísticas, com foco específico em teatro. Anos
depois, o grupo criou um evento que entraria para o calendário cultural do Estado de São
Paulo, o Satyrianas, que em 2014 completou seu 23º ano de existência. São 78 horas
ininterruptas de atividades culturais variadas, espalhadas pelos diversos espaços teatrais da
Praça Roosevelt e tendas armadas no centro da praça. A Praça Roosevelt foi alvo de um
projeto de revitalização em razão da importância cultural conquistada a partir do trabalho dos
grupos que ali se estabeleceram (além de dois espaços do Satyros, a praça também conta com
um teatro do Grupo Parlapatões, o Teatro Studio, o Teatro do Ator e o Miniteatro). A reforma
221

V V
da praça durou dois anos e o espaço foi reaberto ao público em setembro de 2012, após um
investimento aproximado de R$ 55 milhões realizado pela Prefeitura de São Paulo, na
reforma que reconfigurou o espaço urbano da região3. A praça ainda ganhou a sede da SP
Escola de Teatro, primeira escola de teatro profissionalizante do Governo do Estado de São
Paulo.
O Grupo Satyros tem em seu histórico o fato de nunca ter captado recursos na
iniciativa privada com o uso da Lei Rouanet. Não é uma escolha. Há certa dificuldade do
grupo em encontrar, no mercado, empresas que queiram ter sua imagem aliada a uma estética
diferente e a propostas cênicas tão particulares quanto as que vemos apresentadas pelo grupo.
Suas peças são polêmicas. Um exemplo é o caso recente da peça “Edifício London” proibida
pela Justiça4 na semana da estreia (2/3/2013).
A SP Escola de Teatro surgiu com o apoio da Secretaria da Cultura do Estado de São
Paulo. Idealizada por Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vásquez e administrada pela Associação
dos Artistas Amigos da Praça, a escola, inaugurada em 2012, oferece cursos de formação em
nível técnico em áreas como atuação, humor, dramaturgia, direção teatral, cenografia e
figurino, técnicas de palco, iluminação e sonoplastia.
Na realidade a nossa escola nem quereria formar atores. Acho que
essa é uma formação que tem várias e boas escolas pelo Brasil. Mas quando
a gente pensou em criar uma escola técnica, queríamos uma formação
diferenciada, holística, sistêmica. O nosso projeto pedagógico é o que temos
de mais incrível na escola. É incrível mesmo e tenho muito orgulho de a
gente ter feito isso. Partiu de um geógrafo, de um físico e de um pedagogo.
Um projeto pedagógico que parte de um geógrafo é incrível, né? O geógrafo
é o Milton Santos, que fala sobre a territorialidade. É um pouco do que se
tem na Roosevelt... Esse cara falou sobre isso há muito tempo... Sobre essa
questão do entorno, de como você contamina com o seu trabalho uma
população. E o físico é o Capra, que fala da questão sistêmica, da
horizontalidade. A gente repensa toda essa ideia de aprendizado que a gente
conhece... “Aluno” não é aluno, é “artista aprendiz” porque ele tem junto
com ele o “arte educador” e os dois estão no mesmo nível. “Disciplina” não
interessava porque essa palavra é horrível, lembra coisas horríveis, então
virou “componente”. “Grade curricular” lembra prisão, virou “matriz”. Os
alunos têm aulas de terça a sábado, já pensando na tradição de que em teatro
se descansa na segunda-feira. Também pensamos em encontrar um ponto em
que os alunos se encontrassem, isso era muito importante para a gente. Os
alunos que têm aulas em salas separadas precisavam de um momento em que
haja um encontro. Criamos no sábado o que chamamos de “Território

3
Dados publicados pelo jornal O Estado de São Paulo em 4 de dezembro de 2012 e acessados através do site
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,reforma-da-praca-roosevelt-muda-comercio-da-regiao.htm.
Acessado em 4/12/12 às 20h.
4
Peça do dramaturgo Lucas Arantes que se inspirou em obras como Macbeth (Shakespeare), Medeia (Eurípedes)
e no caso policial que ficou conhecido como Caso Isabella (Isabella Nardoni). A ação judicial que pediu a
proibição da peça foi movida pela mãe de Isabella, Ana Carolina Oliveira, e aceita pela Justiça do Estado de São
Paulo.
222

V V
Cultural”, que é esse momento do encontro. O nosso desafio era integrar isso
tudo: temos oito cursos e então a gente tem um dramaturgo que escreve um
texto, um diretor que vai ter atores e humoristas, que vai chamar um
sonoplasta, um iluminador, um cenógrafo, um figurinista e vai ter camareiros
e técnicos de palco... Esse projeto é incrível! É o nosso grande trunfo! Ele é
um projeto muito grande, muito complexo, é realmente incrível! A escola
tem vários pilares. Os cursos regulares são só um ponto de partida para o
nosso projeto. A gente tem também os cursos de difusão cultural. Temos um
programa chamado Kairós, em que vamos dar bolsas de estudos para os
nossos alunos. Esse projeto é também de intercâmbio, já fechamos
intercâmbios com a África, Suécia e Cuba. Temos no site o outro pilar, uma
enciclopédia e uma biblioteca. A enciclopédia pretende mapear as artes
cênicas do Brasil inteiro. É um projeto muito grande, muito maior do que em
um primeiro momento aparenta. Não é só uma escola. Teremos dois pontos
de partida: cursos de formação e de reflexão. A gente vai ensinar o “b-a-bá”
para os nossos alunos regulares, mas vamos refletir também (teoria, estética,
ética, crítica...). E futuramente nosso projeto é ser um centro de pensamento,
criar um instituto e trabalhar com pós-graduação. Não teríamos a graduação,
mas teríamos a formação técnica e a pós-graduação. E todos os que estão
envolvidos são profissionais incríveis que vêm com muito amor, com muito
tesão. É um projeto incrível! Inovador. (CABRAL, 2012)

Ivam Cabral cita Milton Santos na base de pensamento do projeto da Escola, mas é
possível também percebê-lo na base de pensamento da constituição do próprio espaço da
Praça Roosevelt como um espaço de resistência cultural na cidade de São Paulo.
O território em que vivemos é mais que um simples conjunto de
objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também
um dado simbólico. A linguagem regional faz parte desse mundo de
símbolos, e ajuda a criar esse amálgama, sem o qual não se pode falar de
territorialidade. Esta não provém do simples fato de viver num lugar, mas da
comunhão que com ele mantemos. (SANTOS, 2007, p.82).

Há ainda outros grupos com históricos invejáveis. O grupo Teatro União e Olho Vivo
(TUOV), por exemplo, foi fundado em 1966 com a proposta de apresentar um teatro popular
de qualidade. Nasceu da união de dois outros grupos, o “Teatro do Onze” (alusão a sede do
grupo que era o Centro Acadêmico XI de Agosto) e o Teatro Casarão (grupo que tinha sede
em um casarão da Av. Brigadeiro Luis Antonio, no centro da capital paulista). Em sua origem
encontramos nomes como Silnei Siqueira, Neriney Moreira, César Vieira (pseudônimo do
advogado Idibal Pivetta) e José Maria Giroldo. Viajaram o mundo todo (Polônia, Cuba,
França, Itália, China, Iuguslávia, etc) representando o Brasil com peças como “O evangelho
segundo Zebedeu” e “Rei Momo”.

As primeiras convicções firmadas pelo grupo foram as de que seu


teatro, para chegar da maneira que queriam, no público que queriam, deveria
ser apresentado próximo àquelas pessoas, em seu próprio território e com
preço compatível ao poder aquisitivo de sua plateia. Desta maneira,
discutiram como deveriam ser as peças, seus contextos e temas. [...] Passou-
223

V V
se a vender espetáculos para colégios e centros acadêmicos e, com esse
dinheiro, cobriam-se as despesas das apresentações na periferia. Essa é a
chamada “Tática Robin Hood”, ainda executada. [...] A partir da prática,
outras questões surgiram: como levar o material de cenário e figurino para o
espaço sendo que, para todos os 50 membros, apenas 3 ou 4 possuíam carro?
Como trabalhar a iluminação para locais que não tinham capacidade? Foi a
partir destas mesmas apresentações que as dúvidas foram sanadas. Passou-se
a pensar em cenários práticos e simples: o TUOV utiliza desde então cubos
pretos de vários tamanhos como cenário, que são montados a partir da
necessidade da cena. Logo em seu início o grupo já conseguia colocar em
prática suas intenções. Mais do que fazedor de teatro, o TUOV se mostrava
transmissor de ideias. Essa fluência de comunicação entre o grupo e a sua
plateia fez com que alegassem que as pessoas do TUOV eram manifestações
políticas (NOGUEIRA; DITTRICH, 2007, p.1-2).

Por causa desse diálogo político, durante a ditadura parte do grupo foi detida e parte
do material apreendido. Sua organização como grupo é balizada por vinte premissas básicas,
criadas pelos dirigentes e tidas como pilar norteador do movimento do grupo. Dentre elas,
destacam-se a preocupação com preços acessíveis ao público, escolha por montagens de peças
de cunho social.

Características deste teatro popular social, a proposta do TUOV


“descarta o teatro enquanto mero entretenimento e determina um
compromisso de solidariedade do produtor com os problemas e necessidade
das populações periféricas” (GARCIA, 1990, p.124). O teatro do TUOV
quer trazer algo do povo para o povo (NOGUEIRA; DITTRICH, 2007, p.3).

Atualmente com 20 membros, o grupo possui sede no bairro do Bom Retiro, em São
Paulo. A maior parte do grupo desenvolve outros tipos de trabalhos remunerados, o que
possibilita que eles se mantenham juntos e apegados a uma proposta de teatro social que não
dialoga com o mercado. Outro grupo muito atuante no cenário contemporâneo é a Companhia
São Jorge de Variedades. Com sede na Barra Funda, esta companhia foi fundada em 1998 por
estudantes da Escola de Arte Dramática e da Escola de Comunicação e Artes da USP. No site
da companhia, o grupo afirma que “visa estabelecer, por meio de investigações permanentes,
um processo de lapidação da cena bruta, se utilizando de artifícios e procedimentos simples e
artesanais”5. O grupo prima por uma estética ritualística, mantendo suas referências nas
manifestações de matrizes africanas. Utilizam-se do espaço sede da companhia e das ruas do
bairro onde estão instalados. É comum vê-los apresentando suas peças em circuitos criados no
próprio bairro, como foi o caso da montagem de Barafonda, indicada ao Prêmio Shell de
Teatro, na categoria Especial.
O sonho da sede tornou-se possível a partir de 2010, com o apoio da Prefeitura de São

5
Declaração publicada no site do grupo <http://ciasaojorge.com>. Acessado em 3/11/2014 às 17h44.
224

V V
Paulo, por meio da Lei do Fomento ao Teatro. O grupo já obteve apoio também de programas
como o Petrobrás Cultural e o Prêmio Myriam Muniz, da Funarte. Aliás, no tocante a sede de
um grupo de teatro, vale destacar uma importante reflexão proposta por Edson Martins
Moraes em artigo intitulado “Gestão de sedes de grupos de teatro: espaços de transformação”,
apresentado no V Seminário Internacional de Políticas Culturais6, em 2014, no Rio de
Janeiro:
Faço aqui os apontamentos sobre a importância da sede como um
espaço que abriga indivíduos organizados em grupos, interessados na criação
de propostas estéticas e na construção de novas bases para políticas públicas
culturais (MORAES, 2014, p.1).
É o mesmo autor que complementa posteriormente a reflexão sobre a importância das
sedes para os grupos, afirmando que:
Um grupo de teatro tem na sua sede a sua residência artística, é ali o
lugar onde as fragilidades, contradições dos seres humanos e as injustiças
sociais ficam explicitas. É nesse ambiente de convivência que os grupos
colocam em prática projetos socioculturais, agem divulgando,
disponibilizando o seu espaço para outras ações e estabelecendo relações
com o público, a comunidade e a metrópole. [...] Os grupos em suas sedes
fazem emergir indivíduos questionadores, inserem o bairro e o cidadão nas
programações culturais e na vida da cidade. No contraponto, o mercado e
seu vínculo direto com os meios de comunicação tem o objetivo maior de
formar consumidores. Por considerarem seus espetáculos em oposição aos
desejos do mercado, é de comum entendimento entre os grupos que essa
forma de fazer teatro é um serviço público, portanto, deve ser financiada
pelo Estado (MORAES, 2014, p.5-6).

São inúmeros grupos que se organizaram em torno de pesquisas estéticas


diferenciadas, com propostas de resistência à lógica de mercado e que se estruturaram, no
caso de São Paulo, muito em razão da criação da Lei de Fomento ao Teatro e pelo Brasil, por
meio de iniciativas pontuais de gestões municipais ou estaduais e em razão do projeto Ponto
de Cultura, do Governo Federal. Dentre estes grupos destacamos a Companhia Fofos em
Cena (SP), Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP), Pombas Urbanas (SP), Dolores Boca
Aberta Mecatrônica de Artes (SP), Companhia Estável de Teatro (SP), Teatro Independente
(RJ), Ponto de Partida (MG), Grupo Clariô de Teatro (SP), Teatro Ventoforte (SP) e Gene
Insanno Companhia de Teatro (RJ).
A luta destes grupos, que não necessariamente se enquadram na lógica de
comunicação das empresas que desejam aliar suas marcas a iniciativas culturais em ações que

6
O V Seminário Internacional de Políticas Culturais foi realizado em maio de 2014 na cidade do Rio de Janeiro
e organizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa em parceria com o Instituto Itaú Cultural. Os artigos
apresentados durante os dias de Seminário podem ser acessados através da página <http://
http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2014>.

225

V V
convencionamos chamar de “marketing cultural”, é pela manutenção, autonomia e
sobrevivência de suas propostas artísticas. Todavia, essa forma de entender território ainda
não se transferiu para o diálogo entre os agentes culturais (com toda essa diversidade de
olhares e necessidades) e os espaços responsáveis pela formulação de políticas públicas. Dar
conta da diversidade cultural brasileira não é tarefa fácil, mas é o horizonte a ser estabelecido.
Se “uma política pública é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema
público”. (SECCHI, 2013, p.2), o desafio, no caso da cultura, é enorme. Para compreender a
complexidade do tema, basta termos em vista o conflito diante do próprio entendimento do
conceito de cultura e as complexas questões produzidas pela diversidade cultural de um país
com as dimensões do Brasil, com a sua enorme desigualdade regional diante dos
investimentos no setor, fruto de questões econômicas e geográficas.
Uma política pública possui dois elementos fundamentais:
intencionalidade pública e resposta a um problema público; em outras
palavras, a razão para o estabelecimento de uma política pública é o
tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente
relevante. (SECCHI, 2013, p.2).

A questão primordial, com relação às políticas públicas de cultura criadas e adotadas


na esfera federal, está justamente em compreender o que seriam esses problemas
coletivamente relevantes em um país culturalmente plural. Cada escolha implica,
necessariamente, diferenças no modo de tratar as partes que compõem o todo de um mesmo
cenário. Talvez a resposta seja justamente tratar grupos diferentes de modo diferente. E o que
parece que balizava o pensamento até então no campo das políticas de cultura, era uma
preocupação em tratar todos como iguais, quando, na realidade, nunca o foram.
Nesse contexto, é considerável o avanço durante os anos em que Gilberto Gil esteve à
frente do Ministério da Cultura (2003-2008), quando lá redefiniu o próprio conceito de
cultura, como afirma Henilton Menezes, então Secretário de Fomento do Ministério da
Cultura, cargo que ocupou até o final de 2013, ocupado hoje por Ivan Domingues das Neves,
em entrevista à autora7:
Falando especificamente do papel das leis de incentivo à cultura na
esfera federal, o Lula trouxe, junto com o ministro Gil, um novo conceito da
palavra cultura. Até 2003, a Lei Rouanet enxergava basicamente as belas
artes, tanto é que no texto da própria lei, você só vai ver como segmentos a
música, as artes cênicas, as artes visuais... Não vai ver, por exemplo, a
cultura indígena. O Gil traz para dentro do Ministério um conceito mais
alargado de cultura e cria o que ele chama de “os três eixos”: a cultura
enquanto eixo cidadão, a cultura enquanto eixo simbólico e a cultura
enquanto eixo econômico. Isso fez com que várias manifestações passassem

7
Entrevista realizada no Ministério da Cultura, em Brasília/DF, em julho de 2013.
226

V V
a se enxergar dentro do sistema Minc, inclusive com a possibilidade de obter
recursos. O eixo cidadão é aquele eixo em que todos nós produzimos cultura
a toda hora. Temos direito de produzir cultura, mesmo sem sermos artistas.
O eixo simbólico é aquele que traz a cultura como algo que representa um
território. Você se enxerga sempre dentro de um território específico onde
vivencia costumes, tem um jeito de falar, de andar, de comer, de vestir, de se
expressar, tudo representando simbolicamente a sua origem. E o eixo
econômico como um eixo que representa a cultura enquanto uma vertente da
economia brasileira, que dá lucro, possibilita emprego e forma riqueza.
Quando isso acontece, a lei de incentivo começa a receber propostas que
antes não recebia. A gente teve que se adaptar a esta demanda criando, por
exemplo, uma tal de “artes integradas” para aquilo que não cabia naquelas
“caixinhas” que a lei havia criado. Isso fez com que a demanda por incentivo
fiscal aumentasse muito! Isso fez com que a gente saísse de um orçamento
de trezentos e poucos milhões em 2003 para um orçamento de um bilhão e
setecentos, dez anos depois. Às vezes, as pessoas não têm esses números e
acham que a Lei Rouanet ainda é muito pequena. Quer dizer, para a
demanda, ainda é muito pequena, mas teve sim um crescimento significativo
nos últimos anos. (MENEZES, 2013).

Porém, vale ressaltar que o tema da cultura é abordado desde a regulamentação da


Constituição Federal de 19888, que, em seu Capítulo III, intitulado “Da educação, da cultura e
do desporto”, destina uma seção inteira para as questões culturais que devem ser respeitadas e
preservadas. É possível perceber então, na leitura da Constituição Federal, que a preocupação
em proteger legalmente as manifestações culturais de caráter popular, como o folclore e
manifestações indígenas e afro-brasileiras, não é nova e existe na esfera federal desde, pelo
menos, 1988.

Seção II
DA CULTURA
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

Porém é fato que ações práticas, no que tange à administração federal no contexto da
preservação de manifestações culturais populares, foram realizadas de forma mais efetiva a
partir da gestão do então Ministro Gilberto Gil que, trazendo para a estrutura pública a
concepção dos eixos de cultura (cidadão, simbólico e econômico) pode nortear novas ações
do Ministério, tornando mais ampla a área de atuação dos mecanismos públicos federais de
gestão cultural e ampliando o olhar para a cultura para além das Belas Artes. A questão é que

8
Texto original da Constituição Federal de 1988, acessado através do site do Governo Federal
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm - Acessado em 29/6/2014 às
13:35h.
227

V V
essa forma mais ampla de compreensão da cultura, pelos limites da Lei Rouanet, trouxe
também discussões bastante polêmicas nos últimos anos. Dentre elas, destacam-se falas da
então Ministra da Cultura, Marta Suplicy, em defesa da telenovela como expressão cultural no
momento em que se discutiam os pilares do programa Vale Cultura, que daria um aporte
financeiro mensal ao trabalhador para que ele investisse o valor de R$ 50,00 (cinquenta reais)
em atividades culturais. Marta defendeu que o trabalhador pudesse utilizar desse dinheiro para
assinatura de canal de televisão a cabo, mas voltou atrás e, no discurso de abertura do “The
fórum for global change” (março/2013), disse que, após movimento popular, achou prudente
a exclusão da TV por assinatura do programa Vale Cultura9.
Outro fato que gerou um desconforto junto à classe artística, foi a aprovação de um
projeto junto à Lei Rouanet para financiamento da participação do estilista Pedro Lourenço
em um desfile de moda em Paris (projeto aprovado em agosto/2013). Mais uma vez, voltou à
pauta a discussão sobre o que é entendido como cultura pelo Ministério da Cultura e pela
Secretaria de Fomento, responsável pela Lei, dentro do mesmo Ministério. Após a aprovação
do projeto do estilista Pedro Lourenço (projeto de R$ 2,8 milhões), o Ministério da Cultura
também aprovou projeto do estilista Alexandre Herchcovitch (projeto de R$ 2,6 milhões para
participação no SPFW e na Semana de Moda de Nova York) e do também estilista Ronaldo
Fraga (projeto de R$ 2,1 milhões para dois desfiles na SPFW).
Por fim, em fevereiro de 2014, mais um fato trouxe à pauta as mesmas questões acerca
da compreensão do que é cultura: o Ministério da Cultura não aprovou um projeto de longa
metragem sobre a vida do político brasileiro Mario Covas, compreendendo o projeto como
uma ação política e não cultural. Foram então debatidas, por publicações em jornais e sites de
notícias, questões acerca de outras produções, como filmes sobre Getúlio Vargas, JK, Brizola
e Lula.
Apesar das polêmicas geradas em razão dessa ampliação do conceito de cultura, a
partir da gestão do então ministro Gilberto Gil, e reinterpretado pela então ministra Marta
Suplicy (diante das discussões acerca da compreensão do que deve ou não ser apoiado pelo
mecanismo criado através da Lei Rouanet), foi a partir dessa nova forma de pensar a cultura
que se tornou possível empreender esforços a favor da alteração da Lei Rouanet e mesmo de
sua extinção. A promulgação de nova lei vem sendo proposta desde 2007, chegando ao ápice
com a criação, em 2012, do texto substitutivo ao projeto de Lei nº 1.139/07, que institui o
9
Segundo o Ministério da Cultura a estimativa é que 17 milhões de pessoas recebam o Vale Cultura. Trata-se de
um cartão magnético pré-pago, com um aporte de R$ 50,00 (cinquenta reais) mensais para que o trabalhador
possa participar de atividades culturais ou adquirir produtos como livros, cds, dvds etc. O Vale Cultura foi
aprovado pela lei nº 12.761/12.
228

V V
Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – Procultura, apresentado pelo
Deputado Federal Pedro Eugênio (PT-PE). Esse novo texto procura abarcar questões
fundamentais na relação cultura e mercado, minimizando certos prejuízos que sofrem projetos
culturais em razão da relação de aporte financeiro advindo do mercado privado.

A Procultura acaba com as caixinhas de artes cênicas, artes plásticas


e etc. Ela não classifica mais um projeto assim e passa a classificar com
pontuação em relação a uma série de coisas: o projeto circula em mais de
uma região? O projeto vem de uma região remota? O projeto dá
acessibilidade, tem ingresso gratuito, não tem? Quer dizer: “eu sou obrigado
a colocar o ingresso gratuito?”. Não, mas se você colocar você terá mais
pontuação e terá uma renúncia maior. Uma série de características de um
projeto te dará uma pontuação e essa pontuação irá dizer que você tem “X”%
de renúncia. Se você quer chegar aos 100%, vai ter de fazer o seu projeto de
um jeito que atinja os 100%. A gente tem usado o aprendizado dos 22 anos
de lei para criar um mecanismo mais moderno porque se não, você vai trocar
seis por meia dúzia. Claro que quando você fala sobre uma proposta dessa
em público, é sempre uma polêmica. Você tem um cesto de dinheiro que
você tem que distribuir melhor. Para distribuir melhor, alguém tem que
perder, não há outra forma. Eu tenho 80% concentrado em dois Estados. Eu
preciso descentralizar isso. Quem vai perder? Rio e São Paulo. A lei é muito
injusta, ela é perversa porque ela trata alguns artistas melhor do que outros
da forma que ela está hoje. Exemplo: apresenta-se um projeto “fuleiro” de
artes cênicas para o Ministério da Cultura e eu sou obrigado a dar 100% de
renúncia porque ele é artes cênicas. Aí, se o projeto é muito bom, mas é de
música popular, por melhor que seja, só vai pegar 30% de renúncia. Isso não
é justo. Mas quando você fala sobre mudança, os setores que têm 100% não
querem mexer na lei. O deputado Pedro Eugênio, que é o relator do projeto,
me disse uma vez que recebeu ligações do pessoal de teatro do Rio e de São
Paulo, dizendo que a SEFIC [Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura]
está ajustando demais a Lei Rouanet e pedindo para não mexer mais nisso.
Aí eu disse “é claro deputado, para eles está bom demais” (MENEZES,
2013).

Chama a atenção o fato de que o novo texto do Procultura propõe o reforço financeiro
e institucional aos Fundos de Cultura (que preveem o apoio a projetos culturais apresentados
ao Ministério da Cultura por instituições e associações sem fins lucrativos). É como se essa
pudesse ser a saída para a relação cultura-mídia-mercado já bem estabelecida. Todavia, é fato
que grande parte da produção cultural do país não é proposta ou produzida por instituições
sem fins lucrativos, mas sim por grandes empresas que se beneficiam dos mecanismos de
isenção fiscal para financiar a cultura.
Segundo dados de 2010, publicados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), temos no Brasil um total de 556.846 entidades sem fins lucrativos (associações
ou fundações) cadastradas no CEMPRE (Cadastro Central de Empresas) e destas, 11.995
atuam na área da Cultura e Arte (esse número equivale a 2,2% do total de entidades ligadas à
229

V V
cultura no país). Nas regiões Sudeste e Sul do Brasil estão localizados 77,4% das entidades.
Em números exatos, temos na região Sudeste 5.153 entidades cadastradas. Na região Sul, esse
número é de 3.609 entidades. A terceira região com maior número de entidades sem fins
lucrativos ligadas à área da cultura é o Nordeste, com 2.257 entidades, seguida pelo Centro
Oeste com 606 entidades e pela região Norte com 370 entidades10.
Comparando esses números com dados sobre o setor cultural fornecidos pelo IBGE11,
é possível perceber o quão incipiente é ainda o número de entidades sem fins lucrativos na
área da cultura. Em 2010, tínhamos no Brasil um total de 399.958 empresas cadastradas no
CEMPRE (Cadastro Central de Empresas) e que atuam no setor cultural. Já o número de
trabalhadores do setor era, em 2010, de aproximadamente 1,7 milhão de pessoas, e, destes,
55,6% contribuíam para a Previdência Social (de forma autônoma ou com registro em
carteira). Não há dados exatos sobre o número de trabalhadores informais na cultura, porém é
fato que esse número é bastante expressivo, levando-se em conta o número de grupos sociais
que se organizam em torno de uma manifestação cultural determinada, o número de artistas e
o número de produtores independentes, sem vínculos com qualquer instituição.
Diante deste quadro, é também necessário refletir sobre a apropriação dos fazeres
culturais pelos veículos de comunicação de massa, dada a sua facilidade em promover uma
homogeneização daquilo que veiculam, situação que, no caso da cultura brasileira, tende a
atar a manifestação artística aos processos midiáticos de celebrização. A ideia principal é da
inclusão com o cuidado de não excluir (AGAMBEN, 2009), sem vitimizar os não-
celebrizados, mas também sem propor como solução uma possível democratização do seu
direito à celebrização.
O uso da expressão “comunicação de massa” refere-se à comunicação feita em escala
industrial, para acesso a um grande número de pessoas. Torna-se importante aqui destacar que
a expressão “comunicação de massa” já não possui a valência absoluta que tinha no momento
histórico de sua formulação, pois a Internet produziu novas mídias, fora do modelo da
comunicação de massa, porém no contexto da análise sobre a televisão aberta o uso da
expressão ainda se torna possível e adequado.
O conceito de comunicação de massa foi formulado na década de 1920 ou 1930 para se aplicar
às novas possibilidades de comunicação pública que surgiram com a imprensa de massa, o rádio e o

10
Dados sobre essa pesquisa foram acessados através do site do IBGE:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/fasfil/2010/default_entidades_xls_nova_2010.shtm em
29/06/2014 às 14:23h.
11
Dados sobre o setor cultural foram acessados através do site do IBGE:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000014982610112013262218742308.pdf em
29/06/2014 às 15:36h.
230

V V
cinema. Estes meios ampliaram o público potencial para além da minoria alfabetizada. Também eram
essencialmente novos o estilo e a escala industriais da organização de produção e divulgação. Grandes
populações dos Estados-nação poderiam ser atingidas mais ou menos ao mesmo tempo com conteúdo
basicamente igual, o qual, muitas vezes, levava o selo de aprovação de quem tinha poder político e
social. (MCQUAIL, 2012, p.508-509).

Se tomarmos por base a informação do IBGE de que 95% dos domicílios do país
possuem ao menos uma televisão, conseguiremos dimensionar o aporte e a importância desse
meio de comunicação em um país com as dimensões do Brasil. Já a TV por assinatura, que
também transmite a programação da TV aberta, está em 23,7% dos domicílios brasileiros. O
IBGE aponta o número de 3,3 pessoas por domicílio (o que, no cálculo da TV por assinatura,
equivale a 45,13 milhões de brasileiros). Bruno Perillo traz uma reflexão interessante quando
fala da televisão como mecanismo de influência no consumo cultural. Ele defende que é
possível pensar nessa influência como uma via de mão dupla, porém de forças desiguais:
Eu acredito no poder da televisão de criar e recriar mitos conforme
sua vontade. E acredito também que haja uma mão dupla na relação entre a
TV e a expressão popular, mas é uma mão dupla desigual, e defasada. O
poder das TVs é gigante e é um poder de manutenção dos paradigmas,
jamais de quebra. (PERILLO, 2012).

As discussões acerca das efetivas contribuições e dos embates criados no setor cultural
pela Lei Rouanet, permeiam as pautas de reuniões de produtores e demais agentes da cultura
há vários anos. A criação do Procultura (Lei nº 1.139/07) data de 2007, tendo sido aprovado
apenas em 2012 o seu texto final (redigido pelo Deputado Pedro Eugênio, do PT). Especula-
se ainda que a nova lei deva ser promulgada não antes de 2016, quando a atual Lei Rouanet
deixará de existir. O novo Ministro da Cultura, Juca Ferreira12, é um grande defensor da
extinção da Lei Rouanet. Segundo ele, a Lei Rouanet é “prejudicial” e “já deu o que tinha que
dar”13.
Porém, mesmo com esse constante olhar para a mudança e adaptação ao contexto
social, o alcance da comunicação da tevê aberta ainda não foi investigado como um potencial
a ser explorado em uma direção distinta da atual. Ao contrário, continua a manter uma
situação que acaba por privilegiar projetos culturais que se apoiam nos que já possuem
projeção na mídia nacional. Se o objetivo das leis de incentivo à cultura é promover
mecanismos de produção e acesso ao fazer cultural, tanto o que temos atualmente, quanto as
reformas em andamento, podem ainda não ser a melhor solução, caso ignorem o papel da tevê

12
Juca Ferreira assumiu novamente o Ministério da Cultura em janeiro de 2015 (segundo mandato da presidente
Dilma Rousseff).
13
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-da-cultura-a-lei-rouanet-e-prejudicial,1626760

231

V V
aberta na produção de cultura em nosso país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado,
1988.

CALABRE, Lia. Políticas Públicas no Brasil: balanço e perspectivas. IN III Enecult – Terceiro
Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Bahia: Faculdade de Comunicação/UFba, 2007.

COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São Paulo:
Iluminuras, 2008.

FONSECA, André. A luta da arte contra a barbárie pela democracia cultural. Disponível em
Disponível em <www.culturaemercado.com.br>. Acessado em 25 de novembro de 2013.

MORAES, Edson Martins. Gestão de sedes de grupos de teatro: espaços de transformação.


Disponível em <http:// http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2014>. Acesso em
3 nov. 2014.

NOGUEIRA, Márcia Pompeo. DITTRICH, Maireli. Teatro União e Olho Vivo: uma perspectiva de
longo prazo de Teatro para Comunidades. Disponível em
<http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas>. Acesso em 3 nov. 2014.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 7ª ed. São Paulo: EDUSP, 2007.

SECCHI, Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo:
Cengage Learning, 2014.

SITES:

COMPANHIA SÃO JORGE DE VARIEDADES, endereço eletrônico <http://ciasaojorge.com>

CULTURA E MERCADO, endereço eletrônico www.culturaemercado.com.br – Acessado em


15/01/2012.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE investiga a cultura nos municípios
brasileiros. Disponível em <www.ibge.gov.br>. Acesso em 26 fev. 2012.

232

V V
PROJETOS DE MAPEAMENTO DE PATRIMÔNIOS MATERIAIS E IMATERIAIS
PARA O RECONHECIMENTO DE UMA PAISAGEM CULTURAL DO CAFÉ
Bruno Bortoloto do Carmo1

RESUMO: Grande parte da história do Estado de São Paulo foi traçada pelo café. Seguir sua
trajetória significa enxergar as profundas transformações que o café precipitou nas relações
sociais e culturais. Por isso, o Museu do Café atualmente procura trazer ao público um
panorama da história desse estado tendo como fio condutor a produção e o comércio do café.
Para compreender a importância de cada item de seu acervo, a equipe de pesquisa e
preservação do Museu vem desenvolvendo projetos de mapeamento de referências
patrimoniais do café materiais e imateriais, buscando depoentes para registro de História Oral,
assim como de objetos, documentos e das próprias edificações. Tais frentes de pesquisa têm
por esforço mapear entidades ligadas à produção e ao comércio do grão com o intuito de
consolidar o circuito cafeeiro como uma paisagem cultural.

PALAVRAS-CHAVE: Praça de Santos; Paisagem Urbana; Museu; Café; Memória; História.

INTRODUÇÃO
O café foi uma das culturas agrícolas brasileiras que teve maior impacto sobre a
história, política, economia e os usos e costumes do Brasil.
O café transformou o país. Na virada do século XIX, muitas das cidades do Estado de
São Paulo como a capital, Santos, Campinas e São José do Rio Preto, foram de vilas a
metrópoles, alimentadas pelo afluxo de imigrantes, pela chegada das ferrovias e o advento da
energia elétrica. A estrutura criada pelo café, assim como suas novas demandas, abriu terreno
para a industrialização que moveu São Paulo e o Brasil ao longo de todo o século.
Para traduzir a escala de importância que o café ocupava no cenário nacional, em 1922
foi inaugurado o palácio da Bolsa Oficial de Café, na cidade de Santos, que comemora 93
anos em 2015. Em estilo eclético, o primeiro edifício de concreto armado da cidade é
considerado uma das mais importantes obras do período. Foi tombada em 2009 pelo Instituto
do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (IPHAN), sendo a primeira do tipo a receber
essa chancela.
Em 1998, no edifício da Bolsa Oficial de Café – desativada desde 1986 – foi
inaugurado o Museu do Café, uma iniciativa da sociedade civil que contou com o apoio de

1
Pesquisador do Museu do Café (Santos – SP) e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC – SP). E-mail: bruno@museudocafe.org.br.
233

V V
toda a cadeia cafeeira e do governo do Estado. Foi ainda, em 2008, incorporada ao rol de
equipamentos culturais do Estado de São Paulo.
O Museu do Café tem como missão “colecionar, conservar, expor, investigar e
pesquisar objetos e evidências arquitetônicas, artísticas e documentais que testemunhem, para
diferentes públicos, a história e o desenvolvimento socioeconômico e cultural do Brasil na sua
relação com o agronegócio Café, em âmbito nacional e internacional”.
Com o objetivo de traduzir tão complexa missão em uma atividade museológica no
tempo/espaço, a equipe técnica do Museu do Café estruturou três macro eixos de atuação, ou
seja, três recortes patrimoniais. Eles dão conta da preservação do café em três instâncias – na
sua materialidade, enquanto produto de consumo; como objeto social, numa perspectiva
histórica, política, econômica e dos usos e costumes; e como fomentador e financiador da
cultura brasileira, numa tradução simbólica diretamente ligada a seus altos e baixos no cenário
brasileiro.
Tais macro eixos refereciam a atuação do Museu do Café em suas três pontas
fundamentais: preservação, pesquisa e comunicação museológica. A partir destes recortes
patrimoniais são desenvolvidas as linhas de pesquisa e organização do Museu, sua política de
acervo, seu programa de exposições temporárias, de ação educativa que foram base para a
exposição de média duração inaugurada em dezembro de 20142.
Como uma das frentes de atuação do Museu do Café, a área de pesquisa e preservação
volta-se para seu entorno (praça comercial e complexo portuário de Santos) e para o interior
(circuito de fazendas histórias e complexo ferroviário), visando compreender o eixo produção
– exportação, tanto em sua dimensão histórica como as relações sociais atuais.
Para tanto, o Museu desenvolve ações de mapeamento desse patrimônio material e
imaterial desde 2011, inter-relacionando depoimentos de história oral e referências de acervos
museológicos (ou potencialmente musealisáveis), arquivísticos ou iconográficos.
Durante esses anos de pesquisas percebeu-se uma centralidade da cidade e porto de
Santos durante vários anos e diversos aspectos do comércio do café, desde um momento em
que existiam grandes dificuldades de comunicação e que homens de confiança dos
fazendeiros no interior precisavam se estabelecer na cidade para ficarem próximos dos
clientes do mercado de exportação, até os dias de hoje, em que a Praça de Santos não possue a

2
Os projetos de mapeamento são apresentados na exposição tanto na íntegra como traduzidos em
sua curadoria.
234

V V
mesma centralidade de profissionais, mas que continua com 78% das exportações do grão
passando por seu porto3.
Essas questões fizeram com que o Museu do Café norteasse seus esforços de pesquisa
a fim de compreender a movimentação dos cafezais pelo Estado de São Paulo, sua saída do
Paraná e expansão pelas zonas cafeeiras do sul de Minas Gerais, mapeando os registros
materiais e imateriais latentes nas regiões por onde o café passou ou ainda subsiste e sua
relação com o entorno direto do Museu, o complexo portuário da cidade de Santos. Essa
interdependência que persiste ao longo dos séculos fazem com persigamos o conceito de
Paisagem Cultural, uma interação sui-generis do homem com o meio ambiente, chancelada
tanto pelo IPHAN no âmbito nacional quanto pela UNESCO no internacional.
Neste artigo apresentaremos, portanto, as ações do Museu do Café no sentido de
integrar e articular um patrimônio do café ainda pouco explorado, buscando uma
homogeneidade dessa produção ao longo dos anos e o legado deixado pelo complexo da
comercialização do grão no Estado de São Paulo.

PRAÇA DE SANTOS: MAPEAMENTO E HISTÓRIA ORAL


A princípio o mapeamento do patrimônio material e imaterial do café era focado no
entorno imediato do Museu do Café. Por isso, entre os anos de 2011 e 2013 desenvolveu-se
dois projetos com objetivos comuns: no primeiro seriam coletados depoimentos orais visando
um período recente e mais curto (1940 – 2010) e outro que mapearia fontes textuais,
cartográficas, museológicas e audiovisuais, além da própria arquitetura das edificações,
relacionadas ao tema para a história do comércio do café em Santos, em um período mais
longo e, consequentemente, antigo (1850 – 1986).
Com relação ao primeiro projeto, foram entrevistados corretores, ensacadores,
exportadores, estivadores, classificadores, donos de armazém, enfim, pessoas que tivessem
ligação direta com o café na cidade de Santos. As instituições e as profissões ligadas ao café
que continuam na cidade de Santos nos dão uma pista desse passado.

E é interessante que é uma coisa sui generis. Acho que, no


mundo inteiro, não existe um mercado que já foi o principal ponto de
comércio do café do mundo — porque aqui era comercializado —
80% do café do mundo era na Rua Quinze. Entre quatro ruas. A Rua
do Comércio, a Rua Quinze e Rua Frei Gaspar. Nesse pedacinho se

3
JORNAL A Tribuna. Exportações de café pelo Porto de Santos têm alta de 22%. Disponível em:
http://www.atribuna.com.br/mobile/porto-mar/exporta%C3%A7%C3%B5es-de-caf%C3%A9-pelo-
porto-de-santos-t%C3%AAm-alta-de-22-1.403504 Acesso em: 28 de fevereiro de 2014.
235

V V
comercializava todo o café do Brasil, praticamente. Porque você
vendia aqui para entregar em Angra, para entregar no Rio de Janeiro,
para entregar em Paranaguá. Mas era feito aqui. Depois, começou a
turma a abrir filial em Paranaguá, os compradores — mas, no mais,
era tudo feito aqui em Santos. Entre quatro ruazinhas tinha todas as
firmas de café que dominavam o mercado internacional do café
(MUSEU DO CAFÉ, 2011, p.16).

Nesse trecho do depoimento do corretor Álvaro Vieira da Cunha, é possível entender a


relação da cidade de Santos e o café quase que instantaneamente. A cidade abrigava todas as
instituições necessárias para a comercialização do produto, além de ser sede de uma rede de
relacionamentos e informações que dava base para a expansão do corretor e do comissário de
café na cidade.
Portanto, esse percurso do café pela cidade foi o que motivou o primeiro esforço de
mapeamento propriamente dito da Praça, através do registro da história oral. Esse registro nos
daria uma pista da extensão da Praça nos dias de hoje, através das várias funções e profissões
presentes na cidade.
Aqui abriremos um parêntese com um trecho do depoimento do senhor Antônio
Ermida, ensacador aposentado:

[...] Aí, eu fui para o ponto [...] Já estava no ponto, quando era
escalado pelo trabalhador, pelo caixeiro do ponto. E saía, o diretor do
ponto distribuía o trabalhador para ir para os armazéns. Falava “eu
quero tantos homens aqui.” [...] todos os armazéns que pediam
(MUSEU DO CAFÉ, 2011, p.1 e 2).

O “ponto” ou “parede” era o local onde eram escolhidos os trabalhadores para o


trabalho no armazém ou no porto. Para muitos ensacadores avulsos ou estivadores, a parede
simbolizava a distribuição de todo e qualquer serviço disponível no dia. No caso dos
ensacadores, a ligação afetiva com o local – a Rua Viscondessa do Embaré, a “Viscondessa”
como os próprios se referiam – é tão clara que, na fala de cada um deles não parecia
necessária apresentação. Trata-se de uma rua de movimentação puramente portuária, de
caminhões e trânsito de carros, mas o “ponto” continua lá com grande significação simbólica,
onde ainda são distribuídos trabalhos.
Interessante notar que apesar das profissões de ensacador e estivador terem se
distanciado ao longo dos anos na cidade de Santos, suas organizações internas de trabalho são

236

V V
bastante semelhantes4. Ambas cateogorias possuem dentro de seus sindicatos o esquema de
“carteiras” para sorteio dos trabalhos, valorizando os trabalhadores com mais tempo de
sindicato, além da divisão dos melhores serviços serem balizadas pelo sistema de Cambio,
Avançado e Dobra5.
Com relação aos negociantes de café – tanto corretores, como exportadores e
classificadores – estas pessoas possuem uma tônica: falam sobre o esvaziamento do centro da
cidade dos profissionais ligados ao café. Antes da transformação e aperfeiçoamento dos meios
de comunicação, a cidade era apinhada de pessoas que trabalhavam com informação quando a
comunicação com o exterior e interior era escassa. Corretores, comissários, exportadores e
classificadores ficavam reunidos na rua XV de Novembro, entre as ruas do Comércio e Frei
Gaspar, trocando informações sobre os cafés que estavam chegando ou que ainda estavam
sendo produzidos no interior.
A partir desse conhecimento da Praça e com diversos contatos em escritórios,
armazéns, sindicatos, etc., partimos para um mapeamento das referências materiais ainda
existentes nesse território. O projeto “Praça de Santos” teve como objetivo de mapear fontes
para a história do comércio do café em Santos no período de 1850 a 1986. Pesquisadores do
Museu buscaram na cidade documentações textuais, plantas, mapas, fotografias, filmes,
objetos, maquinários, mobiliários e as próprias edificações relacionadas ao tema. Nesse
contexto, é avaliada a importância histórica de cada item, seu estado de conservação e
organização. Todas as informações coletadas foram registradas em fichas a partir de normas
internacionais de documentação nas áreas da museologia e da arquivística.
Essa primeira etapa do mapeamento foi dedicada ao patrimônio dos escritórios de
corretagem, exportação e torrefadoras de café da cidade de Santos. Entretanto, das dez
empresas mais antigas da Praça, apenas três já aderiram integralmente ao projeto e abriram
seus acervos e arquivos – Hard, Rand & Co., Naumann Gepp Comercial e Exportadora Ltda.
e O Rei do Café Torrefadora. As séries documentais e conjuntos de objetos encontrados
nessas companhias, além dos históricos das empresas e detalhes arquitetônicos do edifício

4
Depois da construção do cais pela Companhia Docas, os trabalhos dentro do armazém começaram
a ser desempenhados por uma categoria diferente da que desempenhava a estivagem nos porões do
navio.
5
Câmbio, Avançado e Dobra são formas de distribuição de trabalho: o trabalhador que se encontra
no “câmbio” tem direito de escolher primeiro, vindo seguido pelos que se encontram no “avançado”
e na “dobra”. Diariamente os trabalhadores revezavam de posição, de forma que todos pudessem
ter direito de escolha iguais.
237

V V
onde se encontravam atualmente foram em elencadas em fichas descritivas e compiladas em
um caderno que foi entregue ao final do encerramento dessa primeira etapa do projeto.
É importante salientar que esse projeto está intimamente ligado ao de História Oral. Os
saberes e as funções identificados têm relação intrínseca com o patrimônio material, foco de
todos os projetos de mapeamento que desenvolvemos. Entretanto, os conjuntos de objetos e
documentos que pudemos mapear fazem parte do universo de atividades ligadas apenas ao
comércio e a comunicação. Desta forma, percebemos que não seria possível permanecer
apenas em nosso entorno imediato.
Como já dissemos, a Praça de Santos alcançou a centralidade que ainda possui por
conta da difícil comunicação com o interior, sendo consequência disso o desenvolvimento de
relações de amizade entre profissionais instalados na cidade e fazendeiros, gerando uma
dinâmica particular de circulação de pessoas. Por esse motivo, o mapeamento das instituições
do interior se fez necessário.

MAPEAMENTO DO INTERIOR DE SÃO PAULO


No caso do mapeamento do interior do Estado de São Paulo o caminho foi inverso e
iniciou-se pelo referenciamento de fazendas, institutos e museus temáticos voltados à temática
“café”. Durante os anos de 2011 e 2012 um mapeamento de acervos históricos,
arquitetônicos, museológicos e documentais relacionados à história da cafeicultura, intitulado
“Memória do Café” (MUSEU DO CAFÉ, 2012, p. 4), foi iniciado pelo Museu e desenvolvido
por uma equipe de pesquisadores externos coordenados pela museóloga Cecília Machado.
Os testemunhos materiais produzidos na baliza dos anos de 1830 – 1930 foram
priorizados neste projeto, tendo como foco objetos relacionados ao ciclo produtivos do café,
desde sua plantação até a comercialização. Dentro do Estado foram selecionadas cinco
instituições museológicas, três institutos de pesquisa voltados à cafeicultura e dez fazendas,
distribuídas pelas áreas de maior produção agrícola no período abordado. Foram elas:
Museus – Museu do Café (Campinas), Museu do Café Francisco Schmidt (Ribeirão
Preto), Museu do Café da Fazenda Lageado (Botucatu);
Fazendas – Cravinhos (Cravinhos), São Francisco (São José do Barreiro), Resgate
(Bananal), Ibicaba (Cordeirópolis), Santa Gertrudes (Santa Gertrudes), Brejão (Casa Branca),
Salto Grande (Araraquara), Pinhal (São Carlos), Ermida (Jundiaí), Cecília (Cajuru);

238

V V
Institutos – Instituto Biológico (IB – São Paulo), Instituto Agronômico de Campinas
(IAC – Campinas), Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – (ESALQ – Piracicaba)
(MUSEU DO CAFÉ, 2012, p. 5).
Através desse mapeamento, no ano de 2014 iniciou-se o projeto de história oral com o
objetivo de retomar os contatos iniciados pelo projeto Memória do Café e ir além da
amostragem inicial de fazendas, institutos e museus mapeados pela equipe de pesquisadores
em 2012. Assim como na Praça de Santos, o objetivo é delimitar a historicidade dos saberes
dos depoentes, interrelacionando-os com os objetos mapeados.
Como é um projeto que possui ainda poucas entrevistas6 podemos apenas aferir
algumas suposições em cima de pesquisas bibliográficas e documentais. Uma delas parte do
pressuposto que São Paulo não é mais o maior produtor de café do Brasil, posto este ocupado
por Minas Gerais a partir de meados da década de 1990. Portanto temos focos bastante
distintos: regiões onde o café não possui mais qualquer traço de produção e subsiste a
preservação do patrimônio edificado e móvel por antigos proprietários; “bolsões” de
produtores que subsistiram às mudanças de culturas e ainda produzem café; regiões próximas
ao Estado de Minas Gerais que ainda tem alguma sobrevida da produção.
No primeiro caso, o contato é o mais complicado pois depende do deslocamento
incerto e reconhecimento de fazendas ainda não mapeadas, a partir de contatos que são
passados a equipe de pesquisadores. Além disso, grande parte dessas fazendas intituladas
“históricas” foram inicialmente mapeadas pelo trabalho coordenado por Cecília Machado,
fazendo com que a equipe de pesquisadores focasse em uma baliza temporal retroativa,
procurando as regiões ainda produtoras de café para tentar explicar sua permanência na
produção, além de suas particularidades.
Nos “bolsões” de produtores os contatos são feitos a partir de exportadores e
corretores da Praça de Santos, sendo uma aproximação mais certa e fácil. Foi o caso do
primeiro depoente contatato, o senhor Rui Bonini (MUSEU DO CAFÉ, 2014), produtor da
região de Garça próximo à divisa com o Paraná. A região, apesar de seus cafés finos, sofreu
com as intensas geadas das décadas de 1960 e 19707 que assolaram o Paraná e parte do de São

6
O projeto de história oral Memórias do Comércio de Café em Santos até o momento conta com 36
depoentes enquanto o projeto Memórias da Produção de Café no Interior do Estado de São Paulo
conta com apenas cinco, até o momento. A grande adesão ao primeiro é explicada pelo fato da
proximidade e facilidade do contato, enquanto o segundo possui uma grande dificuldade por conta
dos deslocamentos que demandam as entrevistas.
7
É consenso entre comerciantes e produtores que a famosa “geada negra” de 1975 decretou o fim
da expansão dos cafezais para o sul; até então, Minas Gerais ainda não tinha a preponderância atual
239

V V
Paulo. Entretanto, nas décadas seguintes, a introdução da mecanização da colheita nessa
região facilitada pela pouca inclinação do terreno fez com que houvesse uma diminuição de
trabalhadores. Esse fator, talvez explique a permanência de alguns produtores na cultura do
café.
Já nas regiões ainda ativamente produtoras temos a da Alta Mogiana, esta próxima ao
sul de Minas Gerais. Um dos depoimentos que coletamos para esse projeto foi com Daniel
Bertelli, gerente da Cooperativa de Pinhal. A organização dessa zona produtora e sua
localização dizem muito sobre a produção do café atualmente:

[...] eu tenho que vender o café. E é melhor que eu não venda


pra ninguém que seja intermediário. Isso é básico hoje. [...] Tanto é
que Santos hoje, ele é um terminal de embarque, nem de comércio.
Hoje se comercializa café em Varginha. A mudança que a senhora
falou do café com leite chega a esse ponto né. Hoje a estrutura
operacional do café é Varginha (MUSEU DO CAFÉ, 2015, p. 9).

Varginha é conhecida atualmente como a maior praça cafeeira do Brasil, por interligar
as regiões do sul de Minas, Cerrado Mineiro e parte do Estado de São Paulo; além disso, essa
decentralização das operações comerciais na região portuária é explicada pelo avanço das
telecomunicações e a proximidade com as regiões produtoras, facilitando o armazenamento,
apesar de ainda possuir o porto de Santos como escoador principal.
Dada a importância dessas relações do patrimônio imaterial com o material,
iniciaremos no ano de 2015, conjuntamente com esse projeto de História Oral da produção,
um segundo que intercambie informações da técnica e uso de ferramentas, para que os objetos
e locais mapeados sejam contextualizados ao seu uso. Essa questão se faz importante
principalmente nas regiões onde a mecanização avança rapidamente e o trabalho manual aos
poucos desaparece, se tornando cada vez mais difícil a obtenção de informação sobre o uso de
algumas ferramentas e maquinários.

PAISAGEM CULTURAL E A EXPERIÊNCIA COLOMBIANA


Mas qual o motivo desses mapeamentos? Se o Museu do Café tem, por um lado, como
missão a preservação, conservação e difusão desse Patrimônio, por outro lado, seu
reconhecimento e sistematização trazem resultados que não só enriquecem as exposições e

no mercado cafeeiro e o Estado do Paraná estava em franca expansão e, com as grandes geadas
muitos produtores substituíram suas produções ou migraram para terras mais ao norte.
240

V V
ações educativas do Museu, como reconhecem as zonas cafeicultoras como uma Paisagem
Cultural.
A chancela brasileira pelo IPHAN é algo bastante recente, por isso, precisamos
observar experiências exteriores, sendo a mais próxima de nosso objeto de estudo o caso da
Colômbia. Segundo o site organizado para centralizar informações a respeito das ações
decorrentes da chancela, a Paisagem Cultural dos Cafezais da Colômbia (PCC):

[...] constituye un ejemplo sobresaliente de adaptación humana a


condiciones geográficas difíciles sobre las que se desarrolló una caficultura
de ladera y montaña. Se trata de un paisaje cultural en el que se conjugan
elementos naturales, económicos y culturales con un alto grado de
homogeneidad en la región, y que constituye un caso excepcional en el
mundo. En este paisaje se combinan el esfuerzo humano, familiar y
generacional de los caficultores con el acompañamiento permanente de su
institucionalidad (PAISAGE Cultural del cafetero, 2015).

Pode-se compreender que não é apenas uma zona cafeeira que é preservada, mas sim
diversas que formam o “eixo do café”, abrangendo as regiões de:

[...] de Caldas, Quindío, Risaralda y Valle del Cauca, ubicadas en las


estribaciones Central y Occidental de la cordillera de los Andes. Esta región
ha sido tradicionalmente reconocida a nivel nacional e internacional como el
Eje Cafetero y, más recientemente, como la Ruta del Café, a raíz de una
campaña que busca promocionar a la zona a nivel nacional e internacional
(Idem, 2015).

Entretanto, a justificativa para a preservação das zonas cafeeiras colombianas como


um espaço único de interação do homem com o meio ambiente seria uma “excepcional ação
coletiva” que os permitiu superar circunstâncias econômicas difíceis. A especificidade do
cultivo colombiano destacado é o da pequena propriedade familiar, no qual se destacou uma
cultura bastante homogênea e que destacam as técnicas construtivas – tanto nas cidades como
nas fazendas – relacionando esse patrimônio edificado a uma cultura imaterial, expressa por
festas, carnavais e celebrações; essa cultural é aferida como herdeira de tradições
antiquíssimas, reforçando o café como parte integrante de um complexo cultural mais
abrangente sendo, por isso, importante a identificação do patrimônio do café também em suas
apropriações e reinvenções (Ibidem, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conceito de Paisagem Cultural diz respeito a um recorte do território que traz as
marcas da relação do homem e seu meio ambiente. Tal relação resulta em fazeres e saberes
241

V V
com marcas e valores específicos, que passam a representar o lugar, transformando-se em sua
melhor tradução. Esse patrimônio ganha sentido quando sua memória simbólica é recuperada
e suas camadas de significados vêm à tona. Apesar de se fazer necessária a leitura da
experiência colombiana, uma Paisagem Cultural tombada no âmbito internacional pela
UNESCO, não se pode perder de vista que a legislação brasileira também prevê a preservação
de Paisagens Culturais identificadas no território nacional8.
Com a produção no interior, as extensas estradas de ferro, a administração na capital e
a comercialização em Santos, o sistema agroexportador do café configurou o espaço físico do
Estado de São Paulo. Os indícios materiais dessa cadeia estão em quase todo território
paulista, em complexos de fazendas e malhas ferroviárias, na arquitetura urbana, no Porto de
Santos, em empresas, armazéns e demais instituições ligadas ao café.
O café e sua história ainda é muito presente hoje no cotidiano dessas cidades. Para
além do patrimônio material, há uma memória compartilhada entre trabalhadores devido a um
complexo círculo de sociabilidade que se formou entre as diversas profissões ligadas ao
produto.
A presença do café também é sensível nos dias de hoje no cotidiano dessas cidades. A
identificação de memórias entre trabalhadores que atuaram nos últimos 70 anos tem vários
pontos em comum, devido a um complexo círculo de sociabilidade que se formou entre as
diversas profissões.
Portanto, a Paisagem Cultural do Café encontra-se ainda no Estado de São Paulo,
presente nas práticas cotidianas de cada trabalhador que lida com o café, e na arquitetura
resultante desses processos profissionais assim como da sua interação com a natureza local.
Apesar da evidente presença desse patrimônio, resta ainda muito trabalho para entendê-lo e
preservá-lo, sendo os esforços de mapeamentos um dos meios para tal fim.

Referências Bibliográficas

PAISAGEM Cultural del Cafetero. Disponível em: http://paisajeculturalcafetero.org.co/contenido/la-


historia-del-pcc Acesso em: 27 de fevereiro de 2015.
MUSEU do Café. Depoimento de Daniel Bertelli e Ana Negrini. Relatório de História Oral, 2015.
MUSEU do Café. Projeto de Mapeamento “Café: a Praça de Santos”. In: Relatório de atividades
do Museu do Café referente ao 2º trimestre de 2012, São Paulo, 2012.
MUSEU do Café. Relatório de História Oral, 2011.

8
INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Paisagem Cultural. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1756 Acesso em: 27 de fevereiro de 2015.
242

V V
MUSEU do Café. Relatório de História Oral, 2012.
MUSEU do Café. Relatório de História Oral, 2014.
MUSEU do Café. Relatório do Projeto “Café: Praça de Santos”, 2012.
MUSEU do Café. Relatório do Projeto “Memória do Café”, 2012.
INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Paisagem Cultural. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1756 Acesso em: 27 de fevereiro de 2015.
JORNAL A Tribuna. Exportações de café pelo Porto de Santos têm alta de 22%. Disponível em:
http://www.atribuna.com.br/mobile/porto-mar/exporta%C3%A7%C3%B5es-de-caf%C3%A9-pelo-
porto-de-santos-t%C3%AAm-alta-de-22-1.403504 Acesso em: 28 de fevereiro de 2014.

243

V V
ECONOMIA CRIATIVA E CADEIA PRODUTIVA DO LIVRO:
ESTUDO E DIAGNÓSTICO SOBRE AS EDITORAS DA BAHIA
Calila das Mercês Oliveira1
Raquel Machado Galvão2
Roberto Henrique Seidel3

RESUMO: No oriente de compreender as dinâmicas da economia criativa do livro na Bahia


é que o artigo caminha. Ao debater questões relativas à pesquisa “Publicações na Bahia:
mapeamento e diagnóstico das editoras baianas” (CNPq/MinC/Secretaria de Economia
Criativa/UEFS), queremos trazer abordagens sobre a implementação da cadeia produtiva do
livro. E diante do desafio de realizar um levantamento sobre informações e dados da
Economia Criativa, uma lacuna ainda em aberto, é preciso investigar experiências do setor
criativo do livro. Conhecendo algumas editoras da Bahia, formais e não formais, percebe-se a
existência daquelas que trabalham de forma alternativa, como as editoras de cordéis,
quadrinhos e gráficas que funcionam como editoras. Ao aprofundar o conhecimento sobre o
perfil de criação e empreendedorismo do setor, depara-se com um difícil gargalo na dinâmica
editorial na Bahia: a distribuição dos livros.

PALAVRAS-CHAVE: Economia Criativa, Cadeia Produtiva do Livro, Editoras Baianas,


Livro, Mapeamento.

Introdução
A economia da cultura é um novo campo de estudos. A criação recente, em 2011, de
uma Secretaria ligada ao Ministério da Cultura insere as diversas áreas da cultura nesse
debate, legitimando a necessidade de diálogo sobre esse setor estruturante. Segundo a
economista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e coordenadora do
Sistema de Informações e Indicadores Culturais, Cristina Pereira de Carvalho Lins, faltam
estatísticas governamentais para cobrir o setor das indústrias criativas, englobando questões
metodológicas, referências numéricas, produtivas e de nomenclatura. Para ela, “aprofundar a

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS); colaboradora e bolsista da pesquisa “Publicações na Bahia: mapeamento e diagnóstico das editoras
baianas” (CNPq/MinC/Secretaria de Economia Criativa). Endereço eletrônico: caliladasmerces@gmail.com.
Tel. (71) 9151.1292.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS); colaboradora da pesquisa “Publicações na Bahia: mapeamento e diagnóstico das editoras baianas”
(CNPq/MinC/Secretaria de Economia Criativa). Endereço eletrônico: raquelgcultura@gmail.com. Tel. (73)
9126.4258.
3
Doutor em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professor Titular do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Coordenador da
pesquisa “Publicações na Bahia: mapeamento e diagnóstico das editoras baianas” (CNPq/MinC/Secretaria de
Economia Criativa). Endereço eletrônico: r.h.seidel@gmail.com. Tel. (71) 9156.8683.
244

V V
reflexão sobre o âmbito do conceito de cultura/economia criativa para a produção das
estatísticas nacionais é uma condição para o avanço do trabalho, nos termos da parceria”
(BRASIL, MINC, 2011, p. 108).
Carlos Lopes, no artigo “Competências criativas para fortalecer a economia criativa no
Brasil”, diz que “é preciso mapear as competências e avaliar as necessidades de formação de
economia criativa brasileira” (LOPES, 2011, p. 113). Só assim artistas e empreendedores
criativos poderão buscar uma inserção produtiva e social mais forte, com melhor rendimento e
eficiência.
A partir do estudo da cadeia produtiva dos setores criativos, o poder público também
poderá pensar estratégias de pequeno, médio e longo prazo que possam fortalecer, de um
modo geral, o setor de livros. Sendo assim, formações, iniciativas de gestão e modelos
eficazes de distribuição deverão entrar em voga como cerne das políticas públicas cujo
principal público alvo é a própria sociedade.
Segundo Claudia Leitão (2009, p. 115), “cultura é, ao mesmo tempo, processo e
produto. Algo tangível e intangível”. Quando o ensino superior, no seu papel de facilitador de
acessos diversos, se propõe a realizar um estudo sobre o setor de livros, focado em
publicações, mais do que mapear e conhecer, ele visa diagnosticar de que forma os artistas das
letras e os empreendedores culturais estão atuando, e como será possível a interrelação e
cooperação entre os diversos agentes, para que os abismos sejam minimizados e possa existir
um real fortalecimento da área, respeitando assim o pleno exercício da cultura, estabelecendo
algo que vem sendo denominado de cidadania cultural, i. e., “a cultura como direito dos
cidadãos e como trabalho de criação”(cf. CHAUI, 2006, p. 67). Assim, é preciso pensar as
diversas dinâmicas que envolvem a cadeia produtiva do livro na Bahia, não somente as
editoras, buscando perceber as similaridades e divergências no que tange à produção dos
livros, as características dos principais profissionais envolvidos na produção e os dados sobre
os livros. Além disso, analisar atributos de distribuição, consumo e difusão dos livros, assim
como o nível de compreensão das políticas públicas, o universo dos direitos autorais, as
parcerias firmadas, entre outros fatores.

1 A economia do livro no contexto das editoras baianas


A pesquisa “Publicações na Bahia: mapeamento e diagnóstico das editoras baianas”,
que está ligada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), tem como objetivo principal realizar um mapeamento

245

V V
detalhado das editoras atualmente existentes na Bahia em suas diversas regiões, englobando
tanto as que funcionam na formalidade com um apelo comercial, quanto as que operam de
forma alternativa ou não-tradicional. No que diz respeito ao segmento dito alternativo, há que
se destacar que “o Brasil está assistindo, nos últimos anos, a um movimento cultural vindo da
periferia, englobando literatura, música, entre outras manifestações”, sendo que tal tendência,
conforme a expressão pública do próprio Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL),
sinaliza para a “importância de se ter um padrão de qualidade no que se refere à literatura
marginal, ou de periferia, [...] para que ela saia desse nicho e possa atingir o mercado como
um todo” (GANDRA, 2013, online).
Devido à extensão territorial e a quantidade de municípios da Bahia (417 municípios),
está sendo adotada para o mapeamento a referência às sete mesorregiões do estado, a saber as
seguintes: Metropolitana de Salvador, Extremo Oeste Baiano, Vale São-Franciscano Baiano ,
Centro-Sul Baiano, Sul Baiano, Centro-Norte Baiano e Nordeste Baiano. Trabalhar com o
conceito de mesorregião significa levar em consideração aspectos mais vastos que apenas o
histórico ou o econômico, de forma a ampliar as determinações no âmbito conjuntural,
observando-se como elementos: “o processo social como determinante, o quadro natural
como condicionante e a rede de comunicação e de lugares como elemento da articulação
espacial” (IBGE, 2013, online).
Segundo o professor e pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em
Cultura (Cult) da Universidade Federal da Bahia, Paulo Miguez (2011, p. 99):
é bastante plausível a expectativa de que a realização de estudos e
pesquisas voltados para responder às indagações próprias de toda a novidade
venha garantir a densidade teórico-metodológica necessária ao
enfrentamento do desafio de pensar o conceito de economia criativa em
chave brasileira.

Ao pensar o universo editorial, sabe-se que o número de editoras no Brasil até meados
da década de 90 era muito inferior ao quadro que se tem hoje. Havia o domínio daquelas de
grande porte, localizadas em grandes centros urbanos. Foi a partir da expansão e ampliação
das novas tecnologias da informação, da possibilidade da compra de maquinário,
computadores e softwares, que houve a mudança desse quadro.
Pensar na “cadeia produtiva do livro”, é vincular setores diferentes e complementares,
que, ao mesmo tempo, podem se confrontar devido às disputas de mercado, setores estes que
contemplam o editorial, o autoral, o gráfico, o produtor de máquinas gráficas, o produtor de

246

V V
papel, o distribuidor, o atacadista, o bibliotecário e o livreiro. Mesmo assim, existe uma
lacuna no estudo e análise dessa cadeia:
As dificuldades de acesso aos dados e o baixo grau de desagregação
da informação estatística disponível — sem mencionar problemas
qualitativos presentes nos dados produzidos e disponibilizados pelas
entidades do setor editorial — recomendam uma melhor estruturação do
processo de produção e difusão de dados caso se pretenda produzir análises
mais sólidas sobre a estrutura e a dinâmica desse setor de atividade
econômica (EARP; KORNIS, 2005, p. 48).

No recorte da Bahia, sabe-se da existência de inúmeras editoras e de políticas culturais


voltadas para elas. A cunho de exemplo, a Fundação Pedro Calmon, principal órgão
governamental ligado ao setor de livros na Bahia, conta com uma Diretoria do Livro e da
Leitura que promove políticas para o setor de publicações. A Fundação é a responsável pelos
editais específicos para a publicação de livros por editoras baianas. No ano de 2012, tais
editais tinham como objetivo:
Apoiar propostas de edição de livro ou coleção de autores baianos,
cuja temática seja a cultura baiana em suas diversas expressões: cultura
negra, cultura sertaneja, literatura (ficção e poesia), folclore, história da
Bahia, biografias de personagens ilustres, literatura popular, fotografia,
cultura praieira, etc. (BAHIA, SECULT, Edital 08/2012, p. 7).

O Plano Nacional do Livro e Leitura, formulado em 2010 pelo Ministério da Cultura


em parceria com o Ministério da Educação, trouxe como um de seus eixos o
Desenvolvimento da Economia do Livro. Elaborado em debate com a sociedade civil, o
documento diz que:
A política para o livro e a leitura deve considerar também as diversas
autorias e a criação literária, além das questões de fomento do setor editorial
e livreiro, de forma a criar condições para que a produção das obras
necessárias aconteça de forma cada vez mais eficaz [...] (BRASIL, MinC.
Plano Nacional do Livro e Leitura, 2010, p. 35).

O eixo de Desenvolvimento da Economia do Livro traz debates que englobam o


desenvolvimento da cadeia produtiva do livro, o fomento à distribuição, circulação e consumo
de bens de leitura, apoio à cadeia produtiva do livro e maior presença no exterior da produção
nacional literária, científica e cultural editada. E sem o diagnóstico essas metas podem ficar
com diversas lacunas.
O Plano Estadual do Livro e Leitura na Bahia (2013-2022) traz também como um de
seus eixos o Desenvolvimento da Economia do Livro. Entre as estratégias definidas estão:
incrementar a rede produtiva do livro e apoiar a rede criativa do livro, incluindo entre seus
247

V V
objetivos fomentar a produção de indicadores sobre a situação do livro e da leitura na Bahia,
para cujo âmbito esse projeto se propõe em colaborar.

2 Cadeia produtiva do livro e diversidade cultural


Pensar a Bahia na sua diversidade territorial — portanto, sem focar apenas a capital e a
região metropolitana — é uma tarefa importante, uma oportunidade de possibilitar a voz e a
vez aos demais territórios ou regiões baianas com diferentes e diversas características sócio-
político-culturais, características estas que não os coloca imunes à dinâmica de atividades
artísticas e partícipes da área de economia da cultura. Em termos de abordagens acadêmicas
(dissertações de mestrado), cita-se o exemplo de duas pesquisas recentes que deram conta da
dinâmica cultural de escritores de duas diferentes regiões do interior da Bahia , ambas
apontando que há em regiões tão distintas entre si e distantes espacialmente dos centros, tanto
uma intelectualidade que escreve e publica, quanto um público leitor que demanda obras,
sejam elas literárias, sejam não literárias.
Diante do desafio de realizar um levantamento sobre informações e dados da
economia criativa, uma lacuna ainda em aberto, a pesquisa visa investigar experiências do
setor criativo de livro, envolvendo uma articulação dos setores de Livro e Publicações de
Mídias Impressas. Dessa forma, a pesquisa ancora no primeiro dos três eixos colocados pela
Secretaria da Economia Criativa como sendo fundamentais para o desenvolvimento e/ou
incremento da economia criativa no Brasil. Os três eixos são os seguintes:
a) mapeamento da informação das cadeias produtivas, com diagnóstico de territórios
criativos, de vocações regionais, para formulação de políticas públicas;
b) capacitação técnica para gestão de negócios criativos, com formação de gestores, do
artesanato à cultura digital;
c) promoção e difusão desses empreendimentos em feiras, rodadas de negócios,
etc. (cf fala da secretária Claudia Leitão, apud Economia Criativa, Notícias do MinC, 27 mar.
2013, online).
Considerando aspectos do desenvolvimento como a diversidade, a sustentabilidade, a
inovação e a inclusão social, a pesquisa envolve uma investigação sobre experiências bem
sucedidas com a publicação de livros, assim como o desempenho de coletivos, associações e
cooperativas culturais que atuam na área (com impressão de cordéis, livros artesanais) de
forma alternativa, podendo ser exemplos de sustentabilidade econômica e social.

248

V V
3 Mapeamento, diagnóstico e economia da cultura
Para o professor e escritor baiano Mayrant Gallo (que já foi titular da Diretoria do
Livro e da Leitura da Fundação Pedro Calmon até fevereiro de 2013), a produção editorial
baiana atual não fica a dever, em qualidade gráfica, a quase nenhuma editora das regiões
Sudeste e Sul:
Posso estar enganado — e não são poucos os homens que se
enganam —, mas, ao que parece, uma nova era no meio editorial baiano
começou. Já temos editoras — e editoras criteriosas —, em quantidade que
nem sei se a constelação de leitores baianos a justifica. Não faltam livros,
portanto. Falta talvez que leiamos mais, que frequentemos mais as livrarias e
os lançamentos de livros. Que nos “aculturemos” tanto para a mente quanto
para o corpo (GALLO, 2013, online).

Em uma de suas ações, a Fundação Pedro Calmon realizou uma chamada pública para
selecionar editoras baianas para compor o estande da instituição na XI Bienal do Livro da
Bahia, demonstrando um interesse por parte das políticas públicas em fomentar o setor.
Contudo, deve-se considerar que existem ainda editoras desconhecidas pelos mapeamentos
até então realizados, muitas atuando de forma alternativa, como as editoras de cordéis,
quadrinhos e gráficas que funcionam como editoras. Para envolvê-las e criar linhas de apoio
para o financiamento de livros, como consta no plano de ações do Plano Estadual do Livro e
da Leitura, é necessário conhecê-las, em mapeamento e diagnóstico. Ter em mãos
informações sobre quais são as editoras baianas em atuação, investigando a sua cadeia
produtiva — que inclui criação, produção e distribuição — já é um passo importante para
divulgação e facilitação do trabalho delas em rede. Só a partir dessas informações será
possível estimular capacitação e o fomento a empreendimentos criativos em toda a Bahia.
Em um levantamento prévio em documentos ligados às políticas estaduais do setor de
cultura, foram identificadas algumas editoras, com perfis diferenciados, que vão das
universitárias, passando pelas que têm um perfil mais comercial, e outras comunitárias. São
exemplos: Cogito Editora (Salvador), Editora Vento Leste (Salvador), Pimenta Malagueta
(Salvador), Mondrongo (Ilhéus), Quarteto (Salvador), Editora Kalango (Simões Filho), P55
Edições (Salvador), Casarão do Verbo (Anagé), Cedraz (Salvador), Livro.com (Lauro de
Freitas), Casa de Palavras (Salvador), Editora Corrupio (Salvador), EDITUS (Universidade
Estadual de Santa Cruz, Ilhéus-Itabuna), EDUFBA (Universidade Federal da Bahia,
Salvador), EDUNEB (Universidade do Estado da Bahia, Salvador), mnira Editoração e
249

V V
Revista (Salvador), Selo Arcádia (Salvador), Solisluna Editora (Lauro de Freitas), Todas as
Falas (Porto Seguro), UEFS Editora (Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de
Santana), UNIJORGE (Faculdade Jorge Amado, Salvador), Via Litterarum (Itabuna) e Egba
(Salvador).
Já tendo conhecimento da existência dessas editoras, o projeto busca assimilar as que
ainda não estão listadas e as que já trabalham de forma alternativa, como, por exemplo, as
editoras de cordéis, quadrinhos e gráficas que funcionam como editoras e as chamadas
cartoneiras (que trabalham com materiais reciclados e artesanais). Assim, será possível
perceber dinâmicas de similaridades de funcionamento e dificuldades encontradas pela cadeia
editorial como um todo.
Munidos dos dados, estamos na dinâmica de traçar um perfil das editoras da Bahia,
para que haja uma maior compreensão da cadeia produtiva do livro no âmbito da criação,
produção e distribuição. Já em andamento, a pesquisa divulga as informações em um site
exclusivo (www.econocriativa.org) e, posteriormente, tornará públicas as informações
também em formato e-book.

4 Dinâmicas possíveis
Por meio do instrumento da aplicação de questionários em entrevistas, para posterior
análise dos dados quantitativos e qualitativos, a pesquisa em andamento visa perceber, entre
outros fatores, os níveis de formalidade das editoras, assim como o número de livros
publicados por ano, a tiragem média e o tipo de gráfica. Todas essas questões fazem parte da
dinâmica de produção dos livros. Saber sobre os profissionais envolvidos, os vínculos que
eles têm com as editoras, os nível de escolaridade também cabe nesse viés da cadeia
produtiva.
Quais são as relações estabelecidas entre uma editora e um escritor? A partir dessa
questão, que caminha para a criação, busca-se traçar que tipo de dinâmica, mercadológica ou
não, envolve a questão. Visto que o escritor de literatura, por vezes, paga para publicar o seu
livro, estocando muitas vezes os exemplares em sua própria residência, seu livro possui pouca
distribuição e muitas vezes conta com um público reduzido a amigos e parentes. Contudo,
algumas editoras conseguem se desvencilhar desse círculo vicioso, tratando a criação artística
do livro como parte primordial para a circulação do livro direcionada a um público mais
amplo.

250

V V
No que tange à distribuição e ao consumo de livros, esta é uma das questões mais
complexas. Existe um mercado que se dá em volta de governos, principalmente em se
tratando de editoras de grande porte, que têm garantia que seus livros serão adquiridos pelo
poder público. Mas essa relação acaba acontecendo no eixo Rio-São Paulo. Na Bahia, a
dinâmica de incentivo acontece, mas a de compra nem tanto. A exceção vale para os já
referidos editais da Fundação Pedro Calmon, da Secretaria de Cultura (Secult) que determina
que os vencedores de seus editais de apoio à publicações destinem certa percentagem para
distribuição às bibliotecas das escolas públicas.
Em se tratando de políticas públicas na Bahia, no mês de julho de 2014, foi aprovado o
Plano Estadual do Livro e Leitura (PELL-BA), que, segundo o governo, é um marco
importante na etapa de democratização do acesso e valorização da leitura e também o fomento
à economia do livro na Bahia.
O PELL-BA apresenta caminhos e estratégias em sintonia com o Plano Nacional do
Livro e Leitura, Plano Estadual de Cultura, Plano Nacional de Cultura e o Plano Nacional de
Educação, apresentando 11 objetivos, 8 estratégias e 51 ações, norteando as iniciativas a
serem desenvolvidas em Salvador e no interior do Estado. Queremos saber como as editoras
do Estado da Bahia se relacionaram com a formulação desse plano, de como elas estiveram
envolvidas na concepção de algo que fomenta o setor criativo do livro como política de
incentivo à leitura.

5 Alguns resultados prévios

5.1 A bienal, as feiras e as festas literárias


Ao abordar a difusão dos livros, podemos perceber também as bienais, feiras e festas
literárias como importantes espaços de circulação de livros, escritores, bem como editoras,
que, juntas, acabam por fomentar a leitura na Bahia. Nos últimos anos, esses eventos
literários pontuais viraram tendência na Bahia, por promover uma agitação cultural que,
embora efêmera, é real.
A Bienal do Livro da Bahia, por exemplo, que acontece em Salvador, é o maior evento
do mercado do livro no estado, pelo fluxo de pessoas e quantidade de vendas de livros. Na sua
última edição, em novembro de 2013, foram 10 dias de apoio e incentivo à leitura, de debates
com grandes nomes da literatura regional e nacional e de valorização da cadeia produtiva do
livro. Nos espaços propícios, o público participou de bate-papos com personalidades culturais,

251

V V
autores, jornalistas, além de atividades recreativas e lúdicas. Um dos espaços mais disputados
durante a Bienal foi o “Café Literário”, no qual o autor, numa conversa descontraída com os
leitores, divide a experiência de escrever, de contar uma história. Para os autores, editores,
livreiros, agentes literários e demais profissionais do livro, o evento é uma oportunidade para
solidificar o relacionamento entre os profissionais do setor e fomentar bons negócios. Muitos
autores e editoras aguardam este momento para o lançamentos de seus livros, ao passo que
outras fazem relançamento de obras eventualmente publicadas no interstício. Demais disso, o
incentivo aos docentes e às escolas públicas a participarem da bienal pode ser encarado como
aspecto positivo par a formação de leitores, obviamente em si só não bastando para tal.
De porte “internacional”, ocorre a Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica),
certamente a mais famosas da Bahia, que, a exemplo da Festa Literária de Paraty, entrou no
circuito de eventos literários do Brasil, chegando em 2014 a sua quarta edição. Realizada na
cidade histórica de Cachoeira, a cerca de 120 da capital Salvador, na região do Recôncavo
Baiano, o evento também sofre críticas por envolver apenas de forma superficial atores
culturais da região. Por outro lado, a Flica pode ser caracterizada como um evento cuja
organização se dá em termos relativamente profissionais, tal como a bienal, o que certamente
não é o caso da maioria das feiras do livro e festas literárias que ocorrem em diversos
municípios do estado . Além disso, é de assinalar que ambas, a Bienal e a Flica recebem
substancial aporte financeiro público, por leis de fomento.
A Feira do Livro de Feira de Santana, que neste ano de 2014 entrou em sua sétima
edição, reúne todas as linguagens culturais e visa fomentar a leitura e a cultura de modo geral
em todos os níveis. A característica principal da Feira do Livro, de acordo com os
organizadores é a diversidade. A ideia vai muito além da comercialização de livros. O evento,
organizado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e parceiros, conta com
exposições, lançamentos e venda de livros, círculos de leitura, recitais, palestras, oficinas,
apresentações de teatro, shows musicais, exibição de filmes, mostra fotográfica, realizações
paralelas com encontros de escritores, literatura de cordel e música instrumental.
O protagonismo das Universidades públicas deve ser realçado de forma geral. Além da
Feira do Livro de Feira de Santana organizada pela Pró-Reitoria de Extensão da UEFS,
juntamente com a UEFS Editora, é importante frisar a Feira Itinerante organizada pela Editora
da Universidade Federal da Bahia — EdUFBA. Por sua vez, a Editora da Universidade do
Estado da Bahia — EdUNEB —, por exemplo, vem implantando livraria própria em seus 24
campi espalhados por todo o estado da Bahia. Tal livraria muitas vezes representa a única em

252

V V
algumas cidades em que se localiza um dos diversos campi da UNEB. Em termos de
números, a EdUFBA, por exemplo, desde 2010 vem lançando mais de cem títulos por ano.
Em conjunto, as editoras universitárias possuem um importante papel na difusão do livro e da
leitura, seja esse papel exercido conscientemente — por meio de programas específicos — ou
não. A afiliação delas à ABEU (Associação Brasileira das Editoras Universitárias) garante a
divulgação — por exemplo, por meio do “Informativo ABEU em rede”, distribuído via
mailing list — e a circulação de seus livros em todo o território nacional. — Ressalva aqui é
que grande parte do portfólio das Editoras Universitária consiste de livros técnicos.
Realização deste ano de 2014 merece destaque, não tanto pelo glamour das festas
literárias internacionais já estabelecidas, mas novamente pela assunção de sua
responsabilidade social da universidade pública: trata-se da I Festa Literária Internacional da
Chapada Diamantina, realizada em Lençóis e Seabra. A responsabilidade da organização
ficou com o campus Seabra da UNEB, com o apoio e presença da EdUNEB, bem como
presença da UEFS Editora e da EdUFBA. Apesar de não termos percebido impacto no que diz
respeito à circulação de editoras propriamente comerciais, percebemos presença de pequenas
editoras sediadas em cidades do interior, assim como também escritores que usam do
excipiente da auto-edição e venda por eles mesmos durante o evento. Aliás, a presença de
escritores, escritoras e coletivos de escritores/as que se auto-enquadram no rótulo “marginal”
pode ir no sentido de uma especialização desta Festa Literária, ainda mais tendo em conta que
o afluxo turístico ao Parque Nacional da Chapada Diamantina pode ser caracterizado, de
forma geral, como “alternativo”. Os organizadores igualmente expressaram em suas falas a
vontade de dar expressão às criações mais propriamente “locais” ou “regionais”, além de
contemplar a produção de autoria feminina de forma bastante enfática. Além disso, a parceria
com o SEBRAE no apoio ao evento aponta no rumo da atenção à economia criativa,
segmento livro.

5.2 Novas editoras, especialização por segmento, auto-edição, coletivos e saraus


De fato, apesar de ainda não termos os dados totais, percebemos um relativo
crescimento na quantidade de editoras operando, muitas delas com menos de cinco anos de
existência, algumas já formalizadas, outras ainda operando em “fundo de quintal”, como se
expressou um desses novos editores. Percebemos que algumas das formalizadas se
especializaram em editar obras contempladas por editais de fomento do estado da Bahia
(como os da Fundação Pedro Calmon) ou dos municípios que possuem política pública

253

V V
específica para o livro (como os da Fundação Gregório de Matos, da cidade de Salvador) —
estes dados teremos que tratar com cuidado e ainda, neste momento, não poderão ser
nomeados.
Como exemplo de editoras novas especializadas, com perfil claramente definido e
apostando em segmentos específicos, podem ser citadas a Organismo Editora e a Kawo-
Kabiyesile, ambas de Salvador.
A Organismo Editora foi criada em 2013 e é especializada em obras de poesia, que se
apresentam com design arrojado e projeto gráfico com perfil identitário próprio. Como forma
de propaganda de suas obras, lança mão da divulgação dos seus lançamentos nas redes sociais
(cf. www.facebook.com/organismoeditora), bem como participa de feiras e festas literárias
promovendo lançamentos ou relançamentos. Propõe-se a publicar inicialmente poetas
inéditos.
Outra editora nova, criada em 2011, é a Kawo-Kabiyesile, que, a cunho de exemplo
aqui, expressa claramente sua política editorial em seu blog (cf.
editorakawo.blogspot.com.br/):
uma editora independente do grande mercado editorial tendo como
objetivo contribuir para a transformação da sociedade mundial através da
difusão de saberes. A escolha do nome, a saudação ao orixá Xangô em
iorubá, reivindica a representatividade do comprometimento combativo com
a justiça social.

A editora igualmente utiliza-se das redes sociais para divulgar seus lançamentos (cf.
www.facebook.com/editorakawo). Conforme notificado pelo editor chefe, ao final de 2012 a
editora conseguiu um convênio para distribuição de seus livros, a partir da Librarie Portugaise
et Bresilienne, situada em Paris, para toda a Europa, pela livraria e pelo sistema online.
“Coletivos literários” também são encontrados. Exemplo de um é o Coletivo Ogun’s
Toques. Surgido em 2012 e especializado em literatura negra e suas respectivas obras, utiliza-
se igualmente das redes sociais (v. www.facebook.com/OgumsToques), mas também de
encontros literários com escritores oriundos de várias partes do Brasil e do exterior — como a
Primavera Literária, que ocorre de 15 a 20 de dezembro do corrente em Salvador. Suas
publicações, no entanto, são feitas em parcerias com a Editora Barabô, de Salvador. — Este
fato de muitos coletivos e autores/as individualmente procurarem pequenas editoras no Rio de
Janeiro ou em São Paulo foi relatado pelo já citado trabalho de Cristiana Alves (2011), que
informa que a maioria dos escritores por ela entrevistados, da mesoregião do Nordeste

254

V V
Baiano, terem publicado suas obras por pequenas editoras do Sudeste, arcando com os custos
de edição.
A auto-edição, aliás, está em franca expansão, seja exercida por aqueles autores que
trabalham de forma artesanal, com o próprio computador e sua própria impressora, seja por
aqueles que imprimem suas obras na Empresa Gráfica da Bahia (EGBA), que possui um dos
maiores parques gráficos do estado e imprime para a maioria das editoras formais, inclusive
para as editoras universitárias. A dinâmica da auto-edição conta com o autor como seu
próprio vendedor e distribuidor; após o lançamento, geralmente acompanhado por alguma
performance, o autor está pronto para vender os seus livros. Auto-edição, portanto, tanto pode
ser feita por um autor conhecido, quanto por um ainda desconhecido, quanto ainda por multi-
artistas — não é raro encontrar obras com ilustrações do próprio escritor.
Os saraus são uma outra sorte de coletivo que, por enquanto, encontramos na periferia
da capital Salvador . Cito, a cunho de exemplo, o Sarau da Onça, tocado por Sandro
Sussuarana e colegas, coletivo que se reúne no subúrbio de Salvador para recitação de poemas
e atividades literárias diversas (Festival de Arte e Cultura e Concurso Literário), abrindo
espaço inclusive para a música do hip-hop e da dança do break. Um resultado do trabalho
deste coletivo teve apoio, por intermédio de edital, da Fundação Gregório de Matos do
município de Salvador, de forma que se viabilizou uma obra coletiva, editada por uma editora
pequena de Vitória da Conquista, a Galinha Pulando. Mas por que a necessidade de ir tão
longe para achar uma editora? Determinante aí foi o papel do editor que se engajou
especialmente no projeto . Outros saraus existem, tais como o Sarau Erótico, do qual faz parte
o poeta-grafiteiro e produtor cultural Zezé Olukemi, que reconhece influência do movimento
negro, do Movimento Anarcopunk de Salvador, do Movimento Hip-Hop. Tanto Zezé
Olukemi quanto Sandro Sussuarana reconhecem certa influência dos saraus organizados pela
Cooperifa da periferia da cidade de São Paulo pelo poeta Sérgio Vaz. Para eles, a importância
dos saraus serve tanto para a formação de público, venda de livros e auto-legitimação do autor
da periferia, no sentido do mote: “não espere grandes editoras ou o estado”, como se
expressou Sérgio Vaz .

5.3 Entraves
Além do entrave de distribuição, da inexistência de livrarias em todos os municípios e
próximas da população, do preço do livro que não cabe no bolso do brasileiro e do baiano —
todos entraves já conhecidos —, a pesquisa, até o momento se deparou com algo que

255

V V
relativamente grave: de todas as editoras que até o momento responderam aos questionários,
nenhuma delas possui gráfica própria, o que indica que ela fica relativamente refém de
terceiros no que diz respeito ao custo final do livro, o que pode torná-lo mais caro ainda para
o consumidor final, o leitor.
Outro aspecto negativo encontrado é a falta de qualificação dos diversos profissionais
envolvidos na materialização do livro: encontramos falhas de normalização, de revisão, de
padronização; o design por vezes é inusitado e afasta o leitor, ao invés de atraí-lo. Essas são
questões que não podem ser resolvidas por programas de computador de design e editoração
de última geração, são questões que dizem respeito à formação do profissional do livro — a
tecnologia em si não realiza nada, sem ser operada de forma eficaz. Demais isso, a não
padronização das obras impede que elas entrem no circuito das distribuidoras, não sendo nem
aceitas nas livrarias de shopping-centers. Há uma ausência de cursos específicos para a área
editorial na Bahia. Um investimento em termos de capacitação para os novos editores e suas
respectivas editoras, bem como nos diversos profissionais que estas mobilizam, seria um
caminho para garantir o incremento da economia criativa do livro no estado.
Como apontamos, há uma eclosão de feiras e festas literárias, o que é altamente
positivo. Contudo, até o momento percebemos uma presença tímida nelas das editoras
propriamente comerciais.

Concluindo
De toda forma, quando falamos das dinâmicas possíveis, queremos abarcar o máximo
de características que possam envolver o campo da economia criativa do livro. É preciso
ampliar o pensamento, ir além do trivial, pensar o campo como uma rede de conexões, no
qual não podemos esquecer, por exemplo, da influência das redes sociais.
O que se quer quando pensamos a dinâmica da economia criativa do livro na Bahia, é
minimizar uma visão binária e adentrar em um campo heterogêneo, no qual nenhuma
iniciativa é igual a outra. Contudo, existem similaridades de contextos que quando registrados
podem convergir para discussões mais eficazes.
O campo das editoras, em tempo de domínios da internet, estão em expansão e isso se
deve a algum motivo, a um interesse do público que também desperta o nosso interesse.
Muitas editoras com as quais dialogamos até agora apontam para o monopólio de
distribuidoras e de grandes livrarias como uma problemática a ser resolvida. Se os resultados
da pesquisa realmente apontarem para essa dinâmica cruel, o que já acontece, vamos precisar

256

V V
fortalecer o diálogo por aí. Adianta para o escritor desenvolver o seu trabalho sem um campo
propício para a circulação do resultado de seu trabalho criativo — do livro? As dinâmicas da
economia criativa do livro na Bahia precisam mudar o seu traçado para atingir a tão aclamada
democratização do livro e da leitura?

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CULTURA, UNIVERSIDADE E SOCIEDADE: REFLEXÕES A PARTIR DA
POLÍTICA INSTITUCIONAL DA CULTURA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARANÁ
Carla Cristina Dutra Burigo1
Renata Pletsch Reis2

RESUMO: O presente artigo busca refletir sobre a relação que a Universidade Federal do
Paraná estabelece com o processo de cultura por meio da identificação da concepção de
cultura imbuída em sua política institucional. Foi realizada uma revisão bibliográfica sobre a
concepção de cultura e a relação da universidade com a sociedade, seguida de análise
documental referente à política cultural na Universidade pesquisada. Após análise,
constatamos que a cultura é tratada em sua dimensão sociológica pela unidade administrativa
responsável por pensar a política cultural da Instituição, pois suas ações visaram apenas
estimular a produção, a circulação e o consumo de bens simbólicos, desconhecendo outras
possibilidades de interação que a cultura possa estabelecer com a sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: política, universidade, cultura

INTRODUÇÃO
A universidade, por ser uma instituição social, exprimi o modo de funcionamento e
estrutura da sociedade como um todo, inclusive de suas contradições (CHAUÍ, 2003). Os
sistemas educacionais do mundo todo recebem influências não só de agentes nacionais, mas
também de agentes internacionais, os quais estabelecem a racionalidade que guia as
discussões sobre educação e, consequentemente, a formulação de políticas públicas nos países
(AMARAL, 2010). Porém, as universidades, por terem autonomia e por serem núcleo de
geração de conhecimento, teoricamente possuem maior liberdade em definir suas políticas
institucionais, embora estas sejam delimitadas pelas políticas nacionais e internacionais.
Sendo assim, este artigo busca investigar como a Universidade Federal do Paraná têm tratado
a política institucional da cultura a partir da identificação da concepção de cultura que
fundamenta suas ações.

1
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente no Programa de Pós-
Graduação Mestrado Profissional em Administração Universitária na Universidade Federal de Santa Catarina,
pedagoga na Universidade Federal de Santa Catarina, carla.burigo@ufsc.br
2
Aluna do Mestrado Profissional em Administração Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina,
administradora no Setor Litoral da Universidade Federal do Paraná, repletsch@gmail.com
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Neste artigo, especificamente, procuraremos investigar a relação que a Universidade
Federal do Paraná desenvolve com a cultura a partir da reflexão sobre a concepção de cultura
imbuída em suas políticas institucionais.
Desse modo, caracterizamos este estudo como um estudo de caso, descritivo, em que a
coleta das informações será realizada por meio de um levantamento bibliográfico e
documental com análise qualitativa dos dados (TRIVIÑOS, 1987).

UNIVERSIDADE: UMA INSTITUIÇÃO SOCIAL


A universidade, desde sua origem na Idade Média, passou por diferentes fases
e concepções. Conforme ocorriam mudanças políticas e econômicas na sociedade, as mesmas
afetavam profundamente a função que a universidade deveria exercer. De produção de alta
cultura para as elites à produção de conhecimentos instrumentais para mão-de-obra; de única
produtora de pesquisa e de domínio no ensino superior para apenas mais uma organização no
mercado; do acesso restrito à elite para o acesso democratizado a todas as classes; da
autonomia para a definição de seus valores e objetivos para a sujeição dos mesmos a critérios
definidos pelo mercado (SANTOS, 2008). Todas essas diferentes visões do papel da
universidade demonstram seu caráter de instituição social, já que esta é caracterizada por
exprimir o modo de funcionamento e estrutura da sociedade como um todo (CHAUÍ, 2003).
Dentre as transformações ocorridas na sociedade que afetaram as universidades
brasileiras, cabe destacar a proposta de transformação e de reforma do aparelho do Estado nos
anos 90, pois esta afetou diretamente a visão de universidade como instituição social. Tal
proposta, originária em um momento de crise pela qual o País passava, visava implantar um
Estado gerencial e enxuto tendo por base dois pressupostos: a substituição do modelo
burocrático que orientava a administração pública por outro em que predominaria os valores
de eficiência e de nível de qualidade na prestação de serviços públicos e o desenvolvimento
de uma cultura gerencial nas organizações e a transformação das entidades de serviços sociais
básicos do Estado, chamados de “não-exclusivos” (como saúde, cultura e educação) em
organizações sociais, as quais seriam geridas por contratos de gestão e financiadas
complementarmente pelo mercado (ALVES, 2011).
Segundo Alves (2011), as pressões oriundas de sindicatos e associações relacionados
ao ensino superior impediram que as universidades, entidades de serviços sociais básicos do
Estado, transformassem-se em organizações sociais. Porém, não é o que interpreta Chauí
(2003) ao apontar sob diversos prismas – a docência pensada como habilitação rápida para o

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mercado de trabalho, a pesquisa destinada a produção de conhecimento para apropriação
privada, entre outros - que essa transformação da universidade em organização social de certa
forma ocorreu e que a universidade pública deveria ser vista sob uma nova perspectiva, em
que o Estado a veja como um investimento social e político e não pelo prisma do gasto
público.
Todas essas transformações por qual a universidade passou são frutos de um contexto
maior, reflexos de um sistema mundial no qual está inserida. Conforme aponta Amaral
(2010), os sistemas educacionais do mundo todo recebem influências não só de agentes
nacionais, mas também de agentes internacionais – como a Organização Mundial do
Comércio, a União Europeia, o Banco Mundial, entre outros – os quais estabelecem a
racionalidade que guia as discussões sobre educação e, consequentemente, a formulação de
políticas públicas. Porém, as universidades, por terem autonomia e por serem núcleo de
geração de conhecimento, teoricamente possuem maior liberdade em definir suas políticas
institucionais, apesar destas sofrerem influencias diretas das políticas nacionais e
internacionais.

A CULTURA SOB A ÓTICA DO GOVERNO FEDERAL


A cultura, como política governamental, ganhou mais espaço no Brasil a partir da
criação do Ministério da Cultura (MinC) por meio do Decreto Presidencial nº 91.144 de 15 de
março de 1985 (BRASIL, 1985), que desmembrou as políticas culturais das políticas
educacionais:
A transformação substancial ocorrida nas últimas décadas, tanto com
os assuntos educacionais quanto com os assuntos culturais, tem suscitado,
em relação às duas áreas, a necessidade de métodos, técnicas e instrumentos
diversificados de reflexão e administração, e tem exigido políticas
específicas bem caracterizadas, a reclamarem o desmembramento da atual
estrutura unitária em dois ministérios autônomos. (BRASIL, 1985,
preâmbulo).

As áreas de competência abrangidas pelo MinC foram definidas pelo Decreto em


comento (BRASIL, 1985, Art. 1°): “letras, artes, folclore e outras formas de expressão da
cultura nacional”, além do “patrimônio histórico, arqueológico, artístico e cultural”. Além do
mais, o Ministério da Cultura expõe em seu sítio eletrônico institucional que a cultura, por
mais fundamental e insubstituível que seja na construção da identidade nacional é, cada vez
mais, um setor relevante na economia do País, capazes de propiciar a geração de empregos e
de renda (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2014). Neste contexto, a cultura é contextualizada
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como um insumo fortalecedor da identidade nacional e como um possível setor de exploração
comercial.
Tal visão sobre a cultura vai ao encontro do que Botelho (2001) chamou de dimensão
sociológica da cultura. Para a autora (BOTELHO, 2001), a cultura possui duas dimensões,
uma antropológica e uma sociológica. A dimensão antropológica se refere à cultura como
sendo produzida por meio da “interação social dos indivíduos, que elaboram seus meios de
pensar e agir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem
suas rotinas” (BOTELHO, 2011, p. 74). Instituir políticas governamentais nesta linha exigiria
uma reorganização das estruturas sociais e uma distribuição de recursos econômicos, já que
buscaria interferir no plano do cotidiano do indivíduo, nível em que as transformações se dão
de maneira muito lenta (BOTELHO, 2011). Já a dimensão sociológica vê a cultura como
“uma produção elaborada com a intenção explícita de construir determinados sentidos e de
alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão”, ou seja, “trata-se
de um circuito organizacional que estimula, por diversos meios, a produção, a circulação e o
consumo de bens simbólicos” (BOTELHO, 2011, p. 74). Aquilo que o senso comum entende
por cultura, o que a torna objeto das políticas culturais, deixando a dimensão antropológica
apenas ao discurso.
Santos (2006, p.49) traz uma crítica a este modo de ver a cultura pelos governos,
quando explica que
Cultura é com frequência tratada como um resíduo, um conjunto de
sobras, resultado da separação de aspectos tratados como mais importantes
na vida social. Assim, extrai-se das atividades diretamente ligadas ao
conhecimento no sentido amplo as áreas da ciência, da tecnologia, da
educação, das comunicações, do sistema jurídico, do sistema político, às
vezes a religião e os esportes. O que sobra é chamado de cultura. É como se
fossem eliminados da preocupação com cultura todos os aspectos do
conhecimento organizado tidos como mais relevantes para a lógica do
sistema produtivo. Sobram, por exemplo, a música, a pintura, a escultura, o
artesanato, as manifestações folclóricas em geral, o teatro. Muitas vezes as
políticas oficiais de cultura são especificamente voltadas para essas
atividades, já que para as outras áreas da vida social que nós estamos aqui
considerando como parte da cultura desenvolvem-se políticas específicas
(SANTOS, 2006, p.49)

Esta concepção de cultura por parte do Governo Brasileiro traz consequências para o
País, já que, de acordo com Santos (2006), ao fracionar a dimensão cultural, acaba por tratar
diferenciadamente vários aspectos desta, como a ciência e a tecnologia que, por possuírem
grande impacto no destino das sociedades atuais e por seu controle ser um dos aspectos das
relações de poder contemporâneas, são tratadas separadamente a fim de se pensar a cultura
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como algo separado do processo produtivo. Ou seja, o Governo acaba por afastar a ideia de
que a cultura é a responsável pela manutenção das relações de poder existentes hoje na
sociedade.
Bauman (2012) também traz apontamentos sobre essa temática quando revela que a
cultura é um aspecto da realidade social que exprime um conjunto de regras generativas (uma
ordem) que rege a atividade mental e a prática dos indivíduos ao mesmo tempo em que estes
indivíduos, por meio de suas ações no mundo, o cria (o conjunto de regras). Ou seja, o ser
humano produz a cultura, o modo de vida dominante em uma determinada sociedade, e, ao
mesmo tempo, a cultura determina como o ser humano deve pensar e agir nessa sociedade. Na
mesma linha que Botelho (2011) e Santos (2006), Bauman (2010, p. 34) aponta que “a cultura
se transformou num armazém de produtos destinados ao consumo, cada qual concorrendo
com os outros para conquistar a atenção inconstante/errante dos potenciais consumidores
[...].”
E as universidades públicas – instituições sociais que devem buscar discutir ou
questionar sua própria existência, sua função e seu lugar no interior da luta de classes
(CHAUÍ, 2003) – como têm tratado a cultura? Têm elas buscado desenvolver políticas para a
área cultural dentro de suas instituições? Em caso afirmativo, sobre qual perspectiva da
cultura sua política institucional está fundamentada? Tal visão reforça ou contradiz a cultura
sob a ótica do Governo Federal?

UFPR E A POLÍTICA INSTITUCIONAL PARA A CULTURA


A Universidade Federal do Paraná (UFPR) foi fundada em 19 de dezembro de 1912
como uma Instituição privada. Porém, foi apenas em 1950 que ela se federalizou, tornando-se
uma instituição pública e gratuita (UFPR, 2014b). Inicialmente, por meio do Decreto Federal
nº 66.614 (BRASIL, 1970, Art. 2°), a UFPR destinava-se a: (1) promover a educação, o
ensino, a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico e a cultura filosófica, científica, literária e
artística; (2) formar profissionais, técnicos e cientistas; e (3) contribuir para a solução dos
problemas de interesse da comunidade sob a forma de cursos, estudos e serviços. Já em seu
Plano de Desenvolvimento Institucional 2012-2016 (PDI), a UFPR declarou a seguinte
missão:
Contribuir com o desenvolvimento sustentável, priorizando a formação continuada do
profissional cidadão e produzindo, socializando e apropriando o conhecimento de forma articulada
com os demais segmentos da Sociedade, sendo referência no Brasil. (UFPR, 2012, p. 4)

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Para atingir seus objetivos, a UFPR consolidou sua estrutura organizacional de modo
que a administração e coordenação das atividades universitárias se dão em dois níveis: a
administração superior e administração setorial (UFPR, 2014a). A administração superior se
divide em órgãos normativos, deliberativos e consultivos que visam instituir as políticas
gerais da Universidade, Conselho Universitário (COUN), Conselho de Planejamento e
Administração (COPLAD), Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) e Conselho de
Curadores (CONCUR); e, um órgão executivo (Reitoria) que tem por objetivo implementar as
políticas definidas pelos conselhos superiores da Instituição (UFPR, 2014a). Já a
administração setorial visa “estabelecer o regime de cooperação entre os docentes de modo a
favorecer a interdisciplinaridade e a integração do ensino, pesquisa e extensão” (UFPR,
2014a). Cabe destacar que no Estatuto da UFPR (UFPR, 2014a) não consta nenhuma menção
sobre a unidade que seria responsável pelo desenvolvimento de políticas para área da cultura.
De acordo com o Relatório de Gestão 2013 da UFPR (UFPR, 2014d), as estratégias
estabelecidas pela Reitoria se aplicam transversalmente a todo o conjunto das unidades da
UFPR ou parte dela, já as traçadas pela administração setorial afetam apenas àquela unidade.
Como este estudo busca verificar a existência de uma política cultural voltada para toda a
Universidade, analisaremos apenas as ações que são desenvolvidas pelos órgãos da
Administração Superior.
A Reitoria é composta pelo Conselho de Direção da Reitoria, Gabinete do Reitor,
Gabinete do Vice-Reitor, sete Pró-Reitorias e uma Superintendência de Infraestrutura, além
de órgãos de administração geral e suplementares (UFPR, 2015). Dentre as pró-reitorias
existentes, uma se destina à coordenação geral da política de extensão e de cultura da
Universidade: a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura – PROEC (UFPR, 2015). Segundo o
Relatório de Gestão do Exercício de 2013 da Instituição,
[...] é competência da PROEC reger atividades de extensão
universitária, desenvolvidas por meio de programas, projetos, cursos,
eventos e ações complementares, visando a socialização do conhecimento
acadêmico e a interação com a sociedade, com ênfase na melhoria da
qualidade de vida da população, por intermédio de atividades de educação
continuada nas diferentes áreas do conhecimento, da articulação com
movimentos sociais, de programação cultural, da difusão científica e
tecnológica, da promoção do desporto e lazer e da integração com a
educação básica (UFPR, 2014d, p. 13).

Esta Pró-Reitoria é composta por um Pró-Reitor, por uma Secretaria Administrativa,


por uma Seção de Planejamento e Controle Financeiro, por uma Coordenadoria de Extensão,
uma Coordenadoria de Cultura e uma Coordenadoria de Eventos, além de contar com três
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órgãos suplementares (Editora da Universidade Federal do Paraná, o Centro de Educação
Física e Desportos e o Museu de Arqueologia e Artes Populares) (UFPR, 2015).
A Coordenadoria de Cultura é a responsável por “propor a política de cultura da
Universidade”, além de “coordenar, supervisionar e divulgar os trabalhos referentes às
unidades artísticas”, “administrar os espaços culturais” e “desenvolver e fomentar projetos e
atividades artísticas e culturais” (UFPR, 2015, art. 39).
A Coordenadoria de Cultura tem como foco “produzir, promover e difundir a arte e a
cultura dentro e fora do ambiente universitário, divulgando a música, as artes visuais, as artes
cênicas e a dança”, além de ser “responsável pelos Grupos Artísticos, Festival de Inverno da
UFPR e por três espaços culturais: o Musa – Museu de Arte da UFPR, o Teatro da Reitoria e
o TEUNI – Teatro Experimental da UFPR” (UFPR, 2014c, s/p).
A política cultural que permeia a Coordenadoria de Cultura pode ser materializada por
meio das atividades executadas no ano de 2013 segundo o Relatório de Gestão da Instituição:
A Extensão e Cultura Universitária em 2013, deu prosseguimento ou
iniciou inúmeras Atividades de Extensão Universitária. Continuando com as
temporadas oficiais dos Grupos Artísticos da UFPR, estimulando a
expressão múltipla da arte, com a produção de doze Temporadas Oficiais ao
longo do ano, além de atender convites da comunidade interna e externa. No
âmbito da Coordenadoria de Cultura e do Museu de Arqueologia e Etnologia
numerosas ações foram realizadas em Curitiba e em outras sedes da UFPR,
como “Museu para todos - Ações Educativas e inclusivas no MAE/UFPR”,
“Ações Educativas do MAE em Paranaguá” e “Visitas Guiadas na Sala
didático-Expositiva do MAE”. O Festival de Inverno da UFPR, em
Antonina, no mês de julho, propiciou espaço ao estudo das artes. Este evento
é referência para profissionais e extensivo a pessoas interessadas em iniciar-
se no fazer artístico. São ofertadas oficinas de artes plásticas e cênicas,
música, dança, literatura, fotografia, educação especial e artesanato, além de
espetáculos abrangendo teatro, dança e música. (UFPR, 2014d, p.34)

O Estatuto da UFPR (UFPR, 2014a), documento formulado em 1970, mas que


sofre atualizações constantes, e que direciona todas as ações da Instituição, dispõe que um dos
objetivos da Instituição é promover a cultura filosófica, científica, literária e artística. A
palavra cultura, seguida de vários adjetivos que podem ser relacionados a campos do
conhecimento, permite-nos compreender que ela estaria ligada à ideia de cultivo, “uma ação
que conduz à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém” (CHAUÍ,
2008, p. 55).
Sendo assim, um dos objetivos da Universidade seria o de estimular a filosofia, a arte,
a literatura e a ciência em todas as suas dimensões, e não de promover a cultura como um fim
em si mesma. Já em seu Plano de Desenvolvimento Institucional 2012-2016 (PDI)
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(UFPR,2012) não consta nenhuma menção à palavra cultura na missão da Instituição, o que
nos leva a compreender que os documentos da UFPR não expressam uma relação direta entre
a cultura e a formação no desenvolvimento de seu papel na sociedade.
Mesmo assim, a Universidade criou uma unidade administrativa com o intuito de
desenvolver a política de extensão e de cultura, a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (UFPR,
2015), a qual seria proposta por sua Coordenadoria de Extensão e por sua Coordenadoria de
Cultura, embora na descrição das competências gerais da PROEC (UFPR, 2014d) a cultura
esteja compreendida apenas como uma das atividades de extensão a serem desenvolvidas pela
Instituição, conforme pode ser observado no Relatório de Gestão do Exercício de 2013 ao
citar que é função da PROEC “reger atividades de extensão universitária, [...] visando a
socialização do conhecimento acadêmico e a interação com a sociedade, [...] por intermédio
de atividades de educação continuada [...], de programação cultural [...]”(UFPR, 2014d, p.13).
Como a descrição das atribuições da PROEC no Regimento da Reitoria (UFPR, 2015)
e no Relatório de Relatório de Gestão do Exercício de 2013 (UFPR, 2014d) divergem quanto
ao papel da cultura na UFPR, analisaremos as ações que foram desenvolvidas pela PROEC no
intuito de compreender se há realmente uma Política Institucional voltada para a cultura e
qual concepção de cultura se encontra subtendido a ela.
Conforme consta no Relatório de Gestão do Exercício de 2013 (UFPR, 2014d), as
principais atividades desenvolvidas pela PROEC no que tange à cultura focaram
principalmente nas artes (apresentações dos grupos artísticos) e o patrimônio histórico (ações
educativas no museu), ou seja, a cultura tem sido tratada como
uma produção elaborada com a intenção explícita de construir
determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios
específicos de expressão. Para que essa intenção se realize, ela depende de
um conjunto de fatores que propiciem, ao indivíduo, condições de
desenvolvimento e de aperfeiçoamento de seus talentos, da mesma forma
que depende de canais que lhe permitam expressá-los. (BOTELHO, 2001, p.
74)

Já em relação às perspectivas futuras para a cultura na Universidade pesquisada,


consultamos o Plano de Desenvolvimento Institucional 2012-2016 da UFPR (UFPR, 2012), o
qual estabeleceu para cada dimensão estratégica, que é a orientação que tem como base os
macro desafios e a visão de longo prazo da Instituição, as diretrizes e metas para o período de
2012 a 2016. A cultura está presente sob a diretriz Fortalecimento das Ações Artísticas e
Culturais na UFPR, a qual está contida na dimensão estratégica acadêmica, que tem por foco

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o aprimoramento contínuo do desempenho institucional nas áreas de ensino, pesquisa,
extensão e inovação (UFPR, 2012).
Para desenvolver esta diretriz, a UFPR estabeleceu as seguintes metas: (1) implantar o
Centro de Eventos da UFPR, (2) elevar em taxa anual média equivalente ou superior a 10%
(dez por cento) o investimento em ações artísticas e culturais, (3) elaborar um Plano
Institucional de Cultura para a UFPR a ser aprovado pelo COUN, (4) elevar em taxa anual
média equivalente ou superior a 10% (dez por cento) ao ano o número de servidores técnico-
administrativos que atuam em ações de cultura e (5) implantar Pontos de Cultura em todos os
campi existentes em Curitiba e em outras sedes da UFPR (UFPR, 2012).
Sendo assim, podemos apontar que a UFPR trata a cultura em sua dimensão
sociológica, compactuando com o pensamento de Botelho (2001) quando esta diz que as
políticas públicas têm dado preferência pela dimensão sociológica da cultura, já que esta visão
permite o desenvolvimento de ações efetivas, diagnosticando problemas e os atacando de
forma programada, estimando recursos e solucionando carências por meio do estabelecimento
de metas, já que é um campo institucionalizado com visibilidade concreta.
Tal dimensão compõe um universo que gere (ou interfere em) um circuito
organizacional que estimula por diversos meios a produção, a circulação e a formação de um
público consumidor de bens culturais (BOTELHO, 2001). Santos (2006), embora não
relacione a cultura às dimensões antropológica e sociológica, contribui para a reflexão sobre a
concepção de cultura imbuída na política institucional da UFPR, já que afirma que as políticas
para a cultura muitas vezes são desenvolvidas ignorando todos os aspectos do conhecimento
organizado tidos como mais relevantes para a lógica do sistema produtivo e que são partes
integrantes dela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, buscamos refletir sobre a concepção de cultura imbuída na política
institucional para a cultura na Universidade Federal do Paraná por meio de análise
documental.
A UFPR, por se conceber como uma instituição social e não como uma organização
social, exprimi o modo de funcionamento e estrutura da sociedade como um todo, além de ser
necessário a ela questionar sua própria existência, sua função e seu lugar no interior da luta de
classes. E não tomar esses pontos como fatos dados, e apenas buscar a melhor maneira de
geri-los bom base nos princípios da gestão (CHAUÍ, 2003). Por ser uma instituição social e,

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por possuir autonomia e ser núcleo de geração de conhecimento, teoricamente possui maior
liberdade para definir suas políticas institucionais, sendo estas delimitadas pelas políticas
nacionais e internacionais.
Todavia, por estar inserida em um sistema mundial, tal liberdade e autonomia são
relativos, já que recebe influência dos agentes nacionais e internacionais que pensam a
educação de maneira global e, com isso, orientam a formulação das políticas públicas nos
países, as quais, por sua vez, interferem na definição das políticas das instituições vinculadas
aos órgãos governamentais, como é a o caso da Universidade pesquisada (AMARAL, 2010).
Após analisar, com base em seus documentos oficiais, a concepção de cultura que
orienta a política para a cultura na Universidade, pudemos constatar que tal política demonstra
pensar a cultura apenas em sua dimensão sociológica, ou seja, como bens simbólicos
passíveis de produção, circulação e consumo (BOTELHO, 2001). Ao excluírem outras
dimensões da cultura, descaracterizam a totalidade com que ela poderia ser desenvolvida,
principalmente se fosse pensada em sua relação com o processo produtivo que vigora em
nossa sociedade (SANTOS, 2006).
Embora esta artigo tenha discutido apenas a relação entre a concepção de cultura e a
política institucional da Universidade Federal do Paraná, cabe destacar que tal processo,
concepção e implementação, é mediado pelos gestores e demais agentes da Instituição. Isso
quer dizer que não é a Universidade em si que possui tal concepção de cultura, mas as pessoas
que atuam e que exercem influência sobre a definição das políticas da Instituição.
Sendo assim, acreditamos que repensar a concepção de cultura que predomina
atualmente na Política Institucional, a qual tem, com base nos resultados da pesquisa
realizada, negligenciado outras relações que a cultura estabelece com a sociedade e que
poderiam ser desenvolvidas na Universidade, já que esta se constitui em sua essência como
uma instituição social, essencialmente significa trabalhar a ideia no âmbito interno das
relações sociais, já que toda ação empreendida é baseada pela forma como as pessoas
compreendem o mundo.

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V V
NÚCLEO DE FOMENTOS CULTURAIS: UMA EXPERIÊNCIA DE GESTÃO
PÚBLICA DE DIREITO À CULTURA
Carlos Antonio Moreira Gomes 1
Kéroly Gritti Fontalva2
Marcus Vinícius Moreno e Nascimento 3

RESUMO: O processo de implantação de programas culturais públicos de financiamento


direto a linguagens artísticas na Cidade de São Paulo, teve como ponto de partida a
participação da sociedade civil no modo de pensar sistematicamente as possíveis linhas de
atuação da política pública. Este trabalho tem o intuito de refletir sobre um breve panorama
histórico do processo de consolidação do Núcleo de Fomentos Culturais/Linguagens da
Secretaria Municipal de Cultura sob a perspectiva de gestores culturais que vivenciam o
efetivo diálogo entre os fazedores de cultura no processo de construção de uma política
pública cultural democrática.

PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, políticas públicas, gestão cultural, fomento,


fomento à cultura.

Abertos ao ambiente no qual estão inseridos, os sistemas dinâmicos estão em


constante processo de evolução. As Políticas Culturais se identificam com esse contexto de
relação e, como tal, são constantemente redesenhadas, face às possibilidades conectivas que
estabelecem tanto com seus elementos e práticas internas como com um conjunto de fatores
externos. Como em todo processo, a percepção de seus efeitos é reconhecida ao longo do
tempo, de modo que se torna necessário compreender os efeitos provocados no ambiente, bem
1
Carlos Antonio Moreira Gomes é ator formado em Artes Cênicas pela Unicamp desde 2001. Foi ator e
cofundador do Grupo do Santo em Campinas trabalhando com o Teatro de Rua. Participou do Núcleo
Experimental do SESI (2006 a 2007). Faz a segunda graduação em pedagogia pela UFSCar por causa de tantos
anos investindo na educação por meio do teatro. Realizou junto ao Centro Cultural São Paulo a pesquisa que
resultou em livro e documentários “Um Batuque Memorável no Samba Paulistano”. Em abril de 2014 assumiu a
coordenação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo e participou da organização
da publicação do livro dos 12 anos do Programa. cgomes1979@gmail.com
2
Kéroly Gritti Fontalva é atriz e arte-educadora. Licenciatura e Bacharedo pela Universidade Anhembi
Morumbi (2012), atualmente dirige “Tem Doce Lá no Jardim”, da Cia Uma das Três, primeiro trabalho como
diretora. Na mesma companhia trabalhou como atriz no esopetáculo “O Preço do Pão” (2014), projeto
contemplado pelo ProAC Primeiras Obras. Atualmente coordena o Núcleo de Fomento às Novas Linguagens, da
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, responsável pelo acompanhamento dos editais de Circo e de
Redes e Ruas (Cidadania, Inclusão e Cultura Digital) e trabalha como contadora de histórias na Cia Mandala.
keroly.gritti@gmail.com
3
Marcus Vinicius Moreno e Nascimento é artista e gestor cultural, formado em Comunicação das Artes do
Corpo, pela PUC-SP, tem Licenciatura pela Universidade Anhembi Morumbi e atualmente cursa especialização
em Técnica Klauss Vianna (PUC-SP). Desenvolve trabalho em dança contemporânea, sendo seu mais recente
solo 'A Imagem como ausência', orientado por Key Sawao. Colaborou com a organização do mapeamento do
livro 'Fomento à Dança - 5 anos'. Integra a equipe da Secretaria Municipal de Cultura desde 2009. Desde 2013
coordena o Programa Municipal de Fomento à Dança da Cidade de São Paulo, no acompanhamento de projetos
apoiados culturais. marcusvmn@gmail.com
271

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como quais são as estratégias que têm possibilitado a emergência de novas estruturas e suas
permanências.
Do ponto de vista institucional, a criação de uma política pública cultural implica, de
um lado, entender suas especificidades; de outro, buscar semelhanças com outras experiências
existentes, estruturar procedimentos, organizar equipe de acompanhamento, enfim, garantir
um fluxo pelo qual seja possível que as ações previstas nos projetos se desenvolvam, com
disponibilidade de recursos financeiros e apoio técnico necessário. Há, no entanto, uma
necessidade anterior de se compreender a conjuntura. No caso dos Programas de Fomento da
Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo, o que hoje se configura como um
núcleo de gestão e acompanhamento a projetos por meio de repasse direto de recursos
financeiros para a produção de diferentes linguagens artísticas, teve início há mais de 15 anos,
em um processo de mobilização cidadã em diálogo com o poder legislativo.
Quando tratamos de políticas culturais, fica evidente o vínculo de reciprocidade entre
política e cultura. Se tivéssemos à mão um mapa das expressões culturais contemporâneas
que apresentasse o histórico de seus envolvidos e o uso que fizeram de incentivos e
investimentos públicos talvez pudéssemos vislumbrar impactos no imaginário e produção
cultural de todo o território brasileiro. De acordo com BEZERRA e WEYNE (2013) pode-se
apontar que as políticas culturais contribuem para a construção de uma sociedade mais
igualitária:
“O Ministério da Cultura, ao longo dos últimos dez anos, plantou
bases fundamentais para a consolidação das políticas públicas no Brasil.
Houve um esforço continuado de fortalecimento das instituições culturais e
de estabelecimento das diretrizes que pautam hoje o modelo de política
vigente no país, amparado na valorização da construção de uma democracia
cultural e na utilização desta como instrumento de inclusão social. Visão
política explicitada em projetos, ações e programas, orçamentos, legislações,
metas, e na criação de um sistema e de um plano nacional de cultura.”
(BEZERRA e WEYNE, 2013, p. 11).

Com o avanço das políticas neoliberais, houve uma crescente tendência aos
programas culturais se pautarem a partir das exigências do mercado, como afirma COSTA
(2007). A grande expressão deste momento é a aprovação da Lei Federal de Incentivo à
Cultura em 1991 (Lei nº 8.313), mais conhecida por Lei Rouanet. A partir dela, empresas
poderiam subsidiar projetos culturais e abater o valor do seu Imposto de Renda. O direito
universal à cultura era transferido para a iniciativa privada. O que pauta a escolha das
empresas em relação ao projeto a ser subsidiado ou não, deixa de ser essencialmente o
interesse público (base para se pensar qualquer ação do poder público), ganhando espaço o
poder de marketing que esta ou aquela ação tem promovido ao longo de sua existência.
272

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A partir de 1999, Reinaldo Maia, Sérgio de Carvalho, Marco Antonio Rodrigues,
Fernando Peixoto, Umberto Magnani, entre outros importantes nomes do teatro paulista
impulsionam encontros para reflexão e ações políticas para cobrar novos rumos e
possibilidades de apoio direto pelas quais o poder público pudesse viabilizar a realização dos
projetos de teatro para a cidade de São Paulo.
“O movimento “Arte contra a barbárie” surgiu para lutar contra este
estado de coisas. Seu primeiro manifesto perguntava quanto vale a cultura no
país, tomando como referência sarcástica o orçamento do Ministério da
Cultura (MinC) e propondo a luta por políticas públicas para a cultura. Trata-
se de um movimento que congrega basicamente grupos de teatro formados a
partir dos anos 90 do século XX. A experiência desses grupos mostrava que
o teatro que faziam não agradava aos profissionais de marketing que
passaram a decidir sobre a destinação das verbas da renúncia fiscal, pois
estas, obviamente, passaram a fazer parte dos orçamentos de publicidade das
empresas, que além do mais dispõem de veículos muito mais eficientes do
que o teatro para este fim”. (COSTA, 2007, p. 21).

O Movimento Arte Contra a Barbárie vai impulsionar mudanças nas políticas culturais
na cidade de São Paulo. Iniciariam a partir daí tramitações para emplacar uma lei de fomento
ao teatro.
“Em 2002, surge a Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São
Paulo, a Lei13.279/02, uma conquista do Movimento Arte Contra a
Barbárie, iniciado por cinco grupos paulistas - entre eles, dois de teatro de
rua - cerca de um ano e meio antes, o que inspira movimentos similares em
todo o país e reconhecimento internacional”. (COSTA, 2008apud SILVA,
s/d, p. 5).

Em 08 de janeiro de 2002 foi sancionada a Lei que instituiu o Programa Municipal de


Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Por ano, trinta grupos de teatro teriam espaço
e tempo para pesquisar, experimentar, compartilhar suas concepções de vida e mundo. Até o
ano de 2014 foram 25 edições em 12 anos. A pretensão do programa é de fortalecer o teatro
de grupo, a verticalização das pesquisas, os processos colaborativos que têm resultado em
ousadas experimentações estéticas, e assim, nutrido o debate das escolhas artísticas e
políticas, o crescimento do número de grupos de teatro, o alcance do teatro nas regiões fora do
centro da cidade, ampliando o diálogo com a própria São Paulo e sua população (GOMES e
MELLO, 2014).
A Lei de Fomento ao Teatro proporcionou para a cidade de São Paulo um aumento
considerável de grupos. Foram 372 projetos aprovados e por ano uma média de 50 projetos
em andamento, seja com circulações e temporadas de espetáculos, seja com abertura de
processos artísticos contando com oficinas, workshops, palestras. O fato de um grupo ter o
financiamento direto, em que a autonomia se faz uma prerrogativa para a realização de seus
trabalhos, é um privilégio potencializador da criação (GOMES e MELLO, 2014).
273

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O Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo encontrou nas variadas
formas produção em artes cênicas, novas vertentes de experimentação, desde as inspiradas na
tradicional relação do palco italiano, passando pelo fortalecimento do movimento de teatro de
rua, além de espetáculos itinerantes e em formatos alternativos, o que propulsiona a fruição
estética a qual o público é levado a vivenciar. A partir daí, grupos puderam se estabilizar e
dedicar tempo e espaço a suas pesquisas e mesmo que não estejam no topo dos interesses
midiáticos, criam impactos nas regiões em que estão estabelecidos e desenvolvem seus
projetos. A Lei e o Programa tiveram e ainda têm repercussão nacional e em outros estados
brasileiros para todos os segmentos artísticos. É o caso, por exemplo, do Prêmio Teatro
Brasileiro, um projeto de fomento que tramita atualmente no Congresso Nacional; da Lei de
fomento à dança, também aprovada em São Paulo em 2005; e de programas semelhantes em
cidades do Grande ABC, e nos estados de Minas Gerais e Porto Alegre.
Mas nestes 12 anos em que o Programa de Fomento ao Teatro intensificou o fazer
teatral em São Paulo os desafios cresceram. Muitos grupos surgiram, influenciados por outros
já consagrados, abrindo espaços de pesquisas e experimentações estéticas que têm se firmado
cada vez mais vez no cenário nacional. Porém, a capacidade do programa não tem dado conta
de acolher uma produção cada vez mais numerosa em propostas. Conforme dados da
Secretaria Municipal de Cultura, do Núcleo de Fomentos/Linguagens, nesta última edição do
segundo semestre de 2014, foram 83 inscrições para 12 grupos escolhidos, que poderiam
apresentar projetos em de pouco mais de R$ 800.000,00 para execução em até 24 meses, a
depender de seus planos de trabalho. Cada uma destas iniciativas é de extrema relevância ao
pulverizar a cultura nas regiões de uma grande metrópole como São Paulo, contemplando
projetos de interesse público e promovendo a diversificação das produções culturais.

Desdobramentos de um novo pensamento cultural


À luz do Fomento ao Teatro, em 2005 foi aprovada a Lei 14071/05, que implantaria
em 2006 o Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo, mais uma
vez pelo processo de organização da sociedade civil.
Encabeçados por Célia Gouvêa4 – artista que participou da importante ocupação do
Teatro de Dança Galpão5 (1974-1981), e que, recém chegada ao Brasil em 2002, após uma

4 Célia Gouvêa: Artista independente da cena paulistana, formada pela escola Mudra, de Maurice Béjart, na
Bélgica. Co-fundadora do grupo Chandra. Recebeu bolsas de pesquisa e criação do CNPq, do auxílio à pesquisa
da Fapesp, da VITAE e do John Simon Guggenheim Memorial Foundation. Em 1998, foi agraciada com a bolsa
Virtuose, que a conduziu à França, onde realizou duas montagens no estúdio do Théâtre du Soleil e da Bienal de
Dança de Lyon. Ao lado de seu companheiro Maurice Vaneau, realizou inúmeros trabalhos cênicos. Recebeu os
principais prêmios nacionais de dança. Criou mais de cinqüenta coreografias.
274

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residência artística fora do país tomou conhecimento do que se falava sobre ‘Arte contra
Barbárie’ – outros artistas como Raul Rachou, Fabiana Dultra Britto, José Maria Carvalho,
Eliana Cavalcanti, Sofia Cavalcanti e Marcos Moraes, formaram uma comissão executiva
escolhida em reunião pública. Este era o início do Movimento Mobilização Dança, que teve
atuação decisiva junto ao poder público de uma política cultural para a dança e outras
conquistas históricas.
De imediato, essas discussões fizeram com que ineditamente, fosse destinado no
orçamento da cidade, um recurso financeiro exclusivamente para a dança. Com a aprovação,
começou, então, um novo debate, dessa vez com Secretaria Municipal de Cultura, para
discutir e deliberar sobre o uso desse recurso. Nesse contexto prevaleceu a proposta de uma
mostra de trabalhos não inéditos para uma circulação abrangente em São Paulo que
evidenciasse a existência grupos e uma produção de dança consistente, que necessitava de um
programa específico de apoio. Denominada “Prêmio Estímulo”, circulação envolveu 35
grupos de dança contemporânea, com 10 apresentações cada um, nos teatros distritais e em
alguns Centros Educacionais Unificados (CEUs) recém inaugurados, somando um total de
350 espetáculos em dois meses e meio que foi realizada entre os anos de 2003 e 2004.

“Segundo Eliana Cavalcante, a opção pela apresentação de criações


não inéditas abarcava uma questão crucial: “aqui em São Paulo, qualquer
trabalho que se fizesse estreava, apresentava um dia e não interessava mais
nem à imprensa nem aos espaços. Não se conseguia desenvolver repertório,
o trabalho não ganhava vida pública e sem vida pública a pesquisa morre na
cena”. (CALUX, 2012, P. 99).

A partir de então, o coletivo de artistas passou a se reunir na câmara dos vereadores, e


como estratégia para atrair a atenção para a dança contemporânea e a construção do Fomento
realizavam, além das assembléias, conversas nos gabinetes e intervenções pelos corredores e
escadas em todos os andares do prédio. Os momentos de encontro para reflexão junto à

5 Teatro de Dança Galpão. Sob inspiração de Marilena Ansaldi, o Galpão funcionou num espaço alugado da
atriz e empresária Ruth Escobar no bairro paulistano da Bela Vista, onde atualmente funciona o teatro que leva
seu nome, e teve papel significativo na formação de uma nova safra de profissionais da dança paulistana nos
anos 70. Tinha os moldes de um centro geral para a dança, pois era, ao mesmo tempo, sala de espetáculos e
estúdio para aulas e ensaios. Por lá passaram vários dos nomes que fazem parte da história da dança
contemporânea do país. Este espaço proporcionou para a cidade de São Paulo um canal para a expressão e
disseminação dos novos valores estéticos, reunindo um número crescente de grupos e artistas autodenominados
”independentes”, já que eram desligados de companhias de dança de estrutura mais profissional, como, por
exemplo, o Ballet Stagium, que também marcou aquela década com a apresentação de obras experimentais. Os
trabalhos dos criadores do Galpão caracterizavam-se principalmente pela inovação das matrizes e dos modos de
produção tradicionais de dança e pela ocupação de circuitos alternativos de criação e veiculação de sua arte.
(<http://www.apaacultural.org.br/teatrodedanca/teatro.php> acesso em 27 de fevereiro de 2015).

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categoria da dança, a eleição de argumentos e ações concretas e as tentativas de sensibilização
dos membros do legislativo culminaram na confecção da Lei que institui o Programa de
Fomento à Dança, de autoria dos vereadores Tita Dias, José Américo e Nabil Bonduki, atual
Secretário Municipal de Cultura do Município.
Com o objetivo principal subsidiar grupos, selecionar projetos de trabalho
continuado em dança contemporânea e difundir a produção artística da dança independente,
promovendo o acesso da população à produção em arte e aos bens públicos, tal como o
Programa de Fomento ao Teatro, a Lei de Fomento prevê que até trinta propostas sejam
apoiadas anualmente. Ao longo dos seus oito anos, o Programa promoveu a criação e a
circulação de espetáculos, debates, workshops, estágios, residências, mostras, laboratórios,
palestras, inclusão social, reflexão sócio-cultural, com a participação de diretores,
coreógrafos, bailarinos, pesquisadores e pensadores da atualidade. Além disso, vem
contribuindo para o notado aquecimento da criação, produção e difusão da dança na cidade de
São Paulo:
“(...) companhias já existentes se estruturaram e novas formações
surgiram; a dança conquistou espaço, tanto no sentido das demandas pelo
crescimento substancial da oferta de resultados artísticos, como no aspecto
físico, relacionado ao aumento dos equipamentos culturais capazes de
receber tais criações e ações. Esse impulso se traduz ainda no processo de
profissionalização e ampliação do campo de trabalho de atividades
correlatas, numa lista que inclui desde funções ligadas à criação e execução
de luz, som e cenografia, comumente presentes em fichas técnicas de
trabalhos, à atuação de colaboradores e pesquisadores do pensamento
científico e filosófico, passando pelas figuras do produtor, curador,
dramaturgo e outros tantos “novos” especialistas”. (CALUX, 2012, P. 101).

Ao todo, até 2014 foram executados 17 editais, inscritos 691 projetos, sendo 231
propostas contempladas de 69 núcleos artísticos distintos. A apresentação de dados como
estes, como mencionado anteriormente, no entanto, nos permitem refletir sobre a mudança de
conjuntura, uma vez que hoje se faz reconhecer que, um programa que por algum tempo
instaurou-se como uma novidade dentro do cenário das ações de política para as artes na
cidade, hoje não consegue abarcar toda a multiplicidade e amplitude produções e agentes
fazedores de cultura. Nesse sentido, movimentos mais recentes como ‘A Dança se Move’6,
que estão em diálogo constante com a Secretaria Municipal de Cultura, através de seu Núcleo
de Fomentos Culturais/Linguagens, novamente articulados com a Câmara dos Vereadores,

6 A Dança se Move: Moimento organizado da categoria da dança que surgiu a partir de seminários de discussão
de temas que tangem as políticas para a dança, em 2012. Com representação na cidade de São Paulo, agrega
artistas de diferentes áreas, inclusive membros do anterior Movimento Mobilização Dança.

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conseguiram com a PL 236/2012, uma alteração da Lei para garantir que os projetos que antes
tinha duração de no máximo 12 meses pudessem passar a ter até 24 meses, com valor máximo
de pouco mais de R$ 700.00,00 por projeto. Esta nova fase do Programa de Fomento à Dança
tem possibilitado um maior fôlego de pesquisa cênica para os núcleos artísticos, bem como
faz com que mais propostas sejam realizadas simultaneamente.

Gestão Pública: caminhos percorridos, percursos apontados


As possibilidades apresentadas por leis e programas culturais, com os Fomentos ao
Teatro e à Dança, muitas vezes significam a sobrevivência de trabalhadores da cultura por
meio de editais. Neste sentido o papel do gestor cultural tem importância na compreensão de
que é preciso mediar esta lógica, usar da criatividade para contribuir com outras soluções para
a sobrevivência e continuidade das ações culturais. Isto implica em profundas reflexões e
larga escala de conhecimento dos mecanismos das políticas culturais, tratando-se, portanto, de
um aprendizado constante. E para apreender esses processos é fundamental o diálogo com a
sociedade civil e o reconhecimento de sua participação política, suas articulações em rede, a
existência dos coletivos artísticos, a compreensão das necessidades locais do território em que
habitam, de modo que se cultive conhecimentos que estejam em consonância com a realidade
cultural da cidade. Os desafios são imensos, principalmente num tempo em que a figura do
gestor cultural está se firmando ao passo em que se faz cada vez mais necessário promover
uma afetividade nas relações entre a gestão e os artistas. Pois o próprio artista na relação que
constrói junto ao gestor, seja ele um gestor das políticas de iniciativas públicas ou privadas
precisa compreender seu papel para além das burocracias, para além de um simples
atendimento no balcão. Ou seja, o envolvimento e conhecimento das políticas e ações
culturais proporcionam uma relação entre artista e gestor a partir da parceria entre ambos.
CUNHA (2005) ao realizar uma pesquisa a partir de entrevistas com gestores culturais
aponta:
‘Os gestores culturais enfatizaram a necessidade de conhecer e ser
sensível ao processo de criação artística, sendo essa uma das principais
características que poderia diferenciá-los dos demais gestores. Ou seja, esse
foi o momento em que se criaram as condições formativas para a ampliação
do repertório artístico e cultural do gestor, o que possibilitou maior
entendimento do significado do processo de inspiração/criação artística e
afinou o diálogo entre os dois universos distintos: o da gestão propriamente
dita e o da criação artística e cultural”. (CUNHA, 2005, p. 181).

O acesso da população ao universo artístico é um dos objetivos das políticas públicas


culturais abrindo espaços ou mesmo mantendo outros centros de cultura. A produção, a
circulação e o acesso do cidadão aos trabalhos culturais têm mais abrangência quanto maior e
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melhor é o investimento, pensando em contemplar e interligar os vários pontos que compõem
as realizações culturais.
Nesse sentido, e aqui escrevemos do ponto de vista de gestores públicos, com o anseio
de estruturar ações que possibilitem tanto o amplo desenvolvimento da pesquisa artística,
quanto o acesso público disseminado aos bens culturais, compreendemos na atual Gestão da
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em 2013 e 2014 com Juca Ferreira como
Secretário e recentemente em 2015 com Nabil Bonduki assumindo a pasta, uma
transversalidade e potencialização dos mecanismos de Fomento à Cultura. Isto torna-se mais
evidente a começar de uma metas7 do próprio governo Fernando Haddad que prevê o aumento
do número de projetos de Fomento. Mais do que números, faz-se necessário observar
qualitativamente o processo de desenvolvimento dos projetos, os desdobramentos dos
mesmos e as perspectivas que não limitam um núcleo de acompanhamento técnico à mera
execução de editais públicos. É necessário compreender o conjunto ações que envolvem
editais, mas também discussões públicas, aproximação dos grupos e projetos, publicações,
mostras, seminários, e outros eventos que associados podem ser capazes de contribuir para a
construção de uma política publica mais ampla para a cultura. Também por meio desse
encontro, outras demandas de novos editais puderam ser vislumbrados e, com eles, a
ampliação do Núcleo de Fomentos Culturais que passou a discutir novas linguagens para além
das já consolidadas – Dança e Teatro – questão essa que já havia sido apontada desde o fim da
gestão anterior (Carlos Augusto Calil, Secretário de Cultura, 2004-2012)
Como parte deste cenário, em outubro de 2013, junto com o movimento do programa
Existe Diálogo em SP8, proposto pelo então Secretário Juca Ferreira, várias instancias da
sociedade civil e movimentos ligados a linguagens artísticas foram convidados para refletir e
dialogar sobre as demandas especificas de cada segmento. A partir dessa iniciativa, outras
puderam ser organizadas como Grupos Técnicos de Trabalho, demandas para vereadores,
organização de eventos, programação nos espaços da Secretaria, entre outros.
Uma dessas organizações presentes nesta série de conversas foi a classe circense que
por meio do #ExisteDialogoemSP Circo pôde colocar suas reivindicações e abrir o reflexão
para uma possível linha de financiamento público para a categoria.
Em 2014, membros da Secretaria Municipal de Cultura e entidades representativas do
circo realizaram encontros específicos para discutir o 1º Edital de Fomento ao Circo – que

7 Meta 33: Atingir 160 projetos anuais de Fomento às Linguagens Artísticas até 2016.
<http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/metas/?objetivo=4#resultado> acesso em 27 de fevereiro de 2015
8 #ExisteDiálogoemSP: é um programa da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo destinado à
construção colaborativa de políticas públicas.
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buscou contemplar circos itinerantes de lona, grupos e artistas circenses. O edital foi
elaborado em consonância com outros editais já existentes (como o ProAC, no estado de São
Paulo, editais da Bahia, Pernambuco, Fortaleza, Minas Gerais e Espírito Santo, além do
Prêmio Funarte Carequinha, de âmbito Federal) e com as entidades representativas, de modo
pautar essa primeira experiência municipal no âmbito mais próximo das necessidade da
realidade circense nas características dos editais de Fomentos da Secretaria de Cultura que
visam o diálogo e o acompanhamento durante o projeto como aspectos fundamentais da
parceria da política pública com os artistas.
Assim foram contemplados 25 projetos, sendo: 7 projetos de circo itinerante (sendo 1
para lona acima de 900 lugares e 6 projetos com lona inferir a este limite); 11 projetos de
grupos circenses (sendo 5 projetos com 5 ou mais integrantes na ficha técnica e 6 com menos
de 4 integrantes); e 7 projetos de artistas circenses.
Hoje, caminhando para a 2ª edição, algumas especificidades ficaram mais claras e, por
meio do acompanhamento, outras iniciativas foram tomando força: a necessidade de diálogo
com as subprefeituras e coordenadores de cultura para áreas que tem capacidade para receber
os circos itinerantes; a necessidade de apoio no escopo do edital para iniciativas que visem à
manutenção e aquisição de equipamentos para o circo itinerante; a possibilidade de incentivo
da programação de circo na cidade por meio de apresentações dos grupos fomentados nos
equipamentos da Prefeitura; entre muitos outros que ainda estão em processo de constatação.
Para estas e outras demandas, o Fomento às Novas Linguagens (que integra o Núcleo de
Fomentos Culturais/Linguagens da Secretaria Municipal de Cultura) procura entender os
movimentos socioculturais como integrantes de um processo que não terá um caminho
definitivo, mas uma gama de possibilidades de respostas que ocorrerão nos próximos editais e
em iniciativas de articulação de outras instâncias da Secretaria de Cultura.
Seguindo a mesma forma de construção, o #ExisteDiálogoemSP proposto para discutir
Transparência, Participação e Cultura Digital; organizado entre as Secretaria Municipal de
Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), Secretaria Municipal de Cultura (SMC), Secretaria
Municipal de Relações Internacionais e Federativas (SMIRIF), Secretaria Municipal de
Planejamento, Orçamento e Gestão (SEMPLA), Secretaria Municipal de Serviços (SMSE) e
Controladoria Geral do Município (CGM), outra demanda desponta: um edital que atenda o
movimento de Cultura Digital – pensando em transparência, participação, inclusão e
cidadania.
A partir deste encontro as Secretarias de Cultura, Direitos Humanos e Cidadania e a
Secretaria de Serviços criaram um Grupo Técnico Intersecretarial para pensar esta iniciativa
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que propõe a ocupação dos Telecentros, Pontos de Cultura e de Praças do Programa WiFi
Livre SP. Com o envolvimento de três instâncias distintas, surge uma iniciativa pioneira:
selecionar a apoiar projetos de Inclusão, Cidadania e Cultura Digital para a Cidade de São
Paulo.
Batizado na sua implementação de “Redes e Ruas”, o edital visa apoiar ações
existentes ou novas propostas, tendo em vista o aprimoramento de processos criativos,
estéticos, de promoção da cidadania, da inclusão e da cultura digital. Integrado ao território,
as iniciativas estão em todas as Macro-Regiões. São 59 projetos, divididos em 3 categorias de
Pessoa Jurídica e Física, com coletivos e entidades que desenvolvem atividades com uma
carga horária pré-estabelecida pelo edital em Telecentros, Praças de WiFi Livre SP e Pontos
de Cultura – a depender de cada categoria. A realização dos projetos é acompanhada por
técnicos integrantes do Grupo Técnico Intersecretarial e cada Secretaria é responsável pelo
acompanhamento direto de uma parte dos projetos e todas as questões são tratadas em
reuniões periódicas do Grupo Técnico Intersecretarial. A partir desse acompanhamento as
demandas vão se apontando: novamente surge a necessidade de abrir diálogo com as
subprefeituras para receber as atividades oriundas de um edital novo e de características
absolutamente distintas; fluxo de acompanhamento das atividades; proposta de encontros
entre os coletivos contemplados para escambo de idéias e materiais dos projetos; entre muitas
outras que ainda surgirão nos próximos meses dessa primeira experiência.
As linhas de ação deste edital estão sintetizadas em cinco temas principais: formação,
produção artístico-cultural, comunicação, desenvolvimento e ocupação do espaço público pela
cidadania. Os resultados apresentados poderão ser atividades coletivas como debates,
encontros, oficinas, criação de blogs, sites, veículos de jornalismo comunitário, interações e
inovações artísticas, aplicativos, novos pontos de encontro, entre outras novidades.
Ainda como parte dos novos percursos do Núcleo de Fomentos
Culturais/Lingugens, podemos mencionar o Prêmio Zé Renato de Teatro, instituído pela Lei
nº 15.951/2014, criado com o objetivo de apoiar núcleos artísticos e pequenos e médios
produtores independentes com vistas a produção de espetáculo e realização de temporada ou
circulação na cidade de São Paulo.

Esta nova modalidade de apoio ao desenvolvimento teatral homenageia o diretor


teatral paulistano José Renato Pécora (1926 – 2011). Ator formado na primeira turma da
Escola de Arte Dramática (EAD), dramaturgo e diretor, tem em seu legado dentro e fora dos
palcos a idealização e fundação do Teatro de Arena e a direção de um das maiores expoentes

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do teatro brasileiro, a montagem de “Eles não usam black-tie”. Decorrente do encontro
#ExisteDiálogoem SP Teatro, o prêmio surgiu como demanda da classe teatral, sendo
discutido inclusive em um âmbito de Grupo de Trabalho com representantes do poder público
e da sociedade civil. Por meio desta nova modalidade, coordenada pelo Núcleo de Fomento
ao Teatro, seguindo o processo de acompanhamento dos projetos que vem sendo aprimorado
ao longo dos últimos anos, foram contemplados 24 projetos com prêmios de até 200 mil reais
cada, totalizando o aporte financeiro de 4 milhões de reais para esta edição.

Acompanhamento e dialogo: o papel do gestor na criação de pontes


“Conceber a Cultura como um trabalho humano, trabalho de criação
de obras culturais, criadas pelo indivíduo, grupos, classes, sociedade
humana, implica em perceber que a cultura é revolucionária sempre,
operando mudanças em nossas experiências imediatas, fazendo surgir o que
ainda não foi feito, dito ou pensado. É ver que esse processo se oferece aos
outros sujeitos sociais, atuando em sua inteligência, sensibilidade e
imaginação, direito de todo cidadão”. (SCHUL, 2004, p. 140).

A estruturação de uma área destinada ao Fomento à Cultura, numa esfera institucional


como a Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo, tem como potência a
capacidade de correlacionar linguagens artísticas distintas, promovendo uma reflexão do
papel da gestão cultural dentro do processo de uma comunicação triádica, na qual o gestor
tem papel estratégico no processo de mobilização e de articulação junto ao poder público e à
sociedade civil.
Acompanhar o processo de evolução desse tipo de sistema, nos possibilita observar
uma ocupação da cidade de maneira efetiva e também um inicio de diálogo entre a sociedade
civil organizada nos diferentes segmentos, com a política pública, para a concretização de
iniciativas culturais multifacetadas. Aos poucos, o direito à cidade vai atravessando a própria
cidade que vai se tornando perene e desafiando a gestão numa via de mão dupla.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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V V
ABORDAGEM DE AGLOMERAÇÕES PRODUTIVAS PARA O SETOR
CULTURAL: UMA ANÁLISE DOS ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS
Carmen Lúcia Castro Lima1

RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir como modelos genéricos de aglomeração produtiva têm sido
utilizados em estudos e políticas voltados ao segmento cultural. Procurou-se identificar
avanços metodológicos já empreendidos e lacunas ainda existentes entre as abordagens mais
difundidas. Discute-se, particularmente, a aplicação da metodologia dos Arranjos Produtivos
Locais (APLs), para aglomerações produtivas do segmento cultural.

PALAVRAS-CHAVES: Políticas Públicas, Segmento cultural, Aglomerações produtivas,


Arranjos Produtivos Locais.

INTRODUÇÃO
Constitui um grande desafio pesquisar e analisar atividades de natureza cultural, haja
vista que elas apresentam dimensões econômicas, simbólicas e sociais. Em geral, a produção
cultural é realizada por projeto, o que demanda captação e articulação de recursos no
mercado. Em sistemas de produção dessa natureza, laços sociais e papéis desempenhados por
cada ator parecem explicar a capacidade de mobilização dos recursos necessários e sua
utilização (LIMA, 2009).
Uma característica comum, verificada em muitos países, é que atividades do setor
cultural tendem a se aglomerar em certos locais ou regiões. Tais aglomerações
desenvolveriam uma diversidade de relações sociais, baseadas na complementaridade, na
interdependência e na cooperação. Diante disso, a abordagem de aglomeração vem sendo
muito utilizada em estudos e pesquisas e em intervenções de governos, com essas últimas
buscando tanto a reconversão e a revitalização de antigas áreas industriais e residenciais
degradadas quanto o fomento a determinados subsetores do setor cultural.

A abordagem de aglomerações, ao enfatizar a dimensão territorial, é instigante para


analisar os processos de criação, aquisição, uso e difusão de conhecimentos, valores e
inovações, bem como a diversidade de atividades e as coesões econômicas, sociais e políticas

1
Doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia(UFBA); Professora da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB) e Universidade Católica de Salvador (UCSAL). E-mail: lima-carmen@uol.com.br e
carmen.lima20@gmail.com

283

V V
dos agentes envolvidos. Abordagens de aglomerações produtivas têm sido utilizadas,
principalmente, em estudos das atividades produtivas de transformação industrial. Contudo,
mais recentemente, começaram a ser aplicadas em pesquisas e estudos sobre atividades de
serviços. A discussão considerada relevante, neste artigo, é se o arcabouço conceitual de
aglomeração contempla com precisão as singularidades dos subsetores do setor cultural.
Analisa-se, particularmente, com base em revisão de pesquisas de campo, a pertinência da
utilização da abordagem dos Arranjos Produtivos Locais a estudos e políticas direcionados ao
setor cultural.

ATIVIDADES CULTURAIS E SUAS TENDÊNCIAS À AGLOMERAÇÃO


No atual paradigma tecnoeconômico, a geração de conhecimento é fator decisivo para
a acumulação. A criação, a aquisição e o uso de conhecimentos possuem características
específicas em cada contexto social, cultural, institucional e político, significando que são
localmente determinados. Diante disso, pode-se inferir que a proximidade geográfica
favoreceria o estabelecimento de relações que aumentariam a interação, a cooperação e,
especialmente, os processos de aprendizagem, em regra.O recorte analítico de aglomerações
passou a ser um importante referencial de análise para os setores intensivos em conhecimento.
Essa perspectiva permitiria uma melhor compreensão de atividades cujos agentes
compartilham os mesmos contextos sociais, culturais e institucionais, pois forneceria pistas de
como são organizadas as cadeias produtivas e engendradas as redes de criação.
Os referenciais sobre aglomeração produtiva são apresentados como especialmente
relevantes para a análise de atividades produtivas de base cultural. O conceito de aglomeração
tem sido uma das ferramentas através da qual formuladores de política e estudiosos têm
procurado entender a dinâmica do setor cultural. A ênfase no território é, no caso do setor
cultural, considerada até mesmo mais importante que nos demais setores. Isso se deve ao fato
de as atividades culturais terem uma forte identidade territorial, enraizadas espacialmente em
torno de heranças históricas, sendo, portanto, fortemente condicionadas pelas especificidades
locais.
O conceito de “burburinho”, desenvolvido por Storper e Venables (2005), também
explicaria a tendência a aglomerações produtivas na área de cultura. Os autores mencionados
afirmam que as relações face a face (burburinho) atuariam minimizando incertezas quando
determinados processos ainda não são codificados e passíveis de transmissão a longas
distâncias. Para a produção cultural, que se realiza muitas vezes por projetos e de forma

284

V V
temporária, esse contato mais próximo é um elemento fundamental como meio de gerar
confiança entre atores, individuais ou coletivos, envolvidos na geração de produtos culturais.
Outra característica do setor cultural, especialmente de seus subsetores também
incluídos na classificação de indústrias culturais, é a de se organizarem como um conjunto de
pequenos produtores, complementados por um número reduzido de grandes estabelecimentos
(majors). Esse tipo de organização é denominado de oligopólio com “franja”, porque, junto
às grandes empresas, estão os estabelecimentos menores, como ”franjas” dos conglomerados.
Os segmentos de música, cinema, publicação e jogos eletrônicos são especialmente propensos
a esse tipo de organização (TOLILA, 2007).
Nessa forma de organização, as pequenas empresas exercem papel fundamental na
renovação da criatividade e assumem riscos que as grandes empresas não estão dispostas a
assumir. As majors, como controlam a distribuição, têm acesso privilegiado às novas
tendências. Em síntese, os pequenos produtores cumprem o papel de descobrir e desenvolver
novos talentos e estilos, proporcionando às grandes empresas condições de realizar escolhas
mais seguras no momento em que decidem investir.
Considerando principalmente a distribuição, Scott (2004a) argumenta que as redes
locais de pequenos produtores são inseridas em redes de distribuição globais, as quais tendem
a ser dominadas por conglomerados culturais. Como consequência, subsetores do setor
cultural são caracterizados por relações globais e locais em que a produção é cada vez mais
localizada em aglomerações locais e a distribuição realiza-se através de amplas redes
(SCOTT, 2004a).
Com base na discussão anterior, depreende-se que a globalização não necessariamente
leva à dispersão locacional da produção cultural. As relevâncias da diversidade cultural e de
suas manifestações regionais e locais tornam-se especialmente importantes em um período
marcado pela homogeneização crescente de padrões de consumo. Nesse sentido, a cultura é
fonte de diferenciação de territórios, acentuando suas identidades e marcando seu lugar no
panorama mundial.
A diferenciação através da identidade local, ancorada na cultura, torna-se um trunfo
para a competitividade das aglomerações produtivas. De acordo com Harvey (2004), as
empresas que se diferenciam no mercado com base em elementos culturais distintos, não
facilmente replicáveis, auferem rendimentos monopólicos.
A tendência atual é acentuar o processo de aglomeração das atividades culturais,
verificando-se o crescimento da exportação combinada com a expansão da produção

285

V V
localizada. Em resumo, a aglomeração locacional e as relações globalizadas são
frequentemente processos complementares, em se tratando da produção de bens culturais.
Na literatura, consideradas essas tendências, podem ser identificadas diversas
vertentes de análise para avaliar as configurações e a organização de agrupamentos culturais.
Esses modelos, na maioria das vezes, partem de experiências internacionais para analisar o
desenvolvimento das aglomerações na área de cultura.

AS ABORDAGENS DE AGLOMERAÇÕES TERRITORIAIS PARA O


SEGMENTO CULTURAL

Nas últimas décadas, foram inúmeros os planos, projetos e intervenções urbanas que
tinham como objeto os agrupamentos culturais. Os seus resultados podem ser observados
desde a escala local, de pequenos quarteirões, até a escala regional, abrangendo várias
cidades. Existem vários estudos de caso com base no arcabouço de aglomerações culturais.
Pode-se destacar os trabalhos de Machado, et al (2013), Lima (2009), Cinti (2008), Van der
Berg et al. (2001), Mommas (2004), Santagata (2005), Valentino (2003) e Lazerreti (2003).
Esses autores partem de experiências nacionais e internacionais para avaliar as condições
necessárias para o desenvolvimento das aglomerações. Um aspecto que chama atenção é que
vários dos estudos apresentados parecem aplicar as abordagens de aglomeração desenvolvidas
para o setor industrial, sem considerar especificidades do segmento cultural.

Pode-se, contudo, destacar, como exceção, o trabalho de Lazarreti, que, ao


desenvolver o conceito de “cidade-arte”, procura avaliar elementos subjetivos do
agrupamento cultural. Lazzeretti (2003) desenvolve, para os seus estudos sobre processos de
aglomerações culturais em Florença, uma perspectiva analítica, introduzindo o conceito de
cidade-arte como um "sistema local de elevado nível cultural” (HC Local System). Tal
sistema é caracterizado pela presença, no mesmo território, de elevados dotes artísticos,
naturais e culturais, que o identificam como um lugar de alto nível cultural (HC Place). Além
disso, é formado por uma rede de atores econômicos, não-econômicos e institucionais que
desenvolvem atividades de conservação, valorização e gestão econômica de tais recursos e
que, em seu conjunto, representam um agrupamento de “alto nível cultural da cidade".
Mais diretamente relacionada a processos de reconversão urbana, a configuração de
aglomerações de atividades culturais proliferou no mundo. Exemplo disso são os bairros
culturais como áreas espacialmente distintas e limitadas, com alta concentração de ofertas
culturais, tanto em termos de consumo quanto de produção (VAZ, 2004). Elas contêm a maior

286

V V
concentração de patrimônio e de equipamentos culturais e de entretenimento dentro da cidade
– como monumentos, museus, teatros, cinemas, estúdios, galerias de arte, salas de concertos,
livrarias, cafés, restaurantes. Yúdice (2004) cita os exemplos de Bilbao, no País Basco, e da
cidade de Peekskill, em Nova Iorque. Pode-se igualmente fazer referência ao Bairro Cultural
Temple Bar no centro de Dublin, na Irlanda. No Brasil, podem ser citados os casos do
Pelourinho em Salvador, do Reviver em São Luis e da Lapa no Rio de Janeiro.
Pode também ser citada abordagem do Creative Cluster. Esta refere-se à concentração
geográfica de uma indústria criativa, que reúne os seus recursos de forma a otimizar criação,
produção, difusão e exploração de trabalhos criativos. Tal agregação, eventualmente, conduz
à formação de uma rede e ao estabelecimento de parcerias. Trata-se, assim, de aglomerações
amparadas nas múltiplas criatividades de indivíduos – artística, empreendedora e de inovação
tecnológica –, para criar um novo valor econômico. Podem englobar organizações sem fins
lucrativos, instituições culturais e artistas individuais. A existência de empreendimentos
criativos em uma mesma área reforça a presença e a identidade de todos e de cada um
(DEPARTMENT FOR CULTURE, MADIA AND SPORT, 2001). Exemplos de Creative
Clusters são os de mídia no Reino Unido, de audiovisual de Bollywood, na Índia, de jogos
eletrônicos na Austrália e de Software, Porto Digital, no Brasil.
Outro exemplo da aplicação da abordagem de aglomeração para centros urbanos é o
Creative Milieu. Esse é um lugar em que a aglomeração de empresários, intelectuais, ativistas
sociais, artistas, administradores, instituições governamentais ou estudantes operariam em um
contexto de espírito aberto e cosmopolita, onde se cria interação (DAL POZZOLO, 2006). A
noção de Creative Milieu tem sido amplamente discutida em associação com a ideia de
“criativos da cidade”. Autores como Pumhiran (2005), Scott (2004a), Florida (2002) e Hall
(2000) analisam o papel das cidades como centros de atividade cultural e econômica que
possuem capacidade tanto para gerar cultura na forma de artes, ideias, estilos e atitudes, como
para induzir altos níveis de inovação e crescimento econômico. As regiões metropolitanas de
Londres, de Nova Iorque, de Los Angeles e de Paris são exemplos desses ambientes criativos.
A noção de Arranjo Produtivo Local (APL) vem sendo amplamente difundida no
Brasil. Considerando as especificidades das economias periféricas e os conceitos de inovação
e territórios, pesquisadores da UFRJ desenvolveram esta abordagem. Esta tem sido utilizada
tanto em meios acadêmicos como em organizações encarregadas de planejar e promover o
desenvolvimento produtivo e inovador. Recentemente, têm proliferado estudos sobre APLs

287

V V
com amplo espectro de atividades, inclusive de produção e operação de bens culturais, o que
será discutido no próximo item.

ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS PARA O SEGMENTO CULTURAL


Arranjos produtivos locais (APLs) são aglomerações territoriais de agentes
econômicos, políticos e sociais com o foco em um conjunto específico de atividades
econômicas, que apresentam vínculos mesmo que incipientes. Envolvem, geralmente, a
participação e a interação de empresas e organizações diversas – desde as produtoras de bens
e serviços finais, passando pelas fornecedoras de insumos e equipamentos, assim como de
serviços de consultoria, e chegando aos clientes, representações e associações. Abarcam ainda
diversas instituições públicas e privadas de formação e capacitação de recursos humanos,
pesquisa, desenvolvimento e engenharia, política, promoção e financiamento
(CASSIOLATO; LASTRES, 2003).
A abordagem de Arranjos Produtivos Locais destaca o papel central do conhecimento,
da inovação e da aprendizagem interativa como fatores de competitividade sustentada. Ela
combina as contribuições sobre desenvolvimento da escola estruturalista latino-americana
com a visão neo-schumpeteriana de sistemas de inovação (CASSIOLATO et al., 2008).
O conceito de APL reflete, no Brasil, uma tendência mundial de se pensar e estimular
o desenvolvimento econômico e regional a partir de modelos de aglomerações industriais,
especializadas em determinadas atividades econômicas. As maiores particularidades do
conceito de APL derivam do reconhecimento de que todo APL se localiza em um
determinado território, o qual se delimita a partir de quatro dimensões constituintes e inter-
relacionadas (LOIOLA; LIMA, 2008).
A primeira delas, a dimensão físico-territorial, é de natureza dinâmica, porque se
constitui na planta baixa, onde as comunidades específicas se manifestam e se expressam,
através de atos, símbolos, costumes, normas e valores. Sua natureza dinâmica relaciona-se ao
fato de que os contornos dessa planta baixa são móveis, acompanhando os deslocamentos de
habitantes portadores de identidades culturais. Trata-se de reconhecer que cada território tem
um lugar na terra que lhe atribui materialidade (física) e, simultaneamente, especificidades
(territorialidade).
A dimensão socioprodutiva dá conta de que todo o desenvolvimento realiza-se sobre
um território, sofrendo condicionantes derivadas desse território e de fatores externos, mas
também produzindo efeitos sobre ele. A político-organizativa, por seu turno, é a dimensão que
atribui a um dado território condições de reconhecimento no jogo de forças entre territórios na

288

V V
esfera jurídico-administrativa do País, enquanto a simbólico-cultural é o suporte e o produto
da formação de identidades individuais e coletivas. Note-se que ambas as dimensões, a
político-organizativa e a simbólico-cultural, dão suporte à construção de identidades, sendo
que a primeira cumpre o papel de identificação, em nível jurídico-administrativo,
possibilitando o reconhecimento desse território pelas autoridades constituídas para, por
exemplo, atendimento a reivindicações e a necessidades das mais diversas ordens. Já a
dimensão simbólico-cultural evoca sentimentos de pertencimento e de especificidade nas
comunidades de cada território.
A natureza dos relacionamentos se diferencia a depender das experiências históricas,
culturais e de língua de cada arranjo, que refletem idiossincrasias em termos de organização
interna das empresas, articulações entre elas e outras organizações, características sociais,
econômicas e políticas do ambiente local, papel das agências e políticas públicas e privadas e
do setor financeiro.
A utilização do referencial de análise de APL para atividades culturais contribuiria
para ressaltar algumas dimensões com características bastante peculiares: formas de
conhecimento envolvidas e seus processos de geração e difusão; formas de interação entre os
agentes visando à coordenação das atividades envolvidas; e características e importância da
inovação e da preservação para a sustentabilidade do arranjo. Ressaltam que tais dimensões
apresentam características bastante específicas em atividades culturais, com desdobramentos
para o desenvolvimento e formulação de políticas de apoio e promoção (CASSIOLATO et al.,
2008).
Desde meados de 2007, a RedeSist vem desenvolvendo a pesquisa “Arranjos e
Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (ASPILS) em Áreas Intensivas em Cultura e
Mobilizadoras do Desenvolvimento Social”. Essa pesquisa se constitui em esforço de
adaptação do referencial conceitual e metodológico de APL para o estudo das Atividades
Intensivas em Cultura. Como resultados de implementação desse projeto, já divulgados,
destaca-se a nota técnica ASPILS em atividades culturais: consolidação do quadro conceitual
e metodológico (CASSIOLATO et al., 2008) e vários estudos sobre APLs baseados em
atividades culturais em diferentes estados brasileiros.2
A principal mudança foi no instrumento de coleta de dados, que procurou captar as
especificidades do processo produtivo. Foram desenvolvidos dois questionários, um

2
Estes estudos estão disponíveis no site da Redesist www.sinal.redesist.ie.ufrj.br

289

V V
específico para os arranjos de Festas Populares e Espetáculos, e um segundo para os estudos
de atividades de audiovisual.
Algumas das pesquisas desenvolvidas pelo conjunto de estudiosos reunidos na
RedeSist são analisadas neste artigo, buscando-se identificar lacunas e avanços sobre
aplicação do método de APL para atividades culturais. São enfocados os estudos de APLs de
Cinema e Audiovisual de Goiânia, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro. Os trabalhos
revisados proporcionaram a formação de visão de arranjos de cinema e audiovisual no Brasil
em diferentes estágios de desenvolvimento(LIMA, 2009).
A questão metodológica enfrentada pelos estudos revisados foi a definição dos atores
que fazem parte do núcleo central dos arranjos pesquisados. No setor de audiovisual e de
cinema, há produtoras que funcionam como empresas formalizadas e os realizadores que
atuam como pessoa física, individualmente ou em pequenos grupos (LIMA, 2009).
Outro ponto comum nos estudos supracitados é que, para compreender especificidades
dos arranjos de atividades criativas, foi necessária a incorporação de outros agentes
econômicos e sociais na análise, que estão direta ou indiretamente relacionadas com a
atividade em foco. Ou seja, seus autores tentaram compreender a atividade específica através
de um arranjo sistêmico em que agentes não-econômicos desempenham frequentemente papel
estratégico. As unidades de análise foram esses agentes e não suas interações(LIMA, 2009).
No item inovação, a metodologia do APL adaptada para o setor audiovisual tenta
distinguir inovações de produto, de processo e organizacionais, e inovações radicais e
incrementais. No entanto, em campo, os pesquisadores enfrentaram dificuldades para
classificar as inovações ou diferenciá-las como de processo e de produto, uma vez que
produtos e processos se fundem no mesmo momento da sua realização. Para elidir essa
dificuldade, optou-se por deixar ao julgamento dos agentes entrevistados se um novo produto
cultural representaria, de fato, inovação, o que magnificou o problema antes referido (LIMA,
2009).
Em termos da análise dos processos de aprendizagem, a metodologia ampliou o
conjunto de agentes relevantes como fontes de informação para a aprendizagem. Além dos
agentes tradicionais, foram incorporados agentes por meio dos quais os agentes dos arranjos
pesquisados adquirem conhecimento tido como cultural ou simbólico.
A revisão da literatura e a análise dos casos de APLs culturais evidenciam que tais
estudos lançam um olhar mais cuidadoso sobre o papel dos territórios na dinâmica das
aglomerações, destacando a importância da proximidade geográfica e da identidade histórica,

290

V V
institucional, social e cultural como fontes de dinamismo local, diversidade e vantagens
competitivas (LEMOS et al., 2005). Como já se discutiu, a noção de território põe em relevo
aspectos simbólico-culturais, refletindo que tais territórios são suporte e produto da formação
de identidades individuais e coletivas e, portanto, evocam sentimentos de pertencimento.
Apesar das virtudes do método de pesquisa da Redesist, identificaram-se também suas
restrições, seja de abordagem, sejam procedimentais, sobretudo quando utilizados para a
pesquisa de APL de produção de bens culturais. Na abordagem de APL, o foco ou unidade de
análise é o ator social e não suas interações, o que tende a sobrelevar ações sociais movidas
por racionalidade instrumental. Também tem um foco basicamente territorial, minimizando o
papel das relações extraterritoriais.
A abordagem de APL não considera que os atores sociais não agem barganhando por
bens materiais. Eles buscam salvaguardar suas posições sociais; motivações econômicas estão
embebidas em contextos sociais; e os atores que circulam nos APLs podem estar
desempenhando posições não-associadas à expansão de conhecimentos. Consequentemente, a
abordagem de APLs não se mostrou suficiente para estudos em relação ao setor cultural, não
se prestando a investigar os laços sociais que os perpassam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como objetivo discutir, com base em revisão bibliográfica,
como estudos sobre o setor cultural têm utilizado modelos genéricos de aglomeração
produtiva. Muitos autores que se dedicam ao estudo dos bens culturais argumentam que
características tecnológicas e organizacionais da produção desses bens, com fortes
interconexões, reforçam tendências à aglomeração da produção. Nota-se ainda a tendência a
processos complementares, de crescimento das exportações de bens culturais, associados com
a expansão de sua produção localizada.
Contudo, como exposto neste artigo, a literatura sobre agrupamento de produção de
bens culturais pouco tem discutido como os modelos de aglomeração podem atender às
complexas dimensões da produção de bens culturais. Foi analisada, particularmente, a
abordagem dos Arranjos Produtivos Locais, buscando identificar avanços e lacunas deste tipo
de abordagem.Para investigar a abordagem de APL aplicada ao setor cultural, foi enfocada a
metodologia adotada pela Redesist e examinados quatro trabalhos sobre o segmento de
cinema e audiovisual realizados com base nessa abordagem.

291

V V
As análises dos trabalhos antes mencionados permitiram concluir que os APLs
culturais, avança ao incorporar um olhar mais cuidadoso sobre as questões de valores, de
identidades e de pertencimento dos atores sociais, ao mapear a trajetória histórica do arranjo.
Portanto, a abordagem de APL pode ser um ponto de partida para o entendimento da
produção cultural que emerge desse território, desde quando se superem as lacunas derivadas
de sua falta de foco nas relações não-mercantis que se espraiam pelo tecido social de cada
território e nas interações extraterritoriais.

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293

V V
REFLEXÕES SOBRE O CAMPO DO AUDIOVISUAL NA CAPTAÇÃO DE
RECURSOS INCENTIVADOS NO PAÍS
Carolina Marques Henriques Ficheira 1

RESUMO: Este artigo tem como intuito refletir quais são as particularidades do setor de captação de
recursos incentivados baseada na renúncia fiscal, prevista nos artigos 18 e 26 da Lei Federal de
Incentivo à Cultura e no artigo 1A da Lei do Audiovisual, bem como o papel do profissional captador
de recursos nesse processo. Pretendemos refletir quais as especificidades e os questionamentos dessa
profissão no mercado de audiovisual, tendo em vista a porcentagem de 10% de recursos incentivados
destinados ao profissional, prevista nas Leis.

PALAVRAS-CHAVE: Leis de incentivo à cultura, captação de recursos e ética.

Contextualização do setor da captação incentivada no país:


Quem nunca teve dificuldades para captar recursos incentivados? Quem nunca soube
de ações nocivas de mercado, usando a renúncia fiscal para o campo do audiovisual? É com
estas indagações que lançamos mão da temática captação de recursos incentivados para o
campo cultural.
Mas, para chegarmos à situação hoje instaurada no país, voltemos aos anos 90, quando
o país passou por um processo de mudanças político-econômicas. O Brasil adaptou-se ao jogo
do livre mercado, empresas estatais foram privatizadas e os investimentos foram abertos ao
mercado e às organizações estrangeiras. Foi um momento de desobrigação do Estado dos
negócios do cinema, sob a alegação de que o cinema brasileiro poderia competir em regime
das leis de mercado como qualquer outro segmento.
As mudanças na ordem do cinema brasileiro aconteceram com a criação das leis de
incentivo2, e, posteriormente, da Agência Nacional do Cinema3 (ANCINE), órgão responsável
pela regularização, fiscalização e fomento da atividade. Esse momento de transição,
designado por alguns pesquisadores como Retomada do Cinema Brasileiro, foi marcado pela
elaboração de políticas públicas culturais, com base em mecanismos de renúncia fiscal

1
Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Graduada em Produção Cultural pelo Departamento de Artes
na UFF. Foi gerente operacional do Cine Joia, parecerista do município de Petrópolis . É parecerista da
Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro e do Ministério da Cultura, professora da Pós –Graduação em
Gestão do Entretenimento na ESPM e no curso de Administração da ESPM. E-mail:
carolinaficheira@hotmail.com.
2 Lei 8.313 de 23 de dezembro de 1991 (Lei Rouanet) e Lei 8.685 de 20 de julho de 1993.
3 Medida Provisória 2.228-1 de 6 de setembro de 2001.

294

V V
(procedimento em que o investidor – seja ele pessoa física ou jurídica – reverte parte do
imposto, que seria destinado à União, à produção de filmes nacionais) permitindo que
empresas, públicas ou privadas, se tornassem “investidoras” ou, “patrocinadoras” 4 da
produção audiovisual brasileira.
Para Guilherme Barone, a Retomada deveria ser vista como um “fenômeno múltiplo
do fato cinematográfico” (2005, p.140), pois mesmo não havendo medidas diretas de
incentivo por parte do Estado no que se refere à distribuição e exibição fílmica, podemos
verificar que esse também foi um período em que a iniciativa privada encontrou um campo
interessante e próspero a ser explorado. Dentre tantas conexões frutíferas para o campo,
também surgiu a "figura"5 do captador de recursos a partir do uso das Leis, o qual se valia ( e
até hoje ainda é assim) de informações privilegiadas e conexões profissionais para o
fechamento de contratos.
Para entender melhor a função desse profissional, faz-se necessário debruçarmos sobre a
remuneração e a condição profissional que este está inserido, mediante a uma ratificação das
leis.
Hoje, o maior mecanismo no Brasil para se conseguir realizar um projeto cultural 6 é a
Lei Federal de Incentivo à Cultura (lei 8318/91). Esta permite que apenas 30% do orçamento
seja abatido fiscalmente (o que requer dos patrocinadores um aporte adicional de 70% em
recursos próprios) em caso de projetos enquadrados no artigo 26. Já projetos enquadrados no
artigo 18, possuem a quantia inteiramente revertida em renúncia fiscal, pois nesse caso a Lei
Rouanet permite que 100% do orçamento seja abatido fiscalmente7.
Dentro deste orçamento, previamente aprovado pelo Ministério da Cultura (MinC), há
o item orçamentário remuneração da captação de recursos no qual o profissional responsável
poderá receber até 10% do valor total do projeto, respeitando os limites estabelecidos pela
Instrução Normativa n º 1, de 24 de junho de 2013, como descrito no trecho do documento:
Art. 22. As despesas referentes aos serviços de captação de recursos serão detalhadas na planilha de
custos, destacadas dos demais itens orçamentários.

4 Optamos por indicar patrocinadores/investidores com aspas, pois, o valor repassado pelas empresas para os
filmes provém de renúncia fiscal e não do caixa (ou orçamento de marketing) das empresas. Dessa forma, elas se
beneficiam duplamente, pois investem em marketing e divulgação de suas “marcas” nos filmes, utilizando um
valor que em tese não “pertence” à empresa, mas ao Estado.
5
Utilizamos a palavra figura e entre aspas, devido a frágil legislação que temos sobre o assunto, pois nada
determina que esse profissional de fato o seja, não necessitando de nenhuma formação prévia.
6
Inclui-se também os curtas e médias-metragens, salas de cinema em municípios de até 100 mil habitantes e
Festivais de cinema.
7
As diferenças da do artigo 18 e 25/26 podem ser consultadas na Lei 8313/91.

295

V V
Parágrafo único. A captação de recursos será realizada por profissionais contratados para este fim ou
pelo próprio proponente, cujo valor será limitado a cem mil reais ou a dez por cento do valor do
projeto a captar, o que for menor, respeitada a regra do art. 24.

Já a Lei do Audiovisual (8685/93) prevê diferentes formas de captação de recursos. Mas para
fins deste artigo, com foco na captação de recursos incentivados, vamos nos fixar no artigo
1A, que se utiliza do patrocínio8. Este permite que 100% do orçamento do projeto seja abatido
da renúncia fiscal do patrocinador, o abatimento pode chegar até 4% de limite do imposto de
renda (IR) para investimento no caso de pessoa jurídica baseada no lucro real ou 6% de limite
do IR para investimento no caso de pessoa física. Para este mecanismo, é obrigatória a
contrapartida mínima de 5% de recursos próprios ou de terceiros.
A Instrução Normativa 22, regulada pela Ancine, também prevê porcentagem para o
captador de recursos, nesta sendo nomeada de agenciamento, artigo 13, inciso II. O teto para a
captação neste artigo são 4 milhões de reais9, podendo chegar a R$ 400.000,00 o valor
destinado ao captador.
II - Agenciamento - no limite máximo de 10% (dez por cento) do valor
autorizado para captação de recursos incentivados, para os projetos a serem
autorizados pelos mecanismos previstos na Lei nº 8.313/91 e no art. 1º-A da
Lei nº 8.685/93, limitado o seu pagamento ao montante efetivamente
captado. (Inciso alterado pelo art. 70 da Instrução Normativa n° 110).

Além dos dispositivos legais estabelecidos, não há nenhum outro dispositivo que
determine a execução dessa profissão, estando apto todo e qualquer cidadão, sem formação
prévia sobre o assunto. Ou seja, basta ter uma empresa em captação de recursos, conhecer
pessoas e fechar contratos para ser um captador. Como se nota, é muito "interessante"
financeiramente ser captador de um projeto. Por conta dessas questões de mercado, alguns
produtores tem preferido ser "seus próprios" captadores a fim de não ter profissionais sem
vínculos com o projeto cultural idealizado.
Em face ao que já foi descrito, o campo cultural sofre um processo ambivalente entre a
regulação do Estado e as determinações do mercado frente ao uso do dinheiro público, fruto
de uma política neoliberal (REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL in BARBERO,
2009, p. 155) dos anos 90. Neste caso, o papel do Estado está mais direcionado a ser parceiro
da cultura, fornecendo subsídios e suporte, sem interferir diretamente sobre os conteúdos
(ORTIZ RAMOS; BUENO, 2001, p. 10).

8
Ver Lei 8586/93, artigo 1A.
9
I. N 22, artigo 3º.

296

V V
Esse panorama leva a um processo de concentração dos recursos incentivados no
Sudeste, ao consequente acirramento das desigualdades sociais e culturais, sem uma efetiva
formação da área de captação de recursos.
A presença de captadores de recursos e lobistas levou a um processo de disputa de
território, e, até mesmo, à falta de ética nessas relações profissionais. Descreve Bianchi, no
livro de Marson (2009, p.76):
Você tem lá um diretor de marketing de uma empresa, ele é uma pessoa
humana. Ele tem um nível de cultura, uma sexualidade, uma classe social, e
conseguir alguma coisa desta empresa vai depender do relacionamento que
você tem com ele. Se você não sabe se relacionar, não produz o filme. Não é
nem "mercado" nem a qualidade da obra que conta. É a relação mesmo. (...)
Como há dedução do imposto de renda, quem decide é a firma (risos). Esse
dinheiro é público. Esse é o grande dilema.

Neste caso, como em muitos outros, a questão cinematográfica é deixada de lado em


detrimento das relações interpessoais que se estabelecem no meio. Isso ocorre devido aos
retornos financeiros dados nos próprios termos da lei ao captador, no qual o captador de
recursos recebe uma porcentagem do valor do projeto por efetivar a intermediação10.
Essa situação beneficiada pela própria lei leva a um quadro de interesses econômicos que
estão além dos interesses inerentes aos projetos culturais. Dahl, já em 1998, afirmava o
canibalismo do mercado:
Uma multidão de projetos, qualificados indiscriminadamente, pressionam a
oferta sem conseguir se viabilizar. Esta superpopulção estimula o
canibalismo, na disputa exacerbada por conseguir existir. Cresce então a
remuneração da corretagem que, debaixo do pano, vai muito além do
formalmente estabelecido. Ou então devolve-se ao investidor parcela
significativa do próprio incentivo, sob o eufemismo de realização antecipada
de lucros futuros, a recompensa" (DAHL apud MARSON, 2009, p. 117).

Nota-se que a fala do cineasta afirma existir uma falta de ética, seja por parte dos
captadores, pedindo dinheiro a mais que o permitido na lei, seja por parte das empresas, que
recebem de volta parte do valor aportado como forma de "recompensa" por patrocinar o
projeto.
Somado a isso, departamentos de comunicação e marketing se utilizam de recursos
públicos para garantir verba como ativação da marca, retorno de imagem e visibilidade
midiática em detrimento do mérito cultural do produto audiovisual incentivado.
É nesse contexto econômico da produção cinematográfica que nos debruçaremos sobre
as relações instauradas de mercado no que concerne à captação: patrocinador, captador de

10
Já descrevemos o assunto anteriormente.

297

V V
recursos e patrocinado, previstas na Lei 8313/91 e na Lei 8685/93. E refletiremos sobre a
conduta ética a ser seguida na área de captação de recursos no campo cultural, além da
necessidade da regulamentação da profissão.

Reflexões sobre o campo da captação de recursos incentivados no país.


Se por um lado usar as leis se tornou mais fácil, pelo outro ponto de vista, promoveu
uma grande concentração de recursos e uma exclusão do acesso aos bens culturais. Lia
Calabre (2005, p. 279-280) afirma que o país possui "uma grande diversidade cultural,
oriundas de fusão étnicas variadas, permeadas por resistências, sincretismos, circularidades e
ressignificações". Indo além, Barbero (2009, p. 154) afirma que a "diversidade cultural nos
faz pensar e intervir nas diversas formas de assimetria e de dominação que perduram e se
renovam nas contemporâneas formas de neutralização, funcionalização e destruição do que
por meio da "alteridade" tira o nosso chão e desestabiliza as nossas habituais políticas
culturais". Como já dito, o percurso da lei é o oposto ao que Barbero e Calabre afirmam,
reforçando uma assimetria na difusão da cultura brasileira e na permanência de um status quo
dominante.
Assim, o que temos assistido na sociedade contemporânea é um processo de
dominação econômica e hierarquização cultural. Edgar Morin (1997, p. 22) também percebe
isto ao afirmar que "o vento que assim as arrasta em direção à cultura é o vento do lucro
capitalista. É para e pelo lucro que se desenvolvem as novas artes técnicas", desvalorizando a
pluralidade cultural existente no país.
Canclini (2006) vai além do que os autores supracitados já colocaram, ele percebe que
na segunda metade do século XX ocorre uma mudança significativa nas relações econômicas
dos países, causada pelas tecnologias de comunicação, na qual a cultura passa a ser um
espetáculo multimídia. Isto posto, podemos correlacionar com as formas com que os
departamentos de comunicação e marketing escolhem seus projetos culturais incentivados,
baseados principalmente na potencialidade de retornos midiáticos e de marca, chamado pelo
autor de tecnologias de comunicação. Diz ele:
na segunda metade do nosso século a transnacionalização econômica, e
mesmo o caráter específico das últimas tecnologias da comunicação (desde a
televisão até os satélites e as redes ópticas), colocam no papel principal
culturas-mundo exibidas como espetáculo multimídia. (CANCLINI, 2006,
p.133).

Portanto, os projetos incentivados escolhidos pelas corporações que priorizam


principalmente os retornos que as tecnologias de comunicação podem dar à empresa,

298

V V
acentuam a transnacionalização e a alta rentabilidade financeira, suprimindo os aspectos
nacionais e regionais de sua decisão de patrocínio.

Para reafirmar o argumento da exclusão e concordar com Morin (1997) e Canclini


(2006), o relatório do ONU-Habitat (2012), afirma que apesar do crescimento econômico
mais acelerado e da redução da pobreza nos últimos anos, o Brasil ainda é um dos países mais
desiguais da América Latina, estando em quarto lugar, atrás apenas de Guatemala, Honduras e
Colômbia. Mesmo com a implementação de diferentes programas pelo Governo Federal
nesses últimos anos para reduzir a desigualdade social no país, os dados afirmam que estamos
na região mais desigual do mundo. Portanto, a forma como a Lei se estruturou no mercado
11
passa a reforçar essas desigualdades sociais no país. Não é à toa que somente 13% dos
brasileiros vão ao cinema alguma vez no ano, para exemplificar. O Ministério da Cultura
indica que a renúncia fiscal no ano de 2009 revelou que 79,11% dos recursos captados pela
Lei Rouanet se concentraram no Sudeste, sendo: 34,79% para SP, 34,62% para o RJ, 9,40%
para MG e 0,3% para o ES. Nos dados disponibilizados pela Ancine12, no que concerne ao
campo audiovisual, esta conclusão também é ratificada.
Como se nota, dentro da própria região, Rio de Janeiro e São Paulo repartem sozinhos
mais de um terço das verbas de incentivo à cultura pela Lei Rouanet. Nas demais regiões, o
Sul fica com 9,69%, Nordeste com 6,91%, Centro-Oeste com 3,84% e o Norte fica com
apenas 0,45%. Neste documento13 disponibilizado pelo MinC, há ainda três estados que não
captam recursos: Acre, Roraima e Tocantins.
O mesmo ocorre com o uso da Lei do Audiovisual que “começa a garantir incentivos
fiscais a empresas públicas e privadas (...) a gerar novas possibilidades de rentabilidades (...)
com maiores possibilidades de midiatização (...) como a indústria do cinema” (BRITTOS,
2006, p.21-45, p.22 apud MELEIRO, 2009, p. 104)
Dando continuidade e não menos importante, percebemos, em sua maioria, como os
projetos com grandes retornos midiáticos, apoiados na lógica do captador de recursos, são
mais queridos por gerências de patrocínio, principalmente as de capital privado, como Itaú,
Unimed ou Heineken, que valorizam e estimulam a presença do captador (FRELLER, 2014).
Para Klein (2000), as marcas estão se tornando corporações transnacionais, podemos
citar o exemplo da Nike, Barbie, Star Bucks e Shell. As marcas se tornam mais importantes

11
O Ministério da Cultura, em parceria com o IBGE e IPEA, conseguiu detectar as principais demandas para o
acesso aos bens culturais.
12
http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/DadosMercado/2408.xls
13
http://www2.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2010/01/projeto-15-28jan10-web.pdf

299

V V
que os produtos. Por sua vez, esses podem ser feitos em qualquer lugar do mundo, graças a
relações trabalhistas mais frágeis e liberalização do comércio. 14 Desta forma, os indivíduos
passam a consumir marcas e não produtos, ou seja, consomem tudo aquilo que a marca pode
remeter a estilos de vida, signos culturais ou até mesmo uma hierarquia social, levando ao que
Melo Neto (2003, p. 43) chama de “reforço da imagem corporativa”. Desta forma, as marcas
se pautam na exploração da mão de obra em troca de lucros inimagináveis, a partir de uma
perspectiva mundial, aumentando as diferenças sociais e diminuindo as opções culturais, já
que se busca uma cultura mundializada.
Associado a isto, Kellner (2001) percebe como os produtos culturais são vistos como
mercadoria e que possuem uma capacidade industrial, organizado com base no modelo de
produção de massa. É valorizar a cultura comercial e seus produtos como mercadorias a fim
de atingir o lucro, sem se preocupar com o mérito cultural. Muitos projetos incentivados,
como as produções dos filmes Tropa de Elite 1 e 2, são produzidos por empresas gigantescas
que estão interessadas na acumulação de capital, colocando como tema central a grande
audiência. A produção Tropa de Elite 2 teve uma receita da venda de ingressos de R$
103.461.153,7415 , trazendo um altíssimo nível de audiência para o projeto. Neste caso é o
momento em que a mercadoria (o filme associado as diferentes marcas) ocupou totalmente a
vida social (DEBORD, 1997). E nesse sentido, o produto cultural se torna mercadoria para
atingir um grande número de consumidores.
Em certa medida, esse produto cultural, esse filme incentivado através de grandes
parcerias com empresas de comunicação “demonstra(m) quem tem poder e quem não tem,
quem pode exercer força e violência, e quem não” (KELLNER, 2001), passando a dominar a
vida cotidiana dos brasileiros, já que esteve em diferentes veículos de comunicação. Desta
forma, "os processos de comunicação ocupam a cada dia um lugar mais estratégico em nossa
sociedade, já que, com a informação-matéria-prima, situam-se até mesmo no espaço da
produção e não só no da circulação" (BARBERO, 1997, p. 282). É com esta valorização dos
veículos de comunicação (leia-se: plano de comunicação), que os projetos culturais
incentivados ganham espaço junto aos patrocinadores, tornando-se ferramenta estratégica de
negociação. Ou seja, “vence” o projeto que mais benefícios midiáticos espontâneos trouxer
para o patrocinador.

14
A autora afirma que em 1997asiáticos trabalhavam no Equador, produzindo para o Canadá por dois doláres ao
dia. Era possível encontra no Sumatra mão de obra infantil e mão de obra semi-escrava no Vietnã.
15
http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/DadosMercado/2408.xls

300

V V
Sem uma efetiva regulamentação e profissionalização da área de Captação de
Recursos tanto do lado do patrocinador como patrocinado, a área cultural só tende a perder
força e notoriedade no mercado brasileiro. Weyne ressalta de forma ampliada a importância
do profissional, que pode ser representado por um produtor cultural, área ainda em
construção.
Além das técnicas de gestão, o produtor cultural deve ter ainda habilidades
relacionais e visão sistêmica, ao ter que assegurar todas as conexões
necessárias à realização de seus projetos, conciliando interesses, pessoas e
cenários em prol da mobilização dos recursos necessários à execução de suas
propostas. O exercício da produção cultural apresenta características
complexas, inerentes à função de dar forma e administrar bens materiais e
imateriais, desde a subjetividade e peculiaridades inerentes ao processo
criativo, até a gestão de fornecedores e serviços de uma ampla cadeia
produtiva em um ambiente de recursos financeiros (quase sempre) escassos.
(WEYNE, 2014, p. 75).

No site Cultura e Mercado16, Lucimara Letelier, coordenadora do grupo de cultura da


Associação Brasileira de Captação de Recursos e Diretora Assistente de Artes do British
Council Brasil afirma como se consolidou a profissão de captador de recursos no mundo,
mais conhecida como “profissionais de desenvolvimento”.

O perfil de captação de recursos em diversas partes do mundo, conta


Lucimara, está mais relacionado a estruturas internas das organizações
culturais e sociais do que ao perfil terceirizado e comissionado que
conhecemos aqui no Brasil. Dentro desse modelo, os captadores , muitas
vezes denominados “profissionais de desenvolvimento”, são parte da
estratégia de longo prazo das organizações e trabalham a captação conectada
às ações em todas as áreas (Marketing, Comunicação, Finanças,
Programação e curadoria etc) da instituição. (LETELIER, Lucimara. Cultura
e mercado, em 05 de junho de 2012).

Seria interessante olharmos para esses exemplos no mundo como uma estratégia a ser
seguida para que se valorize todo o processo de construção do projeto cultural dentro da
empresa, combatendo interesses tortuosos. As práticas ilícitas, os superfaturamentos e a
ausência de preocupação com o público (uma vez que a obra já foi toda subsidiada com
recursos públicos), escândalos e fraudes fazem da área de captação de recursos um terreno
esquivo, pouco debatido com profundidade na sociedade.
Em meio aos relatos de desvio de dinheiro público, a ética é um campo caro à área de
captação de recursos. O filme Chatô, de Guilherme Fontes, também foi denunciado por
irregularidades na utilização do dinheiro captado. O filme O Guarani de Norma Negell
apresentou notas fiscais falsas para justificar os R$ 2,5 milhões gastos na produção. O

16
http://www.culturaemercado.com.br/agenda/captador-de-recursos-deve-ter-visao-do-todo-e-codigo-de-etica/

301

V V
Tribunal de Contas da União investigou a prestação de contas da diretora e de fato encontrou
duas notas fiscais de empresas fantasmas (MARSON, 2009, p.135-136).
Para Cortella17, a ética possui relação com o “que se aplica a um grupo” e entender
que a relatividade das nossas escolhas pode mudar nossas atitudes de acordo com o que é
entendido por aquele grupo. Como por exemplo, o quanto se destinará a porcentagem do
captador de recursos a um projeto captado, ainda que para isso exista um teto visto nas leis.
Esta relatividade pode ser transformada em relativismo diante das nossas escolhas. Segundo
ele, “relativismo é achar que vale qualquer coisa”. Em nosso caso, vale o uso de notas falsas,
desvios de verbas públicas ou até mesmo ter um projeto aprovado pelo Ministério da Cultura,
contendo erros comprometedores de execução18. O autor (2014, p.73) explica que esses
processos podem fazer parte da vida coletiva: “A corrupção (...) passou num determinado
momento a ser percebido como normal, isto é, fazendo parte da norma da vida coletiva, e
hoje é entendida como comum; portanto é critério de frequência”, levando a uma omissão e
permissividade do Estado, da sociedade e do Mercado.
Neste raciocínio, Ministério da Cultura, Guilherme Fontes e Norma Bengell fizeram
seu relativismo, achando que vale qualquer preço para ter um projeto aprovado e captado por
meio de renúncias fiscais, a isso o autor chamou de “fratura ética”, ou seja, “cada um tem um
preço e aceitar que paguem é uma escolha”.
19
Para encerramos esta parte, recorremos a Profa. Dra. María Rosa Palazón Mayoral
que descreve que a prática revolucionária “aspira uma ética, aspira viver bem com e para os
outros em instituições justas. Isto supõe a mudança das circunstâncias sociais e do próprio ser
humano.” É com esta afirmativa que buscamos o fortalecimento do campo da captação de
recursos para que possamos ter profissionais mais qualificados e promover a diversidade do
audiovisual no país.

Considerações finais:
Acreditamos que a diversidade cultural, a desconcentração dos recursos, a
preocupação além dos retornos midiáticos e de marketing e uma releitura da regulamentação e
profissionalização do captador de recursos nas leis de incentivo à cultura, só ocorrerão a

17
http://www.cpflcultura.com.br/wp/2014/06/02/etica-e-vergonha-na-cara-com-mario-sergio-cortella-e-clovis-de-barros-
filho/
18
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,desvirtuamento-da-lei-rouanet-,1078579,0.htm;
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/fundacao-sarney-suspeita-corrupcao. Ver também: 02 de agosto de 2009, Jornal O
Globo, Matutina, O País, página 3.
19
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/marxispt/cap. 13.doc

302

V V
partir de uma ação conjunta de captadores de recursos, marcas, patrocinados e Estado, por
meio da Ética.

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305

V V
POLÍTICAS CULTURAIS PARA CIDADES MAIS CRIATIVAS NO MERCOSUL:
UMA ANÁLISE DA PARADIPLOMACIA E COOPERAÇÃO DESCENTRALIZADA
NA REDE MERCOCIDADES
Cássia Camila Cavalheiro Fernandes1
Maria de Fátima Bento Ribeiro2

RESUMO: O objetivo desse trabalho é apresentar as políticas culturais da Rede


Mercocidades em prol de Cidades mais Criativas no Mercosul. A princípio mostraremos a
trajetória das cidades como atores subnacionais no sistema internacional apontando aspectos
históricos e políticos que percorrem a noção de funcionamento da ordem internacional.
Discorre introdutoriamente sobre conceitos de Paradiplomacia e Cooperação Descentralizada
como mecanismos de internacionalização das cidades e aborda o tema Cidades Criativas
como estratégia para cidades mais inclusivas, democráticas e que respeitem as diversidades
culturais.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais, Cidades Criativas, Paradiplomacia, Cooperação


Descentralizada, Rede Mercocidades.

1. INTRODUÇÃO
Visando à promoção do desenvolvimento local integrado e endógeno, com ampla
participação da sociedade, os processos de renovação urbana estão dando origem a novos
contornos e estratégias de articulação. Iniciativas de redescoberta dos lugares diante da
dinâmica global-local requerem novas ações que ressignificam os espaços urbanos para além
de seus elementos materiais, dando maior atenção aos artefatos imateriais, às atividades
culturais, às formas comunitárias ricas de simbolismo, como fatores propulsores das
economias locais. O futuro aponta a necessidade de criar espaços urbanos que agregam
atividades sociais e artísticas, setores culturais e governo numa relação simbiótica.
Frente a essa nova perspectiva de cidades que podem se constituir num espaço de
integração, colaboração e inclusão social, preservando sua autenticidade e identidade e
mantendo sua história viva na paisagem e na memória, é preciso identificar as iniciativas e
ações dos atores subnacionais em prol do atendimento das demandas locais.
Considerando importante o papel da paradiplomacia e da cooperação descentralizada
no processo de integração, inclusão e desenvolvimento local, esse trabalho propõe apresentar

1
Graduada em Bacharel em Relações Internacionais e Mestranda em Patrimônio Cultural e Memória Social na
Universidade Federal de Pelotas; email: cassiafcavalheiro@gmail.com
2
Doutora em História, docente nos cursos de Bacharel em Relações Internacionais e Mestrado em Patrimônio
Cultural e Memória Social pela Universidade Federal de Pelotas; email: mfbento@gmail.com

306

V V
as iniciativas paradiplomáticas e de cooperação descentralizada da Rede Mercocidades em
direção a tornar mais criativas as cidades da rede.
Para isso, esse trabalho se dividira, basicamente, em três linhas de análise.
Primeiramente será feita uma contextualização no nível das relações internacionais a fim de
identificar e apontar a trajetória de internacionalização das cidades; seguindo de uma
abordagem conceitual sobre paradiplomacia e cooperação descentralizada; e finalizando com
o estudo sobre o processo paradiplomático e de cooperação descentralizada em prol de
cidades mais criativas na Rede Mercocidades.

2. INTERNACIONALIZAÇÃO DAS CIDADES


O Estudo das Relações Internacionais, independente da corrente teórica utilizada,
implica a presença do Estado como ator do Sistema Internacional. Na maioria das abordagens,
o Estado é considerado o ator principal no exercício das relações com outros Estados e/ou
organizações internacionais. Não é novidade o predomínio da perspectiva realista no
entendimento e manobra das Relações Internacionais (ROCHA, 2002). Nessa linha de
pensamento, as relações entre os atores internacionais acontecem, dentro de um cenário
anárquico, para manter a segurança dos Estados. A anarquia, considerada como um estado de
caos,é um pressuposto da maioria das teorias internacionais. O caos, nesse sentido, seria o
motivador das violências. A ordem, responsável pela segurança.
Nessa conjuntura, os Estados se relacionam em prol da sua segurança através dos
seguintes mecanismos: forças armadas, acordos e contratos, declarações de guerra, e tratado
de paz. A segurança, aqui, é apontada como o interesse maior dos Estados. Assim como os
Estados não são iguais entre si, o que consideram ser sua segurança também varia de Estado
para Estado. Dentro da lógica das relações internacionais, os interesses dos Estados são
promovidos através de instrumentos de poder: hard power, militar e econômico; e soft power,
não-coercitivos.
Entendendo que as politicas econômicas mundiais adotadas no final do século XIX,
relacionadas à geração de problemas sistêmicos (aumento das desigualdades e da exclusão
social) impulsionados pela globalização, são as principais causas motivadoras da inserção
atual dos atores subnacionais no sistema internacional, é importante apontar que o caráter
econômico do Estado, seu hard power, com o auge do liberalismo econômico e ascensão do
imperialismo, foi extremamente influenciado pelas corporações empresariais. O resultado:
Primeira Guerra Mundial, da Crise de 1929 e da Segunda Guerra Mundial.

307

V V
Após a Segunda Guerra Mundial, acreditava-se que as políticas de bem-estar social,
como uma continuidade da evolução dos direitos civis e políticos na era moderna, só
poderiam ser garantidas se fossem administradas pelos Estados. Nesse cenário, os
mecanismos de soft power sofreram um processo de intensificação na conjuntura
internacional, e os regimes e instituições internacionais assumem um papel importante em
termos de cooperação e diplomacia entre os Estados para a promoção da paz. É nessa época
que surgem iniciativas como a ONU, FMI e GATT².
Com o fim da Guerra Fria e a consequente vitória ideológica do capitalismo, a
globalização, embora já existente desde o final da Segunda Guerra Mundial, passou a dominar
o cenário internacional. Com o aumenta das desigualdades e da exclusão social geradas pelo
processo de globalização hegemônica impulsionada pela lógica neoliberal do mercado
internacional, a soberania do Estado-Nação - considerado até então o principal ator do sistema
internacional – passa a ser debatida. Destaca-se, nesse cenário, a participação importante de
novos atores na ordem mundial, tais como organizações não governamentais (ONG’s),
empresas transnacionais, organizações internacionais e governos subnacionais
(departamentos, províncias, regiões, Estados-membros, municípios, etc.).
Com a globalização, as regiões passaram a possuir maior autonomia de ação e
procurar maneiras de se integrar com outras regiões para solucionar problemas internos que
não eram atendidos satisfatoriamente pelo Estado Nacional e necessitem da ajuda de outros
atores (HOCKING, 2004). As regiões, sob o impulso de todas as transformações no sistema
mundial e pressões dos governos e elites empresariais, organizaram-se rumo à
competitividade na economia global estabelecendo redes de cooperação. Com o
fortalecimento do poder regulador do Estado, houve as resistências empresariais em contribuir
para o custeio da implementação dos direitos civis e políticos da população, por isso e outros
motivos, diversas demandas coletivas deixaram de ser atendidas, principalmente em países
muito extensos e populosos. Dessa forma a emergência de regiões como atores no cenário
internacional ajuda a demonstrar um novo padrão da política mundial, caracterizada por
ligações que transpassam as fronteiras do nacional, ressaltando a importância de vários níveis
de agência existentes em uma política internacional mais participativa (HOCKING, 2004).
É diante disso que os poderes subnacionais de muitos países passaram a assumir, além
do cuidado de interesses genéricos das pessoas nessas esferas, um maior número de
responsabilidades relacionadas à distribuição dos direitos fundamentais dos cidadãos, como

308

V V
educação, moradia, saúde, lazer, entre outros. Com o crescente processo de urbanização
mundial, as cidades ampliaram sua participação na gestão de políticas culturais e sociais.
A partir dos estudos das Relações Internacionais, as cidades são reconhecidas como
atores internacionais na medida em que atuam condicionadas à esfera governamental. A
inserção desse novo ator no sistema internacional pode-se dar através de processos chamados
de paradiplomacia e cooperação descentralizada. Dessa forma, as cidades reproduzem a lógica
de funcionamento político estratégico dos Estados, criando organizações internacionais como
a rede Eurocity e Mercocidades ou firmando acordos e contratos bilaterais com outras
cidades.
Na América Latina ocorreram dois fatos importantes para a internacionalização das
cidades a partir da década de 1980: o fim das ditaduras militares que governavam a maioria
dos países; e a mudança do modelo econômico de substituição de importações para o modelo
neoliberal. A exclusão social se acentuou durante esse período de transição por conta da
dívida externa, reestruturação produtiva e privatização de importantes atividades econômicas
que estavam sob gestão estatal. A alternativa do modelo neoliberal era a do Estado mínimo e
economia de mercado.
Dentro da lógica internacional, os governos locais estão interessados em cooperação
técnica no exterior, empréstimos de instituições financeiras internacionais e também em
influenciar os regimes internacionais e políticas das organizações internacionais que afetam as
cidades de alguma maneira. Esses interesses são buscados diretamente ou através de
associações e redes de cidades, pelo instrumento de soft power.

3.PARADIPLOMACIA E COOPERAÇÃO DESCENTRALIZADA


O prefixo 'para' da palavra “Paradiplomacia” significa proximidade e/ou semelhança.
De acordo com Cervo (pg. 30, 2008), Diplomacia significa a ação externa dos governos
expressa em objetivos, valores e padrões de conduta vinculados a uma agenda de
compromissos que visam o alcance de determinados interesses. Dessa forma, Paradiplomacia,
em outras palavras, seria uma Diplomacia paralela a do Estado, atuando em determinados
segmentos e efetivada por diferentes atores. Segundo a Confederação Nacional dos
Municípios (2008), o termo Paradiplomacia foi elaborado pelo basco Panayotis Soldatos, em
1990, para definir as atividades diplomáticas realizadas entre os atores subnacionais de
diferentes países. A Cooperação Descentralizada está relacionada à paradiplomacia, pois se
trata de uma cooperação que não é efetivada pelos auspícios do Estado.

309

V V
A Paradiplomacia pode atuar como agenda propulsora e paralela de desenvolvimento
regional. A cooperação descentralizada, dependendo de sua formulação e efetivação pode ser
tornar uma inovação as políticas públicas de determinados governos locais. Tal cooperação
descentralizada do ponto de vista do público local pode assumir um conteúdo específico: i)
focaliza-se em problemas locais e territoriais; ii) oferece uma competência e um know-how
que se pode transmitir ou intercambiar diretamente desde as instituições locais, sem recorrer a
gabinetes de consultoria ou especialistas externos; iii) tem condições de estabelecer
cooperação a médio e longo prazos, isto porque, geralmente, são utilizados recursos próprios,
onde os atores estabelecem as modalidades de cooperação; iv) pode promover uma relação
mais ampla, uma vez que inclui outros agentes sociais locais; v) pode garantir uma relação
mais direta com os cidadãos, o que implica em uma relação mais participativa. Na sua
dimensão política, a cooperação descentralizada pública pode ter como objetivo o
fortalecimento da dimensão local nas agendas nacionais ou regionais. A cooperação
descentralizada pode representar um elemento de pressão para uma maior descentralização do
Estado (competências e recursos). Além disso, pode representar uma forma de interferir nas
agendas de integração regional.
Ao contrário da política externa dos Estados, a paradiplomacia não pretende
representar os interesses nacionais ou a ser abrangente na sua proposta e dimensão. Os
governos subnacionais não são governos soberanos capazes de estabelecer a sua definição do
"interesse nacional" (HOCKING, 2004) e de perseguí-lo de maneira unificada e coerente. Os
governos subnacionais, dessa forma, podem aumentar sua influencia globalizante através do
crescente envolvimento em feiras internacionais, no processo de geminação de cidades, na
participação de redes internacionais que estimulem a aproximação de entidades subnacionais.
A especificidade da cooperação descentralizada encontra-se na natureza híbrida dos
governos locais, pois desfrutam de legitimidade enquanto instâncias político-administrativas
mais próximas aos cidadãos, dispõem de competências e são responsáveis por serviços
públicos básicos, e podem operar em várias redes de inter-relações simultaneamente,
nacionais e internacionais. Entre suas modalidades, estão as cidades-irmãs, sua forma mais
tradicional; as redes de cooperação, que podem adquirir um caráter temático-setorial ou
geográfico; e a cooperação multinível, que conta com a participação de várias instâncias:
nacional, regional ou internacional. As alianças, sejam bi ou multilaterais, abordam conteúdos
diversos que podem variar entre uma dimensão mais técnica e uma dimensão mais político-
estratégica (ALVAREZ, 2009).

310

V V
Neste sentido, Oliveira aponta que:
[...] a cooperação descentralizada é um mecanismo para influenciar o
desenvolvimento global através de conexões internacionais entre
comunidades locais do sul e do norte do mundo, em uma dialética
construtiva com os governos centrais e com as organizações internacionais
[...] Sua vantagem principal é a descentralização de ações, reunindo diversos
agentes, numa rede de gestão mais democrática, criativa, flexível e mais
próxima dos problemas cotidianos das populações excluídas, sobretudo, dos
países pobres. (OLIVEIRA, 2007, p. 401).

3.1 PARADIPLOMACIA E COOPERAÇÃO DESCENTRALIZADA NO


MERCOSUL: REDE MERCOCIDADES
No início de 1990 aconteceu o processo de construção do Mercado Comum do Sul,
composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai que decidiram unir esforços para
consolidar uma frente pró blocos comerciais. Em sua criação, o bloco, instituído formalmente
através do Tratado de Assunção (1991), pautou a livre circulação de bens, serviços e fatores
produtivos entre os países membros, utilizando-se da estratégia de eliminação das restrições
tarifárias, adoção de uma tarifa externa comum, coordenação de políticas macroeconômicas e
das legislações (TRATADO DE ASSUNÇÃO MERCOSUL, 2011).
Assim como o sistema internacional de forma geral, o Mercosul, também não se limita
aos Estados nacionais que o compõem, fazendo com que existam iniciativas de
paradiplomacia e de cooperação descentralizada nesse ambiente, inclusive dentro da própria
estrutura institucional do processo de integração regional.
Deve-se atentar para o potencial do ativismo dos atores subnacionais no cenário
internacional, em particular no caso sul-americano, articulando este movimento com as
prioridades da política externa do país, no esforço de consolidar o Mercosul e proporcionar
maior integração entre os Estados da América do Sul. Dessa forma, o estabelecimento de
parcerias, redes e instâncias de cooperação regional, por parte dos municípios e estados,
durante a última década, constitui um arcabouço institucional e político valioso que, se
fortalecido, ampliará a participação dos governos subnacionais nas diversas escalas do
processo de integração regional.
Segundo Marcela Fonseca e Deisy Ventura (2012), ao longo do processo de
desenvolvimento institucional do Mercosul foram criados órgãos3 pautados pela ideia de
inserir uma relativa participação dos governos subnacionais no seu processo decisório. O
primeiro passo nesse sentido foi a criação da Rede Mercocidades, em março de 1995.

3
Reunião Especializada de Municípios e Intendências do Mercosul (REMI); Foro Consultivo de Municípios,
Estados Federados, Províncias e Departamento do Mercosul (FCCR).

311

V V
A Mercocidades é uma rede independente de cooperação descentralizada horizontal,
formada por cidades dos Estados Partes e de Estados associados do Mercosul e que atua na
aproximação dos governos subnacionais, promovendo o contato e o intercâmbio de
informações entre elas, com o objetivo de proporcionar-lhes a oportunidade de serem ouvidas
no processo decisório do bloco. A criação desse órgão, que passou a integrar a estrutura
institucional do bloco de forma permanente, representou o cumprimento do primeiro objetivo
da Rede Mercocidades, que defendia a ideia de que o processo de integração regional do
Mercosul deveria ir além dos governos centrais, agregando também os municípios enquanto
entidades políticas descentralizadas, pois são eles quem mantém um contato mais direto com
a vida cotidiana dos povos.
Foi em novembro de 1995 a celebração I Cúpula da Rede Mercocidades que resultou
na assinatura da Ata de Fundação da Rede e apontou a criação de um Conselho que seria
composto pelos chefes de governos municipais das cidades pertencentes à Rede; o estímulo
ao reconhecimento desta entidade na estrutura do Mercosul e a criação das Unidades
Técnicas,que, mais tarde, serão chamadas de Unidades Temáticas (Acta de Asunción, I
Reunión Cumbre de Mercocidades, 1995).
Além dessas instâncias, a Rede funciona com: a Secretaria Executiva; e a Comissão
Diretiva. As Unidades Temáticas (UTs) estão a cargo de cidades dos países pertencentes ao
Mercosul com responsabilidade de desenvolver e coordenar os temas de interesse comum,
dando prioridade a alguns temas, entre eles: cultura, turismo, planejamento urbano e
desenvolvimento social. As UTs têm a responsabilidade de coordenar temas e desenvolver
políticas públicas comuns entre as cidades-membro da Rede, promovendo reuniões, pesquisa
e divulgação de experiências bem sucedidas (MERCOCIDADES, 2011). O objetivo
estratégico da rede é o de se estabelecer como interlocutora do processo de construção do
Mercosul. Com mais de 200 cidades do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile,
a rede Mercocidades foi a principal responsável pela criação do Foro Consultivo de
Munícipios, Estados Federados, Províncias e Departamentos no âmbito do Mercosul.

MERCOSUL, CULTURA E CIDADES


Nas últimas décadas, a cultura tem ganhado destaque nas agendas internacionais de
atores públicos principalmente no que se refere ao planejamento urbano e desenvolvimento
econômico. Nessa perspectiva, a cultura deixa de ser um fator neutro e passar a ser parte
decisiva na gestão de cidades, que passa por nova transformação para tentar se adequar à

312

V V
realidade das produções imateriais. Desse modo, as transformações espaciais ultrapassam as
dimensões físico-territoriais e passam a estar relacionadas mais diretamente com aspectos das
culturas locais.
É uma realidade a conexão das cidades no sistema internacional e entender as relações
internacionais das cidades no âmbito do fomento à cultura como estratégia de integração,
principalmente do Mercosul, é essencial para identificar as demandas e problemáticas
relacionadas às questões locais. Albino Rubim aponta que o advento da cultura em outras
esferas da vida em sociedade, não significa o desaparecimento da cultura enquanto um campo
social específico: "na contemporaneidade, a cultura comparece como um campo social
singular e, de modo simultâneo, perpassa tranversalmente todas as outras esferas societárias,
como figura quase onipresente" (RUBIM, 2009, p 148).
Na condição de "recurso" (YÚDICE, 2004), capaz de acionar políticas voltadas para a
promoção da inclusão social, para a requalificação de centros urbanos, para estimular a
geração de emprego e renda, etc., a cultura tem sido garantida na agenda de instituições
governamentais, agências multilaterais, bancos de desenvolvimento e organizações não-
governamentais. O trabalho rumo ao desenvolvimento local deve ser construído mais
democraticamente possível, e as cidades, nesse cenário, são vistas como espaços que agregam
e possibilitam maior participação dos cidadãos, afinal, agir localmente é agir globalmente.
Há algumas teses integracionistas que defendem que deveria caber à cultura um papel
importante na consolidação do Mercosul. No Tratado de Assunção (1991) não se fez
referência a ela, nem à educação, ao desenvolvimento cientifico e tecnológico ou às indústrias
culturais. Nele predominaram os objetivos de natureza comercial e sua principal meta foi a
constituição, no menor prazo possível, de um mercado comum.
Atualmente é possível notar que a cultura vem tendo destaque no bloco e o patrimônio
cultural4 dos países já tem sido utilizado para construir pontes entre seus povos, relações de
confiança e estimular o diálogo. Os cidadãos do Mercosul conhecem superficialmente as
culturas de seus próprios países e desconhecem, quase totalmente, os patrimônios histórico,
material e intangível de seus vizinhos, por isso a necessidade de adoção de políticas
especificas para sanar essas demandas.

4
Em 2012 a Ponte Internacional Barão de Mauá, que liga o Brasil ao Uruguai, nas cidades de Jaguarão e Rio
Branco, é o primeiro bem binacional reconhecido como Patrimônio Cultural pelos países do MERCOSUL. O
reconhecimento internacional foi aprovado durante a VII Reunião da Comissão do Patrimônio Cultural do
MERCOSUL (CPC).

313

V V
A cultura é um dos pilares principais das prioridades temáticas de 2013 e 2104 da
Rede Mercocidades. As prioridades temáticas do mercocidades são traçadas, na maioria das
vezes, de dois em dois anos através de reuniões com representantes das cidades que compõem
a rede (MERCOCIDADES, 2011).

4.1 CIDADES CRIATIVAS


A relação entre cultura e cidade, nem de longe, é uma peculiaridade do século XXI, no
entanto a cultura deixou de ser uma contrapartida, “instrumento neutro de práticas
mercadológicas”, e passou a ser parte decisiva no planejamento urbano. Dessa relação a
história urbana evidencia que as estruturas, formas e imagens da cidade se adequam às
transformações de ordem econômica e social. Após aradical transformação pela qual as
cidades passaram no período da industrialização/urbanização, adequando-se às novas
condições de produção material, atualmente, as cidades parecem passar por novo ciclo de
renovação, mas agora para se adequarem à produção imaterial, pautada nos aspectos culturais
locais.
Charles Landry foi o primeiro autor a usar o termo “cidade criativa” em 1995 na obra
The Creative City (A Cidade Criativa). A criatividade, nessa época, já era encarada de modo
multidisciplinar, em uma expansão sem limites, abrangendo agora todos os setores da cidade.
Landry atribuiu papel crucial à cultura como parte de uma agenda de inclusão social e por seu
impacto em setores que parecem estar alheios ao campo cultural. Para o autor, é necessário
repensar o papel das cidades, seus recursos e como o planejamento urbano funciona.
Para Landry, as cidades criativas possuem alguns traços característicos: valorização
dos recursos culturais; correlação entre recursos culturais e potencial de desenvolvimento
econômico; políticas públicas transdisciplinares; maior participação cidadã; existência de
incentivos à criatividade; infraestrutura criativa (hard) e estado mental favorável à
criatividade (soft), que promovem as ideias, manifestações e busca de soluções criativas em
toda a sociedade e economia.
Nesse sentido surge o estudo e o fomento de Cidades Criativas, aquelas que
surpreendem, que atiçam a curiosidade, o questionamento, o pensamento alternativo e, com
isso, a busca de soluções. De acordo com Ana Carla Reis (2012), em uma cidade criativa,
independentemente de sua história, condição socioeconômica e tamanho, há uma prevalência
de três elementos: Inovações, Conexões e Cultura.

314

V V
As inovações são consideradas como a aplicação da criatividade para a solução de
problemas ou à antecipação de oportunidades. No aspecto das Cidades Criativas, as inovações
não se limitam ao caráter tecnológico, mas também podem ser inovações sociais; culturais e
ambientais, por exemplo. As conexões se dão na dimensão histórica, geográfica, de
governança, e entre local e global. A cultura se insere na cidade criativa por seu conteúdo
cultural: produtos, serviços, patrimônio (material e imaterial) e manifestações de caráter
único; pelos setores culturais; ao agregar valor a setores tradicionais e ao formar um ambiente
criativo, pela convivência de diversidades e manifestações.

4.2 MERCOCIDADES E CIDADES MAIS CRIATVAS


As prioridades temáticas de 2013 e 201455 definidas pela Rede Mercocidades apontam
políticas culturais rumo à cidades mais criativas ao introduzir um plano de ações enfatizando
a transversalidade como eixo principal. Dentro das atividades dessas experiências,
observamos de maneira implícita a apreensão do incentivo à cidades mais criativas, através do
fomento à inovação, cultura e conexão. Desenvolvimento sustentável é um dos compromissos
da rede que destaca o papel das cidades no alcance do desenvolvimento urbano sustentável
através de cidades mais inclusivas e da governança regional (DOCUMENTO
REFERENCIAL DO MERCOCIDADES, 2013).
A Cultura é incorporada como o 4º pilar de desenvolvimento sustentável da rede, pois
a Mercocidades acredita que é com as identidades e diferenças locais que o verdadeiro
reconhecimento da cidadania pode ser atingido. No âmbito internacional, a rede entende que é
necessário reforçar a voz da CGLU - Cidades e Governos Locais Unidos, para defender os
interesses dos governos locais. A organização mundial Cidades e Governos Locais Unidos
(CGLU) adotou a Agenda 21 da cultura como um documento de referência dos seus
programas em cultura e assumiu um papel de coordenação do processo posterior à sua
aprovação. A Comissão de cultura de CGLU é o ponto de encontro de cidades, governos
locais e redes que colocam a cultura no centro de seus processos de desenvolvimento.
A Agenda 216 da cultura é o primeiro documento, com vocação mundial, que aposta
por estabelecer as bases de um compromisso das cidades e dos governos locais para o
desenvolvimento cultural.

5
As prioridades temáticas de 2013-2014 presentes no documento referencial do mercocidades são: integração
fronteiriça, desenvolvimento sustentável e participação cidadã.
6
Site da Agenda 21: http://www.agenda21culture.net/index.php/ca.

315

V V
Um dos compromissos da Agenda 21 é gerar instâncias de coordenação entre as
políticas culturais e educativas, impulsando o fomento da criatividade e da sensibilidade e a
relação entre as expressões culturais do território e o sistema educativo. Também propõem a
ampliação da capacidade criativa de todos os cidadãos. Além disso, para a Agenda 21 as
cidades e os espaços locais são ambientes privilegiados da elaboração cultural em constante
evolução e constituem os âmbitos da diversidade criativa, onde a perspectiva do encontro de
tudo aquilo que é diferente e distinto torna possível o desenvolvimento humano integral. O
diálogo entre identidade e diversidade, indivíduo e coletividade, revela-se como a ferramenta
necessária para garantir tanto uma cidadania cultural planetária, como a sobrevivência da
diversidade linguística e o desenvolvimento das culturas (AGENDA 21).
Já na conjuntura latino-americana, junto ao Mercosul e Unasul, a Rede Mercocidades
pretende reforçar a voz da rede e identificar estratégias para incidir politicamente a FLACMA
- Federação Latino americana de Cidades, Municípios e Associação de Governos Locais, para
representar suas cidades membros no diálogo com outras redes internacionais de cidades.
Além dessas ações, a rede Mercocidades busca o fortalecimento da participação cidadã
através dos processos de integraçãoregional mediante a redefinição do conceito de fronteiras,
aproximando as cidades vizinhas, colocando-as como caminhos para a livre circulação de
pessoas, bens, serviços e capitais nos países participantes deste processo (DOCUMENTO
REFERENCIAL DO MERCOCIDADES, 2013).
Na promoção da cooperação descentralizada, é preciso gestionar apoio direto aos
governos locais para financiar programas de cooperação internacional centrados no
fortalecimento das capacidades dos governos locais, na promoção da democracia local e no
apoio à descentralização. A articulação de parcerias e de projetos coletivos permite atingir as
principais metas da Rede, como a integração fronteiriça, a livre circulação de pessoas, a
cidadania regional e a inclusão social. A 18ª Reunião de Cúpula da Rede Mercocidades7,
realizou em agosto de 2014 o Seminário Internacional Governos Locais e a Cooperação, que
reuniu representantes de cidades do Uruguai, Argentina, Brasil, Chile e Venezuela. Temas
como a integração fronteiriça, inclusão produtiva, cidadania regional, comunicação,
capacitação, investigação, intercâmbio de experiências e a integralidade das políticas públicas
fazem parte de uma pauta mais ampla de discussão de políticas públicas e de projetos

7
A 18ª Cúpula da Rede Mercocidades reuniu lideres locais para debates e troca de experiências em Porto Alegre
durante os dias 27, 28 e 29 de novembro de 2013. Também estiveram presentes urbanistas, líderes
governamentais, gestores públicos, especialistas em gestão urbana, ONGs Internacionais e acadêmicos da
sociedade sul-americana para discutirem o processo de integração regional sob a perspectiva das cidades da
América do Sul. Fonte: http://wordpress.procempa.com.br/mercociudades.

316

V V
regionais dentro das Unidades Temáticas da Rede Mercocidades, assim como a inovação e a
economia criativa, por exemplo, que estão na agenda política atual e que devem ter
aprofundada a sua análise no âmbito da Mercocidades.
Em outubro de 2014, junto com a Assembleia Geral da Rede Interlocal e a Reunião da
Agenda 21 da Cultura, a Unidade Temática de Cultura da Rede Mercocidades fez parte do
Seminário Cultura local e desenvolvimento, onde foram introduzidos temas como: “Direitos
culturais e cultura para a paz”; “Cultura e desenvolvimento” e “Participação, criatividade
cidadã e integração social”.
A temática Economia Criativa não é nova na Rede Mercocidades. Em 2010, "Cultura e
Economia Criativa: Ferramentas para a construção de uma agenda para as Mercocidades" foi
o tema que reuniu, no Rio de Janeiro, profissionais de diversos países da América Latina para
discutir como a criatividade pode ser usada para inovar o setor cultural nas cidades do
Mercosul - programa de integração econômica composto pela Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai.
O seminário buscou reforçar a perspectiva cultural regional como uma estratégia de
desenvolvimento econômico e social das cidades e contribuir para a profissionalização dos
atores ligados às atividades culturais. Os debates procuraram chamar atenção de gestores
públicos e da sociedade sobre a importância da Cultura como estratégia de desenvolvimento
econômico e social nas cidades, além de valorizar a perspectiva regional – da América Latina
- e oferecer informações que interessem aos gestores da cultura no âmbito das Mercocidades –
cidades do Mercosul. Inserida na programação do evento, estava a temática Cidades Criativas,
com Ana Carla Fonseca. Em novembro de 2011, a troca de experiências baseadas em
estratégicas políticas para o desenvolvimento da economia criativa na América do Sul esteve
entre as metas do Fórum sobre Cultura, Descentralização e Economia Criativa e sobre
Direitos Culturais e Diversidade, realizado em Montevidéu, capital do Uruguai. O evento
mostrou a vontade política da América do Sul de construir um discurso consistente que seja
representativo dos interesses desse continente, e a necessidade de aprofundar o debate sobre
direitos culturais. Além de apresentar os conceitos de cultura, descentralização e economia
criativa aplicados às políticas públicas, outra meta do Fórum foi a de estabelecer um diálogo
entre participantes e agentes de setores públicos e privados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

317

V V
A realidade atual aponta para o gradual aumento da participação dos atores
subnacionais no sistema internacional. O pensamento sobre as RI não mais comportarão a
ausência desses atores ao considerar as dinâmicas globais, sejam elas políticas, ambientais,
econômicas e/ou culturais. É preciso acompanhar o movimento natural desses atores rumo ao
empoderamento da agenda e das demandas internacionais, ao mesmo tempo tem-se que
considerar a existência da mediação dos Estados nesse processo. É plausível que as cidades
tendem à ingressar na lógica estratégica da política global para a busca de resolução de
problemas que afetam as localidades. É preciso uma rede de mobilização para que os
problemas sistêmicos sejam contornados, resolvidos ou prevenidos. Cada vez mais a
sociedade civil tem reivindicado a participação cidadã nas nos espaços de debate e construção
sobre a sociedade em geral. Entre os anos de 2010 e 2013 os espaços urbanos de diversos
países do globo foram ocupados por pessoas insatisfeitas com o rumo das decisões e políticas
nacionais e internacionais.
Redes de Cidades como a Rede Mercocidades são instancias que podem aproximar os
cidadãos das atividades e encaminhamentos internacionais, afinal, as pessoas vivem nas
cidades e não na União. Cidades mais inclusivas, democráticas, conectadas, inovadoras, que
respeitem a diversidade cultural são demandas comuns entre diversas comunidades. A cultura
é apontada como um dos principais fatores de desenvolvimento atualmente, e as Cidades
Criativas surgem como conceito que pretende responder a demanda por essa nova dinâmica.
Diversas cidades do mundo inteiro estão se mobilizando em rede para poder
compartilhar demandas, informações, inovações e cultura, um dos exemplos é a Rede
EuroCity que inspirou a criação da Mercocidades. A formação de redes é um processo cada
vez mais presente no entendimento do mundo inteiro. A Rede Mercocidades, especificamente,
com o objetivo de influenciar na integração do Mercosul, aponta algumas ações em direção à
cidades mais criativas, mas é preciso ampliar os espaços de participação popular para a
discussão das reais necessidades locais. O tema Cidades Criativas, pautado na noção de
Economia Criativa, deve ser projetado e repensado a partir da dinâmica local considerando as
identidades, os movimentos, e a cultura local de cada cidade. Para tanto é necessário que os
governos locais visualizem, identifiquem e integrem as forças locais compostas por pessoas
de diversas realidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Ed.
Saraiva, 2008.

318

V V
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diplomacia federativa além das fronteiras do mundo ocidental. In: VIGEVANI, Tullo;
WANDERLEY, Luiz Eduardo; BARRETO, M. Inês e MARIANO, P. (orgs). A dimensão subnacional
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FONSECA, Marcela Garcia; VENTURA, Deisy. La participación de los entes subnacionalesenla


política exterior de Brasil y enlosprocesos de integración regional. Revista CIDOB
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et al. (Org). A Dimensão subnacional e as relações internacionais. São Paulo: Ed. UNESP: EDUC,
2004.

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de 2014.

PRADO, Henrique Sartori de Almeida. (2013), Inserção dos atores subnacionais no processo de
integração regional: o caso do Mercosul . Dourados-MS: Ed. UFGD.

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relações internacionais: analises e experiências brasileiras. São Paulo: Desatino, 2009.

RUBIM, Antonio Albino Canelas, CALABRE, Lia. Políticas e diversidade cultural no Brasil. Revista
Observatório Itaú Cultural – OIC, São Paulo, n.8, p.35-40, abr./jun. 2009.

RODRIGUES, Thiago. (Orgs), Política e conflitos internacionais: interrogações sobre o presente. Rio
de Janeiro/São Paulo: Revan/Fasm, 2004.

VIGEVANI, Tullo; WANDERLEY; Luis Eduardo. (Orgs). A dimensão subnacional e as relações


internacionais. São Paulo: Educ/Editora da Unesp/Edusc, 2004.

YÚDICE, George. A conveniência da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

SITES VISITADOS

AGENDA 21: http://www.agenda21culture.net/index.php/ca/ (acessado no dia 20/10/2014)


MERCOSUL: http://www.mercosul.gov.br/ (acessado no dia 07/10/2014)
Rede Mercocidades: http://www.mercociudades.org/pt-br (acessado no dia 07/10/2014)

319

V V
MÚSICAS, TERRITÓRIOS E IDENTIDADES: POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA A MUSICA E SEU ALCANCE NA GESTÃO PÚBLICA DA CULTURA
NA BAHIA ATUAL
Cassio Leonardo Nobre de Souza Lima1

RESUMO: O Estado da Bahia vem se destacando nacionalmente em termos de


democratização do acesso a bens culturais. Como reflexo, as políticas públicas para o setor da
Música na Bahia tem seguido diretrizes prioritárias, tais como o estímulo a diversidade de
expressões musicais e a territorialidade do alcance de suas ações, embasadas sempre pelo
conceito de "territórios de identidade". Este artigo aborda as implicações do entendimento
amplificado dos conceitos de "território" e "identidade" na atualidade do campo da música,
tanto do ponto de vista dos gestores quanto por parte dos segmentos que demandam
resultados a partir de tais políticas. Como exemplos, analisamos o impacto cultural da
implementação de ações de fomento para o setor da música, via editais e demais ações de
fomento Música na Bahia, e sua difusão a níveis territorial, nacional e internacional.

PALAVRAS-CHAVE: Territorialidade; Identidade; Políticas Culturais para a Música;


Gestão Cultural.

Introdução
Desde 2007, a Secretaria de Planejamento do Governo do Estado da Bahia, que dentre
outras competências é responsável pelas Políticas de Desenvolvimento Territorial e Regional,
estabeleceu uma divisão do Estado em 26 unidades geográficas chamadas "territórios de
identidade". Posteriormente, esse número foi ampliado para 27 territórios. Essa noção de
organização do espaço geopolítico baseada principalmente em referenciais indicadores de
desenvolvimento econômico, foi prontamente aceita como entendimento geral das demais
secretarias do Governo do Estado da Bahia. Dentre elas, a Secretaria de Cultura do Governo
do Estado da Bahia (SecultBA), também criada em 2007, e a Fundação Cultural do Estado da
Bahia (FUNCEB), entidade vinculada àquela Secretaria e responsável pelo fomento e
desenvolvimento de políticas culturais para as Artes na Bahia. Somente a partir da criação
desta Secretaria, o Estado da Bahia passou a destacar-se nacionalmente, em termos de
democratização do acesso a bens culturais.
Assim como nas demais áreas da cultura, as políticas públicas para o setor da Música
na Bahia tem seguido diretrizes prioritárias, tais como o estímulo a diversidade de expressões
1
Músico, Etnomusicólogo, Produtor. Bacharel em História (UFBA, 2001), Mestre em Música e
Etnomusicologia (UFBA, 2008), Doutorando em Música e Etnomusicologia (UFBA). Desde 2011, é
Coordenador de Música da Fundação Cultural do Estado da Bahia/Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

320

V V
e a territorialidade do alcance de suas ações, dentre outras. Estas diretrizes são também
posicionamentos políticos e ideológicos alinhados com o pensamento de desenvolvimento de
uma política de Estado de modo mais amplo, fundamentais para a garantia deste alcance a
nível estadual.

Territórios de identidades na Bahia


A dimensão geográfica de um Estado como a Bahia e suas 27 divisões em territórios
de identidade dificulta o reconhecimento dos setores responsáveis pela gestão pública,
tornando necessária a divisão e categorização de agrupamentos comuns. O conceito de
"território de identidade" traz em si a junção de dois conceitos que levam, cada qual em
separado, a entendimentos distintos. São, a grosso modo, "unidades" geográficas que
concentram as "diversidades" culturais, comuns a determinadas regiões. Mas, se por um lado
a noção de "território" parte de uma delimitação geográfica, que busca uma concentração de
elementos que convergem para um senso de unidade, por outro lado a noção de "identidade" é
extremamente ampla, apontado para uma diversidade de concepções distintas.
Esses conceitos vem sendo assimilados de modo recente pelos agentes de cultura que
atuam em cada região do Estado, dando suporte a construção de um discurso mais consciente
de que a Cultura da Bahia é muito mais do que a Cultura da capital, Salvador. Obviamente, a
expansão do diálogo político na área da Cultura leva a uma crescente demanda por maior
estímulo e melhores condições de trabalhos nos diversos segmentos da Cultura - e,
marcadamente, na Música - gerando também a expectativa de maior retorno "territorial" de
resultados por parte das políticas propostas.
Contudo, através de muitas falas pronunciadas por representantes dos diversos
segmentos da Música em inúmeros foros públicos de consulta e diálogo, percebe-se que
sentimento de pertencimento territorial se confunde com o sentimento de compartilhamento
de identidades culturais. Como se, para ter uma identidade fosse necessário pertencer
fisicamente a um território de identidade. Neste sentido, as implicações do entendimento
amplificado dos conceitos de "território" e "identidade" geram uma certa "contramão", tanto
do ponto de vista dos gestores quanto por parte dos segmentos que demandam resultados a
partir de tais políticas culturais. Talvez os conceitos sejam imaturos demais para o
entendimento de regiões e populações inteiras acostumadas a décadas de negligências no

321

V V
campo cultural. Ou então o propósito de estabelecer uma associação entre territórios físicos e
identidades culturais não seja de todo modo aplicável facilmente ao dinâmico campo cultural.

Políticas Culturais para a Música da Bahia


Ainda é pequeno o impacto cultural da implementação de ações de fomento para o
setor da música, via editais, seleções públicas e demais ações de apoio à difusão musical, e
sua abrangência a níveis regional, nacional e internacional. Contudo, é inegável que a
perspectiva de desenvolvimento cultural a nível territorial vem sendo o motor de grandes
transformações nos diversos segmentos da música da Bahia. Dentre os exemplos de políticas
públicas implementadas no segmento da música nas gestões recentes da Secretaria de Cultura
do Estado da Bahia, cuja abordagem de alcance territorial é prioritária, podemos citar: o
Programa de Apoio às Filarmônicas do Estado da Bahia; o Mapa Musical da Bahia; o
Programa Bahia Music Export; e o Edital Setorial de Música do Fundo de Cultura do Estado
da Bahia.

a. Programa de Apoio às Filarmônicas do Estado da Bahia


As filarmônicas desempenham um papel fundamental na cultura musical da Bahia,
sempre presentes em eventos cívicos, religiosos e festas populares da maioria das cidades do
Estado. Contribuem também para a formação e profissionalização musical de cidadãos e sua
inserção no mercado de trabalho local e regional. Além disso, as sedes de muitas filarmônicas
conservam exemplos da memória musical grafada da Bahia, em partituras de obras de
compositores que fizeram história em cada região. As filarmônicas representam, enfim, um
significativo meio de inclusão cultural e social em todo o Estado da Bahia.
Lançado em 2009, o Programa de Apoio às Filarmônicas do Estado da Bahia objetiva
incentivar e valorizar a importante tradição musical das filarmônicas do estado. Em sua
primeira fase, mapeou 183 filarmônicas localizadas em todos os 27 Territórios de Identidade
baianos, sediadas em 170 municípios, de um total de 417 que compõem todo o Estado. Foi
concedido apoio para 87 delas, distribuindo R$ 4 milhões para aquisição de 1.262
instrumentos musicais e mais de seis mil acessórios, fardamentos e equipamentos de
informática, além de conserto em mais de 500 instrumentos. Esta ação teve impacto direto
sobre 74 escolas de música, 4.219 alunos e 2.440 músicos de toda a Bahia.

322

V V
O Governo do Estado da Bahia, através da sua Secretaria de Cultura e da FUNCEB,
garantiram através do apoio da CAIXA Econômica Federal recursos para retomar as ações do
Programa entre os anos de 2013-2015. Nesta nova etapa, o Programa vai apoiar
aproximadamente 40 filarmônicas, com instrumentos, fardamentos e demais aparatos
técnicos. Todas as bandas cadastradas, sem exceção, serão beneficiadas também com
"Jornadas de Qualificação Musical" para mestres, músicos e regentes de diversas cidades no
interior do Estado, além da publicação de um catálogo das filarmônicas da Bahia; encontros
de filarmônicas, criação de um site das filarmônicas e lançamento de um DVD didático como
resultado das jornadas, no intuito de alcançar públicos e regiões diversas, abrangendo a
participação de músicos oriundos de todos os territórios de identidade através dessa inciativa .

b. Mapa Musical da Bahia


O Mapa Musical da Bahia é uma ação da FUNCEB para mapear, reconhecer e
promover a difusão da música produzida por músicos e compositores que atuam nos 417
municípios da Bahia. A iniciativa focaliza na produção musical autoral representativa dos 27
Territórios de Identidade do estado, dos mais diversos estilos e vertentes musicais, e busca
revelar uma diversidade de cenários da produção e difusão musical na Bahia. O projeto vem
suprir uma lacuna de informações acerca da variedade musical da Bahia, estado que apresenta
uma produtividade musical intensa, mas também uma grande demanda de incentivo por parte
de artistas em todos os seus Territórios de Identidade. Assim, a FUNCEB pretende ampliar o
conhecimento sobre os músicos e compositores da Bahia, principalmente os emergentes ou
que ainda não estão inseridos no mercado da música, buscando dar mais visibilidade aos seus
trabalhos autorais. Além de compor um banco de dados online disponível através do Portal
Mapa Musical da Bahia (www.fundacaocultural.ba.gov.br/mapamusical), a iniciativa serve de
base para o planejamento de ações que incentivam o desenvolvimento territorial da música da
Bahia em seus diversos setores.
O Portal Mapa Musical da Bahia é uma plataforma online de difusão da produção
musical autoral da Bahia, onde constam músicas e informações sobre os artistas - indicados
por comissões de críticos e especialistas em música que analisarão todo o material enviado.
Estão disponíveis para audição as músicas inscritas nas chamadas realizadas em 2012 e 2013
indicadas por uma comissão de seleção. Em dois anos de atividades, foram 716 artistas e
1.297 obras cadastradas, em todos os territórios de identidade. O Portal Mapa Musical da
Bahia (www.fundacaocultural.ba.gov.br/mapamusical) funciona, desta maneira, como fonte

323

V V
de informações para pesquisadores, produtores, críticos ou mesmo jornalistas e autores
convidados especialmente pela FUNCEB para apresentar seus olhares críticos sobre a
produção musical baiana. Os desdobramentos do Mapa Musical da Bahia envolvem os
programas veiculados na Educadora FM (107,5), visando à difusão radiofônica dos acervos
mapeados no Portal, bem como a produção de coletâneas musicais sobre as múltiplas
vertentes musicais da Bahia, representadas no Mapa Musical. Também foi realizada em
parceria com a DIMAS (Diretoria de Audiovisual da FUNCEB), uma ação de formação em
audiovisual - quatro oficinas de videoclipes, em quatro cidades baianas - direcionada para
artistas e produtores, no sentido de qualificar a produção de videoclipes do estado.
Em 2014, o Mapa Musical da Bahia foi um dos projetos da FUNCEB selecionados
pelo Edital de Fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura (SNC), promovido pelo
Ministério da Cultura (MinC), para apoiar ações de promoção e incentivo ao desenvolvimento
cultural nos estados brasileiros que já possuem o Sistema Nacional de Cultura implantado,
como é o caso da Bahia. Com este novo aporte de recursos, será possível ampliar o leque de
ações previstas para a divulgação de artistas que fazem parte do Mapa Musical da Bahia,
contemplando além da divulgação via rádios e internet, a realização de Festivais regionais, a
promoção de shows de circulação de artistas entre os diversos territórios de identidade, além
da produção de coletâneas em CD por estilos musicais.

c. Programa Bahia Music Export


O Bahia Music Export, articulado Assessoria de Relações Internacionais da SecultBA
em colaboração com a Coordenação de Música da FUNCEB, faz parte de uma proposta maior
da SecultBA, denominada "Programa de Mobilidade Artística e Cultural", que objetiva
contribuir para o desenvolvimento e a inserção nacional e internacional do setor cultural da
Bahia. Assim, a proposta principal do Bahia Music Export é promover a difusão da música
baiana e a sua inserção profissional no mercado mundial.
Outros objetivos do Bahia Music Export são: agregar produtores e representantes de
artistas e músicos baianos, com o intuito de compartilhar experiências e conhecimentos;
capacitar artistas, grupos artísticos, produtores, agentes e profissionais da cultura; promover
Fóruns e Feiras de Negócios Musicais; lançar produtos culturais promocionais, selecionados
por uma curadoria especializada; fortalecer plataformas, programas e ações de intercâmbio
cultural internacional, desenvolvidas por empreendedores individuais ou coletivos, artistas,
produtores e agentes da cadeia produtiva da música.

324

V V
Através deste Programa, FUNCEB e SecultBA vem lançando, desde 2010, volumes
anuais da coletânea musical "Bahia Music Export", com o intuito de divulgar trabalhos de
destaque no cenário atual da música da Bahia. Estes produtos circulam em importantes feiras
de negócios, festivais mundiais de música, revistas especializadas, entre outros meios,
gerando contatos e articulações entre entidades governamentais e não governamentais, entre
empreendedores e artistas. A partir desta proposta, artistas oriundos de diversas regiões do
Estado da Bahia tiveram a oportunidade de levar o seu trabalho para palcos e platéias
estrangeiras, representando no exterior identidades distintas daquelas mostradas como
estereótipos da música baiana na mídia nacional e internacional.

d. Edital Setorial de Música


Com foco no apoio a propostas das linguagens artísticas, a FUNCEB executa, desde
2012, sete editais setoriais com recursos do Fundo de Cultura da Bahia (FCBA): Artes
Visuais, Audiovisual, Circo, Dança, Literatura, Música e Teatro. Além destes, há o Edital de
Grupos e Coletivos Culturais, que, desde 2014, voltaram a constituir um certame exclusivo
entre os mecanismos de apoio do Governo da Bahia. Estes concursos objetivam estimular a
rede produtiva de cada setor, abrindo possibilidade para a realização de quaisquer tipos de
projetos relacionados à criação, pesquisa, formação, produção, difusão, circulação, memória e
demais ações nas áreas específicas.
O Edital Setorial de Música apoia propostas culturais com o objetivo de estimular os
diversos elos da rede produtiva do setor e ações que dialoguem com outros segmentos e áreas
do conhecimento, tendo como objeto predominante a música. Abrange, por exemplo,
circulação de shows e concertos (regional e/ou nacional); criação, produção e difusão de
registros musicais, com lançamento em formatos de CD, vinil, programas de rádio ou internet
(sites, blogs ou podcasts); criação, produção e difusão de registros musicais em audiovisual,
com lançamento em formatos de DVD, videoclipe, programas de TV, programas para webtv
ou vídeo para a internet; formação e/ou qualificação para artistas, técnicos e agentes da área;
elaboração e difusão de conteúdos didáticos em música; pesquisa artística e crítica sobre
música e suas interfaces, sua memória, acervos e/ou sobre as tradições musicais populares;
atividades continuadas de bandas instrumentais, orquestras, corais e grupos de tradições
musicais populares; realização de seminários, fóruns ou palestras sobre música e suas
interfaces; festivais, mostras, feiras e atividades do gênero; publicação de periódicos ou
revistas que tenham como foco a música; entre outras possibilidades.

325

V V
Em 2014, foram 384 inscritas e 25 selecionadas. Há projetos de Cachoeira e
Maragojipe (ambas do Território de Identidade Recôncavo), Caetité (Território de Identidade
Sertão Produtivo), Conceição do Coité (Território de Identidade Sisal), Feira de Santana
(Território de Identidade Portal do Sertão), Iramaia e Lençóis (Território de Identidade
Chapada Diamantina), Poções e Vitória da Conquista (Território de Identidade Vitória da
Conquista), Salvador (Território de Identidade Metropolitano de Salvador) e Várzea da Roça
(Território de Identidade Bacia do Jacuípe). Dentro do aporte total de R$ 1,5 milhão, as
propostas poderiam ser apresentadas com teto de ate R$ 200 mil. Foram 25 projetos
selecionados. Diante de tamanha concorrência, número que se registra ano a ano para o
Setorial de Música, o processo de seleção foi bastante rigoroso. A verba demandada pelo
somatório de propostas inscritas é da ordem de R$ 30 milhões, com quase metade das
propostas sendo oriundas do interior. O aporte de R$ 1,5 milhão disponível claramente não
comporta a demanda, mas nem por isso a seleção se torna insignificante.
A composição de cada comissão de seleção é, por último, um dos aspectos
fundamentais para delinear melhor este panorama, já que cada membro é escolhido por
representar, de certa forma, um segmento importante. O grupo, de forma diversa e
complementar, observa principalmente os critérios de territorialidade e descentralização dos
recursos, conferindo segurança total na definição do resultado final e da importância deste
para o desenvolvimento dos diversos segmentos da música na Bahia.

Conclusão
Diante de todo esse vasto panorama apresentado, cujo estímulo ao investimento no
fomento e desenvolvimento a diversidade de identidades da Música da Bahia é pautado em
sua maior parte em "revelar" ou "fortalecer" as "identidades territoriais" do Estado, cabe
levantar o seguinte questionamento: em que são diferentes as identidades, umas das outras,
mesmo quando agrupadas em um território comum? Ruben Oliven, nos dá uma pista:
"Todo esse processo de mundialização da cultura, que dá a impressão de
que vivemos em uma aldeia global, acaba repondo a questão da tradição, da
nação e da região. medida que o mundo se torna mais complexo e se
internacionaliza, a questão das diferenças se recoloca e há um intenso
processo de construção de identidades. [...] medida que o mundo fica
menor, torna-se cada vez mais difícil se identificar com categorias tão
genéricas como Europa, mundo, etc. É natural, portanto, que os atores
sociais procurem objetos de identificação mais próximos. Somos todos
cidadãos do mundo na medida em que pertencemos à espécie humana, mas

326

V V
necessitamos de marcos de referência que estejam mais próximos de nós"
(Oliven, 2006).

De fato, equiparar identidades "locais" a identidades "globais" parece ser um reflexo


da imensa complexidade de diversidade a qual estamos expostos na atualidade. E a Música,
por exemplo, foi um dos segmentos artísticos que mais capitaneou esta expansão do alcance
"extra-territorial" das identidades culturais, principalmente a partir do início dos
compartilhamentos digitais de mp3 através da internet.
Dentre as perspectivas que os novos meios de acesso a música trazem para a discussão
em torno do sentimento de pertencimento territorial e identitário na atualidade, a principal é a
de que as identidades, na atualidade, perpassam os limites dos territórios físicos. Através da
construção de territórios virtuais (interação digital), territórios deslocados (imigrações),
intercâmbios culturais temporários, dentre outras formas, temos territórios sobrepostos, onde
as identidades se interpenetram. Desta forma, cabe voltar ao questionamento anterior, no
intuito de tentar justificar os investimentos públicos em territórios baseados semelhanças
culturais entre as populações que ali habitam.
Neste sentido, concluímos que as tentativas de adaptar estratégias de setores analíticos
do Governo, tais como a área de planejamento e desenvolvimento, impõem necessidades que
não correspondem a realidade da cultura. Aqui, territórios são construções políticas. E as
identidades, construções culturais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FUNCEB, 2015. www.funceb.ba.gov.br, acessado em fevereiro de 2015.

OLIVEIRA, Humberto; e PERAFRAN, Mireya E.V., 2013. Território e Identidade, SecultBA

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SECULT, 2015. www.cultura.ba.gov.br, acessado em fevereiro de 2015.

SEPLAN, 2015. www.seplan.ba.gov.br, acessado em fevereiro de 2015.

327

V V
A CONTRIBUIÇÃO DO FUNDO DE INCENTIVO À CULTURA - FUNCULTURA
NO PATRIMÔNIO CULTURAL DE PERNAMBUCO.
Celia Maria Medicis Maranhão de Queiroz Campos 1
Renata Echeverria Martins 2
Terezinha de Jesus Pereira da Silva 3

RESUMO: O Funcultura é um financiamento para proteção e conservação dos patrimônios


materiais e imateriais do Estado. Apesar do crescimento dos valores financiados para as
dezesseis áreas culturais e linguagens o mesmo é alvo de críticas, pois ainda não cobre a
demanda de todos os projetos inscritos. Considerando tal questão o artigo tem como objetivo
analisar a evolução dos recursos na área de patrimônio. Para metodologia de abordagem foi
realizada uma pesquisa exploratória sobre as implantações dos recursos e suas relações com
referenciais teóricos estabelecidos. Como conclusão se constata que: o fundo tem contribuído
com a área ao incentivar a preservação dos bens culturais, a formação em educação
patrimonial e a pesquisa, porém poderia contribuir muito mais se o aporte financeiro fosse
revisto e atualizado.

PALAVRAS-CHAVE: Área de Patrimônio, Funcultura, Pernambuco, Política de cultura,


Produtor cultural.

1 INTRODUÇÃO
Desde a sua criação pela Lei No 12.310, de 19 de dezembro de 2002, o Fundo de
Incentivo à Cultura de Pernambuco – Funcultura vem ampliando o montante de recursos
aplicados às atividades artísticas (Oliveira, 2014, p.12). A proposta de desenvolvimento do
tema “A contribuição do Funcultura de Pernambuco na área de patrimônio cultural” tem
como bases as análises de acompanhamento das atividades da Diretoria de Preservação
Cultural- DPCult, da Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco –
Fundarpe, considerando o recorte temporal de 2007 a 2014.
Conforme Oliveira o sistema de edital e suas implicações legais é alvo de críticas por
parte dos produtores culturais que elaboram projetos para concorrem aos recursos
disponibilizados (Oliveira, 2014, p.12). As críticas de alguns produtores culturais
compreendem: o excesso de burocracia no preenchimento dos formulários, a concentração
dos projetos aprovados ocorrer na Região Metropolitana do Recife, além do montante
1
Professora Doutora, Arquiteta, Gerente de Preservação Cultural – Fundarpe, celiamcampos@gmail.com
2
Mestre, Jornalista, Analista em Gestão de Equipamentos Culturais e Patrimônio – Fundarpe,
renataecheverria@uol.com.br
3
Professora Doutora, Arquiteta, Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE,
terezinha_psilva@hotmail.com

328

V V
disponibilizado ser considerado insuficiente para as questões de preservação do Estado.
Apesar de a crítica ser para todas as áreas de financiamento o artigo fixou como objetivo
analisar a evolução dos recursos na área de patrimônio.
Para desenvolvimento do tema e seu objetivo foram selecionados como estruturação
do artigo os seguintes tópicos: conceituação dos termos; histórico da política de cultura em
PE; executores da política de patrimônio em PE; as legislações de cultura para o patrimônio;
evolução dos investimentos na área de patrimônio e a contribuição do Funcultura do Estado
na área de patrimônio.

2 CONCEITUAÇÃO DOS TERMOS


Para um melhor entendimento do tema foram selecionados os seguintes conceitos:
fundo de incentivo, política pública, política de cultura e patrimônio cultural.
O termo fundo de incentivo corresponde à captação de recursos públicos ou privados
para estimular determinadas áreas ou atividades. No caso do setor público pode compreender
as esferas: federal estadual ou municipal. Na área de finanças, o termo fundo está associado a
“Concentração de recursos de várias procedências para, mediante financiamentos, se
promover a consolidação ou o desenvolvimento de um setor deficitário da atividade pública
ou privada” (Ferreira, 1976, p.663.). Já a palavra incentivo corresponde a estímulo (Ferreira,
1976, p.572).
A política pública pode ser definida como um conjunto de programas, recursos, ações
e atividades desenvolvidas pelas três esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal)
garantidas à sociedade por meio da Carta Magna de 88 (Brasil,s/d.p.1). A constituição de uma
política pública deve ser fruto dos seguintes instrumentos: planejamento; execução;
monitoramento e avaliação, conectados a planos, programas, ações e atividades
(Brasil,s/d.p.1). A formulação de um plano deve fixar “diretrizes, prioridades e objetivos
gerais a serem alcançados em períodos relativamente longos” (Brasil,s/d.p.1). Já os programas
também definem “objetivos gerais e específicos focados em determinado tema, público,
conjunto institucional ou área geográfica” (Brasil,s/d.p.1). As ações “visam o alcance de
determinado objetivo estabelecido pelo Programa, e a atividade, por sua vez, visa dar
concretude à ação” (Brasil,s/d.p.1).
A política de cultura esta assegurada na Constituição de 88 através do Artigo 216A,
por meio do Sistema Nacional de Cultura (Brasil, CF88, Art.216 A). Enquanto em nível
estadual pela Constituição de 1989, o Artigo 197 especifica a responsabilidade do Estado em

329

V V
assegurar a todos “a participação no processo social de cultura”.A Carta Estadual cabe
promover uma participação que leve em conta as particularidades regionais e municipais, ou
seja, realizar uma política pública de cultura interiorizada dentro das especificidades locais.
O termo patrimônio cultural expressa “os múltiplos aspectos de uma cultura de uma
comunidade “(Fundarpe, 2009, p.8). Dentro de um conteúdo plural o patrimônio cultural
abrange os bens de uma herança coletiva e passam a ser importantes ou representativos para a
história e para a identidade de uma coletividade (Fundarpe, 2009, p.8). Tais bens abrangem
elementos materiais e imateriais e sofrem uma dinâmica ao longo do tempo, conforme o
surgimento dos valores e necessidades das diversas gerações.

3 HISTÓRICO DOS FUNDOS DE INCENTIVO E DA POLÍTICA DE


CULTURA EM PERNAMBUCO
A cultura e o mercado das artes movimentam cada vez mais a economia do Brasil. A
diversidade e a demanda de projetos na área cultural são tão grandes que tornam necessárias
novas fontes de financiamento. O mercado cultural brasileiro trabalha hoje, basicamente, com
patrocínios gerados a partir de leis de incentivo ou fundos de incentivo. Sarkovas no artigo
“O incentivo fiscal à cultura no Brasil”, aponta três fontes de financiamentos necessárias:
...o Estado, que tem responsabilidade de fomentar a criação artística
e intelectual, a distribuição do conhecimento, bases do progresso humano;
o investimento social privado, evolução histórica do mecenato, meio
elo qual os cidadãos e instituições privadas tornam-se agentes do
desenvolvimento da sociedade;
o patrocínio empresarial, estratégia de construção de marcas e de
relacionamento com seus públicos, feita por associação com ações de
interesse público (SARKOVAS, 2005, p. 22).

Para entendermos o funcionamento deste sistema de apoio à cultura, diz Sarkovas


(2005), se faz necessário historiar como ele foi inventado. Em 14 de março de 1985, o
senador José Sarney apresentou ao Congresso Nacional um projeto. Em dois de julho de
1986, foi sancionada a Lei 7.505, e em três de outubro do mesmo ano, regulamentada a
chamada Lei Sarney. A partir de então, o incentivo fiscal “domina a agenda cultural do
Brasil”. O incentivo fiscal dava direito ao contribuinte de abater de sua renda doações a
instituições culturais. A lei possibilitava que parte do valor fosse deduzida do imposto de
renda.
Em 1990, o ex-presidente Fernando Collor extinguiu a Lei Sarney. Segundo Sarcovas,
o vácuo político no plano federal gerou o incentivo fiscal em âmbito municipal.

330

V V
Em dezembro de 1990, foi promulgada a Lei Mendonça, em São
Paulo, permitindo dedução parcial dos patrocínios no ISS e no IPTU. A
partir daí, outros municípios brasileiros replicaram o instrumento.
Posteriormente, Acre, Mato Grosso, Paraíba e Rio de Janeiro criaram leis
com dedução no ICMS, estabelecendo um modelo que se propagou por
outros Estados (SARKOVAS, 2005, p. 22).

Em 1991, o novo secretário de cultura de Collor, o sociólogo Sérgio Paulo Rouanet,


instaura, em funcionamento até hoje, o Programa Nacional de Apoio à Cultura, conhecido
como Lei Rouanet. O Programa criava dois outros instrumentos: o FNC (Fundo Nacional de
Cultura) e o FICART (Fundos de Investimento Cultural e Artístico). “O FNC estabelecia o
princípio do fundo público, essencial para fomentar as ações de mérito cultural que não
encontram abrigo no mercado” (SARKOVAS, 2005, p. 22).
As leis de incentivo à cultura (municipais estaduais e federais) recebem verbas
públicas oriundas da isenção de diferentes que impostos que as empresas revertem em
projetos culturais. As leis estaduais e municipais variam de estado para estado e de município
para município. A maior parte delas prevê dedução de impostos dos patrocinadores de
projetos culturais, quando estaduais (ICMS) ou municipais (IPTU ou ISS). Para que os
proponentes possam captar recursos para os seus projetos utilizando os benefícios das Leis de
Incentivo ou Fundos de Incentivo, é necessário que os produtores culturais sejam avaliados
pelas comissões de análise dos projetos, onde os principais pontos analisados são: interesse
público; compatibilidade de custos; capacidade demonstrada pelo gestor do projeto e
atendimento da legislação.
A Lei Estadual de Incentivo à Cultura é um mecanismo de fomento que dispõe sobre
concessão de benefício fiscal para realização de projetos culturais. Em Pernambuco, o
Sistema de Incentivo à Cultura - SIC, que tem o objetivo de estimular e desenvolver as formas
de expressão, os modos de criar e fazer, os processos de preservação e proteção ao patrimônio
cultural do estado, bem como os estudos e métodos de interpretação da realidade cultural, foi
instituído em 1993 (Lei 11.005/93), compreendendo as seguintes áreas:
I - música;
II - Artes cênicas, tais como teatro, circo, ópera, dança, mímica e congêneres;
III - fotografia, cinema e vídeo;
IV - literatura, inclusive de cordel;
V - artes gráficas e artes plásticas;
VI - artesanato e folclore;
VII - pesquisa cultural;
VIII - patrimônio histórico; e
IX - patrimônio artístico (LEI No 11.005/93, Art.1).

331

V V
Na antiga legislação do SIC-PE, os recursos para financiamentos de projetos culturais
eram provenientes de empresas privadas que patrocinavam projetos contemplados nos editais
públicos, mediante a renúncia fiscal pelo Governo de Pernambuco.
Conforme o Edital 2013/2014 e Resolução CD No02/2013 do Funcultura a área de
Patrimônio compreende vinte linhas de ações para: Patrimônio (projeto /obras; salvaguarda
aos patrimônios imateriais; recuperação de acervo de artistas; publicações; programas
radiofônicos e games), Pesquisa com seis linhas de ações (inventários, pesquisas e biografias
histórico-sociológica sobre pessoas ou grupos culturais) e Formação/Capacitação com oito
linhas (educação patrimonial; contação de histórias; cursos e oficinas). (Resolução, 2013, p.
31/35).

4 EXECUTORES DA POLÍTICA DE PATRIMÔNIO EM PERNAMBUCO


Dentro da hierarquia da política de patrimônio do Estado cabe inicialmente à
Secretaria de Cultura e à Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco,
através da Diretoria de Preservação Cultural, traçar o conjunto de programas, recursos, ações
e atividades que integrem as três esferas de governo.
Como representante da esfera federal o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional-Iphan, 5ª Regional executa parte da política pública e procura se integrar tanto com
a Fundarpe/ Diretoria de Preservação Cultural-DPCult, quanto com as prefeituras dos
municípios. Por sua vez, a Secretaria de Cultura via Fundarpe/DPCult põe em prática a
política de patrimônio através de planejamento, financiamento, execução e fiscalização. Tais
ações também são partilhadas com o Conselho Estadual de Cultura.
O incentivo à política de cultura estadual está vinculado aos recursos definidos tanto
pela Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO, quanto pela Lei Orçamentária Anual-LOA, além
de outras fontes de financiamento para a Secretaria de Cultura. No caso específico do Fundo
Pernambucano de Incentivo à Cultura – Funcultura, ligado ao Sistema de Incentivo à Cultura
– SIC, a DPCult auxilia na coordenação do processo de seleção dos projetos inscritos no
Edital, junto aos membros da Comissão Deliberativa, constituída nos termos do artigo 7º, da
Lei 12.310 de 2002, por representantes do Governo do Estado, das instituições culturais e das
entidades representativas dos artistas e produtores culturais. A Comissão Deliberativa é
formada por 15 membros efetivos, com igual número de suplentes, sendo: cinco escolhidos
diretamente pelo Governador, de órgãos do estado; cinco indicados pelas instituições culturais
e cinco, dentre os indicados pelas entidades representativas dos artistas e produtores culturais.

332

V V
Todos os membros da Comissão Deliberativa, salvo seu Presidente, terão mandato de um ano,
sendo renovável por igual período.

5 AS LEGISLAÇÕES DE CULTURA PARA O PATRIMÔNIO


O Funcultura foi instituído pela Lei No 12.310/2002 e alterações e regulamentado pelo
Decreto 25.343/2003 e suas alterações. Porém a lei original que criou o Fundo de Incentivo à
Cultura – FIC representa uma alteração da Lei Estadual No 11.005 / 1993 (ALEPE, 1993,
Art.1º ) . Tal legislação se destaca por ser uma das primeiras surgidas no Brasil.
O incentivo à instituição das leis de apoio à cultura nos estados e municípios veio com
a Lei No 8.313 de 23 de dezembro de 1991, que restabeleceu os princípios da Lei No 7.505 de
2 de julho de 1986, por meio do Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac. Conforme o
Artigo 1º da Lei No 8.313/91 o Pronac tem a função de captar e canalizar recursos para o setor
cultural de modo a:
I - contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno
exercício dos direitos culturais;
II - promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com
valorização de recursos humanos e conteúdos locais;
III - apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos
criadores;
IV - proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e
responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional;
V - salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, fazer e viver da
sociedade brasileira;
VI - preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro;
VII - desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos
ou nações;
VIII - estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal, formadores e
informadores de conhecimento, cultura e memória;
IX - priorizar o produto cultural originário do País (LEI No 8.313/91).

O Sistema de Incentivo a Cultura – SIC, da Lei No 11.005 de 1993, definiu , no Artigo


1º , como objetivo do SIC o estímulo e desenvolvimento das “formas de expressão, os modos
de criar e fazer, os processos de preservação e proteção ao patrimônio cultural do Estado, bem
como os estudos e métodos de interpretação da realidade cultural...” em nove áreas de:
música; artes cênicas (teatro, circo, ópera, dança, mímica,e outros); fotografia, cinema e
vídeo; literatura (cordel); artes gráficas e artes plásticas; artesanato e folclore; pesquisa
cultural; patrimônio histórico e patrimônio artístico.Tais áreas têm sido desdobradas em
outras conforme demandas.

333

V V
A Carta Magna de 88, nos Artigos 215 e 216, apresenta como o Estado garante os
direitos à cultura. O Artigo 215 define que:
O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e difusão das manifestações culturais
(CONSTITUIÇÃO/88).

O Artigo 216 define a abrangência do que pode ser considerado o patrimônio cultural
brasileiro:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, a memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações artísticas, científicas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico (CONSTITUIÇÃO/88).

No parágrafo 1º do referido artigo é ressaltada a necessidade de parceria entre o Poder


Público e a comunidade nas formas de acautelamento e preservação do patrimônio cultural.
Por sua vez, no parágrafo 3º, do Artigo 216, é destacado o incentivo, por meio de lei, para a
produção e o conhecimento de bens e valores culturais.
A Lei Maior tornou obrigatória pelos Órgãos Governamentais e por Instituições de
Direito Privado a realização de ações em benefício e no atendimento de necessidades de
determinadas categorias de pessoas que necessitam, de forma mais direta, a proteção do
Estado, que deverá, por exemplo, promover medidas adequadas para facilitar o acesso de
pessoas com deficiências de qualquer natureza aos edifícios, bens, equipamentos e serviços
públicos ou que embora sejam instituições privadas prestam serviços destinados à
coletividade. Os Artigos 227, § 2º e 224 da CF/88 ressaltam a necessidade da garantia do
acesso aos logradouros,veículos, edifícios e demais espaços públicos às pessoas com
deficiência. A Carta Federal se repete nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas dos
Municípios Brasileiros.
A Política Pública de Acessibilidade se fortaleceu com a entrada em vigor da
Constituição Federal, promulgada em 05/10/1988. Os Editais de 2013/2014 e o 2014/2015
apresentaram os critérios e sistema de pontuação para avaliação dos projetos a serem
apresentados e analisados. Um aspecto relevante destes está na inclusão da acessibilidade para

334

V V
os projetos de todas as áreas. Antes, tal aspecto era considerado como um elemento a mais do
projeto e não como uma exigência legal.
A Instrução Normativa No 1 do Iphan, 2003, o Decreto No 5296/2004 , bem como a
ABNT 9050 complementam diretrizes para as soluções de acessibilidade para todos os
projetos a serem apresentados para o Funcultura.

6 DIAGNÓSTICO DOS INVESTIMENTOS NA ÁREA DE PATRIMÔNIO


Para concorrer aos investimentos do Funcultura para qualquer área se faz necessário
que o candidato se inscreva no Cadastro de Produtor Cultural – CPC e possua um currículo
cultural.
Dentro do recorte temporal fixado entre 2007 e 2014 a Tabela 1 demonstra que os
Produtores têm apresentado um crescente número de participantes inscritos para concorrer em
todas as áreas. Aponta ainda um crescimento constante na quantidade de projetos habilitados
na área de Patrimônio. Por sua vez, o número de projetos aprovados na referida área têm
apresentado comportamento oscilante, bem como os percentuais de projetos aprovados.
Quanto aos recursos disponíveis, utilizados e aprovados na área de Patrimônio a
Tabela 2 demonstra que estes foram crescentes, no período de 2007 a 2011, permanecendo
com os valores inalterados até 2014, e oscilantes em relação aos recursos utilizados. Tais
oscilações ocorreram devido às variações dos valores por linhas de projeto.
O conjunto de projetos inscritos na área de Patrimônio (Patrimônio, Pesquisa e
Formação/Capacitação), expresso pela Tabela 3, apresentou-se crescente em relação aos
recursos disponíveis, porém com oscilação e crescimento em relação aos recursos aprovados
nos dois últimos anos. Por sua vez, a linha de Patrimônio é a que apresenta maiores recursos,
bem como número de projetos aprovados em relação à Pesquisa e à Formação/Capacitação.

335

V V
Tabela 1 – Evolução do número dos Produtores Culturais cadastrados, do número de projetos
habilitados, aprovados e percentual de aprovação em Patrimônio.

Ano Produtores Quantidade de Quantidade de Percentual de


Culturais projetos projetos aprovados em
inscritos no CPC habilitados em aprovados em Patrimônio
Patrimônio Patrimônio

2007 657 09 04 44,4%

2008 1.350 23 13 56,5%

2009 1.958 33 10 30,3%

2010/2011 2.319 46 26 56,2%

2011/2012 2.702 96 33 34,3%

2012/2013 3.299 117 29 24,7%

2013/2014 4.647 126 34 27%

Fonte: FUNCULTURA. Produção dos autores.

Os investimentos disponíveis para as linhas de Patrimônio, sintetizados na Tabela 4,


apresentou-se com valores crescentes até 2012 e constantes entre 2012 e 2014. Ainda na
referida Tabela os investimentos aprovados tiveram valores com comportamentos crescentes,
até 2012 e oscilantes (decrescente e crescente) entre 2013 e 2014. O detalhamento das linhas
de patrimônio teve frequência alternada. Os destaques para as maiores frequências ficaram
para obra/projetos; ações de salvaguarda; publicações/design; games; restauro de acervos
bibliográficos e bens móveis integrados; elaboração de sites; ações de preservação e com
menor frequência programa de rádio.
Os recursos disponíveis para as linhas de Pesquisa, sintetizados na Tabela 5,
apresentaram-se com valores crescentes até 2013 e decrescentes para 2014. Ainda na referida
Tabela os investimentos aprovados tiveram valores com comportamentos crescentes, até 2012
e oscilantes (decrescente e crescente) entre 2013 e 2014. O detalhamento das linhas de
Pesquisa teve oscilação de frequência para a linha de inventário, porém com maior frequência
entre as demais. Já a linha biografia teve comportamento variável entre 2007 a 2014.

336

V V
Tabela 2 – Evolução dos recursos na área de Patrimônio – 2007/2014

Ano Recursos disponíveis em Recursos utilizados em Percentual dos recursos


Patrimônio Patrimônio disponíveis utilizados em
R$ R$ Patrimônio

2007 448.870,56 260.247,13 58%

2008 970.000,00 1.008.730,04 110%

2009 1.480.000,00 1.059.544,51 72%

2010/2011 3.275.000,00 1.748.504,68 53%

2011/ 2012 3.505.000,00 1.855.504,68 53%

2012/2013 3.505.000,00 2.915.152,38 83%

2013/2014 3.505.000,00 3.311.136,64 94%

Fonte: FUNCULTURA. Produção das autoras.

Tabela 3 – Recursos disponíveis e aprovados na área de Patrimônio – 2007/2014

Recursos Recursos aprovados Número de


disponíveis para para a Produção projetos
Patrimônio

Formação
Pesquisa

Ano a Produção Independente incentivados


Independente
Área - Patrimônio Área -
Área -
R$ Patrimônio
Patrimônio R$

2007 448.870,56 292.195,72 03 01 0 04

2008 920.000,00 1.008.730,04 10 01 02 13

2009 1.480.000,00 1.058.544,51 07 02 01 10

2010/2011 3.505.000,00 1.855.504,68 18 05 03 26

2011/2012 3.505.000,00 2.915.152,38 20 09 04 33

2012/2013 3.505.000,00 2.456.111,55 17 05 07 29

2013/2014 3.505.000,00 3.311.136,64 20 08 06 34

TOTAL 16.193.870,56 12.897.375,52 95 31 23 149

Fonte: FUNCULTURA. Produção das autoras.

337

V V
Tabela 4 – Recursos disponíveis e aprovados nas linhas de Patrimônio – 2007/2014

Restauro Acervo Bibliográfico e bens móveis /

Ações de salvaguarda 3 linhas – 10, 11, 12

Publicação/exposição 3 linhas – 13, 14, 15

Games/Aplicativos 3 linha – 20, 21, 23


Obra/projeto 5 linhas – 1, 2, 3, 4, 7

Número de projetos PATRIMÔNIO


Design/Moda 3 linhas – 8, 18, 19
Site e/ou portal 2 linha – 16, 22

Programa de radio 1 linha - 17


Ações preservação 1linha – 9
integrados 2 linhas – 5, 6
Recursos
Recursos
disponíveis aprovados

incentivados
para a para a
Ano Produção Produção
Independente Independente
Patrimônio Patrimônio
R$ R$

2007 330.000,00 260.247,13 01 02 0 0 0 0 0 0 0 03

2008 480.000,00 834.185,42 03 02 02 0 0 03 0 0 0 10

2009 930.000,00 848.997,23 03 02 01 0 01 0 0 0 0 07

2010/2011 2.180.000,00 1.084.992,79 02 0 0 03 03 0 01 03 06 18

2011/2012 2.180.000,00 1.833.884,66 05 0 0 04 02 01 02 04 0 20

2012/2013 2.420.000,00 1.583.034,23 03 0 01 06 03 01 01 02 0 17

2013/2014 2.420.000,00 2.318.205,84 04 01 02 02 03 02 01 03 02 20

TOTAL 10.940.000,00 8.763.547,30 21 07 06 15 12 07 05 12 08 95

Fonte: FUNCULTURA. Produção das autoras.

Os recursos disponíveis para as linhas de Formação/Capacitação, sintetizados na


Tabela 6, apresentaram-se com valores oscilantes entre 2008/2009, crescentes e estáveis entre
2010 e 2013 e decrescentes para 2014. Ainda na referida Tabela os investimentos aprovados
tiveram valores com comportamentos oscilantes. O detalhamento por linhas de
Formação/Capacitação teve maior frequência para a linha de oficinas/cursos; seguida com
frequências iguais por educação patrimonial e contação de histórias. As menores frequências
ficaram para as ações educativas em museus/bibliotecas e campanha de conscientização.

338

V V
Tabela 5 – Recursos disponíveis e aprovados nas linhas de Pesquisa 2007/2014

Inventário 4 linhas – 1,

2 linhas – 5, 6, 7 , 8, 9
Pesquisa / Biografia
Recursos disponíveis Recursos aprovados
Número de
para a Produção para a Produção
Ano projetos de
Independente Independente
Pesquisa
Pesquisa Pesquisa
incentivados
R$ R$

2, 3, 4
2007 120.000,00 31.948,59 0 01 01

2008 360.000,00 97.737,12 01 0 01

2009 440.000,00 159.569,28 02 0 02

2010/2011 780.000,00 651.598,20 01 04 05

2011/2012 780.000,00 891.539,18 07 02 09

2012/2013 780.000,00 546.126,88 03 02 05


2013/2014 680.000,00 698.854,56 05 03 08
TOTAL 3.940.000,00 3.077.400,81 19 12 31
Fonte: FUNCULTURA. Produção das autoras.

Tabela 6 – Recursos disponíveis e aprovados nas linhas de Formação/Capacitação –


2007/2014
Campanha conscientização
Ações educativas museus/

Recursos Recursos
5 linhas – 3, 7, 8, 10, 11

Atividades de mestres
Educação Patrimonial

bibliotecas 1 linha - 4
Contação de história

1 linha– 9

disponíveis aprovados
Cursos,/oficinas
2 linhas – 1, 2

Número de
1 linha - 5

1 linha - 6

para a para a
projetos de
Ano Produção Produção
Formação
Independente Independente
incentivados
Griôs

Formação Formação
R$ R$

2007 165.000,00 - 0 0 0 0 0 - 0

2008 80.000,00 76.807,50 02 0 0 0 0 - 02

2009 110.000,00 49.978,00 0 01 0 0 0 0 01

2010/2011 545.000,00 118.913,69 0 01 0 02 0 0 03

2011/2012 545.000,00 189.728,54 01 01 0 01 0 01 04


2012/2013 545.000,00 326.950,44 02 04 0 01 0 01 08
2013/2014 405.000,00 294.076,24 01 02 01 01 01 01 06

TOTAL 2.395.000,00 1.056.454,41 05 10 01 05 01 03 24


Fonte: FUNCULTURA. Produção das autoras.

339

V V
7 A CONTRIBUIÇÃO DO FUNCULTURA NA ÁREA DE PATRIMÔNIO
A área de patrimônio é a que recebe maior valor de investimento disponível em
relação às demais (Resolução CD 02/2014). O valor de investimento de três milhões,
quinhentos e cinco mil reais (R$ 3.505.000,00) tem uma distribuição de, aproximadamente,
68% para Patrimônio; 20% para Pesquisa e 12% para Formação/Capacitação.
Quanto à efetividade da aplicação dos recursos do Funcultura na área de patrimônio
esta foi comprovada desde que 94,5% dos recursos disponíveis foram utilizados na aprovação
de projetos assim distribuídos: 95,8% das linhas de Patrimônio; 102% das linhas de Pesquisa;
e 72% das linhas de Formação/Capacitação.
O período de 2007 a 2014 demonstra um crescimento dos projetos inscritos,
sinalizando uma maior divulgação e participação dos Produtores Culturais, porém pelo
número de inscritos e com projetos apresentados nos cursos de treinamento do Fundo do
Estado, assim como em editais da área de cultura, Correios, Petrobras, CHESF, Mais Cultura,
entre outros, percebe-se que o número de projetos inscritos ainda é pequeno e, apesar dos
esforços de interiorização o número de aprovações dos projetos ainda está concentrado na
Região Metropolitana.
Outro aspecto que foi observado, ver Tabela 6, indica que se faz necessário ampliar o
número de projetos inscritos e aprovados nas linhas de Formação e Capacitação para garantir
a utilização dos recursos disponibilizados, além de contribuir para a preservação dos bens
culturais do Estado. Percebe-se ainda que a baixa demanda sinaliza para ajustes nos critérios
de formulação da Resolução para diminuir o raio de abrangência das propostas e incentivar
ações em escalas menores. Verifica-se também que pelas criticas ao sistema de formulários e
ao rigor jurídico do Edital / Resolução estes não acompanham a popularidade que se quer
alcançar com a atual formatação científica cobrada nos conteúdos dos mesmos. Tal fato se
constata no volume de propostas não consideradas (Tabela 1), assim, faz-se necessária a
instituição de um sistema prévio de ajustes e correções de modo a viabilizar uma orientação
prévia, para ampliar o número de participantes com projetos dentro das determinações dos
instrumentos exigidos pela legislação, de modo que não se reduza o nível de fiscalização das
prestações de contas dos projetos financiados com o dinheiro público, mas que se aumente o
lado educativo no auxílio do preenchimento dos formulários.
Verifica-se que nos últimos oito anos de aplicação do Fundo houve um incremento de
recursos ao orçamento conforme as Tabelas 2 e 3, assim como a ampliação de novas
conquistas no seu papel de preservação e incentivo à cultura do Estado , como um todo, além

340

V V
da consolidação de normas inclusivas, como a acessibilidade sendo item de exigência e
pontuação na avaliação dos projetos inscritos. Apesar dos aspectos positivos do Fundo na
contribuição com a política de cultura do Estado se constata que a existência das leis e das
informações nas divulgações ainda não têm sido suficientes para a ampliação da participação
das ações de projetos, bem como a inibição do vandalismo nos bens patrimoniais públicos e
privados.
Mesmo com o incremento no aporte financeiro, apresentado nas Tabelas 2 e 3,
verifica-se que o valor de R$ 3.505.000,00 para Patrimônio permaneceu inalterado desde
o Edital de 2010/2011 até hoje, não acompanhando o número crescente de projetos inscritos a
cada ano, impedindo assim, um aumento no número de projetos aprovados. De acordo com a
análise feita por esse artigo, recomenda-se seguir a 3ª Conferência Estadual de Cultura –
2013 que orienta a atualização e correção dos valores, para garantir que a contribuição do
Funcultura na área de patrimônio seja de fato relevante para a preservação dos bens culturais
do estado.
Por fim, constata-se a contribuição do Funcultura na área de patrimônio e
consequentemente, na preservação dos bens materiais e imateriais, embora sua repercussão na
sociedade ainda não tenha impacto significativo no cotidiano das cidades, nem reflexo no
comportamento da população na preservação do patrimônio cultural de Pernambuco.

REFERÊNCIAS

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http://www.cultura.gov.br/documents/10907/963783/Constitui%C3%A7%C3%A3o+Federal+da+Cult
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http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/coea/pncpr/O_que_sao_PoliticasPublicas.pdf.
Acessado em: 27 jan. 2015.

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Pernambuco:materiais e imateriais. Recife: Fundarpe, 2009.

341

V V
OLIVEIRA, Paulo Santos de. O Funcultura e as baratas. Jornal do Commercio.Opinião JC. Recife,
9 de maio de 2014.p.12.

PERNAMBUCO. Constituição do Estado de Pernambuco-1989. Disponível em:


http://www.alepe.pe.gov.br/downloads/legislativo/ConstituicaoEstadual.pdf. Acessado em: 27 jan.
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SARKOVAS, Yacoff. O incentivo fiscal à cultura no Brasil, Revista D’Art, 2005.Disponível em:
http://www.centrocultural.sp.gov.br/revista_dart/.Acessado em: 08 fev. 2015.

342

V V
PONTOS DE CULTURA EM PERNAMBUCO: PONTOS E CONTRAPONTOS
Cesar de Mendonça Pereira1

RESUMO: Este artigo trouxe uma reflexão sobre os Pontos de Cultura de Pernambuco, conveniados à
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). O objetivo é analisar a
situação em que se encontram os Pontos de Cultura em Pernambuco sob a ótica dos respectivos
gestores. Este estudo tomou como base a pesquisa “A estadualização dos Pontos de Cultura no Estado
de Pernambuco” realizada pela Fundação Joaquim Nabuco. Para atender ao objetivo do trabalho,
analisaram-se os depoimentos dos gestores sobre os pontos e contrapontos que retratam o seu
cotidiano. Esse artigo vem reforçar o valor conferido aos Pontos de Cultura junto à sociedade, bem
como subsidiar as diversas instituições que procuram essa iniciativa governamental. Presta-se,
portanto, ao interesse de gestores e pesquisadores em Políticas Públicas Culturais.

PALAVRAS-CHAVE: Pontos de Cultura, Pernambuco, Fundarpe.

INTRODUÇÃO
Este breve estudo tem como base a pesquisa “A estadualização dos Pontos de Cultura
no Estado de Pernambuco” realizada pela Fundação Joaquim Nabuco, cuja pesquisa avaliou
os Pontos de Cultura do Estado de Pernambuco conveniados diretamente pela Fundação do
Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), a fim de subsidiar aqueles que
trabalham com políticas públicas culturais no Estado.
Para analisar os Pontos de Cultura de Pernambuco, registramos os pontos positivos e
negativos dessa Política Pública implementada pela Fundarpe/Ministério da Cultura (MinC).
A elaboração da pesquisa iniciou com a compreensão de políticas públicas como um
conjunto de ações coordenadas com o fim precípuo de atender às necessidades do público.
O trabalho está estruturado em seções. Primeiro discorremos sobre o Programa Mais
Cultura, em que destacamos que os Pontos de Cultura como a principal ação do Programa
Cultura Viva. Em seguida, apresentamos os aspectos metodológicos que nos guiaram à
construção do estudo, seguindo das análises dos dados, para então pontuar as nossas
conclusões.

PERNAMBUCO E O PROGRAMA MAIS CULTURA

1
Doutorando em Ciências da Cultura pela Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro / Vila Real - Portugal;
Analista em Ciência e Tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco; cesar.pereira@fundaj.gov.br

343

V V
Em 4 de outubro de 2007, por meio do Decreto 6.226, o Governo Federal lançou o
Programa Mais Cultura, que sinalizava investimento de 4,7 bilhões na área cultural no
período de 2007 a 2010. O Programa Mais Cultura apresenta três linhas de ação, a saber:
Cultura e Cidadania, Cidade Cultural e Cultura e Renda. Os Pontos de Cultura fazem parte da
linha de ação Cultura e Cidadania, portanto inseridos no Programa Mais Cultura.
Os Pontos de Cultura, principal ação do Programa Cultura Viva, passam a fazer parte
do Programa Mais Cultura2; com isso, os governos estaduais celebram convênio com o
Ministério da Cultura e a partir de processos seletivos por meio de editais devidamente
padronizados para todo o território brasileiro, inicia-se então a estadualização dos Pontos de
Cultura. Uma das exigências do convênio era equilibrar as oportunidades entre os municípios,
através da distribuição dos Pontos em todo o território do Estado. Em Pernambuco, utilizou-se
a divisão, já existente, denominada “Região de Desenvolvimento”.3 Os convênios celebrados
entre o MinC e os Estados são operacionalizados através das Secretarias Estaduais de Cultura,
Fundações de Cultura Estaduais ou subsecretarias; no caso de Pernambuco, o convênio foi
celebrado entre o Minc e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(Fundarpe).
Quanto aos recursos para o funcionamento dos Pontos, os governos estaduais são os
responsáveis pelo repasse de R$ 180.000,00 para um projeto de três anos, sendo realizado em
três parcelas anuais de R$ 60.000,00. Cada parcela deverá ser devidamente comprovada pelo
Ponto de Cultura, como efeito de prestação de contas, para que as demais parcelas sejam
liberadas. Dessa feita se dinamiza a execução da transação orçamentária em benefício dos
Pontos de Cultura, sem as dificuldades apresentadas quando a gestão dos Pontos era realizada
pelo Ministério da Cultura. O recurso de cada parcela pode ser contabilizado sob a forma de
capital e custeio. Isso controla os gastos dos respectivos Pontos. Além disso, divulga-se nos
editais que é de responsabilidade do Ponto de Cultura a aquisição do kit multimídia no valor
de R$ 20.000,00, pelo menos, para implementar a ação Cultura Digital, sendo previamente
comunicado que esse recurso não deve ser utilizado para quaisquer outros tipos de atividades,
inclusive taxas de água, luz e imposto, o que se configura em um diferencial dos editais

2
O programa Mais Cultura, instituído por decreto implementado pelo governo Lula, em 2007, segue as seguintes
diretrizes: a) Contribuir para o acesso à produção de bens culturais; b) Promover a autoestima, o sentimento de
pertencimento e a cidadania; c) Dinamizar os espaços culturais dos municípios; d) Gerar oportunidades de
emprego e renda.
3
A divisão do território de Pernambuco em doze Regiões de Desenvolvimento – RD tem como orientação as
características socioeconômicas e geográficas.

344

V V
geridos pelo MinC, nos quais não constavam essa informação, causando diversos problemas
na prestação de contas.
Ao término do convênio, cabe aos Pontos de Cultura o encaminhamento de um
relatório detalhado, incluindo a prestação de contas final. Para cumprir aos propósitos dos
editais, cada ponto deve apresentar não só os resultados obtidos como também os impactos
socioculturais alcançados. Por fim, realiza-se uma enquete entre a comunidade local para
aferir o grau de satisfação alcançado pelo trabalho realizado pelo respectivo Ponto de Cultura
(Brasil, 2008, p. 9). Verifica-se assim maior facilidade na implementação da política pública
cultural em benefício das comunidades. Os Pontos de Cultura estabelecem a convergência
entre o Estado e a sociedade, e, mediante suas ações, confere autonomia, empoderamento e
protagonismo à comunidade local.
Visando à implementação descentralizada de ações do Programa Mais Cultura, o
Ministério da Cultura firmou acordo de cooperação com o Governo do Estado de
Pernambuco, por intermédio da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(Fundarpe) em 8 de maio de 2008, a qual lançou edital em 30 de junho de 2008, visando à
criação de 10 Pontos de Cultura em cada uma das 12 Regiões de Desenvolvimento (RD) do
Estado, totalizando 120 Pontos de Cultura conveniados diretamente com a Fundarpe com
recursos oriundos do Programa Mais Cultura.
O idealizador dos Pontos de Cultura, Célio Turino, explica como acontece o processo -
“o ministério transfere recursos e são os estados ou municípios de grande porte que lançam
editais e transferem recursos para as entidades, além de fazer o acompanhamento”- e destaca
as muitas vantagens deste novo processo: “o Ponto de Cultura tornar-se política de Estado,
realizada pelos diversos entes federados...; agrega novos recursos... e tornar a seleção e
acompanhamento mais próximos da realidade local” (TURINO, 2009, p. 167).
De acordo com o Edital, as entidades participantes não poderiam visar lucro (entidades
sem fins lucrativos), ser de natureza cultural com atuação autônoma, tais como pessoas
jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que sejam de natureza cultural como
associações civis, fundações privadas, ou organização titulada como Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) e Organizações Sociais (OS), sediadas e com
atuação comprovada, há pelo menos dois anos, na área cultural de Pernambuco. Foram
contempladas na seleção ações continuadas nas áreas de culturas populares, grupos étnicos
culturais, patrimônio material, audiovisual e radiodifusão, culturas digitais, gestão e formação

345

V V
cultural, difusão do conhecimento, pensamento e memória, expressões artísticas, e/ou ações
transversais.
A Fundarpe, após o lançamento do Edital, promoveu uma série de capacitações nas 12
Regiões de Desenvolvimento do Estado com o objetivo de habilitar os indivíduos à
formatação do projeto a ser apresentado. Realizaram 17 módulos, entre os dias 11 de agosto e
23 de setembro de 2008, nos municípios de Afogados da Ingazeira, Araripina, Arcoverde,
Caruaru, Fernando de Noronha, Garanhuns, Limoeiro, Nazaré da Mata, Olinda, Palmares,
Petrolândia, Petrolina, Recife e Salgueiro, alcançando 278 instituições e 621 pessoas. Para a
coordenadora do Programa Mais Cultura da Fundarpe, Martha Figueiredo (2008), "Não
adiantaria somente lançar o edital na rua, mas era preciso também torná-lo conhecido e mais
acessível, através de palestras e oficinas em cada região".
No I Concurso de Seleção para Implementação de Pontos de Cultura do Estado, foram
apresentadas 148 propostas, 76 das quais foram enviadas por grupos da Região Metropolitana
do Recife (RMR). Do total de projetos apresentados, 22 foram desabilitados por apresentarem
problemas na documentação apresentada ou não se enquadrarem no Programa. Em novembro
de 2008 a Fundarpe divulgou a relação dos 126 projetos habilitados e em dezembro
apresentou o resultado final com 81 projetos aprovados. Aconteceu a não assinatura do
convênio com uma instituição neste edital.
Como o Programa previa a implantação de 120 Pontos de Cultura no Estado a
Fundarpe lançou novo Edital em setembro de 2009 para o preenchimento das quarenta vagas
restantes. Nesta versão recente do Edital de Seleção para Implementação de Pontos de Cultura
no Estado de Pernambuco, foram apresentados 161 projetos, 82 foram inabilitados por
apresentarem problemas na análise documental, que segundo o edital é de caráter
eliminatório. Dos 79 projetos habilitados, foram selecionados 50 divulgados em 04 de junho
de 2010. Apesar da previsão de 40 novos Pontos de Cultura, aconteceu uma articulação entre
a Fundarpe e a Representação Regional Nordeste do Ministério da Cultura (RRNE/MinC)
permitindo a inclusão de 10 pontos, o que não foi observado na prática, ou seja, os Pontos
previstos pela articulação Fundarpe/MinC não assinaram o contrato até junho de 2012. Estes
projetos selecionados estão distribuídos nas 12 Regiões de Desenvolvimento do Estado, assim
distribuídos: Região Metropolitana (46), Mata Norte (13), Mata Sul (5), Agreste Central (9),
Agreste Meridional (9), Agreste Setentrional (5), Sertão Central (4), Sertão do Araripe (4),
Sertão do Moxotó (5), Sertão do Pajeú (7), Sertão do São Francisco (9) e Sertão de Itaparica
(3).

346

V V
ASPECTOS METODOLÓGICOS
Este artigo partiu de uma pesquisa descritiva de abordagem qualitativa em que se
tomou como base parte dos resultados da pesquisa sobre os Pontos de Cultura em
Pernambuco realizada pela Fundação Joaquim Nabuco em 2013.
O procedimento que se tomou foi selecionar inicialmente alguns itens do questionário
da pesquisa maior para análise dos depoimentos dos informantes (gestores dos Pontos de
Cultura), com o fim de atender ao propósito deste artigo, que é apresentar a situação em que
se encontram os Pontos de Cultura em Pernambuco sob a ótica dos respectivos gestores.
Do questionário aplicado aos gestores sintetizamos as indagações as quais giravam
sobre a contribuição dos pontos e seu impacto na comunidade, a atuação da Fundarpe, bem
como a motivação para que uma instituição se torne Ponto.

ANALISANDO OS RESULTADOS
Percebemos pelos depoimentos a relevância dos Pontos de Cultura no âmbito
sociocultural e econômico. Os gestores destacaram a contribuição dos pontos de culturas para
a comunidade, que pode ser inferida das seguintes expressões por eles utilizadas, quais sejam:
“elevação da autoestima (...) eles se sentiam mortos e agora se sentem vivos”; “resgate da
cultura local”; “geração de renda”; “tirar o jovem da ociosidade”; “retirou crianças da
condição de vulnerabilidade social”; “mudança para melhor, no comportamento das crianças e
jovens da comunidade”; “deu vida as crianças, aos jovens e, de certa forma, aos pais... à
família de um modo geral”; “fortalecimento da cultura/identidade local”; “fortalecimento do
protagonismo juvenil”; “depoimentos de pais indicam a mudança de comportamento dos
jovens para melhor”; “reconhecimento por parte do Estado, do fazer cultural local”; “o jovem
como agente multiplicador: o jovem recebe a capacitação e tem que repassar para a sua
comunidade”; “fez com que o município valorizasse a sua identidade cultural”;
“empoderamento dos jovens”; “ressignificou o sentido da comunidade: fomos vistos sem ser
pelo lado da marginalidade”; “mudança de olhar”; “tirar o estigma da violência e do tráfico de
drogas da comunidade”; “inserir pessoas em espaços que antes não figuravam”.
Diante de tanta demonstração de positividade em relação aos Pontos de Cultura, pode-
se verificar o reconhecimento dos entrevistados quanto à sua importância não somente no
âmbito econômico, como também no aspecto sociocultural.

347

V V
Quanto ao impacto dos Pontos de Cultura na comunidade, os gestores destacaram
estas alternativas: “maior credibilidade aos Pontos de Cultura”; “empoderamento dos grupos
trabalhados”; “fortalecimento institucional”; “mudanças no comportamento dos jovens e dos
hábitos culturais das comunidades”; “reconhecimento dos trabalhos dos Pontos” e “resgate
dos indivíduos em situação de vulnerabilidade”, “Mudança comportamental nos jovens”;
“Processo de alteridade, a juventude está mais confiante”; “Elevação da autoestima dos jovens
da região”; “Conscientizar a comunidade que somos capazes de conseguir algo”. De acordo
com essas opiniões, observa-se que os Pontos de Cultura têm um papel fundamental de
empoderamento comunitário, em especial junto aos jovens.
Cabe registrar mais algumas alternativas sugeridas pelos coordenadores, referentes
aos impactos causados pelos Pontos de Culturas: “Movimentou a cena cultural do município,
nós temos uma cidade rica em artistas e o Ponto proporcionou o conhecimento desses
artistas”; “Articular as manifestações culturais locais para um amadurecimento do fazer
cultural”; “Reconhecimento por parte dos poderes públicos do trabalho existente”;
“Aumentou o censo crítico da comunidade, criticar o que não estava correto”; “Os
beneficiados se sentiram vivos, os olhos deles brilharam”.
Alguns depoimentos nos chamaram a atenção durante a pesquisa empírica: “Perdi três
crianças para as pedras4”, referindo-se a três adolescentes que sucumbiram por conta do uso
do crack; “Recuperação de crianças em risco social” e “Resgate de vidas” são depoimentos
marcantes, sobretudo o primeiro em que uma coordenadora lamenta ter perdido integrantes de
seu Ponto para uma das drogas mais violentas. Isso mostra a pertinência da criação de
políticas públicas culturais, a exemplo dos Pontos de Cultura, para que haja redução da
exposição de jovens às mazelas contemporâneas.
Quanto à atuação da Fundarpe pontuamos a seguir as dificuldades apresentadas pelos
entrevistados na gestão dos Pontos e suas expectativas em relação a uma atuação proativa da
Fundarpe junto aos Pontos de Cultura.
Entre as principais dificuldades que enfrentam na gestão dos Pontos, os entrevistados
destacaram: “excesso de exigências jurídico-legais”; “falta de orientação da Fundarpe”; “a
comunidade cobra a continuidade das ações, ficando o Ponto de mãos atadas esperando a boa
vontade da Fundarpe”; “a demora existente entre a análise de uma prestação de conta e a
liberação da parcela seguinte ocasiona a quebra do ritmo de trabalho”; “a Fundarpe não tem

4
Forma como o crack, subproduto da cocaína, é conhecido popularmente.

348

V V
equipe para dar encaminhamento aos processos, as questões dos Pontos parecem ficar em
último lugar nas prioridades”.
Outro sério problema apresentado tem relação com o procedimento de compra de
material, como efetuar uma compra, em 2012, de um produto orçado no momento da
elaboração da proposta ao edital, em 2008, quando não existe a possibilidade de reajuste.
Seguem outros depoimentos relevantes: “Os participantes do Ponto não tinham
experiência em gestão cultural e cometeram uma série de erros na prestação de conta e tudo
indica que a Fundarpe extraviou a prestação de conta entregue”; “temos que dividir a
responsabilidade no atraso de recursos com a Fundarpe. Nós sabemos a nossa arte do
bordado, a burocracia nós não entendemos”. “O Programa está cheio de detalhes
desnecessários, foi um copia e cola do MinC para a Fundarpe e não consertaram nada”.
A partir desses depoimentos entende-se que os referidos coordenadores admitem a
fragilidade existente, mas consideram que tal dificuldade seria facilmente contornada com
uma capacitação eficiente. Sobre os detalhes no Programa, o coordenador destacou a imensa
falha cometida pelo convênio celebrado entre Fundarpe e MinC.
Tais dificuldades já apareceram desde a época em que os Pontos de Cultura estavam
ligados diretamente ao MinC. Pensava-se que com a estadualização dos Pontos essas
dificuldades fossem suprimidas. Como, no entanto, acabar com os problemas se nada foi feito
no sentido de extingui-los? O MinC tinha conhecimento dos empecilhos existentes,
detectados na pesquisa realizada no decorrer dos anos de 2007 e 2008 pelo Ipea e Fundaj e
com os resultados publicados em 20105. Ainda assim deram continuidade ao Programa sem os
devidos ajustes.
Outra dificuldade apontada pelos gestores foi com relação aos impactos causados pelo
atraso no pagamento dos recursos. Em face dos atrasos nos recursos, alguns dos
coordenadores optaram por manter as atividades dos Pontos de Cultura normalmente. Outros
afirmaram que o atraso trouxe desmotivação, frustração e desmobilização. Foi citada ainda a
defasagem do valor dos equipamentos a serem adquiridos pelos Pontos e o enfraquecimento
das atividades. São apresentadas a seguir outras respostas que demonstram a insatisfação com
o atraso dos recursos: “abalou a credibilidade”; “gerou expectativa nos alunos, instrutores e,
de repente, para tudo”; “criou expectativa na comunidade”; “desmotivação dos mestres”;
“interrupção do desenvolvimento emocional dos alunos”; “descontinuidade das atividades dos

5
Cf. Silva e Araújo: 2010

349

V V
Pontos de Cultura”; “causou desconfiança na comunidade com relação aos integrantes do
grupo”, entre outras.
Um fato que merece destaque é a quebra de confiança da comunidade com relação
aos coordenadores dos Pontos que são lideranças locais. Os integrantes da comunidade não
têm a percepção de que a culpa da interrupção dos trabalhos não se deve integralmente aos
coordenadores e sim à Fundarpe. Um depoimento que chamou atenção foi o de um
coordenador que afirmou que não tinha condições de comprar nenhum objeto para a sua
residência com recursos próprios, que os vizinhos o acusavam de ter comprado uma cadeira
de balanço com o dinheiro do Ponto e que o coordenador estava roubando.
Como se pode absorver das impressões dos coordenadores, as críticas relacionadas à
Fundarpe são constantes: falhas de comunicação, ausência da instituição gestora do Programa
e de capacitação. Cabe destacar um depoimento que demonstra a dificuldade da Fundarpe em
gerir o processo: “A Fundarpe nunca ultrapassou a cidade de Arcoverde, que é a porta de
entrada do Sertão... nunca esteve na região, a não ser quando tem algum Festival. Fora isso,
para ver os Pontos de perto, nunca veio”.
Diante dessas dificuldades, os gestores apresentam suas expectativas para uma melhor
atuação da Fundarpe: “Cursos para treinar equipe”; “Envio de equipe da Fundarpe para
assessoria na gestão”; “necessidade de uma maior presença por parte da Fundarpe”;
“treinamento para as prestações de conta”; “liberação de verba para contratação de
funcionário fixo nos Pontos”; “aumento do número de funcionários que atendem aos Pontos
na Fundarpe”; “capacitação para a utilização da verba disponibilizada”; “maior
acompanhamento dos projetos”; “auxílio na divulgação daquilo que está sendo produzido
pelos Pontos”; “agilizar a resposta das dúvidas apresentadas pelos Pontos”; “cumprir o que
está no contrato: As pessoas correram atrás para aprender, não houve acomodação”;
“acompanhar o projeto”; “treinar para o processo de prestação de conta”; “maior aproximação
com os Pontos”.
Há uma constante reclamação dos coordenadores com relação à demora da Fundarpe
em responder às demandas dos Pontos, devido ao número pequeno de servidores que
trabalham em atendimento aos Pontos. No contrato celebrado entre as partes existe uma
cláusula prevendo a capacitação para a gestão dos Pontos, tal treinamento nunca aconteceu. A
informação que os coordenadores passaram foi da existência de oficinas dentro da
programação do Festival Pernambuco Nação Cultural. Há um consenso que esse tipo de
capacitação não atente às necessidades dos Pontos por acontecer durante um período festivo e

350

V V
ser bastante superficial. O que se pode inferir é a necessidade de uma ação mais pontual da
parte da Fundarpe, ou seja, um atendimento personalizado, pois cada Ponto tem suas
especificidades.
Durante o trabalho de campo, foi uma constante ouvir dos coordenadores que a
Fundarpe em momento algum esteve presente: “na assinatura do contrato nos foi prometido
visitas técnicas, orientação e fiscalização, até hoje esperamos”.
Observe-se um depoimento que chamou a atenção: “Vejo a Fundarpe em uma situação
de ser ajudada e não de ajudar ninguém”. Com isso refletimos sobre a situação a que chegou a
relação entre a Fundarpe e Pontos de Cultura, que contrasta com a filosofia do Programa
Cultura Viva.
Em relação à motivação que levou as instituições a tornarem-se Pontos de Cultura
foram pontuadas pelos gestores nas entrevistas: “busca de recursos para as atividades”;
“ampliação de atividades já realizadas”; “preservar / valorizar memórias”; “retirar jovens das
drogas e prostituição”; “valorização da cultura local”; “fugir da cultura do palco, uma ação
voltada para a base”; “tirar crianças e jovens da rua”; “a experiência bem sucedidas de pontos
da região”; “dar um caráter mais técnico às ações desenvolvidas”; “fortalecer manifestações
existentes”; “empoderamento popular”; “consolidar as atividades desenvolvidas”; “resgatar
vidas através da música”; “reconhecimento do nosso fazer”.
Conforme já pontuado, foram muitas as motivações para que as instituições pudessem
se tornar Pontos de Cultura. Havia uma preocupação em atender as necessidades de crianças e
jovens como também das atividades já executadas por essas instituições.
Os gestores apresentaram sugestões de como a Fundarpe poderia potencializar o papel
dos Pontos de Cultura, a saber: “simplificação de procedimentos”; “maior comunicação
institucional” ; “capacitação para as equipes dos Pontos”; “mecanismos de apoio à
comercialização dos produtos culturais”; “maior fiscalização (presença) e menos burocracia”;
“fiscalizar a ação e não a documentação”; “participação da Fundarpe de maneira constante”;
“visitas constantes da Fundarpe”; “a Fundarpe agilizar a resposta das dúvidas apresentadas
pelos Pontos”; “equipe presencial da Fundarpe para orientar os procedimentos”; “retomar o
projeto com uma capacitação para efetuar a prestação de conta”; “treinamento em prestação
de conta”; “promover encontros para discutir o processo”; “conhecer as regiões onde atuam os
Pontos”; “mais clareza com relação aos procedimentos”.

351

V V
CONCLUSÃO
Este artigo tratou sobre os Pontos de Culturas em Pernambuco, com o propósito de
apresentar a situação em que se encontram. Para tanto foram utilizados, como instrumento de
coleta de dados, os depoimentos de seus respectivos gestores a partir dos quais puderam-se
levantar os pontos e contrapontos constantes em seu cotidiano.
Os principais pontos favoráveis em relação a pertinência dos Pontos de Cultura e sua
contribuição para a comunidade foram a valorização da criança e adolescente, contribuindo
para retirá-los de situação de vulnerabilidade social. Outra relevância apresentada foi a sua
contribuição no âmbito sociocultural e econômico.
Outro ponto favorável foi quanto ao amadurecimento das instituições conveniadas as
quais obtiveram visibilidade junto as três esferas governamentais, como também a divulgação
da cultura local que anteriormente passava despercebida pela comunidade e que com o
trabalho dos Pontos passou a ter mais espaço. Além do mais, verificou-se que os Pontos de
Cultura contribuíram para o fortalecimento da identidade local.
Como nem tudo são flores, ao longo do trabalho registrou-se algumas dificuldades
enfrentadas pelos gestores, segundo eles, em relação à atuação da Fundarpe. Podemos inferir
certo distanciamento da Fundarpe em relação a muitos problemas que emergiam no
desenvolvimento das ações dos Pontos, além da dificuldade de comunicação entre os Pontos e
a Fundarpe.
Por fim, consideramos importante uma maior aproximação dessa Fundação com os
Pontos de Cultura para que assim se estabeleça uma parceria proativa em prol do pleno
desenvolvimento das propostas de trabalho dos respectivos Pontos e, consequentemente,
possa se contribuir para a qualidade de vida da comunidade envolvida.

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352

V V
O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA NO DESENHO FEDERATIVO
BRASILEIRO E A EXPECTATIVA DO REPASSE FUNDO A FUNDO
Clarissa Alexandra Guajardo Semensato1

RESUMO: Neste artigo2, observa-se o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e sua estruturação
a partir da lógica do sistema federativo brasileiro. Em seguida, é dado um panorama do SNC,
desde sua origem, inclusão na Constituição Federal de 1988, até os trâmites atuais de sua
regulamentação. Ressalta-se que em 2013 muitos municípios aderiram ao Sistema com a
promessa do repasse fundo a fundo. É grande a expectativa que gira em torno da
regulamentação do SNC e das regras sobre repasse de fundos, elementos que certamente irão
impactar no quantitativo de adesões das municipalidades.

PALAVRAS-CHAVE: federalismo, descentralização, Sistema Nacional de Cultura,


regulamentação do SNC

O Federalismo e o SNC
O Sistema Nacional de Cultura é uma integração entre os entes federados do país,
juntamente com a sociedade civil. Sua engenharia corresponde ao desenho de estado
federativo em que se encontra o Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, contendo
também o teor em defesa pela participação social que a Carta Magna apresenta. Para uma
leitura mais completa do fenômeno de implantação do SNC, serão expostos e debatidos
adiante algumas questões sobre o desenho federativo do país, e como ele é negociado entre as
esferas federativas no momento atual no que diz respeito à formulação e implementação de
políticas públicas.
Dizer que um país é uma federação significa que, dentro de um território com poder
soberano, há unidades de poder com relativa autonomia. Neste desenho, há partilhas de poder,
deveres e funções entre a instância soberana e as demais esferas, o que pode acarretar uma
distribuição com formato centralizador ou descentralizador. Portanto, não há um modelo
único para o desenho institucional de um Estado.

1
Graduada em Ciências Sociais (UENF) e em Geografia (IFF- Campos), Mestre em Políticas Sociais (UENF),
bolsista pesquisadora do setor de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa/RJ.
2
Este artigo é fruto do primeiro período da pesquisa, iniciada em agosto de 2014, desenvolvida na Fundação
Casa de Rui Barbosa, sob orientação da pesquisadora Lia Calabre. A pesquisa, que num âmbito maior visa
observar e discutir as ações empreendidas pelo Ministério da Cultura (MinC) a partir dos anos 2000, tem seu
foco voltado para implantação do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e seu impacto nas municipalidades do
estado do Rio de Janeiro.

353

V V
Almeida (1995:2) menciona que há diferentes formas de federalismo e estratégias de
descentralização. A autora define três tipos de federalismo: o dual, o centralizado e o
cooperativo. No federalismo dual, os poderes do governo geral e do estado, ainda que existam
e sejam exercidos nos mesmos limites territoriais, constituem soberanias distintas e separadas,
que atuam de forma separada e independente, nas esferas que lhes são próprias. Já no
federalismo centralizado, os governos estaduais e municipais são agentes administrativos do
governo federal, que possui forte envolvimento nos assuntos das unidades subnacionais,
primazia decisória e de recursos. Por último, o federalismo cooperativo, que comporta graus
diversos de intervenção do poder federal e se caracteriza por formas de ação conjunta entre
instâncias de governo, nas quais as unidades subnacionais guardam significativamente
autonomia decisória e capacidade própria de financiamento.
O termo descentralização, por sua vez, tem sido utilizado para indicar graus e
modalidades diversas de redução do escopo do governo federal, seja: a) no deslocamento da
capacidade de decidir e implementar políticas para instâncias subnacionais; b) da
transferência para outras esferas de governo da implementação e administração de políticas;
c) da passagem de atribuições da área governamental para o setor privado. Ressalta-se que, na
prática, as modalidades se apresentam de forma complexa e não linear, com mescla de
variados elementos, numa dinâmica constante e concomitante entre centralização e
descentralização (ALMEIDA, 1995). Nessa mesma direção, Arretche (2012: 147) distingue
conceitualmente os tipos de descentralização: 1) a descentralização política: aquela que inclui
a possibilidade dos governos locais serem eleitos diretamente e terem um mandato próprio e
irrevogável pelos níveis superiores de governo; 2) a descentralização fiscal, em que há
relativa participação das receitas e gastos dos governos subnacionais sobre o gasto agregado;
3) descentralização de competências, quando a responsabilidade pela execução de políticas
públicas é atribuída às deferentes esferas federativas.
O tema sobre federalismo e descentralização envolve várias questões e transições
históricas (no Brasil e mundo afora). Para este artigo, nos parágrafos que se seguem neste
subtópico, concentrou-se em um debate: a formulação do tipo de federalismo e do grau de
descentralização conferido às instâncias subnacionais após a Constituição Federal de 1988, e
suas implicações na implementação de políticas públicas articuladas, com foco no Sistema
Nacional de Cultura.
Alguns pontos do debate sobre o federalismo pós CF88 são fundamentais. A literatura
recorrente sobre o tema parecia chegar a um consenso de que o país assumia um desenho

354

V V
demasiadamente descentralizado, e com isso, acarretando impactos negativos como, por
exemplo, paralisia decisória e decisões do legislativo comprometidas pelo poder de barganha
de minorias regionais super-representadas. Arretche (2012), porém, traz novas contribuições
em que esclarece que a realidade não se apresenta de forma tão simplificada a ponto de todas
as críticas ao desenho descentralizado estarem corretas. A autora defende que a federação
brasileira tornou-se altamente integrada, ainda que cada nível de governo seja dotado de
autoridade política própria. O processo de construção do Estado nacional e suas instituições
políticas operou no sentido da centralização da autoridade política, e foi pensado de forma a
"manter a União", garantindo o equilíbrio da representação das e nas jurisdições ricas e
pobres. A autora defende ainda que a descentralização no Brasil, e a autonomia dos entes
federados não é tamanha a ponto de que não haja supremacia da União. A autora traz
evidências de que ao invés de um governo federal fraco, paralisado por governos subnacionais
com poder de veto, a União possui ampla competência legislativa. Assim, há, na verdade, ao
invés de uma descentralização descomunal e aleatória, um sistema federativo firme, mas
complexo, com uma dinâmica constante nas relações verticais entre as esferas subnacionais.
Para que haja integração e cooperação entre as esferas, há mecanismos que permitem
ao governo central coordenar políticas nacionais mesmo num contexto em que o marco legal
ou constitucional garante autonomia política aos governos locais. São exemplos desses
mecanismos a obrigatoriedade da constitucional, a lei de responsabilidade fiscal, e o
estabelecimento de regras que vinculam o repasse de verbas aos governos subnacionais.
Segundo Arretche (2012) esses mecanismos, que são aplicados principalmente à saúde e
educação, limitam a autonomia decisória das unidades constituintes com relação à alocação de
seus próprios recursos. Isso garante um mínimo de equidade nas políticas públicas no
território nacional. Assim, para a autora, a descentralização no país é uma dinâmica entre
instâncias federativas e a convicção de que uma das partes é superpotente, é um equívoco:

“A União é forte em sua capacidade de regular programas nacionais


que são executados de modo descentralizado, ao passo que os governos
municipais têm progressivamente fortalecida sua capacidade institucional de
executar políticas. Ambos os níveis de governo são fortes, porém em
diferentes dimensões da produção de políticas públicas” (ARRETCHE,
2012:24)

Segundo esta mesma autora, a autoridade da União para normatizar as políticas


executadas pelos governos subnacionais está orientada a promover regras homogêneas de
operação no território nacional. A convergência em torno das regras federais central é

355

V V
alavancada quando: a Constituição obriga comportamentos aos governos subnacionais quando
a União controla recursos fiscais e os emprega como instrumento de indução das escolhas dos
governos subnacionais. (ARRETCHE, 2012:171). “Há mecanismos institucionais que
permitem ao governo central coordenar políticas nacionais mesmo num contexto em que o
marco legal ou constitucional garante autonomia política aos governos locais” (ARRETCHE,
2012: 151) Um instrumento regulativo e de financiamento que tenta induzir políticas públicas
mais equitativas pelo território são os Sistemas articulados de políticas públicas, que são
desenhos organizacionais que abarcam entes federados, sociedade civil, mecanismos de apoio
e financiamento, com regras específicas para distribuição.
O desenho federativo brasileiro pressupõe a articulação e pactuação entre os entes
federados de forma integrada, produzindo um contexto propício à implantação destes
Sistemas ou de formas de partilha de poder e competências. A fim de ilustrar a afirmativa,
menciona-se aqui: o Sistema Único de Saúde (SUS) e a articulação dos entes federados no
que se refere às Políticas Educacionais.
Desde a CF88 o Brasil vem construindo um sistema nacional de saúde que é universal,
público e gratuito. Ainda que sejam politicamente autônomos e tenham autonomia para aderir
ou não ao SUS, a totalidade dos governos locais – estaduais e municipais – optou por se
integrar ao sistema nacional. Para receberem o repasse de fundos para a saúde, municípios e
estados que se integram ao sistema são obrigados a gastarem, respectivamente 15% e 12% do
total de suas receitas tributárias em saúde, atendendo aos programas orientados pelo poder
executivo nacional e pelo Congresso Nacional, que induzem as decisões dos governos locais.
Com relação às Políticas de Educação, a CF88, em seu artigo 211, já dispunha de
indicadores para a partilha de responsabilidades: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino”. Os municípios
ficaram incumbidos prioritariamente do ensino fundamental e educação infantil. Estados e
Distrito Federal, com ensino fundamental e médio. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), para
complementar o artigo constitucional, estabelece maior clareza sobre a distribuição de
funções, e ainda, permitiu que o município legislasse sobre os assuntos de interesse local,
fortalecendo esta esfera. O repasse de fundos3 é feito com base no número de matrículas

3
O Fundo Nacional da Educação Básica (FUNDEB), é um fundo especial, de natureza contábil e de âmbito
estadual, formado, na quase totalidade, por recursos provenientes dos impostos e transferências dos estados,
Distrito Federal e municípios, vinculados à educação por força do disposto no art. 212 da Constituição Federal.
Além desses recursos, ainda compõe o Fundeb, a título de complementação, uma parcela de recursos federais,
sempre que, no âmbito de cada Estado, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente.
Informação disponível em http://www.fnde.gov.br/

356

V V
contabilizadas. Os recursos são distribuídos de forma automática (sem necessidade de
autorização ou convênios para esse fim) e periódica, mediante crédito na conta específica de
cada governo estadual e municipal. Nas políticas educacionais do Brasil existe o Conselho
Nacional de Educação, componente da estrutura do Ministério da Educação. Já os Conselhos
Municipais de Educação estão previstos da (LDB), porém, não há obrigatoriedade para os
municípios o tenham.
As políticas de educação, como já foi colocado, também se organizam de forma
articulada entre os entes federados, mais ainda não foram estruturadas de forma sistêmica.
Mas, vale ressaltar, a elaboração e implementação de um Sistema Nacional de Educação,
junto ao Plano Nacional de Educação foram tema da Conferência Nacional de Educação em
2014, indicando encaminhamentos para uma organização neste sentido (CONAE, 2014).
À semelhança das Políticas Públicas mencionadas acima, situam-se as Políticas
Culturais com seu SNC, principalmente quando, em 2013, a União utiliza o “repasse fundo-a-
fundo” como principal argumento de atração para adesão dos municípios. Para aderir ao SNC,
e receber o prometido repasse, o município deve cumprir regras estabelecidas, como:
estabelecimento um Conselho de Cultura, Conferência de Cultura, um Plano de cultura e
Fundo de Cultura. Dito isso, é possível considerar o SNC como um notável estudo de caso em
meio à literatura que explora as Políticas Públicas nos desenho de relações
intergovernamentais.
Vale lembrar que a área da cultura é bastante peculiar aos demais setores das políticas
públicas, devido ao seu caráter abrangente, múltiplo e por não se tratar de demandas lineares.
A peculiaridade4 das Políticas Culturais é um ponto chave, pois, embora a organização das
Políticas Culturais esteja se desenhando de forma sistêmica, há, e DEVE haver diferenciações
em relação aos Sistemas vigentes de outras políticas públicas. A esse respeito, Cunha Filho
ressalta:
“a estrutura de um sistema para as políticas públicas de cultura não pode seguir os cânones de
sistemas consolidados e tidos como exemplares, sobretudo o sistema de saúde. Este último, pela
unidade do objeto de que trata, bem como pelo justificado poder de império estatal sobre os
comportamentos individuais e coletivos relacionados à saúde, pode ter um formato jurídico estático;
algo muito diferente se passa com a cultura, que nessa palavra embute muitos e diferentes objetos,

4
A singularidade das Políticas Culturais é um tema que merece grande destaque. Esse tipo de política deve
envolver os debates sobre diretos culturais, diversidade cultural, dinamismo, acesso cultural, diversidade de
expressões. E é complexo, pois envolve todas camadas sociais, diferentes linguagens, regiões além da recente
incorporação das noções de desenvolvimento humano e econômico. Deve também ser pensada a ponto de
envolver toda a cadeia da produção da cultural – desde a formação de público, à distribuição, acesso e produção.
Assim, não é uma política pública de simples suprimento de demanda. Infelizmente este tema não recebeu
devida atenção neste artigo Devido às limitações de espaço desta publicação, optou-se por fazer apenas estes
apontamentos e ir diretamente ao foco sobre o atual estado do sistema de cultura.

357

V V
bem como se submete à regência do Estado essencialmente pelo signo da liberdade, fatores que
demandam a construção de um sistema que possa, sem prejuízo da estabilidade e segurança
necessárias, constantemente fazer sopesamentos e, por isso, designado de dinâmico” (CUNHA
FILHO, 2010:14).

Cunha Filho & Ribeiro (2013) assinalam que a CF88, reestabeleceu o regime
federalista e adotou medidas destinadas a resguardá-lo e ampliá-lo, em contraposição ao
regime centralizador e autoritário do período anterior. A federação brasileira apresenta-se hoje
de forma complexa quanto aos entes autônomos, pois é composta, além dos Estados e da
União, pelos Municípios e Distrito Federal. No que se refere à distribuição de poderes ela é
dual, “com preponderância de prerrogativas concentradas na União, de uma forma tão
acentuada que induz os comportamentos políticos e administrativos dos demais entes, e por
isso, assemelhando-se, no plano dos fatos, muitas vezes a um Estado Unitário” (CUNHA
FILHO & RIBEIRO, 2013: 34).
De fato, há uma grande influência da União sobre os demais entes federados.
Municípios e estados possuem autonomia, mas constantemente são induzidos a aderirem
programas e instruções do poder executivo federal. Contudo, ainda que os poderes
regulatórios da União exerçam forte influência sobre a agenda e as políticas das unidades
constituintes, é errado afirmar que esta possui poder supremo. Arretche (2012) demostra que
as unidades federativas e os parlamentares são todos atores relevantes na formulação e
implementação de políticas públicas. Há uma relação complexa entre esses atores. Por
exemplo, demandas locais precisam ser incorporadas nas propostas de legislação para
receberem apoio do legislativo, num jogo de barganha que se dá no interior dos partidos.
Assim, prefeitos e governadores negociam apoio ou veto a propostas legislativas no interior
de suas respectivas siglas partidárias.
“incorporar as demandas das unidades constituintes na fase da
formulação, seja na tramitação parlamentar, seja na legislação específica
desenhada no interior de cada ministério, aumenta significativamente a
possibilidade de obter sua adesão de unidades politicamente independentes.
Obtê-la requer incorporar suas demandas no desenho das políticas nacionais”
(ARRETCHE 2012: 23).

Com isso o governo federal precisa formular desenhos de política que tornem a adesão
atraente, seja para aprovação por parte dos parlamentares, seja para posterior adesão de
governadores e prefeitos. Percebe-se a existência de um jogo complexo de barganha, uma
negociação entes os entes federados, que ao final das contas visa atender aos princípios
daquele federalismo estabelecido na Carta Magna – que garante a autonomia, mas ao mesmo
tempo, a união e a soberania.

358

V V
Aproximando-se da posição defendida por Arretche, Cunha Filho & Ribeiro (2013)
afirmam que o federalismo desenhado na CF88 é de natureza solidária ou cooperativista. Isso
porque há uma partilha de responsabilidades entre entes federados e sociedade civil, inclusive
competindo a todos os entes legislar sobre algumas matérias semelhantes e também implantar
políticas harmonicamente sobre o mesmo setor:

“O significado deste emaranhado de responsabilidades é a


materialização do federalismo cooperativista, em que todos se ajudam e têm
direitos e deveres predefinidos. A operacionalização cotidiana deste tipo de
aliança política é, por exelência, definida através da partilha racional das
tarefas de cada um, segundo suas peculiaridades e responsabilidades, mas de
atuação integrada, uns com os outros” (CUNHA FILHO & RIBEIRO,
2013:35).

Outro ponto a ser destacado no sistema federativo cooperativo são os mecanismos de


participação direta – Conselhos e Conferências, que se constituem uma das grandes inovações
institucionalmente introduzidos no contexto político a partir da CF88 5 (TATAGIBA, 2010;
VARGAS, 2007, GOHN, 2011). Os esforços empreendidos para implantação destes
elementos – com seu caráter deliberativo e paritário no caso dos Conselhos – reforçam e
põem em prática a idéia de partilhamento de poderes no país, partilhamento este feito entre
entes federados e sociedade civil.
As recentes Políticas Culturais correspondem a este federalismo cooperativista
desenhado pela CF88, e não um federalismo dual ou centralizado como costuma prevalecer na
lógica de outras políticas públicas. Assim, uma observação e análise atenta ao processo de
implantação do SNC têm muito a dizer sobre o desenho de estado que vem se constituindo no
país. Afinal,
“a constitucionalização do Sistema Nacional de Cultura (SNC)
materializa de forma explícita e definitiva o federalismo cultural, em sentido
estrito. A estruturação do SNC tem a virtude de ir além da simples
integração de políticas públicas: resgata a essência harmonizadora da
unidade com a diversidade de valores, presente na concepção inaugural e
filosófica do federalismo, ao tempo que amplia sua complexidade, inserindo
a própria sociedade como mais um ente a celebrar o pacto que define direitos
e responsabilidades atinentes à cultura” (CUNHA FILHO & RIBEIRO,
2013: 38)

O SNC: da origem à atualidade

5
Conselhos e Conferências já existiam anteriormente, mas a CF88 constitui sua integração na nova arquitetura
jurídica-política, conferindo maios legitimidade força e permanência a estes mecanismos (TATAGIBA, 2010).

359

V V
O SNC tem início, formalmente, a partir de 2005, na ocasião da apresentação do
Projeto de Emenda Constitucional nº 416, em 16 de junho de 2005, posteriormente
transformado na Emenda Constitucional 71/2012. Após sua aprovação, tem-se o Sistema
Nacional de Cultura estabelecido na Constituição, no artigo 216-A, descrito da seguinte
forma:
“O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de
colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo
de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas
e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo
por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com
pleno exercício dos direitos culturais”.

Os princípios do SNC referem-se à defesa da diversidade, da ampliação do acesso e da


forma pactuada e descentralizada de gestão. Estão explícitos no próprio artigo, em seu
parágrafo segundo:
I - diversidade das expressões culturais; II - universalização do
acesso aos bens e serviços culturais; III - fomento à produção, difusão e
circulação de conhecimento e bens culturais; IV - cooperação entre os entes
federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; V -
integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações
desenvolvidas; VI - complementaridade nos papéis dos agentes
culturais; VII - transversalidade das políticas culturais; VIII - autonomia
dos entes federados e das instituições da sociedade civil; IX - transparência
e compartilhamento das informações; X - democratização dos processos
decisórios com participação e controle social; XI - descentralização
articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; XII - ampliação
progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.

A inclusão deste artigo na CF88, junto ao andamento do Plano Nacional de Cultura


(PNC), foi um grande avanço no fortalecimento das Políticas Culturais do Brasil, pois induziu
um processo de valorização e planejamento de políticas coesas e democráticas de longo prazo,
não só na esfera federal como também nas localidades.
Nos períodos imediatamente anteriores à III Conferência Nacional de Cultura,
ocorrida em 27 de novembro a 1º de dezembro de 2013, vários municípios Brasil afora
organizaram suas conferências, vendo uma oportunidade de assinar o termo de adesão ao
SNC. Ressalta-se que apesar do SNC estar estabelecido na CF88, não há obrigatoriedade dos
municípios os estados aderirem a ele. Mesmo assim, os dados da última Conferência
demonstraram massiva adesão de ambos entes federados. Tem-se atualmente6: todos os
estados e Distrito Federal com consonância com o SNC; e, 1941 municípios com o Acordo de

6
Até a data de 19/02/2015, informação disponível em:
http://www.cultura.gov.br/documents/10907/1228541/1.+Quantitativo+de+Munic%C3%ADpios+e+Estados+20.
2.pdf/dc226004-b812-4888-ab41-f6134ed9df23

360

V V
Cooperação Federativa publicado no Diário Oficial da União, num total aproximado de 38%
de adesões das municipalidades. O interesse de grande parte dos municípios em aderirem ao
SNC situa-se no repasse fundo a fundo7, que foi um objeto de barganha para que Ministério
da Cultura estimulasse a adesão. Há uma grande expectativa de como e com quanto vai se
constituir o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e como vai ser feito o repasse.
Ainda não há detalhamentos sobre isso, nem previsão. De acordo com a redação do
próprio artigo constitucional 216-A, haverá uma Lei Federal que “disporá sobre a
regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, bem como de sua articulação com os demais
sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo”. Ocorre que a lei a regulamentar o SNC,
ainda estava em tramitação, através do Projeto de Lei Complementar 338/2013, apresentado
no dia 03/10/2013 pelo deputado Paulo Rubem Santiago (PDT-PE).
De todo modo, a redação do PLC mencionado não dispõe de maiores detalhamentos
sobre o SNC, para além do que já é descrito no artigo da Constituição. Em sua ementa a
proposta se descreve como: “Estabelece as normas para a cooperação entre a União e os
Estados, o Distrito Federal e Municípios, com relação à responsabilidade no fomento e gestão
pública da cultura brasileira e organização do sistema nacional de cultura”. Mas, ao longo da
lei não fica claro como serão estas normas. Destaca-se abaixo os principais trechos do PLC
338/2013, constatando que há poucos pormenores.
No artigo 2, que fala sobre a cooperação entre os entes federados, a proposta inclui
como princípio a “construção do sistema nacional de cultura, responsável pela articulação
entre os sistemas de cultura dos entes federados em todas as esferas, para o cumprimento das
diretrizes, metas e estratégias do Plano Nacional de Cultura”. Como forma de articular os
entes o princípio: “alinhamento do planejamento, por meio de planos de cultura de estados,
Distrito Federal e municípios, em consonância com o Plano Nacional de Cultura”. Ressalta
também o princípio da democracia: “estabelecimento de mecanismos democráticos de gestão
e de instâncias intergovernamentais de discussão, negociação e deliberação”.
Em seu artigo terceiro, a proposta diz que o “O sistema nacional de cultura será
organizado em regime de colaboração, nos termos do art. 216-A, e para desenvolvimento de
suas ações será proporcionado apoio técnico e financeiro: I - da União a Estados, Distrito
Federal e Municípios; II – dos Estados aos respectivos Municípios”. Ressalta-se nesse ponto
que os: “Os entes federados deverão estabelecer formas de colaboração para, de forma
democrática e em consonância com os planos de cultura (...)”. Por último, aí sim com uma

7
Será detalhado a seguir, na menção ao Projeto de lei do PROCULTURA.

361

V V
inovação, o trecho em que os consórcios são mencionados: “Será estimulada a criação de
consórcios públicos intergovernamentais na área cultural”.
O projeto deveria ser analisado na Câmara dos deputados pelas comissões de:
Trabalho, de Administração e Serviço Público; de Cultura, e; de Constituição e Justiça e
Cidadania. Após as três análises, finalmente, deveria ser aprovado pelo Plenário, com a
necessidade do voto positivo de 257 deputados.
Depois de apresentado no plenário o PLC foi para Mesa Diretora da Câmara dos
Deputados e despachado com regime de prioridade. Em 26 de outubro de 2013 ele foi
publicado na página 50153 no Diário da Câmara dos Deputados. Em seguida foi encaminhada
para Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) em 28/10/2013.
Na CTASP, tendo como relator o Deputado André Figueiredo (PDT-CE) foi considerada
aprovado, em 12/03/2014.
Após este trâmite, em 31/01/2015 a proposta foi arquivada, pela Mesa Diretora da
Câmara dos Deputados, nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos
Deputados. Segundo o mencionado artigo:
“Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu
decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se
encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito sublimentar, com
pereceres ou sem eles (...)”.

Portanto, o projeto, que apresentava carências de detalhes, na opinião deste trabalho,


voltou à estaca zero. De acordo com o parágrafo único do artigo 105 do Regimento Interno da
Câmara dos Deputados, o arquivamento poderia ser revertido, pois a “proposição poderá ser
desarquivada mediante requerimento do autor, ou Autores, dentro dos primeiros 180 dias da
primeira sessão legislativa ordinária da legislatura”. Mas, de acordo com as regras 8 da
Câmara dos Deputados, somente o autor da proposição – no caso, Paulo Rubem Santiago9 – é
quem poderia solicitar o desarquivamento da proposição para que esta continuasse seu trâmite
do ponto onde parou. Mas, se o autor da proposição arquivada não for reeleito, ou não está
mais na Casa, a proposição não poderá ser desarquivada, exceto se estiver tramitando em
conjunto com outra proposição cujo desarquivamento seja solicitado pelo respectivo autor, o
que não é o caso desta proposta.

8
http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/camara-destaca/55a-legislatura/arquivamento-e-
desarquivamento-de-proposicoes
9
Paulo Rubem Santiago já estava no terceiro mandato de deputado federal e atualmente, ex-deputado, é
presidente da Fundação Joaquim Nabuco.

362

V V
Com isso, não há esperanças deste projeto seguir adiante, exceto se outro parlamentar
reapresentá-lo. Se isso acontecer, a proposta receberá nova numeração, e reiniciará toda
tramitação.
Outro instrumento legal que deve definir maiores detalhes sobre o fundo é o Projeto de
Lei que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, o PL n° 6.722/2010 –
o PROCULTURA. Este projeto, apresentado em 2010 no poder Legislativo, ainda circula na
Câmara dos Deputados. Após ser avaliado e alterado por alguma das Comissões, o PL em sua
versão mais atual (após ser alterado e aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania em 11/11/2014) apresenta a redação bastante relevante para detalhes sobre o
repasse de fundos.
Em primeiro lugar, fica claramente exposto em seu artigo 14, parte dos recursos não
reembolsáveis do FNC serão aplicados nas “transferências para fundos de cultura dos
Estados, Municípios e Distrito Federal”.
Em seu artigo 19 é dito que a União deverá destinar um mínimo de 30% de recursos
do FNC, por meio de transferência direta, a fundos públicos de Municípios, Estados e Distrito
Federal, sendo estes destinados ao financiamento de políticas, programas, projetos e ações
previstas no Plano Nacional de Cultura ou nos planos estaduais e municipais oficialmente
instituídos. Além disso, é dito, ainda neste artigo, que 50% do montante do FNC destinado
aos estados serão repassados aos municípios por meio de transferência direta aos fundos
municipais de cultura.
Um ponto importante a ser ressaltado é que o repasse de fundos está condicionado à
existência, nos respectivos entes federados, de: a) fundo de cultura apto a efetuar transferência
direta de fundo a fundo; b) plano de cultura em vigor no prazo de até um ano após a
publicação da lei do PROCULTURA; e, c) órgão colegiado (Conselho) oficialmente
instituído para a gestão democrática e transparente dos recursos, com representação no
mínimo paritária da sociedade civil, assegurada em sua composição a diversidade regional e
cultural. A gestão dos recursos repassados estarão submetidos aos conselhos, tornando
públicas as regras e critérios para participação e seleção dos projetos.
Por último, e não menos importante, será exigida dos entes federados contrapartida
para as transferências, observadas as normas fixadas pela Lei de Diretrizes orçamentárias para
as transferências voluntárias da União para os entes federados (parágrafo 5, do artigo 19).
Cabe mencionar também que parcela dos recursos captados pelas isenções fiscais
comporão o FNC (Inciso XVI do artigo 13); e que desta parcela, 80% deverá ser repassado

363

V V
por “transferência fundo a fundo para Estados, Distrito Federal e Municípios participantes do
Sistema Nacional de Cultura, podendo o patrocinador ou doador escolher o programa ou ação
credenciada no Sistema, na forma do regulamento” (Inciso I, parágrafo 3 do artigo 13).
Nesse Projeto de Lei a questão do repasse fundo a fundo fica mais clara. Sem dúvida
deixar explícito de que se trata o fundo e que a parcelas deste serão repassadas aos signatários
do SNC, estimula a adesão por parte dos entes federados. Além disso, deixar desde já de
forma bastante explícita as regras vinculadas ao repasse, mesmo que estas ainda não estejam
regulamentadas, como ter um fundo próprio, ter um plano de cultura em vigor e ter um
conselho de cultura no mínimo paritário, permite que os municípios se programem para
efetivamente conseguir acessar o FNC.
Condicionar o repasse de recursos à gestão dos conselhos é um dispositivo
conveniente, pois permite a participação democrática nos destinos dos investimentos, e a
transparência no uso do dinheiro público.
O ato de fazer com que a dedução fiscal componha o Fundo é uma inovação do
PROCULTURA. E, vincular parte deste recurso ao Sistema, possibilitando que o patrocinador
ou doador escolha o programa ou ação, permitirá que as produções culturais via incentivo
fiscal, hoje tão concentradas nas capitais e no eixo Rio-São Paulo, sejam descentralizadas,
tanto territorialmente como nas diversas manifestações culturais.

Considerações Finais
Neste artigo falou-se da forma de organização do Estado brasileiro, num sistema
federativo de cooperação. Neste, muitas das políticas locais são induzidas pela esfera federal,
através de instrumentos regulatórios e de repasse de verbas, mas que ainda sim garante
relativa autonomia executória e decisória das Políticas Públicas locais. Ao mesmo tempo, as
esferas municipais e estaduais influenciam o processo de tomadas de decisões do poder
executivo, principalmente via parlamento. A forma de indução das políticas locais pode
parecer centralizadoras, mas por outro lado, é um modo de fazer com que os poderes locais
(que geralmente sofrem com recorrentes problemas de corrupção, personalismos, falta de
qualificação e descontinuidade de programas políticos), invistam e estruturem ações em
determinados setores (básicos que não são tidos como prioridade. A cultura, por exemplo,
agora é tida como área estratégica para o desenvolvimento; e nos últimos passou a abarcar
além de uma concepção antropológica, também a cidadã e a econômica. Mas esta noção
ampliada custou a ser reconhecida pelas municipalidades que entendem a cultura como

364

V V
produção de eventos pontuais, em geral shows e festejos da cidade. As ações do MinC na
estruturação do PNC e do SNC, desencadeia um novo olhar sobre as Políticas Culturais
locais, tendendo para valorização da área.
O panorama sobre Sistema Nacional de Cultura demostrado aqui, desde sua origem até
as tramitações das legislações que remetem a ele, deixa claro o amadurecimento do processo,
e o quão adequado ele é para o desenho federativo que está estabelecido no país.
Entretanto, cabe ressaltar que uma grande expectativa, por parte dos entes federados,
gira em torno do repasse de fundos. Arretche (2012) demonstrou que o sucesso de adesão ao
SUS, que hoje abarca a totalidade de municípios no Brasil, pode ser atribuído ao repasse de
fundos e aos critérios de rateio bem definidos: “Como os repasses são regulares e os critérios
de rateio são predefinidos, o compromisso do governo federal torna-se crível e, portanto os
governos locais têm reduzida incerteza para aderir ao sistema” (ARRETCHE, 2012: 163).
Muitos dos municípios aderiram ao Sistema devido à promessa de repasse de fundos,
porém a falta de estruturação dos fundos e a incerteza sobre como se dará as regras para o
repasse, bem como a indefinição sobre o montante de recursos envolvidos são elementos que
devem ser urgentemente pensados e muito bem planejados, para que os municípios não
desistam dos processos de adesão; e para que outros municípios sintam-se interessados em
ingressar no SNC.
É bastante interessante, conforme estabelecido no PROCULTURA, que as regras do
repasse de fundo para um ente federado estejam vinculadas à constituição de um próprio
fundo e de um próprio plano, bem como à contrapartidas, pois assim, estas esferas são
convocadas a fazerem sua própria parte nas ações e programas de cultura.
Por fim, destaca-se a relevância que a sociedade civil deve ter no repasse de fundo. É
bastante positivo que, conforme estabelecido pelo PROCULTURA, o repasse de fundos esteja
vinculado à existência e gestão de um Conselho no mínimo paritário, democraticamente
eleito, que darão voz às demandas reais, estabelecidas nos planos e darão transparência e
legitimidade ao processo.
Aliás, desde o início do processo de implantação do SNC, os chamamento por parte do
MinC à participação social na elaboração das Políticas Culturais é ação louvável. Fez-se
proliferar Conselhos de Cultura num formato paritário e democrático, e Conferências de
Cultura. Agora sociedade civil assume o grande desafio de cobrar do poder público local a
continuidade ao processo de adesão ao SNC, uma vez que a morosidade em sua
regulamentação pode provocar um esvaziamento. São esses instrumentos participativos que

365

V V
podem garantir um Sistema Municipal de Cultura efetivo e não apenas meros formalismos
burocráticos para um repasse de fundos que estariam esvaziados dos princípios de diversidade
cultural, democracia cultural e ação cultural. Sem a cobrança desses importantes atores, o
repasse de fundos servirá apenas para manter (com uma maquiagem democrática) as políticas
pontuais e descontínuas, mais ligadas à eventos e aos personalismos tão frequentes nas
municipalidades brasileiras.

Referências Bibliográficas

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São Paulo - ANPOCS, v. 10, n. 28, p. 88-108, 1995.

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GOHN, Maria da Glória. “Conselhos gestores e participação sociopolítica. 4 ed. São Paulo:
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balanço de duas décadas de participação conselhista”. In.: RUBIM, A.; FERNANDES, T.;

366

V V
RUBIM, I. (orgs). Políticas Culturais, Democracia e Conselhos de Cultura. Salvador:
EDUFBA, 2010.

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http://www.fnde.gov.br/
http://www.cultura.gov.br
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de fevereiro de 2015.

Projeto de Lei Complementar 338/2013 (Sistema Nacional de Cultura), acessado em


http://www.camara.gov.br/ em 27 de fevereiro de 2015.

367

V V
O CANTO DO CONTO COMO FERRAMENTA DE DISSEMINAÇÃO DA
DIVERSIDADE ÉTNICA NAS HISTORIAS INFANTIS
Clarissa Bittencourt de Pinho e Braga1
Dielma Castro Soares2
Rosselinni Brasileira Rosa Muniz Gonçalves 3

RESUMO: o artigo relata a experiência de um projeto de extensão, desenvolvido em uma


escola pública, que tem como proposição a discussão sobre a diversidade cultural através da
contação de histórias. Apesar de haver um avanço no que se refere às leis protecionistas que
inserem a história de indígenas e negros de forma obrigatória nos currículos escolares, o que
se observa, na prática, é a permanência da escola no papel de reprodutora dos discursos da
classe dominante, onde a escolarização se torna um processo de “colonização”. Nessa
perspectiva, o projeto de extensão Canto do Conto, traz narrativas de diferentes lugares para o
contexto da escola. O objetivo é avaliar as formas como os alunos se apropriam das histórias e
trazem o seu conteúdo para as suas experiências cotidianas. Alguns exemplos como o conto
Kaimbé “As cabeças de boi” e o conto africano “A lenda do tambor” são relatados na análise.

PALAVRAS-CHAVE: Contação de histórias, cultura afro-brasileira, cultura escolar.

INTRODUÇÃO
A escola é a única instituição brasileira de caráter obrigatório, por onde devem passar
todas as crianças – de todas as classes sociais. Por isso, Barbosa (2007) afirma que ela acaba
por se tornar um lugar de “colonização” do saber, onde é apreendido o “conhecimento
legítimo e homogêneo” em detrimento de outros, os populares, não-hegemônicos,
desqualificando assim outras formas de cultura e de estilos de vida. Neste contexto, estar em
consonância ou em dissonância com a lógica que engendra a escola favorece ou não o sucesso
educacional. Se a cultura familiar é distinta da cultura escolar, a segunda prevalece como
forma “correta” de se apropriar do conhecimento.
Apesar de haver um avanço no Brasil no que se refere às leis protecionistas que
inserem a história de indígenas e negros de forma obrigatória nos currículos escolares, o que
se observa, na prática, é a permanência da escola no papel de reprodutora dos discursos da
classe dominante. Como o conhecimento não é contextualizado, a aprendizagem se torna

1
Clarissa Bittencourt de Pinho e Braga é doutora em Educação pela FACED-UFBA, professora Adjunta II d
IHAC-UFBA. Coordena a Linha de Pesquisa Cultura e Infância do grupo CULT (IHAC/FACOM-UFBA) e o
projeto de extensão Canto do Conto. E-mail: clarissabbraga@gmail.com .
2
DielmaCastro Soares é graduada no Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades do IHAC-UFBA, graduanda
em Psicologia (UFBA) e bolsista PIBIEX. E-mail: dielma.castro@gmail.com
3
Rosselini Muniz é graduada no Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades do IHAC-UFBA, graduanda em
Pedagogia e voluntária no projeto de extensão Canto do Conto. E-mail: linni_muniz@hotmail.com

368

V V
abstrata e o aluno tende a enxergar o contexto do “outro” no conteúdo escolar, se colocando
no papel de subalterno.
No entanto, de acordo com Freire (1999) “a leitura do mundo antecede a leitura da
palavra mundo”. Isso significa que as crianças já iniciam seu processo de escolarização com
um repertório cultural significativo para elas, suas famílias e comunidades. A escola é o lugar
onde os múltiplos modos de socialização e formações culturais se confrontam, portanto, é
preciso pensar em estratégias para ampliar as trocas culturais respeitando as identidades de
cada sujeito.
A estratégia experimentada pelo grupo participante do projeto “Canto do Conto” é a
contação de histórias. Contar histórias é uma arte antiga, que reúne diversas tecnologias e
pode se apresentar de diferentes formas em múltiplos contextos. Cada forma e contexto geram
diversas interpretações e apropriações, de acordo com as identidades individuais e coletivas
dos locais onde são representados. Isso faz com que o conto seja um veículo precioso para
reflexão sobre a própria cultura.
O projeto de extensão “Canto do Conto” é subsidiado pela pesquisa “Narrativas da
Chapada Diamantina”, proporcionando retorno à sociedade. A Chapada Diamantina é um
território de identidade da Bahia (Estado brasileiro que possui 26 territórios de identidade,
agrupados a partir de traços culturais e histórias em comum de diversos grupos, para além da
demarcação municipal). Neste território, se localiza o Parque Nacional da Chapada
Diamantina, diversos quilombos e o município mais alto do Estado: Piatã, localizado a 1260m
de altitude. Piatã faz parte de uma Bahia diferente daquela propagada pelos cartões-postais e
meios de comunicação de massa: uma Bahia fria, com outros costumes e histórias. O clima e
o relevo inspiram e interferem no imaginário da população.
Na pesquisa realizada no município de Piatã em 2006, foram identificados mitos e
personagens folclóricos locais como: Livusia, o Mão-Espinhosa, o Pilão da Madrugada, entre
outros. Posteriormente, o material foi utilizado em escolas locais da educação infantil. A
pesquisa ganhou o Prêmio Anísio Teixeira – Educação, da FAPESB neste mesmo ano. Na
etapa seguinte, o campo de pesquisa ampliou-se para as comunidades quilombolas da
Chapada Diamantina – Remanso e Iuna, além do município de Lençóis. Os objetivos eram
coletar e analisar as histórias e mitos locais. Foram analisados contos como: a Mama Vicente,
o Boi Roubado, a Cobra d´Água, o Nêgo D´Água e o Cavaleiro Negro. Em 2013, iniciamos o
trabalho de contação de histórias nas escolas públicas municipais de Salvador, começando
com a Escola Municipal Paroquial da Vitória.

369

V V
O projeto de extensão, desenvolvido em uma escola pública, tem como proposição a
discussão sobre a diversidade cultural através da contação de histórias. Para isso, traz
narrativas de diferentes lugares para o contexto escolar, gerando processos de identificação
entre diversas culturas que se encontram fora do currículo e avaliando as formas como os
alunos se apropriam das histórias e trazem o seu conteúdo para as suas experiências
cotidianas.

TEXTOS E CONTEXTOS DA CHAPADA DIAMANTINA


Em um contexto onde múltiplas histórias são narradas para crianças, o lúdico assume
um papel importante, como forma de impulsionar a criatividade infantil e trazer novas formas
de significações. A criança cria. E é através das suas criações que ela dialoga com o mundo e
o representa.
Os encontros culturais propiciados pela globalização e tecnologias da comunicação e
informação deveriam contribuir para a diversidade cultural equilibrada, pautada por políticas
públicas que contribuíssem para a manutenção desse equilíbrio. Dessa forma, ainda que o
discurso hegemônico se fizesse presente, seria transformado pelas alteridades, permitindo a
simbiose entre o global e o local. No entanto, não é isso que acontece: prevalece o mundo
globalizado transformando ações locais em práticas idênticas regionais, onde as pessoas
passam a desconhecer ou desvalorizar a própria história em detrimento das narrativas
veiculadas pela mídia e por outras instituições a exemplo da escola.
A pesquisa em Piatã (2005-2006), por exemplo, mostrou que os alunos da educação
infantil e do primeiro ciclo do ensino fundamental das escolas locais categorizavam como
“histórias”, “lendas”, “folclores” e “contos” aqueles (re) produzidos pela televisão e livros
didáticos; no entanto, identificavam os próprios mitos como “superstição” atribuindo a estes
um claro teor negativo. Neste contexto, evidenciou-se a importância da disseminação da
memória local através da oralidade e dos contadores de história que contribuem para a
formação de um imaginário coletivo representativo do cotidiano, prática e valores das
localidades.
É inquestionável o papel exercido pelas narrativas na formação dos sujeitos. Através
das histórias fantásticas, são passadas regras de convívio social, elementos para formação de
caráter, situações que fazem refletir sobre atos e conseqüências, portanto, de forte conteúdo
moral, significativo para determinado contexto e lugar. Dessa forma, entender e respeitar
essas regras (e questionar e desrespeitar, quando for o caso), formas de sociabilidade e valores

370

V V
históricos é essencial para os sujeitos que delas participam e para aqueles que com eles
interagem.
Ser da Chapada Diamantina tem um significado identitário, mas esse possui
significados diferentes para os municípios e as comunidades quilombolas. Ao analisarmos as
comunidades quilombolas de Remanso e Iuna, na Chapada Diamantina, vimos que essas
identidades são complexas: o termo “quilombola” adquire uma dimensão simbólica de luta,
resistência; remete a um sentimento espacial de pertencimento a algo maior do que o território
circunscrito da Chapada. Ao mesmo tempo, o território cultural da Chapada também é
território de identidade: um território demarcado por uma macro história da região e pelo
relato fundador das comunidades quilombolas. Assim, torna-se importante entender o
contexto no qual circulam as narrativas e o significado para as comunidades produtoras.
Foi com esse olhar que ampliamos a pesquisa para as comunidades quilombolas: para
entender o significado das narrativas locais para as comunidades produtoras. No caso
específico destas comunidades, trata-se de um resgate histórico importante, reforçado pelo
Decreto 4887/2003 que as reconhece como: “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-
atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Dessa forma, observamos que o termo “quilombola” funciona como adjetivo na
comumidade de Remanso, que remete a um imaginário coletivo e a um passado comum. O
termo quilombo não traz mais as “reminiscências” de antigos quilombos, mas se define por
uma nova geografia onde as pessoas compartilham a mesma origem e histórias em comum.
São essas histórias que irão marcar, dentro do território da Chapada Diamantina, uma
identidade própria, que dialoga com a identidade comum – a de comunidades provenientes
dos entornos das fazendas ou formadas a partir da busca pelas pedras preciosas dos rios locais
– mas que reivindica a sua própria história, na afirmação do adjetivo “quilombola”.
Fica evidente, portanto, a importância de se entender a contribuição das narrativas para
o desenvolvimento de um imaginário coletivo e para a construção da identidade coletiva. Por
outro lado, torna-se importante também compreendermos o significado da contribuição dessas
comunidades para outras comunidades. Neste contexto, nossa intenção é fazermos uma ponte,
levando os contos da Chapada para as crianças e jovens de Salvador, através do espaço da
escola, além dos contos Kaimbé, frutos da pesquisa da professora Clélia Cortez (IHAC-
UFBA).

371

V V
CONTOS AFRICANOS E INDÍGENAS NA ESCOLA PAROQUIAL
Com aproximação do Dia da Consciência Negra apresentamos na Escola Municipal
Paroquial da Vitoria três contos africanos, sendo eles: ‘’A lenda do tambor, Os gêmeos que
venceram a morte e Ifá o Adivinho. As três lendas foram extraídas do livro “Ifá, o Adivinho”
de Reginaldo Prandi. Este é um livro voltado para lendas africanas, as quais suscitam a força
presente na África, através das suas crenças e da sua arte. Um exemplo disso é a história do
nascimento do orixá Ewá, rainha dos rios. Contudo, iremos nos deter, especificamente, na
explicação da lenda “Os gêmeos que venceram a morte”.
Para a encenação da lenda, os alunos do Bacharelado Interdisciplinar da UFBA, membros do
projeto de extensão Canto do Conto, utilizaram de caracterizações africanas e indígenas. Embora o
termo “Griot” tenha origem africana (abrasileirado, muitas vezes, para griô) a intenção era representar
o griô como um mestre do saber oral, que poderia ter correspondência com qualquer etnia. Então, em
um contexto lúdico que posteriormente foi explicado e debatido com alunos e professores, trouxemos
“griôs” indígenas e afro-brasileiros.

O lúdico é importante no acolhimento da diversidade cultural, pois desperta a vontade de


aprender sobre e compreender o outro, mas também é mais um elemento que modifica a história e o
contexto. Quando adicionamos brincadeiras e estimulamos as crianças a interagir com a história
contada, ela se apropria do conteúdo, faz as relações com as suas vivências e imprime a sua própria
marca.

A ludicidade, tão importante para a saúde mental do ser humano é


um espaço que merece atenção dos pais e educadores, pois é o espaço para a
expressão mais genuína do ser, é o espaço e o direito de toda a criança para o
exercício da relação afetiva com o mundo, com as pessoas e com os objetos.
(Pinho, 2009).

Antes da encenação, os voluntários fizeram uma breve explicação sobre o que


era e o que significava os griôs para nossa cultura e para a cultura africana. Fazia parte da
composição da indumentária alguns instrumentos musicais como: pau de chuva e chocalho,
que estão inseridos tanto na cultura indígena quanto na cultura africana. Os instrumentos
funcionavam como a porta para o universo lúdico: o toque convidava as crianças para
compartilhar daquele imaginário proposto, além de suprimir o tempo cronológico e inserir os
pequenos no tempo mítico.
Para Lyotard, isso acontece porque a narrativa oral é “vibratória e musical”, “obedece
a um ritmo, é a síntese de um metro que marca o tempo em períodos regulares e com um

372

V V
acento que modifica o comprimento ou a amplitude de algumas dentre elas” (Lyotard, 2006
pg. 40). Naquele momento, o que valia como tempo, era a batida musical, não mais o relógio.
O tema da lenda ‘’Os gêmeos que venceram a morte’’, por sua vez, também trabalha
com outra noção de tempo: o tempo mítico. Narra a história de um povoado no interior da
África onde a morte decide “concentrar ali suas colheitas” e se alimentar da vida daquela
tribo. As lavouras ficaram infrutíferas, os rios secaram, os animais desfaleciam, as pessoas
brigavam entre si e até guerras foram instauradas por conta da escassez de mantimentos.
Enquanto isso, a Morte estava cercando os mais fracos e fazendo sua colheita, levando-os
para a Terra do Além.
O chefe, cansado desta situação, mandou um emissário conversar com a Morte para
propor alguma solução. A Morte, confiante, disse que iria embora se uma pessoa da tribo,
apenas uma, fizesse com que ela agisse contra a própria vontade. Ao ouvir isso, Taió e
Caiandê, filhos de Ewá, decidiram dar uma lição na Morte. Pegaram o tambor mágico da
aldeia, e foram ao seu encontro.
Neste ponto da história, cabe comentar que os instrumentos musicais também são tema
da narrativa escolhida. Portanto, além da pertinência com relação à introdução das crianças
em um tempo mítico, a escolha por introduzir os instrumentos como indumentária ocorre para
mostrar a importância destes nos contextos indígenas e afro-brasileiros. “O mito e a música,
que trabalham a fundo a reversibilidade, são máquinas de abolir o tempo” (Bosi, 2006 pg. 27).
Na história proposta, enquanto um dançava e tocava, o outro se escondia na mata.
Quando a Morte ouviu aquele toque envolvente do tambor mágico, começou a dançar e seguir
um dos gêmeos que tocava o tambor de forma alegre, com arte e vigor. Os dias foram
passando e a Morte foi cansando e nada dos meninos pararem. O que a Morte não sabia era
que os meninos, nas curvas das estradas, estavam trocando de lugar, assim o outro podia
descansar, alimentar-se e poder seguir na luta contra a Morte. A Morte, cansada, pede, enfim,
para o “menino maldito” parar. Contudo, o menino diz que só pode parar se a Morte deixar a
sua tribo em paz. Por fim, a Morte, que já estava exausta, mas sem conseguir parar de dançar
ao som do tambor mágico, decide libertar a tribo e, por este acontecimento, os Gêmeos
sempre foram lembrados por este feito heroico.
Observa-se, portanto, que valores comunitários aparecem neste conto. Em primeiro
lugar, não se trata de apenas um herói que procura salvar uma comunidade de seus
infortúnios. A ideia central é a da continuidade, representada pelos laços de sangue dos
gêmeos. Isso remete ao tempo cíclico: a comunidade irá permanecer, apesar da Morte, se as

373

V V
gerações se alternarem nos cuidados com a comunidade. De acordo com Santos (2006): “O
tempo é circular porque sempre retorna, sempre se recoloca como tempo que se realiza, e é
linear, porque essa sucessão é uma sucessão de instantes únicos.” (Santos, 2006 pg. 198).
A solução para enganar a Morte e preservar a comunidade não veio de um herói
externo bem intencionado: nasceu fruto dos filhos da própria comunidade. Os gêmeos
representa a força do lugar: não adianta tentar me vencer porque eu não sou um. Eu sou
muitos e onde um cansar ou faltar, o outro irá persistir. Dessa forma, os gêmeos possuem uma
dupla função: livrar a comunidade dos seus infortúnios, ao mesmo tempo em que preserva os
valores culturais locais.
Diferente das outras histórias, onde prevaleciam as interações divertidas e hilárias
entre as crianças e os contadores de história, no dia do conto “os gêmeos que venceram a
morte” as crianças se mantiveram em um silêncio extremamente respeitoso. A reação chamou
a atenção da equipe, que atribuiu aquela reação ao clima criado pela chegada triunfal dos
griôs, os toques musicais e o clima quase ritualístico criado pelo desempenho dos contadores.
Ou seja: as crianças perceberam o sentido ritual e religioso dos quais o conto estava
impregnado. Ainda assim, entenderam que era um conto que representava um povo e sua
história – história essa que possuía profunda relação com as suas próprias histórias e, nem por
isso, colocava em cheque suas escolhas culturais, étnicas e religiosas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
“(...) o que hoje o cientista, talvez o ecologista, chama de habitat,
não está um sítio, não está uma cidade nem um país. É um lugar onde a alma
de cada povo, o espírito de um povo, encontra a sua resposta, resposta
verdadeira. De onde sai e volta, atualizando tudo, o sentido da tradição, o
suporte da vida mesma. O sentido da vida corporal, da indumentária, da
coreografia das danças, dos cantos. A fonte que alimenta os sonhos, os
sonhos grandes, o sonho que não é somente a experiência de estar tendo
impressões enquanto você dorme, mas o sonho como casa de sabedoria”.
(KRENAK, 2006 pg. 201-202).

Entender a expressão desses sonhos através do imaginário de uma comunidade e das


suas narrativas se torna uma forma de resgatar e analisar um passado comum. Gláucia de
Mello (2005) afirma que o caráter social do homem se distingue nos ambientes, comunidade e
sociedade. As comunidades têm uma característica mais natural, o seu estilo de vida reúne
atitudes puras, oriundas do ser humano: a solidariedade, o respeito, a igualdade, dentre outras.
Uma grande parte das suas regras de convívio social são passadas através da oralidade: das
histórias locais, dos mitos, dos casos, que indicam o comportamento correto esperado em cada

374

V V
situação. Assim, mitos, contos, lendas, estão carregados de significados tornando-se
importante, portanto, entender as suas origens e o contexto no qual circulam.
Ao trazermos as narrativas da Chapada Diamantina e dos índios Kaimbé para a Escola
Municipal Paroquial da Vitória (em Salvador-Bahia) através do projeto de extensão Canto do
Conto, pretendemos disseminação a diversidade étnica da Bahia através das historias infantis.
Dessa forma, as crianças não ficam apenas com o repertório dos livros didáticos e
paradidáticos que, usualmente, apresentam um folclore nacional, pouco representativo das
localidades. Ao ser legitimado pelos livros escolares, esse folclore ascende sobre as lendas
locais e faz com que as crianças classifiquem as próprias histórias como superstição.
Promover o intercâmbio entre as localidades tem auxiliado no processo de
identificação cultural entre crianças de localidades distintas: ao ouvir outras histórias, elas
conseguem enxergar as semelhanças com as suas próprias vivências e, a partir daí,
ressignificar as suas experiências de forma positiva, o que é muito importante no processo de
construção da identidade em formação.

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socializações e a escolarização no entretecer destas culturas. Educação e Sociedade. Campinas, vol.
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LYOTARD, J. A Condição Pós-moderna. 9ª Edição. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2006.

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SANTOS, Laymert Garcia de. O tempo mítico hoje In NOVAES, A. Tempo e História. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

375

V V
UFRGS 80 ANOS | GESTÃO CULTURAL NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
Cláudia Boettcher 1
Rafael Derois2

RESUMO: Este artigo parte da contextualização da programação cultural vinculada aos 80


Anos da UFRGS, realizada ao longo de 2014, para apresentar o “lugar da cultura” na UFRGS
como elemento integrante na construção da educação. O objetivo é apresentar a
sistematização de processos aliada a experiências ocorridas na UFRGS a partir da atuação do
Departamento de Difusão Cultural da Pró-Reitoria de Extensão, oferecendo, assim, subsídios
à reflexão de um modelo de gestão cultural interno às universidades públicas.

PALAVRAS-CHAVE: Universidades, Gestão Cultural, UFRGS.

As universidades públicas ocupam importante papel na sociedade brasileira,


consolidando-se em instituições de grande legitimidade junto à sociedade local em que atuam.
Historicamente vinculadas à formação em nível superior, à pesquisa, à extensão, à inovação e
ao pensamento crítico, destacam-se como vetores do desenvolvimento local, regional,
nacional e internacional, uma vez em que operam em rede. Neste quadro, não menos
importante emerge a atuação das universidades no setor cultural.
De forma geral, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul assume o pleno
compromisso na formação em diversas áreas de conhecimentos. Participando nesta
construção da educação, a dimensão da cultura na UFRGS vem sendo tomado como um dos
elementos centrais, assumindo lugar decisivo na produção e reflexão crítica do conhecimento
formal. Isto permite identificar a Universidade como um “lugar da cultura”, assegurando a
todos que dela participam possibilidades de trocas culturais. Aliado ao conhecimento formal
que é essencial, a Universidade, igualmente, tem exercido importante papel na formação do
capital cultural em nível regional, relacionando a cultura com fator de desenvolvimento
humano. Mais abrangente e distante da técnica, ainda que não desagregada a esta, da
associação da cultura formal com a experimental (experimental enquanto oportunidade da
ampliação da esfera do ser) desenvolve-se um processo subjetivo que resulta em um ser

1
Especialista em Economia da Cultura (PPGE/UFRGS) e Gestão Cultural (Observatório Itaú Cultural), diretora
do Departamento de Difusão Cultural da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS. Correio eletrônico:
claudia@difusaocultural.ufrgs.br..
2
Mestre em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), técnico-administrativo no Departamento de Difusão
Cultural da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS. Correio eletrônico: rafael_derois@difusaocultural.ufrgs.br.

376

V V
humano mais completo. Ou, quem sabe, mais sensível ou capaz de trazer em suas convicções
um capital cultural que o acompanhará em todas as situações da vida.
Pensar gestão cultural no âmbito de uma universidade pública e os reflexos em seu
entorno desafia padrões de pensar e fazer, pois os velhos métodos baseados na
compartimentação e na fragmentação se apresentam insuficientes aos desafios da
complexidade global. A extensão universitária e a gestão cultural estão se propondo a assumir
a condição de agentes ativos neste processo, estimulando e mediando o diálogo
multidisciplinar, criando condições, meios e mecanismos que possam contribuir para a
compreensão e/ou contestação.
A partir da experiência acumulada ao longo do tempo na UFRGS, apontamos que a
academia, igualmente, oferece pleno potencial em integrar o circuito artístico-cultural da
região em que está inserida através da difusão e estímulo à produção cultural. Está em jogo
não se restringir a uma produção interna, focada em sua comunidade acadêmica, mas figurar
de forma protagonista na cena cultural local, fundindo-se com a própria cidade em que é,
inclusive, parte constitutiva.
A programação cultural associada às comemorações dos 80 Anos da UFRGS,
realizada ao longo de 2014 e coordenada pelo Departamento de Difusão Cultural da Pró-
Reitoria de Extensão da UFRGS (DDC), atendeu o objetivo de mesclar a tradicional formação
acadêmica com a ampliação de equipamentos e produtos culturais presentes na cidade de
Porto Alegre. Neste artigo marcado pelo tom de relato, intentamos apresentar a forma na qual
a UFRGS desenvolve sua política em arte e cultura. Neste sentido, apropriar-nos-emos do
contexto da programação cultural dos 80 Anos da UFRGS como meio de demonstrar a
centralidade na qual a Universidade tem dedicado à cultura através de seu modelo de gestão.

A UFRGS E OS LOCAIS DA CULTURA NA INSTITUIÇÃO


Antes de dar início às considerações suscitadas a partir da gestão cultural da
programação dos 80 anos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, convém traçar,
ainda que de forma sintetizada, o perfil institucional e os principais locais onde arte e cultura
têm apresentado centralidade.
A UFRGS, sediada na cidade de Porto Alegre e com presença física em outros três
municípios3, é uma instituição com destacada atuação internacional nas áreas de ensino,

3
São quatro campi e outras unidades presentes na cidade de Porto Alegre, a sede do Ceclimar em Imbé (RS), a
Estação Experimental Agronômica (Eldorado do Sul) e o recém-inaugurado Campus Litoral Norte, em
Tramandaí (RS).

377

V V
pesquisa e extensão. Trata-se da melhor universidade do Brasil, de acordo com a avaliação
INEP/MEC (Índice Geral de Cursos – 2013), contando com 89 cursos de graduação
presenciais, 8 cursos à distância, 72 programas de mestrado e 69 de doutorado (estes, com
mais de 75% com avaliação igual ou superior à CAPES 5). De acordo com os mais recentes
dados estatísticos da Universidade, contamos com cerca de 50 mil alunos entre graduação e
pós-graduação, 2500 docentes com alto grau de qualificação e, aproximadamente, 2800
técnicos-administrativos. Existe mais de 700 grupos de pesquisa que congregam mais de seis
mil pesquisadores, Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia e Centros Interdisciplinares
de Pesquisa. No ano de 2014, a UFRGS contou mais de 2100 ações de extensão, sendo 484 o
total das ações registradas área temática “Cultura”4. Todo esse agregado de ações é
consolidado não apenas em bases quantitativas, mas, também, de reconhecimento da
qualidade da universidade em seu escopo de ação. Uma medida disso é o destacado
desempenho em rankings e índices que mensuram a qualidade de instituições de ensino
superior em escala mundial, seja em ensino, pesquisa e inovação ou extensão e cultura.
Focando neste último dado apreciado, as 484 ações registradas no Sistema de
Extensão da UFRGS em “Cultura” reflete a proficuidade na qual a universidade tem atuado
nesta área temática5. Estas ações, coordenadas por docentes ou técnico-administrativos com
formação superior, estão presentes na quase totalidade das unidades acadêmicas que
compõem a Universidade, articulando a produção e difusão artístico-cultural com ensino e
pesquisa através do dialogo estimulado entre membros da comunidade acadêmica e da
sociedade mais ampla. Destacam-se neste panorama a ações que tem gênese nas unidades
acadêmicas em que a dimensão cultural apresenta grande afinidade ou complementação com a
área específica. É o que têm demonstrado, ao longo do tempo, tantas propostas originais da
Faculdade de Educação, Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, Instituto de Letras e
o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Paralelo a esta participação, considerável
porcentagem destas ações de extensão em “Cultura” tem origem no Instituto de Artes da

4
Compreende a denominação “Cultura” as seguintes definições: desenvolvimento de cultura; cultura, memória e
patrimônio; cultura e memória social; cultura e sociedade; folclore, artesanato e tradições culturais; produção
cultural e artística na área de fotografia, cinema e vídeo; produção cultural e artística na área de música e dança;
produção teatral e circense; rádio universitária; capacitação de gestores de políticas públicas do setor cultural;
cooperação interinstitucional e cooperação internacional na área; cultura e memória social.
5
Lembramos que, seguindo as definições do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas
Brasileiras (FORPROEX), todas as ações, projetos e programas de extensão na UFRGS são cadastrados em uma
das áreas temáticas que seguem: Comunicação, Cultura, Direitos Humanos e Justiça, Educação, Meio Ambiente,
Saúde, Tecnologia e Produção e Trabalho.

378

V V
UFRGS6, uma das principais instituições de formação e reflexão no campo artístico do Estado
do Rio Grande do Sul.
Além do Sistema de Extensão, que auxilia na organização e registro das diversas
atividades concentradas em cultura que partem das unidades acadêmicas, a UFRGS, através
da estrutura da Pró-Reitoria de Extensão, atua diretamente nesta esfera por intermédio de
setores especializados, como o Museu da UFRGS, o Planetário Prof. José Baptista Pereira e o
Departamento de Difusão Cultural. Observamos que estas atividades constantes não são
incluídas na qualidade de ações de extensão registradas, na medida em que o caráter artístico-
cultural está intimamente imbricado aos objetivos-fins.
O Departamento de Difusão Cultural (DDC) foi criado na década de 1980,
inicialmente denominado de Divisão de Difusão Artístico-Cultural, tendo como principal
finalidade a divulgação das atividades desenvolvidas pela Pró-Reitoria de Extensão. Com o
passar do tempo a ainda Divisão foi expandindo seu potencial e desenvolvendo novas
iniciativas caracterizadas pela produção e gestão institucional em arte e cultura. Atualmente,
envolvendo uma equipe de servidores e bolsistas de diferentes áreas, o DDC desenvolve
projetos com a intenção de promover a cultura nas suas mais variadas vertentes – música,
cinema, teatro, artes visuais, entre outras. Dessa forma, tentamos criar um espaço de
oxigenação da mente e do corpo, articulando diferentes agentes da Universidade, integrando
professores em consultoria e curadoria, alunos pela experimentação artística e produção
cultural e de técnicos como facilitadores e viabilizadores da ação cultural. Trabalhamos para
que esta participação evolua no sentido de ampliar a mobilização da comunidade acadêmica e
os estímulos aos diálogos mediados através de ações culturais múltiplas. É desta forma que as
ações concebidas e produzidas pelo DDC buscam propiciar a vivência e a experiência da
cultura ao público, despertando na comunidade o interesse e a reflexão sobre as mais diversas
manifestações artísticas, com vistas à constituição de um ambiente que o próprio público
possa inventar seus próprios fins na cultura.
Herdeiro de um histórico de quase 35 anos, o DDC reflete em suas bases conceituais
os principais percursos em que os debates sobre cultura e gestão cultural têm transitado no
escopo da sociedade brasileira. Em sintonia com os avanços na perspectiva do conceito de

6
O Instituto de Artes da UFRGS, fundado em 22 de abril de 1908 sob o nome de "Instituto de Bellas Artes", é
composto, atualmente, pelos departamentos de Artes Visuais, de Arte Dramática e de Música e pelos programas
de pós-graduação em Música, em Artes Visuais e em Artes Cênicas. Possui mais de 100 professores, 55
funcionários do corpo técnico-administrativo e cerca de 800 alunos regularmente matriculados na Graduação e
na Pós-Graduação. Além disso, compete ao IA/UFRGS administrar o Auditorium Tasso Correa, a Pinacoteca
Barão do Santo Ângelo e as salas Alziro Azevedo e Qorpo Santo, todos equipamentos culturais da Universidade.

379

V V
cultura, alavancados na última década através da delimitação das diretrizes e metas do Plano
Nacional de Cultura, nossa atuação concebe a cultura em suas três dimensões fundamentais:
simbólica, cidadã e econômica. Compete ao DDC, enquanto expressão do Estado brasileiro,
abordar cultura através da valorização e articulação das linguagens artísticas consolidadas
junto às múltiplas manifestações que incidem nos saberes, fazeres e modos de ser que
caracterizam a diversidade da sociedade brasileira e que, historicamente, não foram alvos da
ação pública.
Associada a esta perspectiva conceitual, compreendemos que para gestão cultural não
existem modelos gerais, sendo importante a atuação enquanto agentes de mudanças. Para tanto,
a constituição do modelo de gestão cultural próprio parte “(...) do conhecimento das condições e
circunstâncias presentes no contexto em que se vai atuar, confrontando e desenvolvendo as
diferentes formas de expressão e manifestação cultural” (Sousa e Silva, 2009: 5).
Sobre esta égide, O DDC propõem em seus planejamentos anuais, e em sintonia com
o papel social desempenhado pela universidade, a mediação e diálogo entre expressões
artístico-culturais comumente concebidas como eruditas e populares. Percebendo que estas
fronteiras (se é que de fato existem) não são bem definidas e, acima tudo, apresentam
porosidades, a atuação do DDC busca pela excelência da diversidade cultural através da não
hierarquização de manifestações culturais. Pelo contrário, os esforços são direcionados na
elaboração de um quadro relacional simétrico, requisito elementar à eficiente dialogia.
Lastreado pela concepção da universidade enquanto um espaço de estímulo a
desterritorialização de ideias e conceitos fixados, evocamos o pensamento de Márcio
Goldman ao refletir a antropologia contemporânea, deslocando-o para o momento da
produção cultural e as consequências resultantes desses encontros que tem como palco a
universidade:
Os discursos e práticas nativas devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar o nosso
pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre a
nossas formas de dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças
minoritárias que pululam em nós mesmos (Goldman, 2008: 7).

A partir desta consideração, o que reivindicamos na gestão cultural institucional é a


compreensão de que arte e cultura possuem excelência na construção do momento de
desestabilização do pensamento fixado, abrindo caminhos a possibilidades outras. Ou, como
expresso por Jorge Luis Borges ao refletir sobre o livro, a inerente condição de servir a um

380

V V
não-lugar7. Evidente que para o alcance de uma relação simétrica, como pretendida por
Goldman a partir de sua inspiração na antropologia simétrica de Bruno Latour, esta
desestabilização deve ser sentida em ambos os lados que circunscrevem uma relação, razão
pela qual devemos fornecer as mesmas condições de produção tanto a grupos e expressões
comumente associados ao erudito, quanto ao popular. Não se trata de impor e subjugar a um
determinado artista, grupo ou parceiro certa forma acabada de realizar um evento cultural,
mas, isto sim, sem nunca abrir mão da excelência na produção pretendida pela Universidade,
oferecer um momento em que estes também possam desestabilizar suas formas dominantes de
pensar, sentir e atuar.
Sobre essas premissas o DDC propõe uma politica cultural na UFRGS que integre as
comunidades acadêmica e a sul-rio-grandense em suas diversidades, buscando abrir cada vez
mais espaço para a cultura através do estímulo de diferentes ações que possibilitem a união
entre o sensível e o inteligível, entre o científico e o poético na formação de cada indivíduo.

OS 80 ANOS DA UFRGS
No ano de 2014, a UFRGS comemorou seu 80º aniversário8. No intuito de celebrar
esta data, a instituição promoveu a realização de uma vasta programação comemorativa. Estas
atividades especiais foram destacadas pelo selo de distinção referente aos 80 Anos.
No rol destas atividades que ocorreram ao longo do ano de 20149, desencadeadas
pelas unidades acadêmicas e setores vinculados à administração central, a programação
cultural foi um importante destaque. Na idealização da programação comemorativa, foi
ressaltada, entre outros aspectos, a relação estabelecida entre a instituição e a sociedade
gaúcha construída através das décadas. De fato, a UFRGS assumiu nos últimos oitenta anos o
compromisso com o desenvolvimento local em diversos setores sociais, tais como artístico,
científico e educacional, constituindo-se em um importante vetor de inovação e crítica
respaldado pela legitimidade de ser umas das instituições mais respeitadas no Estado do Rio
Grande do Sul. Obviamente, evidenciamos que esta posição de prestígio social, antes um

7
Ou como escrito pelo escritor argentino: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem
dúvida, é o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista;
o telefone é extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa:
o livro é uma extensão da memória e da imaginação” (Borges, 2011: 11).
8
No histórico do ensino superior da capital gaúcha, temos a formalização das primeiras escolas em 1895. Em
1934 foi criada a Universidade de Porto Alegre, que incorporou estas escolas. Em 1947 passou a ser definida
como Universidade do Rio Grande do Sul, cuja pronuncia da sigla (URGS) é reconhecida até os dias atuais. Em
1950 foi realizada a federalização, passando a ser a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
9
A programação completa pode ser conferida no site http://www.ufrgs.br/80anos/.

381

V V
mérito isolado de algum grupo específico, sintetiza a retroalimentação que deu corpo a
UFRGS, sendo esta o reflexo da própria sociedade local. Nesta percepção que procura
valorizar a interação entre sociedade mais ampla e a instituição acadêmica, a cultura, por ser
um setor interno que a longa data tem expressado este relacionamento de forma eficiente, foi
o principal campo em que as comemorações foram planejadas.
Ainda no ano de 2013 foi constituída a comissão responsável pelo planejamento e
realização da programação comemorativa. Competiu ao DDC, sem abdicar dos projetos e
parcerias em continuidade10, elaborar e executar a proposta cultural. Neste sentido,
observamos que a participação da cultura nas celebrações não deveria estar restrita à
elaboração de uma sucessão de eventos de puro entretenimento. Pelo contrário, a partir de seu
exercício institucional, o DDC estimulou a realização de atividades artístico-culturais
alinhadas com valores culturais brasileiros, a tempo em que tais produções, consumidas pelo
público em seus momentos de lazer (tomando como um tempo para si, não necessariamente
de ócio), caracterizassem um espaço-tempo de possível ampliação do capital cultural.
Em síntese, antes uma séria desencadeada de cerimônias protocolares, buscamos
realizar um tributo à sociedade gaúcha, oferecendo de forma democrática e gratuita uma
programação de qualidade que conjugasse o estímulo à criação artística, a ampliação na
formação e a expansão dos meios de fluição e da livre circulação de valores culturais.
Destacamos que os aspectos bem sucedidos correspondem a determinados fatos
fulcrais na gestão cultural interna da UFRGS, com destaque a estrutura administrativa que
fomenta a consolidação deste campo profissional como “la expresión de la necesidad de
capital humano en el marco de las políticas culturales” (Sempere, 2005: 9). Neste sentido, a
gestão cultural da UFRGS não se prende a modelos canônicos, uma vez em que a esfera da
cultura, de forma geral, caracteriza-se pelo flete ao imprevisível e inovador. Se por um lado
este aspecto pode evocar a incerteza, por outro representa sua própria libertação. Liberdade
ampliada pela atuação em rede e construção de parcerias. De fato, ainda que diferentes
atividades tenham como local de concepção e realização os quadros internos do DDC, a
ampliação de sua atuação se efetiva através da costura junto aos parceiros internos e externos
da Universidade. Esta observação notabiliza que a gestão só pode ser positiva na medida em
que se estrutura a partir do franco entrecruzamento de agentes, grupos e instituições que
atuam em cultura.

10
O relatório completo das atividades desenvolvidas pelo DDC no ano de 2014 pode ser acessado no site:
http://www.ufrgs.br/difusaocultural/projeto.php?id=158.

382

V V
Se nos primórdios, ainda no tempo da Divisão de Difusão Artístico-Cultural, o seu
papel esteve restringido à divulgação, atualmente o DDC, sem abdicar desta tarefa, opera a
produção cultural e, principalmente, consolida-se como local de mediação. E justamente esta
posição mediadora que permite a conexão junto aos principais movimentos que animam o
universo cultural local e regional, possibilitando uma perspectiva conciliadora entre demandas
e reais possibilidades de realização.

A PROGRAMAÇÃO CULTURAL DOS 80 ANOS DA UFRGS


Em 2014, com exceção do período de realização do Mundial de Futebol que alterou o
ritmo da cidade de Porto Alegre, a programação dos 80 Anos da UFRGS integrou o panorama
de opções culturais da cidade. Como comentado anteriormente, esta era o principal objetivo
do planejamento. Seguindo a forma de gestão em cultura institucional, a UFRGS estabeleceu
como diretriz a promoção de atividades que, sem abdicar da comunidade acadêmica, estivesse
plenamente associada à sociedade mais ampla.
Ao examinar as produções envolvidas nas comemorações dos 80 Anos da UFRGS,
percebemos que os planejamentos estiveram associados a três formas de origem: eventos com
produções internas ao DDC, cujos conceitos estiveram em diálogo com a perspectiva de
interação temporal entre Universidade e sociedade sul-rio-grandense; produções através de
parcerias externas, onde o DDC alia-se a produtores e instituições diversas na realização; e,
por fim, as produções através de parcerias internas à Universidade, às quais se desdobra
diferentes níveis de relação entre setores da universidade na produção cultural. Revisitemos,
brevemente, cada forma de produção e seus produtos culturais.

1. Produções internas do DDC


Ainda que nenhuma ideia tenha origem plenamente espontânea, as produções
internas do DDC se caracterizam pelos projetos e eventos que tem a concepção, planejamento,
execução e avaliação efetuadas pelo quadro interno do Departamento. Além dos técnicos-
administrativo que atuam de maneira bem próxima ao exercício de produtores culturais,
destacamos a participação protagonista dos alunos bolsistas, conferindo experiência formativa
ao corpo discente da Universidade. Nesta forma de produção cultural, estiveram incluídos na
programação dos 80 Anos os seguintes projetos e atividades:

383

V V
Aula Espetáculo com Gilberto Gil: em um evento de grande mobilização, a aula-
espetáculo foi uma apresentação acústica de diversas canções compostas por Gilberto Gil
intercaladas por diálogos mediados pelo professor de literatura Flávio Azevedo. O principal
objetivo da interlocução foi oferecer um recurso dialógico que estimulasse a aproximação
entre o artista e sua obra junto ao público, de forma que cada composição, para além da
plenitude de sua beleza, pudesse ser examinada em seu contexto de origem. A essência
poética de diversas manifestações artísticas traz, indubitavelmente, uma análise crítica da
realidade social. A abordagem das diversas histórias que rondaram a gênese das canções
possibilitou, através da descontração de suaves curiosidades que humanizam a genialidade do
ídolo, estender ao próprio ambiente histórico, político, social e cultural que Gilberto Gil
interpretou na qualidade de grande nome da música popular brasileira.

Ciclo de Cinema François Truffaut | O homem que amava o cinema: para


celebrar os 80 Anos da UFRGS preservando a posição da Sala Redenção como alternativa ao
circuito de cinemas de Porto Alegre, foi elaborado um ciclo em homenagem a um dos mais
importantes diretores do cinema francês do século XX, no ano em que se completou o 30 anos
de sua morte. O cineasta foi um dos nomes fundamentais da geração de novos realizadores
que revolucionou o cinema francês na década de 1960 com o movimento nouvelle vague. Para
criar a programação da Sala Redenção, partiu-se da leitura do livro “Os filmes de minha
vida”, no qual Truffaut apresenta, em vários artigos, considerações a respeito de diretores que
fizeram parte de sua formação.

Conferências UFRGS: Passado mais que presente: o ciclo esteve associado aos
festejos trazendo à pauta experiências e reflexões científicas de seus professores cujas
trajetórias representam também a contemporaneidade do conhecimento produzido na
Universidade. Reprisando edições anteriores, o projeto integrou o plano de capacitação de
servidores da UFRGS. A partir de inscrição, foi oferecido ao conjunto dos técnicos-
administrativos da Universidade a possibilidade de participação com geração de certificação e
horas de capacitação, uma vez em que o projeto estimulou a reflexão dos processos de
construção do conhecimento sobre a sociedade, a cultura e os tempos em que estamos
vivendo. Estendendo os produtos derivados dos 11 encontros, a UFRGS TV realizou ao longo
do ciclo de 2014 a gravação e produção de programas específicos. Transmitidos em sua grade

384

V V
de programação, todas as conferências foram exibidas na íntegra através da adequação em
duas partes.

Unimúsica – Série Compositores: a Cidade e a Música: no espírito de celebração


pelos 80 anos da UFRGS, foi mais do que justo lembrar também a cidade que a viu surgir e
crescer. O Unimúsica trouxe essa memória através das obras de sete compositores gaúchos
que foram homenageados, ao longo da temporada, em concertos especialmente
encomendados. Todos os compositores têm uma forte relação com Porto Alegre, seja porque
aqui nasceram ou viveram uma parte importante de suas vidas, seja porque aqui fizeram sua
formação, deram início ou firmaram sua trajetória profissional. Foram homenageados
Radamés Gnatalli, Octavio Dutra, Nei Lisboa, Armando Albuquerque, Vitor Ramil, Barbosa
Lessa e Lupicínio Rodrigues através de sete apresentações que contaram com nomes como
Hamilton de Holanda, Ná Ozzeti, Adriana Calcanhotto, Chico Cesar, Yamandu Costa, entre
outros.

Apresentação da Velha Guarda da Portela: em tons de fechamento da


programação pela passagem dos 80 anos a Universidade festejou seu aniversário com a
comunidade de Porto Alegre com o espetáculo da Velha Guarda da Portela. Tradicional grupo
de samba, a Velha Guarda da Portela veio mostrar alguns sucessos que consagram sua
trajetória, em uma noite que celebrou a história da UFRGS com todos os que construíram e
constroem a Universidade.

2. Produções através de parcerias externas


Não pode ser entendida como uma relação de mera colaboração subordinada de uma
das partes. Mas, pelo contrário, trata-se daquelas atividades em que a parceria junto aos
agentes culturais e instituições externas à UFRGS foram fundamentais para a realização.
Obviamente, existe o caráter dialógico, na qual o produto cultural final é resultado de um
processo de negociação e viabilidade para ambos os lados. Nesta forma, o DDC talhou os
seguintes eventos:

Aula Magna com Sebastião Salgado e Exposição Externa Gênesis: em parceria


com o 7º Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre, a UFRGS teve a honra de
acolher Sebastião Salgado e Lélia Wanick Salgado. Entre as inúmeras atividades

385

V V
desenvolvidas pelos convidados na cidade de Porto Alegre, houve a realização de palestra
que, na agenda oficial da Universidade, constituiu-se na própria Aula Magna de 2014. Não
obstante a esta participação, a UFRGS ainda contou com a oportunidade de sediar a
Exposição Externa Gênesis, montada no pátio central do Campus Centro.

Pré-lançamento do Festival de Violão: Recital solo de Thibault Cauvin: parceria


com a Aliança Francesa de Porto Alegre, a UFRGS sediou a apresentação deste violonista
durante sua turnê organizada pelo governo francês.

Conferência com Antoine De Bacque: Por meio de uma parceria entre UFRGS,
Aliança Francesa de Porto Alegre e Embaixada da França de São Paulo, a Universidade
recebeu Antoine de Baecque, professor de História e Estética do Cinema na Ecole Normale
Supérieur em Paris. De Baecque veio a Porto Alegre especialmente para homenagear o diretor
francês François Truffaut.

OSPA, Nelson Freire e Chopin: Nelson Freire apresentou-se no Salão de Atos da


UFRGS juntamente com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre pela primeira vez. O destaque
do repertório foi à obra do compositor que se consagrou como ícone do piano romântico:
Frédéric Chopin (1810-1849). O público de Porto Alegre pode apreciar a execução do
"Concerto para piano e orquestra n° 2" do músico polonês por um dos mais ilustres pianistas
da atualidade ao lado de nossa orquestra.

3. Produções através de parcerias internas


Mesmo que considerável parte das atividades em arte e cultura esteja desconcentrada
na UFRGS, principalmente através do Sistema de Extensão, o DDC assume um relevante
papel institucional no que se refere a estas produções, na medida em que está subordinado a
uma das pró-reitoras de atividades-fim. Sobre este aspecto, efetiva parceria tanto na ordem de
auxilio técnico-administrativo, quanto na concepção, planejamento e execução. Nesta forma
de produção, três atividades foram incorporadas na programação dos 80 Anos da UFRGS:

VI Festival do Violão da UFRGS: Reunindo alguns dos maiores expoentes do


violão da atualidade, o VI Festival de Violão da UFRGS aconteceu de 21 a 25 de setembro de
2014. Coordenado pelo professor Daniel Wolff, o evento contou com grandes nomes da

386

V V
música brasileira, como Egberto Gismonti, Turíbio Santos, Marco Pereira e João Pedro
Borges. Do exterior, houve a presença do alemão Daniel Göritz (professor da Escola Superior
de Música de Berlim) e do premiado violonista mexicano Francisco Gil. O festival foi uma
parceria entre o Departamento de Música do Instituto de Artes e o Departamento de Difusão
Cultural.

Ópera da UFRGS: Produzida e executada por professores e alunos dos


Departamentos de Música, Arte Dramática e Artes Visuais do IA/UFRGS, a ópera reuniu
cerca de sessenta pessoas entre músicos, cantores, atores e bailarinos para a apresentação de
duas edições apresentadas no Theatro São Pedro: Dido e Enéias e Orfeu. Retratando a
atmosfera criada nos últimos anos, reunindo pessoas e revelando o que elas têm de melhor, as
montagens possibilitaram a todos os integrantes da equipe e, em especial, aos espectadores,
um exercício desafiador e apaixonante.

Exposição Presença da Pinacoteca Barão do Santo Ângelo nos 80 Anos da


UFRGS: Durante doze meses a equipe do Departamento de Difusão Cultural, ao lado da
equipe do Instituto de Artes, planejou, prospectou e viabilizou a Exposição "Presença da
Pinacoteca Barão de Santo Ângelo nos 80 anos da UFRGS". O ponto de partida foi unir
experiências: dos curadores, do Departamento de Difusão Cultural da UFRGS, dos
acadêmicos, dos professores e da equipe de diferentes profissionais que se uniram ao projeto:
restauradores, fotógrafos, criadores gráficos e museógrafos. O primeiro módulo da exposição,
inaugurado em 25 de novembro de 2014, apresenta um conjunto de esculturas e pinturas do
acervo, informando sobre sua história, seu desenvolvimento e sua importância enquanto
coleção pública e como parte atuante da vida acadêmica e cultural do Rio Grande do Sul,
promovendo o conhecimento e difundido a riqueza e diversidade da produção plástica e
visual, nacional e internacional.

ENTRE POTENCIAIS E LIMITAÇÕES: GESTÃO E PRODUÇÃO CULTURAL NA


UFRGS
Resgatar a experiência sobre a realização da programação cultural dos 80 Anos da
UFRGS oferece a oportunidade de refletir sobre a maneira pela qual uma instituição federal
de ensino superior pode desenvolver a gestão cultural interna. Enquanto instituição pública
dotada de autonomia administrativa, reserva-se a um papel social diferenciado quando

387

V V
comparado com o poder público, o que reflete, invariavelmente, no setor da cultura. Frente a
sua presença e prestígio junto à sociedade local, nunca se olvidando de sua própria influência
em âmbitos nacional e internacional, compreendemos que a universidade pública assume
relevância como local da e para a cultura. Adiciona-se a uma complexa rede de agendes
públicos e privados, ampliando a oferta de bens culturais disponíveis em dada região.
Evocando a constante busca pela excelência em suas diversas atividades, circunscritas na
extensão, ensino e pesquisa, a academia tem o compromisso de atuar diretamente na cultura,
expandindo a criação dos meios pelos quais a população efetiva sua vivência artístico-
cultural. Está em jogo à articulação entre o seu compromisso histórico de formar profissionais
em artes, crítica, demais saberes vinculados à cultura e o potencial mais do que bem-vindo de
integrar o circuito cultural local, oferendo bens e serviços culturais que ampliem a oferta em
dada região.
Para o sucesso desta empresa, reconhecemos a importância de fomento aos quadros
profissionais diretamente vinculados à gestão e produção cultural nas universidades. Tal como
se dá na experiência acadêmica, onde docentes e discentes integram-se em amplas redes de
saberes, o setor cultural das universidades devem estar permanentemente em interação
profissional com a esfera cultural presente além dos portões dos campi, rompendo
decisivamente os muros simbólicos que segregam a academia e o “mundo externo”.
Uma leitura superficial da programação dos 80 Anos da UFRGS pode, erradamente,
compreender que a razão do sucesso na realização de atividades com personagens renomados
da cultura brasileira ou de projetos maiores se deve a simples disponibilização dos recursos
orçamentários necessários. Sabemos de antemão que a mera disponibilização de volumosa
fonte de financiamento não reflete, necessariamente, uma gestão competente e eficiente em
qualquer área da universidade. E não seria diferente com a cultura onde, conforme nossa
experiência, percebemos a necessidade de atuar gradualmente. O portfólio, ao longo dos anos,
é a principal ferramenta de justificação e captação de recursos.
E essa experiência acumulada pelo DDC em sua história, constantemente dividida e
acrescentada junto aos demais setores da Universidade, pode ser percebida como um dos
requisitos chaves na definição da programação. Observamos, aqui, um importante aspecto que
envolve de forma central a gestão cultural proposta pela UFRGS. Junto à qualificação dos
quadros profissionais em cultura, é indispensável à capacitação nos trâmites administrativos.
Enquanto instituição pública, portanto operando sobre a mesma legislação que rege as

388

V V
operações financeiras do Estado, diversos entraves podem surgir ao se atuar junto ao meio
artístico-cultural.
Reconhecemos, em nível institucional, a dificuldade em se realizar a contratação de
artistas e serviços vinculados à produção cultural, em especial frente à falta de conhecimento
quanto à elaboração de processos de inexigibilidade de licitação. Por outro lado, quando
relacionados com grupos culturais comunitários ou mestres de saberes, emerge impedimentos
de natureza burocrática, na medida em que estes parceiros, em geral, não possuem as
documentações essenciais para firmar contratos de natureza financeira com a administração
pública. Neste caso, acreditamos que a capacitação dos quadros da universidade deve ser
expandida a estes grupos, de forma a fomentar a própria profissionalização através do auxílio
e informação, oferecendo uma experiência bem sucedida que possa repercutir em seus
projetos de vida.
Acima de tudo, independente do nível de reconhecimento de dado artista ou produtor
cultural, os gestores culturais em universidades devem ter o pleno domínio dos caminhos e
restrições que o contrato junto à administração pública impõe, criando dessa forma um
ambiente caracterizado pela responsabilidade. Recordamos que este posicionamento incide na
própria economia da cultura local, uma vez em que eventos culturais envolvem uma gama de
profissionais e serviços. Importa que os parceiros tenham ciência de que realizar junto à
administração pública é possível.
Tangenciando esse tema da profissionalização nas relações contratuais entre
universidade e agentes culturais, retomamos a relevância do local de mediação. Como
referido em outros momentos deste relato, compreendemos que a presença de um quadro de
servidores qualificado em cultura e capacitado administrativamente é a base para o
desenvolvimento de um espaço de articulação. Se é comum a emergência de coletivos em
constante relacionamento no meio acadêmico, o que estimula a expansão de saberes e fazeres,
também não é raro o aparecimento de iniciativas que se pretendem isoladas, centralizadoras
de todo o processo de produção cultural. Caso a cultura seja uma esfera complementar à
finalidade de determinado setor, o que incorre na pouca experiência do fazer em arte e cultura,
é possível que o resultado final minimize o potencial intrínseco. Ou até mesmo expresse um
ato de desrespeito junto aos parceiros.
Exemplos deste procedimento podem ser encontrados em algumas propostas de
cunho artístico-cultural que partem da academia que envolvem atores sociais representantes
de grupos em situação de vulnerabilidade social. Tencionando fronteiras conflituosas entre as

389

V V
noções reivindicadas de popular e erudito, como dois polos opostos essencializados, cria-se
um ambiente que muitas vezes beira a hostilidade. Sobre o pretexto de respeito às tradições e
estéticas êmicas, podem ser negligenciados os diversos e detalhados elementos que
correspondem à qualidade da produção cultural almejado pela Universidade em seu espaço de
realização. Ainda que os critérios que definem a noção de qualidade sejam plenamente
variáveis entre espaços, tempos e grupos sociais, a universidade tem o compromisso de dispor
o máximo de seus recursos a fim de favorecer a autêntica troca de saberes, só possível através
do diálogo entre todas as partes envolvidas. Da mesma forma que é inadmissível uma postura
autoritária e intervencionista onde a academia impõe determinado projeto ou ação a um grupo
social, constatamos que o movimento inverso não deve ser reproduzido. Neste sentido, urge a
necessidade de oferecer as mesmas condições de oportunidade a todos os parceiros que
dialogam com a universidade. Caso contrário, na contramão dos objetivos, abre-se a
possibilidade de estimular a própria segregação e manutenção das desigualdades que maculam
nossa sociedade.

CONCLUSÃO
A programação cultural vinculado aos 80 Anos a UFRGS partiu da premissa de
enaltecer a relação estabelecida à longa data entre a academia e a sociedade gaúcha, em
especial, na cidade de Porto Alegre. Para além de uma grade de atividades realizadas em
razão de um ato comemorativo, revindicamos que a universidade pública, a partir de sua
participação intensa no contexto da sociedade local em que opera, tem o compromisso de
participar ativamente, e cada vez mais, do circuito cultural adjacente. Assim como em outras
instâncias, a instituição deve integrar o panorama artístico-cultural da cidade, oferecendo
novas possibilidades ao acesso e fluição cultural, valorizando as diversas identidades que
compõem a sociedade brasileira. Acima de tudo, interessa a universidade, inspirado e
interação com os modelos municipais, estaduais e federal, estimular o desenvolvimento de um
plano de cultura próprio.
Por via das atividades dos 80 Anos e tantas outras ações e projetos desencadeados
por diversos setores, enfatizamos a atuação da UFRGS em múltiplas expressões das
linguagens artísticas e manifestações culturais. Através de atividades gratuitas, amplamente
divulgadas, abertas às comunidades acadêmica e externa e plenamente marcadas pela
valorização de bens culturais brasileiros, a atividades oferecidas se apresentam estritamente

390

V V
comprometida com a noção do acesso universal à cultura como condição imprescindível ao
exercício da cidadania.
Resgatar essa memória foi uma forma de enfatizar o compromisso institucional em
ampliar o capital cultural como vetor do desenvolvimento local, relacionando intimamente
cultura e educação em um ambiente universitário em constante interação com o Estado do Rio
Grande do Sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Jorge Luis. Borges, oral & Sete noites. Companhia das Letras, São Paulo, 2011.

FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS


BRASILEIRAS. Política Nacional de Extensão Universitária. Manaus, 2012.

GOLDMAN, Márcio. Os Tambores do Antropólogo: Antropologia Pós-Social e Etnografia.


Ponto.urbe, Ano 2, versão 3.0, julho de 2008.

MINISTÉRIO DA CULTRA. Caderno “ iretrizes Gerais para o Plano acional de Cultura”.


Brasília, 2008.

SEMPERE, Alfons Martinell. La Gestión Cultural: singuralidad profesional y perspectivas de futuro.


Cátedra Unesco de Políticas Culturales y Cooperación, 2005. 18 pág.

SOUSA E SILVA, Liliana. Gestão Cultural Contemporânea: Criação das condições para que as
pessoas inventem seus próprios fins. Curso de Especialização em Gestão Cultural – Itaú Cultural.
Paper 1. Outubro de 2009. 10 pág.

391

V V
ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL: UMA ALTERNATIVA DE
DESENVOLVIMENTO A PARTIR DE SISTEMAS DE INOVAÇÃO E PRODUÇÃO
DE SETORES CRIATIVOS FORTALECIDOS POR MEIO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS
Luciana Lima Guilherme1
Claudia Sousa Leitão2

RESUMO: Este trabalho se propõe a analisar os potenciais do desenvolvimento de políticas


públicas de economia criativa no Brasil, voltadas para o fortalecimento de sistemas de
inovação e produção dos setores culturais e criativos, tomando como exemplo a indústria
fonográfica. Através de uma pesquisa bibliográfica, conceitos associados à formulação de
políticas públicas de economia criativa e à criação e ao fortalecimento de redes, com suas
implicações na criação de novos arranjos institucionais, são apresentados integrando visões
teóricas pós-fordistas e evolucionárias. O potencial dos setores culturais e criativos
brasileiros é reconhecido como uma alternativa real de fortalecimento e desenvolvimento
local e regional, a partir de sistemas de governança articulados entre os diversos atores das
cadeias produtivas e investimentos voltados para a criatividade e inovação.

PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas, economia criativa, Sistemas de inovação e


produção.

Introdução
A economia criativa vem crescendo no mundo nas últimas décadas, demonstrando
sua capacidade de resistir às crises econômicas e de estimular uma cultura empreendedora. O
comércio mundial de bens e serviços criativos atingiu um nível recorde de US$ 624 bilhões
em 2011 (UNCTAD, 2013). Considerando o valor agregado da cultura na produção de bens e
serviços, os países signatários da “Convenção da UNESCO sobre a Promoção e Proteção da
Diversidade das Expressões Culturais” passam a considerar a cultura como o quarto pilar do
desenvolvimento das Nações. Por isso, a economia criativa tem sido considerada como uma
alternativa econômica para os países de grande diversidade cultural, sobretudo, para os países
em desenvolvimento. Desta forma, é preciso avançar na formulação de políticas públicas que

1
Doutoranda do Programa de Políticas Publicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto
de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Administração pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE), graduada em Administração pela Universidade Federal do Ceará
(UFC), professora do MBA de Gestão e Produção Cultural da Fundação Getulio Vargas (FGV). Email:
guilherme.luciana@gmail.com
2
Doutora em sociologia pela Sorbonne, Université René Descartes, Paris V, mestre em Sociologia Jurídica pela
Universidade de São Paulo (USP), graduada em direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professora
do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Email: claudiasousaleitao@yahoo.com.br

392

V V
produzam desenvolvimento sustentável, com o objetivo de transformar cultura e criatividade
em inovação.
Este trabalho propõe-se a analisar os potenciais do desenvolvimento de políticas
públicas de economia criativa no Brasil voltadas para o fortalecimento de sistemas de
inovação e produção de setores criativos. Serão tratadas questões associadas à formulação de
políticas públicas promotoras de um desenvolvimento econômico pautado no fortalecimento
de um ambiente inovador, produtor de conhecimento e estimulador da ampliação de
mercados; serão analisados o conceito de rede e suas implicações na criação de novos arranjos
de organizações formais e informais; os sistemas de inovação e produção serão então
apresentados como arranjos institucionais com grandes potencialidades de fortalecimento de
setores específicos; um panorama do crescimento econômico das indústrias criativas no
âmbito mundial e nacional será apresentado, demonstrando a desigualdade desse crescimento
entre os diversos países; os desafios da economia criativa brasileira com foco no
fortalecimento de sistemas de inovação são então descritos; e o trabalho é finalizado com uma
análise da cadeia produtiva e do sistema de inovação da indústria fonográfica.

Desenvolvimento econômico: conhecimento e inovação num ambiente de


mudanças
A formulação de políticas e estratégias de desenvolvimento econômico no decorrer
do século XX sofreu uma série de mudanças em função de olhares e visões de mundo que
foram sendo constituídos a partir de reflexões teóricas acerca das estruturas das firmas, das
dinâmicas dos mercados e dos papéis das instituições, entre outros fatores. Enquanto os
neoclássicos acreditavam numa economia em repouso, controlável e passível de ser
compreendida e conduzida a partir da racionalidade e da experiência dos tomadores de
decisão; os evolucionistas perceberam as dinâmicas econômicas num processo contínuo de
mudança, permeado de incertezas, resultantes de uma série de elementos incontroláveis e de
uma racionalidade limitada dos seus atores quanto a estes elementos (NELSON, 2004).
Os teóricos evolucionistas (contemporâneas do pós-fordismo), influenciados pela
“destruição criadora” de Schumpeter3 (fordista), entenderam a mudança tecnológica como
essência e “motor do desenvolvimento” (TIGRE, 2006) e como base para a inovação, presente
no aperfeiçoamento e na criação de novos produtos, no desenvolvimento de novos processos e
em novos desenhos organizacionais.
3
Esse resgate do pensamento de Schumpeter, ainda que não na sua totalidade, deu aos evolucionistas também a
denominação de neo-schumpeterianos.

393

V V
A inovação é então compreendida como resultado de processos de aprendizagem e
de geração de conhecimento que envolvem tanto esforços de P&D como a heurística baseada
na experiência empírica. A inovação é fruto do conhecimento que é gerado coletivamente e
cumulativamente.
É neste ponto que a visão neoinstitucionalista da tecnologia chama atenção para a
importância da trajetória institucional no desenvolvimento das nações. Segundo Tigre (2006,
p. 61), “o ambiente institucional determina as oportunidades de lucro, direcionando as
decisões e o processo de acumulação de conhecimentos das organizações, gerando trajetórias
virtuosas ou viciosas”.
As políticas públicas têm um papel decisivo nesse processo, na medida que podem
fortalecer e incentivar os agentes econômicos por meio do desenvolvimento de um ambiente
favorável que estimule a geração de conhecimentos e a ampliação de mercados.
O desenvolvimento econômico é então pautado pela inovação, resultante de um fluxo
de elementos internos e externos às organizações. As organizações são percebidas então
dentro de arranjos institucionais mais amplos, inseridas em relações de mercado e em
estruturas sociais e políticas fundamentais para o seu bom funcionamento.
A complexidade das relações estabelecidas com o ambiente no qual as organizações
estão inseridas passa a ser assumida dentro de uma dimensão sistêmica de trocas econômicas
e de conhecimento.
A influência de fatores não tecnológicos (mercantis e não mercantis) impacta
diretamente nos atores econômicos, que têm a capacidade de inovar seja em função de
oportunidades identificadas ou por processos de adaptação em função de inadequações
resultantes do processo de mudança (NELSON, 2004).

Redes e processos de inovação: arranjos e rearranjos da empresa virtual


As estruturas e dinâmicas organizacionais contemporâneas tem se reconfigurado, nas
últimas décadas, em função das novas tecnologias da informação e comunicação (TIC). A
potencialização das possibilidades de conexão entre organizações, estados e indivíduos gerou
a formação de redes que se estruturaram em torno de complexos produtivos, de sistemas de
geração de conhecimento, do debate acerca de problemáticas políticas, econômicas, sociais,
culturais e ambientais, entre outras opções.
Assim, novas práticas sociais, culturais e econômicas acabaram por gerar novos
modelos de organização coletiva e colaborativa (formais e informais), onde a horizontalidade

394

V V
das relações, própria das estruturas em rede, veio quebrar estruturas hierárquicas verticais,
exigindo maior capacidade de negociação entre as partes (SARAVIA, 2002).
O conceito de rede vem então impactar no desenvolvimento das organizações,
integradas como partes de cadeias e arranjos produtivos e em processos de
internacionalização. A rede é então potencializadora de resultados a partir do momento que
integra esforços e interesses comuns, ampliando a produção de conhecimento a partir do
compartilhamento de informações, experiências e projetos. Desta forma, torna-se modelo de
referência para o crescimento e o desenvolvimento econômico a partir de atores que passam a
se relacionar e cooperar dentro dela.
Nesta perspectiva surge o conceito de empresa virtual (SARAVIA, 2002), como um
organismo que se estrutura a partir de uma rede temporária de firmas independentes
vinculadas pela tecnologia da informação com a finalidade de compartilhar competências,
custos e acesso ao mercado.
Neste conceito, esta empresa é dinâmica e extremamente adaptável às mudanças
conjunturais, ela se estrutura em torno de ações e projetos não necessariamente permanentes,
dando maior flexibilidade a criação de arranjos e rearranjos entre as partes. Assim, algumas
empresas optam por se concentrar cada vez mais no seu core business, terceirizando uma série
de atividades para parceiros coordenados dentro de uma rede, podendo aproveitar melhor as
oportunidades oferecidas pela ampliação de mercados. Em outros casos, os papéis podem ser
cambiáveis de acordo com o objetivo pelo qual a empresa virtual foi criada. A tecnologia da
informação é a grande mediadora destas novas configurações organizacionais, impactando de
modo mais profundo em organizações cujo produto é de natureza intangível.
Neste contexto, a empresa virtual ganha força embora alguns desafios precisem ser
enfrentados, no sentido de garantir a efetividade do seu propósito. Segundo SARAVIA (2002)
é preciso que sejam enfrentados os seguintes desafios: estabelecer um clima de confiança
entre as partes; enfatizar e aprimorar as competências de coordenação; melhorar as
capacidades de negociação; aperfeiçoar as capacidades de uso da informática; construir
relações estáveis e produtivas com os diferentes tipos de parceiros, presentes ou potenciais;
conciliar a necessidade de controle com o clima de liberdade.
A empresa virtual de base tecnológica, como uma rede de micro, pequenas e médias
empresas, se apresenta como possibilidade de atuação frente a mercados dominados por
grandes conglomerados, em função da sua flexibilidade e capacidade de resposta, seu
potencial de inovação e geração de conhecimento compartilhado. A complementaridade de

395

V V
expertises e conhecimentos gerados na rede confere muito mais agilidade aos
empreendimentos que se desenvolvem de modo integrado e colaborativo.
De modo ampliado, os sistemas setoriais de inovação e produção que incluem, para
além dos empreendimentos, as universidades, agências de fomento e desenvolvimento, órgãos
governamentais, associações e sindicatos, entre outros, se configuram num arranjo
institucional voltado para o fortalecimento de setores específicos de acordo com as
peculiaridades que lhe são próprias.

Sistemas setoriais de inovação e produção


De acordo com Malerba (2002), os sistemas setoriais de inovação e produção
correspondem a um conjunto de novos produtos, estabelecidos para usos específicos,
associados a um conjunto de agentes (organizações e indivíduos) atuantes, direta ou
indiretamente, no mercado por meio de interações que propiciam a criação, produção e venda
desses produtos. As combinações, os arranjos e rearranjos destes elementos estão em
constante co-evolução provocando mudanças e transformações destes sistemas. Os sistemas
setoriais de inovação e produção se baseiam no conhecimento, nas tecnologias, nos insumos e
na demanda que os compõem.
A abordagem de Malerba (2002) para os sistemas setoriais de inovação e produção
converge com a visão evolutiva da Teoria Evolucionista, pois percebe estes sistemas como
dinâmicos e em constante mutação em virtude de fatores internos e externos às organizações.
As relações intra e inter-organizacionais são fundamentais nesse processo de aprendizado
contínuo e geração de conhecimento.
Na perspectiva da formulação e implemementação de políticas públicas para o
fortalecimento de sistemas setoriais inovativos e de produção, faz-se necessária a
compreensão das suas dinâmicas e dos seus atores. No Brasil, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), através da PINTEC4, analisa o grau de inovação das empresas
nacionais a partir de indicadores das atividades de inovação. Na última PINTEC publicada
(IBGE, 2014), 90% das empresas brasileiras inovadoras identificadas na pesquisa são da
indústria. No escopo de setores de serviços, a pesquisa se limita aos de: edição e gravação e
edição de música, telecomunicações, atividades dos serviços de tecnologia da informação,

4
Pesquisa de Inovação: pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com o
objetivo de fornecer informações para a construção de indicadores das atividades de inovação das empresas
brasileiras.

396

V V
desenvolvimento de software sob encomenda, desenvolvimento de software customizável,
desenvolvimento de software não customizável, outros serviços de tecnologia da informação,
tratamento de dados, hospedagem na Internet e outras atividades relacionadas, serviços de
arquitetura e engenharia, testes e análises técnicas e pesquisa e desenvolvimento científico.
O modelo de inovação das empresas, constatado a partir dessa pesquisa, se baseia
principalmente no acesso ao conhecimento tecnológico através da compra de máquinas e
equipamentos, atividade considerada de importância alta ou média para 73,5% das empresas
inovadoras, seguido de atividades como treinamento (59,5%) e compra de software,
considerada de média ou alta relevância para 33,2% das empresas.
Aprendizagem e conhecimento são, portanto, elementos fundamentais para a
mudança do sistema econômico e são influenciadas por elementos intrínsecos e extrínsecos às
organizações, que atuam de modo heterogêneo em função das suas especificidades. A
dimensão geográfica também merece atenção especial (MALERBA, 2002) quando
analisamos sistemas setoriais de inovação e de produção que, em muitas casos, são altamente
localizados, como é o caso do Vale do Sicílio.
Enfim, a análise e diagnóstico de sistemas setoriais de inovação e de produção
permitem a formulação e implementação de políticas públicas que atuem sobre os seus
gargalos e defasagens, ajudando-os a superar ciclos viciosos que bloqueiem o seu
desenvolvimento.

As indústrias criativas e seu crescimento desigual nas economias do mundo


As indústrias criativas são definidas pela Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento, a UNCTAD, como “os ciclos de criação, produção e
distribuição de bens e serviços que usam a criatividade e o capital intelectual como principais
insumos”. Elas compreendem um conjunto de atividades baseadas no conhecimento, que
produzem bens tangíveis e intangíveis, intelectuais ou artísticos, com conteúdo criativo e
valor econômico. Apesar da crise financeira mundial ter provocado queda drástica de 12% no
comércio internacional em 2008, entre 2002 e 2011, as exportações de bens e serviços
criativos aumentaram, anualmente, em torno de 12,1% nos países em desenvolvimento,
chegando a US$ 227 bilhões em 2011 (UNCTAD, 2013), destacando-se como um dos setores
mais dinâmicos do comércio internacional. Ainda assim, apesar do efetivo potencial de
crescimento das indústrias criativas, alguns obstáculos têm surgido impedindo sua expansão: a
baixa disponibilidade de recursos financeiros para o financiamento de negócios, o investimento

397

V V
insatisfatório em capacitação dos agentes atuantes nas cadeias produtivas, além da pouca infra-
estrutura, especialmente, no que se refere à distribuição e difusão dos seus bens e serviços.
Em 2008, a UNCTAD lançou o primeiro Relatório Mundial sobre Economia Criativa
– Creative Economy Report 2008, num esforço de aprofundar o conceito e de compilar
informações e dados sobre essa economia dentro de uma perspectiva mundial. Este Relatório
foi um marco no reconhecimento da relevância estratégica da economia criativa como vetor
de desenvolvimento, demonstrando, no entanto, especialmente a força das indústrias criativas
com uma média de 10% de crescimento anual (UNCTAD, 2008). Essa mensuração, contudo,
é fruto da compilação de dados produzidos pelos diversos países, sem a presença de uma cesta
de indicadores e de um tratamento estatístico comum, o que fragiliza os resultados aferidos.
Vale ainda ressaltar que as metodologias quantitativas, em sua grande parte, somente
capturam ou mensuram a produção de riqueza das indústrias, ignorando a participação dos
micro e pequenos empreendedores, assim como a informalidade em que estão mergulhadas
milhões de pessoas em todo o planeta.
Ao longo das últimas décadas, as dinâmicas econômicas dos bens e serviços culturais
e criativos vêm demonstrando sua força, seja em países desenvolvidos ou em
desenvolvimento. Nos países ricos, a temática das chamadas “indústrias criativas” vem sendo
festejada e acolhida como uma etapa mais sofisticada do sistema capitalista, baseado
essencialmente na proteção dos direitos do autor/criador (copyright). Essas “indústrias” vêm
sendo valorizadas pela sua performance econômica, embora não venham demonstrando
capacidade de produzir inclusão social e produtiva.
De qualquer modo, os setores chamados criativos (audiovisual, literatura, música,
artes visuais, artes cênicas, moda, design, arquitetura, publicidade, artesanato, gastronomia,
festas, games, entre outros) na sua dimensão “industrial”, passam a se tornar cada vez mais
importantes na constituição do Produto Interno Bruto (PIB) dos países, crescendo mesmo em
situações de crise. A sempre crescente participação das indústrias criativas no PIB dos países
passa também a ser percebida pelos Governos, que começam a formular políticas para as
mesmas. Assim, a dimensão simbólica torna-se cada vez mais estratégica para os países,
especialmente no que concerne à exportação de seus bens e serviços, constituindo a essência da
chamada “marca-país”. Não se trata somente de se exportar produtos “made in”, mas cada vez
mais acrescentar ao seu cardápio exportador produtos “created in”.
Em um mundo onde a exportação de commodities perde gradativamente sua
importância frente a exportação de bens e serviços de alto valor agregado, estudos e pesquisas

398

V V
constatam a evolução da performance dos setores criativos. Esses estudos anunciam a
transformação do trabalho, a ampliação do setor de serviços e a necessidade da constituição de
fundos específicos para o financiamento dos setores criativos. É o que se constata abaixo:
Nos EUA, o desemprego cresceu em todas as categorias, mas os trabalhadores dos
setores criativos foram os que menos perderam emprego e renda nos anos anteriores e
posteriores à crise econômica de 2008. Nos setores que empregam mão-de-obra braçal e não-
especializada o desemprego subiu de 5% para 9,3%, o dobro da classe criativa. (DONALD
ET AL, 2012)
Segundo estudo recente de pesquisadores da Universidade de Valência, um aumento
de 1% na proporção de postos de trabalho nos serviços criativos incrementa entre 1.000 e
1.600 euros o PIB per capita. (KÖSTER e SANCHIS, 2012)
O Programa “Europa Criativa” investirá €1,8 bilhão (2014-2020) para ampliar a
competitividade dos empreendimentos criativos europeus e reforçar suas ligações com os
segmentos industriais tradicionais. (COMISSÃO EUROPÉIA, 2012)
Mas, a expansão das indústrias culturais e criativas não beneficia equitativamente a
todos os países nem regiões. Ela gera desigualdades econômicas, contribuindo para a
manutenção de desequilíbrios históricos no acesso à comunicação, à informação e ao
entretenimento, provocando o declínio da diversidade cultural. Assim, a exportação dos
produtos das indústrias culturais (músicas, telenovelas, filmes), que se dá através da indústria
transnacional (escritores argentinos, colombianos e chilenos que publicam livros através de
editoras de Madri ou Barcelona, de africanos que gravam CDs em Paris), é fruto da
“desterritorialização” da cultura. Vale ainda ressaltar um dos maiores paradoxos do consumo
cultural mundial: enquanto alguns produtos culturais vendem aos milhões, fecham-se teatros,
cinemas, livrarias, bibliotecas e centros culturais em todos os continentes.
A África, por exemplo, não consegue se converter numa economia mundial de
escala, com capacidade exportadora. Ao mesmo tempo, a hegemonia das indústrias
proprietárias de redes de telecomunicações, editoras ou dos canais de televisão nem sempre
têm compromisso com processos educacionais, contribuindo para a alienação dos indivíduos e
a ampliação do consumo de produtos culturais de baixa qualidade. Diante deste quadro,
impossível não constatarmos o fracasso do modelo economicista de desenvolvimento,
fundamentado unicamente na acumulação da riqueza e do crescimento do Produto Interno
Bruto. Esse modelo somente reforçou o abismo entre ricos e pobres, especialmente, nos países
do Cone Sul.

399

V V
Ao definir desenvolvimento como “o processo de expansão das liberdades reais que
as pessoas desfrutam”, Amartya Sen (2000) consegue ampliar os princípios e valores que
fundamentam os significados de desenvolvimento. Essa análise se apresenta logo na abertura
do seu “Desenvolvimento como Liberdade”, quando Sem critica as métricas exclusivamente
fechadas em indicadores econômicos, típicas das abordagens convencionais do
desenvolvimento:
O enfoque nas liberdades humanas contrasta com visões mais
restritas de desenvolvimento, como as que identificam desenvolvimento com
crescimento do Produto Nacional Bruto, aumento de rendas pessoais,
industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. O crescimento
do PNB ou das rendas individuais obviamente pode ser muito importante
como um meio de expandir as liberdades desfrutadas pelos membros da
sociedade. Mas as liberdades dependem também de outros determinantes,
como as disposições sociais e econômicas e os direitos civis (SEN, 2000,
p.47).

O economista, ex-ministro da Cultura do Brasil, Celso Furtado, também foi um


timoneiro sensível e sensato nesta grande viagem em busca de um desenvolvimento mais
justo para os países do Cone Sul. Durante décadas na Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe - CEPAL (antes mesmo da criação dos conceito de indústrias criativas!) ele
lutou por um modelo desconcentrador, onde a diversidade cultural pudesse ser tratada como
um insumo estratégico para estes países. Por isso, foi um crítico inclemente das sociedades
capitalistas e “de sua forma sofisticada de controle da criatividade e de manipulação da
informação”. O que afligia Furtado era a consciência de que “a estabilidade das estruturas
sociais não igualitárias estaria diretamente relacionada ao controle por grupos privados dos
bens de produção da criatividade artística, científica e tecnológica e do fluxo de informações
que brota dessa criatividade.” Grande defensor da inovação, o economista acentuava, no
entanto, a necessidade de que o progresso tecnológico caminhasse paripasso com o acesso
desses produtos às camadas mais amplas da sociedade brasileira.
Ora, os dois economistas já alertavam em meados do século passado, do risco da
implantação de modelos tayloristas de desenvolvimento em países do Cone Sul. E esse risco
já era percebido, tanto nas economias tradicionais quanto nas indústrias criativas que
passaram a dominar a segunda metade do século 20. Por isso, é necessário prudência, no que
se refere à simples “comemoração” do crescimento das indústrias criativas e dos bens
intangíveis no mundo, e não se perder de vista as dinâmicas econômicas dos grandes
conglomerados que transformam países em exportadores, e outros em consumidores passivos

400

V V
de bens e serviços estrangeiros. Dados econômicos demonstram a natureza concentradora das
indústrias criativas.
De 1980 a 1998, segundo a UNESCO, o volume de recursos no comércio
internacional desses segmentos cresceu de US$ 95,3 bilhões para US$ 387,9 bilhões. Em
1996, os produtos das indústrias criativas tornaram-se o maior produto da pauta de
exportações dos EUA, ultrapassando todas as demais indústrias tradicionais: automobilística,
agricultura, aeroespacial e de defesa. Considerando-se o ranking dos países exportadores de
bens criativos tomando como referência sua participação no mercado em 2008 (UNCTAD,
2010), a China se destaca em primeiro lugar, seguida dos Estados Unidos e da Alemanha. O
Brasil figura em 35º lugar, muito aquém do seu potencial e da diversidade cultural.
Analisando-se a evolução das exportações mundiais de bens criativos no período
entre 2002 e 2010 (UNCTAD, 2010), percebe-se um crescimento sustentável das indústrias
criativas, com uma pequena queda causada pela crise financeira mundial de 2009, o que
justifica o investimento em políticas governamentais de vários países para esses setores.
Dentre os maiores mercados dos setores criativos, os de entretenimento e mídia tem
se destacado. Nos Estados Unidos, por exemplo, esses mercados são considerados
estratégicos e tem recebido elevados investimentos no decorrer das últimas décadas. Por isso,
para esse país, o copyright tem especial importância, diferentemente dos países onde a
produção de bens pode ser comunitária (especialmente a que se refere às culturas tradicionais,
como é o caso do artesanato, ou mesmo da cultura digital, através do acesso aos softwares
livres e às licenças Creative Commons ).
Projeções estatísticas apontam que o mercado de entretenimento e mídia brasileiros,
incluindo publicação de revistas, jornais, internet e televisão, atingirá um faturamento de US$
71 bilhões em 2017, com uma taxa de crescimento médio anual de 10,8% para os próximos 5
anos (PRICEWATERHOUSECOOPERS, 2014).
No Brasil, ainda é incipiente a produção de dados relativos à economia criativa. A
Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro – FIRJAN, em 2008, realizou um
estudo pioneiro denominado “A Cadeia da Indústria Criativa no Brasil”5 num primeiro
exercício de projeção de dados econômicos, realizado a partir de dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE e de dados extraídos da Relação Anual de Informações
Sociais – RAIS (Ministério do Trabalho e Emprego). Em 2012, foi publicado um suplemento
de atualização dessa pesquisa tomando como base dados de 2011.

5
http://www.firjan.org.br/economiacriativa/pages/default.aspx

401

V V
A partir de dados da FIRJAN e da UNCTAD, com base nos dados do PIB (2011)
informados pelo Banco Mundial, pode se verificar o percentual de contribuição do PIB dos
setores criativos para a formação do PIB total de diversos países, incluindo o Brasil. É
interessante verificar, que mesmo sem uma produção de dados precisos sobre o Brasil, o país
já figura na quinta posição no ranqueamento apresentado, depois de Estados Unidos, Reino
Unido, França e Alemanha.

A economia criativa brasileira: desafios para o desenvolvimento de sistemas de


inovação e produção de setores criativos
São cinco os principais desafios que precisam ser enfrentados no sentido de
fortalecer os sistemas de inovação e produção dos setores criativos brasileiros (BRASIL,
2011):
O primeiro grande desafio para a estruturação e o desenvolvimento de sistemas de
inovação e produção dos setores criativos brasileiros passa pela ausência de informações ,
dados e de análises produzidos e sistematizados. Conforme pôde ser visto anteriormente a
PINTEC (IBGE, 2014) ainda é tímida quando se trata do setores de serviços, destacando-se
apenas a aferição das atividades inovativas relacionadas às edição e gravação e edição de
música. É preciso levantar, sistematizar e monitorar informações e dados sobre a Economia
Criativa para a formulação de políticas públicas ajustadas às realidades locais e regionais do
país.
O segundo desafio refere-se à necessidade de ampliação do fomento à
sustentabilidade de empreendimentos dos setores criativos, fortalecendo a sua
competitividade e a geração de trabalho e renda. A economia criativa brasileira é baseada, em
grande parte, numa economia informal, em virtude do baixo grau de institucionalidade dos
negócios e da baixa oferta de linhas de crédito adequadas à realidade desses setores.
O terceiro desafio associa-se diretamente à oferta de formação inadequada para o
preparo de gestores e profissionais atuantes nos setores criativos. Competências técnicas,
culturais e de gestão precisam ser desenvolvidas de modo integrado à percepção das
dinâmicas econômicas destes setores. O elo frágil do ciclo econômico desses setores se
localiza na etapa de difusão, comercialização e distribuição.
O quarto desafio relaciona-se com a baixa insitucionalidade de políticas públicas de
economia criativa efetivas no país, tanto no âmbito federal quanto estadual e municipal. O
desenvolvimento local e regional dos territórios exige uma concertação entre organizações

402

V V
públicas, empresas e instituições representantes da sociedade civil, com modelos de
governanças democráticos e eficientes.
O quinto e último desafio está relacionado com a ausência ou inadequação de marcos
legais e infralegais necessários para o fortalecimento dos setores criativos, seja em aspectos
associados ao direito trabalhista, tributário, administrativo,
Estes desafios são estruturantes no processo de amadurecimento e evolução dos
setores criativos brasileiros que, numa perspectiva territorial, podem e devem ser
potencializados a partir do investimento em sistemas de inovação e produção locais ou
arranjos produtivos locais inovadores.

Cadeias produtivas e sistemas setoriais de inovação e produção: o exemplo da


indústria fonográfica
A indústria fonográfica brasileira corresponde a um caso emblemático de inovação
de processos e de produtos, gerados a partir das mudanças ocasionadas pelas novas
tecnologias de informação e comunicação (TIC). A cadeia produtiva da música foi
profundamente impactada pela tecnologia da informação posto que a música, a partir da
tecnologia do mp3, passou a ser produzida e difundida a partir e através de softwares e
equipamentos de tecnologia digital.
Diante dessa nova realidade, os grandes selos e as grande gravadoras foram perdendo
gradativamente espaço para micro e pequenos produtores independentes que vem se
organizando através de redes de produção, compartilhamento de conteúdos, difusão e
comercialização.
Analisando-se a cadeia produtiva do mercado musical na FIG. 7 a seguir, pode-se
verificar o conjunto de atores públicos e privados, institucionais e empresariais, envolvidos
nas etapas de pré-produção, passando pela produção, distribuição, comercialização e
consumo.

403

V V
Figura 7: Cadeia produtiva do mercado musical (continuação)
Fonte: PRESTES FILHO, Luiz Carlos (coord.). Cadeia produtiva da economia da musica. São Paulo:
Itaú Cultural. 2005. P.30 e 31.

404

V V
O sistema musical de inovação e produção se estabelece tanto em formatos físicos
(como arte de espetáculo) quanto através de suportes digitais. É importante observar como
esse sistema setorial se relacionam com cadeias produtivas de outros setores, criativos ou
tradicionais, fundamentais ao seu funcionamento. Desta forma, constata-se a presença do
audiovisual, do design, da indústria de conteúdos digitais, do comércio etc. O relacionamento
ou a integração entre setores criativos é muito comum e potencializam o seu desenvolvimento
e gerando processos de inovação geradores de novos produtos.

CONCLUSÃO
O Brasil, profundamente rico na sua diversidade cultural, necessita reconhecer o
potencial da cultura como vetor de desenvolvimento, através de uma política conseqüente que
potencialize a economia dos setores culturais e criativos, através de uma ação integradora que
promova o fortalecimento de sistemas de inovação e produção. Ainda que incipientes,
políticas públicas voltadas para esse campo começam a ser implementadas e estudos
demonstram o quão significativo é o impacto dessa economia para um desenvolvimento
includente. As dimensões continentais do Brasil exigem a construção de políticas de fomento
intersetoriais na perspectiva do desenvolvimento local e regional, por meio da articulação de
sistemas de governança que integrem os diferentes atores atuantes nos territórios.
Para isso, estratégias simultâneas de enfretamento dos desafios da economia criativa
brasileira precisam ser implementadas tanto no âmbito nacional quanto sub-nacional. A
concertação de políticas públicas dentro de um pacto federativo evitará redundâncias e
equívocos quanto às priorizações a serem estabelecidas.

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406

V V
PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO E POLÍTICAS CULTURAIS: UMA
ANÁLISE SOBRE AS MEMÓRIAS DA EXPERIÊNCIA DA ESCRAVIDÃO E DA
EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA NA COMUNIDADE NEGRA RURAL DO ALTO DO
CAIXÃO (PELOTAS, RS)
Cristiane Bartz Ávila1
Ângela Mara Bento Ribeiro2
Maria de Fátima Bento Ribeiro3

RESUMO: Questões que versam sobre processos de patrimonialização carecem de uma


análise pormenorizada, uma vez que geralmente, acabam por interferir na cultura e patrimônio
locais. Partindo dessa premissa pretendemos neste trabalho tecer algumas considerações
acerca das discussões sobre preservação do patrimônio, dos elementos culturais, possíveis
processos de patrimonialização e sua relação com os interesses das comunidades envolvidas,
bem como em tentativas de rememorar a história de Manuel Padeiro, líder quilombola do
século XIX na Serra dos Tapes4.

PALAVRAS-CHAVE: cultura, patrimônio, comunidades negras rurais.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Destacamos que, na França, as discussões em relação ao patrimônio inicialmente se
referiam à ideia de preservação associada aos monumentos (os grandes prédios e objetos).
Estes seriam representantes da cultura elitizada que estariam associados ao “patrimônio da
nação” em oposição ao antigo regime, no qual o patrimônio era associado à figura do rei
como tesouro real, do qual o mesmo dispunha como queria, doando como dote, como agrado
a outro rei com intenções diplomáticas, etc.
A tradição preservacionista francesa influenciou muitos países, inclusive o
Brasil. Muitas de suas práticas iniciais foram reproduzidas. Preservar ou não elementos
patrimoniais interessantes ou desinteressantes às classes sociais era decidido pelas pessoas

1
Professora de História da Rede Municipal de Pelotas, formada em Licenciatura Plena em História na
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Especialista em História da Educação FAE/UFPEL, Mestre no PPG
de Memória Social e Patrimônio Cultural do ICH da UFPEL integrante do grupo de pesquisa em Culturas,
Cidades, Políticas e Fronteiras da UFPEL, crisbartz40@yahoo.com.br
2
Doutoranda PPGL-Linguística-Universidade Católica de Pelotas, Professora da Universidade Federal do
Pampa-curso de Turismo, UFPEL integrante do grupo de pesquisa em Culturas, Cidades, Políticas e Fronteiras
da UFPEL, angetur.ribeiro8@gmail.com
3
Profª. Drª. vinculada aos cursos de Relações Internacionais e do PPG em Memória Social e Patrimônio
Cultural, Coordenadora do grupo de pesquisa em Culturas, Cidades, Políticas e Fronteiras da UFPEL,
mfabento@hotmail.com
4
A Serra dos Tapes abrange a região colonial da Cidade de Pelotas e os municípios de Canguçu, Morro Redondo
e Arroio do Padre.

407

V V
que dirigiam o governo em determinado período histórico. De uma forma geral, os bens
escolhidos para serem preservados representavam elementos elitistas europeus.
No Brasil, o panorama começa a mudar a partir da Constituição de 1988, na qual os
artigos 215 e 216 estabelecem garantias aos direitos culturais, à proteção aos bens culturais.
Destacamos o artigo 215, § 1º e 2º:
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.
§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta
significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

A partir desse momento, temos menção sobre o patrimônio cultural brasileiro


ser constituído pela natureza material e imaterial, onde há referência à valorização da cultura
indígena, afro-brasileira, alemã, italiana, francesa, enfim, dos mais diversos segmentos e
etnias.
Destacamos o decreto 3551/2000, que estabelece uma diferença de ação para os bens
culturais de natureza imaterial. As ações são desenvolvidas com o objetivo de implementar
uma política pública de identificação, inventário e valorização desse patrimônio.
Os instrumentos de reconhecimento e valorização criados pelo governo brasileiro
levam em conta a natureza dinâmica e processual dos bens, promovendo uma interação entre
os aspectos materiais e os imateriais do patrimônio cultural nacional.
Outra questão importante para aqueles que se interessam por questões ligadas ao
patrimônio cultural são os estudos sobre a memória e os conflitos de memória. ”A memória
coletiva seria a experiência cultural do tempo, a presença do passado no presente,
respondendo a objetivos e necessidades desse momento atual” (FERREIRA, 2009).
É sobre essa memória silenciada e conflituosa que pretendemos focar nossa
discussão. Trata-se de apontamentos sobre os quilombolas da Serra dos Tapes no século XIX.
A referida região hoje abrange, em parte, a zona rural colonial da cidade de Pelotas no Estado
do Rio Grande do Sul.
Sobre as tentativas de rememorar a história de Manuel Padeiro, colocamos como
questionamento se podemos considerar essas iniciativas como uma expectativa da experiência
– termo que, segundo Kosseleck (2006), tem o significado de uma projeção para o futuro –
em relação a um possível processo de patrimonialização da figura do quilombola Manuel

408

V V
Padeiro, e, em caso positivo, no que este fato influencia ou influenciaria a Comunidade Negra
Rural do Alto do Caixão5.
Pesquisando as Origens Históricas do Distrito de Quilombo na Serra dos Tapes em
Pelotas, podemos destacar os conflitos de memória que permeiam essa relação entre o
passado e o presente. Para tanto, abordaremos o contexto histórico da Cidade de Pelotas,
especialmente durante o século XIX, época em que se constituiu o Quilombo de Manuel
Padeiro (conforme documentação pesquisada)6.

CONTEXTO HISTÓRICO
A presença negra em Pelotas deve-se à atividade charqueadora que ocorreu no
período compreendido pelos séculos XVIII e XIX. Neste período, Pelotas era descrita como
uma cidade cosmopolita, em relação ao restante do Rio Grande do Sul. Esse fato deve-se à
forma diferenciada da atividade econômica ali exercida. Enquanto o Pampa Gaúcho tinha
como atividade principal a pecuária, Pelotas tinha na produção de charque sua principal fonte
de riqueza.
O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1974),7 que descreveu suas
experiências ao viajar pelo Brasil, quando de sua passagem por Pelotas no século XIX
mencionou que através dos arroios Pelotas e Santa Bárbara o charque chegava pelo Canal São
Gonçalo até a Laguna dos Patos, e seguia para Rio Grande, onde em navios maiores era
levado para outros Estados brasileiros, como o Rio de Janeiro e a Bahia, e até mesmo para
outros países, como Cuba, para servir de alimento para os escravos. No caminho inverso
vinham os mais variados objetos e utensílios produzidos na Europa, como chapéus, vestidos,
livros e “cultura”.
. Nesse contexto, os produtores de charque se diferenciavam em maneiras, hábitos e
ideias dos demais rio-grandenses. Para que esse quadro se estabelecesse, foi preciso uma
grande quantidade de mão-de-obra, uma vez que a atividade charqueadora foi dura e muito

5
Conforme pesquisa e dissertação realizada durante o curso de mestrado no PPG Memória Social e Patrimônio
Cultural (ÁVILA, 2014), Manuel Padeiro seria líder do Quilombo constituído na Serra dos Tapes no século XIX
e a Comunidade Negra Rural do Alto do Caixão teria se constituído após a abolição da escravatura, em uma
localidade que faz parte da Serra dos Tapes. Um dos questionamentos apontados durante a pesquisa foi: Qual a
visão que os moradores do Alto do Caixão tinham sobre a história de Manuel Padeiro?
6
Utilizamos como fontes primárias o Processo Crime de Mariano, documento que encontra-se no arquivo
público do Estado do Rio Grande do Sul (APERGS) e correspondências da Câmara Municipal de Pelotas (Atas
da Câmara), transcritas no livro do historiador Mario Osório Magalhães.
7
Auguste de Saint-Hilaire esteve em viagem pelo Brasil entre os anos de 1816 e 1822, publicando o livro
“Voyage à Rio Grande do Sul — BRÉSIL — 1820-1821” [Orleáns, 1887], em francês; ainda no século XIX, foi
traduzido por Leonam de Azeredo Penna e publicado em 1935 (1ªed.) e em 1939 (2ª ed.). A edição utilizada
neste trabalho data de 1974.

409

V V
penosa. Essa mão-de-obra era representada na figura do escravo africano, que tinha uma vida
muito difícil nas charqueadas pelotenses. Ao se referir aos escravos, Saint-Hilaire sugere que
seus donos os maltratavam. Usa a expressão: “Os escravos parecem tremer diante de seus
donos”. Mais adiante, chama a atenção sobre a condição do escravo infantil, e finalmente
justifica tais ações em função de a escravaria ser numerosa, diferenciando a escravidão nas
“lides” campeiras e a escravidão nas charqueadas.
Ao fazermos uma análise mais detalhada da sociedade brasileira durante o período
escravista, podemos depreender que muitas histórias foram ditas sob uma perspectiva da elite
e outras não foram ditas, sendo silenciadas. Atualmente realizam-se novos estudos sobre as
memórias daqueles que fizeram parte dessa história “não contada”. Tomaz Tadeu da Silva
(2000), trabalhando com conceitos da diversidade cultural, esclarece o antagonismo dos
termos “identidade” e “diferença”. Segundo o autor, ao longo do tempo são as instituições as
responsáveis pela fixação das identidades culturais. Este autor aponta ainda que a diáspora
africana desestabilizou as identidades e contribuiu para a miscigenação, sincretismo e
crioulização8 culturais. Esses fatores abalaram tanto a identidades homogêneas quanto a
identidades subordinadas. Assim, Silva trabalha na perspectiva de uma história que seja
contada desde o ponto de vista dos subordinados, dos novos sujeitos, e esta seria a proposta
do presente artigo.
A resistência cultural ao branqueamento ocorreu de várias formas, as quais
apontaremos aqui àquelas que se referem como resistência através de violência,
especificamente à composição dos quilombos.
No ano de 1835, várias Atas da Câmara Municipal de Pelotas fazem referências às
tentativas de prender o bando de Manuel Padeiro na Serra dos Tapes: uma das partidas
enfrenta o grupo em 1834, e em 1835 instaura-se o processo contra Mariano e Simão Vergara.
Ao que tudo indica, as informações deste processo deram elementos para que a perseguição
ao grupo prosseguisse.
Segundo Marciso (1997, p. 54),
a última referência sobre o quilombo em Pelotas é de vinte e dois
de outubro de mil oitocentos e quarenta e nove, pesquisado por Mario
Maestri [1979],9 onde o escravo Antônio Cabinda convidou Maria Mina a

8
Segundo um dicionário online, crioulização é processo de formação de crioulos, ou, adoção de uma língua
estrangeira por uma comunidade, que é a mescla com o seu próprio idioma, criando um léxico e uma gramática
mais ou menos distintos dos originais (INFOPÉDIA). Entretanto, os estudos sobre a crioulização no Brasil
dizem respeito a uma hibridização de culturas. Numa perspectiva acadêmica, Price (2003) trabalha com dois
conceitos: a crioulização cultural e a crioulização demográfica.
9
Segundo Marciso, a referência é: MAESTRI FILHO, Mário José. Cartório do Júri de Pelotas, ano de 1848-
1849. Publicado inicialmente no Caderno de Sábado do Correio do Povo, Porto Alegre, em 17.02.1979.

410

V V
fugir para um quilombo. Delatado pela cativa, procurou desmenti-la,
lançando suspeitas sobre o seu comportamento “moral”.

Num dos documentos oficiais analisados,10 uma carta escrita pelo Juiz de Paz do
Terceiro Distrito de Pelotas, Ignácio Rodrigues Barcellos, e que faz parte do acervo da
Biblioteca Pública Pelotense (Fundos da Escravidão), encontramos referências sobre a
destruição do quilombo11. As palavras da correspondência nos remetem a uma verdadeira
caçada aos Quilombolas da Serra dos Tapes. Existia na Lei de Orçamento Provincial, artigo
23, dinheiro para a destruição do quilombo da Serra dos Tapes que estabelecia um prêmio de
400 mil réis para quem capturasse o líder Manuel Padeiro. O Juiz relata os trabalhos e
esforços empreendidos para o término da ação dos Quilombolas, ressaltando que matara um
deles e que precisava de mais verbas, pois restavam 7 homens desprovidos de armamento.
Para identificação e interpretação das referidas informações buscamos, nas
“entrelinhas”12 destes documentos, evidências sobre tais aspectos, embasados em
referenciais13 que tratam do assunto.
Os Quilombolas descritos no processo, ora apropriavam-se dos gêneros que
necessitavam quando estavam em empreitadas de ataques, ora plantavam quando iam mais
dentro do mato onde julgavam estar mais seguros.
Conforme uma conversa informal mantida com o líder das Comunidades Negras
Rurais, Antônio Leonel Ferreira, a ideia de segurança é uma constante que chegou até nós
através da memória local. Segundo nosso depoente, na região em que se inicia nossa zona
colonial atualmente – que são os locais mais próximos do centro urbano da cidade e também
de mais fácil acesso – os Quilombolas do passado montariam guardas e ficariam apostos para
o enfrentamento com as partidas; já o interior da Serra dos Tapes, local de difícil acesso para
aqueles que vinham de fora, seria um local mais seguro para as famílias.

10
Referimos-nos a documentos oficiais, pois são os de mais fácil acesso ao pesquisador.
11
No referido período, o terceiro distrito era o atual Monte Bonito, local onde, segundo estudo de Gutierrez
(1993), iniciou-se a ocupação de Pelotas, a Sesmaria do Monte Bonito.
12
Tomamos por base Maria Odila da Silva Dias(1998).
13
Ginzburg (1989) fala do processo de Chiara, para dar exemplo de como um processo pode ser conduzido a fim
de que o réu confesse. Maestri (1996) corrobora essa ideia quando se refere ao processo de Mariano, pois diz que
o seu defensor nem mesmo apelou da sentença de pena de morte. Appadurai (2009) trabalha com a ideia do
conflito entre “minorias” e “maiorias”, e o medo do outro, do pequeno número, que faz com que uma categoria
queira se sobrepor a outra quando corre o risco de haver trocas de lugar. Essa ideia vem ao encontro desta
análise, pois demonstra que a repressão aos Quilombolas devia-se ao medo que os Senhores tinham de ficarem
sem sua fonte de riqueza; se os escravos tentavam a busca pela sua liberdade, isso subvertia a ordem social
vigente. Este último autor fala que a minoria é algo “necessário, porém não bem-vindo. De um jeito ou de outro,
precisamos dos grupos ‘menores’ em nossos espaços nacionais – nem que seja só para limpar nossas latrinas e
travar nossas guerras” (p. 40).

411

V V
Dessa maneira, segundo Ávila (2014), as notícias que retratam as ações dos
Quilombolas do século XIX, remetem há:
uma imagem de uma cidade assustada, onde os perigosos
elementos rondam, com o objetivo de fazer mal aos “cidadãos de bem”...Os
cidadãos pelotenses precisavam empreender uma luta tenebrosa frente à
audácia dos Quilombolas, que organizados possuíam um general – Manuel
Padeiro –, um capitão tenente – Antônio Cabundá –, um juiz de Paz – João –
e um líder espiritual – Pai Matheus.”14 (Ávila, 2014, pg.86).

PATRIMONIALIZAR OU NÃO PATRIMONIALIZAR?


A seguir traremos dois exemplos de patrimonialização de saberes fazeres de
comunidades locais a fim de analisarmos como esses processos interferem ou podem interferir
em suas respectivas comunidades, no sentido de alterar esses saberes fazeres tradicionais.
Também apontaremos como tentativa de rememorar a figura de Manuel Padeiro, líder do já
referido Quilombo da Serra dos Tapes no século XIX, duas iniciativas que mencionam esta
figura, ainda que no âmbito privado, uma vez que não é um trabalho governamental.
As políticas públicas voltadas para o reconhecimento e a salvaguarda do Patrimônio
Cultural dos grupos minoritários vêm tomando mais espaço nas últimas décadas. Os
processos de patrimonialização acompanham os movimentos reivindicatórios dos grupos
sociais, que têm seu tempo, território e identidade específicos. No desencadear desses
processos surgem embates, questionamentos de grupos antagônicos, num jogo claro de poder.
Assim, processos de patrimonialização devem ser analisados com cautela, pois é
necessária uma representatividade e uma vontade política para que as ações se façam
acontecer. Entretanto, tais iniciativas precisam ter uma via de mão dupla, visto que os atores
sociais envolvidos têm diversos interesses, e cada caso tem sua especificidade.
Em relação ao Patrimônio Cultural Imaterial, que são os saberes-fazeres
comunitários relacionados às práticas ancestrais, se faz necessário uma avaliação nos prós e
contras da questão. Existem diversos exemplos que vêm sendo estudados e que resultam em
transformações nas comunidades, pois alteram substancialmente as práticas originalmente
constituídas pelo grupo.
Podemos citar o caso da etnia mexicana P’urhépecha de Michoacán, em que o
processo de patrimonialização incentivado pelo governo e por um grupo indígena vinculado à
celebração que é denominada Concurso Artístico del Pueblo P’urhépecha (CAPP), que visa
projetar-se politicamente, é contestada por outro grupo de indígenas vinculado à celebração

14
Nos dias atuais, as denominações Pai e Mãe ainda são usadas para designar os sacerdotes responsáveis pelo
Batuque, religião de matriz africana, no Rio Grande do Sul.

412

V V
denominada Año Nuevo P’urhépecha (ANP). Os primeiros promovem, segundo análise de
Lorena Ojeda Dávila, uma espetacularização das manifestações culturais como danças,
bandas e orquestras visando à expansão turística e ascensão ao poder. Entretanto, a crítica
feita é:
la comercialización/folclorización de la cultura indígena que se
puede desprender del mismo, así como a la poca autenticidad de las
representaciones artísticas que presentan en el marco del evento, dado que
los artistas ensayan especificamente para su presentación, con lo cual las
danzas, pirekuas o ejecuciones musicales, se desvinculan de su contexto
significante (DÁVILA, 2013, p. 7).

A autora explica que os verdadeiros artistas p’urhépecha não se apresentam e que a


etnia não está representada neste evento, cujos maiores beneficiados são os promotores do
mesmo.
Com relação ao grupo vinculado ao ANP, a ideia inicial foi promover:
la recuperación y revalorización de ciertos símbolos p´urhépecha
para ayudar a forjar una identidad común que coadyuvara a resolver
problemas añejos entre diferentes pueblos, así como fortalecer su unidad
frente al mundo mestizo (Idem, p. 8).

Este evento caracteriza-se no âmbito local, com divulgação entre as comunidades, e


rejeita financiamentos governamentais, entretanto, algumas lideranças pertencem a órgãos do
governo, como a secretaria de cultura e a de educação. Eles rejeitam a promoção do turismo
em relação ao seu patrimônio cultural, porém as lideranças ligadas ao CAPP apontam que os
símbolos escolhidos pelos ANP seriam arbitrários e sua conduta, excludente.
A questão colocada neste exemplo mexicano são as políticas públicas do governo,
que parecem não levar em consideração as necessidades da comunidade local. Enquanto o
governo visa a fomentar o turismo e a autopromoção, as etnias visam à valorização e à
proteção de seu patrimônio cultural, aliado à melhoria na sua condição de vida. No caso
mexicano há um agravante: as divisões internas entre os grupos que fazem com que diminua
sua capacidade de negociar com os agentes externos.
Apontamos a seguir outro caso, em que foram realizados estudos por pesquisadores
da Universidade Federal de Pelotas para o processo de registro dos doces tradicionais de
Pelotas como Patrimônio Cultural Imaterial da cidade.15

15
A realização do INRC – Produção de doces tradicionais pelotenses tem como proponente a Câmara de
Dirigentes Lojistas de Pelotas e conta com a parceria da Secretaria Municipal de Cultura de Pelotas e do Instituto
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A Universidade Federal de Pelotas é executora desta investigação,

413

V V
O estudo realizado por diversos pesquisadores da UFPEL16 teve por objetivo
fazer um reconhecimento da tradição doceira de Pelotas fazendo um mapeamento da região
em relação aos tipos de doces e a quais etnias estavam ligados.
Além dos doces finos de Pelotas, cujas receitas são atribuídas aos portugueses,
na zona colonial são produzidos doces de frutas que são uma tradição vinculada aos colonos
imigrantes, sendo esses doces conhecidos como marmeladas, goiabadas, compotas e
cristalizados.
Os pesquisadores trabalharam na “[...] delimitação do sítio a ser explorado [...]
com as manchas étnicas no mapa da produção de doces na cidade. Aqui, saliente-se nossa
preocupação em prospectar a contribuição da etnia negra na cultura doceira.” (Rieth, Ferreira,
Cerqueira et al, 2008).
Assim, os estudos para o reconhecimento da tradição doceira de Pelotas como
elemento do Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro trouxeram informações relacionadas às
histórias de vida dos grupos étnicos, dando visibilidade à sua cultura e tradições. Outro
aspecto apontado pelos pesquisadores é que a etnia negra não se limitou a executora das
receitas tradicionais portuguesas. As mulheres negras ao produzirem os doces para os sarais e
mais tarde ao vendê-los em tabuleiros ressignificaram esse saber-fazer para além da
contribuição financeira, pois aos doces foi atribuído um significado simbólico na relação com
o sagrado das tradições da religiosidade afro-brasileira.
Neste território urbano, interagem dois grupos étnicos
predominantes: o substrato luso-brasileiro e o substrato afro-descendente, o
último apropriando-se de componentes da tradição doceira de influência
portuguesa, ressignificando-os ao incorporá-los na composição de elementos
dos rituais afro-brasileiros, como exposto acima, no caso da relação entre
Oxum e o quindim. (RIETH, FERREIRA, CERQUEIRA et al, 2008, p.8-9)

Entretanto, os próprios pesquisadores alertam para que o processo de


patrimonialização não traga como consequências o engessamento dos saberes-fazeres
doceiros, em função das normas estabelecidas pelos órgãos ligados ao governo.
Referente a essa pesquisa, ao que tudo indica, ao inventariar e mapear a região
colonial constatou-se que a produção artesanal sofreu ação dos órgãos do Estado que
defendem normas sanitárias, o que exige uma adequação por parte dos produtores.

por intermédio do Lepaarq. O Inventário é financiado pela Unesco e pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento. (FERREIRA; CERQUEIRA; RIETH, 2008, p. 91).
16
Universidade Federal de Pelotas

414

V V
Quanto à figura de Manuel Padeiro, líder quilombola na região da Serra dos Tapes
em Pelotas durante o século XIX, existem iniciativas ainda isoladas e promovidas pela
iniciativa privada de divulgação da mesma, que são conhecidas de “ouvir falar”, mas ao que
tudo indica estão pouco associadas às memórias da Comunidade do Alto do Caixão.
A seguir, falaremos do Memorial Manuel Padeiro17, local que desperta a curiosidade
e que auxilia informar a seus visitantes quem foi este personagem da história de Pelotas do
qual pouco se tem notícias e do Festival de Cinema Manuel Padeiro.
Localizado no Instituto Trilha Jardim, propriedade na Comunidade Santa Maria,
próximo à escola Nestor Elizeu Crochemore, tem por objetivo homenagear o líder do
Quilombo do século XIX, “pela coragem deste ao resistir bravamente à opressão escravagista
da época”, conforme fala de sua idealizadora e dona da propriedade em que se localiza o
mesmo, a Senhora Ana Alaíde Tavares.
Em entrevista concedida pela mesma nos foi relatado que sua intenção é fomentar a
discussão sobre a importância da ancestralidade negra em nossa região, recuperando um
discurso sobre esse passado, e que o espaço é aberto às pessoas que tiverem interesse por essa
história. Ao trabalhar com seu marido na recomposição do patrimônio natural, um de seus
objetivos é aproveitar a natureza como espaço de conhecimento de elementos de cura nas
ervas de chás que, segundo ela, herdamos de nossos “queridos índios Tapes e negros
quilombolas que andavam por esses matos”.
A Senhora Ana explica que a imagem que retrata Manuel vem de sua inspiração (v.
Figura 01), pois ela imagina que precisava ser forte e altivo para ter coragem de resistir à
escravidão se refugiando em local tão inóspito e de grandes perigos.18

17
Trazemos o exemplo do Memorial Zumbi dos Palmares, figura que é reconhecida nacionalmente por seu
empenho em resistir à escravidão e lutar por sua liberdade e de seus companheiros. “A criação do Memorial
Zumbi foi consequência das novas relações criadas entre o Estado ditatorial- que chegava ao seu ocaso- e a
sociedade civil- que estava iniciando um processo de reorganização social” (GARCIA, 2008, p. 121). O
Memorial Manuel Padeiro, embora não possa ser comparado em termos de divulgação com o Memorial Zumbi,
projeta, segundo sua proprietária, a mesma ideia deste, de reinterpretação da história de Manuel Padeiro.
18
Referia-se aos capitães-do-mato e aos índios Tapes, pois não saberiam como estes reagiriam, quando os
Quilombolas adentrassem em seus domínios.

415

V V
Figura 1 - Banner na entrada do Memorial Manuel Padeiro.
Fonte: Ávila, 2014, p.105.

Foram-nos mostradas, próximo ao Memorial, às esculturas de Zezinho Santos (v.


Figura 02), que foram feitas na intenção de demonstrar a evolução dos sentimentos dos negros
ao chegarem à Serra dos Tapes – elas foram dispostas como numa linha cronológica, onde a
primeira pedra (da esquerda para a direita) está em estado natural, a qual representaria os
negros embrutecidos pelo cativeiro. Na segunda, eles tentam se ambientar. Na terceira,
adquirem serenidade e na quarta, a partir dessa serenidade, eles se conectam com a
espiritualidade através do chacra19 coronário (localizado na cabeça), elo com seu passado
ancestral africano.
A Senhora Ana acredita ser muito importante que esses ensinamentos sejam
difundidos para que se tenha um respeito pelas culturas negras e índias.

Figura 2. Esculturas Zezinho Santos


Fonte: Ávila, 2014, p. 108.

Por fim, traremos como discussão o Festival de Cinema e Animação Manuel Padeiro,
um festival de cinema pelotense que utiliza o nome do líder Quilombola. O grupo responsável
pelo I Festival aponta alguns lugares que Manuel Padeiro e seus quilombolas percorreram.

19
Chacras ou xacras, também conhecidos pela grafia chakras são, segundo a filosofia iogue, centros
energéticos dentro do corpo humano, que distribuem a energia (prana) através de canais (nadis) que nutre órgãos
e sistemas. Na Doutrina Espírita, os chacras são chamados de Centro de Força (CHACRAS, s/d).

416

V V
Dos locais escolhidos pelos idealizadores do Festival de Cinema para que este ocorresse,
destacam-se o Instituto Trilha Jardim e o Parque Municipal da Baronesa 20 como espaços
naturais, aos quais tanto os antigos escravos, quanto os Quilombolas estavam habituados,
fazendo destes o espaço onde viviam, interagiam e ressignificavam sua cultura.
Na primeira edição houve exposição no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG),
espaço de arte e cultura, e no Parque da Baronesa. Além da iniciativa relacionada à arte do
Cinema, a qual é atribuída como a Sétima Arte, o grupo divulga através dos meios digitais –
sites, Facebook, blogs – informações sobre a história do Quilombo.
Silva, ao trabalhar com a multiculturalidade, nos traz os conceitos de identidade e
diferença, os quais ele analisa e aponta que os dois “estão numa relação estreita de
dependência” (SILVA, 2000). Essa questão se relaciona com o Festival de Cinema Manuel
Padeiro quando os organizadores definem que um dos objetivos do grupo é representar “a
liberdade de linguagens, narrativas e estilos cinematográficos, o incentivo ao novo, a
independência ante ao escravagismo presente nos detalhes da sociedade contemporânea e
ainda racista e ao sistema que enxerga cifras, poder e exploração antes do amor e da
cooperação.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Festival de Cinema e o Memorial Manuel Padeiro ao que tudo indica não atingem
as comunidades negras rurais no intuito de fazer reverberar a história de Manuel Padeiro e os
demais homens e mulheres que o seguiram. Seria preciso um trabalho intenso de educação
patrimonial para transmitir um novo significado dessa história no intuito de contribuir para
que as fronteiras da diferença sejam quebradas e se estabeleça uma identidade dos
descendentes daqueles que muito contribuíram para o progresso e riqueza de nossa cidade.
Traçando um paralelo entre o Memorial Zumbi dos Palmares e o Memorial Manuel Padeiro,
destacamos que, enquanto Palmares é um espaço público que recebe incentivo do governo
federal e se tornou uma fundação, o Memorial Manuel Padeiro é uma das tentativas isoladas
de particulares de fazer referência à memória deste líder Quilombola.
Entretanto, a pergunta que fazemos é: Em caso de um processo de reconstituição da
memória dos Quilombolas do século XIX, em que essa iniciativa colaboraria com a

20
A escolha do Parque da Baronesa se deu devido aos organizadores acharem que Manuel Padeiro pertencia ao
Barão de Três Serros, Aníbal Antunes Maciel, dono da propriedade mencionada. Entretanto, pesquisando nas
fontes (processo crime de Mariano, Atas da Câmara e bibliografia), descobrimos que Manuel Padeiro era escravo
de Boaventura Rodrigues Barcellos.

417

V V
comunidade pelotense? Ou com a Comunidade Negra Rural do Alto do Caixão? Ao que tudo
indica a memória coletiva dos moradores da Comunidade citada, não atribui ao Quilombo de
Manuel Padeiro sua origem, apesar de as fontes apontarem para a existência de remanescentes
das charqueadas na região. Os depoimentos nos indicam que Manuel Padeiro se apresenta
como um personagem exógeno à Comunidade do Alto do Caixão. Segundo sua matriarca,
suas origens remontam ao casal Vieira, a mulher escrava negra e o homem índio livre que
trabalhava como se escravo fosse.
Acreditamos que questões mais prementes situam-se como ponto de partida dos
interesses da comunidade, como o direito de cidadania garantido a todos os cidadãos
brasileiros. A comunidade do Alto do Caixão inserida num contexto em que é classificada
como um grupo minoritário, segundo a categoria formulada por nós através dos conceitos
trabalhados por Appadurai (2009), corre o risco de perder e reformular tantos outros dos seus
saberes-fazeres fundamentais para a constituição de uma identidade negra rural.
Quanto às memórias das experiências quilombolas em Pelotas e suas culturas, as
pesquisas estão no início. Fomentadas pelas políticas públicas de reconhecimento de
Comunidades Negras Rurais, é necessário ainda muito trabalho. Ao pesquisar os diversos
fatores que identificam essas comunidades como remanescentes de quilombos, numa nova
perspectiva, não devem ser levados em conta somente os aspectos históricos do conceito de
Quilombo. Nesse sentido, o Patrimônio Cultural destes atores deve se fazer presente nestas
pesquisas.
As intervenções feitas por órgãos como o CAPA21 e a EMBRAPA22, que são
considerados as pontes entre a comunidade e as políticas públicas e políticas culturais, são
bem recebidas pelos moradores, que se mobilizam em conjunto com esses órgãos, na
expectativa de terem uma vida melhor e adquirirem uma condição cidadã.
Outro questionamento que fazemos é se também não seria necessário uma
patrimonialização do Patrimônio Cultural da Comunidade do Alto do Caixão que levasse em
conta seus saberes-fazeres e o Patrimônio Natural da região, o qual é utilizado pelos
moradores tanto da Comunidade do Alto do Caixão quanto pelos “outros” moradores para
contar as memórias da experiência da escravidão e quilombola na região.

21
Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor.
22
Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias.

418

V V
Nesse âmbito, o que desejávamos demonstrar é que, dependendo do lugar de quem
fala, o Padeiro pode ser um facínora/ mal-feitor, um General ou um Zumbi dos Pampas23 e
que essa narrativa pode influenciar tanto positiva quanto negativamente a memória coletiva
dos moradores das Comunidades Negras Rurais da região na atualidade, fazendo com que
silenciem ou divulguem esta história.

REFERÊNCIAS

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Iluminuras: Itaú Cultural, 2009, 128p.

APERGS, Município de Pelotas, Cartório do Júri Nº 81, Maço 3A, 141 E7, E/141c CX:006.0300.

ÁVILA, Cristiane Bartz. Entre esquecimentos e silêncios: Manuel Padeiro e a memória da escravidão
no distrito de Quilombo, Pelotas, RS. 2014. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Patrimônio
Cultural). Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 183p.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 01 jan. 2014.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Chacra . Acesso em: 05 mar. 2013.

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p’urhépecha de Michoacán. Revista Memória em Rede, v. 3, n. 8 , UFPEL, 2013.

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2000. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; FONSECA, Maria Cecília Londres.
Patrimônio imaterial no Brasil. Legislação e Políticas atuais,. Brasília: UNESCO. Educart, 2008. p.
119-120.

DIAS, Maria Odila Silva. Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto


História. São Paulo (17), nov. 1998, 223- 258p.

FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi; CERQUEIRA, Fábio Vergara; RIETH, Flávia Maria da Silva.
O doce pelotense como patrimônio imaterial: diálogos entre o tradicional e a inovação. Métis: História
& Cultura, v. 7, n. 13, jan-jun 2008. Universidade de Caxias do Sul/Centro de Ciências
Humanas/Área de História. p.91-113, Disponível em:
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/viewFile/696/502 . Acesso em: 19 dez. 2013.

FERREIRA, Maria Letícia. A Memória Coletiva dos Santos Lugares. Revista Memória em Rede.
Pelotas, v.1, n.1, dez.2009/mar.2010.

FUNDOS DA ESCRAVIDÃO. Cópias das correspondências sobre fugas e sentença de morte a


escravos transgressores datadas de 1834 e 1835, sobre a destruição do quilombo da Serra dos Tapes.
Biblioteca Pública Pelotense.

23
Essas referências são encontradas no processo Crime contra Mariano e nas correspondências entre as elites
pelotenses.

419

V V
GARCIA, Januário. 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil. 2.ed. Brasília: Fundação Cultural
Palmares, 2008.170p.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1989,
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4.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000 133p.

TAVARES, Ana Alaíde. Entrevista concedida em: 28.05.2012.

420

V V
O IPHAN SOB O SIGNO DA DITADURA: NOTAS DE PESQUISA (1967-1979)
Daniela Carvalho Sophia1

RESUMO: Em 1967, o arquiteto Renato Soeiro assume a presidência do Instituto do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no lugar do Rodrigo Mello Franco de
Andrade, tendo como principais objetivos dar continuidade à política implementada pelo seu
antecessor. A presente nota de pesquisa busca divulgar estudo sobre as políticas de patrimônio
nos anos de 1960-1970, desenvolvido no âmbito da Coordenação de Museologia do Museu de
Astronomia e Ciências Afins. O trabalho atém-se a apresentar um breve histórico da
construção das políticas públicas empreendidas pelo IPHAN entre os anos de 1967 e 1979,
quando a arena se tornou o ponto de encontro de gestores e intelectuais voltados à temática do
Patrimônio. Com isso, pretendemos mostrar o potencial do IPHAN em construir as bases para
a gestão pública do patrimônio cultural brasileiro no período.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas, Patrimônio, IPHAN, Conselho Consultivo,


Tombamento.

Introdução

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) se constitui no


órgão brasileiro responsável pela formulação e implementação das políticas relacionadas ao
patrimônio. No IPHAN, vêm sendo discutidos, por representantes dos gestores
governamentais setoriais e da sociedade civil, as principais estratégias nacionais de
operacionalização da política de preservação do patrimônio. Foi instituído em 1937 por meio
da Lei n° 378 de 13 de janeiro, na época denominado Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN), com a finalidade de promover o tombamento, a conservação, o
enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional.
No Brasil, durante a segunda metade da década de 1960, na esteira dos movimentos
políticos pela manutenção e implementação da Ditadura Militar, inicia-se, após 38 anos, uma
mudança no quadro institucional do Instituto (IPHAN). O período que vai do final dos anos
60, especificamente após a aposentadoria do arquiteto Rodrigo Melo Franco de Andrade, em

1
Doutora em História das Ciências (COC/Fiocruz), Analista em Ciência e Tecnologia da CAPES e Pesquisadora
da Coordenação de Museologia do Museu de Astronomia e Ciências Afins (CMU/MAST).
danielasophia@mast.br.

421

V V
1967, até o fim dos anos de 1970 deve ser examinado como um momento importante de
atuação do governo federal na área do patrimônio brasileiro.
Afinados com as determinações do Governo Militar, as experiências em tela sugerem
dois tempos históricos relacionados entre si: o primeiro, no ano de 1967, marca o momento
em que Rodrigo Melo Franco de Andrade, presidente do órgão desde 1938, aposenta-se. Esse
período foi marcado pela adequação do perfil das políticas de patrimônio às novas
circunstâncias do país. Na segunda fase, delimitada pelos anos de 1972 e 1979, há um marco
significativo na trajetória política da instituição, quando a direção do órgão passa a direcionar
suas ações para os conjuntos históricos com categoria de bens a serem revistos e tombados. A
maior expressão de então se encontra na criação do Programa de Cidades Históricas, em
1972.
Neste artigo, o objetivo é apresentar um breve histórico da construção das políticas
públicas relacionadas à proteção do patrimônio entre os anos de 1967 e 1979. O trabalho
resulta, em parte, dos dados da pesquisa O Conselho Consultivo do IPHAN: uma análise do
processo de tombamento, empreendida no âmbito da Coordenação de Museologia do Museu
de Astronomia e Ciências Afins. Essas informações foram complementadas por dados
levantados no Arquivo Central do IPHAN, especificamente na série Arquivo Técnico e
Administrativo do IPHAN e outros obtidos junto a relatórios divulgados na página do
Instituto, no Portal de Periódicos da CAPES e na base de dados bibliográficos do MAST.
No que tange às escolhas metodológicas, este artigo vincula-se ao conjunto de
trabalhos que examinam as políticas voltadas para a preservação do patrimônio brasileiro. O
IPHAN – como instituição definidora de conhecimentos, normas e práticas sociais vinculadas
ao campo do patrimônio – tem atraído a atenção de pesquisadores interessados no
conhecimento da produção intelectual e na avaliação de seu legado para determinados
períodos da história. Nessa linha de investigações, tomamos como base aquelas que delineiam
as políticas de patrimônio no contexto brasileiro (CHUVA, 2009; FONSECA, 2009;
CORRÊA, 2012).
O trabalho está dividido em duas partes. A primeira apresenta o contexto da
formulação e implementação de políticas públicas relacionadas ao patrimônio no período,
tendo como base a bibliografia disponível sobre o tema. Por fim, descreve-se a formulação e
implementação do Programa de Cidades Históricas, política idealizada e implementada no
âmbito da Secretaria de Planejamento da Presidência da República com a consultoria e
acompanhamento do IPHAN.

422

V V
Políticas de patrimônio sob o signo da Ditadura: Discurso desenvolvimentista e
riscos ao patrimônio.
No dia 13 de julho de 1966, em uma pequena nota publicada no Jornal do Brasil
intitulada “Consciência histórica”, afirma-se que a defesa do patrimônio histórico e
artístico nacional há de depender mais da formação de uma mentalidade do que
propriamente de providências legais ou administrativas que o governo venha a tomar”.
Por detrás da notícia publicada, revela-se uma geração de servidores públicos e intelectuais
vindos de conceituadas universidades públicas e que parecem compartilhar semelhantes
certezas. É importante destacar que o grupo não surgiu coeso e com clara consciência de seus
objetivos. E é esta circunstância que torna suas atividades e ações na gestão pública um lugar
de observação de formação de consciências e políticas públicas para a área.
No campo do patrimônio brasileiro, as décadas de 60/70 são marcadas pela busca de
referências de orientação de grandes transformações no ideário e nas práticas voltadas à
preservação do patrimônio brasileiro, capitaneada também pelo IPHAN2. Esta geração, uma
vez caracterizada pela importância que representou seu estilo de lidar com os problemas
decorrentes do atraso, da pobreza e da dependência econômica diante da necessidade de
preservação do patrimônio histórico, oferece ao investigador sugestões de pesquisa, ricas e
complexas, quanto a significadores ideológicos desse estilo.
Uma abordagem sumária das ações do IPHAN no período permite desde logo
vislumbrar a possibilidade de traduzir processos políticos - que o Instituto e seu conselho
consultivo formularam um conjunto de idéias de que a proteção aos conjuntos deveria ser a
guia mestra na formulação e implementação das políticas públicas relacionadas ao
patrimônio. Nessa visão, em diversos documentos, observava-se, de um lado, a
industrialização das regiões até então abandonadas, da abertura de estradas contribuindo para
promover o acesso a áreas afastadas, da existência de um país novo, próspero, em constante
transformação; dotado, enfim, de imensos recursos potenciais, com uma população em rápida
expansão e uma cultura original gerando com isso aumento da demanda populacional, assim
com a difusão do turismo (SPHAN, 1980; 32); de outro, a preocupação com a degradação e os
riscos ao patrimônio. É importante ressaltar que, entre os anos de 1967 e 1979, o IPHAN,
catalisado pelas políticas empreendidas no Regime Militar, parece ter contribuído para

2
Ressalta-se aqui o protagonismo da Secretaria de Planejamento na condução das políticas públicas relacionadas
ao patrimônio.

423

V V
congregar diversas iniciativas que estavam em sintonia com a idéia de desenvolvimento e de
patrimônio promovidos pelo Estado Brasileiro e por organismos internacionais.
Essas referências passam a aparecer no pensamento dessa geração como imagens de
grande força simbólica a expressar contrastes sociais e, no limite, o antagonismo de diferentes
formas de organização social e cultural. Nessa visão, os gestores da instituição observavam,
de um lado, a existência de um país novo, próspero, em constante transformação; dotado,
enfim, de imensos recursos potenciais e culturais, com uma população em rápida expansão e
uma cultura original e vigorosa; e, de outro, uma sociedade velha, miserável, imóvel.
Mantendo por toda parte o estreito contato, os dois brasis, tão diferentes, estão unidos pelo
mesmo sentimento nacional.
Nos idos de 1960, importantes transformações econômicas e sociais contribuem para
alterar o quadro e as prioridades dadas pelo governo na área do patrimônio a ser tombado. O
modelo de desenvolvimento seguido era o de base urbano-industrial, modelo que destaca a
cidade como bem de consumo para o bem de produção. Nas cidades e centros históricos,
ocorre um intenso processo de urbanização: crescimento acelerado e pressão demográfica,
metropolização de algumas regiões, implementação de indústrias em seus arredores e abertura
de estradas (CORRÊA, 2012). Na área econômica, o referido período caracteriza-se pela
proeminência do chamado “milagre econômico” presente no país entre os anos de 1969 e
1973, tendo se caracterizado por um crescimento econômico e baixas taxas de inflação
(FAUSTO, 2001; 268).
É justamente a presença da idéia concernente à superação do fosso entre os dois
brasis, representada, ao longo dos anos 70, pela implementação do Programa de Cidades
Históricas (PCH), que irá acompanhar o grupo gestor do IPHAN. Todo esse cenário resultou
na preocupação em identificar o papel dos centros históricos na nova cidade capitalista,
considerando a contradição existente entre desenvolvimento e preservação, tema que se
apresentava naquele momento na pauta de debates.
Neste período, as políticas públicas levadas a cabo pelo IPHAN e por outros órgãos
formuladores das políticas relacionadas à proteção do patrimônio como a Secretaria de
Planejamento da Presidência da República (SEPLAN/PR) visaram, pois, conciliar o
desenvolvimento das regiões com a preservação dos valores tradicionais. O ponto chave era
examinar que, se por um lado, tais fatores poderiam ser positivos para o enriquecimento e
desenvolvimento das regiões, por outro poderia representar graves riscos ao patrimônio. No
Brasil, destaca-se a criação, em 1966, do Conselho Federal de Cultura no processo de

424

V V
formulação deste ideário. Chama-se atenção aqui que estiveram presentes na reunião questões
como a de preservação de sítios históricos ou de conjuntos arquitetônicos – e não apenas
edificações isoladas como pontos de pauta na arena (CALABRE, 2008; 65)3. Inicia-se, assim,
neste novo contexto, uma nova política de tombamento, voltada para a preservação dos
conjuntos, que viria a se constituir um dos eixos de atuação do IPHAN no período.
Vislumbrava-se, nesse cenário, uma preocupação maior em enfrentar não somente o
monumento isolado mas, sobretudo, a moldura onde se insere, a ambiência que lhe é própria
ameaçadas que estavam pelas grandes obras públicas e particulares que no país se realizam;
portos modernos se instalam, novas estradas se abrem destruindo vestígios pré-históricos e
históricos, complexos industriais se levantam alterando ou repercutindo desfavoravelmente
no monumento e no seu entorno, concorrendo para a sua descaracterização e mesmo
destruição. O aumento das populações nos próprios conjuntos tombados provoca a
introdução de novas construções ou alterações nas existentes em proporções prejudiciais aos
núcleos originais protegidos (Arquivo Noronha Santos- manuscrito Renato Soeiro- Arquivo
Técnico Administrativo).
Por meio de tal abordagem, as intervenções em núcleos históricos deveriam ser
realizadas a partir de duas óticas: a econômica e cultural. Sob a ótica econômica, o núcleo
deveria ser considerado como algo produtivo, de intercâmbio e de reprodução do espaço
econômico; no segundo caso, é compreendido a partir de uma visão sociológica e cultural,
como maneira de uma linguagem urbana de integração entre os diferentes agentes sociais e
que proporcionam à comunidade sinais de identidade (SPHAN, 1980; 153). As cidades eram,
dessa forma, compreendidas enquanto produtoras de capital e bem de consumo e o
patrimônio, como fator de desenvolvimento econômico por meio do turismo (CORRÊA,
2012; 122).
No desenvolvimento dessa discussão, os organismos internacionais tiveram um
importante papel na formação das políticas do período contribuindo, dessa forma, para
alavancar as ações no país relacionadas à proteção aos conjuntos. A Carta de Veneza,
divulgada em 1964, por exemplo, considerada como um dos principais documentos
internacionais da área de preservação, estabelece que o Monumento é inseparável do meio
onde se encontra situado. Torna-se necessário, no âmbito das políticas públicas, considerá-lo,

3
Por meio do Decreto – Lei n° 74, foi criado, naquele ano, o Conselho constituído por 24 membros diretamente
nomeados pelo Presidente da República. Dentre as atribuições enumeradas, destaca-se a cooperação na defesa do
patrimônio histórico e artístico Nacional. Havia, no Decreto de criação, um artigo especial dedicado à câmara do
patrimônio.

425

V V
portanto, não somente como excepcional, mas, sobretudo, vislumbrar seu tecido e a moldura
em que se insere. Além dessa, destacam-se as Normas de Quito, publicadas em 1967 após um
encontro internacional organizado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em
Quito, no Equador. Nas normas publicadas, o espaço era compreendido como inseparável do
conceito de monumento e, portanto, a tutela do Estado pode e deve se estender ao contexto
urbano, ao ambiente natural que o emoldura e aos bens culturais que o encerra (IPHAN,
1967). Neste encontro, vislumbrou-se a possibilidade de articular os interesses econômicos à
preservação do patrimônio cultural; o patrimônio cultural deveria ser compreendido como
parte integrante dos recursos econômicos dos países.

Políticas públicas relacionadas ao patrimônio no contexto desenvolvimentista


No Brasil, tornava-se cada vez mais necessário encaixar o patrimônio dentro do novo
contexto caracterizado pelo desenvolvimento e crescimento urbano. Antes, é preciso lembrar
que, até 1969, o perfil das políticas públicas levadas a cabo pelo IPHAN recaia nos
tombamentos dos monumentos arquitetônicos. Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, do
total de 803 bens protegidos, 368 são de arquitetura religiosa, 289 de arquitetura civil, 43 de
arquitetura militar, 46 conjuntos, 36 bens móveis, 6 bens arqueológicos e 15 bens naturais
(FONSECA, 1997;113). Os conjuntos tombados no período se constituíam,
fundamentalmente, nas seis cidades de Minas Gerais inscritas em 1938. Tais conjuntos
tombados eram compreendidos como obras de arte excepcionais ou porque estariam imersas
em um tal estado de estagnação econômica que seu tombamento em nada as abalaria
(CORRÊA, 2012; 70).
Tal abordagem começa então ser fortemente alterada, a partir dos anos 60, quando os
tombamentos passaram a ser compreendidos, enfim, como instrumento de política urbana no
contexto de um Estado desenvolvimentista. O ponto de partida para a mudança de orientação
política ocorreu sob a gestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade4. A partir de 1965, a
UNESCO inicia um programa de desenvolvimento do turismo vinculado ao patrimônio
cultural e natural. O Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN),
por meio de uma solicitação de seu Presidente, pleiteia e consegue apoio técnico do
organismo internacional, tendo recebido diversos consultores que visavam, em seus trabalhos,

4 O período em que esteve no comando do Instituto, passou a ser conhecido como fase heróica em alusão à sua
atuação à frente da instituição (IPHAN, Nota Biográfica). Rodrigo esteve relacionado a uma geração de
intelectuais modernistas, grupo composto por Gustavo Capanema, Carlos Drummond de Andrade, Pedro
Nava, dentre outros.

426

V V
elaborar planos urbanos para as cidades históricas que estivessem em articulação com outras
demais políticas públicas.
Destaca-se, sob a gestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade, a vinda ao Brasil do
Inspetor Principal dos Monumentos Franceses, Michel Parent, cujo relatório passou a se
constituir no documento básico sobre o assunto (SPHAN, 1980; 32). O consultor destaca, no
documento, que a inclusão no planejamento urbano do município é fator indispensável para a
preservação e chama atenção para a necessidade de integração aos planos de desenvolvimento
globais, especialmente, de turismo, habitação e planejamento (CORRÊA, 2012; 88).
Posteriormente, outros relatórios foram elaborados como o do arquiteto Viana de Lima sobre
a cidade de Outro Preto (MG), São Luiz e Alcântara, e o do arquiteto Limburg Stirum sobre
Paraty, todos eles consultores da UNESCO. A Conversão de Paraty em monumento nacional,
por meio do Decreto Lei de 24 de março de 1966, foi o primeiro Plano articulado para
proteção de conjuntos. Seguiram-se a esses, planos para as cidades históricas de Minas
Gerais, do Nordeste e Centro Oeste, estabelecendo-se, dessa forma, condições necessárias
para o desenvolvimento urbanístico adequado.
Com a aposentadoria de Rodrigo, no ano de 1967, assumira o cargo o arquiteto
Renato Soeiro5. Sua figura representa elementos de continuidades no âmbito das políticas
empreendidas pelo órgão. Sob a gestão de Renato Soeiro, estenderam-se planos para as
cidades históricas de Minas Gerais, do Nordeste e Centro Oeste. Por meio do Decreto n°
68.045, de 18 de janeiro de 1971, e 72.107, de 18 de abril de 1973, a cidade de Cachoeira
(BA) e o município de Porto Seguro (BA), respectivamente, foram também erigidos em
monumentos nacionais.
Durante o período compreendido entre os anos de 1967 e 1979, o conselho aprovou o
tombamento de 12 conjuntos. O quantitativo de conjuntos tombados por ano é apresentado
abaixo:

5
É preciso lembrar que Soeiro - no momento em que assumira o cargo de Diretor do Instituto – já acumulara
diversas funções naquele mesmo órgão. Recém diplomado em Arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes
pela Universidade do Brasil, ingressou em 1938 - ano de criação do próprio instituto- como assistente técnico de
terceira Classe e foi nomeado, em 1946, Diretor da Divisão de Conservação e Restauração da Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, função que assumiu até o ano de 1967, data em que passa a presidir o
órgão no lugar de Rodrigo Melo Franco de Andrade.

427

V V
Quantitativo de Conjuntos Tombados (1967-1979)

6
5
5

3 Série1
2
2
1 1 1 1 1
1
0 0 0 0 0 0
0
9

7
97

97

97

97

97

97

97

97

97

97

96

96

96
/1

/1

/1

/1

/1

/1

/1

/1

/1

/1

/1

/1

/1
O

O
AN

AN

AN

AN

AN

AN

AN

AN

AN

AN

AN

AN

AN
A seguir, apresenta-se listagem contendo os conjuntos aprovados:

LISTA DE CONJUNTOS TOMBADOS (1967-1979)

Goiás, GO: Conjunto arquitetônico e urbanístico


Sítio da Trindade: Conjunto paisagístico
Paraty, RJ: Conjunto arquitetônico e paisagístico do Município
Cidade de Alcântara; Centro histórico de Alcântara; Sítio histórico
de Alcântara
São Luiz, MA: Conjunto arquitetônico e paisagístico
Porto Seguro, BA: Conjunto arquitetônico e paisagístico
Lençóis, BA: conjunto arquitetônico e paisagístico
Praça da Matriz: conjunto arquitetônico e Museu de Arte e
História: prédio
Igarassu, PE: conjunto arquitetônico e paisagístico
Cachoeira, BA: conjunto arquitetônico e paisagístico
Olinda, PE: conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico
São Cristovão, SE: conjunto arquitetônico, urbanístico e
paisagístico

O grande número de tombamentos ocorreu em 1973 (2 conjuntos tombados) e 1974


(5 conjuntos tombados), respectivamente. É preciso ressaltar que o aumento no número de
tombamentos, no período, relacionou-se ao processo de formulação e implementação das
ações relacionadas ao Programa de Cidades Históricas, ação que será examinada a seguir.

428

V V
A formulação e implementação do Programa Integrado de Reconstrução das
Cidades Históricas do Nordeste (1974-1979)
O processo de formulação do Programa tem início com a aprovação, pelo Presidente
da República, da Exposição de Motivos 301-B/72. No documento, os Ministérios do
Planejamento e da Educação e Cultura nomearam um Grupo Interministerial constituído por
representantes do MEC, por meio do IPHAN, do Ministério do Planejamento, da SUDENE e
da EMBRATUR com o objetivo de realizar estudos sobre o patrimônio histórico do Nordeste
e de formular, em versão preliminar, o Programa de Reconstrução das Cidades Barrocas
do Nordeste6.
É preciso lembrar que, quando o PCH foi criado, a condução do Ministério da
Fazenda e do Planejamento estava a cargo de Antônio Delfim Neto e João Paulo Reis
Velloso, respectivamente. Tal fato torna-se um indicativo das políticas a serem
implementadas: Enquanto Delfim Neto defendia o modelo agroexportador como medida para
o crescimento econômico e a intervenção estatal na economia, João Paulo Reis Veloso daria
continuidade às diretrizes do Plano Estratégico de Desenvolvimento. Todas as duas
abordagens encontravam-se em sintonia com o ideário de desenvolvimento levado a cabo
pelos órgãos executores da política relacionada ao patrimônio.
Como desdobramento do trabalho, por meio da Exposição de Motivos 076-B, o
Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste foi criado com
vistas à reativação econômica do estoque patrimonial do Nordeste, tendo como pressuposto a
retomada de investimento público pautada em diversos planos - como o I e II Plano Nacional
de Desenvolvimento. Visavam criar uma infraestrutura adequada ao desenvolvimento e
suporte de atividades turísticas e ao uso de bens culturais como fonte de renda para as regiões
carentes do nordeste (FONSECA, 2009; 143).
Administrado no âmbito da SEPLAN, coube ao IPHAN a referência conceitual e
técnica. De acordo com Corrêa, se por um lado garantiu a esse órgão federal legitimidade
exclusiva para análise dos aspectos relacionados às técnicas e ao partido de projeto de
restauração, por outro excluiu a possibilidade da instituição opinar sobre a conveniência da
intervenção proposta- seja no que se refere à relevância do monumento a receber
investimentos federais e o uso indicado, seja em relação ao efeito que essas intervenções

6
Renato Soeiro, presidente do IPHAN, participou como representante do Grupo de Trabalho.

429

V V
poderiam causar em longo prazo para a preservação do conjunto – ou ainda, pela política de
preservação que estava sendo implementada pelo PCH (CORRÊA, 2012; 142).
O processo de implementação do Programa nos estados que, se de início atendia a
propostas de restauração de monumentos isolados, passara a evoluir posteriormente para uma
estratégia de atuação que considerava conjuntos de monumentos como partes integrantes do
contexto urbano ao qual pertencem. Sua ênfase, que objetivava o desenvolvimento
socioeconômico das cidades históricas, dialogava, enfim, com os demais assuntos em pauta
no período como desenvolvimento urbano, regional e econômico e a tentativa de reverter os
desequilíbrios regionais.
Com recursos provenientes do Fundo de Desenvolvimento de Projetos Integrados, o
PCH abrangeu inicialmente, os estados da Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão (SPHAN, 1980; 38). Em 1977, o Programa foi
estendido aos estados do Sudeste e, em 1979 e os recursos foram destinados, em parte, ao
IPHAN. O PCH apoiou, até o final do primeiro semestre de 1979, juntamente com o IPHAN,
nos estados do Nordeste, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, a realização do total
de 143 projetos, abarcando um volume de recursos de cerca de 450 milhões de cruzeiros que
– somados aos 210 milhões de contrapartida estadual- totalizaram o volume de 660 milhões
(SPHAN, 1980; 154).
Muito interessante perceber que, no processo de implementação do PCH, objetivava-
se o desenvolvimento socioeconômico das cidades históricas, estando em sintonia justamente
com assuntos em pauta naquele momento, tais como: o desenvolvimento urbano, regional e
econômico em um contexto do reconhecimento das conseqüências do crescimento urbano
acelerado e concentrado que refletia territorialmente a má distribuição de renda e os riscos
que tal cenário poderia representava ao patrimônio (CORRÊA, 2012; 121).

Considerações Finais
As políticas relacionadas à preservação do patrimônio brasileiro em suas diversas
ações ganharam cada vez mais espaço nas diferentes conjunturas governamentais ao longo
das três primeiras gestões presidenciais. A partir da década de 1970, é possível notar um
maior direcionamento e gerenciamento dos recursos destinados à área, materializado no PCH
e em sua gestão no âmbito da SEPLAN/PR sob a consultoria do IPHAN.
No âmbito do IPHAN, ressalta-se a cooperação que a instituição manteve com a com
a UNESCO na década de 1960, ajudando no direcionamento das políticas públicas

430

V V
relacionadas à área, contribuindo na criação de normas, discussão dos conceitos e buscando
ampliação da consciência e da importância da preservação dos conjuntos no desenho das
políticas implementadas. O Conselho Federal de Cultura e as agências internacionais tiveram
um importante papel nesse processo, ajudando no direcionamento das políticas públicas
relacionadas à área, contribuindo na criação de normas, discussão dos conceitos e buscando
ampliação da consciência e da importância da preservação dos conjuntos no desenho das
políticas implementadas.
A partir desse estudo, foi possível aprofundar o conhecimento sobre as políticas de
preservação do patrimônio brasileiro e problematizá-los. Aos futuros estudos que abordem a
temática, trata-se de debruçar-se sobre, pelo menos, duas óticas críticas principais: Qual o
perfil de intervenção estatal no período concernente à gestão de Renato Soeiro ? Como se dá o
processo de construção do interesse coletivo no âmbito dos dispositivos dos arranjos
participativos no âmbito do IPHAN, especificamente em seu conselho consultivo? Nesse
período, tanto as tensões menos evidentes que perduraram por mais tempo quanto os conflitos
coletivos abertos e suas relações com as formas de mobilização até o fim do mandato do então
presidente Ernesto Geisel, em 1979, se apresentam como desafios ao campo do patrimônio.

Bibliografia

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431

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432

V V
MUSEU DAS COISAS BANAIS: CULTURA MATERIAL E VIRTUALIDADE
Daniele Borges Bezerra1
Juliane Conceição Primon Serres2
Rafael Teixeira Chaves3

RESUMO Neste artigo abordaremos a relação entre materialidade e virtualidade a partir do


exemplo do Museu das Coisas Banais. O valor documental da fotografia, associado ao da
narrativa que envolve os objetos que compõem o acervo do museu são elementos patrimoniais
resituados com a dinâmica de visitação possibilitada pela WEB. Assim como, e não menos
importante, pelo seu caráter democrático, no que diz respeito a dessacralização do objeto
museal, ao considerar preservável todo objeto que apresente um valor afetivo capaz de evocar
memórias vinculadas à identidade do seu doador.

PALAVRAS-CHAVE: Museu virtual; objetos memoriais; imaterialidade, valor.

[...] O mundo humano é ‘virtual’ desde a origem, bem antes das tecnologias digitais,
porque ele contém em toda parte sementes de futuro, possibilidades inexploradas, formas
por nascer que nossa atenção, nossos pensamentos, nossas percepções, nossos atos e
nossas invenções não deixam de atualizar. (LÉVY,2001,p.137).

Os museus preservam bens culturais considerados importantes para uma sociedade.


Porém, por muito tempo, a origem desses objetos foi restrita a determinados eventos e grupos
sociais, excluindo os vestígios materiais de grande parte da população, cujas memórias não
eram representadas nos museus, fazendo com que, em muitos casos, fossem vistos como
locais elitizados, distantes da vida da comunidade. Na maioria das instituições museais
existentes, os acervos ainda tem o status de relíquias, assim, por outro lado o Museu das
Coisas Banais, ao voltar suas atenções sobre os objetos do cotidiano, considera que podem ser
entendidos como atores e mediadores de todas as situações sociais (LATOUR, 2007), e busca
assim preservá-los, não no sentido material, mas preservá-los no sentido de registrar e discutir
seus significados.
O Museu das Coisas Banais (MCB) é um museu virtual que existe apenas na internet e está
voltado para a preservação e o compartilhamento da memória e para a reflexão sobre a cultura material
do tempo presente. Criado em 2014 e vinculado ao Instituto de Ciências Humanas da

1
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel); borgesfotografia@gmail.com
2
Doutora em História, Profa. do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural e do
Curso de Museologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel); julianeserres@gmail.com
3
Graduando do Curso de Museologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), bolsista do Museu das Coisas
Banais; Rafael-teixeirachaves@hotmail.com

433

V V
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), valoriza a relação dos homens com os objetos (Cf.
SILVA, 2009) e as diferentes formas de vinculação entre memória e materialidade.
Todas as informações relativas ao MCB, tais como: fotografias e narrativas, dados
dos doadores, origem e estado de preservação dos objetos; dados de acesso como: número de
visitantes, de curtidas e compartilhamentos além da localização dos visitantes, são
digitalizados e a salvaguarda é feita com a gravação digital em dois diferentes HDs externos,
de propriedade do MCB, adquiridos exclusivamente para este fim.
A criação de um museu virtual de objetos cotidianos, banais, cujo valor maior do
acervo é de caráter afetivo, permite democratizar, não apenas o acesso ao museus (virtuais,
portanto globais), mas também democratizar o acervo: o que se pode ver neste museu é uma
memória muito familiar; todos temos lembranças associadas a objetos. Esta proposta permite
também valorizar a experiência das pessoas e sua relação com os bens materiais.
Algumas instituições no Brasil e no exterior vem trabalhando com essa perspectiva
de forma muito exitosa. No Brasil, temos como maior exemplo o Museu da Pessoa (São
Paulo), criado em 1991e cujo acervo conta com mais de 16 mil histórias de vida, 72 mil
fotografias e documentos além de 25 mil horas de gravação em vídeo. No exterior, os museus
com esta temática de maior destaque são o Museu da Inocência (Istambul), que trabalha com
objetos de afeto; e o Museu dos Corações Partidos (Croácia) cujo acervo conta com objetos
referentes a relações terminadas. Todas propostas inovadoras para trabalhar-se temas como
memória, patrimônio, identidade e afeto. Uma “museologia do afeto”, de fato, que aspira
aproximar o Museu das pessoas comuns, compartilhar suas experiências, desenvolver a
alteridade.
Embora o estudo sobre os objetos, ou mais especificamente a cultura material, tenha
uma longa tradição em disciplinas como a arqueologia e a antropologia, mais recentemente
outras áreas tem se interessado pelo tema. Conforme Turgeon (2007), os estudos sobre
objetos e sua relação com memórias são recentes, mas apresentam um desenvolvimento
acelerado. A autora atribui esse interesse devido ao lugar que os objetos materiais ocupam nas
práticas sociais contemporâneas (idem, p. 13). Nesse sentido, nos parece extremamente
pertinente que os museus – e a museologia – reflitam sobre o lugar dos objetos na
contemporaneidade, sejam eles entendidos como testemunhos históricos ou como signos, ou
sejam entendidos a partir da análise de sua função social ou sua relação com a memória.

O material e o imaterial no museu

434

V V
Apesar da tradicional materialidade dos objetos museais, os aspectos patrimoniais
que orientam a sua classificação são estritamente imateriais. Os objetos que compõem
coleções citam o tempo, narrado a partir de uma história. E a história narrada é sempre
resultado de interpretações e valores associados ao objeto e à memória em determinado
momento. Esses objetos são transformados em semióforos, objetos que não tem utilidade, mas
significado (POMIAN, 1997). Nesse sentido, os museus seriam locais que preservam, mais
que objetos, os significados que lhes são atribuídos. Historicamente essas institui podem ser
consideradas lugares de conservação e comunicação, caracterizadas pela existência de
coleções abrigadas em uma edificação especialmente destinada para esse fim. Entretanto, essa
definição já não comporta as transformações ocorridas no mundo museal, desde a ênfase cada
vez maior no território e comunidade em detrimento das edificações e coleções, até a
virtualidade, que coloca em discussão a materialidade (e originalidade) dos objetos.
Pode-se, como Scheiner (1998, p.21), falar de um museu que, ao libertar-se do plano
institucional, de suas “expressões mais óbvias (o objeto, a exposição) e de seus limites
espaciais, para brilhar em novas- e inusitadas- dimensões, entre elas o museu virtual (o museu
do não-lugar) ”, entoe uma atualização de seu papel social como canal de comunicação, um
centralizador/difusor da informação, fruto de colaboração.
Este “não-lugar”, virtual, é tão imaterial quanto a própria memória relacionada aos
objetos. Contudo, o MCB possui uma “espacialidade, independente da localização em um
espaço tridimensional” (BEIGUELMAN, 2003, p.12). Ao integrar um processo de
transformação cultural, que perpassa um processo pedagógico de transição e adaptação ao
ciberespaço, enquanto cultura híbrida, o seu acervo digital continua desempenhando a função
de suporte da memória. Nesse sentido, a criação do Museu das Coisas Banais, exclusivamente
na forma virtual e voltado à preservação da memória atrelada aos objetos, pretende ampliar
essa noção tradicional de museu e, ao mesmo tempo, ao contemplar os objetos cotidianos e
banais (ROCHE, 2004) presentes na vida diária, mas quase sempre ausentes nos museus,
discutir o papel dos objetos comuns como objetos históricos. Ao partilhar do pensamento de
Lévy (2001), de que o mundo é virtual desde sua origem, enquanto possibilidade, enquanto
constante devir, é coerente que o museu seja pensado, não apenas como uma visão possível
do passado que se atualiza, mas também como uma visão do futuro antecipado. Em outros
termos, não como um contenedor de relíquias transmitidas de geração à geração, mas como o
próprio futuro contemporâneo a nós de modo virtual.

435

V V
Contudo, apesar da virtualidade da memória, dos museus enquanto instituição, e dos
cibermuseus, ocorre sempre, no presente, um desejo de deixar marcas, de registrar o que já
existia de modo virtual como possibilidade. Com a experiência obtida a partir da coleta virtual
de acervo do Museu das Coisas Banais, percebemos que, ao registrar a história e compartilhar
a fotografia de seu objeto, o doador confere a ambos um valor documental que lhe projeta
para o futuro, de tal maneira e em tal velocidade que, de certo modo, o torna mais palpável do
que se estivesse sobre o móvel ou dentro de um cofre. Se a intenção de documentar é
inconsciente, o desejo de exposição do objeto e de sua história, composta de memórias
individuais relacionadas às experiências pregressas com o mesmo, é sempre uma opção
gratificante, quase catártica. O que é obervado nas falas dos doadores, nos comentários dos
visitantes e, em diversos casos, nas próprias narrativas dos objetos.
A fotografia, como principal índice do objeto exposto, é mais do que signo a serviço
da memória, capaz de armazenar e reter através da imagem, enquanto documento relativo. A
fotografia é também fruto de um olhar coletor que realiza incessantemente o inventário das
coisas no seu cotidiano e possibilita a criação de coleções visuais, antes que bens materiais e
imateriais se desfaçam ou sucumbam perante os excessos do cotidiano. Argumento reforçado
pelo trecho:
A vida complexa, cheia demais, cheia de gente, de edifícios, de
coisas sem vida, congestionada de solicitações visuais, encontrou na
fotografia um meio de registrar e guardar o que “vale a pena”, o que
queremos que fique. (MARTINS, 2008, p.40)

Com os benefícios da internet e o aumento da utilização das redes para o acesso


virtual de museus, surgem não apenas novas possibilidades de atuação junto à sociedade, mas
também novos desafios no que diz respeito à sua gestão, acessibilidade e armazenamento de
dados.
Atualmente, além de questionar a função dos museus, o campo museal expande sua
atenção para o caráter virtual dos acervos na rede. Assim, a preservação da memória a partir
da materialidade dos objetos abrange outros suportes e supera a própria materialidade das
coisas, concentrando sua atenção sobre a memória narrada, a memória ainda atrelada ao
objeto, que passa a ser índice de uma presença ausente.
Conforme Benjamim (1993, p.239), “quem pretende se aproximar do próprio
passado soterrado deve agir como um homem que escava”. Atuar nesse campo de preservação
memorial cientes do aspecto simbólico dos objetos doados é uma oportunidade de escavar não
apenas memórias sociais compartilhadas, mas ir mais fundo na compreensão do papel da

436

V V
cultura material na trama das relações estabelecidas entre os homens e seus objetos no hoje, é
participar de uma arqueologia do tempo presente.

Democratização do acervo
Seguindo o exemplo de outros museus virtuais, o Museu das Coisas Banais pretende
otimizar o sistema de informações utilizado ao disponibilizar a informação compartilhada
também em outras línguas, além disso pretendemos linkar o endereço de outros museus
virtuais com temáticas semelhantes à página do MCB. Finalmente, a equipe do MCB está
trabalhando para tornar acessível toda informação veiculada pela web , através da áudio-
descrição, legenda, ou libras.
Por hora, a utilização da internet como meio de comunicação permite a
democratização do acervo do Museu das Coisas Banais em dois níveis. Primeiro: qualquer
pessoa pode ser doadora e ter seu objeto integrado ao acervo do museu (desde que o objeto
seja conservado por motivos memoriais); segundo: pessoas do mundo todo podem visitar o
acervo do museu através da internet. Ou seja, o MCB usufrui da linguagem, enquanto
inteligência coletiva, para interagir com a cultura universal, tal como proposta por Pierre Lévy
(2001, p. 128). Portanto, sob o ponto de vista educativo, o MCB é capaz de gerar diversas
ações concretas em diferentes momentos e locais determinados sem, contudo, estar em um
lugar permanente, criando esta identidade virtual com a livre participação de todos os
usuários.
Outra característica do Museu das Coisas Banais que, talvez seja interessante
apontar, é sua dinâmica de exposição virtual: fotografia x história narrada que o enquadra na
categoria de museu colaborativo. Interessante pensar que a associação entre fotografia e
narrativa escrita reafirma o aspecto indicial do objeto, tal como proposto por Baudrillard
(2009, p. 83) “existe, pois, um estatuto particular do objeto antigo. Na medida em que aí se
encontra para esconjurar o tempo na ambiência e onde é vivido como signo”.
A fotografia funciona como estopim para a memória e como prova material; contato
com o tempo brevemente recuado e projeção para o futuro. A ilusão que a fotografia provoca
em termos de apresentar um objeto e vivificar uma história não elimina a imaterialidade da
sua condição, mas é nesta ilusão de materialidade, na possibilidade do registro e de
compartilhamento, que a fotografia, somada à história oral, permite a exposição de um acervo
que participa da era globalizada.

437

V V
A imaterialidade da memória atrelada ao objeto é destacada, uma vez que os
visitantes têm acesso a uma imagem e a uma história do objeto que são subjetivas e pessoais,
fruto de escolhas. Tal como afirma Baudrillard: “[...] colecionamos sempre a nós mesmos”
(2009, p. 99).
Por que este e não aquele objeto? Quando um objeto banal se torna importante? O
que é banal e o que é valioso na sociedade contemporânea? Quais indícios nos dão os objetos
do tempo presente? Estas são questões norteadoras do projeto, contribuições que o Museu das
Coisas Banais aponta enquanto instituição museal.

Objetos e seus significados


Ao propor uma exposição do banal, do ordinário, se percebe mais profundamente um
sentimento de memória compartilhada. Não a memória oficial, mas aquela mais afetiva,
vinculada às emoções privadas, à memória íntima. Esses objetos e memórias assumem
posturas afetivas “em volta de nós como uma sociedade muda e imóvel. Eles não falam, mas
nós os compreendemos, porque têm um sentido que familiarmente deciframos” (RADLEY,
1994, p.158).
Radley também fala em “desenraizamento” dos objetos (1994, p.50) para fins de uma
rememoração que chamamos aqui de ilustrativa, como é o caso dos museus tradicionais, pois
os objetos alteram o seu sentido quando apartados do seu contexto. Em se tratando de objetos
biográficos:
Nesses casos o significado dos artefatos, agora removidos dos contextos espaciais e temporais dos
quais foram obtidos, se constrói ao se tornarem objetos de discurso. Não apenas o artefato, mas a pessoa, como
sujeitos, foram deslocados, de tal modo que utilizar sua posse como um veículo para tal lembrança torna-se parte
de uma narrativa cujo propósito talvez seja a reparação de uma ruptura biográfica que o indivíduo em questão
sofreu. Nestes exemplos o lugar dos objetos na memória não é apenas como parte de um envelhecimento (um
corpo envelhecendo), mas daquele que envelhece sendo removido do centro do palco socioeconômico de sua
cultura. Este “sentido de passado” se revela através de esforços que evocam um senso de continuidade, ou uma
discreta quebra, com o que se passou. 4 (RADLEY, 1994, p. 50-51).

No sentido oposto, o do enraizamento, uma das principais razões para a preservação


de objetos memoriais é a sensação de estabilidade que eles nos proporcionam. A partir dos
4
In this case the significance of the artefacts, now removed from the temporal and spatial context for
which they were obtained, is made through their being the object of discourse. Not only the artefact
bur the person as subject has been displaced, so that the use of the possession as a vehicle for such
remembering is part of a narrative whose purpose may be to repair a biographical disruption which the
individual concerned has suffered. In these examples the place of objects in remembering is not only
part of getting older (an ageing body) but of the elderly being removed from the centre of the
socioeconomic stage of their culture. This “sense of the past” is revelead through efforts to evoke
either a sense of continuity with, or a discrete break from, what has gone before. (RADLEY, 1994, p.
50-51).

438

V V
objetos não apenas recordamos de pessoas ou eventos do passado, mas nos identificamos e
reinventamos nossas memórias no presente. A partir disto é possível afirmar que objetos
descontextualizados passam de memoriais à banais.
O ato de colecionar objetos, além de um sentido memorial, ou enraizador, pode ser
considerado sob o ponto de vista compensatório, o prazer de empregar tempo e afeto ao
acúmulo que supre ausências (BAUDRILLARD, (2009, p. 211). Talvez até mesmo fetichista,
quando o objeto enquanto coisa for mais “coisa” que objeto, e sua exposição ao olhar do outro
mais importante que a narrativa a ele associada. Independente de quais sejam os motivos que
levam cada pessoa a colecionar objetos, eles estão sempre atrelados a uma noção de valor que
se preserva, que para além dos valores artísticos ou históricos, comportam um valor subjetivo.
Para Radley é necessário avaliar o lugar dos artefatos na vida social, assim como
indicar , especificamente, de que maneira eles estão implicados no modo como as pessoas
consideram o seu passado individual e coletivo: “Em um nível mundano, muitos objetos do
mundo cotidiano são inseparáveis da memória” (RADLEY,1994, p.47)5. Por exemplo um
móvel da casa que não somos capazes de substituir porque nos traz lembranças de pessoas
queridas, e lembranças de nós mesmos que crescíamos em torno daquele móvel. Neste sentido
alguns objetos servem, como afirma Benjamin, para o palco de nossas experiências:
a uma relação com as coisas que não põe em destaque o seu valor funcional ou utilitário, a sua
serventia, mas que as estuda e as ama como o palco, como o cenário de seu destino. [...] Tudo o que é lembrado,
pensado, conscientizado, torna-se alicerce, moldura, pedestal, fecho de seus pertences. (BENJAMIN, 1993, p.
228).

Com relação a materialidade das “coisas” que compõem o MCB, destacamos uma
aproximação com os estudos arqueológicos contemporâneos, menos voltados para a
materialidade que submerge do passado e mais concentrada na narrativa dos objetos, com
recuo temporal relativo ou curto. Interessante refletir sobre a afirmação de Severin Fowles em
entrevista coletiva (Alberti et al, 2011, p.899): “a arqueologia, como a vejo, sempre foi a
disciplina da grande narrativa, não das coisas”6. Assim, não é tanto pela conservação da
materialidade, que de fato o MCB não faz, mas na preservação da memória veiculada às
coisas, relativamente banais que o museu pretende avançar suas pesquisas.
O MCB ao coletar, exibir, e pôr em xeque a valorização dos objetos, abre espaço
para uma discussão mais profunda sobre a questão do valor, atribuído à cultura material, que
pode ser identificado de modo diacrônico, mas também sincrônico, em associação às diversas

5
“At a mundane level, many objects in the everyday world are inextricably tied up with memory.”
6
“Archaeology, as I see it, has always been the discipline not of things but of the grand narrative”
Severin Fowles (apud ALBERTI et al, 2011, p.899)

439

V V
culturas. É característica da natureza humana atribuir valor às coisas, assim como utilizar os
objetos como artifícios memoriais que prolongam a humanidade de seus donos ao longo do
tempo. Assim, apesar de se tratar de um acervo composto de “coisas comuns”, doadas por
pessoas comuns, jamais estão fechadas na pessoa do seu narrador, pois dialogam com as
experiências de outras pessoas. Com certa ironia, sua qualidade democrática supera os
grandes museus centrados em histórias extraordinárias de um, ou alguns, para apresentar
histórias extraordinárias de pessoas que valorizam o seu passado a partir da sua própria
experiência, individual ou familiar.
O que merecia ficar no museu de feição mais tradicional era em geral, o objeto da elite: a
farda do general, o retrato do governante, a cadeira do político, a caneta do escritor, o anel de um
bispo[...] Tudo isso compunha o discurso figurativo de glorificação da história de heróis e indivíduos
de destaque. (REGIS, 2004, p.19).

O fato de ser um museu virtual nos possibilita saltar o problema da teatralização das
narrativas, muito comuns nos museus tradicionais, com a exposição dos objetos. Não há
cenário, apenas “possibilidades”, virtualmente falando, de interpretação e identificação, ou
não, com as categorias de memória compostas a partir dos objetos compartilhados.
Os objetos do MCB estão apresentados em 19 categorias, concentrados em quatro
verbetes, elaborados com base no texto: “Objetoteca: conjunto de Gabinete para inventário de
objetos” (SACCO, 2012). A partir dessas categorias buscamos, gradualmente, associar os
objetos doados para melhor estudá-los sob o ponto de vista da memória.
1 – A memória dos objetos- os objetos podem ser entendidos tanto como um
continente de memórias, quanto como um produtor de novas memórias.
1.1 Objetos que cheiram.
1.2 Objetos que não existem
1.3 Objetos de afeto
1.4 Objetos melancólicos
1.5 Objetos de afeto
1.6 Objetos que faltam/esquecidos/perdidos
1.7 Objetos biográficos
1.8 Objetos ficcionais/ Memórias inventadas de objetos.
1.9 Objetos secretos
2- Curiosidades- alguns objetos são consumidos e conservados pelas características
que os diferenciam do conjunto de objetos padrão.
2.1 Objetos raros

440

V V
2.2 Objetos inúteis
3 Objetos com funções- apesar de serem criados com finalidades específicas os
objetos agregam outros valores de uso com o tempo.
3.1 Objetos de controle do tempo
3.2 Objetos que guardam
3.3 Objetos de arte
3.4 Objetos de culto
3.5 Objetos de coleção
3.6 Objetos de viagem
3.7 Objetos de desejo
4 Objetos inclassificáveis- alguns objetos podem ser ambíguos, indecifráveis,
desconectados de suas funções de uso, fora do tempo, alguns podem não ser objetos
manufaturados, e mesmo assim serem um objeto da ação, ou atenção humana. Entre esses
objetos inclassificáveis, foram inventariados no MCB, por exemplo uma tatuagem, uma
cicatriz, um animal de estimação. Essa categoria engloba todos aqueles “objetos” deslocados
de seus sentidos de objeto enquanto coisa para um objeto “quem” “como” “quando” “onde”
das experiências e relações humanas.

Considerações finais
O Museu das Coisas Banais é uma experiência recentemente colocada em curso, mas
que já possibilita leituras no presente e exprime seu potencial de futuro, inserido nesta
realidade, outrora futurista, do contato humano em tempo real, (da troca de experiências com
pessoas de todo o mundo, de acessos a diversos museus em um mesmo dia) a partir daquilo
que Lévy (2001, p.143) chamou de “o fogo do futuro”, referindo-se ao computador, que
permite uma “conexão planetária. Os museus virtuais entram no campo museal causando
grande impacto, permitindo conexões outrora impensáveis, bem como democratizando o
acesso aos acervos culturais, bem como a produção de novos acervos.
A partir do que foi exposto, pode-se inferir que as possibilidades de atuação do
Museu das Coisas Banais, assim como de outros veículos de informação que associam coleta,
exposição, e cooperação, são uma demonstração empírica das ideias de Pierre Lévy,
antecipadas por Walter Benjamin (1985) no que se refere à unificação de uma narrativa e a
construção de um documento único de origem universal. Pois, o MCB ao reunir e expor seu
acervo por meio virtual possibilita a diversos narradores que compartilhem e acessem

441

V V
memórias de outras pessoas, a qualquer hora do dia, em qualquer lugar do globo. Deste modo,
a partir do compartilhamento de memórias individuais e de um acesso virtual público, todo
visitante pode vislumbrar uma história escrita por muitas mãos, composta pela “relação entre
o narrador e sua matéria- a vida humana- […] matéria-prima da experiência- a sua e a dos
outros [...]”. (idem, p.4).

Referências

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In.:Current Anthropology, Vol. 52, No. 6. Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research,
The University of Chicago Press, 2011. Pg. 896-912. BALLART HERNÁNDEZ, Joseph;
TRESSERAS, Jordi Juan i. Gestión del patrimônio cultural. Barcelona: Ariel, 2007.

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Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. 3 ed. São Paulo: brasiliense, 1993. 280p.

________. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e
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34, 2001. 192 p.

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da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2008. 208 p.

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Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997. 51-86 p.

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SACCO, Helene. OBJETOTECA: conjunto de Gabinete para inventário de objetos. MAC. Arte
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442

V V
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cultura material. MÉTIS: história & cultura – v. 8, n. 16, p. 121-139, jul./dez. 2009.

SCHEINER, Teresa Cristina. Apolo e Dioniso no templo das musas.Museu – Gênese, idéia e
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TURGEON, Laurier. La mémoire de la culture matérielle et la culture matérielle de la memoire. In:


DEBARY, Octave; TURGEON, Laurier (Orgs.). Objets & Memoires. Éditions de la Maison des
Sciences de l’Homme (Paris); Le Presses de l’Université Laval (Quebec), 2007.13-36 p.

443

V V
PONDERAÇÕES SOBRE O USO DE INDICADORES NA ANÁLISE DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA: UM ESTUDO SOBRE A
DISTRIBUIÇÃO DA OFERTA CULTURAL SOB A GESTÃO DA
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO
Daniele Cristina Dantas1

RESUMO: O presente trabalho apresenta ponderações sobre o uso de indicadores


quantitativos em diferentes escalas para a análise de aspectos da gestão cultural. O
trabalho é realizado a partir de resultados da aplicação de um método estatístico simples
para a análise de distribuição de equipamentos culturais e de atividades culturais na
cidade do Rio de Janeiro, a partir de dados de registro administrativo de equipamentos
culturais sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. São
utilizadas como unidades de análise duas unidades administrativas da gestão pública da
cidade: Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas. As análises realizadas e as
conclusões indicam que se deve ter atenção e cuidado ao utilizar informações
quantitativas aplicadas à gestão cultural, particularmente, em relação ao nível de
agregação da informação e do que se infere a partir delas.

PALAVRAS-CHAVE: indicadores culturais, políticas públicas de cultura,


equipamentos culturais, presença, Rio de Janeiro.

INTRODUÇÃO
O uso de indicadores na análise de aspectos da gestão cultural é um recurso
utilizado de forma ampla e diversa. Gestores com diferentes formações utilizam
indicadores para fundamentar decisões, estimar público ou custos em seus orçamentos.
E, neste contexto, o uso de indicadores quantitativos e de métodos estatísticos simples
ou complexos pode ser um desafio importante para uma equipe que não tenha
orientações técnicas.
Orientações sobre fontes e a seleção de dados, assim como sobre o uso das
informações quantitativas mais apropriadas em contextos específicos da gestão são
essenciais para o bom uso de indicadores. A seleção de informações de fontes
equivocadas, a aplicação de métodos que possam provocar distorções na conversão
destas informações, a aplicação lógica ou leitura de dados em contextos diferentes de
seu contexto original, a comparação das informações com outras em bases matemáticas
são ações que podem gerar análises equivocadas (HUFF, 1993).
1
Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais, Escola Nacional de Ciências Estatísticas
(IBGE/ENCE), danielecdantas@gmail.com.

444

V V
Reconhecendo que o fenômeno pode acontecer em diferentes áreas, o presente
trabalho apresentará reflexões a partir do uso das mesmas informações na construção de
indicadores culturais com variações na escala utilizada (com maior ou menor grau de
agregação da informação). Desta maneira, serão apresentadas diferentes formas de
analisar a distribuição da oferta de infraestrutura e oferta cultural em equipamentos sob
a gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, a partir de dados de
registro administrativo de janeiro a dezembro de 2013.

1. CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA
Em seus 450 anos, o Rio de Janeiro foi capital do país, desde o Brasil Império
até a mudança da capital da República para Brasília nos anos 1960. Município da região
Sudeste, o Rio de Janeiro é capital do estado de mesmo nome e tem uma população de,
aproximadamente, 6.320.446 habitantes, composta por 53% de mulheres e 47% de
homens2, vivendo em uma área de 1.224,56 km² 3. Sua divisão administrativa apresenta
05 (cinco) áreas de planejamento com 16 (dezesseis) regiões de planejamento e 33
(trinta e três) regiões administrativas, onde se inscrevem seus 160 (cento e sessenta)
bairros.

2
Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em <www.ibge.gov.br>.
3
Fonte Instituto Pereira Passos (IPP-RJ), disponível em <http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br>.

445

V V
Fonte: Instituto Pereira Passos, 2011

No processo de construção do país, o Rio de Janeiro guarda historicamente


grande parte da infraestrutura para a oferta de serviços culturais. Com a presença de um
grande número de empresas de portes diferentes e tipos de atividade econômica
variadas, com a presença de grandes grupos de comunicação e mídia, de circulação de
turistas nacionais e internacionais e imagem do Brasil no mundo, o Rio de Janeiro é um
lugar com oferta de atividade cultural é intensa. E o investimento em ações culturais na
cidade, tanto direto quanto indireto (através de incentivo fiscal), é expressivo.
No que toca a distribuição dos espaços para a oferta de serviços culturais na
cidade, identifica-se a concentração de equipamentos culturais na região central da
cidade com expansão para a zona sul e, a partir dos anos 1980, para a Barra da Tijuca.
Observando-se as dinâmicas sociais e culturais na cidade, a partir dos anos 1990, nota-
se o avanço dos debates sobre a desigualdade da distribuição da oferta de infraestrutura
de serviços culturais e demandas por ações em busca do equilíbrio entre os bairros e
regiões da cidade.
Contudo, é necessário esclarecer que a oferta de infraestrutura para usos
culturais compreende equipamentos sob a gestão pública federal, estadual e municipal
distribuídos em diferentes secretarias e fundações, além dos equipamentos culturais
privados. Os equipamentos sob a gestão municipal estão distribuídos em secretarias
municipais ou órgãos da gestão pública na cultura, ciência e tecnologia, educação e
turismo, por exemplo.
A diferença no tipo de gestão (municipal, federal ou estadual; em nível de
secretaria ou fundação; pública, privada ou comunitária) implica no perfil de gerência
da cultura para a sociedade; assim como pode auxiliar a compreender a dinâmica de
oferta e usos culturais nas diferentes regiões da cidade. Outro aspecto que se pode
observar refere-se ao perfil da distribuição dos equipamentos culturais no território e
verificação quanto a distribuição de equipamentos culturais com alguns tipos de gestão,
que pode não ser tão desequilibrada, como é o caso dos equipamentos públicos culturais
sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura da cidade em relação ao empiricamente
observado ou a um conjunto mais amplo de equipamentos culturais na cidade.
Neste sentido, os dados apresentados a seguir apoiam a análise sobre a
distribuição dos equipamentos culturais sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura
na cidade do Rio de Janeiro, observados em escalas diferentes: quando os indicadores

446

V V
representam as informações sobre os equipamentos culturais e a oferta de atividades
culturais agregadas em Áreas de Planejamento ou em Regiões Administrativas.

2. DADOS E MÉTODOS
Os dados utilizados foram cedidos pela Secretaria Municipal de Cultura e
referem-se aos registros administrativos sobre o perfil dos equipamentos culturais (tipo
e capacidade) e de atividades realizadas entre janeiro e dezembro de 2013. Foi utilizado
um método estatístico simples para o processamento dos dados com o uso do Excel do
pacote Office.
Assim, a apresentação dos dados e o método estatístico utilizado encaminharão
aos resultados que permitirão as análises dos fenômenos sociais observados com a
comparação entre duas unidades de análise (Áreas de Planejamento e Regiões
Administrativas).

2.1. DADOS
Os dados utilizados compreendem informações sobre a capacidade e do
número de atividades realizadas nos 52 (cinquenta e dois) equipamentos culturais sob a
gestão da Secretaria Municipal de Cultura entre teatros, bibliotecas, museus, lonas e
arenas culturais e espaços culturais multiuso.
Foram realizadas 17529 atividades distribuídos entre as dez linhas de ação
definidas na política cultura da SMC-RJ, a saber: teatrais, de circo, música, dança, artes
visuais, incentivo ao hábito da leitura, publicação de estudos, pesquisas, ensaios e obras
literárias diversas sobre a cultura e a economia criativa cariocas, realização de
espetáculos e intervenções em espaços públicos, realização de mostras, festivais,
mercados, feiras e premiações culturais e atividades gerais (que compreendem desde
ações sociais, encontros, eventos comemorativos, multiplataforma, entre outros).
Em relação à capacidade dos diferentes equipamentos culturais, encontram-se
equipamentos com capacidade variando entre 24 (vinte e quatro) e 1000 (mil),
totalizando uma capacidade de 15.962 e média de, aproximadamente, 313.
Considerando a distribuição por tipo de equipamento, a tabela 1 apresenta a
informação em relação à quantidade de equipamentos e o total da capacidade.

447

V V
Tabela 1: Tipos de equipamento cultural: quantidade e capacidade, município
do Rio de Janeiro, 2013
Tipo de equipamento Quantidade Capacidade
Arenas Culturais 4 1328
Bibliotecas 12 1009
Centros Culturais 10 5222
Lonas Culturais 10 3180
Museus 4 2140
Teatros 12 3083
Total 52 15962
Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, janeiro a dezembro, 2013.
Verifica-se que as Arenas Culturais e os Museus são os tipos de equipamento
cultural em menor número, enquanto os teatros e as bibliotecas são os tipos de
equipamento cultural em maior número.
Os teatros e os centros culturais são os tipos de equipamento cultural que
totalizam a maior capacidade, enquanto as bibliotecas e arenas culturais são os tipos de
equipamento cultural que somam a menor capacidade física.

2.2. MÉTODO
Através da proposta metodológica traduz-se a quantificação de aspectos da
dinâmica cultural por meio de indicadores que permitam a visualização analítica da
distribuição da infraestrutura para a fruição cultural no ano de 2013 nos equipamentos
culturais sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro
Dado o perfil das informações, com considerável número objetos sem
informação (zeros), assim como de valores extremos (variando entre 24 e 1000), o uso
de modelagem estatística ficaria comprometido. Assim, a proposta metodológica
consiste no uso de técnica estatística descritiva com distribuição de proporções de
acordo com a quantidade de objetos em cada uma das classes delimitadas (atividade e
capacidade referentes a teatros, museus, lonas culturais, arenas culturais, centros
culturais e bibliotecas).
A construção do indicador considera primeiramente os valores relativos de
cada variável em relação total delas. Em seguida, a padronização dos pesos considera
em uma distribuição igual para todos. A partir deste segundo passo, a soma de todas as
variáveis encontradas deve somar 1 (um) e os resultados encontrados para cada uma
estará compreendido entre 0 (zero) e 1 (um).

448

V V
Inicialmente, o método proposto foi aplicado às informações agregadas em 05
(cinco) Áreas de Planejamento (APs) da cidade. Contudo, optou-se aplicar o método
também aos dados mais desagregados em 33 (trinta e três) Regiões Administrativas
(RAs), o que possibilita na verificação de variações nos resultados, assim como nuances
não percebidas no conjunto de indicadores mais agregados (APs).

3. ANÁLISES
Os índices construídos nos oferecem, dentro da tabela, uma informação
referente à representação daquela variável específica no conjunto, como é o caso da
representação das Arenas nas Áreas de Planejamento (APs) 1 e 2, que representam as
regiões do Centro e da Zona Sul do Rio de Janeiro (Tabela 2). Tendo em vista que
nestas APs este tipo de equipamento cultural não existe, seu valor é igual a zero tanto
para Capacidade quanto para Atividade.
Tabela 2: Índice de Oferta Cultural por Área de Planejamento, município do Rio de
Janeiro, 2013
Áreas de Planejamento I(AP1) I(AP2) I(AP3) I(AP4) I(AP5)

Atividade 0,0000 0,0000 0,0663 0,0000 0,0170


Arena
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0626 0,0000 0,0207
Atividade 0,0143 0,0228 0,0294 0,0085 0,0084
Biblioteca
Capacidade 0,0079 0,0240 0,0358 0,0093 0,0063
Centro Atividade 0,0348 0,0245 0,0171 0,0069 0,0000
Cultural Capacidade 0,0355 0,0171 0,0270 0,0038 0,0000
Índice
Atividade 0,0000 0,0000 0,0160 0,0023 0,0651
Lona
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0335 0,0084 0,0414
Atividade 0,0693 0,0140 0,0000 0,0000 0,0000
Museu
Capacidade 0,0579 0,0255 0,0000 0,0000 0,0000
Atividade 0,0135 0,0697 0,0002 0,0000 0,0000
Teatro
Capacidade 0,0212 0,0540 0,0081 0,0000 0,0000
Índice por AP 0,2544 0,2516 0,2962 0,0391 0,1588
Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, janeiro a dezembro, 2013.

Observando o indicador que representa a capacidade dos equipamentos culturais


associada às atividades realizadas nos equipamentos presentes em cada AP, nota-se que
as APs 1 e 2 têm valores próximos e que a AP3 (que representa bairros da Zona Norte
da cidade) tem o valor mais elevado. A AP4 (onde ficam os bairros de Jacarepaguá e
Barra da Tijuca) tem o menor valor e a AP5 (onde estão os outros bairros da Zona
Oeste) tem um valor mediano.

449

V V
A seguir, apresentaremos os indicadores gerados utilizando-se o mesmo método,
mas ampliando a unidade de análise de 05 (cinco) - Áreas de Planejamento - para 33
(trinta e três) Regiões Administrativas. Observando as Regiões Administrativas (RAs)
da AP1 (Tabela 3), podemos observar que dentro dela a distribuição também encontra
variações, como é o caso do extremo representado na AP pelas RA II-Centro (ver
Anexo 1 - Áreas de Planejamento, Regiões Administrativas e Bairros da cidade do Rio
de Janeiro). Identifica-se ainda a ausência de infraestrutura para oferta cultural nas RAs
VII-São Cristóvão e XXI-Paquetá.

Tabela 3: Índice de Oferta Cultural por Região Administrativa da Área de Planejamento


1, município do Rio de Janeiro, 2013
I (RA I (RA I (RA
Regiões Administrativas I (RA I) I (RA III) I (RA XXI)
II) VII) XXIII)
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Arena
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0039 0,0000 0,0048 0,0000 0,0000 0,0056
Biblioteca
Atividade 0,0020 0,0000 0,0025 0,0000 0,0000 0,0035
Centro Capacidade 0,0000 0,0043 0,0085 0,0000 0,0000 0,0220
Índic Cultural Atividade 0,0014 0,0063 0,0157 0,0000 0,0000 0,0121
e Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Lona
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0674 0,0019 0,0000 0,0000 0,0000
Museu
Atividade 0,0000 0,0561 0,0018 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0135 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Teatro
Atividade 0,0000 0,0212 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Índice por RA 0,0073 0,1688 0,0351 0,0000 0,0000 0,0431
Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, janeiro a dezembro, 2013.

Na Área de Planejamento 2 (Tabela 4) as constatações não diferem de forma


significativa. Identificam-se RAs com ausência de infraestrutura para oferta cultural e
outras com presença mais expressiva, como é o caso das RAs IV-Botafogo e VIII-
Tijuca. Também se observam RAs onde não se registra a presença de equipamento
cultural e consequentemente nenhuma oferta de atividades culturais no conjunto de
dados analisados, como é o caso das RAs IX-Vila Isabel e XXVII-Rocinha.

450

V V
Tabela 4: Índice de Oferta Cultural por Região Administrativa da Área de Planejamento
2, município do Rio de Janeiro, 2013
Regiões Administrativas I (RA IV) I (RA V) I (RA VI) I (RA VIII) I (RA IX) I (RA XXVII)
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Arena
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0101 0,0000 0,0000 0,0127 0,0000 0,0000
Biblioteca
Atividade 0,0169 0,0000 0,0000 0,0071 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0057 0,0000 0,0000 0,0188 0,0000 0,0000
Centro Cultural
Atividade 0,0059 0,0000 0,0000 0,0112 0,0000 0,0000
Índice
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Lona
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0140 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Museu
Atividade 0,0183 0,0000 0,0071 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0139 0,0071 0,0374 0,0112 0,0000 0,0000
Teatro
Atividade 0,0116 0,0127 0,0180 0,0117 0,0000 0,0000
Índice por RA 0,0965 0,0198 0,0625 0,0728 0,0000 0,0000
Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, janeiro a dezembro, 2013.

Na Área de Planejamento 3 (Tabela 5) também podemos observar RAs onde não


se registra a presença de equipamento cultural e consequentemente nenhuma oferta de
atividades culturais no conjunto de dados analisados, como é o caso das RAs XII-
Inhaúma, XXVIII-Jacarezinho e XXXI-Vigário Geral. Verifica-se que a variação do
índice entre as RAs não é menos expressiva em relação a variação identificada em
outras APs, como a variação verificada entre as RAs da AP1 (Tabela 3).

451

V V
Tabela 5: Índice de Oferta Cultural por Região Administrativa da Área de Planejamento 3, município do Rio de Janeiro, 2013
Regiões Administrativas I (RA X) I (RA XI) I (RA XII) I (RA XIII) I (RA XIV) I (RA XV) I (RA XX) I (RA XXII) I (RA XXV) I (RA XXVIII) I (RA XXIX) I (RA XXX) I (RA XXXI)

Capacidade 0,0000 0,0283 0,0000 0,0000 0,0000 0,0302 0,0000 0,0000 0,0078 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Arena
Atividade 0,0000 0,0212 0,0000 0,0000 0,0000 0,0207 0,0000 0,0000 0,0207 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0117 0,0000 0,0134 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0042 0,0000
Biblioteca
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0143 0,0000 0,0192 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0024 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0171 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Centro Cultural
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0270 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Índice
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0033 0,0000 0,0081 0,0414 0,0000 0,0000 0,0000 0,0017 0,0000
Lona
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0084 0,0000 0,0084 0,0168 0,0000 0,0000 0,0000 0,0084 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Museu
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0002 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Teatro
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0081 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Índice por RA 0,0000 0,0495 0,0000 0,0524 0,0377 0,0509 0,0491 0,0581 0,0285 0,0000 0,0000 0,0167 0,0000
Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, janeiro a dezembro, 2013.

Área de Planejamento 4 (Tabela 2) é a Área com menor presença de equipamentos culturais, quando observada a distribuição por APs.
Na análise da presença de equipamentos culturais na AP4 (Tabela 6) verifica-se que apenas na RA XVI-Jacarepaguá os equipamentos culturais
estão presentes. Nas RAs XXIV-Barra da Tijuca e XXXIV-Cidade de Deus não é identificada a presença de oferta de infraestrutura cultural sob
a gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Biblioteca, Centro Cultural e Lona Cultural são os tipos de equipamentos
culturais presentes na AP4 e estes estão concentrados na RA XVI-Jacarepaguá.

452

V V
Tabela 6: Índice de Oferta Cultural por Região Administrativa da Área de Planejamento 4,
município do Rio de Janeiro, 2013
Regiões Administrativas I (RA XVI) I (RA XXIV) I (RA XXXIV)
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000
Arena
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0085 0,0000 0,0000
Biblioteca
Atividade 0,0093 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0069 0,0000 0,0000
Centro Cultural
Atividade 0,0038 0,0000 0,0000
Índice
Capacidade 0,0023 0,0000 0,0000
Lona
Atividade 0,0084 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000
Museu
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000
Teatro
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000
Índice por RA 0,0391 0,0000 0,0000
Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, janeiro a dezembro, 2013.

Na Área de Planejamento 5 (Tabela 7) verifica-se a presença de infraestrutura para


oferta cultural em todas as Regiões Administrativas. Em todas as RAs identifica-se algum tipo
de equipamento cultural; mas nem todos os tipos de equipamento cultural estão presentes em
todas as RAs da AP5.

Nesta AP não são identificados Centro Culturais, Museus e Teatros. Arenas


Culturais estão presentes apenas na RA XXVI-Guaratiba e Bibliotecas apenas nas RAs
XVIII-Campo Grande e XIX-Santa Cruz. Lonas Culturais são os equipamentos mais
presentes na AP5. Estão presentes nas RAs XVII-Bangu, XVIII-Campo Grande, XIX-
Santa Cruz e XXXIII-Realengo.
Tabela 7: Índice de Oferta Cultural por Região Administrativa da Área de Planejamento 5,
município do Rio de Janeiro, 2013
Regiões Administrativas I (RA XVII) I (RA XVIII) I (RA XIX) I (RA XXVI) I (RA XXXIII)
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0170 0,0000
Arena
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0207 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0084 0,0000 0,0000 0,0000
Biblioteca
Atividade 0,0000 0,0038 0,0025 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Centro Cultural
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Índice
Capacidade 0,0007 0,0048 0,0078 0,0000 0,0132
Lona
Atividade 0,0079 0,0084 0,0084 0,0000 0,0084
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Museu
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Capacidade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Teatro
Atividade 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000 0,0000
Índice por RA 0,0085 0,0254 0,0187 0,0377 0,0216
Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, janeiro a dezembro, 2013.

453

V V
Analisando a variação do índice das RAs na AP5 pode-se verificar que a variação
dentro da Região não é muito expressiva, particularmente, se obervada a variação do índice
das RAs em outras APs. Destaca-se que todas as RAs da AP5 têm índice diferente de zero.
As observações registradas acima destacam variações percebidas em diferentes
contextos de análise das informações em seu conjunto ou em relação a subconjuntos do grupo
original. Particularmente, observam-se diferenças nos resultados quando se utilizam
agrupamentos de informações mais ou menos agregados, como é o caso das informações
agrupadas em escala de Área de Planejamento ou Região Administrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos valores expressos nos índices, a partir do método utilizado, verifica-se
que a definição da unidade de análise para a aplicação do indicador quantitativo construído
apresentará resultados que permitem identificar ou não alguns aspectos. Quanto mais
desagregada a unidade de análise, maior será o grau de detalhamento que o indicador poderá
apresentar para o gestor. E observando os resultados extraídos dos indicadores em função dos
níveis de agregação que ele represente, podem-se encontrar informações que favoreçam
ponderações, assim como a ampliação da gama de análises e de conclusões possíveis.
As informações representadas no corpo das tabelas permitem análises em relação aos
tipos de equipamento cultural e das atividades realizadas neles nas diferentes unidades de
análise representadas no presente trabalho. Da mesma forma que são ainda mais amplas as
possibilidades de análise para a aplicação do método com informações desagregadas, sendo a
unidade de análise a divisão administrativa Bairro.
Assim, é destacada a atenção que se deve dar aos aspectos relativos à espacialização
das informações no território na busca por auxílio na observação de aspectos da gestão, assim
como na relação de características entre diferentes territórios por aproximação ou distinção.
De um modo geral, são apresentados os aspectos destacados nas unidades territoriais
caracterizadas na divisão administrativa do município utilizando a análise dos resultados
quantitativos extraídos do método aplicado.
Isto chama a atenção para a cautela que se deve ter ao tomar como verdadeira a
informação representada por um indicador que sintetiza um conceito ou uma questão a ser
analisada que foi construído a partir de um processo com fundamento técnico e teórico.

454

V V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUFF, Darrell. How to lie with statistics. Ed. W. W. Norton & Company, 1993. 144p.

ANEXO 1 - ÁREAS DE PLANEJAMENTO, REGIÕES ADMINISTRATIVAS E


BAIRROS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Áreas de Planejamento (5)


Regiões Administrativas (33) Bairros (160)
AP1 RA-I Portuária Caju
Gamboa
Santo Cristo
Saúde
AP1 RA-II Centro Centro
AP1 RA-III Rio Comprido Catumbi
Cidade Nova
Estácio
Rio Comprido
AP2 RA-IV Botafogo Botafogo
Catete
Cosme Velho
Flamengo
Glória
Humaitá
Laranjeiras
Urca
AP2 RA-V Copacabana Copacabana
Leme
AP2 RA-VI Lagoa Gávea
Ipanema
Jardim Botânico
Lagoa
Leblon
São Conrado
Vidigal
AP1 RA-VII São Cristovão Benfica
Mangueira
São Cristóvão
Vasco da Gama
AP2 RA-VIII Tijuca Alto da Boa Vista
Praça da Bandeira
Tijuca
AP2 RA-IX Vila Isabel Andaraí
Grajaú

455

V V
Maracanã
Vila Isabel
AP3 RA-X Ramos Bonsucesso
Manguinhos
Olaria
Ramos
AP3 RA-XI Penha Brás de Pina
Penha
Penha Circular
AP3 RA-XII Inhaúma Del Castilho
Engenho da Rainha
Higienópolis
Inhaúma
Maria da Graça
Tomás Coelho
AP3 RA-XIII Méier Abolição
Água Santa
Cachambi
Encantado
Engenho de Dentro
Engenho Novo
Jacaré
Lins de Vasconcelos
Méier
Piedade
Pilares
Riachuelo
Rocha
Sampaio
São Francisco Xavier
Todos os Santos
AP3 RA-XIV Irajá Colégio
Irajá
Vicente de Carvalho
Vila da Penha
Vila Kosmos
Vista Alegre
AP3 RA-XV Madureira Bento Ribeiro
Campinho
Cascadura
Cavalcanti
Engenheiro Leal
Honório Gurgel
Madureira
Marechal Hermes

456

V V
Oswaldo Cruz
Quintino Bocaiúva
Rocha Miranda
Turiaçu
Vaz Lobo
AP4 RA-XVI Jacarepaguá Anil
Curicica
Freguesia (Jacarepaguá)
Gardênia Azul
Jacarepaguá
Pechincha
Praça Seca
Tanque
Taquara
Vila Valqueire
AP5 RA-XVII Bangu Bangu
Gericinó
Padre Miguel
Senador Camará
AP5 RA-XVIII Campo Grande Campo Grande
Cosmos
Inhoaíba
Santíssimo
Senador Vasconcelos
AP5 RA-XIX Santa Cruz Paciência
Santa Cruz
Sepetiba
AP3 RA-XX Ilha do Governador Bancários
Cacuia
Cidade Universitária
Cocotá
Freguesia (Ilha do
Governador)
Galeão
Jardim Carioca
Jardim Guanabara
Moneró
Pitangueiras
Portuguesa
Praia da Bandeira
Ribeira
Tauá
Zumbi
AP1 RA-XXI Paquetá Paquetá
AP3 RA-XXII Anchieta Anchieta
Guadalupe

457

V V
Parque Anchieta
Ricardo de Albuquerque
AP1 RA-XXIII Santa Teresa Santa Teresa
AP4 RA-XXIV Barra da Tijuca Barra da Tijuca
Camorim
Grumari
Itanhangá
Joá
Recreio dos Bandeirantes
Vargem Grande
Vargem Pequena
RA-XXIX Complexo do Alemão Complexo do Alemão
AP3 RA-XXV Pavuna Acari
Barros Filho
Coelho Neto
Costa Barros
Parque Columbia
Pavuna
AP5 RA-XXVI Guaratiba Barra de Guaratiba
Guaratiba
Pedra de Guaratiba
AP2 RA-XXVII Rocinha Rocinha
AP3 RA-XXVIII Jacarezinho Jacarezinho
AP3 RA-XXX Maré Maré
AP3 RA-XXXI Vigário Geral Cordovil
Jardim América
Parada de Lucas
Vigário Geral
AP5 RA-XXXIII Realengo Campo dos Afonsos
Deodoro
Jardim Sulacap
Magalhães Bastos
Realengo
Vila Militar
AP4 RA-XXXIV Cidade de Deus Cidade de Deus
Fonte: Instituto Pereira Passos - RJ

458

V V
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MUSEUS: GESTÃO E SUSTENTABILIDADE
Danielly Dias Sandy1
Heloisa Helena Costa2

RESUMO: O presente artigo apresenta uma pesquisa de mestrado voltada às políticas


públicas para museus, e fundamentada no art. 4º da Lei 11.904, Estatuto de Museus, o qual
prevê a sustentabilidade dos museus brasileiros a partir de iniciativas do poder público. O
desenvolvimento do mesmo faz uso de fontes teóricas e transdisciplinares, envolvendo
diversas áreas de estudo, tais como, museologia, economia, administração e outras. Dentro
dessas áreas são abordados temas bastante atuais como políticas públicas para museus,
sustentabilidade, economia cultural e gestão museológica.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas; Museus; Sustentabilidade.

INTRODUÇÃO
Por muito tempo se pensou em museus como locais apenas de preservação de acervos
e coleções. Mas, em menos de um século, muitas coisas têm mudado e, dentre elas, o olhar
lançado sobre o objetivo e missão dessas instituições. Isso amplia não somente os estudos
acerca da museologia, como também, os desafios dos profissionais e demais envolvidos na
área. Com a colaboração e o engajamento desses profissionais na intenção de fomentar a
cultura, há tempo os museus passaram a ser compreendidos como espaço de desenvolvimento
social, conforme instituído na Lei Federal do Estatuto de Museus:
Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins
lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins
de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e
coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra
natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu
desenvolvimento. (Art. 1º da Lei 11.904).3

Atualmente as instituições museológicas contam com o apoio de leis federais que


colaboram com seu desenvolvimento e manutenção. A exemplo disso, citamos também o art.
4º da referida Lei que prevê a sustentabilidade dos museus brasileiros, mas não diz, em
momento algum, que apenas alguns museus serão beneficiados. De acordo com isso, o

1
Aluna do Mestrado em Museologia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Orientanda da Profª. Drª.
Heloisa Helena Costa. Contato: daniellyds@yahoo.com.br
2
Museóloga e Profª. Drª. da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Contato: helocosta@uol.com.br
3
De 14 de janeiro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 15 out. 2014.

459

V V
esperado é que todas as instituições brasileiras possam se manter economicamente para
realizar o seu imprescindível trabalho de preservação da memória e construção da identidade
junto à comunidade. Porém, de acordo com diversos relatos documentados acerca da
realidade museológica brasileira, observamos que em algum momento está havendo lacunas
na declarada premissa. A intenção não é julgar a origem da falta mas analisar, a partir disso,
como tornar os nossos museus mais sustentáveis. Para Manuelina Cândido:
A despreocupação que os museus tiveram, durante algum tempo, de buscar
a qualidade, resultou de um comodismo que alimentou-se da atribuição ao Estado da
obrigação de mantê-los, sem uma correspondente reflexão sobre para quem e para
quê servem ou se estão cumprindo seu papel social. Na atualidade não faz mais
sentido criar ou manter museus sem planejar […]. (DUARTE C NDIDO, 2009, p.
131).

Para fins de seu desenvolvimento, os museus podem contar com o apoio do poder
público, porém, é necessário que os gestores de instituições dessa natureza se apoderem
desses direitos e se conscientizem de seus deveres. Trabalhar na área cultural implica em
enfrentar os desafios já consolidados na mente da maioria das pessoas. É como seguir uma
jornada a qual não será possível vencer sem conhecimento, planejamento e muita criatividade.
Segundo o professor de economia Dowbor (2011) o fator-chave de produção nos séculos
anteriores, foi a máquina; hoje, é o conhecimento. Para tanto, o presente artigo aborda um
tema bastante atual na área da Museologia, que são as políticas públicas para museus, cujo
foco é a economia cultural com vistas à sustentabilidade.

MUSEUS E ECONOMIA
Um tema bastante discutido na área da museologia desde os anos finais do séc. XX é
a sustentabilidade. Os gestores de museus começam a reconhecer a natureza transdisciplinar
das instituições em que atuam, voltando-se para questões da economia da cultura. Por ser
considerado um dos conceitos chave para o setor museal, a atenção dada a esse assunto fez,
inclusive, com que fosse tema da Semana Nacional de Museus, em 2013, com o título
“(memória + criatividade) = mudança social”. Segundo dados do Instituto Brasileiro de
Museus (Ibram), cerca de 1.114 instituições museológicas brasileiras participaram da
Semana Nacional de Museus nesse ano.4 E, de acordo com o Cadastro Nacional de Museus, o
Brasil possui mais de 3,4 mil instituições museológicas e conta com um público anual de

4
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2013/05/Guia-11SEmana-de-Museus_10-de-
maio.pdf>. Acesso em: 15 out. 2014.

460

V V
cerca de 33 milhões de visitantes ao ano, distribuídos entre esses museus.5 Essas, dentre
outras informações, demonstram a necessidade de uma consciência maior no campo da
economia da cultura com vistas à sustentabilidade dos museus. Diante do paradigma
econômico vigente – capitalista e neoliberal -, presente no mundo contemporâneo, resta aos
gestores de museus compreenderem os mecanismos acessíveis fornecidos pelo sistema.
Estima-se que o empoderamento de tal conhecimento leva a gestão museológica a obter o
vigor necessário para o bom desenvolvimento da instituição. Para tanto, as políticas culturais
devem ser bem estudadas e compreendidas, visando conquistar objetivos de longo alcance.
Como ferramentas de suporte legal e também econômico, o poder público dispõe de
determinadas leis e políticas públicas que amparam os museus em sua jornada. “Qualquer
política cultural deve resgatar o sentido profundo e humano do desenvolvimento.”6 Essa
afirmação realizada na Conferência Mundial sobre Políticas Públicas, no ano de 1985, nos
mostra uma preocupação com a questão humana que permeia o desenvolvimento, já na época.
A partir de 2009, no Brasil, segundo consta no art. 4º da Lei 11.904, Estatuto de Museus, o
“[...] poder público estabelecerá mecanismos de fomento e incentivo, visando à
sustentabilidade dos museus brasileiros.”7 É possível entender que essa sustentabilidade não
significa somente financeira, mas um aporte ao desenvolvimento cultural da sociedade por
meio dos museus. Porém, embora esteja claramente formalizada a ação do governo em
proporcionar aos museus nacionais os mecanismos sustentáveis necessários, muitos
encontram sérias dificuldades em se prolongar como instituições culturais sem fins lucrativos.
Uma hipótese possível parece indicar que o que falta seja o reconhecimento e a compreensão
do valor dessas instituições, em alguns casos por parte da própria gestão, para partir em busca
de soluções e adequações, visando resultados mais favoráveis. Entretanto, Nascimento Junior
reconhece que:
[...] os bens culturais tornam-se ativos econômicos colocados sobre a mesa
de negociações e, passamos então, a negociar aquilo que não tem preço, mas sim um
valor atribuído: a identidade, o belo e o significado da vida. (2010, p.08).

Essa afirmação revela a necessidade de reconhecer a natureza transdisciplinar dos bens


culturais. Há poucos anos, surgiu ainda o Plano Nacional de Cultura (PNC), no qual a
concepção de cultura ultrapassa a ênfase nas artes consolidadas e se amplia a outras áreas do

5
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/sistemas/cadastro-nacional-de-museus/>. Acesso em: 15 out. 2014.
6
Declaração do México, 1985, p. 3.
7
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 15
out. 2014.

461

V V
conhecimento, tais como antropologia e sociologia.8 Assim, encontramos uma visão mais
abrangente relativa a cultura, ampliando também os conceitos sustentáveis. O PNC tem por
finalidade o planejamento e implementação de políticas públicas de longo prazo (até 2020)
voltadas à proteção e promoção da diversidade cultural brasileira. Diversidade que se revela
em serviços, práticas e bens artísticos e culturais determinantes para o exercício da cidadania,
a expressão da identidade e o desenvolvimento socioeconômico brasileiro.9
Contudo, podemos perceber o quanto a cultura tem sido repensada no país nos últimos
anos. Paralelo a isso, como suporte, as políticas públicas vêm se consolidando para a efetiva
concretização dos objetivos formulados para a área cultural e, dentro dela, encontramos um
bom fundamento para o setor museal. Já não cabe mais aos museus assumir a identidade de
instituição estática que somente atua como mantenedora de um acervo. É necessário atualizar,
em todos os sentidos, o seu plano de gestão e agir de acordo com as diversificadas ofertas e o
veloz transcurso do tempo.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MUSEUS BRASILEIROS


No Brasil de hoje, estima-se que a economia cultural seja um dos setores em maior
ascensão; em consequência, a partir disso, novas políticas públicas começam a surgir no
cenário nacional, ampliando as possibilidades de laboração na área. O sociólogo argentino
Nestor Canclini salienta a defesa do desenvolvimento de “[...] políticas socioculturais que
promovam o avanço tecnológico e a expressão multicultural de nossas sociedades, centradas
no crescimento da participação democrática dos cidadãos.” Para Fonseca Reis, um dos papéis
dos museus é atuar “[...] como intermediadores simbólicos e econômicos do fluxo de
produção, distribuição, fruição e consumo culturais.”10 Ademais, o que se percebe é o
fomento da indústria cultural na contemporaneidade. Esse termo foi inicialmente utilizado na
década de 1940 pelos teóricos Adorno e Horkheimer, que acreditavam:
[...] que essa indústria desempenha as mesmas funções de um Estado
fascista e que ela está, assim, na base do totalitarismo moderno ao promover a
alienação do homem, entendida como um processo no qual o indivíduo é levado a
não meditar sobre si mesmo e sobre a totalidade do meio social circundante,
transformando-se com isso em mero joguete e, afinal, em simples produto
alimentador do sistema que o envolve. (apud COELHO, 1995, p.28).

Contudo, encontramos um direcionamento oposto a esse ao refletirmos


conscientemente sobre a abrangência do poder de democratização da cultura por parte dos

8
Instituído pela Lei 12.343, de 2 de dezembro de 2010.
9
Metas do Plano Nacional de Cultura, 2011.
10
Org. NASCIMENTO JUNIOR, 2010, p. 117.

462

V V
museus. Essas instituições, como meios ativos e efetivos de difusão, tornam-se facilitadoras
do processo cultural. Imaginamos então, o cumprimento de sua missão com responsabilidade
como motivo primordial de sua existência, e assim observamos:
Do outro lado, os que defendem a ideia segundo a qual a indústria cultural é
o primeiro processo democratizador da cultura, ao colocá-la ao alcance da massa –
sendo, portanto, instrumento privilegiado no combate dessa mesma alienação. (apud
COELHO, 1995, p.28).

Conhecer e refletir sobre a realidade museológica brasileira é fator indispensável no


desenvolvimento da cultura do país. Referente a isso, Tereza Scheiner afirma:
[...] para entender a questão dos museus no Brasil é preciso desenvolver
uma reflexão sobre o próprio país, o tipo de sociedade aqui existente, as relações da
sociedade brasileira com a cultura e os tipos de museus criados e mantidos por tal
sociedade. É preciso, ainda, entender e analisar o que vem a ser, no país, a
museologia: quem cria museus no Brasil? Quem os dirige, e como? Quem os
mantém? Que relações tem o Brasil com a Museologia? (1994, p. 22-23).

Como estratégia sustentável, o Ministério da Cultura apoia projetos culturais por meio
da Lei Federal de Incentivo à Cultura, da Lei do Audiovisual11 e também por editais para
projetos específicos, lançados periodicamente. Por meio da Lei Rouanet foi instituído o
Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), que canaliza recursos para o
desenvolvimento do setor. Suas finalidades vão desde facilitar os meios de acesso à cultura
até priorizar o produto originário nacional. A partir disso, é possível relembrar o que expressa
o 4º artigo do Estatuto de Museus e pensar que tais instituições podem se manter a partir
desses mecanismos. Entretanto, no art. 44 da mesma Lei econtramos que é “[...] dever dos
museus elaborar e implementar o Plano Museológico.” Em consequência disso o artigo 45
discorre claramente sobre o que é o plano museológico como ferramenta básica de
planejamento estratégico, fundamental para o diagnóstico e a sistematização do trabalho
interno e, para a atuação dos museus na sociedade.12 Sobre o plano museológico, Barry Lord
(1998) salienta sua importância escrevendo que é a declaração da missão do museu. É ali que
se define, de maneira breve, objetiva e inspiradora, a razão de ser da instituição. A esse
respeito, Neves declara que:

11
Lei Federal nº 8.685, de 20 de julho de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l8685.htm>. Acesso em: 28 set. 2014.
12
De acordo com o art. 45 da Lei 11.904, o “[...] Plano Museológico é compreendido como ferramenta básica de
planejamento estratégico, de sentido global e integrador, indispensável para a identificação da vocação da
instituição museológica para a definição, o ordenamento e a priorização dos objetivos e das ações de cada uma
de suas áreas de funcionamento, bem como fundamenta a criação ou a fusão de museus, constituindo
instrumento fundamental para a sistematização do trabalho interno e para a atuação dos museus na sociedade.”

463

V V
É o diagnóstico [...] que permitirá a definição da política cultural a ser
implementada no museu, uma vez que a definição dos pressupostos conceituais é
resultado dessas reflexões. A partir daí, os programas serão elaborados, seguidos da
elaboração de projetos, que deverão ser avaliados, interna e externamente, de forma
sistemática, para se saber se os objetivos estão sendo cumpridos.” (NEVES, 2003, p.
56-7).

Em síntese, a multiplicidade de papéis desempenhados pelos museus justifica a ampla


bibliografia que respalda essa pesquisa. De acordo com Reis (2010) as instituições
museológicas constituem a base das análises de impacto econômico: é empregador de
funcionários e demais trabalhadores terceirizados, é comprador de bens e serviços de outras
empresas, é vendedor de produtos e serviços, é polo de atração turística, instituição de ensino
ao oferecer cursos - oficinas e palestras em geral - é capacitador de mão de obra qualificada, é
agente desenvolvedor urbano e também contribuinte fiscal13.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da realidade museológica brasileira e seus desdobramentos é viável reconhecer
a necessidade de um novo olhar sobre as mais diversas questões museológicas, muito
especialmente a gestão que vem sendo exercida nas instituições culturais. Muito da ciência
museológica tem sido pensado e repensado, discutido, analisado e recebido possíveis
soluções. Entretanto, ainda não é suficiente para a efetiva transformação em seus conteúdos.
Acervos, ações educativas, ações culturais, comunicação museológica, expografias e muitos
outros assuntos já foram pauta de discussões acaloradas no afã de alcançar um museu ideal,
ou próximo dele; porém, para que todas essas vertentes possam se ampliar em seus
imprescindíveis conteúdos, é necessário voltar-se para as questões econômicas,
administrativas e financeiras da instituição. Infelizmente, ou não, o trabalho sem recursos
financeiros no sistema econômico vigente no mundo, dispõe de determinada limitação e isso
acontece em todas as áreas e não somente na museologia. E, por mais que profissionais se
doem ao máximo de suas forças e criatividade, a questão financeira possui grande peso na
concretização de projetos museológicos. Dispor desses recursos é justamente valorizar a
atuação e engajamento dos profissionais e, principalmente, reconhecer e valorizar o
importante papel transformador dos museus junto à sociedade. É como poder dar asas à
imaginação e braços ao trabalho; é usufruir dos direitos dados por lei, visando alcançar a
dignidade de ser exatamente aquilo que se é – uma instituição sem fins lucrativos que trabalhe
pelo desenvolvimento social.

13
Org. NASCIMENTO JUNIOR, 2010.

464

V V
Não obstante, para usufruir das benesses do poder público, os profissionais dos
museus precisam se munir de todo tipo de conhecimento que possa lhes favorecer no trabalho
de busca pelos seus direitos, cumprindo seus deveres. Porém, um dos problemas observados
é: será que todos os museus brasileiros dispõem de, ao menos, um profissional que possa
fomentar o setor de captação de recursos para o desenvolvimento econômico da instituição e,
com isso, granjear a tão sonhada sustentabilidade? De fato, a realidade presente não colabora
muito com esse ideal posto que, nem os museus possuem tal perfil de profissional - captador
de recursos – em seus quadros de funcionários nem as grades curriculares dos cursos de
Museologia do país, disponibilizam alguma disciplina que possa, diretamente,
instrumentalizar o aluno/futuro profissional para trabalhar com a legislação existente, tanto
nacional quanto internacional. O resultado dessa lacuna acadêmica irrompe nos setores
administrativos das instituições museológicas, afetando a população, afetando a cultura.
Se o poder público realmente disponibiliza os meios necessários para a
sustentabilidade dos museus brasileiros, como diz o artigo 4º da Lei 11.904, esses precisam
cumprir com determinados deveres, por exemplo, o Plano Museológico – item atualmente
obrigatório nas instituições – para se tornarem aptos a participar dos mecanismos de
sustentabilidade. A partir do momento em que a maior parte dos museus estiver mais em
consonância com as bases legais referidas é que poderá ser questionada, efetivamente, a fatia
econômica voltada para a cultura, e assim, ser reivindicado um valor mais congruente com a
área, possibilitando às instituições museológicas saírem dessa quase letargia operacional para
uma ação criativa geradora de resultados palpáveis de desenvolvimento, integração e inclusão
social.

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V V
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VAZ, Adriana. O Museu Oscar Niemeyer e seu público: articulações entre o culto, o massivo e o
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466

V V
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ARQUEOLOGIA: A INTERFACE ENTRE
UNIVERSIDADE E SOCIEDADE.
Elaine Ignácio1
Teresa Rachel Dias Pires2

RESUMO: O objetivo deste artigo e apresentar a construção formativa em Educação


Patrimonial dos alunos do curso de Bacharelado em Arqueologia e Conservação em Arte
Rupestre da Universidade Federal do Piauí, que tem como base uma amostra das
comunidades dos municípios que contemplam bens tombados, registrados e significativos 3 do
Estado do Piauí com o envolvimento do público-alvo nas ações educativas desenvolvidas
pelo/no projeto. Buscando desenvolver com os partícipes uma reflexão crítica frente à suma
importância da cultura material e imaterial na conjuntura histórica, social e no fortalecimento
das identidades regionais no Estado, fomentando a multiplicação do aprendizado nos
contextos educacionais quer sejam formais ou não-formais, viabilizando a relação
transformadora entre Universidade e Sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Educação patrimonial, arqueologia, formação, Cultura.

[...] Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No
começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro
escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de
escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que
estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido
em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores
antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no
corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as
palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda
bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros
fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro
trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entre sonhado, que eu estava escovando palavras.
Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.
(ODE AOS ARQUEÓLOGOS, In: BESSEGATO, 2005, p.05).

Esta citação introdutória apresenta-se oportunamente para o que aqui será tratado:
“Educação Patrimonial” e o essencial trabalho da Arqueologia nas escovações de vestígios da
cultura material e, consequente, reconhecimento da identidade cultural dos povos; e, mesmo,
no despertar de interesse dos sujeitos cognoscentes frente à ciência de uma maneira geral.

1
Arquiteta, Especialista em Design, Mestra em Arqueologia, Prof.ª do Curso de Bacharelado em Arqueologia e
Conservação em Arte Rupestre da Universidade Federal do Piauí, e-mail: cancillero.ignacio@gmail.com
2
Especialista em Psicologia clínica, Especialista em Docência do Ensino Superior, Mestra em Ciência Política,
Prof.ª do Bacharelado em Ciências Políticas da Universidade Federal do Piauí, e-mail: trachel_83@hotmail.com
3
Entendendo por significativos, os bens culturais que não foram tombados nem registrados, mas que possui
relevância histórico-cultural para a comunidade.

467

V V
Bezerra (2008, pp.57-62) aponta que a inclusão da arqueologia em projetos
educacionais nos ambientes escolares se apresenta favorável por uma gama de fatores que vão
desde a sua natureza interdisciplinar à fascinação que exerce sobre as crianças e sua forma de
investigação, servindo como um veículo para o aprendizado das várias disciplinas do
currículo escolar, assumindo um caráter transversal.
A este fascínio, a autora supramencionada define como sendo o prazer da descoberta e
que o ato de descobrir o passado provoca encantamento das formas mais variadas e
contagiantes possíveis. Atingindo desde a ficção com suas séries televisivas, tais como: CSI e
Arquivos do FBI, ou mesmo nas trilhas investigativas de Sherlock Holmes; não ficando
imune nem mesmo o pai da psicanálise, Sigmund Freud que de acordo com Kuspit (Apud
Bezerra, 2008, p.59) “considerava os sonhos sítios arqueológicos, para se começar a escavar
em busca de desejos e da lembrança dos desejos”. O que infere-se, ainda segundo a autora,
como pungente nesta metáfora, o “poder de ofício do arqueólogo no imaginário dos
indivíduos”.
Deste modo, antes que se sejam dados quaisquer pormenores acerca de Patrimônio e
Educação Patrimonial, há que se entender o por quê deste fascínio e de como este contágio no
ato de descobrir pode, sobremaneira, ser incorporado aos currículos escolares como forma de
introduzir uma “cultura” de conhecimento, preservação e salvaguarda do patrimônio pelos
sujeitos desde tenra idade; podendo ser aproveitada, inclusive, para elaboração de projetos
educativos que contemplem tal proposta. Tal necessidade é enfatizada como essencial em
estudos que perpassam a área, conforme a passagem:
[...] Antes de discutir o conceito de patrimônio é necessário trazer os
conceitos de cultura e a mediação simbólica para compreender como se
constitui o processo cultural e a importância do patrimônio para a educação
(VIANA, 2009, p.23).

Como todos os indivíduos, o desejo da criança é dialético, dado que ao mesmo tempo em que
a ela procura a verdade, procura também o maravilhoso. Para a criança, qualquer sabugo de
milho é capaz de se transformar numa boneca ou qualquer pedaço de bambu pode
transformar-se em um cavalo a lado (HORTA, 2008, p.16).
Assim, a fantasia projeta-se nos desenhos animados, nas estórias em quadrinhos, na
literatura infantil e nos imaginários dos contos populares. A criança encontra-se em processo
de evolução cognitiva, e vai perpassando por diferentes estágios de desenvolvimento: desde
um estágio caracterizado pela inteligência inata do ser vivo, ou seja, a capacidade natural que
todos os seres humanos têm para enfrentar os problemas e conflitos encontrados no ambiente,

468

V V
através das habilidades inatas, como, por exemplo, numa criança que ao ver uma bola estando
próxima dela, lança mão de suas habilidades inatas (visão / preensão) para agarrá-la e jogá-la
para longe (conhecido na teoria piagetiana como sendo o estágio sensório-motor). Aos
momentos subsequentes, em que a criança vai assimilando e acomodando simultaneamente
para manter-se em equilíbrio e continuar a desenvolver-se cognitivamente, através da sua
experiência no mundo dos objetos, realizando operações de classificação, comparação e
diferenciação. De forma a construir simultaneamente, a partir de sua inteligência prática, o
seu pensamento e a sua linguagem, avançando para o simbolismo e a abstração de um
pensamento formal (VIOTTO FILHO & PONCE, 2005, p. 141).
Isto porque, segundo Piaget (1938):
[...] há uma diferença qualitativa entre a lógica infantil (mais simples)
e a lógica do adulto (mais complexa), e isto precisa ser compreendido
adequadamente de forma a se entender que os processos de construção da
cognição humana vão se complexificando com o passar do tempo (PIAGET
apud VIOTTO FILHO & PONCE, 2005, p. 141)

Neste ínterim, segundo Horta (2008, p. 16) haveria uma característica uníssona aos diversos
estágios de desenvolvimento dos indivíduos, ao afirmar que “os monumentos e objetos do
patrimônio cultural possibilitam às crianças, do mesmo modo que aos adultos, uma
experiência concreta, não-verbal (e, por isso, acessível a todos)”.
Na lógica de interação do indivíduo no mundo, um teórico de destaque é Vygotsky
que ressalta:
[...] o sujeito passa a ser cultural quando ele produz suas formas de
relação com o mundo, o cultural está em oposição ao que é dado pela
natureza. Para Vygotsky (apud Pino, 2000), nem tudo que é social é cultural,
mas tudo que é cultural é social. O social é condição para o surgimento da
cultura, porque sem a sociabilidade humana a aparição da cultura seria
impensável. A sociabilidade natural (no mundo animal existem sociedades
que não são culturais) antecede sociabilidade cultural, e sem a primeira não
existiria a segunda, desta forma, podemos perceber, também, que o cultural e
o sujeito se constituem historicamente com seus modos de produção e
formas de significar. A questão é que as formas de socialização do homem
são criações intrinsecamente culturais e, desta maneira, produtos culturais.
(VIANA, 2009, p. 23).
De tal forma que, o processo complexo da cultura seria o que separa o homem de
outras espécies sociais de vida existentes no mundo, pois seria pela cultura que o homem
produziria e significaria suas relações com o mundo, “atuando e transformando o mesmo em
seu favor por relações mediadas” (idem).

469

V V
Compreender a ideia de cultura é uma questão relevante para entender o conceito de
patrimônio, e entender conceitos de signo, mediação e significação trazidos na literatura
vygotskyana, põe-se em evidência que:
[...] cultura não é como bloco uniforme, mas composta por uma
complexidade de produções do homem, que não se estende somente a
produções de materiais, mas, sobretudo, a produção de signos que são
matéria-prima para a construção de significados compartilhados socialmente
nas relações sociais entre sujeitos e do homem com o mundo (VIANA, 2009,
p.25) (grifo nosso).

Nesta perspectiva, Vygotsky contribui para entender questões inerentes a cultura, e a


compreender melhor a reflexão sobre o conceito de patrimônio e a relação da educação
patrimonial quer seja no contexto de educação formal, fortalecendo a intersecção com a
transversalidade de conhecimentos, como também nos contextos não-formais, fortalecendo
vínculos da comunidade com o entorno, com sua região e com o patrimônio cultural nacional,
contribuindo para as identidades coletivas, respeitadas as ênfases pluralistas e não
uniformizadoras.
Se para Vygotsky (apud VIANA, 2009, p. 29) “os contextos culturais produzem
cultura que são oxigenadas pelas possíveis formas de significar”, o conceito de patrimônio e
sua relação com o sentido, passam a ampliar as díspares maneiras de dar significado ao
patrimônio nos grupos sociais. Neste escopo, o patrimônio é dinâmico e renovável, pois as
formas de compreendê-lo não são estáveis, haja vista que mantém uma relação de sentido com
diferentes coletivos e não apenas com o significado (idem).
De modo que, neste processo dinâmico de sociabilização em que passa a fazer parte de
um grupo social, o indivíduo constrói a própria identidade. E, o reconhecimento de que todos
os povos produzem cultura e que cada um passa a formar diferentes modos de expressão, é
aceitar a diversidade cultural, a pluralidade, é o reconhecimento de culturas distintas, porém, a
não existência de uma ou outra melhor do que outra (s) (HORTA et al. 1999, p.07).
A memória, conforme aponta Mariani (2008), “enquanto qualidade essencial do ser
humano, em qualquer sociedade”, sempre ocupou um espaço de tensão entre o velho e o
novo, sendo que:
[...] o sentido e o valor social atribuído à permanência ou à
recuperação do passado na vida presente foi o que se diferenciou no decorrer
da história da humanidade. Nas sociedades sem escritas, a memória coletiva
era assegurada e revivida através das narrativas, mitos e efêmeros [...] Na
Grécia pré-clássica, cabia aos aedos, poetas gregos, a função de narrar os
acontecimentos e façanhas do seu povo, rememorando o passado e
integrando-o à vida social [...] A modernidade trouxe o desenvolvimento

470

V V
material e a ideia de progresso inaugurando um tempo de expectativa
promissor. O passado tornou-se fugidio e figurado como um território do que
foi definitivamente vivido e então ameaçado de desaparecimento
(MARIANI, 2008, p. 79).

Na contemporaneidade não cumpre-se mais um papel uniforme de porta-voz


mnemônico, mas a atenção à diversidade cultural dentro da identidade nacional, dada a
existência de tantas memórias coletivas quanto seriam os segmentos sociais, etnias e grupos
sociais; de modo que, imperativa a mudança paradigmática quanto à noção de patrimônio,
estendida aos bens culturais e simbólicos. Afirmando um propósito de valorização de
memórias plurais (MARIANI, 2008, p.80).
A este aspecto, algumas indagações se tornam imprescindíveis como norteadoras de
um caminho para o desenvolvimento de ações educativas, já que, ainda conforme Mariani
(2008), “pensar na prática educativa instigadora da memória coletiva é trazer à tona nossa
delicada relação com o passado”.
Segundo o dicionário Aurélio (apud SENAC, 2009, p. 09), “patrimônio é definido
como ‘herança paterna’, ‘bens de família’, ‘dote’ e ‘outras riquezas’ transmitidas de geração a
geração”. No entanto, patrimônio cultural de uma pessoa, povo ou nação tem um caráter bem
mais amplo e significativo, incorporando tanto bens preciosos que podem não ser palpáveis
como uma lenda ou um ditado popular. Assim:
O patrimônio cultural poder ser definido como o conjunto de ordem material e
imaterial que fazem parte da identidade e da memória dos diferentes grupos sociais que forma
a sociedade nacional. Nesse sentido, podemos citar como exemplos de patrimônios culturais:
sítios arqueológicos, objetos artísticos culturais, estruturas arquitetônicas, criações científicas,
modos de fazer, agir, pensar e outros (MILDER, 2005, p. 08) (grifo nosso).
Definição está de suma importância, visto que o caráter ideológico do conceito
patrimônio, conforme afirma Milder (2005), é muitas vezes usado para “construção de uma
memória social excludente, recheada de heróis e vencedores e distante da maior parte da
população”.
Ademais, a noção de patrimônio cultural ainda é desconhecida ou desconsiderada por
uma parcela significativa da sociedade que tão somente o associa ao velho, ao antigo, ao
retrógrado. De modo que, faz-se mister compreender que:
[...] reconhecer o passado cultural de que somos herdeiros dá-nos a
garantia do equilíbrio de nossa identidade cultural, possibilitando-nos os
meios de um bom relacionamento com o nosso presente e uma melhor
perspectiva do nosso futuro (HORTA, 2008, p. 17).

471

V V
Ainda, conforme a supracitada autora é preciso que se supere aquela fase de
afirmação, essencialmente reproduzidos em decorrência do campo da História, de que “tudo
que é antigo é bonito, porque a professora disse”. De modo que a criança, o adolescente ou o
adulto sejam capazes de apreciar a casa que vivem e o mundo que os rodeia, de modo a que
possam apreciar valores e características de épocas precedentes, sem desvalorizar ou
supervalorizar (op. Cit).
Segundo Bezerra (2008, p. 63), “a arqueologia, ao tratar de questões ligadas à
memória, à construção e à legitimação de identidades, pode contribuir para a mudança deste
quadro”.
Tal envergadura é tomada por Teixeira (apud BEZERRA, 2008, p.61) que afirma que
“atividades investigativas permitem a ampliação da experiência cognitiva por meio dos
processos de observação, análise e reflexão e conduzem a um novo modo de agir”. O que,
segundo ele, significaria aprender.
Neste contexto, compreender que, patrimônio é algo herdado dos antepassados, e,
segundo Horta (1999 apud SENAC, 2009, p.11), “para que essa herança seja nossa, é
necessário nos apropriarmos dela, reconhecendo como algo que nos foi legado, que
deveremos deixar para os filhos e para as gerações seguintes”. O que, evidencia uma base de
responsabilidade de preservação sustentável desses bens para as futuras gerações.
A educação patrimonial seria, pois, um mecanismo para alcance deste objetivo, uma
vez que:
[...] a educação é o portal de entrada para preservar o que existe de
valor para um grupo ou sociedade. A educação patrimonial, por sua vez,
constitui-se em ferramenta estratégica para estimular o cidadão a usar sua
autonomia no sentido de valorizar e conservar seu ambiente e o patrimônio
cultural que o integra (PAIVA apud SANTOS, 2007, p. 158) (grifo nosso).

As problemáticas sociais enfrentadas pelos alunos devem ser trazidas aos contextos
escolares, de modo a construir uma transversalidade com as disciplinas, reportando à sala de
aula o cotidiano do alunado, uma vez que a escola não é um lócus apartado, mas, que integra
parcela de seu dia-a-dia. Assim, a educação patrimonial mesmo não fazendo parte do
currículo obrigatório, pode e deve ser tratada neste contexto; bastando que o patrimônio
cultural faça parte do cotidiano do aluno (SANTOS, 2007, p. 153).
O propósito de trabalhar a questão cultural na escola, apesar de complexa, requer da
escola uma nova configuração, que seja orientada para a multiplicidade de culturas existentes

472

V V
em um determinado espaço e tempo na sociedade. Segundo Moreira e Candau (2003 apud
VIANA, 2009, p. 20), “é necessário uma orientação ‘multicultural’ na escola e no currículo
que se assente na diferença e na igualdade, que seria uma versão que os autores chamam de
emancipatória do currículo, com base na diferença e no direito à diferença”. A construção de
um currículo nestas bases significaria, conforme Viana (2009, p.20), requerer do professor
uma nova postura, novos saberes e conteúdos baseados na necessidade de diferentes
coletividades sociais.
A expressão Educação Patrimonial foi introduzida no Brasil na década de 80, e foi
inspirada em trabalhos e experiências educacionais desenvolvidas na Inglaterra. Segundo
Horta (1999), a proposta da Educação Patrimonial foi introduzida no Brasil, em termos
conceituais e práticos no Seminário sobre o ‘Uso Educacional de Museus e Monumentos’ em
1983. A base dessa prática tem como pedra de toque a experiência direta com o objeto,
buscando a ‘experimentação’ deste como fonte primária de conhecimento. Por meio desta
abordagem o aluno entra em contato com a produção cultural em sua materialidade com o
objetivo de entender, pesquisar, interpretar e se apropriar dos significados e supostos valores
destes bens, que se tornam instrumento de aprendizado na escola (HORTA apud VIANA,
2009, pp.46-47).
A partir dessa proposta muitos trabalhos foram e vêm sendo realizados com interesse
de recuperar as memórias, a auto-estima de “comunidades” e a preservação de bens culturais,
dentre os quais, merece destaque, o Projeto Interação, desenvolvido na década de 80, no
âmbito da Secretaria de da Cultura do Ministério da Educação e Cultura e que tinha como
objetivo “fortalecer a identidade cultural nacional, por meio do estreitamento da relação
escola-comunidade” (SANTOS, 2007, p. 154).
Uma vez que a educação patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural”
(HORTA, 1999, p. 06), que permite à comunidade reapoderar-se de lugares, histórias e
objetos, monumentos e tradições que foram ou são importantes, é legítimo o papel do Estado
para que ocorra essa reapropriação. Cabendo ao poder público promover propostas de
aprendizagem que possam atrair a atenção da população (SENAC, 2009, p. 11).
Tal acepção tem previsão legal nos Parâmetros Curriculares Nacionais prevista,
incorporando a temática da Pluralidade Cultural como transversal ao currículo e abordando o
conhecimento e a valorização das características étnicas e culturais dos diferentes grupos
sociais do território nacional, com toda a sua complexidade:
[...] A temática da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e
à valorização de características étnicas e dos diferentes grupos sociais que

473

V V
convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e às
críticas às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a
sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o
Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal
(BRASIL,1998, p. 121)

Conforme o documento, considerar a diversidade não significaria negar a existência de


características comuns, mas de aceitar a multiplicidade na cultura. A Pluralidade Cultural
possibilitaria, pelos conteúdos e objetivos, “compreender e valorizar as diferenças étnicas e
culturais, que não é o mesmo que aderir aos valores do outro, mas respeitá-los como
expressão da diversidade” (VIANA, 2009, p. 57):
[...] O que se almeja, portanto, ao tratar de Pluralidade Cultural, não é
a divisão ou esquadrinhamento da sociedade em grupos culturais fechados,
mas o enriquecimento propiciado a cada um e a todos pela pluralidade de
formas de vida, pelo convívio e pelas opções pessoais, assim como o
compromisso étnico de contribuir com as transformações necessárias a
construção de uma sociedade mais justa (Parâmetros Curriculares Nacionais
, 1997 , pp.20-21).

Santos (2007, p. 157) aborda que a relação da sociedade com o patrimônio inclui as
noções de identidade, reconhecimento, respeito e proteção, além de trazer a concepção de
cidadania em seu escopo, conforme também pode ser associado aos parâmetros:
[...] conhecer a diversidade do patrimônio etno-cultural brasileiro,
tendo atitude de respeito para com pessoas e grupos que a compõem,
reconhecendo a diversidade cultural como um direito dos povos e dos
indivíduos e elementos de fortalecimento da democracia (Parâmetros
Curriculares Nacionais, 1997, p. 43).

De modo que, a ideia que permeia os projetos de educação patrimonial são


condizentes com a sensibilização da comunidade para que possa atuar juntamente com a
instituição de preservação local na proteção dos bens culturais, e, uma vez que introjeta e
torna consciente a importância dos bens culturais na formação de sua identidade e na
constituição de seu patrimônio cultural – não precisará mais ficar esperando que o Estado, por
meio da instituição competente, arque sozinho com a responsabilidade de proteger os bens
culturais da nação (SANTOS, 2007).
Assim, é de se esperar a multiplicação de agentes na qualidade de educadores
patrimoniais, para que seja dizimada a “cultura da preservação patrimonial”. Com a formação
dos docentes:
[...] Espera-se que os conteúdos propostos sirvam de suporte para que
o professor possa contemplar a abrangência solicitada pelo tema, adequando-
os, ao mesmo tempo, aos objetivos e a realidade do seu trabalho, assim como

474

V V
as possibilidades de seus alunos [...] É importante lembrar que o estreito
vínculo existente entre conteúdos selecionados e a realidade local, a partir
mesmo das características culturais locais, faz com que este trabalho possa
incluir e valorizar questões da comunidade imediata à escola. Contudo, a
proposta levanta, também, a necessidade de referenciais culturais voltados
para a pluralidade característica do Brasil, como forma de compreender a
complexidade do País, bem como a ampliação do horizonte para o trabalho
da escola como um todo (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997, p. 47).

De acordo com o IPHAN, a educação patrimonial “é um processo permanente e


sistemático centrado no patrimônio cultural como instrumento de afirmação da cidadania, que
objetiva envolver a comunidade na gestão do Patrimônio” (SENAC, 2009). Constituindo-se
num campo interdisciplinar voltado para questões atinentes ao patrimônio em que o educando
precisa vivenciar experiências que possam ser trabalhadas pelos professores de forma
transversal, haja vista que:
[...] é através da educação patrimonial que ocorre o processo ensino-
aprendizagem e pode ser dinamizado e ampliado muito além do universo
escolar onde toda a comunidade poder estar envolvida. Pode tornar-se um
instrumento a mais no processo de educação que colabore com o despertar
de uma consciência crítica e de responsabilidade para a preservação do
patrimônio em toda sua expressão e percepção entre esse com sua identidade
pessoal e cultural (QUEIROZ apud SENAC, 2009, p. 11).
Contudo, adotar uma perspectiva pautada na educação popular que prioriza três
conceitos básicos, a saber: a autogestão (em que o indivíduo desenvolve e tome pertença);
autonomia (participação direta na produção do conhecimento para emancipação) e
solidariedade (rompendo com a lógica do individualismo), compreendendo que um Projeto de
Educação Patrimonial não deva ser um plano firme e acabado, mas envolto num processo
dinâmico e ciclicamente construído:
[...] Assumir a possibilidade de não ter um projeto pronto é alimentar a
certeza de que a sociedade futura e suas consequentes instituições só podem
surgir se forem fundamentadas num novo conjunto de práticas (CARIBÉ,
2008, apud PROJETO POLÍTICO DO ERECOM/PI, 2011).

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476

V V
A PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO PATRIMÔNIO HISTÓRICO
Fabiano dos Santos Silva1

RESUMO: O objetivo desse artigo é analisar a necessidade de preservação do Patrimônio


Histórico, e aliada a sua preservação, torna-lo acessível a Pessoa com Deficiência. Estuda
também a possibilidade de tornar compatível a fruição do Patrimônio Histórico, atendendo as
diversas necessidades e peculiaridades inerentes de cada deficiência, à luz da legislação, é o
objetivo desse trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Pessoa com Deficiência, Acessibilidade, Patrimônio Histórico.

PATRIMÔNIO HISTÓRICO
Na década de 1930, Mario de Andrade atendendo ao pedido do então ministro da
educação e saúde, Gustavo Capanema, elabora o projeto de um serviço que se atentaria para a
preservação patrimonial. Dessa forma foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional - SPHAN, este seria futuramente o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN. Fonseca (2007, p. 71) referindo-se ao surgimento do SPHAN relata que
"[...] a principal motivação tenha se originado na percepção do risco de
perda de nosso riquíssimo acervo de edificações e obras de arte do período
colonial, [...], a proposta inicial de criação de um serviço público destinado a
essa finalidade [...]".

Até assumir sua configuração atual o IPHAN passou por diversas alterações, quanto à
suas funções, e nomenclaturas. A Constituição Federal de 1988 lança uma visão mais ampla
do patrimônio, consolidando a amplitude e pluralidade da cultura brasileira, possibilitando a
patrimonialização não só e patrimônios materiais, como também patrimônios imateriais.
O patrimônio histórico não consiste em uma curiosidade do passado deixada para nós, o
patrimônio histórico possui uma função social que é conferir-nos a sensação de pertencimento
por compartilharmos uma história comum, além da função de situar-nos no tempo e espaço. O
patrimônio histórico deve ser uma articulação entre o passado e o presente, quando isso não
acontece, o patrimônio, torna-se um objeto que tende para o exótico ou sobrenatural. O
Patrimônio cultural deve sobre tudo potencializar a qualidade de vida da população de seu
entorno, para que essa população sinta o desejo e interesse de fazer uso deste patrimônio, por

1
Graduado em Licenciatura em História pela UNIABEU – Centro Universitário, Especialista em Acessibilidade
Cultural da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como professor na SOBEC - Escola Verde.
fabianodebel@ufrj.br

477

V V
isso necessário que o patrimônio histórico seja integrado à comunidade que está inserido,
somente assim a população encontrará motivos para preservá-lo e o proteger.
O patrimônio histórico só tem sentido se for usufruído no presente, entretanto, muitas
das vezes, para que essa fruição seja possível é necessário que haja, neste patrimônio,
intervenções que a possibilitem. As intervenções no patrimônio histórico constituem-se como
um dos assuntos de maior dificuldade. Kühl (2005,p. 32-33) apud Carsalade (2012) afirma
que:
[...] intervir num bem de interesse cultural, que é um documento histórico e possui
papel memorial é ato de extrema responsabilidade, pois se trata, sempre, de
documentos únicos e não reproduzíveis. Essa percepção deveria levar a
conscientização, pelo fato de qualquer intervenção, de modo forçoso, alterar o bem,
de que uma mudança não controlada leva a perdas irreparáveis, lembrando-se que os
organismos históricos são muito delicados. [...] pois a restauração deve preservar e
facilitar a leitura dos aspectos estéticos e históricos do monumento, sem prejudicar o
seu valor como documento e sem eliminar de forma indistinta as marcas da
passagem do tempo na obra.

Ao preparar esse bem cultural para qualquer intervenção faz-se necessário ter em
mente quais são os limites para que o bem não perca sua ligação com o passado e com a
cultura. Quando a questão é a intervenção no patrimônio histórico, cria-se uma grande
dicotomia, a primeira é ser muito restritivo às adaptações que podem causar dificuldade em
seu acesso e dificultar a integração da comunidade com o objeto, e a outra é ser muito liberal,
o que pode descaracterizar o patrimônio, empobrecendo a memória, sendo que a memória é
importante para a construção da própria identidade. É impossível alterarmos a materialidade
do bem, sem modificarmos também sua imaterialidade, alterando dessa forma o significado e
leitura desse patrimônio.
A importância atribuída ao patrimônio perpassa pelo indivíduo e pela sociedade que
atribui a determinado patrimônio tal importância, fazendo com que seja digno de receber
continuidade para que as gerações vindouras devido ao valor especial de seu testemunho,
devendo portanto ser de responsabilidade tanto do estado quanto da sociedade proteger esse
patrimônio do desgaste causado por ação humana ou da natureza.
A política de salvaguarda do Patrimônio Cultural tem diversos obstáculos a serem
ultrapassados, obstáculos esses das mais diversas ordens, entretanto Fonseca (2007., p. 73)
relata que “Há vários desafios a enfrentar,[...], porém, o mais urgente e decisivo é o efetivo
envolvimento da sociedade com a preservação de seu patrimônio."

478

V V
PATRIMONIALIZAR, PRESERVAR E ACESSIBILIZAR: É POSSÍVEL?
Como já vimos o Patrimônio histórico é essencial para o desenvolvimento do
sentimento de comunidade e pertencimento, dessa forma se mostra vital que o maior número
possível de pessoas tenham acesso a este bem, entretanto pessoas com deficiência ou com
mobilidade reduzida encontram grandes dificuldades para terem esse direito assegurado.
A grande maioria das construções que hoje constituem como patrimônio histórico foi
edificada em uma época em que a pessoa com deficiência era invisibilizada por completo.
Com o decorrer dos tempos a pessoa com algum tipo de deficiência se libertou das amarras
impostas pela sociedade e principalmente, se viu apta a encontrar um mundo novo aberto à
elas. Cada dia mais a pessoa com deficiência deseja encontrar seu espaço na sociedade como
cidadão de direito, tendo acesso ao mercado trabalho, à cultura, ensino e lazer, tudo isso por
meio de militância e conquistas, assim a sociedade se mostra progressivamente mais receptiva
as pessoas com deficiência, entretanto essas mesmas pessoas tem seu acesso dificultado em
alguns bens históricos.
Um dos princípios norteadores, quando se trata da preservação e restauração do
Patrimônio cultural, é o princípio da intervenção mínima, que tem como objetivo manter a
integridade física, histórica, estética e simbólica do patrimônio, aliados às leis patrimoniais e
burocracia nos órgãos que tratam da gestão e preservação destes bens, fazem com que
qualquer tentativa de intervenção que aponte para uma possível acessibilidade sofra com a
morosidade de seus gestores. Diniz; Barbosa; Santos (2010, p. 108) dizem que “a cultura da
normalidade repleta de barreiras à participação social das pessoas com outros impedimentos,
para quem tais barreiras não são apenas físicas, mas da ordem simbólica ou comportamental.”
A acessibilidade constitui-se da remoção das barreiras instaladas nas diversas áreas,
entretanto nem sempre essa barreira é de ordem material, muitas das vezes, as barreiras
imateriais se mostram tão poderosas quanto, ou ainda mais poderosa, que as barreiras
matérias. Mesmo com o recente aumento da conscientização da necessidade de tornar
acessível o patrimônio histórico, poucas pessoas com deficiência costumam frequentar esses
ambientes, principalmente por não saber se suas especificidades e necessidades serão bem
atendidas e acolhidas.
O Brasil possui diversas leis e também é signatário de vários tratados internacionais,
que assegura o acesso da pessoa com deficiência em ambientes coletivos, todavia existem
poucos exemplos do cumprimento dessas leis. “[...] o grande desafio é o de fazer cumprir essa
legislação, seja por parte do Estado brasileiro, seja pelas organizações privadas e pela

479

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sociedade civil em geral” (BRASIL,2009, p. 27), quando um direito é negado a uma parcela
da população é criado um subgrupo de “cidadão de segunda classe”, e Gruman (2011, p. 44)
deixa isso claro quando diz que “Ser cidadão é ter direito não só a uma vida socialmente
digna, como também culturalmente satisfatória.”
A cultura constitui de um direito humano inalienável, entretanto não é assim encarado
no que se trata de seu acesso à pessoa com deficiência. No artigo 23 da Constituição Federal,
de 1988, diz que é de competência do poder público proporcionar os meios de acesso à
cultura, à educação e à ciência e em seu artigo 215 o estado se compromete a garantir “a todos
o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”
Com isso se inicia o embate de forças, enquanto que a sociedade e gestores dos bens
históricos dizem que a intervenção no patrimônio histórico seja a menor possível para que os
cidadãos tenham acesso ao bem tombado mais próximo possível das suas características
originais, facilitando a compreensão da história, e por outro lado existem as pessoas com
deficiência que historicamente têm seus direitos negados.
O patrimônio histórico constantemente passa por adaptações para atender melhor seus
usuários, um exemplo disso é quando uma construção recebe energia elétrica, água encanada,
tratamento de esgoto, instalação de ar condicionado, quando foi construída em uma época em
que esses serviços não estavam disponíveis, mas, as intervenções necessárias para que a
pessoa com deficiência tenha seu acesso garantido nessa edificação, utilizando-se da desculpa
de que por se tratar de um patrimônio tombado não pode passar por modificações.
Entretanto a acessibilidade nos patrimônios tombados pelo IPHAN é regida pela
Instrução Normativa nº 1 de 25 de Novembro de 2003, em que o IPHAN estabelece diretrizes,
critérios e recomendações para a promoção da acessibilidade. Certamente somente após a
instituição da referida Instrução Normativa que muitos dos espaços tombados pelo IPHAN
despertaram para a necessidade de eliminar, reduzir ou mesmo superar as barreiras que vão de
encontro à universalização do acesso universal, mesmo sendo fomentado avanços nessa área,
a realidade ainda se mostra muito distanciado da teoria.
Tradicionalmente a pessoa com deficiência é estigmatizada pelo conceito biomédico2,
fazendo com que a sociedade esqueça de que a pessoa com deficiência também tem a
necessidade de fruir da vida cultural da comunidade em que está inserido, costumeiramente

2
Conceito biomédico é quando a deficiência ou qualquer variação do corpo humano é visto sobre a ótica da
anormalidade, que vê essas variações como desvantagens e indesejáveis, por tanto são oferecidas, ou impostas,
reabilitações com o objetivo de reverter ou atenuar a “anormalidade”, tentando tornar a pessoas com deficiência
o mais próximo possível do que é aceito pela sociedade como “normal”.

480

V V
acreditamos que o deficiente tem somente a necessidade de atendimentos médicos, porém
Gruman (2011, p. 23) afirma que “Cultura não é acessório da condição humana, é sim seu
substrato. O ser humano é humano porque produz cultura [...].” Privando a pessoa com
deficiência do acesso e da fruição à cultura, estamos privando-a de sua humanidade,
perpetuando as barreiras já existentes no Patrimônio histórico, estamos distanciando-o do
conhecimento e da memória do povo.
Sendo a acessibilidade o primeiro passo para que não só os ambientes culturais sejam
acessíveis, como também toda a sociedade, com isso será possível equiparar oportunidades e
permitir o exercício da cidadania por todos

PATRIMÔNIO HISTÓRICO: ACESSIBILIDADE MUITO ALÉM DA RAMPA

Para muitas pessoas a acessibilidade, não só do patrimônio histórico, como também de


qualquer outra construção, limita-se somente a construção de uma rampa em alguma das
entradas, para que as pessoas com deficiência tenha acesso ao interior da instalação.
Acessibilidade é muito mais que isso.
A rampa que é o primeiro item a ser pensado quando se pensa em acessibilidade. Uma
rampa não pode ser construída de forma aleatória, ela necessariamente deve seguir normas
estabelecidas pela Norma Técnica 9050, que trata da Acessibilidade a edificações, mobiliário,
espaços e equipamentos urbanos. Muitas das vezes quando é instalado uma rampa, ela
localiza-se em alguma entrada lateral, ou pelos fundos da instituição, como acontece na
Biblioteca Nacional, isso é feito com o intuito de preservar a fachada do Local. Essa prática
cria o preconceito simbólico, sendo este tão prejudicial quanto o não acesso, entretanto tal
atitude não deve ser vista como preconceituosa, isso acontece frequente por desconhecimento
das leis que dizem que tal acesso deve ocorrer “[..] sempre que possível e preferencialmente,
pela entrada principal ou outra integrada a esta.” (IPHAN, 2003).
Deve ser considerada cada deficiência, bem como suas necessidades especificas de
adaptação no espaço para que este se torne acessível para aquela pessoa, pois uma rampa
certamente não faria diferença para o acesso de uma pessoa com alguma deficiência sensorial,
mas para uma pessoa surda, a falta de janela de LIBRAS em vídeos, ou de um interprete, iria
interferir sua fruição, enquanto que seria indiferente para um cadeirante. A solução para tornar
acessível o patrimônio tombado deve contemplar, cada deficiência e suas necessidades
especificas de forma a permitir sua fruição.

481

V V
Para tanto é importante ouvir a pessoa com deficiência, saber quais são suas
necessidades, e a escuta é algo recomendado na Instrução Normativa do IPHAN nº 1, quando
diz que:
“2.6 - Articular-se com as organizações representativas de pessoas
portadoras de deficiência [sic] ou com mobilidade reduzida, tendo em vista:

[...]
b) Assegurar a sua participação nos processos de intervenção, através da discussão
conjunta de alternativa e do acompanhamento e avaliação, a fim de garantir a correta
aplicação de soluções em acessibilidade.”

A exclusão da Pessoa com Deficiência de qualquer assunto que lhe diz respeito
consiste em um grave erro, corre-se o risco de que os recursos empregados no processo de
acessibilidade sejam em vão, pois pode não corresponder as reais necessidades da pessoa e
perde-se a oportunidade de criar o sentimento de afetividade e pertencimento com aquele
determinado espaço.
Infelizmente são poucos os ambientes culturais que são acessíveis às pessoas com
deficiência, e menor ainda quando estes ambientes são localizados em patrimônio históricos.
São pontuais as exposições ou semanas em que são criadas soluções temporárias para que a
pessoa tenha seu acesso livre de barreiras, isso desestimula a ida dessas pessoas a esses
ambientes.
A acessibilidade de qualquer lugar deve começar antes mesmo que a pessoa com
deficiência saia de sua casa, é importante que o site3 da instituição seja acessível, e que no site
seja possível encontrar informações como os serviços que já lhe são acessíveis, assim como
faz o CCBB. O Museu Histórico Nacional que dispõe de uma infraestrutura acessível é um
exemplo de falta de informação quanto a acessibilidade em seu espaço. No site do museu não
informa nenhuma das adaptações existentes para receber a pessoa com deficiência.
Essas informações quanto a acessibilidade devem ser claras e objetivas. O mais novo
museu instalado no rio, o Museu de Artes do Rio - MAR, integra dois edifícios de épocas bem
distintas, de um lado fica o Palacete Dom João VI, inaugurado no início do século XX, e de
outro um prédio modernista, este museu foi inaugurado no ano de 2013. Em visita a seu site a
questão de acessibilidade não fica clara, deixando o usuário em dúvida dos reais serviços que
estão ou não disponíveis às pessoas com deficiência. Segundo as informações em seu site, diz
que todo o museu é acessível à pessoas cadeirantes e cegos, entretanto não informa que tipo

3
W3C estabelece algumas diretrizes de como tornar um site acessível à pessoa cega, para que o site possa ser
lido por leitores de tela, além de compatibilizar o conteúdo da web para as necessidades especificas de cada
deficiência, isso pode ser encontrado na cartilha que aborda sobre a importância da acessibilidade na web.

482

V V
de acessibilidade é essa. O site também diz que no quinto andar o museu conta com uma
maquete de local, sem dizer se esta pode ou não ser manuseada pelos usuários.
Em visita realizada por no dia 06 de fevereiro de 2015, pude ter a oportunidade de ver
as maquetes expostas no MAR, são maquetes muito bem feitas que reproduzem o espaço do
museu e seu entorno, entretanto as mesmas encontram-se protegidas por uma redoma de
acrílico com abertura na frente para possibilitar seu manuseio, porém para que a pessoa possa
manuseá-las e necessário que fique em uma posição incomoda, pois a proteção de acrílico
impede o manuseio de forma confortável.
A meta 29 do Plano Nacional de Cultura tem como objetivo que 100% de bibliotecas
públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendam aos
requisitos legais de acessibilidade e desenvolvam ações de promoção da fruição cultural por
parte das pessoas com deficiência, permitindo que estas possam ter acesso aos espaços
culturais, seus acervos e atividades. O objetivo é que até o ano de 2020 essas metas estejam
cumpridas. Essa meta visa atender a lei 10.0984 e a Instrução Normativa do IPHAN nº 1, de
25 de novembro de 2003.
Faz-se necessário que tanto o patrimônio histórico quanto os demais espaços culturais
executem os devidos ajustes para oferecerem seus serviços e bens em formatos acessíveis.
Todo o pessoal que atua nas dependência da instituição deve estar apto a lidar com a pessoa
com deficiência, garantindo-os o acesso e atendimento adequado. As leis que exigem a
adoção de soluções em acessibilidade já existem, o que falta é seu efetivo cumprimento.
Tornar o patrimônio histórico em um ambiente em que a pessoa com deficiência possa
ter acesso, percorrer, ver, ouvir, sentir e tocar é essencial para o efetivo exercício da cidadania
por parte destas pessoas, e que as mesmas possam frui-los em equidade de oportunidades às
pessoas sem deficiência. Cardoso (2012, p. 42) diz que isso é possível “explorando para tanto
diferentes meios como o uso de áudio, recursos táteis, língua de sinais, boa organização do
espaço e mobiliário adequado, por exemplo."

CONCLUSÃO
Entre os grandes receios que existem é a possibilidade de que as adaptações ocorridas
para que o ambiente torne-se acessível descaracterize o imóvel. Um bom projeto poderia
tornar o local apto para receber pessoas com deficiência, sem que haja a desfiguração do
patrimônio.
4
Está lei estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com
deficiência ou com mobilidade reduzida.

483

V V
Muitos locais ao instalares uma rampa ou um elevador já se consideram um espaço
acessível, isso sem cogitar as necessidades de pessoas cegas, surdas, com nanismo, ou mesmo
dos cadeirantes que muitas das vezes não podem enxergar as peças por estarem sobre
plataformas muito altas. As pessoas com deficiência que para compreenderem por completo
uma obra necessitam de interpretes de LIBRAS, Braille, piso tátil ou áudiodescrição ficam no
esquecimento, pois ainda hoje a questão da acessibilidade limita-se muito à acessibilidade
arquitetônica.
O que realmente falta é o cumprimento das leis, que quando não cumpridas impedem
que essa categoria de pessoa tenha o pleno exercício de cidadania. O grande desafio de tornar
acessível as instituições situadas em Patrimônio Histórico perpassa pelos gestores desses
patrimônios, bem como pela sociedade, que quando se omite dessa discussão, está permitindo
a perpetuação dessas barreiras. É importante que além de esforçarmos-nos para fazer com que
a pessoa com deficiência tenha acesso a seus direitos sociais e políticos, que haja também um
esforço para que essa mesma pessoa tenha acesso a seus direitos culturais.

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486

V V
ECONOMIA CRIATIVA: EMPREENDIMENTOS CULTURAIS
Felipe da Silva Duque1

RESUMO: Nos anos 2000 um novo termo passa a se popularizar junto ao campo das
políticas públicas culturais, trata-se da Economia Criativa. Com o apelo de órgãos
multilaterais internacionais e inserida numa lógica que a compreende como potencial
“desenvolvimentista”, a Economia Criativa traz consigo as novas formas de gestão do bem
público, como a relação com o terceiro setor. Nesse sentido, torna-se fundamental
compreender aspectos desta política e quais seus propósitos. No presente trabalho, ocorre a
exploração de documentos internacionais de balanço do programa, além do debate
proporcionado por seus ideólogos no Brasil sob a luz do método materialista histórico-
dialético. As resoluções dessas políticas trazem consigo importantes elementos para
compreendê-las suas propostas para o Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Economia Criativa, desenvolvimentismo, terceiro setor

As indústrias culturais
Um novo modelo de políticas públicas vem tomando eco junto ao setor cultural. Trata-
se da “Economia Criativa”. Apresentada com simpatia pelos órgãos multilaterais
internacionais, a chamada Economia Criativa desembarcou no Brasil sob a tutela da gestão
Gil-Juca no MinC. O fortalecimento da economia da cultura é a principal motivação, que
agora se apresenta através dos empreendimentos de micro e pequenos empresários
interessados na área.
De antemão, antes de adentrarmos na engenharia da Economia Criativa e
desnudarmos sua localização no contexto econômico-político, cabe uma melhor definição da
noção. O surgimento da mesma se dá em meados dos anos noventa, como derivado do termo
Indústria Criativa, na Austrália, em 1994, inspirado num projeto denominado Creative
Nation2. Logo, essa proposta avançou para o Reino Unido em 1997 com o então recém-eleito
ministro Tony Blair3.
O Novo Partido Trabalhista inglês (New Labour) defendeu em seu
manifesto pré-eleitoral a ideia de se identificar as indústrias criativas como
um setor particular da economia, assim reconhecendo a necessidade de

1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal Fluminense –
felipeduque@id.uff.br
2
Neste projeto o governo australiano propunha a busca da identidade cultural australiana. Para isso, passou a
aplicar verbas, por meio de um fundo de investimento, nas indústrias cinematográfica, teatral e artística, em
geral.
3
Período que trata da instauração da “terceira via” no cenário mundial, caracterizado, principalmente, pela
gestão de ONGs.

487

V V
políticas públicas específicas para este segmento. Portanto, apesar da
iniciativa dos australianos, foi no Reino Unido que a economia criativa
ligada ao capital intelectual despontou com o incentivo do primeiro ministro
Tony Blair. A fim de recuperar a competitividade diante do aumento da
concorrência dos países asiáticos no mercado internacional, Tony Blair
convocou uma força-tarefa para determinar quais os setores criativos mais
promissores do Reino Unido. [...] esses seguimentos viraram prioridade e
passaram a ter um crescimento de 16% ao ano. (SERAFIM e PINHEIRO,
2012, p. 8)

A caracterização do conceito indústria criativa é heterogêneo. Segundo Machado


(2009), o termo “indústria criativa” seria uma resignificação do termo “indústria cultural”
desenvolvido por Adorno onde “a principal função [é] a reorientação das massas, não
permitindo a sua evasão e impondo, ininterruptamente, os esquemas para um comportamento
conformista por parte destas”. Para Adorno, a indústria cultural tem um caráter regressivo,
negativo, ou seja, de rebaixamento da cultura aos desígnios do mercado.
Porém, para Reis (2008, p. 17) a indústria cultural seria “indústrias que têm sua
origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que apresentam um potencial para a
criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração de propriedade intelectual”.
Ela contempla parte da produção cultural definida por propaganda, arquitetura, mercados de
arte e antiguidades, artesanato, design, moda, filme e vídeo, software de lazer, música, artes
do espetáculo, edição, serviços de computação e software, rádio e TV. O ex-secretário de
políticas públicas culturais, Paulo Miguez, em entrevista ao Prima Página em 2005 4 definiu a
indústria criativa como a indústria “sem chaminé”.
Órgãos multilaterais internacionais deram destaque às indústrias culturais, assim como
universidades mundo afora, com maior intensidade nos anos 2000. O professor do
departamento de Economia da Universidade de Harvard, Richard Caves, publica a obra
Creative Industries em 2001, no mesmo ano na Queensland University of Techonology, em
Brisbane, na Austrália, se dá a fundação do curso de bacharelado “Creative Industries”. No
ano seguinte, acontece o Simpósio Internacional na mesma cidade onde temos pesquisadores
e estudiosos das recém criadas Creative Industries Faculty (London School of Economics), do
Massachusetts Institute of Technology e da New York University., dentre diversas outras
iniciativas.
Em junho de 2004, em São Paulo, a XI UNCTAD5, realizou no Brasil o “Workshop on
Cultural Entreprenershipon Criative Industries” e o “High LevelPanelon Creative Industries

4
http://www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=3575 Acessado em 26/01/2015.
5
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.

488

V V
and Developmentent”. É importante destacar os encaminhamentos deste encontro, onde
compreendem a Indústria Criativa como setor fundamental para os países ditos em
“desenvolvimento”, ou seja, aqueles periféricos ao centro capitalista. A UNCTAD, setor da
Organização das Nações Unidas (ONU) responsável por representar estes países localizados
na periferia, tem explorado o debate da Indústria Criativa e da Economia Criativa6
compreendendo o setor cultural como frutífero ao “crescimento econômico” destes países.
Na Conferência Ministerial da Unctad XI, realizada em São Paulo,
em 2004, o tema relacionado a indústrias criativas foi introduzido na agenda
econômica e de desenvolvimento internacional pela primeira vez em regime
de recomendação feita pelo Comitê de Alto Nível sobre as Indústrias
Criativas e Desenvolvimento. O São Paulo Consensus, negociado entre 153
países declarava que: As indústrias criativas podem ajudar a estimular as
externalidades positivas, preservando e promovendo as heranças e
diversidades culturais. Aprimorar a participação e os benefícios dos países
em desenvolvimento diante de oportunidades novas e dinâmicas de
crescimento no comércio mundial é importante para a obtenção de aumento
de ganhos com o comércio internacional e negociações comerciais, além de
representar um resultado positivo para os países desenvolvidos e em
desenvolvimento (parágrafo 65). (Relatório da Economia Criativa: , 2010).

O diálogo da UNCTAD com a Organização Mundial do Comércio (OMC) reforça essa


percepção de compreensão do setor cultural, através da indústria criativa, como ferramenta de
mercado. Tanto que há uma recomendação para a OMC que melhor caracterize o setor:
A estrutura da OMC engloba o comércio de produtos e serviços das
indústrias criativas, incluindo o comércio de conteúdos criativos
digitalizados associados às ferramentas de tecnologia de informação e de
comunicação (TIC). Os serviços audiovisuais, culturais, entre outros serviços
relacionados, são discutidos conforme os termos do Acordo Geral sobre o
Comércio de Serviços (AGCS). No entanto, existem problemas com respeito
às definições. Embora o termo “produtos e serviços culturais” seja o
utilizado nas negociações da OMC, não há nenhuma definição específica
para “serviços culturais” (Relatório da Economia Criativa 2010 - Economia
Criativa: uma opção de desenvolvimento viável, 2010, p. 235)

A indústria criativa é então compreendida como uma parte da cadeia produtiva da


economia criativa. A indústria criativa cumpre um papel, segundo a UNCTAD, na produção
de valor. Antes de prosseguirmos com a definição da economia criativa, é importante salientar
que a indústria criativa, por ser embrionária no debate já vinha desde o início dos anos 2000
sendo acionada pela ONU como “modelo ideal de desenvolvimento”:
Nos últimos anos, as Nações Unidas têm reconhecido cada vez mais
a função inalienável da cultura no desenvolvimento e têm focado em
programá-la de acordo. A convicção era evidente na Resolução 57/249 da
Assembleia Geral de 20 de fevereiro de 2003 sobre a Cultura e o

6
Como veremos adiante.

489

V V
Desenvolvimento. A resolução falava diretamente sobre o potencial das
indústrias culturais para a redução da pobreza, observando que a Assembleia
Geral: 5) Convide todos os estados-membros, agências intergovernamentais,
organizações do sistema das Nações Unidas e organizações não
governamentais: (iii) para estabelecer indústrias culturais que sejam viáveis e
competitivas em níveis nacionais e internacionais, frente ao atual
desequilíbrio no fluxo e intercâmbio de produtos culturais em nível global;
(iv) para avaliar a interligação entre cultura e desenvolvimento e à
eliminação da pobreza no contexto da Primeira Década das Nações Unidas
para a Erradicação da Pobreza (1997-2006) (Relatório da Economia Criativa
2010 - Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável, 2010, p.
243).

A indústria criativa no Brasil surgiu em 2004 e teve um crescimento de 90% da mão-


de-obra assalariada segundo o Firjan. Vejamos isso em números7:
Ocupações na Indústria Criativa Brasileira

SEGMENTOS 2004 2013 CRESCIMENTO


CONSUMO 211,5 422,9 100,0%
Publicidade 45,7 154,8 238,5%
Arquitetura 62,7 124,5 98,5%
Design 42,6 87,0 104,3%
Moda 60,5 56,7 -6,3%
CULTURA 43,3 62,1 43,6%
Expressões Culturais 18,3 22,5 22,7%
Patrimônio e Artes 10,2 16,4 60,9%
Música 7,5 12,0 60,4%
Artes Cênicas 7,2 11,2 54,9%

MÍDIAS 64,2 101,4 58,0%


Editorial 27,8 50,8 82,5%
Audiovisual 36,3 50,6 39,1%
TECNOLOGIA 150,9 306,1 102,8%
Biotecnologia 13,2 26,9 102,8%
Pesquisa & Desenv. 82,2 166,3 102,3%
Tecnologias de 55,5 112,9 103,6%
Informação e Comp.
Indústria Criativa 469,8 892,5 90,0%

7
Não há uma definição quanto a formalidade dessa mão-de-obra.

490

V V
Fonte: (FIRJAN, 2014, p. 12)

Pelo gráfico é possível notar como vem se ampliando a chamada Indústria Criativa
(excetuando-se Moda). Ainda, segundo a Firjan (idem), a Indústria Criativa em 2004
correspondia a 2,1% do PIB em 2004 passando para 2,6% em 2013, o que significa algo em
cerca de R$126 bilhões nesse ano8. Porém, a Indústria Criativa corresponde apenas a uma
parte da produção no chamado mercado cultural. Para que se pudesse ampliar ainda mais a
mercantilização do setor, fazia-se necessário criar uma terminologia que apreendesse toda a
cadeia produtiva cultural, a economia criativa.

Ampliando o conceito
Requião (2008) analisa a construção do que se tornou a marca “Lapa” em torno do
bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. A proliferação de casa de shows e a reivindicação do
bairro, como um “espaço democrático” e de “diversidade cultural” pelos empresários da
circunvizinhança (p.176) reflete na forma de encarar o potencial de mercado cultural daquele
espaço. A autora analisa a casa de shows Rio Scenarium. A priori, podemos compreender a
casa como um exemplar de indústria criativa de expressão cultural, apresentação de música
ao vivo. Não vamos tratar das questões do mundo do trabalho diante das relações do
empresário da casa com os músicos, porém, é importante destacar nesse processo como se
ampliou a relação com outros setores empresariais, também donos de casa de shows e a “Feira
de Antiguidades da Rua do Lavradio” permitindo a consolidação de um espaço lucrativo em
profundo diálogo entre si, que antes era restrito a antiquários para se tornar um território de
casa de shows com a “profissionalização das rodas de samba e choro” (p. 194). Percebe-se
que há a construção de um perfil cultural que tem como papel fundamental representar um
gênero musical para consolidá-lo como mercadoria cultural.
De forma ilustrativa, diante do exemplo acima, compreendemos como se dá a
economia criativa. Ela amplia o espaço mercadológico cultural através da construção de uma
rede cultural em um local e/ou de indústrias criativas de forma ampliada global. O papel da
economia criativa é dinamizar o mercado da cultura, ao atravessar não só o trabalho material
(produção de iPods enquanto parte do mercado musical) e imaterial (marketing de uma banda
musical). O “dinamizar” se caracteriza como expandir o caráter do valor-de-troca dos bens
culturais em todas as esferas, de forma interligada, através da cadeia produtiva.

8
Equivalente ao PIB do Estado de Pernambuco.

491

V V
Segundo Reis (2008), a Economia Criativa possui seis características básicas. A
primeira delas é o:
Valor agregado da intangibilidade: O intangível da criatividade gera
valor adicional quando incorpora características culturais, inimitáveis por
excelência. Do turismo cultural abrangendo patrimônio e festas típicas ao
audiovisual, criam-se sinergias entre o estilo de vida e o ambiente no qual
ele floresce. (p. 29)

Podemos compreender intangibilidade como patrimônio imaterial. Nesse sentido, a


economia criativa já trabalha com a lógica de compreender expressões populares (festas
típicas), patrimônios culturais, dentre outros, como setores propícios a atender a demanda por
valor. O patrimônio imaterial surge com a proposta de potencializar tais expressões, portanto
apreende a busca do lucro também junto a essa categoria da imaterialidade, a geração de
“valor adicional”.
Uma outra característica é de unificar 2) a cadeia setorial às redes de valor. Conforme
vimos, a tendência é romper com o monopólio de uma estrutura geradora de valor, no caso
um produtor para vários consumidores. A economia criativa defende, através da tecnologia,
que se amplie o acesso ao consumo e dá como exemplo os softwares livres. Podemos reiterar
o exemplo da Lapa, onde se criou um “nicho cultural” gerador de valor que atravessa
diferentes setores numa rede (artesanato, bares, músicas ao vivo, antiquários, feiras), etc.
Os 3) novos modelos de consumo também são uma outra reinvindicação da economia
criativa. Novamente é pautada a questão da tecnologia. Esta segunda encarada como a que
permite “ao consumidor ser protagonista na escolha do seu produto” (p. 32). Porém, essa
caracterização não é desenvolvida o que deixa uma lacuna em sua compreensão. O que não é
o caso da quarta que salienta a importância do papel das micro e pequenas-empresas. É
destacado a importância deste setor, considerado o maior empregador dos países ditos em
“desenvolvimento”.
Novamente é destacado 5) o papel das novas tecnologias. Segundo Reis (idem) ela se
apresentaria sob três formas:
Como parte das indústrias criativas (software, games, mídias
digitais, comunicações);
Impactando na produção (oferecendo novos veículos para conteúdos
criativos e a possibilidade de novos produtos e serviços com base na mídia
digital), na distribuição (abrindo canais alternativos, e.g. e-commerce,
expandindo o acesso global e reduzindo custos de transação) e no consumo,
como veículo de conteúdo criativo (possibilitando ao consumidor direcionar
sua busca por bens e serviços criativos e acessá-los diretamente do produtor,
e.g. por download);

492

V V
Transformando os processos de negócio e a cultura de mercado,
incluindo a formação de redes e os modelos colaborativos já descritos (p.
33).

É interessante notar a profunda valorização das tecnologias como característica da


economia criativa. O trabalho imaterial é supervalorizado nessa dinâmica, conforme o
segundo item apresenta, toda a cadeia produtiva (produção, distribuição e consumo) é
realizada via redes virtuais. A alienação se amplia consideravelmente, a começar pela omissão
do trabalho material no processo (como o desprezo ao trabalho das indústrias de
computadores e peças, por exemplo). As relações humanas se diluem e os contatos se
restringem ao mundo virtual.
Por fim, temos como última característica da economia criativa o chamado amplo
aspecto setorial. Podemos definir esse componente como aquele que congrega elementos da
economia solidária9 ligados ao artesanato, ao conhecimento tradicional, às novas mídias e
tecnologias. A intenção é se apropriar de experiências da economia solidária que obtiveram
êxito e encará-las como projetos êxitos através de divulgação nas mídias.
Conforme descrevemos no início deste artigo, é evidente a importância que os órgãos
multilaterais internacionais dão à economia criativa como propulsora de “desenvolvimento
econômico” dos países periféricos ao capitalismo. Esse debate é claro no “Relatório da
Economia Criativa – 2010” onde se resgata os “objetivos de desenvolvimento” encaminhados
na Declaração do Milênio10 (DDM). Inclusive, podemos destacar seis dos pontos desta
declaração onde se busca apresentar o porquê da Economia Criativa contribuir para o
“desenvolvimento”. O relatório frisa, dos objetivos propostos pela declaração, por exemplo, a
questão da “erradicação da pobreza e redução da desigualdade”. Segundo o relatório, a
criação de indústrias culturais locais direcionadas a arte e a cultura “será capaz de fazer uma
importante contribuição à erradicação da pobreza e à redução da desigualdade” (p. 34). E em
seguida afirma que “as indústrias criativas não somente proporcionam a possibilidade de
geração de receita, mas também oferecem oportunidade de emprego mais fáceis de serem

9
TIRIBA e FISCHER (p. 5, 2009) definem Economia Solidária como um movimento em que “trabalhadores/as
articulam redes de produção e comercialização, complexos cooperativos e cadeias produtivas”, onde grande
parte se encontrava na condição de trabalhador assalariado no mercado formal e perde essa condição.
10
“NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Milênio. Cúpula do Milênio. Nova Iorque, 2000 Published by United
Nations Information Centre: Lisbon, 2000”. Disponível em:
http://www.pnud.org.br/Docs/declaracao_do_milenio.pdf Acesso em: 26 de fevereiro de 2015. Trata-se de um
documento assinado por 147 Chefes de Estado e de Governo e de 191 países. Aprovada na Cimeira do Milénio –
realizada de 6 a 8 de Setembro de 2000, em Nova Iorque –, o documento contém alguns princípios que devem
ser acionados para a progressão do desenvolvimento econômico, principalmente, nos países periféricos.

493

V V
reconciliadas com as obrigações familiares e comunitárias” (idem). O porquê desse raciocínio
não é explicitado, porém a gravidade maior é no próximo.
Esse relatório confeccionado pela UNCTAD coloca como outro aspecto importante
que a Economia Criativa contribui para a DDM a questão da “igualdade de gêneros”. A
igualdade se dá através das “oportunidades para as mulheres participarem na atividade
criativa” tendo como fim “recompensas econômicas e culturais” (idem). Restringindo a
“igualdade de gêneros” somente ao aspecto de construção de “estratégias de desenvolvimento
devem incluir projetos de aprimoramento das capacidades criativas que favoreçam as pessoas
carentes (sic), especialmente no artesanato (tecelãs, oleiras, entalhadoras etc.) e na moda
(artesãs do couro, joalheiras, tecelãs de juta e seda, bordadeiras etc.)” (idem). Ou seja,
segundo o relatório a contribuição a equalização dos gêneros se dará quando a mulher
transitar do estágio de pessoa carente (?) para o de artesã do couro.
Um outro aspecto do documento são as parcerias globais para o desenvolvimento. É
relativizado ali as contribuições a serem encaminhadas para os “países do Sul” para que estes
“cumprissem suas metas da DDM” (p. 35). As propostas ordenadas reforçam os interesses
neocolonialistas dos países do centro capitalista. Vejamos como eles enxergam estas
“contribuições”:
Parcerias globais podem melhorar a produção cultural e os
prospectos comerciais dos países em desenvolvimento por meio de
iniciativas concretas para (a) facilitar maior acesso ao mercado global de
atividades culturais e produtos e serviços criativos; (b) facilitar a mobilidade
de artistas do mundo em desenvolvimento aos principais mercados,
oferecendo tratamento preferencial a artistas, performistas e profissionais
culturais; (c) promover programas de construção de capacidades a fim de
melhorar as habilidades de negócios, o empreendedorismo cultural e a
compreensão dos direitos de propriedade intelectual; (d) facilitar a
transferência de novas tecnologias da informação e da comunicação e outras
ferramentas para a criação e distribuição de conteúdo criativo digitalizado;
(e) facilitar o acesso a financiamentos e atrair investidores, incluindo
esquemas para coproduções, empreendimentos conjuntos e acordos de
investimento (idem).

É transparente a forma em que se pontua a relação dos países centro-periferia do


capitalismo. As intenções de expansão do mercado são explícitas quando se reivindica a
facilidade de acesso ao mercado de “atividades culturais”, na contribuição para “capacitar
empreendedores culturais”, na transferência de novas tecnologias e investidores financeiros
para os países ditos, segundo o relatório, “em desenvolvimento”.

494

V V
Um outro tópico interessante é o que trata das estratégias para a inclusão social da
juventude. O trecho abaixo é fundamental para compreendermos o porquê a economia criativa
poderia contribuir com esse objetivo:
As artes e demais atividades culturais são comprovadamente um
meio eficiente de envolver em trabalho produtivo jovens que, de outra
forma, poderiam estar desempregados e, talvez, correndo risco de estarem se
comportando de forma antissocial. O trabalho criativo pode proporcionar um
senso de propósito em vidas que, de outra forma, estariam improdutivas; o
envolvimento nos vários tipos de produção pode elevar a autoestima e a
consciência social. Nesse aspecto, o estímulo às indústrias criativas locais
pode resultar em oportunidades de geração de renda para jovens de áreas
rurais, ajudando a desencorajar a fuga para as cidades, o que frequentemente
contribui para o problema da juventude marginalizada ( (Relatório da
Economia Criativa 2010 - Economia Criativa: uma opção de
desenvolvimento viável, 2010), p.25).

Conforme a citação aborda, as “artes e demais atividades culturais” cumprem agora


um papel de inserir a juventude num trabalho produtivo ao invés de estarem enquanto
“desviantes da ordem”. Há inclusive uma reflexão psicologizante, onde o jovem ao funcionar
de forma produtiva, estaria elevando sua autoestima e consciência social11, desprezando
questões como as relações de trabalho precárias se sustentam também na Economia Criativa.
O mais interessante é julgar a indústria criativa como um potencial regulador do “êxodo rural”
e desprezar questões dos países periféricos como concentração de terras, além de,
logicamente, culpabilizar a juventude em relação ao aumento da marginalidade, ao invés do
debate sobre políticas públicas direcionadas a essa faixa. O que não é novidade quando se
reitera que “as estratégias da economia criativa têm sido usadas de forma bem-sucedida pelas
autoridades locais e ONGs, a fim de oferecer oportunidades [...] a adolescentes que são
econômica e socialmente excluídos e, portanto, expostos à delinquência” (idem). Ou seja, o
terceiro setor surge como alternativa as relações trabalhistas formais e vem a contribuir na
ampliação e consolidação do trabalhador precariado.
Reis (2008) apresenta quais são os desafios dos países em “desenvolvimento” para a
aplicação da economia criativa. Há uma preocupação latente com constituição de política
direcionadas à economia criativa no aspecto que congregue todos os setores:
Um dos maiores desafios para o fomento à economia criativa nos
países em desenvolvimento é a articulação de um pacto social, econômico e

11
Segundo o relatório da OMS lançado em 2014, ocorre uma epidemia de suicídios a nível mundial. Uma pessoa
a cada 40 segundos se mata. Depois dos maiores de 70 anos, as principais vítimas são a juventude que
corresponde dos 15-30 anos. A maioria se encontra nos países periféricos do capitalismo que, segundo o
relatório, se mata por questões “socioeconômicas”. Fonte:
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/131056/1/9789241564779_eng.pdf?ua=1 Acessado em 15/01/2015.

495

V V
político entre os setores público, privado, a sociedade civil, a academia e as
organizações multilaterais, no qual cada um tem um papel muito claro. [...]A
parceria público-privada, por exemplo, não se insere em um contexto de
projeto, mas de programa de desenvolvimento. (p. 35).

Reis (2008, p. 36) em sua análise separa o poder público do privado. E indica que o
papel do primeiro seria do “investimento em infraestrutura, em capacitação, a implementação
de mecanismos de financiamento e fomento a empreendimentos criativos com diferentes
perfis, o alinhamento das políticas setoriais, a instituição de um marco regulatório e jurídico
que sustente a economia criativa e a participação ativa em negociações internacionais”. O
Estado funcionaria como construtor da estrutura para a realização da economia criativa em
todas as esferas (física, financeira e educacional).
Já ao setor privado caberia “aproveitar filões intocados, inovar, explorar novos
mercados e novos mecanismos de atingir antigos mercados, encontrar formas alternativas de
negócios, estabelecer parcerias com outras indústrias criativas e outros setores econômicos e
rever o relacionamento que estabelece com a sociedade, os fornecedores e os canais de
distribuição” (idem). Ao setor privado caberia o esforço de ampliar suas redes e seus lucros.
Reis (2008, p. 37) destaca que o poder público deve identificar as “necessidades e
potencialidades de cada agente privado e do terceiro setor, posicionando-se acerca de quais
interesses representar”.
Reis (idem, p. 46-47) acredita que a economia criativa é “o emblema de um novo ciclo
econômico, que surge como resposta a problemas globais renitentes, que motiva e embasa
novos modelos de negócios, processos organizacionais e institucionais e relações entre os
agentes econômicos e sociais”, ou seja “a economia criativa parece apresentar de fato
potencial significativo para promover o desenvolvimento socioeconômico, aproveitando um
momento de transição de paradigmas globais para reorganizar os recursos e a distribuição dos
benefícios econômicos” (p. 47).
Aspectos defendidos pelos idealizadores da economia criativa como terceiro setor,
desenvolvimentismo econômico e valorização da cultura popular vem a convergir com as
propostas do Ministério da Cultura a partir de 2002. Porém, a institucionalização da
Economia Criativa no Brasil só viria ocorrer em 1º de junho de 2012, através do Decreto

496

V V
774312, onde se criava a Secretaria da Economia Criativa (SEC) na gestão de Ana Buarque de
Holanda (2011-2012).

Conclusão
Nesse sentido, nos cabe uma reflexão quanto ao apelo do debate da “Economia
Criativa” no campo das políticas públicas culturais para os países da periferia do capitalismo.
Quais dimensões do poder público ela atravessa e sucumbe ao terceiro setor. Seus
desdobramentos no mundo do trabalho e a condução de suas proposições ao formar
“empreendedores criativos”, profissão responsável em gerar valor através da cultura.
Reconhecer o propósito destas novas políticas advindas do bojo do capitalismo
contemporâneo que avançam sobre as diversas esferas da sociedade, no caso, a cultura, torna-
se de fundamental importância para melhor explorarmos questões alternativas a área, que não
a engessem sob o molde da legitimação da mercadoria. Diante disso, há de reconhecer as
limitações da economia criativa no que compete a uma fundamentação da cultura que convirja
com tais valores acima questionados.

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12
Embora a secretaria já havia sendo criada em 2011, só foi reconhecida legalmente em 2012. Cabe ressaltar que
a criação desta é o resultado das contribuições fundamentais das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira (2003-
2010).

497

V V
UMA UNIVERSIDADE POPULAR DE CULTURA EM JUAZEIRO DO NORTE?
Felipe Teixeira Bueno Caixeta1

RESUMO: Primeira sistematização de informações sobre o processo de elaboração da


política Universidade Popular de Cultura, desenvolvida pela Prefeitura de Juazeiro do Norte
em conjunto com o grupo a ser beneficiado pela política cultural. Ao aportarem saberes na
tessitura da proposta UPC, os participantes evidenciaram o apartheid das culturas e as
injustiças ambientais a que estavam expostos, dinâmicas que produziam danos ao patrimônio
e descontinuavam atividades de ensino, pesquisa e extensão que mestres, praticantes e
ativistas vinham mantendo.

PALAVRAS CHAVES: Patrimônio Cultural, Educação, Política Cultural, Universidade,


Democracia.

Neste artigo procuro recuperar informações sobre uma política desenvolvida no


âmbito da secretaria municipal de Cultura de Juazeiro do Norte (Secult-JN) de julho de 2009
a outubro de 2010, período quando exerci o cargo comissionado de assessor de cultura deste
município de 250 mil habitantes localizado na região Cariri Cearense. Em outubro de 2008,
com a participação dos movimentos sociais da cultura, aconteceu uma alternância de poder
em Juazeiro do Norte, com a derrota de um grupo político partidário desgastado e a eleição de
um inédito prefeito do Partido dos Trabalhadores, que encampou no programa de governo
uma antiga, sonhada e nunca atendida reivindicação, especificamente, a organização de uma
universidade popular onde os chamados mestres da cultura pudessem pesquisar, trocar,
transmitir e praticar seus saberes, com mecanismos de renda para continuarem seus modos de
vida com maior justiça social.
De acordo com os continuadores das chamadas culturas de tradição, estes vinham
sendo prejudicados por políticas que privilegiavam produtos midiáticos, mercadológicos e
cartelizados, um apartheid de culturas expresso, por exemplo, nas festas do calendário
municipal, quando prefeitura, Estado e Igreja contratavam bandas-empresa por 300 mil ou
mais Reais, enquanto para reisados, coco, música cabaçal e outras expressões do patrimônio
imaterial da cidade do Padre Cícero, a ajuda era 300,00 Reais e paga meses após os eventos,
depois dos mestres darem incontáveis, degradantes e kafkanianas viagens à prefeitura.
Universidade de Cultura Popular ou Universidade Popular eram termos que frequentavam as
ruas como bandeiras para a superação do histórico apartheid das culturas. Assumida pelo

1
Jornalista graduado pela ECO/UFRJ, videodocumentarista independente, mestrando do programa Cultura e
Territorialidades da Universidade Federal Fluminense – PPCULT/UFF. Email: f.caixeta@gmail.com

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candidato petista, a promessa de implementar a universidade popular acendeu a esperança,
gerou um quadro de mobilização dos mestres, os grupos acreditaram no agora vai, entraram
com peso na campanha e depois da vitória nas urnas se lançaram com entusiasmo no processo
da UPC-JN, mobilizado pela Secult do governo da Revolução Democrática.
O tema Universidade de Cultura Popular ou Universidade Popular vem sendo
teorizado, problematizado e experimentado por departamentos e pró-reitorias de
universidades públicas, por sindicatos, secretarias estaduais e municipais em Fortaleza,
Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro, pelos ativistas dos Ocupas, quilombolas, por ongs,
intelectuais e artistas no campo e na cidade, em toda superfície do planeta. Existem propostas
simultâneas que conceituam o que pode vir a ser e arriscam orientar como deveria funcionar
uma universidade popular.
Será que os mestres e os processos de criação, produção e transmissão das culturas
pela oralidade podem ser adequados, enquadrados e engessados na Universidade de
concepção acadêmica? Se nosso objetivo pudesse ser agora analisar e comparar propostas de
Universidade Popular no Brasil, ficaríamos gratos e satisfeitos com a tarefa, visitaríamos José
Jorge de Carvalho (UNB), MST – Escola Florestan Fernandes, Aldeia Maracanã
Universidade Indígena no Rio de Janeiro, as baianas do acarajé da UFBA, o Fórum de
Ciência e Cultura da UFRJ e o grupo de Fortaleza onde estão Oswald Barroso, Rosemberg
Cariri e Otávio Menezes, para pensar virtudes, inconsistências e idiossincrasias dos projetos,
se as ideias dialogam, para verificar se universidade popular é hipótese viável na teoria, na
prática e na política. Campo vasto e povoado, estimulante, rico e disputado, uma vez que
dispomos de pouco tempo e espaço textual para apreciá-lo aqui, para não incorrer em
simplificações, proponho adentrarmos a experiência de elaboração da política Universidade
Popular de Cultura em Juazeiro do Norte (UPC-JN), nossa forma de contribuir para o debate.
O que temos é o tempo suficiente para uma caminhada de 15 minutos juntos. A
entrada da trilha que seguiremos estará encoberta pelo mato – depois de violentas contendas e
difíceis acordos sociais, o capim guiné plantado em 1988, hoje alto acima do rosto porque
nunca plenamente colhido, não será obstáculo ou inconveniente, ele nos servirá de proteção e
amparo, são as leis do país.
Antes de iniciarmos a vereda sertaneja, vamos mirar a outra senda por onde
poderíamos escolher desviar, alguns a conhecem bem, o pórtico é amplo mas o acesso
estreito; muito procurada, quem a percorreu sabe que conduz a labirintos entre abismos, a
penhascos escarpados e paredões, que placas de orientação podem confundir e só com

499

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sacrifícios colossais as vilosidades abismais são vencidas. Esses precipícios e picos significam
as teorias, o método acadêmico e sua imensa dificuldade implicada em pensar, definir,
relacionar e problematizar cultura, popular, tradição, raiz, identidade, diferença, cultura
popular, educação, educação popular, universidade. Observemos a diferença de sentido de
Universidade de Cultura Popular e Universidade Popular de Cultura. O primeiro pico eleva a
ideia de que existe uma cultura popular sem poder definir o que isto seja? O segundo
desdepartamentaliza a cultura e pensa o que é a organização popular de um lugar de saberes,
simbólica ou oficialmente uma Universidade?
No Brasil para ser reconhecida pelo Ministério da Educação é imprescindível a
Universidade Pública observar o princípio da indissociabilidade entre atividades de Ensino,
Pesquisa e Extensão; sabemos também que setores da academia vem discutindo a reforma
universitária, como tornar a universidade mais popular, democrática e presente no território,
problematizando a ética na pesquisa, a qualidade do ensino e a não departamentalização das
áreas do conhecimento.
Nos encontros em Juazeiro, trabalhamos a ideia Universidade Popular de Cultura com
a hipótese de que uma imensa Universidade Popular paralela já está porque sempre esteve em
pleno funcionamento, com atividades em rede que se caracterizam por Ensino, Pesquisa e
Extensão. Para reconhecer, para poder enxergar seu rizoma, ver a seiva que flui pelas raízes
que se tocam em sinapses produzindo vida, requer política cultural.
Agora andemos, sem mais demora, partamos na persiga do destino Universidade
Popular de Cultura, gerado por mestres e grupos de reisados, bandas cabaçais, coco, maneiro
pau, guerreiro, lapinhas, quadrilhas juninas, artistas plásticos, xilógrafos, artesãos,
intelectuais, políticos, ativistas e outros em Juazeiro do Norte. Depois de cruzarmos a mataria
dos direitos culturais, visualizaremos o campus Cariri e como a universidade paralela,
resistente e clandestina que ali labora se constituiu. Rastreada a vereda segura, avistaremos
pés de saborosas frutas plantadas por mestres a quem seremos apresentados, com sorte
algumas frutas podem estar maduras para serem degustadas. Enquanto saborearmos o mel,
perfumes de flores e nativas com cores de Brasil profundo poderão perturbar os sentidos. Em
nossa vereda encontraremos marcas sulcadas no tronco das árvores pelos antigos romeiros do
Padre Cícero, para que ninguém se perdesse no caminho e a compartilha da paisagem
caatingueira tornará tão agradável o percurso que nos despediremos com vontade de quero
mais.

500

V V
A floresta dos direitos culturais
Extensa e densa como uma mata tropical virgem, a legislação brasileira se impõe em
códigos, capítulos, artigos, parágrafos e incisos que regulam todas as dimensões da vida do
cidadão. No Artigo 3.o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei 4.657 de 04
de setembro de 1942) e cuja redação final está na Lei 12.376 de 2010, que trata do princípio
da publicidade, está dito “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.
Em vista desta ordinária presunção, justifico a escolha da passagem por entre os matos, cipós
e caules que regem e amparam o campo da cultura.
De acordo com o Artigo 23 da Constituição, é competência comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger os documentos, as obras e outros bens
de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens e os sítios arqueológicos;
impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor
histórico, artístico ou cultural; proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à
ciência. Ao lado de proteger o patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico, cabe ao
poder público e aos cidadãos a responsabilidade por danos ao meio ambiente, a bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
No Artigo 30 da carta maior do país, está escrito compete aos municípios promover a
proteção do patrimônio histórico-cultural local e no Artigo 215, lê-se o Estado garantirá a
todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará
e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais; protegerá as manifestações
das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional. Já o Artigo 216 define que o poder público, com a
colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação. O parágrafo 4º do Artigo 216 informa “os danos e ameaças ao
patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei” e o inciso LXXII do Artigo 5.o mostra
como agir no caso de violação dos direitos culturais.
“qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise
a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de
custas judiciais e do ônus da sucumbência.”2

2
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

501

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A ação popular a que o inciso se refere são as Ações Civis Públicas, procedimentos
que são instaurados a partir de uma provocação de um cidadão ou coletivo organizado ao
Ministério Público Federal ou Estadual, quando procuradores e promotores intimam as partes
para investigar os danos, ajustar condutas, fixar multas e reparações.

O Campus Cariri
O Cariri, na porção localizada no sul do Ceará onde está Juazeiro do Norte, recebeu
moradores não índios nos começos do século XVIII, quando desbravadores da branca e nobre
estirpe da Casa da Torre atingiram e se apropriaram do fértil vale nas franjas da Chapada do
Araripe, um planalto rochoso encravado na fronteira dos estados do Ceará, Pernambuco,
Paraíba e Piauí, onde se encontram ecossistemas caatinga, cerrado e Mata Atlântica e ainda
hoje com o desmatamento desenfreado, especulação imobiliária inescrupulosa e apropriação
indevida de recursos hídricos, continuam potáveis mais de 100 fontes. Como um oásis
cercado pela aridez do sertão adusto, antes dos colonos cristãos colocarem botas e cruzes ali,
o território era percebido como sagrado – era a “Terra sem Males” dos índios Cariri. O lugar
já foi mar - pesquisas arqueológicas e paleontológicas identificaram fósseis de peixes, insetos,
dinossauros, artefatos indígenas e pinturas rupestres nos pés de serra. Os primeiros colonos
teriam vindo da Bahia pelo ano de 1705, os brancos subindo o Rio São Francisco em busca
de mais terras e índios, os negros e índios fugindo dos brancos desde o massacre dos
Palmares; a porta de entrada teria sido o atual município de Missão Velha, onde a fragorosa
cachoeira derrama o Rio Salgadinho, o Ganges do Sertão do Padre Cícero, antes um curso de
água percebido como sagrado por produzir curas milagrosas, hoje poluído por esgotos
domésticos e industriais a ponto de ser uma ameaça à saúde pública. “E tudo que importamos
da terra bahiana, de Sergipe, Alagoas e Pernambuco, chegou-nos antes da imigração
provocada pelo Padre Cícero Romão” (FILHO, 1962). Os colonos reduziram a resistência
indígena na Missão do Miranda, atual município de Crato, fundaram fazendas para o gado e
com o trabalho dos negros e índios inscreveram o território na Civilização do Couro,
conforme a definiu o historiador Capistrano de Abreu, colega de Padre Cícero no Seminário
da Prainha em Fortaleza de 1866 a 1868.
Juazeiro do Norte era um distrito de Crato chamado Tabuleiro Grande e quando
o Padre Cícero Romão Batista (1844-1934) celebrou sua primeira missa na Capela de Nossa
Senhora das Dores no Natal de 1872, relatos de contemporâneos colhidos por Otávio Aires de
Meneses registram que o arruado contava 30 casas. Em terra conflagrada por medições de

502

V V
poder entre coronéis políticos, assolada por secas como a dos três anos (1877-79) e
cangaceiros, o Padre Cícero durante sua longa e conturbada vida recebeu a ricos e pobres com
igual gentileza e atenção, não cobrou por serviços religiosos, aconselhou a paz, intercedeu
pelos famintos e miseráveis junto ao Império e à República, preocupou-se com a destruição e
a entrega da Amazônia a estrangeiros, fez circular a riqueza, fixou o homem no campo e
orientou o trabalho pela agroecologia, colocando cultura e meio ambiente como temas
centrais do desenvolvimento.
“Não plante em serra acima nem faça roçado em ladeira muito em
pé; deixe o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se
perca a sua riqueza. Plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju,
de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só…”
(WALKER, 2010, p. 52).

Cícero já era lendário pelo seus bons conselhos, por apaziguar conflitos, por não
cobrar por serviços religiosos e pelo desprendimento material, quando numa vigília popular
por chuvas em março de 1889, dez anos após a seca de 1877-79, uma hóstia teria se
convertido em sangue na comunhão da beata Maria de Araújo, na presença de dezenas de
pessoas na capela de Nossa Senhora das Dores. A notícia do “Milagre da Hóstia” tornada
pública pelo Padre Francisco Monteiro, reitor do Seminário São José de Crato, correu mundo
pelos jornais, pelas cartas do jornalista José Marrocos, seguiu de boca a ouvido pela poesia
matuta, o cordel e a viola do cantador. Ter sido ou não o sangue de Jesus que jorrou na hóstia
trouxe romeiros, estimulou a economia e alavancou uma questão religiosa com implicações
políticas no contexto da perseguição da Igreja e da República aos beatos, os missionários do
catolicismo popular brasileiro; o caso chegou ao Vaticano deturpado pelo bispo cearense D.
Joaquim Vieira, resultou na suspensão de ordens (1892) e na excomunhão do Padre Cícero
(1917).
A prática humanista do Padre Cícero, os fatos inexplicáveis que se repetiram com a
beata Maria de Araújo como êxtases, estigmas, transes e hóstias que viravam sangue, as rezas
e curas que ela alcançava nos enfermos, associados `as condições propícias da Chapada do
Araripe para a agricultura e a pecuária, as feiras e o comércio coruscante de Juazeiro
motivaram o deslocamento de milhares de refugiados para resistir ao lado do padrinho
perseguido. Acampados debaixo das árvores na porta da casa do padre, os romeiros eram
recepcionados com água, sorriso, benção, comida, carinho e conselho; quando chegava a vez
de ser recebido, narrava ao Padre Cícero dramas, tragédias e dilemas, falava da profissão e os
ofícios que sabia realizar, pedia autorização para trazer a família e morar em Juazeiro. Entre

503

V V
os adventícios, chegaram habilidosos inventores, artífices, artesões, artistas que trocaram e
convergiram com mestres locais na música cabaçal, literatura de cordel, artesanato, no
Reisado, inventando a tradição dos Quilombos no Ciclo de Reis, erguendo bases materiais e
simbólicas da universidade popular que ali viceja e procuramos entrever o rizoma.
“Padre Cícero compreendia que a mocidade precisa divertir-se
honestamente e dava licença para brincarem o Reisado cujas figuras principais
eram o Mateus, o Doutor, o Boi, a Burrinha, o Rei e a Rainha. Nas casas onde
brincavam, representavam comédias, jogavam sortes para recolherem
dinheiro e cantavam (...) ao som de violas, rabecas e harmônicas. Era um
alegrão que se gozava particularmente durante as festas do Natal, Ano e
Reis”. (DINIS, 1935, p. 128).

Com o Padre Cícero, Juazeiro tornou-se potência política, econômica e baluarte de


culturas de resistência, clandestinas e não hegemônicas, continuadas por mestres moradores e
romeiros nos silêncios sepulcrais dos locais sagrados e de modo irredutível no dia de Reis, 06
de janeiro, o dia de todas as culturas saírem às ruas, popularmente chamado Quilombo.
Atualmente Quilombo está sendo o costume de reisados e bandas cabaçais percorrem às ruas
em cortejos, com visitação a residências e igrejas onde tiram Divino cantando peças antigas,
devocionais ao Padre Cícero ou de composição mais recente nas toadas de valsa, baião ou
repinico de viola. Quando durante os cortejos dois ou mais reisados se encontram acontece
um jogo de espadas; na véspera de Reis os grupos confeccionam o “trono da rainha” com
folhas trançadas de palmeira macaúba, onde encerram as festejos dramatizando cenas como a
guerra e o roubo da rainha.
No segundo semestre de 2009, Juazeiro abrigava 61 grupos chamados de tradição
cultural, quase todos sediados em bairros e ruas com esgoto a céu aberto e restrição no
fornecimento de água, desprovidas de sistemas de saúde ou educação eficientes, locais onde
cumulava-se desemprego, tráfico de drogas, desavenças por motivos fúteis, assassinatos e
violência policial. Quando os grupos apareciam nas datas santas e festivas, quase todos
surgiam com a estrutura debilitada, os trajes maltrapilhos, faltava brincante no cordão e
comida na barriga, entretanto, na maioria deles era possível ver correr o rizoma da cultura.

O apartheid de culturas
Em pesquisas domiciliares para ouvir mestres e praticantes sobre as dificuldades que
enfrentavam para a continuidade das atividades que desenvolviam, foi relatado que o desprezo
do Estado e a morte dos mestres sem a transmissão dos saberes, a permanente precariedade
material em que viviam, a intensa pressão dos produtos da cultura de massa pelo rádio, a Tv e

504

V V
nos eventos sobre as crianças e a juventude, a sedução do consumo causada pela inserção do
Cariri na economia internacional com a vinda dos shoppings, das marcas e costumes
consumistas, os danos causados pelo poder público ao patrimônio cultural por destinar
praticamente todos os recursos públicos para financiar artistas empresariados ou em outros
fins não tão evidentes, o equívoco de produtores culturais que espetacularizavam, exploravam
a imagem dos grupos a troco de migalhas e cobravam que as apresentações da tradição
fossem encurtadas para tomarem o menor tempo nos eventos, entre outros fatores, estariam
provocando o rompimento do fio da memória, uma quebra na sequência geracional, ilhando
os mestres e sua sabedoria, a experiência dos anciãos não estaria sendo partilhada com os
jovens que não valorizavam mais a cultura ou dialogavam com os mestres.
Em geral trabalhadores egressos da agricultura e pecuária, artesões do couro, gesso,
madeira, barro, bordado, palha, ambulantes, carroceiros, pedreiros, ferreiros, funileiros,
carpinteiros, sapateiros, empregados domésticos, garis, os mestres e brincantes sobreviviam
como podiam: com a mundialização do Cariri, com a entrada das marcas, dos artistas e dos
piratas ade in Anywhere, a indústria artesanal doméstica autônoma perdeu o mercado e
aconteceu de mestres irem trabalhar no lixão da Palmeirinha para alimentar filhos e netos, com
o conhecimento dos gestores e autoridades municipais da Cultura. Ao tempo em que imagens
genéricas da tradição natalina do reisado ou de bandas cabaçais figuravam em outdoors, eram
vendidas como elementos identitários distintivos do território, quando mestres e brincantes se
organizavam em torno de direitos, procuravam o poder público ou as entidades privadas que
atuavam com produção cultural, não encontravam uma escuta para suas considerações e
propostas, eram ignorados ou alvo de falas racistas, preconceituosas, saíam criminalizados
pela mídia e as autoridades que não raramente os enunciavam como abjetos, associando
principalmente o reisado e o Quilombo, o setor mais organizado, a uma cultura de marginais,
brutos, ladrões, bandidos, a um povo acostumado à sujeira e incapacitado para a civilização.
Mestres diziam que o fio da memória do reisado e do Quilombo estava sendo rompido
por razões que extrapolavam o controle deles. Se antes uma miríade de caretas mascarados
percorria a cidade aboiando e celebrando com os moradores, no século XXI famílias e
comerciantes passaram a trancar as portas quando escutavam batida de zabumba ou chicote.
Produtos dos agenciamentos das dinâmicas de violência e exclusão a que crianças e jovens
estavam expostos, os caretas contemporâneos chamavam a si de “cão” (diabo), vestiam
máscara assustadora e portavam um longo chicote de câmara de pneu, que manejavam no ar e
golpeavam o chão produzindo estampido de tiro; os “cão” chegavam às dezenas na hora que

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os cortejos de reisado estavam para sair, corriam à frente abrindo caminho estourando chicote,
fazendo zoada, às vezes acertando alguém, pedindo dinheiro, provocando susto, medo, piada e
risos; quando acontecia um encontro de reisados, momento mais esperado e apoteótico da
festa, os mascarados que justificavam sua presença como “a proteção do reisado”, isolavam a
cena formando um cordão com os chicotes; no ambiente tenso, intimidavam, estimulavam
conflitos e respondiam insultos dos “cão”, brincantes e acompanhantes do outro lado.
Os mestres estavam com medo de tirar Quilombo pois intrigas e revanches de
brincantes por causa de mágoas nascidas em antigos ferimentos de espada, roubos de rainha e
desmoralizações, o porte de arma de fogo por brincantes e acompanhantes, sentimentos
identitários competitivos, disputas territoriais entre comitivas e a atitude de indivíduos que se
mascaravam para de forma anônima resolver rixas pessoais vinham favorecendo situações de
descontrole emocional, tumulto generalizado, agressões físicas e mortes nos encontros de
reisado. Somado ao problema, políticas de planejamento urbano desrespeitaram e demoliram o
patrimônio histórico arquitetônico, os carros ocuparam as ruas do brincante-pedestre,
motoristas passavam em alta velocidade ignorando a segurança dos cortejos; foi mencionado o
despreparo da polícia, nunca presente para prevenir as confusões, quando aparecia revistava,
agredia, tratava os brincantes como animais, criminalizava e apreendia inocentes. Mestres e
brincantes discutiam e perguntavam, o que fazer?
A partir de setembro de 2009 a secretaria mobilizou reuniões entre mestres e brincantes
de tradição cabaçal, natalina, junina, violeiros, xilográfos, ouviu cineastas, universidades,
padres, políticos, artesões, pesquisadores, ativistas, com o intuito de elaborar uma política
capaz de atingir as dimensões simbólicas, cidadãs e econômicas da Cultura, abraçar, abranger,
estruturar, salvaguardar e desenvolver o patrimônio cultural local. Com os olhos postos no
futuro, os mestres superaram intrigas e se lançaram `a tarefa de discutir a Universidade
Popular de Cultura, definindo os Quilombos, o dia de todas as culturas saírem às ruas, “o dia
quando podemos viver a nossa liberdade”, conforme expressou uma das mestras de reisado,
como estratégia de abordagem, estabelecendo cronograma de ações para inaugurar a UPC-JN
com prédio, mestres, colaboradores e aprendizes no centenário municipal em julho de 2011.

Mas afinal quem é o mestre da Cultura?


O antropólogo Clifford Geertz escreveu que:
“à medida que a cultura, num passo a passo infinitesimal, acumulou-
se e se desenvolveu, foi concedida uma vantagem seletiva àqueles indivíduos
da população mais capazes de levar vantagem — o caçador mais capaz, o

506

V V
colhedor mais persistente, o melhor ferramenteiro, o líder de mais recursos
— até que o que havia sido o Australopiteco proto-humano, de cérebro
pequeno, tornou-se o homo sapiens, de cérebro grande, totalmente humano.”
(GEERTZ, 1989, p. 35)

Quem foi o caçador, coletor, agricultor, cozinheiro, artista, artesão, construtor ou


ferramenteiro mais hábil, capaz de desenvolver saberes e técnicas que teriam produzido
mudanças na morfologia do corpo humano tornando-nos como somos hoje, com dedos das
mãos articulados, a espinha ereta e erguida do solo? Quem terá sido esse cujos saberes e
práticas beneficiaram e fizeram avançar as coletividades a que pertenciam, material como
simbolicamente? Este que se destacou por ser o membro mais talentoso, criativo e persistente,
por compartilhar as memórias dos antepassados por meio de narrativas que resultavam na
coesão e na sociabilidade equilibrada do grupo, este que pelo talento incomum continua a
angariar respeito, reconhecimento, exerce a liderança e ascende à figura central das narrativas
dos seus pares, é o mestre da cultura. Para Daniel Bitter, que estudou folias de Reis no Rio de
Janeiro, o mestre é quem detém o conhecimento necessário para conduzir as ações do grupo e
mediar todo tipo de situação, ele tem o domínio do conhecimento ritual, o fundamento.
Agora vamos imaginar a revolução industrial e o advento da sociedade moderna
baseada na economia de mercado capitalista, liberal e global. De 1780 a 1830, periodiza Karl
Polanyii, aconteceu a desarticulação das comunidades e culturas tradicionais, como pré-
requisito e resultado da implantação das fábricas e da economia de mercado, para que nas
cidades de desolação os exércitos de desterrados não tivessem outra escolha senão vender a
força de trabalho para pagar por moradia e alimento. Nesta triste e fatal passagem está
localizado um debate que mobilizou bastante a época e cujos efeitos se estendem até os dias
de hoje - o tema da educação dos pobres. Thompson registra que para Bernard de
Mandeville, um dos mais prestigiados ideólogos liberais, os pobres não deveriam ser
alfabetizados e também não devia lhes ser ensinado aritmética, a eles caberia fazer funcionar a
produção e viver circunscritos aos saberes da profissão. Mestre do couro, mestre carpinteiro,
mestre do flandres, mestre ferreiro, mestre de obras, porém excluído da escola e da
universidade, da administração da manufatura, da compreensão do funcionamento da
economia, das decisões sobre as políticas de apropriação dos benefícios ambientais e da
distribuição dos lucros. O apartheid produziu a falsa premissa da existência de uma alta
cultura civilizada, acadêmica, científica, caracterizada por uma suposta erudição e circunscrita
aos detentores do capital, e de uma baixa cultura, uma cultura popular, inferior,
subalternizada, que não era arte ou ciência.
507

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Fora das universidades, impedidos de participar dos benefícios econômicos e da
civilização, os mestres continuaram a dialogar entre si, a aprimorar saberes por meio da
oralidade e das práticas cotidianas; de forma ágrafa, teceram redes de conhecimentos
sistematicamente apropriados pelo mercado e a universidade. No labor fabril, no plantio e na
colheita dos cereais, na pescaria, nas oficinas de trabalho os aprendizes observavam e
aprendiam junto aos mestres; ao tempo em que trocavam experiências, cantavam cantigas de
amarras de arroz e de pega do boi, ouviam conselhos e narrativas com fundo moral que
produziam subjetividades, constituindo um patrimônio imaterial imenso que é uma sabedoria
testada, retestada e aprendida.

Os participantes da elaboração da política cultural


Vamos identificar mestres, lideranças, brincantes, grupos e outros que participaram
dos debates da UPC na Secult, sediada no campus Pirajá da Universidade Regional do Cariri
(URCA). Faltam muitos nomes nesta lista, pedimos perdão a quem não for mencionado.
Participaram da elaboração da política cultural UPC-JN: Participaram da elaboração da
política cultural UPC-JN: Domingos Francisco da Rocha, Banda Cabaçal Padre Cícero;
Mestre João Lopes, Banda Cabaçal Bom Jesus do Horto; Mestre Expedito Antônio do
Nascimento, Banda Cabaçal Santo Expedito; José Antônio da Silva – Mestre Chico, Banda
Cabaçal Santo Antônio; João Bosco Ferreira Paz, Banda Cabaçal São João Batista; Mestre
Augusto Felipe de Andrade, Banda Cabaçal Frei Damião; Francisco Antônio de Souza, Banda
Cabaçal São Francisco; Mestre Tarcísio Mendes da Silva, Banda Cabaçal São Bento e
Reisado São Miguel; Maria Auxiliadora Evangelista, Banda Cabaçal Meninos Maluvidos;
Mestre Manuel Amaro; Banda Cabaçal Santo Amaro; Cícero Francelino da Silva, Banda
Cabaçal Manuel Messias; Mestra Vicência Lima Gomes, Banda Cabaçal São Vicente Mirim e
Reisado Cosme e Damião; Mestre Sebastião Cosmo, Banda Cabaçal São Sebastião e Reisado
São Sebastião; Carlos Gomide, Banda Cabaçal Beata Maria de Araújo - União dos Artistas da
Terra da Mãe de Deus; Maria Pereira da Silva (Dona Tatai), Lapinha Santa Clara; Mestra
Josefa Alves Francelino, Lapinha Sagrada Família; Maria das Dores Bernardino dos Santos,
Lapinha Bom Jesus do Horto; Antônia Pereira da Silva, Lapinha Menino Jesus de Praga;
Vicência de Oliveira (Tia Tôta), Lapinha Menino Jesus; Maria da Penha Alves da Silva,
Lapinha Sagrada Família; Josefa Pereira Lima, Lapinha Três Reis Magos; Dona Fátima
Cosmo, Lapinha Nossa Senhora Aparecida; Maria de Lourdes, Lapinha Santo Expedito;
Mestre Antônio Ferreira Evangelista, Reisado Discípulos de Mestre Pedro; José Antônio dos

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Santos (Mestre Mosquito), Reisado Nossa Senhora das Dores; Mestra Maria Margarida da
Conceição, Guerreiras de Joana D’Arc; Francisco Felipe Marques (Mestre Tico), Reisado
Coração de Jesus; José Matias Filho, Reisado dos Franciscanos; Maria José da Silva, Reisado
Estrela Guia; Reginaldo Caixeiro, Reisado Santa Bárbara; Luiz Cláudio da Silva, Reisado
São Luiz; Manoel Amaro dos Santos, Reisado São Benedito; Clotilde Antônia de Menezes,
Reisado Santa Terezinha; Francisco Bento da Silva, Reisado Frei Damião; Raimundo Félix da
Silva, Reisado Juvenil dos Franciscanos; Valdir Vieira de Lima, Reisado São Miguel; Mestre
Antônio Félix Bagaceira, Reisado São Jorge; Mestre Cícero Frank da Silva, Reisado Manoel
Messias; Maria Flaviana, Guerreiras de Santa Madalena; José Nilton de Souza, Reisado
Mirim Menino Deus; Francisco Juventino – Mestre Dodô, Coco do Mestre Dodô; Mestra
Marinês, grupo Na Pancada do Ganzá - Coco Frei Damião; Manoel Antônio da Silva – Mestre
Bigode, Maneiro Pau Padre Cícero e Grupo de Bacamarteiros Padre Cícero; Raimundo
Ferreira Evangelista – Mestre Raimundo, Maneiro Pau Mestre Raimundo; Mestre Assis
Cachoeira, Palhaço Mateus; Dona Maria do Horto, Cantora de Benditos; rabequeiro José
Oliveira; Pedro Bandeira, cantador e poeta; Mestre Leôncio, Grupo de São Gonçalo; Stênio
Diniz e Lira Nordestina, xilógrafos; Janjão, artista plástico; Auto Filho, Secretário de Estado
de Cultura do Ceará; Rosemberg Cariri, cineasta; Jesualdo Teixeira, reitor da UFC; Aloisio
Teixeira, reitor da UFRJ; Juca Ferreira; ministro da Cultura; entre outros.

O processo de elaboração
Juazeiro do Norte estava atravessada pelos interesses do neodesenvolvimento
industrial, imobiliário, especulativo e comercial, a cidade santuário era um contexto de
produção de injustiças ambientais graves, de exploração desumana do trabalho e de crimes
contra a cultura. Aqueles que detinham o capital cultural, os mestres, residiam em guetos
onde era imposta a poluição, desemprego, pobreza e violência policial, enquanto a renda e
benefícios ambientais como o acesso à água eram concentrados por uma minoria que não
ligava para a cultura e se isolava em mansões em condomínios para usufruir e multiplicar
riquezas.
A partir de julho de 2009, na contagem regressiva da celebração do centenário
municipal em 22 de julho de 2011, após atualizar o inventário encontrado na secretaria, a
assessoria especial convocou mestres, violeiros, xilógrafos, artesões, pesquisadores, ativistas e
outros para reuniões de mobilização, quando apresentaram os problemas que enfrentavam
para a transmissão dos saberes e sustentabilidade das culturas que distinguiam o Juazeiro do

509

V V
Padre Cícero. Com o intuito de construir uma política capaz de atingir as dimensões
simbólicas, cidadãs e econômicas da Cultura, de promover a inclusão social dos brincantes e a
transmissão dos saberes para as novas gerações, os mestres discutiam e brigavam, em uma das
reuniões dois companheiros trocaram socos por causa de intrigas de reisado, mas com o
apaziguamento dos ânimos voltaram para a sala e continuaram no debate. O objetivo político
comum, a instalação da Universidade Popular, mobilizou, aproximou, fez relevar desavenças
e trouxe a compreensão que a despeito do grau de implementação do grupo ou da capacidade
do mestre, todos precisavam estar incluídos para que a política fosse exitosa: como primeiro
fruto do trabalho, em janeiro de 2010 realizou-se um Dia de Reis dos sonhos, com 54 grupos
locais e quatro de Crato, com apoio financeiro equânime para os grupos e sem registros de
violência nos encontros de reisados.
As reuniões de mobilização para a UPC continuaram a ser convocadas no embalo dos
Quilombos. IPHAN, Cariri Filmes, Ministério da Cultura, UFC, UFPE, UFRJ, Secretaria da
Cultura do Ceará foram ouvidos, aportaram elementos e criaram uma rede de apoio a
proposta. Projeto pedagógico, carga horária e ementas, necessidades materiais e orçamentos,
cronograma e plano de trabalho foram organizados na colaboração dos mestres. Em maio de
2010 a ideia foi apresentada ao Ministro da Cultura Juca Ferreira em Fortaleza; em um
segundo encontro com o ministro em julho de 2010 no Congresso Brasileiro de Cinema em
Porto Alegre, Juca solicitou a presença do prefeito de Juazeiro em Brasília para definir a
participação do ministério no centenário e na consolidação da UPC.

Qual Universidade pensamos para o Brasil que sonhamos?


O que Juazeiro do Norte elaborou é uma Universidade cuja missão será garantir a
transmissão das ciências que vêm do povo e a transformação do destino da região onde está
inserida. Uma instituição autônoma e livre, com a missão de pesquisar e transmitir saberes em
prol do desenvolvimento humano e do respeito ao meio ambiente, valorizando os mestres e as
ciências do povo, estabelecendo diálogos com saberes de origem acadêmica, superando a
departamentalização do conhecimento, qualificando práticas e formando cidadãos, provendo
reconhecimento profissional para que alunos possam atuar em benefício das novas gerações,
motivando a transformação do território no caminho da equidade ambiental e justiça social.
Para a Universidade ser Popular, quatro questões foram consideradas: (1) o acesso
discente e docente; (2) o projeto pedagógico; (3) o modelo de gestão; (4) o compromisso ético
em formar cidadão dedicados a uma sociedade socialmente justa e ambientalmente

510

V V
equilibrada. Os autores definiram que a UPC deveria receber docentes e discentes letrados e
iletrados oriundos dos grupos de tradição, do ensino fundamental e médio, programa Pró-
Jovem e universidades, independentemente de idade. Como a seleção de professores e alunos
envolveria ágrafos, o acesso seria por entrevista e provas práticas aplicadas pelos mestres.
O projeto pedagógico foi organizado em (1) Disciplinas Práticas a serem ministradas
pelos mestres, (2) Disciplinas para formação cidadã a serem professadas por técnicos e (3)
Estágios. Ao ingressar na UPC, o aluno escolheria quais disciplinas práticas e de formação
cidadã cursar no período de aprendizagem e a frequência nos estágios validaria a vaga no
período seguinte. O mestre identificaria quando a formação do aprendiz estivesse completa,
com emissão de documento onde a qualificação reconhecida facilitaria a inserção na rede de
ensino. Foram elencadas como disciplinas de formação cidadã: Alfabetização; Letras e Artes;
Direito e Administração Pública; Comunicação e Educação Crítica para a Mídia; Produção
Cultural; Economia da Cultura; História; Ecologia e Meio Ambiente; Saúde e Segurança
Alimentar. Foram definidas como disciplinas práticas: Agroecologia, agricultura Urbana e
Reflorestamento; Artesanato (todas as linguagens); Artes visuais; Artes plásticas; Confecção
de instrumentos musicais; Música; Canto; Dança; Teatro; Práticas de conjunto (todas as
linguagens da tradição); Produção audiovisual; Bioconstruções; Gastronomia; Vestuário e
moda; Ourivesaria. Já os estágios trabalhariam Reflorestamento e Agricultura Urbana;
Edificações e saneamento ambiental; Artesanato; Produção cultural; Moda; Culinária.
O modelo de gestão foi um dos temas mais disputados pois pessoas do poder público
defendiam o controle da nomeação dos gestores da UPC pelo prefeito, enquanto os ativistas
entendiam gestão popular como participação da comunidade nas decisões sobre políticas e
ações, por meio de um Conselho Gestor eleito por professores, alunos e funcionários. A
remuneração de instrutores e equipe de apoio foi pensada e obedece uma tabela de valores e
auxílio com cesta básica; os alunos teriam bolsa equivalente a do Pró-Jovem. O quadro de
pessoal estava proposto com 40 mestres e 20 técnicos para cadastrar e selecionar os
interessados. Custeio de pessoal, construção e manutenção de infraestrutura, aquisição de
material, compra e manutenção de itens permanentes foram orçados para aportes federais e
custeio por meio de rubrica no orçamento municipal aprovada por lei.
A política cultural que propõe implementar a universidade paralela manteve dela a
autonomia popular: os quadros para a gestão eram oriundos dos grupos participantes, um
prédio foi cedido pelo município, o plano era ocupar também casas abandonadas do
patrimônio histórico, que seriam ativadas com tecnologia ecológica. A escuta junto aos

511

V V
mestres (pesquisa), a transmissão e prática dos saberes de um modo não departamentalizado,
não centralizado em um único local mas considerando as sedes dos grupos nas periferias e na
zona rural como espaços de aprendizagem, aliando mestres de cultura oral, acadêmicos e
autodidatas para abrir acesso a uma base cultural e de formação política ampla, não
circunscrita aos saberes da profissão (ensino), alinhadas com a presença no território com a
produção e a circulação dos bens culturais (extensão), ao lado de laborarem para que o
Juazeiro fosse realmente um lugar bom para viver, uma terra com menos males, respondiam
as três perguntas do MEC sobre o tabu do que pode vir a ser ou não Universidade.

Conclusões preliminares
O aprendizado da elaboração da proposta UPC é que cultura é feita por gente, sem os
mestres, brincantes, qualquer proposta seja Universidade Popular ou Universidade de Cultura
Popular, Escola, Espaço ou Liceu nunca será plena, pois o arquivo vivo terá sido
desperdiçado. Assistência médica adequada, alimentação regular e de qualidade, moradia
digna são ações básicas, deveres do Estado e direitos dos cidadãos. O estado precário de
cuidados de saúde dos mestres, o ambiente insalubre dos guetos onde vivem confinados, as
relações assimétricas com as instituições atravessadas pelo apartheid das culturas constituem
situações de calamidade pública, exigem medidas de emergência como auxílio médico, cestas
básicas, democratização das decisões políticas e orçamentos participativos. Regente maior do
apartheid, o Estado comete crime de dano ao patrimônio cultural, pelos quais prefeitos,
governadores, secretários, presidentes deveriam estar respondendo. Observa-se que o
Apartheid se reproduz dentro das administrações, onde Ministério e secretarias de Cultura são
os mais desprestigiados, sofrem ingerências dos cartéis e dos políticos, têm políticas e
orçamento desrespeitados, são obrigados a operar com quadro de indicados por trocas de
favores ou coalizões partidárias, insuficiente e despreparado para as demandas da pasta.
Depois do encontro com o ministro Juca em Porto Alegre, bombardeado por
vereadores que legislavam em causa própria, pressionado por grupos partidários e de
interesses privados, o prefeito de Juazeiro seguiu uma orientação de doar a secretaria de
Cultura, desligou a assessoria da UPC antes da viagem a Brasília e colocou a política cultural
na geladeira. O prefeito não levou em conta que os mestres não possuíam poder econômico
mas eram lideranças e virar as costas para eles custou a reeleição em 2012. A revolta com a
Revolução Democrática dividiu os votos, ressuscitou o antigo grupo político e como era de se
esperar, com a volta da velha política, o caos agravou.

512

V V
Observa-se que a memória estimulante das discussões da UPC e da vivência fraternal
dos Quilombos em 2010, a experiência adquirida pelos participantes e as informações
sistematizadas alicerçaram bases para uma política cultural participativa e com objetivo social
abrangente; ao lado dos prodígios e talentos, diagnosticou-se conflitos do território, como
combater e superar o apartheid das culturas, como colaborar para a justiça social com
equidade ambiental em Juazeiro e no campus Cariri. A UPC tornou-se um candeeiro aceso em
um contexto obscuro e pouco democrático, onde a ordem tem sido concentrar renda e poder,
desprezar a gente, a vida e a cultura do povo. Será nesta luz que nos despediremos agora, uma
vez que atingimos o destino de nossa breve caminhada juntos.

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513

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https://onedrive.live.com/view.aspx?cid=BEC46EFDAB0C3601&resid=bec46efdab0c3601%218613
&qt=sharedby&app=WordPdf4

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V V
NATA: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA DO
CANDOMBLÉ
Fernanda Barros1
Pedro Almeida2

RESUMO: Este artigo se desenvolveu a partir de observações do Núcleo Afro-brasileiro de


Teatro de Alagoinhas (NATA). O qual através de cantos e contos interfere na construção
histórico-social a respeito do Candomblé. Cornelius Castoriadis (1982) afirma que o
conhecimento é social e historicamente construído a partir da instituição imaginária da
sociedade. Ao observarmos outra cultura, costumes ou valores, concebemo-os a partir do que
ele chama de nosso próprio “mundo imaginário”. O trabalho do NATA aborda através da
oralidade a realidade do candomblé, desmistifica-a, e trabalha como um (re)significador de
símbolos ligados a cultura afro, símbolos estes que para certos grupos foram historicamente
construídos a partir de perspectivas unilaterais e de subjugo, gerando significados imaginados
de forma divergente às manifestações reais.

PALAVRAS-CHAVE: Candomblé, Imaginário, Oralidade.

INTRODUÇÃO
Este artigo foi elaborado a partir do imbricamento entre teoria e constatações
situacionais. O carácter etnográfico do presente texto vem de observações e vivencias de
campo, tanto em terreiros de Candomblé, como em espetáculos do Núcleo Afro brasileiro de
Teatro de Alagoinhas – NATA. A modalidade de ser “afetado” proposto por Jeanne Favret-
Saada (1990) no texto Être Affecté foi fundamental no modo o qual foi vivenciado o campo.
Este conceito é fundamental para pôr em questão o tratamento paradoxal do afeto – Contato
extremo com, ser atingido por – Que em geral, autores e pesquisadores ignoram ou negam na
experiência humana, gerando argumentos sem o devido “conhecimento de causa”.
O tema abordado já esteve presente em trabalhos posteriores dos autores deste artigo.
Trabalhos que buscaram narrar a formação do Núcleo em questão e em meio a este processo
identificou mitos e cantos que fazem parte do repertório do grupo, e a partir desta
identificação buscaram promover um mapeamento de como os trabalhos do grupo NATA
reverberam na mente do ator em cena, do público que os assiste e dos que fazem suas

1
Aluna especial do Programa de Pós Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia.
Graduada em Comunicação Social – Produção Cultural pela FACOM (UFBA) e cursando o Bacharelado
Interdisciplinar em Humanidades pela mesma instituição. E-mail: nandabarros21@gmail.com
2
Pedro Almeida Pereira da Silva é graduando no Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades do IHAC-
UFBA, bolsista IC CNPq no projeto “Narrativas” da Chapada Diamantina e voluntário no projeto de extensão
Canto do Conto. E-mail: almeida_ps@hotmail.com

515

V V
oficinas. O longo tempo demandado para uma boa analise de qualquer cultura é
fundamental, tanto de acordo com Saada (1977) em seu famoso trabalho Les Mots, Les morts
et les sorts que mudou horizontes antropológicos contemporâneos a obra, como nas
primeiras análises culturais do séc. XX. A exemplo, em 1911, Franz Boas já citava a
necessidade de observação a partir das micronarrativas, para assim constituir o geral, já que
cada cultura é uma unidade integrada, fruto de um desenvolvimento histórico peculiar. O
trabalho de recolha das micronarrativas requer tempo, cautela, e habilidade de escuta.
A perspectiva de micronarrativas, citada a cima, é fundamental no universo em
questão. Já que a oralidade transmite não só a história como regras de convívio social e
ideologias do grupo estudado. A premissa de que a tradição dos terreiros e princípios do
Candomblé são passados através da oralidade entre gerações, nos levou a estudar todo um
referencial teórico sobre narrativa e oralidade, o qual não pôde se desprender de teorias sobre
imaginário, principalmente por estarmos falando de um ambiente, artístico e religioso
revestido de construções social-históricas, ou seja construções imaginárias.

NATA, INSTRUMENTO DE (RE)SIGNIFICAÇÃO


O Núcleo Afro brasileiro de Teatro de Alagoinhas - NATA, fundado em 17 de outubro
de 1998, na cidade de Alagoinhas, surgiu de um Festival Estudantil de Teatro, no qual
representava o Colégio Estadual Polivalente de Alagoinhas. Nestes quase 16 anos de
trabalho a Cia. de Teatro NATA vem realizando montagens teatrais, oficinas, leituras
dramáticas, e movimentando o espaço teatral com projetos que discutem, divulgam e, acima
de tudo, valorizam a cultura afro-brasileira.
Durante o mês de dezembro de 2013 o grupo produziu os Saraus Noites Afropoéticas
como parte do projeto Exu Sile Oná, dirigido pela diretora teatral Fernanda Júlia e
apresentado no Teatro Castro Alves em Salvador. O espetáculo foi o vencedor do Edital Em
Construção o qual contemplou uma companhia teatral local, promovendo um intercâmbio
com um grupo de outro estado ou país para juntos realizarem uma grande "ocupação"
no Teatro. A ocupação ocorreu através deste sarau onde foram recitadas poesias criadas
através de Orikis, do NATA e criadas pelos alunos da oficina Crônicas Urbanas e Exu.
Para o presente trabalho os Saraus Noites Afropoéticas estão como um dos eventos de
maior relevância em termos de analises de campo. Eles possibilitaram o ambiente propício
para análise da teoria em um ambiente onde uma manifestação de ressignificação da cultura

516

V V
afro, esteve em pleno TCA, teatro mais famoso e tradicional da capital baiana. Porém o
trabalho do grupo vai muito além deste espetáculo.
No ano de 2009, com a finalidade de colaborar no processo de divulgação, manutenção
e valorização da herança ancestral africana, montaram o espetáculo Siré Obá – “A festa do
rei”. Uma homenagem aos Orixás e ao povo de santo do Brasil, construída
dramaturgicamente através dos Orikis, sua encenação inspirou-se nos rituais das
Comunidades de Santo (Ilê Axé) da Bahia.
Siré Obá realizou temporadas no Teatro Vila Velha em Salvador, na cidade de
Alagoinhas onde se apresentaram no Centro de Cultura e em quatro Comunidades de Santo
(Ilê Axé) do município. Participaram também do III Fórum Nacional de Performance Negra e
encerrou o I Festival de Teatro do Subúrbio de Salvador. O espetáculo recebeu ainda três
indicações ao Prêmio Braskem de Teatro 2009: Melhor espetáculo adulto, direção revelação
para Fernanda Júlia (diretora e autora) e categoria especial para Jarbas Bittencourt, pela
direção musical.
Ainda como parte do projeto Sirê Obá, a Cia. de Teatro NATA realizou em agosto do
último ano o I IPADÊ – Fórum NATA de Africanidade, que reuniu Yalorixás, Babalorixás, a
comunidade de santo, e artistas em geral para discutirem questões relacionadas ao
Candomblé. Os trabalhos desenvolvidos pela Cia. possuem como eixo norteador a história,
cultura e religiosidade afro-brasileira, com o intuito de desmitificar os preconceitos e as
imagens equivocadas que habitam o imaginário social e historicamente instituído.
Em 2010 a Cia de Teatro NATA estreou o espetáculo Ogum - Deus e Homem
montagem premiada pelo I Prêmio Nacional de Expressões Afro brasileiras patrocinado pela
Fundação Cultural Palmares, Ministério da Cultura e CADON, com patrocínio da Petrobras e
do Calendário de apoio a projetos da Fundação Cultural do Estado da Bahia. “Ogum” realizou
temporada em 2010, no Teatro Martim Gonçalves, em Salvador, participando também do
Festival A Cena Tá Preta, do Bando de Teatro Olodum em novembro do mesmo ano.
Em 2011 foram convidados a integrar o quadro de grupos residentes do Teatro Vila
Velha, e para comemorar realizaram uma temporada de Siré Obá no Cabaré dos Novos do
Teatro Vila Velha. No ano seguinte, realizaram uma temporada do espetáculo Sirê Obá, em
04 terreiros de Candomblé de Salvador e mais 08 terreiros no interior da Bahia.
Enquanto isso, o grupo de Alagoinhas, interior da Bahia, apresenta produções
artísticas e culturais preenchidas por total respeito à crença, pureza de sentido e significado.

517

V V
Possibilitando ainda que as pessoas que os assistem a conhecerem um pouco do dia-a-dia
dos adeptos, sejam eles iniciados ou não na religião.
Além das montagens já nomeadas, outros espetáculos como: Axé: Origem, encanto e
beleza (2000), Senzalas “A história, o espetáculo” (2002), Axé! (2003), e outros pelo Brasil e
exterior, fazem parte da lista de trabalhos já realizados que além de toda discursão estética
colaboraram no combate a intolerância religiosa sofrida pelas Comunidades de Santo,
instaurando a discussão e provocando reflexões.

CANDOMBLÉ, CONSTRUÍDO A PARTIR DE IMAGINÁRIOS INCOMUNS


“A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora”
(CASTORIADIS, 1982, pg. 176). Ele (o imaginário) está na raiz tanto da alienação como da
criação da história. O simbólico, é utilizado não somente para exprimir-se, o que é obvio, mas
para existir, para passar do virtual a qualquer coisa mais. Então é importante perguntar-nos:
Por que esse sistema de símbolo é o vigente e não outro? Por que não creditar as construções
simbólicas dos demais imaginários?
Crenças, que também são construções simbólicas, são situacionais, e estão diretamente
relacionadas com o imaginário. Quando há uma determinada crença, não quer dizer que haja
um mundo fechado, que não leve em conta conceitos científicos ou religiosos. Mas sim, que
tais conceitos e crenças estão entrelaçados de acordo com a construção social-histórica do
sujeito em questão.
A perspectiva situacional de uma crença se comuta como qualquer outro aspecto
cultural sustentado pela oralidade. “O que chamamos de cultura, [...], é na verdade um
conjunto múltiplo e multidirecional de fluxos de sentido, de matérias e formas de expressão
que circulam permanentemente, que nunca respeitaram fronteiras, que sempre carregam em si
a potência do diferente, do criativo, do inventivo, da irrupção” (MUNIZ, 2006. p. 3). Com
essa ideia proposta por Muniz é que se deve observar as narrativas e produções afro-culturais,
como em constante processo de mutação.
Na discussão sobre pesquisa social-histórica, Cornelius Castoriadis (1982) afirma que o
conhecimento é social e historicamente construído a partir da instituição imaginária da
sociedade. Assim, ao observarmos a cultura, os costumes e os valores de outras sociedades, de
outros lugares e de outros tempos, estamos fazendo a partir das concepções do que ele chama
de nosso próprio “mundo imaginário”.
Este “mundo imaginário”, é revestido de crenças e estórias e se apresenta em
construções únicas em cada indivíduo. Sempre singular, e a depender dos influenciadores

518

V V
dessas crenças e estórias, podemos construir pontos de vistas extremamente divergentes e
muitos deles alicerçados em perspectivas totalmente distorcidas.
Os Saraus Noites Afropoéticas foram criados em homenagem a Exu. Trabalho que teve
a oralidade como principal meio de comunicar ao público as histórias que envolvem o orixá
tido por muitos como diabo. Tal associação entre o orixá, e a maligna criação cristã, só
evidencia as divergências entre imaginários concebidos em e por ambientes diversos, e
sempre constituem-se em construções singulares. A latente negatividade atribuída a tal
associação é fruto de um processo de colonização, racismo e acima de tudo, desconhecimento
absoluto do Candomblé.
Diante de recorrentes “misconceptions” com relação a religiões de matrizes africanas, e
neste trabalho principalmente o Candomblé, este projeto é produzido motivado em entender
certos enquadramentos das narrativas a partir da oralidade e elucidar como estes elementos
ajudam o grupo e os fazem levar arte-educação para os espectadores. O que ocorre é uma
investigação sobre os contos, poesias e músicas contadas e cantadas pelo Núcleo e com a
apropriação de teorias, compreender os efeitos que o trabalho afro-cultural produz no seu
público.
A informação, a respeito de hábitos e ritos de um determinado grupo social é essencial
para um construção fidedigna de uma opinião a seu respeito. O grupo NATA, além de levar
artisticamente aspectos da cultura afro-brasileira para ambientes importantes, o que repercute
em valorização e reconhecimento da diversidade, age como um grupo arte-educador. A
relação com a arte, sutiliza a transmissão do conhecimento. Tanto para o emissor como para o
receptor.
É preciso salientar que o papel fundamental da Cia. é comunicar as histórias dos orixás
e do povo de santo com qualidade aos que os assiste. Imprescindível, também, destacar o
fato de ser o único grupo teatral do interior do Estado da Bahia que tem como linha de
pesquisa as narrativas afro-brasileiras. O trabalho realizado pelo grupo ao longo desses anos
vem ganhando destaque e força no cenário cultural baiano (nacional e internacional) por
meio de festivais e parcerias com outros grupos que assim como eles, tratam a arte de se
expressar com responsabilidade.

Além ainda, da afinidade dos integrantes do grupo com a crença nos orixás e
ensinamentos passados dentro da vivência do Candomblé que, possivelmente, contribui para
que as histórias cantadas e contadas marquem não só a eles, mas, aos que os assistem.

519

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A HISTÓRIA SENTIDA ATRAVÉS DA ORALIDADE
É inquestionável o papel exercido pelas narrativas na formação dos sujeitos. Através das
histórias são passadas regras de convívio social, elementos para formação de caráter do
indivíduo, situações que fazem refletir sobre atos e consequências, portanto, de forte conteúdo
moral, significativo para determinado contexto e lugar. Dessa forma, pode-se considerar
importante entender e respeitar essas regras (questionar quando for o caso), formas de
sociabilidade e valores históricos, é essencial para os sujeitos que delas participam e para
aqueles que com eles interagem.
O valor estético da oralidade é consideravelmente relevante na arte da contação de
história. Possibilita mudar por completo o entendimento e a atenção dada a uma narrativa.
Cabe ao narrador saber como utilizar, e capturar o imaginário através do ritmo, da fala, das
pausas, das ausências, para transformar a história contada em matéria-prima para os atores e o
público. Ong afirma que podemos observar a significação, o poder, da enunciação oral sem ter
como base o artifício da escrita.
Também não causa surpresa que povos orais – comumente – e talvez
universalmente – considerem que as palavras são dotadas de grande poder. O
som sempre exerce um poder. (...) Nesse sentido, todo som – especialmente
a enunciação oral, que vem de dentro dos organismos vivos – é “dinâmico”
(ONG, 1998).

O autor traz a ideia do pensamento apoiado à cultura oral, e considera ambos atrelados
a comunicação. De acordo com Ong, existe um desprendimento de energia natural quando
transmitimos narrativas orais de modo contínuo. Krenak vai mais além e traz a ideia da não
necessidade (entre as comunidades, povos e tribos) de datar as histórias transmitidas de
geração em geração. Para ele, “já existe uma memória puxando o sentido das coisas”
(KRENAK, 2006).
E é justamente a partir desta perspectiva de narrativa e
oralidade, que se pôde produzir o projeto aqui descrito. Valorizando as
narrativas e posicionando-as como instrumento fundamental para
entendimento do engendramento das relações.

Ao analisar os referenciais teóricos deste artigo é observado o quanto a perspectiva de


narrativa e oralidade é cabível para análises que envolvam o Candomblé. Uma vez que, para
os que conhecem o Candomblé (mesmo que pouco), observa-se que nesta vertente religiosa
o que se sabe na maioria das vezes é passado de geração em geração ao longo da história e
sem uma memória escrita, datada.

520

V V
Nos Saraus utilizados para análises, há contos e mitos expostos na cena e que
foram (certamente) passados sem ter necessariamente o apoio, a base da escrita (como
Walter Ong dialoga em “A Psicodinâmica da Oralidade”). Histórias contadas e cantadas que
não tem o apoio da cronologia, no decorrer do tempo perdem o sentido, dado o valor pelo
que está sendo transmitido no momento em que é contado, a “energia natural desprendida”. –
Como sugere Aílton Krenak em “Antes, o mundo não existia” e Ong (1998).
A discursão sobre oralidade elucida o motivo pelo qual muito do que se sabe hoje
sobre um mesmo mito das religiões de matriz africana, como o Candomblé, é sabido de
maneiras diferentes. Um exemplo são as músicas dos rituais, que em muitos terreiros é
cantada de outra maneira (até dentro de uma mesma nação), e as histórias também são
(muitas vezes) contadas de jeitos diferentes.
Ainda assim, podemos notar nos adeptos um conhecimento e “apropriação” muito
grande acerca das divindades, mitos e cantos que envolvem toda a história desta religião. E
quanto a isto, podemos citar o autor Ong que em seu texto sinaliza, “a redundância, a
repetição do já dito, mantém o falante quanto o ouvinte na pista”. (1998, Pg. 51). Ele
considera a redundância uma característica do pensamento e da enunciação através da
oralidade e dá um sentido mais natural ao pensamento. Ou seja, quando não se há o recurso
da escrita a história passada ganha um tom muito mais real.
Por outro lado, Walter Ong considera que apenas com o recurso da oralidade
fica difícil o enunciador fazer todos não só ouvirem, mas, compreenderem o que foi dito.
Quando trazemos estas visões para o que foi apresentado no Sarau do Grupo NATA
podemos nos certificar que o apoio dos elementos artísticos deve contribuir para o que é
passado para quem os vê no momento em que estão em cena.
“A memória verbal é, compreensivelmente, um trunfo valorizado nas
culturas orais. Mas o modo como a memória verbal funciona em formas
artísticas orais é muito diferente daquele que os indivíduos pertencentes à
cultura escrita do passado comumente imaginaram. Numa cultura letrada, a
memorização literal é geralmente feita com base em um texto ao qual o
memorizador retorna tantas vezes quanto necessário para aperfeiçoar e testar
o domínio daquela memorização” (ONG, 1998).

Assim como na transmissão de crenças, nos espetáculos teatrais o uso da memória


verbal (em especial dos contemporâneos) é, também, considerada um trunfo ao artista, que
ao ato da repetição daquela narrativa absorve melhor o que é transmitido do “emissor para o
receptor”. Ong traz ainda que a força da oralidade possui uma ligação com o sagrado, com o
que o autor denomina “preocupações fundamentais da existência”. Em seu texto é possível
521

V V
ler que: “Na maioria das religiões, a palavra falada exerce uma função fundamental na vida
cerimonial e devota”. (Pg. 88).
Alfredo Bosi propõe a ideia de que uma série de rituais que envolvem gestos, danças
e certos ritmos musicais são fundamentados em um sentido imemorial, sagrado. E cita como
exemplo, alguns movimentos que podem se assemelhar com movimentos vistos na natureza,
por pássaros e peixes. Em contraponto a Walter Ong, Bosi afirma a não existência de sentido
das coisas quando nos referimos ao sagrado.
Tem-se como exemplo, o objeto aqui estudado, em que as expressões proferidas na
noite da apresentação do Sarau, mantêm vivos no imaginário de cada um os mitos e canções
passadas de geração a geração por quem vive o dia-a-dia do Candomblé. E para aqueles que
não o vive, a possibilidade de uma construção de sentido propiciada por mensagem, criadas
e transmitidas por quem a vive de verdade.
Se na teoria podemos perceber a análise dos autores no que se refere à oralidade,
escrita, imaginário, comunidade e (até mesmo) o sagrado, na prática, podemos observar em
espetáculos culturais (como o Sarau em “homenagem” a Exu) todos estes elementos
atrelados uns aos outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Determinadas narrativas que relatam e cercam tudo que é referente à História do
Candomblé foram ao longo do tempo distorcidas, muito particularmente por estarem (quase)
sempre a margem da sociedade. E quando eu me utilizo desta expressão “a margem”, quero
referir-me a uma parcela da sociedade que está fora (social e historicamente) do que
considero ser a linha condutora que leva a sociedade ao conhecimento, seja cultural, político,
histórico ou religioso.
O Candomblé é tido por muitos com um tom descaso, irresponsabilidade e
acima de tudo, falta de respeito, a exemplo das festas de santo. Quem conhece esta religião
sabe que estas festas são apenas 10% do Candomblé, e em Salvador, estas se encontram até
em guia de turismo de muitos passeios disponibilizados para turistas. Na contramão desta
realidade, o grupo NATA nos apresenta narrativas dotadas de respeito à crença, pureza de
sentido e significado. E ainda, possibilita as pessoas que os assistem a conhecerem um pouco
do dia-a-dia dos adeptos.
O Núcleo de Alagoinhas, nestes 16 anos de trabalho vem realizando espetáculos
teatrais, oficinas, leituras dramáticas, e movimentando o espaço cultural com projetos que

522

V V
visam discutir, divulgar e valorizar a cultura Afro-brasileira em Alagoinhas, Salvador e em
grande parte do interior do Estado da Bahia, participando inclusive de eventos culturais fora
da Bahia e do Brasil3·.
Além do mais, a afinidade dos integrantes do grupo com a crença nos orixás e
ensinamentos passados dentro da vivência do Candomblé é o que, possivelmente, contribui
para que as histórias cantadas e contadas marquem não só a eles, mas, aos que os assistem.
Ao que chamamos de “conhecimento de causa”. Lyotard (2006) releva esse ponto quando
diz que “uma outra característica a assinalar é a afinidade de determinado saber com os
costumes”. (LYOTARD, 2006, pg. 36).
O conceito do conhecimento social-historicamente instituído foi fundamental para
compreensão das distorções, que foram construídas através de anos em nossa sociedade
racista, e tendenciosa aos interesses dos detentores do poder hegemônico. Além de um
trabalho artístico e religioso, o caráter político em função do apoio a diversidade cultural do
grupo NATA deve ser levado em conta, principalmente por trabalhar no maior polo de
cultura afro-brasileira, o qual infelizmente ainda sofre preconceitos. Apenas com o
reconhecimento, valorização e disseminação de uma determinada cultura é que pode-se
almejar horizontes menos discriminatórios que o contemporâneo. E assim é que trabalha o
grupo citado, reinvestido o Candomblé de significado para a sociedade a que pertence, o
reapropriado e o resignificado por e para novas gerações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1982.

FAVRET-SAADA, Jeanne. Les Mots, la mort et la sort. La Sorcellerie dans le Bocage. Paris:
Gallimard, 1977. 332p.

KRENAK, Aílton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto. Tempo e História. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. P. 201-204.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna. 9ª edição. Rio de Janeiro: José Olímpio,


2006. Capítulo 6: Pragmática do Saber narrativo. P. 35-43.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Fragmentos do discurso cultural: por uma análise crítica
do discurso sobre a cultura no Brasil. In: NUSSBAUMER, Gisele Marchiori. (org.). Teorias &
Políticas da Cultura: visões multidisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2007. P. 13-23

3
Realizaram apresentações na Bahia, São Paulo e Paraná, participando de Festival Internacional de Artes
Cênicas da Bahia (FIAC) e do Festival de Teatro de Curitiba, dentro da Mostra Baiana no FRINGE. Em 2013,
ainda se apresentou-se em Portugal.

523

V V
ONG, Walter. Oralidade e Cultura Escrita. São Paulo: Editora Papirus. 1998. Cap.3: Sobre a
Psicodinâmica da oralidade.

524

V V
POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO NA PERSPECTIVA DA CIDADANIA
CULTURAL: UM ESTUDO DO PROCESSO DE TOMBAMENTO DO CENTRO
HISTÓRICO DE NATAL/RN1
Fernanda Gabriela Biondo2
Fernanda Rocha de Oliveira3

RESUMO: Considerando o caráter político que as ações de preservação envolvem bem como
os avanços obtidos nas discussões sobre a democratização dos processos de
patrimonialização, este trabalho traz um esforço de análise sobre as políticas de preservação
como parte das políticas culturais, de modo a contextualizar possíveis discrepâncias entre o
discurso e a prática, apresentando como estudo de caso o tombamento ocorrido na cidade de
Natal-RN. Igualmente, traz o instrumento da Casa do Patrimônio como uma alternativa a ser
pensada quanto a suas potencialidades de promoção de transformação da realidade
preservacionista a partir do protagonismo social.

PALAVRAS-CHAVE: Democratização, Patrimonialização, Políticas Culturais, Casa do


Patrimônio, IPHAN.

“Todo poder emana do povo” 4.

INTRODUÇÃO
Se as políticas culturais de preservação são as que norteiam as decisões sobre o que
deve e o que não deve ser conservado enquanto patrimônio cultural, os critérios que as
constroem devem ser definidos e refletidos, pois seus resultados repercutem em toda a
sociedade. Cabe frisar então, primeiramente, a quê nos referimos quando citamos políticas
culturais de preservação. Sendo as políticas culturais um leque maior dentro do qual a

1
Este trabalho foi produzido no âmbito do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural
(PEP/MP) do Instituto de Preservação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN , com recursos
financeiros do IPHAN na forma de bolsa e auxílio pesquisa, no período entre 2013 a 2015.
2
Bacharel e licenciada em História pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista do Mestrado Profissional
em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN,
locada na Superintendência Estadual de Pernambuco. E-mail: fernanda.biondo@iphan.gov.br;
ferbiondo@gmail.com.
3
Formada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista do Mestrado Profissional
em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN,
locada na Superintendência Estadual do Rio Grande do Norte. E-mail: fernanda.oliveira@iphan.gov.br;
fernanda-arq@hotmail.com.
4
Constituição Federal de 1988, art. 1º, Parágrafo único.

525

V V
preservação do patrimônio se insere, valemo-nos da seguinte definição trazida por Teixeira
Coelho (1997) como ponto de partida:
Constituindo, antes de mais nada [...] uma ciência da organização
das estruturas culturais, a política cultural é entendida habitualmente como
programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis,
entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as
necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas
representações simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política
cultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por
esses agentes, visando promover a produção, a distribuição e o uso da
cultura, a preservação e divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento
do aparelho burocrático por elas responsável. (COELHO, 1997, p. 292).

Ou seja, mais do que a soma de políticas públicas setoriais – voltadas às belas artes, ao
cinema ou à preservação do patrimônio –, as políticas culturais articulam os diversos agentes
que intervêm no campo cultural como um todo, associando ações e relacionando os diversos
elementos que compõem as manifestações culturais de uma determinada sociedade. Segundo
Lia Calabre, atualmente, as políticas públicas culturais partem de uma perspectiva dialógica e
de construção coletiva, em detrimento de ações estatais verticais e centralizadas:
A compreensão contemporânea do tema é que se trata de uma
política pública que deve ser, necessariamente, elaborada a partir de um
pacto entre os diversos agentes envolvidos (gestores, produtores e
consumidores) e não em um movimento de mão única por meio do qual o
Estado determina o que será colocado em ação, quais práticas culturais
deverão ser exercidas e consumidas pela população, ou, ainda, como será o
atendimento dos interesses exclusivos das classes artísticas. (CALABRE,
2009, p.12).

Com base nisso, e tomando por referência os próprios instrumentos legais vigentes
sobre a temática, pode-se chegar ao entendimento de que as políticas culturais de preservação
seriam, então, aquelas que constituem o conjunto de ações que visam atender às necessidades
de salvaguarda daqueles elementos da cultura que configuram parte da identidade de
determinados grupos da sociedade. Elementos estes que podem se perder ou se transformar ao
longo do tempo, como a memória da população, simbolizada como um patrimônio ora
materializado em bens tangíveis, ora refletido em manifestações culturais imateriais.
A política cultural no Brasil foi concebida tradicionalmente sob o “braço forte do
Estado”. Durante o período monárquico, é conferida à cultura uma dimensão patrimonialista e
elitista. É quando, por exemplo, foi criada, “num país de escravos e analfabetos, a Biblioteca
Nacional” (DÓRIA, 2003, p. 16), em um contexto no qual preponderava a valorização e o
fomento das belas-artes e de uma concepção dicotômica de cultura: a “erudita”, própria dos

526

V V
intelectuais e artistas da classe dominante, e a “popular”, própria dos trabalhadores urbanos e
rurais - muitas vezes também denominada de “folclore” (CHAUÍ, 2006, p.13).
É durante o conhecido governo Vargas (1930-1945) que se desenharam as primeiras
políticas públicas no campo da cultura no Brasil. No Ministério da Educação e Saúde Pública,
Gustavo Capanema, acompanhado de um rol de intelectuais modernistas, promove diversas
ações de cunho cultural. Nesse período foram criados vários museus nacionais e regionais,
casas históricas, além do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),
incumbido de proteger e preservar o patrimônio nacional de interesse público5. Segundo
Cecília Londres Fonseca, “terminada sua gestão [Capanema], estava esboçado o desenho
básico da organização institucional da cultura no Estado brasileiro e plantado o embrião do
que, em 1981, veio a se constituir na Secretaria de Cultura do MEC e, em 1985, no Ministério
da Cultura.” (FONSECA, 2001, p. 85-86, apud CALABRE, 2009).
Ao longo dos anos foram se modificando as concepções e, por conseguinte, as formas
e instrumentos de atuação dos órgãos vinculados ao campo cultural. A Constituição Federal
de 1988 foi um divisor de águas do ponto de vista legal dentro das políticas culturais,
inclusive nas de preservação do patrimônio. Ela “criou garantias de democratização da gestão
pública da cultura, cuja expressão mais sólida é a determinação para que haja a ‘colaboração
da comunidade’ na atuação estatal de promoção e proteção do patrimônio cultural” (CUNHA
FILHO, 2010, p. 29, grifo nosso)6. Esta é, de fato, a grande contribuição da carta magna no
que diz respeito à definição de atribuições, papéis e responsabilidades no processo de
valorização e preservação do patrimônio cultural.
Além da mudança de perspectiva operada com o deslocamento dos sujeitos
atribuidores de valor, ações patrimoniais empreendidas a partir de então recebem respaldo
constitucional para a inclusão e a participação das comunidades na concepção e execução das
políticas patrimoniais, numa orientação de atuação compartilhada. Conforme apontam Pereira
e Machado (2008, p. 11), “a centralidade do Estado é substituída por relações contratuais
entre Estado e coletividades locais e cresce a importância da coordenação de atores com
interesses e lógicas diferentes.” Assim, são estabelecidas, segundo as autoras, as novas

5
A Lei 378 de 13 de janeiro de 1937 é responsável pela criação de alguns órgãos e pela reformulação de parte da
estrutura existente no Ministério da Educação e Saúde.
6
Constituição Federal de 1988, artigo 216, Parágrafo 1: O poder público, com a colaboração da comunidade,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio de registros, vigilâncias, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (Grifo nosso).

527

V V
“políticas da cidade”: parcerias, contratualização e negociações urbanas envolvendo
diferentes atores públicos e privados.
Assim, cabe aos órgãos de preservação passar por uma revisão profunda. Além de
mapear, identificar e proteger o patrimônio, deve possibilitar à sociedade participar de todo
esse processo, deslocando os centros de decisão para construir as ações de salvaguarda dos
bens. Segundo o historiador Ulpiano Meneses, até então
era o poder publico que instituía o patrimônio cultural, o qual só se
comporia de bens tombados. O tombamento, portanto, tinha papel instituinte
do valor cultural – daquele valor que credenciava a inclusão do bem num rol
formalmente definido. Ao inverso, a nova Constituição Federal reconheceu
aquilo que é posição corrente, há muito tempo, nas ciências sociais: os
valores culturais (os valores em geral) não são criados pelo poder público,
mas pela sociedade. O Patrimônio é antes de mais nada um fato social(…)
(MENESES, 2012, p. 33).

Neste trabalho vamos refletir sobre as políticas públicas culturais voltadas para a
preservação do Patrimônio Cultural, e as possibilidades de estas fomentarem a cidadania -
cidadania aqui entendida como o ato de ação e protagonismo da sociedade civil, construindo,
compartilhadamente com o Estado, tanto as próprias políticas culturais, como os meios pelos
quais estas podem, cada vez mais, ampliar o acesso e a garantia dos direitos sociais.
Neste sentido, vale trazer a definição apontada por José Afonso Silva quanto à
cidadania que, por sua vez, estaria estrategicamente encartada no primeiro título da
Constituição Federal vigente, correspondente aos Princípios Fundamentais:
A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de
direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o
reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal
(art. 5º, LXXVII). Significa aí, também, que o funcionamento do Estado
estará submetido à vontade popular. E aí o termo conexiona com o conceito
de soberania popular (parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos
(art. 14) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com
os objetivos da educação (art. 205), como base e meta do regime
democrático (SILVA, 2006, p. 36 apud CUNHA FILHO, 2010, p. 179).

Ao atrelar, no entanto, o conceito de cidadania ao de cultura, Cunha Filho (2010) faz


ressalvas por ser esta uma tarefa ainda bastante imprecisa, mas considera, em princípio, que
cidadania cultural seria a especificação, no setor da cultura, do princípio fundamental da
cidadania.

528

V V
ANÁLISE DA PROMOÇÃO DA CIDADANIA CULTURAL NOS PROCESSOS
DE PATRIMONIALIZAÇÃO

O papel da população nos processos de patrimonialização


A valoração7 dos bens culturais é tema muito debatido entre os profissionais do campo
da preservação do patrimônio cultural. E, se como afirma o arquiteto Leonardo Castriota
(2011, p. 50), no campo da preservação “os valores vão ser sempre centrais para se decidir o
que conservar” assim como para “determinar como conservar”, cabe refletir quais são os
atores que efetivamente vêm atuando na seleção destes valores. É válido frisar, no entanto,
que tais escolhas geram conflitos de interesses: governo, elites nacionais, populações locais,
acadêmicos e empresários valorizam e requerem do patrimônio de modos diferentes (ARIZPE
apud CASTRIOTA, 2011, p. 62).
Considerando, ainda, que o "princípio exclusivo de autoridade" de poucos definirem o
que é patrimônio não se sustenta mais (FONSECA, 2000, p. 15), é fundamental ouvir da
sociedade suas referências e significados. Para tal, ela deve se organizar, o que "pressupõe a
necessidade de se criarem espaços públicos, não apenas para usufruto da comunidade, como
para as próprias tomadas de decisão". Como aponta Márcia Chuva (2011, p. 163):
Os sujeitos produtores de sentido são vários, diferenciados e
deveriam ser confrontados em fóruns de discussão. Nas ações de proteção e
salvaguarda, os sujeitos a que nos referimos são aqueles cujas relações
estabelecidas com os bens culturais os tornam constituintes e constituídos
por tais bens, numa dialética construção de identidades por meio de elos
comuns ao grupo. Por haver uma concorrência para a atribuição de valores
por grupos que se diferenciam por interesses diversos, as políticas públicas
de patrimônio precisam, portanto, explicitar quem são os sujeitos que estão
sendo privilegiados, para que não se tornem políticas ‘lobistas’.

Cabe historiar que ao longo das gestões do principal órgão de preservação do país – o IPHAN
– vem sendo gradativo e lento o processo de democratização, efetivamente, das políticas de
patrimônio. Pode-se considerar que sempre ocorreram, em verdade, três processos em paralelo, não
obrigatoriamente sintonizados: o avanço dos conceitos, da legislação e da prática institucional.
Desde a última década de atuação do primeiro diretor, Rodrigo M. F. de Andrade (1937-1967),
já se verificava uma tendência acentuada de maior participação da sociedade na abertura dos processos

7
Cabe ressaltar aqui a diferença entre valoração e valorização dos bens culturais. O processo de valoração
constitui a atribuição de valor a um determinado bem, ou seja, a identificação e reconhecimento das referências,
símbolos e significados que determinado bem possui para determinado grupo social. Já o processo de
valorização pode se entendido no contexto das medidas de salvaguarda deste bem, ou seja, após ter sido
valorado, ações para garantir sua preservação constituem processos de valorização.

529

V V
de tombamento, seja através de intelectuais, prefeituras, ou mesmo por associações e grupos locais
(SANT’ANNA, 1995, p. 171).
Na gestão seguinte – de Renato Soeiro (1967-1979) – houve reações violentas em cidades
como Rio de Contas e Mucugê (na Bahia), nas quais os tombamentos federais se deram sem qualquer
participação popular. Foi nesse período (que abarcou a recessão econômica brasileira) que a população
também reivindicou melhorias na qualidade de vida, e a preservação do patrimônio passou a ser
incorporada ao planejamento urbano, descentralizando a atuação do IPHAN.
Na era de Aloísio Magalhães (1979-1981) a gestão do IPHAN assumiu ares mais
políticos, e entraram em cena novos conceitos, sendo colocada a necessidade de contribuições da
sociedade na tarefa da preservação, não apenas financeiras, mas também nas decisões de renovação,
vendo esta prática como sendo também de promoção social (SANT’ANNA, 1995, 193; 198). Fato
importante é que neste período tomaram força as ações do Centro Nacional de Referências
Culturais (CNRC, criado em 1975), que buscava meios de aproximação com as comunidades
locais, procurando identificar o ponto de vista dos sujeitos diretamente envolvidos na
dinâmica da produção, circulação e consumo dos bens culturais.
Foi também neste período que surgiram o Programa Integrado de Reconstrução das
Cidades Históricas (PCH) e, posteriormente, o Programa de Recuperação e Revitalização de
Núcleos Históricos (PRRNH), oficializado em 1985. O primeiro tinha o turismo como
discurso central, as verbas eram de origem pública e teve uma efetiva atuação; no segundo, a
comunidade passa a ser destaque no discurso de preservação urbana, sendo sua participação
considerada princípio metodológico a nortear as intervenções (SANT’ANNA, 1995, p.
190;192); buscou-se linhas de crédito junto ao Banco Nacional de Habitação (BNH), porém,
nunca foi efetivamente implantado. “Embora [o PRRNH] fosse um programa interessante e
afinado com as mais recentes recomendações internacionais, a SPHAN não deu a ele o devido
apoio, nem o grupo responsável por sua execução estava, aparentemente, articulado
politicamente para conseguir sua continuidade”. (Op. cit., p. 197). Tais avanços
acompanharam, obviamente, todo um cenário político cultural rumo à democratização do
país, que culminou na redação da Constituição Cidadã de 1988, a qual, conforme apontado,
institui a sociedade de poder decisório nas políticas culturais patrimoniais. A respeito dessa
constante tentativa de evolução, Cunha Filho traz uma citação interessante:
[...] mesmo considerando os equívocos a que todo processo de
maturação está submetido, notadamente o democrático, percebe-se a
existência de muitas ‘portas’ ao exercício da cidadania cultural, algumas das
quais, porém, estão apenas entreabertas, e outras fortemente cerradas. Tais
portas representam as potencialidades não exploradas ou, quando muito,
exploradas em níveis mínimos. (CUNHA FILHO, 2010, p. 196).

530

V V
Com a ampliação da demanda de ações visando à promoção efetiva deste
compartilhamento de responsabilidades no âmbito preservacionista entre Estado e sociedade
civil, surgiram diversas alternativas para a representação popular, a exemplo da realização de
audiências e da criação de órgãos colegiados - usualmente designados conselhos, comissões
ou comitês (CUNHA FILHO, 2010, p. 194). Para Pereira e Machado (2008, p. 17), estes
“‘órgãos híbridos’ [...] constituem uma nova forma institucional que envolve a partilha de
espaços de deliberação entre as representações estatais e as entidades da sociedade civil.”
Porém, quando ferramentas como estas não são utilizadas, ou são subaproveitadas, podem se
constituir algumas dessas “portas” semiabertas ou mesmo fechadas, deixando os resultados
aquém do esperado.
A seguir, nos propomos a analisar uma proposta do IPHAN que pode, na visão das
autoras, contribuir para o fomento do protagonismo social nas políticas preservacionistas: o
projeto Casas do Patrimônio.

Projeto Casas do Patrimônio do IPHAN


O projeto “Casas do Patrimônio” surge no âmbito do IPHAN, em 2007, por meio de
diversos debates internos, envolvendo profissionais do campo da cultura em geral 8. Seu
objetivo é o estabelecimento de uma nova forma de relacionamento institucional com a
sociedade civil, por meio da articulação de agentes e espaços “que promovam práticas e
atividades de natureza educativa para a valorização do Patrimônio Cultural” (IPHAN, 2014,
p. 36), de acordo com uma perspectiva transversal e dialógica, entre o órgão, a sociedade civil
e os poderes públicos locais.
Segundo a Carta de Nova Olinda9, as Casas do Patrimônio também podem contribuir
para informar e dialogar sobre as atividades e rotinas institucionais e investir em ações de
qualificação e capacitação de agentes públicos e privados. Ainda, para a Coordenação de
Educação do IPHAN (CEDUC), as Casas do Patrimônio seriam instrumentos para fomentar
reflexões sobre o patrimônio cultural entre os órgãos oficiais federais, estaduais, municipais e
sociedade civil; tornar acessível ao público informações sobre as ações do IPHAN e – talvez

8
Este também foi um momento de mudanças internas na instituição, com a saída dos museus da gerência do
IPHAN e consequente criação do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM e, segundo Cléo Oliveira, “como os
museus eram a principal interface com a sociedade, o IPHAN perderia este contato”, precisando refletir sobre
um novo meio de interlocução com a sociedade civil (OLIVEIRA, 2011, p. 50-61).
9
A Carta de Nova Olinda é o documento oficial que estabelece diretrizes, conceitos, objetivos e premissas para
a atuação das Casas do Patrimônio, publicada em 2009, após o I Seminário de Avaliação e Planejamento das
Casas do Patrimônio, realizado em Nova Olinda, Ceará.

531

V V
como objetivo fundamental para o contexto que trabalhamos neste artigo – estimular a
participação da comunidade de modo a construir coletivamente redefinições do uso social dos
bens culturais.
A CEDUC também parte do princípio que o papel das instituições de preservação em
relação à sociedade civil, “mais do que propriamente determinar valores”, é de mediação,
criando espaços de aprendizagem e interação para fomentar a reflexão dos grupos sociais em
relação ao seu próprio patrimônio.
Percebe-se, então, que esta proposta do IPHAN vem de acordo com as prerrogativas
da Constituição Federal de 1988, na qual, por meio de uma nova forma de atuação
institucional, procura construir, coletivamente com a sociedade civil, ações de valorização e
preservação do patrimônio cultural. A proposta parte da perspectiva de descentralizar do
Estado a missão de proteger o patrimônio nacional, reconhecendo o protagonismo da
sociedade civil e a importância do saber local no processo de identificação, valoração,
proteção e valorização dos bens culturais.
De acordo com a Carta ao Cidadão do IPHAN, existem atualmente dezenove Casas
do Patrimônio em atuação no território nacional, vinculadas às superintendências estaduais e
escritórios técnicos regionais. Por ser um projeto relativamente recente, ainda não é possível
analisar a eficácia deste instrumento quanto às suas proposições, mas se percebe que,
inegavelmente, é uma ferramenta potencial, pois, conforme lembra Castriota (2000): a
implementação de qualquer política pública na contemporaneidade não pode (ou não poderia)
ignorar a emergência de uma “poliarquia de atores” que, ao menos em teoria, vem
demandando “alterações nas políticas de gestão do patrimônio cultural, urbano e ambiental.”
(PEREIRA; MACHADO, 2008 apud CASTRIOTA, 2011, p. 60). Em teoria porque, na
prática, esse processo ainda não está se consolidando, vide inúmeros processos de
tombamento que ainda resistem na manutenção do modelo vertical de patrimonialização de
bens, como é o caso do ocorrido na cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte.

O tombamento do Centro Histórico de Natal: um retrocesso?


O Centro Histórico de Natal teve sua notificação de tombamento em 23 de julho de
2010 e homologação em 201410 como Patrimônio Cultural Nacional, inscrito nos Livros de

10
Portaria nº 72, de 16 de julho de 2014, publicada na página 11, seção 1, do Diário Oficial da União. Disponível
em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/73210041/dou-secao-1-18-07-2014-pg-11>. Acessado em 29 ago.
2014.

532

V V
Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e Histórico como “Conjunto arquitetônico,
urbanístico e paisagístico da cidade de Natal”.

Imagem 01: Poligonais de tombamento e de entorno do Centro Histórico de Natal. Fonte:


Fonte: Arquivo do IPHAN-RN.
A zona delimitada engloba os bairros da Cidade Alta, Ribeira e Rocas, perfazendo
uma área de 28 hectares na poligonal de tombamento e 62 hectares na de entorno, totalizando
cerca de 1.560 imóveis sob proteção.
De acordo com o memorial do processo de tombamento, do ponto de vista
arquitetônico, apresenta uma riqueza de mais de quatro séculos de existência, representativa e
heterogênea, de modo a que nele se pode verificar a coexistência de elementos pertencentes a
estilos diversos, desde o colonial ao moderno. Do ponto de vista urbanístico mantém parte
significativa da sua malha ainda com características coloniais, e do paisagístico, possui forte
potencial. Entretanto, o referido Centro Histórico apresenta ainda diversos outros valores
potenciais que não tiveram ênfase na instrução técnica do processo de tombamento, a
exemplo das manifestações sociais e culturais que ainda nele ocorrem e que dão vida e sentido
a muitos dos seus espaços.
É interessante registrar que, segundo dados do IBGE (2010), somente nos bairros da
Cidade Alta e Ribeira a população ultrapassa as 9.000 pessoas. Apesar disso, no processo de
tombamento, consta um abaixo-assinado de apoio com menos de 100 assinaturas.

533

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Imagem 02: Folha final das assinaturas de apoio ao tombamento do Centro Histórico de Natal.
Fonte: Processo de tombamento nº 1.558-T-08, V. I., fl. 136.
Este documento, embora se constitua a única ferramenta que traduz a voz de parte da
população dentro do processo, reflete - pela amostragem porcentual em relação à população
envolvida - uma insuficiência alarmante para corresponder a uma “aprovação” do
tombamento por parte da sociedade. Tem-se, deste modo, que a forma como ocorreu este
processo foi, em verdade, majoritariamente vertical, tendo sido resultado de estudos
meramente técnicos11.
Decorre disto a percepção da manutenção da visão – em teoria já superada – de ser o
Estado o único detentor de poder para efetuar decisões políticas desse porte, camufladas numa
defesa embasada num suposto conhecimento técnico e artístico do corpo de profissionais que
o representam. Os estudos para a proposição deste tombamento ocorreram em pleno século
XXI, quando já foi atingido, a nível nacional, uma maturação maior nas discussões sobre
conceitos, legislação e instrumentos de participação popular na construção de políticas
públicas. Com isso, vê-se como este caso representa um retrocesso no processo de
democratização das práticas institucionais preservacionistas, demonstrando um
distanciamento entre o discurso oficial e a prática.
Embora a proposta de tombamento tenha partido da configuração de um “corredor
cultural” em Natal que já vinha sendo fruto de discussões junto a setores da população em
defesa de sua proteção desde a década de 199012, o fato é que a forma de transposição dessa

11
Há teorias que consideram a possibilidade de influência de fatores políticos para motivar a realização de um
tombamento em Natal, que seria uma das poucas capitais brasileiras que ainda não tinha Centro Histórico
tombado a nível federal.
12
Segundo (MEDEIROS; VIEIRA, 2013, p. 13), “apesar de não ser legalmente delimitado, [o corredor cultural]
vem sendo alvo de discussões preservacionistas desde 1991, quando foi apresentado no Congresso Brasileiro
sobre Patrimônio Histórico e Cidadania, em São Paulo”.

534

V V
demanda para uma solicitação de proteção legal por parte do Estado (e consequente limitação
no direito de uso e gozo dos bens correlacionados) não se deu de maneira paulatina e
debatida. Deve-se lembrar que valores são construídos e, muitas vezes, conflituosos. Mesmo
que alguns setores defendam a manutenção de certos elementos em nome da coletividade, os
diversos interesses em jogo acarretam a necessidade de diálogo e construção de consensos
para se avançar a decisões do porte de um tombamento.

CASA DO PATRIMÔNIO DE NATAL: PERSPECTIVAS E DESAFIOS.


Nos arquivos do IPHAN-RN consta, desde 2008, proposta de criação de uma Casa do
Patrimônio em Natal13, a qual apresentava como objetivo “divulgar o trabalho do IPHAN e o
patrimônio tombado no RN, transformando a sede num espaço aberto à população.” Para
tanto, tinha como estratégias a realização de adaptações do imóvel que sediava a então Sub-
Regional/RN para receber as atividades prevista, instalando sistema de refrigeração central e
criando banco de dados informatizado para consulta da população, além de material didático
específico para ser distribuído aos visitantes.
A ideia não foi concretizada, mas em 2014, já em nova sede, a então Superintendência
do IPHAN-RN retomou os planos, efetuando tomada de preço14 para contratação de serviços
técnicos profissionais especializados em arquitetura e/ou engenharia para elaboração de
projeto de restauro e adaptação do mesmo imóvel, que receberia a Casa do Patrimônio.
Considerando a previsão desta implantação, é válida a discussão de quais seriam,
segundo os conceitos e contexto atuais, os objetivos deste espaço. Como ponto de partida,
podemos fazer o questionamento: como a Casa do Patrimônio de Natal pode estimular o
protagonismo social e efetivas mudanças sociais com base nas referências culturais da
população residente?
A princípio, considerando que a sua criação se daria após a conclusão do tombamento
(ou seja, com a seleção de bens já definida), este instrumento poderia ser utilizado para
revalorizar e ressignificar os bens que foram eleitos, através do debate sobre os valores que
porventura representem. Para tanto, como sugestão, poderia ser realizada uma ação inicial de
apresentação das motivações que levaram ao tombamento do Centro Histórico de Natal, que
correspondem ao ponto de vista técnico dos seus valores, traduzindo uma forma de promoção
do patrimônio consagrado. Em seguida, deveria ser possibilitada à população sua

13
Projeto “Implantação da Casa do Patrimônio, integrante dos Planos de Ação 2008. Fonte: Arquivo do IPHAN-
RN.
14
Tomada de Preço nº 03/2014. Fonte: Arquivo do IPHAN-RN.

535

V V
manifestação em relação a isso, considerando os conceitos atuais de Educação Patrimonial 15,
que valorizam a construção coletiva do conhecimento e reconhece os saberes, referências e
significados locais.
Como produtos destas atividades, poderiam surgir contribuições para a construção de
um plano de salvaguardada de maneira mais democrática, e, possivelmente, mais eficaz – já
que pela sociedade estaria sendo referendada, considerando que as vozes da população seriam
ativas neste processo. Tal ação fomentaria a realização, de fato, de uma gestão compartilhada
das responsabilidades da preservação do Centro Histórico de Natal entre as instituições
públicas e a sociedade civil. Por se constituir, deste modo, um instrumento de cidadania
cultural, igualmente poderia haver discussões que levassem à necessidade de revisão do
tombamento, incluindo e/ou excluindo bens das poligonais de proteção.
Mas não apenas às questões do tombamento se restringiriam as ações de uma Casa do
Patrimônio. Afora os bens materiais que porventura não estivessem sendo contemplados por
esse instrumento jurídico, outros deveriam ser alvo de debate, assim como as diversas
manifestações culturais da cidade e do estado - a exemplo do cordel e da capoeira.
A dinamicidade do patrimônio reflete nas demandas para a Superintendência local, e é
através do diálogo com a sociedade e outras instâncias governamentais que se possibilitará a
implementação de políticas públicas mais eficazes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como lembra Castriota (2011, p. 51), a mera intervenção em uma edificação já pode
trazer à tona conflito de valores (a exemplo, quando se tem que priorizar a homogeneidade
estilística ou a veracidade histórica numa obra de restauro). Imaginar o nível de conflitos e o
alcance das repercussões das decisões de proteção tomadas pelos órgãos de preservação em
áreas históricas – ao regularem parâmetros diversos de uso e ocupação do solo – dá a
dimensão da importância de se levar a oportunidade de debate à sociedade dos critérios que
lhes regem, já que ela é a principal interessada.

15
Atualmente o IPHAN parte do conceito de Educação Patrimonial construído coletivamente por meio dos
Encontros Nacionais de Educação Patrimonial e outros eventos, considerando que “os processos educativos
devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os
agentes culturais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais,
onde convivem diversas noções de Patrimônio” (IPHAN, 2014, p. 19).

536

V V
Ao entender as políticas preservacionistas como “fato social”, focam-se as pessoas, os
atores sociais detentores das referências e bens culturais, em detrimento de centralizar as
ações de preservação somente aos aspectos materiais. Nesta perspectiva, as políticas de
preservação podem garantir não apenas a preservação dos bens, mas também valorizar seu
contexto e dinâmica social, reconhecendo as diversidades e heterogeneidades presentes em
cada ação. Deve-se ter em conta que a ampliação dos interlocutores nas políticas públicas
deve ser acompanhada de uma transformação no modelo de gestão. Uma vez consolidado este
entendimento, urge que os órgãos de patrimônio (sobretudo o IPHAN, como principal deles)
traduzam, em suas práticas institucionais, a incorporação de tais avanços conceituais. Assim,
superaria-se a divisão de fases de identificação, seleção, gestão e só depois educação
patrimonial (nos moldes verticais) para uma proposta de salvaguarda permeada, em todas as
suas etapas, de participação da sociedade na construção de políticas públicas. Mas, como
lembra Fonseca (2000), para isso, é preciso que a sociedade esteja organizada para que se
possa chegar a esse patamar de democratização.
O caso de Natal mostra que, constantemente, é preciso refletir sobre a forma com as
ações vem ocorrendo, de modo a identificar possíveis dissonâncias em relação aos avanços
teóricos já logrados. Como lembra Chauí (2006), por meio da reflexão crítica da realidade
social, dos meios de produção e dominação, a cultura tem o potencial de estimular mudanças.
Mas não apenas como “instrumento” para tal. A própria forma de conceber e produzir a
Cultura também deve ser criticamente repensada e modificada nas lutas sociais e políticas.
Nessa perspectiva de instrumentos de transformação social, as concepções trazidas
pela proposta das Casas do Patrimônio vem se mostrando um caminho possível. Sua atuação,
se conduzida de modo a articular satisfatoriamente os atores sociais, poderá convertê-las num
espaço de cidadania efetiva, sobretudo considerando que os valores da sociedade estão em
constante transformação. Seria a partir desses braços de acessibilidade política que os debates
mais democráticos poderiam ser, com mais facilidade, incorporados às políticas culturais de
preservação. As próprias unidades do IPHAN ainda estão aprendendo a lidar com suas
potencialidades e limitações que, inclusive, costumam variar de acordo com as realidades
locais. Mas se percebe que, inegavelmente, é uma ferramenta que, uma vez consolidada,
poderia contribuir para uma efetiva articulação entre as atividades institucionais e as vozes e
percepções da sociedade civil em geral, promovendo a cidadania cultural.

537

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REFERÊNCIAS
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CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro:
Ed.FGV, 2009.

CASTRIOTA, Leonardo B. Conservação e valores: pressupostos teóricos das polítiacs para o


patrimônio. In: GOMES, Marco A. A. de F.; CORRÊA, Elyane L. (Orgs.). Reconceituações
Contemporâneas do Patrimônio. Salvador: EDUFBA, 2011.

CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2006.

CHUVA, Márcia. Por uma história da noção de patrimônio cultural no Brasil. In: REVISTA DO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. n. 34. Brasília: IPHAN, 2011. P 146-165.

COELHO, Teixeira. Dicionário de Políticas Culturais: cultura e imaginário. São Paulo: Iluminuras,
1997.

CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Cidadania Cultural: um conceito em construção. In:


CALABRE, Lia (org.). Políticas Culturais: diálogos e tendências. Rio de Janeiro: Edições Casa de
Rui Barbosa, 2010. pp. 177-201.

DÓRIA, Carlos Alberto. Os Federais da Cultura. São Paulo: Bitura, 2003.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências Culturais: base para novas políticas de patrimônio. In:
BRASIL. IPHAN. Inventário Nacional de Referências Culturais: manual de aplicação. Brasília:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2000, 156 p., p. 11 – 21. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=3415>. Acesso em: 07 fev. 2015.

IPHAN. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília: Instituto do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2014. Disponível em:
<http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=4240> Acesso em: 20 jul. 2014.

MEDEIROS, Elaine de A.; VIEIRA, Natália M. O Sítio Histórico de Natal agora é tombado como
patrimônio nacional. E daí? In: ArquiMemória 4 - Encontro Internacional sobre Preservação do
Patrimônio Edificado., 2013, Salvador - BA. Anais do ArquiMemória 4, 2013. Disponível em:
<http://projedata.grupoprojetar.ufrn.br/dspace/bitstream/123456789/986/1/O%20S%C3%8DTIO%20
HIST%C3%93RICO%20DE%20NATAL%20AGORA%20%C3%89%20TOMBADO%20COMO.pdf
>. Acesso em: 15 jan. 2015.

MENESES, Ulpiano T. B. O Campo do Patrimônio Cultural: uma revisão de premissas. In: I Fórum
Nacional do Patrimônio Cultural: Sistema Nacional de Patrimônio Cultural: desafios, estratégias e
experiências para uma nova gestão, Ouro Presto, 2009. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, 2012

OLIVEIRA, Cléo A. P. de. Educação Patrimonial no Iphan. Monografia (Especialização em Gestão


Pública) – Diretoria de Formação Profissional, Escola Nacional de Administração Pública, Brasília:
2011. 131 p. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=16013&retorno=paginaIphan>. Acesso
em: 30 mar. 2013.

PEREIRA, Maria de Lourdes D.; MACHADO, Luaciana Altavilla V. P. As políticas públicas para a
preservação do patrimônio. In: Revista Fórum Patrimônio: ambiente construído e patrimõnio

538

V V
sustentável, v. 1, n. 2, jan./abr. 2008. pp. 9-40. Disponível em:
<http://www.forumpatrimonio.com.br/seer/index.php/forum_patrimonio/article/view/70> . Acesso
em: 11 fev. 2015.

SANT’ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a trajetória da norma de


preservação de áreas urbanas no Brasil (1937-1990). Salvador: 1995. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Ba

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V V
REFLEXÕES SOBRE AS NORMAS DE PRESERVAÇÃO
DO PATRIMÔNIO CULTURAL1
Fernanda Rocha de Oliveira2
Mariana Kimie da Silva Nito3
Raissa Balthazar4

RESUMO: As políticas de preservação promovidas pelos órgãos competentes não acabam


com o tombamento de bens culturais, pelo contrário, é nesse ato que começam todas as ações
de gestão. A normatização, enquanto ferramenta que regula a intervenção urbana é aqui
considerada um instrumento político e objeto de análise. Sendo a cidade, por excelência, um
campo de acomodação de tensões, o presente trabalho traz reflexões de naturezas jurídica,
política e técnica que tentam ponderar os conflitos envolvidos, de modo a contribuir para a
elaboração de normas de preservação. Para tal, foram abordadas questões que permeiam o
trabalho dos técnicos envolvidos na preservação do patrimônio.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural, Normas de preservação, IPHAN.

INTRODUÇÃO
Parada no trânsito vejo a cidade pela janela do ônibus. Sob a chuva, brotam construções formando
ondas: nas mais altas despontam prédios e depois afundam em casas e pequenos estabelecimentos.
Entre elas há pessoas navegando, quebrando ondas pela cidade. Esse é o meu mar. Nesta maresia
frenética, a visão foca num singelo conjunto de casas, mas o que realmente chama atenção é o
momentâneo gesto de um senhor marujo navegante. Em uma breve reverência feita vejo o relâmpago
de uma memória. Seria ali algum lugar sagrado? O navegante parece sorrir e, então desaparece na
enxurrada. Aquele lugar. Olhando, assim, não demonstra características que confirmem ser um
espaço de culto. Diferente das outras construções vizinhas possui uma série de ornamentos e tem um
grande jardim na frente e na lateral. Num tranco, a agitação do trânsito volta. Continuo a navegar e
não demoro a ver outra construção parecida. Os mesmos padrões de ornamentos e jardins. Seria
algum padrão construtivo ou exigência legislativa de uma mesma época? Neste outro lugar, o mar
afunda profundamente entre dois arranha-céus e paro. Novamente. Mas vejo que está outra casa deve
ter perdido seus irmãos. Na solidão, ninguém parece olhá-la nem reverenciá-la. Olho para trás e vejo
que a distância não é grande do conjunto passado. Seriam um só? O fluxo do meu navegar é
retomado. No balanço do mar e com a chuva a me ninar perco a noção do tempo. Abro os olhos e
1
Este trabalho foi produzido no âmbito do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural
(PEP/MP) do Instituto de Preservação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, com recursos
financeiros do IPHAN na forma de bolsa e auxílio pesquisa, no período entre 2013 a 2015.
2
Arquiteta e Urbanista, graduada pela Universidade Federal da Paraíba (2011), bolsista do Mestrado Profissional
em Preservação do Patrimônio Cultural - PEP/MP, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -
IPHAN. E-mail: fernanda.oliveira@iphan.gov.br; fernanda-arq@hotmail.com.
3
Arquiteta e Urbanista graduada pela Escola da Cidade- AEC-SP (2012). Atualmente é bolsista do Mestrado
Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural (PEP/MP) do IPHAN, lotada na Superintendência de São
Paulo. Especialista em Gestão de Restauro e Prática de Obras de Conservação e Restauro do Patrimônio Cultural
pelo Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada - CECI, da Universidade Federal de Pernambuco -
UFPE (2014). E-mail: marykn@gmail.com; mariana.nito@iphan.gov.br.
4
Arquiteta e Urbanista, graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (2012), bolsista do Mestrado
Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural - PEP/MP do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional - IPHAN. E-mail: raissa.balthazar@iphan.gov.br.

540

V V
avisto ao fundo as árvores que cresceram comigo, aqueles novos prédios e as construções de sempre.
Percebo que não estou longe de casa.5

Nesta breve passagem cotidiana, podemos identificar, em diversos momentos, o que


chamamos de patrimônio cultural. Elementos que revelam a memória individual, coletiva e
nossa identidade. É dizer, o lugar, ou lugares, em que vivemos e que nos permite contar e
relacionar quem fomos e somos como sociedade na cidade, revelando também as histórias de
vidas da cidade. Este é o nosso patrimônio e, assim, como define Cecília Londres Fonseca:
Patrimônio é tudo aquilo que criamos, valorizamos e queremos preservar:
são os monumentos e obras de arte, e também as festas, músicas e danças, os
folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e falares. Tudo enfim que
produzimos com as mãos, as ideias e a fantasia. (FONSECA, 2005, p. 21).

Então, podemos afirmar que patrimônio não é coisa do passado. Por meio dele
estabelecemos relações metafóricas, como determinada organização social ou econômica. É o
que presenciamos e o que deixamos para o futuro, é, também, todo e qualquer valor atribuído
tanto pela sociedade civil quanto pelo Estado. Quanto à relação com as cidades que
vivenciamos, podemos definir como patrimônio cultural áreas a ela pertencentes onde as
pessoas se reconhecem no espaço-tempo. Segundo Santos:

Os espaços urbanos são livros abertos, que a cada instante dizem aos que
estão neles não só onde estão, mas quem são e quem são os outros. [...] A
diversidade complementar de atividades é matéria-prima da idéia cidade. Faz
com que se modelem determinadas expressões físicas enquanto se estampa,
se expõe e transformada através delas. (SANTOS, 1986, p. 60).

As cidades constantemente se transformam por meio do conjunto de ações - antrópicas


ou não - que configuram um emaranhado vivo. Dentro desta dinamicidade da vida citadina,
uma construção não é, de fato, imóvel; é uma estrutura fixa sim, mas da mesma forma está
sujeita a outras relações como: o clima, o ir e vir humano, as ações físico-materiais como o
tempo e etc.6 A mesma noção recai, então, ao conjunto de construções que formam a cidade
que, ao longo do espaço, estabelecem relações de vida entre si. Entre elas, está a relação
patrimonial que, com o crescimento das cidades, tomou papel significativo na preocupação
nas discussões e na legislação urbana.
O desenvolvimento urbano brasileiro e, principalmente, o seu processo de
verticalização, ganham destaque na implementação de políticas de regulamentação urbana de

5
Texto pessoal de Mariana Nito.
6
Cf. INGOLD, 2012, p.30.

541

V V
áreas com valor patrimonial ao longo da atuação do órgão de preservação em nível federal, o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) 7, criado em 1937. Tal fato
ocorreu com diferentes enfoques ao longo do tempo e gerou, sobretudo no início da atuação
do IPHAN, memoráveis batalhas jurídicas com o intuito de preservar tais áreas protegidas,
assim como os contextos urbanos nos quais estas se inserem: as chamadas áreas de entorno.
O principal instrumento utilizado para a salvaguarda é o tombamento. Este ato administrativo
envolve uma série de ações instituídas pelos órgãos de preservação que mantêm diálogo com
outros instrumentos - jurídicos ou não - para efetivação da proteção dos bens tombados,
como: a delimitação de poligonais de tombamento e entorno; a elaboração de diretrizes e
normas; entre outras:
Após o tombamento cabe ao IPHAN zelar não apenas pela preservação física
dos bens, mas também pela qualificação das áreas onde estão inseridos, de
forma a permitir sua fruição e atuar na sua promoção e apropriação social,
para que se transformem efetivamente em fatores de compreensão.
Essas responsabilidades são executadas de diversas maneiras, através da
fiscalização, aprovação de projetos, investimentos diretos e indiretos,
projetos de educação e socialização, entre outros, definidos através de
políticas nacionais ou em regulamentação específica que, sempre que
possível, devem ser apresentadas de forma explícita visando atender aos
princípios da transparência, impessoalidade e publicidade dos atos da
administração pública, e orientar com clareza os interessados sobre quais
serão os critérios utilizados para a gestão das áreas protegidas.” (BRASIL,
2010, p. 12, grifo nosso).

Os esclarecimentos e orientações para aprovação de projetos, fiscalização nos bens


tombados e em suas áreas de entorno são formuladas sob coordenação do corpo técnico e
apresentadas juridicamente por meio de portarias. Estes documentos costumam oficializar e
regulamentar não apenas as normas de intervenção, mas também a definição das poligonais de
tombamento e entorno (quando não instituídas no ato do tombamento). É por meio destas
definições que se estabelecem a forma de atuação institucional e a identificação dos elementos
que configuram a dinamicidade local e que garantem a qualidade de vida e a conservação dos
valores atribuídos aos bens. O processo de normatização, sua concretização e revisão são
instrumentos de política pública que buscam, através de procedimentos institucionais,
promover o desenvolvimento sustentável da cidade, atentando para a preservação das
memórias e identidades locais.

7
Quando criado, recebeu o nome de Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (SPHAN).

542

V V
A NORMATIZAÇÃO
Conforme exposto anteriormente, percebe-se o trabalho dos órgãos de preservação não
termina no tombamento de bens culturais. Ao contrário, esta etapa seria apenas o começo das
várias ações de gestão para promover seu efetivo processo de preservação. A elaboração de
parâmetros que orientem aqueles que usufruem direta ou indiretamente os bens protegidos,
como também os demais órgãos e entes que regulam o uso do solo (como as prefeituras),
indicaria, portanto, a melhor maneira de intervir nos bens patrimoniais e na sua área de
entorno.
De acordo com Silva (s.d., p. 1), as normas8 cumprem pelo menos três funções
essenciais: a de atestar o valor dos bens, diferenciado-os dos demais; a de submetê-los a um
regime jurídico especial; e a de inseri-los em categoria unitária. É dizer, considerá-los
portadores de um significado comum em conjunto - a exemplo de patrimônio cultural ou de
patrimônio ambiental.
É importante frisar que não seria, então, papel da norma criar valores, mas sim, mantê-
los de modo associado aos objetos que foram selecionados como sendo seus portadores. E o
principal instrumento que irá atestar esses valores atribuídos, juridicamente falando, é o
tombamento. É na sua justificativa que constam as motivações que levaram à necessidade de
proteção de um bem.
Por se conformar um documento que vem a unificar e padronizar procedimentos
relacionados aos bens a serem protegidos e geridos, as normas assumem um papel também de
auxílio ao trabalho dos técnicos servidores, que são os responsáveis, dentro do aparato
administrativo competente, por efetuar a análise dos projetos que venham a requerer
intervenções nestes bens. Igualmente, ela poderá nortear o trabalho dos profissionais que
venham a elaborar tais projetos, de modo a que os partidos adotados já comunguem das
mesmas diretrizes e princípios abarcados pela norma, bem como estejam de acordo com as
limitações e sugestões colocadas de modo a valorizar os aspectos considerados de valor nos
bens.
Dada a complexidade que a elaboração de uma norma envolve e, sobretudo, que a sua
repercussão acarreta, é importante destacar alguns aspectos que devem ser levados em conta
ao se pensar na sua construção, já que ela deve ser vista enquanto instrumento de política
pública, a partir do qual serão estabelecidos critérios que levam a limitações ao direito de
gozo da propriedade.
8
Aqui colocadas como o conjunto de instrumentos legais dos quais os órgãos de preservação se valem para sua
atuação.

543

V V
Conforme lembra Sant’Anna (2004, p. 18), o teor político é inerente ao processo de
patrimonialização, já que a instituição de bens culturais se trata de uma produção simbólica,
uma vez que atribui status especial a determinados objetos. A gestão destes objetos seguirá,
deste modo, na mesma linha, uma vez que envolve desde o planejamento em maior escala -
tomando como exemplo os Planos de Gestão - aos mais específicos - a exemplo das
normativas. Com isso, os parâmetros normativos terão por resultado a apresentação de um
posicionamento institucional sobre os critérios técnicos e, porque não, políticos que refletem o
que se espera destes bens (individuais ou em conjunto) a partir de sua gestão em caráter
especial.
Uma vez que a norma influi em questões sociais e econômicas de diversos atores da
sociedade e impacta sua dinâmica, podendo interferir nos rumos da cidade, é preciso atentar
para os desafios e problemáticas que costumeiramente a permeiam. Assim, apontamos, a
seguir, algumas reflexões que julgamos pertinentes, relacionadas a discussões tanto de base
teórica como também empírica.

ASPECTOS JURÍDICO-POLÍTICOS
O instrumento de maior respaldo ao longo das quase oito décadas de
institucionalização da preservação do patrimônio no Brasil surgiu junto à própria criação de
um órgão nacional para este fim: o Decreto-Lei 25 de 1937. Ele foi recepcionado pela
Constituição Federal de 1988 e permanece, até hoje, vigente. Por muitos anos, foi somente
com base nos seus artigos 17 e 18 (que definem a limitação de intervenção sobre os bens
tombados e seus entornos), que o IPHAN atuou na fiscalização visando à manutenção dos
bens tombados. Porém, a forma ampla como foram redigidos fez com que a atuação do
IPHAN viesse sendo questionada quanto a ser regida por um poder discricionário,
possibilitado pela inexistência de regulamentação desta lei.
Com o passar do tempo houve, cada vez mais, a cobrança junto ao IPHAN quanto à
transparência dos seus critérios e definições. Assim, apesar de o Decreto-Lei nº 25/37 ser
considerado, por muitos, autoaplicável, foi originada uma forte demanda pela elaboração de
normatização para os bens tombados e seus entornos, de modo a regulamentar a referida lei.
Segundo a Coordenação-Geral de Pesquisa e Documentação do IPHAN, foram enfrentados
problemas administrativos, em especial no campo jurídico, referentes às infrações na
vizinhança dos bens e as dificuldades de seus encaminhamentos (MOTTA; THOMPSON,
2010, p.66-67).

544

V V
A necessidade de normatização foi ocasionada, então, pela urgência de serem
indicadas “diretrizes para moradores e poder público intervirem no espaço urbano e nos
edifícios”, assim como se tornarem mais claros os parâmetros “utilizados para a análise e
aprovação dos projetos de intervenção propostos [...]” (BRASIL, 2010, p. 13). Para Motta e
Thompson (2010, p. 67 apud BALTHAZAR, 2014, p. 5), ainda, as restrições impostas pelo
IPHAN precisavam ser explicitadas, seja pela “urgência da ação de proteção devido à ameaça
da especulação intensa e ao tempo exigido para a elaboração de estudos técnicos mais
completos”, seja pela “necessidade de esclarecimentos mais amplos sobre as normas que
regulam a vizinhança do bem tombado”.
Parte da demanda mais recente por normatização tem tido origem por cobranças do
Ministério Público Federal - MPF - que, por sua vez, tem sido acionado, ao longo dos anos,
por diversos atores da sociedade que se sentem prejudicados pelo suposto teor discricionário
das ações do IPHAN. Tal fato só corrobora para a necessidade de urgência na elaboração de
normativas, pois, em muitos casos, as exigências de explicações pelo MPF levam a um gasto
de tempo constante por parte dos técnicos, que precisam elaborar documentos explicativos
sobre as condutas adotadas, justificando-as sob diversos aspectos - que não seriam mitigadas
caso houvesse uma norma que as respaldasse. Ademais, esse incremento na dedicação - que já
é majoritária - às temáticas de fiscalização, análise de projetos, elaboração de normativa e
afins diminui ainda mais os recursos (físicos, financeiros e humanos) para a realização de
outras atividades que deveriam ser mais valorizadas no instituto, como ações patrimoniais
dialógicas, a partir das quais poderia haver mais uma construção do que uma imposição de
valores patrimoniais.
De acordo com nossa Carta Magna, em seu artigo 24, legislar sobre a proteção ao
patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico é de competência concorrente
entre União, Estados e Distrito Federal, competindo aos municípios (artigo 30) promover a
proteção daquele patrimônio considerado de interesse local, observada a legislação e ação
fiscalizadora dos demais entes federados. Assim, tem-se um regime federalista de
concorrência nas competências administrativas e legislativa, o qual pode acarretar em
conflitos de responsabilidades.
Buscando oferecer um auxílio no entendimento dos limites dessa questão, o
documento “Orientação para a elaboração de diretrizes e Norma de Preservação para áreas
urbanas tombadas”, indica o trecho de uma publicação intitulada “Estatuto da Cidade – Guia
para Implementação pelos Municípios e Cidadãos” de modo a aclarar um pouco a questão:

545

V V
O Município, com base no artigo 182 e no princípio da
preponderância do interesse, é o principal ente federativo responsável em
promover a política urbana de modo a ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade, de garantir o bem-estar de seus habitantes e
garantir que a propriedade urbana cumpra sua função social, de acordo com
os critérios e instrumentos estabelecidos no Plano Diretor, definido
constitucionalmente como o instrumento básico da política urbana.
(BRASIL, 2010, pp. 20-21).

Assim, o documento conclui que, uma vez que caberiam às municipalidades a


instrumentalização e a efetivação de políticas públicas de ordenamento do espaço – que
incluiriam a preservação do patrimônio cultural –, caberia ao IPHAN o papel de fornecer as
diretrizes para sua elaboração no tocante à manutenção dos valores motivadores da proteção
dos bens acautelados a nível nacional. Porém, na prática esta relação de competências não
ocorre de forma tão harmônica. Muitas vezes o órgão federal encontra dificuldades pela
fragilidade dos municípios, que, “[...] na sua maioria, são extremamente débeis frente às
pressões da especulação imobiliária, mesmo porque uma de suas rendas mais definidas é a
resultante dos impostos territorial e predial.” (TELLES, 1984, p. 31).
Ainda sobre a constituição federal vigente, é importante extrair outra consideração de
peso dentro da ótica jurídica das normas: a democratização do segmento cultural que este
documento acarretou. Por ter sido redigida num contexto de reconhecimento dos diversos
atores sociais e de abertura das suas capacidades de participação na construção política, “as
ações culturais do Estado passaram a ser orientadas pela inclusão do povo a um só tempo
colaborador e destinatário de seus serviços e atividades”. (COSTA, s.d., p. 2).
Pelo menos duas consequências jurídicas podem ser extraídas desse processo. Uma
delas, apontada por Costa (s.d., p. 2), é que “o Poder Público, no plano normativo da cultura,
obrigou-se no sentido de simplificar os direitos culturais, tornando suas disposições
inteligíveis e acessíveis com intuito de referenciar a prática cidadã para o fortalecimento da
democracia.” Assim, na atual conjuntura, para a elaboração de disposições normativas, deve-
se ter em conta o que diz a Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que indica,
no seu artigo 11, a necessidade de clareza, precisão e ordem lógica na redação e consolidação
das leis no país, não cabendo mais espaço para uma interpretação ampla. (COSTA, s.d., p. 2)
A outra consequência é a ampliação da participação da população nos processos
políticos, legitimando-os. A esse respeito cabe atentarmos para as colocações de Cunha Filho
(2010, pp. 181-182), o qual registra, como formas possíveis de exercício da cidadania, as
participações indireta (por representação), direta (por democracia direta), semidireta (que

546

V V
mescla as anteriores), como também a informal, que aqui destacamos. Isto porque esta última
pode tanto complementar quanto contrariar a legislação posta, variando de acordo com
diferentes níveis participativos. Segundo este autor, “a maneira mais tradicional de incentivar
a participação da comunidade cultural nas políticas públicas reside na constituição de órgãos
colegiados, que definem normas, decidem questões e fiscalizam resultados da atuação
estatal.” (CUNHA FILHO, 2010, pp. 193-194).
Deste modo, no momento da elaboração de normatizações, mesmo que haja uma
proposição inicial motivada por estudos majoritariamente técnicos, é importante a
participação da população em todas as etapas de formulação para uma maior eficácia na sua
vigência a posteriori. Como lembra o documento de orientação do IPHAN:
[...] a participação dos órgãos municipais e da sociedade civil é
considerada fundamental. [...] não é mais possível acreditar que o IPHAN,
sozinho, conseguirá preservar as cidades históricas brasileiras. A
participação dos órgãos municipais, na forma de pactos estabelecidos, assim
como uma maior aproximação com os moradores e usuários dessas áreas é
fundamental para o sucesso de qualquer política de preservação. (BRASIL,
2010, pp. 28-29).

A forma com que os processos são conduzidos acabam por variar de acordo com as
particularidades locais, porém existe um certo consenso quanto à constante sobreposição de
interesses que formam campos de tensões nas áreas de valor cultural - o que reforça a
necessidade de uma articulação destes: tanto no diálogo com a sociedade, quanto com os
demais entes federados. Acontece que, quando se discute o território é inevitável esbarrar em
outros aspectos que vão além da preservação do patrimônio cultural:
[...] nessas áreas vive uma população que as utiliza para moradia,
para local de trabalho, de lazer, de circulação.
Portanto, qualquer ação nesse sentido deverá ser analisada frente aos
reflexos que possam se relacionar com o comportamento dessa mesma
população e, de uma forma geral, com a política urbana ou regional.
(TELLES, 1984, p.29-30)

Ou seja, a normativa contribui como forma de esclarecimento e


posicionamento institucional dentro de uma discussão mais ampla, participando através da
perspectiva da preservação do patrimônio cultural.

IMPLICAÇÕES TÉCNICAS NO ÂMBITO DO IPHAN


Como dito à introdução deste artigo, as portarias normativas contém o estabelecimento
de parâmetros de intervenção e podem incluir também a delimitação de poligonais. Pelo fato

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V V
de ambas serem ferramentas de auxílio aos trabalhos técnicos, analisaremos aqui as reflexões
que estão atreladas a ambas.
Indica-se que, para a tomada de decisões sobre a delimitação e a normatização sejam
ponderados os “atributos materiais do bem a serem salvaguardados, assim como as relações
entre os elementos físicos, a essência, o significado ou outros processos relacionados que
precisam ser protegidos e geridos” (IPHAN, 2010, p.21). Vale frisar, no entanto, que a área
que compreende os valores atribuídos e que motivaram a sua salvaguarda é a tombada,
ficando a área de entorno atrelada ao bem tombado com o objetivo de preservar a sua
ambiência e visibilidade. Ou seja, conforme afirma Menezes (2006, p. 43): “[...] se há
controle no entorno, é em função do bem tombado. Portanto, o valor substantivo é do bem
tombado; o entorno tem valor adjetivo”. Admitindo que estas relações podem ser dinâmicas,
fica implícita a contradição de fixar áreas que podem ser, por natureza, fluídas. Neste sentido,
ao mesmo tempo em que se admite a relevância de um registro como forma de clarificar
diálogos e definir estratégias de gestão, neste trabalho busca-se frisar a importância das
normativas como um instrumento de gestão que serve para nortear os trabalhos técnicos, pois,
por mais que contemple a regulamentação e demarcação de um espaço, uma análise que as
leve em stricto sensu pode ser questionada caso vá de encontro ao seu objetivo maior:
preservar o bem cultural e seu entorno.
A fim de elucidar esta questão, poderíamos tomar como exemplo obras de grande
porte que possam causar impacto sobre o bem tombado, mas que deixem de ser analisadas por
meio da justificativa de estar fora dos limites demarcados na poligonal de entorno. Neste
sentido, entende-se a importância de reconhecer os limites de aplicação tanto das diretrizes de
intervenção quanto das delimitações de áreas, onde exceções que não forem previstas podem -
e devem - ser analisadas a partir de suas particularidades. Isto porque seria impossível
antecipar situações excepcionais face à atual dinâmica urbana. Mais do que determinar
fórmulas do que pode ou não pode ser feito, é necessário estabelecer princípios - que
representarão um consenso institucional das áreas e dos elementos urbanos que precisam de
atenção e que devem ser preservados nos aspectos que caracterizam a autenticidade, o valor
de memória e a ambiência dos bens acautelados.
Também, assumindo os múltiplos fatores que podem estar presentes em uma
normatização, entende-se que não necessariamente todos os aspectos relacionados a
preservação dos bens culturais entrariam na forma de normativa. Ruiz, doutor em história da
arte e pesquisador sobre a temática de entorno de bens tombados, define entorno, por

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V V
exemplo, como "o conjunto de elementos relacionados ou vinculados a um Bem Imóvel de
Valor Cultural como consequência das necessidades de atuação no mesmo" (1997, p. 365-
366, grifo e tradução nossos). Considera-se imprescindível tal perspectiva por direcionar as
questões que precisam ser gerenciadas e que se aplicam a tal instrumento.
Ressalta-se a necessidade de atualização das normativas, já que estas são determinadas
a partir de demandas do tempo presente e, consequentemente, precisam passar por revisões
que considerem a experiência acumulada ao longo dos anos de atuação no local. É importante
também destacar que as ações estabelecidas no formato de normatização deverão ser o recorte
de uma estratégia mais ampla, que idealmente estaria dada por um plano de preservação. Ou
seja, a normatização contribui como parte integrante deste planejamento estratégico em maior
escala9.
Possivelmente em função da demanda ocasionada por pressões imobiliárias incidentes
nas áreas tombadas e de entorno, os estudos de normatização frequentemente partem da
perspectiva do ordenamento territorial, sendo muitas vezes estigmatizados por privilegiar
aspectos visuais (estéticos e morfológicos). Cabe ponderar que o desenvolvimento de
normativas de preservação dos bens tombados na esfera federal coincidiu com um momento
desenvolvimentista dos centros urbanos cujas consequências permanecem (e se proliferam)
até os dias atuais. Quanto às ações voltadas à preservação por parte do IPHAN, Telles nos
lembra que:
[...] em uma primeira fase, até as décadas de 1950/60, os problemas
que neles [nos núcleos e centros de valor paisagístico, urbanístico e
arquitetônico] se apresentavam como mais sérios eram, principalmente, os
de manutenção das edificações mal conservadas, muitas vezes
deficientemente usadas ou em desuso. Na época, foram se realizando
algumas campanhas de esclarecimento público, quanto ao valor desses
acervos, e das razões de sua preservação.
Com o impacto desenvolvimentista dos anos 50/60, esses núcleos
preservados e outros mais, que passaram a ser inscritos como de interesse
cultural ou natural, começaram a ser atingidos, agredidos pela pressão
demográfica, pela metropolização das áreas contíguas, pela implantação de
indústrias em suas imediações, pela inserção dos mesmos em roteiros
turísticos, pela abertura de rodovias em suas proximidades. (TELLES, 1984,
p. 30-31).

9
O Plano de Preservação de Sítio Histórico Urbano, conforme colocado pelo IPHAN, é “[...] um instrumento de
gestão compartilhada que deve resultar de acordo entre os principais atores públicos e privados, no qual o
processo participativo é imprescindível. Deve promover uma ação pública coordenada e provocar a articulação
entre o Estado, os agentes privados e a comunidade local em prol da preservação do patrimônio cultural urbano.”
(IPHAN, 2005, p.7).

549

V V
Com a pressão por crescimento e renovação dos imóveis pertencentes aos núcleos
centrais, as novas construções acabavam por gerar um impacto nos conjuntos tombados,
facilmente percebidos nos seus aspectos visuais, levando à adoção de medidas de preservação
que buscassem reverter ou impedir novas ocorrências dessa natureza.
Neste sentido, é comum durante o processo de desenvolvimento dos parâmetros
normativos também serem levantadas questões que extrapolam seus limites. A
compatibilização de instrumentos e o trabalho em conjunto com os órgãos responsáveis em
legislar na área em questão são fundamentais para que estes estejam alinhados. Reitera-se a
necessidade de uma gestão conjunta, com legislações que se reforcem no que diz respeito às
diferentes perspectivas, onde não só cada entidade fiscalize o que estiver sobre sua alçada,
mas também haja complementaridade de ações, já que, como nos lembra Mesentier:
[...] não basta reconhecer, num recorte estático, a relação entre o
valor patrimonial, o ambiente urbano e o estado de conservação dos suportes
materiais. Cabe elaborar instrumentos que permitam explicar e explicitar a
evolução dinâmica de problemas e processos que possam comprometer a
preservação da área. (MESENTIER, 2004, p. 6).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cidade é, por excelência, um campo de acomodação de tensões, pois envolve
diferentes atores sociais, ou seja, diferentes interesses. Como tal, exige sempre a negociação e
o estabelecimento de prioridades. Sendo os órgãos de preservação atores que integram este
campo de disputas, devem, antes de mais nada, ter convicção e clareza quando aos seus
objetivos, aplicando as restrições que sejam realmente necessárias, e sendo flexíveis ou
rígidos de acordo com as necessidades que sejam pactuadas com a sociedade. Ademais,
ressalta-se que os parâmetros normativos devem integrar o plano de gestão, que abarca
questões mais amplas e complexas, contribuindo para a democratização dos processos de
patrimonialização.
A normatização, enquanto ferramenta que regula a intervenção urbana, é aqui
considerada um instrumento político pois, por mais que sejam utilizados critérios técnicos
para a sua proposição, para sua implementação são necessários atos políticos. As normas são
a explicitação do posicionamento dos órgãos de preservação e funcionam tanto para
referência institucional quanto para orientações voltadas a sociedade. Porém, vale lembrar que
as normas são uma reflexão do seu tempo e, portanto, pensadas a partir das demandas
existentes e do histórico de uma gestão. Novas necessidades que não foram previstas e que

550

V V
certamente surgirão ao longo do tempo precisam ser refletidas e incorporadas por meio de
uma revisão periódica.
Considerando a necessidade de a normatização ser cuidadosamente elaborada, o
presente artigo abordou algumas das questões que merecem reflexão para sua concepção, e
que permeiam os trabalhos técnicos. Questões estas que não se esgotam aqui.

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552

V V
A CULTURA POPULAR E O ESTADO BRASILEIRO
- PARA COMEÇAR O DEBATE -
Flávia Salazar Salgado1

RESUMO: O presente artigo pretende dar início a uma reflexão sobre a genealogia do
conceito de cultura popular e de suas noções correlatas - folclore e cultura de massas - a fim
de entender os usos políticos daqueles que vêm historicamente realizando a sua medição com
a “alta cultura” ou a “cultura erudita” e com o Estado. Para tanto, parte do conceito de cultura
popular, definido por Bakthin em sua análise da obra de Rabelais que revela o poder
regenerador do cômico popular e procura entender a sua apropriação ao longo da história e,
especificamente, no Brasil, seu deslocamento da praça pública às mascaradas de salão, até o
entendimento das políticas de registro do patrimônio imaterial.

PALAVRAS-CHAVE: cultura popular, folclore, cultura de massas, políticas culturais,


patrimônio imaterial.

Ensaio de uma etnografia, um exemplo


Noite adentro, fogueira lá fora, próxima a uma das paredes da sala recém-construída,
uma extensão da casa que tem feições bem mais simples do que o próprio salão. O rio não
está longe dali, desconfia-se que é ele quem delimita o terreno e a florestinha que cobre o
barranco abaixo que está logo ali, em curva, uns passos além da fogueira. Sabe-se, depois, ser
o rio Cricaré. São Benedito está posto no alto de uma das quatro paredes que delimitam o
salão, vigia tudo, abençoa. Antes do ensaio, o aquecimento com forró e cachaça. As mulheres
passam servindo a comida e o doce. As bebidas são vendidas, numa vendinha improvisada.
Horas a fio de aquecimento e muito rodopio daqueles senhores pretos, muito pretos, muito
senhores, tirando as jovenzinhas curiosas pra dançar. Ensaio. Os reis do Congo e de Bamba, o
mais velho deles inteiramente cego depois do consumo da água do velho rio e seus peixes, em
desconfiada contaminação pelo agrotóxico utilizado pela Aracruz e Celulose no eucaliptal - já
estão colocados frente a frente para o embate entre os seus secretários e congos. A cegueira
parece ter uma incidência importante na comunidade. Espadas e palavras são disparadas. A
Aracruz é, volta e meia, citada na guerra de rimas das duas nações, em meio aos risos da
platéia. A extensão, a complexidade e a beleza das “embaixadas” e da coreografia da luta de
espadas, surpreende as mentes mais simplórias das jovenzinhas curiosas.

1
Mestranda do Programa PPCULT – CULTURA E TERRITORIALIDADES do IACS – Instituto de Artes e
Comunicação Social da UFF – Universidade Federal Fluminense – flavia.sededepeixe@gmail.com

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Madrugada. O grupo de senhores pretos segue rio acima para o banho e volta
renovado. Os trajes já são outros, camisas e calças brancas, renda, lenços, fitas de cetim e
flores coloridas na cabeça, pandeiros, violão. Vão seguir cantando e dançando embaixo de sol,
primeiro, de barca até uma vila ribeirinha, a Comunidade das Barreiras, onde mora São
Benedito das Piabas e onde são recebidos pelo Jongo de São Benedito. Daí, descem o rio
Cricaré para o porto de Conceição da Barra, onde a encenação acontece para, então, depois de
mais três ou quatro visitas, terminar com comida farta na casa do festeiro do ano.
No dizer da geógrafa Simone Baptista FERREIRA que em estudo sobre a
territorialidade quilombola do Sapê do Norte (2009), analisa seus signos e sua memória:

A passagem desta noite assemelha-se a um desafio e uma conquista: o desafio de permanecer


em festa e devoção, sem descanso, e desta mesma maneira iniciar o dia seguinte. O amanhecer traz o
sabor de um renascer, onde os brincantes e seus acompanhantes selam a cumplicidade do vivido e
passam a compartilhar histórias, memórias e causos. (FERREIRA, 2009, p.224).

O Ticumbi acontece nas terras que, desde decreto de 2003, foram identificadas como
território quilombola, na região do Sapê do Norte, municípios de Conceição da Barra e São
Mateus, Espírito Santo. Seus pequenos sítios se encontram, hoje, encravados no meio do
deserto verde implantado de norte a sul do litoral capixaba, pela empresa Aracruz e Celulose
S.A. A comunidade está bastante impactada pelos anos de eucaliptal, o fim das terras
comunais, a secura da terra, base para a produção da farinha de mandioca e outros alimentos.
O êxodo dos jovens para as cidades vizinhas se acentuou com a pouca perspectiva de
manutenção dos velhos modos de vida. Há a possibilidade de comercializar o carvão que resta
da queimada dos eucaliptos e pouco mais.
O Ticumbi, no entanto, está lá. Ano a ano, com a benção de São Benedito, sendo rito
sagrado e profano e fonte de significado e resistência, lugar do riso, como manda a tradição
popular, lugar de encontro de gerações e dos que voltam por ocasião dos ensaios e da
brincadeira.

Para aquém daquela etnografia


A cena posta e seus desdobramentos imaginados em verso, música, teatralidade e
sabores pretende ser, mais que exemplo, epígrafe que ilumina o que se segue e assinala a
complexidade e a “agência” dessa gente quilombola frente a manutenção de seus ritos, a
relação com pesquisadores e folcloristas, mediadores da sua relação com o Estado e o embate
direto com os gigantes da agroindústria da celulose, representantes dos projetos
desenvolvimentistas do Estado brasileiro.

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V V
Menos do que mergulhar na riqueza dessa realidade, detalhadamente identificada por
FERREIRA em obra citada, trata-se, aqui, de buscar o caminho percorrido pelo conceito de
cultura popular no Brasil, assim como de suas noções correlatas - folclore e cultura de massa
- procurando entender o papel da intelectualidade que ao articular o conceito e suas variações,
propõe-se a mediar sua relação com o Estado Nacional.
Ora discurso de justificação de uma nação construída pelo alto; ora discurso que revela
o engajamento político de intelectuais orgânicos, construindo nas brechas e frestas do
aparelho estatal estruturas capazes de salvaguardar a memória da expressão cultural do povo
localizado ali e além do eixo Rio-São Paulo; ora nem isso nem aquilo; o uso do conceito de
cultura popular e suas diferentes taxonomias, revela diferentes apropriações do termo por
parte da intelectualidade e do Estado brasileiro.
Para o entendimento do conceito e suas variações, no entanto, buscou-se, aqui, uma
espécie de genealogia que recorre ao entendimento histórico da tradição européia –
iluminadora dos processos que acontecem do lado de cá do equador, ao menos, na virada dos
séculos XIX e XX, assim como a troca mais recente com os demais países da América Latina.

A tradição européia do conceito – da praça pública às mascaradas


“O homem medieval sentia no riso, com uma acuidade particular, a
vitória sobre o medo, não somente como uma vitória sobre o terror místico
(“terror divino”) e o medo que inspiravam as forças da natureza, mas antes
de tudo como uma vitória sobre o medo moral que acorrentava, oprimia e
obscurecia a consciência do homem, o medo de tudo que era sagrado e
interdito (“tabu” e “maná”), o medo do poder divino e humano, dos
mandamentos e proibições autoritárias (...). Ao derrotar esse medo, o riso
esclarecia a consciência do homem, revelava-lhe um novo mundo. Na
verdade, essa vitória efêmera só durava o período da festa e era logo seguida
por dias ordinários de medo e de opressão; mas graças aos clarões que a
consciência humana assim entrevia, ela podia formar para si uma verdade
diferente, não oficial, sobre o mundo e o homem, que preparava a nova
autoconsciência do Renascimento.” (Bakthin, 1987, p. 78).

Categoria erudita, cunhada para designar tudo aquilo que não se enquadra no mundo
dito erudito, toda alteridade (CHARTIER, 1995), o conceito de cultura popular é, a despeito
da simpatia e de toda a manipulação demagoga que o epíteto ‘popular’ desperta (BOURDIER,
1996), um simplificador, um redutor dos sentidos e da variação imensa de saberes, costumes,
linguagens e manifestações que ficam sob o seu guarda-chuva.
Sua origem está ligada a nossa tradição européia, onde a cultura que acontecia nas
praças públicas, na literatura recreativa e nas festas é mantida à distância da cultura oficial, ao

555

V V
longo de séculos, na Idade Média. É somente no Renascimento (séc.XVI), com a crise do
regime feudal, que essa cultura das praças públicas começa a ser incorporada à cultura oficial,
pelas mãos da literatura de um Rabelais, um Shakespeare, um Cervantes e um Boccaccio que
trazem para dentro da literatura oficial a língua falada nas ruas, reveladora de outras formas
de conceber o mundo, num exercício de incorporação de “mil anos de riso popular extraoficial
à cultura letrada:
A cultura popular que, durante séculos, formara-se e defendera sua
vida nas formas não-oficiais da criação popular – espetaculares e verbais – e
na vida corrente não-oficial, içou-se aos cimos da literatura e da ideologia a
fim de fecundá-las e, em seguida, à medida que se estabilizava o absolutismo
e se instaurava um novo regime oficial, tornou a descer aos lugares inferiores
da
hierarquia dos gêneros, decantando-se, separando-se em grande parte
das raízes populares, restringindo-se e, finalmente degenerando.
(BAKTHIN, 1987, p. 62).

Já, no século seguinte, com a estabilização do novo regime e a formação dos estados
absolutistas calcados na filosofia racionalista de Descartes e na estética do classicismo, a
seriedade, ainda que menos dogmática que aquela da Igreja, toma novamente o lugar do riso e
cria uma nova cultura oficial (op.cit, p.87). Os personagens grotescos de Rabelais, no
exemplo analisado por BAKTHIN, suas formas descomunais, seus baixos ventres
proeminentes, sua bufonaria inspirada nas expressões das praças públicas, vão animar as
mascaradas da corte:

Os poetas da corte (sobretudo na Itália) encarregados de organizar


essas festividades, eram grandes conhecedores dessas formas, cuja
profundidade utópica e cujo valor de interpretação do mundo eles haviam
captado. Esse foi, por exemplo, o caso de Goethe na corte de Weimar, onde
ele tinha, entre outras, a missão de organizar festas similares. Com essa
finalidade estudou com profunda atenção as formas tradicionais e esforçou-
se por compreender o sentido e o valor de certas máscaras e símbolos.
(BAKTHIN, 1987, p.89).

Para José Jorge de CARVALHO (1992) o Fausto de Goethe é o exemplo mais


acabado da suposta união ideal da cultura folk com a erudita numa esfera. Na sua
adolescência, Goethe teria aprendido a arte de marionetes como um autêntico ‘mestre folk’ e
chegado a conhecer todo o repertório tradicional das histórias, incluindo a do Doutor Fausto,
trabalhando “mais de cinqüenta anos depois para a construção de uma obra literária que fosse
uma síntese da cultura letrada ocidental, unindo em uma só trama a mitologia grega e a
tradição cristã com uma lenda folclórica.” (1992: 28).

556

V V
Ainda segundo o mesmo autor, tanto Goethe quanto Schiller, empenhados no “projeto
herderiano de construir uma humanitas, isto é, de promover a elevação moral e intelectual do
homem através da arte, diferenciavam a cultura tradicional folclórica digna de constituir
insumo importante a ser sintetizado e lapidado pela cultura letrada, da cultura que, aos seus
olhos, dava sinais de decadência, como a expressa nas peças de teatro da época que se
nivelavam apenas ao apelo sensorial do público. Em oposição a cultura tradicional folclórica,
a cultura popular seria uma cultura da fragmentação, em que já não há relação direta entre
produtor e consumidor e já não há um código comum de crescimento, “mas uma relação
muito mais imediata de gratificação, de entretenimento e da experiência não acumulativa do
prazer temporal” (op.cit., p.28), entendimento que se prestaria, adiante, no início do séc.XX,
na era da reprodutibilidade técnica, às definições de “cultura de massa”.
Sobre a divisão entre a cultura tradicional popular ou folclórica e a cultura popular
operada a partir da visão herderiana, BAKTHIN dirá que:

A concepção estreita do caráter popular e do folclore, nascida na


época pré-romântica e concluída essencialmente por Herder e os românticos,
exclui quase totalmente a cultura específica da praça púbica e também o
humor popular em toda a riqueza das suas manifestações. (BACTHIN, 1987,
p.28).

Os séculos XVII e XVIII e suas Luzes são de gradual recolocação da cultura popular
“no seu devido lugar”, o de “encanto da canalha“. Na literatura que se produz, a partir daí, o
riso, o baixo sexual e a linguagem da rua, a “imediata gratificação” e o “apelo sensorial” –
desvendados por Rabelais, Cervantes e Shakespeare, como parte de uma “tradição” popular –
a do cômico popular - vão aos poucos restringindo-se, na literatura oficial, à expressão dos
personagens que representavam a base da pirâmide social.
Não por acaso as leituras da obra de Rabelais passam gradualmente da tentativa de
decifrar seu conteúdo grotesco - através do método histórico-alegórico - como alusões diretas
a fatos e personagens históricos reais, o que empobrece seu alcance e, sobretudo, a sua
revelação de uma tradição; até o repúdio explícito aos seus exageros, na medida em que se
constrói passo a passo a nova cultura oficial e seu ideal de “cultura clássica”, “erudita”, “de
elite”, “superior”.
Para BAKTHIN essa gradual dificuldade de identificação da verdadeira chave de
compreensão da obra de Rabelais, que inclui entre os que passam a repudiar as qualidades da
sua obra, críticos perspicazes como Voltaire, no séc.XVIII e Michelet, no séc.XIX, dá-se em

557

V V
função do sumiço do seu correspondente histórico: a tradição cômica popular2. Não que ela
desaparecesse das ruas e das festas populares, mas a sua identificação pelas classes mais
abastadas que, durante séculos, descera dos castelos para os meses de carnaval ou, como
mostra BAKTHIN, participara ativamente da sua realização.

No conjunto os filósofos das Luzes não souberam compreender nem


apreciar Rabelais, pelo menos ao nível da sua consciência teórica. Seu
racionalismo abstrato, sua negação da história os impedia de compreender e
de dar um sentido teórico ao riso ambivalente da festa popular. (BAKTHIN,
1987, 26)

Em termos estéticos, impõe-se o cânone clássico, como base do pensamento e em


oposição ao cânone grotesco que caracterizaria a cultura popular e a tradição do riso
ambivalente:

Eliminam-se tudo que leve a pensar que ele não está acabado, tudo
que se relaciona com o seu crescimento e sua multiplicação: retiram-se as
excrescências e brotaduras, apagam-se as protuberâncias (que têm a
significação de novos brotos, rebentos), tapam-se os orifícios, faz-se
abstração do estado perpetuamente imperfeito do corpo e, em geral, passam
despercebidos a concepção, a gravidez, o parto e a agonia. A idade preferida
é a que está o mais longe possível do seio materno e do sepulcro, isto é,
afasta ao máximo dos ‘umbrais’ da vida individual. Coloca-se ênfase sobre a
individualidade acabada e autônoma do corpo em questão. (op.cit, p.26).

Na origem dos estados nacionais, do século seguinte, no entanto, assiste-se a retomada


do cânone grotesco de imagens incompletas em transmutação e hibridismo entre formas
vegetais e animais, do princípio do nascimento e da morte, desta vez, no entanto, a partir de
parâmetros românticos que nos são mais familiares, na medida em que moldam até os dias de
hoje a ideia em torno do que venha a ser “grotesco”. O grotesco romântico é caracterizado
essencialmente por tons mais sombrios e mais individuais do que o grotesco popular, é aquele
definido pelo Corcunda de Notre Dame, em que Quasímodo, o sineiro deformado e coxo,
circula pelos bastidores sombrios da catedral, mergulhado em seu amor por Esmeralda. O
riso, aí, quando está presente, é transformado em sarcasmo e ironia, seu mito de origem
retoma a um presente do diabo e revela sua relação com o terrível e o terror, em oposição aos
diabos populares – tão próximos dos “palhaços mascarados” das folias de reis, p.ex. – “porta-

2
“A única razão é que a tradição viva do riso da festa popular, que iluminou a obra de Rebelais no século XVI,
começa a desaparecer nos séculos seguintes; ela deixa de desempenhar o papel de comentário vivo, acessível a
todos. A verdadeira chave artística e ideológica das imagens rabelaisianas perde-se, juntamente com as tradições
que lhe deram origem. É então que se inicia a busca de falsas chaves.” (BAKTHIN, 1987, p. 98).

558

V V
vozes ambivalentes de opiniões não-oficiais, da santidade ao avesso, o representante do
inferior material, etc.” (1987: 38)
Na leitura romântica da obra de Rabelais, por exemplo, perde-se o que para
BAKTHIN parece ser sua característica essencial e sua principal contribuição: a revelação do
poder regenerador do riso e da sua força renovadora, como características essenciais da
“cultura cômica popular e da visão carnavalesca do mundo” que caracterizou a Idade Média e
o Renascimento (op.cit., p. 40-41).
Quanto desse grotesco “primaveril, matinal e auroreal por excelência” característico
da Idade Média e do Renascimento, em oposição ao lúgubre grotesco romântico, no entanto,
está contido em uma das obras mais emblemáticas do modernismo brasileiro, o Macunaíma
de Mário de Andrade? Autor que num esforço semelhante ao de Rabelais, em seu tempo e
lugar, realiza uma grande colagem de diversas expressões da cultura popular brasileira, numa
obra quase enciclopédica, em que o fio condutor é a biografia de um herói sem caráter que
nasce numa desconhecida Amazônia, povoada por bichos míticos, Iaras belas e ferozes e que,
a custa de uma macumba bem feita, vence um gigante italiano comedor de gente para,
finalmente, com alguma melancolia, decidir-se por virar estrela.
No início do séc.XX, dois são os caminhos do grotesco: o realista e o modernista.
Enquanto o primeiro, basicamente fixa as imagens carnavalescas em tipos fixos que
enveredam para o naturalismo, o segundo, expresso nas correntes surrealistas e
expressionistas, por exemplo, tenderá a reproduzir as características do grotesco romântico.
Para a visão que, ainda hoje, perdura sobre cultura tradicional popular, no entanto, é
fundamental a alusão aos folcloristas que animados pelo ideário de Herder e dos irmãos
Grimm chamam atenção, no final do séc.XVIII, para a influência da poesia nos costumes dos
povos]. A despeito da profusão de obras dos autores folcloristas3 que a partir da inspiração
herderiana:
procuravam registrar a arte popular, até meados do séc.XIX “não se
desenvolveu um interesse sério pela arte popular, talvez porque os objetos
artesanais populares, até então, não tivessem sido ameaçados pela produção
em massa” (BURKE, 1998, p. 22).

Para Peter BURKE, é a partir de Herder, dos Grimm e de seus seguidores que
entendiam as diferentes manifestações da arte do povo como a expressão do espírito de uma
nação é que a ideia de cultura popular e de povo foi inventada, no final do séc. XVIII.

3
Os folcloristas serão responsáveis pela coleta e descrição detalhada de manifestações da cultura popular, não
por acaso, O Ramo de Ouro de Frazer é uma das obras emblemáticas do período, além de uma das fontes
declaradas por Mário de Andrade para o seu Macunaíma.

559

V V
Há um claro culto ao exótico, nessa linhagem, que no contexto do classicismo e do
pensamento racional, encontra, no apelo estético do inculto, do não clássico, do “primitivo” e
da religiosidade popular, a alma de um povo. Nela, interessa menos identificar a oposição
com a cultura oficial – marca da tradição cômica popular – do que fornecer elementos a um
discurso nacionalista em plena ascensão.
É clara também a separação, o corte, entre a cultura popular e a cultura letrada, o povo
e o intelectual que se põe a compilar o seu vocabulário, suas canções e contos. De cultura e
linguagem da praça pública a motivo das máscaras e festas da corte, a “cultura popular” ganha
tons mais palatáveis e educados, além de adeptos distantes entre a nobreza.

4. Rompendo com a razão dualista - dominados e dominadores


Para pensar o estado da arte dos debates em torno da cultura popular que representam,
em grande medida, desdobramentos daquela tradição européia, o historiador francês Roger
CHARTIER propõe a síntese (1995, p. 179): 1. de um lado, têm-se o discurso da cultura
popular como um sistema simbólico coerente e autônomo em relação a cultura letrada –
herdeira dos estudos folcloristas e sua busca por uma essencialidade; 2. por outro lado,
estariam os discursos que percebem a cultura popular em suas dependências e carências em
relação à cultura dominante – aqueles que identificaram na formação dos Estados Absolutistas
e na relação com a Igreja Protestante e Católica uma repressão da cultura popular e que
entende que o seu “destino historiográfico” é portanto ser sempre abafada, recalcada,
arrasada, e, ao mesmo tempo, sempre renascer das cinzas”.
De acordo com essas duas visões apontadas por CHARTIER, o séc. XVII seria um
divisor de águas, entre a expressão de uma cultura popular autêntica e a sua repressão e
moldura por parte de uma elite letrada. A partir daí, o desenvolvimento de uma cultura de
massa, a fragmentação que a caracteriza, a separação entre produtor e consumidor cultural,
impediriam o florescer de uma cultura genuína.
Como alternativa a essa visão essencialista da cultura popular, o autor propõe entendê-
la não como “um conjunto de elementos que bastaria identificar, repertoriar e descrever”, mas
como um tipo de relação, um modo de utilizar objetos e normas. Ao pesquisador caberia,
portanto, identificar não conjuntos dados como culturais, mas as diferentes modalidades pelas
quais são apropriados, como se dão seus usos e interpretações (1995:16). É no plano do
consumo seletivo dos bens simbólicos e não na sua produção que se encontra a resistência

560

V V
popular e o seu poder de ressignificar o que lhe é imposto, a sua tática cotidiana para a
superação da estratégia dominante da autoridade ou do mercado.
Propõe-se, aqui, entender que tanto os bens simbólicos, quanto as práticas culturais
são objeto de lutas sociais que os classificam, hierarquizam, consagram ou desqualificam
(1995: 184). Trata-se, finalmente, de buscar uma história da construção da significação que:

reside na tensão que articula as capacidades inventivas dos


indivíduos ou das comunidades com os constrangimentos, as normas e as
convenções que a limitam – mais ou menos poderosamente segundo sua
posição nas relações de dominação – o que lhes é lícito pensar, enunciar,
fazer (CHARTIE, 1995, p. 190).

5. Os estudos folclóricos e da cultura popular no Brasil


No Brasil, o olhar sobre a cultura popular remonta aos estudos iniciados por Silvio
Romero, no final do século XIX, na emergência da República e sob a necessidade de se forjar
o povo brasileiro, caracterizado pelo encontro de diferentes matrizes culturais. Anos mais
tarde, Mário de Andrade e os folcloristas, herdeiros da tradição romântica, produzirão
levantamentos, reflexões e estruturarão políticas públicas em torno dos estudos folclóricos e
da cultura popular.
Se a primeira produção sistemática em torno da cultura popular, bebia mais
diretamente das fontes do grotesco realista para, encontrar nos tipos representativos das três
raças formadoras da cultura brasileira, um problema de difícil solução, cuja saída se daria pelo
branqueamento gradual da população, o modernismo brasileiro, herdeiro das vanguardas que
retomam a profundidade romântica e a busca das raízes e da poesia original do povo,
encontrará na cultura popular e na linguagem da rua, fonte fundamental para construção da
nação.
Mário de Andrade, professor de música, poeta, escritor, pesquisador e, finalmente,
gestor público do primeiro Departamento Municipal de Cultura, além de autor do anteprojeto
que levaria a estrutura inicial do primeiro Serviço Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
– o SPHAN, será figura fundamental desse processo de inclusão da cultura popular no
imaginário da nação e no “espaço político, institucional e jurídico do país” para usar o objeto
de análise de Elder P.M. ALVES (2011: 125).
Na sua principal obra ficcional, Macunaíma e nos estudos realizados em Danças
Dramáticas do Brasil, em que há um primeiro exercício de classificação das expressões
populares, Mário de Andrade, expressa tanto a busca romântica que traz na análise do popular
a dicotomia do inculto e do letrado, do selvagem e do civilizado, como também traz, no seu

561

V V
discurso, o reconhecimento, senão o deslumbre frente a complexidade do que assiste, em um
olhar que se assemelha e se põe a compilar tanta riqueza, em uma atitude semelhante a de
Rabelais sobre a imensa tradição cômica popular de seu tempo.
Contemporâneos seus, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo e toda uma geração de
escritores modernistas, realizarão pesquisas e levantamentos fundamentais para o estudo do
folclore e da cultura popular brasileira. Os folcloristas virão na sequência, aprimorando os
primeiros levantamentos e classificações realizados e ampliando o alcance daquela
compilação. A Carta do Folclore Brasileiro de 1951 e, mais tarde a Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro são a expressão maior dessa geração (CARVALHO, 1992). Trata-se,
basicamente, de desenvolver programas para a “preservação, compilação e estudo do
folclore”, de acordo com uma visão que se propõe a focar “os valores tradicionais” em
ameaça permanente pelo avanço da urbanização e da cultura de massa, pela industrialização e
os meios modernos de comunicação.
Como na visão romântica e essencialista, apontada por CHARTIER (1995) trata-se de
procurar preservar a cultura autêntica do povo, numa referência clara “as raízes” culturais e
sua origem mítica. É, neste momento, que se inicia um importante diálogo latino-americano e
uma intensa troca que, de acordo com CARVALHO determinará o mesmo clima intelectual
que levou à Carta del Folclore Americano, escrita em Caracas, em 1970, por folcloristas de
vários países latino americanos, assim como a criação do Instituto Interamericano de
Etnomusicologia y Folklore (INIDEF), naquela mesma cidade.
No diálogo aberto pelo Instituto ao longo dos seus dez anos de existência, no entanto,
há um forte questionamento dos pressupostos teóricos e conceituais em torno da preservação
e compilação da cultura tradicional frente ao inegável papel e impacto dos meios de
comunicação de massa e uma atenção à cultura popular urbana. As contribuições de Néstor
Garcia Canclini, neste momento, são destacadas por CARVALHO (1992: 25).
De um lado, o pesquisador argentino radicado no México questiona a visão
apocalíptica, segundo a qual as expressões do folclore estão em vias de desaparecimento; por
outro lado, o folclore ou a cultura tradicional popular é apenas um fragmento do que é a
cultura popular e, na linha proposta por CHARTIER, será preciso estudar os usos e as
interpretações populares das novas tecnologias da comunicação, mais do que admiti-las como
dominação ou homogenização consumada; finalmente e, em função do que acabamos de
dizer, a noção de autenticidade utilizada por diversos autores é posta em cheque, sobretudo
num momento marcado pela heterogeneidade e hibridação, daí a sugestão de que se abandone

562

V V
a diferenciação entre folclórico e popular e se adote o entendimento de que se trata de
empreender o estudo das “culturas populares”, no plural (CARVALHO, 1992: 25).
A reação daqueles primeiros folcloristas, representados por Isabel Aretz, diretora do
Instituto venezuelano, ao longo de todos aqueles anos, é de que é preciso garantir o estudo da
“produção do bem cultural que circula e é usado pelos grupos sociais ou comunidades”
(1992:25) e cuidar, nas palavras do próprio José Jorge de CARVALHO, do perigo de que
uma visão de cultura popular, tão generalizadora, conduza a uma paralisação conceitual e,
logo, operacional e política.

De acordo com o autor, é preciso ver que “no fundo, enormes diferenças continuam
pulsando”:

se por um lado toda a promessa da indústria cultural está ligada


basicamente a experiência do transitório, os outros universos culturais
trabalham sempre dentro de uma tradição, comentando-se e autoreferindo-se
constantemente (…) contribuindo, justamente, para a construção de uma
memória coletiva. (CARVALHO, 1992, p.32).

E, admitindo-se as interpenetrações inevitáveis, há, segundo o autor:

algo específico no folclore que não se perdeu: ele ainda funciona


como um núcleo simbólico para expressar um certo tipo de sentimento, de
convívio social e de visão de mundo que, ainda quando totalmente
reinterpretado e revestido das modernas técnicas de difusão, continua sendo
importante, porque remete à memória longa. (CARVALHO, 1992, p. 32)

Parecem ser, finalmente, a expressão de “comunidades afetivas” no dizer de Maurice


Halbwachs citado Michael POLLAK (1989: 3) que com sua força quase institucional,
reforçam a “coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo”.
Aqui, o exemplo inicial do Ticumbi a serviço da memória e da coesão quilombola no
Sapê do Norte capixaba, parece ser a síntese feliz dessa condição de núcleo simbólico, de
convívio e coesão social, de memória longa, não fosse sua história crivada de dor e de perdas
irreparáveis no embate concreto daquele grupo com seus gigantes nacionais.
Um possível exemplo do que POLLAK identifica como “memória subterrânea” à
construção de uma “memória nacional” o Ticumbi, de certa forma, supera essa condição e
traz à tona, inclusive, um novo recorte geográfico para o estado do Espírito Santo, o do Sapê
do Norte, parte de dois municípios seus e expressão da territorialidade daquele grupo
específico; além disso, é parte de um complexo de saberes locais, (porque não?) folclóricos,
de raiz, de memória de longuíssima duração que, graças ao engajamento político de seus

563

V V
representantes, à mediação de pesquisadores de diferentes áreas e a criação de espaços
políticos, institucionais e jurídicos do próprio Estado nacional que, em outra via, o oprime.
O Ticumbi é exemplo, finalmente, das contradições do Estado brasileiro, que a
despeito mesmo do “apreço concedido ao tema da cultura popular brasileira” (ALVES, 2011:
127), no governo iniciado em 2003, com o Partido dos Trabalhadores, mantém projetos
desenvolvimentistas que põem sistematicamente em risco a coesão e as condições materiais
de existência de inúmeros grupos culturais, ao longo do território nacional.
Outras contradições poderiam ser assinaladas, tais como as levantadas por ALVES
(2011) em sua análise do desenvolvimento das políticas de registro de bens do patrimônio
imaterial, sua difícil operacionalização por parte dos produtores desses bens e da consequente
manipulação dessa prerrogativa por parte do próprio estado, nas suas instâncias estaduais e
municipais, em franco acordo com a indústria do turismo local e a indústria cultural que lhe
dá apoio e que banaliza, desenraíza e, sobretudo, aliena o “bem” registrado de seus produtores
de origem.
As políticas em torno da promoção e do reconhecimento da “diversidade cultural”
como aponta Antônio Flávio PIERUCCI e Nancy FRASER parecem ser outra grande
contradição desse Estado brasileiro, a despeito “do apreço concedido à cultura popular”,
claramente identificável no seu esforço de “constitucionalização da cultura”, no aumento
expressivo de inversão direta ao fomento à cultura, numa clara política de distribuição
regional dos recursos, entre outras medidas que vêm sendo compiladas e analisadas em
trabalhos como o de ALVES (2011) e Antônio Albino Canelas RUBIM (2011).
“Cilada da diferença”, o discurso e as políticas em torno da aparentemente simpática e
inclusiva noção de “diversidade cultural” reforça os sentimentos essencialistas que dividem os
grupos historicamente invisibilizados e marginalizados tanto em termos simbólicos como
materiais, dando-lhes a ilusão de uma visibilidade simbólica, onde se é um “único”, em meio
a muitos outros “únicos”, “autênticos”, ao mesmo tempo em que se tira de foco a condição
material da existência de cada grupo, a questão da distribuição e da justiça social,
propriamente (FRASER, 2002).
Tendo em vista as contradições apontadas e, tendo como pressuposto, a importância da
memória de longo prazo e de seu peso para a manutenção do grupo e para a busca por justiça
social inclusive, parece-nos, relevante a proposição de CARVALHO por um “novo
pluralismo cultural”, “um pluralismo simbólico radical”, um “pluralismo popular”:

564

V V
porque no popular já está colocada essa diversidade de interesses,
dada pela heterogeneidade dos segmentos que o compõem (…) essa
equanimidade de acesso às diferenças, sem arriscar, a priori, a formulação de
nenhum tipo de trajetória ou movimento evolutivo. (CARVALHO, 1992,
p.34)

Para tanto, o autor, claramente identificado com seu papel de mediador e com a visão,
segundo a qual a escolha dos conceitos de cultura determina a formulação de políticas
culturais, propõe um novo entendimento dos conceitos de nação, identidade e povo:

não como substantivos, como nos tempos de Herder, mas como


entidades processuais, como movimentos coordenados de vários grupos
ligados entre si historicamente a caminho da convivência plural, isenta de
qualquer direção moralizante a priori, porém, viva, pulsante. Dada a
desproporção do poder de difusão entre a indústria cultural e as tradições
folclóricas e populares locais e regionais, construir esse pluralismo cultural
seria já passo maior para a retomada do caminho utópico, onde o bem-estar
da cultura, criativa e plena em todos os seus níveis, seria um indicador
positivo do bem-estar da sociedade como um todo. (CARVALHO, 1992: 34
e 35).

Claramente identificado com a mediação de Goethe entre a cultura popular e a cultura


letrada, José Jorge de CARVALHO – esse antropólogo que se põe a fazer a mediação entre a
universidade, a cultura popular e o governo brasileiro – propõe-se a revisar a proposta
herderiana, a partir do entendimento de sua composição por processos históricos e não por
entidades absolutas ou estáticas, que dêem visibilidade e condição de existência às memórias
subterrâneas ou afetivas dos grupos e procurem entender os diferentes usos e interpretações
dos recursos tecnológicos e de comunicação de massa que tomam a cena das cidades e dos
campos brasileiros, num exercício que parece se aproximar da forma de ver a cultura popular
rabelaisiana, identificada com seu poder revigorador e de anunciação de um novo mundo.

6. Bibliografia

ALVES, Elder P.Maia - O lugar das culturas populares no sistema MinC: o sertão e a
institucionalização das políticas culturais para as culturas populares. In: ALVES, Elder
P.Maia (org.) - Políticas culturais para as culturas populares no Brasil Contemporâneo.
Maceió-AL: ed.UFAL, 2011. 125-174.
ANDRADE, Mário de – Macunaíma – o herói sem nenhuma caráter, 1926.
BAKTHIN, Mikhail – A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de
François Rabelais. São Paulo. Hucitec/Brasília. UnB, 1987.

565

V V
BOURDIEU, Pierre – Você disse popular? In: Revista Brasileira de Educação. nº1. jan-fev-
mar-abr., 1996: 16-26.
BURKE, Peter – A descoberta do povo. In: BURKE, Peter - A cultura popular na Idade
Moderna – Europa – 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 19-32.
CARVALHO, José Jorge de - O lugar da cultura tradicional na sociedade moderna. In:
Seminário Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. Instituto Nacional do
Folclore, coordenadoria de Estudos e Pesquisas, Rio de Janeiro: 1992: 23-38.
CHARTIER, Roger - “Cultura popular” revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, nº 16, 1995, p.179-192.
FERREIRA, Simone Raquel Batista – Saberes das Festas e das Brincadeiras. In:'Donos do
lugar': a territorialidade quilombola do Sapê do Norte – ES. Doutoramento em Programa de
Pós-Graduação em Geografia. Orientador Prof.Dr.Carlos Walter Porto-Gonçalves, Niterói,
Programa de Pós-gradução em Geografia - UFF,, junho 2009. p. 220-228.
FRASER, Nancy - A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e
participação. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 63. Universidade de Coimbra-Portugal
CES: Outubro, 2002: 7-20.
PIERUCCI, Antônio Flávio - Ciladas da Diferença. In: Tempo Social-Rev.Social. São Paulo,
USP, volume 2(2): 7-33, 2.sem. 1990.
POLLAK, Michael - Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol.2, n.3, 1989. p. 3-15.
RUBIM, Antônio Albino Canelas – As políticas culturais e o governo Lula. São Paulo: ed.
Fundação Perseu Abramo, 2011.

566

V V
ESTUDO PRELIMINAR SOBRE OS PROCESSOS DE INRC E REGISTRO DAS
CONGADAS MINEIRAS: MANUTENÇÃO DA TRADIÇÃO DO REINADO,
POLÍTICAS CULTURAIS E TENTATIVAS DE CONSTRUÇÃO DE DIÁLOGOS
ENTRE O IPHAN E OS DETENTORES EM SANTO ANTONIO DO MONTE
Francimario Vito dos Santos1

RESUMO: As congadas ou reinados são manifestações afro-brasileiras que compõem os


festejos de N. Sra. do Rosário, são Benedito e santa Efigênia, costumes herdados dos negros
africanos. Essas homenagens se dão em forma de bailados, músicas e fartas refeições. Tais
práticas culturais podem ser encontradas em várias regiões do Brasil e remetem aos costumes
dos povos europeus e africanos aqui trazidos no período da colonização. Em 2012, o Iphan
deu início ao processo de inventário das congadas mineiras, cujo objetivo é será o
reconhecimento da prática como patrimônio cultural imaterial do Brasil. A partir disso,
pretende-se refletir sobre as questões políticas e culturais, que envolvem o reinado de Santo
Antônio do Monte, tendo como ponto de partida o acompanhamento sistemático das
tentativas de construção de diálogos entre os entes institucionais (Iphan, Estado e Município)
e os detentores, na elaboração da política.

PALAVRAS-CHAVE: Congadas; Patrimônio imaterial; INRC; Políticas culturais.

APRESENTAÇÃO

No final da década de 1980 do século passado, mais precisamente com a Constituição


de 1988 é dado um grande destaque aos “bens culturais” de caráter “imaterial”. Passa a ser de
responsabilidade do Estado a tarefa de reconhecer e promover a diversidade cultural do país
como sendo de inestimável valor e significado. Isso se deve ao reconhecimento de que esses
bens contribuem para o fortalecimento do sentimento de identidade e de cidadania entre os
indivíduos que produzem e são produtos da cultura.
Para Gonçalves (2007), a diferenciação das políticas culturais em bens de natureza
material e os de natureza imaterial, além de permitir uma inovação e flexibilização nos usos
da categoria patrimônio, “oferece também a oportunidade de aprofundar as reflexões sobre os
significados que podem assumir essa categoria” (GONÇALVES, 2007. p. 111). Acrescenta
ainda que “a ênfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos aspectos ideais e
valorativos dessas formas de vida” (GONÇALVES, 2007. Idem). Esse novo olhar sobre a
política de preservação cultural é pensado tendo-se como parâmetro a noção de tradição sob

1
Mestre em Antropologia Social – PPGAS/UFRN. Especialista pelo Programa de Especialização em Patrimônio
– PEP/IPHAN. Professor do Centro Universitário de Formiga – UNIFOR/MG. Contato:
francimariovitos@gmail.com

567

V V
uma perspectiva processual e dinâmica das transmissões dos saberes, tal qual sugerem
Hobsbawm & Ranger [(1997), 2002].
As políticas de salvaguarda dos bens culturais de natureza imaterial no Brasil têm
início com a criação do Programa Nacional de Referências Culturais - PNPI, mediante o
Decreto 3.551, de 04 de agosto de 2000. Também foi criada uma metodologia denominada de
Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC2, cujo objetivo é descrever e
documentar cada bem imaterial identificado como referência cultural significativa para os
grupos sociais relacionados a um território ou tema cultural. Tais informações servirão de
base para o processo de Registro, penúltima etapa da política, uma vez que após o
reconhecimento da prática como bem cultural é elaborado um plano de salvaguarda
juntamente com os detentores.
A implementação do programa foi iniciada pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular – CNFCP, no âmbito do projeto “Celebrações e Saberes da Cultura Popular”.
Somente em 2004, quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional – IPHAN
institui o Departamento de Patrimônio Imaterial – DPI, é que as políticas de preservação dos
bens intangíveis passam a ser dirigidas pelo referido departamento. Entre o período de 2002 a
2015 o Iphan concluiu mais de trinta processos de Registros, com ações localizadas em todas
as regiões do Brasil. Trata-se de referências culturais cujas “representações configuram uma
‘identidade’ da região para seus habitantes, e que rementem à paisagem, às edificações e
objetos, aos fazeres e saberes, às crenças e hábitos” (FONSECA, 2000. p. 11). Do ponto de
vista etnográfico, referências culturais compõem-se de repertórios e saberes materiais e
simbólicos que as comunidades e os grupos assumem como suas referências, ou seja, como
práticas culturais que imprimem um significado na vida de seus adeptos, sendo impregnadas
de valores.
Portanto, é no âmbito dessa política que as Congadas mineiras, a partir da aplicação do
INRC em curso desde o ano de 2012, vivenciam o processo de patrimonialização do estado. A
intensão do Iphan é que, após sistematização dos dados coletados, estes possam subsidiar o
Pedido de Registro. E é com base em observações ainda preliminares que se insere o presente
artigo, cujas reflexões recaem sobre as tentativas de compreender a construção de diálogos
entre os congadeiros e o Iphan, em especial, no que diz respeito às congadas da cidade de

2
O INRC - Inventário Nacional de Referências Culturais prevê três etapas: Levantamento preliminar,
Identificação e Documentação.

568

V V
Santo Antônio do Monte – MG3. É de crucial importância que a política seja conduzida
conjuntamente, de modo que a base social seja mobilizada e possa participar ativamente das
decisões institucionais.
Como enfatiza o Iphan (2010. p. 21), uma característica de fundamental importância
do INRC é o envolvimento da coletividade através da participação dos detentores,
transmissores e usuários dos bens culturais, não apenas como informantes, mas também como
intérpretes dos sentidos e valores atribuídos a esses bens e como agentes das ações de
salvaguarda. Segue-se o princípio constitucional cidadão de envolver a sociedade civil nas
ações políticas conduzidas pelo Estado, através da mobilização da base social.
Dessa forma, pretendo refletir sobre as questões políticas e culturais que são inerentes
ao processo de reconhecimento institucional das congadas, em especial sobre o Reinado de
Santo Antônio do Monte, levando em consideração o ponto de vista o entendimento que os
detentores possuem sobre o papel do poder público nos três níveis governos; possíveis
conflitos; existência ou não de ações de mobilização da base social; bem como a tentativa de
estabelecer diálogos entre os entes institucionais (Iphan, Estado e Município) e os
congadeiros na elaboração da política. Enfim, poder refletir sobre uma política de Estado cuja
premissa consiste no empoderamento (através do acesso a educação e informação, aproriar-
se) dos sujeitos como protagonistas de suas criações culturais, de modo a envolver a
comunidade no processo de inventários, sem, no entanto perder de vista a construção de
diálogos que é perpassada por questionamentos, conflitos e negociações.
Antes de aprofundar o tema das congadas, farei a contextualização sobre o lugar onde
acontece a Festa de Reinado. Em seguida, introduzirei uma breve discussão acerca da
trajetória das políticas de preservação do patrimônio imaterial, instituídas pelo Iphan;
introduzo de forma preliminar a dinâmica da festa e, por último, trago alguns
questionamentos sobre a aplicação da politica cultural, apontando possíveis lacunas e
fragilidades tanto na forma de condução dos diálogos junto aos congadeiros, como na
deficiência estrutural do órgão e o desinteresse do poder público municipal em apropriar-se da
política.

CONGADAS: ORIGENS E SIGNIFICAÇÕES NO BRASIL


A respeito da origem, especificidades e as primeiras manifestações do auto dos congos
no Brasil, vários estudiosos deram suas contribuições. Destacam-se Ramos (1935; 1940),

3
Em Santo Antônio do Monte as congadas recebem o nome de Festa de Reinado, em homenagem à coroação de
N. Sra. do Rosário.

569

V V
Cascudo [(1954), 2001], Brandão (1978; 1987; 1989); Bastide (1971); Pereira de Queiroz
(1976); e Gomes e da e Pereira (1988). Mesmo que alguns autores defendam que a origem do
Congado no Brasil possui influência europeia, associando-a as lutas religiosas da Idade
Média, “a hipótese mais forte é a que defende a origem afro-brasileira do culto” (GOMES E
PEREIRA, 1988. p. 175).
Vale ressaltar também que foi o processo de cristianização europeu que introduziu o
mito de Nossa Senhora do Rosário à África, impondo seu culto aos negros que,
posteriormente vieram escravizados para o Brasil. Tal ideia é bastante discutida por Bastide
(1971) na obra “As religiões africanas no Brasil”. Assim sendo, são pertinentes as colocações
dos estudiosos Edson Carneiro e Câmara Cascudo, na tentativa de estabelecer uma possível
origem para o folguedo. Para o primeiro, “os congos seriam um ritual inicialmente ligado à
identidade de negros africanos, que se desvirtuaram, sob pressão de senhores brancos, em
algumas danças dentro dos festejos católicos” (CARNEIRO, 1965. p. 40); já para o segundo,
trata-se de “um folguedo de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradições
históricas, os usos e costumes tribais de Angola, e do Congo, com influências ibéricas no que
diz respeito à religiosidade” (CASCUDO, 2010. p. 149). O Congado é formado basicamente
de três elementos: a coroação de reis do Congo; as embaixadas, que são decorrentes de poder;
e bailados de guerreiros, acrescenta Cascudo. Por fim, ele contribui afirmando que
“especificamente, como vemos e lemos no Brasil, nunca esses autos existiram no território
africano” (Idem. p. 150) 4.
De acordo com Gomes e Pereira (1988) a estratégia de coroação de reis foi um recurso
utilizado pelo poder do Estado e da Igreja para o controle dos escravos. “Era uma forma de
manutenção aparente de uma organização social dos negros” (GOMES E PEREIRA, 1988. p.
182). Para Bastide (1971) “o culto de santos negros ou Virgens negras foi, de início, imposto
de fora ao africano, como uma etapa da cristianização; e que foi considerado pelo senhor
branco como um meio de controle social, um instrumento de submissão do escravo”
(BASTIDE, 1971. p. 163).
Em Minas Gerais, conforme relatam os pesquisadores Gomes e Pereira (1988), a
primeira referência à coroação de reis se dá pela obra clássica de Antonil – Cultura e
Opulência no Brasil – na descrição de viagens realizadas entre 1705 e 1706. No que diz

4
Gomes e Pereira (1988) afirmam que a coração de reis do Congo tem registro com ocorrência em 1674, em
Recife. De acordo com Ramos (1935), na obra “O Folclores Negro do Brasil” os autos populares dos Congos
vêm do início do século XVII, e nada mais eram do que sobrevivências da coroação de monarcas africanos nas
terras de origem. Por último afirma Edson Carneiro (s/d), que a notícia mais remota da instituição do rei de
Congos em Pernambuco consta de 1706.

570

V V
respeito à Festa de Reinado em Santo Antônio do Monte – MG a pesquisadora Eloisa Borges
estabelece um diálogo estreito com o pensamento antropológico, tanto por utilizar-se da
técnica da observação participante, consequentemente, do método etnográfico como pelas
escolhas do referencial teórico. Nesse trabalho é possível perceber que foi na segunda metade
do século XIX, que a Festa do Rosário teve seu início no município, mas possivelmente em
1860 ela já era realizada. O que é possível afirmar que a festa de Reinado é, sem dúvida, o
festejo mais antigo do município.
Prossegue Borges (1997) afirmando que em Santo Antônio do Monte não existe a
representação de embaixadas nem dos bailados guerreiros. “O congado tem como principais
elementos constitutivos as cerimônias de coroamento de reis negros, perpétuos e festeiros, os
cortejos processionais, as danças e cantigas” (BORGES, 1997. p. 12). Supostamente três
motivos contribuíram para o processo de fragmentação da totalidade das congadas:
transformações histórica, econômica, social e política; a morte dos velhos congadeiros, e a
perseguição implacável da Igreja Católica, destaca a autora.
Pelo que consegui apurar em conversas com os congadeiros, mesmo que de forma
informal, todos deram notícias de um período de interrupção dos festejos de reinados na
cidade. Eles atribuem tal feito a intolerância religiosa de um certo padre, que veio a proibir a
festa, associando os festejos negros a práticas de feitiçarias5.

OS FESTEJOS DE REINADO
Congada ou reinado é um festejo religioso-popular realizado em louvor a N. Sra. do
Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, composto por uma série de rituais, danças, cantos
sagrados e abundantes refeições, tudo harmonizado ao som de pandeiros, caixas e sanfonas. A
manifestação aglutina uma diversidade de sons, formas, movimentos, coreografias e adereços
multicoloridos, como fitas, brilhos, colares (rosários) entre outros.
As homenagens proferidas à Virgem do Rosário são conhecidas na cidade como
“Festa de Reinado”, mas em outras regiões do país pode receber o nome de “congadas”, como
demonstram pesquisas realizadas por alguns estudiosos. “Existe uma semelhança entre os
termos Congos, Congada e Congado. A denominação congo é mais usada no Norte e
Nordeste, designando a totalidade do auto; pode também designar uma guarda ou terno como
em Minas Gerais” (GOMES E PEREIRA, 1988. p. 183). Ainda sobre o termo “Reinado”,

5
É mais provável que [a festa] tenha sido proibida de 1948 a 1960. Contudo, há controvérsia em torno da
proibição. Algumas pessoas responsabilizam o Papa Pio XI (1922 a 1939). Todavia, é mais provável que a Festa
tenha sido proibida pelo padre alemão, visto que a referida data coincide com o período de permanência deste
padre à frente da paróquia (BORGES, 1997. p. 06. Grifo meu).

571

V V
principalmente nas regiões mineiras, acrescentam os autores: “é um dos componentes do
Congado, exatamente aquele que se refere à coração de reis e à constituição de uma corte.
Esse fator se tornou muito forte em MG, pela atuação das Confrarias” (Idem).
A Festa do Reinado já faz parte do calendário festivo-católico da cidade, acontece,
anualmente, no mês de julho, quando os mastros em homenagem a cada santo são hasteados
em frente à capela de Nossa Senhora do Rosário. Como afirma Roberto DaMatta, “O rito dá
asas ao plano social e inventa, talvez, sua mais profunda realidade” (DAMATTA, 1981. p.
31). Brandão (1989), a partir de estudos realizados sobre as festas no interior do Brasil
central, também observa que a festa é “o lugar simbólico onde cerimonialmente separam-se o
que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silêncio não-festejado, e aquilo que deve ser
resgatado da coisa ao símbolo, posto em evidência de tempos em tempos, comemorado,
celebrado”. (BRANDÃO, 1989. p. 08).
Assim posto, o reinado é uma Festa que, certamente, faz parte da vida diária de uma
parte significativa da população da cidade. Embora muitos devotos participem dos festejos
com o objetivo de pagar suas promessas6, de acordo com Borges (1997. p. 01), a Festa
também contribui para promover reencontros com antigos conhecidos, promovendo assim a
integração de todos. Ainda para Brandão (1989), a festa toma a seu cargo os mesmos sujeitos,
objetos e estrutura de relações da vida social e os transfigura.
Para Borges (1997), não há como participar do evento sem que se dê alguma coisa de
si, a dádiva, tal qual pensou Macel Mauss [(1950); 2003] é uma parte intrínseca da Festa.
Entre todas as formas de dádivas presentes na Festa destacam-se as decorrentes da promessa7.
“A promessa é um fenômeno básico, faz o sistema funcionar, quase todos os participantes da
Festa estão pagando promessa. É porque as pessoas continuam fazendo promessas que a
realização do evento está garantido”, enfatiza Borges (1997). A colocação da autora é
pertinente, sobretudo porque, se não houver mais pagantes de promessas, denominados de
“festeiros”, devotos que patrocinam os almoços para os congadeiros, a festa perde boa parte
do significado de sua existência ritual e material. Pereira de Queiroz (1976), na sua obra “O
campesinato brasileiro” relata que, “por toda parte do Brasil tradicional, a festa se estrutura

6
De acordo com o vice-presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Geraldo Aparecido da Silva
(Dinho), há uma “lista de espera”, de pessoas interessadas em oferecer os almoços nos dias de reinado, que se
estende até o ano 2016. A lista para oferecer “os cafés” também segue a mesma dinâmica. A lista é composta por
nomes de devotos que fizeram promessas aos santos (N. Sra. Rosário, são Benedito e santa Efigênia), e como
forma de agradecer patrocinam um dos almoços aos participantes dos cortes de reinado.
7
STIEL (1996) define a promessa como um compromisso de curto prazo ou de uma dívida que pode ser paga,
sustando o contrato. Já o voto tem a conotação de uma relação mais permanente que compromete o fiel por uma
longa duração de tempo.

572

V V
sempre do mesmo modo. Cada ano é escolhido um festeiro da festa, encarregado de organizá-
la e de pagar parte da despesa. Fica a seu cargo, por exemplo, a alimentação de todos que
virão comemorar da data” (PEREIRA DE QUEIROZ, 1976. p. 82).
Ainda de acordo com Brandão (1978), em estudos realizados sobre as congadas de
Pirenópolis – GO, era comum o festeiro oferecer aos participantes um tabuleiro com doces e
salgados, conhecidos por “Verônicas e Pães do Divino” (BRANDÃO, 1978. p. 139). Na
comunidade negra mineira dos Arturos, onde Gomes e Pereira (1988) realizam uma densa
pesquisa etnográfica sobre o Reinado, é tradição oferecer almoços aos participantes
dançadores. Algo semelhante acontece durante as festividades do Reinado em Santo Antônio
do Monte. Ainda que de forma exploratória, presenciei as chegadas e concentração dos cortes
de reinados às dependências do salão da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, lugar onde
são servidos os almoços e os jantares aos congadeiros8. De fato os almoços são elaborados por
várias mulheres, todas voluntárias, muitas delas estão doando seu trabalho em troca das
graças alcançadas.
Na região do Serro/MG, lugar onde a antropóloga Patrícia Trindade Maranhão Costa
(2012) realizou sua pesquisa, o ritual em torno da comida, tal qual como acontece em Santo
Antônio do Monte também é um elemento central nos festejos de Reinado. “Encaminhados
para o almoço, os ternos conduzem o festeiro que lhes fornecerá a refeição. A comida está
disposta em uma mesa, sendo, normalmente, distribuída pelos donos da casa a cada terno após
a sua apresentação” (COSTA, 2012. p. 106-107). Enquanto que no Serro os almoços são
servidos nas residências dos festeiros, em Santo Antônio do Monte o almoço, mesmo sendo
patrocinado pelo festeiro, é servido nas dependências da sede da irmandade9.

REINADO E PLURALIDADE DE SENTIDOS EM SANTO ANTÔNIO DO


MONTE Santo Antônio do Monte situa-se a 150 Km de Belo Horizonte, no oeste mineiro10.

8
É de práxis durante os três dias de reinados o oferecimento de café da manhã aos participantes dos cortes. Para
tanto é necessário que o devoto pagante de promessa tenha dado seu nome aos organizadores da festa, com
antecedência, haja vista ser grande a procura de pessoas querendo retribuir as “graças” alcançadas. Em conversa
com o vice-presidente da irmandade, o Dinho, ele afirmou que, atualmente, as despesas com almoços para cada
festeiro, gira em torno de R$ 12.000,00. O que evidencia que somente pode adentrar na categoria “festeiro”
pessoas de posses.
9
A sede da irmandade possui um amplo salão de eventos com cadeiras, bebedouros de água, banheiros e uma
cozinha equipada com fogões industriais, freezers, utensílios – panelas, pratos, talheres, etc., usados durante o
período do Reinado para o preparo dos almoços e durante o ano nos eventos realizados para angariar recursos. O
cardápio servido aos congadeiros no decorrer do período de Reinado é composto por: tutu de feijão, macarrão,
salada, frango cozido e almondegas fritas. Todo festeiro que for patrocinar um almoço já sabe que o cardápio é
fixo, não pode ser modificado.
10
A origem da cidade remonta ao ano de 1782, quando foi legalizada a escritura de doação de seismaria “Alta
Serra” para a formação de um povoado. Como bem destaca Borges (1997) no ano de 1832, o povoado contava

573

V V
A primeira capela dedicada à N. Sra. do Rosário foi construída no princípio do século XX.
Nos meados de 1925 por estar muito deteriorada ela foi demolida para dar lugar a uma capela
mais ampla. No que se refere aos aspectos econômicos da cidade, incialmente, de acordo com
Borges (1997), a vida econômica centrava-se em torno da produção de café, açúcar e criação
de gado. Destes produtos, apenas o gado ainda é expressivo atualmente. Em 1915, surgiram
os primeiros barracões para a fabricação artesanal de “foguete” (fogos de artifícios).
Atualmente, há trinta e três fábricas de foguetes em funcionamento no município, o que gera
uma média de dois mil empregos diretos e três mil indiretamente11.
A Festa de Reinado é uma manifestação que apresenta estrutura e hierarquia
próprias, regras disciplinares e atores sociais com papeis definidos. De acordo com o texto
Informativo da Tradicional Festa de Reinado (2013), o marco oficial da Festa é acontece
quando as congadas se juntam nas ruas para buscar os reis para a entrega de coroas, e é
composto da seguinte forma: soldados de linha; major; primeiro, segundo e terceiro capitão;
mordomos; reis festeiros; reis perpétuos e reis congos, respectivamente.
O Reinado é composto por uma complexa rede de significados (GEERTZ, 1989) e
atores, que pode ser observada a partir de vários rituais que acontecem no decorrer das
comemorações. Os festejos de Reinado se iniciam com o levantamento dos mastros. Para
Costa (2012), os mastros possuem um significado simbólico que remontam os momentos de
segregação vividos pelos negros, pois quando estes não podiam entrar na igreja o louvor à
santa era realizado em torno da fogueira e do mastro. Os mastros simbolizam para a
população devota que a cidade está em louvação, tempo marcado pela excepcionalidade.
Ainda sobre a importância simbólica dos mastros, Gomes e Pereira (1988) afirmam que se
trata de um momento de intensa emoção, pois quando se eleva o madeiro elevam-se
simultaneamente os corações.
As homenagens de louvor começam pela manhã, quando os cortes, embalados pelos
cânticos e coreografias percorrem as ruas da cidade despertando-a para o período festivo. Ao
meio dia, os cortes se alternam no almoço, proporcionado pelos festeiros. Em seguida
continuam as visitas aos mordomos, reis e rainhas festeiros. No ano de 2014 o cortejo saiu da
residência do rei festeiro e seguiu em procissão para capela do Rosário. Na ocasião foi

com uma população de 3.594 habitantes, sendo a maior parte de negros cativos. O povoado foi elevado à
categoria de cidade em 1875. Conta atualmente com uma população de 25.975 habitantes.
11
Dados fornecidos pelo Sindicato das Indústrias de Explosivos no Estado de Minas Gerais – SINDIEMG.
Censo realizado pela instituição nas empresas em 30 de setembro de 2014.

574

V V
celebrada missa campal o pátio da capela. Após a cerimônia, os mordomos levantaram os
mastros (uma bandeira para cada santo), seguido da queima de fogos pirotécnicos.
Um mês após, em agosto, acontece a Festa de Reinado propriamente dita, na semana
em que se comemora a Assunção de Nossa Senhora. São quatro dias de festa. É o momento
que a cidade se transforma, sai do cotidiano e entra período extra-cotiadiano, impulsionado
pelos rituais em homenagem aos santos.
Os festejos têm início na quinta-feira pela manhã, prossegue durante o dia e a noite
acontece a Missa Conga12. Nesta celebração os vinte e três cortes entram, um após o outro,
nas dependências da igreja, cantando e dançando ao som do batuque das caixas. Nos outros
dias de festas os cortes seguem uma rigorosa agenda de compromisso: café da manhã, visitas
aos festeiros, almoço e jantar. Na sexta-feira, os reis festeiros do ano em curso entregam as
coroas recebidas ao Capitão-Mor da Festa na Igreja Matriz. No sábado, os cortes se
organizam para a entrega das Coroas aos reis festeiros do ano seguinte. No último dia de
festa, que acontece no domingo, depois de intensas atividades, acontece o encerramento dos
festejos, que é marcado pela celebração de uma missa, procissão para entrega das imagens à
capela de N. Sra. Rosário e arreamento dos mastros.

AS POLÍTICAS CULTURAIS E AS CONGADAS: POSSÍVEIS DIÁLOGOS,


TENSÃO, MOBILIZAÇÃO E INTERESSES DOS DETENTORES.
O processo de reconhecimento institucional das congadas mineiras pelo Iphan teve
início com a solicitação de Pedido de Registro das "Congadas de Minas", feito através de
ofício do Prefeito Municipal de Uberlândia, que pediu o reconhecimento da manifestação
como Patrimônio Cultural do Brasil. O documento foi acompanhado de cartas de apoio dos
municípios de Uberaba, Campos Altos, Ibiá, Frutal e Monte Alegre de Minas, e da
Associação dos Congos e Moçambiques de Nossa Senhora do Rosário de Ibiá - municípios
que integram a região do Triângulo Mineiro. O processo ficou estagnado no DPI, em Brasília,
por dois anos (2010 a 2012), até chegar à Superintendência do Iphan em Minas Gerais.
De acordo com a técnica e historiadora Corina Moreira, responsável pelo setor de
patrimônio imaterial, tal projeto apresenta algumas complexidades, tanto do ponto vista da
vasta extensão territorial do estado mineiro como do ponto de vista do recorte conceitual e
metodológico que a temática exige. Para que se execute um projeto dessa magnitude é
essencial contar com a participação de pessoas qualificadas encarregadas por treinar
12
Trata-se de um ritual religioso ocorrido no Centro Social São Lucas que contou com a presença dos reis e
rainhas, e dos vinte e três cortes de reinado, além dos representantes da Igreja Católica local. Cada corte ao
adentrar às dependências do espaço pedia permissão aos santos, em seguida seguia em direção ao altar cantando
e dançando seus bailados.

575

V V
pesquisadores, fiscalizar e acompanhar o andamento das ações. Não é o caso da realidade das
Superintendências do Iphan nos estados. Para se ter uma ideia do problema as ações de
patrimônio imaterial no estado de Minas Gerais são conduzidas por apenas dois técnicos. Sem
citar outras deficiências como a escassez de recursos financeiros, principalmente no tocante a
salvaguarda do patrimônio imaterial.
No mês de agosto de 2012, o Iphan/MG deu início a execução do projeto, mesmo
lidando com aquelas limitações. É importante destacar que tais ações não se limitam apenas
ao estado de Minas Gerais13. Em função da referida complexidade foi preciso traçar algumas
estratégias de trabalho que consistiu em dividir a fase de Levantamento Preliminar (primeira
fase da metodologia do INRC) em duas etapas14: a primeira etapa compôs-se de um
mapeamento exploratório realizado à distância, direcionado a Prefeituras Municipais,
Secretarias de Cultura e/ou Educação e associações representativas (via telefone, pesquisas na
internet, envio de ofício etc.), sem nenhum tipo de contato físico “in loco”, apenas como
conhecimento prévio para ajudar na construção do planejamento das etapas seguintes. Fora
isso, o Iphan realizou visitas em alguns municípios que compõem a região da grande Belo
Horizonte e nos cinco municípios da região do Triângulo Mineiro, cuja existência das
congadas já era de conhecimento dos técnicos. Foi formalizada aos detentores, entidades civis
e poderes públicos locais a proposta de realização do INRC e, posterior reconhecimento
através do instrumento legal de Registro.
Após a consolidação do apanhando geral, definiu-se os critérios para dar continuidade
a segunda etapa da Fase de Levantamento Preliminar do INRC das Congadas. Em dezembro
de 2013 deu-se início a realização de visitas “in loco” aos municípios que mantem viva a
tradição dos festejos de Congadas. Na ocasião as equipes de pesquisadores contratados
apresentaram o projeto aos congadeiros, membros da sociedade civil, moradores locais e
representantes do poder público local, em seguida aplicaram questionários, de modo a obter

13
Por se tratar da existência de uma manifestação cultural que encontra-se vigente, na grande maioria dos
estados da região Sudeste do Brasil, o Iphan definiu que o INRC das Congadas abrangerá os seguintes
territórios: Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Goiás. As Superintendências do Iphan nos
estados mencionados conduzirão suas pesquisas sobre as congadas, no que diz respeito a contratação das
empresas terceirizadas, prioridades, escolhas das regiões contempladas pelo projeto etc. As ações envolvem
desde a aplicar a metodologia de INRC, composta pelas fases de levantamento Preliminar, Identificação e
Documentação, até o Pedido de Registro das Congadas do Sudeste brasileiro.
14
Ainda enquanto consultor da UNESCO, no DPI em Brasília, no ano de 2012, tive a oportunidade de participar
de um seminário realizado pelo departamento, com a presença de representantes do Iphan nos cinco estados
envolvidos no processo, o corpo técnico do departamento e as equipes de pesquisas para discutir questões
metodológicas e conceituais inerentes ao projeto de Inventário das Congadas.

576

V V
informações mais específicas sobre o contexto das congadas dos municípios contemplados
pelo INRC das Congadas15.
Foi durante a reunião realizada pela equipe de pesquisadores contratados pelo Iphan,
realizada no dia 22 de julho de 2014, na sede da Irmandade dos Devotos de N. Sra. do
Rosário, em Santo Antônio do Monte, com a presença de integrantes da diretoria da
irmandade e alguns congadeiros, na qual eu estava presente, que comecei a levantar alguns
questionamentos sobre a política cultural em curso. As interrogações perpassaram, de um
lado, as políticas institucionais destinadas à preservação da cultura imaterial, do outro lado, os
receios e questionamentos manifestos pelos detentores ali presentes. Lamentavelmente não
compareceram ao evento os representantes do poder público municipal, sobretudo, gestores
da área de cultura, nem representantes de entidades da sociedade civil organizada. O fato
causou-me estranhamento, haja vista que, o estreitamento das relações entre o Iphan, Estados
e Municípios é fundamental para a eficácia de política do patrimônio imaterial,
principalmente, no que diz respeito à construção de parcerias. De ambos os lados do poder
público - Iphan e Prefeitura - percebi fragilidades na construção do processo de mobilização
da base social.
A partir de agora, passo a citar e comentar as principais dúvidas e questionamentos
levantados pelo público presente durante a reunião. Após uma breve explanação da
pesquisadora sobre o campo de atuação do Iphan a nível nacional, trajetória e exposição da
metodologia do INRC, foram expostos os motivos pelos quais o folguedo local foi escolhido
para ser inventariado. Mesmo no exíguo espaço de tempo foi possível informar aos
participantes os objetivos do projeto. Por último ela enfatizou a possibilidade das congadas de
Santo Antônio do Monte e demais municípios contemplados tornarem-se reconhecidas pelo
Estado como Patrimônio Cultural do Brasil, através do processo de Pedido de Registro.
Abriu-se, então, a sessão para os participantes expor suas dúvidas e questionamentos, bem
como para obter mais esclarecimentos sobre o tema.
Inicialmente a fala dos detentores estava impregnada de desmotivação, resquício
histórico do descomprometimento dos órgãos de Cultura do Estado de Minas Gerais e do
Município. De acordo com o vice-presidente Geraldo Aparecido é comum o poder público
estadual os procurarem para fazer pesquisas, entrevistas etc., em seguida, desparecem sem dar

15
Na segunda etapa da Fase do Levantamento Preliminar foram contemplados e visitados 57 municípios que
apresentaram festejos de congadas em plena atividade. A continuidade do processo de INRC será debatida em
conjunto com os congadeiros, em encontros regionais a serem realizados no decorrer de 2015.

577

V V
qualquer devolutiva dos resultados obtidos. Quanto aos questionamentos, parece-me que a
grande preocupação dos detentores era se o Iphan iria interferir na estrutura da Festa do
Reinado, consequentemente interferir na hierarquia dos cortes de Reinado. Havia também
uma expectativa em saber se o Iphan arcaria com recursos financeiros para beneficiar o
Reinado. De modo geral foram essas as questões/expectativas levantadas: 1) “O Iphan vai
ajudar financeiramente o Reinado?”, 2) “o Iphan irá interferir na organização, performance e
rituais do Reinado?”, 3) “quanto tempo levará até que as congadas sejam registradas?”
É crucial esclarecer que o fato de um bem cultural ser reconhecido como patrimônio
cultural dos brasileiros, não significa dizer que o Estado irá disponibilizar recursos para a sua
manutenção. Pois, “o objetivo da política é propiciar, pelos meios adequados à natureza do
bem, sua continuidade, com base na produção de conhecimento, documentação,
reconhecimento, valorização, apoio e fomento” (IPHAN, 2010. p. 23).
Quanto aos desabafos e decepções levantados pelos detentores, o que mais chamou a
minha atenção, foi o fato deles testemunharem que estavam cansados de serem iludidos com
as promessas direcionadas a eles pelos órgãos de cultura. Durante que desenvolvi consultorias
para UNESCO, cujos serviços foram desenvolvidos na área central do Iphan/DPI em Brasília
(2010 a 2012), uma das preocupações da diretoria era a importância de manter a base social
mobilizada e informada sobre todas as fases dos projetos de INRC e Pedido de Registo,
justamente para evitar a criação de falsas expectativas.
No entanto, para evitar a ocorrência de situação semelhante a que foi relatada pelos
detentores das congadas, é crucial que seja construído um canal de diálogos entre o poder
público e a comunidade, para que, ao longo da condução da política os grupos possam se
envolver no processo, uma vez que a produção de conhecimento produzida através dos
instrumentos da política será disponibilizada para benefício da própria coletividade.
O tempo de realização e conclusão de um INRC e, posteriormente, o Pedido de
Registro pode levar alguns anos, vai depender de alguns fatores. O principal deles é a
disponibilidade de recursos que precisa ser aprovado anualmente. Outra questão diz respeito
aos serviços prestados pelas empresas de pesquisas. Há casos, por exemplo, que após análises
do material apresentado pela contratada, consequentemente de parecer emitido pelo técnico
responsável pelo INRC, a prestadora de serviços poderá ser desliga por não atendeu às
exigências mínimas do contrato. Nesse caso faz-se outro processo licitatório para que outras
empresas interessadas possam atender ao chamamento público. Veja que durante todo o
processo a pesquisa de campo fica interrompida, até que uma nova equipe retome os

578

V V
trabalhos. Então, é preciso apresentar todas essas questões para os grupos envolvidos de modo
que fique evidente que se trata de uma ação que se desenvolverá em longo prazo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como já evidenciei no início do artigo a minha inserção no campo empírico das
congadas é bastante preliminar e incipiente; tudo foi sendo construído a partir do que ouvia
dos amigos sobre a manifestação e, sobretudo, da minha participação como expectador das
festas de Reinado em Santo Antônio do Monte. Portanto não tenho aqui o propósito de
realizar conclusões definitivas, mas mais trazer o tema para o debate e suscitar provocações
que sejam úteis na construção de problemáticas para futuras pesquisas. Talvez que possam
embasar conceitual e metodologicamente minha tese de doutoramento.
Durante as leituras que realizei sobre a contextualização das congadas no Brasil e,
posteriormente, nas Minas Gerais, foi possível compreender que se trata de uma prática
cultural que, embora tenha sido trazida na bagagem cultural dos negros africanos, ganhou,
aqui, especificidades jamais vivenciadas em outros lugares. Isso demostra estarmos diante de
uma tradição afro-brasileira.
A Festa de Reinado de Santo Antônio do Monte, que é composta de batucada, música,
desfiles e devoções aos “santos pretos” tem sido a chama que faz perpetuar, ano após ano, as
comemorações e louvores aos santos protetores, além de ser cada vez mais assimilada pelos
detentores como mecanismo que reforça a identidade negra dos grupos de congadeiros locais.
As promessas e ritos religiosos católicos também entram nessa composição, mas é possível
compreender outras nuances que assumiram outros significados. No caso das promessas é
possível perceber que atualmente vem sofrendo algumas alterações, uma vez que é preciso
patrocinar um almoço para os cortes de Reinado. Tal exigência financeira além de selecionar
quem pode fazer promessa aos santos, excluindo a população negra e pobre de participar dos
rituais simbólicos de cura porque parte dos festejos adquiriram ares mercantilistas. Mas isso é
tema para compor outro artigo.
No que tange às questões de cunho político, conceitual, metodológico e institucional
como as escassas informações disponibilizadas pelo Iphan às congadas a política dos
inventários e o andamento das ações, ausência de diálogo entre o órgão e os detentores,
esclarecimentos a respeito da condução dos trabalhos, tudo isso ainda carece de mais
detalhamento. Caso contrário, a premissa de mobilização da base social expressa na
Constituição Federal de 1988, que o Iphan tenta por em prática não terá sustentação. Sabe-se
que os órgãos de cultura nas três esferas de governos são castigados com falta de recursos, e o

579

V V
Iphan não é exceção. No entanto, há outras medidas simples que podem surtir grandes efeitos.
Cito por exemplo, a falta de sensibilidade do órgão, que até o presente momento não
respondeu ao ofício que foi enviado, no mês de novembro de 2014 a superintendência do
Iphan/MG, solicitando a visita de um técnico à Irmandade para mais detalhamento do projeto.
Soube que o não cumprimento da visita se deu por falta de recursos, no entanto, as pessoas
mais interessadas, que são os congadeiros, e que até o momento estão esperando retorno, não
foram comunicados.
Portanto, as reflexões expostas aqui apostam na obtenção de elementos que possam
dar respaldo à construção de debates que apontem ou não caminhos para se pensar a relação
entre as políticas de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial e o que pensam os
detentores das congadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ABA. LIMA, Manoel Ferreira et alii (orgs.). Antropologia e Patrimônio Cultural: diálogos e desafios
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581

V V
POLÍTICAS DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL: “O
PLANO VIVER SEM LIMITE” E SEM CULTURA
Francine de Souza Dias1

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo refletir o lugar da cultura nas políticas públicas de
inclusão da pessoa com deficiência, à luz do Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência “Viver sem Limite”. Com este documento como ponto de partida, pretendemos
refletir a ausência do debate da inclusão nas políticas culturais do país, trazendo elementos
para discutir novas formas de participação da pessoa com deficiência nos espaços culturais.

PALAVRAS-CHAVE: Deficiência, Cultura, Políticas Públicas, Participação.

INTRODUÇÃO
O Censo de pessoas com deficiência2 realizado em 2010, pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE aponta que 23,9% da população brasileira possui algum tipo de
deficiência, o que equivale a quarenta e cinco milhões seiscentos e seis mil e quarenta e oito
(45.606.048) brasileiros.
Em 2011 esta população vibrava com a conquista do Plano Viver sem Limite, que
trazia a esperança de ampliação das políticas públicas de inclusão da pessoa com deficiência
de modo transversal, a criação e implantação de ações, serviços e programas em todo o país,
um horizonte de novas perspectivas para uma população que ainda hoje necessita investir
num debate tão primário que é o da acessibilidade.
Quando a primeira cartilha foi lançada, militantes de todo o Brasil sentiram um
profundo estranhamento, pois lá estavam sinalizadas somente as seguintes pautas: Acesso à
Educação; Inclusão Social; Acessibilidade; Atenção à Saúde. Os desdobramentos desses itens
versam sobre as políticas de educação, de assistência social, de saúde e de ciência e
tecnologia, o que não se pode negar ser um grande avanço.

1
Graduação em Serviço Social (UNIPLI); Especialização em Acessibilidade Cultural (UFRJ); Gestão Pública e
Gestão de Recursos Humanos (UCAM); Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ).
Assistente Social na Associação de Pais e Amigos dos Deficientes da Audição – APADA Niterói. E-mail:
ffrancinedias@yahoo.com.br.
2
Os dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no Censo Demográfico de 2010,
compreenderam aspectos relacionados à deficiência, que deram subsídios para a formulação e publicação da
Cartilha do Censo 2010 – Pessoas com Deficiência, onde as informações a respeito desta população foram
compiladas e apresentadas pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e Pela Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, no ano de 2012.

582

V V
Mas uma grande lacuna surge para aqueles envolvidos em áreas não contempladas no
documento, a exemplo da política cultural. Será que as pessoas com deficiência do Brasil não
precisam estar contempladas nas ações promovidas no âmbito da cultura? Cumpre ressaltar
que o Ministério da Cultura fez parte do processo de elaboração do plano, no entanto, a
cultura não foi apresentada como eixo temático no Viver sem Limite, nosso especial
questionamento neste trabalho.
A realidade do país na oferta de serviços públicos para suprir as necessidades básicas
das pessoas com deficiência, no que se refere à educação, saúde, assistência social e
tecnologia assistiva está realmente longe de alcançar níveis satisfatórios em qualidade e
número.
No entanto, isso não é justificativa para privar 23,9% da população brasileira do
acesso e fruição aos bens e serviços culturais, à formação e à produção artística e cultural no
país. Em contrapartida, as políticas culturais brasileiras pouco atendem à diversidade de
público, de agentes e produtores culturais e de artistas com deficiência.
Felizmente, outras legislações e documentos internacionais importantes, ratificados
pelo Brasil, sinalizam a obrigatoriedade do respeito às normas de acessibilidade e versam,
ainda que rapidamente, sobre o acesso a cultura, exemplo da Convenção Sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e do Decreto 5.296/2004.
Até o momento são poucas as ações realizadas diretamente pelos órgãos gestores da
política cultural no Brasil que contemplem as diferentes modalidades de deficiência. Dentre
esses gostaria de citar o Relatório Final da Oficina Nacional de indicação de políticas públicas
culturais para inclusão de pessoas com deficiência “Nada sobre nós sem nós”, realizado em
2008 e o primeiro curso de Especialização em Acessibilidade Cultural do Brasil, oferecido
pela UFRJ em parceria com o Ministério da Cultura através da Secretaria de Cidadania e
Diversidade Cultural, em 2013.
O crescente número de pessoas com deficiência no país e a precariedade do
atendimento às respectivas demandas dessa população nos levam a refletir de que forma esta
realidade pode ser transformada e a cultura possa, definitivamente, se materializar não apenas
como direito, mas como um patrimônio de todos.
Este trabalho está sendo apresentado com o objetivo de construir elementos para
refletir a elaboração e execução das políticas em questão, bem como pensar novas formas de
participação das pessoas com deficiência nos debates culturais.

583

V V
Pois acredita-se que é somente através da participação social, do debate, da criação de
novas formas de sociabilidade, que será possível conhecer a diversidade presente nos
territórios e, consequentemente, promover ações compatíveis com as diferenças presentes em
todos nós, ou seja, conceber espaços que representem, naturalmente, as características de
todas as pessoas, para que medidas inclusivas ou acessíveis não precisem ser elaboradas
posteriormente.
Como objetivos específicos, pretendemos analisar o Plano Viver Sem Limite e a
Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência à luz da política cultural, e articular o
debate sobre estes com a Meta 29 do Plano Nacional de Cultura, à luz da diversidade e da
inclusão da “deficiência” na sua organização.

O PLANO VIVER SEM LIMITE


O Plano Viver sem Limite, lançado em 2011, não pode ser considerado isoladamente,
pois é fruto de décadas de organização política e social do movimento de pessoas com
deficiência. Ao longo dos últimos sessenta anos foram criados centenas de instituições de
atendimento e defesa de direitos da pessoa com deficiência, dezenas de conselhos de direito
nos âmbitos municipais e estaduais, um conselho e uma secretaria nacionais, inúmeros
trabalhos voltados à inclusão social desta população.
No âmbito do direito, no Brasil, o principal marco é a Constituição de 1988, que
contempla esta população de modo geral em todas as áreas de políticas públicas, se
aprimorando através de legislações e planos especiais para nortear a implementação de
serviços e benefícios ao público.
Em 2008, com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência pelo Brasil, a carta magna passa a assegurar de modo integral tais direitos,
abordando especificamente as áreas de atenção e responsabilidade de cada setor do Estado.
Este panorama contribuiu com o aumento da participação da pessoa com deficiência
nos espaços de controle social, o que corroborou para a visibilidade de suas demandas, que se
materializaram na agenda do Estado através do Plano Viver sem Limite.
É preciso destacar ainda a importância desse processo para que o tema da deficiência
tenha sido compreendido na esfera dos Direitos Humanos, pois durante muitos anos o tema
deslocava-se entre problema de saúde ou de assistência social.
O questionamento principal deste trabalho é a ausência da política cultural como eixo
temático no plano supracitado, o que fragiliza ainda mais o debate da acessibilidade no

584

V V
âmbito da cultura. O Viver sem Limite foi o primeiro plano federal com uma proposta de
intervenção transversal, sendo elaborado com a participação de quinze3 ministérios, –
inclusive o Ministério da Cultura – no entanto, abordou somente os eixos de Acesso à
Educação; Atenção à Saúde; Inclusão Social e Acessibilidade.
As ações do plano têm desdobramentos através dos Estados e dos Municípios que
fizeram adesão, se comprometendo a criar planos sobre o tema na sua esfera de gestão. O
objetivo principal do Viver sem Limite é oferecer à população e aos gestores um registro
sobre seu processo de elaboração, implementação e monitoramento.
Na Lei N° 7.612/2011, que institui o Viver sem Limite, o acesso à cultura ou qualquer
menção a esta política não surge como uma das oito diretrizes. O Ministério da Cultura,
consequentemente, também não faz parte do Comitê Gestor. Porém, o presente Ministério faz
parte do Grupo Interministerial de Articulação e Monitoramento.
O Plano Viver sem Limite apresenta também o volume de recursos federais
disponíveis para a execução de ações em cada eixo temático. Como a cultura não faz parte
deste, também não há informação sobre o valor destinado a este fim.
Mudanças no âmbito da gestão favoreceram a aproximação do tema deficiência às
demais políticas públicas. O deslocamento do debate que antes era vinculado à saúde e à
assistência social, passou a ser discutido como direitos humanos.
O Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas co Deficiência – CONADE ao ser
vinculado à Secretaria de Direitos Humanos, no ano de 2003, representa uma ação simbólica
neste sentido. Hoje o Ministério da Cultura tem na sua formação uma Secretaria de Cidadania
e Diversidade Cultural. Todos esses avanços nos levam a questionar o motivo pelo qual a
cultura não se tornou eixo temático no Viver sem Limite.
O Ministério da Cultura somente tem destaque no Viver sem Limite, na temática de
“Ações Complementares”, no Capítulo 12 do documento, onde é sinalizada a criação de um
grupo de trabalho interministerial sob a coordenação do MinC, para tratar da acessibilidade
cultural.
Fazem parte desse espaço de discussão a SDH/PR, o Ministério da Cultura e seus órgãos
vinculados: Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC); Secretaria de Fomento e
Incentivo à Cultura (SEFIC); Secretaria do Audiovisual (SAV); Biblioteca Nacional; Instituto
Brasileiro de Museus (IBRAM); Fundação Nacional de Artes (FUNARTE); Agência Nacional do

3
Órgãos federais que integram o Viver sem Limite: Casa Civil; Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República; Secretaria-Geral da Presidência da República; Ministérios da Educação; Saúde; Trabalho e
Emprego; Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ciência, Tecnologia e Inovação; Cidades; Fazenda;
Esporte; Cultura; Comunicações; Previdência Social; e Planejamento, Orçamento e Gestão. (Plano Viver Sem
Limite).

585

V V
Cinema (ANCINE) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). (BRASIL,
2014, p.163).

Atualmente as ações no âmbito do Ministério da Cultura sobre acessibilidade cultural


acontecem de forma isolada. Existe um projeto da ANCINE4 – que não está em andamento –
para que todos os filmes de circulação na TV e no cinema sejam produzidos com
acessibilidade; outras ações pautadas no Tratado de Marrakech5 para que a produção de Obras
em Braille, Daisy ou áudio book possam ser distribuídas e publicadas sem a autorização do
titular dos direitos autorais. E ainda, um projeto piloto para acessibilizar as bibliotecas, que
está a cargo da Secretaria Executiva do Ministério da Cultura. (BRASIL, 2014)
Outrossim o coordenador de acessibilidade da SDH/PR chama a atenção para a Meta
29 do Plano Nacional de Cultura:
100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais
atendendo aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição
cultural por parte das pessoas com deficiência (METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA,
2011, in mimeo).

Assim, ele afirma que o grupo tem por objetivo contribuir para a criação de meios para
sua efetivação. Entendemos que as ações efetivadas até o momento contribuem para o
cumprimento desta meta, mas o caminho ainda é longo.
Ressalta-se que todos os prazos para adequação de espaços e fornecimento de recursos
de acessibilidade previstos no Decreto 5.296/2004 já expiraram. No entanto, são raros os
equipamentos culturais com espaços e obras acessíveis à diversidade de público, bem como a
presença de artistas com deficiência apresentando seus trabalhos.
Hoje a pessoa com deficiência não tem o direito de acessar e fruir uma obra
audiovisual com acessibilidade porque são raros os Estados que oferecem esse serviço. Na
verdade, os poucos que oferecem essa opção, oferecem em dias e horários específicos e
apenas alguns espetáculos, estando longe de fazerem parte, integralmente, do circuito oficial
da região. O que impede que esses cidadãos tenham acesso aos mesmos espaços que seus
amigos e familiares sem deficiência.
O mesmo ocorre ao visitar um museu, por exemplo. Quando há acessibilidade
arquitetônica, muitas vezes não há acessibilidade para aqueles que têm deficiência sensorial.
Não há informações em formatos acessíveis tampouco possibilidade de tocar as obras
expostas.
4
ANCINE – Agência Nacional do Cinema
5
O Tratado de Marrakech tem por objetivo facilitar, para pessoas com deficiência visual, o acesso às diversas
obras através da sua distribuição em formatos acessíveis, sem a necessidade de solicitar ao autor a autorização
para tal.

586

V V
A pessoa com deficiência encontra ainda infinitas barreiras enquanto artista, em
qualquer modalidade. Não há orçamento voltado para este segmento e aqueles editais que
contemplam esse público raramente escolhem projetos afins para financiamento de suas
ações. O que leva esses sujeitos a recorrerem a outras formas de sobrevivência por ter o seu
trabalho invisibilizado pelo Estado. Trabalho este que muitas vezes não é visto como
profissional, mas como amador ou recreativo.
Esses e muitos outros são desafios constantes para as pessoas com deficiência no país.
O Plano Viver sem Limite poderia surgir como incentivador de mudanças ao redor do Brasil,
mas sua organização nos aponta, mais uma vez, que o Estado não situa a Cultura como eixo
central, ou se quer prioridade para as pessoas com deficiência, o que dificulta ainda mais a
organização coletiva desses sujeitos nos espaços e debates culturais, seguindo como uma
política complementar para esta parcela da população.

A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


A Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi promulgada no Brasil
através do Decreto Nº 6.949, de 25 de Agosto de 2009, sendo o principal instrumento
internacional de defesa dos direitos humanos desse cidadãos em todo o mundo.
Além de trazer as definições sobre deficiência e fortalecer a responsabilidade do
Estado na promoção da acessibilidade, reforça as barreiras existentes no meio ambiente como
principais fatores de incapacidade da pessoa, entendendo que a funcionalidade e a autonomia
dos sujeitos, variam de acordo com as condições de cada espaço.
Por se tratar de um documento que sinaliza a todo o tempo a não discriminação e a
igualdade de oportunidades, todos esses itens já deveriam ser observados no âmbito das
políticas culturais. Sabendo da importância em destacar cada esfera da vida da pessoa e cada
área de responsabilidade do Estado, a ONU se preocupou em sinalizar também o acesso à
cultura.
Na Convenção o item em questão está no Artigo 30, sendo denominado: Participação
na vida cultural e em recreação, esporte e lazer. Seu conteúdo é iniciado com as
reivindicações presentes nesse trabalho:
1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência de participar na vida
cultural, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e tomarão todas as medidas
apropriadas para que as pessoas com deficiência possam:
a) Ter acesso a bens culturais em formatos acessíveis;
b) Ter acesso a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais, em
formatos acessíveis; e

587

V V
c) Ter acesso a locais que ofereçam serviços ou eventos culturais, tais como teatros, museus,
cinemas, bibliotecas e serviços turísticos, bem como, tanto quanto possível, ter acesso a monumentos e
locais de importância cultural nacional.
2. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para que as pessoas com deficiência
tenham a oportunidade de desenvolver e utilizar seu potencial criativo, artístico e intelectual, não
somente em benefício próprio, mas também para o enriquecimento da sociedade. (BRASIL, 2009, in
mimeo)

Os avanços nessa direção ainda são poucos, inclusive a produção de conhecimento a


respeito desses recursos, sendo poucas as universidades no país a abrirem espaço para o
debate sobre acessibilidade cultural.
Muitos são os fatores que contribuíram com essa defasagem que o país apresenta na
oferta de recursos de acessibilidade no âmbito da cultura, mas gostaria de sinalizar,
especialmente, o fato do acesso a cultura ainda não estar na pauta de discussão dos conselhos
de direitos em todo o Brasil, bem como não haver diálogo efetivo entre os conselhos de
cultura e os de direitos da pessoa com deficiência, e participação de pessoas com deficiência
nos conselhos de cultura e nas discussões do segmento.
Exemplo disso são os temas debatidos nas conferências municipais, estaduais e
nacionais dos direitos das pessoas com deficiência. Foram três conferências de nível nacional,
até o momento. Apenas na terceira edição assuntos voltados para cultura foram debatidos de
forma mais significativa. Todas as propostas estão em consonância com os itens assinalados
na convenção.
Somos frutos de uma cultura de movimento social fragmentado, que se organizou de
forma individual ao redor das diferentes discussões sobre políticas públicas e que
consequentemente pulverizou discursos que poderiam estar fortalecidos se elaborados de
forma coletiva e transversal.
A ausência da discussão sobre deficiência ao longo dos anos não é característica
somente da agenda da cultura, podemos citar outros espaços como os de debates sobre
igualdade racial, gênero, povos tradicionais, etc.
No entanto, é preciso romper com esse modelo o qual fomos adaptados e criar novas
possibilidades de organização política, recriar o espaço público e as formas de sociabilidade
entre os diferentes sujeitos que formam a nação.
Este movimento não depende de leis, de planos de governo ou mesmo de convenções,
deve ser um esforço coletivo, um anseio da sociedade que precisa se materializar para que, de
fato, tenhamos uma política pública que represente a diversidade de sujeitos a que ela se
destina.

588

V V
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este breve artigo nos aponta alguns dos inúmeros desafios a enfrentar até que
possamos construir uma sociedade onde as políticas públicas representem a diversidade
humana. Acreditamos que única forma de materializar essa realidade seja através da
reconstrução do espaço público. A participação política da pessoa com deficiência no cenário
público, de forma individual ou coletiva é de data recente. O sistema econômico de produção,
a cidade, o Estado, já estavam organizados. Os demais movimentos sociais também.
Ao longo da história esses sujeitos tiveram sua cidadania renegada e a primeira forma
de reverter este panorama mundial foi através da luta pelo direito à vida, que há tanto foi
sacrificada pelo diagnóstico da deficiência.
Posteriormente, evoluiu para o direito à cidadania, à recursos para sua sobrevivência
com dignidade, seguindo do acesso à saúde e à reabilitação, bem como à educação.
Ainda hoje esses direitos não são plenamente acessados por grande parte da
população, o que reforça o debate em torno deles nos diversos espaços de discussão sobre os
direitos das pessoas com deficiência.
Acreditamos que por este motivo o acesso à cultura seja uma discussão tão recente.
Ainda hoje muitos brasileiros com deficiência consideram estranho este debate. Como falar
de cultura se nem escolas e hospitais estão acessíveis a todos? Para que cultura se a maior
preocupação ainda hoje é como sobreviver em meio a tantas barreiras, desigualdade e
discriminação? Este questionamento evidencia-se cada vez mais de acordo com o nível
socioeconômico das famílias. Ressalta-se que os dados do Censo também revelam que a
maior parte das pessoas com deficiência sobrevive com rendimentos de um a dois salários
mínimos; muitas, com escolaridade precária e pouco acesso a bens e serviços em geral. O país
ainda sofre do grande mal da elitização da cultura, herança da nossa história que ainda não foi
rompida.
Estando o movimento de pessoas com deficiência afastado dos demais movimentos
sociais, o seu reconhecimento enquanto artista, trabalhador, estudante, mulher, sem terra,
negro, homossexual o afasta das relações sociais, minimizam a potencialidade da sua voz,
invisibilizam as diferenças existentes na sociedade e a necessidade de promover espaços onde
todos tenham lugar.
Daí a necessidade de transformar suas estratégias de mobilização e participação social.
É preciso discutir política pública de modo transversal com a participação de todos os atores

589

V V
sociais. É preciso substituir a ideia de políticas para pessoas com deficiência por políticas para
todos. Isso exige uma mudança de paradigmas e de cultura muito grande que também só
poderá ser rompida através do diálogo entre os diferentes. Esta aproximação não é papel
exclusivo das pessoas com deficiência, embora sua reivindicação nessa direção seja
fundamental. Estas oportunidades precisam ser criadas nas diferentes áreas, desafio este que
caminha lentamente nos espaços culturais.
Reconhecemos a importância do Plano Viver Sem Limite para ampliação dos direitos
da pessoa com deficiência de modo geral, para a melhor organização dos serviços públicos e
para a conscientização dos gestores das diferentes pastas em relação a necessidade de
observar a diversidade para a qual trabalham e, portanto, devem servir. Mas este não pode ser
visto como o fim. Ao contrário, é apenas o primeiro passo na direção de uma discussão
transversal que não poderá ser realizada sem a real participação de todos os atores sociais.

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http://www.guiacultural.unicamp.br/sites/default/files/documentotecnicometaspnc.pdf Consultado em
04/07/2014.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 29 ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2010. (Coleção Temas Sociais).

590

V V
POLÍTICAS CULTURAIS E COMUNICAÇÃO: INTERDISCIPLINARIDADE PARA
UMA POLÍTICA PARTICIPATIVA
Gabriela Sobral1

RESUMO: Com o protagonismo que os meios de comunicação adquiriram na construção da


vida social, os diversos espaços públicos e esferas de discussão não podem negligenciar a
importância das relações desencadeadas por esses. Sendo assim, este artigo busca aprofundar
como os produtos midiáticos vão agir, também, na sustentabilidade e multiplicação das
políticas culturais, adquirindo novos usos e novas concepções que fogem de características,
estritamente, mercadológicas, de espetacularização e celebrização. Para isso, propomos
abordar a experiência de produção da Revista Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade 27ª
Edição, editada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e tecer uma
análise de seu conteúdo como um produto de comunicação catalisador de políticas culturais
participativas.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas culturais, comunicação, educomunicação, patrimônio


cultural, Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade.

As políticas culturais, no contexto histórico atual, ganharam relevância como


mantenedoras de relações de identidade, uma vez que a cultura passou a ser admitida como o
lugar da vida social e não mais como um setor das políticas públicas responsável pela
realização de shows ou espetáculos voltados, estritamente, ao entretenimento.
As ações desencadeadas por essas políticas passam a circular em diversas esferas de
debate, adquirindo uma característica interdisciplinar com diversas áreas de atuação do Estado
e da produção de conhecimento, que vão pensar seus usos e reverberações. Essa dinâmica
recente pode ser percebida e problematizada na relação intrínseca que vem se dando entre o
campo da comunicação e das políticas em cultura.
A partir do momento em que reconhecemos a existência de uma vida em redes2 e de
uma era da informação, não podemos negligenciar a relevância dos meios de comunicação e
seus conteúdos como formadores de representações simbólicas.

1
Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pelo Centro Universitário Iesb (Instituto de
Educação Superior de Brasília). Aluna no Programa de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio
Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – PEP/IPHAN. E-mail:
gabrielasobralf@gmail.com.
2
Conceito desenvolvido pelo teórico Manuel Castells no livro Sociedade em Rede – A Era da Informação:
economia, sociedade e cultura. Este conceito admite que, atualmente, a vida social está permeada por intensos
fluxos de informação e trocas contínuas por meio das novas tecnologias e meios de comunicação, afetando as
estruturas sociais.

591

V V
A resistência aos medias3 não contribui para uma posição crítica frente à Indústria
Cultural, que de acordo os pressupostos teóricos discutidos por Max Horkheimer e Theodor
Adorno são os produtos midiáticos considerados como meras repetições, sem a geração de
nenhum questionamento por parte dos indivíduos; seriam os clichês “causados pelas
necessidades dos consumidores: e só por isso seriam aceitos sem oposição” (HORKHEIMER,
ADORNO, 2000).
A partir do panorama apresentado, fica problematizado que os conteúdos
informacionais criaram “novas formas de ação e interação com o mundo social [...] e novas
maneiras de relacionamento do indivíduo com os outros e consigo mesmo” (THOMPSON,
2001). Assim, propõe-se o questionamento e aperfeiçoamento dos usos da comunicação,
deixando a ideia rudimentar e apocalíptica da exclusão dos medias, e sugere-se a incorporação
dos mesmos às dinâmicas das políticas culturais para, assim, aturarem no desenvolvimento
humano.
Esse entendimento já é adotado às margens da sociedade, ou seja, por grupos e outras
instâncias que estão fora da produção de discurso dos conglomerados midiáticos e buscam,
por meio de uma ação política, pressionar as outras esferas sociais para terem suas demandas
atendidas, incluindo o direito à comunicação. Assim, para se adequar às demandas da
sociedade civil, o Estado, também, vem incorporando estratégias de comunicação para a
construção de conteúdos criativos que possibilitem a tomada de consciência pela sociedade e
sua intervenção efetiva (BARBALHO, 2005).
Neste contexto, tem-se por objetivo incitar a discussão, por meio de reflexões e
diálogos com outros autores, da interdisciplinaridade entre a comunicação e as políticas
culturais, tendo como principal objeto de estudo o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade
(PRMFA)4, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
e a análise da Revista Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, produzida na ocasião de sua
27ª Edição.
Tendo passado por diversas reformulações, em 2014, o Prêmio chegou a 27ª Edição5,
com adoção de novas ações em comunicação. O gerenciamento de recursos humanos e

3
A palavra medias será utilizada, ao longo do artigo, como sinônimo de meios de comunicação e mídia.
4
O Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovido pelo IPHAN, ocorre, desde 1987, premiando projetos
e ações que visem a salvaguarda e a promoção do patrimônio cultural brasileiro. No ano de 2014 contemplou
seis ações, premiando-as com certificado e com uma quantia de R$ 25 mil para cada uma. O PRMFA é um edital
público aberto para pessoas físicas, jurídicas e instituições públicas e privadas.
5
A 27ª edição do PRMFA, que homenageou o centenário de nascimento da arquiteta Lina Bo Bardi, contemplou
seis iniciativas, divididas em duas grandes categorias: I – iniciativas de excelência em técnicas de preservação e
salvaguarda do patrimônio e II – iniciativas de excelência em promoção e gestão compartilhada do Patrimônio.

592

V V
financeiros foi voltado, principalmente, à divulgação dos premiados e à produção de
instrumentos para multiplicar e reconhecer projetos voltados à preservação do patrimônio
cultural brasileiro.
A principal estratégia comunicacional se concentrou na reformulação do projeto
editorial da Revista Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade – 27ª edição6. Produzida pela
equipe do Departamento de Articulação e Fomento (DAF) /IPHAN, a Revista7 foi pensada
para estar em consonância com o momento de protagonismo da comunicação democrática e
como uma extensão da política cultural do Prêmio.
Até o ano de 2013, o material de divulgação era reduzido a 17 páginas e continha
apenas o resumo de cada uma das ações e a programação das cerimônias de premiação.
Portanto, podemos considerar que a produção efetiva de uma revista com teor informativo e
jornalístico, concretiza-se em 2014. O Instituto redirecionou a gestão de recursos para
conceber um veículo de comunicação que não se encerrasse em si mesmo, mas que fornecesse
uma produção textual acessível e com conteúdos que reverberassem a importância da
salvaguarda dos bens culturais.
O reposicionamento de linguagem da Revista teve como princípio criar mais um
instrumento de ação da política cultural do Prêmio que servisse como divulgação e, também,
como um material perene, proporcionando conteúdos voltados à formação e à educação. Em
um total de 88 páginas, a publicação traz textos sobre a arquiteta Lina Bo Bardi, as origens da
premiação e sobre os seis projetos vencedores, com o relato da experiência e a construção de
conhecimento apoiada em referências teóricas em patrimônio, memória e literatura.
A palavra, nesse caso, apresenta-se como o “modo mais puro e sensível da relação
social”, (BAKTHIN, 1999), por isso, de acordo com o contexto sócio-histórico no qual está
inserida, a linguagem empregada nos textos tem o potencial de instigar uma tomada de
consciência libertadora. Assim, a estratégia de comunicação adotada para Prêmio Rodrigo
Melo Franco de Andrade procura se adequar às novas dinâmicas, constituídas de trocas entre

Atualmente, além de uma certificação, é concedido um valor em dinheiro, como forma de reconhecimento ao
trabalho desenvolvido.
6
A publicação é composta dos seguintes textos: Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade; Rodrigo Melo
Franco de Andrade: legado que se confunde com a trajetória do patrimônio cultural; Lina Bo Bardi, a técnica e
a poética na arquitetura; Música resgata memória social no Ceará; Atividade circense ganha força em Minas
Gerais; Projeto Balsa de Buriti resgata a memória dos barqueiros de Marabá (PA); Bordado transforma vidas
em Goiás; Produção audiovisual resgata memórias no Cariri Paraibano; Programa de preservação revitaliza
prédios e resgata identidade do patrimônio carioca; Comissão de Avaliação garante transparência ao Prêmio.
Disponível em: <http://issuu.com/gabrielasobral1/docs/revista_prmfa_web/0>. Acesso em: 02 de nov. 2014.
7
Sempre que nos referirmos a Revista Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade 27ª Edição de maneira
abreviada o nome aparecerá com a inicial R maiúscula.

593

V V
os atores sociais e “um conjunto de intervenções práticas e discursivas no campo da cultura”
(BARBALHO, 2005, p. 35).
A historiadora Maria Tarsila Guedes no artigo O Prêmio Rodrigo Melo Franco de
Andrade: tradição e renovação no trabalho de preservação (2010) faz um apanhado histórico
sobre a concepção do Prêmio, que, criado em 1987, refletia o momento de estruturação do
IPHAN. Contudo, foi interrompido durante o Governo de Fernando Collor de Mello (1990-
1992), e passa a ser promovido, novamente, em 1993.
Em 1995, sob a gerência da arquiteta Jurema Arnaut, começa a se delinear o atual
formato da premiação, com características democráticas e participativas. O Prêmio passa a ser
um edital público e monta uma Comissão Nacional de Avaliação – composta de profissionais
de fora do Instituto e que atuam na área da preservação patrimonial – que, em reuniões,
debate e avalia as ações selecionadas para a etapa final, depois das seleções nas
superintendências estaduais do IPHAN.
Abandona-se a posição de reconhecer personalidades, como grandes empresários, ou o
corpo de funcionários do Instituto. Os editais passaram a premiar iniciativas da área pública
ou privada e, principalmente, aquelas que são gestadas e vivenciadas por pessoas e grupos
desprovidos dos aparatos de reconhecimento formal das instituições e de próprios setores da
sociedade (GUEDES, 2010). Uma evidência deste novo momento é que dos seis projetos
vencedores8 em 2014, apenas um veio do poder público: Programa de Apoio à Conservação
do Patrimônio Cultural (Pró-APAC) do Rio de Janeiro, os demais partiram de associações e
comunidades.
No contexto histórico do Prêmio, a ação comunicativa desenvolvida, em 2014, busca
seguir o caminho de participação social ao incluir o discurso e as representações de
patrimônio dos próprios produtores de cada projeto. Com isso, o objetivo é criar uma
interlocução de vozes e a produção compartilhada de conhecimento.
Impossível pensar hoje a cultura sem um enlace vital com as mídias [...] Não há mesmo
possibilidade de políticas culturais atualizadas e democráticas sem que seja estabelecida uma
interlocução com os amplos e plurais setores aglutinados por essa expressão política essencial: a
sociedade civil (RUBIM, 2002, p. 30-33).

8
Os projetos vencedores em 2014 foram: Categoria I – Rabecas da Tradição: performance e luteria; Projeto
Respeitável Público, Respeitável Circo; Projeto Balsa de Buriti – Preservando a Memória Fluvial. Categoria 2 -
Projeto Cabocla - Bordando Cidadania; Memórias e colaborações através do audiovisual; e Programa de
Apoio à Conservação do Patrimônio Cultural - PRÓ-APAC. Disponível em: <
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=18539&sigla=Noticia&retorno=detalheNoticia>.
Acesso em: 14 ago. 2014.

594

V V
Rubim (2002) ressalta a importância dos produtos jornalísticos para atender as novas
demandas sociais e possibilitar o direito à comunicação. Este direito inclui menos a
experiência como espectador e o acesso aos meios físicos, do que a transparência de
informações, a garantia de conteúdos plurais, e a possibilidade dos atores sociais participarem
como produtores, dando abertura à construção de canais colaborativos.
O discurso diverso pode funcionar como uma regulação social, com o potencial de
democratizar a comunicação. Nesse processo, o Estado é um dos agentes e os indivíduos dão
o significado concreto e a existência às práticas de salvaguarda do patrimônio cultural.
Nesse sentido, o antropólogo Eduardo Nivón (2011) acredita que, a partir de
convenções, acordos e relatórios de organizações internacionais, como o Relatório de
McBride9, produzido pela Unesco, o atual momento das políticas culturais requer a disposição
dos meios de comunicação como uma ferramenta fundamental de diálogo entre as instituições
para dar voz àqueles que não estão incluídos nos discursos de grandes corporações e
oligarquias midiáticas, como, comumente, encontramos nos estados brasileiros.
As trocas simbólicas e os fluxos culturais são capazes de modificar os processos
comunicacionais e grandes arranques sociais, quando os diversos interlocutores passam a
atuar num processo dialógico de troca de conhecimento e experiência. Para subverter as
carências comuns (DURHAM, 2005) dos sujeitos, aos quais as políticas culturais se destinam
e que estão posicionados às margens do mercado das indústrias culturais, devemos
problematizar o papel das instituições como fomentadoras de canais de participação, abrindo
suas estruturas e criando as condições necessárias para que os indivíduos possam expressar
sua capacidade crítica e produtiva, abandonando a comunicação dirigista.
Ao perseguir uma linha editorial que privilegia a diversidade de discursos, a Revista
consolidou o projeto de impulsionar a produção de conhecimento sobre patrimônio. Com isso,
o objetivo foi estabelecer, de fato, uma ação comunicativa em que os proponentes dos
projetos e, também, a comunidade em que foram desenvolvidos pudessem difundir o
conhecimento local em um veículo. A tiragem da publicação foi de 3 mil exemplares,
distribuídos para as superintendências do IPHAN em todos os estados da federação,

9
Este relatório foi encomendado pela Unesco a uma comissão, dirigida pelo política irlandês Sean McBride. O
grupo de trabalho ficou responsável em investigar a importância da imprensa e dos meios de comunicação, para
proteger a liberdade de expressão e o direito à comunicação. O relatório Um Mundo e Muitas Vozes,
apresentado em 1980, ficou conhecido como relatório de McBride. Fonte: Políticas Culturais Teoria e Práxis.
Disponível em: <http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2013/04/Politica-Culturais-Teoria-e-
Praxis.pdf>. Acesso em: 27 jan. 2015.

595

V V
bibliotecas ligadas ao IPHAN e aos vencedores de cada ação, para que articulassem o fomento
em espaços relevantes para eles.
Como colocado, inicialmente, as abordagens da Teoria Crítica que desenvolveu o
conceito de Indústria Cultural são atuais, no sentido de que devemos incorporar uma postura
de contestação, com o fim de compreender que relações de poder se engendram a todo o
momento na dinâmica dos medias. Por isso, por meio de uma comunicação educativa se
propõem redefinir os espaços públicos de debate, baseando-se na ideia de uma participação do
Estado, por meio das políticas culturais, mas, sobretudo, na crença de uma sociedade civil
forte que pauta as discussões e cria mecanismos de atuação nas políticas (HAJE, 2007).
O produto final da Revista Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade 27ª Edição
avança para uma “democracia que coloca seu destino na utilização da força comunicativa de
participantes de um debate público” (HAJE, 2007, p. 131). Para isso, procura-se empregar um
discurso reflexivo, apresentando novos conceitos ao público, textos acessíveis (e não menos
densos) e colocando, sobretudo, os proponentes da ação para construir suas representações de
patrimônio, fazendo surgir um produto de informativo baseado nas premissas da
educomunicação.
O conceito de educomunicação, que teve como um dos seus maiores defensores o
comunicólogo argentino Mario Kaplún, surge na década de 1980. Em conexão com os ideais
de teóricos como Paulo Freire, Kaplún defendia o desenvolvimento uma comunicação de
acordo com a realidade da América Latina que só conseguirá sanar suas desigualdades por
meio de uma educação libertadora, que inclui também pensar uma comunicação libertadora,
que não atenda apenas os interesses mercadológicos.
Nesse contexto, a comunicação assume características cada vez mais políticas [...] Portanto o
paradigma da educação no seu estatuto de mobilização, divulgação e sistematização de conhecimento
implica acolher o espaço interdiscursivo e mediático da comunicação como produção e veiculação de
cultura, fundando um novo locus – o da inter-relação comunicação/ educação (SCHAUN, 2002, p.19).

A inter-relação educação-comunicação norteou o trabalho da equipe do DAF que,


contando com a participação concreta dos idealizadores dos projetos, remontou as
experiências vencedoras, construindo discursos críticos e reflexivos, que não foram dirigidos
apenas pelo Instituto. Foram sugeridas à equipe interna do IPHAN informações, conceitos
sobre salvaguarda, patrimônio, memória e identidade gerados nas comunidades. Os
proponentes, ainda, forneceram materiais como dossiês e vídeos produzidos pelas entidades,
associações ou pessoas físicas que serviram de constructo para a elaboração dos textos.

596

V V
A partir dessa estrutura, buscou-se fomentar a construção de um conteúdo,
autenticamente, educomunicativo, caracterizado pelo diálogo com o povo, respondendo as
necessidades desses e contribuindo para a emancipação social (KAPLÚN, 1998).
Um exemplo que elucida a proposta emancipadora da Revista é a apuração do projeto
Memórias e colaborações através do audiovisual10, desenvolvido na cidade de Zabelê (região
do Cariri paraibano), pela Associação Cultural de Zabelê (ASCUZA). Durante o processo de
entrevistas e trocas, o representante da iniciativa, Romério Zeferino, relatou que com o
projeto houve uma reapropriação do patrimônio local11:
Fortalecemos o nosso estar junto, nossas expressões. Isso nos possibilitou entrar numa arena
de discussão política, quando enxergamos nosso potencial humano. A menina que antes via com
tristeza o ofício de carvoeiro do pai, depois de filmar aquela experiência passou a ter outro olhar,
passou a ver beleza no que somos, na nossa forma de existência (ZEFERINO, 2014).

A Revista ao empregar conteúdos criativos, colaborativos e de produção de


conhecimento a partir de pesquisas, contribuições acadêmicas e de informações advindas e
produzidas nos locais de origem das ações, ou seja, gerado pela sociedade civil, tem o
potencial de torna-se um importante equipamento cultural de reformulação dos espaços
públicos, nos quais as políticas culturais serão implementadas.
De acordo com Lia Calabre (2007), a sustentabilidade dos atuais modelos de gestão
depende da diversidade de atores inseridos nas dinâmicas que constroem e que dão
continuidade às políticas culturais; significa que a participação dos agentes sociais deve estar
em todo o processo de concepção, produção e veiculação.
A Revista da 27ª Edição está, portanto, em consonância com os novos modelos
gerenciais das políticas que buscam um funcionamento e uma distribuição em redes
colaborativas, potencializando os recursos com a criação de produtos multiplicadores
(CALABRE, 2007).
Assim, este produto comunicacional, como uma primeira experiência dentro das ações
do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, pode ser interpretado como um avanço para se
tornar um modelo de ampliação da comunicação dentro das políticas culturais e uma fonte
para se compreender como a sociedade civil interpreta e age sobre seus bens culturais.
No que tange a salvaguarda do patrimônio, a elaboração de ações comunicativas deve
estar em consonância com conteúdos criativos voltados a produzir práticas simbólicas e

10
O projeto, que existe desde o ano de 2002, consiste em produzir documentários de curta duração, registrando
as festas tradicionais e costumes praticados no município de Zabelê, no estado da Paraíba.
11
Os relatos sobre entrevistas e sobre o processo produtivo da Revista partem da experiência vivenciada pela
autora deste artigo. A mesma participou da elaboração da publicação, dentro do Departamento de Articulação e
Fomento do IPHAN.

597

V V
educativas. Essas, por sua vez, devem ter como essência a troca de conhecimento para
difundir, socialmente, que preservar o patrimônio é preservar a própria existência de um
povo; há uma operação recíproca.
A comunidade seleciona o que considera representativo de seus projetos de ser, mas, por sua
vez, esse universo selecionado ilumina a comunidade para que ela se reconheça em seu ser profundo
(LLANOS apud FERNANDÉZ, 2011, p.15).

Ao longo deste artigo, em diálogo com outros autores, teve-se a intenção de


problematizar a comunicação como um espaço no qual transitam representações simbólicas,
conflitos, debates sociais e fluxos de informação. Sendo assim, deve ser um espaço público,
no qual, essas trocas devem ser exploradas, gerando um desenvolvimento humano, e não a
reprodução infinita de conceitos que privilegiam uma comunicação para a venda de
publicidade e celebrização de personalidades.
O posicionamento da linha editorial da Revista – Prêmio Rodrigo Melo Franco de
Andrade 27ª Edição, com um conteúdo mais extenso, elaborado em conjunto com a
sociedade, alimentado de conceitos acadêmicos e pautado nos preceitos da educomunicação é
um sinal do entendimento de que a democracia cultural está ligada à manutenção dos canais
participativos e de políticas que não negligenciem a importância das ações comunicativas. A
transformação não acontece nas instituições e, sim, parte da sociedade civil, por isso, esta
deve estar fortalecida, com apoio do Estado, um dos promotores e gestores das políticas em
cultura.
Já o discurso educomunicativo tem a função de empoderar os indivíduos para que
estejam munidos e tomados de uma consciência libertadora para fortalecer a democracia,
reivindicando o direito às políticas culturais. Pois a cultura é a práxis transformadora do
homem com o universo simbólico que produz (FREIRE; 1981).
A experiência de produção da Revista, como uma das muitas ações da política cultural
que rege o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, mostra que este espaço, no qual
circulam os meios de comunicação vem sofrendo transformações, tornando-se mais
democrático, a partir de sua apropriação pela sociedade civil. Só assim se estará caminhando
para a sustentabilidade das políticas culturais que dependem da participação e da diversidade
de vozes.
Fica ressaltada a importância de se pensar e discutir por que, mesmo com o
protagonismo que tomou na contemporaneidade, a comunicação, como um lugar de práticas
sociais e trocas simbólicas, ainda não foi compreendida como um dos principais instrumentos
da revolução cultural de um povo.

598

V V
O desafio, portanto, é pensar uma gestão que viabilize a continuidade das políticas
culturais, construindo ações comunicativas multiplicadoras. Essas irão garantir a
sustentabilidade, mas, principalmente, como enfatiza Lia Calabre (2007), a apropriação e
intervenção efetiva daqueles que são atingidos, diretamente, por tais políticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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http://biblioteca.planejamento.gov.br/biblioteca-tematica-1/textos/educacao-cultura/texto-111-2013-
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HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. A Indústria Cultural. O Iluminismo como Mistificação


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KAPLÚN, Mario. Una Pedagogía de La Comunicación. Madri: Ediciones de la Torre, 1998.

NIVÓN, Eduardo. As políticas culturais e os novos desafios. O patrimônio imaterial na estruturação


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RUBIM, Antônio. Política Cultural na Contemporaneidade. Revista Comunicação & Educação –


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SCHAUN, Angela. Educomunicação: Reflexões e Princípios. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

599

V V
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ZEFERINO, ROMÉRIO. Produção audiovisual resgata memórias no Cariri Paraibano. In:


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(DAF/IPHAN), 2014. p. 62-71. Disponível em:
<http://issuu.com/gabrielasobral1/docs/revista_prmfa_web/0>. Acesso em: 02 de nov. 2014.

600

V V
POLÍTICA CULTURAL DA DIPLOMACIA AO DESENVOLVIMENTO:
TRAJETÓRIA DE UM TERMO NO SÉCULO XX
Gabriela Toledo Silva1

RESUMO: A política cultural, como linguagem e como prática, tem sido reconhecida como
um fenômeno datado da segunda metade do século XX, relacionado ao contexto pós segunda
guerra mundial (BENNETT, 1997; URFALINO, 2004; DUBOIS, 1999). Embora a linguagem
da política cultural venha se transformando desde seu surgimento até hoje, este trabalho
mostra, com base em extensa pesquisa documental, que uma das transformações mais
profundas – e não por isso isenta de ambigüidades – ocorreu entre o final da segunda guerra
mundial e os anos 80: a política cultural transmutou-se de um aspecto geral do universo da
diplomacia e da política externa para se tornar um instrumento objetivo e específico de
governo, central nas ações públicas culturais.

PALAVRAS-CHAVE: política cultural, ação pública, cultura, ação cultural, história.

As ações e relações entre o estado e concepções variadas de cultura e ação cultural


estão presentes em diferentes períodos históricos e foram objetos de estudo em diferentes
disciplinas. Poderíamos dizer que, em algumas situações, tem sido o modo central de narrar e
operar ações públicas para a cultura, passando a pautar ações de diferentes lugares e unindo-as
em uma categoria comum dotada de repertório e práticas próprias. O processo de surgimento,
difusão, estabilização e, por vezes, centralidade de uma linguagem exige a associação de
porta-vozes, mediadores, contextos e conceitos que, quando mobilizados em conjunto, fazem
das flutuações de linguagem uma questão inseparável da prática, pois ela performa modos
específicos de ação. O falar sobre e o fazer tornam-se, portanto, aspectos constitutivos e
indissociáveis. A trajetória de uma linguagem não é, portanto, uma linha evolutiva, e sim a
narrativa de flutuações que refletem transformações simultâneas de conceitos e públicos – ou
seja, traduções (LATOUR, 2005).
Um levantamento sobre a incidência do termo “política cultural” em bases de dados
das bibliotecas brasileiras pode nos dar um panorama inicial sobre a utilização do termo em
publicações. Atendo a busca aos títulos das publicações (pois assuntos são classificações
retroativas), é possível notar o crescimento a partir dos anos 70 e que, até a década de 1980, a
grande maioria destes títulos foi produzida pela UNESCO:

1
Mestre em Administração Pública e Governo, Fundação Getulio Vargas/SP. E-mail: gatoledosilva@gmail.com

601

V V
Quadro 1. Publicações por instituição / Biblioteca Nacional
Editora/Instituição 1960-69 1970-79 1980-89 1990-99 2000-09 2010-14 Total
UNESCO 2 67 23 1 93
Ed. Independentes 6 3 7 3 19
Gov. Federal (MinC/
3 5 1 9
IPEA/ Funarte/ MEC)
UFBA 3 3 6
Fundação Casa de Rui
5 1 6
Barbosa
Órgãos estaduais e
3 1 4
municipais de Cultura
Itau Cultural 3 3
Itau Cultural/FCRB 1 2 3
FGV 1 1 2
Universidades Federais
1 1 1 3
(exceto UFBA)
Outros 3 2 10
Total geral 2 67 38 5 27 14 158
Fonte: elaboração própria.

Considerando como universo a Biblioteca Nacional, o sistema de bibliotecas


municipais de São Paulo, o sistema de bibliotecas da Fundação Getulio Vargas, da
Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de Minas Gerais 2, não há nesta década
– nem nas anteriores – nenhuma publicação brasileira sobre o assunto, com uma exceção: a
Casa do Estudante do Brasil publicou, em 1942, a palestra proferida pelo então professor
Afonso Arinos de Melo Franco, denominada “Política Cultural Panamericana”. A palestra
exalta a herança americana do legado europeu pré-guerra, como um patrimônio cultural
pacificsta a ser mantido – pouco lembrando aquilo que entendemos hoje como política
cultural.
Alguns raros títulos estrangeiros aparecem na década de 50, mas, o número de
publicações sobe vertiginosamente quando aparecem os títulos da coleção da UNESCO, a
partir de 1968 e, apenas em 1976 o governo federal, por meio do Conselho Federal de Cultura
publica o documento “Aspectos da política cultural brasileira”.

2
Era intenção deste trabalho incluir a pesquisa na biblioteca da UFRJ, porém o Sistema Minerva estava fora do
ar quando a pesquisa foi feita.

602

V V
Quadro 2. Publicações / Universidade de São Paulo
Brasileiros Estrangeiros/ traduções Total
1900 -1909 0 0 0
1910 - 1919 0 0 0
1920 - 1929 0 0 0
1930 - 1939 0 1 1
1940 - 1949 1 1 2
1950 - 1959 0 1 1
1960 - 1969 0 2 2
1970 - 1979 1 27 28
1980 - 1989 10 17 27
1990 - 1999 11 3 14
2000 - 2009 28 2 30
2010 - 2014 13 2 15
Total 64 56 120
Fonte: elaboração própria.

A política cultural se fez presente também em espaços mais cotidianos como as


palavras dos jornais diários. Por meio deles é possível observar em que medida a linguagem
da política cultural foi apropriada por meios não-especializados e de ampla difusão:

Quadro 3. Registros em notícias de jornal


Folha de São O Estado de Correio Jornal do
Jornal O Globo A Manhã
Paulo São Paulo Paulistano Brasil
UF SP SP SP RJ RJ RJ
Período 1960 - 2014 1875 - 2014 1854-1942 1925 - 2014 1891 - 2010 1925 - 1953
1910- 1919 0 1 0 0
1920 - 1929 0 5 0 3 1
1930 - 1939 6 21 5 49 1
1940 - 1949 10 20 27 57 48
1950 - 1959 73 51 99 15
1960 - 1969 23 113 130 237
1970 - 1979 179 234 265 485
1980 - 1989 731 398 553 677
1990 - 1999 469 608 551 689
2000 - 2009 656 1205 443 660
2010 - 2014 153 619 150
Total 2211 3266 47 2175 2956 65
Fonte: Elaboração própria.

É possível perceber uma tendência de crescimento com o primeiro salto na década de


70 e o segundo na de 80, seguido de uma estabilização ou ligeira retração nos anos 90 –
período em que a linguagem da política cultural conviveu mais intensamente com a dos
projetos culturais.
Analisando o conteúdo das notícias, nota-se que os assuntos culturais foram, até
meados dos anos 60, fortemente ligados a temas diplomáticos e de política externa. O termo
política cultural, nos primeiros registros de uso nos jornais brasileiros, é utilizado raras vezes
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e sempre referindo à política cultural de algum país, normalmente como diretrizes oficiais
para algum aspecto da vida cultural. Em 1937, por exemplo, o termo aparece na seção
“Serviço Telegráfico” noticiando uma nova fase da política cultural catalã e uma mudança na
política cultural da Guatemala. Esta seção dedica-se somente a notícias internacionais
telegrafadas, tais como “Aviões japoneses efetuam um “raid” sobre Haneku”, “Estão
manifestando descontentamentos bancários em Paris, ou “A greve dos padeiros na Cidade do
México” (manchetes da edição de 07/01/1938). Na mesma seção, uma notícia sobre a política
cultural da Salamanca, na Espanha, ressalta seu alinhamento político com o general Franco, e
em 1938 é publicada entrevista com Adolf Hitler abordando, entre outros, sua política
cultural.
Na década de 40, o vínculo entre os assuntos culturais e os internacionais torna-se
mais frequente. Ainda que muitos dos registros referentes às décadas de 30, 40 e 50, não
digam respeito propriamente ao binômio “política cultural”, e sim decorram da enumerações
de fatores, como econômico, político, cultural e social, por exemplo, a incidência dessas
enumerações colocando político e cultural lado a lado está geralmente ligada a notícias sobre
política externa, comentando os diferentes regimes políticos e suas respectivas ideologias,
com especial candor comunismo ou fascismo. Nestas notícias, o sentido é sempre mais de
uma diretriz, de uma opção política ampla de um dado país, no bojo de seus regimes.
Vale lembrar que, neste momento, o governo brasileiro não contava com órgãos
dedicados exclusivamente a cultura ou a políticas culturais. Apesar do papel inovador de
instituições como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937, e
do importante projeto do Departamento de Cultura de São Paulo sob o comando de Mario de
Andrade (1935-1938), suas preocupações e projetos eram expressos e praticados de forma
diferente – e não em termos de uma política cultural.
Por outro lado, o espaço estatal da política cultural até meados dos anos 60 acabou
sendo ocupado, em alguma medida, por órgãos nacionais e internacionais dedicados às
relações diplomáticas. Em 1946, o Decreto-Lei 9.121 cria o Departamento Político e Cultural
do Ministério das Relações Exteriores, no bojo de uma reestruturação do órgão após o fim da
segunda guerra mundial. No mesmo ano de 1946, instala-se no Rio de Janeiro, com sede no
Palacio do Itamaraty, o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), uma
espécie de comissão nacional da UNESCO para promover projetos nestas áreas.
Anais Flechet (2007) aponta que, ao lado dos mecenas e empresários musicais, o
Ministério das Relações Exteriores (MRE) foi um ator importante na criação de uma

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“diplomacia musical” no Brasil. Thiago Lima Nicodemo identifica no envio de intelectuais
um projeto de governo: “a fundação da Cátedra de Estudos Brasileiros em Roma fez parte de
um projeto muito mais ambicioso de difusão cultural do Brasil na América e na Europa, por
meio da fundação de cátedras de “estudos brasileiros” em diversas universidades renomadas.
Além da fundação dessas cadeiras, o projeto ainda previa a fundação de centro de estudos
culturais nos moldes dos institutos Goethe (Alemanha), Cervantes (Espanha),
etc”(NICODEMO, 2013). Intelectuais e artistas acabaram se prestando ao papel de
“embaixadores culturais” do Brasil, sob os auspícios do MRE.
Para as autoras Dumont e Flechet(2013), a diplomacia cultural brasileira não
representa apenas um processo de importação de políticas culturais de outros países. Apesar
de ter sido receptáculo de alguns projetos internacionais, como a implantação da USP pela
França e a política de boa-vizinhança norte americana, há algo de inovador e desconhecido
nessa história: os sucessivos esforços de uma diplomacia ativa fazem dele um pioneiro da
diplomacia cultural na América Latina. Ela começa com a participação do Brasil na criação
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual no âmbito da Liga das Nações, e em suas
tentativas, desde 1925, para instituir um Serviço de Cooperação Intelectual próprio – o que de
fato só sucedeu em 1937. O entre-guerras, para Juliette Dumont (2012), levou (a) os
governos darem-se conta da importância da propaganda, mesmo em tempos de paz; (b) ao
surgimento de uma “diplomacia aberta”, caracterizada pela ação de órgãos supra-nacionais.
Da cooperação intelectual para a divulgação cultural acontece um processo de
institucionalização importante, com a ampliação das atribuições do antigo Departamento de
Cooperação Intelectual para formar o Departamento Político-Cultural criado em 1946.
Nos anos 50, continuam as notícias internacionais e, em 1959, o chefe da Divisão
Político-Cultural do Itamaraty, rebatendo uma crítica ao Congresso de Críticos de Arte
ocorrido em Brasília, salientou que “houve política, mas política cultural. A propaganda que
advirá para Brasília e para o Brasil desse congresso é ao exterior, e como tal não serve a fins
partidários”3. O que chama a atenção no comentário é a conjunção adversativa que separa a
política cultural da política em geral. Não é apenas uma questão setorial. A política cultural,
em seu discurso, serve a finalidades maiores, à política entre os países e não dentro dele.
Em 1953 há uma primeira notícia sobre política cultural referindo a níveis
subnacionais de governo e, nos anos 60, as notícias começam a discutir, pouco a pouco, as
relações do governo brasileiro com suas práticas culturais. Em 1968, Abreu Sodré cria uma

3
Jornal do Brasil, 26/09/1959

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Secretaria da cultura em São Paulo: "Não poderá haver civilização sem uma cultura que a
informe. Por essa razão me empenhei em estabelecer uma política cultural, criando pela
primeira vez uma Secretaria da Cultura". Embora tenha sido uma expansão da Secretaria de
Turismo para abarcar, na nova conformação, turismo, esportes e cultura, o então governador
declara que vai atuar no plano social, educacional, étnico e político.
Mesmo nesse período, permanecem sendo veiculadas as notícias ligadas ao Ministério
das Relações Exteriores: em 1961, anuncia-se que o ministro Lauro Escorel, chefe do Depto.
Cultural do Itamaraty, pronunciará palestra sobre a política cultural brasileira; na dita palestra,
comentando sobre o novo embaixador do Brasil na URSS, ele declara que
"já existe no Itamaraty a consciência de que a atividade cultural não
é apenas mental, mas instrumento positivo de política exterior" (...) "A
política cultural reflete na política externa porque é pacifista, se baseia na
consciência da interdependência dos povos, tem em mira o bem estar e o
desenvolvimento das nações"4.

Em meados década de 60 já aparecem algumas mudanças no entendimento e no uso da


política cultural. Ainda que continue ligada às atividades internacionais, tanto
internacionalmente pelo papel assumido pela Unesco, quanto no Brasil pelas características
da organização da ação cultural governamental, o sentido deixa de ser apenas de uma
orientação geral de um dado governo nacional em diferentes campos da vida para se tornar
cada vez mais um campo com contornos mais visíveis, circunscrevendo um terreno para ação
e regulação.
O papel pioneiro da UNESCO também é reconhecido pela recorrente citação de uma
publicação de 1968 contendo o que passou a ser conhecido como “a primeira” definição de
política cultural. Esta definição é, na verdade, o resultado de um esforço explícito para atribuir
um significado para política cultural num momento em que até seus porta-vozes não estavam
certos do que ela era e do que poderia ser. O documento produzido pela UNESCO em 1968,
“Cultural policy: a preliminary study” é o relato de uma mesa redonda realizada com 32
participantes de 24 países, seja ligados à Unesco, aos governos dos países-membros, a
organizações culturais, universidades, ou ainda artistas e outros representantes ou
especialistas – dentre eles estavam presentes Pierre Bourdieu e Alejo Carpentier.
Uma análise mais detida do documento de 48 páginas, nas quais é sintetizado o
diálogo comparado dos diferentes países e pontos de vista, faz ressaltarem alguns aspectos do
texto. (1) O discurso da política cultural está intimamente ligado, neste momento, com o do

4
Folha de São Paulo, 29/11/1961

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desenvolvimento cultural (2) apesar de reconhecer uma múltipla gama de atores, estatais e
não-estatais, atribui aos governos centrais o papel de formulador de diretrizes e coordenador
das ações dos outros agentes, recomendando expressamente que sejam criados órgãos centrais
exclusivos nos países-membros; (3) confere à política cultural objetividade, tornando-a
descritível, mensurável, comparável, planejável e até modelável.
Estes três aspectos têm em comum a moblização e apropriação de conhecimentos,
saberes e técnicas desenvolvidos em outras áreas para incorporá-los à ação pública cultural e
dotar a política cultural, que ora tinha sido uma diretriz política reconhecida a posteriori, de
prescritividade. No quesito desenvolvimento, a cultura aparece como uma dimensão da vida
social, tal qual a economia, que deve ser planejada no longo prazo, para o benefício máximo
do ser humano, otimizando recursos e com a maior efetividade. Esse tipo de planejamento,
bem como a garantia de sua implementação por diferentes agentes, só pode ser levada a cabo
por uma agência central à qual eles se reportem. Ainda, o desenvolvimento se dá com base em
diagnósticos, nos quais são identificadas as “necessidades culturais” de um povo5.
Com base no mesmo documento, além da pesquisa sociológica, podem ser usados
modelos econômicos aplicando as noções de oferta e demanda, além do desenvolvimento de
métodos próprios para estudar padrões de comportamento cultural, seja por meio de institutos
de pesquisa estatística ou obtendo informações de agentes descentralizados. A despeito da
escolha do método, o importante é aplicá-los ou desenvolvê-los! O princípio para esta atitude
é a busca pela objetividade:
“In working out a cultural policy it is necessary to evaluate needs
and to know what exists to meet them. In most countries very little is known
concerning either of these aspects: people do not even know what methods
can be used to discover the facts of cultural activity and what are the needs
of the public. Which members of the public are in fact reached? What is
provided? By what types of institutions? With what equipment? With what
staff? At what cost? In each sector (creation, dissemination, training,
conservation), what are the activities and expenditure of the State, local
communities, voluntary associations, individuals? Answering these
questions means approaching cultural problems objectively. A philosophy of
culture is not a sufficient basis for action; the facts that we are trying to
change must be exactly known.”6

A objetividade em questão significa também preocupar-se com problemas de


implementação. Os princípios para a ação não são mais suficientes, há que se planejar os
recursos e os meios para perpetrá-la – as políticas, planos, orçamentos etc. A política cultural
incorpora algo que estava sendo discutido na ciência política: as políticas públicas podem ser
5
UNESCO, Cultural policy: a preliminary study, 1968.
6
Idem. Grifo da autora.

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objetivadas, estudadas, comparadas e modeladas. A inovação atribuída à criação do ministério
francês, em 1959, remete, entre outros aspectos, à promoção de práticas “racionais” como
competências políticas: surgem ministérios técnicos, nos quais planejamento e expertise
sociológica passam a desempenhar papel central (DUBOIS, 2008).
No Brasil, os anos 60 e 70 são marcados pela criação de diferentes órgãos de cultura
no estado, tanto no nível federal quanto nos estaduais. Em 1961 é criado o Conselho Nacional
de Cultura, com atribuição expressamente vinculada a “política cultural”: “estabelecer a
política cultural do Govêrno, mediante plano geral a ser elaborado, e programas anuais de
aplicação”7. Em 1966, o Conselho passa a denominar-se Conselho Federal de Cultura (CFC) e
também a promover – com sucesso - a criação de seus pares estaduais. Em 1972 é criado o
Departamento de Assuntos Culturais do MEC, transformado, em 1978, na Secretaria de
Assuntos Culturais, cuja finalidade era “planejar, coordenar e supervisionar a execução da
política cultural”8. No âmbito da administração direta, foi também na década de 70 que se
criaram muitas das secretarias estaduais de cultura, reunidas pela primeira vez em 1976 no I
Encontro dos Secretários Estaduais de Cultura.
Foram apresentados anteprojetos de planos e diretrizes para políticas em 1968, 1969 e
1973. Porém estes projetos não chegaram sequer a serem votados pelo Congresso Nacional
(COSTA, 2011; MAIA, 2012). Desde a criação do CFC até 1976, quando um grupo de
trabalho constituído a pedido do então ministro do MEC Ney Braga conseguiu ter aprovado
seu documento-sínetese, houve uma contínua e crescente preocupação e defesa por parte de
diferentes atores no estado com o assunto da cultura, inclusive com uma campanha para a
criação um órgão executivo autônomo dedicado à cultura. O documento de 1975 assim se
apresenta:
“Constitui a Política Nacional de Cultura o conjunto de diretrizes
que orientam e condicionam a ação governamental, não como dirigismo,
mas como instrumento de estímulo e formação. Respeita o Estado a
liberdade de criação e procura incentivar e apoiar o desenvolvimento da
cultura, impulsionando os meios ou instrumentos que estimulam suas
diferentes manifestações.” 9.

Estabelece-se, neste enunciado, uma distinção tentativa entre dois tipos de


política cultural. Uma delas, a ser evitada, estaria associada aos regimes autoritários e seria

7
Decreto nº 50.293, de 23 de Fevereiro de 1961.
8
Decreto nº 81.454, de 17 de Março de 1978.
9
Brasil/MEC, 1975. Diretrizes para uma política nacional de cultura. Disponível no repositório digital do MEC.
Grifo da autora.

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cerceadora da liberdade de criação. A segunda, na qual se diz pertencer a política proposta, é a
de um “instrumento de estímulo e de formação”. A política cultural passa a ser entendida
como um mecanismo garantidor da realização de seus fins. Ainda que o detalhamento de
aspectos práticos fosse previsto para os planos a serem elaborados, o documento antecipa que
sua consecução prescindiria da ação associada de um órgão normativo – o Conselho Federal
de Cultura – a um órgão executivo exclusivo. Além das atividades relacionadas diretamente à
consecução dos seus objetivos, é dado destaque à necessidade de promover estudos e
pesquisas, formar profissionais, contratar especialistas, coordenar as atividades dos órgãos
citados e também das unidades federadas e outros entes do governo federal, dentre os quais
estão o MRE e a secretaria de Planejamento e, por fim, as universidades “que se constituem
como focos capazes de contribuir para o surgimento do espírito científico e criativo,
associando análises e pesquisas”10, parceiras essenciais do sistema de cooperação para as
tarefas de estudar, reunir especialistas capazes de premiar, fazer levantamentos, documentar,
organizar documentação, ministrar cursos e formações.
A política cultural vincula-se, no plano teórico, ao pensamento desenvolvimentista, e
em termos práticos, à lógica do planejamento: envolvia encontros regionais, coleta de dados,
sistematização, síntese, e a coordenação de diversos agentes para chegar ao plano. O
planejamento e a administração do Plano Setorial no qual a política se desdobra envolve
sistemas de informações estatísticas; de informações para acompanhamento, avaliação e
controle; de informações documentárias e bibliográficas, e mecanismos de financiamento de
educação e cultura, se organizando em ações “preventivas”, de “maximização” e
“corretivas”11. A política cultural deixa de ser um aspecto genérico dos regimes de governo
sem atores identificados e passa a se constituir por meio de uma rede de agentes e saberes que
lhe conferem objetividade e coerência por meio de métodos e práticas específicas.

OUTROS PÚBLICOS: O INCÊNDIO DO MAM-RJ


Mesmo no circunscrito espaço das notícias de jornal, novos personagens começam a
aparecer, falar em política cultural e discutir seus respectivos papéis nela. Aumenta o número
de artigos opinativos de gente do ramo sobre a política cultural, e ela deixa de figurar apenas
nos relatos de política externa ou notas oficiais sobre atos de governo.

10
Idem.
11
MEC, 1975b. II Plano setorial de educação e cultura (1975-1979). Disponível no repositório digital do MEC.

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O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi criado em 1948 e, na esteira de outros
museus criados no mesmo período, tomou a forma de uma associação privada idealizada e
patrocinada por figuras proeminentes das elites urbanas, normalmente ligadas aos meios de
comunicação. Estes museus – me refiro aqui também ao MAM-SP e MASP, em São Paulo –
funcionavam como clubes nos quais seus associados eram os contribuintes e beneficiados.
Iniciativas como essa se originaram justamente na aproximação entre artistas e mecenas nas
décadas anteriores, o que parecia ter resultado num modelo que, embora elitista, cumpria seu
papel. As desconfianças relativas a esse sistema somente apareceram quando, em 1978, o
museu sofreu um incêndio de largas proporções e teve quase todo o seu acervo destruído.
Além da indignação pela perda expressa nas reportagens que noticiam o ocorrido na
época, são organizados prontamente novos fóruns para debater não um incidente
desafortunado, e sim o resultado da possível incapacidade das organizações privadas em gerir
seus acervos. Em março de 1978, "Artistas plásticos resolvem protestar" contra a
regulamentação da Comissão Nacional de Artes Plásticas, argumentando que estão apartados
da política cultural pois as instituições culturais, como órgãos de controle e gestão da
produção artística, não estão ligados diretamente à produção do trabalho de arte e não
permitem que o agente direto da produção artística intervenha efetivamente na política
cultural que orienta a atuação dos organismos culturais. A Associação Brasileira de Artistas
Plásticos Profissionais declara ter “procurado formas de intervir diretamente na política de
arte dessas entidades”12. A crítica e historiadora da arte Radha Abramo, em junho do mesmo
ano, defende participação dos artistas na política cultural ao invés de boicotá-la13.
Os artistas se julgam apartados da política do museu e reivindicam espaço; críticos de
arte clamam pela formulação de uma política cultural abrangente; sugere-se que a culpa é dos
cargos amadorísticos de direção do museu e até diz-se que até a UNESCO irá ajudar14. Ou
seja, o incêndio desestabiliza a ordem das coisas e faz com que as controvérsias se tornem
mais visíveis e apreensíveis. A política cultural passa a ser convocada como solução para um
problema que as associações privadas como o MAM não estariam conseguindo resolver
sozinhas. Uma assembleia é prontamente organizada para discutir a catástrofe e artistas e
intelectuais de SP elegem comissão para representá-los: "O movimento não se restringirá a
uma campanha pela recuperação do museu destruído - a partir deste fato, pretende-se lançar

12
Folha de São Paulo, “Artistas Plásticos decidem protestar”. 06/03/1978, Folha Ilustrada, p. 24.
13
Folha de São Paulo, “Bienal, uma mostra da cultura latina”. 06/06/78, Folha Ilustrada, p. 35
14
Fonte: artigos publicados na Folha de São Paulo entre julho e agosto de 1978.

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uma campanha nacional pela formulação de novas diretrizes da política cultural brasileira"15.
Ela é convocada também quando a ação de determinadas instituições e grupos parece
insuficiente:
"Os resultados dos seminários, colóquios e discussões já realizados
nos grandes centros econômicos do Brasil, [que objetivaram o estudo da
precariedade das instituições culturais] jamais lograram êxito. A falta de
recursos financeiros, a inexperiência e a ausência de uma política cultural,
somadas ao vandalismo de uma gama de experts em arte formam um quadro
desconcertante. Não há uma política cultural abrangente que determine
responsabilidades, distribua provimentos econômicos criteriosamente e
fiscalize o vandalismo desenfreados dos 'experts' gananciosos que se
apropriaram da produção artística popular, como dos santeiros, em fase de
extinção no país.”16

O caso do MAM provoca o posicionamento de diferentes atores e notícias continuam


aparecendo no primeiro caderno do jornal atrelando sua reconstrução à necessidade de uma
política cultural. A política cultural passa a ser expressamente convocada, intimada, de fora
do estado. Em outra reportagem, uma associação de artistas plásticos artistas definem apoio à
reconstrução do MAM (...) "Sua orientação, no entanto, como ficou resolvido na Assembléia,
é a de lutar não só pela reconstrução física do MAM, mas também pela reformulação da
política cultural da entidade, para que os artistas possam ampliar suas atividades no Museu e
tenham voz nas decisões.”17. Aníbal Fernando assina matéria que contextualiza o clamor dos
artistas por maior participação na entidade. segundo ele, todas as tentativas de maior
participação, formando conselhos, foram frustradas:
"O Museu de Arte Moderna é portanto uma sociedade civil e está
previsto nos seus estatutos que os cargos de direção não recebem qualquer
remuneração. Dessa maneira, o MAM não pode ser dirigido por pessoal
técnico, sequer por pessoas do setor. Os cargos sçao, por definição
estatutária, amadorísticos. O setor de artes plásticas está, portanto, entregue a
outros interesses, que por mais desinteressados que possam ser, não têm
condição de propor uma política cultural viva, ou mesmo reformadora."

A reportagem critica ainda a política cultural “oficial”, "que fabrica tendências e


formulações que se destinam a substituir o que poderia surgir espontaneamente através da
discussão livre de questões". O sentido de política cultural passa a ter a ver também com a
policy da organização: "A firme negativa da diretoria em admiti-los na comissão deixou claro
que o museu continuará a ser administrado por uma concepção de política cultural elitista,
benemérita, voltada para o mercado de arte e antiprofissional"18.

15
Folha de São Paulo, “Artistas definem apoio à reconstrução do MAM”. 14/07/1978, Folha Ilustrada, p. 39
16
Folha de São Paulo, “Na reconstrução do MAM, as mesmas contradições”. Folha Ilustrada, 30/07/78, p. 57
17
Folha de São Paulo “Artistas definem apoio à reconstrução do MAM”. 14/07/1978, Folha Ilustrada, p. 39
18
Folha de São Paulo, “Uma questão de desgoverno”. Folha ilustrada, 22/07/78, p. 35

611

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A polêmica sobre o acidente foi enorme. Na década de 70, as notícias começam a
aumentar em número e, além do governo e dos outros países, novos atores se colocam como
sujeitos possíveis da política cultural. Associações de classe, críticos de arte, artistas plásticos
e outras pessoas começam a se manifestar verbalmente em termos de política cultural,
criticam o governo e reivindicam o direito de participar. Não é novidade que agrupamentos
culturais, intelectuais e diferentes meios críticos participem de fóruns públicos e que aspectos
políticos da arte e da cultura façam parte de projetos estéticos, mas nas décadas de 60 e 70
esses públicos passam a falar e agir por meio da linguagem da política cultural.

OS ANOS 80 - A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UMA NARRATIVA


Nas tabelas de registro do termo em publicações e jornais no Brasil os anos 80 são o
grande pulo, dobrando quantidades em relação aos anos 70, década em que muito foi
discutido e negociado em relação ao significado, a utilidade e o lugar da política cultural no
Brasil.
Os anos 80 concentram alguns marcos importantes na institucionalização de uma
noção mais moderna de política cultural, fazendo dialogar os discursos defendidos no âmbito
da atuação internacional da UNESCO; o processo de abertura democrática no Brasil, no bojo
do qual a cultura é incluída em novos termos na nova Constituição Federal; a criação de
novos espaços e grupos fora do estado se apropriando da linguagem da política cultural e
cristalizando a transformação da política cultural em “causa pública” para além dos contornos
organizacionais do poder estatal.
No âmbito da UNESCO, a Conferência Internacional de 1970 em Veneza deu origem
a sucessivos trabalhos que culminaram, no início da década de 80, no maior evento
internacional para discussão de políticas culturais até o momento: o Mondiacult, realizado em
1982 no México. Esse evento demandou extenso preparo e pesquisa dos delegados, contou
com a participação de 126 países-membros e é considerado um marco na definição de política
cultural e de sua vinculação com o desenvolvimento e com os direitos humanos.
No Brasil, em 1982, o Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São
Paulo (IDESP), em convênio com a Funarte, realiza o seminário “Estado e Cultura no Brasil”,
cuja publicação foi a primeira a reunir reflexões tanto dos encarregados dos órgão culturais,
quanto sociólogos e intelectuais, refletindo sobre o processo de “estatização” da cultura nos
anos 70 (ver MICELI, 1984). Em 1984, foi realizado o I Encontro Nacional de Política
Cultural, em Belo Horizonte, no qual o futuro ministro da cultura Celso Furtado, define

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política cultural como “um estímulo organizado a formas de criatividade que enriquecem a
vida dos membros da coletividade”(FURTADO, 2012: 41). No ano seguinte, 1985, foi criado
o Ministério da Cultura, tornando realidade a ideia defendida por alguns desde meados dos
anos 70. Estes são apenas alguns poucos pontos dentro de um movimento mais amplo de
institucionalização, acompanhado pelos preceitos da nova constituição e do estímulo ao
desenvolvimento de ações nos três níveis de governo.
Não há espaço aqui – e nem é o intuito do texto – continuar essa trajetória, já bastante
enxuta, até os dias de hoje. É suficiente mostrar que, saindo de um ponto A e chegando a um
ponto B, as transformações de linguagem não se limitaram ao universo dos textos: elas
mobilizaram atores e formas de agir. Operaram uma tradução: ao mesmo tempo que mudou o
significado, mudaram os agentes aos quais o termo está ligado e sua forma de uso. Ele muda
de sentido e de lugar (LATOUR, 1987). Em sucessivos processos de tradução, é possível
agregar autoridade, formas de visualização específicas dos públicos aos quais está vinculada e
formar, portanto, categorias cuja unidade e objetividade parecem inquestionáveis (LATOUR,
1987; 2005). Se, de um lado, alarga-se o conceito de cultura e multiplicam-se os fóruns onde
os limites do conceito podem ser debatidos, essa transformação está intimamente relacionada
com a transformação da ideia de política pública. Conforme discutimos em outro texto
(SPINK E SILVA, no prelo), o termo policy teve, entre os séculos XVII e XIX, um uso
menos específico e mais ligado a uma atitude ou postura, adquirindo a forma de um conceito
central na discussão da ação governamental a partir de meados do século XX, quando a ele
passaram a se agregar qualidades de objetividade técnica, racionalidade e instrumentalidade.
É com esse princípio em mente que podemos observar as traduções da política cultural
ao tornar-se cada vez mais técnica. A vinculação ao desenvolvimento e aos direitos humanos;
o surgimento de “necessidades culturais” e de formas próprias de conhecimento através das
diferentes ciências sociais e de novas formas de visualidade, documentação e coordenação
tornaram a política cultural do “ponto B” algo positivo, desejável, compatível com a
democracia e com as técnicas objetivas e racionais de governo da modernidade; ou seja, num
termo cujo novo lugar é definitivamente mais central na definição e na prática das ações
públicas de cultura.

613

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ser publicado em: LOUREIRO, M.R. E TEIXEIRA, M.A (Orgs). Políticas Públicas e o
Desenvolvimento Brasileiro. Editora FGV.
URFALINO, Philippe. L'invention de la politique culturelle. Paris, Hachette, 2004, 428p.

614

V V
DIREITOS CULTURAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA: POSSÍVEIS
INTERSECÇÕES
Giuliana Kauark 1

RESUMO: O objetivo deste artigo é compreender as intersecções entre direitos culturais e


políticas públicas de cultura a partir do exercício de aproximação entre as disciplinas do
direito e das políticas públicas. Primeiro, partiremos da relação entre os chamados direitos
sociais e as políticas públicas. Na sequência traremos uma concepção de políticas culturais
como uma de vertente das políticas sociais para assim justificar a relação entre políticas
públicas de cultura e direitos culturais. A análise baseou-se na literatura existente sobre
políticas públicas como um campo multidisciplinar além de leituras sobre teoria do direito.
Concluímos que os direitos culturais devem ser tratados como objetivos das políticas culturais
desenvolvidas em nosso país. Pensar as políticas públicas de cultura é reconhecer a
importância do papel do Estado em efetivar os direitos culturais já positivados e outros que
venham a surgir.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos culturais; Políticas culturais; Direitos sociais; Políticas


públicas.

Mesmo não tendo conhecimento aprofundado sobre o direito, quando começamos a ler
sobre os direitos fundamentais ou ainda os direitos humanos, verificamos o quão interessante
é sua intersecção com a área de estudos das políticas públicas. Em outras disciplinas é
possível verificar de maneira mais constante a correlação entre o direito positivado e sua
garantia ou aplicação pelo Estado através das chamadas políticas públicas. Porém, no campo
da cultura, esta é uma abordagem relativamente recente, mas que vem sendo bastante
difundida entre os estudiosos do tema, sejam eles juristas ou pesquisadores em cultura.A
intenção deste artigo, com certeza, não é inaugurar um conceito novo de política cultural. Pelo
contrário, exercitamos aqui uma aproximação entre as disciplinas do direito e das políticas
públicas para compreender as possíveis intersecções entre os direitos culturais e as políticas
públicas de cultura, foco de nosso interesse.
Faremos esse trajeto partindo inicialmente da relação entre direitos sociais e políticas
públicas, de maneira mais geral. Na sequência traremos uma concepção de políticas culturais
como uma de vertente das políticas sociais para assim justificar a relação que posteriormente
faremos entre políticas públicas de cultura e os direitos culturais.

1
Doutoranda do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Email: giulianakauark@gmail.com.
615

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POLÍTICAS PÚBLICAS COMO CAMPO MULTIDISCIPLINAR

Segundo Souza (2007), as últimas décadas registraram um maior reconhecimento e


importância do estudo sobre as políticas públicas, assim como sobre as instituições, regras e
modelos que regem sua decisão, implementação e avaliação. Na visão da autora, isto ocorreu
devido, dentre outros fatores, à adoção de políticas restritivas de gastos em substituição às
políticas keynesianas do pós-guerra; à transformação de políticas sociais de universais em
focalizadas e; à incapacidade de desenhar políticas públicas que ao mesmo tempo
impulsionassem o desenvolvimento econômico e promovessem a inclusão social.
A disciplina surge nos Estados Unidos, mas é também desenvolvida na Europa como
um desdobramento do estudo sobre o papel do Estado. Seu pressuposto analítico afirma que,
“em democracias estáveis, aquilo que o governo faz ou deixa de fazer é passível de ser (a)
formulado cientificamente e (b) analisado por pesquisadores independentes” (SOUZA, 2007,
p. 67). Dentre os fundadores da disciplina, destacam-se Laswell (1936), Simon (1957),
Lindblom (1959, 1979) e Easton (1965). Enquanto os dois primeiros caracterizaram-se pela
ênfase no racionalismo, os dois últimos buscaram ir além das questões de racionalidade em
suas análises sobre políticas públicas.
Os autores acima identificados e outros que vieram na sequência realizaram o
exercício de elaborar uma definição de políticas públicas. Uma das mais clássicas e
conhecidas é atribuída a Lowi, na qual “política pública é uma regra formulada por alguma
autoridade governamental que expressa uma intenção de influenciar, alterar, regular, o
comportamento individual ou coletivo através do uso de sanções positivas ou negativas”
(apud SOUZA, 2007, p. 68).
Mais contemporaneamente a política pública vendo sendo tratada como um campo
multidisciplinar. Neste sentido, apesar de ainda reduzidos, alguns estudos veem buscando
compreender as políticas públicas como um capítulo do tema da efetividade dos direitos. Aqui
destacaremos a visão do autor Diogo Coutinho sobre o direito como objetivo.
Os fins das políticas públicas podem ser enxergados desde pelo
menos dois ângulos. O primeiro ângulo os toma como dados, isto é, como
produtos de escolhas políticas. (...) Outro ponto de vista enxerga o direito
como, ele próprio, uma fonte definidora dos próprios objetivos aos quais
serve como meio. (DAINTITH, 1987 apud COUTINHO, 2013, p. 194).

Para o autor, enxergar o direito como objetivo de políticas públicas sugere reconhecer
que o arcabouço jurídico existente pode indicar metas, diretrizes para as políticas públicas.
Um dos exemplos seriam as normas contidas na Constituição de 1988. Nesses termos, o
616

V V
direito agrega à política pública um caráter oficial, formalizado ou, dito de outro modo,
vinculantes e não-facultativos. Assim, tais objetivos distinguem-se de uma intenção ou
recomendação e ganham um caráter de obrigatoriedade de sua execução. Tal visão será
importante na relação entre os direitos sociais e as políticas públicas sociais, primeiro passo
deste trabalho e que apresentamos a seguir.

POLÍTICAS PÚBLICAS E OS DIREITOS SOCIAIS


Robert Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, em certo momento
reflete sobre as razões pelas quais os indivíduos de uma sociedade têm direitos e quais são
estes direitos. Para contribuir nesta tarefa, o autor retoma a teoria analítica de Jhering que
divide o direito em três categoriais, a saber, direito a algo, liberdades e competências.
Interessa-nos aqui destacar o primeiro ponto.
Os direitos a algo se diferenciam em ações negativas e ações positivas. De maneira
generalista, estas ações também são denominadas, respectivamente, como direitos de defesa
contra o Estado ou como direitos a prestações pelo Estado. O não-embaraço, a não-afetação e
a não-eliminação de posições jurídicas sintetizam o primeiro ponto.

Os direitos dos cidadãos, contra o Estado, a ações estatais negativas


(direitos de defesa) podem ser divididos em três grupos. O primeiro grupo é
composto por direitos a que o Estado não impeça ou não dificulte
determinadas ações do titular do direito; o segundo grupo, de direitos a que o
Estado não afete determinadas características ou situações do titular de
direito; o terceiro grupo, de direitos a que o Estado não elimine determinadas
posições do titular do direito (ALEXY, 2011, p. 196).

Já as ações positivas subdividem-se em fáticas ou normativas. Enquanto as últimas se


satisfazem a partir de atos estatais de criação de normas, para as primeiras a forma jurídica é
irrelevante, sendo aqui demandadas ações (programas, projetos) de caráter positivo, ou seja,
prestacional que venham a garantir determinados direitos a algo a todos os cidadãos. É aí que
encontramos o terreno das políticas públicas cujo objeto, em geral, põe em destaque os
direitos sociais.
Segundo muitos autores, a origem dos direitos sociais remonta aos primórdios do
capitalismo industrial. Neste cenário, concebia-se a economia capitalista como passível de
auto-regulação e, portanto, livre de amarras jurídicas. O liberalismo clássico implicava numa
fuga do direito e numa total abstenção do Estado nas relações econômicas, sobretudo, entre
particulares. A ordem jurídica de então se estruturava em torno da propriedade privada e da
autonomia da vontade.

617

V V
O liberalismo assim concebido mostrou-se tirânico, com a submissão daqueles que
eram economicamente vulneráveis ou que conformavam a recém-formada classe operária.
Diante da ausência de cláusulas legais que impedissem arbitrariedades nas relações de
trabalho, este período ficou marcado pela intensa violação da dignidade dos operários. Ao
lado da submissão da classe operária surgiram os movimentos de resistência e luta por direitos
sociais. O primeiro documento jurídico que preconizava tais direitos foi a Constituição
Francesa de 1848, vide abaixo:
Art. 13: A Constituição garante aos cidadãos a liberdade de trabalho
e de indústria, A sociedade favorece e encoraja o desenvolvimento do
trabalho, pelo ensino primário gratuito profissional, a igualdade nas relações
entre o patrão e o operário, as instituições de previdência e de crédito, as
instituições agrícolas, as associações voluntárias e o estabelecimento, pelo
Estado, os Departamentos e os Municípios, de obras públicas capazes de
empregar os braços desocupados; ela fornece assistência às crianças
abandonadas, aos doentes e idosos sem recurso e que não podem ser
socorridos por suas famílias.
O segundo documento de relevância histórica para os direitos sociais é proclamado um
século após a supracitada Constituição. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, não só consolidou os direitos sociais como intrínsecos à natureza humana, como buscou
um amplo (e internacional) reconhecimento de tais direitos, servindo de referência para
muitos Estados.
Apesar da origem muito vinculada às relações de trabalho, cujo papel do Estado é
muito mais de caráter normativo ou regulador, compõem também os direitos sociais, como o
direito à saúde e à educação, aqueles direitos que reclamam do Estado, mais especificamente,
prestações. Este caráter prestacional refere-se, de certa maneira, à ideia de garantia de um
mínimo vital e à existência de uma parcela da população que dependem de tais prestações
para satisfazer as necessidades materiais básicas, em outras palavras, minimamente garantir
uma subexistência digna. Assim, afirma Nunes Junior (2009, p. 67) “os direitos sociais
surgem como uma aspiração ética que parte da premissa de que todos que participam da vida
em sociedade devem ter direito a uma parcela dos frutos por ela produzidos”.
Conforme afirmam diversos juristas, a positivação dos direitos sociais pode ser dar de
diferentes formas. Nunes Junior identifica cinco delas, a saber, positivação por meio de
normas programáticas; positivação por meio da atribuição de direitos públicos subjetivos
autônomos; positivação por meio de garantias institucionais; positivação por meio de
cláusulas limitativas do poder econômico e; positivação por meio de normas de conformação
social dos institutos jurídicos fundantes da ordem econômica. Ao tratar de políticas públicas

618

V V
voltadas às prestações sociais estamos, especialmente, tratando do primeiro ponto, ou seja, a
formalização dos direitos sociais em normas programáticas.
As normas programáticas definem diretrizes e programas a serem cumpridos pelos
órgãos estatais visando, neste caso específico, a realização dos fins sociais do Estado. Em
outras palavras, são normas que preveem objetivos a serem alcançados por meio de políticas
públicas. Esta forma de positivação dos direitos sociais é a mais frequente nas constituições.
Estas normas constitucionais criam um dever de agir do Estado, todavia, elas se caracterizam
pela generalidade do texto, indicando o fim, mas não indicando os meios como obtê-los. Este
dever agir do Estado podemos relacioná-lo com o que vimos no início deste artigo, a ideia do
direito como objetivo das políticas públicas.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA


Primeiro compreendemos ser necessário explicar por que buscar um referencial
relativo a direitos sociais e políticas públicas sociais para estudar a cultura. Para essa
argumentação traremos, não um estudioso do campo das políticas públicas ou do direito, mas
o economista e ex-ministro da cultura (1986 e 1988), Celso Furtado.
Na visão desse intelectual, “a política cultural não é senão um desdobramento e um
aprofundamento da política social” que, por sua vez, num sentido amplo, “visa a corrigir as
insuficiências do sistema econômico no que respeita ao atendimento das necessidades do
indivíduo e da coletividade, consideradas como fundamentais” (FURTADO, 2012, p. 63).
Essas necessidades são resumidas pelo autor em três categorias, a saber: necessidades para a
sobrevivência; necessidades instintivas e; necessidades superiores ou especificamente
humanas.
Necessidades cuja satisfação é essencial para a sobrevivência: a
alimentação, a vestimenta, a habitação, a proteção à vida; outras
necessidades de raízes também quase instintivas, tais como o desejo de
convivência, comunicação, afetividade e de segurança; necessidades
especificamente humanas: o desejo de conhecimento do mundo e de si
mesmo, o sentimento religioso, o sentimento estético, a pulsão criativa, que
se projeta na aspiração de modificar o mundo exterior. (FURTADO, 2012, p.
63).

Para Furtado, a política cultural diz respeito àquelas últimas necessidades, em que o
homem é o sujeito ativo que define sua própria trajetória com base em liberdades
fundamentais. Em suas palavras: “a política cultural consiste em um conjunto de medidas cujo

619

V V
objetivo central é contribuir para que o desenvolvimento assegure a progressiva realização das
potencialidades dos membros da coletividade” (FURTADO, 2012, p. 64).
Esta noção está imbuída do contexto que se vivia à época, décadas de oitenta e
noventa do século 20, quando se compreendia que não era mais possível conceber o
desenvolvimento como um processo único, uniforme e linear, sendo, inclusive, pauta de
estudos do grupo de intelectuais, do qual Celso Furtado fez parte, que elaborou o histórico
relatório da Unesco Nossa Diversidade Criadora (1997).
Esse relatório defendia a manutenção e promoção das diferentes culturas presentes no
mundo como condição necessária ao desenvolvimento harmonioso das sociedades, através do
respeito à democracia e à tolerância. O conceito de desenvolvimento harmonioso tem como
base o desenvolvimento sustentável, definido pelo Relatório Brundtland Nosso Futuro
Comum dez anos antes. Neste documento o desenvolvimento sustentável é concebido como
aquele que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras
gerações em satisfazer suas próprias necessidades, uma noção que se baseia na solidariedade
intergeracional.
E, o que seria aplicar este conceito no campo da cultura? Seria garantir às futuras
gerações a capacidade de expressar-se culturalmente, de ter acesso aos meios de criação,
produção, distribuição e difusão da cultura, ter acesso à informação, ter acesso a outras
culturas, ter acesso aos resultados do progresso científico e tecnológico, e ter liberdades
fundamentais garantidas, de expressão, de participação da vida cultural, de escolha de suas
próprias referências culturais, etc. Em outras palavras, seria garantir às futuras gerações o
gozo de seus direitos culturais, que são parte dos direitos humanos, indicados no artigo 27 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e no artigo 15 do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU, 1966).
De maneira genérica, os direitos culturais versam sobre a liberdade do indivíduo em
participar da vida cultural, seguir ou adotar modos de vida de sua escolha, exercer suas
próprias práticas culturais, beneficiar-se dos avanços científicos e ter proteção moral e
patrimonial ligada às produções artísticas ou científicas de sua autoria. Abaixo a reprodução
do artigo 27 da Declaração.
1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida
cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso
científico e nos benefícios que deste resultam. 2. Todos têm direito à
proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção
científica, literária ou artística da sua autoria.

620

V V
Seguindo a orientação apresentada inicialmente neste artigo, poderíamos compreender
os direitos culturais em seu status negativo como os direitos de qualquer indivíduo de
participar, passiva ou ativamente, em condições de igualdade, e sem qualquer discriminação
prévia, barreira ou censura, da vida cultural de sua escolha, definindo suas próprias
identificações (ou identidades), desde que sua participação não infrinja outros direitos
humanos, nem venha a tolher liberdades fundamentais garantidas a todo ser humano.
Enquanto status positivo, afirmamos que a partir dos direitos culturais deveríamos ter
garantidos, através de políticas públicas, a proteção do patrimônio cultural, tangível e
intangível; um cenário em que bens e serviços culturais, dos mais diversos, são oferecidos; o
financiamento para produção e difusão da cultura; além da garantia de direitos morais e
patrimoniais sobre obras artísticas autorais.
No Brasil, os direitos culturais estão expressamente indicados em nossa Constituição
Federal de 1988, no artigo 215, que diz: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e
a difusão das manifestações culturais”. Destaca-se também na CF/88 o artigo 216 que
enumera o que constitui patrimônio cultural brasileiro. A Constituição reconhece ainda
direitos específicos dos povos indígenas (artigos 210.2, 231 e 232) e incentiva a cooperação
internacional na área da cultura e da integração cultural entre os países latino-americanos
(artigo 4º).
Apesar de notável o protagonismo constitucional, realizado há mais de 20 anos, outros
avanços são necessários para efetivação dos direitos culturais. No Brasil podemos afirmar que
os direitos culturais ainda não são uma realidade para todo e qualquer cidadão. Os indivíduos
pertencentes a diversos grupos minoritários, tais como, afrodescendentes, indígenas, pessoas
com deficiência, homossexuais, ciganos, mulheres, populações rurais, etc, ainda não possuem
a garantia de participar livremente, sem qualquer discriminação, censura ou barreira, da vida
cultural de sua escolha. Além de ainda sofrerem com uma discriminação arraigada, também
não possuem igualdade de condições no gozo de seus direitos culturais por diversas razões: as
persistentes desigualdades regionais, as discrepâncias do ensino público e privado, a
dificuldade de acesso ao ensino superior, a ausência de equipamentos culturais, a insuficiente
proteção do patrimônio, entre outros. Em seu relatório sobre a aplicação do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no Brasil, o Comitê dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais

nota com preocupação que o gozo do direito à vida cultural sob o


artigo 15 do Pacto é em grande parte limitado aos segmentos de maior nível
621

V V
educacional e/ou afluentes da sociedade no Estado Parte e os investimentos e
bens culturais são concentrados nas grandes cidades, com recursos
relativamente diminutos sendo alocados para cidades e regiões menores. (art.
15.1.(a)) O Comitê recomenda que o Estado Parte adote medidas para
incentivar a participação mais ampla de seus cidadãos na vida cultural, inter
alia: (a) assegurando uma disponibilidade maior de recursos e bens culturais,
particularmente em cidades e regiões menores, garantindo, neste sentido,
provisões especiais via subsídios e outras formas de auxílio, para aqueles
que não possuem os meios para participar nas atividades culturais de sua
escolha; e (b) incorporando no currículo escolar a educação sobre os direitos
garantidos no artigo 15 do Pacto (ONU, 2009, p. 11).

Nesse relatório temos a identificação de alguns (não todos!) problemas relativos ao


desenvolvimento da cultura no Brasil, sobre os quais o setor reclama do Estado a criação e
adoção de políticas públicas. O debate sobre os direitos culturais não pode, portanto,
sustentar-se unicamente na defesa de seu status negativo, é fundamental o desenvolvimento de
políticas públicas que deem conta do status positivo desses direitos.
Os direitos culturais são implementados através de uma política
pública para cultura, especialmente através de medidas positivas, no sentido
de assegurar que existam condições prévias para participar da vida cultural,
promove-la, facilitá-la, bem como dar efetivo acesso aos bens culturais, ao
patrimônio cultural, e também preservá-los (KAUARK, 2014, p. 126).

DIREITOS CULTURAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA


Como vimos inicialmente neste artigo, o vínculo entre direito e políticas públicas pode
ser visto como: (a) o direito como objetivo das políticas públicas, garantindo assim um caráter
vinculante; (b) o direito a algo, em seu status positivo, que através das chamadas ações
positivas fáticas, ou seja, através de programas, projetos e prestações, o Estado garante a
efetivação dos direitos positivados e (c) a positivação dos direitos sociais através de normas
programáticas que orientam o dever agir do Estado a partir do desenho de diretrizes e, mais
uma vez, objetivos a serem alcançados pelas políticas públicas. Essas três visões analíticas
estão completamente relacionadas entre si.
Pensar a relação entre os direitos culturais e as políticas públicas de cultura, a partir
deste arcabouço teórico, nos leva às seguintes conclusões.
Os direitos culturais devem ser tratados como objetivos, como fins das políticas
culturais desenvolvidas em nosso país. Para isso, devemos reconhecer o disposto em nossa
Constituição e levantar bandeiras em prol deste direito, não somente em seu status negativo,
mas também em seu status positivo. Neste sentido, somos levados a analisar, detalhar, o que
são efetivamente os direitos culturais para que estes possam ser transformados em ações
622

V V
positivas fáticas, em prestações do Estado. Para tanto é necessário ater-se às discussões
internacionais sobre a temática, bem como a produção neste campo desenvolvida no Brasil.
Deste modo, podemos compreender de maneira mais clara quais as diretrizes que devem
nortear o dever agir do Estado na proposição de políticas públicas para a cultura.
Pensar as políticas públicas de cultura também como campo multidisciplinar é
reconhecer a importância do papel do Estado em efetivar os direitos culturais já positivados e
outros que venham a surgir. Os direitos culturais, assim como os direitos sociais ou ainda os
direitos humanos, são direitos históricos, nascidos de modo gradual, a partir de certas
circunstâncias, carências, poderes estabelecidos e lutas em defesa por novas liberdades e,
também, por novas prestações. Aqui, revela-se a importância do estudo e análise das políticas
públicas, ou seja, da forma como o Estado elabora seus programas para dar conta dos
problemas da área da cultura.
A efetivação dos direitos culturais é progressiva, mas para isso, precisamos
inicialmente, ou melhor, urgentemente reconhecê-los como fim último das políticas culturais
desenvolvidas.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.

COUTINHO, Diogo R. O direito nas políticas públicas. In: MARQUES, Eduardo e FARIA, Carlos
Aurélio Pimenta de. A política pública como campo multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp; Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013.

FURTADO, Celso. Pressupostos da política cultura. In: FURTADO, Rosa Freire d’Aguiar (org.).
Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional
Celso Furtado, 2012.

KAUARK, Giuliana. Os direitos culturais no Plano Nacional de Cultura. In: Políticas Culturais em
Revista, Salvador – BA, v.7, n.1 2014. (p. 119-135)

NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988: Estratégias de


Positivação e Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São Paulo: Editora Verbatim, 2009.

ONU, Organização das Nações Unidas, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Consideração dos Relatórios submetidos por países membros conforme artigos 16 e 17 do Pacto.
Brasil. Genebra, 2009. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/documentos/ pidesc_2009.pdf.
Acesso em: 11 jul. 14.

______. Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948.

SOUZA, Celina. Estado da Arte da Pesquisa em Políticas Culturais. In: ROCHMA, Gilberto;
ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo. Políticas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
2007.
623

V V
AFROREGGAE E SUAS PRÁTICAS TERRITORIAIS EM VIGÁRIO GERAL: O
CASO DO PROJETO VIGÁRIO COLORIDO GERAL.
Guilherme do Nascimento Rodrigues1

RESUMO: O Grupo Cultural Afroreggae (GCAR) é uma das maiores referências da


comunidade de Vigário Geral, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Sua longa história
e uma série de práticas levaram o grupo a esta posição de destaque. O interesse desta pesquisa
é investigar quais são as práticas do grupo na comunidade que o tornaram tão marcante e
quais são seus impactos na comunidade, observando de que modo contribui com a imagem da
favela e como se insere em sua dinâmica. Recentemente um projeto apoiado pelo grupo – o
projeto Vigário Colorido Geral - suscitou algumas polêmicas. Este projeto junto com o Centro
Cultural Wally Salomão fortalece ainda mais a presença do grupo na comunidade e por isto
aparece como estudo de caso para auxiliar no entendimento da presença do grupo na
comunidade.

PALAVRAS-CHAVE: afroreggae, vigário geral, território.

.
Introdução
Vigário Geral é uma favela localizada na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e
que ficou bastante marcada por um episódio de violência urbana ocorrido em 1993, a chacina
de Vigário Geral.
A partir da chacina de Vigário Geral diversas iniciativas foram tomadas para melhorar
a segurança da cidade, assim como para dar assistência à comunidades carentes através de
projetos sociais. Dessa forma na década de 1990 vimos de um lado a Operação Rio, uma
coalização de forças policias que ocupou algumas favelas da cidade visando o combate ao
crime organizado e de outro o aparecimento de ONGs como o Viva Rio e o AfroReggae.
O Afroreggae iniciou suas atividades em Vigário Geral ainda em 1993, através de
oficinas dadas à comunidade. Havia pouca experiência do grupo que havia surgido há pouco
tempo como jornal que vinculava notícias sobre a cultura negra e onde poucos integrantes
tinham experiência na organização de uma instituição que promovia projetos sociais. Porém
em pouco tempo o Afroreggae conseguiu um sede na favela de Vigário e aos poucos seu
espaço na música e na comunidade foi crescendo, auxiliado por padrinhos como Caetano
Veloso e Regina Casé.
Em 2003 o grupo começa a construção do Centro Cultural Wally Salomão, um grande
espaço cultural dentro da favela, onde a ONG desenvolve seus projetos. O centro cultural

1
Mestrando em Urbanimo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
624

V V
levou 7 anos para ficar pronto, sendo inaugurado apenas em 2010 e hoje é a principal
referência, ao menos visual, do bairro. Um edifício de 4 andares, com mais de mil metros
quadrados e pintado nas cores do grupo, as mesmas cores do movimento rastafári.
É esta presença marcante do grupo que este trabalho visa discutir. Um grupo que
começou de um pequeno projeto, ultrapassou as barreiras da comunidade desenvolvendo
trabalhos em outras 5 comunidades, mas que no entanto tem intima relação com Vigário
Geral sendo uma das maiores referências do bairro e chegando a influenciar decisões políticas
em prol da comunidade.
O projeto Vigário Colorido Geral é um dos grandes exemplos dessa influência e
presença do grupo no bairro. Através desse projeto o grupo visa pintar as casas dentro da
comunidade e modificar sua aparência, fator que segundo o autor do projeto seria capaz de
modificar auto-estima dos moradores da comunidade e também atrair turismo e
investimentos.

A história do Grupo Cultural Afroreggae na comunidade


O Grupo Cultural Afroreggae surge em janeiro de 1993 como jornal que vinculava
notícias sobre a cultura-afro brasileiro, atuando no centro do Rio de Janeiro. O grupo,
portanto, não realizava nenhum tipo de serviço comunitário, porém no desenvolvimento do
jornal o grupo começou a se articular com algumas Ongs como Centro de Articulação de
Populações Marginalizadas e iniciou uma atenção à questões sociais mais amplas.
Após a Chacina de Vigário Geral ocorrida em agosto de 1993, o GCAR, já como um
grupo preocupado com questões sociais, mas apenas com idéias e sem nenhuma experiência
prática, começou a frequentar a comunidade de Vigário.
O Afroreggae começou a oferecer oficinas de percussão e de futebol na favela, isto
com muita improvisação, criatividade e ajuda de outros grupos como o Tafaraogi, grupo de
Padre Miguel, que emprestava os instrumentos para as oficinas e a Casa da Paz que cedia
espaço para ensaios. Destas oficinas de percussão surgiram a Banda AfroReggae e a Banda
AfroReggae 2 (hoje Makala).
Em 1996 o Grupo Cultural Afro Reggae começa a realizar um trabalho no Morro do
Cantagalo, uma favela em Ipanema. O núcleo do GCAR no Cantagalo foi o primeiro núcleo
fora de Vigário Geral e teve inicio através do dialogo entre o Afro Reggae e o grupo
Surfavela. Eram realizadas oficinas de dança e capoeira no Ciep João Goulart (também
conhecido como Ciep Ipanema), porém não teve muito êxito de inicio, só o obtendo um
tempo depois quando as oficinas passaram a ser de circo.
625

V V
Já em 1997 com apenas quatro anos de grupo, o Afroreggae já havia comprado uma
casa onde seria sua sede e estava sendo reformada com ajuda do Saap/Fase e das embaixadas
da Grã-Bretanha e do Canadá. É curioso observar que neste ano o grupo já tinha se separado
da Casa da Paz, conseguido a sede em Vigário e uma sala no centro da cidade. Além disso, a
Banda AfroReggae já tinha famosos padrinhos e começava um trabalho mais consistente que
ganharia espaço internacional no ano seguinte.
Em 2001 o grupo inaugurou seu segundo núcleo fora de Vigário Geral, agora
localizado em Parada de Lucas, comunidade vizinha a Vigário e rival histórica. O trabalho
desenvolvido em Lucas era voltado à aulas de informática.
O grupo chegou a ter sede em cinco comunidades e ter inserção em diversas outras
através de seus projetos, porém hoje o grupo reduziu seu número de sedes e atua em três
comunidades. No entanto, as referências à Vigário Geral são muito fortes, no primeiro cd da
Banda Afroreggae, por exemplo, oito entre treze músicas faziam referência à comunidade. No
segundo cd, entretanto, as referências já não são tão fortes, reflexo talvez da ampliação do
grupo.
Todavia não se pode negar a ligação do grupo com a comunidade e vice-versa, uma
vez que o grupo inicia seus trabalhos de serviços sociais lá e ao mesmo tempo conta para
todos suas origens em entrevistas e shows, inclusive internacionais.

A presença do grupo na comunidade


Como já foi dito o grupo começa a ter sua presença na comunidade através de oficinas,
realizando suas atividades na quadra da comunidade e posteriormente tendo seu espaço junto
à Casa da Paz, uma ONG que começou a atuar no local também após a chacina. Porém já em
1997 o grupo adquire sua sede dentro da comunidade, tendo desta forma seu primeiro edifício
na comunidade.
Além da presença através de edifícios o grupo realiza apresentações ao longo da
comunidade. No ano de 2010, em visita à comunidade pude perceber como é marcante a
presença do grupo. Acompanhado de membros do grupo pude acompanhar apresentações do
grupo ver o centro cultural em construção e analisar as práticas realizadas pelo grupo.
Vigário Geral é um território “disputado” por diversos grupos, tem a presença dos
traficantes armados, do GCAR e também das incursões policiais. Neste cenário o GCAR se
impõe através de diversas ações, conseguindo bom relacionamento com os moradores e
também com os diversos grupos da comunidade como veremos adiante.

626

V V
Num território “disputado” por tantos atores, existe uma prática de variadas ações
culturais para a manutenção ou expansão da dominação deste território. Azaryahu nos traz
uma bela reflexão sobre esse assunto:
O território, enquanto apropriado e controlado por um dado grupo ou instituição, mas
também contestado por outros, é objeto de políticas culturais que visam contribuir para a sua
manutenção ou expansão. Práticas culturais diversas como celebrações, memorializações e a
criação de símbolos identitários, estão entre aquelas práticas que criam e reafirmam a
apropriação de território. (AZARYAHU,1995, p. 315)

O visitante dos projetos do Afroreggae é recebido no pátio de entrada da favela já com


apresentações de sub-grupos ligados ao GCAR. Estas apresentações se sucederam ao longo da
comunidade, com algumas apresentações sendo realizadas dentro da Associação de
Moradores. Vigário Geral é uma favela muito bem delimitada, de um lado tem-se a linha do
trem, de outro um longo canal que margeia praticamente toda a comunidade e no terceiro lado
está a favela de Parada de Lucas. O pátio citado fica na descida da passarela que liga a favela
ao bairro de Vigário, passando sobre a linha férrea. Abaixo podemos ver a recepção aos
visitantes.

Figura 4 - Praça de acesso à Vigário Geral

Na foto pode-se perceber o prédio da Associação de Moradores de Vigário com a


pintura da logo do Grupo Cultural AfroReggae – um circulo verde e amarelo com um mapa
do Brasil em preto. Este fato se deu porque na época (2010) o grupo estava sem sede, já que
no espaço que o grupo tinha estava sendo construído o Centro Cultural Wally Salomão.

627

V V
Porém é importante observar como o grupo tem importância e articulação política dentro da
comunidade à ponto de ocupar praticamente todo prédio da associação.

O Centro Cultural Wally Salomão


Como foi dito na introdução, a construção do centro cultural iniciada em 2003 levou
sete anos. Segundo matéria veiculada no Observatório Brasileiro de Informação sobre Drogas
este longo tempo de obra foi ocasionado pelos diversos conflitos decorrentes da guerra do
tráfico.
O prédio que tem 1,5 mil metros quadrados tem como atrativo diversas atividades. No
primeiro andar ficam as salas de informática, o estúdio de formação de djs e um espaço para
as assistentes sociais do grupo; no segundo andar fica um estúdio de música; no terceiro andar
ficam salas das oficinas de dança; e no quarto e último andar fica um auditório para palestras
e salas para aulas individuais de música. Além destes atrativos, na frente do centro cultural foi
construída uma praça para receber show e apresentações em geral, e que na inauguração
recebeu grandes nomes da música brasileira como Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Percebe-se então que o Centro Cultural Wally Salomão (CCWS) é um grande edifício
e que congrega diversas atividades, chamando muita atenção numa favela onde a maioria das
casas são bem simples. O centro é também um pólo atrativo para os jovens da comunidade e
oferece diversas oficinas e atividades e também vem recebendo grandes artistas.
Esta representatividade do CCWS o coloca como símbolo da comunidade. A esse
respeito o geógrafo francês Bonnemaison cunhou o termo geossimbolo, que pode ser definido
como um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas, políticas ou culturais,
aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos assume uma dimensão simbólica que os fortalece
em sua identidade (BONNEMAISON, 2002).
Essa criação de símbolos ou santuários é vista muitas vezes como fundamentais para
sobrevivência e êxito de um movimento de libertação nacional, por exemplo. Da mesma
forma a derrubada de monumentos por vezes é realizada como estratégia de derrubada de um
valor simbólico.
Claro que o caso de Vigário Geral não chega a extremidade de um movimento de
libertação nacional, mas é importante observar o apelo que estes espaços simbólicos podem
ter.
Apesar do centro cultural ainda não ser uma referência na cidade, com certeza o é para
Vigário Geral. Através deste centro o Afroreggae marca sua presença na comunidade,

628

V V
qualquer pessoa ao circular nos arredores do bairro de Vigário Geral consegue visualizar o
grande centro, com suas cores chamativas e o punho fechado dos panteras negras

Figura 5 - Centro Cultural Wally Salomão (fonte: www.kissfromtheworld.com)

Num espaço tão disputado como Vigário Geral, a marcação de presença através de
uma construção de grande porte é emblemática. Soma-se a isso o grande número de
atividades promovidas pelo grupo.
Porém a presença do grupo não é marcada apenas nas construções da favela, como já
foi dito o grupo recebe visitantes realizando diversas apresentações ao longo das ruas da
favela, o que chama atenção, sobretudo das crianças da favela. Esta é uma prática realizada
desde as origens do grupo, que já chegou a ocupar a quadra da favela com suas oficinas e
também já realizou diversos shows na favela através de seus sub-grupos.
Desta maneira o GCAR ao mesmo tempo em que realiza suas atividades culturais,
consegue também ter uma presença física marcante na comunidade, com seus prédios e
apresentações. Isto faz com que o grupo chame muita atenção de todos os moradores da
favela e atraia os jovens e crianças para seus projetos, dando oportunidades para estes de
aprenderem instrumentos, informática, canto, dança e teatro e até retirando alguns jovens do
narcotráfico. Desta forma, o GCAR vem transformando a imagem de Vigário Geral, de local
exclusivo da violência para um local que recebe diversas atividades culturais, recebendo e
formando artistas.
Esta mudança na imagem da favela de Vigário Geral é um dos objetivos do grupo que
é apontado em algumas letras de músicas da banda Afroreggae, no filme Favela Rising e
também em algumas entrevistas de membros do grupo. Em uma das declaração divulgada
também pelo Observatório Brasileiro de Informação sobre Drogas, José Junior, coordenador
do GCAR enfatiza a importância do CCWS neste processo:
629

V V
É o grande projeto do AfroReggae. Vai ser um pólo catalisador de todo o Rio.
Queremos fazer de Vigário, lugar simbolicamente marcado pela violência, um pólo
cultural de impacto que seja referência de mudança para o País. (José Junior)
Neste sentido há uma vontade de marcar a favela como lugar da cultura. Ainda no
discurso do grupo, divulgado no filme “Favela Rising”, Vigário Geral vai se modificando de
Bósnia brasileira para se tornar um espaço de cultura.

Projeto Vigário Colorido Geral


Desta vontade de transformar a imagem de Vigário Geral é que surge também o
projeto Vigário Colorido Geral. O projeto surgiu ainda em 2010, praticamente junto a
inauguração do Centro Cultural Wally Salomão. É uma iniciativa do próprio Afroreggae,
elaborada pelo artista plástico Luiz Stein e incentivada pelo jornal “O Globo” que divulgou o
projeto em série de reportagens intitulada “Rio na Cabeça”. Esta série visava justamente
incentivar a criação de projetos que contribuíssem de alguma forma com a melhoria da
cidade.
A ideia do projeto era colorir todas 1500 casas da favela de Vigário Geral, tendo uma
clara inspiração no bairro de La Boca em Buenos Aires. Para Luiz Stein o projeto ajudaria a
mudar o estigma da favela, que em geral ainda é associada à violência. Além disso, há uma
expectativa de que o projeto influencie positivamente a vida dos moradores, melhorando sua
auto-estima.
Ainda segundo Stein, seriam realizadas oficinas para discutir a ideia com os
moradores. Os moradores poderão escolher a cor de suas casas e colaborariam com o projeto
numa espécie de mutirão.
No entanto, o projeto levantou alguns questionamentos. Daniela Name, jornalista,
curadora de arte professora da UFF, chama atenção para os processos especulativos e de
gentrificação que o projeto poderia gerar e critica a escolha da paleta de cores divulgada pelo
projeto.

630

V V
Figura 6 - Projeção de como ficariam as casas de Vigário Geral (fonte:
http://oglobo.globo.com/blogs/rionacabeca/)

Segundo ela são cores berrantes que chegariam a causar até desconforto para quem
convive cotidianamente com estas cores. A jornalista ainda acrescenta que estas cores seriam
impensáveis no tecido formal da cidade.
Outro crítico do projeto é o arquiteto e ex-presidente do Instituto de Arquitetos do
Brasil (IAB) Gerônimo Leitão. O autor diz que o projeto não atinge os reais problemas da
favela, propões a pintura, mas não se preocupa com problemas estruturais das casas que
sofrem com problemas de circulação de ar, infiltração, etc.
Em sua defesa, Stein afirma como já foi citado que a escolha das cores fica por conta
dos moradores e que a possibilidade de ação do Afroreggae e do projeto é restrita já que não
fazem parte de nenhum órgão público que trate da infraestrutura urbana da cidade. O artista
plástico diz que a pintura é o que está ao alcance dos executores do projeto e que através dela
espera-se chamar atenção para outros problemas da favela e desencadear ações que cuidem da
infraestrutura da comunidade. Para finalizar sua defesa, Stein afirma que o projeto não é uma
iniciativa de baixo pra cima e que há anos dialogando com a comunidade (cabe dizer que Luiz
Stein também foi o responsável pelo projeto gráfico do Centro Cultural Wally Salomão).
631

V V
Apesar da polêmica levantada o projeto, com custos estimados em 700 mil reais, não
saiu do papel. Os motivos de sua não realização não ficaram claros por parte dos
idealizadores. No entanto, acredito que as polêmicas levantadas foram importantes para
pensar sobre os impactos que um projeto cultural ambicioso pode gerar.

Considerações Finais
Num espaço disputado, como é a favela de Vigário Geral, o Grupo Cultural
Afroreggae consegue afirmar naquele espaço através de diversas estratégias. As construções
do grupo são a principal afirmação desta presença do grupo na comunidade, com destaque
para o Centro Cultural Wally Salomão
Vigário Colorido Geral reafirmaria ainda mais a presença do grupo na comunidade,
conseguindo fazer com todas as casas da comunidade fossem pintadas, de certa forma
imprimindo uma identidade do grupo para toda a favela. Apesar do idealizador do projeto
dizer que as cores são de escolha dos moradores, o fato é que ao apresentar uma projeção de
como ficariam as casas, acaba induzindo uma escolha dentro da paleta de cores apresentada.
Cabe ainda dizer que este não é o único ponto de um projeto do GCAR que é criticado,
o envolvimento do grupo com políticos e os conflitos com traficantes no Complexo do
Alemão levantam dúvidas e críticas à ONG. No entanto, não pode-se negar a importância do
grupo na mudança da imagem de Vigário Geral. De cenário de uma chacina marcante,
Vigário Geral hoje passa a ser conhecida também como berço de projetos sociais de grande
repercussão. Os patrocínios e as relações com importantes personalidades são provas da
grande relevância que o grupo atingiu
O projeto Vigário Colorido Geral consolidaria essa mudança de imagem da
comunidade e torná-la uma referência na cidade. Todavia, já com o CCWS o grupo consegue
empoderar a população que agora pode ter orgulho da comunidade que recebe importantes
artistas.

Referências Bibliográficas:

ARAUJO, Maria Paula Nascimento. História e memória de Vigário Geral. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2008.

AZARYAHU, M. The power of commemorative street names. In: Environment and Planning D.
Society and Space, nº 13, 1995

BONNEMAISON. Viagem em torno do território. In: Corrêa, R. L., ROSENDHAL, Z. (org).


Geografia Cultural: Um século. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000-2002.

632

V V
BOSSÉ, Mathias L. As Questões de identidade na Geografia Cultural – Algumas concepções
contemporâneas. In: Corrêa, R. L., ROSENDHAL, Z. (org). Paisagens, Textos e Identidade. Rio de
Janeiro: Eduerj, 2004.

COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana,
a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor; Niterói:
Intertexto, 2001.

JUNIOR, José. Da favela para o mundo: A história do Grupo Cultural Afro Reggae. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2006.

RODRIGUES, G. N. Discurso, ações e territorialidade do Grupo Cultural Afroreggae. Revista


GeoNorte, v. 7, p. 677-692, 2013

RODRIGUES, M.F.F. Paisagens, geossímbolos e dimensões da cultura em comunidades quilombolas.


Mercator, Fortaleza, v. 10, n. 22, p. 103-121, mai./ago. 2011.

Sites:

http://daniname.wordpress.com/2009/10/16/velhas-novidades-para-as-favelas-cariocas/#more-337

http://oglobo.globo.com/blogs/rionacabeca/posts/2009/10/14/la-boca-em-vigario-geral-231917.asp

633

V V
REFLEXOS DA POLÍTICA CULTURAL PARA ACESSIBILIDADE CULTURAL
TANTO EM PROJETOS CULTURAIS QUANTO PARA GESTÃO PÚBLICA DE
CULTURA
Helen Cristina Patrício de Novais1

RESUMO: Este artigo apresenta os reflexos da acessibilidade cultural após o resultado como
4º prioridade no eixo III – Cidadania e Direitos Cultuais, resultante da conferência nacional
que influencia as iniciativas de trabalho, fóruns e encontros no campo da política cultural.
Também as questões dos gestores e produtores culturais sobre essa ação para projetos e suas
relações com o poder público. Por fim, experiências e sugestões são apresentadas para
articular os mecanismos da gestão compartilhada pelo Sistema Nacional de Cultura e as
possibilidades de realização da defesa aos direitos culturais e do acesso aos bens públicos.

PALAVRA CHAVE: Política Cultural, Acessibilidade Cultural, Pessoas com deficiências,


Conferências e Gestão compartilhada.

“... Assim, almejo alcançarmos o dia em que a palavra exclusão e inclusão, serão palavras catalogadas
no dicionário de letras mortas ....” NOVAIS (2014)

Introdução
Enfatiza-se a questão da acessibilidade como uma ação prioritária no campo das ações
políticas. É pertinente adotar a proposta do direcionamento dos recursos para as prioridades e
a democratização, cumpri-la com o respeito aos direitos à cultura prevista em nossa
constituição (1988). Além disso, faz-se necessário alcançar um maior número de indivíduos,
ampliar e diversificar o público (usuário da cultura) de acordo com as diretrizes do Plano
Nacional de Cultura pelo Sistema Nacional (PNC) de Cultura que apresentam as ações
culturais a serem cumpridas pela gestão pública por uma prioridade e pela demanda das
cidades e estados brasileiros.
As iniciativas da criação de projetos com acessibilidade que ocorrem com maior
frequência a partir de 2013 pela influência da ação voltada à cultura surgem em projetos de

Facilitadora de Gestão e empreendimentos criativos pelo Senac-DF e Secretaria de Fomento e Economia


Criativa /MinC (2015).Especialista em Acessibilidade Cultural do curso de Terapia Ocupacional da Faculdade
de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ em Parceria com a Secretaria da diversidade e
cidadania cultural/MinC (2014). Especialista em Gestão Cultural pelo Centro Universitário de Belo Horizonte -
UNA (2009). Bacharelado em Direção Teatral (2006) e Licenciada em Artes Cênicas (2003) pela a Universidade
Federal de Ouro Preto - UFOP. Técnica em Contabilidade pelo(IMACO-BH).Curso de Gestão e
desenvolvimento pelo Observatório da Diversidade (MG) Parecerista do FEC-MG-Fundo Estadual de Cultura do
Estado de Minas Gerais na área de Produções em Novas Linguagens Artísticas (2011/2012). Professora de
teatro da Fundação de Arte de Ouro Preto (1999-2005) e Agente Cultural da Fundação Clóvis Salgado – Palácio
das Artes – GEREX – Midiateca (2005-2015) Poeta, atriz, diretora e professora de espetáculos. Consultora de
Projetos Culturais Criativos e Acessíveis: helen.novais@hotmail.com
634

V V
fomentos públicos pela rubrica que anuncia o pedido das estratégias de articulação para
incorporar um novo público. Desta forma, surgem dúvidas por parte dos gestores,
empreendedores e produtores culturais em como viabilizar o seu projeto para receber as
pessoas com deficiências, ou se preocupam com o custo do investimento ou da mão de obra
dos serviços especializados. É a mesma prática de quando se faz um planejamento para os
serviços técnicos que acompanham um projeto, por exemplo, o plano de luz para um
espetáculo, o especialista apresentará um mapa de luz e as marcações das ações dos atores em
cena, assim, o especialista em acessibilidade cultural bem como profissionais a seguir
apresentados neste texto servirão de referências para garantir a qualificação do trabalho.
A expectativa é a de que os especialistas em acessibilidade cultural possam atuar em
suas regiões e ser requisitados para as estratégias na gestão pública para orientar um
planejamento adequado tanto para concepção da proposta quanto no orçamento, fornecedores
de equipamentos e serviços qualificados que garantem o acesso do público. Observa-se que na
a ânsia do protagonismo desta ação em projetos ou atender as modificações crescentes
exigidas em editais públicos pela demanda prioritária como mostra na conferência nacional,
nem todos os gestores culturais conseguem alcançar esse público. É exatamente por isso que
foi criado o curso de especialização da UFRJ. É importante compreender que a consultoria de
especialistas ou pela rede em crescimento de estudiosos do assunto e profissionais convidados
pela UFRJ é composto por representantes das cidades brasileiras, mas talvez seja ainda um
número pequeno para cumprir com o tamanho das ações culturais que circulam o país, porém,
um número suficiente para iniciar a implantação e a sua implementação por cada estado
brasileiro que abrange as cidades sede dos profissionais em seus respectivos estados. E à
medida que aumentar o número de formandos do curso possam atender diretamente outras
cidades e regiões pela formação de equipes para sustentar as demandas existentes no país.
O benefício é para todos, pois, um projeto que visa à diversidade de público de
destaque nas inovações dos empreendimentos criativos pelo caráter da formação das
tecnologias sociais, pois, esta ação aproxima as pessoas excluídas das atividades culturais.
É importante observar que o sucesso dessa articulação de público se faz necessário
apresentar ao especialista em acessibilidade cultural quais as tecnologias assistivas adequadas
e os meios de comunicações que permitem que o público da pessoa com deficiência física ou
cognitiva participe do projeto e tenha real acesso à fruição estética do projeto. Reforçando a
definição que NOVAIS (2014) apresentou em sua defesa de conclusão de trabalho do curso
de especialização em Acessibilidade Cultural sob a orientação da Prfª Drª Patrícia Silva
Dorneles realizado no Museu da República pela UFRJ:
635

V V
Entende-se por “acessibilidade cultural”, a condição de acessar a
fruição estética dos bens culturais com autonomia apoiada por tecnologias
assistivas, meio de comunicações que dão suporte para traduções, vias com
piso tátil e sinalizações apropriadas para conduzir a pessoa de acordo com
sua deficiência ou deficiências ao contato direto com interpretação estética
do espaço cultural, meios, que proporcionem a compreensão do bem
cultural. (NOVAIS, 2014, p.4)

Definido com esse conceito que ele dialoga diretamente com o que Marilena Chauí,
citada em FILHO (2010) nos ensina sobre política de cidadania cultural:
Marilena Chauí, por exemplo, descrevendo sua experiência como
secretaria de cultura do município de São Paulo, entende por “política de
cidadania cultural: como direito dos cidadãos e como trabalho de criação [...]
dos sujeitos culturais” Ao pormenorizar o conceito, a filósofa acrescenta
“definição alargada de cultura”, além de temas imbricados com a ideia
democrática, como pluralismo, igualdade e inclusão. (FILHO 2010)

Os profissionais no país dedicado às pesquisas sobre acessibilidade cultural mesmo


recente contam com um resultados que apresentam um notório saber de cientistas brasileiros
empenhados tanto nas questões em acessibilidade para qualquer ambiente quanto
especificamente em projetos culturais. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul /
UFRGS, possui um Núcleo de Acessibilidade em Ambientes Culturais, desenvolvido pelo
Prof. Eduardo Cardoso, através do desenho universal para objetos, equipamentos e estruturas
acessíveis em ambientes. Observa-se que a tecnologia favorece a criação dos meios acessíveis
para comunicação e tecnologias. Entretanto, ainda são iniciativas isoladas criadas por
cientistas no país. Na Universidade Federal de Lavras (UFLA) o professor MONSERRAT
(2014), desenvolve um software que descreve imagens em áudio. Ele é um dos integrantes do
Núcleo de Acessibilidade da Universidade de Lavras (NAUFLA) onde a acessibilidade
atitudinal foi o primeiro passo para esta inovação. Segundo ele “o professor diz que na
iniciativa de trabalhar no desenvolvimento do software surgiu da experiência de lecionar para
uma aluna com deficiência visual. Conhecendo as necessidades dela [...] permite uma
audiodescrição com a figura, e com mais detalhes”. Foi pela relação entre o professor
MONSERRAT (2014) e sua aluna com deficiência visual que se despertou o interesse à
pesquisa ao desenvolver um software que favoreça a inserção de pessoas com deficiências
visuais na sociedade. Este tipo de software pode ser muito útil para exposição de Artes
Visuais ou em exposição em museus. A presença da pessoa com deficiência influencia o
ambiente. Outro exemplo é o MUSIBRAILE2, trata-se do ensino da escrita tradicional da

2
Disponível em: www.musibraile.com.br acesso em: 07/03/2013.
636

V V
música para deficientes visuais e seu ingresso aos estudos musicais. Pelo o desenvolvimento
deste software, torna-se possível alcançar as outras áreas de linguagens em comunicação.
No I Encontro Nacional de Acessibilidade Cultural da UFRJ (2013), José Antônio
Borges, professor convidado do curso de Especialização em Acessibilidade Cultural (UFRJ)
colocou que há o interesse de outros países em adquirir a patente da criação do Musibraile. A
revista Minas Faz Ciência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(FAPEMIG), FONSECA (2013), aponta a propriedade intelectual com inovações propulsoras
no Estado: “Auxiliada por parceiros como Instituto Nacional da Propriedade Industrial [...]
promove cursos de capacitação para o seus profissionais, que questões ligadas à propriedade
intelectual, redação de patentes e transferência de tecnologia [...] Peça que representa partes
do corpo humano em diferentes escalas. Visa o manuseio por deficientes visuais, tornando
mais eficazes e inclusivos o ensino e a aprendizagem de Ciências da Vida”. Bem como foi
citado, as peças que representam partes do corpo humano em diferentes escalas, em
exposições acessíveis, também s são criadas as peças de obras de artes táteis para deficientes
visuais ou mesmo para o público em geral ao experimentar os estímulos sensoriais de uma
exposição. Neste sentido, TOJAL (2014), responsável pela empresa de consultoria,
Arteinclusão3, e professora convidada da UFRJ que reproduz peças de obras de artes de
acordo com a deficiência ou deficiências do público visitante de centros culturais.
O curso de Acessibilidade Cultural da UFRJ abre a primeira oportunidade de
capacitação em acessibilidade nos país em nível de especialização ministrada por uma rede de
professores e profissionais especialistas efetivos e convidados nas áreas multidisciplinares da
acessibilidade cultural, com ações voltadas para pesquisas, criações de objetos táteis e
tecnológicos como recursos expressivos à fruição estética das pessoas com deficiência. Cito
também as mediações por aplicativos que pesquisam as Prfª Dra.Vera Souza e a Prfª Dra.
Myrian Pelosi (UFRJ). E também pesquisas e aplicação das práticas de discussões para
formação da implantação da política cultural em acessibilidade para o acesso à cultura.
Fruto dessa tendência, em 2013 e 2014 alguns artigos dos alunos do Curso de Pós
Graduação em Acessibilidade Cultural foram publicados para a comunicação com a temática
de “Políticas Culturais: Acessibilidade e projetos educacionais” no IV e V Seminário
Internacional de Políticas Culturais criado pela Fundação Casa Rui Barbosa (FCRB/MInC) na
cidade do Rio de Janeiro4. Como também para o Simpósio “Acessibilidade Cultural –
singularidades para pessoas com deficiência” no 1º Congresso Internacional e 4º Congresso
3
Veja em www.arteinclusao.com.br
4
IV Seminário Internacional de Políticas Culturais – 16,17,18 de Outubro de 2013 e V Seminário Internacional
de Políticas Culturais – 07,08 e 09 de Maio de 2014. In: www.fcrb.cultura.org.br.
637

V V
Nacional de Letras, Artes e Cultura da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) 5 sob
a coordenações das Profªas Dra. Patrícia Silva Dorneles (UFRJ) e Sandra Regina Rosa Farias
(UNEB) que é parceira da PrfªDra.Eliane Franco (UFBA) na produção em audiodecrição.
Essa observação nos remete ao pensamento apreciativo da nobreza e potencialidades
dos cidadãos dedicados à especialidade do assunto que colaboram tanto para o
desenvolvimento social, político, estético e cientifico voltados para pesquisas, ações e
multiplicação desses conhecimentos para formação profissional do país. Não cabe neste
trabalho citar todas as referências, porém, cabe apontar as inovações tecnológicas que
proporcionam as acessibilidades como ferramentas que oferecem os meios ao acesso da
pessoa com deficiência.
O I Encontro Nacional de Acessibilidade Cultural (I ENAC) da UFRJ 6 assim como o
III Seminário de Ambientes Acessíveis (SENAAC) da UFRGS apresentaram amplas
possibilidades de mobilizar a sociedade e desenvolver atividades de projetos culturais
acessíveis. Cumpre dizer que a acessibilidade atitudinal, as tecnologias assistivas bem como
outros recursos de comunicação, proporcionam novos meios de interações sociais, aquisição
de novos conhecimentos que favorecem o acesso com acessibilidade para PCD’s em
ambientes culturais, sejam elas com dificuldades cognitivas ou físicas à aprendizagem, à
criatividade e colaboram com o desenvolvimento sociocultural dos cidadãos ao proporcionar
maior autonomia para viver com a mesma dignidade das pessoas com corpos comuns.
Outro fato é tratando-se de um centro cultural público, ser agradável a presença de um
anfitrião habilitado para receber o público. Normalmente, funcionários da recepção são os
principais mediadores do público. Esse profissional cumpre com um papel importante quando
se fala de acesso. Portanto, é uma categoria que precisa ser valorizada, capacitada e, sem
exagero, oferecer uma expectativa entusiástica ao receber o publico com ou sem deficiência.
Como referência atitudinal em Minas Gerais, A Fundação Clóvis Salgado (FCS) 7,
situada em Belo Horizonte, no complexo artístico Palácio das Artes, desenvolve iniciativas
das ações para acessibilidade na receptividade pela participação do público com ou sem
deficiências acompanhados por mediadores interpretes e/ou professores dos grupos que
seguem a programação “Atuação Social” que a Gerência de Pesquisa e Extensão organiza por
agendamento prévio. Aberto para uma diversidade de público com faixa etária acima de 06

5
4° Congresso Nacional e 1º Congresso Internacional de Letras, Artes e Cultura – 04 a 7 Novembro de
2013.www.ufsj.com.br .
6
Veja em www.acessibilidadecultura.ufrj.com.br I ENAC e III SENAAC - 16,17,18 de Abril de 2013 na FBN –
RJ.
7
www.fcs.mg.gov.br
638

V V
(seis) anos de idade voltados para o grupo de escolas públicas e privadas, creches, projetos
sociais, centro de saúde, idosos, escolas de artes, grupos artísticos e outros da cidade, região
metropolitana e eventualmente das cidades distantes e conta com uma equipe muito pequena.
Neste mesmo setor na área de Pesquisa e Memória, a Mídiateca encontra-se em estado de
revitalização com inauguração prevista para o corrente ano, pretende criar em parceria com
universidades, a adaptação de computadores de consulta, um software que possibilitará PCD’s
o uso do conteúdo sonoro. Esta proposta influenciou outros setores, por exemplo, no setor
educativo das Artes Visuais, foi contratada uma servidora que domina as libras. E de acordo
com a atual gestão pública de Minas Gerais, possa implantar e implementar esta política em
todos os espaços públicos culturais e suas respectivas programações culturais bem como
adquirir os recursos tecnológicos e assistivos necessários à mediação do específico público.
Sãos espaços interativos que estimulam os sentidos estéticos e propicia o acesso à
linguagem. Quando encontramos um ambiente receptivo que instiga a interatividade, ao ficar
à vontade, o suporte criado para receber o público com ou sem deficiência deixar de ser uma
adaptação para ser um espaço criativo e sensorial. O que muitos espaços interativos ou que
possuem um fluxo de programação intensa necessita é da capacitação para a concepção das
ações programadas com os recursos de acessibilidade atitudinal, física e de comunicação para
que o acesso seja pleno.
É com esse sentido que espaços culturais revitalizados, ou novos espaços, necessitam
criar concepções que dialoguem com as pessoas com ou sem deficiências e estimulem suas
potencialidades estéticas pela participação com as faculdades sensoriais: a do tato, visão,
paladar, audição, olfato. Para estas pessoas, com ou sem deficiência, compartilhar um mesmo
ambiente ao seguir uma programação cultural acessível é uma experiência singular.
No Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e no Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MAM-SP) também acontecem exposições acessíveis e projetos
educativos pela implementação das políticas da acessibilidade cultural para pessoas com
deficiência nestes espaços. Há outras experiências isoladas no país que vale a pena investigar
cada uma delas, porém, estes exemplos são ilustrações para que se entenda que o acesso
depende diretamente do conhecimento das necessidades do corpo humano e suas faculdades e
como espaços criativos proporcionam a liberdade à expressão e criatividade do público.
Novos espaços culturais criados ou revitalizados com propostas ao acesso à fruição
universal ao inserir ambientes acessíveis para pessoas com deficiências seguirão a diretriz
para da política de acessibilidade universal, HARDIUM (2013) aponta que o IBRAM para
museus estabelece que:
639

V V
“No campo museológico, o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)
instituiu o Fórum Nacional de Museus que é um evento bienal, com o
objetivo de refletir, avaliar e estabelecer diretrizes para a Política Nacional
de Museus e para o Sistema Brasileiro de Museus. O Plano Nacional Setorial
de Museus 2010/2020, elaborado no 4º Fórum Nacional de Museus, em sua
diretriz número 11 “estabelece uma política de acessibilidade universal para
museus e centros culturais”, através de suas estratégias, metas e ações aponta
para a criação de legislação específica; garantia de acesso das pessoas com
deficiência aos museus; Adequação dos espaços museais e seu entorno aos
princípios da acessibilidade universal; elaboração de estratégias de
comunicação que favoreçam a compreensão dos discursos expositivos nos
espaços culturais; parcerias com diferentes instâncias governamentais para
implementação de roteiros acessíveis; criação de oficina de capacitação
sobre acessibilidade e produção de material teórico que contemple as
especificidades de cada público, adequado à realidade brasileira. Em seu
aspecto amplo esta diretriz abarca importantes princípios para o
desenvolvimento e cumprimento das leis existentes no país.
(HAUDIM,2013,p.87)

Se por um lado a área de museu deseja ampliar o público e pretende cumprir com o
acesso universal, interessa saber qual a abrangência das ações políticas em acessibilidade
cultural para a estruturação dos espaços, independente do período da sua construção. A outra
diretriz para os espaços culturais é a preparação de equipes de ações educativas junto ao
responsável pela recepção de público e curadoria capacitada para a concepção acessível com a
pessoa com deficiência em todas as programações culturais.
Por estas razões, como desatacou LEYTON (2013), coordenadora do setor educativo
de acessibilidade do Museu de Arte Moderna de São Paulo, (MAM-SP)8 no I IENAC (2013)
que as montagens das exposições são concebidas de acordo com acessibilidade cultural para a
pessoa com deficiência e a equipe do educativo e/ou da logística são preparadas para a
recepção do público diverso bem como a PCD. Uma exposição necessita avaliar as atividades
sensoriais estéticas e físicas do espaço, além da relação de confiança dos agentes culturais
bem como a disponibilidade de horários compatíveis ao público local ou turista. Outra
referência é a criação do projeto “Museus Acessíveis9” fundado por SARRAFO (2013), cuja
missão é “oferecer as PCD’s o livre acesso dos museus e espaços culturais”. Tanto ela quanto
LEYTON (2013), são parceiras em ações acessíveis e professoras convidadas do curso de
Acessibilidade Cultural da UFRJ.
O espaço cultural conta com o público frequentador e com um público
flutuante, e por esta razão, o espaço cultural necessita, em sua composição básica, de uma
estrutura, no mínimo, apresentar um elemento da exposição que esteja apto a receber a

8
Disponível em http://acessibilidadecultural.com.br/man-museu-de-arte-moderna-de... acesso em 25/09/2013
9
Veja: museusacessiveis.wordpress.com/quem-somos-2/ acesso em 23/02/214.
640

V V
“Pessoa” com deficiência. A organicidade do ambiente requer uma flexibilidade humana por
parte dos agentes culturais, dos suportes e equipamentos técnicos, das adaptações dos recursos
orientadores que apoiam a direção do objeto de fruição. O público ao aceitar a visita a uma
programação cultural prepara-se antecipadamente com objetivo central de ir ao encontro do
objeto de fruição. Nisto, BERGE (1981), apresenta a reflexão sobre a natureza humana e o
sentido do espaço em:
“O que é o sentido espacial? Todo animal, todo inseto, move-se
instintivamente num espaço que delimitou, que organiza, e que corresponde
a suas necessidades de sobrevivência e a seus gastos de energia. Invadir o
território do outro gera conflito. O homem até hoje, teve esse mesmo
instinto. Basta observar os traços das civilizações antigas, a disposição das
cidades, e até a disposição de certas casas. Mas este sentido instintivo de
organização do espaço é cada vez mais recalcado e os homens se
amontoaram agora em monstruosas aglomerações, esquecendo suas
necessidades vitais. Enquadrados no concreto armado, transportados em
massa, submetidos a um ritmo que não é o seu, distraídos de maneira
embrutecedora, mostram-se mais passivos do que ativos. E, se, ao tomar
consciência do impasse em que os colocou esta civilização, tentarem uma
mudança profunda de seus hábitos, as dificuldades que encontram, por falta
de preparo, muitas se jamais nos preparamos para isso? Como organizar o
espaço em nossa casa? A arquitetura leva em conta as necessidades sutis do
homem? O sentido espaço está ligado ao ser psíquico? São questões
inevitáveis”. (BERGE, 1981, p.91)

A autora, BERGE (1981), remete aos sentidos da organicidade desse espaço, se foi
criado para a frequência de seres humanos e se o espaço cultural está adequado a receber o
público. É um ambiente em que sociedade cultua exclusivamente à fruição à cultura. Um rito
milenar que reúne pessoas com um único objetivo. Essa expectativa ocorre desde o dia em
que o público participa da programação de qualquer evento dessa natureza. Naturalmente, a
decepção pode ser proporcional à expectativa criada por este tipo de investimento. Mesmo
que o ingresso seja gratuito, se o espaço não oferece a receptividade adequada e o espaço
arquitetônico não corresponde com a realidade da natureza corpórea, afetiva ou cognitiva do
público visitante, não haverá sentido para o seu deslocamento. E a atividade cultural para que
seja realizada em sua plenitude só se realizará com a presença da circulação pública e quanto
mais diversificada for este perfil de público maior será a proporção de valores culturais
agregados por uma sociedade.

Relato pessoal e os reflexos das políticas culturais em Minas Gerais por meio das
Conferências e sugestões para os serviços criativos nas áreas culturais com
acessibilidade cultural e considerações finais.

641

V V
As Conferências fortaleceram a política do acesso universal e dos direitos culturais
com maior clareza através do resultado da quarta prioridade do Eixo III que se refere ao
Direito e a Cidadania cultural. Isso revela como as conferências são instrumentos valiosos
para avaliar a política cultural. A participação dos representantes da sociedade civil como
proponentes de projetos com a acessibilidade para o público do segmento, às pessoas com
deficiências, realizados por fomentos públicos como resposta aos resultados das prioridades
da quarta prioridade do Eixo III da Conferência contribuirá com a amplitude da política de
gestão compartilhada. Neste caso enquanto a gestão pública se organiza para cumprir com as
metas do PNC, agentes culturais aceleram as ações como uma atitude de pressão aos
resultados de projetos acessíveis em circulação.
A participação das entidades públicas em editais para os fundos de financiamento,
voltadas à incorporação da acessibilidade em projetos culturais, pode se tornar um meio de
ampliar e apoiar a implantação e implementação de ações para cumprir com a Meta 29 do
PNC/SNC que prevê acessibilidade à cultura. A gestão pública, que possui mecanismos de
fomento público, necessita alterar os respectivos editais para bonificar as propostas com
acessibilidade que contemplam as pessoas com deficiência sejam elas usuários ou
trabalhadores da cultura. Assim o Fundo de Apoio à Acessibilidade Cultural é colocado aqui
como sugestão de mecanismo para promover a garantia do acesso ao financiamento
descentralizado contemplando locais desprovidos de desenvolvimento socioeconômico.
A implantação e implementação desta ação se torna um marco à inovação nas políticas
culturais no país e estados ao incorporar a Acessibilidade Cultural na universalização do
acesso bens e serviços culturais por serem imprescindíveis nas previsões do orçamento em
todas as esferas de poder público. Isso implica no aumento da verba destinada à cultura
nacional, estados e municípios. Por influência da minha formação em Acessibilidade Cultural
e pela difusão orientada pelas aulas de políticas da diversidade cultural, participei de todo
processo e ainda ocupei o lugar de relatora para garantir a escrita com a forma técnica sobre a
aplicação dos recursos assistivos dentro da pauta da acessibilidade. Vejamos abaixo, as
propostas aprovadas em Belo Horizonte10 (2013) para acessibilidade cultural, após a vivência
dessa trajetória:
3ª CONFERENCIA MUNCIPAL DE CULTURA DE BELO
HORIZONTES - 2013 CULTURA EM BH: AVANÇOS E DESAFIOS.
PROPOSTAS APROVADAS PELA PLENÁRIA.
EIXO: Cidadania e Direitos Culturais

10
Disponível em www.fundacaomunicipaldeculura.bh.gov.br

642

V V
Mediadores: Isabel de Fátima Rodrigues Silva e Isabel Cristina
Felipe Beirigo
Relator: Helen Cristina Patrício de Novais e Jesus Natalino de
Almeida
EIXO SUB-EIXO PROPOSTAS
3 – Cidadania e Direitos Culturais
Democratização e Ampliação do Acesso à Cultura e
Descentralização da Rede de Equipamentos, Serviços e Espaços Culturais,
em conformidade com as convenções e acordos internacionais.
1. Municipal: - Criação de gerencias regionais de cultura, garantindo
a autonomia de gestão e recursos, focadas, prioritariamente na estruturação,
manutenção, ampliação e criação dos espaços culturais sobre a
administração municipal, inclusive com tecnologias assistivas necessárias
para a produção e circulação das áreas artísticas, facilitando e valorizando as
atividades locais.
2. Estadual: - Edital Estadual Anual para a participação de entidades
culturais e agentes culturais para a gestão compartilhada. Diversidade
Cultural, Acessibilidade e Tecnologias Sociais
1. Municipal: - Destinar recursos para garantir o acesso e
acessibilidade mediante a qualificação de agentes e espaços públicos e
privados de cultura.

Foram duas propostas aprovadas no âmbito municipal e a outra no âmbito estadual que
pontua os aspectos da cultura e da cidadania, incluindo a presença da palavra “acessibilidade”
com apropriação e consciência social colocada pelo coletivo motivado pelo real significado da
expressão ao acesso universal em espaços para cultura.
E para a conferência estadual de cultural na tarefa de sensibilizar os representantes das
cidades mineiras que compreendem gestores, público (usuários de cultura), artistas,
movimentos sociais, gestores, educadores da arte e cultura, voltados para a política cultural e
fomento da rede entre gestores, proporcionou uma troca valiosa de experiências; um encontro
que proporcionou apresentar a pratica da outra face da gestão compartilhada. Curiosamente,
no plenarinho, no primeiro dia da Conferência Estadual, em datas iguais, acontecia pela
manhã uma palestra sobre os Direitos Humanos da Pessoa com Deficiência. Visitei e
dialoguei com todos os representantes, com ou sem deficiência, que discutiam sobre a
inclusão do direito trabalhista à pessoa com deficiência que contou com a presença do
Professor Romeu Kazumi Sassaki, consultor em Inclusão Social de São Paulo. Estavam
presentes Kátia Ferraz e demais representantes da CVI (Centro de Vida Independente) de
Belo Horizonte, Denise Martins Ferreira, especialista em Políticas Públicas e Direitos das
Pessoas com Deficiência e divulguei o documento da conferência Livre em Acessibilidade
Cultural criado pelos especialistas do curso da UFRJ para a ciência da conferências de cultura
e a as discussões sobre a pauta da acessibilidade cultural.

643

V V
No plenário onde ocorreu a Conferência estadual de cultura, participei das discussões
do Eixo III – Cidadania e Direito Cultural para garantir a pauta sobre a Acessibilidade
Cultural me articulei com o grupo de trabalho como observadora. Foi-me dada à autorização
para expressar as minhas ideias aos delegados. Tive o cuidado em proferir as palavras e as
terminologias adequadas para não ocorrer uma má interpretação do uso do conceito da
“Acessibilidade Cultural”. Enfim, com muito esforço, a acessibilidade foi incluída no texto e
a pauta foi bem votada, sendo o suficiente, portanto, com esse trabalho de sensibilização, os
participantes da conferência estadual aderiram à aprovação do texto a seguir:
EIXO III - CIDADANIA E DIREITOS CULTURAIS NO ÂMBITO
ESTADUAL
Sub-eixo 2 – Diversidade Cultural, Acessibilidade e Tecnologias
Sociais
24. Garantia efetiva da acessibilidade às pessoas com necessidades
especiais em todos os equipamentos culturais; e interação e inclusão das
crianças, adolescentes e idosos nos projetos artísticos e culturais,
construindo, adequando ou ampliando esses equipamentos, com o intuito de
valorizar e reconhecer a diversidade cultural existente e favorecer as relações
pacíficas e sustentáveis entre grupos, para atender plenamente a todos. [...]
25. Garantia de recursos financeiros específicos para a construção,
recuperação, revitalização e manutenção dos equipamentos de cultura, tais
como arquivos públicos, museus, teatros, salas de cinema, bibliotecas,
escolas e praças, assegurando sua completa adequação aos parâmetros de
acessibilidade.
Sub-eixo 3 – Valorização e Fomento das Iniciativas Culturais Locais
e Articulação em Rede [...]
Outra proposta aprovada: 28. Criação de mecanismo de
financiamento às iniciativas de cadastramento e formação de redes culturais,
dando oportunidades a todos na qualificação e fruição das manifestações
artísticas e culturais locais, assim como na facilitação do acesso do pequeno
empreendedor a financiamentos, programas e projetos para a criação
artística e cultural, garantindo a acessibilidade de todos aos bens e produtos,
ao saber e ao fazer.” (in.: http://www.cultura.mg.gov)

A articulação entre os gestores dos municípios e distritos do estado de Minas Gerais,


após a difusão do documento da “Conferência Livre em Acessibilidade Cultural” criada pelo
o curso da UFRJ, mobilizou rapidamente estes atores. Com prontidão dos votos, dentre as 35
propostas do estado, três foram aprovadas para acessibilidade. No Eixo III da Cidadania e
Direitos autorais, as propostas aprovadas pelo estado, estão voltadas para a garantia efetiva da
acessibilidade para pessoas com deficiência focado em equipamentos culturais de todos os
segmentos artísticos e culturais como também prevê a criação de mecanismo de
financiamento para sustentar a acessibilidade aos bens culturais, ao saber e ao fazer cultural.
Cabe acrescentar que no texto, fala-se de pessoas com necessidades especiais e o termo
técnico adequado deve ser “Pessoa com Deficiência”.

644

V V
Para informar e formalizar a participação do público com deficiência à cultura foi
realizado um conjunto de ações, como, fóruns de políticas culturais e as conferências livres,
municipais, estaduais e no âmbito com prioridade e para cumprir com esta demanda
ocorreram várias iniciativas em vários setores da cultura em função da sinalização das
rubricas realizadas em editais públicos de cultura que exigiram as estratégias de articulação do
público. Por exemplo, Superintendência de Fomento público do Estado Minas Gerais alterou
o edital de 2014 por esta demanda.
O Fórum Permanente de Cultura de Minas Gerais (FPC-MG) foi criado na cidade de
Belo Horizonte para expandir o diálogo com a gestão pública do Estado e com participação
dos cidadãos das cidades mineiras. Encontram-se os representantes da cadeia produtiva da
cultura para discutir as pautas prioritárias, dentre elas, estive presente para pontuar ações
culturais e o destaque para acessibilidade cultural elencada dentre as prioridades apresentadas
para o governo atual do estado. Referenciada como um indicativo evidente para sua
implantação e implementação por um direito à cidadania e eleita como 4º prioridade
resultante da conferência nacional, e, por último pela adesão do estado de Minas ao Sistema
Nacional de Cultura (SNC), o que pode proporcionar a parceria com o governo federal . Para
isso, o primeiro passo é implantar a política cultural da acessibilidade cultural no estado e em
seguida criar meios que viabilize à ações culturais. Para esta ação é importante planejar e
adotar a prática da gestão compartilhada com outros setores públicos, utilizar os recursos
financeiros e humanos e ainda, recorrer a economia criativa que possibilite estas ações e gerar
uma política de intercâmbio com a cadeia produtiva e a relação com público da Cultura.
É um dever de Estado estimular as novas linguagens, conservar e preservar a cultura
tradicional e oferecer uma contrapartida social para usufruto dos bens culturais. Portanto,
além do Fundo de cultural, outros meios de financiamentos à cultura devem ser viáveis para
atender a crescente demanda de propostas apresentadas em cada conferência. No caso da
acessibilidade cultural para pessoas com deficiência, além dos mecanismos estabelecidos pelo
Sistema de Financiamento à Cultura (SFC), a criação do Fundo de Apoio à Acessibilidade
Cultural (FAC) é uma sugestão, pois envolve toda diversidade de público com ou sem
deficiência com o propósito de garantir a universalização do acesso da população à cultura em
acordo com os direitos culturais e para que os gestores, produtores culturais e proponentes
que utilizam do fomento público desenvolvam as práticas dessas ações em seus projetos.
O papel do Fórum de Política Cultural em Minas Gerais e sua criação são importantes
para que cresça a participação coletiva das vozes da cadeia produtiva e do grande público e
quem sabe conceber novos meios de articulação das estratégias criativas por meio da
645

V V
mobilização dos agrupamentos socioculturais, desta forma, as ações sejam realizadas na
velocidade que caminha a sociedade. A gestão pública compartilhada e os diálogos entre a
sociedade civil e o poder público, neste sentido extrapola as possibilidades de realização,
prosseguem com semelhantes propósitos ou paralelamente acordados, aproximam da
democracia como prática que vai além das legislações aprovadas e registradas em documentos
e proporcionam a experiência e a emancipação de uma sociedade para as políticas culturais.
Referências

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Belo Horizonte. 2008. P.43

BERGE, Ivonne. Viver o seu corpo. Por uma pedagogia do movimento. Livraria Martins Fontes
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CARDOSO, Eduardo. II. CUTY, Jeniffer. III Acessibilidade em Ambientes Culturais. DCU
930.085. Organizadores. Porto Alegre: Marca Visual, 2012 91 P.: IL.ISBN 978-85-61965-12-9 1.

I e II ENAC - Encontro Nacional de Acessibilidade Cultural – UFRJ/MinC (2013) na Fundação da


Biblioteca Nacional no RJ/RJ e em Natal/RN pela UFRN/MinC no Teia Nacional de Cultura (2014).

III e IV SENAAC- Seminário Nacional de Acessibilidade Cultural em Ambientes Culturais pela


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HARDUIM Barbara (Museu do Ingá). 4 mãos: experiências compartilhadas por um museu


acessível Simpósio em Acessibilidade 1º Congresso Internacional Letras, Artes e Cultura & 4º
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Novembro de 2013. P.87

HOLLANDA, Ana de, MAMBERTI, Sérgio. Ministério da Cultura. As metas do Plano Nacional da
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646

V V
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SARTINI, Antônio. O espaço como experiência, repertório e gestão. 2º Seminário Internacional


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< http:///www.cultura.mg.gov.br . III Conferência Estadual de Cultural de Minas Gerais. 2013.

647

V V
O GÊNERO EDITAL CULTURAL NO BRASIL E PROCESSOS DE INFORMAÇÃO
NA ESFERA POLÍTICO-CULTURAL
Inti Anny Queiroz1

RESUMO: A partir de editais culturais realizados recentemente em âmbito federal e estadual


observaremos as especificidades do gênero edital cultural e como estes auxiliaram na
distribuição de verbas para a cultura no país. Aliado a isso analisaremos como ocorreram os
processos de informação em cada um dos casos, inscrição e circulação na esfera, o contato
com os usuários interessados em realizar a inscrição em cada um dos editais e como a
informação foi processada de forma concreta. Foi possível aferir uma relativa estabilidade do
gênero edital cultural por meio da ampliação de sua produtividade, ampliando relativamente
também o acesso ao uso das leis de incentivo à cultura pela população em geral. Porém o
edital cultural requer conhecimentos prévios de discursos das esferas em diálogo, bem como o
conhecimento do gênero projeto cultural.

PALAVRAS-CHAVE: editais, cultura, leis de incentivo, informação.

INTRODUÇÃO

O processo de implantação de políticas públicas de cultura no Brasil caminhou ao lado


da história do país. Do ponto de vista da ciência da informação, a existência de uma esfera
político-cultural brasileira pode ser considerada a partir do início do século XIX, com a
chegada da família real portuguesa e os investimentos em cultura que aconteceram no Brasil
desde então. Em 1808, o então príncipe regente Dom João VI implantou diversas medidas
administrativas para a implementação da cultura e da educação no país visando estimular o
processo de transformação da colônia em nação. O ponto de partida dessa história tem seu
marco com a “impressão do primeiro livro em terras brasileiras, e fundamentada pela criação
do primeiro órgão público de cultura com a criação da Fundação Biblioteca Nacional em
1811, aberta ao público apenas em 1813.” (SOUZA, 2000, p. 26).
Essa etapa inicial foi seguida pela Era Vargas com a implantação de diversos órgãos
de cultura que visavam a implementação de uma estrutura de políticas de cultura orquestrada
pelo governo e voltadas para assuntos de seu interesse. O período compreendido entre o golpe
militar de 1964 até a redemocratização política nos anos 80 configurou um período com
incentivos voltados à produção de produtos da indústria cultural como a TV e o cinema
1
Doutoranda e mestre do programa de Filologia e Língua portuguesa do curso de Letras na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em linguística pela mesma
universidade. inti.queiroz@gmail.com

648

V V
comercial. A censura e o exílio de diversos artistas gerou um decrescimento na produção
cultural brasileira em termos de qualidade e em seu lugar foi priorizada a quantidade.
Nos anos 80, com o final da ditadura e a redemocratização, o Brasil iniciou uma nova
fase de desenvolvimento social e econômico, com a necessidade de desenvolvimento regional
e ampliação de interesses do Estado para as necessidades do povo. Uma das alternativas
encontradas pelos governos, tanto o federal, quanto estaduais e municipais, foi a implantação
de leis de incentivo à cultura que regulassem essa distribuição de verbas públicas ainda que a
partir do crivo da esfera privada. “As leis de incentivo à cultura que foram criadas no Brasil
espelham essa tentativa de criar um Terceiro Setor com nova roupagem, com Estado e
empresa capitalista esboçando movimentos de parceria.” (COSTA, 2006, p.10)
Inspirado em programas desenvolvidos em outros países, o então deputado federal,
José Sarney criou em 1972 um projeto de lei de incentivo à cultura, aprovado apenas em 1986
como a lei federal 7.505/86 e que recebeu seu nome. A Lei Sarney foi substituída em 1991,
pela Lei 8.313/91, conhecida como Lei Rouanet ou Lei de Incentivo Federal à Cultura em
vigor até hoje. Desde então muito aconteceu na esfera político-cultural brasileira. Novas leis
de incentivo à cultura surgiram por todo país e novas ferramentas relacionadas à esfera
político cultural foram criadas. Boa parte dos estados e municípios contam atualmente com
leis de incentivo à cultura e boa parte deles utiliza a ferramenta de edital cultural para a
distribuição das verbas públicas. Entre os mecanismos vigentes de utilização das leis de
incentivo culturais temos: o mecenato, os prêmios, o fomento das artes e os editais culturais.
Visando ampliar a distribuição das verbas, um dos gêneros da esfera político-cultural
com maior destaque nos últimos anos são os editais culturais. Tanto em entidades públicas
quanto em empresas patrocinadoras, os editais culturais tem mostrado relativa eficácia para a
distribuição de verbas para propostas culturais de diversos tipos já que em boa parte dos casos
apresenta tramites burocráticos mais simples do que outras ferramentas da esfera como as leis
de incentivo via mecenato.
Buscamos analisar neste trabalho como o gênero discursivo edital cultural e suas
especificidades a partir de editais culturais realizados recentemente em âmbito federal e
estadual auxiliam na distribuição de verbas para a cultura no país. Observaremos também
como estes processos ocorrerão em termos da informação em cada um dos casos. Seus
processos de inscrição e circulação na esfera, o contato com os usuários interessados em
realizar a inscrição em cada um dos editais e como a informação é processada de forma
concreta. Foram analisados dois enunciados de editais, para basearmos nossa pesquisa em
diferentes planos da esfera estatal. Os editais analisados neste estudo são: o edital federal
649

V V
Procultura de Festivais de música e o edital estadual de São Paulo, PROAC - Festivais de
Artes, ambos realizados entre os anos de 2010 /2011. De acordo com os sites dos respectivos
órgãos públicos de cultura de onde foram retirados ambos tiveram grande procura pública e
grande quantidade inscrições de propostas concorrentes.

DESENVOLVIMENTO
A esfera político-cultural, com o advento das leis de incentivo tem demonstrado uma
clara ligação com outras esferas: estatal (governos – federal, estaduais e municipais), política
(interesses políticos dos governos e legisladores criadores das leis de incentivo), legislativa
(leis/ parlamento), corporativa (empresas patrocinadoras), midiática (divulgação de projetos
culturais) e artística (onde os projetos são de fato desenvolvidos). Nesta nova etapa, a esfera
trouxe um novo espectro à cultura brasileira e incorporou à esfera artística tipos de
enunciados em circulação que em tempos mais remotos só encontravam grande produtividade
em outras esferas, como: as leis (de incentivo à cultura), editais (de cultura), uma grande
diversidade de materiais gráficos de divulgação, ou mesmo outro gênero discursivo que não
existia nas etapas anteriores das políticas públicas de cultura no formato relativamente estável
em que se encontra atualmente, como o projeto cultural. Esta relação de fronteira da esfera
cultural mais geral, a esfera artística como produto desta e com outras esferas relacionadas,
permite a nosso estudo de chamarmos de esfera político-cultural em que o gênero edital
cultural pode ser localizado como esfera de produção e circulação principal. A esfera político-
cultural constituída como esfera, onde diversos interesses se relacionam para um único fim,
busca incentivar a produção e circulação de cultura no Brasil regulada principalmente por
políticas públicas. Esta esfera apresentou uma maior estabilidade a partir do final do século
XX com a criação das leis de incentivo à cultura e o estabelecimento do Ministério da Cultura
como pasta fixa no governo federal.
Para iniciarmos o entendimento do que é a esfera político-cultural achamos necessária
uma breve reflexão acerca do complexo conceito de cultura. Segundo o pesquisador brasileiro
Teixeira Coelho “(...) cultura é um processo e não um estado, aquilo que num determinado
momento histórico é cultura, em outro pode transformar-se em habitus, a ser confrontado por
nova proposição cultural” (COELHO, 2008, p. 32), isto é, cultura pode ser pensado como
algo em contínuo movimento e depende de atores que a desenvolvam e a modifiquem.
O estudioso de cultura britânico Raymond Williams amplia o conceito e define cultura
como um sistema “constitutivo e constituidor”. Em sua obra de referência sobre o assunto
“Palavras-Chave” (1983 / 2007) faz um longo tratado sobre o verbete cultura desde sua
650

V V
criação, concepções e aplicações atuais e postula que atualmente cultura é associada
diretamente à esfera artística.
(i) substantivo independente e abstrato que descreve um processo de desenvolvimento
intelectual, espiritual e estético, a partir do século 18; (ii) o substantivo independente, quer seja de um
povo, um período, um grupo ou da humanidade em geral, desde Herder e Klemm. Mas também é
preciso reconhecer (iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práticas da
atividade intelectual e particularmente, artística. Com frequência, esse parece ser hoje o sentido mais
difundido: cultura é música, literatura, pintura, escultura, teatro e cinema. (WILLIAMS, 2007, p.121)

É preciso pensar a cultura neste estudo em relação ao seu papel político, mas
também como fomentadora de ideologias, possibilidade de livre expressão e como fator de
intenção democratizante, conforme demonstra o Plano Nacional de Cultura (PNC). O
documento de 2007, primeiro documento de proposições da lei aprovada em 2006, busca criar
parâmetros e metas para o desenvolvimento de uma nova Política Nacional de Cultura. Com
isso, o PNC do início do século XXI demonstra seu viés de intenção democrática ao
considerar que este deve ser “um mecanismo de planejamento para médio e longo prazo,
propulsor de um esforço coletivo para assegurar os direitos culturais aos brasileiros”
(MINISTÉRIO DA CULTURA, 2007, p. 11).
Ao escolher um projeto cultural num edital, tanto a empresa patrocinadora quanto o
órgão público de cultura proporcionam a possibilidade do desenvolvimento de um processo
de produção de linguagens, de produção cultural, de um enunciado cultural que será
desenvolvido por produtores culturais, artistas e então distribuído na esfera pública, no social.
Este processo indica que as leis de incentivo à cultura aliadas aos preceitos do marketing das
empresas desenvolvem um tipo de política cultural ainda que reguladas por preceitos do
mercado e são sem dúvida reguladoras de boa parte do que é produzido e circulado como arte
e cultura no Brasil atualmente. É importante pensar que estes editais, além da distribuição de
verbas para cultura criam uma forma de diálogo entre as esferas estatal, corporativa e a esfera
pública em si, tornando o edital cultural não apenas uma ferramenta de política cultural, mas
uma importante ferramenta de informação entre as partes envolvidas: governo, empresas e
população.
Como já dito anteriormente, as políticas culturais no Brasil ao longo de sua história
demonstraram diversos formatos e propostas de intermediação dessas verbas de cultura e da
informação. Em boa parte das vezes o tipo de política cultural desenvolvida no país foi um
claro reflexo das intenções políticas e das ideologias de cada governo.
Políticas culturais serão, quase sempre, intervencionistas (provirão
do lado de fora, do exterior do grupo ou indivíduo receptor) enquanto
persistir a prática da delegação e representação que marcam a organização
política moderna. Mas, se antes essa intervenção era justificada (quando o
651

V V
era) com a ausência de instrumentos capazes de possibilitar uma outra
espécie de operação, agora, com os estudos do imaginário, a intervenção
pode ser delimitada, se não eliminada, pela conversa que se abre
entre propositores e receptores de políticas culturais. (COELHO, 2012,
p.22).

O gênero edital, em sua forma mais geral, é uma forma utilizada em diversos âmbitos,
seja na esfera pública ou privada, e visa a concorrência a interessados de se inscrevem em
busca de benefícios, seja para a obtenção de bens, em licitações, empregos, vagas, etc. Edital
é um documento, um ato escrito oficial em que há determinação, aviso, postura, citação, etc.
No caso do edital de um órgão público, seu trâmite, na maioria dos casos, implica em uma
publicação no jornal oficial do âmbito público a que se aplica, como o Diário Oficial da
União, por exemplo. Sua divulgação ocorre por meio de anúncios na imprensa para
conhecimento geral, ou de alguns interessados. Atualmente a divulgação de editais,
principalmente para a utilização de leis de incentivo e editais de cultura estão diretamente
relacionados aos novos usos da informação, pois em boa parte dos casos as inscrições,
regulamentos e manuais são divulgados via internet e em redes sociais.
O edital cultural tem sido utilizado por entidades públicas e privadas desde a criação
das leis de incentivo à cultura no país, e em âmbitos estaduais e municipais, tomando forma e
se tornando mais estável desde a criação da primeira lei de incentivo à cultura em vigor no
Brasil nos anos 80. A partir do início dos anos 2000, com o crescimento da divulgação das
publicações de editais por todo país, os editais de cultura podem ser considerados um gênero
discursivo específico desta esfera. “Ao nascer um novo gênero nunca suprime nem substitui
quaisquer gêneros já existentes. Qualquer gênero novo nada mais faz do que completar os
velhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existentes. Cada gênero tem seu campo
predominante de existência em relação ao qual é insubstituível.” (BAKHTIN, 2010a, p. 340)
Podemos dizer que o edital cultural teve seu maior crescimento e produtividade com a
ampliação de usos da internet, pois possibilitou que um maior número de pessoas tivessem
acesso as informações sobre ele e a otimização de contatos entre a entidade responsável por
cada edital e seus concorrentes. As novas ferramentas digitais propiciaram uma relativa
democratização da informação sobre as leis de incentivo à cultura e a agilidade dos processos
burocráticos, porém ampliaram a necessidade de novos manuais de uso dessas ferramentas
aliados ao conhecimento das leis de incentivo à cultura e dos métodos necessários para o
planejamento dos projetos, produção textual e necessidades orçamentárias. Nossa pesquisa
parte da constatação da necessidade de análise e observação dessas ferramentas a nível da
ciência da informação e da análise do discurso, visando a melhoria e a agilidade dos processos
652

V V
de inscrição em editais de cultura, bem como, maior clareza nos enunciados publicados nas
concorrências. Tomamos como ponto essencial para nossa reflexão o entendimento do
conceito de informação de Rafael Capurro (2007) no texto “O conceito de informação”.
Informação é qualquer coisa que de importância na resposta a uma
questão. Qualquer coisa pode ser informação. Na prática, contudo,
informação deve ser definida em relação às necessidades dos grupos-alvo
servidos pelos especialistas em informação de modo universal ou
individualista, mas, em vez disso, de modo coletivo ou particular.
Informação é o que pode responder questões importantes relacionadas às
atividades do grupo-alvo. A geração, coleta, organização, interpretação,
armazenamento, recuperação, disseminação e transformação da informação
deve portanto ser baseada em visões / teorias sobre os problemas, questões e
objetivos que a informação deverá satisfazer. (CAPURRO, 2007, p. 187-
188)

O excerto do texto de Rafael Capurro nos faz pensar sobre a questão da informação na
esfera político-cultural os seguintes pontos: Se a informação está relacionada “às necessidades
dos grupos-alvo” podemos tomar como grupo alvo no caso dos editais culturais os
interessados em realizar projetos culturais, quase sempre oriundos da esfera artística. Estes
artistas e produtores culturais dependerão dos órgãos públicos da esfera político-cultural e das
ferramentas disponíveis para “geração, coleta, organização, interpretação, armazenamento,
recuperação, disseminação e transformação da informação”. Se a reflexão acerca da ciência
da informação deve ser baseada em “teorias sobre os problemas, questões e objetivos que a
informação deverá satisfazer” buscaremos aqui analisar o gênero edital cultural não apenas
como um documento produzido pelos órgãos de cultura para a distribuição de verbas a partir
de um “concurso” de projetos, mas verificar implicações da distribuição da informação de
ordem social e linguística.
Se por um lado essas novas ferramentas digitais buscam organizar e democratizar o
acesso às informações sobre a concorrência em editais, por outro lado obrigou artistas e
produtores a se familiarizarem com trâmites burocráticos bem como, a uma escrita
normatizada típica de documentos oficiais desta esfera estatal. Esta burocratização da cultura
nos faz refletir sobre a real democratização da cultura como um paradoxo, já que as leis de
incentivo à cultura obrigaram aos agentes da esfera artística o conhecimento acerca dos
trâmites burocráticos do Estado e, no caso de editais de patrocínio, dos discursos de marketing
das empresas.
Donnat (2011) ao tratar da democratização da cultura na França fala que “(...) a
política cultural foi progressivamente “esquecendo” suas missões de ampliação da demanda
em proveito das missões ligadas à criação ou à distribuição cultural no território. (DONNAT,
2011, P. 21). Parece justo dizer que no Brasil o mesmo tem ocorrido, com a supremacia do
653

V V
mecenato em detrimento aos editais culturais públicos e a distribuição de verbas pelo
território brasileiro de forma igualitária. Desta mesma forma, a burocratização da cultura
desvincula o caráter democratizante que o Plano Nacional de Cultura busca implementar ao
dizer que a cultura deve ser um direito de todos, pois nem todos são dotados de informação e
conhecimentos sobre os trâmites burocráticos exigidos pelos editais culturais e as leis de
incentivo.
A efetiva realização de editais culturais por órgãos públicos pode ser observada como
uma maneira de distribuir a informação sobre cultura e ampliar o acesso às verbas públicas de
cultura sem a intermediação do mercado, já que estes não necessitam de intermediação de
empresas patrocinadoras como no caso dos projetos culturais que utilizam o mecenato via
patrocínio corporativo como ferramenta de apoio. Porém, como já foi dito, é essencial
refletirmos se de fato esta distribuição ocorre de forma igualitária. É justo dizer que esta
democratização se encontra comprometida desde sua estrutura, se pensarmos no baixo
percentual de inclusão digital no Brasil. Outro ponto essencial para pensarmos esse processo
de democratização da informação acontece a partir do conhecimento sobre os trâmites
burocráticos da esfera político-cultural. E por fim, mas não menos importante está o fator
linguístico. Para a inscrição de projetos culturais em editais é necessário o conhecimento dos
discursos da esfera, das esferas de influência recíproca e da produção de enunciados com as
especificidades exigidas para a concorrência num determinado edital. Sem dúvida um texto
melhor escrito terá mais chances do que um texto com erros ortográficos ou mesmo
problemas de coerência e coesão textuais. Será mais fácil aos letrados, aos dotados de
conhecimentos nas ferramentas textuais e burocráticas, escrever um bom projeto e ter maiores
chances na concorrência de um edital.
É relevante observarmos que o edital de cultura oferecido por um órgão
governamental de cultura tem uma ligação direta com a estrutura social, política e econômica
vigente. Pode ainda demonstrar as intenções políticas e a ideologia de um determinado
governo, isto é, não apenas as intenções culturais de uma política cultural em si, mas também
uma política de estado. Para melhor exemplificar essa questão, Coelho (2012) divide os
“Modos ideológicos das políticas culturais em três tipos: (1) “Políticas de dirigismo cultural”
que se divide em “Tradicionalismo patrimonialista” e “estatismo populista”; (2) “Políticas de
liberalismo cultural” como, por exemplo, as políticas de mecenato e patrocínio; (3) “Políticas
de democratização cultural” baseada em produção cultural a partir de grupo e processos
participativos. (COELHO, 2012, p.320).

654

V V
Desde a implantação das leis de incentivo à cultura no Brasil, podemos aferir que
temos aqui políticas de liberalismo cultural, pois o mecenato via patrocínio de empresas ainda
é privilegiado pelas gestões nos governos federal e em esfera menores, como no governo
Estadual de São Paulo. O crescimento dos editais culturais a partir da década de 2000, mas
principalmente na gestão do Ministro Juca Ferreira entre 2006 e 2010, possibilitou que a
esfera tivesse uma aproximação das políticas de democratização cultural. Diversos editais
culturais foram criados e boa parte deles visavam a distribuição de verbas de cultura em
regiões fora do eixo das grandes capitais. Mesmo no governo do Estado de São Paulo, onde o
mecenato ainda é prioridade, tivemos um crescimento da importância dos editais a partir de
2006, com a criação dos editais do Proac. O notório crescimento da procura pelos editais
culturais, tanto em âmbito federal, quanto estadual, possibilita dizer que a implantação destes
editais gerou um maior contato entre a população e os governos por meio de propostas de
ações culturais. Mesmo nos casos onde o projeto não foi escolhido para desenvolvimento pelo
edital, o proponente / usuário teve contato com os meios disponibilizados pelos órgãos
públicos para tal concorrência, isto é, leu os documentos, utilizou as ferramentas disponíveis
para o uso do edital, entrou em contato direto com os processos de informação dos órgãos
públicos em questão.
O texto de um edital é em boa parte dos casos redigido por funcionários destes órgãos
públicos especializados no assunto tema do edital em questão e apesar de utilizar construção
composicional similar a editais de outras esferas, traz especificidades típicas da atual esfera
político-cultural brasileira e pode demonstrar as vozes dos discursos das gestões
governamentais que possibilitaram a criação de cada edital. Refletir sobre quem são os
produtores dos documentos dos editais culturais é tão importante quanto pensar sobre quem
são como diria Bakhtin (2010) os supradestinatários desses editais, neste caso, os governos
em seu mais alto grau hierárquico. Esta reflexão deve levar em conta não apenas os discursos,
as intenções e a ideologia acerca desses documentos, mas também a informatividade e as
intenções nos processos de distribuição de informação disponibilizados para os usuários
interessados em utilizar as ferramentas disponíveis pelas leis de incentivo à cultura e os
editais culturais. Sobre isso Stuart Hall fala “Uma vez que a cultura regula as práticas e
condutas sociais, neste sentido, então é profundamente importante quem regula a cultura. A
regulação da cultura e a regulação através da cultura são desta forma, intima e profundamente
interligadas.” (HALL, 1997, p.19).
Nos dois editais de cultura analisados temos no final de cada documento a assinatura
de um funcionário do respectivo órgão público. No edital Procultura temos a assinatura do
655

V V
Ministro da Cultura e no edital do Proac Festival de Artes a assinatura do coordenador
responsável pela difusão cultural na Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo. O alto nível
hierárquico dos indivíduos que assinam legitimam o documento na esfera pública, permitem
sua oficialização a partir da publicação no respectivo jornal diário oficial governamental e
ainda que não se possa observar o real autor-criador do texto escrito, são estes indivíduos com
grande expressão social e política que assinam os editais.
Aliado a isso, podemos aferir que o edital de cultura é, além da sua função principal de
concorrência, também um documento histórico, pois atua como enunciado concreto de uma
dada época e possibilita a observação de signos ideológicos de um determinado governo
representado pelo discurso contido no documento e assinado pelo representante de alto grau
hierárquico do respectivo órgão de cultura. O edital cultural constitui um importante signo
ideológico de viés político cultural que transmite o discurso das demandas culturais de um
governo e pode demonstrar a maneira como a informação se processa em determinado
período ou gestão pública. São os editais culturais que definem quais propostas culturais terão
direito a usufruir das verbas públicas. Como diz Volochinov (2009):
“(...) faz parte de uma realidade como todo corpo físico,
instrumento de produção ou produto de consumo, mas ao contrário
destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade que lhe é
exterior. (p. 31) Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma
sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa
realidade.” (idem, p. 33).

Outro ponto que favorece nosso argumento de que o gênero discursivo edital cultural
é um novo gênero da esfera político-cultural brasileira, independente de seu âmbito público,
pois são definidos a partir de novas leis vigentes e com isso apresentam relativa estabilidade
de produtividade e formato. As leis de incentivo à cultura em sua maioria tem como ponto
central um fundo de verba pública de incentivo direto às propostas culturais e estas são
distribuídas a partir dos editais. A partir do pressuposto de que os dois tipos de enunciados, o
edital de cultura e a lei de incentivo à cultura visam a distribuição de verbas públicas de
cultura, ambos pertencem à mesma esfera e podemos aferir que ambos estão entrelaçados
dialogicamente numa mesma cadeia de comunicação e devem ser levados em conta pelos
usuários estando em diálogo. “Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação
discursiva de um determinado campo. (...) Os enunciados não são indiferentes entre si nem se
bastam cada um a si mesmo; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos
outros.” (BAKHTIN, 2003, p. 297).

656

V V
Nos dois enunciados analisados encontramos indícios do dialogismo entre os editais
de cultura e as respectivas leis de incentivo à cultura. O edital cultural dialoga com a lei de
incentivo à cultura que regula o edital desde seu planejamento, guiando o autor do mesmo em
sua produção escrita. Os dois editais de cultura analisados citam as respectivas leis de
incentivo à cultura a que se reportam. Assim como no edital federal, no edital estadual do
Proac festival de artes a Lei Estadual nº 12.268/2006 é citada como reguladora do edital já em
seu primeiro parágrafo.
A SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA torna público o
CONCURSO que fará realizar visando à seleção de projetos de FESTIVAIS
DE ARTES NO ESTADO DE SÃO PAULO para apoio cultural, com
observância na Lei Federal nº 8.666 de 21 de junho de 1993, Lei Federal nº
9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei de Direitos Autorais), no que
couber, na Lei Estadual nº 6.544, de 22 de novembro de 1989, e alterações
posteriores, Lei Estadual nº 12.268, de 20 de fevereiro de 2006, bem como
toda a legislação complementar relacionada ao ProAC, e em conformidade
com as condições e exigências estabelecidas neste Edital e seus anexos.”
(SÃO PAULO, SEC, edital 05 - festival de artes).

A partir da publicação e divulgação de um edital cultural o concorrente deve se


inscrever de acordo com o que propõe o edital na publicação dos respectivos órgãos de
cultura. Com essa inscrição, submete-o a uma avaliação, que é realizada por um júri de
pareceristas especialistas na respectiva área artística, determinado pelo órgão de cultura e que
irá estabelecer quais dos projetos inscritos terão o benefício previsto pelo edital. Este processo
de inscrição da proposta cultural num edital faz com que o autor da proposta siga regras
impostas pelo formulário de inscrição apresentado pelo edital a que se reporta.
Os editais analisados foram construídos textualmente, estilisticamente e em termos de
conteúdo em um dialogismo direto entre seus leitores presumidos, artistas e produtores e
dialogam diretamente com os pareceristas dos editais para concorrer aos benefícios previstos
no edital. Também dialogam num dialogismo anterior e posterior com outros eventuais
enunciados do processo de comunicação e informação que envolvem uma grande rede de
enunciados da esfera político-cultural se observarmos do ponto de vista de um contexto social
mais amplo.
Ao analisarmos as questões linguísticas dos editais de cultura podemos perceber a
intenção do autor-criador de cada enunciado, seja ele o ministro ou mesmo um simples
funcionário do ministério, de evidenciar pontos que levarão o leitor / usuário a entender
melhor uma ideia, ao utilizar formas composicionais específicas para evidenciar pontos
principais do edital ou mesmo criar um efeito de sentido em trechos dos enunciados. A análise
da materialidade linguística observada não apenas no texto em si, ou em cada enunciado

657

V V
isolado, mas em sua relevância no processo de comunicação imediata pode colaborar para
compreendermos as minucias linguísticas e salientarmos a importância do projeto cultural em
diálogo com o edital cultural num contexto social mais amplo.
Sobre a materialidade linguística dos documentos podemos aferir que ambos os editais
culturais apresentam uma forma similar a outros documentos encontrados na esfera pública
em geral e em concursos de diferentes procedências. São descritos em itens principais que são
divididos em tópicos alfa-numéricos, em que a numeração de tópicos e subtópicos acontece a
fim de facilitar a compreensão dos leitores. Apresentam detalhes relativos aos valores das
verbas que serão distribuidas aos contemplados dividindo em módulos de diferentes tipos de
montantes financeiros bem como a quantidade disponível para cada um deles. Ambos os
editais são explicitos em relação a prazos e normas de inscrição aos proponentes, apresentam
uma vasta lista de descritivos e documentos necessários tanto para a inscrição quanto para a
contratação caso a proposta seja deferida. A linguagem e requisitos utilizados nos dois
documentos apresentam semelhanças ainda que os autores, tanto do ponto de vista autoral
quanto político, sejam diferentes. Os dois documentos trazem normas em relação ao uso das
logomarcas dos respectivos órgãos de cultura e dos governos responsáveis pelo edital em seu
âmbito púlico, evidenciando o espectro político do gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A grande quantidade de editais culturais publicados anualmente em todo país aliado a
uma estabilidade do gênero discursivo projeto cultural, com informações diversas sobre o
assunto em manuais governamentais, sítios de internet e até em blogs, pode ampliar o acesso
ao uso das leis de incentivo à cultura pela população em geral proporcionando, de certo modo,
uma maior democratização na distribuição de verbas públicas de cultura. Ao analisarmos os
enunciados propostos visamos não apenas a análise do corpus em si, mas a observação da
cadeia de comunicação na esfera político-cultural que circunda o edital cultural, perceber
como a informação é processada na esfera e a influência política dos documentos.
A análise de um processo de informação a partir de documentos oficiais operados na
mesma esfera mas em diferentes áreas do conhecimento, proporcionou a compreensão de que
um edital cultural opera na esfera político-cultural, mas dialoga com outras esferas
relacionadas como a governamental, a legislativa (lei de incentivo), a burocrática, a artística
(projeto cultural), e em alguns casos, como por exemplo nos editais de empresas, até com a
esfera publicitária e midiática. A diversidade de esferas observadas durante a pesquisa
possibilitou aferirmos que existe não apenas uma cadeia de comunicação entre os enunciados,
658

V V
mas sim uma interrelação entre esferas e uma importante relação social e econômica criada
em benefício do desenvolvimento de um tipo de política cultural no país ainda que este siga
os preceitos do mercado. O edital cultural, aliado às leis de incentivo à cultura, busca atuar
como meio de distribuição de verbas públicas e pode atuar como ferramenta organizadora de
políticas de cultura. Ainda que em boa marte dos casos esteja voltado ao patrocínio é um meio
de diálogo entre as esferas estatal, corporativa e a população produtora de arte e cultura. É
importante salientar, porém que o edital cultural, bem como os enunciados e documentos
gerados na esfera político-cultural requerem dos usuários conhecimentos prévios sobre os
trâmites burocráticos da esfera, bem como sobre os procedimentos de inscrição e produção
dos enunciados, visando a produção de documentos com qualidade textual satisfatória para os
pareceristas dos órgãos de cultura ou empresas de patrocínio e que apresentem em seus
conteúdos proposições que dialoguem com as demandas de cada edital para que então possam
ser escolhidos. Esta complexidade na produção de projetos culturais concorrentes aos editais
culturais em questão deve ser pensada como uma questão problema na vontade de
democratização das políticas culturais brasileira.

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660

V V
O PACCH EM VASSOURAS: ENTRE A INCLUSÃO E O ESQUECIMENTO
Iran Souza da Conceição1

RESUMO: O presente artigo tem como intuito discutir as implicações do PACCH na cidade
de Vassouras, RJ, sendo o mesmo um programa que visa à restauração de bens culturais de
natureza material. Através da análise do contexto em que as obras estão inseridas se busca
compreender a relação entre a preservação e a participação da comunidade. A principal
questão local é a falta de comprometimento da Prefeitura Municipal em realizar ações de
conscientização da população sobre a importância do patrimônio como elemento aglutinador.
Sem isto, a consequência é o afastamento ainda maior da população periférica para com o
Centro Histórico da Cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Inclusão, Vassouras, PACCH, IPHAN, Políticas Públicas.

O PACCH EM CONTEXTO
As políticas públicas atreladas ao Programa de Aceleração do Crescimento das
Cidades Históricas (PACCH) em Vassouras seguem dois parâmetros: o primeiro está
diretamente ligado à identificação da população com o Centro Histórico e o segundo é a
integração dos patrimônios imateriais oriundos do local, registrados pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ao contexto citadino.
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em sua segunda etapa, lançada em
2009, criou uma linha de investimento para serem aplicados em intervenções no patrimônio
cultural urbano, intitulado PAC das Cidades Históricas (PACCH). Em seu lançamento a partir
de 2013, em caráter descritivo, o PACCH visa à restauração de imóveis tombados nos
diversos estados do território nacional, inicialmente inscritos. Para tal, o Governo Federal tem
o IPHAN como gestor e fiscalizador dos recursos a serem investidos na restauração dos bens
culturais, recuperando, assim, a autoestima da população.
Nessa etapa foram comtempladas quarenta e quatro cidades em vinte estados da
Federação, sendo selecionadas as seguintes categorias: Museus, Instituições de Ensino,
Igrejas Históricas, Patrimônio Ferroviário, Equipamentos Culturais, Fortes e Fortalezas. Em
comum, todos estão instalados em bens tombados pelo IPHAN, ao longo tempo.
Os recursos investidos são na ordem um bilhão seiscentos e trinta e nove milhões e
seiscentos e vinte mil reais, tendo o Estado do Rio de Janeiro recebido a maior parcela,

1
Historiador (UCSAL, 2012), Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio
Cultural – PEP/MP (IPHAN), lotado no Escritório Técnico Médio Paraíba / IPHAN RJ; sdciran@gmail.com.

661

V V
enquanto o Mato Grosso a menor. Dos valores auferidos pelo estado fluminense, vinte seis
milhões oitocentos e cinquenta mil reais estão destinados ao patrimônio edificado da cidade
de Vassouras (IPHAN, 2015, p. 2).
De acordo com o Plano de Formulação e Implementação do IPHAN, o PACCH tem
como objetivos:
Requalificar o Patrimônio Cultural Brasileiro;
Tornar o patrimônio cultural eixo indutor e estruturante na geração
de renda, de novos empregos, de agregação social e afirmação identitária das
cidades protegidas, utilizando-se de seu potencial econômico e simbólico;
Contribuir para o ordenamento e o planejamento urbano das cidades
brasileiras sob proteção federal (IPHAN, 2015, p.2)2.

Na primeira versão do PACCH (2009) estava prevista a criação de uma Rede de


Agentes Sociais, eleitos ou indicados em uma Oficina pública que visava ampla divulgação e
a inserção do programa no contexto. Em Vassouras a Oficina do PACCH ocorreu em
10.11.2009, mesmo sem ampla divulgação prevista por parte da Prefeitura Municipal, a
Oficina conseguiu reunir significativos setores da sociedade organizada3. No encontro foram
listadas 35 ações e identificadas suas prioridades, dessas 30 foram lançadas no Programa e
somente 08 foram contempladas em 2013.
Através dos parâmetros estabelecidos pelo programa, evidencia-se a exigência da
participação da sociedade ao longo do processo, contudo a distância entre a Oficina e a
implantação, em um espaço de quatro anos, fomentou o distanciamento entre os habitantes e o
PACCH, principalmente pela inclusão de projetos de restauração e a não contemplação das
ações propostas para o Patrimônio Imaterial, assim reforçando o discurso exclusivista, com ao
qual ele é rotulado pela comunidade local. Embora a própria Oficina tenha apreciado
maciçamente a questão das necessidades de salvamento do patrimônio edificado nas ações
votadas. Das 33 ações, 06 estavam voltadas para o Imaterial, 02 para Patrimônio Natural, 03
para capacitação da coletividade; 01 para Educação Patrimonial e 02 para normatização;
sendo 08 para projetos que resultariam em 09 obras; as demais (04) estavam ligadas a
descupinização, ao acervo de documentos históricos e para arqueologia.

2
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. PAC Cidades Históricas: Resumo por cidade/UF.
Disponível em: < http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=4725>. Acesso em 26 de fev. 2015.
3 Segundo as fichas da Rede de Agentes Sociais do ETMP/IPHAN RJ, foram nomeados como representantes da
Prefeitura Municipal de Vassouras (Secretaria de Cultura e Turismo e Secretaria de Obras); Universidade
Severino Sombra; Associação dos Movimentos do Folclore e Cultura Popular de Vassouras; CEOI - Centro
Espírita Ogum com Iansã; Associação dos Moradores do Madruga; Movimento Abraça Terra; e a eleição de uma
Delegada de Cultura.

662

V V
Ao priorizar as intervenções arquitetônicas em detrimento das demais, não há uma
crítica a importância do programa, pois se vê que as intervenções propostas são extremantes
importantes, devido ao avançado estado de arruinamento do patrimônio material vassourense.
O que se defende é uma atuação integrada entre os diversos atores afetados pela política ali
instaurada, objetivando a inclusão dos mesmos na concretização das ações que a instituição
vislumbra fomentar.

O PACCH EM VASSOURAS
A cidade de Vassouras – localizada no Vale do Paraíba Fluminense – tem sua história
diretamente ligada ao Brasil Império tendo sido um dos principais polos cafeicultores do
século XIX4. Reflexos desse período áureo, ainda hoje, são evidenciados através da
imponência dos casarões que compõe o Centro Histórico, sendo aquele espaço, até os dias
atuais, palco de disputa entre as diferentes camadas da população (NEVES, 2012, p. 79).
Certidão de Tombamento do Conjunto Paisagístico e Urbanístico do
Município de Vassouras tombado em 26/07/1958 de acordo com o decreto
lei nº 25 e de 30/11/1937, dele consta na folha 4 do livro: “Número de
Inscrição: dezoito; Obra: Conjunto Paisagístico e Urbanístico da Cidade de
Vassouras, constituído pelos seguintes logradouros: a) Praça Barão de
Campo Belo, com a igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição e o
Chafariz Monumental; b) Praça São Sebastião de Lacerda; c) Rua Barão de
Tinguá, até o Cemitério, inclusive, e as ruas marginais” (FONTE:
ETMP/IPHAN-RJ, 2013).

O tombamento foi capitaneado por Augusto Silva Telles que, além de fazer parte do
quadro de servidores do IPHAN, descendia Francisco José Teixeira Leite, o Barão de
Vassouras, uma das figuras mais influentes da sociedade local durante o século XIX.
Arquiteto, e vendo a possibilidade em ser construída uma Estação Rodoviária em frente à casa
de seus ancestrais realizou um estudo que serviu de lastro para o tombamento do conjunto
urbano, preservando seu patrimônio que certamente seria afetado com o alto fluxo de veículos
oriundos da Estação (NEVES, 2012, p. 82-83).
Segundo antigos moradores, havia um projeto para a construção de
uma estação rodoviária no centro da cidade, que se localizaria junto à Casa
do Barão de Vassouras. Esse aspecto traria uma nova visão da cidade,
ameaçando, provavelmente, a homogeneidade de “um dos conjuntos mais
interessantes e bem conservados de urbanismos e arquitetura do século XIX”
(Processo n° 566-T-57, fl. 1). Discurso frequente nas justificativas, o
tombamento poderia ter sido um meio de conter a ameaça de
descaracterização desse patrimônio em meio às pressões desenvolvimentistas
da década de 1950 (NEVES, 2012, p. 82).
4
A Vila de Vassouras foi fundada em 1833 sendo elevada a categoria de cidade em 1857. RAPOSO, Ignácio.
História de Vassouras. Niterói: SEEC, 1978, p. 228.

663

V V
Primeira cidade tombada como conjunto urbano e paisagístico do Brasil em 1958 se
compõe de ruas e seu calçamento, praças e arborização e todas as edificações voltadas para os
logradouros delimitados no Processo acima citado. Dentre esses, os casarões de maior porte
se destacam sobremaneira nessa paisagem e seus atuais estados de conservação sensibiliza
não só a sociedade local como a nacional. Assim, foram contemplados os imóveis de caráter
público cujas dimensões exigem um esforço maior de salvamento. Ficando quatro sob a
responsabilidade do IPHAN: Casa do Barão do Ribeirão, atual sede do IPHAN no Vale do
Paraíba, Casa do Barão de Vassouras, Asilo Barão do Amparo e a Associação dos
Paroquianos de Vassouras (ASEPAVA). A cargo da Prefeitura Municipal de Vassouras
temos: a Casa de Cultura, os sete Chafarizes e a Antiga Oficina. Já o Museu Casa da Hera5 –
o único imóvel fora do Centro Histórico – tem o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)
como responsável direto.

ENTRE A INCLUSÃO E O ESQUECIMENTO


Nos primórdios de sua fundação, Vassouras teve seu processo de expansão ligado ao
latifúndio, monocultor e escravista, tendo como produto principal o café, chegando ao seu
período áureo entre os anos cinquenta sessenta do século XIX, vindo há declinar nas décadas
posteriores devido ao desgaste do solo, ao acúmulo de dívidas e a ascensão do cultivo em São
Paulo (STEIN, 1990). Como vários outros centros históricos espalhados pelo país, o
patrimônio cultural de Vassouras só permaneceu até os dias atuais porque houve um grande
índice de evasão ao longo do tempo, principalmente depois da abolição.
Resquícios do sistema escravista podem ser identificados ainda hoje, através da
observação os diferentes grupos que frequentam o Centro Histórico. Ao começar a
desenvolver pesquisas para a redação da dissertação, foi constatado que, em dias de trabalho e
durante o período letivo, a classe trabalhadora era a maioria dos frequentadores da Praça
Barão de Campo Belo. Localizada no coração da cidade, ela é o grande ponto de passagem
para todos os bairros da cidade, bem como dos colégios da área de entorno do conjunto
tombado. Porém, durante os finais de semana, esse contingente não se encontra presente, ou
porque não tem condições de consumir os produtos culturais – viabilizados para atender ao
turismo – ou por não se sentirem parte daquele local, frequentado nos dias úteis por falta de
opção.

5
O tombamento do Museu Casa da Hera é de tombada em 1952, Processo n° 459-T-52 (Neves, 2012, p. 88),
também sob risco de arruinamento.

664

V V
O processo distintivo aqui citado tem a nítida intenção de externar um quadro de
distanciamento simbólico (BOURDIEU, 2006) dos produtos culturais, em Vassouras tem-se
nessa Praça um espaço de disputa até os dias atuais – estratificada através de um cotidiano,
oriundo do século XIX. Segundo alguns historiadores, o tempo e os dias também eram
limitados para que os escravos, a maior parte da população à época, pudesse aí transitar6.
Outra questão explicitada se refere ao estranhamento da população local com a história
oficial, que legitima apenas os barões do café como protagonistas do processo histórico. O
fato é que a maioria dessa população, miscigenada ao longo do tempo, não se enxerga através
da história até recentemente contada pelos prédios que o PACCH visa restaurar.
Há vários estudos que segue o trajeto contrário à história oficial, principalmente sobre
processo de escravidão no Vale do Paraíba Fluminense, porém segundo os entrevistados7,
essa história não é discutida em sala de aula, contribuindo assim para a manutenção do
problema. Outro fato que chama atenção nesse contexto é a existência de uma Universidade 8
no local que manteve até 2014 um Curso de História e está em fase de encerramento do curso
de mestrado da mesma área, dificultando ainda mais a difusão do conhecimento histórico
local.
Deixar de narrar à história partindo do contexto e sim dos indivíduos, reverbera
justamente na sensação de não pertencimento das camadas populares9 com o Centro
Histórico. Esse sentimento é comprovado em pequenos hábitos cotidianos como: a falta da
presença desse contingente populacional na praça central, a não inclusão das manifestações de
matriz africanas ocorridas no calendário festivo e a falta de ações pelos órgãos “competentes”,
que incluam os menos abastados no processo.

6
Na publicação Vassouras Fatos e Gentes, coletânea publicada por Greenhalgh H. Faria Braga, os diversos
autores narram diferentes momentos históricos de Vassouras, incluindo transcrições de leis que foram muito
importantes para a manutenção da “ordem” local. A título de exemplo, o código da Comissão Permanente para
conter insurreições de escravos, regimentava uma série de deliberações para os fazendeiros com intuito de
manter a paz nas suas respectivas senzalas. Transcrevem ainda Deliberações da Câmara de Vereadores, que tinha
a clara intenção de manter os escravos, livres e libertos afastados, o máximo possível, do meio urbano,
principalmente da Pça Barão de Campo Belo, destinada aos passeios de final de tarde das famílias residentes.
7
Pesquisa realizada junto aos estudantes durante o ano de 2014, objetivando a realização de um trabalho voltado
para o patrimônio em conjunto com as escolas locais a ser retomado pelo IPHAN RJ através do ETMP.
8
Universidade Severino Sombra foi inaugurada em 13/01/1967 ( http://www.uss.br/instituicao/historiaUSS).
9
As referências culturais de grupos antes sem voz (as chamadas “minorias”) começam a ser reconhecidas nos
textos legais como objetos de direito. São os intelectuais delegados pelo Estado, que tem a função de criar
museus, arquivos, tombar bens, dentre outros. “Só muito recentemente a defesa de valores como a qualidade de
vida, a proteção do meio ambiente, e a preservação de referências culturais que não apenas as de valor
excepcional” (leia-se, do ponto de vista daqueles que detêm o poder de assim defini-las), passaram a serem
entendidos como direito do cidadão, que pressiona o poder público no sentido de assegurar a legitimidade de
suas referências. PATRIMÔNIO IMATERIAL. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades
da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: MINC / IPHAN, 4ª ed., 2006, p. 90.

665

V V
Esse quadro pode ser observado a partir da leitura de Pollak (1989) sobre a memória
coletiva:
Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a
memória nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A
memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do
passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos
diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias,
nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e
das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar
respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis
(POLLAK, 1989, p. 07).

Nesse contexto, seria importante uma ação política permanente voltada para educação
buscando a implantação de um processo historiográfico mais coerente com a realidade
citadina. Uma das bases que poderiam auxiliar nesse sentido estaria diretamente ligada a um
ensino formal que discutisse as relações entre os grupos formadores dos espaços sociais que
interagiam e tencionavam ao mesmo tempo, com intuito de manter suas tradições e preceitos
religiosos, introduzidos em toda estrutura que o IPHAN tem a intenção de restaurar.
Com essa perspectiva de análise, podemos citar as relações entre senhores e escravos
que permeavam entre negociações e conflitos (REIS; SILVA, 1989). Culminando na chancela
do Jongo10 e da Capoeira11 como patrimônios nacionais que fazem parte do cotidiano de
Vassouras, desde suas origens até os dias atuais, mesmo sem apoio. Contudo cabe esclarecer
que é papel dos praticantes manter as suas respectivas manifestações ficando a cargo dos
órgãos competentes auxiliar no processo de legitimação das mesmas sempre que solicitado,
até porque quem tem ciência do que é necessário para a manutenção de uma determinada
prática são aqueles que à desenvolvem em sua plenitude.
No caso específico do Jongo12, manifestação que o autor vem pesquisando, com
objetivo de: entender se era efetivamente permitido que ocorresse em Vassouras durante o s.
XIX; quais espaços e os dias reservados para tal, visando discutir, através das origens, como o
IPHAN – por meio da institucionalização do processo histórico – está desenvolvendo a
política de salvaguarda junto aos praticantes. Esta poderia ser uma ferramenta mais efetiva de
discussão sobre o processo histórico local, emergindo atores até então marginalizados.

10
Processo n° 01450.005763/2004-43. Registro do Jongo no Livro de Registro das Formas de Expressão do
Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial. 01/09/2005.
11
Processo nº 01450.002863/2006-80. Registro da Capoeira como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial.
21/10/2008.
12
Ver LARA, Silvia Hunold & PACHECO, Gustavo (orgs.). Memória do Jongo: As gravações históricas de
Stanley J. Stein. Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007. 200 p.

666

V V
Esse olhar voltado para análise das origens a partir das manifestações culturais como:
o Calango, a Caninha Verde, a Capoeira, a Folia de Reis, o Jongo, dentre outras, sendo os
estudos ampliados e difundidos junto à população residente, objetivando a inserção dos
mesmos junto à historiografia de Vassouras. Mas, para que isso aconteça, o caminho plausível
seria a capacitação dos professores, pois entender que a educação apenas voltada para o
patrimônio (uma das bandeiras apresentadas pela instituição como elemento agregador), é
uma ilusão.
A viabilidade dessas ações voltadas para a inserção dos grupos marginalizados é
essencial para êxito do PACCH, porque não basta apenas restaurar o patrimônio edificado
sem que as pessoas saibam o quê e como a política pública desenvolvida naquele espaço irá
acrescentar em suas vidas, haja vista que a instituição não teve a sensibilidade de observar
quando implantou o programa em 2013 em abranger o imaterial, listado em 2009 – sendo este
o ponto chave da questão.
É lícita a necessidade de serem feitas intervenções em todos os centros históricos do
território nacional, devido ao estado de arruinamento das construções, mas sem um projeto de
inclusão dos habitantes locais neste processo, não haverá condições de preservação do
mesmo. Vide o caso do Chafariz Monumental de Vassouras, sempre que são realizados
trabalhos de limpeza das pichações, no outro dia são encontradas novas nos mesmos locais,
evidenciando, além do vandalismo, certo desconhecimento da importância do mesmo para a
cidade.
Porém, como em todo trabalho, temos percalços a serem transpostos, como no caso da
educação voltada para o patrimônio que, em conversas junto aos estudantes de alguns
colégios locais, foi identificado que os entrevistados pouco sabiam de sua própria história.
Sempre que perguntados sobre o Manoel Congo13, ator histórico local que está na Galeria dos
Heróis Brasileiros, ou se já viram uma roda de Jongo – manifestação que até os dias atuais é
praticada no em Vassouras –, era unânime o desconhecimento deles sobre estes temas.
Em reunião do Conselho de Cultura foi pautada a questão do ensino da história da
cidade e da Lei nº 10.639, de 09/01/2003, que estabelece no:

13
Dentre as formas de resistência escrava em Vassouras foi o levante do Manoel do Congo iniciado em 1838 por
escravos do Capitão-mor Manuel Francisco Xavier. Fugiram levando consigo provisões para iniciarem uma
comunidade. As fugas de cativos somariam por volta de 400 homens e mulheres escravas resultaram na
perseguição, prisão e condenação de Manoel do Congo, identificado como o principal líder do levante. Esta era
uma forma de impor a autoridade senhorial e demonstrar a sanção em casos semelhantes (GOMES, 2006, p. 144-
246).

667

V V
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

A resposta que obtida, até com certa veemência pelo Secretário Municipal de Cultura
na ocasião, foi que isso já tinha sido resolvido pelo menos na esfera municipal, indo de
encontro ao que os alunos vinham me relatando a cada entrevista. Muitos deles me diziam
estarem cansados de ouvirem sobre a Europa e que ao questionarem os professores sobre a
história local, os docentes lhes diziam que não tinham ciência do processo histórico.
Como todo político, o Secretário também queria realmente prestar uma informação
sem propriedade, isso porque os participantes do atual Conselho são, na sua maior parte, a
elite vassourense, elite esta que, por não representar a maior parte da população, se exime
quando o assunto referente à difusão e socialização das informações é pautado.
Na perspectiva da educação intercultural, podemos citar como
algumas de suas contribuições: a denúncia das diferentes manifestações da
discriminação racial presentes nas sociedades latino americanas, assim como
o combate à ideologia da mestiçagem e da “democracia racial”, que
configuraram um imaginário sobre as relações sociais e raciais mantidas
entre os diferentes grupos presentes nas sociedades latino-americanas
caracterizado pela cordialidade. Elimina-se, assim, o conflito, continuando a
se perpetuar estereótipos e preconceitos (CANDAU, 2009, p. 02).

Empreendendo a análise dos exemplos relatados, junto há muitos outros presenciados,


o que fica evidente é uma tentativa de apagar sua própria história, marcada pela exclusão do
papel do negro, dos índios e estrangeiros oriundos de classes menos abastardas (ROCHA,
2002)14 na sociedade local, tendo a nítida intenção de apresentar uma imagem ligada à
imponência da aristocracia autóctone, representada pelo centro histórico hoje tombado pelo
IPHAN, deixando submersas as lutas que foram travadas pelos negros para terem sua história
valorada.
Reflexos dessa política de esquecimento ficam nítidos no cotidiano das relações
sociais autóctones, nas quais o contingente populacional afrodescendente só adentra aos

14
ROCHA, Isabel. Benjamin Benatar: Um pouco da vida social em Vassouras. Graficarte Editora, 2002.

668

V V
espaços centrais como mão de obra que, ao terminar suas atividades, retornam para as
periferias sem nenhuma infraestrutura nem apoio dos órgãos competentes.
O emaranhado que temos é que estou esquadrinhando dar conta através da análise das
políticas voltadas ao Jongo no atual momento em Vassouras, por estar evidenciado que essa
manifestação em particular é uma das formas de diminuição das desigualdades tão evidentes
no cenário local.

CONCLUSÃO
O PACCH é, sem sombra de dúvidas, o maior desafio que a instituição já enfrentou
desde sua criação devido à complexidade, o alto investimento e a quantidade de obras que o
IPHAN tem que supervisionar, com um quadro muito reduzido de servidores para dar conta
não só das obras oriundas do programa, mas também das demandas dos outros municípios,
como no caso do Escritório Técnico Médio Paraíba/IPHAN-RJ, que tem dezoito prefeituras
sob sua tutela, das quais Vassouras é a única a estar incluída no processo.
É tentando entender esse novo desafio e como a falta de uma política integrada com a
sociedade nesse momento faz uma grande diferença, é que o autor passou à dispender certo
tempo e fôlego para refletir sobre as questões abordadas no decorrer do texto, mesmo com o
PACCH ainda em andamento.
No caso de Vassouras, em especial, é de grande valia por se tratar de uma cidade de
pequeno porte, com uma área tombada muito menor que o Centro Histórico de Salvador, por
exemplo – onde os problemas são maiores e mais complexos. Essas lacunas foram
identificadas durante o período de pesquisas na localidade. Acredito que devem ser dilemas
aos quais alguns estudiosos da área também estejam refletindo, porque, apesar de estar
discorrendo sobre Vassouras – sendo esta meu objeto de estudo, conjecturo que estes
problemas se multiplicam em todo o cenário nacional, e que a instituição ainda não se
inclinou a pensar em solução para resolvê-los.

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669

V V
BRASIL, Patrimônio Imaterial Gerência de Identificação. Processo nº 01450.002863/2006-80.-
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670

V V
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V V
VIANNA, Hermano. Tradição da mudança: a rede das festas populares brasileiras. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, IPHAN, nº. 32, 2005, p. 302-315.

672

V V
CULTURA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Janaina Santos Dias1
Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves2

RESUMO: O artigo apresenta alguns conceitos que pontuam a relevância da participação da


sociedade no ciclo das políticas culturais. A metodologia utilizada é a da revisão
bibliográfica. Refere-se especificamente à implementação do Sistema Nacional de Cultura,
que tem como pressuposto a institucionalização de mecanismos e instâncias participativas,
tais como conselhos, conferências, fundos e planos estratégicos de longo prazo. Expõe
questões sobre os ideais participativos da gestão pública da cultura e da experiência
democrática brasileira recente, ao representar um esforço de inserção do campo da cultura no
debate sobre democracia, participação e políticas públicas e análise das características do
projeto de gestão participativa na conformação de um novo paradigma da gestão social da
cultura.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia cultural. Participação social, Políticas culturais, Sistema


Nacional de Cultura

INTRODUÇÃO
O processo de abertura democrática brasileira culminou com a instauração de uma
nova relação Estado/Sociedade, o que ganhou força a partir da Constituição Federal de 1988,
que estabeleceu o princípio democrático como primazia e, por consequência, a participação
social como elemento de ampliação da democracia nos mais variados setores de atividade e
política pública.
Neste contexto novos arranjos institucionais, formas de diálogo e articulação entre
governos e sociedade vêm sendo experimentados nas últimas décadas, incluindo mecanismos
e canais que promovem a participação social, a transparência e o controle social na gestão
pública.
Entre os mecanismos e canais estão: conselhos de políticas públicas, conferências,
audiências públicas, ouvidorias e um conjunto de leis, entre elas as que instituem a
participação social nas políticas públicas.
A participação e o controle social na gestão pública são práticas inovadoras de gestão
que são reconhecidas por organismos internacionais, sobretudo por casos como o do

1
Economista, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Administração (PPGAd) da Universidade Federal
Fluminense (UFF) - janainadias@id.uff.br
2
Economista, Especialista em Administração Pública, Mestranda do Programa de Pós-graduação em
Administração (PPGAd) da Universidade Federal Fluminense (UFF) – angelinecoimbra@gmail.com

673

V V
orçamento participativo de Porto Alegre, que surgiu em 1990 e se mundializou, existindo hoje
em vários países.
O Plano Nacional de Cultura estabelece os objetivos e metas das políticas públicas
culturais. Para a consecução dessas metas criou-se um arranjo institucional, descentralizado,
pautado na cooperação federativa e no princípio democrático da participação social nas
decisões, com controle social, transparência e fiscalização, que é o Sistema Nacional de
Cultura (SNC).
O objetivo desse trabalho é analisar a participação social no Sistema Nacional de
Cultura, de que forma ela é realizada e quais as questões que a permeiam. São levantadas
algumas questões que pontuam a relevância da participação da sociedade no ciclo das
políticas culturais, pensando o papel da cultura num escopo maior de aprofundamento da
cidadania e de amadurecimento da experiência democrática brasileira.
Esse estudo foi realizado com base na revisão bibliográfica.
Além dessa introdução e das considerações finais, serão apresentadas duas seções: a
primeira trata da construção do espaço público no âmbito das políticas públicas culturais; e a
segunda trata da participação social especificamente no Sistema Nacional de Cultura.

A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS


CULTURAIS
A construção do espaço público no âmbito das políticas culturais, que envolve a
participação ativa da sociedade civil na definição, formulação, implementação e avaliação das
políticas culturais, expressa uma nova relação Estado/Sociedade no campo cultural e se
fundamenta em três princípios norteadores:
1. A gestão das políticas culturais implica referir-se a ações por parte do Estado como
resposta a necessidades sociais, que têm origem na sociedade e que são incorporadas e
processadas pelo Estado em suas diferentes esferas de poder (federal estadual e municipal);
2. A formulação das políticas culturais, a gestão e o financiamento são primazia do
Estado, a quem cabe a competência pela condução das políticas;
3. Esta primazia, contudo, não significa responsabilidade exclusiva do Estado, pois
implica a participação ativa da sociedade civil nos processos de formulação e controle social
da execução, o que aponta para a importância dos conceitos de espaço público e participação
que serão objeto de reflexão nesse trabalho.
O espaço público, como espaço de mediação das novas relações entre Estado e
sociedade, vem despertando polêmica e há atualmente uma luta teórica e político-ideológica

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pela apropriação do seu significado, o conceito tem sido incorporado pelo discurso de uma
multiplicidade de atores, movimentos sociais, governos, profissionais, organizações não-
governamentais (ONG’s), organizações e grupos diversos da sociedade.
O conceito adotado nesse trabalho se fundamenta numa visão ampliada da democracia
e pela incorporação de mecanismos e formas de atuação dentro e fora do Estado, que
dinamizam a participação social, de modo que ela seja cada vez mais representativa dos
diferentes atores, sujeitos e organizações, especialmente das classes dominadas (RAICHELIS,
2000).
O tema participação social nas políticas culturais é relevante para que se possa avaliar
um tema pontual e crucial no debate contemporâneo sobre democracia participativa, controle
social e cidadania. Nesse trabalho são expostas algumas questões para o debate, que pontuam
a relevância da participação da sociedade no ciclo das políticas culturais, pensando o papel da
cultura num escopo maior de aprofundamento da cidadania e de amadurecimento da
experiência democrática brasileira.
A análise parte do contexto da normatização e sistematização da cultura e dos desafios
que permeiam as políticas culturais, através da implementação do Sistema Nacional de
Cultura (SNC), desde o primeiro Governo Lula até hoje, no segundo mandato da presidente
Dilma Rousseff.
Inclui também as ações e arranjos institucionais voltados para a construção de
instrumentos de gestão articulada entre Estado e Sociedade, que visam estabelecer uma
aliança no âmbito político e que pressupõem ações coletivas que possam dar estabilidade e
continuidade num esforço de proporcionar efetividade às políticas culturais (DIAS, 2014).
Através do SNC foram instituídos os mecanismos e canais participativos na cultura
como: conselhos, conferências, fundos de cultura, planos estratégicos de longo prazo e outros.
No marco histórico da consolidação da cultura como política pública, o desafio posto
foi o da necessidade de construção de estruturas e espaços públicos que acolhessem as
demandas da cultura e a instituição de um sistema de gestão democrático, participativo e que
engloba a cooperação federativa.
As instâncias participativas institucionalizadas pelo SNC, do ponto de vista de seu
aspecto formal e de sua proposição, apontam a possibilidade de que se vivencie a participação
da sociedade no campo da cultura. O SNC é um relevante avanço formal, mas no aspecto
material cabe questionar a sua amplitude.

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Assim como os demais campos da esfera social brasileira, a cultura também reflete as
desigualdades no cumprimento e na garantia plena dos direitos da população. As contradições
no campo social, político, econômico e cultural são vivenciadas diariamente num país com
dimensões continentais como o Brasil, demonstrando fragilidade quanto aos direitos sociais e
em relação à participação efetiva da sociedade nas políticas que são articuladas, tendo o
desenvolvimento econômico, social, a democracia e a cidadania como principais objetivos.
A questão da participação social aparece com grande ênfase no cenário político atual e
vem proporcionando debates de diferentes formas na sociedade brasileira. Esse debate se
ampliou mais recentemente na conjuntura criada com a eleição do Presidente Lula, em que
parte dos atores da sociedade civil esperavam um modelo de desenvolvimento, no qual esses
atores pudessem participar e contribuir na formulação e nas decisões de políticas públicas.
A ação do Estado no campo da democracia cultural se fundamenta e tem raiz na
proteção e estímulo dos direitos da cidadania em todos os níveis sociais e em todas as
fronteiras, definidos nos próprios princípios da CF/88 que preconizam: a universalidade, o
pluralismo cultural, a participação popular, a preponderância das iniciativas da sociedade e da
subsequente atuação estatal como suporte logístico, ou seja, o Estado como apoiador e indutor
das políticas públicas. As práticas culturais legitimamente são da sociedade e dos indivíduos
(DIAS, 2014), por isso tem de ser por eles discutidas e deliberadas.
A participação popular nas decisões das políticas culturais tem tomado contornos
expressivos a partir da implementação do SNC e da institucionalização das instâncias
participativas na cultura. Diante dos desafios para garantir o SNC como um conjunto de
programas, projetos, planos e ações de forma compartilhada, descentralizada, participativa e
articulada cooperativamente entre as esferas de governo e a sociedade, os espaços públicos da
cultura têm sido fortes instâncias de participação popular e um importante instrumento de
articulação entre Estado e atores culturais.
A composição do Sistema Nacional de Cultura inclui: órgãos gestores de cultura,
conselhos de política cultural, conferências de cultura, sistemas de financiamento, planos de
cultura, sistemas setoriais de cultura, comissões intergestores, sistemas de informações e
indicadores culturais e programas de formação na área da cultura. Esse é um dos poucos
sistemas efetivamente implementados no Brasil, além dos setores: Saúde e Segurança Pública.
Constitucionalmente as conferências nacionais de cultura têm o papel de definir as
macro diretrizes para as políticas de cultura e essas são transformadas em objetivos e metas a
serem executadas e atingidas pela gestão pública, no âmbito do arranjo institucional (SNC).

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As conferências de cultura são instituições legítimas de representatividade e participação dos
diversos atores culturais e da sociedade (DIAS, 2014).
A forma de gestão no sistema descentralizado e participativo da cultura, permeado
pelo exercício do controle social, tem como espaços de efetivação da participação as
Conferências cujas responsabilidades são, entre outras, a de avaliar a gestão e definir novas
diretrizes; e os Conselhos que têm como principais atribuições a fiscalização da execução e do
financiamento das políticas culturais (Ibid.).
A III Conferência Nacional de Cultura aconteceu em dezembro de 2013, na capital do
país, participaram da programação mais de 1,7 mil pessoas, entre delegados dos estados e
demais representantes da cultura e da sociedade civil. O objetivo central dessa conferência foi
o desafio de implementação do Sistema Nacional de Cultura, instituindo a nível nacional para
o nível local, conforme os modelos indicados no arcabouço legal, ou seja, construí-lo a partir
dos pressupostos da participação e do controle social.

O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA E A PARTICIPAÇÃO SOCIAL

A construção de marcos ético-políticos para a cultura tem avançado muito com a


implementação de estratégias e planos para a execução do que está definido no SNC. Esse
processo tem suas tensões, limitações políticas e materiais em sua implementação e
evidentemente sofre contradições frente ao estabelecido, o que requer protagonismo dos
atores sociais nos espaços públicos e nas ações de participação, de deliberação e controle
social.
Na análise do caráter da participação social no SNC percebem-se importantes
conquistas na gestão da cultura, entre elas a visão ampliada das políticas públicas em
detrimento da lógica hegemônica estabelecida nos anos 1990, com as leis de incentivo. Houve
um reconhecimento e valorização pelo Estado, decorrente de uma construção histórica e
cultural dos movimentos e organizações e atores culturais, que atuaram de forma
independente e contestaram o que estava estabelecido como dominante nas políticas públicas
de cultura.
Conforme salienta Calabre (2013), identificam-se nos programas que caracterizam a
gestão pública da cultura um reconhecimento de diversas formas de participação, não somente
em relação à pluralidade dos atores culturais como também a participação, ou seja, a definição

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de quais os agentes que podem definir a pauta, as questões e as demandas da cultura, não mais
restritas à produção e ao retorno econômico como nos anos 1990.
O SNC exige para seu funcionamento consistente a constituição de uma complexa
estrutura organizativa de execução e acompanhamento das políticas culturais, um dos seus
pressupostos basilares é o fortalecimento de instâncias coletivas de participação, construção e
fiscalização, ou seja, é transformar o que está inscrito nas leis em práticas democráticas de
gestão, transformar a participação, para além de formal e pragmática, em objeto de efetivação
dos direitos culturais.
De acordo com Lustosa da Costa e Cunha (2009), a institucionalização dos
mecanismos e canais de participação deve se revelar capaz de fazer do Estado um autêntico
espaço público, no qual prevaleça a vontade direta dos cidadãos e que se faça um controle
social efetivo das ações do Estado, assim a participação social na cultura é útil à educação
política e à formação de uma prática política capaz de promover a democratização da cultura
e, como método de governo e modelo de desenvolvimento, significa aprofundar as relações
democráticas e incluir os cidadãos na gestão pública, ampliando o diálogo entre
Estado/sociedade. A participação para além de racionalizar recursos, deve promover a
eficiência e a eficácia da gestão da cultura resultando em transformação social, ao inserir a
participação social num processo de rearticulação da relação Estado/Sociedade (Idem, p. 9).
O espaço público constitui um espaço essencialmente político de aparecimento e
visibilidade, onde tudo o que vem a público pode ser visto ou ouvido por todos. Nessa esfera
os sujeitos sociais estabelecem uma interlocução pública que não é apenas discursiva, mas
implica a ação e a deliberação sobre questões que dizem respeito a um destino comum e
coletivo. É nesse sentido que se inscreve a dimensão política do espaço público baseada no
reconhecimento do direito de todos à participação na vida pública (RAICHELIS, 2000).
Dessa forma, o Estado é um sujeito participante num espaço público ampliado e sua
atuação deve ser de um agente catalisador dos esforços da sociedade para ampliar a
participação de forma direta nas decisões sobre políticas públicas e na distribuição de riquezas
(TELLES, 1990, p. 24).
A construção teórica e discursiva na formulação das políticas culturais, no contexto de
sua normatização e institucionalização, obteve uma inflexão conservadora, ao propor valores
como universalização, democratização, participação e controle social, todavia a visão
funcional e institucional da participação estão presentes e a interlocução entre Estado e
sociedade está delineada por um padrão burocratizado de participação.

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Na sociedade brasileira existe um híbrido cultural em que uma cultura política
autoritária e uma cultura democrática se confrontam não somente dentro do Estado como na
sociedade civil, coexistindo um formalismo democrático com uma cultura autoritária e
clientelista (LUSTOSA DA COSTA e CUNHA, 2010).
Quanto à participação, o discurso do Governo através do órgão gestor e promotor das
políticas públicas culturais no âmbito federal, o Ministério da Cultura (MinC) ressalta uma
maior aproximação com a sociedade na construção das políticas. A partir de uma abordagem
sistêmica pretende alcançar uma neutralidade e impessoalidade na relação com a sociedade e
forma de conciliar os diferentes interesses.
Como ressalta Amorim (2013), uma das tensões que se pode observar na política
participativa do governo federal, concretizada na organização do Sistema Nacional de
Cultura, é que as relações políticas entre Estado e Sociedade na construção das políticas
públicas estão permeadas por uma cultura política moldada por características do
personalismo, do autoritarismo, do dirigismo que historicamente permearam essa relação no
campo da cultura.
A tensão não está exclusivamente nas estruturas (canais institucionais de participação
e financiamento) ou na cultura política dos atores e sujeitos que ocupam espaços de poder em
determinado momento da política, mas permeia as próprias relações de poder, ou seja, a
distribuição e socialização do poder na gestão das políticas culturais.
Para pensar a participação na cultura num escopo de amadurecimento democrático é
necessário dar atenção para esses referenciais, com o intuito de compreender as
representações e práticas dos diversos grupos sociais envolvidos, que podem delimitar o
alcance político da participação e criar distorções nas pretensões de mudança da construção
histórica no campo das políticas culturais.
A ampliação da noção de políticas culturais e dos conceitos de participação, cidadania
e democracia é o resultado, de alguma forma, de uma mudança nas posições de poder e na
correlação de forças no campo cultural e do reconhecimento das mais diversas manifestações
culturais. Ao mesmo tempo, da participação ampliada dos movimentos e organizações
culturais na construção e também como objeto das políticas.
A institucionalização e a sistematização da participação nas políticas culturais guarda
suas contradições com as práticas discursivas e com as práticas políticas e essas estão
relacionadas à atuação do Estado como agente tensionador da relação com a sociedade.

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Nesse sentido Coutinho (1980) destaca que a socialização da participação política não
passa somente pelas formas institucionais que a democracia assume em determinado
momento, mas sim no processo pelo qual a política se socializa e progressivamente propõe
novas formas de socialização do poder. A participação social no ciclo das políticas culturais
ainda que monitorada, burocratizada, vem sendo capaz de produzir a aprendizagem política
dos grupos da sociedade possibilitando a experimentação de novas formas de atuação e
organização que alteram a correlação de forças e o cenário político da cultura para além das
inovações inscritas nos programas governamentais.
A participação ampliada inscrita nos discursos vem sendo construída articuladamente
com a sociedade e progressivamente nas instituições, nos governos, nos programas e nos
planos estratégicos de longo prazo como uma aprendizagem emancipatória.
Nesse sentido, importante é analisar os ideais que orientam a participação social nas
políticas culturais, para além de seu caráter formal e de metodologia de governo e, sim, como
um valor em si, que contribui para construção do espaço público na cultura.
A construção dos espaços públicos e o processo democrático na cultura, assim como
nos demais campos sociais, se desenvolve com ambiguidades e contradições. A polêmica em
torno do significado político dos conselhos, conferências, fóruns e demais instâncias
participativas despertam questionamentos quanto à oportunidade e efeitos políticos da
participação popular nesses espaços. Até que ponto as experiências em curso podem
contribuir para a gestão democrática das políticas culturais? De que maneira a prática política
exercida nos conselhos e conferências de cultura são capazes de influenciar a construção da
esfera pública da cultura como um campo de alargamento dos direitos e da cidadania cultural?
Todas essas questões são relevantes para se pensar quais as condições necessárias para
que a participação ativa dos cidadãos possa ocorrer, se consolidar e se expandir.
É possível garantir a participação social sem que se mude a maneira pela qual se
decide a repartição dos custos e benefícios das políticas culturais? Como é distribuído e
compartilhado o poder na formulação e implementação das políticas culturais? As respostas
estão em curso.
A participação não pode se reduzir apenas aos espaços dos conselhos e das
conferências, dos fóruns e nas instâncias formais de participação, estas instâncias não devem
ser consideradas as únicas legítimas da participação popular e, sim, uma das formas que
fortalece as demais formas de participação e prática política, mas estas devem e precisam ser
avaliadas e criticadas como formas de mediação e organização política.

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A gestão social da cultura pressupõe que o direcionamento de todas as decisões e
ações do estado tenham por objetivo eliminar as desigualdades e a exclusão social. O caminho
para alcançar esse objetivo é a participação cidadã em todas as etapas da gestão de políticas e
no controle social dos resultados (TELLES, 1990).
A intervenção estatal para promover a participação é essencial, desde que o Estado
seja o assegurador público dos direitos, prestador sócio-político de serviços e estimulador das
práticas políticas democráticas, que assegure que a participação se dê de forma plural e se
converta em medidas e ações que reflitam as demandas expressas pelos atores sociais.
O controle social deve permitir acesso aos processos que informam decisões da
sociedade política, viabilizando a participação da sociedade civil na formulação e na revisão
das regras que conduzem às negociações e arbitragens sobre os interesses em jogo, além da
fiscalização das decisões.
Participar da vida política, isto é, discutir destino comum e interesses coletivos, não
significa ignorar a presença do conflito no processo, que é inerente ao movimento
democrático que é direcionado pela correlação de forças políticas presentes na sociedade.
De acordo com Alves e Gurgel (2014), o controle social tem a ver com a participação
da sociedade na gestão pública, na definição de diretrizes, na avaliação da conduta dos
agentes públicos e na gestão de políticas públicas. Por isso, cabe ao Estado estimular a
participação da sociedade através da definição de diretrizes para esta participação nas
decisões e no acompanhamento e fiscalização das políticas públicas. O objetivo do controle
social vai além, preocupa-se com a economicidade, imparcialidade, racionalidade e a
adequação do atendimento às necessidades da sociedade, pelo uso criterioso dos recursos
públicos, o que significa que o controle social é um instrumento relevante para se alcançar o
interesse público de forma eficiente, eficaz e efetiva.
Segundo os autores, uma política cultural inovadora deve ser avaliada para saber se os
seus objetivos foram alcançados e, ainda, para observar critérios para seu aperfeiçoamento e
disseminação.
O sentido da participação social na gestão pública da cultura é transformar o cidadão
de sujeito passivo em sujeito ativo na construção da sociedade onde vive, por meio dos
espaços próprios para a participação. A institucionalização das práticas de participação tem o
poder de abalar os meios tradicionais de decisão. A participação cidadã pode, portanto, ser
contrária aos interesses dominantes de alguns representantes habituados a decidirem em nome
do povo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de democratização brasileiro pode ser considerado uma experiência
relativamente nova e a experimentação da vertente participativa da democracia ainda está em
processo.
No campo cultural, pode-se dizer que ainda está se criando, exercitando, propondo,
avaliando e aprimorando as instâncias e as práticas de participação social no debate, na
formulação, acompanhamento e avaliação das políticas culturais.
A institucionalização de uma política pública para acultura e a implementação do
Sistema Nacional de Cultura (SNC) têm sido uma possibilidade de fortalecimento do campo
cultural, ainda que enfraquecido institucionalmente em termos de importância na agenda
política. No entanto, os processos participativos, cogestionados e autogestionados e baseados
na premissa da democracia cultural não dispensam a articulação, a interlocução e a
participação ativa do Estado.
A participação democrática na cultura é um exercício constante das múltiplas
representações, a gestão social significa conceber a cultura numa concepção cidadã, o direito
à participação nas decisões das políticas culturais é o direito do cidadão de intervir na
definição de diretrizes culturais e dos orçamentos públicos, a fim de garantir tanto o acesso
como o financiamento e a produção de cultura pelos cidadãos.
A cidadania cultural também é um processo contínuo que deve ser capaz de tornar a
intervenção e a participação em algo mais consciente e potente, na medida em que favoreça o
pensar sobre os diversos aspectos envolvidos no processo político de formulação das políticas
culturais.
A gestão social do Estado no campo cultural deve ser vista como parte de um processo
de mudança gradual e contínua, que tende a consolidar-se somente na medida em que se
busca exercitá-la de fato e que os resultados conquistados se acumulam, formando um ciclo
virtuoso de redução de desigualdades, aumento quantitativo e qualitativo da participação,
propiciando decisões mais acuradas para a gestão da cultura, para sustentabilidade das
conquistas e maior redução das desigualdades.
O Sistema Nacional de Cultura nesse sentido representa um avanço em direção à
promoção da efetividade das políticas, dos direitos culturais e da democracia cultural.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Angeline Coimbra; GURGEL, C. R. M. Obstáculos à Participação Social
Evidenciados em Estudo Empírico. REBAP. Revista Brasileira de Administração Política, v.
7, p. 21, 2014.

AMORIM, Simone. A participação como estratégia das políticas culturais no estado do Rio
de Janeiro. IV seminário internacional – políticas culturais – 16 a 18 de outubro/2013, Setor
de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil.

CALABRE, L. Federalismo Cultural no Brasil: avanços e desafios do federalismo no Rio de


Janeiro. In: RUBIM, Antonio; BARBALHO, Alexandre. Políticas culturais no Brasil.
Salvador: EDUFBA, 2013.

COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Ciências
Humanas, 1980.

DIAS, J. S. O Sistema Nacional de Cultura: Considerações sobre os avanços e desafios do


pacto federativo da cultura. II Encontro de pesquisa em Cultura, 2014, out 15-17: Niterói, RJ,
Rio de Janeiro, RJ.

LUSTOSA DA COSTA, Frederico; e CUNHA, Augusto Paulo Guimarães Desafios da


Gestão Social do Estado. Adm. MADE (Universidade Estácio de Sá), v. 14, p. 66-81, 2010.
LUSTOSA DA COSTA, Frederico; e CUNHA, Augusto Paulo Guimarães. Dilemas da
Participação Cidadã na Gestão de Políticas Públicas. Veredas do Direito (Belo Horizonte), v.
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RAICHELIS, Raquel. Democratizar a gestão das políticas sociais – um desafio a ser


enfrentado pela sociedade civil. Programa de Capacitação Continuada para Assistentes
Sociais. Brasília, CFESS, ABEPSS, CEAD/NED-UNB, 2000.

TELLES, Vera da Silva. Espaço Público e Espaço Privado na Constituição do Social: notas
sobre o pensamento de Hannah Arendt. In: Tempo Social. São Paulo: 1º semestre de 1990.
vol. 1,n. 1, p. 23-48.

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POLÍTICA PARA O PATRIMÔNIO OU OS ELEITOS: A LEI DO REGISTRO DO
PATRIMÔNIO VIVO DE PERNAMBUCO
Jaqueline de Oliveira e Silva1

RESUMO: O presente artigo se baseia num relatório de avaliação elaborado em virtude dos
dez anos da Lei do Registro do Patrimônio Vivo(RPV) em Pernambuco. Neste texto, tratamos
das implicações do registro na vida dos mestres, mestras e grupos, do cumprimento pelos
inscritos no RPV dos compromissos colocados pela lei, da utilização dos recursos financeiros,
assim como dos programas elaborados sob o acompanhamento da Secretaria Estadual de
Cultura de Pernambuco a fim de garantir assistência ao desempenho das atividades dos
Patrimônios Vivos. Como conclusão, apresentamos algumas reflexões a respeito das
implicações das políticas de patrimonialização de pessoas para a preservação do patrimônio
cultural e alguns caminhos para melhoramento da política apontados pelos próprios
Patrimônios Vivos.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio vivo, patrimônio cultural imaterial.

INTRODUÇÃO
Pernambuco é o estado brasileiro pioneiro em adotar uma legislação própria para as
ações de reconhecimento e valorização dos saberes de mestres e mestras do patrimônio
cultural imaterial, através do Registro do Patrimônio Vivo (RPV), criado em 02 de maio de
2002, através da Lei Estadual nº 12.196 e regulamentado pelo Decreto nº 27.503, de 27 de
dezembro de 2004. Atualmente, além de Pernambuco, seis estados brasileiros e sete
municípios2 possuem leis específicas de valorização de seus mestres e mestras da cultura
popular e tradicional3. A nível nacional está em tramitação, desde 2010, um projeto de lei que

1
Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal de
Pernambuco.
2
Bahia (Lei dos Mestres de Saberes e Fazeres. Lei n° 8.899/2003), Ceará, (Lei dos Mestres/ Tesouros Vivos da
Cultura. Lei 13.427/ 2003), Alagoas (Lei do Patrimônio Vivo. N° 6.513/2004), Paraíba (Lei Mestres das Artes
Canhoto da Paraíba. Lei n° 7.694/ 2004), Rio Grande do Norte. (Lei do Patrimônio Vivo. Lei n° 9.032/2007) e
Piauí (Lei do Patrimônio Vivo. Lei n° 5.816/2008). Os municípios de Cachoeira do Itapemirim, (ES); Irará (BA);
Belém (PA), Fortaleza (Ceará), Belo Horizonte (MG), Laranjeiras (SE) e Tracunhaém (PE), também contam
com leis próprias de registro e salvaguardo de seus Patrimônios Vivos.
3
A lei do RPV de Pernambuco apresenta uma diferenciação entre cultura popular e cultura tradicional, sendo
estas as duas categorias que podem ser mobilizadas para a inscrição de um determinado candidato. Acserald
(2007) realizou uma interessante análise a respeito das reações em torno da eleição de um cineasta, para ressaltar
como os conceitos de popular e tradicional são mobilizados e apropriados neste processo de registro de pessoas.

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institui a Política nacional de proteção e fomento aos saberes e fazeres das culturas
tradicionais de transmissão oral do Brasil, conhecida como Lei Griô Nacional4.
Os Patrimônios Vivos são escolhidos pelo Conselho Estadual de Cultura após estudo
da documentação dos candidatos e do parecer elaborado por uma comissão, chamada
Comissão Especial de Análise. Além do incentivo financeiro mensal e do uso do título de
Patrimônio Vivo de Pernambuco, a lei enfatiza a necessidade de potencializar a transmissão
de saberes, em relação com o crescimento da visibilidade das instituições, dos mestres e das
mestras.
A pesquisa que fundamentou o presente artigo se baseia num relatório de avaliação
elaborado em 20145 acerca destas ações, como o cumprimento pelos inscritos no RPV dos
devidos compromissos colocados pela Lei, a utilização de recursos, a elaboração de
programas, sob o acompanhamento da Secretaria Estadual de Cultura, a fim de garantir
assistência ao desempenho das atividades dos Patrimônios Vivos e o por fim, a percepção
geral dos Patrimônios Vivos acerca da política.
A respeito da metodologia de pesquisa, tendo como princípio o fato de que as
tradições culturais se perpetuam em grande parte mediante a tradição oral e a forma mais
profícua de alcançar este conhecimento é através dos relatos e memórias de seus detentores,
nos pautamos na metodologia da história oral, através da realização de entrevistas semi-
estruturadas, realizadas na residência dos mestres, mestras e na sede das agremiações, durante
o ano de 2014. Valemos-nos também do método etnográfico, com o objetivo de compreender
as histórias contidas nas falas e nos gestos, de uma maneira que nos possibilitou perceber as
condições de saúde, o modo como utilizam os recursos provenientes da política, as condições
de trabalho em seus estúdios, galpões e ateliês, e ainda acessar percepções dos mesmos acerca
das ações de registro e salvaguarda. Através das falas gravadas, foram feitos relatórios a fim
de facilitar o acesso às informações mais relevantes da pesquisa. Essas foram sistematizadas e
utilizadas em análises quantitativas, para elaboração de um panorama acerca do registro.

4 O Projeto de Lei que institui a Política Nacional de Proteção e Fomento aos Saberes e Fazeres das Culturas
Tradicionais de Transmissão Oral do Brasil. Este projeto, que tramita atualmente na Comissão de Cultura da
Câmara dos Deputados, incorpora termos e conceitos presentes no Projeto de Lei 1786/2011, conhecido como
Lei Griô, apresentado pela Deputada Jandira Feghali (PCdoB – RJ) e no projeto de Lei 1176/2011, conhecido
como Lei dos Mestres, de autoria do Deputado Edson Santos (PT-RJ). Maiores informações em:
http://www.leigrionacional.org.br.
5
BARROS, Gabriel Navarro de Barros; SILVA, Jaqueline. Relatório: Registro do Patrimônio Vivo de
Pernambuco: 2004-2014. Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Recife,
2014. Até o momento, tal publicação encontra-se em circulação restrita.

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V V
Apresentamos abaixo a relação dos mestres, mestras e grupos registrados como
Patrimônios Vivos de Pernambuco que contribuíram para a elaboração do Relatório:

Patrimônios Vivos entrevistados Patrimônios Vivos não


entrevistados
Arlindo dos Oito Baixos (falecido) 1. Ana das Carrancas (falecida)
Associação Musical Euterpina de Timbaúba 2. Canhoto da Paraíba (falecido)
Banda Musical Curica 3. Fernando Spencer (falecido)
Banda Revoltosa 4. João Silva (falecido)
Caboclinho Canindé 5. Mestre Nuca (falecido)
Caboclinho Sete Flechas 6. Mestre Salustiano (falecido)
Camarão
Capa Bode - Sociedade Musical Euterpina Juvenil
Nazarena
Confraria do Rosário
Didi do Pagode
Dila
Galo Preto
Homem da Meia-Noite
Índia Morena
J. Borges
José Costa Leite
Lia de Itamaracá
Lula Vassoureiro
Maestro Ademir
Maestro Duda
Maestro Nunes
Manuel Eudócio
Maracatu de Baque Solto Estrela de Ouro de Aliança
Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu
Maracatu Leão Coroado
Maria Amélia
Selma do Coco
Teatro Experimental de Arte
Zé do Carmo
Zezinho de Tracunhaém
TABELA1: Patrimônios Vivos de Pernambuco contemplados pela pesquisa.

PATRIMÔNIOS VIVOS DE PERNAMBUCO: IMPLICAÇÕES E


DESDOBRAMENTOS DA POLÍTICA

Participação/visibilidade

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V V
Todos os entrevistados perceberam modificações em suas práticas cotidianas após o
registro, e a maioria ostenta com muito orgulho o título, declarando o sentimento de
reconhecimento e respeito aos seus trabalhos e trajetórias. Uma fala bastante significativa foi
feita por Ricardo, filho da artesã Maria Amélia, de 91 anos, residente em Tracunhaém e eleita
Patrimônio Vivo em 2007. Em suas palavras:
Artesanato em Pernambuco é igual a futebol no Brasil: todo mundo sabe um
pouquinho e tem muito jogador bom. Mas o Patrimônio Vivo é como se
fosse a seleção brasileira. Estão lá alguns escolhidos para representar a
todos.

Luiz Adolpho, presidente do Clube de Alegoria e Crítica Homem da Meia Noite, ressalta que
“O Patrimônio Vivo foi um divisor de águas na vida do Homem da Meia Noite. A gente dá
valor ao prêmio, está na entrada da sede”.
Porém, de acordo com os dados apresentados nas entrevistas, 79% dos Patrimônios
Vivos não observaram maior atenção do Estado frente às atividades que pudessem garantir
maior visibilidade a eles, seja através de projetos de fomento à transmissão de saber ou em
apresentações artísticas, conforme consta no gráfico abaixo:

Visibilidade/Participação
9%

12% Não perceberam maior visibilidade ou participação


em projetos e apresentações culturais

Observaram maior visibilidade e participação em


projetos e apresentações culturais

Não opinaram
79%

Gráfico 1: Visibilidade e Participação.

A maior parte dos mestres e representantes dos grupos comunicou que se sentem
insatisfeitos em relação ao RPV como uma política de incentivo à cultura. Aproximadamente
67% dos Patrimônios apontaram que as vantagens principais do registro são a bolsa concedida
pelo Estado e a honra de terem sido reconhecidos como importantes sujeitos às atividades
culturais pernambucanas. Os 33% restantes, em contrapartida, afirmaram grande satisfação,
colocando que os benefícios do RPV foram capazes de transformar significativamente tanto
as suas vidas quanto a existência dos grupos que fazem parte.

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V V
Porém, menos de um terço dos Patrimônios Vivos, assinalou que o RPV se constituiu
como um plano capaz de beneficiar profundamente aqueles que por ele foram tocados. Essa
numeração corresponde a dez Patrimônios Vivos, sendo sete pessoas jurídicas (Associação
Musical Euterpina de Timbaúba, Banda Musical Curica, Caboclinho Sete Flechas, Homem da
Meia- Noite, Sociedade Musical 5 de Novembro, Sociedade Musical Euterpina Juvenil
Nazarena e Teatro Experimental de Arte) e três pessoas físicas (Lula Vassoureiro, Galo Preto
e Índia Morena). Esses dados reforça o argumento que aponta o RPV como um plano cujos
benefícios são percebidos majoritariamente pelas pessoas jurídicas, como iremos demonstrar
adiante.
Aproximadamente 11% dos mestres (pessoas físicas) afirmam que o RPV trouxe
grandes melhorias às suas atividades culturais. No que toca os grupos, essa numeração
ascende para 58%. Uma possível explicação para esse fenômeno é o fato de muitos mestres e
mestras, por se encontrarem em idade avançada e apresentarem a renda limitada à
aposentadoria, acabam utilizando o auxílio do RPV com despesas pessoais, como alimentação
e saúde, como iremos perceber no próximo tópico.

Utilização dos recursos


Quando perguntados sobre como utilizavam os recursos provindos da política6, a
maior parte das pessoas físicas declarou que empregava a verba exclusivamente em despesas
pessoais, enquanto que um pequeno número afirmou também a sua utilização em atividades
relacionadas a práticas culturais, como a compra de material e manutenção de ateliês.
Em relação às pessoas jurídicas, o panorama se modifica significativamente. Todas
elas destinam substancialmente a verba proveniente do RPV à sua manutenção. A compra de
instrumentos musicais, bem como de materiais para confecção dos últimos e também de
indumentárias, são gastos frequentes dos grupos contemplados. Além disso, observa-se
também a destinação da verba à manutenção e reestruturação das sedes, como demonstrado
pela tabela (gastos específicos).
O discurso do vice-presidente da Sociedade Musical Euterpina Juvenil Nazarena, João
Paulo, opera para reforçar a positividade do RPV para os grupos:
Com esse prêmio, hoje nós estamos tendo uma ajuda para fazer com que
essa história de 126 anos não venha a ruir, que os nossos instrumentos não
possam vir a ser calados. Foi muito bom, está sendo muito boa essa ajuda.

6
Em 2014, a bolsa para pessoas físicas era de R$ 1.010,61 e para pessoas jurídicas R$ 2.034,00.

688

V V
Um exemplo interessante é a Irmandade Religiosa Confraria do Rosário, da cidade de
Floresta, que efetivou a reforma da sua sede, a gravação de um documentário e produções de
um calendário anual, além de custear, em parte, a sua tradicional festa, que acontece no dia 31
de dezembro desde 1972, com os recursos do Patrimônio Vivo.

Destinação dos recursos- Pessoa Jurídica

14
12
12
11
10

4 3
2
2
1
0
Compra e confecção Manutenção da sede Reestruturação da Manutenção de Acúmulo de verba
de material de sede museu/ acúmulo para carnaval
trabalho para estruturação de
museu

Gráfico 2: Destinação de recursos entre as pessoas jurídicas- Gastos Específicos.

Patrimônio Vivo (Pessoas Jurídicas) Destinação dos recursos


Associação Musical Euterpina de Timbaúba Compra de instrumentos/ manutenção da sede
Banda Musical Curica Compra de instrumentos e computadores/
manutenção e reestruturação da sede
Banda Revoltosa - Sociedade Compra de instrumentos/ manutenção da sede
Musical 5 de Novembro
Caboclinho Canindé Compra e confecção de instrumentos e
indumentária/ manutenção da sede
Caboclinho Sete Flechas Compra e confecção de instrumentos e
indumentária/ aluguel da sede
Capa-Bode | Sociedade Musical Euterpina Compra de instrumentos/ manutenção da sede
Juvenil Nazarena
Confraria do Rosário Ampliação da sede, acúmulo para construção de
museu.
Homem da Meia- Noite Confecção de indumentária/ Compra e
manutenção de instrumentos/ Criação de
museu/Manutenção de museu e sede do grupo
Maracatu de Baque Solto Estrela de Ouro de Compra e confecção de instrumentos e

689

V V
Aliança indumentária/ acumulação de recursos para o
carnaval/ manutenção da sede
Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu Compra e confecção de instrumentos e
indumentária/ reforma da sede
Maracatu Leão Coroado Compra e confecção de instrumentos e
indumentária. O maracatu não possui sede
própria, os ensaios são feitos nas residências dos
integrantes do grupo.
Teatro Experimental de Arte Compra de indumentária e maquiagem/
manutenção da sede
Tabela 2: Destinação de recursos entre as pessoas jurídicas.

Transmissão de saberes
Em relação à participação em programas de ensino e aprendizagem, também não foi
observada a negação de Patrimônios Vivos frente a convites de tal tipo. Evidenciou-se, no
entanto, uma grande dificuldade no que compete às atribuições da atual Secretaria Estadual de
Cultura, colocadas na lei que regulamenta o RPV e estabelece a sistemática de execução do
Registro do Patrimônio Vivo. Em seu inciso II, indica que é competência da Secretaria apoiar
e veicular as atividades e projetos dos inscritos no âmbito do RPV nos meios de comunicação
possíveis. Já no inciso V, adverte que fica a cargo da mesma instituição o planejamento e
oferecimento de infraestrutura básica para a execução de programas de ensino e aprendizagem
cultural.
Assim, as entrevistas evidenciaram grande problemática no que tange aos incentivos
do Estado junto aos Patrimônios Vivos. Como já assinalado anteriormente, 79% deles
apontaram que o RPV ainda não foi capaz de aumentar a visibilidade de seus trabalhos,
tampouco difundir meios suficientes de estimular o repasse de seus conhecimentos, como
apresentações culturais e realizações de oficinas. Alguns mestres se encontram em situações
tão delicadas que indicaram não propagar seus saberes por ausência de interessados, como é o
caso do cordelista José Costa Leite e artista plástico Zé do Carmo.
Os limites de alcance da política são respaldados, ainda, na ocorrência da restrição do
processo de transmissão dos saberes e técnicas a familiares dos Patrimônios, como Manuel
Eudócio, Maria Amélia, Selma do Coco e Zezinho de Tracunhaém. Nesses casos, percebemos
que os incentivos do Estado não são capazes de incluir esses artistas em programas de
incentivo e difusão de seus saberes e técnicas, tendo em vista que a prática segue uma lógica
própria de transmissão, que passa ao largo de oficinas, escolas e outros espaços de educação
formal.

690

V V
Em relação à difusão de conhecimentos por pessoas jurídicas, pelo fato desses
contarem com vários integrantes e, de um modo geral, com uma diálogo mais aproximado
com a educação em espaços formais, essas dificuldades são amenizadas, sendo este o caso
especial das Bandas de Música, que mantém escolas em suas sedes. Já no caso das
agremiações de Maracatus e Caboclinhos, por exemplo, o repasse acontece muito mais no
cotidiano dos grupos para familiares e pessoas das comunidades onde os grupos estão
inseridos, em especial nos momentos de preparação para o carnaval, do que em oficinas,
atividades em escolas ou palestras.
Na tabela seguinte, é possível visualizar os meios em que são veiculados os
conhecimentos dos detentores, seja pessoa física ou jurídica:

Patrimônios Vivos Entrevistados Formas de Transmissão de Saberes e Técnicas


Arlindo dos Oito Baixos - falecido Realização de oficinas / apresentações
Associação Musical Euterpina de Oferecimento de disciplinas aos alunos / transmissão
Timbaúba oral, no cotidiano7·... (ver nota) / realização de
apresentações
Banda Musical Curica Oferecimento de disciplinas aos alunos / transmissão
oral, no cotidiano / realização de apresentações.
Banda Revoltosa - Sociedade Musical Oferecimento de disciplinas aos alunos/ transmissão
5 de Novembro oral, no cotidiano / realização de apresentações.
Caboclinhos Canindé Transmissão oral, no cotidiano / realização de
apresentações.
Caboclinho Sete Flechas Transmissão oral, no cotidiano / realização de
apresentações.
Camarão Realização de aulas, participações em apresentações.
Capa Bode - Sociedade Musical Oferecimento de disciplinas aos alunos/ transmissão
Euterpina Juvenil Nazarena oral, no cotidiano / realização de apresentações.
Confraria do Rosário Transmissão oral, no cotidiano / confecção de
calendários e vídeo documentário com informações
sobre o grupo.
Didi do Pagode Não apresenta condições de saúde para repassar seus
saberes
Dila Não apresenta condições de saúde para repassar seus
conhecimentos (teve outro AVC)
Galo Preto Realização de oficinas / realização de apresentações
Homem da Meia-Noite Ensino de música e dança, no cotidiano, para os
integrantes do grupo / realização de apresentações.
Índia Morena Realização de palestras, apresentações em
7
Como dito no decorrer do texto, consideramos como processo de transmissão de saber no cotidiano, o
aprendizado que ocorre no dia a dia dos mestres e dos grupos culturais. No caso dos maracatus, por exemplo, o
saberes não são transmitidos apenas em oficinas, cursos e aulas, mas principalmente durante os ensaios, através
da inserção de novos componentes, da preparação e da vivência para o carnaval, assim como nos terreiros, onde
são transmitidos os conhecimentos relacionados à dimensão religiosa. É principalmente no cotidiano que os
conhecimentos da cultura popular são perpetuados.

691

V V
espetáculos e eventos / possui o interesse em criar um
museu.
J. Borges Realização de palestras
José Costa Leite Atualmente, não está transmitindo seus
conhecimentos por falta de incentivos, apesar de ter
grande interesse.
Lia de Itamaracá Quando o Espaço Estrela de Lia estava ativo, a
cirandeira repassava seus saberes aos que visitavam o
local, através da oralidade.
Lula Vassoureiro Realização de oficinas e palestras
Maestro Ademir Atuação como professor de música
Maestro Duda Realização de oficinas, participação em
apresentações.
Maestro Nunes Não apresenta condições de saúde para repassar seus
conhecimentos (bastante debilitado devido ao
Alzheimer)
Manuel Eudócio Transmissão oral, no cotidiano, para seus filhos e
netos.
Maracatu de Baque Solto Estrela de Transmissão oral, no cotidiano / realização de
Ouro de Aliança apresentações.
Maracatu Estrela Brilhante de Transmissão oral, no cotidiano / realização de
Igarassu apresentações.
Maracatu Leão Coroado Transmissão oral, no cotidiano / realização de
apresentações.
Maria Amélia Transmissão oral, no cotidiano, para seu filho /
realização de apresentações.
Selma do Coco Transmissão oral, no cotidiano, para suas netas e
filhas / realização de apresentações.
Teatro Experimental de Arte Realização de aulas e ensaios / transmissão oral, no
cotidiano / realização de apresentações.
Zé do Carmo Atualmente, não está transmitindo seus
conhecimentos por falta de incentivos / apresenta o
interesse em criar um museu.
Zezinho de Tracunhaém Transmissão oral, no cotidiano, para seus filhos.

Tabela 3: Transmissão de saberes

CONCLUSÃO
Avaliando a trajetória da Lei de Registro do Patrimônio Vivo de Pernambuco,
consideramos que esta se firma reconhecendo e valorizando mestres, mestras e grupos que
detenham os conhecimentos e as técnicas necessárias para a produção e a preservação de
formas de expressão, saberes, ofícios e modos de fazer tradicionais. Além disso, enfatiza a
possibilidade de transmissão de conhecimentos, valores, técnicas e habilidades, objetivando a
proteção e a difusão do patrimônio imaterial pernambucano. Por conseguinte, proporciona e

692

V V
potencializa o reconhecimento de diversos bens, memórias, saberes e histórias presentes nas
culturas populares do estado.
Entretanto, constatamos alguns limites e desafios, relacionados de forma estreita tanto
com o contexto sócio cultural do estado, quanto com os limites teóricos e conceituais
presentes na própria noção de cultura popular, na direção que foi apontada por Acserald em
duas oportunidades (2009; 2013).
Pernambuco é repleto de expressões culturais populares, de forma que a quantidade de
patrimônios vivos no cotidiano da cultura é consideravelmente maior do que a possibilidade
que o Estado possui em registrá-los de acordo com os ditames da Lei do RPV. Um dado
significativo é o número de inscrições que a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco, a Fundarpe, responsável por gerenciar o RPV, vem recebendo desde as
primeiras edições do Concurso. No ano de 2013 foram setenta e sete instituições, mestras e
mestres inscritos, sendo vinte e três reconhecidos como inabilitados sob a justificativa de
ausência de documentação. Sendo assim, constatamos ao fim do processo uma média de
dezoito candidatos e candidatas para cada uma das três vagas. Em 2014, foram 57 inscrições
habilitadas, ou seja, 19 inscritos por vaga, todos eles com suas expectativas, apreensões e, não
raro, merecimento para se tornar um Patrimônio Vivo de Pernambuco.
Porém, tendo em vista o fato de que a política de valorização dos Patrimônios Vivos
faz parte de uma ação mais ampla de valorização dos bens patrimônio imaterial8, considera-se
que uma maneira de diminuir esta discrepância é a contemplação de uma multiplicidade de
expressões culturais, de forma que a diversidade presente na cultura pernambucana esteja
representada e a salvaguarda de cada um desses bens garantida. Assinalamos que, dentre os
cento de vinte Maracatus de Baque Solto existente do estado, vinculado a Associação
representativa, temos apenas um registrado como Patrimônio Vivo, além da ausência de
mestres do couro, da renda e mestres de comunidades tradicionais.
É importante ressaltar que estratégias de preservação do patrimônio cultural centradas
na figura de um mestre9 como transmissor de saber tem como um dos seus pressupostos

8
O documento de referência para as ações de reconhecimento e valorização dos saberes de mestres e mestras da
8
cultura popular é o Programa Tesouros Humanos Vivos , aprovado pela Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciências e Cultura (UNESCO) em 1993, a partir de uma proposta da República da Coréia,
notoriamente inspirada na legislação japonesa em vigor desde 1950 (principal referência para a proteção das
culturas orais e modos de fazer tradicionais).

9
Durante o Inventário Nacional de Referências Culturais da Ciranda de Pernambuco (YIANAGA, 2014), o
pesquisador Michel Yianaga elaborou um artigo a respeito do conceito de mestre, o que demonstrou que muitos

693

V V
teóricos o fato de que os detentores dos bens culturais não raro enfrentam dificuldades de
ordem econômica, como o acesso a matéria prima ou manutenção de um adequado local de
trabalho, que impossibilitam a continuidade de um determinado patrimônio cultural
(MENEZES, 2008). Assim, ao conceder um auxilio financeiro, se possibilitaria a
continuidade deste bem cultural, em especial pelo fortalecimento das condições para as ações
de transmissão de saber.
Neste sentido, foi possível ível perceber que grande parte dos mestres e mestras,
gozando de saúde e disposição, utilizam os recursos financeiros para impulsionar seus
trabalhos, estruturando seus ateliês, comprando equipamentos ou mesmo reformando suas
casas. Mas a grande maioria, já em idade avançada, vivenciam problemas de saúde que, por
vezes, os impossibilitam de dar continuidade às suas atividades. Assim, a verba a eles
destinada passa a se configurar como a principal renda, substituindo aquela que antes era
conseguida por meio do trabalho. Tal situação nos leva a pensar que, a política de
patrimonialização de mestres, como parte de uma ação maior de proteção do patrimônio
imaterial, seria de fato bem menos efetiva que as políticas focadas em bens culturais através
das ações de inventário, registro e salvaguarda, que atingem um grupo muito maior de
mestres, mestras e instituições. Como vimos, os grupos e agremiações, em sua maioria,
aplicam o benefício de um modo a proporcionar a continuidade de suas tradições culturais.
Sobre as ações de transmissão de saber, foi relatado amplamente pelos mestres, tanto a
falta de convite por parte do estado, quanto à dificuldade frente à burocracia necessária para a
participação em eventos e festivais quando a convocatória é feita via edital. Os argumentos
colocados apontaram para o desejo de desburocratização desses processos, uma vez que os
contemplados, por já serem identificados como Patrimônios Vivos, deveriam, em sua opinião,
gozar de instantânea legitimidade perante o Estado, não devendo passar por todo o processo
de comprovação de currículo, documentos e certidões.
Ainda sobre o critério de visibilidade, ratifica-se a importância dos pedidos de
certificações realizados por mestres, mestras e representantes dos grupos, seja através de um
diploma ou de uma “carteirinha”10. Pelo fato da política não apresentar grande visibilidade,
vários Patrimônios apontaram que não conseguem sequer convencer as pessoas acerca da
importância cultural que apresentam para o estado de Pernambuco. Importante frisar, de tal

sujeitos da cultura popular em Pernambuco não se apropriam da identidade de mestre, considerando este um
título dado ora pelo estado, ora por pesquisadores.
10
Margarida Pereira, a Índia Morena confeccionou por conta própria uma carteirinha com a logomarca do
Governo do Estado, seu nome, fotografia e os dizeres “Patrimônio Vivo de Pernambuco”.

694

V V
modo, que a garantia de diplomação encontra respaldo legal pelo Decreto 27.503 (2004), em
seu artigo 16.
Por fim, enfatizamos que como uma ação de política pública, os gestores que
implementam leis de registros de pessoas devem-se estar atentos aos riscos de longo prazo,
como o clientelismo, o assistencialismo e o acirramento de disputas dentro do campo da
cultura popular, muito ligadas a questão do privilégio, como atenta Menezes(2008). Destaca-
se, portanto, a necessidade de realização de estudos mais aprofundados para promoção de
avanços embasados na situação que realmente se encontra no campo, no sentido de promover
uma legítima expansão do alcance das ações do RPV, assim como aprofundar o debate e a
participação popular em um sentido mais amplo, o que nos direciona a uma efetiva
democratização das políticas públicas e real proteção e promoção do patrimônio cultural
imaterial.

BIBLIOGRAFIA
ACSERALD, Maria. O patrimônio vivo em questão: uma perspectiva comparada das
experiências de registros de pessoas e grupos culturais. in: SANDRONI, Carlos; Sandro
Guimarães de Salles (org.) Patrimônio cultural em discussão: novos desafios teóricos e
metodológicos. Editora Universitária da UFPE. Recife, 2013.

ACSERALD, Maria. Registro do Patrimônio Vivo: limites e possibilidades da


apropriação do conceito de cultura popular na gestão pública. Anais do 26ª Reunião
Brasileira de Antropologia. Porto Seguro, 2009. Disponível em:
www.abant.org.br/.../CD...trabalho/trabalhos/.../maria%20acselrad.pdf. Acesso em 29 de
janeiro de 2015.

CASTRO, Maria Laura Viveiros de. Patrimônio imaterial no Brasil / Maria Laura Viveiros
de Castro e Maria Cecília Londres Fonseca. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.

MENEZES, Rogério. Os sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois: a trajetória da


salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. Publicação do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, 2008 (reimpressão).

SILVA, Jaqueline de Oliveira; BARROS, Gabriel Navarro de Barros; Relatório: Registro do


Patrimônio Vivo de Pernambuco: 2004-2014. Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
de Pernambuco (Fundarpe). Recife, 2014.

YIANAGA, Michel. Mestre. Inventário Nacional de Referências Culturais da Ciranda.


Fundarpe. Recife. 2014.

695

V V
CULTURA QUILOMBOLA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA:
HISTÓRIA, LITERATURA E IDENTIDADE
Jaqueline Santana1

RESUMO: Este artigo apresenta os resultados parciais de pesquisa realizada no Campus VI


da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Caetité, Sertão Produtivo da Bahia. A ideia
inicial foi discutir rumos e caminhos para implementação da Lei 10639/03 e das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicorraciais no âmbito das escolas
quilombolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental desta região, pela sistematização de
dados relativos à história e à cultura dessas comunidades, assim como registrar sua história e
cultura para a construção material paradidático de apoio aos docentes, em forma de literatura
infanto-juvenil. Para tanto, foi realizada uma Pesquisa-ação junto a estudantes quilombolas
matriculados nos cursos de licenciatura e vinculados à pesquisa, para coleta e registro do
material a ser utilizado como base para a construção literária.

PALAVRAS-CHAVE: Territórios étnicos; Quilombos; Política Educacional; Educação


quilombola; Literatura infanto-juvenil.

INTRODUÇÃO
Introduzir o debate acerca da cultura quilombola no interior da escola é uma forma de
analisar o racismo e suas consequências, a partir das desigualdades sociais e econômicas entre
os grupos étnicos e geograficamente distribuídos nos diversos territórios de identidade, além
de aprofundar o debate sobre a participação do negro na sociedade local e baiana e suas
possibilidades, considerando o compromisso do poder público em combater tais
desigualdades, pois nessas comunidades o objetivo principal deve ser:
Entender o lugar como componente pedagógico, onde o conteúdo
não está nos livros que trazem, por vezes, o registro da história dos
quilombos em versões mal contadas, imprimindo no papel uma ordem de
palavras que se tornam visíveis apenas através da tinta. A história dos
quilombos tem de estar impressa – visível- não apenas nos livros, mas em
todos os lugares da escola, de forma a marcar o coração de quem está a se
educar com ternura e comprometimento e, desta vez não mais com marcas
de dor (NUNES. 2006, p.147).

No estado da Bahia, essa discussão deveria ser mais pungente, já que ele possui, em
seu território, centenas de comunidades remanescentes de quilombo, sendo que, dentre elas,
muitas já contam com o reconhecimento federal, garantido pela Fundação Palmares, enquanto
as demais aguardam o reconhecimento. No entanto, no imaginário da maior parte da

1
Pedagoga, Mestre em Gestão. Universidade do Estado da Bahia. E-mail: jsnsantos@uneb.br.
696

V V
população, essas pessoas seguem presas a estigmas que as associam a posições inferiores
dentro da sociedade, seja na literatura, seja nos livros didáticos.

Geralmente, quando personagens negros entram nas histórias,


aparecem vinculados à escravidão. As abordagens naturalizam o sofrimento
e reforçam a associação com a dor, as histórias tristes são mantenedoras da
marca da condição pela qual a humanidade negra passou. Cristalizar a
imagem do estado de escravo torna-se uma das formas mais eficazes de
violência simbólica. Reproduzi-la intensamente marca, numa única
referência, toda a população negra, naturalizando-se, assim, uma
inferiorizarão datada. (LIMA, 2001, p. 99).

Assim, repensar a escola e seu papel dentro das comunidades nas quais está inserida,
de modo a considerar suas especificidades, extremamente ricas, em cultura e história e
tradicionalmente excluídas do processo da educação formal, mais que uma forma de atender a
lei, mas, sobretudo, um instrumento de conquista de cidadania para uma grande parcela de
seus cidadãos.

Nesse sentido, a grande complicação está na falta de acervo específico e na dificuldade


de informações acerca de tais comunidades, o que o dificulta o fomento ao registro e à
valorização dessas culturas no âmbito escolar. No que tange aos aspectos metodológicos, para
a realização desta pesquisa, ocorreu uma Pesquisa-ação, no qual, segundo Thiollent (1999),
há três aspectos a serem atingidos: resolução de problemas, tomada de consciência e a
produção de conhecimento. O autor afirma que esse é
(...) um tipo de investigação social com base empírica que é
concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a
resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de
modo cooperativo ou participativo. (THIOLLENT, 1999, p.15).

Esse método, ao considerar o pesquisador como um ser histórico e, portanto,


socialmente condicionado, se caracteriza pela sua participação e interferência no contexto
pesquisado (THIOLLENT, 1992). Nesse âmbito, a ação realizada constituiu-se na realização
de oficinas para orientação, planejamento e avaliação de ações voltadas para o registro e a
sistematização da história e cultura das comunidades, mobilizando os estudantes
universitários quilombolas vinculados às linhas de pesquisa, do mesmo modo que envolveu
docentes das escolas quilombolas das comunidades, na construção das ilustrações dos livros.

O campo de estudo, quatro comunidades quilombolas da região, Lagoa do Rocha


(município Lagoa Real), Gurunga (município Igaporã) , Santo Inácio (município Ibiassucê) e

697

V V
Malhada de Maniaçu (município Caetité), também são as localidades de origem dos
estudantes envolvidos na coleta dos dados, os sujeitos da pesquisa.

EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E A LEI 10639/03 NO ÂMBITO DAS


COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO
Face a estudos e indicadores que têm demonstrado a forma como o racismo é
desenvolvido no Brasil, de forma velada, porém muito eficaz nos resultados produzidos, nas
diferenças sociais e econômicas entre negros e brancos (diferentemente do resto do mundo
onde a discriminação é aberta e, logo, de fácil identificação) só agora se começa a
desconstruir o conceito de democracia racial brasileira, tão propagado em todo o mundo desde
o século passado.
Gomes (2008) contesta esse fato, afirmando que o estímulo à miscigenação e o
conceito de democracia racial teriam sido instrumentos de cooptação e alienação da
população afrodescendente, apoiados pelo Estado e que serviram para camuflar o racismo,
presente em todas as esferas da sociedade e extremamente visível no resultado da distribuição
de renda. Para essa autora,
(...) do ponto de vista cultural, a diversidade pode ser entendida
como a construção histórica, cultural e social das diferenças. A construção
das diferenças ultrapassa as características biológicas, observáveis a olho nu.
As diferenças são também construídas pelos sujeitos ao longo do processo
histórico e cultural, nos processos de adaptação do homem e da mulher ao
meio social e no contexto das relações de poder. (GOMES, 2008, p. 17).

Um dado que comprova essa afirmação é que, em contrapartida à difusão do conceito


de democracia racial, não foram propostas nem implantadas, desde o final da escravidão, em
1889, até o final da década de 1990, políticas públicas efetivas direcionadas a uma inclusão de
negros e quilombolas. Ao contrário, os dados só demonstram que, de fato, a roupagem que
antes era escravidão sofreu apenas uma pequena mutação conceitual que, de forma alguma,
representa conquistas sociais para as populações afrodescendentes. Nesse contexto, fica
explicitada a influência ideológica que o estereótipo criado historicamente para o negro tem
sobre a sua vida, no que tange ao acesso aos bens e serviços, sobretudo pela exclusão que o
sistema reproduz, além da autorrejeição.

No entanto, movimentos oriundos do seio das entidades negras têm denunciado tais
contradições ao longo da história, em diversos espaços da sociedade. A princípio, as
instituições artísticas e culturais foram as pioneiras nessa luta. Nas comunidades do campo, as
desigualdades se reproduzem de forma contundente, pois a concentração da posse da maior

698

V V
parte das terras e, consequentemente, da renda, nas mãos dos latifundiários, não possibilitam a
mobilidade social da população.
Tais fatores são agravados pela dificuldade de acesso à educação e à dificuldade de
agrupamento desses povos, no que tange à criação de novas possibilidades de geração de
trabalho e renda, a exemplo de associações e cooperativas agrícolas, por falta de
conhecimento e apoio institucional, assim como o total abandono do Estado, em relação à
oferta de serviços básicos essenciais, em que são negados seus direitos “à organização social,
diretamente relacionado à herança, baseada no parentesco; à história, baseada na
reciprocidade e na memória coletiva; e ao fenótipo, como um princípio gerador de
identificação” (LEITE, 2000, p. 345).
A discussão sobre quilombos e seus moradores ainda é muito incipiente em nosso
país, sobretudo pela difusão da ideia, durante séculos, de que tais comunidades consistiam em
grupamentos criminosos (SCHIMITT, TURATTI e CARVALHO, 2002). Recentemente, o
Decreto Federal nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos, também explicita a questão da identidade
como fundamental para definir tais comunidades.
O quilombo, então, na atualidade, significa (...), sobretudo, um
direito a ser reconhecido e não propriamente e apenas um passado a ser
rememorado. Inaugura uma espécie de demanda, ou nova pauta na política
nacional: afrodescendentes, partidos políticos, cientistas e militantes são
chamados a definir o que vem a ser o quilombo e quem são os quilombolas.
(LEITE, 2000, p. 335).

Nesse ínterim, é possível perceber, claramente, a importância da identidade e da


cultura no processo de resistência e luta por liberdade, assumido e realizado por negros e
negras, no Brasil escravocrata, sobretudo porque as ideias e teorias difundidas sobre a
inferioridade da raça negra em relação à branca favoreceram a manutenção e a expansão do
tráfico de negros, no período, e, na posterioridade, serviram (e ainda servem) como alicerce
para a difusão de ideologias racistas que perpetuam a opressão dessas populações em relação
ao modelo dominante, eurocêntrico.
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra
não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos
alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao
receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram
suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence
somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que os segmentos
étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem,
699

V V
contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e
social e da identidade nacional. (MUNANGA, 2008, p.12).
Nesse sentido, é necessário refletir acerca do inevitável processo de aculturação a ser
sofrido nesse contexto, pois os estudantes quilombolas, ao saírem de suas comunidades para
buscar possibilidades profissionais e acadêmicas e fugir da pobreza que lhes é imposta há
séculos, deparam-se com novas formas de vida, que interferem na construção de sua
identidade e do sentimento de pertença à comunidade de origem. Hall (2005) salienta que a
identidade do ser humano contemporâneo tem sido fragmentada e constituída de outras várias
identidades, ao contrário de outrora, quando esta era unificada e estanque. Para este autor,
a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é
uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, cada
uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.
(HALL, 2005, p. 13).

O que está posto aqui é, pois, a necessidade de um resgate sólido e consciente da


história e cultura das comunidades quilombolas, de modo a contribuir para a solidificação da
pertença dos seus membros, ainda que migrem para novos espaços, além de combater, de
forma lúdica, o racismo ainda reinante.

Nesse sentido, a identidade construída dentro da comunidade é fator preponderante na


luta contra o racismo vivenciado fora dela. Segundo Munanga (1994, p. 177-8), identidade é
uma realidade sempre em todas as sociedades humanas. Qualquer
grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns
aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposições ao
alheio. A definição de si (auto-definição) e a definição de outros (identidade
absoluta) têm funções conhecidas: é a defesa da unicidade do grupo, a
proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas
por interesses econômicos, políticos, psicológicos. (MUNANGA, 1994, p.
177-8).
A Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura
afrobrasileira e africana em todo o sistema de educação básica, cria novas demandas no
campo educacional brasileiro, no que se refere à discussão da participação da população
afrodescendente na construção da história e cultura do país.
Mais do que propor um simples estudo da história do Brasil, essa determinação legal
tem como finalidade induzir uma releitura dessa mesma história, a partir da ressignificação de
fatos e valores, sobretudo em relação ao papel de negros e negras, expatriados e escravizados

700

V V
pelo colonizador português e destituídos totalmente de quaisquer direitos sociais, culturais e
econômicos.
No entanto, tais conteúdos têm sido renunciados ou abordados de forma inadequada e
folclorizada, por sua imensa carga de equívocos conceituais, em grande parte das escolas,
sobretudo em datas como o 13 de maio (Abolição da Escravatura) e o 20 de novembro (Dia
dedicado à Consciência Negra). Para Gomes (2005) a escola carece de princípios éticos que
orientem a prática pedagógica e sua relação com a questão racial na escola e na sala de aula.
O racismo aflora de numerosas formas no sistema educacional, de
maneira consciente ou oculta. Assim, por exemplo, podem ser detectadas
manifestações de racismo nos livros texto de ciências sociais, história,
geografia, literatura, etc.; especialmente por meio dos silêncios com relação
a direitos e características de comunidades, etnias e povos minoritários e sem
poder. (TORRES SANTOMÉ, 1998, p. 137).

Nessa perspectiva, a criação da Lei 10.639/03 oportuniza a discussão sistemática e


interdisciplinar dessa temática, o que pode favorecer uma maior visibilidade do negro e, por
conseguinte, uma abordagem mais justa acerca de seu papel na construção do país. Todavia, é
lamentável perceber que, mesmo havendo a obrigatoriedade, as questões étnicorraciais ainda
são tratadas com descaso e receio. Tal situação deve-se, principalmente, é o fato de muitos
educadores não se sentirem preparados, devido à falta de oportunidade ou à resistência.
Assim, aos educadores militantes da causa é necessário persistir. E persistir significa
assumir um compromisso político com a causa dos oprimidos, que consiste no
ponto crítico do processo educativo. O educador que queira se
colocar na perspectiva da ‘emergente classe trabalhadora’ deve, pois, romper
com a velha concepção de cultura (a enciclopédico-burguesa). Isto implica
desobedecer, quebrar as regras estabelecidas, ousar comer o fruto da “árvore
da ciência do bem e do mal”, negando, assim, a inocência paradisíaca que
reina na escola capitalista. (SAVIANI, 2003, p. 45).

Tal discussão, aqui delimitada no âmbito das comunidades remanescentes de


quilombos do Alto Sertão baiano, tem como finalidade o cumprimento das determinações
legais contidas na Lei 10.639/03, assim como na inclusão dessas comunidades, no que
concerne ao acesso ao ensino de qualidade, a partir da discussão interdisciplinar e
contextualizada da realidade vivenciada em cada território e ampliada para a construção dos
conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade.
O que se espera é contribuir para que “o processo educativo formal contemple a
perspectiva de dar sentido aos conteúdos, à aprendizagem, ao conhecimento” (NUNES, 2008,
p. 141), resgatando e valorizando uma história que foi negada a toda população, sobretudo se

701

V V
considerar-se o processo de institucionalização do racismo na região, tendo o produto final
como instrumento de auxílio aos educadores para a quebra de estereótipos e reconstrução dos
conceitos acerca dos povos quilombolas.

HISTÓRIAS QUILOMBOLAS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA: A HISTÓRIA


DE UM REGISTRO
Resgatar histórias de comunidades tradicionais é uma prerrogativa contida no escopo
da Lei 10639/03, por meio da determinação do resgate e da valorização da cultura
afrobrasileira e da luta dos negros e negras na História do Brasil. Para tanto, é necessário que,
nessas histórias, apareçam personagens negros “em um contexto diferenciado: de maneira
positiva, como protagonista, pertencente a uma família” (SOUSA, 2001, p.196).
Nesse sentido, a primeira etapa da pesquisa aqui apresentada, determinada pelo
objetivo de registrar a história das comunidades quilombolas da região, ocorreu mediante a
realização de três ações distintas e complementares:

A articulação dos sujeitos, por meio da identificação dos quilombolas matriculados


nos diversos cursos ofertados pelo Campus, pela aproximação com estes, mediante convites a
atividades diversas ligadas ao tema e posterior filiação à Linha de Pesquisa;
Formação continuada, no que tange à questão da educação antirracista e às políticas
afirmativas na educação, realizada nas reuniões da Linha de Pesquisa, em diversos eventos
acadêmicos e nas aulas do componente curricular “Cultura Africana e Indígena”; e
A aplicação do instrumento de pesquisa, um roteiro de entrevista semiestruturado,
por esses sujeitos, nas suas respectivas comunidades.
Assim posto e realizado, foi possível atingir ao segundo objetivo proposto: organizar
um acervo com informações referentes à cultura, modo de vida e manifestações culturais de
tais comunidades e mapear as peculiaridades de cada uma.
Nesse contexto, propiciar aos sujeitos assistentes de pesquisa uma oportunidade de
resgatar sua história, seus valores e sua cultura, por meio de um mergulho no seu espaço, no
espaço dos ancestrais, consistiu numa oportunidade de provocar novas reflexões acerca de sua
identidade e de suas possibilidades de ação política e social, dentro e fora do quilombo,
durante a formação acadêmica e na posteridade, como docente.
A produção do saber é social, ocorre no interior das relações sociais.
A elaboração do saber implica expressar de forma elaborada o saber que
surge da prática social. Essa expressão elaborada supõe o domínio dos
instrumentos de elaboração e sistematização. Dai a importância da escola: se
a escola não permite o acesso a esses instrumentos , os trabalhadores ficam
bloqueados e impedidos de ascender ao nível da elaboração do saber,
702

V V
embora continuem, pela via da atividade prática real, a contribuir para a
produção do saber. (SAVIANI, 2003, p. 77).

A escola, sendo uma instituição formadora e que comungue dos ideais da comunidade
a que serve, para cumprir seu papel, precisa assumir o compromisso de formar cidadãos. Do
mesmo modo, nessa ação, deve buscar contemplar os interesses e necessidades dos
educandos, utilizando diversas modalidades textuais e diversificando seus procedimentos, de
forma a tornar a ação leitora significativa e que instrumentalize os beneficiados com novas
perspectivas de mundo, o que constitui uma relação dialética onde o sujeito, ao mesmo tempo
em que assimila o mundo, age para transformar e intervir no meio em que vive
(CAVALLEIRO, 2013).
Em terceiro lugar, foi determinado como objetivo desta pesquisa a adaptação dos
dados coletados na linguagem literária, voltada para o público infantil.
Esta meta, que atende às determinações contidas na Lei 10639/03 e nas Diretrizes
Curriculares para a Educação das Relações Étnicorraciais, busca explicitar “a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do
Brasil” (BRASIL, 2003).
A linguagem literária, nesse ínterim, foi escolhida por se tratar de um importante
instrumento formativo, cujo poder educativo atinge ao público geral, de forma lúdica e
informativa, ultrapassando os limites meramente didáticos explorados tradicionalmente pela
escola fundamental. Do mesmo modo, a participação direta da comunidade, seja na coleta dos
dados, no processo de construção dos textos, nas revisões de conteúdo dos textos em
construções e, finalmente, na ilustração dos textos, foi imprescindível para legitimar a
produção a ser publicada.
O processo de tratamento dos dados, nesse sentido, foi de uma intensidade muito
grande, pois o desafio de relatar uma história alheia só pôde ser superado mediante a
colaboração com os sujeitos coparticipantes da pesquisa. Nesse sentido, o processo da escrita,
muitas vezes dificultada pela dúvida em relação às peculiaridades de cada quilombo, só pôde
ser concluída por consequência da interação com os pesquisadores. Nesse sentido, sua ajuda,
ao esclarecer tais elementos e fornecendo novas informações, contribuíram fortemente para a
fidedignidade das histórias construídas e legitimação junto à comunidade retratada.
O quarto e último objetivo desta pesquisa, que é a publicação dos textos adaptados em
forma de material paradidático voltado para estudantes de classes de ensino fundamental I, é o
que almejamos para o futuro próximo.
703

V V
A finalidade é, no primeiro momento, fomentar o uso da literatura como instrumento
de construção identitária nas comunidades relatadas, pois em comunidades quilombolas, o uso
da literatura ainda é restrito, ao mesmo tempo em que o livro didático, torna-se, nesses
espaços, muitas vezes, único recurso de leitura.
A outra meta ultrapassa os limites das comunidades e pretende realizar um processo de
reparação social e política necessária na região: o reconhecimento e a valorização da história e
cultura quilombolas em outros espaços, ainda permeados pelo racismo, pois “os negros têm
sido desqualificados e os lugares em que habitam são ignorados pelo poder público ou mesmo
questionados por outros grupos recém-chegados, com maior poder e legitimidade junto ao
estado” (LOVELL, 1991, apud LEITE, 2000, p.334).
Esse processo acontecerá por meio da divulgação de tais histórias junto aos estudantes,
professores e técnicos das escolas não quilombolas, tendo em vista a desconstrução de
estereótipos e do estímulo à reflexões acerca do papel dessas pessoas na construção da
sociedade local, seja no passado por meio do trabalho de seus antepassados, seja atualmente
pela resistência que mantém.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ausência de material literário voltado para crianças referente à vida dos quilombos e
dos quilombolas no Brasil demanda urgentemente a construção de um acervo que reflita o
modo de vida e a cultura de tais comunidades, respeitando-se as diferenças regionais e
conservando sua característica identitária e étnicorracial.
Nesse sentido, coletar dados referentes às comunidades remanescentes de quilombos
da Região denominada Alto Sertão da Bahia consiste numa atitude cuja importância vai para
além do registro acadêmico. Do mesmo modo, construir material paradidático que auxilie na
valorização de sua cultura e história consiste num importante passo para ampliação do
conhecimento da população acerca de sua própria realidade, pela via da literatura.
Nesse sentido, cabe salientar que, nesse processo, o educador deve estar atento para os
sujeitos que integram a população atendida, para que possa contemplar, nas suas abordagens,
a história de seus antepassados.
Seu papel, nesse ínterim, é o de protagonizar o reconhecimento do direito de um povo
em contraposição à alienação promovida; quando se estimula o estudo das relações étnicas,
das modernas formas de comunicação, das diferentes manifestações culturais e religiosas, do
multiculturalismo, das inúmeras revelações de violência simbólica e de exclusão social que
permeiam os cenários sociais, políticos e culturais.
704

V V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei 10639. Brasília, MEC: 2003.

CAVALLEIRO, Eliane. Veredas das noites sem fim. São Paulo: EDU - UNB, 2013.
GOMES, Nilma Lino. Indagações sobre o Currículo: Diversidade e Currículo. Brasília: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008.

_______. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve
discussão. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n° 10.639/03. Brasília,
MEC, 2005.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu Silva e


Guaracira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
LEITE, Ilka B. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Disponível em
<http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_333-354.pdf>. Acesso em 21 de jan.
2015.

LIMA. Heloísa Pires. Personagens Negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil. In:
MUNANGA, Kabenguele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª. ed. Brasília: MEC/SECAD,
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MUNANGA, Kabengele. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos


antirracistas no Brasil. In: SPINK, M. J. P. (org.). A cidadania em construção: uma reflexão
transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994.
____________ (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª. ed. Brasília: MEC/SECAD, 2008.
NUNES, Georgina Helena Lima. Educação Quilombola. In: Orientações e Ações para a Educação
das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-crítica. 8. ed. São Paulo: Autores Associados, 2003.

SCHMITT, Alessandra; TURATTI , Maria Cecília; CARVALHO, Maria Celina. A atualização do


conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s1414-753X2002000100008&script=sci_arttext>. Acesso em
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SOUSA, Andreia Lisboa de. Personagens negros na literatura infanto-juvenil: rompendo estereótipos.
In: Racismo e antirracismo na educação: repensando nossa história. 2. ed. São Paulo: Summus,
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THIOLLENT, Michel Jean Marie. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez. 1999.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e Interdisciplinaridade: o Currículo Integrado. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1998.

705

V V
PARA ALÉM DE PEDRA E CAL:
AS REFORMULAÇÕES DO CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL A PARTIR
DOS DEBATES DO CONSELHO FEDERAL DE CULTURA
(1966-1974)
Jessica Suzano Luzes1

RESUMO: O presente artigo apresenta as reformulações do conceito de patrimônio cultural


proposta pelo Conselho Federal de Cultura, em especial, pelos intelectuais da Câmara do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CPHAN) possíveis de serem apreendidos a partir
das publicações da Revista Cultura. Os debates dos conselheiros remontam as experiências
anteriores como o movimento modernista de 1922, que foi incorporado nas políticas culturais
da Era Vargas, e particularmente efetivadas no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN).

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio, Identidade Nacional e Conselho Federal de Cultura.

INTRODUÇÃO
O artigo tem como objetivo apresentar a discussão dos intelectuais do Conselho
Federal de Cultura sobre a preservação do patrimônio nacional possível de ser estudada a
partir dos artigos dos mesmos publicados na Revista Cultura. Esse era o informativo oficial
do CFC, responsável por divulgar as diretrizes, legislações, pareceres de solicitações e
resumos de eventos organizados pelo Conselho, todos referentes ao campo cultural.
O Conselho Federal de Cultura (CFC) foi instituído pelo Decreto n° 74, de 21 de
novembro de 1966, dentre as suas principais competências estavam a formulação da política
nacional, no limite de suas atribuições, e a cooperação para a defesa e conservação do
patrimônio histórico e artístico nacional.
As solicitações de auxílio eram distribuídas entre quatro grandes áreas de
conhecimento, organizadas em câmaras: artes, letras, ciências humanas, patrimônio histórico
e artístico nacional, sendo que também havia uma comissão de legislação e normas exercendo
o papel de uma quinta câmara. Inicialmente havia vinte e quatro membros designados pelo
presidente da república, distribuídos por tais câmaras.
Na leitura de Maia (2010: 180) a política do conselho incorporou o projeto modernista
de proteção do patrimônio histórico e artístico brasileiro, cujas referências são o anteprojeto
de Mário de Andrade que fora, posteriormente, redefinido por Rodrigo de Mello Franco e

1
Atualmente cursa o mestrando acadêmico em História, Política e Bens Culturais do CPDOC - PPHPBC da
Fundação Getúlio Vargas. E-mail: jessicaluzes@fgvmail.br.
706

V V
Andrade. Este último foi fundador e diretor do IPHAN desde 1937, além disso, em 1946 foi o
primeiro presidente da DPHAN. Serviço, Departamento ou Instituto são variações
administrativas da área considerada a experiência institucional pública mais bem sucedida no
setor cultural. Rodrigo Melo Franco dirigiu tal serviço de 1937 a 1966 quando se aposenta do
cargo, assumindo em 1967 a presidência da Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (CPHAN).
Rodrigo de M. F. de Andrade instituiu a prática de tombamento dos patrimônios tidos
de Pedra e Cal, no antigo Sphan, efetiva intervenção administrativa, amparada em legislação
específica. Verificamos que esta concepção de patrimônio foi atualizada nas discussões dos
conselheiros publicadas na Revista Cultura, nas quais identificamos a incorporação de outros
elementos como significativos da identidade nacional, e assim também, dignas de serem
resguardas pelo do Estado.
Para iniciar a compreensão do tema em questão selecionamos uma literatura
especializada na área do patrimônio2, destacando as duas perspectivas de representação da
identidade nacional que dividiram opiniões a respeito do que deveria ser preservado pelo
Estado. A primeira remonta ao Brasil Império, em especial ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e suas filiais, lugares de resguardo da cultura luso-brasileira, e a segunda aos anos
iniciais da República, em especial a vertente ufanista do modernismo de 19223, que
valorizava a cultura popular. Estas perspectivas encontram-se de diferentes formas na Era
Vargas (1930-1945), período marcado pelos primeiros investimentos no setor cultural, no
qual foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
Mesmo estando num momento autoritário, o Sphan conseguiu reunir intelectuais de
variadas perspectivas políticas, estéticas, dentre eles Mário de Andrade, expoente modernista,
que elaborou um anteprojeto a pedido do Ministro Gustavo Capanema, de caráter inovador
pois considerava que as políticas oficiais de cultura do Sphan deveriam resguardar o folclore,

2
Sobre as políticas de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Ver: GONÇALVES, José Reginaldo
Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ;
IPHAN, 1996; BOMENY, Helena. (Org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro:
FGV/EDUSF, 2001; FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. 2ª edição, Rio de Janeiro: Editora UFRJ; MINC- IPHAN, 2005; OLIVEIRA,
Lucia Lippi de. Cultura é Patrimônio: um guia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008; e CHUVA, Márcia R.R. Os
arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-
1940). Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2009.
3
Em 1920, diferentes grupos modernistas, no Brasil, tinham uma visão crítica do Brasil europeizado, tendendo a
ressaltar os traços primitivos de nossa cultura até então entendidos como sinais de atraso. A partir de uma
postura mais radical, a primeira fase do movimento modernista, denominado, fase artística “Pau-Brasil”, houve a
valorização do primitivo, numa proposta de ‘redescoberta do Brasil’, destacando-se as pinturas de Tarsila do
Amaral, em especial Abaporu de 1928, marcada por cores e temas acentuadamente tropicais e brasileiros, com
exuberância da fauna e flora brasileira, inaugurando o movimento antropofágico nas artes plásticas.
707

V V
e também Rodrigo de Mello Franco e Andrade que se empenhou na institucionalização do
tombamento, especialmente de monumentos e objetos de arte colonial.

OS ELEMENTOS REPRESENTATIVOS DA CULTURA NACIONAL


Lúcia de Oliveira Lippi (2008: 114) revelou que a idéia de patrimônio remente à
herança, mas alertou estar vinculado a histórica, memória e identidade, e assim os conteúdos
são definidos e alterados no tempo e no espaço. Nesse sentido, a noção de patrimônio pode
ser entendida como um processo de colecionar objetos, mantendo-os distantes das atividades
econômicas, resguardados pela administração estatal ou pelos deuses. Os significados destes
objetos variam conforme os mitos e tradições.
Os patrimônios históricos e artísticos possuem, nas modernas sociedades ocidentais, “a
função de representar simbolicamente a identidade e a memória de uma nação”. E assim, o
pertencimento a uma comunidade nacional é uma construção social que perpassa pela noção
de propriedade sobre um conjunto de bens: relíquias, monumentos, cidades históricas, entre
outros (OLIVEIRA, 2008:114).
As pesquisas divergem sobre a efetiva intervenção da esfera pública na proteção de
patrimônios históricos e artísticos no Brasil somente a partir da Era Vargas. Oliveira (2008:
114) revelou que antes da década de 1930, já havia iniciativas de proteção de determinados
espaços, predominantemente construções do período colonial, que eram consideradas como
genuinamente representativas da identidade nacional, a exemplo das experiências de
inspetorias estaduais de monumentos históricos a fim de preservar o passado colonial
brasileiro nas cidades de Minas Gerais (1926), na Bahia (1927) e em Pernambuco (1928).
Na perspectiva de José Ricardo Oriá Fernandes (2010: 6), os institutos históricos
podem até ser compreendidos como percursores das políticas patrimoniais, visto que foram os
primeiros locais onde se discutiam questões de memória e proteção dos patrimônios
históricos, assinalando o empenho dos sócios regionais em enaltecer as características de cada
região no projeto nacional.
No período do final do século XIX e primeiras décadas do século XX, foram
realizadas remodelações de algumas cidades como Salvador, Recife, São Paulo e Rio de
Janeiro, que acarretou no desaparecimento de algumas antigas edificações coloniais. Nas
décadas de 1917 e 1925, a discussão sobre a preservação da memória nacional havia chegado
ao Parlamento, e foram apresentadas proposições legislativas, no âmbito da câmara dos
deputados, com o objetivo de se criar órgãos para a proteção do patrimônio histórico nacional.

708

V V
A proposta pioneira de defesa de bens culturais teria partido do Instituto Histórico e
Geográfico da Bahia (IHGB), através de seu sócio Wanderley Pinho, em 1917, assinalando
que os institutos tiveram em todo o país a função pioneira de resguardar a memória nacional.
Esta não previa proteção legal do Estado, mas a preservação ficaria a cargo de uma comissão
formada por 11 sócios do instituto histórico baiano. Tal comissão ficaria responsável por
apresentar um relatório anual de seu trabalho e organizar o programa de ação, e no prazo de
um ano, apresentar um catálogo sobre tudo o que constituía o patrimônio histórico-artístico da
Bahia. Mesmo não havendo a efetivação do projeto, destacamos a iniciativa de proteção de
bens culturais em instituições privadas como os institutos históricos (FERNANDES, 2010: 7-
8).
Vale ressaltar que a arte colonial por um grupo de neocoloniais que incluíam as
representantes das cidades de São Paulo, como Ricardo Severo, “arquiteto português”,
cunhado de Santos Dumont; e no Rio de Janeiro, José Mariano Filho. Este grupo tinha como
perfil a descoberta e o enaltecimento da tradição colonial portuguesa, que poderia ser copiado,
e utilizado como decoração. Em oposição4, os modernos desejavam releitura do colonial,
marcada pelo espírito nacional, com soluções funcionais (OLIVEIRA, 2008: 116).
Outros autores entendem que a intervenção da esfera pública em instituições de
proteção ao patrimônio ocorrera na Era Vargas, com a criação da Inspetoria de Monumentos
Nacionais (IMN), ligada ao Museu Histórico Nacional (MHN), em 1934, sob a liderança de
Gustavo Barroso5. A inspetoria dedicou-se, principalmente, à restauração de monumentos da
cidade de Outo Preto, estimada desde 1933 como a principal resquício do passado nacional a
ser resguardado (OLIVEIRA, 2008: 114). Posteriormente, em 1936, esta foi desativada, e
passou-se a responsabilidade do patrimônio nacional para o Sphan.

FORMAÇÃO DO SERVIÇO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO


NACIONAL (SPHAN): MÁRIO DE ANDRADE E RODRIGO DE MELO FRANCO E
ANDRADE
No ano de 1936, temos a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), uma agência federal de proteção ao patrimônio, período em que a

4
Oliveira (2008: 117) revelou que a competição entre neocoloniais e modernistas também passava por um
conflito político-ideológico dos anos 1930, visto que os neocoloniais eram em sua maioria simpáticos ao
integralismo enquanto os modernos aproximavam-se do movimento comunista.
5
“O então diretor do MHN, Gustavo Barroso, foi classificado por (Miceli 9, 1979) entre os ‘intelectuais
reacionários’, pertencente aos ‘grupos católicos’, constituídos por prestigiados romancistas e figuras políticas e
culturais já reconhecidas antes de 1930. Advindos de famílias tradicionais do interior, inseriam-se nos círculos
dirigentes do Rio de Janeiro, com acesso assegurado às instituições políticas das oligarquias e aos mais altos
escalões da administração central, além de terem sido eleitos para a Academia Brasileira de Letras bastante
jovens” (CHUVA, 2009: 127).
709

V V
Educação e Cultura tornam-se responsabilidade do governo federal. É necessário ressaltar tal
órgão tem como referência Rodrigo de Mello Franco e Andrade, primeiro diretor do Sphan,
mas que elaborou o conceito de patrimônio em parceria de outros intelectuais como Alceu
Amoroso Lima, Lúcio Costa, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de
Holanda, entre outros futuros membros do CFC: Afonso Arinos, Arthur Cesar Reis, Augusto
Meyer, Gilberto Freyre e Renato Soeiro (MAIA, 2010: 122).
A primeira fase do Sphan6, denominada de fase heroica, referia-se à Rodrigo de Melo
Franco de Andrade, no período de 1937 até final da década de 19707. José Reginaldo
Gonçalves (2002) revelou que as narrativas produzidas pelos funcionários do Sphan, em
especial do diretor Rodrigo de M. F. de Andrade, mostravam a elaboração de políticas
públicas direcionadas ao patrimônio histórico e artístico nacional fundamentado na retórica da
perda, na qual a modernidade, com sua rápida urbanização, inevitavelmente acarretaria na
perda de elementos fundamentais para a identidade nacional, que por isso deveriam ser
preservados.
Ao enfocarmos a institucionalização da proteção do patrimônio, observamos que
objetivo inicial era a proteção dos monumentos e das obras de arte nacionais, que incluía fazer
o levantamento de obras de pintura, antigas e modernas, de valor excepcional existentes em
poder dos particulares, no Rio de Janeiro. Contudo, as experiências iniciais demandaram de
uma atuação mais abrangente, que envolvesse edificações e outras obras de arte que
alcançassem todo o território nacional. Nesse momento, Mário de Andrade, mineiro,
modernista, crítico de arte, estudioso do folclore, da música, que já tinha experiência no
Departamento de Cultura da prefeitura de São Paulo, iniciativa considerada pioneira na área
cultural, foi convidado pelo Ministro Gustavo Capanema, para elaborar o anteprojeto sobre o
assunto.
Tratava-se de um anteprojeto para a criação de um órgão destinado à preservação do
patrimônio histórico e artístico nacional, que fora, posteriormente, redefinido por Rodrigo de
Mello Franco e Andrade. Segundo Fonseca (2005: 97), esta inciativa se diferenciava às de

6
Atentamos a variada denominação referente a tal órgão. De 1946 a 1970 mudou para Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (DPHAN); no período seguinte, 1970 a 1979, recebeu o nome de Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); entre 1979 a 1990, tornou-se Secretaria (SPHAN) que em
1990 foi extinta por decreto, e passou a funcionar como Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC) até
1994; deste ano em diante, voltou a ser Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
7
E num segundo momento, tem-se a narrativa de Aloísio Magalhães que mostrava o processo de renovação
ideológica e institucional da política oficial de patrimônio cultural sob sua liderança. Cada narrativa apresentou
distintas maneiras de definir o patrimônio, havendo preocupações e atividades específicas, implicando assim em
diferentes formas de atuação das instituições. Desta maneira, a compreensão das narrativas, algumas vezes
opostas, evidenciou diferentes estratégias de atuação no cenário cultural (GONÇALVES, 2002: 37).
710

V V
outros países, pois as experiências europeias contemplavam apenas tipos de bens
isoladamente (museus, monumentos, arte popular etc.), enquanto que, no Brasil, houve o
empenho na construção de uma única instituição para proteger todo o universo de bens
culturais. E em segundo lugar, os intelectuais recrutados identificavam-se com a concepção
passadista e conservadora, enquanto no Brasil, os intelectuais engajaram-se num projeto de
proteção do patrimônio a partir de posturas claramente inovadoras.
Mário de Andrade defendia que era necessário um exame minucioso da diversidade
artística existente no país, propondo a realização de monografias que serviriam de subsídios
para a composição de uma síntese da cultura nacional, posta em prática por ele quando
integrava o Departamento de Cultura. Tratava-se de monografias voltadas para a “etnografia
popular”, na qual encontraríamos costumes e usanças e tradições folclóricas, inerentes à
própria vida imediata, ativa e intrínseca do país (CHUVA, 2009: 160). Esta prática se
assemelhava a constituída no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no século XIX, em
que buscava forjar a identidade nacional a partir de estudos etnográficos, históricos,
geográficos, e sobretudo pela síntese dos estudos apresentados pelos institutos históricos
sobre as diferentes realidades regionais. Mas, as produções do IHGB tinham caráter
eminentemente elitista, enquadrando os tipos humanos não-ocidentes, indígenas e negros, no
início da escala evolutiva, e por isto inferiores aos brancos, e preocupados em divulgar a
trajetória de vida dos grandes nomes regionais e nacionais.
Contudo, tanto na proposta do IHGB quanto no projeto modernista de Mário de
Andrade encontramos a necessidade de resgatar a unidade cultural, fazendo questão de se
opor a qualquer espécie de regionalismo (ANDRADE, 1981: 159 apud CHUVA, 2009: 159).
Na leitura de Mário de Andrade, o modernismo tinha como objetivo aglutinar os elementos
constituintes da brasilidade e iniciar um processo de constituição da entidade nacional,
formando uma realidade uma e indivisa. Era uma proposta de política de preservação, no seu
projeto de ação estatizada, que visava resguardar toda a diversidade e pluralidade possíveis,
mediados por intelectuais conhecedores do legado da cultura da nação. E assim, tem-se
expressão de que a identidade nacional seria um somatório de vários “Brasis”, uma síntese de
variados costumes e formas de expressão, verificado nas suas preocupações sobre o folclore
(Idem: 160).
Isto posto, verifica-se que no anteprojeto de Mário de Andrade, o conceito de
patrimônio artístico nacional que incluía oito categorias de arte: a arqueológica, a ameríndia, a
popular, a histórica, a arte erudita nacional e estrangeira, as artes aplicadas nacionais e
estrangeiras. A concepção de arte relacionava-se com seu sentido geral de habilidade, como
711

V V
atividade possível em qualquer ser humano, se aproximando da concepção antropológica de
cultura, assim arte não se restringia a posição esteticista. Ao invés de valorizar apenas
estética, Mário defendeu a noção de arte histórica próxima a perspectiva da história factual,
predominantes na época, fundamentada em registros comprobatórios da história política,
centrada em eventos políticos dos grupos vitoriosos no poder.
Tratava-se da permanência do prestígio dos bens dotados de valor histórico, tidos
como “verdadeiro” testemunho da existência de antepassados. Segundo Le Goff (1990: 526) o
documento para a escola positivista, fim do século XIX e início do século XX, constituía o
fundamento do fato histórico, ainda que fosse resultado de uma escolha, decisão do
historiador, evidenciando em si mesmo como prova histórica. Nesse sentido, se enquadrariam
obras relevantes para a história da arte, a exemplo das diversas escolas e estilos
arquitetônicos, assim como documentos nacionais e estrangeiros referentes ao Brasil, datadas
antes de 1900 (FONSECA, 2005: 100).
Embora valorizasse a “cultura popular”, não descuidava da cultura de elite, que
tradicionalmente é reconhecida pela sua relação com o passado, a exemplo da Biblioteca
Nacional, do Museu Nacional e do IHGB, criados no período Imperial. Este detém acervos
marcadamente de valor histórico. Podemos assim acrescentar o fato de que o IHGB teria lugar
neste anteprojeto por ser uma instituição que resguardava documentos nacionais do Brasil
império e também cópias de coleções de manuscritos do período colonial originalmente
preservadas em arquivos no estrangeiro. Na interpretação de Fonseca (2005: 99) era uma
concepção de patrimônio avançada para a época, que conseguia renuir no conceito de arte as
manifestações eruditas e populares, reforçando que a arte autêntica tinha caráter particular
nacional e universal, estando por isso necessitada de resguardo por parte do Estado.
O papel do Estado na área da cultura era a coletivização do saber, e por isto, Mário
ressaltou que os resquícios do passado poderiam atrair atenção das massas, e então,
verificamos a importância da educação para instruir a população brasileira da importância da
defesa do patrimônio histórico e artístico nacional:
“Mário acreditava que, divulgando as produções artísticas, tanto as
eruditas como as populares, criando condições de acesso a essas produções,
se estaria contribuindo para despertar a população para o que se costumava
ficar reservado para o gozo das elites – a fruição estética. Desse modo, se
estaria, ao mesmo tempo, democratizando a cultura e despertando na
população o sentimento de apego às coisas nossas (FONSECA, 2005: 102).”

Desta maneira, os museus poderiam ser agências educativas (FONSECA, 2005: 100),
tendo Mário de Andrade destacado a importância dos modernos museus técnicos, pouco
conhecidos no Brasil. Estes teriam caráter eminentemente pedagógicos, informando as
712

V V
transformações do país a partir de uma visão histórica, constituída em ciclos econômicos. Tal
formato se contrapunha aos museus históricos tradicionais, ao se distanciar da mera exposição
de grandes vultos e feitos, e enfocar temas como o café, algodão, laranja, extração do ouro, da
borracha, da carnaúba, o boi e suas indústrias, a lã, o avião, a locomotiva, a imprensa, e etc
(FONSECA, 2005: 101). Ademais, indicou a necessidade da criação de uma revista nacional
da arte, que foi batizada como Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, espaço
de sociabilidade fundamental ao grupo que passou a pensar e a gerenciar a política de
preservação do patrimônio. Após se afastar do Departamento de cultura, dedicou-se ao Sphan
(OLIVEIRA, 2008:119).
O Sphan conseguiu, na primeira década de seu funcionamento, realizar parte deste
projeto com a criação de museus regionais8. E estabeleceu que os museus nacionais. muita das
vezes, situados nas grandes cidades, tenderiam à especialização, enquanto os museus locais
seriam mais ecléticos, com acervos heterogêneos, inclusive as peças a serem exibidas
deveriam seguir as indicações da comunidade, a principal responsável por fomentar o acervo
(FONSECA, 2005: 101).
Entretanto, Fonseca (2005: 102) assinalou os limites da participação social na
construção dos patrimônios históricos e artísticos, visto que o anteprojeto preocupava-se com
a valorização do popular, e previa, inicialmente, seu registro de outras como arqueológicas e
ameríndias, junto às obras de arte erudita e Belas-Artes. Tratava-se da implantação de um
procedimento administrativo-burocrático que envolvia critérios de classificação, que conduzia
a organização, e posterior conservação. Tais critérios tendiam a privilegiar as obras de arte
eruditas, consagradas no universo simbólico através de prêmios em concursos, menção em
livros de história da arte, inclusão em acervos museológicos, avaliações do Conselho
Consultivo do Sphan. Assim, ainda era pouco aceitável na época a equiparação das obras de
arte arqueológica, ameríndia e popular, à arte erudita, e assim, a dificuldade de classificá-las
como bens patrimoniais.
Isto posto, verifica-se uma série de instrumentos classificatórios, ao lado de instâncias
já reconhecidas de atribuição de valor, como concursos, publicações, avaliação de
especialistas, etc, todas restritas ao campo intelectual, que mediavam a prática da preservação
patrimonial, e impediam que as propostas do anteprojeto se efetivassem na sua totalidade.
Assim, diferente da teoria, na prática, a participação popular ficava restrita às organizações

8
Os principais museus regionais criados pelo Sphan foram: Museu das Missões (Santo Ângelo, RS); Museu da
Inconfidência (Ouro Preto, MG); Museu do Ouro (Sabará, MG), Museu Regional de São João del-Rei (MG),
Museu do Diamante (Diamantina, MG), Museu de Arqueologia e Artes populares (Paranaguá, PR) (FONSECA,
2005: 128).
713

V V
dos museus municipais, havendo pouco significado a nível nacional, sendo expressivo apenas
para os habitantes locais.
O aspecto conceitual e organizacional havia sido resolvido no anteprojeto, mas na
leitura de Rodrigo de M. F. e Andrade era preciso tornar os recursos operacionais, em especial
o tombamento, não só legais mas como reconhecidos como legítimos. Para Márcia Chuva
(2009:147) o instituto do tombamento é “um ato administrativo que deu origem à tutela do
Estado sobre o patrimônio histórico e artístico nacional.” E para viabilizar a proteção legal era
necessário limitar o conceito de patrimônio proposto pelo anteprojeto à materialidade,
intitulado de pedra e cal, não sendo possível adequar o instrumento proposto às manifestações
folclóricas, como lendas, superstições, danças dramáticas etc (FONSECA, 2005: 105).
A efetivação da prática do tombamento foi possível através de uma estratégia de
compromisso entre o direito individual à propriedade e a defesa do interesse público pela
salvaguarda dos valores culturais. Na Constituição de 1934, houve a demarcação de limites ao
direito de propriedade, atribuindo-lhe o conceito de função social. A legitimação social era
outra meta importante e envolvia dentre outros fatores, o desenvolvimento de um trabalho
dentro dos mais rigorosos e modernos critérios científicos, e a imagem de uma instituição
coesa, desassociada de interesses político-partidários, e direcionada prioritariamente ao
“interesse público” (FONSECA, 2005: 105).
Como mencionado acima, os remanescentes da arte colonial brasileira foram
privilegiados na prática dos tombamentos, tendo como justificativa dos agentes institucionais
a destruição destes acarretada pelo inevitável processo de urbanização, do saque e da
comercialização dos bens móveis, que eram vendidos por antiquários brasileiros a
colecionadores, maiormente os estrangeiros. No entendimento de alguns setores da sociedade,
como a classe média, estes bens estavam relacionados ao passado primitivo, arcaico, e com a
presença portuguesa, que poderia ser substituída pela cultura de outros países como a França,
a Inglaterra, e o mais recente os EUA. Desta forma, vemos que existia entre as classes mais
altas a concepção de que a civilização estava nos países desenvolvidos, e que a forma de
civilizar o Brasil era imitando estes modelos (FONSECA, 2005: 107).
A ênfase do barroco pelos modernistas e a prioridade dada aos monumentos e objetos
da arte colonial na constituição do patrimônio, identificava-se com a vertente luso-brasileira
da cultura nacional. Isto foi melhor explicado no conceito de civilização material elaborado
por Afonso Arinos de Melo Franco, futuro presidente da CPHAN do CFC, nas conferências
elaboradas para os funcionários do Sphan, nas quais ficava evidente uma “leitura dos bens e
conjuntos tombados a partir de sua relação com o processo histórico de ocupação das
714

V V
diferentes regiões brasileiras. Desse ponto de vista – da civilização material que se
desenvolveu no Brasil – Afonso Arinos considerava que a presença portuguesa predominava
sobre as influências negra e indígena, que praticamente não haviam deixado vestígios
materiais significativos (FRANCO, 1944 apud FONSECA: 2005, 107).
O conceito de civilização material foi também debatido por Rodrigo de M. F. e
Andrade, indicando a origem desta no século XVIII, em decorrência da descoberta de metais
preciosos, que acarretou num processo de ocupação da região diversificado, pois fora
realizado por diferentes grupos étnicos. Rodrigo identificou em Minas uma estética
particularizada de feição erudita e popular, onde se encontram poucas produções indígenas
que permaneceram como cativos, e de paulistas. A civilização era mesmo formada por
portugueses radicados, advindos do Minho e do Douro, e escravos angolas e banguelas
traficados para a região (ANDRADE, 1987: 73-80 apud FONSECA, 2005: 108).
Para Rodrigo de M. F. de Andrade estava sendo realizada uma ‘obra de civilização’, a
partir de uma prática objetiva e racional, registrando de forma rigorosa acontecimentos,
personagens e objetos relacionados ao ‘patrimônio histórico e artístico’. A ‘Obra de
civilização’ havia sido iniciada nos tempos coloniais, afirmando a existência de uma
‘tradição’ que era fundamental para a identidade brasileira. Tal ‘tradição’ era tida como objeto
de conhecimento científico, histórico, garantia da autenticidade pessoal e coletiva, que estava
sendo resgatada, evitando o seu esquecimento e perda definitiva (GONÇALVES, 2002: 41).

DEBATE SOBRE PATRIMÔNIO NACIONAL NO CONSELHO FEDERAL DE


CULTURA
Afonso Arinos e Rodrigo de M. F. e Andrade são intelectuais que na Era Vargas, e que
adquiriam experiência no setor cultural, e se reencontraram em cargos no Conselho Federal de
Cultura, em especial na Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CPHAN).
Destacaremos como estes conselheiros promoveram discussões sobre o patrimônio nacional
com membros das outras câmaras do CFC, e também com representantes do campo cultural
de diferentes regiões do país, publicadas na Revista Cultura, possibilitando a atualização do
termo patrimônio, que na época do antigo Sphan restringia-se às edificações, as manifestações
materiais, na maioria das vezes de elite, passando a considerar as manifestações culturais
populares e os arquivos históricos.
A valorização das manifestações populares apresenta-se na história do Brasil
republicano, desde o modernismo, havendo uma primeira tentativa de preservação
institucional no anteprojeto de Mário de Andrade. Mesmo não sendo consolidada uma prática
oficial de preservação do folclore, visto que o SPHAN considerou os monumentos e objetos
715

V V
de arte colonial como representativos do patrimônio nacional, o estudo das manifestações
artísticas e culturais populares perpassou a década de 1930, e alcançou a década de 1950, com
os folcloristas9.
Temos duas possiblidades de elementos representativos da identidade nacional, cultura
popular e cultura de elite que encontram contornos específicos nas políticas culturais do
Conselho Federal de Cultura, que tinha como objetivo maior a regionalização, não se
restringindo à criação de museus regionais, como proposto por Mário de Andrade, mas
englobando espaços culturais diversificados num contexto complexo, no qual era necessário
criar uma infraestrutura local a partir de conselhos estaduais e municipais capazes de orientar
museus, bibliotecas e Casas de Cultura. Além disso, não se descuidavam de disciplinar
procedimentos para direcionar recursos às instituições já consagradas, a exemplo do Instituto
Histórico e Geográfico e a Biblioteca Nacional, locais de preservação de acervo histórico
relevantes para o melhor conhecimento da identidade nacional.
Os depoimentos de Renato Soeiro no “I Encontro dos governadores sobre a defesa do
patrimônio histórico e artístico do Brasil”, em 1970, parecem apresentar questões próprias das
políticas do DPHAN, que se integram ao viés regionalista do Conselho, ao propor a criação
de órgãos estaduais de patrimônio nos moldes do DPHAN. Corroboravam também ao
defender a relação entre patrimônio e turismo, indicando o início da alteração da concepção
de patrimônio. Todavia, nos questionamos sobre as propriedades específicas da Câmara do
Patrimônio Artístico e Nacional (CPHAN) que podem ser averiguadas nas publicações do
Conselho.
No sétimo número da Revista Cultura, em janeiro de 1968, encontramos o artigo
“ mbito do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, de Rodrigo de Mello Franco e
Andrade10, que de início revelou a necessidade de definir e demarcar com precisão a área de
competência da CPHAN. Tendo em vista a que a área do patrimônio já possui uma legislação
própria que trata a questão dos acervos dos monumentos de arte e de histórica do país por
critério diferenciado, e também que é comum o uso de soluções adequadas a semelhantes
problemas, mesmo que não haja legislação específica, deve-se obedecer a alguns critérios

9
Trata-se da preocupação cada vez maior com a “cultura popular”, e sua constante associação ao tema da
“identidade nacional”. Rodolfo Vilhena (1997: 24) revelou que nas décadas de 1947 a 1964, intelectuais
folcloristas tentaram consolidar os estudos do folclore como uma disciplina autônoma na grade das ciências
sociais, garantindo uma entidade governamental preocupada com políticas de preservação e de incentivo à
pesquisa. Todavia esta reivindicação não obteve sucesso, ficando os estudos fora do arranjo institucional das
ciências sociais.
10
“ mbito do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. In: Conselho Federal de Cultura. Cultura. MEC: Rio
de Janeiro, ano II, n.º 07, Janeiro de 1968.pp. 32-35. p. 32.
716

V V
peculiares, pois há um consenso das nações civilizadas de buscar proteger um espólio
particular de cada povo, o patrimônio histórico e artístico nacional tido como universal.
Para consolidar um campo específico da CPHAN, Rodrigo de M. F. e Andrade
recorreu a definição de patrimônio elaborada por um membro da câmara das ciências
humanas, Manuel Diégues Júnior, descrevendo o patrimônio histórico e artístico nacional
como:
“O conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interesses público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”...Equiparam-se a
esses bens “os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que
importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido
ditados pela natureza ou agenciados pela indústria humana (REVISTA
CULTURA, nº 07, 1968, p. 32-33).

Rodrigo de M. F. e Andrade apresentou uma definição mais ampla, elaborada por


intelectuais das ciências humanas, distinguindo as atribuições da repartição federal,
constituída em Janeiro de 1937 (antigo Sphan). Dedicado a velar pelo patrimônio,
estabelecido pelo legislador, eram considerados apenas aqueles bens capazes de serem
enquadrados, separada ou agrupadamente, nos Livros de Tombo instituídos em lei. Tais bens
imóveis e móveis são os estritamente tombados. É necessário ressaltar que Rodrigo defendeu
que parte capital do patrimônio histórico e artístico do país são bens que precisavam ser
tombados. Contudo, a CPHAN do Conselho Federal de Cultura deveria enfocar o acervo de
bens culturais que extrapolava a relação numérica de bens inscritos nos Livros de Tombo,
bem como a fração dos que devem, por seus requisitos, ser incluídos no tombamento
(REVISTA CULTURA, nº 07, 1968, p. 33).
E assim, Rodrigo de M. F. e Andrade elencou uma série de bens culturais de valor
excepcional, que mesmo tendo a sua importância reconhecida, não podem ser resguardados
pelo Sphan devido a sua enorme quantidade. Sendo assim:
“Massas consideráveis de documentos de interesse histórico
existentes em arquivos dos órgãos da administração, nos cartórios judiciais,
nos arquivos eclesiásticos, nas associações civis e em recintos particulares.
Remanescentes da pilhagem sistemática operada pelos negociantes do
gênero, parcelas consideráveis do espólio de obras de arte antiga e de
artesanato tradicional deixado por nossos antepassados, dispersos por muitos
lugares (REVISTA CULTURA, nº 07, 1968, p. 33).”

Verificamos que esta discussão é anterior ao Compromisso de Brasília, e já explicitava


a preocupação com os diversos tipos de acervos. Igualmente percebemos que eram
fundamentais para a memória nacional, a qual o Sphan não teria estrutura para proteger. Além
destes, Rodrigo de M. F. e Andrade assinalou também os empreendimentos mal concebidos
717

V V
pelas municipalidades, os sítios urbanos e rurais, nos quais predominavam traços de
ancestralidade, de pitoresco ou de beleza de paisagem. Os mesmos indicaram a existência de
numerosas edificações que não assumiam importância como monumentos nacionais, sendo
consideradas produções genuínas da arquitetura brasileira, popular ou erudita, merecedoras de
estudo e conservação. Por último, marcaram as sedes de institutos históricos estaduais e
municipais, nos museus regionais, em lojas maçônicas subsistentes, onde estavam guardadas
valiosas coleções de peças (REVISTA CULTURA, nº 07, 1968, p. 33).
Todos estes bens ficavam excluídos da área de ação do DPHAN, devido a
impossibilidade de tombar tamanho acervo de bens, mas entrariam na esfera das atribuições
do Conselho Federal de Cultura, por intermédio da Câmara do Patrimônio Artístico e
Nacional. Tratava-se de uma cooperação, pois à Câmara deveria vigiar estes bens, e
estabelecer uma ação supletiva da Diretoria.
Por último, Rodrigo de M. F. e Andrade relembrou o Decreto-lei, de 21 de novembro
de 1964, que atribuía ao CFC, no artigo segundo, línea d, o dever de cooperar para a defesa e
conservação do patrimônio histórico e artístico do país, e difundir o conhecimento produzido
sobre estes patrimônios à coletividade brasileira e instruí-la do seu valor inestimável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Como foi apresentado, a literatura especializada tem revelado que o anteprojeto de
Mário de Andrade, em especial, no que tange à cultura popular e sua imaterialidade, não foi
realizada na sua totalidade no Sphan, visto que a prioridade foi dada aos monumentos
edificados representativos do Brasil colonial. Há um consenso de que o projeto de Mário de
Andrade foi resgatado num segundo momento, na gestão de Aloísio Magalhães, diretor do
Iphan, antigo Sphan, entre 1979 a 1982. Contudo, podemos ver na documentação produzida
pelo conselho, que antes do final da década de 1970, produzia discussões sobre a ampliação
do conceito de patrimônio que incluiria as manifestações populares e documentos históricos.

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720

V V
INTERAÇÕES SOCIAIS E AFETAÇÕES: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE AS
VISITAS MEDIADAS NO MUSEU CASA DE RUI BARBOSA
João Alcantara de Freitas 1
Telma Lasmar Gonçalves 2
Thaís Costa da Silva 3

RESUMO: O museu-casa é um recorte diacrônico, pois possibilita ao visitante compreender


as transformações sociais que ocorreram ao longo dos anos. Sobretudo quando esta instituição
se esforça em preservar as características de um determinado período histórico. Além de que,
na maioria dos casos, tais casas são relevantes por conta de algum morador ilustre, o que faz
com que a história destas personalidades permeie cada um dos cômodos. O trabalho do
mediador é evocar a história que se esconde em objetos tão cotidianos, tais como um tapete,
um livro, uma cadeira. Dessa maneira, é quase impossível entrar em espaços tão íntimos e de
história tal relevante e sair incólume. O presente artigo sintetiza parte da experiência dos
bolsistas do Museu Casa de Rui Barbosa na mediação das visitas, ressaltando a importância
desta atividade para estabelecer uma boa relação dialogal com os visitantes.

PALAVRAS-CHAVE: Museu Casa de Rui Barbosa; Relações de Afeto; Visitação Museal

INTRODUÇÃO
As diferentes interpretações que são dadas a um museu são consoantes às experiências
individuais que cada visitante vive nele. Entender os anseios, as expectativas e as inquietações
de cada indivíduo, no entanto, se caracteriza como uma tarefa bastante árdua e complexa.
Contudo, a atuação dos autores do presente trabalho como pesquisadores e mediadores do
Museu Casa de Rui Barbosa evidenciou a importância de se estabelecer uma reflexão acerca
das visitas mediadas e o que essa experiência pode suscitar nos visitantes.
Em 2014, a Fundação Casa de Rui Barbosa ofereceu seis bolsas de pesquisa para
turismólogos atuarem junto ao Museu Casa de Rui Barbosa, no projeto “Museu Casa de Rui
Barbosa: estabelecendo relações com os turistas nacionais e internacionais” orientado por
Jurema Seckler e Telma Lasmar. O produto final do primeiro ano deste projeto é um plano de
ações com o objetivo de notabilizar a visitação ao Museu Casa de Rui Barbosa. Fundado em

1
Doutorando em História, Política e Bens Culturais – PPHPBC / CPDOC / FGV. Mestre pelo mesmo programa.
Turismólogo – UFF. Docente UFJF e pesquisador bolsista – FCRB. joaofreitas@id.uff.br
2
Doutoranda em Museologia e Patrimônio - PPG – PMUS / UNIRIO. Mestre em Engenharia de Produção PEP /
COPPE / UFRJ. Museóloga – UNIRIO. Docente UFF. telmalasmar@globo.com
3
Mestranda em História, Política e Bens Culturais – PPHPBC / CPDOC / FGV. Especialista em Turismo – OIT /
FGV, especialista em Jornalismo Cultural – FCS / UERJ. Turismóloga – UNIRIO. Docente na FACHA e
pesquisadora bolsista – FCRB. thais_unirio@yahoo.com.br

721

V V
1930, este que é o primeiro museu-casa do Brasil, é reconhecido pela excelência de seu centro
de pesquisas e documentação histórica. Por ter um vasto jardim, é também um espaço
privilegiado de lazer para os que residem nas redondezas. Sente-se, no entanto, que o museu
pode ser mais bem explorado, com o intuito não de aumentar as estatísticas de público, mas,
sobretudo, melhorar a experiência do visitante nesta casa histórica.
O Museu-Casa de Rui Barbosa já há algum tempo tenta se aproximar de turismólogos.
Entre 2009 e 2014, o museu ofertou duas vagas de estágio para estudantes de Turismo,
ocupadas ao longo desses cinco anos por nove estudantes. Esta experiência positiva
contribuiu para o reconhecimento dos profissionais dessa área e para a oferta inédita de bolsas
para turismólogos nesta instituição.
Esta aproximação tende a render bons frutos e ressalta a importância da
transdisciplinaridade para os museus. Nesse sentido, é objetivo deste texto também reiterar a
importância de se pensar o museu – e por que não outras instituições culturais? – como um
espaço de encontro. O debate entre profissionais de diferentes áreas tende a ser mais
enriquecedor do que o debate apenas entre os próprios pares.
Além da pesquisa, os bolsistas atuam desde junho de 2014 nas mediações das visitas
ao museu. Uma das primeiras ações deste grupo de trabalho foi, a partir de uma análise dos
horários de maior demanda e algumas experimentações, estipular três horários diários para as
sessões de visita mediada. Mesmo sendo esta uma ação pontual, os resultados estão sendo
satisfatórios, pois muitos visitantes estão se programando para participar da visita mediada e
os mediadores estão sempre prontos a atender nestes horários determinados.
Esta experiência de contato direto com os visitantes tem sido bastante enriquecedora,
pois torna possível compreender de maneira mais direta quais são as expectativas,
necessidades e anseios do público. Além desse contato ser deveras útil para a formulação do
plano de ações, ele ressalta uma questão relevante e que será o ponto principal deste artigo: a
relação afetiva que os visitantes estabelecem com o Museu Casa de Rui Barbosa.
Para uma melhor compreensão dessa relação, tentar-se-á explorar algumas dimensões
do que seria afeto, considerando, contudo, que esta é uma seara bastante desafiadora e que
este artigo não tem pretensão de elucidar. A principal aspiração deste trabalho está em buscar
entender como as coleções e as narrativas presentes no Museu Casa de Rui Barbosa tem o
potencial de estabelecer diferentes conexões com seus visitantes. Procura-se investigar como
essas afetações são potencializadas pela mediação das visitas. Explora-se ainda de que modo
as representações sociais da casa interferem na percepção que o visitante tem sobre o museu.

722

V V
O artigo, desse modo, se propõe a analisar de que forma os visitantes do museu se
relacionam com o acervo e como as narrativas dos mediadores influenciam nesta
aproximação. Como metodologia empregada, foi realizada uma consulta bibliográfica sobre
as temáticas de afeto, patrimônio e mediação. A pesquisa também se baseia nos dados obtidos
na pesquisa de perfil e de opinião de público do Museu Casa de Rui Barbosa, realizada em
julho de 2014 e nas experiências dos autores nas mediações realizadas.
O ponto de partida, porém, para esta investigação nos parece forçosamente o de
refletir sobre a palavra afeto. A seguir, propõe-se destrinchar as possíveis interpretações
acerca do afeto, a partir de perspectivas distintas.

AS VARIADAS SUBJEÇÕES DO AFETO


Em 1881, Friedrich Nietzsche (1844–1900) enviou um postal ao seu amigo Franz
Overbeck, teólogo russo, relatando o seu encantamento pela obra de um filósofo do século
XVII chamado Baruch Spinoza, até então não atentado pelo filósofo alemão. No trecho
destacado a seguir, Nietzsche relata a satisfação de encontrar um companheiro, ainda que
separados por dois séculos.
Estou profundamente surpreso, encantado; tenho um precursor e que
precursor! Eu conhecia pouco Espinosa: que eu me tenha voltado para ele
justamente agora me foi inspirado pelo instinto. (...) Sua tendência suprema é
a minha, que faz do conhecimento o mais potente dos afetos. (NIETZSCHE
apud MARTINS, 2000, p. 183).

A ideia expressa na última frase merece destaque especial: “O conhecimento como o


mais potente dos afetos.” Esta é uma imagem interessante que ajuda a introduzir pertinente
reflexão. Mesmo Nietzsche e Espinoza sendo extemporâneos, destinavam posição central
para conhecimento em suas pesquisas e análises. De uma maneira geral, falavam eles sobre o
conhecimento da realidade; o indivíduo se afetaria melhor a partir dele ou com ele. Nesses
moldes, afetar-se significa não ficar indiferente. O conhecimento é o mais potente dos afetos
porque, diferentemente do amor, ciúme, ira, admiração e ambição, é capaz de transformar os
demais. Se o indivíduo entende o que lhe acontece, em vez de buscar subterfúgios na crença,
seja na religião ou na ciência, ele consegue se fortalecer para lidar com o que está ocorrendo.
(MARTINS, 2009).
No entanto, qualquer tentativa de aprofundar a ideia de Nietzsche e/ou
Espinosa nessas páginas seria extremamente grosseira e desvirtuaria algumas de suas ideias
básicas. Mesmo assim, insiste-se em tentar aproveitar esta imagem: “O conhecimento como o
mais potente dos afetos”. Para Espinosa, o afeto estaria próximo a sentimento, mas seria

723

V V
limitador, é algo mais amplo. Somos afetados em diversos contextos e momentos,
inevitavelmente. E é exatamente isso que nos move e motiva, ainda que não conscientemente.
O nosso objetivo inicial é dilatar a concepção que se tem acerca de “afeto”. Um caminho
interessante para isso é também analisar etimologicamente a palavra:
[...] afeto, particípio passado do verbo afficere, parece indicar
claramente o caráter passivo da experiência subjetiva em questão, ou bem o
fato de que esta foge ao controle das nossas intenções e dos nossos desejos.
Outros termos aparentados também possuem esse significado etimológico:
emoção (=emotum), paixão (patior), indicando como experiências
semelhantes “atuam em nós”, indo além da vontade e da consciência.
(IMBASCIATI, 1998, p. 15).

Tal perspectiva histórico-linguística já demarca o caráter subjetivo da ideia de


afeto. A perspectiva psicanalítica ajuda a dilatar ainda mais esta percepção. Para Plutchik
(1981), afeto é definido como um “constructo hipotético”. Ou ainda, como sugere Imbasciati
(1998) algo mais sublime, cuja influência e existência inferimos a partir de distintas
manifestações: estados fisiológicos, sintomas físicos, motricidade, consciência, linguagem,
paralinguagem, conduta, modalidades relacionais etc. Destaca-se ainda este caráter reativo das
afetações e que seu principal gatilho é, invariavelmente, a memória. Ainda que tais processos
cognitivos pereçam de certa imprevisibilidade e incoerência, são as experiências prévias que
delineiam as ações e reações do indivíuo, tal como um aprendizado de como responder
automaticamente a determinados estímulos.
A própria psicanálise, destaca Imbasciati (1998), nasce e se desenvolve com
foco na investigação precípua dos afetos. Paradoxalmente, a questão do afeto aparece de
maneira recorrente nos escritos de Freud, mas sem uma definição mais rigorosa.
Ora, mas se é tão difícil abordar a questão de afeto, por que propor investigar as
relações de afeto que os visitantes estabelecem com o Museu Casa de Rui Barbosa? Porque
mesmo que abstrato, amplo e complexo, esta amálgama de ideias, conceitos e sentimentos
parece ser essencial para compreender essa experiência.
Trata-se de algo extremamente subjetivo, mas que é sentido – como se concreto fosse
– quando em algum cômodo do museu-casa, um visitante lembra de alguma experiência
vivida na casa da mãe, vó, bisavó e conta com uma descarga emocional que contagia o
mediador e outros visitantes. Ou quando algum visitante aperta a nossa mão, nos abraça,
agradecendo a troca de informações. Ou quando não satisfeito em tirar fotos de todos os
cômodos da casa, resolve tirar uma fotografia conosco, pois afinal somos, além do próprio
Ruy Barbosa, anfitriões da casa. Ou quando decidem retribuir com gorjetas, algo
explicitamente voluntário e que tem grande valor simbólico. Acreditamos que o afeto
724

V V
concatene todas estas experiências. Mesmo que seja um tema de difícil experimentação
científica é exatamente sobre isso que desejamos falar.
No entanto, tendo dilatado a compreensão acerca do afeto cabe retomar a ideia
mencionada anteriormente de que “o conhecimento é o mais potente dos afetos”. Crê-se que
tal frase sintetiza a a experiência no Museu Casa de Rui Barbosa. Por mais que a equipe de
mediadores seja extremamente solícita, são a própria casa e a sombra de Rui Barbosa que
afetam as pessoas. Nesse sentido, o papel do mediador é direcionar o olhar do visitante para
pontos específicos da casa. Diferentemente dos museus convencionais – em que os objetos
relevantes recebem destaque especial –, no museu-casa tudo tem história: um tapete, um livro,
uma cadeira; sendo necessário decodificar a história por trás de tais objetos.
A seguir, discutir-se-á como o espaço da casa potencializa tais afetações, sublinhando
as idiossincrasias de um museu-casa e suas implicações.

O MUSEU-CASA
A casa é, geralmente, o primeiro círculo social do indivíduo, espaço de convivência
com familiares e amigos. Um espaço de proteção, de memórias e referências, “nosso canto no
mundo”, como Bachelard (1974:358) defende. Algumas delas são palacetes com dezenas de
cômodos, outras são mais modestas, com cômodos conjugados e espaço restrito, mas todas
são casas. O museu, por sua vez, como um patrimônio cultural, pode se caracterizar como um
espaço de contemplação – também de voyeurismo – com regras estabelecidades para a
salvaguarda de seu acervo. Mas também pode se apresentar como um espaço de
experimentações, de relações mais intensas, de vínculos maiores, como Menezes (2009)
descreve. O museu-casa é a expressão dialética desses dois universos; ao mesmo tempo que
conjuga o museu e a casa, não é nenhum dos dois: é um terceiro produto com características
bastante particulares. O museu-casa é a exposição do que outrora era privado e, a partir de um
olhar inédito sobre a intimidade de determinada personalidade e sua família, se tem uma nova
percepção acerca destes indivíduos e o contexto histórico no qual estavam inseridos.
A museografia do museu-casa, quando bem elaborada, é capaz de transmitir ao
visitante sensações próximas ao pertencimento, tornando-o quase íntimo de seus proprietários.
Reconhecendo objetos e ambientes familiares, ou mesmo inéditos, que transmitam um
ambiente de que pessoas de verdade moraram naquela casa, o visitante é capaz de perceber a
‘humanidade’ do lugar.

725

V V
Nesse sentido, é um recorte diacrônico em que as dimensões tempo e espaço são
reconfiguradas, possibilitando ao visitante olhar para o passado e, automaticamente, perceber
as transformações no cotidiano. Segundo Fortuna (1997), o espaço traz consequências
políticas para os sujeitos e grupos sociais, ele “impõe diferenças, agrega subjetividades e
estimula interações”. Por essa razão, se estabelece uma sútil conexão entre o visitante, a casa
e o anfitrião.
Argumentou-se anteriormente que o gatilho para as afetações é, na realidade, a
memória e que este é um processo imensamente subjetivo e pessoal. Mesmo assim, múltiplas
sensações podem ser percebidas pelos mediadores quando os visitantes percorrem as
acomodações da casa de Rui Barbosa, local a princípio tão íntimo e pessoal. São relações que
se estabelecem com as vivências de cada pessoa e que pode representar um reconhecimento
por parte delas a algumas características, uma ideia de pertencimento a determinado
local ou até mesmo um distanciamento a eventuais costumes, estilos de vida e uso dos
objetos. No entanto, a experiência dessa visita revela informações sensíveis e individuais do
anfitrião. Para Bachelard (1993, p. 197), a casa se apresenta como um “instrumento de análise
para a alma humana”. Nesta perspectiva, o íntimo destes moradores da casa pode se tornar
notável para os que visitam.
E quando este íntimo se torna acessível e público, como em um museu-casa, a vida e a
história da família que ali habitou transfiguram-se em representações sociais de uma época, de
uma cidade, ou ainda, de um país. Costumes vividos no período em questão, moda ou
passagens históricas são retratadas por meio da materialidade da casa. Ainda no jardim da
casa, moradores do entorno, visitantes e funcionários de empresas vizinhas em seu horário de
descanso, vêem no ambiente um espaço de bem-estar, estabelecem o importante vínculo que
Menezes (2009) ressaltou em relação aos patrimônios culturais. Por essas perspectivas se
entende o Museu Casa de Rui Barbosa como um lugar de memória coletiva, individual e
também um lugar de representações e que suscita relações profundas de pertencimento.
Este espaço oferece ainda, um conjunto de objetos simbólicos que são expostos aos
visitantes, conduzindo-os a diferentes percepções e conexões. "O objeto exposto no museu
está longe de ser um artefato material. Ele é também e acima de tudo, uma narrativa, ou seja,
uma história contada sobre nós próprios ou sobre os outros" (FORTUNA, 1997, p. 12). E com
a imponente moradia de uma figura tão popular e importante como Rui Barbosa, essa lógica
não poderia ser diferente.

726

V V
Durante as visitas, as reações dos visitantes ajudam a decodificar suas percepções.
Sentimentos nostálgicos surgem ao relembrar de peças usadas anteriormente como o bidê da
casa ou o quadro de luz com disjuntores de porcelana, que já não são mais tão vistos nas
residências atuais. Há ainda um reconhecimento como algo que lhe é próprio, como a
existência de uma mesa de jantar extensível - que embora pareça moderna, já era utilizada por
Rui - ou certa admiração pelo amor do patrono aos seus livros que envolve o visitante e o
convida à leitura. E há até mesmo, em alguns momentos, um distanciamento dos visitantes,
pois reconhecem ali a um estilo de vida aristocrático.
Scheiner (2014)4 explica que as relações de afeto que se estabelecem na visitação
museal constituem uma experiência individual. Dessa maneira, é fundamental compreender –
e acolher – a cada visitante como indivíduo, considerando suas expectativas e anseios, se
atendo menos a tratá-lo como uma estatística. Com base neste pressuposto é que entendemos
que as mediações possam ser um instrumento potencializador dessas afetações e podem
influenciar positivamente no diálogo entre a exposição e o visitante, de acordo com as
narrativas abordadas.
O acervo ganha um novo sentido através da mediação, que revela algumas estórias e
histórias da família que ali viveu, explica as funções dos objetos e cômodos e repercute nas
sensações e em todo o processo de percepção da exposição. Atores esses fundamentais, por
vezes, para uma aproximação maior entre o visitante e o objeto exposto a partir de uma
narrativa. E para o segmento cultural, este termo provoca ainda uma transformação maior.
Coelho (1999, p.248) caracteriza por “mediação cultural” os “processos de diferente natureza
cuja meta é promover a aproximação entre indivíduos e coletividades e obras de cultura e
arte” . Nesse sentido, a mediação se constitui por um momento de intermediação em que tanto
o visitante quanto o mediador são afetados pela atmosfera da casa e trocam experiências
diversas. Entende-se o mediador aqui não somente como aquele que transpõe seu
conhecimento por meio de uma via única. Há uma relação estabelecida de via dupla, em que
ele também é impactado e se transforma a cada mediação.
Dessa forma, procura-se aproximar o visitante de modo que ele possa também, por si
só, estabelecer um vínculo com a casa, seus objetos e com todos os símbolos que ali podem
ser percebidos. Busca-se portanto, que as narrativas se coloquem como um compartilhamento
de ideias, possibilitando interações sociais e não somente a transferência de informações, sem

4
Palestra proferida no Encontro Brasileiro de Museus-Casas - Museografia e recepção: (pro)vocações, realizado
na Fundação Casa de Rui Barbosa em agosto de 2014.

727

V V
um envolvimento maior do visitante com o espaço, como Menezes (2009) declara que pode
ocorrer em patrimônios culturais.
A casa, seu jardim, seus objetos e seus livros são testemunho de um tempo e de um
modo de vida que se renovam e que criam vida para o visitante e para o mediador na medida
em que a intimidade, permeada pelo afeto, é apresentada. Muito mais do que informar sobre a
casa e seus personagens, o papel do mediador é fazer com que o visitante ‘sinta’ a casa e ali
seja afetado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentou-se ao longo destas páginas relatar um pouco da experiência na mediação de
visitas ao Museu Casa de Rui Barbosa, explorando, sobretudo o que se percebe das reações
dos visitantes. Como argumentado anteriormente, os mediadores ajudam a decodificar a
história por trás dos objetos e é bastante gratificante poder transmitir aos visitantes a história
desta casa que teve morador tão ilustre.
Nesse sentido, a tentativa de dilatar a compreensão que se tem acerca dos afetos é uma
tentativa de traduzir a resposta que os visitantes dão ao final das visitas e que as pesquisas de
satisfação com o público corroboram.
A iniciativa do Museu Casa de Rui Barbosa de oferecer bolsas para turismólogos é
pioneira nos museus brasileiros e demonstra uma preocupação em acolher seus visitantes da
melhor maneira possível. As visitas mediadas são relevantes, mas mais importante que a
prática é poder refletir sobre ela. Nesse sentido, há muito a ser explorado. É necessário ter um
cuidado muito especial em como os museus devem se relacionar com seus visitantes, no
intuito de oferecer uma experiência relevante, mesclando informação e entretenimento,
afetando-o de múltiplas maneiras.
Esta pesquisa e os resultados parciais do projeto reiteram não só a relevância de incluir
turismólogos nos quadros de funcionários de museus, mas as amplas possibilidades que se
abrem quando museus são pensados interdisciplinarmente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. Danesi. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1979.

CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. UNESP: São Paulo, 2001.

728

V V
COELHO NETO, J. T. Mediação Cultural. In: Dicionário crítico de política cultural. São Paulo:
FAPESP; Iluminuras, 2. ed., 1999. p. 248.

FORTUNA, Carlos. As cidades e as identidades. Narrativas, patrimônios e memórias. Revista


Brasileira de Ciências Sociais n. 33, ano 12, fev. 1997.

IMBASCIATI, Antonio. Afeto e representação: para uma psicanálise dos processos cognitivo. São
Paulo: Editora 34, 1998.

MARTINS, André. (org.) O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes,
2009.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. O campo do patrimônio cultural. Uma revisão de premissas. I Forum
Nacional do Patrimônio Cultural.

POMIAN, Krzysztof. Coleções. In: Enciclopédia Einaudi, vol.1. Memória/História. Porto: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda: 51-86, 1984.

VARELLA, F.; THOMPSON, E.; ROSH, E. The emodied mind: cognitive science and human
experience. Cambridge, Mass.: MIT Press,
1993.

729

V V
BAIXADA FLUMINENSE EM REDES DE CONVERSAS:
NOTAS INTRODUTÓRIAS PARA POLÍTICAS CULTURAIS REALIZADAS POR E
COM OS PRATICANTES
João Guerreiro1

RESUMO: O artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa com representantes de


ações culturais existentes na Baixada Fluminense, buscando obter a autorrepresentação destes
grupos. Apresenta-se, ainda, avaliações iniciais sobre as políticas culturais locais, o debate
sobre a participação popular na formulação destas políticas e como vem se construindo redes
de praticantes culturais que, na prática, vem produzindo uma política cultural de resistência,
sobrevivência e solidariedade. A partir das narrativas destes praticantes culturais, buscamos
observar como vêm superando o estigma de carência e violência que a região carrega e nos
informam que algo de novo se mantém vivo na base e no local. A partir de suas experiências
buscamos debater se há um novo modo de fazer política na área cultural na Baixada
Fluminense.

PALAVRAS-CHAVE: Política cultural, Baixada Fluminense, movimentos culturais


coletivos, Patrimônio cultural imaterial.

1. INTRODUÇÃO
A formulação de políticas públicas na área cultural vem sendo debatida em diferentes
fóruns, seminários e por diversos autores2. E, mesmo antes da promulgação do Plano
Nacional de Cultura, em 2010, que regulamenta o Sistema Nacional de Informações e
Indicadores Culturais (SNIIC), já observamos debates sobre a necessidade de dados sobre a
cultura que contribuam para identificar agentes, processos e que apontem para informações
além do senso comum.
É neste contexto, que passamos a observar atividades de mapeamentos culturais
realizados tanto pelo poder público em diferentes níveis, como por organizações da sociedade
civil. Em todos os casos, o objetivo maior é conhecer quem, onde e como se fazem atividades
culturais no país.
A Baixada Fluminense, formada por 13 (treze) municípios do estado do Rio de
Janeiro, também vivencia este cenário. Com suas ações sistematizadas em diversos
mapeamentos culturais – desde o Mapa Cultural do Rio de Janeiro, realizado pela Secretaria

1
Doutor em políticas públicas de cultura pela UFRJ e Professor do bacharelado em Produção Cultural do
Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). E-mail: jguerreiro2@gmail.com.
2
Para um debate sobre as políticas culturais no Brasil, ver Nascimento (2007), Chauí (2006), Dória (2008) e
Rubim (2007), entre outros.

730

V V
Estadual de Cultura, ao de Mapa Cultural da Baixada, lançado em 2014 pelo Observatório da
Baixada – podemos obter a descrição das instituições e ações culturais, suas localizações,
números de participantes e beneficiários. Em alguns destes mapeamentos as informações
podem ser alimentadas pelos próprios realizadores das manifestações culturais. Se, por um
lado, avançamos em direção à criação de um conhecimento analítico sobre a cultura frente ao
empirismo conforme salientado por Teixeira (2003), por outro, em alguns contextos, a
constituição do banco de dados municipal e/ou estadual serviu apenas para cumprir
condicionalidade imposta pelo PNC para a descentralização de recursos oriundos do Fundo
Nacional de Cultura.
Tanto em um caso como no outro, acreditamos que houve avanços, pois, apesar da
subjetividade intrínseca a algumas ações culturais, temos como resultado desses processos
mais informações do que possuíamos anteriormente sobre quem faz e qual as ações culturais
estão em determinados territórios. Entretanto, parece-nos que essas informações não estão
alimentando ou sendo ponto de partida na construção de políticas culturais em territórios
periféricos. É esta hipótese que o Grupo de Pesquisa Observatório da Indústria Cultural
(OiCult) em uma de suas linhas de pesquisa denominada “Ações Culturais na Baixada
Fluminense: diálogos e autorrepresentações”, vem buscando confirmar. E esse
questionamento nos interessa por acreditarmos que uma política cultural territorializada deve
ser dialógica e proporcionar o encontro dos diferentes praticantes culturais na sua formulação,
permitindo o empoderamento destes em direção à construção de “políticas socioculturais que
promovam o avanço tecnológico e a expressão multicultural de nossas sociedades, centradas
no crescimento da participação democrática dos cidadãos.” (CANCLINI, 2003, p. 35)
Neste artigo iremos, portanto, apresentar os primeiros resultados da pesquisa, tendo
como interlocutores representantes de duas ações culturais: Movimento Enraizados e
Cineclube Mate com Angu, que estão localizados em Nova Iguaçu e Duque de Caxias,
respectivamente.
Esperamos que essa sistematização inicial nos permita ampliar nosso diálogo e abrir
janelas ou mesmo frestas para nos auxiliar no andamento dos encontros na Baixada
Fluminense.

1. ANTECEDENTES
No ano de 2013, como atividade de uma disciplina de Produção Editorial do curso de
Bacharelado em Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro, campus Nilópolis,

731

V V
os discentes iniciaram uma pesquisa sobre as ações de produtores culturais na Baixada
Fluminense3. Posteriormente, tendo como inspiração a divisão apresentada pelos Fundos
Setoriais de Cultura do Ministério da Cultura em relação a proposta dos Fundos Setoriais,
ampliaram a pesquisa inicial buscando levantar as principais ações culturais existentes na
Baixada Fluminense.
Destas pesquisas, os alunos construíram 6 (seis) blogs 4 relacionados aos seguintes
temas: livro, leitura e literatura; arte cênica e circense, patrimônio imaterial; patrimônio
material; audiovisual e música. E foi dessa interação com os movimentos culturais que nós
percebemos a avidez destes em contar as suas histórias, seus processos de constituição, os
conflitos internos e suas contradições.
Assim, em janeiro de 2014, junto com duas alunas da graduação em Produção Cultural
iniciamos, de uma forma muito incipiente, no interior do grupo de pesquisa OiCult, os debates
sobre como poderíamos, ao mesmo tempo, identificar os movimentos coletivos da Baixada e
garantir a autorrepresentação dos grupos na pesquisa. Optamos, então, por buscar as
narrativas dos integrantes dos movimentos culturais.
A opção por iniciar o projeto a partir da autorrepresentação desses grupos passa pelo
reconhecimento de que a produção desses discursos se configura em uma prática cotidiana em
sociedades contemporâneas. Podemos assumir que há uma multiplicidade de
autorrepresentação imagética coletiva.
E, é na construção da autoimagem, que Gonçalves e Head anunciam o devir imagético,
um movimento no qual a imagem etnográfica passa a ser entendida a partir da possibilidade
que cada um tem na criação de suas próprias significações, sem ser reconhecido meramente
pela submissão direta em relação às forças sociais.
O devir-imagético dá conta desta autonomia do indivíduo e sua
possibilidade de autorrrepresentação criativa que não coincide coma ideia
clássica de ‘representação coletiva’. A individuação criativa dos
personagens-pessoas desenvolve uma autonomia de significados que não
está submetida diretamente à força imanente da sociedade. Pelo contrário, o
improviso, a fala, a narração não exercem o papel de uma discursividade

3
Para efeito de pesquisa, definimos os municípios que compõem a Baixada Fluminense de acordo com SIMÕES
(2011): Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu,
Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica.
4
Os blogs foram produzidos entre agosto e setembro de 2013 e abrangeram as seguintes atividades culturais
da Baixada Fluminense: Livro e Leitura: http://livroseleiturasdabaixada.blogspot.com.br/, Arte Cênica e
Circense: http://baixadaemacao.blogspot.com.br/, Patrimônio Imaterial:
http://mochilaoimaterialdabaixada.blogspot.com.br/, Patrimônio Material: http://re-
descobrindoabaixada.tumblr.com/, Audiovisual: htpp://audiovisualnabaixada.blogspot.com.br/ e Música:
http://baixadamusical.blogspot.com.br/.

732

V V
neutra, são puras agências no sentido de que criam e agregam novos
significados ao mundo e às coisas ao mesmo tempo em que transformam
aqueles que constroem a narrativa etnográfica, seja o antropólogo, seja seu
personagem etnográfico. Seguindo esta premissa, a realidade sociocultural
não é apreendida a partir de uma concepção de representação, mas de
experimentação do mundo. (GONÇALVES e HEAD,2009, p.26).

Utilizo esse exemplo das imagens para salientar que a nossa ação não busca captar,
meramente um significado e uma única representação das ações culturais a serem
acompanhadas, mas de buscar compreender as suas formas de experimentação do mundo, os
seus desvios, as suas burlas, as suas contradições na produção de suas narrativas. Neste
sentido,
um aspecto intrigante da autorrepresentação consiste, quase por
definição, na ausência de uma divisão ‘clara e distinta’ entre a própria
representação e o que ela representa, estabelecendo, assim, uma confusão de
horizontes que se manifesta tanto mais fortemente nos casos em que imagens
– fotográficas, fílmicas, pintadas, desenhadas, ou até ‘vestidas’ – passam a
ser matérias centrais destas autorrepresentações. (GONÇALVES e HEAD,
op. cit., p. 21)

Promover a imagem de autorrepresentação em uma pesquisa acadêmica permite


também um tensionamento das relações entre pesquisador e pesquisado, subvertendo a ideia
de que o primeiro produz conhecimento a partir da prática do outro. A imagem denuncia a sua
própria condição de produto da relação de quem produz, de quem é retratado e de quem
observa a imagem.
As representações são produzidas através de um ‘jogo de espelhos’
em que as ‘imagens sobre si’ se produzem através dos outros em um
processo, eminentemente, relacional, fazendo com que as imagens de si
afetem e sejam afetadas pelas imagens dos outros sobre si. (GONÇALVES e
HEAD, op. cit., p20).

Buscando esta autorrepresentação através das narrativas, trago para o interior de uma
instituição de ensino, pesquisa e extensão, os representantes dos movimentos culturais
coletivos da Baixada Fluminense para apresentarem suas visões sobre o que é produzir cultura
na Baixada Fluminense, como lidar com a escassez de recursos e abundância de estereótipos e
como a legislação na área da cultura fomenta ou dificulta as ações culturais na região.

2. POR QUE A BAIXADA FLUMINENSE?


Muito se tem dito/escrito na mídia sobre a Baixada Fluminense e seus moradores. O
projeto Ações culturais na Baixada Fluminense: diálogos e autorrepresentações tem a

733

V V
pretensão de nos provocar um questionamento sobre o quanto já foi dito em nome das ações
culturais nesta região, o quanto já foi pensado sobre estas ações culturais e o quanto ainda
precisamos ouvir sobre o que os formuladores e realizadores dessas ações culturais têm a
dizer sobre os movimentos coletivos culturais. Fazer política cultural em nossa concepção
significa fazer junto ou com os agentes culturais diretamente envolvidos.
Neste sentido, o nosso grupo de pesquisa5 que vem atuando neste projeto definiu como
metodologia a conversa – uma metodologia de troca - e a narrativa (verbal ou imagética) que
possibilitam aos agentes culturais de uma área periférica do Estado do Rio de Janeiro
apresentarem as suas significações e os seus conhecimentos sobre a cena cultural da Baixada
Fluminense, especialmente no que diz respeito a temas como violência, poder constituído e
constituinte, lugares de memória, cultura e resistência.
A pesquisa vem, portanto, analisando as significações de fazer ação cultural na
Baixada Fluminense a partir dos próprios praticantes.
Estou compreendendo os agentes culturais como praticantes de cultura a partir da
proposta de Michel de Certeau que defende uma ciência social capaz de
"rastrear as modalidades específicas de práticas ‘enunciativas’,
manipulações de espaços impostos, táticas relativas a situações particulares
abrindo espaço para a possibilidade de analisar o imenso campo de uma ‘arte
de fazer’ diferente dos modelos que reinam (em princípio) de cima para
baixo da cultura habilitada pelo ensino (do superior ao primário) e que
postulam, todas elas, a constituição de um lugar próprio (um espaço
científico ou uma página branca para escrever)....” (CERTEAU, 1994, p.
86).
O que os praticantes de cultura da região da Baixada Fluminense fizeram a partir das
políticas culturais existentes e, principalmente, pelas suas ausências, torna-se então
fundamental para compreendermos como a política se constitui no cotidiano destes grupos.
Interessa, portanto, compreender como estes grupos, “sem sair do lugar onde tem que viver e
que lhe impõe uma lei, ele aí instauram pluralidade e criatividade” (p. 93).

Ainda segundo Certeau,


é preciso, portanto, especificar esquemas de operações. Como na
literatura se podem diferenciar ‘estilos’ ou maneiras de escrever, também se
podem distinguir ‘maneiras de fazer’ – de caminhar, ler, produzir, falar etc.
Estes estilos de ação intervêm num campo que os regula num primeiro nível
(por exemplo, o sistema da indústria), mas introduzem aí uma maneira de
tirar partido dele, que obedece a outras regras e constitui como que um
segundo nível imbricado no primeiro (CERTEAU, op. cit., p.92).

5
Atualmente, o grupo conta, ainda, com os seguintes alunos/pesquisadores do curso de Bacharelado em
Produção Cultural: Bruna Cibely, Larissa Corrêa, Pâmella Nunes e Rogério Peres.

734

V V
Neste sentido, o autor alerta para um posicionamento cuidadoso que o pesquisador
precisa ter frente ao seu tema de estudo e, principalmente, frente àqueles que são os seus
principais interlocutores, os praticantes das manifestações estudadas. Certeau propõe,
portanto, evidenciar o lugar de onde se fala e as táticas usadas pelos próprios analistas no
processo de estudar as ações dos praticantes.
Cabe também mencionar a importância desses diálogos e autorrepresentações quando
observamos que diversas manifestações culturais perecem no decorrer do tempo por motivos
variados e que perdemos as suas histórias. Dentre os diversos silenciamentos por que passam
os praticantes da cultura popular que sobrevivem nos subterrâneos de nossa sociedade, o
principal é o que retira de nossa história o povo do imaginário nacional.
E, são esses também os lugares de memória da Baixada Fluminense. Pierre Nora nos
lembra que:
os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter
aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar
atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas
minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e
enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a
verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a
história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o
que eles defendem não tivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a
necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças
que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não
se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los
eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui:
momentos de história arrancados do movimento da história, mas que lhe são
devolvidos. (NORA, 1993, p.7).

Trata-se, na verdade, do que fica de um tempo no outro. Preservar o patrimônio


material e imaterial da Baixada Fluminense significa lutar pelas representações e
ressignificados das ações culturais cotidianas. E, neste ponto, não podemos deixar de retornar
a Michel de Certeau. Os diálogos que viemos realizando com os praticantes pretendem ir
além de uma análise que busca situar a prática destes agentes culturais dentro de uma
dicotomia que reduz a ação dos grupos como subversiva de uma ordem ou como dominados
pelo sistema. Importa-nos analisar as táticas de sobrevivência das ações culturais dentro das
intervenções políticas, econômicas e sociais na região da Baixada Fluminense e o seu
contrário. Seria, portanto, uma prática que se aproxima da noção de tática defendida por
Michel de Certeau (1994).
Segundo o autor, a “tática é o movimento dentro do campo de visão do inimigo”
(CERTEAU, op. cit., p.100). O próprio Certeau nos explica melhor:

735

V V
chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de
um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de
autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro (p.100).

Como nos propõe Certeau, a tática,


tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares
vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali
surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia (p.101).
Parece-nos que os praticantes culturais na Baixada Fluminense, apesar de não serem
um bloco hegemônico, utilizam as táticas nomeadas por Certeau quando lutam pelos “des-
silenciamentos” ao fazerem suas ações culturais que, em alguns momentos e/ou para alguns
podem ser de resistência, e em outros momentos e/ou para outros são ações culturais com
expressões políticas diversas. Ou como dizia Paul Valéry citado por Emir Sader no prefácio
do livro Ponto de Cultura de TURINO (2009, p. 9): “antes de sermos reais, somos sonhados”.
Assim, com mais de 3 milhões de habitantes, segundo o último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o potencial criativo dos moradores da Baixada
Fluminense em muito supera a visão do senso comum de um lugar de carência. A Baixada
Fluminense é potência. E o Projeto “Ações culturais na Baixada Fluminense: diálogos e
autorrepresentações” visa fortalecer os movimentos culturais ampliando a visibilidade dos
mesmos e auxiliando na articulação em redes de conhecimento, mas também, em redes de
pertencimento.

3. OS DIÁLOGOS INICIADOS
Ao iniciarmos a nossa atuação junto às manifestações culturais já existentes na
Baixada Fluminense fizemos algumas opções.
Partimos do pressuposto que, em geral, que as manifestações culturais podem conter
empreendimentos culturais criativos que, apesar de estarem mais diretamente integrados à
lógica da Indústria Cultural, abrangem também atividades culturais de cunho popular. Essa
ressalva se deve ao fato do conceito de Economia Criativa ainda ser objeto de diversos
debates. De acordo com REIS (2008), “embora (...) venha sendo amplamente discutido,
defini-lo é um processo em elaboração, pois envolve contextos culturais, econômicos e sociais
diferentes”.
Cabe, então, informar o recorte feito nas rodas de conversa: estamos conversando com
um segmento dos empreendimentos criativos que são os constituídos por experiências e
atividades culturais reunidas em instituições já formalizadas e estabelecidas na Baixada

736

V V
Fluminense. E, mais, estamos dialogando e articulando o projeto com as expressões culturais
da região tendo como eixos temáticos, além das chamadas culturas populares, o patrimônio
cultural, a autodenominada cultura afro-brasileira encontrada no local, bem como as
denominadas artes visuais, arte digital - já presente em diversas manifestações culturais
existentes -, dança, música, arte cênica, produções e empreendimentos do setor audiovisual
local, notadamente os relacionados aos cineclubes, além de ações culturais articuladas em
torno do incentivo à leitura: livro, leitura e literatura, onde se sobressaem os saraus. A opção
aqui apresentada decorre da nossa experiência vivenciada no cotidiano da região e também de
levantamentos pré-realizados pelos alunos conforme assinalado anteriormente.

3.1. Roda de conversa com representantes do Movimento Enraizados e Cineclube


Mate com Angu
Um dos objetivos dos diálogos com os praticantes culturais da Baixada Fluminense é o
de entender como a política cultural dos municípios se articula com os representantes das
manifestações culturais. A escuta e a amplificação das vozes dos praticantes, por muitos
ignoradas, é uma das metas por nós perseguida.
Buscamos, também, avaliar se a descentralização da gestão cultural pensada a nível
federal, conforme abordamos na introdução deste artigo, se reflete na desconcentração de
recursos em direção aos municípios, no nosso caso, da Baixada Fluminense, através da
implantação de conselhos municipais de políticas culturais6, tendo em vista a
condicionalidade da participação de representantes da sociedade civil em um percentual de
50%, nestes conselhos. Ao conversar com os representantes dos grupos culturais dos
municípios da Baixada Fluminense, estamos, inclusive, analisando a atuação dos conselhos
municipais de cultura hoje existentes e, se necessitam de algum apoio que possamos realizar
ou solicitar a outros setores do poder público.
Iniciamos esse debate em um seminário realizado no município de Nilópolis, em 05 de
novembro de 2013 no auditório do IFRJ/Nilópolis7, no relançamento do Grupo de Pesquisa
OiCult. Neste dia, em que se comemora o Dia Nacional da Cultura, tivemos a participação de
dois representantes de diferentes ações culturais da Baixada Fluminense debatendo suas
visões com relação às políticas culturais nos municípios de Nova Iguaçu e Duque de Caxias.

6
Apesar de nos referirmos a estes conselhos, em alguns municípios são mais conhecidos como conselhos
municipais de cultura.
7
Seminário “Fluxos Globais, Culturas Locais”, promovido pelo Grupo de Pesquisa Observatório da Indústria
Cultural – Oicult.

737

V V
O primeiro a se apresentar foi Dudu de Morro Agudo, representante do Movimento
Enraizados, sediado no município de Nova Iguaçu. O movimento que ele representa busca
articular em rede os adeptos da cultura do hip hop. Segundo Dudu, o Enraizados está presente
em quase todos os estados brasileiros e diversos outros países. Iniciado no final da década de
1990, é difícil definir o movimento. De acordo com Dudu,
Atualmente vários estudos tentam conceituar o Movimento
Enraizados, e pode ser que estejam certos por alguns momentos, mas somos
um organismo vivo, mutante, assim qualquer definição expira rapidamente.
(p. 63, 2010).

Mesmo correndo esse risco salientado por Dudu, nos arriscamos a localizar o
Movimento Enraizados no âmbito de uma articulação dos militantes/amantes da chamada
cultura hip hop, que, em momentos de disputa se fixam na defesa desta cultura, mas que tem
internamente suas diferenças. No citado seminário, após apresentar a sua história de vida –
intrinsecamente relacionada ao Movimento Enraizados – Dudu de Morro Agudo sustentou
que o principal problema do movimento cultural do qual faz parte, em seus primeiros anos,
foi a ausência de conhecimento técnico para passar de uma articulação cultural para a gestão
de uma ação cultural em busca de sobrevivência financeira. Segundo ele, inicialmente o
problema era elaborar projetos, enquadrá-los nas leis de incentivos fiscais vigentes e, depois
executá-los de acordo com o Plano de Trabalho aprovado. Mas, além disso, o grande
problema – que poderia gerar uma inadimplência com as instituições que estivessem
patrocinando ou com o Estado, se o projeto tivesse sido financiado pro um edital público – era
a prestação de contas. Salientou que, no ano em que ocorreu o seminário, existia uma
incubadora de empreendimentos criativos sediada no município de São João de Meriti
(integrante da Baixada Fluminense). Entretanto, o suporte ofertado por esta incubadora era
mais direcionado a empreendimentos em estágio inicial ou em vias de formalização. Na sua
visão, instituições culturais que têm mais de 10 anos de existência, como o Movimento
Enraizados, encontram-se entre as instituições que necessitam de recursos para a
sobrevivência e, que pela sua especificidade de ação, dificilmente encontra um ponto de
equilíbrio para atingir a propalada sustentabilidade. Não iremos discutir neste artigo o que é
sustentabilidade ou se todas as ações culturais têm possibilidades de ser sustentáveis.
Entretanto, cabe enunciar que as principais ações dos Enraizados em Morro Agudo eram as
oficinas de DJs, MCs, B boy e grafitti (considerados os quatro elementos da cultura Hip Hop)
e, estas vinham produzindo talentos não apenas no bairro de Morro Agudo, mas se
“enraizando” por outras regiões. Outro ponto que deveremos abordar no decorrer da pesquisa

738

V V
é se, neste cálculo que alguns “especialistas” se apoiam para discutir a possibilidade de
obtenção de um ponto de equilíbrio entre receita e despesa em projetos culturais em áreas
periféricas, há alguma tentativa de mensuração de ganhos sociais, autoestima e outros valores
não monetários.
Mesmo não entrando neste debate neste momento, cabe-nos informar que a sede do
Movimento Enraizados fechou as portas no final de 2014. Apesar de ainda não termos
elementos suficientes para uma análise definitiva, trabalhamos com a hipótese de que as
opções tomadas pelo Ministério da Cultura, a partir de 2011, com a priorização da chamada
economia criativa frente aos projetos denominados socioculturais ou mesmo culturais com
ênfase na inserção social, contribuiu para a crise em diversos projetos culturais com o perfil
do Movimento Enraizados. Nos diálogos com representantes do movimento, a percepção
destes é que haverá forte impacto sobre a denominada cultura do hip hop na Baixada
Fluminense. As oficinas foram temporariamente suspensas e, o que se ampliou, foi a
discussão sobre o papel do fomento público na manutenção de ações culturais em regiões
periféricas. E, podemos acrescentar, porém, que, mesmo se a política pública de cultura for
ancorada em editais públicos há necessidade de apoio não apenas para elaboração das
propostas, como, também, para criação de mecanismos que simplifiquem a prestação de
contas. Na conversa com o representante do Movimento Enraizados, essa visão pontuou todo
o debate.
Neste mesmo evento, tivemos outro convidado da cena cultural da Baixada
Fluminense. Representando o Cineclube Mate com Angu, Heraldo HB conversou com os
docentes, discentes e moradores da Baixada Fluminense sobre o cineclube, as políticas
culturais executadas pelos poderes públicos locais, as redes formadas pelas ações culturais e
as expectativas frente às legislações na área da cultural na Baixada Fluminense como um
todo.
Para iniciar a roda de conversa, HB, como também é chamado, inicia a conversa se
antecipando à curiosidade de muitos presentes: o nome do cineclube “Mate com angu”.
Segundo Heraldo HB, é necessário retornar até o início do século XX, mais precisamente na
década de 1920, para melhor entendermos o significado deste nome. Em 1921, a educadora
Armanda Álvaro Alberto vai criar, segundo HB, um “microrevolução” ao fundar uma escola
no município de Duque de Caxias, a Escola Proletária de Meriti. Em seu livro “O cerol
fininho da Baixada: histórias do cineclube Mate com Angu”, Heraldo HB descreve assim esta
transformação:

739

V V
(...) foi a primeira escola do país a ter horário integral, a ter uma
orientação progressista, montessoriana, a ter uma biblioteca, um museu
natural e um receptor de rádio doado por Edgard Roquette-Pinto, também foi
a primeira escola a pensar e implementar um Círculo de Mães, trazendo a
comunidade para o dia a dia da escola, um programa integrado de saúde para
os alunos e suas famílias, entre outros avanços. Isso tudo começando na
década de 20 quando Caxias ainda era Miriti, o oitavo distrito de Nova
Iguaçu (p. 53).

Porém, outra marca foi deixada pela Escola: tornou-se a primeira escola da América
Latina a servir merenda escolar. Segundo informações coletadas por HB, Dona Armanda
procurou os comerciantes da região buscando uma parceria/doação para viabilizar a oferta
dessa merenda. Assim, como os principais produtos doados pelos comerciantes eram erva
mate e fubá, muitas vezes, a merenda servida era apenas “mate com angu”. Daí a se tornar
uma denominação popular da escola foi apenas uma questão de tempo. Posteriormente a
escola foi rebatizada de Escola Regional de Meriti. E, atualmente, possui o nome de Escola
Municipal Dr. Álvaro Alberto em homenagem ao pai de Dona Armanda que, durante muitos
anos, foi mantenedor da escola. A escola pertence à Igreja Metodista, mas foi cedida para a
prefeitura de Duque de Caxias.
Inicialmente vista como pejorativa, a denominação “mate com angu” foi ressignificada
no decorrer do tempo e tornou-se motivo de orgulho para muitos moradores de Caxias.
Assim, quando em 2002, um grupo de amigos/militantes/amantes do cinema resolveu fundar
um cineclube em Duque de Caxias, o nome sugerido por Heraldo HB, e aceito pelos demais
participantes deste grupo, foi Cineclube Mate com Angu.
Retomando a narrativa sobre os primórdios do Cineclube Mate com Angu, HB
lembrou da fundação do Fórum de Cultura da Baixada. Em dezembro do ano 2000, um grupo
de ativistas e praticantes culturais fundaram este Fórum e ele passou a funcionar na UERJ, na
sua Faculdade de Educação da Baixada, localizada em Duque de Caxias. Ali o Mate com
Angu também iniciou suas atividades. No ano de 2003, o cineclube se mudou para uma sala
de projeção do Instituto Histórico, que funcionava no subsolo da Câmara de Vereadores de
Duque de Caxias.
De lá para cá, segundo HB, muita coisa mudou e amadureceu. O Cineclube passou a
atuar em um tripé baseado em exibição de filmes, produção audiovisual e formação, tanto de
público como de produtores, através de oficinas de audiovisual.
Nesta conversa, Heraldo nos informou de uma forte cena cineclubista na Baixada
Fluminense e pontuou que a produção audiovisual independente também vem se fortalecendo.

740

V V
A hipótese por ele levantada é que as novas tecnologias de comunicação e informação
facilitaram esta expansão. Com a popularização da telefonia móvel, o telefone celular passou
a ser mais acessível para a juventude da Baixada Fluminense e, acabou integrando uma
parcela de jovens periféricos à produção audiovisual. Assim como o hip hop, o audiovisual da
Baixada também fala da realidade desta juventude e consegue superar as barreiras da grande
mídia para a exibição através da rede mundial de computadores. Apesar de citar a importância
da política cultural de fomento à cultura digital, implementada pelo Ministério da Cultura a
partir de 2003, não vê nesta política capilaridade suficiente para explicar o “boom” de
produção audiovisual independente na região.
No que tange a política pública cultural da Baixada Fluminense, Heraldo muda o tom
de otimismo com a produção audiovisual para um ceticismo. Lembra que o município de
Duque de Caxias era, em 2013, o 7º (sétimo) município do Brasil em arrecadação por sediar a
Refinaria Duque de Caxias da Petrobras (REDUC), responsável pela produção de 80% da
produção de lubrificantes e a maior produtora de gás natural. Lembrou que, em contrapartida,
neste mesmo ano de 2013, a Secretaria Municipal de Cultura de Duque de Caxias teve um
orçamento de apenas R$ 3 milhões para as atividades de manutenção de espaços culturais,
gastos correntes e investimentos em projetos culturais municipais.
Salientou, ainda, que essa falta de recursos teria impactado também o ânimo dos
participantes do Conselho Municipal de Cultura de Duque de Caxias. Dudu de Morro Agudo
acrescentou que esta desmotivação não era diferente no CMPC de Nova Iguaçu, onde
diversos praticantes culturais se afastaram no decorrer do ano de 2013. E, na visão dos dois
convidados, a política cultural nos demais municípios da Baixada Fluminense ainda se
caracteriza pela sua ausência. Lamentaram a falta de uma política de esclarecimento do papel
dos conselhos municipais na formulação da política cultural e o aparelhamento político de
diversos conselhos8.
Heraldo HB fez questão, entretanto, de ressaltar a existência de diversas redes na
Baixada Fluminense e nos informou que são com essas redes que, na realidade, os praticantes
culturais contam. Lembrou que existem pessoas, grupos, coletivos e manifestações culturais
que vivenciam as dificuldades e compartilham da vontade de realizar suas ações na Baixada
Fluminense. Analisou que, por conta destas dificuldades, o que a literatura especializada
chama de desenvolvimento de determinadas tecnologias sociais, são, para os praticantes

8
Temos conselhos municipais de cultura funcionando nas seguintes cidades da Baixada Fluminense: Belford
Roxo, Duque de Caxias, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti.

741

V V
culturais da Baixada Fluminense (BF), ações de sobrevivência e táticas criadas para
conseguirem atuar na região. As tentativas de silenciamento das ações e dos potenciais
artísticos da Baixada Fluminense, associadas com um discurso filantrópico da necessidade de
se apresentar o que é feito na BF, é respondido por Heraldo da seguinte forma: “nós sempre
estivemos aqui e sempre fizemos ações culturais. Se muitos não nos viam é porque não
tinham olhos para enxergar, pois eu há muitos anos vejo o que vem sendo feito na Baixada
Fluminense e continuo falando que aqui não é só estereótipo. É potencia e ação”.
A fala de Heraldo nos despertou para discutirmos a importância de pensarmos
pluralmente e na necessidade de conhecermos o outro para podermos implementar projetos
colaborativos. Nessa concepção, fomos buscar abrigo junto a um economista marroquino pós-
colonialista, Hassan Zaoual. O autor nos lembra que é tempo de diversidade e de
interculturalidade. O homo econômico, racional e eficiente, que reinou durante a
modernidade, deve ser substituído pelo homo sito, homem social que pensa e age utilizando
experiências vividas em espaços vividos. Heraldo HB, ao falar das redes com as quais os
praticantes efetivamente contam, nos aproxima da “epistemologia suave, contrariamente às
ciências do homem que persistem em imitar, compulsivamente, os antigos modelos obsoletos
das ciências ditas exatas” e que em decorrência disso, “perdem de vista o homem e sua
complexidade” (ZAOUAL, 2006, p. 17). A Baixada Fluminense não é homogênea e suas
redes são complexas.

APONTAMENTOS SURGIDOS
Nesta fase da pesquisa estamos longe de obtermos conclusões. Porém, uma análise
preliminar das rodas de conversas até aqui realizadas apontam para uma anemia de políticas
culturais articuladas no território da Baixada Fluminense. A despeito da existência do Fórum
Permanente de Gestores Públicos de Cultura da Baixada Fluminense, este se vê enfraquecido
pela própria falta de apoio interno que as Secretarias Municipais de Cultura padecem na
região. Só entre o final de 2014 e início de 2015 foram extintas as secretarias municipais de
cultura de São João de Meriti e de Mesquita. Em ambos os casos tornaram-se subsecretarias
das Secretarias Municipais de Educação. E, no bojo da política de austeridade fiscal, há
rumores que outros municípios da região farão o mesmo.
Podemos apontar, também, a partir das conversas, a falta de diálogo entre os
praticantes culturais e os formuladores das políticas culturais locais. Com o enfraquecimento
dos Conselhos Municipais de Cultura, apontado tanto pelo representante do Movimento

742

V V
Enraizados, como pelo representante do Cineclube Mate com Angu, acabamos retornando ao
cenário em que o secretário de cultura (ou subsecretário) volta a ser o formulador e executor
da política cultural.
E, por fim, cabe ficarmos atentos, no decorrer da pesquisa, às redes constituídas pelos
grupos e praticantes culturais, que parecem estar realizando uma ação política, e porque não
dizer, produzindo uma política cultural, de resistência, sobrevivência e solidariedade.
Além de pistas, nos parece que essas experiências que vem acontecendo entre os
praticantes culturais são importantes para informar que algo de novo se mantém vivo na base
e no local. São essas experiências de participação que estão apresentando um novo modo de
fazer política na área cultural.

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ZAOUAL, Hassan. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global.
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744

V V
POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E USOS TURÍSTICOS DO
PATRIMÔNIO NO CARIRI CEARENSE
José Italo Bezerra Viana1

RESUMO: O texto discute a relação entre políticas culturais e turismo num quadro de
produção social do patrimônio no sul do Ceará, na região conhecida como Cariri,
considerando que a partir da segunda metade do século XX se estabeleceu ali um debate
relativo ao fenômeno da cultura e sua valorização, bem como ao impacto socioeconômico do
desenvolvimento de políticas culturais regionais.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio, cultura e turismo.

Situada no limite sul do estado, a região do Cariri é um pedaço do território cearense


cujos contornos identitários são marcados pela parte circundada pela Chapada do Araripe, lá
onde as cidades de Barbalha, Crato e Juazeiro do Norte compõem o Vale do Cariri, incrustado
no sopé da serra e fazendo fronteira com os estados de Pernambuco, Paraíba e Piauí.
Sob a influência de elevação da Chapada do Araripe, o Cariri conserva certa umidade
que favorece a abundância de água e fertilidade do solo, contrastando com a paisagem
semiárida que o cerca. Aliás, essa é uma característica que tem sido exaltada como dádiva
pelo menos desde o segundo quartel do século XIX, quando o olhar de diversos viajantes
elencou as belezas, destacou as singularidades e descreveu os habitantes e seus costumes.
Esse discurso telúrico serviu às intenções de transmitir significados instauradores de uma
identidade que se pressupunha tipicamente caririense.
A despeito de essas representações terem variado em função das configurações
históricas e dos interesses em jogo, elas criaram imagens emblemáticas, ícones, símbolos e
enunciados que disputaram e compartilharam identidades, numa intricada urdidura de
territórios que imaginava Juazeiro como um lugar a meio caminho entre o céu e a terra,
supostamente marcado pelo fanatismo religioso, mas também pela modernização; Crato como
a cidade que teria por sina o projeto civilizador que fizera “nascer culturalmente” aquela
região e Barbalha, por sua vez, como um lugar pretensamente marcado pelos valores mais
característicos ou puros da cultura popular, como fosse uma espécie de ponto de observação
que ofereceria uma visão panorâmica do folclore do Cariri.
1
Doutorando em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail: italobezerra776@hotmail.com

745

V V
Tendo por base essas referências, fundou-se uma tradição identitária que até hoje é
frequentemente apresentada de forma colorida, artesanal, festiva e folclórica e que as políticas
públicas de cultura e turismo tem se preocupado em transmitir por intermédio do patrimônio
cultural.
A partir dessas observações, este artigo discute a configuração de políticas públicas
em torno do patrimônio cultural e sua interface com as políticas de turismo, valendo-se do
argumento de que naquela região o patrimônio cultural tornou-se um produto rentável de
oferta turística e de considerável importância política, já que também significou a construção
de uma representação do passado, da história, da cultura, da memória e da própria noção de
região do Cariri.
De fato, a percepção de que o turismo se constituía numa atividade potencialmente
benéfica ao desenvolvimento econômico, social e cultural dos países, estados e municípios foi
compartilhada e sobejamente divulgada pela imprensa, pelos intelectuais e líderes políticos
das principais cidades da região do Cariri a partir da década de 1960. É que naquela época o
turismo estava assumindo importância no universo de possibilidades de defesa e proteção do
patrimônio cultural e, assim sendo, as questões que giravam em torno das potencialidades
turísticas do Cariri passaram a fazer parte da estratégia de desenvolvimento econômico e
cultural dos municípios de Barbalha, Crato e Juazeiro do Norte, como meio de consagrar suas
“peculiaridades” e atestar a diversidade de opções que poderia tornar possível a “indústria
turística” naquela que ainda hoje é chamada por muitos como “região dos verdes canaviais”.
Na realidade, essa discussão fazia parte de um movimento muito maior, situada num
contexto internacional e no âmbito de especialistas, que estava associando a importância
econômica do turismo à defesa e preservação do patrimônio cultural. Na Recomendação de
Paris, documento resultante da 12ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 1962,
encontra-se bem expressa a preocupação em incorporar os órgãos de fomento ao turismo nos
Estados-membros a outros organismos “encarregados da proteção da natureza” (CURY, 2000,
pp. 82-83).
No Cariri, o sentido dessa valorização estava atrelado à atribuição de qualidades tidas
por típicas e autênticas, na perspectiva de deixar bem marcado que o turismo naquela região, a
despeito de ser uma atividade incipiente, ofereceria aos indivíduos dos mais distintos lugares
a possibilidade – quase uma promessa – de experiência única e diferenciada, com especial
destaque para os aspectos da natureza e as vantagens de sua fruição:
Somente quem conhece os focos principais de atração turística do
interior do Nordeste poderá avaliar os imensos recursos que oferece o Cariri

746

V V
cearense nesse setor [...]. Nosso Cariri é bem diferente e vale a pena a
gente ver. Verdes as encostas da serra que emolduram o Vale, os baixios e
brejos, tudo verde o ano todo, até onde alcança a vista. Fontes perenes por
toda a parte, bicas, cascatas, em meio a vegetação mais luxuriante. O clima
também é bom. Pode-se andar à vontade, léguas seguidas, e enche-se a vista
com as mais belas paisagens [...]. Nada ficamos a dever às cidades serranas
do Estado do Rio [de Janeiro] (ARARIPE, Jósio de Alencar. Turismo no
Cariri. Jornal A AÇÃO, 01/09/1973, p. 02 – grifo meu).

O entendimento do autor deste artigo de jornal era de que havia ali uma natureza
privilegiada e exuberante, pronta para ser conhecida e divulgada. Por pensar assim, ele estava
sugerindo a formatação de um “produto” para consumo turístico:
[...] Basta ajeitar um pouco o que a natureza nos deu
prodigamente [...]. Assim é o Cariri, que poucos cearenses conhecem, e
que poderíamos orgulhosamente mostrar a todo mundo, se os Governos
nos dessem a mão, para dotar a Região de uma infraestrutura turística
eficiente [...]. Como em tudo o mais, também no turismo o Cariri ajudará o
Ceará a faturar muito mais. Desde que nos ajudem, a Região poderá se
transformar na Meca do turismo nordestino (Idem – grifos meu).

Diante do quadro pintado por Jósio de Alencar Araripe, autor do referido artigo, estava
sendo feito um chamamento ao estado do Ceará, por meio de suas estruturas administrativas,
para que se adotassem políticas públicas favoráveis ao desenvolvimento do turismo no Cariri.
Enfatizando as oportunidades de desenvolvimento turístico e econômico, Jósio Araripe
insistia na defesa da necessidade de ações institucionais que promovessem as atrações
turísticas locais, criassem novos atrativos turísticos e garantissem a infraestrutura necessária
ao desenvolvimento do turismo naquela região. Tais ações eram entendidas por Jósio Araripe
como obra de interesse coletivo, com considerável importância para a promoção comercial de
algumas cidades da região, para divulgação cultural das “riquezas locais” e, sobretudo, para o
crescimento do turismo interno.
É preciso referenciar que a preocupação de Jósio Araripe em afirmar que poucos
cearenses conheciam o Cariri e seus “imensos recursos” turísticos fazia parte de um crescente
movimento nacional que a partir da década de 1970 agia em favor do incentivo ao chamado
turismo interno. Segundo a historiadora Leila Bianchi Aguiar (2010), a proposta de criar uma
espécie de “mentalidade do turismo interno” foi reforçada através de uma campanha
publicitária veiculada no ano de 1972, logo após a Reunião Oficial de Turismo, promovida
pela Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR), cujo objetivo central foi assim
apresentado:
Cremos que o ponto de partida é incutir [n]a classe A, a que dita
moda, que fazer turismo no próprio país também é status [...]. Há ainda, a
intenção de despertar nas pessoas um certo sentimento de culpa, ou mesmo

747

V V
de vergonha, pelo fato de não conhecerem certos lugares e coisas que vez
por outra são citadas nas conversas, inclusive as sofisticadas. É, pois, uma
alfinetada na vaidade humana (EMBRATUR apud AGUIAR, 2010, p. 08).

Aliado a esse processo, o Estado do Ceará dava os seus primeiros passos para
planificação e exploração da atividade turística. Apesar de naquele momento ser timidamente
organizada e basicamente restrita à capital cearense, a atividade turística no Ceará foi pensada
com bastante força a partir dos anos 1970 (OLIVEIRA, 2013), sobretudo no sentido de
promover e dinamizar a “vida cultural” do estado, tornando a cultura um objeto de uso e de
consumo que deveria ser pensado regionalmente, ao mesmo tempo em que as diversas regiões
do estado passaram a ser pensadas culturalmente.
Dito de outro modo, o que estava acontecendo era o estabelecimento de fronteiras
naturais e culturais dentro do espaço comum do Ceará que projetava a imagem desse estado
com base em “repertórios culturais regionais” (SANTOS, 2010, p. 59). Esses repertórios, que
deveriam ser compostos pelos saberes, fazeres e artefatos representavam a possibilidade do
estado municiar-se de referências identitárias, também percebidas como parte integrante do
patrimônio cultural cearense.
Assim, entre meados dos anos 1960 e ao longo da década de 1970 estava em curso um
processo de construção turística das paisagens cearenses (MENESES, 2002) que selecionava
determinados aspectos necessários à configuração do repertório cultural das diversas regiões
do estado. Vale a pena assinalar esse processo por meio de uma matéria que foi veiculada pelo
jornal O Povo, na edição de 12 de Agosto de 1975:
Com um total de nove proposições, o Governo do Estado
encaminhou à Secretaria de Planejamento da Presidência da República um
estudo detalhado das potencialidades turísticas do Ceará, bem como sobre os
problemas que terão de ser resolvidos com vistas a aproveitar tais
potencialidades [...]. O estudo identifica como polos turísticos o litoral
(Costa do Sol), as serras da Ibiapaba e de Baturité, o Cariri e a Região Icó-
Jaguaribe-Orós. Os elementos de maior interesse turístico nessas áreas são
as praias ensolaradas, a gruta de Ubajara, [...], o balneário da barragem de
Carnaubal, [...], os balneários em Crato e Limoeiro do Norte e estância do
Caldas [em Barbalha], além de outros, entre os quais devem ser incluídos
os próprios micro-climas tropicais úmidos das serras mais elevadas, as
cidades místicas como Juazeiro do Norte e Canindé, as cidades históricas
Aracati, Aquirás, Icó e Sobral, e os principais centros produtores de
artesanato típico (Idem, p. 03 – grifo meu).

O referido estudo, elaborado em conjunto pela Empresa Cearense de Turismo, o


Banco do Nordeste e Secretaria de Planejamento e Coordenação do Estado, fazia a associação
entre turismo, patrimônio cultural e identidade regional no Ceará como parte integrante do

748

V V
projeto desenvolvimentista do Governo Cesar Cals (1971-1975). Servirá de exemplo para
ilustrar os esforços do governo estadual nesse setor a criação da Empresa Cearense de
Turismo (EMCETUR)2 e da Feira dos Municípios, ambas datadas de 1971, que tinham como
objetivo desenvolver programas para o incremento da atividade turística e divulgação das
potencialidades do Ceará, realizando um trabalho maior de sistematização e promoção do
turismo enquanto atividade econômica rentável para o estado do Ceará.
No contexto nacional, a regulação do turismo era de responsabilidade de um órgão
estatal, a Empresa Brasileira de Turismo – EMBRATUR, que fora criada através do Decreto-
Lei nº 55, de 18 de novembro de 1966, e com estrutura semelhante à extinta Comissão
Brasileira de Turismo – COMBRATUR, criada no ano de 1958. A historiadora Leila Bianchi
Aguiar afirma que para além de desenvolver políticas de incentivo ao turismo a EMBRATUR
tinha também a função de “melhorar a imagem do país no exterior, abalada pelo golpe militar
e pelas violências cometidas a partir de então” (2010, p. 06).
Nesse intricado cenário, alguns órgãos federais tentaram conciliar a atividade de
preservação do patrimônio cultural e o desenvolvimento econômico, investindo intensamente
nos projetos relativos ao turismo. É daí que surge, em 1973, o Programa Integrado de
Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste com sua utilização para Fins Turísticos,
mais conhecido como Programa de Cidades Históricas (PCH), cuja finalidade era “efetivar
estudos sobre a situação do patrimônio histórico do Nordeste, possibilitando uma restauração
e aproveitamento integrados” que visavam atender ao objetivo do governo federal de “geração
de renda no Nordeste, como fruto dos benefícios esperados das atividades ligadas ao turismo
a ser despertado na Região”, segundo o que consta no documento “Exposição de Motivos
076-B/1973” submetido pelo grupo de trabalho do PCH à Presidência da República em 31 de
Maio de 1973.
A historiadora Lucia Lippi Oliveira (2010, p. 125) apresentou algumas das ações de
preservação do patrimônio em cidades nordestinas que podem ser creditados ao PCH: “A
recuperação do largo do Pelourinho (Salvador), diversas restaurações em Olinda, a
restauração do Forte dos Reis Magos (Natal), o início dos trabalhos nos sobrados de São Luís,
a restauração do Teatro José de Alencar (Fortaleza) e do Teatro 4 de Setembro (Teresina)”.
Deve-se também atribuir ao PCH a restauração do Sobrado nº 21, situado na Rua da
Matriz, na cidade de Barbalha, que foi construído em 1859, nos moldes dos sobrados da Rua

2
A Empresa Cearense de Turismo foi criada pela Lei nº 9.511, de 13 de setembro de 1971. Era uma empresa de
economia mista, que tinha como maior acionista (51%) o governo do Estado do Ceará.

749

V V
Imperatriz, no Recife, a mando do comerciante Antônio Manoel Sampaio, edificação que foi
protegida pelo Tombo Estadual (Lei nº 9.109 de 30 de julho de 1968, decreto n° 16.237 de 30
de novembro de 1983) decorrido pouco mais de um século de sua construção.
Em Barbalha, as obras do PCH foram iniciadas no ano de 1976 e concluídas em 1980,
tendo sido investido um valor aproximado de três milhões de cruzeiros (CORRÊA, 2012, p.
280) para a recuperação do sobrado que, adaptado às funções de hotel, tornou-se conhecido na
cidade como Casarão Hotel. Atualmente, a edificação abriga a Secretaria de Cultura e a
Biblioteca Pública Municipal.
De fato, o PCH foi uma importante experiência na área do aproveitamento turístico do
patrimônio e sua integração aos planos de desenvolvimento econômico. A ideia, no entanto,
não era completamente nova, já que desde o início dos anos 1960 estava sendo reservado um
grande espaço para a discussão desse tema em âmbito internacional (CURY, 2000, p. 113).
Convém ressaltar que naquele momento o encorajamento e a assistência ao turismo no
Cariri foram estimulados através de ações de valorização dos aspectos naturais. Vejamos:
A Serra do Araripe continua dormindo em berço esplêndido, à
espera de que [sic] as autoridades cearenses resolvam a fazer [sic] uma
pesquisa de base, baseada em análise científica a respeito de suas
potencialidades. Esse imenso resto de um colosso de serra que existiu no
Nordeste na época terciária [...] ainda está aí a desafiar os homens e os
governos. A Serra é uma imensa visão azul que é vista de quase todo o sul
cearense e dos distantes rincões pernambucanos na sua linha cortando o
horizonte. Tem cerca de 180 km de extensão, por 35 a 60 km de largura e
uma altura média de 600/800m acima do nível do mar. A formação arenosa
dos terrenos rapidamente embebe a água de todas as chuvas, anos após ano e
a sua inclinação violenta para os lados cearenses favorece a esplendorosa
explosão de fontes cristalinas, que jamais secam, anos após ano, mesmo nos
anos de secas mais rigorosas! [...]. Riquezas minerais incalculáveis dominam
o panorama da Serra [...]. Riquezas minerais que poderiam servir à economia
cearense. Riquezas vegetais que na parte da Floresta sofrem impiedosa,
criminosa e devastadora destruição [...]. A Serra com um microclima
espetacular, que favorece a indústria do turismo, das caçadas, dos
velódromos e autódromos, dos aeroportos sem fim, dos mirantes
espetaculares [...]. A Serra que é um patrimônio vivo – esperança e redenção
do Cariri e do Ceará aguarda, tranquilamente, a criação de um Grupo de
Trabalho, de técnicos variados, de diversas especialidades, para preparar um
estudo completo sobre suas potencialidades. A Serra que é a riqueza, o
patrimônio maior do Cariri – que jaz esquecida da tecnologia e da ciência,
como se zelosa se resguardasse para o futuro, para no futuro dar tudo o que
pode em benefício do seu povo! (AQUINO, J. Lindemberg de.
Potencialidade da Serra do Araripe In: Jornal A Ação, 11/11/1972, p. 02)

Apresentando de forma resumida os supostos benefícios que seriam oriundos do


desenvolvimento do turismo na região do Cariri, a passagem acima oferece pistas importantes

750

V V
para pensar como a Serra do Araripe foi representada enquanto um espaço onde diferentes
temporalidades encontravam lugar. “Aberta” aos visitantes, a Serra do Araripe responderia ao
imediatismo do tempo do turismo, que é o tempo do movimento e da transformação. As ações
de planejamento que deveriam marcar e guiar este processo seriam orientadas pela
preocupação com a proteção, ou melhor, com a preservação (do futuro) da floresta, a fim de
evitar sua “impiedosa, criminosa e devastadora destruição”.
Tentava-se ainda ajustar o presente e o passado, mostrando como “esse resto de um
colosso de serra” poderia se tornar um produto do encontro entre o novo e o antigo, concebido
em uma incubadora de projetos “da tecnologia e da ciência” que revelassem muito mais sobre
suas potencialidades e servisse de incremento ao desenvolvimento econômico, tanto do estado
do Ceará quanto da região do Cariri. Nessa formulação, a Serra do Araripe descrita por
Lindemberg de Aquino permitia ordenar e engrenar as categorias de passado, presente e
futuro dando-lhe um sentido: o da patrimonialização do meio ambiente.
Para além da discussão do aproveitamento das “potencialidades econômico-turística
da Serra do Araripe, uma matéria publicada no semanário A Ação, no dia 18 de janeiro de
1969 (p. 06) enfatizava os aspectos “sociais, folclóricos e outros do manancial da Serra”
enquanto elementos “do nosso entranhado amor a esse trecho da natureza, tão característico e
invulgar no interior do Brasil” (Idem). A essa visão idílica do Cariri, somou-se uma campanha
de defesa em torno da “promissora associação” entre folclore, natureza e turismo, encetada
por um grupo intelectual da cidade do Crato que lançou a proposta de criação de um roteiro
turístico para região do Cariri.
Nos anos 1960 este grupo, reunido em torno do Instituto Cultural do Cariri (ICC) 3,
estava convencido de que no roteiro turístico daquela região não deveriam faltar elementos
que atestassem uma “especial” diferenciação geográfica, histórica e, sobretudo, cultural do
Cariri em relação ao restante do Ceará e mesmo do Nordeste. Para tanto, os intelectuais do
ICC sugeriram aos prefeitos das cidades de Barbalha, Crato e Juazeiro a formação de um
grupo de trabalho para o turismo naquela que eles acreditavam piamente ser “uma das mais
ricas e mais promissoras zonas onde se poderá implantar um plano de aproveitamento
turístico no Nordeste do país” (Revista ITAYTERA, 1961, nº 06, p. 79). Uma ideia era fixa:

3
Inaugurado no ano de 1953, o Instituto Cultural do Cariri (ICC) orientou-se pela preocupação de fazer um
inventário de lembranças das experiências do passado, tendendo a organiza-lo num todo coerente e dotado de
sentido, que passou a ser conhecido pelo nome de História do Cariri. Este grupo trabalhou incansavelmente no
agenciamento de bens culturais que resultou no processo de patrimonialização da referida região. VIANA, J.
Italo Bezerra. O Instituto Cultural do Cariri e o centenário do Crato: memória, escrita da história e
representações da cidade. Dissertação de Mestrado. Fortaleza: UFC, 2011.

751

V V
fazer do turismo uma forma de contato com aquilo que, supostamente, o Cariri tinha de mais
característico e peculiar: a cultura local.
Para justificar esta proposta, a imprensa não cansava de divulgar “a riqueza potencial”
das cidades vizinhas e diariamente destacava a suposta contribuição destas para o incremento
da atividade turística naquela região. Foi assim que no Crato passou-se a veicular a notícia de
que começavam os estudos e obras de “aproveitamento turístico da fonte do Caldas, situada
no município de Barbalha” (Jornal A Ação, 21/10/1967, p. 01) e que estava sendo iniciada,
em Juazeiro, a construção de “uma grande obra de fundo turístico: o monumento ao Padre
Cícero” (Jornal A Ação, 23/03/1968, p. 09). Também em Juazeiro, o jornal Gazeta de
Notícias (01/11/1969, p. 08) informou da existência de uma “grande feira” que representava
“uma festa aos olhos [do turista] e um convite ao bolso do cliente que goste de lembranças,
coisas do artesanato, joias [...] fabricadas por ourives dedicados, tudo enfim que seja típico e
representa a cidade” (Idem).
Até mesmo em Fortaleza a imprensa dava conta que o Cariri possuía condições para a
“indústria turística”, e uma matéria veiculada no jornal O POVO – reproduzida na segunda
página do Jornal A Ação, edição de 03 de agosto de 1968 –, ressaltou que “qualquer
planejamento turístico só logrará êxito se for global, se, em última análise, abranger os
municípios de Juazeiro, Crato e Barbalha com suas imensas potencialidades”.
O fato é que o mesmo discurso que falava em nome da região dava um destaque
assimétrico às diferentes cidades que a compunham. Sendo assim, os intelectuais locais
adoravam criar a ideia dessa coisa linda que seria a região do Cariri, mas que não poderia ser
qualquer Cariri. Tinha de ser um Cariri muito bem diagramado, um Cariri “autêntico”!
Indicando um movimento de mercantilização do patrimônio cultural a partir de sua
pretensa autenticidade, o artesanato e o folclore passavam produzidos na região passaram a
funcionar como elemento propulsor do desenvolvimento turístico, possibilitando tanto o
incremento da atividade econômica, quanto consolidando a comercialização dos artefatos –
classificados como artesanato – feitos a partir da madeira, gesso, palha, flandres, couro, argila,
além da xilogravura e literatura de cordel. Nesse movimento, as manifestações da cultura
popular – que alguns preferiam chamar de “folclore do Cariri” – também foram apresentadas
como um certificado de origem, supostamente revelador do “verdadeiro patrimônio” daquela
porção sul do Ceará.
Como se vê, aliado a outras iniciativas que se dispuseram a fundar tradições, o turismo
foi um dos principais elementos de “regionalização” e invenção do Cariri. Nesse sentido,

752

V V
inventar não significava partir do nada, pelo contrário, significava escolher as características
“tipicamente” caririenses, as pretensas expressões genuínas dos saberes e fazeres tradicionais
do povo pobre daquela região. Tratava-se, pois, de produzir subjetividades que para existirem
objetivamente deveriam ser reconhecidas e atualizadas.
No Ceará, os diversos artesanatos e grupos folclóricos são ainda
focos isolados que resistem de teimosos e sobrevivem por milagre. Núcleos
isolados no meio social, separados e distantes entre si, dissociados do calor
comunitário, mas jorrando em manifestações de beleza e modelos
fascinantes. Acreditamos que a estruturação da política turística urge ser
conduzida no sentido de proteger, dignificar e difundir o artesanato, a arte
popular e os grupos folclóricos, mas sem o perigo de alocá-los ou oficializá-
los, pois tudo que se oficializa deixa de ser folclore [...] (Jornal A Ação,
23/08/1975, p. 03).

Sob esse entendimento, a atividade turística parecia representar uma solução que daria
movimento àquelas “manifestações de beleza e modelos fascinantes” do folclore regional,
porém imobilizadas. Pensadas como sendo tradicionais por resistência, ou ainda como
“chamariz poderoso e irresistível”, essas manifestações deveriam estar cada vez mais
preocupadas em preservar e proteger seu suposto “caráter folclórico” e pela presumida força
atrativa de demanda turística.

ARTESANATO E FOLCLORE: PATRIMÔNIO CULTURAL E RECURSO


TURÍSTICO DO CARIRI.
A história da atividade artesanal na região do Cariri alimenta-se de um repertório de
narrativas que afirma ter sido o Padre Cícero o seu maior incentivador, mormente nos dias em
que chegava um sem número de romeiros ao então povoado de Joaseiro, levados pela crença
de que Jesus Cristo ali se manifestava por meio do “milagre” da hóstia consagrada que vertia
sangue da boca da beata Maria de Araújo, fato que teria ocorrido no alvorecer da primeira
sexta-feira do mês de março do ano de 1889. Logo que se espalhou a notícia do “milagre da
hóstia”, milhares de pessoas partiram em romaria em direção ao pequeno vilarejo – que
possuía pouco mais de dois mil habitantes – onde vivia o Pe. Cícero Romão Batista desde o
dia em que o próprio Jesus Cristo lhe teria aparecido em sonho, incumbindo-o da missão de
cuidar dos pobres daquele povoado (DELLA CAVA, 1976).
Graças ao fluxo constante de pessoas, o povoado de Joaseiro crescia a passos largos e
era o referido padre quem dava o consentimento para viver e trabalhar ali. Como as
oportunidades de trabalho não eram fartas, Padre Cícero encaminhava alguns romeiros para a
lida nas terras sob sua administração e incentivava outros ao comércio de utensílios que ele
achava que os próprios romeiros poderiam produzir, como instrumentos de trabalho no campo

753

V V
(foice e enxada), artigos religiosos (santos, medalhas, terços e rosários) e de uso doméstico
(panelas e potes de barro).
Contados com múltiplas variantes, são frequentes os relatos que apontam como o
“padrinho” fazia para garantir trabalho e renda às famílias daquela localidade. Um dos mais
conhecidos diz que um romeiro recém-chegado e atravessando momento de grandes
dificuldades foi procurar o Padre Cícero em busca de auxílio, tendo sido aconselhado pelo
sacerdote a produzir o maior número possível de lamparinas. Mesmo sem entender bem o
porquê de produzir justamente lamparinas, o romeiro teria seguido os conselhos do padre e
este, por sua vez, logo teria tratado de anunciar na missa antecedente à procissão de Nossa
Senhora das Candeias que todos deveriam comparecer àquela celebração com uma lamparina
na mão, indicando a oficina daquele romeiro como o lugar onde os devotos deveriam comprar
seus candeeiros. Desde então, o romeiro nunca mais teria passado maiores necessidades. Diz-
se, ainda, que sua atividade fora tão exitosa que ele chegou a abrir um pequeno comércio onde
vendia não apenas lamparinas, mas também velas e imagens de santos esculpidas no gesso, na
madeira e no barro.
Para demonstrar o quanto Padre Cícero estimava e estimulava a produção artesanal, há
uma máxima a ele atribuída e ainda hoje recorrente na região do Cariri, sobretudo na cidade
de Juazeiro: “Em cada casa um altar, em cada quintal uma oficina”, numa associação direta
com o lema beneditino ora et labora. Teria sido assim que o binômio trabalho e oração se
tornara responsável pela proliferação e diversificação das oficinas de produção artesanal em
Juazeiro, que não se restringiam ao quintal, indo também à sala e às calçadas das casas,
tornado o lugar conhecido enquanto “cidade-oficina” (RIOS, 1962). Daí em diante, “os
romeiros que vinham em busca da ‘cidade sagrada’ encontravam a ‘cidade profana’ que
oferecia possibilidades de sobrevivência através das atividades comerciais e artesanais”, como
disse o historiador Francisco Régis Lopes Ramos (2000, p. 90).
Segundo Sylvio Rabelo (1967, p. 73), “houve um tempo em que os ourives tomavam
conta de uma rua inteira. Os sapateiros e os seleiros igualmente se encontravam em todas as
ruas [daquela cidade]”. De lá pra cá, o artesanato de Juazeiro vem sendo apresentado como
fosse outra face do movimento religioso, sendo destacado pela venda de “imagens,
reproduções de santos, terços, raízes medicinais, enfim, de toda sorte de lembranças que os
peregrinos faziam questão de levar consigo na volta para casa” (MELO, 2010, p. 39).
No Nordeste, os contornos que delineavam o artesanato enquanto importante atividade
econômica foram traçados no final dos anos 1950, podendo ser acompanhados através do

754

V V
relatório elaborado pelo Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE), do
Banco do Nordeste do Brasil (BNB), intitulado “Aspectos Econômicos do Artesanato
Nordestino”. De acordo com a publicação, o trabalho que se apresentava naquele momento
era o resultado de uma pesquisa realizada “em quase todos os pontos de concentração do
artesanato nordestino”, que tinha como principal objetivo “estudar aspectos econômicos das
atividades artesanais, avaliar sua importância em termos de renda e de emprego, examinar
problemas de mercado, de matérias primas e estudar as [suas] possibilidades de
desenvolvimento” (ETENE/BNB, 1958, p. 08).
As informações disponíveis neste relatório apontavam o estado do Ceará como aquele
que concentrava maior diversidade de produtos e o maior volume de emprego em atividade de
caráter artesanal no Nordeste (Idem, p. 25). Na região do Cariri, só com a tipologia de cestaria
e trançados de palha estariam envolvidas, em Juazeiro do Norte, cerca de duzentas pessoas,
além daquelas que desenvolviam trabalhos de tecelagem manual por meio da produção de
redes de dormir. Há uma breve citação à participação da cidade do Crato neste setor, mas
apenas para indicar que ali fora encontrada uma pequena produção de cobertores e capachos,
bem como para afirmar que o diferencial do trabalho desenvolvido era o das redes bordadas à
mão. Quanto à Barbalha, essa cidade sequer foi citada. Em compensação, Juazeiro do Norte
ganhou significativo destaque na publicação, particularmente as ourivesarias instaladas
“desde as ruas centrais aos subúrbios”, que tinha o fluxo de vendas determinado pela
afluência de romeiros à cidade.
Pelo que diz o citado relatório, os compradores destes produtos eram provenientes das
“classes de renda mais baixa e de gosto menos apurado” (Ibidem, p. 37). De todo modo,
afirmava o relatório do ETENE, algumas das atividades ali desenvolvidas costumavam figurar
apenas nas maiores cidades do país, fato que faria de Juazeiro do Norte “um dos pontos de
maior concentração de artesanato e pequena indústria no Nordeste” (ETENE/BNB, 1958, p.
35).
Decorrida pouco mais de uma década da publicação desse relatório, a propaganda
positiva do artesanato de Juazeiro parecia incomodar algumas pessoas na cidade do Crato.
Houve até quem afirmasse ser o artesanato cratense “espontâneo e realmente artístico” (Jornal
A Ação, 12/06/1971, p. 06), enquanto o da vizinha cidade de Juazeiro estaria se aproveitando
das constantes romarias para alimentar a fama de “maior centro artesanal do Nordeste”.
Suponho que essa ideia, também apresentada de modo implícito no plano de ação da
prefeitura do Crato para o quatriênio 1973-1977, durante a gestão de Pedro Felício

755

V V
Cavalcanti, estava inferindo que o artesanato de Juazeiro teria um caráter muito mais utilitário
e restrito ao aspecto econômico do que o artesanato do Crato, que estaria mais relacionado ao
aspecto cultural, vinculado à tradição e, sob essa ótica, entendido como muito mais
“autêntico” ou pelo menos mais legítimo. Se esta interpretação não estiver equivocada, tal
percepção teria sido estimulada mediante o reconhecimento – por parte dos legisladores de
Juazeiro – do artesanato como o “sustentáculo da economia caririense”, fazendo com que a
Câmara de Vereadores aprovasse a lei municipal nº 297, de 1968, que instituía o Conselho
Municipal de Integração do Artesanato, “com a finalidade de criar condições para a
sobrevivência do artesanato da Terra do Padre Cícero” (Jornal A AÇÃO, 23/03/1968, p. 05).
Apesar das críticas destinadas à cidade vizinha, houve a inauguração de uma “loja do
artesão” no Crato, em 1972, sob o argumento de que já se fazia necessário ali um
estabelecimento que fosse responsável pela comercialização de “bonitos artigos regionais e
folclóricos” (Jornal A Ação, 21/10/1972, p. 07).
Esse fato seria revelador de uma contradição? Acredito que não. Afinal, não havia
uma dissociação do valor econômico em relação ao artesanato cratense, mas a ótica da
intelectualidade local considerava preferível apresentá-lo sob a perspectiva do valor
simbólico, uma vez que isso era o que lhe daria uma importante faceta comercial.
Vale destaca que no movimento de construção do Cariri folclórico (BEZERRA, 2013),
a tarefa a que se destinaram diversos intelectuais residia na apreensão do popular como
tradição. Dessa forma, o folclore do Cariri foi representado como celeiro da criatividade
popular; sublinhado como a “alma do povo” caririense; requerido como símbolo de identidade
regional; divulgado como um dos mais eficientes e duradouros instrumentos de projeção da
imagem daquela região. Além disso, a percepção dos objetos e costumes ditos populares
como uma tradição que estaria correndo o risco de se perder frente às tendências
modernizadoras da sociedade foi a justificativa lógica utilizada pelo discurso intelectual no
Cariri para fazer do folclore um atrativo turístico, um recurso simbólico através do qual se
pensava que as políticas culturais poderiam dinamizar o patrimônio da região.
O esforço para dar ao folclore um lugar dentro da atividade turística torna-se visível no
Ceará desde meados da década de 1960, quando a Divisão de Atividades Turísticas da
Secretaria de Cultura estabeleceu o levantamento dos “centros folclóricos” do Estado como
uma de suas competências, de modo a “preservá-los e animá-los à realização de festejos e
concentrações estimuladoras” (Revista Aspectos, nº 01, 1967, p. 251). O folclore passou a ser,
então, um dos alvos da política de turismo no Ceará (OLIVEIRA, 2013) e nesse cenário o

756

V V
Cariri se fez comparecer como um destino turístico que ofereceria a imagem de um povo
singular.
O Cariri tem no folclore uma de suas maiores riquezas [...] todos os
folguedos e artes populares peculiares à mesma [região], um numero
ilimitado de dansas [sic], festas, bailados e artezanato [sic] populares,
eivados de grande versatilidade e de riqueza indizível, capazes de
proporcionar os melhores momentos aos gostos mais requintados e de
fornecer material fabuloso para quantos se dedicam aos estudos do quantos
se dedicam aos estudos do folclore [...] (VASCONCELOS, Francisco. O
Folclore e a arte popular no Cariri. Reproduzido em Jornal A Ação,
23/05/1965, p. 05).

Para defender, “incentivar e divulgar o genuíno e rico folclore” da região, os


intelectuais que se fizeram folcloristas no Cariri criaram, no ano de 1966, na cidade do Crato,
o Clube dos Amigos do Folclore, uma agremiação que, na verdade, foi mais do discurso do
que da ação. Seus estudos buscavam ressaltar “naturais” divisões internas naquela região,
atribuindo uma predisposição inata do Crato para abrigar as manifestações do “autêntico” e
tradicional folclore do Cariri, pretensamente visíveis pela atuação das bandas cabaçais, ao
passo que Juazeiro deixaria sua marca nesse setor por meio do artesanato. Para a cidade de
Barbalha, os intelectuais do Instituto Cultural do Cariri, que eram os mesmos que compunham
o Clube dos Amigos do Folclore – e que foram os principais divulgadores da causa do
movimento folclórico brasileiro (VILHENA, 1997) na região –, tentaram naturalizar sua
condição de “capital da rapadura”, em alusão aos engenhos de moagem de cana-de-açúcar que
desde o século XIX foram a base de sustentação econômica daquela cidade (FIGUEIREDO
FILHO, 2010, p. 51).
O problema dessa classificação é que ela aprisiona dentro dos limites de cada um
desses municípios um universo de práticas culturais que, na realidade, se constituiu num
processo dinâmico e de interação. Com isso não estou querendo negar as características locais
de cada uma das três cidades mencionadas, pelo contrário, entendo que foram estas
características que ajudaram a definir suas identidades culturais e as especificidades do seu
processo histórico. Todavia, é preciso reconhecer que o valor do patrimônio cultural não é
apenas simbólico, sendo ele principalmente político. Dessa forma, será possível compreender
os esforços empreendidos em Barbalha para ser reconhecida pelo predicativo de “capital do
folclore” (Revista A Região, 15/07/1984, p. 91); a afirmação de que a cidade do Crato
abrigava “o maior e mais rico folclore do Estado” (Jornal A Ação, 05/12/1965, p. 03); ou
ainda a constatação de que “artistas em Juazeiro são como folha de mameleiro” (Jornal
Tribuna do Cariri, 25/12/1970, p. 02).

757

V V
Diante dessa realidade, esse trabalho tentou problematizar as singularidades
convencionalmente dadas, demonstrando como a relação entre políticas culturais e turismo
agiu no sentido de agenciar valores que veiculavam um sentimento de grupo e que permitiu
criar, manter e preservar um elemento de filiação coletiva, também chamado de identidade.
Ressalte-se que em razão das especificidades dos grupos sociais, a adoção de políticas
públicas de cultura torna-se paradoxal, pois se às vezes implica inclusão, por outras definem
isolamento. Nesse sentido, o entrelace das políticas de cultura e turismo pode ser percebido
como questão de um debate relativo ao fenômeno da cultura e sua valorização, bem como ao
impacto socioeconômico do desenvolvimento de políticas culturais regionais que reforçam ou
contrariam estereótipos que delas se constroem.
Evidentemente nem todas as prescrições aqui analisadas se converteram em ações
concretas ou marcos reguladores, mas elas reafirmavam os projetos que pensavam o
patrimônio cultural do Cariri como fonte de desenvolvimento econômico e também como
meio de acesso às políticas públicas que visassem a tomada de consciência do valor positivo
do investimento em cultura, revelando ainda seus usos sociais como forma de expressão,
formação e consolidação de identidade.

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759

V V
ENCONTRO DE SABERES : POLÍTICA DE INCLUSÃO DE MESTRES DAS
CULTURAS TRADICIONAIS NA DOCÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR
José Jorge de Carvalho1
Letícia C.R.Vianna2
Carla Águas3

RESUMO: O Projeto Encontro de Saberes é voltado para o reconhecimento de mestres de


notório saber na docência acadêmica, de modo a promover integração entre conhecimentos
acadêmicos e saberes tradicionais das culturas populares, indígenas, quilombolas.
Implementado em 2010, já é desenvolvido em seis universidades públicas brasileiras e em
uma colombiana. Resulta de uma parceria entre UnB, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Cultura (MinC) Ministério
da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e ao Ministério da Educação. Atende à meta
proposta pela Câmara Interministerial de Educação e Cultura, regulamentada por Portaria
Normativa em 2007, de inclusão de mestres de ofício e das artes tradicionais nos vários
níveis de ensino.

PALAVRAS-CHAVE: Encontro de Saberes; Estudos Culturais; Políticas de Inclusão.

Neste Seminário Internacional sobre Políticas Culturais gostaríamos de apresentar o


Projeto Encontro de Saberes, uma iniciativa inovadora implementada desde 2010, no sentido
do reconhecimento e valorização de mestres e mestras de notório saber nas várias áreas de
investigação e criação, de modo a promover diálogos e integração entre os conhecimentos
acadêmicos e os saberes tradicionais das culturas populares, indígenas e quilombolas. Teve
início na Universidade de Brasília e hoje alcança seis universidades públicas no Brasil e uma
universidade privada na Colômbia, com amplo potencial e prognóstico de expansão.
O Projeto tem como base o questionamento do cânone acadêmico marcado pela
rigidez das fronteiras disciplinares e por uma atitude eurocêntrica, que privilegia os saberes da
ciência ocidental moderna e exclui os saberes criados e reproduzidos no interior das

1
Doutor em Antropologia; professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília;
coordenador-geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa.
(jorgedc@terra.com.br)
2
Doutora em Antropologia; pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa.( viannaleticia@hotmail.com)
3
Doutora em Sociologia; pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
Superior e na Pesquisa.(es1.saberes@gmail.com)

760

V V
comunidades e grupos étnicos. Nesse sentido, propõe o desafio de criação de um ambiente
acadêmico marcado pela interdisciplinaridade, pela pedagogia intercultural, pela luta
antirracista e pela inclusão dos saberes indígenas, afrodescendentes e de outras comunidades
tradicionais como parte do cânone dos saberes válidos a serem ensinados e desenvolvidos, em
igualdade de condições com os saberes ocidentais modernos.
Em uma ação pioneira, em 2010 a disciplina “Encontro de Saberes: Artes e Ofícios
dos Mestres Tradicionais” foi incorporada à grade regular da graduação do Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília. Na UnB, já foram realizadas quatro edições na
modalidade de módulo livre, envolvendo diversas áreas de conhecimento. A partir de então,
atendendo a um compromisso estabelecido junto ao Ministério da Cultura, o projeto expandiu
sua abrangência, estendendo-se para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Estadual do Ceará (UECE),
Universidade Federal do Pará (UFPA), nos campi Belém e Bragança e Universidade Federal
do Sul da Bahia (UFSB), nos campi Ilhéus , Itabuna e Teixeira de Freitas. O projeto vem
também sendo desenvolvido desde 2010 na Pontíficia Universidad Javeriana, uma instituição
de excelência da Colômbia, país onde também se abrem novas perspectivas de expansão. No
total, o Encontro de Saberes já envolveu cerca de mil alunos de graduação e pós-graduação,
926 horas-aula e 68 mestres e mestras tradicionais.
A coordenção geral do Projeto é feita a partir do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia para a Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa - CNPq/UNB. Este INCT já vem
desenvolvendo o acompanhamento, monitoramento e estudos sobre a política de cotas raciais
para a discência no ensino superior; e, com a implementação do projeto Encontro de Saberes,
cumpre um objetivo de proporcionar a inclusão de mestres dos saberes tradicionais e
populares como docentes do Ensino Superior.
Em 2014, a promoção de diálogos entre diferentes paradigmas epistemológicos através
do Encontro de Saberes desdobrou-se em outras duas linhas de ação: como veremos mais
adiante, além do processo de inclusão na docência universitária, o projeto também vem
desenvolvendo uma cartografia de mestres e mestras dos saberes tradicionais e a
implementação de um Centro de Saberes e Trocas Tecnológicas no Alto Xingu

Estudos Culturais e Teorias da Complexidade


A proposta fundamenta-se teoricamente na confluência dos Estudos Culturais (no
âmbito das ciências humanas e sociais) com os Estudos da Complexidade (no âmbito das
ciências exatas) e baseia-se em uma perspectiva pedagógica que integra o pensar, o sentir e o

761

V V
fazer, o que sublinha o seu caráter vanguardista, tanto em termos teóricos quanto
metodológicos. Rompendo com a dicotomia sujeito/objeto, enfatiza o protagonismo de
indivíduos e coletividades geralmente enquadrados como objetos de estudos. Desta maneira,
coloca a ciência em intenso diálogo com um manancial de conhecimentos historicamente
invisibilizados.
Tal proposta parte do princípio de que os Estudos Culturais devem inovar teórica e
politicamente como resposta a ser dada em duas frentes: uma frente interna à universidade e
uma frente externa, ali onde o mundo acadêmico é somente uma parte da sociedade como um
todo (Carvalho, 2006). A frente interna é marcada pela crise geral do paradigma disciplinar
vigente e pela asfixia da formação curricular imposta nos cursos, tendo em conta que o atual
quadro acadêmico brasileiro é de uma esmagadora fragmentação das disciplinas.
Uma vez que as disciplinas estabelecidas são definidas canonicamente, os Estudos
Culturais, em contraste, podem ser caracterizados por não se limitarem a disciplinas ou teorias
exclusivas e independentes, ou cânones precisos. Os Estudos Culturais compreendem
fundamentos contraditórios, incomensuráveis, dissidentes ou totalmente convergentes e
complementares. Podem, inclusive, seguir conectados parcialmente com as áreas oficiais ou
canônicas, já que uma pessoa não necessita abandonar sua formação disciplinar para
participar de uma proposta interdisciplinar.
Os Estudos Culturais devem ser refundados com sua diversidade temática e teórica, o
que significa exercitar um pensamento complexo. As teorias da complexidade estão
interpelando praticamente todas as disciplinas e provocando revisões e transformações
epistêmicas radicais nos campos do saber. Já não parece satisfatório tentarmos fazer análises
críticas da cultura com base no mesmo paradigma cartesiano-newtoniano de posições fixas e
sempre com a mesma dimensão de escala. O tema do trânsito entre distintas escalas e a
articulação de qualidade com quantidade exigem formulações teóricas não clássicas – ou,
precisamente, complexas.
Immanuel Wallerstein (2005) menciona duas áreas do saber que, em sua opinião,
poderiam superar a divisão das chamadas “duas culturas”, segundo a já clássica distinção feita
por C.P. Snow entre as Ciências Exatas e Humanas. Essas duas novas áreas seriam as Teorias
da Complexidade, pelo lado das Ciências Exatas; e os Estudos Culturais, pelo lado das
Humanidades. Essa ideia proporciona a abertura epistêmica necessária para a idealização e
implementação do projeto. Observamos a necessidade de atualizar e ampliar a complexa
gramática teórica que transita ao redor dos Estudos Culturais e abrirmos o diálogo com as

762

V V
Teorias da Complexidade das últimas décadas, tais como as desenvolvidas por Edgar Morin,
Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, dentre tantos outros. Por exemplo, tentar expandir a teoria
da emergência, com base na história da Índia proposta por Homi Bhabha, em diálogo com os
teóricos da emergência do lado das Ciências Exatas, como Murray Gell-Mann.
Obviamente, será mais fácil fazê-lo se nos fixarmos em nossos processos locais e
regionais de emergência, dos quais citamos dois breves exemplos do Brasil. O primeiro é a
emergência vertiginosa da luta pelas cotas para negros e indígenas nas universidades; o
segundo é a retomada histórica de grupos étnicos que se acreditava extintos e que agora
emergem por caminhos simbólicos e políticos insólitos, projetados para além dos processos já
identificados pelos etnógrafos e historiadores.
O movimento intelectual deve ser o mais expansivo, aberto e inovador possível –
inclusive para expor a fragilidade da acusação frequente que fazem contra os Estudos
Culturais os acadêmicos das áreas estabelecidas, quando os chamam de superficiais. O oposto
é mais próximo da realidade, se pensarmos na densidade argumentativa interdisciplinar de
Stuart Hall, por exemplo. Quiçá tenha faltado até agora a construção de um protocolo que
permita iniciar um diálogo teórico com os autores equivalentes, em seu interesse pela
complexidade, de outras áreas mais próximas das Ciências Exatas.
É preciso enfatizar também que os Estudos Culturais englobam diferenças, mas não
têm como missão construir um algoritmo teórico-político para integrá-las em uma
convivência pacífica. A atitude que se busca é de acolhimento às diferenças em um espaço de
diálogo, mas às vezes com incomensurabilidades axiológicas ou ideológicas. Quando se
englobam diversas tendências teóricas e políticas, não há garantia de acordo prévio nem de
prioridade. Por exemplo, o chamado giro descolonizador é um giro simultâneo a outros giros.
A ideia dos Estudos Culturais é que se abracem todas as contradições, sem privilegiar
nenhuma em particular. Mas, obviamente, se todas as contradições devem ser externalizadas,
também a opressão mundial causada pelo capitalismo tardio não pode ficar ausente. Assim, os
Estudos Culturais devem investigar tanto a microfísica do poder, postulada por Foucault,
quanto o macro poder do sistema-mundo teorizado por Immanuel Wallerstein, Aníbal
Quijano, Frederic Jameson e David Harvey, entre outros.
Nesse sentido um dos temas-chave referentes à ruptura acadêmica com o
eurocentrismo é a possibilidade de aproximação entre duas posturas que se tornaram
antípodas em nosso universo acadêmico: a escrita e a oralidade. A escrita está hipertrofiada,
enquanto a oralidade está quase inteiramente atrofiada, e as duas modalidades de transmissão

763

V V
se separaram a um preço muito alto para ambas. Quando, ao abandonar as técnicas
mnemônicas, a universidade rejeitou a prática de memória longa, formou gerações de
cientistas, humanistas e profissionais de memória curta e, em alguns casos, inteiramente
dependentes dos artefatos protéticos das operações mentais que envolvem a memória longa.
Além disso, a própria separação escrita-memória é artificial, incompleta e fetichizada
negativamente por uma ideologia iluminista anacrônica, hegemônica em nossas universidades
modernistas e modernizantes, que celebram uma suposta libertação do logos frente às amarras
do mytho. Mas não se trata de cair em fantasias regressivas e fundamentalistas de uma
originalidade pura, centrada, a-histórica. Além disso, pode-se também argumentar que o
contexto da oralidade é muito diferente do contexto da escrita e que, por esta razão, trazer
mestres ao espaço da escrita hipertrofiada é atentar contra a vida da oralidade plena. Como
argumentou Derrida de um modo consistente, ambas as formas estão atravessadas pela
incompletude; assim, a oralidade não está necessariamente mais próxima da verdade do
su eito suposto saber que a escrita. Derrida desconstrói a aporia constitutiva da oposição
oralidade-escrita, oposição que foi imposta pelos acadêmicos quando expulsaram a oralidade
do seu meio (Derrida, 1971).
As Humanidades e as Ciências Sociais, produtoras e ao mesmo tempo vítimas do
fetichismo do escrito, optaram pelo suporte físico da escrita, como se ela fosse uma garantia
para a memória. No entanto, como disse Derrida, justamente esse suporte aparentemente
firme – esse phármakon – é também (e inseparavelmente do seu papel de remédio) um
veneno para a memória (Derrida, 1975).
Além disso, ambas – oralidade e escrita – sofrem também de seus respectivos “males
de arquivo”, para usar outra expressão de Derrida: nossas universidades dependem totalmente
de bibliotecas e nossa condição é sempre precária e subalterna, pois decidimos politicamente
avaliarmos a nós mesmos segundo os parâmetros das universidades dos países ocidentais
centrais, cada vez mais poderosas. Por outro lado, muitos sábios de tradição oral também
passam atualmente por crises de transmissão de saberes e o diálogo com o mundo da escrita
pode ajudá-los. Enfim, há uma escrita viva e inspiradora e uma escrita em crise; assim como
há uma oralidade igualmente viva e inspiradora e uma oralidade em crise.
Para reconectar o que havia sido desconectado, faz-se necessário, em primeiro lugar,
que os acadêmicos letrados reconheçamos, no nosso horizonte epistêmico pessoal, o saber dos
sábios ágrafos. Descolonizar-se, para um acadêmico latino-americano, significa, entre outras
coisas, admitir que não fomos capazes de incorporar plenamente os saberes dos mestres afros

764

V V
e indígenas, simplesmente porque atribuímos a posição de maestria apenas aos sábios dos
países centrais do Ocidente.
Podemos expandir nosso conceito de Humanidades, Ciências Sociais e Ciências
Exatas, para além do marco (eurocêntrico, ainda que lúcido) que fundamenta as análises de
Wallerstein. Para dialogar com os sistemas lógicos inconsistentes não-triviais (que poderiam
fundamentar a complexidade das identidades na sociedade contemporânea, tais como as
teorizadas por Stuart Hall, por exemplo), podemos nos aproximar de mitos amazônicos, como
alguns dos Barasana, que assinalam geometrias para-consistentes analisadas por Guillermo
Páramo. Em uma linha paralela, estão as reflexões de Viveiros de Castro sobre o pensamento
ameríndio, construídas em diálogo com o pensamento de filósofos da diferença, como Giles
Deleuze. Desde o lado das tradições religiosas afrodescendentes, estão também narrativas
míticas e formas rituais que desafiam as ontologias ocidentais clássicas.
Não se há que minimizar as dificuldades que se apresentam quando se tenta promover
um encontro de saberes tradicionais ágrafos com os saberes letrados ocidentais em um
ambiente universitário conservador e eurocêntrico. No entanto, já contamos com algumas
experiências interculturais desse tipo, que nos podem servir de referência, apesar das
consideráveis diferenças. Um exemplo atual é a Universidad Intercultural de las
acionalidades y Pueblos Indígenas “Amawtay Wasi”, do Equador.4 Outro exemplo de
reorganização institucional universitária é a Universidade Tibetana em Exílio, em
Dharamsala, Índia, onde muitos dos sábios tibetanos que escaparam de seu país ocupado
guardam, cada um deles, dezenas de livros inteiros em suas memórias e os transmitem por
esse meio; e, paralelamente, as ciências transmitidas pela escrita, orientais e ocidentais, são
ensinadas aos estudantes.
Finalmente, a Universidade Obafemi Awolowo, em Ilé-Ifé (cidade sagrada dos
Iorubás), na Nigéria, por muitos anos promoveu uma reunião anual internacional de
babalawos, sacerdotes de Ifá, o deus Iorubá do oráculo, que se manifesta através de longos
textos mítico-poéticos chamados odú. Cada sacerdote aprende a memorizar milhares de odús.
Esses encontros, organizados sob a liderança de Wande Abimbola (simultaneamente

4
Sobre o tema, ver Catherine Walsh (2006) e Luís Fernando Sarango (n.d.). Sobre uma síntese das várias
experiências interculturais indígenas nas universidades de doze países latino-americanos, ver Daniel Mato
(2008).

765

V V
acadêmico e sacerdote adivinho de Ifá), quando foi reitor da Universidade de Ilé-Ifé,
assinalaram um movimento concreto de descolonização do padrão eurocêntrico de
universidade imposto pelos britânicos, ao introduzir nela saberes tradicionais africanos.
Com certeza, os protocolos de interculturalidade são muitos, sendo a refundação dos
Estudos Culturais na América Latina uma parte desse esforço político-intelectual por
construir uma universidade descolonizada que tenha as seguintes características, dentre
outras:
a) O ensino deve ser poliglota e deve refletir a pluralidade linguística de cada país;
b) O ensino deve alternar ou combinar conteúdos de tradição oral com conteúdos
baseados na escrita;
c) Os estudantes devem ser negros, brancos, indígenas e das demais minorias –
idealmente em uma proporção equivalente à porcentagem de cada grupo na sociedade como
um todo;
d) Os protocolos pedagógicos devem ser variados e sempre sensíveis à realidade de
cada disciplina ou campo de saber;
e) Os professores devem ser de dois tipos: os sábios professores que tiveram estudos
formais em universidades ocidentalizadas; e os sábios sem formação ocidentalizada regular,
como os xamãs, pajés, babalaôs, artesãos, etc.;
f) Não deve haver exclusão nem hierarquia prévia dos saberes de nossas
sociedades, por suas origens epistêmicas, étnicas, raciais, geográficas, por seu suporte oral ou
escrito, ou qualquer outro tipo;
g) A autoridade relativa de cada saber será construída como resultado do Encontro
de Saberes.
Ainda que reconhecendo o caráter resumido e esquemático desse protocolo, que
sempre alcançará uma complexidade imprevisível quando tentarmos consolidar qualquer
proposta completa de intervenção, sugerimos que o utilizemos para comentar o processo de
descolonização de que tanto falamos nos últimos anos na América Latina. 5

O Encontro de Saberes
A questão se coloca , dessa maneira , no interior do mundo acadêmico, demandando
mudança epistêmica, temática e teórica nos vários campos do saber até então autônomos

5
Ver Flórez F.Juliana & Carvalho José Jorge (2014) Encontro de Saberes : Proyecto para decolonizar el
conocimento universitario eurocéntrico ; e Flórez F.Juliana & Carvalho José Jorge (2014) The meeting of
knowledges : a pro ect of the decolonization or universities in Latin America

766

V V
dentro dos departamentos e institutos universitários . E há outra dimensão muito importante
de se considerar que é a da interface externa , referente às demandas que a sociedade faz à
universidade.
No caso do Brasil é importante se considerar que as universidades no país são racistas
e segregacionistas desde sua criação. Observamos que a porcentagem de professores brancos
chega a 99% .Nesse contexto, a Universidade de Brasília foi uma das primeiras a aderir às
lutas pelas ações afirmativas no país. Em 1999 foi apresentada a primeira versão da proposta
de cotas para negros e indígenas; a qual foi aprovada apenas em 2003. Desde então várias
universidades aderiram de maneiras diferentes à proposta de cotas raciais.
Entendemos que o Projeto Encontro de Saberes deva ser um processo simultâneo ao
da inclusão de negros e indígenas como discentes através das cotas. As lutas pela inclusão
de negors e indígenas na discência e na docência são, portanto, constitutivas da refundação
dos Estudos Culturais.
A coordenção geral do Projeto Encontro de Saberes é feita pelo Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) – o qual vem
também desenvolvendo o acompanhamento, monitoramento e estudos sobre a política de
cotas raciais para a discência no ensino superior. Entende-se que o Projeto faz parte de um
processo de luta descolonizadora e antirracista, cujo primeiro passo foi abrir as portas para os
jovens afrodescendentes e indígenas para que também tivessem o direito de entrar como
estudantes em nossas universidades. O Projeto cumpre o objetivo de proporcionar
experiências de inclusão de mestres dos saberes tradicionais populares como docentes do
Ensino Superior. Assim como, através das cotas, pela primeira vez na história do nossos
sistema acadêmico, jovens não-brancos estão entrando nas universidades para estudarem com
professores brancos, é também a primeira vez que os estudantes brancos têm a oportunidade
de aprender com sábios negros e indígenas. Com o Encontro de Saberes, então, unificamos a
luta pela superação, de uma só vez, do racismo fenotípico e do eurocentrismo
monoepistêmico, ambos profundamente instalados em nossas universidades.
O projeto Encontro de Saberes é uma iniciativa estruturante do INCTI, que resulta de
uma parceria estabelecida junto à UnB, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), ao Ministério da Cultura (MinC) ao Ministério da Ciência, Tecnologia
e Inovação (MCTI) e ao Ministério da Educação. Atende à meta proposta pela Câmara
Interministerial de Educação e Cultura, regulamentada por Portaria Normativa Interministerial
em 2007, de incorporar os mestres de ofício e das artes tradicionais nos vários níveis de

767

V V
ensino. Para a execução do projeto, foi então formatada a metodologia para a implementação
da disciplina “Encontro de Saberes: Artes e Ofícios dos Mestres Tradicionais”, que faz parte
da grade horária regular da graduação do Departamento de Antropologia da Universidade de
Brasília, na modalidade de módulo livre.
Os mestres atuam lado a lado com professores parceiros, dotados de conhecimentos
acadêmicos de áreas afins, tais como Educação Ambiental, Música, Artes Cênicas e Ciências
da Saúde. É a partir deste encontro que emergem as convergências epistemológicas
viabilizadas pelo projeto, de caráter inédito no cenário educacional brasileiro.
O Encontro de Saberes teve início em julho de 2010 com um Seminário Internacional
para intercâmbio de experiências sul-americanas de inclusão dos saberes tradicionais nas
universidades, a partir de uma perspectiva descolonizadora e intercultural. O evento mais
extraordinário ocorrido no Seminário foi a conferência magistral de abertura, que esteve a
cargo de Mapulu Kamayurá, uma xamã do Parque Nacional do Xingu. Provavelmente foi esta
a primeira vez, na história das universidades brasileiras, que uma conferência magistral em
um seminário internacional foi proferida por um indígena (e, nesse caso, uma mulher), que
falou em seu idioma (Kamayurá) com tradução simultânea – exatamente como é costume se
fazer quando um conferencista ilustre fala em inglês, alemão ou outro idioma de prestígio.
Após a implementação do projeto-piloto na UnB, outras instituições de Ensino
Superior, em parceria com o INCTI, vêm abraçando a proposta e já é realizado pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Universidade Federal do Pará (UFPA),
nos campi Belém e Bragança e Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) , nos campi
Itabuna , Ilhéus e Teixeira de Freitas.
Além deste momento de ampliação em território nacional, o projeto vem sendo
replicado na Pontíficia Universidad Javeriana, uma instituição de excelência no Ensino
Superior colombiano. E, também naquele país, a proposta encontra-se em vias de
experimentar o seu próprio processo de expansão.
A execução das ações vem sendo organizada a partir de cinco grandes eixos: 1) o eixo
de sistematização e arquivo, que consiste na implementação de bases de dados relacionados à
temática dos saberes tradicionais; 2) O eixo de comunicação e divulgação, que envolve
mecanismos de registro, de disponibilização de acervos, de transferência de conhecimentos e
de dinamização de uma rede integrada de pesquisadores, mestres, órgãos públicos e outros
intervenientes; 3) O eixo de formação, cujo propósito é fomentar o debate em torno do

768

V V
processo de inclusão epistemológica, através da realização de eventos, formação de grupos de
pesquisa e da qualificação de novos quadros por meio da concessão de bolsas; 4) O eixo de
execução da disciplina propriamente dita, que fornece as bases para o processo de formação
intercultural no ensino regular; 5) O eixo de reconhecimento e validação, que visa contribuir
para a legitimação de outros paradigmas epistêmicos a partir dos mecanismos legais
atualmente disponíveis, tais como a lei do Notório Saber.
Nesse momento, o Projeto encontra-se em fase de consolidação e expansão,
tanto no âmbito do alcance geográfico e ampliação de rede de interlocutores quanto no âmbito
do desdobramento de linhas de ação e metas a atingir. Em termos gerais, podemos identificar
quatro linhas de ação estratégicas e estruturantes do Projeto: 1) dar continuidade à
implementação da disciplina na UnB e subsidiar um programa de implementação da
disciplina “Encontro de Saberes: Artes e Ofícios dos Mestres Tradicionais” no âmbito
acadêmico das universidades brasileiras, criando mecanismos de promoção da atribuição do
título de Notório Saber; 2) implementar uma cartografia de mestres dos saberes tradicionais
como instrumento de sistematização e difusão de conhecimentos que sirvam à gestão de
políticas de inclusão destes no ensino superior e programas oficiais de apoio e fomento; 3)
implementação de um Centro de Saberes Tradicionais no Alto Xingu como experiência piloto
de descentralização dos polos de pesquisa e ensino transdisciplinar no âmbito do Projeto
Encontro de Saberes, para além dos campus universitários, tendo em vista o desenvolvimento
científico local.
No que se refere à primeira linha de ação, além das estratégias já descritas acerca da
implementação da disciplina Encontro de Saberes, o grau de inovação vinculado ao projeto
exige a elaboração de produtos capazes de dar visibilidade e estimular a discussão em torno
de seus conteúdos. Nesse sentido, perante a expansão da disciplina nas universidades, uma
das vertentes do trabalho concentra-se na criação de caminhos de divulgação e fomento do
debate, tais como o desenvolvimento de ferramentas virtuais de articulação, a organização de
eventos, a formatação de grupos de pesquisa, a produção de documentários, videoaulas e
outros audiovisuais, além da preparação por etapas de inúmeras publicações em suporte papel
e/ou digital.
Outro aspecto metodológico intrinsecamente relacionado à execução da disciplina
propriamente dita é a viabilização de processos de certificação dos mestres dela participantes.
Através da produção de memoriais e reunião de documentos, vêm sendo elaborados processos

769

V V
de Notório Saber, a fim de que os mestres e mestras tradicionais possam gozar da mesma
autoridade dos regentes de cátedra, o que dá sustentabilidade à proposta inclusiva do projeto.
A segunda linha de ação refere-se à é a construção de uma Cartografia dos estres e
Expressões das Culturas Populares Tradicionais. Trata-se de uma ação estratégica que
proporciona a sistematização de conhecimento sobre a ocorrência territorial/espacial de
mestres dos saberes relativos à diversidade cultural, dando-lhes visibilidade para a articulação
e inclusão na docência e na pesquisa no âmbito acadêmico das universidades federais e
estaduais. Além de proporcionar subsídio interessante para as políticas relativas às culturas
populares implementadas nas esferas públicas da federação, tal como tem sido demandado
pelo Ministério da Cultura, sobretudo a partir do Plano Setorial Para as Culturas Populares de
2012.
No segundo semestre de 2014, o INCTI iniciou o processo de construção da
cartografia. Nesse sentido o ponto de partida pra o processo está fundamentado em quatro
premissas: 1) trata-se de construção complexa, tendo em vista as dimensões territoriais e
populacionais e a diversidade de saberes e expressões culturais no país. 2) pressupõe-se que
um mestre é o indicador elementar de ocorrência de expressões culturais tradicionais . 3)
todo o processo deverá ser permeado pela reflexão e aperfeiçoamento de critérios de
inclusão, densidade de conhecimento e taxonomia para inclusão na cartografia. 4) a
cartografia deve servir como um instrumento de gestão da política pública tanto para a
inclusão de mestres dos saberes tradicionais na docência e pesquisa, quanto na área das
políticas voltadas para as culturas populares e patrimônio imaterial.
O processo é de médio prazo, estando projetado para quatro anos a ser desenvolvido
em quatro fases com equipe especializada e multidisciplinar variável numericamente em
função das variadas demandas de cada etapa.
As fases : 1)mapeamento preliminar de mestres identificados por politicas estaduais e
federais recentes (em curso); 2) estudos dos critérios, categorias , taxonomias, informações
gerais utilizadas nestes processos de identificação e reconhecimento de mestres já em curso;
construção de piloto de metodologia com critérios, taxonomia e iconografia para a inclusão
na cartografia do INCTI, 3) implementação da metodologia da cartografia do INCTI; 4)
consolidação e ampla difusão da cartografia em diferentes mídias para os vários segmentos de
público (sendo que os resultados parciais vão sendo publicitados periodicamente).
O objetivo do esforço que se inicia é a construção de uma cartografia com o potencial
para ser uma instância de reconhecimento nacional e visibilidade de mestres das culturas

770

V V
tradicionais populares. Além de instância informativa sobre o tema, é também instância de
intercâmbio institucional e de gestão integrada de políticas. Para tanto, precisa ser uma
espécie de obra aberta em permanente atualização por uma rede de colaboradores que atuem
no mapeamento e monitoramento da ocorrência de mestres, expressões e saberes das culturas
populares tradicionais nos estados da federação articulada com políticas efetivas de inclusão
destes mestres na docência e pesquisa acadêmica e políticas de apoio , fomento e salvaguarda
dos saberes e expressões culturais em questão.
Por fim, a terceira linha de ação refere-se ao desenvolvimento de pesquisas
avançadas, através da implementação do Centro de Saberes e Trocas Tecnológicas nas
Comunidades Yawalapiti do Alto Xingu. Essa ação do INCTI consiste no desenvolvimento de
uma metodologia fundamentada na experiência dos Centros Vocacionais Tecnológicos
(SECIS/MCTI) junto a comunidades indígenas na região do Alto Xingu. A proposta tem
como atividades principais a execução de um projeto de formação intercultural na
comunidade Yawalapiti para a implementação de ações voltadas para: inclusão produtiva;
acesso aos conhecimentos científicos e tecnológicos em convergência com os saberes
tradicionais; segurança alimentar e nutricional; geração de energia limpa; e preservação dos
saberes orais e da memória.
Orientado por um marco epistêmico constituído ao longo do debate acerca das
políticas de ações afirmativas para grupos sociais historicamente excluídos no Brasil e
mantendo uma perspectiva intercultural de produção de conhecimentos, o Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino e na Pesquisa (INCTI) se propõe nesse projeto
a elaborar, em diálogo com a comunidade Yawalapiti, uma proposta de metodologia
intercultural de implementação de ações de intervenção junto a povos indígenas e povos e
comunidades tradicionais. Através dessa experiência espera-se oferecer aos poderes públicos
e à população em geral um novo marco orientador para a atuação junto a essas populações, de
forma a garantir o seu protagonismo, que por sua vez garante a sustentabilidade das ações,
bem como traduzir para os poderes públicos e para a sociedade nacional as demandas e as
formas de organização social que as estruturam.
As principais ações a serem desenvolvidas a partir do diagnóstico para a elaboração da
metodologia foram organizadas a partir de sete eixos: articulação institucional e formação de
parcerias com as organizações públicas e da sociedade civil; formação de equipe
multidisciplinar e inclusiva; formação de recursos humanos locais para garantia de
continuidade das ações; implantação de ações de produção de víveres, introdução de

771

V V
tecnologias adequadas à região para o cultivo; implementação do Centro de Saberes
Tradicionais e Trocas Tecnológicas do Alto Xingu; fortalecimento institucional para geração
de ações voltadas à preservação de saberes e inclusão produtiva com base sustentável.
Diante de tais ramificações dentro e fora do Brasil, faz parte do plano de ações do
Encontro de Saberes o estabelecimento de uma rede, capaz de articular e fomentar o diálogo
em torno do tema, congregando pesquisadores, mestres, mestras, instituições públicas e
demais intervenientes envolvidos nas ações e no debate. Nesse sentido, agradecemos
imensamente a oportunidade de participar desde Seminário apresentando o Projeto.

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773

V V
POLÍTICA DE REQUALIFICAÇÃO DOS CENTROS HISTÓRICOS NO
CONTEXTO DAS OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS: O CASO DO
PORTO MARAVILHA
Júlia Erminia Riscado1

RESUMO: O presente artigo busca problematizar a questão das políticas públicas de


reabilitação para o centro histórico do Rio de Janeiro no contexto do Projeto Porto Maravilha,
apresentando uma breve análise de suas ações de preservação e valorização patrimonial. Para
isso, serão observadas as linhas de ação do Projeto, o Porto Maravilha Cultural e o Porto
Maravilha Cidadão.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas – patrimônio – Rio de Janeiro

INTRODUÇÃO
A área de políticas públicas é reconhecida por seu caráter multidisciplinar,
promovendo uma interlocução entre diversas disciplinas e suas abordagens teóricas. No caso
da Ciência Política, por exemplo, é recorrente estudar as políticas “estáveis”, como as
políticas de habitação e de educação. De acordo com Paul Pierson (PIERSON, 2003),
contudo, é preciso destacar a relevância das demais políticas, (re)formuladas a partir de
interesses e modelos políticos específicos para compreender uma gestão e seu contexto
político, como descreve na passagem a seguir:
“Instituições políticas formais possuem maior poder de permanência,
porque os obstáculos à revisão são mais elevados. Como Robert Goodin
colocou, organizações políticas modernas possuem um sistema de “regras
aninhadas”, “com regras em cada nível sucessivo na hierarquia, sendo cada
vez mais oneroso o processo de mudança” (Goodin 1996, p. 202). Por conta
disso, as instituições formais chamam a nossa atenção já que são as
estruturas institucionais mais duráveis e, portanto, altamente racionais.
(...)
Mais importante, seria um grave erro para argumentar que o poder
de permanência de instituições, incluindo políticas públicas, repousa em
grande parte sobre a força de pontos de veto. Uma série de outras
características das instituições podem tornar uma revisão difícil, mesmo em
situações em que o equilíbrio entre os atores políticos ou outras
características relevantes do contexto social tenham sofrido alterações
significativas.” (PIERSON, 2003, p. 2)

1
Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e doutoranda em Ciência
Política na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: julia_riscado@yahoo.com.br;

774

V V
É a partir dessa perspectiva que o presente artigo procurará problematizar a
questão das políticas públicas de reabilitação para o centro histórico do Rio de Janeiro no
contexto do Projeto Porto Maravilha. Para tal, serão observados os programas Porto
Maravilha Cultural e Porto Maravilha Cidadão, ambos inseridos na estrutura do Projeto a fim
de compreender sua aplicação e seus prováveis impactos na região, que concentra obras de
modernização em contraposição ao vasto acervo arqueológico descoberto recentemente.

POLÍTICAS PÚBLICAS: BREVE DEBATE TEÓRICO


Entendendo que uma política passa por estágios e processos sociais relevantes para ser
implantada, é preciso destacar a relevância de uma abordagem teórica-conceitual que priorize
uma visão ampla sobre seus processos de constituição e ampliação. Observa-se ainda, a
necessidade de reconhecer a força de grupos quanto à natureza política dessas ações.
De acordo com Celina Souza (SOUZA, 2006), as análises sobre políticas públicas
devem implicar em responder a questão sobre o espaço que cabe aos governos na sua
definição e implementação. Tal afirmação se insere na perspectiva teórica que defende uma
autonomia relativa do Estado, reconhecendo seu espaço próprio de atuação e, ao mesmo
tempo, entendendo a possibilidade de influências externas e internas (SOUZA, 2004). Dessa
maneira, ainda que com uma atuação limitada, evidencia-se a participação social na
elaboração e no estabelecimento da problemática tratada ou a ser tratada.
Para Francisco Heidemann (HEIDEMANN e SALM, 2009), a instituição acabaria
servindo a sociedade em geral ao promover, de alguma forma, políticas públicas. Neste caso,
o autor entende que caberia ao ente estatal prever as fontes de execução das políticas enquanto
ao ente privado caberia se apropriar dos resultados positivos.
A complexidade de entendimento sobre o que seria uma política pública se manifesta
no entendimento inicial dos problemas e soluções. Nesse sentido, toma-se como referencial
metodológico parte da literatura sobre políticas públicas que a observa como um ciclo
deliberativo formado por um processo dinâmico (SOUZA, 2006). Embora entenda que os
processos são contínuos e, por vezes, sobrepostos metodologicamente, tal linha teórica divide
a análise de política pública pelas seguintes etapas: a agenda, a formulação, a decisão, a
implementação e a avaliação.
A forma como um problema é definido e articulado, concentrando a atenção dos
formuladores de políticas, pode determinar o sucesso de uma questão no processo de agenda-

775

V V
setting, no qual outros assuntos estão colocados, aguardando a atenção destes formuladores
(FUKS, 2000).
Diferentes atores buscam influenciar a agenda por meio da definição de um problema,
recorrendo à construção de narrativas baseadas na seleção de informações, dados, modelos, de
forma a favorecer um curso de argumentação e persuasão (GELINSKI e SEIBEL, 2008;
SOUZA, 2006). Além disso, esses atores utilizam-se dos meios institucionais e também do
controle de acesso ou mesmo do bloqueio de outros grupos à agenda.
A definição do problema é fundamental para que o Estado inclua o tema na sua
agenda, mas entrar na agenda governamental não significa, necessariamente, formular
políticas. Para isso, é preciso notar que o processo de formulação pode ser orientado por
especialistas, dentro e fora do governo, com a finalidade de desenvolver soluções para serem
adotadas pelo governo ou as soluções podem preceder os problemas (SOUZA, 2006).
Dessa maneira, o processo decisório torna-se o momento em que a intenção é afirmada
pelos atores com poder de definir um curso de ação ou, por outro lado, o momento de evitar
que uma ação seja tomada. Entre os modelos mais utilizados para análise do processo
decisório de políticas públicas é preciso destacar o modelo de racionalidade limitada e o
modelo incremental, ambos pautados na crítica ao modelo racional.
A crítica de Simon (SIMON, 1976) ao modelo racionalista está na sua ideia de que os
atores operam com “racionalidade limitada” (bounded rationality), o que influenciaria o
desenvolvimento de explicações alternativas sobre o processo decisório. O objetivo de Simon
seria aplicar o conhecimento em administração para resolver problemas de racionalidade
limitada nas organizações por meio do treinamento de servidores em técnicas de análise de
políticas públicas, seria possível desenvolver especialização e expertise no processamento de
informações. Assim, os servidores poderiam aplicar técnicas apropriadas para tornar a
organização mais eficiente (SIMON, 1976).
Pouco tempo após Simon apresentar o conceito de racionalidade limitada, Charles
Lindblom (LINDBLOM,1979) desenvolveu o modelo incremental no estudo das políticas
públicas. Segundo Lindblom, as restrições de tempo e de informações são alguns dos aspectos
que fazem com que os formuladores não consigam identificar as propostas alternativas e suas
consequências, como prevê o modelo racional.
A fase de implementação se configura no momento em que as políticas são postas em
prática. O aspecto principal, nesse momento, está em reconhecer os atores que influenciam o

776

V V
processo de implementação e quais seus impactos no resultado das políticas públicas (SILVA
e MELO, 2000).
De acordo com Maria O. Silva e Silva (SILVA E SILVA, 2001), a fase de avaliação se
caracteriza pela avaliação visando adequar os resultados às necessidades, pela equidade no
impacto da política pública e se a mesma satisfaz as necessidades da sociedade. Nesse
sentido, a avaliação pode ocorrer por meio de monitoramento ao longo de todo o processo ou
após a implementação da política pública.
Ao discorrer sobre as etapas de análise de uma política pública no presente
artigo, se evidencia a necessidade de observação de todo o processo: os objetivos da política
pública em questão; como vem sendo ou foi implementada; quem são e como vem sendo
beneficiados os atores sociais beneficiados pelos programas e projetos.

O PROJETO PORTO MARAVILHA: DESENVOLVIMENTO URBANO X


PATRIMÔNIO CULTURAL
O processo de expansão urbana e o desenvolvimento econômico das grandes cidades
foram aspectos que interferiram para os rumos atuais da preservação do patrimônio
arquitetônico e cultural urbano. Em meados da década de 1970, o tema do patrimônio passou
a aparecer com mais incidência nas propostas de políticas de reabilitação e revitalização dos
centros urbanos.
Tais políticas procuraram ampliar a compreensão do bem ou conjunto arquitetônico
enquanto monumentos históricos. De acordo com François Hartog (HARTOG, 2006, p. 268),
esse movimento implicava na “tomada de consciência de que a proteção do patrimônio devia
se conceber como um projeto urbano de conjunto”. Dessa maneira, a configuração do espaço
urbano seria entendida a partir da convergência de elementos representativos para o passado e
para o presente dessas sociedades.
A partir dessa perspectiva, o patrimônio arquitetônico, cultural e histórico passou a
ganhar mais relevância também para outros importantes segmentos da economia, do turismo e
planejamento urbano. Durante esse período, destacou-se o papel da UNESCO na elaboração
de relatórios que reforçavam a necessidade de investimento no setor de turismo a fim de
promover, desenvolver e sustentar o patrimônio cultural nacional. Segundo Claudia Leal
(LEAL, 2008), esses estudos dialogaram também com temas como planejamento urbano e
desenvolvimento econômico, uma vez que se pretendeu oferecer propostas de plano de
desenvolvimento a serem consideradas pelo governo brasileiro.

777

V V
Observa-se, a partir da década de 70, o destaque de temas relativos ao
desenvolvimento das cidades e às questões urbanas foram se tornando mais recorrentes nas
recomendações. Tomando como referência a leitura feita por Lia Motta (MOTTA, 2003)
sobre a preservação do patrimônio urbano, a noção de ambiência passaria a ser entenda como
um elemento que conjugava a preservação de bens com o planejamento e o desenvolvimento
socioeconômico das áreas urbanas. Nota-se um esforço em compreender a dinâmica urbana de
maneira a respeitar a convivência de elementos representativos para distintos grupos sociais e
momentos históricos.
No Brasil, essa perspectiva ganhou espaço no final da década de 1980, como é
possível observar na ampliação do conceito de Patrimônio Cultural apresentado na Seção II,
artigo 216° da Constituição Federal de 1988:
“Art.: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I) as formas de expressão; II)
os modos de criar, fazer e viver; III) as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; IV) as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações culturais; V) os conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.”

O alargamento da noção de patrimônio abriu caminho para um processo de


descentralização dos programas e projetos de preservação:
“§1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras
formas de acautelamento e preservação.”

Tal perspectiva se mostrou complementar ao expresso no artigo 182, referente


ao princípio da propriedade, ao entender que “a política de desenvolvimento urbano [...] tem
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem
estar de seus habitantes”.
No Rio de Janeiro, ao longo de meados dos anos 1980 e por toda a década de 1990,
foram elaborados projetos de proteção e revitalização que priorizaram a região portuária da
cidade. Apesar de diversas propostas voltadas àquela área, foi no final dos anos 2000
desenvolvido o Projeto Porto Maravilha, que acabou recebendo maior notoriedade e impacto
entre atores políticos, empresariado e sociedade civil.

778

V V
Criada pela Lei n° 101/2009 a Operação Urbana Consorciada da Área de Especial
Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro2, também conhecida como Porto
Maravilha, estabeleceu como objetivo principal:
“(...) promover a estruturação urbana da AEIU [Área Especial de Interesse Urbanístico], por
meio da ampliação, articulação e requalificação dos espaços livres de uso público da região do Porto,
visando à melhoria da qualidade de vida de seus atuais e futuros moradores, e à sustentabilidade
ambiental e socioeconômica da região.”

O Projeto Porto Maravilha circunscreve a região portuária do Rio de Janeiro, de cerca


de cinco milhões de metros quadrados, que inclui os bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo
e parte dos bairros do Caju, São Cristóvão e Centro. E embora o tenha sido ressaltado, ao
longo do projeto, a relevância da região na história urbana da cidade, ressaltou-se a sua
condição atual de decadência e desvalorização tanto para moradores como para turistas e
prováveis investidores.
Essa interpretação é também compartilhada em publicações do Instituto Pereira
Passos, como no estudo feito por Márcia Frota Sigaud (SIGAUD, 2010) que toma como base
os dados do Censo de 2000 para analisar o perfil domiciliário da região e reinterar sua
condição de abandono exposta posteriormente nos projetos de recuperação da área. De acordo
com Sigaud, possui a quinta maior proporção de unidades desocupadas e a quarta maior de
domicílios improvisados3. Além disso, o Censo de 2000 aponta a região como o terceiro lugar
de maior déficit de crescimento, em comparação ao Censo de 1991, e na nona posição de
rendimento médio per capita.
Igualmente publicado pelo Instituto Pereira Passos, o livro O Porto e a cidade: O Rio
de Janeiro entre 1565 e 1910, organizado por Cláudio Figueiredo, Nubia Melhem Santos e
Maria Isabel Ribeiro Lenzi procurou enfatizar os aspectos culturais da região portuária. Nesse
estudo, o porto e seu entorno são valorizados pelo ambiente cultural bastante dinâmico,
impulsionado pela grande quantidade de descendentes de escravos que viviam na região. É
ressaltado, por exemplo, que foi na zona portuária que nasceu o samba, estilo musical nascido
no interior de sua comunidade negra e que, atualmente, se tornou um dos estilos mais
populares em todo país (FIGUEIREDO, LENZI e SANTOS, 2005).

2
Projeto “Porto Maravilha”: http://www2.rio.rj.gov.br/smu/compur/pdf/projeto_porto_maravilha.pdf
Versão resumida do projeto para a imprensa: http://www.portomaravilha.com.br/web/esq/imprensa/pdf/05.pdf
Endereço eletrônico do projeto: http://www.portomaravilhario.com.br/. Acesso em 29/05/2014.
Boletim informativo: http://www.portomaravilhario.com.br/media/informativo/boletim_do_porto.pdf. Acesso
em 29/05/2014.
3
Entende-se como domicílio improvisado aqueles imóveis localizados em unidades não residenciais e que
possuem dependências destinadas exclusivamente à moradia.

779

V V
É possível observar que tanto nos estudos desenvolvidos pelo Instituto Pereira Passos
como no Projeto Porto Maravilha são ressaltadas a história e os bens patrimoniais na região
portuária, como o Mosteiro de São Bento, o Morro da Conceição e a Igreja de São Francisco
da Prainha. No caso específico do Porto Maravilha, ao longo da execução do mesmo,
entretanto, as ações voltadas ao patrimônio da região se mostraram bastante complexas, como
no caso do material arqueológico encontrado nas escavações feitas no Cais do Valongo e no
Cais da Imperatriz4.
Além da escolha do Rio de Janeiro como uma das sedes da Copa do Mundo em 2014 e
sede das Olimpíadas de 2016, percebe-se a influência dessas imagens da região portuária na
concepção de projetos de revitalização e desenvolvimento como o Porto Maravilha. Inserido
nessa problemática urbana, o Porto Maravilha estabeleceu como um de seus principais
compromissos direcionar, pelo menos, 3% dos recursos da venda dos Certificados de
Potencial Adicional de Construção5 (CEPACs) à valorização do Patrimônio Material e
Imaterial da área em programas de desenvolvimento social para moradores e trabalhadores.
Outra iniciativa do projeto está na criação de duas linhas de ação: o Porto Maravilha
Cidadão e o Porto Maravilha Cultural. O objetivo desses subprojetos está em criar uma nova
dinâmica na região, capaz de integrar modernização urbana e um novo padrão de ocupação,
promovendo “uma renovação urbana includente do ponto de vista social, econômico e
cultural”6.
Faz parte das linhas de ação do Programa Porto Maravilha Cidadão:
• Apoio a programas de habitação de interesse social;
• Formação profissional principalmente para população jovem;
• Ações de requalificação profissional para moradores;
• Absorção / integração da população ao mercado de trabalho;
• Ações de empreendedorismo;
• Educação para a cidadania, educação ambiental, educação para o trânsito;
• Produção de conhecimento sobre o processo de transformação social da região
portuária;

4
Reportagem: “Implosão da História do Brasil - O poder econômico mais uma vez prevaleceu. E as implosões
para as obras começaram no sábado, 2”, publicado em 05/06/2012 na Revista Carta Capital. Disponível em:
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/implosao-da-historia-do-brasil/. Acesso em: 29/05/2014.
5
São títulos usados para financiar Operações Urbanas Consorciadas que recuperem as áreas degradadas nas
cidades.
6
http://portomaravilha.com.br/web/sup/canalSocProgValor.aspx

780

V V
• Incentivo à inovação tecnológica para sustentabilidade, integração e inclusão
social.
Faz parte das linhas de ação do Programa Porto Maravilha Cultural:
• Recuperação e restauração material do patrimônio artístico e / ou arquitetônico;
• Valorização do Patrimônio Cultural Imaterial;
• Preservação, valorização da memória e das manifestações culturais;
• Exploração econômica do patrimônio material e imaterial, respeitados os
princípios de integridade e sustentabilidade do patrimônio, e inclusão e desenvolvimento
social;
• Produção de conhecimento sobre a memória da região e inovação na sua
exploração sustentável;
• Formação e pesquisa, incluindo a produção de publicações sobre o patrimônio
material e imaterial da região portuária.
Apesar da divulgação dos objetivos e linhas de ação, poucas são as informações
disponíveis pelo website do Projeto a respeito do que vem sendo desenvolvido para a área
cultural, em especial sobre o patrimônio cultural. Além do levantamento dos bens e
instituições culturais na região é possível encontrar a relação de 34 projetos com atividades na
região portuária contemplados pela primeira edição do Prêmio Porto Maravilha Cultural em
que foram distribuídos R$ 3,8 milhões. Entre os projetos contemplados que dialogam com a
questão do patrimônio cultural e histórico local estão:
• O apoio à execução e a divulgação do documentário "A Pequena África -
Portal Cultural Afrocarioca" que busca retratar a história da área e atualizá-la com as
transformações em curso. O filme dialoga e complementa as publicações do Centro de
Articulação de Populações Marginalizadas, o caderno “Pequena África: Um Portal do
Atlântico” e a revista em quadrinhos “A Pequena África”;
• Projeto "Porto Aberto: memória viva" que tem como objetivo formar cidadãos
e aumentar a autoestima da comunidade da Região Portuária. Para isso, profissionais do
Instituto Ensaio Aberto organizam exposição de fotógrafos profissionais e amadores da área,
ciclo de oito palestras sobre as histórias e as culturas dos bairros da região e ciclo de leituras
dramatizadas sobre o teatro político desde o século XIX até hoje.
• O projeto Cinema em Movimento que busca ampliar a relação dos alunos das
escolas públicas da Região Portuária com o cinema, unindo entretenimento e educação.
Alunos de duas escolas da Região Portuária (escolas municipais Vicente Licínio de Carvalho

781

V V
e Darcy Vargas) participam de oficinas de audiovisual desta iniciativa premiada pelo Porto
Maravilha Cultural. Os selecionados terão acesso a teoria e prática da linguagem
cinematográfica, produzindo ao fim do curso curtas-metragens com duração de 10 a 15
minutos. Posteriormente, o circuito escola, com 30 sessões, exibirá os curtas produzidos nas
oficinas.
O Instituto Cinema em Movimento existe desde 2002, resultado do projeto Cinema em
Movimento, rede nacional de agentes culturais organizada em torno da distribuição gratuita
de filmes brasileiros. Atua em todos os estados brasileiros facilitando o acesso de bens
culturais por populações excluídas, estimulando o desenvolvimento econômico de produtores
culturais e promovendo debates e seminários sobre cultura.
• O projeto “Agricultura é cultura” que pretende resgatar processos culturais
relacionados à agricultura. Oficinas e eventos envolvem o estabelecimento de laços com a
história e a memória dos alimentos, do povo e de sua agricultura. Durante seis meses, oficinas
no Largo José Francisco Fraga e na Praça Coronel Assunção criarão hortas e jardins
comestíveis com projeto de farmácia viva.
Haverá uma cartilha para os mantenedores de hortas e um curta-documental com o
registro dos encontros. Além de promover convívio comunitário, o projeto apoiado pelo
Prêmio Porto Maravilha Cultural valoriza memórias e identidades rural, indígena e negra da
região.
• Tendo como produtor a organização Raízes da Tradição, o Ecomuseu do Porto
Maravilha trata-se de exposição multimídia e oficina de educação patrimonial promovidas
pelo Prêmio Porto Maravilha Cultural que buscam reunir manifestações culturais populares
do Porto. O Ecomuseu será desenvolvido em três etapas. A primeira identifica os atores
sociais, pesquisadores e os pontos históricos da área. A segunda monta um mapa geográfico
com pinturas digitais e software de jogo exclusivo de educação patrimonial da região. Na
terceira etapa, uma exposição itinerante percorre espaços comunitários, educacionais e
culturais da Região Portuária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar, ainda que brevemente, o caso do Porto Maravilha e sua relação
com o patrimônio local é possível reconhecer um novo momento nas políticas públicas de
preservação dos centros históricos. O interesse em integrar uma perspectiva
desenvolvimentista e atender a população residente da área para o qual os projetos se voltam

782

V V
expõe a tentativa de implantação de um modelo de gestão específico para a região portuária
da cidade.
Mesmo sendo aparentemente opostos, tais objetivos sinalizam para uma
recomposição de espaços urbanos adaptados - o processo de implementação da política estaria
associado a um modelo de gestão baseado no conceito da conservação urbana integrada - ou
não à população local - o modelo de gestão adotado pode ser avaliado como gentrificador. O
modelo de conservação integrada parece ser um referencial para as ações do Porto Maravilha
quanto a conservação do patrimônio construído a partir de um olhar mais atento à função
social das áreas que sofrem intervenção. Pode-se notar a intenção em manter a pluralidade de
valores e usos que compõem os centros antigos da cidade. Para isso, o conjunto de atividades
desenvolvidas procuraria estimular e permitir a sociedade local criar e manter com seus
próprios meios mecanismos sustentáveis de vida.
Observar o caso Porto Maravilha expõe um esforço por parte da administração
municipal em implementar um modelo de gestão integrada que se adeque também aos
interesses econômicos e empresariais. Ademais, a presente análise pretende servir como um
esforço de reflexão sobre a necessidade de maior inserção das políticas de preservação no
debate contemporâneo sobre o espaço urbano e suas políticas públicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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784

V V
ECONOMIA CRIATIVA, POLÍTICA CULTURAL E O TRABALHO DA MÚSICA –
ENTENDENDO AS RELAÇÕES E DESCOBRINDO OS AGENTES.
Karina Poli 1

RESUMO: Esse trabalho apresenta uma discussão sobre política cultural e trabalho tendo como
objeto o setor musical. Também apresenta resultados parciais de uma pesquisa quantitativa sobre
o perfil dos músicos no Brasil e o seu trabalho. Esse artigo apresenta parte de minha pesquisa de
doutorado, financiada pela Fapesp.

PALAVRAS CHAVE: Política cultural, economia criativa, trabalho criativo, setor musical.

Apresentação
Esse artigo apresenta reflexões desenvolvidas nas pesquisas da minha tese de doutorado,
mais especificamente sobre duas reflexões que propõe observar a gestão cultural pela perspectiva
do trabalho e de quem produz cultura. Esse é o terceiro artigo que apresento no Seminário
Internacional de Politicas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa, ambos trouxeram e trazem
questões relacionadas a música, trabalho e financiamento à cultura. O primeiro artigo trouxe uma
pesquisa sobre o perfil dos contratantes dos trabalhos dos músicos representados pela Cooperativa
de Música de São Paulo - associação a qual participei como conselheira. O segundo trabalho
trouxe uma análise sobre os investimentos realizados pela inciativa privada através da lei Roaunet
na área de música, descrevendo os tipos de projetos, suas características, proponentes e
investidores.
Neste terceiro trabalho trago duas discussões; a primeira está inserida no contexto das
políticas culturais internacionais, e nos debates de agencias multilaterais que pautam as politicas
culturais entre os países em desenvolvimento. Trata-se da importância político-econômica da
cultura no mundo contemporâneo, da nova dinâmica da produção e gestão cultural, da classe dos
trabalhadores da cultura e do modo como se articulam em redes de colaboração. A segunda traz a
apresentação dos resultados preliminares de uma pesquisa sobre o perfil do músico e do trabalho
da música no Brasil, realizada em parceria com o professor Dr. Davi Nakano da Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo, que tem como objetivo mapear o perfil do profissional
da música no Brasil e suas relações profissionais com a música e com o seu processo produtivo. A
pesquisa ainda está em andamento e pretende alcançar uma amostra de 2500 respostas. Os

1
Karina Poli é aluna de Doutorado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
orientanda do Prof. Dr Mitsuru Yanaze, bolsista da FAPESP e sua tese discute o conceito de Marketing Cultural
no contexto das Indústrias Criativas e os reflexos das políticas culturais nacionais no setor da música no Brasil.
E-mail: karinapoli@uol.com.br

785

V V
resultados preliminares representam uma amostra de 750 respostas. Assim, a proposta deste artigo
é discutir a gestão cultural pelo ponto do vista do trabalho e mostrar um panorama sobre o
trabalho da música no Brasil.
Uma breve contextualização sobre Trabalho, Economia Criativa e Políticas Culturais
no ambiente internacional.
A indústria fonográfica e os conglomerados de comunicação fazem parte das indústrias
culturais, porém, o mercado independente da música no mundo apresenta a diversidade cultural de
um povo. Diferentes políticas culturais aplicadas por diversos países hoje em dia, são amparadas
pelo conceito de exceção cultural, que legitima os subsídios públicos para proteger a diversidade
cultural diante a força homogeneizadora dos padrões comerciais das indústrias culturais. O
conceito indústria cultural, apresentado pela primeira vez por Adorno e Horkheimer, traz à luz a
reflexão sobre seu conteúdo cultural criticando o papel de entreter a população no período do não
trabalho. A padronização, própria dos processos produtivos da indústria cultural, reduz a
complexidade e as especificidades de estilo e de linguagem da obra de arte, tornando-a mais
acessível a um público mais amplo e massificado. Com o controle das estruturas de promoção e
distribuição, a indústria cultural tem o poder de condicionar o gosto dos consumidores pela oferta
de obras padronizadas que seguem estilos determinados por interesses comerciais. Por outro
lado, se olharmos para os processos de política cultural da época em que viveram os autores da
Escola de Frankfurt identificaremos nas políticas culturais, ações de preservação e manutenção
das artes clássicas, como ópera, orquestra, pintura, escultura entre outros. A ideia de arte e cultura
trazida por esses autores é característica do período onde a educação e os bons modos eram
símbolo de progresso e civilidade. O conhecimento e o gosto pela arte faziam parte da ideia de
civilização. Assim, a palavra cultura representava a educação formal da sociedade civilizada, e a
divisão entre cultura popular de massa e cultura erudita era definida pela educação formal. Claro
que o conceito de indústria cultural está presente nas análises sobre a indústria do entretenimento
hoje. Sem sombra de dúvida a indústria cultural padroniza e aliena em nome do consumo. No
entanto, para entender a relação entre política cultural, indústria cultural e economia da cultura, é
fundamental pensar sobre a relação entre os processos no desenvolvimento da ideia de cultura, na
política e na economia.
Durante o período da guerra fria ocorreram intensas transformações políticas e culturais
no mundo, principalmente após a segunda metade da década de 1960 e 1970, como exemplo o
maio de 1968 em Paris, os movimentos negros e homossexuais nos Estados Unidos, as ditaduras
na América Latina. O reconhecimento dos direitos políticos das diferentes minorias, e a
transformação política econômica do mundo, mudaram os paradigmas da sociedade moderna e
reposicionaram alguns agentes, antes subjugados á outros papéis sociais, sejam as mulheres

786

V V
ocidentais, os negros, homossexuais e criaram uma nova força política, social e econômica. A
questão da libertação dos países da África e as várias guerras civis étnico-religiosas no Oriente
Médio, conjuntamente a diferentes pesquisas e trabalhos acadêmicos de diferentes escolas,
reforçaram a necessidade da transformação da ideia de cultura nos âmbitos das políticas culturais.
Importantes estudos acadêmicos, como a Antropologia Culturalista Americana, os Estudos
Culturais Ingleses, a Teoria da Cultura Francesa mostraram o conceito de cultura como modo de
vida, e demonstraram a necessidade do reconhecimento de uma diversidade cultural entre os
povos e do papel social da cultura. A diversidade cultural e mais tarde o multiculturalismo
tornaram-se conteúdo na elaboração de uma proposição de política cultural amparada pelo
conceito de sustentabilidade ambiental e econômica que foi incorporado nos discursos da
UNESCO. A Cultura como vetor de desenvolvimento local, através de um trabalho de identidade
e pertencimento que media a relação entre indivíduo e espaço, favorece o exercício da cidadania,
e melhora a qualidade de vida nas cidades. Da mesma forma, a prática cultural e a produção da
classe trabalhadora da cultura estão organizadas em uma dinâmica própria, criada pelos agentes
culturais locais, que amparadas pelas leis de incentivo à cultura, algumas vezes pelo turismo ou
outras atividades complementares, geram trabalho e renda para a população, promove a ocupação,
evita o êxodo, promove a recuperação de espaços e transforma a vida das cidades.
Entre 1970 e 1980, surge no ambiente universitário a Escola de estudos da Economia
Politica da Comunicação e da Cultura, essa escola, entre outras pesquisas mapeou e estudou os
processos e as relações político - econômicas das diferentes indústrias culturais, entre elas e
principalmente o cinema, televisão, editorial, indústria fonográfica, que naquele momento
alcançava um grande crescimento. As indústrias Culturais, vistas aqui como diferentes processos
produtivos que estabelecem relações assimétricas entre quem produz e consome, seja na
perspectiva da distribuição do conteúdo cultural, seja na perspectiva do tipo de organização
econômica que monopoliza o setor. O entendimento agora das indústrias culturais reconhece o
poder econômico assimétrico entre países de centro detentores das indústrias culturais que
produzem, distribuem e exportam os produtos culturais e países periféricos que consomem,
importam e reproduzem os produtos culturais. Reconhecendo o poder assimétrico das industrias
culturais e a relação potencial da cultura com o desenvolvimento local, destacamos aqui a
existência de dois tipos de produção cultural que estabelecem relações de forças econômicas
assimétricas e estão inseridas em processos produtivos distintos, com propósitos diferentes.
Assim temos de um lado a produção das indústrias culturais que de certa maneira tem o
foco no mercado do entretenimento, e suas relações são econômicas, visam vendas e o lucro, e
obedecem a padrões de produção de massa. Do outro lado, temos a produção cultural dos
trabalhadores cultura, dos agentes culturais, que se organizam em processos produtivos

787

V V
independentes, muita vezes coletivos, ou colaborativos, que demandam forte postura
empreendedora, e se apoiam em subsídios públicos por que são manifestações culturais que
representam a diversidade cultural, e não tem força comercial para sobreviver no mercado das
indústrias culturais.
Entre 1980 e 1994 no período em que se iniciaram os debates do Acordo Geral de Tarifas
e Comércio - GATT - e posteriormente da Organização Mundial do Comercio – OMC, sobre a
exceção cultural e a necessidade do subsídio publico para manter a diversidade cultural, ficou
claro o posicionamento ideológico dos Estados Unidos, representando o país com as maiores
indústrias culturais e contrário aos subsídios públicos para a cultura, e a França e o Canadá,
preocupados em manter a produção cultural local com uma política cultural de forte subsídio
público para a produção cultural. Nos anos 1990 surgiria, primeiramente na Austrália e
posteriormente na Inglaterra, uma nova proposição de política cultural que trouxe para o debate
político econômico a ideia de Economia Criativa. A economia criativa viria trabalhar elementos
referentes a geração de propriedade intelectual, inovação tecnológica, fluxos de conteúdos
digitais, culturais e de pessoas, geração de emprego e renda, ocupação de espaços industriais
inutilizados por conta da industrialização e localizados em espaços urbanos. Esse conceito
compreende diferentes setores econômicos, e absorveu o conceito de industrias culturais e a
produção cultural independente2. A Economia Criativa fez parte da estratégia política do Partido
Trabalhista Inglês durante todo o período em que o Tony Blair foi Ministro.
Diversos estudos foram desenvolvidos sobre a Economia Criativa e suas indústrias na
primeira década do século XXI. Logo na metade dessa primeira década a UNCTAD assume o
conceito de economia criativa como estratégico para o desenvolvimento dos países do eixo sul, e
passa a difundir sua metodologia para ser aplicada em diferentes partes do mundo, inclusive no
Brasil, através da Secretaria de Econômica Criativa do Ministério da Cultura. A UNCTAD
publicou dois grandes relatórios sobre os processos desenvolvidos em diferentes países do mundo,
e constatou algumas características comuns do setor. Primeiramente é um setor constituído por
pequenas e médias empresas, que se relacionam em redes de agentes culturais que buscam
oportunidades de trabalho. O trabalho com cultura geralmente é realizado através de projetos
pontuais e trazem certa inconstância para os agentes culturais independentes (neste caso que não
trabalham em algum tipo de instituição), são profissionais com perfil empreendedor, que fazem a
gestão de seus próprios negócios, e acompanham todas as etapas dos processos produtivos de seu
empreendimento (muitas vezes sua empresa ou sua carreira), geralmente possui formação elevada,

2
Para efeito de esclarecimento, usarei nesse texto o conceito de economia criativa, entendendo que o mesmo
incorpora as industrias culturais, a produção culturais independente e as artes, mesmo compreendendo que
existem diferentes processos aplicados nos diferentes setores econômicos que envolve as industrias e a economia
criativa

788

V V
mas remuneração inferior a outras profissões que exigem o mesmo nível de formação. Porém, os
profissionais criativos tem um grande prazer na atividade que realiza. (UNCTAD, 2010).
Depois de muitos debates acadêmicos em torno dos conceitos, Indústrias Culturais e
Indústrias Criativas, Economia da Cultura e Economia Criativa, a UNESCO e a UNCTAD
entraram em um consenso e reconheceram a inter-relação entre os seus projetos de difusão de
paradigmas de políticas culturais para o desenvolvimento econômico local, principalmente após a
crise de 2008. Nesse período, diversas pesquisas e relatórios apontaram a resiliência do setor
cultural diante a crise econômica mundial e destacaram a importância do modo de organização
dos agentes que trabalham no setor criativo e consequentemente no setor cultural. Assim
reconhecem-se as redes de trabalhos colaborativos para realização de atividades produtivas
culturais como dinâmica que movimenta a economia local, e amplia as receitas de pequenas e
médias empresas, e a renda de trabalhadores da arte e da cultura. Os resultados econômicos,
sociais e culturais aparecem neste caso, seja na geração de propriedade intelectual, na criação e
administração de centros culturais, na ampliação das oportunidades de trabalho para artistas,
produtores, na difusão e promoção da arte e da diversidade dos povos, comunidades, etnias,
transformando os elementos culturais em identidades multiculturais de lugares, e por sua vez são
transformados em patrimônios de uma humanidade mundial.
Apesar de muitas discordâncias em relação ao conceito de econômica criativa, ele trouxe
para o centro do debate a questão do trabalho e do trabalhador criativo, ou no caso desse texto, do
trabalhador da cultura como o agente principal desta nova dinâmica econômica característica do
mundo contemporâneo. Assim esse artigo propõe um olhar para o trabalho na produção cultural.
A produção cultural independente está constituída através de uma dinâmica horizontal da gestão
cultural, que organiza os agentes em torno de projetos, muitas vezes subsidiados, no caso do
Brasil, e promove a geração de trabalho, renda e sustenta uma classe que se relaciona diretamente
com os espaços da cidade e a sociedade, cuja a produção é parcialmente consumida pelo Estado e
distribuída de forma gratuita para a população como ação de democratização da cultura.
A dinâmica da produção cultural, no caso do Brasil, tornou-se orgânica entre os agentes
culturais e incorporou os subsídios públicos no processo produtivo da cultura. Isso ajudou a
construir uma nova classe de trabalhadores, porém produziu uma forte dependência do subsídio
público e uma descapitalização do processo produtivo, uma vez que o consumo não está
relacionado a venda, e desta forma o público consumidor, ou a audiência da cultura, não é parte
do processo produtivo. Desta forma, a cadeia produtiva, ou seja, a produção, difusão, distribuição
e consumo não se completa pelo ponto de vista econômico, e o subsídio público torna-se condição
para o desenvolvimento do processo produtivo, resultando em um aumento nos custos de

789

V V
produção tornando-a insustentável economicamente, agravando a dependência e inibindo a
diversificação de fontes alternativas de receita para a produção cultural.
As políticas culturais brasileiras e os trabalhadores da música.
A música, por estar representada pela indústria fonográfica no grupo das indústrias
culturais, reforça o questionamento sobre qual o tipo de música necessita de subsídio público e
quais são os critérios que devem ser adotados para a distribuição dos recursos públicos no setor. A
área de música do Brasil é muito grande e complexa. A começar que a indústria fonográfica
brasileira foi uma das maiores do mundo e a preferencia dos brasileiros é pelo repertório nacional
e o nosso mercado é grande. Temos um “mainstream” que se organiza na lógica industrial, mas
muitas das “estrelas” também realizam a administração de sua carreira de forma independente, e
utilizam os benefícios das leis de incentivo. A indústria fonográfica brasileira até a década de
1990 tinha uma grande força econômica e mantinha um grande quadro de profissionais, após esse
período, as indústrias foram diminuindo seu quadro e os profissionais do setor colocados no
mercado independente.
Por outro lado, a partir de 1997, com a regulamentação da Lei Rouanet, os investimentos
da inciativa privada em projeto culturais cresceram initerruptamente, com exceção de alguns anos
de crise como em 1998, 2008, 2013. A questão hoje, para pensar o músico independente, não é se
o artista faz parte ou não do catálogo de uma grande gravadora, como era no passado. Hoje a
gravadora assina a distribuição do conteúdo de áudio, e elas fazem a opção pelos artistas que já
conquistaram audiência para haver interesse em fazer investimentos no mercado de massa. Os
meios de comunicações usam a prática do Jabá, e os artistas tem que pagar para difundir as
músicas. As rádios, principalmente em São Paulo, tocam um play list pouquíssimo variado, e os
gêneros, ou seja a segmentação do mercado, está cada vez menor. Hoje os gêneros de sucesso
são: Sertanejo, musica gospel, Pagode, Axé, tecnobrega, funk e suas derivações conforme a
moda. Os gêneros mais populares são os mais comerciais e os que têm acesso aos meios de
comunicação de massa. A produção independente está na internet, na sua rede de trabalho,
produzindo e distribuindo sua produção em pontos alternativos, nas casas noturnas, nos festivais,
criando mercado e trabalhando coletivamente e independente da lógica comercial e da escala
industrial.
A política cultural brasileira que se iniciou na década de 1930 seguia os paradigmas das
políticas culturais internacionais e tinha a preocupação de preservar e democratizar o acesso da
arte porque era um complemento da educação e do progresso. Política cultural para a música
clássica, por exemplo, e para o Folclore, existiam nesse momento com administração centralizada
no Ministério da Educação. Na década de 1970, segundo movimento das políticas culturais do
Brasil, com a criação da Funarte, passou a se pensar pela primeira vez em uma política cultural

790

V V
exclusiva para a musica, mas ainda centralizada no governo Federal no âmbito da Secretaria de
Cultura ligada ao Ministério da Educação. Diversas atividades de música foram realizadas
naquele período. O Centro de Música com seus departamentos separados - música clássica e
popular,- desenvolvia ações e programações culturais intensas, para tentar acalmar os ânimos dos
artistas populares sobre o impacto da censura e a falta de liberdade de expressão promovida pela
ditadura. Foi também durante o período da ditatura que foi criada a Ordem Brasileira dos Músicos
- OMB, junto com a lei que regulamenta o trabalho desses profissionais e o Escritório Central de
Arrecadação e Distribuição (ECAD). Essas leis precisam ser urgentemente revistas, pois não
correspondem, principalmente no caso da OMB, a realidade do trabalhador da música hoje, é
desconhecida pela classe e a OMB bastante rejeitada.
A música é um setor que necessita de uma grande pesquisa sobre seus indicadores. É um
setor onde muitos profissionais trabalham e movimentam a economia. Ainda não existe no Brasil
uma pesquisa que apresente qual o fluxo financeiro da economia da música. Logo de início
podemos dizer que em 2013 somente o ECAD arrecadou R$ 1.190.083.620,00 com execuções
públicas (não foi possível obter os dados de 2014) e foram investidos R$ 606.018.456,26 em 2014
pelas empresas privadas em projetos da área de música aprovados pelo Ministério da Cultura.
Com esses números entendemos o tamanho do setor e sua complexidade na compreensão da
assimetria das forças econômicas entre alguns gêneros da música popular e artistas, bem como
conseguir atender a demanda do setor, tendo em vista a diversidade musical do Brasil e a
dependência do dinheiro público.
A história da política cultural brasileira demonstrou os difíceis processos até a efetivação
do Ministério da Cultura após o governo Collor. A criação e a popularização das leis de incentivo
nos últimos 20 anos foram fundamentais para desenvolvimento dessa classe de trabalhadores da
produção cultural. Já nos últimos doze anos estamos esperando diversas transformações na
legislação da cultura. Diversas proposições foram apresentadas durante a gestão do Gilberto Gil e
Juca Ferreira, poucas foram aprovadas, agora surge uma nova esperança com a volta do Juca
Ferreira para o Ministério. Tais proposições sugerem mudanças estruturais nos processos de
financiamento público para a cultura, e revogará a Lei Rouanet, assim como setorizará o Fundo
Nacional da Cultura que passará a ser gerido pelos Colegiais Setoriais.
O Colegiado Setorial da Música está na sua segunda formação de delegados, atualmente
está escrevendo as metas do Plano Setorial da Música e o documento está aberto à consulta
pública. O Plano trabalha temáticas como Formação e memória; Questões trabalhistas; Direito
autoral; Financiamento; Produção; Difusão; Consumo, a necessidade de priorizar a
implementação da lei da música nas escolas, a revisão da lei dos direitos autorais, da lei
regulamentação do trabalho do músico –OMB, dos impostos na comercialização de fonogramas.

791

V V
Também declarou ser necessárias ações para evitar a concentração dos recursos federais, a
dificuldade de circulação de espetáculos pelos territórios nacionais e internacionais, a
monopolização dos meios de difusão de massa.
As Metas são tão complexas, viáveis somente no longo prazo, que ao serem articuladas
com um cronograma pretendido, e confrontadas com as dificuldades reais e burocráticas do país
quando se trata dos órgãos públicos vulneráveis à política partidária vigente, confrontada com a
carência de técnicos e funcionários de carreira, com a política do setor centralizada na Funarte,
com as proposições do Governo Federal ainda no processo de aprovação, apesar dos progressos.
Trazem para o texto do Plano Setorial da Música um tom de utopia, principalmente considerando
o pouco envolvimento dos agentes da música em relação aos processos de política cultural, a falta
de instituições fortes que representem o setor, e as reais condições da política cultural brasileira
hoje.
Percebe-se ao ler o texto do Plano que existem problemas estruturais no setor de música.
Existem diferentes legislações que envolvem as demandas do setor, e que demonstram a
necessidade de uma atuação especifica de órgãos políticos ou de representação de classe para
articular politicamente em nome dos interesses dos músicos. Associações como a UK Music na
Inglaterra ou a Future of Music Coalition nos Estados Unidos são associações que trabalham em
nome da classe de profissionais do setor da música em três frentes: Pesquisa, educação para os
agentes, e atuação política ou lobby para defender interesses específicos da classe diante ao
governo.
No Brasil, o setor musical além de estar vinculado a legislação cultural e aos processos de
financiamento, está também vinculado à legislações específicas, como da OMB - Lei que
regulamenta a profissão, da Lei do Direito Autoral, dos Impostos para fonograma, com leis
relacionada aos processos de radiodifusão e das telecomunicações, com leis relacionadas a
educação, relacionadas a internet. Por outro lado é um setor grande em números. Tanto ao que se
refere ao número de profissionais em atuação no Brasil, como aos números referentes aos
recursos financeiros, isso considerando que a música é um setor das industrias culturais e ela é
representativa no Brasil, apesar de existir uma relação econômica assimétrica entre os valores
arrecadados pelos muitos profissionais do setor e os altos valores arrecadados pelos poucos
profissionais que acessam as industrias culturais.
Acreditamos que uma das melhores formas para propor políticas culturais para o setor, e
conseguir desenvolver um Plano Setorial com Metas e cronogramas possíveis; é fundamental que
se realizem pesquisas sobre a condição atual do setor, em relação a seus vários aspectos, seja
sobre o perfil de seus agentes produtores, sobre sua produção, sobre a legislação que defende os
direitos de seus profissionais, os processos de difusão da produção, de distribuição, do consumo

792

V V
da música no Brasil e fora dele. Desta forma, como contribuição aos estudos do setor, foi iniciada
no ano de 2014 uma pesquisa. A proposta é compreender a realidade do exercício da profissão do
músico para pensar em proposições de políticas culturais visando melhorar as condições de
trabalho para classe artístico-musical.
Durante o ano de 2014, o prof. Davi Nakano propôs a criação de um grupo de pesquisa
que envolvesse a Escola Politécnica e a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo através de uma aproximação entre professores, alunos de doutorado, mestrado e graduação
usando uma abordagem multidisciplinar para mapear e investigar o setor da música. Como
primeira iniciativa, decidiu-se realizar uma pesquisa para identificar as características do músico
brasileiro, seu perfil sócio-econômico, identificar a natureza do seu trabalho e como atua na
cadeia produtiva da musica. O grupo inicialmente contou com o apoio da Cooperativa de Música
de São Paulo, em seguida, assinou um termo de parceria com a Associação Brasil Música e Artes
- BM&A para a realização de uma pesquisa com abrangência nacional. Como referencia foi
usada a pesquisa desenvolvida pela Instituição Norte-Americana Future of Music Coalition em
2013 com os músicos sobre o trabalho criativo no século XXI.. Para a elaboração do questionário,
colaborou com a pesquisa o Prof. Dr. Eduardo Vicente da Escola de Comunicações e Artesda
USP, e David McLoughlin gerente internacional do Projeto Brasil Music Exchange. Participaram
dessa primeira fase da pesquisa, o Prof. Davi Nakano, eu e a aluna da Escola Politécnica, Tainah
Bartolo. No período entre maio de agosto de 2014 foram recebidas cerca de 720 respostas. A
pesquisa encontra-se em uma segunda fase, que pretende atingir cerca de 2500 respostas, para
maior representatividade.

Quem é o músico no Brasil?


68 % são músicos residentes em São Paulo, 31% tem entre 26 e 35 anos, 30% entre 26 e
45 anos e 21% entre 46 e 55 anos. Apenas 8,5 % estão entre 18 e 25 anos, e 9% tem mais de 56
anos. 66% dos respondentes têm mais de 5 anos de formação em música: 37% tem nível superior,
11% tem formação em conservatório, e 17% tem entre 10 e 5 anos de estudo em cursos livres.
Porém é interessante frisar que o segundo maior índice é o percentual de autodidatas com 27%
contrapondo com o maior índice que é o nível universitário. Apenas 7% tem menos de 5 anos de
estudo. Sobre o rendimento com a música, 33,75% recebem menos de 2,5 salários mínimos, já
49,91% recebem entre 2,5 e 8 salários mínimos, e 9,06% recebem entre 8 e 12 salários, e 7,28%
mais de 12 salários mínimos. Essa pesquisa foi realizada enquanto o salário mínimo estava em R$
724,00.

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Isso demonstra que de um modo geral, os músicos são relativamente jovens mais da
metade da amostra até 45 anos, mais da metade da amostra tem formação em música ( com
atenção para o alto número de autodidatas), moram em São Paulo e ganham até 8 salários
mínimos.

O que ele toca, com que música ele trabalha quem contrata o seu trabalho?
Outro elemento interessante da pesquisa é que a significativa maioria dos músicos trabalha
com música brasileira: 18% faz MPB, 10% trabalha com música regional, como a seresta, samba
de raíz (roda, coco, jongo), forró, música caipira, maracatu, frevo, milonga, vanerão, toada, etc.
Também é importante assinalar que 16% trabalham com música instrumental, tanto a música
instrumental brasileira, como o choro, e também música instrumental geral de origem estrangeira,
como o jazz. Apesar da dificuldade em criar uma classificação para os gêneros da música
brasileira, assunto que demandaria outro artigo, entendemos como música típica brasileira aquela
que traz no seu ritmo e na sua linguagem musical, autenticidade e originalidade característica da
cultura brasileira, outros gêneros, encontrados em outros países, nesta pesquisa, são consideramos
como música brasileira global, e não típica, apesar de considerarmos que são elementos
representativos da diversidade musical do Brasil e não da indústria cultural – esta por sua vez,
possui outra lógica, e seu agentes, muitas vezes, são independentes e representam gêneros típicos
da música brasileira, como no caso do Tecnobrega, Axé, Funk Carioca, sertanejo.3 Entendemos
que o POP, Rock, Jazz, Hip Hop, musica eletrônica, música clássica possuem diferentes
elementos que são determinantes em linguagens musicais internacionais e não local. Sendo
assim, a pesquisa mostrou que 47% dos músicos produzem música típica brasileira, nos seus
diversos gêneros como choro, seresta, samba, coco, jongo, forró, música caipira, maracatu, frevo,
milonga, vanerão, toada entre outras. MPB é considerada aqui como música típica, e é pensada
através do conceito de canção popular determinado principalmente por seu conteúdo lírico
cantado em português, e não pelo seu ritmo ou linguagem musical, essa pode se misturar com
elementos globais e locais. Isso demonstra, de uma certa forma, que o setor da música está
absorvendo a produção típica do Brasil e mantendo a diversidade cultural na música.
Esse dado pode estar relacionado ao fato da maioria da amostra viver em São Paulo e o
Estado de São Paulo, além de possuir diversos programas de governos estaduais e municipal que
oferecem espetáculos ao vivo para a população local gratuitamente, possui também a rede SESC,
com 34 unidades espalhadas pelo estado e oferecem gratuitamente ou a preços populares uma

3
Tecnobrega e Funk Carioca merecem maior profundidade que não será possível desenvolver aqui, no entanto
são gêneros populares que movimentam uma economia de massa e tem maiores acessos aos meios de
comunicação de massa, com menor intensidade para o tecnobrega nesse momento .

794

V V
intensa programação cultural com mais de 1900 atividades culturais por mês entre suas unidades.
O SESC prioriza em sua programação gêneros típicos brasileiros, assim como os programas do
estado, que conjuntamente, acabam sem querer, criando um mercado de espetáculos ao vivo e
uma dinâmica de agenciamento que amplia a oferta e permite a realização de trabalhos não
comerciais. Isso pode ser observado também se considerarmos que a maioria dos respondentes
(59%) tem o trabalho autoral ou de intérprete como o principal atividade. 14% tem como principal
atividade o acompanhamento de outros artistas, 8% fazem parte de orquestra, e 20% são
professores de música. O principal contratante de espetáculos é o SESC (18% dos artistas). Os
contratos com Secretarias de Cultura sejam estaduais ou municipais representam 25%. Produtoras
de eventos respondem por 18% dos espetáculos, e os projetos para leis de incentivo representam
12%. 9% trabalham com escolas e fundações, enquanto 4% para meios de comunicação ou
gravação. Isso representa que os trabalhos de carreira estão sendo priorizados e isso pode
demonstrar que o suporte dos programas de governo e do SESC estão ajudando a manter a
diversidade da produção cultural.

A Tecnologia e a internet estão definitivamente na vida do músico? relação ao uso de


tecnologia, o computador e a internet fazem parte de todo processo produtivo do trabalho dos
músicos: 48% usam intensamente a internet na distribuição de seus produtos, 60% a utilizam com
frequência alta na divulgação do seu trabalho, 52% na produção, 23% para ensaios e 36% para
composição. Sobre a divulgação do trabalho, 59% possuem site próprio. As redes sociais mais
usadas são Facebook com 35%, Youtube com 303% e SoundCloud 19%. Esses são os principais
meios de comunicação utilizados para a divulgação dos trabalhos. 59% já lançou Cd no formato
digital.
Os músicos são os próprios gestores de suas carreiras, são os empreendedores de seus
negócios culturais?
Em relação aos processos de produção
Ao observar os primeiros dados referentes aos processos produtivos, foi possível verificar
que eles refletem a dinâmica de trabalho por projetos e a criação de uma rede que liga diferentes
profissionais. A produção da música envolve diversos processos, desde a criação até a
transformação dessa criação em produto a ser vendido, seja para o governo, seja diretamente para
o público pagante. Os processos de transformação da criação para o produto musical pode ser
dada (aqui considerando o mercado de shows, sincronização e fonograma) da concepção aos
processos técnicos de gravação, de edição, de identificação e registro, de fabricação - no caso do
Cd. No caso do espetáculo, a negociação, contratação, o agendamento de datas e locais,
divulgação, preparação do espaço, operação e montagem de luz, som. São processos que

795

V V
demandam tempo e trabalho, e muitas vezes trabalho especializado de outros profissionais. Em
São Paulo, existe uma dinâmica de agenciamento e de subsídios que permitem a contratação de
espetáculo diretamente por produtores que criam e/ou negociam os espetáculos entre o governo,
ou SESC e os artistas. No caso da pesquisa 15% dos respondentes trabalham com mais de um
produtor. Já, considerando o caso do mercado de fonogramas, geralmente quem assume toda a
produção, quando não tem incentivo público, geralmente é o artista, que investe os recursos e
acompanha o processo de produtivo. Em relação a gestão da carreira do artista, que pensa em um
planejamento a curto, médio e longo prazo, e que envolve formação de público e busca por fontes
de receitas alternativa aos recursos públicos, o modelo que tem apresentado maior resultado é a
relação de sociedade entre o produtor exclusivo e o artista que discute a acompanha os processos
produtivos junto com o produtor. Esse modelo é pouco representado na amostra, com apenas 8%
que tem um produtor exclusivo e 4% trabalham com agentes de vendas (aqui refere-se aos
profissionais que somente vendem os trabalhos, quem acompanha e realiza todos os processos de
produção é o produtor contratado ou exclusivo do artista). Porém os resultados mostram que 67%
dos respondentes fazem a própria gestão do trabalho artístico, isso representa que ele é
responsável por quase todas as etapas dos processos de produção e venda da sua força de trabalho
no caso dos espetáculos, e dos seus produtos no caso dos fonogramas.
Em relação a Produção:
75% dos respondentes já gravaram um CD, sendo que 54% deles financiaram seu próprio
CD. Também demonstrou que o subsidio público, principalmente para a gravação de fonogramas,
representa somente 20% daqueles que gravaram, outros 11,5% gravaram com apoio de
gravadoras. Esse dado demonstra que ainda existe alguma participação das gravadoras em relação
aos investimentos para a produção do fonograma. Por outro lado a pesquisa demonstrou que as
ferramentas de crowdfunding representam apenas 2% do financiamento, apesar da recente
popularização. 12% responderam que obtiveram recursos de outras formas.
Divulgação e Distribuição
71% dos respondentes fazem a própria divulgação de shows e de seus trabalhos, e usam na
maioria das vezes a internet para isso. Somente 11% contratam assessoria e 6% têm produtor
exclusivo que realiza a divulgação. Isso quer dizer que a divulgação não é estratégica para a
formação de público e para a carreira do artista. Ela é pontual e geralmente não profissionalizada.
Em relação a distribuição de CDs, 25% distribui através de um selo ou gravadora, 14% utilizam
empresas de distribuição. Um quarto da amostra distribui por algum selo ou gravadora, o que
demonstra uma relativa importância das gravadoras independentes na distribuição dessa produção,
porém 61% fazem sua própria distribuição: 29% que distribuem somente em shows o que
demonstra uma falta de escoamento da produção musical, aliada a uma divulgação não

796

V V
profissional, acaba por trazer resultados pouco eficientes para a cadeia de um modo geral. Mais
uma vez aparece a autogestão da carreira do artista, uma vez que, ele mesmo vende o seu trabalho
pelo site e distribui nas lojas, 19% distribuem pelo seu próprio site e 13% fazem distribuição
própria para as lojas.
Propriedade Intelectual,
46% já licenciou música no Brasil: desses, 45% licenciou para CDs de terceiros, 19,5%
para compilações de promoção ou selos, 22,5% para produções audiovisuais, 13% para
espetáculos de dança e teatro. Esse é um mercado que está em ascensão no Brasil e no mundo, no
Brasil existem algumas empresas que agenciam músicas para a sincronização, como a Punk S.A,
empresa americana que entrou no mercado brasileiro e a YB, estúdio de gravação que passou a
fazer distribuição digital e física e agenciamento de músicas para sincronização. Porém também
para esse mercado, a falta de profissionalização do setor é um problema, tendo em vista o
acumulo de funções que o artista contemporâneo assume para sobreviver de arte. A falta de dados
e metadados sobre os registros da produção fonogramas, como o registro de ISRC que indica
quem são os autores, e interpretes da obra para efeito de repasse de direitos autorais, é um
problema para a realização de negócios, e isso geralmente é consequência dessa falta de
profissionalização dos agentes. Quanto ao Licenciamento para o Exterior, apenas 23% assinaram
algum tipo de contrato para licenciamento. Desses 32,5% para lançamento de músicas em CDs de
terceiros, e 39% para compilações lançadas em promoção ou selo internacional. Já 20% dos
licenciamentos internacionais foram para produtoras de audiovisual, games, propaganda. Apenas
8% licenciou músicas para peças de teatro ou dança estrangeiras.

Exportação
Como um dos principais parceiros dessa pesquisa, a Associação Brasil Musica & Artes
desenvolvedora do projeto de exportação de música brasileira financiado pela Agência Brasileira
de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), que vem a 10 anos desenvolvendo
importantes ações para inserir a música brasileira no mercado internacional. Esse projeto auxilia
as empresas a desenvolverem uma relação comercial com o mercado internacional da música. No
entanto, a pesquisa demonstrou, que tocar no exterior não é uma exclusividade de artistas com
carreira internacional 53% já se apresentou no exterior. Ao estudar o projeto Brasil Music
Exchange percebemos que para desenvolver uma carreira internacional é necessário realizar um
planejamento de curto, médio e longo prazo, investido tempo de trabalho e recursos, em
divulgação em rádio, turnês sem remuneração, para criar um público fora do país. Após a crise
econômica muitos festivais de música, que subsidiavam a ida de músicos estrangeiros para tocar
diminuiu drasticamente, hoje a maioria dos festivais, oferecem em algumas vezes, ajuda de custo

797

V V
e não arcam com as despesas de deslocamento. Assim, conhecer os agentes do mercado
internacional, realizar um trabalho de divulgação digital em inglês focado para o público
internacional, participar das feiras de negócios são investimentos essenciais para a consolidação
de uma carreira internacional. Em relação aos países que recebem a música brasileira, maioria na
Europa, com destaque para o Reino Unido 10%, França 15,5% e Alemanha 13%. Nas Américas
os Estados Unidos representam 16%, e a Argentina com 13,5%. Na Ásia o principal país foi o
Japão.
Considerações finais
Esses são resultados preliminares de uma pesquisa inédita que visa amparar as reflexões
sobre uma política cultural para o setor musical. A pesquisa pretende alcançar uma amostra mais
representativa de outros gêneros musicais e locais de residências de músicos do Brasil. O
elemento mais relevante destes resultados é a confirmação de que o trabalhador da música é
jovem, trabalha em colaboração com uma rede de profissionais, em uma dinâmica de trabalho por
projetos, tem formação alta e remuneração relativamente baixa. Ele é quem faz o gerenciamento
de sua carreira e os processos nem sempre são desenvolvidos com profissionalismo, por conta do
despreparo do artista, que no caso é gestor e empreendedor de seu negócio cultural independente.
Esses dados demonstraram uma correspondência aos elementos descritos como dinâmica de
organização da classe de trabalhadores criativos, apresentados nos relatórios da UNCTAD.
Acreditamos que um trabalho como esse vem a contribuir para o momento atual das políticas
culturais do Brasil e os processos de implementação do Sistema Nacional de Cultura, do Sistema
Nacional de Indicadores Culturais. Pretendemos abrir um diálogo com os órgãos públicos,
conjuntamente com a academia e associações representativas do setor para, mapear, pesquisar e
apresentar dados para dar suporte à tomadas de decisões estratégicas para solucionar as demandas
do setor da música no Brasil.

Bibliografia

ECAD - http://www.ecad.org.br/pt/Paginas/default.aspx

Future of Music Coalition - https://www.futureofmusic.org/

Plano Setorial da Música, 2015 http://gaiabrasil.com.br/2014/12/plano-setorial-de-musica-


consulta-publica-inscreva-se-e-opine/

UNCTAD - Relatório Economia Criativa 2010


http://unctadxiii.org/en/SessionDocument/ditctab20103_en.pdf

798

V V
UNESCO Creative Cities Network 2015
http://www.unesco.org/new/en/culture/themes/creativity/creative-cities-network/

Oakley Kate. Art Work - cultural labor markets a literature review


http://www.creativitycultureeducation.org/wp-content/uploads/CCE-lit-review-8-a5-web-
130.pdf

799

V V
CEMITÉRIOS ENQUANTO PATRIMÔNIO CULTURAL – O CASO DE JUIZ DE
FORA/MG
Leandro Gracioso de Almeida e Silva1
Fábio Vergara Cerqueira2

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar como a política de proteção do patrimônio


cultural ainda encontra desafios e limitações quando pensamos na proteção dos cemitérios
brasileiros. Através da análise da atuação da Fundação Alfredo Ferreira Lage em Juiz de fora,
observa-se que a patrimonialização dos cemitérios da cidade é extremamente tímida e
incipiente assim como ocorre nas esferas estadual e federal. Os agentes de patrimonialização
têm dificuldade em entender a complexidade deste patrimônio, pois os cemitérios sendo
locais que transmitem sensações desagradáveis, passam a falsa impressão que são locais
estáticos e de pouca ou nenhuma transformação por querermos evitá-lo. Os espaços fúnebres
conforme observado, costumam ser os últimos locais a compor a lista de bens a serem
protegidos.

PALAVRAS-CHAVE: Cemitério, Patrimônio, Preservação.

PATRIMÔNIO CULTURAL ENQUANTO CONCEITO


O conceito de patrimônio cultural e sua importância para um povo ou nação tão
discutidos na contemporaneidade, surge a partir da expansão do próprio termo “patrimônio”
que agregado ao termo cultural, acabou por experimentar um novo sentido:
[…] surgido no âmbito privado do direito de propriedade, estava
intimamente ligado aos pontos de vista e interesses aristocráticos. Entre os
romanos, a maioria da população não era proprietária, não possuía escravos;
logo não era possuidora de patrimonium. (FUNARI E PELEGRINI, 2009,
11).
Assim, na antiguidade a palavra patrimônio se encontrava ainda restrita a questão da
propriedade privada, sendo esta individual ou familiar; contudo, era sempre de caráter
aristocrático. (FUNARI E PELEGRINI, 2009, 11) defendem que foi somente na Idade Média
que o termo patrimônio ganha uma ampliação de seu sentido, no qual se acrescenta o caráter
simbólico e coletivo. Porém, apesar da manutenção do sentido restritivo e aristocrático que
ainda possuía, é importante demarcar que o período medieval foi importante, pois pela
primeira vez se soma ao termo a característica de compartilhamento de sentimentos religiosos.
Esse compartilhamento se dava através do culto de relíquia aos santos, ou na valorização de
1
Mestrando em Memória Social e Patrimônio Cultural, UFPEL. leandroleko.almeida@gmail.com
2
Doutor em Ciência Social (Antropologia Social). Professor Associado do Departamento de História
da Universidade Federal de Pelotas, lecionando nos cursos de História Licenciatura e Bacharelado,
Antropologia/Arqueologia Bacharelado. Professor/Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em
Memória e Patrimônio Cultural, UFPel. fabiovergara@uol.com.br
800

V V
lugares e objetos de ritos coletivos.
Ainda de acordo com (FUNARI E PELEGRINI, 2009, 12) foi através da valoração de
objetos da antiguidade, que no período do Renascimento, o termo patrimônio ganharia
também o caráter de coleção. Tão logo os antiquários vão surgindo, vêm com eles a
preocupação de acumulação de bens que resultam numa transformação das sociedades
modernas, culminando no valor que o patrimônio cultural viria a ter partir da expansão dos
Estados Nacionais no século XIX.
Este lento gestar partindo da acumulação de bens com seu caráter estritamente privado
e aristocrático para o colecionismo, temos a transformação de um conceito, sobretudo no
século XVIII com a revolução francesa. Portanto, a noção de patrimônio enquanto bens que
reportam a memória, a identidade e que são o legado cultural de um povo, são relativamente
recentes:
A noção de patrimônio e, datada, produzida, assim como a idéia de
nação, no final do século XVIII, durante a Revolução Francesa, e foi,
precedida, na civilização ocidental, pela autonomização das noções de arte e
de história, e passam a ser utilizados na construção de uma representação de
nação. Já dizia Guizot no século XIX, que o solo da França é simbolizado
por seus monumentos. (FONSECA, 2005, 37)

Ainda de acordo com (FONSECA, 2005, 37-38), quando pensamos no caso brasileiro,
esta preocupação surge por volta da década de 1930, quando os modernistas se apropriaram
de discussões sobre o patrimônio cultural no exterior. Essas discussões internacionais que
geraram a Carta de Atenas, contribuem para um movimento nacional no Brasil que partiria
então para seleção de bens que os modernistas julgavam importantes como constituidores da
identidade brasileira. Com base nesses referenciais estrangeiros, mas que aqui mereciam uma
interpretação nacional, temos a promulgação do decreto-lei n° 25, de 30 de novembro de 1937
regulamentando a proteção dos bens culturais do Brasil.

A POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO DOS CEMITÉRIOS NO BRASIL


Com base nessas discussões acerca do patrimônio cultural brasileiro, a política de
preservação de cemitérios realizada através do então SPHAN3, se mostra longa, abrangendo
todo o território nacional, porém bastante incipiente, quando comparada com a real
possibilidade dos bens cemiteriais que estão espalhados pelo Brasil e que certamente
poderiam ter sido alvo de análise do órgão.
Os cemitérios são alvo de análise do IPHAN desde a década de 1930, quando a

3 Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Atualmente IPHAN


801

V V
instituição iniciou a patrimonialização de bens cemiteriais:
[…] os tombamentos foram iniciados na década de 1930, sendo que
a maioria (73%) ocorreram nas quatro primeiras décadas de atuação do
IPHAN, com destaque para a década de 1960, na qual ocorreram 05
tombamentos (33%). A maioria (67%) dos tombamentos foram motivados
especificadamente por cemitérios ou elementos destes formando o conjunto
dos tombamento onde o cemitério é objeto do pedido. São ações diretamente
relacionadas com o papel e a representatividade destes locais para a memória
coletiva, que não estando relacionados com outros bens ou como partes de
conjuntos paisagísticos, destacaram-se por seus elementos. (CASTRO, 2010,
4)

E a autora prossegue:
Sobre os tipos do tombamento, a maioria é do tipo convencional
(53%), 27% são somente de elementos funerários, 20% são de locais de
sepultamentos, valorações direcionadas a locais de sepultamentos que nem
sempre chegam a formar cemitérios oficiais. Tais tombamentos têm,
geralmente, sua importância ligada à história nacional[...] (CASTRO, 2010,
5)

Atualmente, conforme pesquisa realizada no sítio da instituição, são 15 os bens


cemiteriais entre túmulos, fachadas de cemitério ou conjuntos como um todo que contam com
a proteção do órgão. Este bens estão espalhados por todo o território nacional. Quando
analisamos o trabalho de um órgão de proteção estadual, o IEPHA/MG, percebemos uma
atuação semelhante ao IPHAN guardada é claro, as devidas proporções.
De acordo com (SOUZA e MORAES, 2013, 7), o Instituto Estadual de Patrimônio
Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA/MG) foi criado em 30 de setembro de 1971
com a lei n° 5.775 pelo então governador Rondon Pacheco. Contando até hoje, com apenas o
tombamento do antigo necrotério do Cemitério do Nosso Senhor do Bonfim em Belo
Horizonte, a política de ampliação dos bens parece ter dificuldade em considerar esses locais
como passíveis de patrimonialização.4
Porém, deve-se ressaltar que a tanto o IPHAN quanto o IEPHA/MG, contam com
orçamentos aquém do necessário para se fazerem mais presentes, sendo assim seus recursos
humanos e por consequência sua capacidade de fazer um inventário de todo o universo de
bens presentes pelo Brasil e por MG, fica bastante prejudicada, o que certamente contribui
para a não observação de todos os bens passíveis de patrimonialização.

MUNICIPALIZAÇÃO DA PRESERVAÇÃO – O PIONEIRISMO DE JUIZ DE


FORA EM MINAS GERAIS
De acordo com (GIROLETTI, 1988) a cidade de Juiz de Fora, localizada na Zona da

4Disponível em: <http://www.iepha.mg.gov.br/bens-protegidos/bens-culturais-tombados> Acessado


em 20 de fevereiro de 2015.
802

V V
Mata Mineira funcionava como importante polo do setor industrial desde o final do século
XIX até as primeiras décadas do século 1930, quando perde força para outras regiões do
estado. As reformas urbanas realizadas, devido ao crescimento econômico e populacional
proporcionado pelo cultivo do café e pela industrialização, acabaram dotar a cidade de um
expoente patrimônio cultural edificado.
De acordo com (AZEVEDO e JABOUR, 2012, 35-39), o movimento de proteção do
patrimônio cultural na cidade se inicia muitos anos depois desta fase de crescimento,
especificamente nos anos 1970, quando um grupo de intelectuais percebendo nas
transformações arquitetônicas contemporâneas, e por assim na demolição dos antigos
casarões, a necessidade de se proteger parte deste bens para conservação de sua identidade e
memória. Havia 2 grupos de intelectuais distintos: os que enxergavam na reformulação um
importante passo da cidade para modernidade e outro que acreditava que era necessário se
preservar alguns bens para que fossem elos entre a cidade nova que se construía e a do início
de sua história.
A partir deste panorama de debates, os intelectuais preservacionistas juiz-foranos
conseguem o apoio do poder público municipal quanto a necessidade de preservação de parte
dos bens da cidade. Este grupo contaria também com constituição de 1988 em seguida, que
foi legitimadora de seus reclames. Não pretendemos aqui fazer um debate historiográfico a
cerca dos meandros da criação da Constituição e dos impasses entre estes dois grupos de
intelectuais na cidade. Contudo, é importante destacar que desde a década de 1980 até hoje,
foram tombados pelo município 173 bens materiais e se fez o registro de 6 bens imateriais. 5
Ao analisarmos a natureza destes bens, observaremos que são eles os tradicionais bens
envoltos a questão patrimonial nacional. Praças, monumentos, casarões, escolas, igrejas,
antigas fábricas, em suma, bens que costumavam e ainda costumam ter prioridade em
seleções para compor o rol de bens avaliados.

A preservação dos 2 cemitérios mais antigos da cidade sendo eles: O Cemitério


Municipal Nossa Senhora Aparecida e o Cemitério da Paróquia de Nossa Senhora da Glória
não constava sob a análise para um possível tombamento até 2012. Porém, um túmulo
localizado no Cemitério Municipal Nossa Senhora Aparecida parece fazer exceção a essa
situação. Constante no processo administrativo PJF de n.º 1367/99, o pedido de tombamento

5Lista completa disponível em:


<http://pjf.mg.gov.br/administracao_indireta/funalfa/patrimonio/index.php> Acessado em 20 de
fevereiro de 2015
803

V V
do Mausoléu do Comendador Henrique Guilherme Fernando Halfeld, se mostra exceção
dentro deste universo.6.
As razões para o pedido do tombamento deste túmulo se fazem óbvias, se
considerarmos que nele jaz a quem se atribui a responsabilidade da fundação ou cofundação
do município, ocorrido na década de 1850. O túmulo já não possuía as características
originais, e isto poderia se impor como um empecilho para o tombamento. Mas, o pedido foi
aprovado em 07 de junho de 2004, tendo como justificativa a sua representatividade
simbólica, isto é, um túmulo de notável importância da cidade, logo merecia ser tombado.
Sendo assim, observamos uma semelhança com as políticas adotadas pelo IPHAN e
IEPHA/MG, que de acordo com (CASTRO, 2010, 5) realiza os tombamentos de cemitérios e
bens referentes a eles quando interessam à história e a memória nacional e no caso do
IPHAE/MG a memória estadual. No caso do mausoléu de Henrique Halfeld, o túmulo era
importante para o município dentro dos critérios adotados pelos técnicos da Funalfa,
certamente em diálogo com a atuação dos órgãos federal e estadual. A política de preservação
restritiva de bens pela Funalfa perpassará toda a questão dos cemitérios em Juiz de Fora, até o
ano de 2014 quando temos uma ruptura.
Em 2012, de acordo com relatos do Diretor do Museu Mariano Procópio e também
membro do Conselho de Proteção e Preservação do Patrimônio Cultural da cidade de Juiz de
Fora (COMPPAC) Douglas Fasolato, foi feita uma visita ao Cemitério Municipal da cidade,
na qual estavam presentes: o próprio; Wilson Cid jornalista, membro do Instituto Histórico e
Geográfico de Juiz de Fora IHG, membro do COMPPAC e Wilson Coury Jabour Júnior,
procurador-geral da prefeitura da cidade e também membro do COMPPAC; nesta visita eles
constataram:
“A situação do cemitério Municipal era motivo de nossa
preocupação visto o processo de especulação no cemitério, principalmente
na parte antiga, onde as pessoas estavam indiferentes aos valores estético-
históricos, descaracterizando-os, muitas vezes jogando-os ao chão para
erguer andares e tirando inclusive a capacidade de observação. Tivemos
inúmeras conversas e algumas visitas ao cemitério. Uma delas,
especificamente para tentar delimitar o objeto do tombamento, única solução
para impedir a situação. Enfim, fizemos uma visita técnica, em um sábado
chuvoso, com posterior troca de e-mails e do qual saiu uma lita, mas
priorizando o cemitério velho, pelo risco. Conversamos com várias pessoas e
pesquisamos em diversas obras. Essa visita foi em 2012 e antecedeu a
construção da proposta, que ficou decidido que seria apresentada pelo

6 Processo disponível em: http://www.jflegis.pjf.mg.gov.br/c_norma.php?chave=0000021833


Acessado em 20 de fevereiro de 2015
804

V V
Wilsinho.” 7 .

“Wilsinho”, a quem Douglas Fasolato se refere é, Wilson Jabour Júnior que apresenta
ao COMPPAC uma proposta com 25 bens selecionados no Cemitério Municipal Nossa
Senhora Aparecida. No documento constam: a antiga capela, 19 túmulos na parte antiga do
cemitério e 5 na parte nova. O pedido foi aprovado e ainda está em análise compondo o
processo: DIPAC/FUNALFA n° 011586/2012.
Ao observamos quais túmulos foram eleitos, compreende-se que o grande
conhecimento que os três dispunham sobre a história do município, suas atuações no
COMPPAC e nos órgãos nos quais trabalham diretamente ou indiretamente vinculado a
cultura, fez os três priorizarem apenas os de apelo histórico e estético das construções
tumulares das quais conheciam a história dos sepultados. É importante destacar que junto ao
pedido, Wilson Jabour Júnior apresentou uma justificativa na qual apelava para uma rápida
posição da Funalfa, diante do perigo iminente apresentado aos túmulos. O solicitante também
cita um trecho do trabalho da pesquisadora de cemitérios Elisiana Trilha Castro para
corroborar com seu apelo:
“Em grande medida, ao preservar um cemitério, a este são
incorporados valores que não se ligam somente ao fato deste lugar
guardar os corpos sem vida. Creditam-se valores religiosos, sociais,
arquitetônicos, históricos ou artísticos, ambientais ligados, geralmente,
a uma determinada forma de representar as cidades e a memória
coletiva. Mas um olhar sobre a cidade contemporânea aponta para um
modo diferente de lidar com a morte e com os mortos, que tendem a
afastá-los ou apresentá-los de uma forma menos marcante na
paisagem da cidade e no cotidiano. Apesar destas novas práticas ou
por conta delas, afinal a inclusão dos cemitérios como bens
patrimoniais pode ser outra forma de afastar a morte pela aplicação de
novos usos, estes são enquadrados dentre os bens a serem preservados.
Mas sua inclusão dentre o rol dos bens culturais, quando comparada à
sua historicidade e valor cultural, ao contrário de muitos lugares,
costumes e edificações, ainda é incipiente.”8
Wilson Jabour Junior buscou propôr uma ampliação da percepção de patrimônio na
cidade, contudo, julgamos que sua seleção aliada com a de Douglas Fasolato e Wilson Cid foi
estritamente limitada, devido a falta de maiores conhecimentos sobre a questão. Somente a ala
velha conta com mais de 800 jazigos, ao selecionar apenas 20 desta ala e mais a capela,

7 Trecho de entrevista concedida via chat da rede social Facebook, no dia 15 de fevereiro de 2015

8 Trecho retirado do pedido feito por Wilson Coury Jabour Junior no qual ele cita o trabalho de
Elisiana Trilha Castro “Cemitérios, nosso patrimônio nacional”, consta no processo administrativo de
posse de DIPAC/FUNALFA, n°: 01158/12
805

V V
atribuindo a estes, importância para preservação acima dos demais, Wilson desconsiderou não
somente os outros jazigos, como demonstra desconhecer todas as nuanças envoltas ao espaço.
O Cemitério Municipal inaugurado em 1864, é palco de inúmeras tensões étnico-
religiosas. De acordo com (COSTA, 2007, 32-33) o espaço se manteve segregado devido as
intervenções de um padre local de 1864 até 1890. A fachada do cemitério foi reformulada por
volta de 1925 e tem estilo neoclássico, tendo sido construída sobre a entrada principal um
segundo pavimento em 1968, conforme inscrição nos próprios pavimentos. Neste pedido,
Wilson Jabour Junior não considerou a fachada do cemitério.
Contendo uma vasta coleção de arte funerária, com trabalho de marmoristas italianos
que assinaram túmulos no local, inúmeros túmulos da ala velha, poderiam compor a lista
apresentada por Wilson Jabour Júnior, que não o fez. No entanto, é preciso observar que,
provavelmente a limitação imposta pelo tombamento possa ter sido considerada por Wilson e
por isso, ao pedir o tombamento ele se restringiu aos que estavam em estado de abandono, a
fim de evitar impasses com as famílias dos que ainda enterram seus familiares no cemitério.
Tendo Wilson falecido em abril de 2013, tornou-se impossível precisar com mais
detalhes as razões de suas escolhas, porque a decisão final ficou toda a seu cargo. Porém,
ainda que se deva considerar as limitações desta seleção, Wilson Jabour Junior foi importante
porque foi o primeiro, a fazer um pedido mais amplo de proteção do patrimônio cemiterial em
Juiz de Fora.

AMPLIANDO OS LIMITES DE PROTEÇÃO DO CEMITÉRIO MUNICIPAL


NOSSA SENHORA APARECIDA
Conforme discutimos, o pedido realizado por Wilson Jabour Junior em dezembro de
2012, foi importante porque graças a ele, a Funalfa começou a considerar o patrimônio dos
cemitérios no município. Em Abril de 2013, o órgão realizou em Juiz de Fora o terceiro
Olhar sobre o que é Nosso, evento que de periodicidade anualmente, propõe-se a discutir a
questão do patrimônio cultural. Contando com inúmeros pesquisadores e representantes
envolvidos na questão do patrimônio, as discussões propostas, não só contribuem para
ampliação da atuação do órgão no município, como também aproxima a comunidade
acadêmica e local para pensar políticas e posturas com relação a questão.
No ano de 2013, vieram a Juiz de Fora 2 pesquisadoras de cemitérios, a fim de
apresentassem suas posições a acerca da questão cemiterial. Entre elas, havia a pesquisadora
Clarissa Grassi que se dedica a inúmeras ações para divulgação e preservação do Cemitério
São Francisco de Paula, o mais antigo de Curitiba/PR. Clarissa é também filiada à Associação
Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC). Outra pesquisadora que participou do evento, foi
806

V V
Fernanda Maria Matos da Costa, historiadora e atualmente funcionária técnico-administrativa
da Universidade Federal do Paraná que teve como objeto de pesquisa o Cemitério Municipal
de Juiz de Fora.
As problematizações das pesquisadoras contribuíram para que Leandro Gracioso de
Almeida e Silva, autor deste trabalho e atualmente mestrando em Memória Social e
Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) conseguisse compreender a
lógica envolta aos espaços cemiteriais na cidade, instigando-o a fazer do Cemitério Municipal
de Juiz de Fora, objeto de pesquisa.
É sabido que a pesquisadora Clarissa Grassi foi consultada sobre a atuação da Funalfa
sobre a patrimonialização do Cemitério Municipal de Juiz de Fora. Segundo a própria, ela
apresentou alguns caminhos para se selecionar túmulos, no entanto, a pesquisadora não
conferiu a atuação da Funalfa qualquer postura critica mais ampla, por não conhecer a história
do cemitério analisado.9.
O que de fato parece pertinente ressaltar, é que Fernanda Maria Matos da Costa apesar
de ter sido conferencista no evento e ter entregado uma cópia de sua dissertação de mestrado
sobre a história do Cemitério Municipal de Juiz de Fora, não apresentou e tampouco pediu
para que o órgão qualquer posição ou pedido acerca do tombamento do cemitério. Em
entrevista com a pesquisadora via e-mail que atualmente mora em Curitiba/PR, a
pesquisadora disse que apesar de conhecer os trâmites da patrimonialização, não cogitou fazê-
lo porque esse não era o foco de sua pesquisa, e como atualmente mora em ouro estado, a
distância tornaria o acompanhamento mais complicado.10
Uma tese de doutorado, de Paulo Sérgio Quiossa tendo como objeto de pesquisa, o
Morrer Católico no Viver em Juiz de Fora (1850-1950), também poderia ter contribuído para
uma ampliação formal da patrimonialização dos cemitérios do município, que por ele foram
analisados. Contudo, Paulo Quiossa tampouco o fez. Não se tendo conseguido estabelecer
contato com o mesmo, até a produção deste trabalho, não foi possível averiguar maiores
detalhes.
O primeiro pesquisador dos cemitérios juiz-foranos a desejar a ampliação dos túmulos
tombados e de políticas culturais que aproximassem a comunidade do local, foi o autor deste
trabalho. Tendo em vista a pesquisa que ainda se realiza sobre o espaço, o pedido foi feito
com os conhecimentos prévios que se tem sobre o cemitério em dezembro de 2014. O pedido
foi feito em caráter de urgência após a leitura de uma notícia publicada num jornal local

9Entrevista concedida via a rede social Facebook em 23 de fevereiro de 2015

10 Entrevista concedida via email em 27 de fevereiro de 2015


807

V V
chamado Tribuna de Minas. Nesta notícia, há menção de uma proposta do vereador do
município Cido Reis que se põe contra o atual regimento do cemitério.
Sua postura se dá devido ao fato de haver inúmeros túmulos que estão há anos
abandonados, principalmente na ala velha, a mais antiga. Portanto, haveria a necessidade de
se alterar o atual regimento do local, a fim de que se permita a venda do direito de
perpetuidade a terceiros, e não somente realizar a transferência do título de posse a membros
da família como atualmente ocorre.11.
A venda de jazigos a terceiros, seguramente representaria o fim da maioria dos
túmulos mais antigos, afinal certamente não haveria por parte dos novos proprietários o
compromisso de se preservar túmulos que fazem menção a familiares que não são seus.
Diante desta situação, foi apresentado um pedido formal esmiuçando o porquê da necessidade
de se tombar não somente túmulos específicos, mas pôr sob análise toda a ala velha. Junto a
este pedido foi apresentada a produção acadêmica de Leandro Gracioso de Almeida e Silva
sobre o cemitério. O pedido foi aprovado gerando o processo DIPAC/FUNALFA n°
00071/2015 e atualmente está tramitando.
Neste pedido, julgou-se que a análise de todo o espaço da ala velha, e não somente
alguns túmulos, é a forma mais plural de se pensar no tombamento do espaço, como a Funalfa
parecia não saber como proceder sobre a questão, ficou acordado que Leandro Gracioso de
Almeida e Silva, seria consultor da questão, para futuras reuniões que se realizem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os cemitérios são espaços que trazem dor e melancolia, por isso a maioria das pessoas
passa quase toda a vida ignorando não somente a morte como qualquer possibilidade de
visitas a estes espaços. O morrer no século XIX e nas primeiras décadas do século XX era
carregado de carga dramática e as famílias buscaram através da arte funerária marcar seu
lugar, também na cidade dos mortos.
Sendo assim, os cemitérios oitocentistas são em muitas vezes, carregados de inúmeros
bens deste período que serviam de suporte para a dramatização do luto. Este bens podem ser
patrimonializados, por órgãos de proteção municipal, estadual e federal. Contudo, a distância
que esses espaços impõem devido as sensações que provocam, acabam por também ter
algumas consequências observadas na produção deste trabalho:

Cemitérios são espaços “imutáveis”: A falta de visitação frequente a cemitérios pode

11A notícia completa disponível em http://www.tribunademinas.com.br/projeto-autoriza-venda-de-


jazigo-no-municipal/ Acessado em 06 de dezembro de 2014.
808

V V
nos provocar a falsa sensação de que eles não se alteram ao longo do tempo, o que de fato não
procede quando observarmos que os túmulos do Cemitério Municipal Nossa Senhora
Aparecida acompanharam os gostos estéticos de cada período da história do Brasil, sendo
assim bastante mutáveis.

Sensação versus patrimonialização: Os sentimentos negativos provocados pela morte


contribuem para não enxergarmos no local povoado por ela, como aprazível para
patrimonialização, por isso há tantos tabus envoltos ao morrer. Estes tabus ao passo que
serviram para trazer o patrimônio funerário razoavelmente intacto até o século XXI em Juiz
de Fora, também servem para que pouco se interessem em estudá-los, assim como esses locais
podem passar por depredações e estas não são percebidas.

Falta de diálogo entre academia/comunidade e agentes do patrimônio: Esta é sem


dúvida a questão mais problemática ao pensarmos no caso de Juiz de Fora. Parece-nos
estranho que mesmo com 2 trabalhos produzidos a respeito de espaços cemiteriais e sendo os
2 pesquisadores Paulo Quiossa e Fernanda Costa, historiadores, os pesquisadores não se
preocuparam com patrimonialização do espaço. Não sabemos ao certo se Paulo Quiossa sabia
como agir ou se queria fazê-lo, devido a não termos conseguido contato, contudo Fernanda
alegou que este não era o foco de seu trabalho e por isso não o fez. A respeito desta questão,
(FONSECA apud BOURDIER, 2005, 22) comenta que apesar da crescente participação da
comunidade na constituição de patrimônios, os pedidos ainda se centram no meio dos
intelectuais. Estes profissionais sendo: historiadores, sociólogos e arquitetos em sua maioria;
detêm os códigos necessários para não só justificarem seu pedido, como também conhecem os
meios necessários para se recorrer. Isso está bastante claro ao pensarmos no caso Juiz de Fora,
que teve seu Cemitério Municipal alvo de um pedido de patrimonialização através da atuação
de Wilson Jabour Junior em 2012 e depois através de Leandro Gracioso de Almeida e Silva
ambos de certo modo, membros de setores envolvidos na questão ou da academia. Contudo,
muito mais que deter os códigos é necessário o desejo e/ou envolvimento com o bem para
fazê-lo, algo que independe da formação.

Por fim, o objetivo deste trabalho era, através de um relato de experiência, apresentar
os cemitérios como locais portadores da memória e identidade das cidades. Também são
locais que merecem mais atenção por parte dos agentes do patrimônio, que quando preparados
e com os recursos orçamentários condizentes com a função podem ser habilitados para
entender a complexidade destes lugares e não só tombá-los, como também utilizá-los como

809

V V
lugares para fins de educação patrimonial e construção de cidadania, afinal é para isto também
que serve o patrimônio cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO. Nilo Lima de; JÚNIOR JABOUR, Wilson Coury. Reflexões e Olhares – O Patrimônio
Cultural de Juiz de Fora. 1 edição. Juiz de Fora: Funalfa, 2012. 184 páginas.

CASTRO, Elisiana Trilha. Cemitérios, nosso patrimônio nacional: a ação do IPHAN com relação ao
patrimônio funerário brasileiro. In: Anais do III Encontro nacional da ABEC, 2010, Piracicaba.
Disponível em: <https://elisianacastro.files.wordpress.com/2009/06/artigo-elisiana-abec-2010-
patrimonio-funerario-iphan.pdf>

COSTA, Fernanda Maria Matos da. A morte e o morrer em Juiz de Fora: Transformação nos costumes
fúnebres (1851- 1890). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas,
Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2007.

FONSECA, Maria Cecília Londres O Patrimônio em Processo. Rio de Janeiro: UFRJ/Minc –Iphan,
2005.

FUNARI, Pedro Paulo; PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio Histórico Cultural. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006.

GIROLETTI, Domingos Antônio. Industrialização de Juiz de Fora – 1850/1930. Juiz de Fora: ed. da
Universidade Federal de Juiz de Fora, 1988.

QUIOSSA, Paulo Sérgio. O morrer católico no viver em Juiz de Fora: 1850-1950. Tese (Doutorado
em Ciência da Religião) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz
de Fora: 2009

ENTREVISTAS
Clarissa Grassi. Entrevista concedida via a rede social Facebook em 23 de fevereiro de 2015
Douglas Fasolato. - Entrevista Trecho de entrevista concedida via chat da rede social Facebook, no dia
15 de fevereiro de 2015
Fernanda Maria Matos da Costa. Entrevista concedida via e-mail em 27 de fevereiro de 2015.

FONTES DOCUMENTAIS
Processo Administrativo. DIPAC/FUNALFA, n° 1367/99. Disponível em:
<http://www.jflegis.pjf.mg.gov.br/c_norma.php?chave=0000021833>
Processo Administrativo. DIPAC/FUNALFA, n°: 01158/12
Processo Administrativo. DIPAC/FUNALFA, n° 00071/15

SÍTIOS CONSULTADOS
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO DE MINAS GERAS Disponível em:
<http://www.iepha.mg.gov.br/bens-protegidos/bens-culturais-tombados> Acessado em 20 de fevereiro
de 2015.
810

V V
FUNDAÇÃO ALFREDO FERREIRA LAGE Disponível em:
<http://pjf.mg.gov.br/administracao_indireta/funalfa/patrimonio/index.php> Acessado em 20 de
fevereiro de 2015
TRIBUNA DE MINAS. Disponível em: <http://www.tribunademinas.com.br/vereadores-querem-
mudar-regimento/> Acessado em 06 de dezembro de 2014

811

V V
SISTEMA CULTURAL DO EXÉRCITO BRASILEIRO - DOS PRIMEIROS
TRABALHOS ATÉ O SURGIMENTO DA DIRETORIA DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E CULTURAL DO EXÉRCITO
Lecinio Alves Tavares1

RESUMO: : O presentes artigo trata sobre tem como objetivo apresentar aspectos relevantes
da Política Cultural do Exército desde os trabalhos iniciais, passado pela reformulação da
Diretoria de Assuntos Especiais, Educação Física e Desportos (DAED), em 1973 até a criação
da Diretoria de Patrimônio Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx), em 23 de dezembro
de 2008. O trabalho tem objetivo apresentar o processo que culminou com a criação da
DPHCEx, traçando um paralelo com o que acontecia no seio da sociedade brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: : Política Cultural, Sistema Cultural do Exército, Exército Brasileiro

1. INTRODUÇÃO
A preocupação com manutenção e difusão da memória, dos feitos e das tradições é um
aspecto comum a maioria das Forças Armadas, isso não poderia ser diferente com o Exército
Brasileiro. Contudo, a implantação de um processo sistêmico é recente, tendo como marco
inicial, o ano de 1970, com a criação do Departamento de Ensino e Pesquisa (DEP)2.
O presente artigo se caracteriza como uma tentativa de demonstrar a evolução do
Sistema Cultural do Exército Brasileiro ao longo dos anos até a criação da Diretoria do
Patrimônio Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx)3, em 23 de dezembro de 2008, e
como esse processo foi influenciado pelo cenário nacional. Ao longo desse período, em
especial, a partir da Constituição Federal de 1988, houve uma série de mudanças de
dispositivos legais e processos administrativos que influenciam todo o setor cultural do país.
A seguir, será observado o processo que culminou com a criação da DPHCEx.

1
Coronel do Exército Brasileiro, Mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército, Especialista em Comunicação Social pelo Centro de Estudos de Pessoal e em História Militar
Brasileira pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Graduado em Administração pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Compõe a equipe da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do
Exército, atuando na área de planejamento e coordenação da Diretoria, leciniotavares@yahoo.com.br
2
Fonte: página eletrônica da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército www.dphcex.ensino.eb.br
3
A DPHCEx é o é o órgão técnico-normativo responsável pelo planejamento, coordenação e fiscalização das
atividades culturais e pela preservação e divulgação do patrimônio histórico e cultural do Exército Brasileiro.

812

V V
2. OS PRIMÓRDIOS
O início das atividades de preservação das tradições militares se confunde com a
própria origem do Exército Brasileiro4,a primeira notícia que se tem da criação de um museu
militar é de 1764 quando o Vice-Rei do Brasil – Antônio Álvares Cunha – Conde da Cunha,
mandou organizar uma Casa de Armas. na Fortaleza da Conceição. Esse processo se
intensificou até a década de 1930, quando houve um ambiente de mudanças no cenário
cultural em toda sociedade brasileira.
Um aspecto a ser constatado no decorrer desse processo no seio da sociedade,
inclusive dentro do Exército, é a respeito do comprometimento e envolvimento de todos os
entes que estão nesse campo uma vez que existem paradigmas que são explicitados por
BOTELHO (2009) que " a área da cultura tende a ser vista como acessória no conjunto das
políticas governamentais, qualquer que seja a instância administrativa" e que "quase sempre
são os militantes da área cultural (...) os únicos a defender a ideia de que a cultura perpassa
obrigatoriamente todos os aspectos da vida da sociedade e de que, sem ela, os planos de
desenvolvimento sempre serão incompletos e, como alguns defendem, fadados ao insucesso".
A década de 19305 é considerada por muitos como aquela que se iniciou a elaboração
de políticas culturais no país, sendo, segundo EMILIANO (2009), "o momento inaugural da
política cultural no Brasil tenha se dado nos anos 30 do século passado". O autor considera
que dois fatos foram marcantes para o início de nossa política cultural: a passagem de Mário
de Andrade pelo Departamento de Cultura da Prefeitura da Cidade de São Paulo (1935-1938)
e a implantação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930. Nessas duas oportunidades,
houve uma preocupação com as demandas culturais e com uma projeção das atividades para o
futuro, se caracterizando, também com uma visão sistêmica do assunto.
A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 13
de janeiro de 1937, pelo Governo Vargas, tinha, segundo CASTRO (2003), uma proposta
bem distinta da que estava sendo aplicada na defesa da cultura até a Revolução de 1930; uma
4
Em 19 de abril de 1648, ocorria em Pernambuco nos montes da cidade de Guararapes, uma sangrenta batalha
entre luso-brasileiros e holandeses. A batalha de Guararapes como ficou conhecida, marca o nascimento do
Exercito Brasileiro, pois foi onde ocorreu, pela primeira vez, a união de brancos, índios e negros que lutavam
pela mesma causa, defendendo interesses do Brasil e não somente de Portugal.
5
Para Emiliano José, há aqueles que consideram que a inauguração das políticas culturais tenha ocorrido no
período do Segundo Império, devido a postura ilustrada e de mecenas que o imperador Pedro II eventualmente
assumia; contudo não houve, realmente, intervenções conjuntas e sistemáticas visando ao desenvolvimento de
políticas culturais. Também, a Primeira República nascida nos finais do século 19 não desenvolveu políticas
culturais. Havendo somente nos anos 30, de fato uma mudança nesse quadro, comprovando o caráter tardio das
políticas culturais no Brasil.

813

V V
ação não se restringiria à capital ou às grandes cidades estaria direcionada para todo o país.
Reforçando-se, dessa forma, a preocupação em se criar uma política cultural nacional que
não esteja voltada somente para os grandes centros do país. Fruto dessa atuação do Governo
Federal, que no dia 30 de novembro de 19376, foi publicado o Decreto-lei Nr 25, que
organizava a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.
Esse um cenário caracterizava-se por uma pequena, porém eficiente sistematização
das políticas culturais que se relacionavam com a preservação da memória e da cultura
nacional, que para CASTRO (2003), antecedem à criação dos órgãos governamentais de
proteção aos monumentos históricos.
Durante a Era Vargas (1930 - 1945), o Governo, seguindo a sua vocação nacionalista,
preocupou-se com a preservação dos valores culturais, CALABRE (2005) ressalta que, a
nesse período, foi o que se pode chamar de que as políticas culturais governamentais, no
Brasil, tiveram início, em especial no primeiro governo Vargas no" tempo da construção de
instituições voltadas para setores onde o Estado ainda não atuava".
Concomitantemente, a visão sistêmica dos assuntos culturais na Força Terrestre
também se efetivou nessa mesma década de 1930, conforme citam MORGADO e SANTOS
(1990, p. 56 ) texto abaixo:
Estes órgãos, entendidos como instrumentos condutores da cultura (...) foram
criados para funcionar como um sistema. Ocorre que os mestres da Missão
Francesa, ao constatarem a inexistência de livros e compêndios sobre
História Militar Brasileira, e conscientes de sua necessidade para o
aprendizado e o estabelecimento de uma Doutrina Militar estimularam a
criação de órgãos que permitissem o seu florescimento. Isto ocorreu na
década de 30 (...) Um grupo de oficiais voltados para as atividades culturais,
dentro os quais se destacaram PAULA CIDADE e VALENTIN BENÍCIO
DA FONSECA, envolveu-se na criação de um sistema produtor de cultura
militar. (...) O Sistema seria constituído por um Arquivo, onde ficariam
todos os documentos constitutivos da memória do EXÉRCITO, os quais
seriam estudados por elementos de reconhecido saber, que reunidos em um
Instituto, produziriam conhecimentos ordenados de História e Geografia
Militar, transformando-os em obras que seriam editadas e distribuídas pela
Biblioteca do Exército (MORGADO e SANTOS, 1990, p,56).

Após esse período, nas duas décadas seguintes, houve um grande desenvolvimento
cultural no país, caracterizado pela ausência quase que completa do Estado nas políticas
culturais. O Ministério da Educação e Saúde foi desmembrado, surgindo os Ministérios da
Saúde (MS) e o da Educação e Cultura (MEC) em 1953, mesmo assim, o Estado continuaria
afastado sem empreender grandes atividades no que tange à cultura. Após a separação das

6
Dia Nacional do Patrimônio Histórico e nascimento de Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1899, em BH/ MG.

814

V V
estruturas ministeriais, o cenário continuaria a ser aquele que se desenhou nas décadas
anteriores.
No cenário internacional, no ano de 1954 a UNESCO, proclama a Convenção sobre a
Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, neste documento há o
comprometimento com o respeito dos bens culturais situados nos territórios dos países
adversários em caso de conflito armado, caracterizando-se dessa forma,mais um passo para a
efetiva proteção do patrimônio cultural. Em 1958, a França7 foi um dos primeiros países a
destacar a atividade cultural, criando um ministério.

3. DÉCADA DE 1960 ATÉ A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


Até o ano de 1964, a iniciativa privada teve uma grande influência no setor cultural, o
Estado não promoveu nenhuma ação de vulto no campo da cultura. Dois anos depois, o
Conselho Federal de Cultura foi criado e teve como objetivo a formulação e execução da
política governamental de produção.cultural, além de estabelecer parâmetros para o
desenvolvimento da produção cultural.
Em 1966, o Conselho Nacional de Cultura transformou-se em Conselho Federal de
Cultura e houve a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC). Três anos depois, surgia a
Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME) Nos anos seguintes, a partir do Governo
Médici, o Estado começou a atuar diretamente no sistema, como lembra CALABRE (2005)
que foi no governo do Presidente Médici (1969-1974), durante a gestão do Ministro Jarbas
Passarinho (1969-1973), que foi elaborado o Plano de Ação Cultural PAC, "apresentado (...)
como um projeto de financiamento de eventos culturais. O plano marcou o início de uma série
de ações do Estado no campo da cultura".
O Exército Brasileiro, em 1973, prosseguia com o processo de valorização dos
assuntos culturais, com a criação do Departamento de Ensino e Pesquisa (DEP), se configurou
na medida pioneira para a centralização do seu pensamento cultural, que antes estava disperso
em diferentes órgãos) 8. Naquele mesmo ano, logo após a reestruturação do DEP, a Diretoria
de Assuntos Especiais, Educação Física e Desportos (DAED) fora criada, de certa forma,
como uma tendência da época, percebe-se que os governos e alguns entes públicos como EB

7
A idéia de dar à Cultura a nobreza de um Ministério, durante o governo de Guterres, veio de França(...)
peregrinas. Quando De Gaulle voltou ao poder, em 58, decidiu criar a pasta" (VASCONCELOS, 2006).
8
Fonte: página eletrônica da DPHCExército www.dphcex.ensino.eb.br (adaptado)

815

V V
já estavam preocupados com a opção estratégica de conservar, difundir e valorizar a cultura
de forma mais efetiva.
Em 1975, houve o lançamento oficial do Plano Nacional de Cultura (PNC). As
Normas para Utilização dos Arquivos e Museus por Arte de Historiadores e outros estudiosos
(Port Min Nr 2440, de 27 Set 79) foram publicadas no âmbito do Exército, demonstrando a
intenção de regularizar e facilitar o acesso aos acervos militares para a sociedade em todos os
seus segmentos, seja militar ou civil.
De 1979 até 1985, houve um fortalecimento e consolidação de algumas instituições e
linhas de atuação do Governo Federal no campo da cultura. Uma delas foi a criação, em
1981, Secretaria de Cultura, dentro da estrutura do Ministério da Educação e Cultura, na
gestão do Ministro Rubem Ludwig. Essa nova estrutura englobaria a área de patrimônio e a
Secretaria de Assuntos Culturais (SEAC). Houve, ainda, a elaboração do Plano de Diretrizes
para Operacionalização da Política Cultural no MEC.
O Ministério da Cultura foi criado quatro anos depois; tendo como efeito, uma maior
destinação de verbas para a educação e uma diminuição dos investimentos orçamentários no
setor cultural. Segundo DE MARCO (2001) "as tentativas de implantar um sistema público
de políticas estratégicas, gerador de políticas estratégicas e continuadas para o setor, são uma
experiência relativamente recente".
A autora defende que novas abordagens a respeito da produção da cultura num sentido
holístico, permearam as áreas da economia, da administração, do marketing, do direito, do
turismo e das relações políticas em geral. Esse era o ambiente que envolvia a sociedade
brasileira durante a criação do Ministério da Cultura e das secretarias estaduais e municipais
de cultura, implementados em meados dos anos 80. Dentro do Exército, nesse período,
destaca-se em 1980, a organização da Diretoria de Assuntos Culturais, Educação Física e
Desportos (DACED) que fora uma tentativa de centralização e desenvolvimento das
atividades culturais no Exército, dando a devida importância. Os trabalhos iniciais foram os
de levantamento do acervo patrimonial, histórico e artístico do Exército, a transferência do
Museu Histórico do Exército da Casa de Deodoro para o Forte de Copacabana e a mudança de
subordinação do Arquivo Histórico do Exército) 9. Percebe-se que nesse período, o EB, da
mesma forma que o segmento civil da sociedade brasileira, também reorganizava suas
instituições culturais.

9
Fonte página eletrônica da DPHCE - www.dphcex.ensino.eb.br

816

V V
Em 1985, por intermédio do Decreto 91.144, de 15 de março, surgiu o Ministério da
Cultura. Dessa feita, houve o entendimento, por parte do Governo da época sobre a autonomia
e a importância desta área fundamental, que até o momento fora tratada em conjunto com a
educação e agora mereceria um ministério próprio. O novo Ministério veio com uma série de
problemas, tais como: indefinição de sua competência, ausência de linhas de atuação política,
falta de uma política de cargos adequada, sendo que muitas vezes, os cargos mais importantes
foram ocupados por critérios meramente políticos.
O Ministério ficou a cargo de José Aparecido de Oliveira, que logo foi substituído por
Aloísio Pimenta. Com uma constante diminuição dos investimentos públicos no setor. A sua
gestão foi caracterizada pela busca de novas fontes de renda.

4. DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ATÉ A CRIAÇÃO DA DPHCEx


A Carta Magna de 1988 reordenou jurídica e administrativamente diversos temas
relativos à cultura no país, criando um novo rol de normas para os bens públicos e para as
atividades culturais em geral. Foram tratados assuntos como o tombamento de bens públicos,
responsabilidades e obrigações no tocante à distribuição tripartida das responsabilidades entre
os entes federal, estaduais e municipais.
A identificação dos papéis e a dificuldade de organizar essas atividades se
configuraram nos grandes desafios a serem enfrentados na gestão de políticas públicas
culturais que advieram com o modelo instituído pela Constituição Federal de 1988. A tutela
do patrimônio cultural no Brasil foi intensificada e sofreu uma modernização em seu processo
de gestão a partir do advento da Constituição Federal de 1988, uma vez que essa legislação
dava a necessária consolidação ao ordenamento, reconhecendo o patrimônio cultural
brasileiro como bem jurídico destinatário de expressa tutela do Estado, tendo a característica
de ser "o universo de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira (art. 216 da CF)'" (MENDES, 2005). Ou seja, esse novo
ordenamento exigiu uma complexidade de coordenação que envolveria as três esferas
federativas e toda a sociedade brasileira.
Diante desse novo contexto, o Exército adaptou-se acarretando um processo de
mudanças contínuas de seu Sistema Cultural. A gestão cultural estruturou-se e se fortaleceu
na Força Terrestre com novos horizontes, durante os anos 90, alem de reforçar a ideia que a
cultura é o alicerce da identidade da instituição. A importância dada à cultura pelo Exército é
ressaltada pelo membro do IPHAN, Adler Homero Fonseca de Castro:

817

V V
Muitos dos órgãos e mecanismos criados na década de 1930 não mais
existem, por terem perdido as suas funções, mas um dos que se mantiveram
foi o IPHAN, pois a proteção ao patrimônio histórico não é uma coisa que
possa ser tratada como um problema a ser solucionado e esquecido, é uma
preocupação constante, que se renova, pois a produção cultural do país é
sempre crescente e mutável. Infelizmente, muitas pessoas têm uma visão
restrita, não entendendo o porquê da proteção ao patrimônio e desprezando a
atividade. Contudo, esse não é o caso do Exército Brasileiro, que possui um
órgão específico para a difusão cultural: a Diretoria de Assuntos Culturais10.
Ainda que enfrentem dificuldades no seu dia-a-dia, até as unidades
operacionais atuam de forma constante nessa área mesmo não sendo
preparadas para tal. Assim, o Exército, hoje, ainda é um importante aliado na
preservação do patrimônio, pois compreende que a valorização cultural de
um país não pode ser restrita a aspectos menores ou simplesmente turísticos.
(CASTRO, 2003).

O Presidente da República José Sarney promulgou , em 1989, Lei Nr 7.505 de


Incentivo à Cultura, na gestão do Ministro Celso Furtado, que estabeleceu um mecanismo de
renúncia fiscal. Porém, foi muito criticada, sendo modificada em 1990, no início do governo
Collor.
Sobre esse período, SILVA (2005) ressalta que houve dois momentos singulares na
área púbica, na década de 1990, sendo que nos primeiros anos as instituições públicas de
cultura sofreram significativas mudanças, sendo que houve uma perda de status das políticas
culturais, deixando de ser ministeriais - o objetivo era descomprometer o estado:com as
demandas do setor e conter gastos; já na segunda metade da década, o MinC retornou e as
houve uma reconstrução institucional da área.
O Presidente Fernando Collor modificou toda a estrutura do setor cultural, em abril de
1990, com a Lei Nr 8.029, extinguindo, de uma só vez, diversos órgãos da administração
federal, em especial da área da cultura, como: FUNARTE, Pró-Memória, FUNDACEN,
FCB, Pró-Leitura e EMBRAFILME; além de reformular outros como o SPHAN. Essa ruptura
com o sistema anterior não foi feita de forma gradual, ocasionando uma brusca interrupção de
vários projetos. Em seguida, Collor extinguiu também o próprio Ministério da Cultura,
criando uma Secretaria de Cultura.
Em 23 de dezembro de 1991, o então Secretário da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet
formulou uma nova Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Nr 8.313, de 23 de dezembro de 1991,
que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), que ficou conhecido como
Lei Rouanet. Após isso, em 1992, o presidente da República, Itamar Franco, recriou o

10
Em 23 de dezembro de 2008, a Diretoria de Assuntos Culturais (DAC) transformou-se em DPHCEx.

818

V V
Ministério da Cultura, tendo como Ministro, Antônio Houaiss. A chegada dos anos 90 exigiu
dos formuladores das políticas culturais de todos os setores, a busca de uma estrutura mais
profissional se configurando em um desafio para todos os entes da administração, conforme,
descreveu DE MARCO:
A partir dos anos 90, o cenário cultural apontava mudanças profundas no que
se refere à produção, à administração e ao consumo culturais, gerando uma
ambiência que apontava para a necessidade de profissionalização dos setores
culturais públicos e privados. O desafio seria ainda maior para a
administração pública, que se via diante da necessidade de formar seus
quadros a fim de capacitar para a gestão profissional essa nova estrutura que
se potencializava em crescimento (DE MARCO, 2009, p. 4).

Em de 1990, o Ministério do Exército, reformulou a estrutura de seu setor cultural,


tendo como metas destacar e dar prioridade às suas atividades artístico-culturais, criando o
órgão técnico-normativo do DEP com a missão de controlar, preservar, conservar, recuperar,
restaurar e divulgar o patrimônio cultural material e imaterial de interesse da história do
Exército Brasileiro: a Diretoria de Assuntos Culturais (DAC). Foi nesse período que houve
uma efetiva reaproximação das instituições militares brasileira com outros segmentos de
forma sistemática, perceptível quando se entende que o Exército Brasileiro buscou e ainda
busca novas áreas de atuação, sendo que a cultura é uma das "áreas mais profícuas", conforme
descreveu ROSAS (2007). Modelos civis de gestão cultural são adaptados para o Exército,
com suas qualidade e seus óbices, contudo serve para evoluir e influencia na elaboração de
Políticas Culturais da Instituição. Dessa forma, percebe-se também, que os mesmos
problemas que ocorriam no meio civil, repercutiam na caserna.
Em 1994, o Presidente Itamar Franco recriou algumas das instituições extintas pelo
seu antecessor. O novo Ministério da Cultura manteve como entidades vinculadas: a Casa de
Rui Barbosa , Fundação Nacional da Arte (FUNARTE), Fundação Biblioteca Nacional,
Fundação Cultural, Fundação Cultural Palmares e Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN).
A Lei Rouanet foi modificada ao longo do governo do Presidente Fernando Henrique
Cardoso, sendo introduzidas alguns dispositivos que permitiram uma maior celeridade em
sua aplicação. Nesse período, acentua a queda dos investimentos públicos na área da cultura,
sendo repassada para a iniciativa privada a responsabilidade de decisão sobre os rumos da
produção cultural. Como consequência desse processo, a iniciativa privada passou a ser o
principal agente de captação de recursos do setor cultural, cabendo-lhe a decisão sobre uma
grande parcela da produção cultural do país.

819

V V
A década de 2000 se caracterizou por inúmeras tentativas de reformular o papel do
Estado no que tange ao âmbito da política cultural, porém a própria forma pela qual as
instituições públicas se organizam no país impõe limites aos desejos e vontades de redesenhá-
lo de maneira ampla e contundente. Esse processo ocorre nitidamente com o EB, que
reformula e atualiza sua Política Cultural, ao longo do tempo, nesse período, ocorre um
incremento de legislações que sustentam essa política.
O Exército Brasileiro, no ano de 2000, publicou as Normas para Elaboração,
Aprovação e Execução de Programas e Projetos Culturais (Port Nr 30 – DEE, de 05 Jun 00) e
as Normas para Abertura das Fortificações à Visitação Pública (Port Nr 615, de 13 Nov 00).
Com essas duas portarias, percebe-se a intenção de difundir, junto aos diversos públicos, o
acervo da instituição.
O Exército Brasileiro, em 2001, estabeleceu suas Normas para a Publicação de
Revistas Militares ( Port Cmt Ex Nr 402, de 16 Ago 01) e as Instruções Gerais para a Criação,
Organização, Funcionamento e Extinção de Espaços Culturais (IG 20-18 - Port Cmt Ex Nr
327, de 6 Jul 2001). No ano seguinte, a Força Terrestre aprovara a sua Política Cultural e a
Diretriz Estratégica do Sistema Cultural, respectivamente, por intermédio das Portarias Nr
914 e 615 - Gab Cmt Ex, ambas de 29 de outubro de 2002.
A Política Cultural do Exército tinha como objetivos gerais, entre outros: participar do
desenvolvimento cultural do país, como integrante do Sistema Cultural Nacional; estabelecer
novos laços culturais e ampliar os já existentes, tanto no País como no exterior; projetar a
imagem do Exército a partir dos seus valores culturais; divulgar as realizações da Instituição
nos campos da obtenção do conhecimento, das artes e das manifestações comportamentais.
preservar, restaurar, recuperar e divulgar o patrimônio material histórico, artístico e cultural
do Exército; incentivar a preservação das tradições, da memória e dos valores morais,
culturais e históricos do Exército; estimular, no público interno, o interesse pela preservação
do meio-ambiente e pela melhoria da qualidade de vida; maximizar a difusão, nos públicos
interno e externo, de sentimentos de nacionalidade, patriotismo, amor fraterno e mútua
compreensão social incentivar os procedimentos destinados ao enaltecimento dos feitos e dos
vultos importantes da vida nacional; promover a preservação do patrimônio imaterial de
interesse para o Exército.
Além dos objetivos particulares de estimular o estudo e a divulgação da História
Militar do Brasil, com ênfase nas Operações da Força Terrestre; incentivar a pesquisa
histórica e o intercâmbio de informações sobre fatos militares; integrar os conhecimentos

820

V V
militares com as demais áreas do saber, num processo sistêmico de interação cognitiva;
conscientizar o segmento militar da importância da preservação, da conservação e da difusão
do patrimônio histórico, artístico e cultural do Exército; desenvolver no público interno a
capacidade de acompanhamento, compreensão e absorção dos avanços tecnológicos e das
mudanças comportamentais da Sociedade, celebrar convênio com a Fundação Cultural
Exército Brasileiro, para viabilizar o apoio aos projetos e às atividades culturais de interesse
da Força, utilizando-se de sua capacidade de captação e de gerenciamento de recursos; e
estimular o intercâmbio com entidades culturais do Brasil e do exterior, particularmente nas
áreas de história militar, museologia, arquivologia e biblioteconomia.
A Diretriz Estratégica do Exército objetivava estabelecer os objetivos da Política
Cultural do Exército e orientar sua implementação. A Diretriz tinha como finalidade orientar
o planejamento das atividades inerentes ao Sistema Cultural do Exército, visando atingir os
objetivos fixados pela Política Cultural. Em 2003, há a inscrição do nome de Luís Alves de
Lima e Silva, o Duque de Caxias, no "Livro dos Heróis da Pátria". A partir do início de 2004,
segundo SILVA (2007, p .91), o tema central da agenda política da área cultural foi a
construção do Sistema Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Informações Culturais.
No Congresso Nacional, houve a aprovação da Emenda Constitucional Nr 48/2005
que criou o Plano Nacional de Cultura, bem como a apresentação das emendas, a EC Nr
416/2005, que criou o Sistema Nacional de Cultura, a Nr 150/2003, que vinculou a receita
orçamentária da União, Estados e Municípios ao desenvolvimento cultural e a Nr 236/2008,
inserindo a cultura no rol dos direitos sociais.
O Comando do Exército Brasileiro, no ano de 2008, ao perceber a necessidade de se
adequar à sua nova realidade e após ter feito pesquisas e estudos baseados no campo de
atuação de atribuições que originam da missão do DEP e DAC, modificou suas designações.
Dessa feita, no dia 23 de dezembro do ano em questão, através do Decreto Presidencial Nr
6710, modifica a designação dessas Organizações Militares, que passaram a ser denominadas
de Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx) e Diretoria do Patrimônio
Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx). A seguir um quadro ilustrativo que traça um
paralelo do processo histórico da evolução da atividade cultural em âmbito nacional e no
Exército Brasileiro.

821

V V
ANO Cenário Nacional Cenário no âmbito do Exército Brasileiro
1764 Criação do Museu da Casa das Armas na Fortaleza da Conceição
- Fundação da Biblioteca do Exército (BIBLIEx) pelo ministro da
1881 Guerra,Franklin Américo de Menezes Dória, o Barão de Loreto, em 17
dezembro de 1881.
- Em agosto de 1922, é fundado o Museu Histórico Nacional (MHN), por
1922
decreto do Presidente Epitácio Pessoa
- A Constituição de 1934 estabelece pela primeira vez a competência comum à
União, aos Estados e aos Municípios de favorecer e animar o desenvolvimento O "Real Archivo Militar‖, em 8 de março, é transformado em Organização
1934
das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral Militar (OM) e recebeu o nome
- 1934 Decreto nº 24.735 regulamentação do Museu Histórico Nacional (MHN
- Fundação do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB), a
1936 07 de novembro, em sessão solene, no salão nobre da antiga sede, na Avenida
Rio Branco, no Centro da cidade do Rio de Janeiro
- Publicação do Decreto-Lei Nr 25, de 30 de novembro de 1937 que organiza
proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
1937 - Criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),
do Instituto Nacional do Livro (INL); do Serviço Nacional de Teatro (SNT) e
do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE)
1938 - Criação do Conselho Nacional de Cultura, pelo Decreto-Lei Nr. 526/1938
- Criação do Serviço de Documentação da Marinha, pelo
1943
Decreto-Lei Nr 5.558, de 08 de junho
1946 - O Decreto-Lei Nr 8.534 transforma o SPHAN e Departamento do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (DPHAN)
- O Decreto-Lei Nr 27.512, de 28 de novembro, reconhece o
Instituto de Geografia e História Militar do Brasil como órgão
1949
consultivo oficial em assuntos de História Militar e Geografia
Histórica Militar
O Ministério da Educação e Saúde foi desmembrado, surgindo os Ministérios
1953 da Saúde (MS) e o da Educação e Cultura (MEC)
- Reativação do Museu Naval pelo Decreto Nr 32.273, de 18 de fevereiro
1957 - MNMSGM foi inaugurado a 07 de abril.
1960 - Conclusão das obras do MNMSGM em 24 de junho
- Criação do Conselho Nacional de Cultura pelo Decreto-Lei 50 293, de 23 de
1961
fevereiro

- O Instituto Nacional de Cinema (INC) é criado pelo Decreto-Lei Nr 43,de 18


1966 de novembro e o Conselho Nacional de Cultura se transforma em Conselho
Federal de Cultura, pelo Decreto-Lei Nr 74, de 21 de novembro.

- Criação da Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME), pelo Decreto-Lei


1969 Nr 862, de 12 de setembro.

- Transformação do SPHAN em Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico -


1970 Criação do Departamento de Ensino e Pesquisa (DEP)
Nacional. (IPHAN)
- Lançamento do programa de Cidades Histórica (PCH), do Plano de Ação
- Criação da Diretoria de Assuntos Especiais, Educação Física e Desportos
1973 Cultural (PAC) e criação do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA),
(DAED
pelo Decreto-Lei Nr 980
- Publicada a Lei Nr 6.292, de 15 de Dezembro de 1975, que Dispõe sobre o
Tombamento de bens no Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional
1975 (IPHAN),
- Criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) e da Fundação
Nacional de Arte (FUNARTE).
Lançamento oficial do Plano Nacional de Cultura (PNC), elaborado no final de
1976 - A DAED foi extinta
1975
- Criação da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)
1978 e da
- Fundação Nacional Pró-Memória (Pró-Memória).
- Criação das Normas para utilização dos Arquivos e Museus por arte de
1979 Historiadores e outros estudiosos (Port Min Nr 2440, de 27 Set 79)
1980 - Foi criada a DACED
1985. - Criação do Ministério da Cultura, em 15 de março, pelo decreto Nr 91 144
- Promulgação da Lei 7.505, de incentivo à cultura, durante a gestão do
- Criação do Museu Histórico do Exército, pela Portaria Ministerial Nr 061,
1986 Ministro Celso Furtado.
de 19 de dezembro
- Criação do INCAER, pelo Decreto Nr 92 852
Criação da Fundação Nacional Pró-Leitura (Pró-Leitura) e da Fundação
1987 - Início do Funcionamento do Museu Histórico do Exército
Nacional de Artes Cênicas (FUNDACEN)
1988 - Criação da Constituição Federal de 1988
-Extinção da Fundação do Cinema Brasileiro (FCB) , Fundação Nacional Pró-
Leitura(Pró-Leitura) e EMBRAFILME e reformulação do SPHAN -Criação da Diretoria de Assuntos Culturais (DAC)
1990
- Extinção da Lei Sarney
- Em 12 de abril, o MinC é transformado em Secretaria da Cultura
- Promulgação da Lei 8.313/91,que criou o Programa Nacional de Apoio a
1991 Cultura (PRONAC) Lei Rouanet, que Restabelece princípios da Lei Nr
7.505,de 2 de julho de 1986 e dá outras providências
- Recriação do Ministério da Cultura, a Medida Provisória 309 de 19.10.92,
convertida na Lei nº 8.490/92 - DO de 19.11.92, art. 21, transforma a
1992
Secretaria da Cultura em Ministério da Cultura

1993 - Lei do Audiovisual, Lei Nr 8.685, regulamentada pelo decreto Nr 974 /93
1998 - Inauguração do Museu Militar Conde de Linhares (MMCL)
1999 - Publicadas as Normas para a Preservação das Tradições das Organizações

822

V V
Militares do Exército Brasileiro - Port Min Nr 204, de 13 Mai 99
- Publicação das Normas para Elaboração, Aprovação e Execução de
- Publicado o Decreto Nr 3.551, de 4 de agosto de 2000 que Institui o registro
Programas e Projetos Culturais (Port Nr 30 – DEE, de 05 Jun 00)
2000 de bens culturais de natureza imaterial que constituem o patrimônio cultural
- Publicação das Normas para Abertura das Fortificações à Visitação Pública
Brasileiro
(Port Nr 615, de 13 Nov 00)
- Criação das Normas para a Publicação de Revistas Militares ( Port Cmt Ex
Nr 402, de 16 Ago 01)
2001 - Publicação das Instruções para a Criação, Organização, Funcionamento e
Extinção dos Espaços Culturais. (IG 20-18; Port Cmt Ex Nr 327, de 6 Jul
2001
Publicação da Política Cultural do Exército (Port Nr 614, de 29 Out 2002) e
2002 da Diretriz Estratégica do Sistema Cultural do Exército (Port Nr 615, de 29
Out 2002) -
- Publicação das Instruções Reguladoras para a Criação organização,
Funcionamento e Extinção dos Espaços Culturais (IR 20-18) - (Port Nr 17 –
2003 DEP, de 28 Fev 2003)
- Lei Nr 10.641, de 28 de Janeiro de 2003 - Inscreve o nome de Luís Alves
de Lima e Silva, o Duque de Caxias, no "Livro dos Heróis da Pátria".
- Congresso altera a redação do Artigo 215, que prevê a criação do Plano
2005 Nacional de Cultura, pelo Decreto 5.220 que também cria o Conselho Federal
de Cultura (CFC) entre outras providencias
- O DEP passou a ser denominado por Departamento de Educação e Cultura
2008 do Exército, DECEx e a Diretoria de Assuntos Culturais passa a se chamar
de Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército, DPHCEx
2009 Lançamento do Programa MECENAS
Implantação do Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do Comando da
2010
Aeronáutica, pela Portaria Nr 119/GC3, de 26 de fevereiro
Quadro 1 - Cenário cultural nacional e do Exército ao longo dos anos até 2010

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo histórico de formação do Sistema Cultural do Exército foi influenciado
pelos aspectos sociais e culturais do país. No Brasil, ao longo dos anos, alternaram períodos
de grande valorização das atividades culturais com outros em que estas ficaram em segundo
plano. A partir dos anos 90, quando se consolidou o processo de separação entre a cultura e a
educação, que os assuntos culturais, outrora relegados a uma posição coadjuvante, foram
despertando o interesse da sociedade. Isso, principalmente porque, quando houve a
cizânia, o Min C ficou com uma reduzida fatia no orçamento e uma pequena prioridade na
alocação de recursos. O cenário mudou a partir de 23 de dezembro de 1991, com o
surgimento do Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), conhecido como Lei
Rouanet.
Com esse novo dispositivo legal, houve a aplicação de sistemas de renúncia fiscal e
outras vantagens para quem investisse em cultura, o que resultou em um significativo
aumento de recursos oriundos de investimentos da iniciativa privada voltados para as
atividades culturais, ocasionando em um relativo crescimento do setor.
Nesse processo, o Exército Brasileiro criou e organizou um sistema cultural, cujo o
órgão técnico-normativo responsável pelo planejamento, coordenação e fiscalização das
atividades culturais e pela preservação e divulgação de seu patrimônio histórico e cultural,
desde final de 2008 é a DPHCEx. Entende-se que esse processo de transformação do Sistema
Cultural do Exército foi uma decisão estratégica fruto do que já vinha sendo adotado ao longo
dos anos, por parte de uma motivação da instituição em legitimação de sua identidade - como

823

V V
ator importante da história e da cultura do país ao longo dos anos.. A importância da chamada
cultura militar é definida por COSTA (1996) com algo que em um primeiro momento, há a
necessidade de fazer uma "análise histórica da participação do Exército Brasileiro, com
Instituição Nacional, em quase dois séculos de lutas (...) a fim de se obter o perfil
profissiográfico e antropológico da Força Terrestre Brasileira, geradora de uma cultura
própria e influenciadora comportamental da sociedade (...)" sugere ainda o autor que "as
guerras estão intimamente ligadas à economia, diplomacia e a à política como demonstram os
teóricos" não significando nem. "identidade nem semelhanças (...) As guerras precisam ser
travadas por homens cujos valores e habilidades não são encontrados nos políticos nem nos
diplomatas; daí uma peculiaridade da cultura militar".
Essa percepção é reforçada na medida em que o SCEx busca interagir com o SNC,
pois há o entendimento que o Exército Brasileiro não se dissocia nem é alheio às iniciativas e
ações desenvolvidas pelo segmento civil da sociedade, que na realidade, quando se encontra
com o segmento militar irá se constituir de fato, a população brasileira, com peculiaridades
próprias, com representações, práticas e discursos próprios como qualquer grupo social, mas
sempre sendo, acima de tudo, brasileiros.

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Página eletrônica do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), disponível em


<http://www1.museus.gov.br/ >, acesso em 21 de Julho de 2010

Página eletrônica do Instituto Cultural da Aeronáutica. disponível em < http://www. incaer.aer.br />,
acesso em 17 de Mar de 2010

Página eletrônica da Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, disponível em <


http://www.ighmb.org/ >, acesso em 21 de Julho de 2010

826

V V
ROSAS Iracema Andrade de Alencar, O Exército e a Cultura Brasileira: espaço de fronteiras com a
Sociedade Civil. Monografia. Curso de Especialização em História Militar Brasileira - Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro 2007.

SILVA JÚNIOR, Walter Gomes da Comunicação institucional: um modelo para a Força Terrestre –
dissertação de Mestrado em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
(ECEME), Rio de Janeiro, 2002. 77 p.

VASCONCELOS A Pedro, Para que serve um Ministério da Cultura? Disponível em


<http://sol.sapo.pt/blogs/apedrovasconcelos/archive/2006/09/16/Das-Duas_2C00_-Uma.aspx> , 2006,
acesso em 20 set 09

827

V V
ENSAIOS DE ENCONTROS ENTRE CINEMA E TELEVISÃO: PERCURSOS DA
POLÍTICA PÚBLICA BRASILEIRA NOS ANOS 2000
Lia Bahia1

RESUMO: O campo audiovisual brasileiro enfrenta mudanças estruturais que parecem


deslocar os meios dos rígidos lugares de distinção cultural demarcados historicamente.
Consagrou-se no imaginário nacional que cinema é um meio cultural e televisão um meio de
comunicação. Os anos 2000 apontam para uma transição política no espaço audiovisual
brasileiro que exige repensar as concepções historicamente estabelecidas. A partir dos anos
2000 a circularidade entre os meios se fortalece como discurso e políticas públicas são
desenhadas e acionadas no Brasil para integração entre cinema e televisão

PALAVRAS-CHAVE: Política pública; audiovisual, circularidade, capitalismo.

Os anos 2000 sinalizam uma transição política no espaço audiovisual que exige
repensar as concepções historicamente estabelecidas. As experiências de circularidade entre
cinema e televisão evidenciam o processo de deslocamento, interface e alargamento de
fronteiras como estratégia de sobrevivência diante do adensamento transnacional das trocas
econômicas e culturais. Nos anos 2000, o discurso da circularidade entre os meios se fortalece
e políticas privadas e públicas são desenhadas e acionadas no Brasil para integração entre
cinema e televisão. Há um desconforto de críticos, especialistas e pesquisadores, acostumados
a lidar com o cinema e a televisão como formas de expressão audiovisual isoladas, diante do
discurso promocional da “invenção” da convergência tecnológica, mercadológica, de
linguagens e de formatos que tem caracterizado, de maneira cada vez mais acentuada, o
audiovisual brasileiro.
A circularidade entre cinema e televisão, silenciada da narrativa do audiovisual
brasileiro durante décadas, é adensada e torna-se um valor incorporado pela política estatal
que historicamente reiterou o discurso e a tendência da grande divisão dentro do paradigma
estético moderno. As políticas culturais, de modo geral, têm dificuldade de dar conta dos
deslocamentos da cultura em seu discurso programático e na atuação executiva. Pois para

1
Lia Bahia é doutora e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ganhou
prêmio com a dissertação de Pesquisa Acadêmica Concluída Rumos Itaú Cultural 2010/2011. Publicou o livro
“Discursos, políticas e ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro”. Trabalhou
com política audiovisual na Ancine, Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro e Riofilme.
liabahia79@gmail.com

828

V V
gerar ações e programas no campo da cultura, as políticas públicas pressupõem apreender e
estabilizar linguagens, campos, meios, negando o processo vivo da cultura. Muitas vezes não
conseguem escapar da polarização: ou elas se voltam para reforçar a preservação e
manutenção das “verdadeiras” identidades culturais, negando o caráter vivo da cultura, ou
elas se direcionam para a afirmação da distinção de algumas artes da alta cultura mundial,
ignorando, em grande parte, a importância das indústrias culturais (exemplo, disso é que a
televisão foi historicamente deixada de lado das formulações de políticas públicas para a
cultura no país)2.
A concepção dominante universalista de cultura esbarra na popular e gera uma
contradição que acompanha a relação entre Estado e o projeto de cultura nacional no Brasil.
Durval Albuquerque Junior discorre: “(...) a incompreensão existente num país segmentado
entre uma elite com identidade europeizada e uma população majoritariamente mestiça, no
corpo e nas manifestações culturais, muitas delas em aberto conflito com que se entendia por
civilização” gerou ambiguidades constitutivas para as políticas culturais no país (2007, p. 67).
É nesta complementaridade do universal com o particular que residem os desafios das
formulações de políticas públicas e privadas para a cultura na era da globalização neoliberal:
gerir as diferenças e conflitos sem querer apagá-los e apreendê-los. Albuquerque Junior ao
refletir sobre a relação entre Estado e cultura propõe que aquele aceite a convivência e
coexistência dos contrários e de transitoriedade e fluxo, característica constitutiva da cultura.
Implementar programas e ações concretas é assumir os limites de atuação. Colocar em
cena a dimensão do fluxo da cultura traz um problema para as políticas culturais que
entrelaçam questões conceituais e executivas e exigem ir além da reflexão sobre os programas
para a cultura; exigem repensar o próprio lugar e o papel destas na contemporaneidade.
A política pública brasileira para a cultura que acompanhou e reforçou a segmentação
arte versus cultura de massa3, busca, nos anos 2000, solidificar e dar estabilidade à ordem da
circularidade diante da regulação do discurso do Estado. A circularidade se torna recurso de
luta e disputa dentro do campo cultural, político e econômico, conformando mudanças na
agenda das políticas públicas para o cinema e a televisão.

2
A criação da emissora pública, TV Brasil, em 25 de outubro de 2007 pode ser vista como a realização do grande
projeto estatal para o campo televisivo.
3
No caso da política para o cinema há uma contradição, pois ao mesmo tempo em que reconhece o cinema como
arte, se baseia em um modelo – leis de incentivos fiscais – que favorecem o cinema industrial (Ver Bahia, 2012).

829

V V
A opção histórica da não regulamentação estatal da relação entre cinema e televisão
foi a mais contínua das políticas públicas. Porque não interferir é um posicionamento político.
Esta ausência da presença do estado na mediação entre cinema e televisão, fez com que a
atuação da política privada ganhasse destaque, principalmente na institucionalização da
metodologia da Globo Filmes.
No entanto agentes do campo cinematográfico parecem cada vez mais atentos à
importância da televisão para a cultura e para o desenvolvimento do espaço audiovisual no
Brasil. Congressos, criação de grupos de trabalho, articulações e manifestações de classe, e
criação de dispositivos de fomento e regulação estatal voltados para a televisão tornaram-se
cada vez mais recorrentes nos anos 2000. O Estado parece despertar para as novas dinâmicas
do espaço audiovisual, respondendo às demandas do mercado audiovisual com a implantação
de ações públicas de integração entre cinema e televisão.
Os anos 2000, portanto, apontam um novo tempo para a agenda da política pública
para o audiovisual brasileiro. O cinema, historicamente dependente do Estado, protagoniza as
articulações e reivindicações de maior presença do Estado na atividade, que nos anos 2000,
reconhece e demanda uma aliança com a televisão.
Com o desgaste do cinema brasileiro nos anos 1990 – passada a euforia das leis de
incentivo para a atividade - os agentes do setor iniciaram um processo de movimentação e
articulação política que visou redefinir e fortalecer o cinema nacional. Esse processo
culminou na realização do III Congresso Brasileiro de Cinema (CBC) em 20004. O Estado,
neste momento, foi identificado como parceiro de vital importância e o principal interlocutor
para o desenvolvimento da atividade cinematográfica nacional.
A ideia do III CBC, 47 anos depois do II CBC, em 1953, foi reunir agentes das
diversas áreas do cinema brasileiro e lutar pela afirmação e construção de um projeto de
cinema nacional coerente com os desafios contemporâneos. Por isso foi cunhado o conceito
de re-politização. “A re-politização do cinema brasileiro”, indicou a necessidade de
organização política do setor para a proposição de políticas dentro do que Gustavo Dahl
chamou de “visão sistêmica”. Para além da dimensão institucional, Dahl defendeu o caráter
político do cinema mediante seu papel de destaque na cultura e economia no contexto
contemporâneo.
O III CBC simbolizava o retorno de uma organização política não estatal do cinema
brasileiro a partir de uma mobilização dos agentes do setor. Estavam presentes representantes
4
Sobre tal processo histórico ver Lia Bahia.Uma análise do campo cinematográfico brasileiro sob a perspectiva
industrial. Dissertação defendida no PPGCOM da UFF em 2009.

830

V V
do mercado de produção, distribuição e exibição, trabalhadores do setor, críticos e
pesquisadores da atividade cinematográfica. Na abertura do Congresso, Gustavo Dahl
enfatizou a relevância do encontro:
O interesse desesperado pela realização do III Congresso Brasileiro
de Cinema, expresso pela presença neste encontro é o maior testemunho de
sua emergência. Congregar, raiz etimológica da palavra congresso, se faz
sentir como a primeira providência para enfrentar situações de perigo (2000).

O campo cinematográfico manifestou a preocupação com a grave crise da atividade


que afetava todos os setores envolvidos e ameaçava a continuidade e a existência do cinema
brasileiro. Os velhos problemas do cinema brasileiro se juntavam aos novos desafios do
mundo globalizado e transcultural. Para que o cinema brasileiro alcançasse espaço político,
econômico e cultural, diante dos novos desafios impostos pela transnacionalidade cultural, era
necessário ter uma política audiovisual mais consistente e abrangente, que fosse além da
simples garantia de recursos para a produção, e abarcasse também os demais setores da cadeia
produtiva.
O Congresso reivindicou a criação de um órgão gestor estatal que tivesse a função
reguladora e executora de políticas para o cinema brasileiro e que inserisse o setor na já
consolidada indústria audiovisual brasileira (televisão). Os congressistas insistiram na
participação da televisão no cinema nacional, afirmando que “a participação da televisão no
processo de consolidar a indústria audiovisual brasileira é uma questão para a economia do
país” (DAHL, 2000). O documento final do Congresso dispõe de setenta e cinco ações para o
desenvolvimento e fortalecimento do cinema brasileiro, entre elas, a regulação da televisão
para o cinema nacional (taxação de 3% e cumprimento de cotas de exibição de 30% da
programação de produção brasileira independente5). A problemática da televisão foi inserida
no documento público que reivindicava a criação de um órgão gestor para a atividade
cinematográfica.
É neste espírito de inquietação do setor que foi criado o Grupo Executivo de
Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (GEDIC)6. A atuação do GEDIC, além de

5
Produtora Brasileira Independente: produtora brasileira que atenda os seguintes requisitos, cumulativamente: a)
não ser controladora, controlada ou coligada a programadoras, empacotadoras, distribuidoras ou concessionárias
de serviço de radiodifusão de sons e imagens; b) não estar vinculada a instrumento que, direta ou indiretamente,
confira ou objetive conferir a sócios minoritários, quando estes forem programadoras, empacotadoras,
distribuidoras ou concessionárias de serviços de radiodifusão de sons e imagens, direito de veto comercial ou
qualquer tipo de interferência comercial sobre os conteúdos produzidos; c) não manter vínculo de exclusividade
que a impeça de produzir ou comercializar para terceiros os conteúdos audiovisuais por ela produzidos;
6
Decreto de 13 de setembro de 2000.

831

V V
destacar o caráter industrial do cinema, pode ser apontada como a primeira iniciativa de
atenção do Estado para a questão da relação entre cinema e televisão.
O Grupo foi formado para elaborar uma ampla política para o cinema no Brasil para a
Presidência da República e evidencia o esgotamento de um modelo baseado em políticas
segregadas para o audiovisual nacional. O Grupo envolveu ministérios do governo federal,
representantes de todos os setores da indústria cinematográfica e representante de televisão. O
presidente do GEDIC foi o chefe da casa civil, ministro Pedro Parente, que contou com a
participação dos ministros Pedro Malan (Fazenda), Alcides Tápias (Desenvolvimento),
Pimenta da Veiga (Comunicações), Aloysio Nunes Ferreira (secretário geral da presidência) e
Francisco Weffort (Cultura). Do setor cinematográfico integraram o grupo: Luiz Carlos
Barreto (produção), Carlos Diegues (direção), Gustavo Dahl (pesquisa), Rodrigo Saturnino
Braga (distribuição), Luis Severiano Ribeiro Neto (exibição) e Evandro Guimarães
(televisão).
A política para a atividade cinematográfica do GEDIC teve por objetivo elaborar um
projeto estratégico para o desenvolvimento da indústria audiovisual no Brasil. O enfoque
mercadológico do cinema estava em consonância com a preocupação de construção de uma
indústria cultural que se configurou como o principal lugar de sociabilidade, consumo e
construção de laços identitários. Como linhas de ações principais o GEDIC elencou: combater
a hegemonia cinematográfica norte-americana, promover maior integração entre cinema e
televisão e baixar o preço do ingresso.
No documento final, cinco pontos foram destacados: 1. Criação de um órgão gestor,
no modelo de Agência Reguladora, para normatizar, fiscalizar e controlar o cumprimento da
legislação do cinema, tendo como meta principal a auto-sustentabilidade da indústria; 2.
Redefinição e expansão das funções da Secretaria do Audiovisual (SAV) – MinC priorizando
ações culturais em relação ao cinema, enquanto a agência seria responsável pela vertente
comercial do cinema; 3. Criação de um fundo financeiro para fomentar o desenvolvimento de
todos os setores: produção, distribuição, exibição, exportação e infra-estrutura técnica da
atividade; 4. Reforma da legislação existente, visando criar condições para surgimento de uma
forte ação empresarial nos setores da produção, distribuição, exibição e infra-estrutura
técnica; 5. Legislação para televisão, regulando o sistema televisivo, incluindo cota de tela,
associação na produção e aquisição cinematográfica e reserva de espaço publicitário para
filmes nacionais. (PRÉ-PROJETO DE PLANEJAMENTO ESTRATÉGICOSUMÁRIO
EXECUTIVO, 2001).

832

V V
Este último ponto merece atenção. De acordo com o pré-projeto, cada emissora de
televisão, aberta ou por assinatura, ficaria obrigada a exibir, em sua programação, um número
de filmes brasileiros estipulado por ano e deveria reservar espaço publicitário para a
promoção institucional do cinema brasileiro. Ainda como obrigatoriedades, cada emissora de
televisão aberta ou por assinatura investiria 2% de seu faturamento em publicidade na
coprodução e na aquisição de direitos de exibição de filmes brasileiros. Esses filmes deveriam
ser necessariamente coproduzidos com produtores independentes de cinema que seriam
sempre majoritários nessa associação.
No relatório final do GEDIC estavam os germes da criação da Agência Nacional do
Cinema (Ancine). Como consequência da demanda dos agentes do cinema foi criada a Ancine
em 2001. A agência reguladora tem como atribuições, o fomento, fiscalização e regulação do
mercado do cinema no Brasil.
Então, o III CBC levou à criação do GEDIC, o qual levou à criação da Ancine. O
grande produto do GEDIC foi a Medida Provisória 2228-01, de 2001, que cria a Ancine.
Vislumbrou-se um projeto de agência que incluía a regulação da televisão e da relação entre
cinema e televisão no Brasil com objetivo de consolidar uma indústria audiovisual nacional
sistêmica e integrada. Contudo, o projeto de criação de uma agência do audiovisual foi
reduzido ao cinema. Diante de fortes pressões da TV Globo,foram excluídos do texto final da
MP 2228-01, que cria a Ancine, todos os itens que se referiam à televisão, limitando a atuação
da instituição governamental a obra cinematográfica e videográfica. Mas o debate estava
posto e neste sentido, não havia retorno.
Gustavo Dahl defendia a tese de uma estrutura modular: primeiro cinema, depois
vídeo, depois TV por assinatura, depois o conteúdo brasileiro na TV aberta, até se chegar às
emissoras de televisão aberta. Dahl afirma:
Eu desde o início tinha a visão de que, com a criação de uma agência
de cinema, depois se chegaria à questão do conteúdo brasileiro da televisão.
E que a partir da regulação da presença do conteúdo brasileiro na televisão é
que se instalaria na prática uma relação na qual se faria uma agência de
conteúdo (DAHL in Bahia, 2012).

Em 2004, foi divulgado o anteprojeto de lei de criação da Agência Nacional do


Cinema e Audiovisual (Ancinav). Este foi elaborado por uma equipe de técnicos, consultores
e dirigentes do Ministério da Cultura e tinha como proposta ampliar a atuação da Ancine. A
nova agência seria responsável por regular, fiscalizar e fomentar o audiovisual como um todo,
ampliando as atribuições da Ancine – restritas ao cinema – em direção ao espaço audiovisual.

833

V V
O anteprojeto suscitou o intenso debate de agentes do mercado audiovisual ao prever a
inclusão da regulação da televisão, cobrando taxas e reservando espaço para a produção
independente e regional. As emissoras da televisão aberta deveriam reservar 20% de sua
programação à produção independente. Na televisão por assinatura, cada pacote de canais de
programação, estaria condicionado à exibição de um percentual mínimo de obras nacionais
independentes. Quanto à taxação, previu-se cobrança de percentual sobre a compra de mídia
na televisão, além do aumento da taxação sobre a exploração de obras cinematográficas em
salas de exibição de acordo com o número de cópias.
A criação da Ancinav foi atacada pelas grandes emissoras de televisão, as
distribuidoras majors, grandes exibidores e cineastas como Cacá Diegues, Roberto Farias e
Luiz Carlos Barreto. A Rede Globo investiu em propagandas, matérias no Jornal Nacional e
na mídia impressa contra o anteprojeto, em “defesa da liberdade de criação e expressão".
O ataque à Ancinav é explicito e agressivo na coluna de Arnaldo Jabor no jornal O
Globo: “Esse surto de leninismo que incendiou a alma simples dos petistas ultimamente, esse
ataque recente à ‘democracia burguesa’ que o governo Lula lançou contra a sociedade, a fome
dos ‘soviéticos’ de Gil, embuçados e severos contra o cinema e a TV” (JABOR, O Globo,
17.08.2004).
Cacá Diegues foi outro protagonista do ataque à Ancinav e em matéria do Jornal
Nacional declara: "Nós estamos passando um cheque em branco pra qualquer governante que
venha no futuro. Se nós não esclarecermos que limitações, que restrições são essas, estamos
passando cheque em branco pro futuro" (DIEGUES, Jornal Nacional, 14.09, 2004).
Do outro lado, a favor do anteprojeto, o cineasta e membro do Conselho Superior de
Cinema, Giba Assis Brasil defende a Ancinav em entrevista:
E eu não tenho dúvida em responder que sim. Porque a convergência
entre cinema e televisão é cada vez maior no mundo todo. Porque a Anicne
só não foi criada como Ancinav por falta de um projeto político claro para o
setor por parte do governo anterior. Porque a veiculação de produtos
audiovisuais nas novas mídias não está sujeita a nenhum tipo de regulação, e
as próprias emissoras de TV já estão chamando atenção para isso há algum
tempo. Do meu ponto de vista, o governo tem que ser cobrado, não por ter
apresentado esse projeto à sociedade, mas por não tê-lo feito antes (BRASIL,
Contracampo).

Ou ainda o cineasta Eduardo Escorel que faz uma análise da ausência de legislação
consolidada para cinema e televisão:
É lamentável que o Brasil ainda não tenha uma legislação
consolidada em relação ao cinema, à televisão e aos meios audiovisuais de
forma geral. As alterações periódicas têm um efeito negativo que realimenta

834

V V
a crise permanente do setor. É desejável, portanto, que sejam implantadas
medidas que possam permanecer ao longo dos anos e que sofram apenas
ajustes em função da dinâmica própria da atividade e da rápida evolução
tecnológica que a caracteriza.A verdade, porém, é que o lento processo de
reconstrução legal e institucional, iniciado há cerca de dez anos, ainda não se
completou. O projeto do GEDIC, no final do governo FHC, foi alterado de
maneira drástica, pouco antes de ser aprovado, tendo ficado de fora a
televisão que é essencial para que possa haver cinema no país (ESCOREL,
Contracampo).

A Ancinav se tornou um marco importante da relação cinema e televisão no país uma


vez que a discussão ultrapassou os fóruns especializados e chegou à grande mídia, colocando
a discussão na arena pública7.
Junto à formação de grupos de trabalho e projeto de lei, há progressiva estratégia
política de aproximação entre cinema e televisão, por meio da implantação de mecanismos
públicos de fomento voltados para integração dos meios baseados em incentivos fiscais. O
artigo 398 da MP 2228-1 isenta as programadoras estrangeiras de televisão por assinatura de
taxa se as mesmas investirem percentual da remessa para o exterior em coprodução de obras
brasileiras de coprodução independente. As séries televisivas para programadoras
internacionais como Mandrake (2005 e 2007) de José Henrique Fonseca, Cláudio Torres e
outros diretores e Alice (2008) de Karim Aïnouz e Sérgio Machado foram realizadas via
artigo 39 da MP 2228-01. São séries televisivas destinadas a programadoras internacionais
que são realizadas por produtoras independentes brasileiras com incentivo do governo federal,
através do Artigo 39 da MP 2228-1, que tensionam dilemas do espaço audiovisual nacional
no cenário global.
Em 2008 foi regulamentado o artigo 3ºA da Lei nº 8.685, de 1993 (Lei do
Audiovisual). De acordo com a Ancine, o artigo 3ºA foi criado com o objetivo de estimular a
associação entre cinema, televisão e produção independente no Brasil, abrindo mais espaço
para a veiculação de obras audiovisuais nacionais nas grades de programação brasileiras e
também no exterior. O mecanismo autoriza empresas de televisões abertas e programadoras

7
Os lugares de distinção entre os setores que compõem o espaço audiovisual, por vezes, permanecem vivos nas
ações estatais. Basta observarmos que o anteprojeto de Lei da criação da Agência Nacional do Cinema e do
Audiovisual ressalta o lugar do cinema. Por que não Agência Nacional do Audiovisual? Esta já não abrangeria o
campo cinematográfico? Essas questões aparentemente irrelevantes indicam os distintos circuitos da cultura
audiovisual, explicitam o corporativismo de alguns agentes do campo que reiteram a demarcação do lugar do
cinema diante das outras mídias. Para uma historicização mais aprofundada desse processo, conferir Bahia,
2009.
8
Artigo 39 da MP nº 2.228-1 (Condecine 3%) da Ancine: isenta do pagamento da Condecine 11% se as
Programadoras estrangeiras de TV por Assinatura investirem 3% do valor da remessa ao exterior na co-
produção de obras audiovisuais brasileiras de produção independente.

835

V V
de televisão por assinatura (nacionais ou estrangeiras) a investirem parte do imposto devido
sobre a remessa de recursos enviados ao exterior – derivados da aquisição de direitos de
transmissão de obras audiovisuais ou eventos internacionais – na coprodução de obras
audiovisuais brasileiras de produção independente9.
O mecanismo tem gerado efeitos positivos para os canais, como a Globo, que é o canal
que mais recolhe pelo incentivo. O filme Tropa de Elite 2 (2010) teve R$ 3 milhões de seu
orçamento de artigo 3ºA, por exemplo. Outras emissoras como a HBO Brasil, Fox Latin
American Channels do Brasil, Record, Fox Film do Brasil, ESPN do Brasil, Telecine, Turner,
Topsports, Elo Audiovisual e Sky Brasil também conseguem recursos via artigo 3ºA para
coproduzir com produtoras independentes e realizar, principalmente, série ou longa-
metragem.
A complexidade do audiovisual brasileiro fez com que as políticas públicas tivessem
dificuldade de dar conta da cadeia produtiva do audiovisual. Governo Federal, Estadual e
Municipal têm acionado diferentes estratégias para dar conta da cadeia produtiva do
audiovisual nacional. O Ministério da Cultura (MinC) lançou o Programa de Fomento à
Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro (DOC TV) em 2003 como uma política
da Secretaria do Audiovisual voltada à produção de documentários e à TV Pública. O
DOCTV atuou em toda a cadeia produtiva do documentário, desde a produção até a difusão
garantindo a exibição nas emissoras públicas. Os documentários deveriam ter 52 minutos de
duração, o que ocupa, cada um, uma hora da grade televisiva, com intervalos comerciais. E,
por preceito, os filmes deveriam ser exibidos em cadeia nacional.
Junto a essa iniciativa o governo federal, publicou diversos editais para produção de
pilotos, séries e desenvolvimento de projetos para televisão nos últimos anos, evidenciando a
entrada da televisão na pauta da política estatal. Os governos municipais e estaduais
acompanharam a tendência de lançamento de editais plurais, além de implementarem
programas específicos que visam abarcar a complexidade da cadeia do audiovisual nacional.
No entanto, as ações localizadas e isoladas não instituíram um processo sistêmico de
integração entre cinema e televisão no interior da política pública.

9
O contribuinte estrangeiro pode investir até 70% do imposto devido e os recursos podem ser aplicados no
desenvolvimento de projetos de produção de obras cinematográficas de longa metragem brasileiras de produção
independente, e na co-produção de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras e de produção
independente de curta, média e longas-metragens, documentários, telefilmes e minisséries.

836

V V
Nos anos 2000, o Estado, que sempre concentrou esforços no cinema, parece atentar à
importância da televisão e à colaboração entre os campos audiovisuais. O diretor-presidente
da Ancine, em exercício, explicou a política do órgão:
Há várias formas de se promover a integração da produção
audiovisual independente e do cinema com a televisão. O caminho que
temos percorrido até aqui é o do estímulo a esta integração e vamos operar o
aprofundamento dessas relações. Acreditamos que num futuro próximo
teremos mais produção independente na televisão brasileira e mais parcerias
entre emissoras e programadoras de TV com produtores independentes
brasileiros, como já faz a Globo Filmes, declarou o diretor-presidente da
ANCINE, Manoel Rangel (site Ancine, em 29.03.2011).

Apesar do discurso e de medidas pontuais houve pouca alteração na política pública


que visasse à integração entre cinema e televisão. No entanto, o debate da necessidade do
encontro entre cinema e televisão estava na agenda do Estado e após cinco anos de discussão
no Congresso foi aprovada em setembro de 2011 a Leinº12.485. Ela se destaca por criar
novos marcos legais para a televisão por assinatura10 e por lidar com o fenômeno da
convergência audiovisual no Brasil, protagonizada pelo cinema e pela televisão. Pode-se
afirmar que a lei da televisão paga é um dos principais marcos institucionais do projeto de
reinvenção do audiovisual nos anos 2000.
O Diretor-Presidente da Ancine reflete sobre a importância da Lei inserida no mundo
global capitalista:
A nova lei encara a imensa transformação ocorrida no mundo do
audiovisual e das telecomunicações, remove barreiras à competição, valoriza
a cultura brasileira, propõe nova dinâmica para produção e circulação de
obras audiovisuais e, sobretudo, fixa base conceitual leve e consistente,
capaz de orientar o desenvolvimento das duas áreas na próxima década (...)
A parceria com as emissoras dinamizará polos de produção audiovisual,
criará demandas para as produtoras independentes e fortalecerá as empresas
brasileiras de comunicação, criando sinergias propícias a uma maior
presença da produção audiovisual nacional no Brasil e à internacionalização
das nossas empresas, carregando a nossa língua e a cultura brasileira
(FOLHA DE SÃO PAULO, Opinião, 25. 08.2011).

A referida lei trouxe a regulação estatal para o âmbito da televisão por assinatura,
segmento do mercado audiovisual brasileiro com potencial de crescimento, e possibilitou a
criação de obrigações de veiculação de conteúdo audiovisuais brasileiros. A Lei estabelece
cotas e obrigatoriedade de exibição de conteúdo brasileiro independente na grade de

10
Serviço de Acesso Condicionado: serviço de telecomunicações de interesse coletivo prestado no regime
privado, cuja recepção é condicionada à contratação remunerada por assinantes e destinado à distribuição de
conteúdos audiovisuais na forma de pacotes, de canais nas modalidades avulsa de programação e avulsa de
conteúdo programado e de canais de distribuição obrigatória, por meio de tecnologias, processos, meios
eletrônicos e protocolos de comunicação quaisquer (Lei 12.485).

837

V V
programação, entre outras medidas benéficas para a produção independente nacional que
sempre ficou marginalizada da televisão.
A Lei foi regulamentada ao longo de 2012 pela Ancine após processos de consultas e
audiências públicas. A nova legislação para a televisão por assinatura significou mudanças
conjunturais importantes na natureza das políticas pública para o espaço audiovisual. Desde a
década de 1990, com a implementação das leis de incentivos fiscais, as políticas públicas
implementadas no país basearam-se dominantemente na arregimentação de recursos públicos,
voltados quase sempre ao fomento da produção cinematográfica.
O instrumento legal estabelece entre outras normalizações: 1.que os canais de espaço
qualificado11 reservem no mínimo 3h30 (três horas e trinta minutos) semanais dos conteúdos
veiculados no horário nobre deverão ser brasileiros; 2. que em todos os pacotes ofertados ao
assinante, a cada 3 (três) canais de espaço qualificado existentes no pacote, ao menos 1 (um)
deverá ser canal brasileiro de espaço qualificado; 3. que da parcela mínima de canais
brasileiros de espaço qualificado pelo menos 1/3 (um terço) deverá ser programado por
programadora brasileira independente; 4. que dos canais brasileiros de espaço qualificado a
serem veiculados nos pacotes, ao menos 2 (dois) canais deverão veicular, no mínimo, 12
(doze) horas diárias de conteúdo audiovisual brasileiro produzido por produtora brasileira
independente, 3 (três) das quais em horário nobre.
O Presidente da Associação Brasileira de Produtoras Independentes de TV (ABPITV),
Marco Altberg explica que nada vai mudar da noite para o dia:
É como se estivéssemos iniciando um novo momento no negócio de
TV por assinatura. Estamos diante de uma chance de se fazer uma
programação de conteúdo brasileiro voltada também para um novo
consumidor, a chamada classe C (...) Somos da corrente que quer que dê
certo e que entende que vai haver uma margem de experimentação e
acomodação de mercado. Todos cederam e todos saem ganhando com a lei.
A cota de conteúdo brasileiro é mínima e só a metade cabe às produtoras
independentes (O GLOBO, Rio Show, 10.03.2012).

A lei representa um ganho político do setor audiovisual e promete gerar expansão e


conexão do espaço audiovisual brasileiro independente com a televisão por assinatura. No
entanto, a regulamentação da lei já é alvo de críticas de parte de agentes do mercado que

11
Espaço Qualificado: espaço total do canal de programação, excluindo-se conteúdos religiosos ou políticos,
manifestações e eventos esportivos, concursos, publicidade, televendas, infomerciais, jogos eletrônicos,
propaganda política obrigatória, conteúdo audiovisual veiculado em horário eleitoral gratuito, conteúdos
jornalísticos e programas de auditório ancorados por apresentador (Lei 12.485).

838

V V
acusam a Ancine de fiscalização e burocratização sufocante, e apontam uma possível
incapacidade da agência de dar agilidade à cadeia do audiovisual12.
Com as regras para veiculação de conteúdos audiovisuais brasileiros e independentes,
sejam obras, sejam canais de programação, vislumbram-se mudanças importantes no mercado
audiovisual nacional que já se apresentam nas falas dos agentes do mercado. Daniel Tendler
da LC Barreto explica as mudanças na produtora:
Há uma febre de desenvolvimento de projetos para a TV paga. Muita
gente vinha trazer ideias aqui mas, como não tínhamos uma estratégia para a
área, acabávamos deixando passar muitas ofertas. Foi essa nova demanda
que nos estimulou a colocar em prática uma velha vontade da empresa, a de
montar um núcleo só para desenvolver projetos para a televisão (O GLOBO,
Cultura, 28.08.2012).

Belisário Franca, diretor artístico da Giros, conta que quadruplicou a produção e o


desenvolvimento de conteúdo ao longo dos últimos 12 meses. “Tivemos que contratar mais
pessoal para atender a demanda. Costumávamos desenvolver e produzir uma média de dez
produtos por ano; hoje temos cerca de trinta e cinco, em diferentes estágios de realização” (O
GLOBO, Cultura, 28.08.2012).
Os efeitos também já foram sentidos no extremo sul do país; a Casa de Cinema de
Porto Alegre que tem parcerias com a Rede Globo, Canal Futura e Canal Brasil. Ana Luiza
Azevedo, uma das sócias da produtora gaúcha analisa:
As pessoas que trabalham com audiovisual aqui em Porto Alegre
estão muito otimistas, criando sem parar. É um momento legal, há uma
gurizada vindo com muitos projetos, mas que precisam ser amadurecidos.
Aqui, na Casa, temos percebido uma demanda maior de projetos, mas todos
ainda em negociação. Aumentaram também as proposta de licenciamento de
títulos do nosso catálogo de filmes, inclusive os curtas-metragens, como
“Ilha das Flores”, “3 minutos” e “O oitavo selo” (O GLOBO, Cultura,
28.08.2012).

Recife, que se destaca no cinema brasileiro contemporâneo, se articula para se


consolidar no mercado televisivo. João Vieira Jr. da Rec Produtores Associados, diz que cada
vez mais os projetos apontam para uma linguagem híbrida entre cinema e televisão e afirma
que “as produtoras do Brasil inteiro estão se reconfigurando para isso” (O GLOBO, Cultura,
28.08.2012).

12
A lei, em fase de regulamentação, se torna arena de disputa política no cenário audiovisual brasileiro na mídia
e em seminários e fóruns especializados.

839

V V
Para garantir que a produção audiovisual exista na televisão, o governo fomenta a
produção independente para a televisão através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) que
tem uma linha especial para a televisão. O FSA se tornou o principal recurso para produção
de conteúdo nacional independente para a televisão paga. O Fundo Setorial do Audiovisual
foi instituído pela Lei 11.437/06 e regulamentado pelo Decreto 6.304/07, cujo Comitê Gestor
é responsável por estabelecer diretrizes de ação e áreas prioritárias para aplicação de recursos
definidas a partir de um plano anual de investimentos; definir normas e critérios para análise e
seleção de projetos, acompanhar a implementação das ações; e avaliar os resultados
alcançados a cada ano.
No primeiro Plano Anual de Investimentos para 2007-2008, o Comitê Gestor
autorizou a criação de quatro linhas de ação voltadas para a produção e distribuição
audiovisual de acordo com os programas PRODECINE (cinema) e PRODAV (audiovisual).
A Linha B trata de produção independente de obras audiovisuais brasileiras, destinadas ao
mercado de televisão, no formato de obra seriada de ficção, documentário e animação e de
telefilmes documentários, visando à contratação de operações financeiras, exclusivamente na
forma de investimento, para o mercado de televisão, privada ou pública, aberta ou por
assinatura. O FSA através da linha destinada ao mercado de televisão marca uma nova
estratégia da Ancine para a integração do cinema e da televisão. A Lei 12.485 é recente e
ainda se mostra tímida e inconclusa13, mas parece ser a primeira conquista para integração
institucional entre cinema e televisão.
Longe de encerrar quaisquer questões, o trabalho abre brechas para futuras
investigações em direção aos caminhos da política pública para a circularidade entre cinema e
televisão no Brasil, atentando para os diversos olhares e posições sobre os debates dos
encontros e desencontros entre cinema e televisão no Brasil. Igualmente importante é
acompanhar com atenção os dados, os números e as falas dos agentes para acompanhar os
desdobramentos da Lei da televisão por assinatura que marca um novo tempo para o
audiovisual no Brasil. Em seu pouco tempo de implementação, suscitou euforias, reações,
debates e promete gerar mudanças ainda mais profundas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

13
Os dados apresentados são provisórios e estão circunscritos na análise de um ano de impacto da Lei 12.485.

840

V V
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reflexões sobre o papel do Estado na produção cultural contemporânea. in: RUBIM, Antonio Albino
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O GLOBO, Cultura, 28.08.2012.

Site Ancine, 2014.

842

V V
ECONOMIA VIVA: AÇÃO DE FOMENTO OU PRÊMIO DE RECONHECIMENTO?
Luana Vilutis1

RESUMO: A reflexão aqui proposta trata do desafio do programa Cultura Viva de fomentar
a geração de renda e a sustentabilidade econômica dos pontos de cultura. Para tanto,
apresentamos rapidamente a proposta conceitual da ação Economia Viva e abordamos a
execução do Prêmio Economia Viva, com uma análise das potencialidades e limitações
alcançadas no processo de implementação desse instrumento de política pública no contexto
do programa.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura Viva, Pontos de Cultura, Ação Economia Viva, Prêmio


Economia Viva, Economia Solidária.

Neste artigo abordaremos a concepção e o alcance da Ação Economia Viva,


realizada entre os anos de 2010 e 2012 no âmbito do programa Cultura Viva, e refletiremos
acerca dos desafios do programa e das políticas públicas de cultura voltadas ao fomento da
geração de renda e da autonomia financeira de grupos culturais; especialmente daqueles que
trabalham em rede e têm forte atuação comunitária, como é característica recorrente dentre
os pontos de cultura.
A escolha por olhar mais atentamente a ação Economia Viva justifica-se por esta
iniciativa reunir características expressivas de diversos aspectos e questões centrais do
programa Cultura Viva que foram muito pouco desenvolvidos, tanto em termos de
investigações acadêmicas, de sistematização do conhecimento, quanto nas iniciativas
práticas da gestão pública.
Consideramos relevante abordar a ação Economia Viva por ela ser expressiva de
alguns dos principais desafios existentes no Cultura Viva, destacaremos dois a título da
breve reflexão que cabe fazer aqui. O fomento público de ações que promovam a
sustentabilidade dos pontos de cultura e incentivem sua autonomia financeira é um deles. A
articulação em redes de produção, comercialização e consumo entre os pontos é outro
aspecto, que inclusive está diretamente relacionado ao anterior. A ação Economia Viva foi
implementada por meio de um instrumento de premiação, o que nos permite ainda refletir
acerca dessa modalidade de fomento praticada no âmbito do Cultura Viva.

1 Doutoranda em Cultura e Sociedade pela UFBA, integrante da FLACSO Brasil. Email:


luanavilutis@gmail.com

843

V V
Além desses aspectos, a ação Economia Viva também nos oferece elementos e
informações para várias reflexões sobre as potencialidades existentes nas ações públicas de
fomento ao desenvolvimento cultural comunitário; na fértil interface entre economia
solidária e cultura; na potência das redes de produção colaborativa e trocas solidárias entre
grupos culturais; no papel do Estado em fomentar esse tipo de iniciativa e nos limites
encontrados para fazê-lo; nos estímulos e motivações do trabalho autogestionário e
colaborativo no campo cultural; dentre outros. A ação Economia Viva, mesmo tendo sido
uma experiência com vida curta e de poucos recursos, aportou contribuições significativas e
diversas nessas direções. Mas lamentavelmente não teremos condições de discorrer
atentamente sobre todas elas aqui, isso está sendo feito na pesquisa de doutorado em
andamento que alimenta este artigo 2. Aqui nos reservaremos a uma abordagem mais
descritiva dessa ação pública e a uma reflexão inicial de sua execução, com olhar acerca das
potencialidades e limitações alcançadas no processo de implementação desse instrumento de
política pública.
Para tanto, recuperaremos brevemente o histórico da ação Economia Viva com
destaque para sua proposta conceitual e analisaremos a implementação do Prêmio Economia
Viva, cuja contextualização nos oferece elementos para abordar os alcances da
implementação de prêmios como instrumento de políticas públicas, o que passou a ser tão
recorrente no âmbito do Cultura Viva, especialmente em 2010, como veremos adiante.
Interessa aqui situar o momento de surgimento da ação Economia Viva, a
formulação dessa ação, sua relação com o programa e seu processo de implementação. Se
pensarmos a partir dos sete momentos da políticas públicas propostos por Saravia (2006),
podemos identificar que antes da formulação e implementação da ação, há necessidade de
definir suas prioridades, trabalhar na formação da agenda, quando torna-se pública sua
relevância. No caso do Economia Viva, essa fase foi parcialmente abordada em outro artigo
(VILUTIS, 2011) e aprofundada na pesquisa de doutorado em andamento, por isso não será
objeto deste texto.
Voltando às fases das políticas públicas concebidas por Saravia, após formar a
agenda, ocorre então a sua elaboração, que consiste em identificar, delimitar e avaliar custos
e efeitos; em seguida, passa-se a sua formulação, onde são escolhidos os objetivos e os
marcos jurídicos, administrativos e financeiros dessas políticas públicas, para então
implementá-las, o que inclui planejar, preparar e organizar os recursos e a infraestrutura

2A tese de doutorado da autora é sobre as intersecções entre cultura e economia solidária no programa Cultura
Viva, com foco e análise mais detida na Ação Economia Viva.

844

V V
disponíveis e necessárias. A execução, por sua vez, é o trabalho para alcançar os objetivos
estabelecidos pela política; seu acompanhamento prevê o monitoramento e o ajuste de rota,
para então alcançar a última fase relativa à avaliação dos efeitos produzidos pelas políticas
públicas. Para a reflexão aqui proposta focaremos na formulação e implementação dessa
ação pública, conscientes de que não haver espaço suficiente para sua abordagem completa
e aprofundada.

A Ação Economia Viva


Após mais de meia década de existência do Cultura Viva, o tripé protagonismo,
empoderamento e autonomia proposto pelo programa encontrava-se manco e uma de suas
principais fragilidades era justamente a autonomia financeira dos pontos de cultura. O
término dos primeiros convênios em 2007 trouxe a tona uma questão muito significativa
com implicações práticas e concretas. A continuidade dos projetos e ações culturais dos
pontos de cultura após a execução dos convênios é um desafio cuja ausência de respostas
por parte do Estado e da sociedade civil até hoje não foi resolvida.
É nesse contexto que inserimos o Economia Viva, uma ação criada para fomentar
organizações sociais e pontos de cultura que realizem iniciativas de geração de renda e
promovam a sustentabilidade financeira. Enquanto ação, o Economia Viva buscou reunir e
fazer convergir uma série de pautas e questões do Cultura Viva, inclusive em diálogo forte
com outras ações do programa, como a cultura digital. Havia uma intenção explícita de que
essa ação reconhecesse, valorizasse e fomentasse iniciativas de economia solidária no
campo cultural. A relação da economia da cultura e o fomento da diversidade cultural
também estavam presente nos discursos e materiais da ação, como podemos ver no trecho a
seguir:
A ação Economia Viva tem por finalidade apoiar e possibilitar a articulação de
Pontos nos mais variados sistemas produtivos da cultura e nas mais diversas
manifestações e expressões de linguagens artísticas. O público-alvo da ação são os
empreendimentos culturais que desenvolvem soluções criativas de produção ou
escoamento em rede nos diversos segmentos culturais, não sendo restritos, portanto,
aos Pontos de Cultura. Contempla práticas e modelos de negócios baseados nas
premissas da Economia Solidária, uma vez que esta promova autonomia por meio da
articulação em rede, da colaboração, do crescimento sustentável e do comércio justo.
(BRASIL, 2011, p.1).

Embora seja presente a narrativa da Economia Viva vir associada a “novos modelos
de negócios e geração de renda”, é pertinente problematizar o caráter de novidade que lhe é
conferido. Certamente o uso das tecnologias de informação e comunicação – TICs

845

V V
favoreceram a renovação desses negócios, mas o que chama a atenção nesta ação é que além
de novos negócios na área cultural por meio do uso de tecnologias, sua maior inovação
encontra-se na gestão democrática.
A ação Economia Viva foi pautada pelos desafios de “promover o desenvolvimento
da economia da cultura aliada a novos modelos de negócios associativistas autogestionários
com ênfase na sustentabilidade em seus vários matizes e com ações democráticas de
descentralização de ações e autonomia dos pontos” (BRASIL, 2010a, p. 97). Identificamos,
assim, que o caráter inovador dessa ação pública de fomento à sustentabilidade dos pontos
de cultura residiu na sua vinculação direta com a promoção do trabalho autogestionário e
em rede na cultura.
Para colocá-la em prática, em 2009, a então Secretaria de Cidadania Cultural do
Ministério da Cultura – SCC/MinC3 inicia o processo de contratação de uma consultoria
responsável por “pesquisar, elaborar, sistematizar, propor, implementar e avaliar
metodologias de desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais (APLs) em processos de
Cultura Digital ligados ao conceito de economia da cultura” (BRASIL, 2010a, p. 186). Foi
uma iniciativa de estruturação do viés econômico do programa Cultura Viva, com forte
conotação da economia solidária, como podemos ver no conjunto das atividades previstas
pela consultora Andréa Saraiva, para a ação Economia Viva, dentre as quais destacamos:
Construir proposta de implementação de arranjos produtivos locais em conjunto com
os atores e coletivos culturais ligados aos Pontos e pontões de Cultura selecionados
para o desenvolvimento de APL. É importante reforçar que a proposta deverá conter
os princípios da economia da cultura, economia solidária, economia da dádiva,
tecnologias livres e comércio justo. (BRASIL, 2010a, p.2).

No contexto dessa consultoria foi realizado um encontro da Ação Economia Viva na


Teia das Ações, atividade dentro da programação da TEIA Nacional de 2010, em Fortaleza-
CE. Esse encontro reuniu cerca de 70 pessoas e pontos de cultura de todas as regiões do
país, que partilharam informações, projetos e conhecimentos acerca da economia da cultura
e economia solidária. Nessa ocasião, o grupo pode se organizar e pactuar iniciativas
conjuntas, como a realização de um encontro nacional de Economia Viva, e elaborar um
conjunto de propostas apresentadas na plenária final da TEIA.
Em resumo, a concepção da ação Economia Viva previa um conjunto de iniciativas
de socioeconomia da cultura no contexto do programa Cultura Viva como a implantação de

3Em 31 de maio de 2012 o Ministério da Cultura aprovou uma nova estrutura regimental que fundiu a Secretaria
de Cidadania Cultural-SCC/MinC com a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural, criando a atual
Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural-SCDC/MinC.

846

V V
bancos comunitários de desenvolvimento nos pontos de cultura; a criação de uma moeda
social para a TEIA; a realização de um encontro nacional de pontos de cultura tendo a
Economia Viva como temática; a efetuação de compras públicas de produtos e a contratação
de serviços dos pontos de cultura pelo Estado; a implementação de linhas de crédito para os
pontos de cultura, a criação de fundos autogeridos e a capacitação técnica dos pontos de
cultura para gestão de empreendimentos (BRASIL, 2010a). No entanto, nenhuma dessas
propostas se efetivou e a ação Economia Viva ficou restrita à execução do edital de
premiação lançado em 09 de março de 2010 pela SCC/MinC, que trataremos na próxima
parte deste texto.

O Prêmio Economia Viva


O edital de premiação do Economia Viva foi criado com a finalidade de “premiar a
experimentação nas formas de geração de renda e na sustentabilidade sócio-econômica de
grupos e organizações que se expressam através das diversas linguagens artísticas”
(BRASIL, 2015b, p. 14). Com um valor global de R$ 1.218.000,00 o edital previa conceder,
no mínimo, dez prêmios de até R$ 120.000,00 a pontos de cultura ou organizações não
governamentais sem fins lucrativos.
O edital estava dirigido a contemplar ações, práticas e modelos de negócios que
promovessem articulação em rede, a colaboração, o crescimento sustentável e o comércio
justo (idem, p. 14). É interessante destacar o caráter inovador desse instrumento ao propor a
premiação de ações experimentais de geração de renda de forma sustentáveis na área
cultural. A sustentabilidade, por sua vez, é concebida nesse edital em dois sentidos:
enquanto sustentabilidade financeira dos empreendimentos e grupos premiados; e também
no sentido da sustentabilidade sócio-econômica do projeto, da iniciativa premiada, o que
aparece fortemente vinculado à economia solidária.
Em termos da sustentabilidade financeira, o edital é bem enfático ao solicitar que os
projetos indiquem como pretendem alcançá-la e, inclusive, mantê-la após o término do
projeto. Sabemos o quão difícil é prever o cenário financeiro das organizações da sociedade
civil no Brasil e temos conhecimento também de como o campo das artes e da cultura
também vive mais próximo da instabilidade financeira do que de seu equilíbrio. A indicação
de como alcançar a sustentabilidade financeira das iniciativas culturais é uma questão
recorrente dos próprios pontos de cultura, além de ser uma pergunta sem resposta dentro do
programa Cultura Viva.

847

V V
Dentre as exigências do edital, consta a elaboração de um plano de execução
financeira do projeto. Trata-se de um planejamento da sustentabilidade financeira do
negócio proposto abarcando, inclusive, o período após o término do projeto. Na avaliação e
seleção do projeto, o item relativo ao plano de negócios reuniu a pontuação máxima de 0 a
20 pontos e voltou-se à análise da capacidade de comercialização de serviços e produtos na
execução do projeto e após a sua finalização.
Esse aspecto diz respeito a uma das preocupações e apontamentos mais recorrentes
do Grupo de Trabalho de Sustentabilidade 4, relativos à criação de alternativas econômicas
dos pontos de cultura para além dos editais. Mas ao mesmo tempo, toca uma questão incerta
e imprevisível que é a inserção no mercado, ou a criação de mercados, para circulação
desses produtos e serviços. Isso é um desafio dos pontos de cultura já apontada pela
pesquisa do IPEA em 2009 que levantou dúvidas e preocupações dos pontos de cultura em
relação à forma de conduzir suas relações comerciais. Dentre os pontos que realizam
atividades de comercialização, a pesquisa revelou que “há problemas de capacitação para a
venda e dificuldades operacionais para a distribuição dos produtos em outros pontos de
venda” (ARAÚJO; BARBOSA, 2010, p. 97).
A articulação em rede é aspecto fortemente presente no edital do Prêmio Economia
Viva, embora com finalidades diferentes. Dentre as condições de participação, o edital é
enfático em relação à necessidade dos projetos conterem ações em rede, práticas de
replicabilidade e atividades econômicas colaborativas junto ao desenvolvimento de
linguagens artísticas (BRASIL, 2015b, p. 15). Temos, portanto, de um lado, o propósito de
mobilização de uma economia em rede da cultura e da articulação de redes solidárias de
comercialização.
Por outro lado, a articulação entre pontos e pontões de cultura do programa também
é requisito de participação no edital, cujo projeto deve propor atividades de atuação e
produtos finais (BRASIL, 2015b, p. 14). A articulação em rede entre os pontos é condição
de participação recorrente nos editais do Cultura Viva, embora seja frequente também a
ausência de investimentos públicos voltados ao fomento específico dessas redes. Isso
expressa claramente a intenção do MinC de fazer com que esses instrumentos de políticas
tenham um duplo alcance: ao mesmo tempo em que valorizam e fomentam os pontos de
cultura, potencializam as ações dos programa por meio da rede de pontos, pontões e seus

4 O Grupo de Trabalho de Sustentabilidade foi criado na TEIA 2007 por meio da articulação de pontos de
cultura em torno da temática de sua sustentabilidade; em 2008 o GT passou a integrar a Comissão Nacional de
Pontos de Cultura-CNPdC: http://pontosdecultura.org.br/a-comissao/regimento/

848

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projetos. No entanto, para que essa segunda intenção se efetive, são necessárias ações por
parte do poder público que até o momento não ocorreram de forma coordenada, continuada
e convergente.
A intenção de fomentar a intersetorialidade e a transversalidade da cultura é aspecto
que também merece destaque neste edital e tem relação com a articulação em rede. A
interação e a transversalidade de ações do programa Cultura Viva foi um dos critérios de
avaliação no edital do prêmio Economia Viva onde ficou explícita a proposta de valorizar
projetos que ampliassem e aprofundassem as relações de colaboração e troca entre os atores
e iniciativas da rede e das ações do programa Cultura Viva, bem como os projetos que
trabalhassem diferentes linguagens e expressões artísticas (BRASIL, 2015b, p. 15).
A articulação dos elos de sistemas produtivos nos diversos segmentos culturais é
destacado no edital que também enfatiza a implementação de soluções criativas no perfil de
instituições elegíveis. Isso revela o propósito deste instrumento de trabalhar com inovações
na área cultural, tanto no que diz respeito à produção, quanto à comercialização,
distribuição e consumo. Aqui novamente, vemos o intuito de um prêmio promover um
conjunto de ações estruturantes da política pública que, como veremos, não ocorreram por
falta de planejamento, recursos e execução efetiva por parte do poder público.
Um exemplo explícito desse alcance limitado das intenções de articulação em rede
do programa é a realização do Encontro Nacional da Economia Viva. Dentre as obrigações
dos proponentes previstas no edital do prêmio aqui analisado, um dos itens era a
participação em, pelo menos, um evento nacional relativo à rede da Ação Economia Viva.
Para tanto, os proponentes deveriam prever recursos financeiros em seus projetos para
passagens, deslocamentos, hospedagem e alimentação. Além dessa previsão orçamentária
nos projetos, como vimos, os pontos de cultura se articularam na Teia das Ações,
construíram uma proposta de programação para o encontro nacional, discutiram sua
concepção metodológica e se organizaram em frentes de trabalho para a produção do
evento. No entanto, o MinC nunca viabilizou a infraestrutura para sua realização, o encontro
não ocorreu, a obrigação dos pontos de cultura de prever recursos financeiros para participar
do evento não foi compartilhada com o poder público e demonstrou-se inócua.
O processo de implementação do Prêmio ocorreu de forma lenta e não-linear; a
avaliação dos projetos demorou quase seis meses para ser finalizada e sua divulgação

849

V V
ocorreu de forma confusa e dispersa 5. O pagamento da primeira parcela dos prêmios tardou
quase um ano para se efetivar e o último pagamento do Prêmio ocorreu em dezembro de
2012, quase três anos após o lançamento do edital de projetos com um ano de duração. O
Prêmio contou com 121 inscrições, de 21 estados e todas as regiões do país, conforme
distribuição detalhada no gráfico a seguir:

Dos 121 inscritos no edital, 12 foram premiados e os demais projetos foram avaliados
conforme segue:

5 O julgamento dos recursos do Prêmio Economia Viva não foram todos publicizados e tampouco existiu uma
listagem completa e unificada dos projetos classificados, desclassificados, habilitados e inabilitados, além de
todas as portarias de divulgação de resultados do Prêmio terem sofrido retificações. Desse modo, para
obtermos uma relação completa do resultado unificado do Prêmio foi preciso conferir as diferentes listagens
divulgadas e calcular o resultado a partir delas. O número de projetos inscritos no Prêmio obtido por meio
desse cálculo difere do dado difundido à época, que levou em consideração apenas parte das portarias e de
seus avisos de retificação.

850

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A escolha por premiar 12 instituições ao invés de 10, foi tomada após recomendação
da Comissão de Avaliação que analisou os projetos encaminhados ao Edital Prêmio
Economia Viva 2010. Com essa alteração, os projetos selecionados receberam o valor de
100 mil reais e não R$120mil previstos inicialmente. A região norte perdeu sua única
representação dentre o conjunto de instituições premiadas, visto que o projeto selecionado
do Grupo de Teatro a Bruxa Tá Solta não conseguiu reunir toda a documentação necessária
no momento de recebimento do prêmio e foi substituído pela primeira iniciativa da lista de
classificados, o Instituto Kairós, de Minas Gerais. A partir dessa atualização, a distribuição
geográfica das iniciativas premiadas ficou da seguinte forma:

851

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Os 11 meses passados entre o resultado do edital e o efetivo pagamento do prêmio
ocorreram em um cenário de mudança de gestão interna no Ministério da Cultura e na
Secretaria de Cidadania Cultural. Em 2010 o período eleitoral foi a justificativa para o não
pagamento do Economia Viva; no ano seguinte, a mudança de gestão também explicara o
seu atraso. As sucessivas auditorias internas atravessadas pela SCC e SCDC também
integraram o conjunto dos argumentos relativos à falta de previsão dos pagamentos
(COMUNICADO, 2010).

Do reconhecimento ao fomento
A adoção de prêmios como instrumento da política do Cultura Viva pelo MinC teve
início em 2007 com o Prêmio Escola Viva e tornou-se prática corrente até 2010, embora
com finalidades e objetivos diferentes. Inicialmente voltados ao reconhecimento de
iniciativas exitosas, de experiências de destaque, daquilo que se costuma chamar de
“melhores práticas”, os prêmios foram assumindo um caráter de fomento das ações do
programa Cultura Viva.
O processo de estadualização do programa Cultura Viva, levado a cabo a partir de
2007, também trouxe novidades nesse sentido. Como exemplo, citamos o caso do Estado de
São Paulo que adotou a modalidade de premiação para o apoio concedido aos pontos de
cultura6.
O Prêmio Asas (2008 e 2010) é um exemplo desse tipo de ação pública que situa-se
entre o reconhecimento de iniciativas exitosas na execução dos projetos apoiados pelo
Cultura Viva e o fomento para sua continuidade. A primeira edição desse Prêmio ocorreu
em 2008, no mesmo contexto já mencionado aqui, de término de alguns convênios. Embora
voltado ao reconhecimento dessas iniciativas, o prêmio assumiu também um caráter de
fomento da continuidade dos pontos de cultura, o que era facilitado pelo seu formato de um
repasse único de recursos e prestação de contas via relatório de atividade. Os pontos de
cultura selecionados receberam em uma parcela única de R$80 mil quase metade do
montante total recebido pelo ponto de cultura ao longo de seus três anos de execução do
convênio.
Ao justificar o valor estipulado de R$100mil para o prêmio Economia Viva
(BRASIL, 2010b, p. 2), O MinC revelou a dupla intenção do investimento: geração de

6 Uma abordagem detalhada e analítica dessa experiência pode ser encontrada na dissertação de mestrado de
LIMA, 2013.

852

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renda e manutenção do ponto de cultura por um ano. A base do cálculo foi o montante de
recursos disponibilizados pelos convênios de pontos de cultura, segundo o qual, os pontos
recebem R$ 60 mil anuais para ações culturais de criação, produção e difusão. O acréscimo
de R$ 40 mil foi com o propósito de fomentar a sustentabilidade financeira das instituições
premiadas, o que no caso específico deste edital estava voltado à geração de renda. Em
resposta à auditoria das premiações, a SCDC expôs também a concepção de iniciativa-piloto
que imbuiu a criação do Prêmio Economia Viva: “(...) esse edital é um laboratório de
experimentação e dado o número de inscritos a demanda está mapeada e será base para
próximas ações de sustentabilidade” (BRASIL, 2010b, p. 2).
Até o momento ele não subsidiou nenhuma ação pública semelhante ou aproximada,
muito pelo contrário, vemos que após os nove editais de premiação emitidos em 2010 pelo
MinC, não houve mais nenhum edital de fomento, prêmio, bolsa ou outro tipo de incentivo
voltado aos pontos de cultura no âmbito do Governo Federal. O gráfico a seguir revela a
evolução dos editais de premiação de pontos de cultura dentro do MinC 7:

7 Consideramos aqui editais de premiações voltados aos pontos de cultura lançados no âmbito do MinC e não
apenas pela SCC -e posteriormente SCDC-. Como exemplo, mencionamos termos contemplado o Prêmio
Interações Estéticas, lançado pela Funarte, mas com foco direcionado aos pontos de cultura e com relação direta
com o Cultura Viva.

853

V V
Embora o formato do edital do Economia Viva fosse de prêmio, o seu escopo era um
híbrido de premiação e conveniamento, pois não era apenas uma premiação ou
reconhecimento de alguma prática já desenvolvida, mas um apoio financeiro para o
desenvolvimento de um projeto com duração de doze meses e prestação de contas por meio
de dois relatórios.
A Portaria nº 29/2009 do MinC dispõe sobre a elaboração e gestão de editais de
seleção pública para apoio a projetos culturais e para a concessão de prêmio a iniciativas
culturais no âmbito do MinC; ela prevê em seu Artigo 3 o que os editais públicos de
premiação destinem-se apenas a iniciativas culturais realizadas ou em andamento. Segundo
esse ato jurídico, a concessão de prêmio é equiparada aos concursos literários, artísticos e
culturais, ou seja, concebe a premiação como um instrumento de reconhecimento e
valorização de uma iniciativa cultural desenvolvida ou cujo processo de criação pode ser
identificado.
No âmbito do Cultura Viva, dos 20 prêmios executados entre 2007 e 2010, apenas
quatro8 referem-se ao reconhecimento de iniciativas já realizadas e premiadas como
melhores práticas. Os demais prêmios foram voltados a iniciativas em desenvolvimento ou a
serem realizadas. Isso justifica a adoção de algumas medidas por parte da SCC para o
controle do uso de recursos públicos, como a exigência de planos de execução financeira e
de relatórios de aplicação dos recursos. No caso do prêmio Economia Viva, foi solicitado
ainda um plano de negócios para analisar a capacidade de comercialização de serviços e
produtos, e o pagamento do prêmio ocorreu em duas parcelas de igual valor, sendo a
primeira paga no ato da premiação e a segunda após apresentação e aprovação do primeiro
relatório. Apenas outros três prêmios do programa tiveram formato semelhante em termos
da solicitação de dois relatórios, foram os prêmios Tuxáua (I e II), Cultura e Saúde e
Cultura Digital. No entanto, nenhum previa a elaboração de um plano de negócios,
exigência específica do Economia Viva.
No âmbito do Cultura Viva, o ano de 2010 foi o de maior número de editais de
premiações realizadas pelo MinC. Em 2010 o órgão lançou 9 editais de premiações, dentre
os quais temos o Economia Viva com o menor orçamento e também o menor número de
iniciativas premiadas, mas que reuniu o maior valor de premiação, de R$100.000,00. Esse

8Tratam-se dos prêmios Escola Viva, Asas I e II e Pontos de Valor.

854

V V
montante fora contemplado por apenas dois outros editais nesse ano de 2010, os prêmios de
Mídia Livre e Cultura Viva.
O edital do Economia Viva foi o único prêmio inédito de 2010, todos os demais
estavam em sua segunda edição ou, como foi o caso do Cultura Digital, embora fosse a
primeira edição no formato de premiação, essa ação já havia sido fomentada anteriormente,
com editais de conveniamento de pontões de cultura digital. Talvez o ineditismo do
Economia Viva ajude a explicar o baixo valor do orçamento desse edital. Se calcularmos o
valor médio do orçamento dos editais de 2010 alcançamos a marca superior a 3 milhões e
meio de reais. Entretanto, ao Economia Viva não lhe foi reservado nem metade desse valor.
Isso revela o baixo grau de prioridade e importância dado a essa ação no Ministério.
Se o Prêmio Economia Viva havia sido criado para fomentar a sustentabilidade
financeira das instituições sociais, seu pequeno histórico de vida já deixou uma forte lição às
instituições da sociedade civil contempladas em seu edital. Não depender de uma fonte de
recursos e tampouco depender de editais públicos revelava-se como uma medida necessária
para poder manter as ações em funcionamento sem ser tão impactado pelas instabilidades e
intercorrências da gestão pública.

Em termos de sua concepção, o Economia Viva foi concebido como uma ação
estratégica à política pública, que compreendia os pontos de cultura como empreendimentos e
previa recursos para fomentar sua sustentabilidade e articulação em rede. No entanto, no que
diz respeito a sua execução, temos uma premiação pontual e isolada no histórico dos dez anos
de existência do programa Cultura Viva.

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Avaliação para análise dos projetos encaminhados ao Edital Prêmio Economia Viva. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, n° 128, p. 6, 7 jul. 2010. Seção 2. Disponível em:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=2&pagina=6&data=07/07/2010.
Acesso em 25 jan. 2015e.

BRASIL. Ministério da Cultura. Portaria n° 38, de 6 de julho de 2010. Torna pública a lista de
entidades que tiveram seus projetos premiados, classificados, desclassificados e inabilitado no Prêmio
Economia Viva. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n° 131, p. 14-15, 12 jul. 2010. Seção 1.
Disponível em:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=12/07/2010&jornal=1&pagina=14&tot
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857

V V
A INFLUÊNCIA MARIOANDRADIANA NAS POLÍTICAS CULTURAIS NO
BRASIL - POR MEIO DAS ERRÂNCIAS E DA CARNAVALIZAÇÃO DO ESPÍRITO
MODERNO
Lucas Garcia1

RESUMO: Pretende-se com esse estudo refletir, de maneira breve, a influência do


modernista Mário de Andrade nas políticas culturais no Brasil, a partir de suas experiências
artísticas. A bagagem, colhida pelo intelectual ao longo dos anos de pesquisa, forneceu um
rico repertório para assumir a gestão do DeCult e colaborar com o SPHAN. As errâncias pelo
país e suas experiências carnavalescas permitem novas observações e compreensão da
produção cultural no Brasil, que é registrada, valorizada e apropriada pelo turista aprendiz.

PALAVRAS-CHAVE: Mário de Andrade, Política Cultural, Errância, Carnaval.

“A maioria dos poetas que se ocuparam de temas realmente modernos


contentaram-se com temas conhecidos e oficiais - esses poetas ocuparam-se
de nossas vitórias e nosso heroísmo político. Mesmo assim fazem-no de mau
grado e só porque o governo ordena e lhes pagão os honorários. E, no
entanto, há temas da vida provada bem mais heróicos. O espetáculo da vida
mundana e das milhares de existências desregradas que habitam os
subterrâneos de uma cidade.”
(Charles Baudelaire)

Esbarra-se no nome de Mário de Andrade para elencar e desenvolver um pensamento


a respeito das políticas culturais brasileiras (FONSECA 2005; RUBIM; BARBALHO, 2007;
CALABRE, 2009). Não é por menos, a figura de Mário de Andrade, esteve presente em
importantes momentos da construção de um pensamento na produção artística e política do
Brasil, nas décadas de 1920, 1930 e 1940, participando da gestão do Departamento de Cultura
da cidade de São Paulo e colaborando com o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Brasileiro (SPHAN). Na primeira instituição foi diretor, na segunda apresentou o anteprojeto,
e foi assistente técnico da região referente ao Estado de São Paulo, realizando um inventário
dos bens culturais.
Relembrado em inúmeros estudos e pesquisas de diferentes instituições brasileiras
(principalmente no Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP), o artista, de fato, fez questão
de experimentar e vivenciar a produção cultural brasileira para além dos salões da
intelectualidade e da aristocracia. Isso influenciou a maneira de absorver e observar as
práticas culturais dentro da imensidão territorial brasileira, recortada por diversificadas

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense
(UFF) – lgarcia@id.uff.br

858

V V
manifestações culturais, com a preocupação em ouvir e conhecer as diferentes vozes que
produziam discursos da cultura no país.
Antes de percorrer alguns caminhos perpassados pelo modernista é preciso salientar
que Mário aguardou durante alguns anos uma “oportunidade”, que veio através do DeCult
(ANDRADE, 1981, p. 39) e esfarelou em suas mãos, os intelectuais responsáveis pela
administração das divisões do departamento não tiveram força suficiente e articulação com os
partidos para manter as ações da instituição a todo vapor, como quando Armando de Salles,
membro do Partido Democrático (PD) foi nomeado para interventor, por Getulio Vargas, em
1933. Interessante aqui destacar que dentro do PD, circulavam figuras da esquerda que
defenderam o DeCult até seu fim. Armando foi eleito pela Câmara dos Deputados, tornando-
se governador constitucional do Estado de São Paulo e nomeando Fabio Prado prefeito da
capital, com o novo prefeito chega o DeCult em 1935. A saída de Armando em 1936 para
articular a candidatura à presidência da República, com planos do Instituto Nacional de
Cultura, influenciou e afetou os rumos do Departamento de Cultura (SANDRONI, 1988).
Com o golpe de 1937 e a intervenção federal - Prestes Maia -assume a prefeitura de São Paulo
nomeado por Getulio Vargas e desvia suas preocupações para outros nortes (CASTRO, 1989,
p. 49).
Começo então, pela rica bagagem colhida pelo intelectual, ao sabor de suas errâncias,
seja em deambulações urbanas (JACQUES, 2014, p. 116) ou então em andanças pelo meio
rural. Sempre dentro das fronteiras nacionais, provocando a modernidade e as práticas banais,
influenciado pelos movimentos europeus de vanguarda (CARERI, 2013, p. 70). As errâncias
de Mário de Andrade são momentos ricos de entrega do modernista, inicialmente, pela sua
cidade natal, a Paulicéia Desvairada. É nela onde a prática do observador é exercitada e um
imaginário é construído da capital paulista – poeticamente incorporado; berço do movimento
modernista brasileiro, lugar de destaque no cenário brasileiro (FONSECA, 2012, p. 63). As
caminhadas do deambulante geraram reflexões ímpares a respeito da estética emergente no
Brasil, e, serviram de exercícios em seus pensamentos: “Eu sempre gostei de viver, de
maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma boa
caminhada a pé até o Alto da Lapa como uma tocata de Bach.” (ANDRADE, 1988, p.21). Em
carta ao escritor Carlos Drummond de Andrade demonstra a curiosidade e postura em analisar
os momentos da vida cotidiana, influenciadora assim, do fazer artístico e por consequencia
político.

859

V V
O registro de São Paulo feito por Andrade é através de uma sensibilidade artística e
poética, entre as paisagens da cidade, vivenciando as modificações, os movimentos e as
transitações que aconteceram no dia-a-dia da Paulicéia, entre o Anhangabaú, pelo Ipiranga,
pela Rua São Bento, pelo Paissandu e por outras paisagens da cidade de São Paulo, como o
Alto da Lapa2. É o cenário onde incorporou e produziu a crítica aos elementos formadores de
São Paulo, (FONSECA, 2012, p.12) - desorientado e lento. Neste momento, não podemos
isolar as obras de MA, é preciso contextualizar o momento de suas criações e refletir a cerca
de suas influências. Logo, pensaremos em Charles Baudelaire, escritor francês e entusiasta do
caminhar e da observação das ruas, no processo de modernização da cidade de Paris
(BERMAN, 2007, p. 160) através do – flâneur; foi também, sem sombra de dúvidas,
referência para Mário de Andrade:
“Uma observação que eu não sei se alguém já fez antes de mim:
Baudelaire, um dos maiores poetas da França, você já reparou que ele é
muito mais crítico que criador. Falo no ponto de vista da criação. A criação
dele é crítica. Provém de um contato de ideias de que ele tira um juízo, esse
juízo é a inspiração dele. Sua crítica me deu momentos inefáveis (...)”
(ANDRADE, 1988, p. 43)

Mário de Andrade se debruça na obra de escritores como: “Dante, Shakespeare,


Shelley, Goethe, Heine e Baudelaire (...)” (ANDRADE, 1976, p.236). As ruas de São Paulo,
local onde habita o escritor (BENJAMIN, 1989, p. 35), conduzindo a criação
marioandradiana é a “residência artística” do poeta moderno que encontra outras
possibilidades de fazer caminho e de se caminhar (BENJAMIN, 1994; CARERI, 2012) em
uma cidade que se expande economicamente e demograficamente.
As mudanças desse período serão questionadas por Mário ao longo de sua vida,
através de suas obras, e até mesmo em suas correspondências com amigos e artistas, como
veremos adiante. Mudanças do transporte público, reformas no plano urbanístico, saneamento
e higiene e o boom da população, na capital, que recebe os imigrantes, a mão de obra
estrangeira das fábricas de São Paulo.
Em Paulicéia Desvairada as análises das errâncias de Mário tomam grandes
proporções, devido sua curiosidade e vontade de (re)conhecer o Brasil, inicialmente em São
Paulo, como fez Euclides da Cunha no início do século XX (ANDRADE, 1976, p. 516). Os
caminhos percorridos que irão contribuir para a bagagem e seguida um amadurecimento
político/artístico do intelectual, permitiram que Andrade tivesse suporte estrutural para

2
Cf ANDRADE, Mário. Paulicéia Desvairada (in) Poesias Completas. São Paulo, Martins; Brasília, INL, 1972.
p.p. 11-52.

860

V V
conduzir as atividades do DeCult e o inventário do patrimônio cultural do Estado de São
Paulo, no final da década de 1930 e início da década de 1940. Mas, até esse momento chegar,
ainda é possível apontar alguns elementos influenciadores da formação da rica bagagem
colhida pelo multifacetado Turista Aprendiz.
O carnaval será uma palavra-chave e determinante neste estudo, presente no
pensamento de Mário, especialmente por ser um momento de experimentação da prática
cultural brasileira. Constatamos o valor do carnaval no imaginário de Andrade através de
apontamentos realizados por ele, como por exemplo, em carta ao amigo Manuel Bandeira:
“Querido Manuel.
Depois perdoarás.
Foi assim. Desde que cheguei ao Rio disse aos amigos: Dois dias de
carnaval serão meus. Quero estar livre e só. Para gozar e observar. Na
segunda-feira, passarei o dia com Manuel, em Petrópolis. Voltarei à noite
para ver os afamados cordões.
Meu Manuel...Carnaval! Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a
energia...Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar...Fui
ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te
toda esta pornografia. Mas... Que delicia, Manuel, o carnaval do Rio! Que
delícia, principalmente, meu carnaval! Se estivesse aqui, a meu lado, vendo-
me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te
escrevo: ririas. (...) Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais
que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores,
perfumes, pandegas, alegria que seil!, nunca seria capaz de imaginar um
carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o
paulistanamente. Havia um que de neblina, de ordem, de aristocracia nesse
delírio imaginado por mim. Eis que sábado, às 13 horas, desemboco na
Avenida. Santo Deus! Será possível!...
Sabes: fiquei enjoado. Foi um choque terrível. Tanta vulgaridade.
Tanta gritaria. Tanto, tantissimo ridículo. Acreditei não suportar um dia
funçanata chula, bunda e tupinambá. Ultima análise: “Estupidez”!Assim
julguei depois de dez minutos que não ficaria meia hora na cidade. Mas, por
isso talvez que tanto tenho sofrido dos julgamentos levianos, jurei para mim
olhar sempre as coisas com amor e procurar compreendê-las antes de as
julgar. Comecei a observar. Comecei a compreender. Uma conversa
iluminava-me agora sobre uma ridícula baiana que há pouco vira. A pobreza
de uns explicava-me a brincadeira. Admirei repentinamente o legitimo
carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula, canta e
dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me intontece e me
extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem
sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um
samba num café. Entrei. Outra hora se gastou. Manuel: sem comprar um
lança-perfume, uma rodela de confeti, um rolo de serpentina, diverti-me 4
noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está
porque não fui visitar-te. (ANDRADE, s/d, 79)

A explicação do amigo foi enviada em 1923, dias depois de Mário ter experimentado o
carnaval carioca – influenciado por Manuel Bandeira, na Avenida Rio Branco. Inicialmente
cego do “julgamento leviano”, em seguida, perdido entre a multidão, enfeitiçado pela dança,

861

V V
pela música, admirado pela “pureza” do carnavalesco carioca. Esse acontecimento é
modificador da forma pela qual MA irá interpretar e absorver a cultura brasileira,
possibilitada de imensas variações, em desconhecidos territórios. Esse relato se tornou um
poema intitulado de Carnaval Carioca3. O esclarecimento do próprio Mário de sua
experiência é a seguinte:
“Eu conto no “Carnaval Carioca” um fato que assisti em plena
Avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra
moça que dançava melhor os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma
habilidade, mesma sensualidade, mas era melhor. Só porque os outros
faziam um pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta deles,
um automóvel que passava. Ela não. Dançava com religião. Não olhava pra
lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Aquela negra me ensinou o que
milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou
a felicidade.” (ANDRADE, 1988, p. 22).

Torna-se claro que a experiência do carnaval vai além de uma produção poética,
relaciona-se com o reconhecimento da cultura brasileira, e, o carnaval está intrínseco nessa
formação. Diz respeito às práticas populares na rua, abertas, livres de ingressos e cobranças
como nos bailes fechados e salões da alta sociedade. A rua é permitida a todos: caixeiro,
poeta, arlequim e o estrangeiro, todos, unidos na manifestação “puramente” brasileira. Saindo
da região Sudeste, cito o exemplo da experiência carnavalesca do modernista no nordeste, no
carnaval de alegorias pernambucanas:
“Tive ocasião de assistir, no Carnaval de Recife, ao Maracatu da
Nação do Leão Coroado. Era a coisa mais violenta que se pode imaginar.
Um tirador das toadas poucos respondedores coristas estavam com a voz
completamente anulada pelas batidas, fortíssimo, de doze bombos, nove
gonguês e quatro ganzás. Tão violento ritmo que eu não podia suportar. Era
obrigado a me afastar de quando em quando para...pôr em ordem o
movimento do sangue e do respiro.” (ANDRADE, 1987, p.177)

Na cidade de Recife a força da festa é alertada conforme a descrição de Mário, a


“violência do ritmo” indica “a força” e a energia que o fazer gerou em seu espírito e marcou
sua memória das experiências nas ruas. O carnaval é sem sombra de dúvidas uma importante
manifestação que envolve o imaginário e a rica bagagem de Mário de Andrade pela cultura
brasileira.
No ano de 1924, com destino ao interior de Minas Gerais (Ouro Preto, Mariana, São
João Del Rey, Belo Horizonte e Sabará), na Semana Santa, junto a alguns intelectuais4,

3
Cf ANDRADE, Mário. Clã do Jaboti (in) Poesias Completas. São Paulo, Martins; Brasília, INL, 1972. p.p.
110-120.
4
Na caravana partiram: Cendras, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Olívia Gudes,
Paulo Prado, René Thiollier e Godofredo da Silva

862

V V
Mário, pela segunda vez visita Minas e se depara com a obra de Aleijadinho, é provocado
pelo pensamento do movimento modernista brasileiro e por Blaise Cendrars5, nome de real
valor que auxiliou a condução do pensamento e da prática moderna no Brasil, na produção
intelectual do país (VIANNA, 2010, p. 97). Os intelectuais se apropriam das obras
encontradas ao longo do trajeto e do Barroco Mineiro6 passa a ser valorizado e reconhecido
(como uma produção, antes de tudo, “pura” e brasileira). Esse marco irá influenciar um
estudo, específico, de Mário de Andrade referente à obra de Aleijadinho (ANDRADE, 1965,
p. 13-46) na viagem batizada de “descoberta do Brasil”, apreciando e atribuindo valores à
obra mineira de Aleijadinho e todo o contexto, na qual o “gênio” estava inserido. A viagem
junto aos modernistas é de certa forma relatada em Clã do Jaboti. O contato com o escritor
Blaise Cendrars é fundamental para o crescimento artístico dos modernistas brasileiros, tendo
Mário defino a companhia do poeta estrangeiro como: “um dos melhores andadores que eu vi
(...). Que andar admirável o dele. (...) Um passo realista, franco, duma lealdade única.”
(ANDRADE, 1976, p. 173), após ter valorizado a prática do andar a pé, da lentidão e da
permissão que os corpos abertos potencializam à procura de uma incorporação de Brasil
moderno.
No final da década de 1920, consolidando-se uma experiência, o escritor viaja para o
norte e nordeste brasileiro coletando manifestações em diferentes espaços (ANDRADE, 1976,
p. 377). A viagem (de maio a agosto) batizada de: “viagem etnográfica”, percorreu a
Amazônia pelos rios Amazonas até a Bolívia e o Peru, Madeira e algumas cidades da região
Nordeste. Em dezembro de 1928 a março de 1929 percorreu com maior atenção as cidades
nordestinas colhendo manifestações da cultura popular e encontrando alguns amigos e
fazendo outros, como o episódio envolvendo o coqueiro Chico Antonio, artista popular, que
também ensina a prática do caminhar ao viajante (Idem, op. cit). As anotações e apontamentos
de Andrade nestas viagens podem ser encontrados em sua obra O Turista Aprendiz – 1975,
além é claro de influenciar e enriquecer outras obras, sobre tudo Macunaíma com contos,
nomes e práticas.
No início da década de 1930, Mário de Andrade, é um nome forte entre os intelectuais,
e, influenciador da produção artística/cultural, é possível concluir esse fato por meio da
quantidade de correspondências e publicações em jornais e revistas da época, mesma ocasião

5
Escritor suiço
6
Caldas Barbosa, Mestre Valentim, Leandro Joaquim.

863

V V
que foi pensado7 o Instituto Paulista de Cultura, brindando os sonhos culturais com vinhos
estrangeiros (DUARTE, 1985, p.49). Alguns anos depois (em 1934) chamariam MA para o
Departamento de Cultura da municipalidade de São Paulo, com cinco divisões no
organograma: Expansão Cultural, Bibliotecas, Educação e Recreio, Documentação Histórica e
Social e Turismo e Divertimento Público; Posto que assumiu em 1935, já com uma
experiência riquíssima, trazida desde 1922, além disso, o pensamento do modernismo não era
mais estético, passara a ser ideológico (CANDIDO, 1985, p. 14).
A incumbência da participação dos intelectuais no DeCult é estrategicamente
concebida, uma vez que a elite dominadora da capital paulista usaria a cultura e a educação
(criação da USP, Escola Livre de Sociologia, etc.) para reforçar a necessidade de São Paulo
estabelecer, além da eficácia econômica, uma peça chave: pensante e intelectual.
(SANDRONI, 1988, p. 75). Tendo MA e sua equipe a responsabilidade de trazer questões
relacionadas à formação do brasileiro; a cidade crescia desde a virada do século e não
existiam planos de cultura sistematizados (RUBIM; BARBALHO, 2007, p.15). Livros,
discos, pesquisas, folclore e parques. Com essas ações propuseram uma mudança. Modernizar
São Paulo não só na estrutura física, mas também na formação intelectual das pessoas que ali
se estabeleceram. O novo conceito de cultura atribuído pela equipe do recém criado DeCult,
também utilizado pelo SPHAN, semearia relações entre a cultura e o poder. Não podemos
deixar as ações articuladas pelo Departamento como meras ações sociais, a começar pelos
intelectuais que ocuparam os importantes cargos das novas políticas culturais paulista e
brasileira. A contribuição dos intelectuais permitiu status ao governo e a classe, que,
permaneceu no cenário intelectual produtivo, como categoriza Domingues (2008, p. 104)
refletindo a respeito dos pensamentos de Coutinho (2005) sobre a influência intelectual
brasileira na formação das políticas culturais, após a “construção da nação pelo Estado e não a
partir das massas populares” no início da década de 1930 (Ibdem, 2007, p. 176). Ficaram os
intelectuais a margem da produção e do campo artístico institucionalizado pelo Estado
(BARBALHO, 1998, p. 37).
Percebe-se, ao analisar, os projetos e ações do DeCult, uma preocupação dos gestores
em mapear e compreender a diversidade cultural da cidade de São Paulo, devido ao grande
número de estrangeiros estabelecidos na metrópole que se formava. No senso de 1940 foram

7
Por André Dreyfus, Antônio de Alcantara Machado, Tácito de Almeida, Antonio Couto Barros, Paulo Duarte,
Mário de Andrade entre outros.

864

V V
contabilizados em São Paulo um número total de 297.214 estrangeiros e 1.029.047 de
brasileiros8.
Não é a toa que o DeCult foi referência para instituições internacionais ligadas à
cultura (DUARTE, 1975, p. 134), pois, realizaram pesquisas e adotaram métodos que
potencializaram o reconhecimento de outras práticas culturais do território brasileiro
(SANDRONI, 1988). Isso é evidenciado quando analisadas as atividades dos Parques Infantis,
como nos desenhos produzidos pelas crianças (ITAU CULTURAL, 2013). Entendida a
preocupação em conhecer as crianças e sua descendência. Também nos Parques, as atividades
ao ar livre que objetivavam a saúde física e higiênica das crianças eram com temáticas
folclóricas, baseadas nas errâncias e na bagagem colhida por Mário de Andrade em suas
viagens, como já dito antes, ao norte e nordeste brasileiro. O carnaval, cuja temática já foi
abordada neste estudo e é uma peça fundamental para compreensão da posição do observador
e do experimentador moderno, também está presente no Departamento de Cultura, na Divisão
de Divertimento Público, a atividade, em 1936, foi criticada pela oposição devido aos gastos
extras na festa popular (DUARTE, 1985).
Tendo em vista a importância do DeCult na inauguração das políticas culturais
brasileiras pontuemos o Curso de Etnografia organizado por Mário com a colaboração de
Dina e Claude Lévi-Straus. É possível ressaltar a preocupação dos intelectuais em formar
pesquisadores que buscariam outros espaços de produção da cultura brasileira, da forma que
discursa Mário de Andrade: “colher, colher cientificamente nossas manifestações”
(SANDRONI, 1988, p. 122), credita, ele, em uma valorização da produção interna, instigando
o uso científico dessas manifestações. Buscar as vozes distantes do eixo Rio - São Paulo
configura certa curiosidade em compreender e explicar a formação polifônica (SANDRONI,
1988, p. 29; DOMINGUES, 2014) cultural do Brasil. Para isso devemos nos atentar para o
local que se produz as diretrizes da valorização dessas vozes (BOURDIEU, 1989) e, até onde
é dada a importância da diversidade que foi colhida e usada em atividades da gestão pública,
inicialmente do Departamento de Cultura e em seguida através do Patrimônio Histórico –
SPHAN. A segunda instituição, de âmbito nacional era uma perna do Ministério de Educação
e Saúde, no auge da gestão do DeCult em 1936 foi solicitado por Gustavo Capanema ao
diretor do departamento paulista um anteprojeto de criação do Serviço de Patrimônio Artístico
Nacional (SPAN) a mediação ficou a cargo de Rodrigo Mello Franco, que assumiria o
Serviço durante longos anos. Antes disso, já havia esforços de institucionalizar a salvaguarda

8
Cf. http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_brasil.php

865

V V
do patrimônio, inicialmente, no início da década de 1920 com o professor Alberto Childe
redigindo um anteprojeto para elaboração da lei em defesa do patrimônio, vedada, pois
“atrelava a proteção à desapropriação.”, da mesma forma que os projetos apresentados por
Luis Cedro, Augusto de Lima e José Vanderlei também foram barrados (FONSECA, 2005, p.
95; CALABRE, 2009, p. 33), em âmbito Estadual foram criadas instituições em Minas Gerais
(1926), Bahia (1927) e Pernambuco (1928), os apontamentos dos intelectuais geraram
manifestações entre as classes dominantes. Em 1934, um ano antes do surgimento do DeCult,
foi criada no Rio de Janeiro, sob os cuidados do integralista, diretor e professor da Escola de
Museologia do Museu Histórico Nacional – Gustavo Barroso - a Inspetoria de Monumentos
Nacionais, tendo como referência as lições patrimoniais da França, introduzidas no curso de
museologia no país. As cidades mineiras, mesmo sem um órgão específico já haviam sido
tombadas pelo decreto nº 22.928 de 12 de julho de 1933, dado o desespero em salvar os
casarões e igrejas de Minas. Pelas modificações jurídicas na constituição de 1934 o projeto de
salvaguarda do patrimônio saiu do papel, e, no final de novembro foi promulgado o decreto-
lei nº 25 (FONSECA, 2005). O intelectual visionário, Mário de Andrade, percebeu que era o
momento exato de projetar o Departamento Histórico e Artístico de São Paulo, que estaria
ligado ao Instituto Nacional de Cultura (obviamente com a vitória de Armando de Salles para
presidência da republica), o modernista já tinha começado sua romaria pelo interior do Estado
de São Paulo e relatou em carta, datada de 28 de novembro de 1937, ao diretor do SPHAN as
atividades da pesquisa:
“Por outro lado, e com auxílio do Departamento de Cultura da
Municipalidade de São Paulo, que pôde tomar ao seu cargo o trabalho,
enviou-se um milheiro de circulares por todo o Estado, a autoridades civis,
eclesiásticas, bem como particulares da burguesia, solicitando indicassem
nome e residência dos museus e colecionadores particulares que
conhecessem (...). Várias respostas já chegaram, de prefeitos do Interior,
bastante desilusórias por enquanto. (ANDRADE, 1981, p. 113)

Em contraponto a referida carta acima, trago, em primeira mão, uma das respostas
obtidas pelo diretor do DeCult e técnico do SPHAN, do prefeito da cidade de Atibaia, João
Conti, datada do mês de maio do mês ano.
6/maio/1937
“De posse de sua prezada carta de 30 de abril p.p. tenho a informa-lo, que
com muito prazer me ponho a disposição de V.S. e do Departamento de
Cultura, para coligir dados para a publicação de um trabalho sobre as
Congadas de Atibaia. Assim é que, seguindo a orientação da aludida carta, já
me pus em contato com os chefes dos "termos" possuindo já um pequeno
cabedal para esse fim. Sendo em dezembro a época das exibições, irei
trabalhando daqui e, quando for tempo, entender-me-ei com V.S. para a
gravação pretendida*. Espero que V.S. me auxilie nos esclarecimentos que

866

V V
julgar necessário./ Estudioso cá das coisas de minha terra cidade que o
grande Amadeu Amaral chamou de " paraizo quase possível na terra..."
ofereço os meus prestibus a V.S. e ao Departamento em tudo o que lhe possa
ser útil à collectividade./ Esperando que V.S. nos louve, com uma visita,
afim de conhecer o paraízo terrestre. /aqui fica o João Conti

Colocando-se a disposição de Mário de Andrade, o prefeito João Conti responde


positivamente as “circulares” assim definidas. Envia ainda ao DeCult as vestimentas das
Congadas de Atibaia, que foram registradas pela equipe do Departamento de Cultura em uma
das festividades do município e, compõem o acervo do IEB/USP. Cabe questionar o que era
considerado interessante e não “desilusório” como em carta ao diretor do SPHAN. O trabalho
realizado por Mário para inventariar o patrimônio paulista foi uma “linda tacada”,
pontualmente certeira que forneceu relatórios a Rodrigo Mello Franco e aumentou o acervo de
pesquisas do DeCult, para futuras análises dos intelectuais da instituição da paulista.
Apesar dos esforços em dinamizar e reconhecer a diversidade da produção cultural
brasileira na condução de uma instituição referência por buscar a “cultura tão essencial quanto
o pão” (BARBALHO, 2007, p. 16), ainda assim, conclui-se que existem vácuos dentro das
influências políticas no que se refere à prática intelectual de Mário de Andrade e a
insuficiência política, mesmo demonstrada a curiosidade pela análise da “polifonia de vozes”.
Ainda com força no meio intelectual o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo se
desmanchou, como todo que é sólido. O grande entusiasmo do crescimento capitalista e das
estratégias econômicas irá ditar as regras do jogo e apontar a posição da classe intelectual
brasileira. As décadas de 20, 30 e 40 são marcadas pelo boom metropolitano, da capital e do
capital e a transição do modelo agrário pelo modelo industrial, sacas de café são queimadas
no porto de Santos a mando de Getulio Vargas, o mesmo irá articular junto às instituições
culturais vinculadas ao e MES, inicialmente chefiado por Francisco Campos e em seguida por
Gustavo Capanema até 1945, a função dos intelectuais em aproximar as classes subalternas no
reconhecimento pela identidade nacional; Não é a toa que o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) foi criado. Independentemente do empenho dos intelectuais a força que os
dominava era maior e arrasou as possibilidades do Departamento de Cultura e manteve no
SPHAN durante longos anos o mesmo diretor. A atrofia nos projetos dos intelectuais é
evidente no que tange as ações das políticas culturais brasileiras, de interesse. Apropriados
pelo Estado Novo a classe intelectual foi subordinada a setores com baixo orçamento
(ALVARENGA, 1983), resumindo-se a um cargo público e nenhuma influência direta, já que
o poder era centralizado. Após o “suicídio” no DeCult, Mário se muda para o Rio de Janeiro
onde ocupa uma vaga de catedrático na Universidade do Distrito Federal, onde dirigiu o
867

V V
Instituto de Arte e Filosofia, da mesma forma que o Departamento se desmanchou, a
Universidade é desfeita. MA, ainda como assistente técnico, é convidado também a compor o
Instituto Nacional do Livro, no cargo de diretor da Seção de Publicações (CASTRO, 1989, p.
27).
Em momento algum exponho aqui uma desvalorização das errâncias de MA, pelo
contrário, seus esforços e buscas, acabaram “dando conta de todo o universo da produção
cultural em sentido abrangente (esporte, turismo, culinária, design, por exemplo) e incluindo
em suas preocupações todas as camadas da população, inclusive a infantil.” (BOTELHO,
2007, p. 112). Porém, as forças políticas que o envolveram foram mais fortes. O DeCult não
foi capaz de ser renovado e mantido em funcionamento. O repertório e bagagem de MA,
colhidos ao longo dos anos de dedicação aos estudos e pesquisas demonstra o grande artista e
intelectual que foi, e, é exatamente neste ponto que não podemos esbarrar sem analises, o
Mário artista é um, o Mário político é outro, obviamente com uma interseção, mas se fazem
presentes de uma forma única. O Mário político absorve todas as observações das errâncias
espaciais do Andrade artista, fundindo uma posição política na gestão do DeCult e na
colaboração para o governo federal, no SPHAN.
A trajetória que percorremos não foi simplesmente uma mera histografia de MA,
passou, pelos espaços de suas transitações e errâncias, fonte de saber e crítica. Na posição
artística de Mário transparece o teor político de seus discursos construídos, principalmente,
em volta da arte. Como artista foi um homem público, carregando assim posições políticas.
Podemos reconhecer o Mário de Andrade político no DeCult (gestor público), como diretor da
instituição, consequencia de jogos e disputas dentro do dissolvido PD. A postura que
carregou, alimentou e amadureceu desde as “ovadas” no Theatro Municipal de São Paulo
(CASTRO, 1989, p. 64), em 1922, relacionando a produção cultural no Brasil com a maneira
que criticavam o país.
Da forma que experimentou e registrou as manifestações carnavalescas, (CORREA;
ANDRADE, 2009, p. 55; ANDRADE. s/d, p. 79; ANDRADE, 1987, p. 177; PICHEU, 2011),
“polifônicas”, estas, ainda não haviam sido objeto de estudos dos intelectuais que se
esforçavam em refletir o Brasil através do folclore e das práticas populares, como Silvio
Romero e Camara Cascudo. A vivência carnavalesca de Mário demonstra sua vontade e
preocupação de reconhecer e entender as práticas culturais na vastidão territorial brasileira. O
“puro carnavalesco” é da rua, está na multidão alegorizada de divertimento público,
substantivo composto da Divisão do DeCult, em carta ao amigo já citado Camara Cascudo,

868

V V
MA deixa transparente sua opinião em relação a pesquisa de campo: “Não faça escritos ao vai
e vem da rede, faça escritos das bocas e dos habitos que você foi buscar na casa, no mucambo,
no antro, na festanca, na plantacao, no cais, no boteco do povo.’’ (ANDRADE, 2000, p. 17).
O carnaval brasileiro dialoga com os apontamentos de Andrade, no que afirma
Canclini: “Em vários casos, o modernismo cultural, em vez de ser desnacionalizador, deu o
impulso e o repertório de símbolos para a construção da identidade nacional.” (CANCLINI,
2005, p.81). O ânimo em aprender e inventariar, a dinâmica da produção cultural do Brasil, é
apropriada pela estratégia política que promove a centralização do poder com o populismo,
tendo em suas estratégias os intelectuais, mesmo, grande parte deles dialogando com o
pensamento de esquerda, como Mário de Andrade, Carlos Drummond, Manuel Bandeira,
Paulo Duarte e etc.. Assim, promovendo discussões a cerca da cultura brasileira, com um
recorte das manifestações populares pertencentes e influenciadoras do Brasil, é que MA
percorre em errâncias e toma nota de diversos momentos artístico/culturais como: Carnaval,
Chico Antonio (coqueiro), Aleijadinho (artista barroco), Congada, Moçambique, Lundu,
Maracatu, Samba Rural, o Sítio Santo Antonio (São Roque) e a referência Barroca Paulista,
que tomou boa parte dos últimos dias de vida do poeta – Padre Jesuíno do Monte Carmelo
(artista barroco). Manifestações relacionadas a miscigenação no Brasil, em todas elas, Mário
de Andrade sintetiza a importância da presença do negro na formação da cultura brasileira:
“Os africanos são fortemente plásticos e musicais. Na música é que eles conseguiram se
tornar manifestação permanente de arte.” (ANDRADE, 1975, p. 18).
O repertório da cultura brasileira muito que deve a figura de Mário de Andrade, pela
sua responsabilidade e atuação. A luta e a busca pela diversidade (CANCLINI, 2005, p. 69)
foram despertadas em suas coletas e inventários pelo interior do Brasil, como forma de
extensão do gabinete intelectual. Conclui-se que a bagagem de Mário, embora grandiosa, não
deu conta de manter as atividades do DeCult, devido a interesses políticos e oposições das
oligarquias, tendo a cultura uma posição estratégica e nacionalista nesta primeira fase,
“heróica”, dos processos de gestão das políticas culturais brasileiras. Pelo SPHAN, realizou
um “trabalho de fome” ao percorrer os caminhos do Estado de São Paulo e inventariar o
patrimônio cultural, material e imaterial, assim como propôs no anteprojeto, influenciado pela
“viagem etnográfica”.

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871

V V
OSCAR NIEMEYER: TECENDO IDENTIDADES
SUBSÍDIOS PARA AS POLÍTICAS CULTURAIS COM FOCO NO TERRITÓRIO
Luiz Augusto F. Rodrigues1

RESUMO: Analisando o livro iemeyer poète d’architecture do francês Jean Petit, faz-se
uma abordagem da identidade brasileira a partir da contribuição de Oscar Niemeyer para sua
constituição. Estabelece-se um paralelo com outro representante do modernismo brasileiro:
Mário de Andrade. O ensaio caminha pelos campos da Arquitetura, da Literatura e da Análise
do discurso, e os entende em suas bases de construção de imaginários que permeiam a
produção do território, tema cada vez mais presente e estruturante da construção de políticas
culturais.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade brasileira – Arquitetura modernista – Análise do discurso


– Cultura e território

Participando recentemente da equipe de pesquisadores do recém-implantado


Observatório de Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro – OBEC/RJ, uma parceria
entre o Ministério da Cultura e a Universidade Federal Fluminense - me vi remexendo antigos
escritos, ainda não publicados. Muito me impressionava, desde o início da década de 1990
quando desenvolvia minha tese de doutoramento, o relevante e importante papel que a obra
do arquiteto Oscar Niemeyer representava, não apenas na divulgação da arte arquitetônica
moderna/modernista brasileira e internacional, mas também no sentido de que a importância
da obra de Niemeyer houvera sido essencial para o fortalecimento da própria valorização da
identidade artística brasileira, mesmo e, sobretudo, entre nós mesmos uma vez que vinha
avalizada internacionalmente.
A produção do espaço contemporâneo, a meu ver, segue ainda as mesmas bases do século
passado, indicando a modernidade ainda como um projeto estruturante e inacabado
(HABERMAS, 2002). E mais: a produção do espaço tem sido regida por preceitos
homogeneizantes, mesmo que travestidos de diversidade (RODRIGUES, 2001). E tendo
como foco a celebração da cidade espetáculo, com suas imagens e “espaços luminosos”
(SANTOS, 1997; 1999). Neste sentido, a cidade contemporânea vem produzindo espaços
marcados por sua capacidade de atratividade (para o turismo, para o capital empresarial etc.),

1
Arquiteto/urbanista, doutor em história, professor do Departamento de Arte da Universidade Federal
Fluminense. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades. Contatos:
luizaugustorodrigues@id.uff.br

872

V V
e as formas artísticas calcadas em grandes ícones da arquitetura mundial a base de suporte
dessas produções. Os exemplos no mundo e no Brasil são vários, mas para me ater ao maior
ícone da arquitetura brasileira o melhor exemplo é a cidade de Niterói, que vem sendo
marcada pela “grife” Oscar Niemeyer. Políticas urbanas se confundindo com políticas
culturais municipais, enfim: a cultura dando suporte á produção do território.
Partindo destes pressupostos, vejo como um dos principais desafios das políticas públicas de
cultura a possibilidade de dinamizar a dimensão econômica da cultura, sem colocar em risco
ou em prejuízo suas dimensões simbólicas e cidadãs. A temática do turismo cultural, nesta
perspectiva, busca observar a potencialidade da dinâmica econômica conjugada com o
fortalecimento das práticas culturais (enquanto algumas expressões de arte coletiva urbana) e
das práticas de sociabilidade. Elegi, para minhas reflexões sobre este processo, aproximações
iniciais com a construção/consolidação do chamado “Caminho Niemeyer”, na cidade de
Niterói/RJ.
A partir destes estudos, comecei a revisar antigos textos e, como apontado, resolvi por
compilar parte de uns escritos que fiz a partir de um livro francês dedicado ao nosso poeta-
arquiteto, e propor as reflexões a seguir.
Em iemeyer poète d’architecteture, uma belíssima edição que empresta suas páginas
para homenagear a obra de Oscar Niemeyer, Jean Petit (1995) dá-nos a sua visão deste artista.
Mais do que a sua visão, poder-se-ia dizer que aí se encontra a visão de todos sobre o
arquiteto brasileiro. O autor francês descreve Niemeyer, ressaltando seu amor pelo moderno -
retratado em Brasília -, e pelo antigo - o Rio de Janeiro, com suas paisagens naturais a tecer
sinuosas e sensuais curvas que emolduram os espaços edificados, assim como o charme das
cariocas, do futebol e da bossa-nova.
J. Petit ilustra-nos, também, a característica social do homem Niemeyer, indivíduo de
práticas e pensamentos de esquerda que fazem com que sua arte volte-se a projetos de
Catedrais, ou de sedes de Partido Comunista com a mesma paixão.
Segue o autor a dizer-nos que em Niemeyer podemos perceber o brasileiro:
Tout est simple et compliqué à la fois. Pas facile de penser le Brésil, tendre et violent, tout en
contradiction. Il faut le vivre, comme il faut vivre Oscar, charmeur, sensible, bouillonnant et incertain.
Peut-être la fusion de trois races, noire, blanche et indienne explique-t-elle la douceur des rapports
humains, la sensibilité, l’opiniâtreté et la fierté des brésiliens.
Vous devez comprendre le Brésil pour comprendre Oscar, [...].2

2
PETIT, 1995, p. 15.
Tradução livre: Tudo é simples e complicado ao mesmo tempo. Não é fácil pensar o Brasil, terno e violento,
tudo em contradição. Devemos vive-lo, como deve vive-lo Oscar, encantador, sensível, borbulhante e incerto.

873

V V
Jean Petit, me parece, trouxe à tona neste trecho questões referenciais da identidade
brasileira. Reportemo-nos a S. B. de Holanda, a Roberto DaMatta, a Darcy Ribeiro e a
Contardo Calligaris.
Por Sergio Buarque de Holanda (1978), o homem brasileiro traz em si a marca da
cordialidade. Os desdobramentos de tal visão são vários. Da cordialidade vamos, no limite,
desembocar na ideologia do favor. O assunto tem sido explorado por muitos, dos quais
destaco Roberto DaMatta (2001). Como ilustra este antropólogo, somos o amálgama da
camaradagem com o arbítrio. Nossas relações pessoais são marcadas por esse espírito de
solidariedade, de troca de favores (há os que nisso vêem arquétipos da sociedade ibero-
americana), onde o que importa é menos a pessoa em si do que sua teia de relações. Tal
camaradagem, no entanto, desemboca no arbítrio, no autoritarismo de quem tudo pode de
acordo com seus graus de influência. De tudo fica um pouco, e não restam dúvidas de que
parte de nossas características sustentam-se na positividade da cordialidade.
É interessante, outrossim, somar as reflexões de Jorge Forbes (1998), para quem na
cordialidade do brasileiro escamoteia-se a negação da auto-percepção. O “homem cordial” faz
desse voltar-se para o outro, a negativa de lidar com seus próprios desejos. Nas palavras do
autor, o altruísta é no fundo um grande egoísta.
Somos um povo de contrastes, conforme afirma Darcy Ribeiro (1995). Contrastes que
se fundem na constituição de algo novo. Não podendo ser índios, nem reinóis o elemento
africano desdobrou-se como característica própria desse povo “mulato”. Povo novo, como
afirma e reafirma Ribeiro. Pensemos um pouco nessas ideias de Darcy Ribeiro, pois o novo
pode pressupor sem tradições. Esse conflito entre o novo, a página em branco, e o
assentamento de raízes, a memória, a tradição original, cremos, assume a característica do
conflito mesmo, sempre em oposições excludentes. Ora nega-se esse novo como característica
(e toda a potencialidade positiva que nele possa ser vista), ora nega-se a tradição (aquela
capaz de dar-nos marcas próprias e profundas). Sensibilidade, incerteza, obstinação e vigor...
são alguns desses contrários com que Jean Petit nos caracteriza.
C. Calligaris (1991) fundamenta essas brechas entreabertas de contrários como uma
dificuldade que o brasileiro enfrentou desde sua origem colonizadora. Não querendo/podendo
ser colonos nem colonizadores, restou-nos a ambiguidade de quem, para conseguir “um lugar
ao sol” transita entre o dilema de tornar-se colonizador para escapar da submissão de ser
colonizado.

Talvez a fusão das três raças – negra, branca e indígena - explique a suavidade das relações humanas, a
sensibilidade, a teimosia e o orgulho dos brasileiros. Você deve entender o Brasil para entender Oscar, (...)

874

V V
Esse explorar sem limites é como que uma fuga. E nossa cordialidade é uma auto-
defesa.
O que extrairmos das reflexões aqui tecidas? Ambiguidades na constituição da
identidade brasileira... Diria mais, somos permeados por uma fraca identidade, suscetível de
virarmos ora para um lado, ora para seu oposto: “tendre et violent, tout en contradiction”.
É essa a imagem que estabelecem sobre nós. E será essa, também, a nossa auto-
imagem?
O que estou tentando estabelecer é que não existe uma auto-imagem clara no homem
brasileiro, e que ele deixa-se perceber pelo que ideologicamente é levado a.
Voltando à iemeyer poète d’architecture, destaco o trecho que segue ao já citado:
Vous devez comprendre le Brésil pour comprendre Oscar, vous devez
comprendre le vrai sens de ‘l’abraço’, cette sorte d’accolade que l’on se donne
en se tapant dans le dos chaque fois que l’on se rencontre, vous devez
comprendre ces maisons ‘a casa é sua’, la maison vous appartient, vous devez
comprendre le gaspillage et l’austérité, vous devez comprendre le ‘futebol’,
passion brésilienne et savoir que Juscelino Kubitschek alors Président de la
République a interrompu ses consultations lorsque le Brésil a gagné la Coupe du
monde en 1958 tandis que les églises retentissaient d’actions de grâces à cette
occasion, vous devez comprendre la ‘feijoada’, le plat national de haricots noirs,
lard, épices, riz, légumes verts et oranges, vous devez comprendre le Carnaval
de Rio avec ses morts et ses blessés, vous devez comprendre la ‘macumba’,
cette cérémonie issue de rites africains et de magie noire, vous devez
comprendre, deux pas à droite, deux pas à gauche, la samba au rythme des
tambours, vous devez comprendre le ‘sertão’ sens limites, polygone de la
sécheresse, vous devez comprendre que 28% de la population totale du brésil est
analphabète et qu’un enfant sur cinq ne va pas à l’école entre sept et quinze ans,
vous devez comprendre les ‘pixotes’, enfant de la rue abandonnés à eux-mêmes,
vous devez comprendre que plus de la moitié des brésiliens vivent en dessous du
seuil de la pauvreté, vous devez comprendre que le Brésil est la dixiène
puissance économique mondiale, vous devez comprendre que c’est bien Paul
Claudel que a dit, parlant du Brésil: ‘C’est ici que j’ai découvert le côté rigolo de
l’existence’ et que Le Corbusier, fraîchement débarqué du ‘Graf Zeppelin’,
traversa Rio en fiacre avec deux belles négresses, vous devez comprendre toutes
les aventures et savoir que le Brésil est une planète, vous devez comprendre
qu’Oscar Niemeyer est brésilien [...]3

3
Ibid. p. 15/16.
Tradução livre: Você deve entender o Brasil para entender Oscar, você precisa entender o verdadeiro significado
de 'abraço', este tipo de saudação que é dado, tapeando nas costas sempre que nos encontramos, você precisa
entender a expressão 'a casa é sua', a casa pertence a você, você deve entender o desperdício e a austeridade,
você precisa entender o 'futebol', a paixão brasileira e saber que Juscelino Kubitschek, então presidente da
República interrompeu suas audiências quando o Brasil ganhou a Copa do mundo em 1958, e que as igrejas
interromperam as ações de graça naquela ocasião, você precisa entender a 'feijoada', o prato nacional feito com
feijão preto, toucinho, especiarias, arroz, couve e laranja, você deve entender o Carnaval do Rio com seus mortos
e seus feridos, você deve entender a 'macumba', esta questão dos rituais africanos e cerimônia de magia negra,
você deve entender, dois passos para direita, dois à esquerda, o samba ao ritmo dos tambores, você precisa
entender os significado de 'Sertão' sem limites, polígono da seca, você deve entender que 28% do total da
população do Brasil é analfabeta e que uma em cada cinco crianças não vão à escola entre as idades de sete e
quinze, você precisa entender os 'pixotes', crianças de rua abandonadas a próprias, você precisa entender que
mais da metade dos brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza, você deve entender que o Brasil é a décima

875

V V
O texto supracitado suscita-nos vários elementos de reflexão. Em primeiro, atentemo-
nos para a forma como o autor apresenta o Brasil. Ressalte-se tratar de obra francesa escrita
para seus conterrâneos. E como é o país para este estrangeiro? Lugar de intimidades: a
camaradagem dos abraços e de ‘a casa é sua’; dos esbanjamentos e da austeridade, austeridade
esta matizada pelo futebol, pela macumba e pelo samba. País de contrários e de contrastes.
País que mescla pobreza e pujança. Secura e gracejo. E é nesse contexto de contrários que
surge o ‘poeta’ maior: Niemeyer.
O texto aponta sempre as dualidades. O ‘abraço’ transforma o tapa de ato agressivo
em ternura, tornando-se signo de nossa camaradagem.
A ‘casa’ é transformada de lugar de intimidade em espaço aberto às demais pessoas.
São apresentados vários prós e contras, mas se deixa aberta a brecha das características
positivas.
“Vous devez comprendre qu’Oscar iemeyer est brésilien...”, assim justifica o autor
os contrastes desse arquiteto.
Niemeyer foi capaz de inovar a arquitetura modernista ao fazer a síntese entre forma e
função. O lema da época era ‘a forma segue a função’ - preceito universal a apostar na
racionalidade geometrizante dos ângulos retos. A brasilidade de Niemeyer permitiu juntar ao
projeto modernista a suavidade das curvas, a surpresa das novas formas.
Podemos retomar aqui certas características da identidade brasileira. Retornemos a
traços bem distantes, presentes na formação do mundo moderno. As raízes medievais
apontavam uma dualidade de influências: a visão tomista4 (visão coerente e hierárquica do
universo, mesclando razão e fé), e a visão occamista5 (de organização escalonada) a permear
o perfil dual das civilizações marcadas prioritariamente por cada uma delas - o mundo ibérico
pela primeira e o mundo inglês pela segunda. Esta é a tese sustentada por Richard Morse
(1988) em O Espelho de Próspero.
Segundo este autor, “isso tem a ver com as civilizações da América. Pois os ingleses
compraram o pacote ‘moderno’, convertendo-se talvez nos mais ‘modernos’ dos europeus, a

potência econômica do mundo, você precisa entender o lado bom quando Paul Claudel disse, falando do Brasil:
'É aqui que eu descobri o lado engraçado da vida' e quando Le Corbusier pousou com o Graf Zeppelin e
atravessou o Rio de táxi com duas belas mulatas, você deve compreender todas as aventuras e saber que o Brasil
é um planeta, você deve entender que Oscar Niemeyer é brasileiro [...]
4
Relativo a São Tomás de Aquino (1225-1274)
5
Relativo a William de Occam (c. 1287-1347)

876

V V
despeito, ou devido ao fato, de terem evitado a elegância racionalista francesa e a metafísica
compensatória alemã. Os ibéricos foram mais cautelosos.” (MORSE, 1988, p. 29)
Os anglo-americanos ficaram com o pragmatismo racional e os ibero-americanos com
a tensão entre a razão e a emoção. Poder-se-ia dizer que ao invés de a razão pela razão
‘optamos’ por a razão pela paixão. Estariam aí certas marcas da busca do gozo?6
Vários autores, alguns já citados, consideram que as contradições presentes no homem
brasileiro refletem uma falta de unidade, ou mesmo falta de autenticidade. Se o universo
simbólico nos é possibilitado pela linguagem, na linguagem estão as nossas possíveis
contradições; é através dela que devemos buscar nossas ‘inautenticidades’, buscando
compreendermo-nos como brasileiros.7 Na busca da construção de nossa identidade outro
expoente maior do modernismo, Mário de Andrade, vem juntar-se a Oscar Niemeyer no
estabelecimento de uma nova linguagem: neste a arquitetônica e naquele a literária.
Antonio Carlos de Brito, em uma análise sobre Mário de Andrade, utiliza uma feliz
denominação ‘Alegria da casa’: “quando observamos a vida e a criação de Mário, seu jeito de
trabalhar, suas razões e atitudes básicas, logo notamos a convivência contraditória, tensa e
instável, mas formando lógica, de termos aparentemente excludentes: a lado calculado e o
lado espontâneo; o mediato e o imediato; o reflexivo e o ingênuo.” (BRITO, 1980, p. 108).
Poderíamos acrescentar que dessa espontaneidade programada que o autor propõe, que
dessa “coexistência irresolvida e fecunda” faz-se a síntese entre intenção e acaso. Junta-se à
razão ‘científica’ boa dose de intuição e sensibilidade. Alerta o autor: “em Mário de Andrade,
e tal como a crítica já registrou, à procura de sua própria identidade e de sua língua pessoal,
capaz de exprimir sua verdade subjetiva singular, passa pelo problema mais íntimo da procura
e descoberta da identidade nacional”.(BRITO, ibid, p. 111). O que vai, diretamente, na
direção das reflexões de Calligaris.
É na direção de certa falta de autenticidade que aponta muito da obra de Mário de
Andrade. Veja-se Macunaíma, por exemplo. Nosso herói sem caráter. Devemos ler esse ‘sem
caráter’ como sem características próprias, sem identidade.
E qual o papel da obra? Ir dotando o personagem, e o leitor, de referências da cultura e
das tradições, capazes de ir tecendo e arrematando esse sentido de ‘falta’. ‘Criando’
identidade própria.

6
Refere-se, aqui, ao sentido estabelecido pelo psicanalista Jacques Lacan, para quem o gozo e o desejo de gozo
máximo tece as bases da estrutura do inconsciente humano, do imaginário. Para lacn, a realidade é estruturada a
partir da tríade real/simbólico/imaginário. Para mais referências sobre o tema, ver RODRIGUES (2010).
7
Sobre o assunto, ver alguns capítulos do meu livro Universidade e a fantasia moderna (RODRIGUES, 2001).

877

V V
Em que consiste o termo ‘alegria da casa’? Com a palavra o próprio Mário de Andrade
(apud BRITO, ibid, p. 115), em carta a Paulo Duarte:
Esta alegria não consiste especialmente em ser a pessoa alegre, otimista,
anedotística, da família, não. Consiste essencialmente a gente ser a [...]
movimentação familiar, a pessoa que de repente tem vontade de comer um
pato, por exemplo, ou de repente tem coragem de dizer sobre um parente
qualquer uma verdade deslumbrante que toda família precisava dizer, mas
não tinha coragem dentro do convencionalismo familiar [...]. O alegria da
casa é esse que trás pro convencionalismo familiar a possibilidade de evasão
[...].

Ora, podemos juntar mais um ao rol dos ‘alegria da casa’: Oscar Niemeyer.
Voltemos a Jean Petit.
Chama-me a atenção que seu texto parece querer dizer-nos que embora seja o artista
que é, Oscar Niemeyer é um homem comum, com seus amores, seus entusiasmos, inquietudes
e medos. Deveria ser diferente? Que fantasias sustentam esse dizer do autor? O ser artista é
incompatível com o ser humano? A estranheza, por certo traz em si elementos que querem ver
no homem um deus.
Neste final, volta-se à tona da problemática inicial: as ambiguidades (paradoxos?) que
o autor francês percebe em Oscar Niemeyer. Este que, apesar das qualidades que o
distinguem, é um homem comum, com seus amores, seus entusiasmos e suas incertezas. Seus
conflitos são por ser brasileiro; o que há de homem no deus é por conta disso. Devemos
compreender o Brasil para compreender Niemeyer... e devemos compreender que Niemeyer é
brasileiro... Poderíamos acrescentar: Devemos compreender Niemeyer para compreender o
Brasil... Devemos reconhecer que o Brasil é, também, um pouco Niemeyer..., que foi ele que
nos deu a cara que temos no exterior... Somos o berço poético da arquitetura modernista
através deste seu poeta maior...
Jean Petit termina a biografia introdutória de Niemeyer a dizer:
A 87 ans, Oscar Niemeyer est certainement le plus grand architecte vivant de
notre époque. Il a construit des grand ensembles, des hôspitaux, des clubs,
des églises, des théâtres, une vile entière à laquelle son nom restera attaché.
Il pourrait, s’il le voulait, contruire n’importe où, vivre une vie exempte de
soucis, mais c’est au Brésil qu’il préfère contruire. Au Brésil où il conserve
une attitude sans équivoque face à la misére et à l’injustice. Et l’aventure
d’Oscar Niemeyer se poursuit avec sa recherche de formes nouvelles, son
invention, sa richesse d’expression, sa pureté, son idéalisme...
‘Eis Oscar’, voici Oscar. On ne peut le raconter. Un nom de pays le résume:
Brésil. Un mot dit tout de lui: bonté. C’est un homme bon.8

8
PETIT, J. Op. cit. p. 16.
Tradução livre: Aos 87 anos, Oscar Niemeyer é certamente o maior arquiteto vivo do nosso tempo. Ele construiu
grandes conjuntos, hospitais, clubes, igrejas, teatros, uma cidade inteira à qual seu nome permanecerá sempre

878

V V
Neste trecho conclusivo fica evidente a associação de imagens, de características, de
traços identitários que é estabelecida. Brasil - bondade. Niemeyer - homem. E ei-los juntos no
Olimpo de deuses e heróis. De homens semideuses com o poder catártico de construir
subjetividades. De tecer identidades...

Referências bibliográficas:
BRITO, Antonio Carlos. Alegria da casa. In: Revista Discurso, nº 11 - Revista do Depto. de Filosofia
da USP. São Paulo, 1980. p. 107-123.

CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil! São Paulo: Escuta, 1991.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

FORBES, Jorge. O homem cordial e a psicanálise. 1998. Disponível em


http://www.jorgeforbes.com.br/br/artigos/homem-cordial-e-psicanalise.html. Acessado em
26.fevereiro.2015

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas. São Paulo: Cia. das
Letras, 1988. p.29.

PETIT, Jean. iemeyer poète d’architecture. Paris/Lugano: Bibliothèque des arts/Fidia edizioni d’arte,
1995.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

RODRIGUES, Luiz Augusto F. Universidade e a fantasia moderna: a falácia de um modelo espacial


único. Niterói, RJ: EdUFF, 2001.

RODRIGUES, Luiz Augusto F. Do Pensamento às Palavras: Instrumento metodológico para a análise


dos discursos. Cadernos UniFOA, n. 12, abril 2010. p. 87-95.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo: razão e emoção. São Paulo: HUCITEC,
1999.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico científico informacional. São
Paulo: HUCITEC, 1997.

ligado. Ele poderia, se quisesse, construir em qualquer lugar, vivendo uma vida livre de preocupações, mas é no
Brasil que ele prefere construir. No Brasil, onde mantém uma atitude inequívoca para com a miséria e a injustiça.
E aventura de Niemeyer continua com sua busca por novas formas, sua invenção, sua riqueza de expressão, sua
pureza, seu idealismo... 'Eis Oscar', aqui está o Oscar. Não podemos deixar de dizer. Um nome de país resume
tudo: Brasil. Uma palavra diz tudo sobre ele: bondade. Sim, é um homem bom.

879

V V
POR UMA SINERGIA DA DIVERSIDADE:
PESQUISA AÇÃO PARTICIPATIVA NA REDE DE PONTOS DE CULTURA
Marcella Francelina Vieira Camargo1
Aline Andrade de Carvalho2

RESUMO: Este artigo se propõe a discutir a produção de conhecimento participativo voltado


à gestão pública da cultura, a partir da experiência da Escola de Pesquisa de Nova Iguaçu e do
GT Pesquisa Viva com pesquisa-ação participativa na rede de Pontos de Cultura.
Considerando a diversidade do universo do Programa Cultura Viva, observamos os desafios e
potencialidades de uma política cultural inovadora, num contexto social de agentes que por
muitos anos foram furtados do debate sobre as políticas públicas que influenciam no seu dia a
dia. Assim, buscamos sugerir alguns caminhos para ampliar a participação social nos
mecanismos de gestão e produção de narrativas no Brasil do século 21.

PALAVRAS-CHAVE: Produção de conhecimento; pesquisa-ação participativa; Pontos de


Cultura; gestão compartilhada; Diversidade Cultural.

Introdução
A proposta do Seminário de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa,
reunindo trabalhos e pesquisadores acadêmicos, não acadêmicos e interessados na área de
cultura é uma oportunidade muito especial de refletir sobre as práticas e significados do termo
pesquisa. A linha condutora desta narrativa é a prática de pesquisa-ação participativa no
desenvolvimento de projetos experimentais de produção de conhecimento nas áreas de
juventude3 e cultura4 e, mais especificamente, na rede de Pontos de Cultura do Brasil. Através
de práticas e técnicas colaborativas de pesquisa e em parceria com movimentos sociais e
atores da gestão pública, a experiência que aqui será abordada tem como prerrogativa
considerar todos os agentes envolvidos como produtores de conhecimento em potencial.
Acreditamos que isto implica, sobretudo, a reflexão e a discussão das diferentes
representações e narrativas no cotidiano, e a forma que estas refletem na construção de
políticas públicas no país.

1
Mestre em Antropologia e Sociologia pelo IFCS-UFRJ, fundadora da Escola de Pesquisa de Jovens
Pesquisador@s de Nova Iguaçu, desenvolve pesquisa-ação participativa a 2 décadas, em parceria com a
sociedade civil organizadas e a gestão pública, co-fundadora do GT Pesquisa Viva. Email:
marcellafvc@gmail.com
2
Mestre em Comunicação pela Universidade Paris 8, co-fundadora do GT Pesquisa Viva. Email:
Alinecarvalho.cultura@gmail.com
3
Fundação, coordenação e desenvolvimento metodológico da Escola de Jovens Pesquisador@s de Nova Iguaçu.
Desenvolvimento de pesquisa-ação participativa para subsidiar ações do BID e UN Habitat
4
Construção de manuais e editais utilizando a pesquisa-ação participativa e coordenação de vários projetos de
pesquisa participativa para gestão pública na área de cultura.

880

V V
A pesquisa-ação participativa tem ambição de oportunizar encontros e trocar as impressões e
experiências dos autores da ação. Com isto, é possível subsidiar tomadas de decisões, levantar
possíveis soluções ou simplesmente provocar reflexões sobre problemas hegemônicos ou
frequentes. Esse processo contribui ainda para determinar campos de diálogo entre os
diversos envolvidos no universo pesquisado: cidadão, movimentos sociais, governo,
universidades. Em uma perspectiva diferente da pesquisa acadêmica, cujo o compromisso é
com o desenvolvimento das ciências, o objetivo aqui é principalmente contribuir com a gestão
participativa - seja da vida ou da esfera pública. Isto, porque, entendemos que “O gestor
público é aquele que respeita, reconhece e entende a potência da população e a sua condição
de sujeito da política (e não objeto dela), e é isso que legitima a ação governamental.”
(ROCHA, pág 49).
Alguns conceitos teóricos ajudam fundamentar a proposta de unir duas práticas de
pesquisa que para alguns autores são distintas: a pesquisa-ação, voltada a subsidiar
planejamento e tomadas de decisões, e o esforço metodológico participativo, que envolve
localizar e contribuir com a interação entre olhares dos participantes. Thiollent (1997) diz
que: “Toda pesquisa-ação possui um caráter participativo, pelo fato de promover ampla
interação entre pesquisadores e membros representativos da situação investigada. Nela existe
vontade de ação planejada sobre os problemas detectados na fase investigada” (p. 21).
Para a socióloga e praticante da Cartografia Social Ana Clara Torres Ribeiro, esse tipo
de pesquisa também se caracteriza por ser ad hoc e rápida:“As intensas mudanças observadas
na ação política e a velocidade da acumulação financeira exigem o reposicionamento teórico-
conceitual dos elos entre estrutura e conjuntura e, ainda, agilidade na obtenção de resultados
analíticos, mesmo que provisórios.” (RIBEIRO, PAG 04).
Observamos assim que essas vivências traçaram conexões com dimensões multi-
institucionais, multidisciplinares e com teorias e práticas sobre o planejamento e a gestão
pública, o que vai ao encontro do desenho do Programa Cultura Viva. Isto abre diversas
possibilidades de presentificar conceitos e categorias (RIBEIRO, A. C.), aproximando as
pessoas de um determinado território/universo envolvidas na construções de políticas públicas
nas quais estão implicadas. Assim sendo, neste artigo, descreveremos as pesquisa-ações
participativas de avaliação realizadas na Teia Rural Estadual 2013 e, a da Teia Nacional da
Diversidade 2014, em curso, que culminou com a formação do Grupo de Trabalho Pesquisa
Viva na Comissão Nacional de Pontos de Cultura.

881

V V
O Programa Cultura Viva - Solo fértil para a produção de conhecimento participativo
No mês de julho de 2014 é aprovada a Lei Cultura Viva e com isso o inovador Programa
Cultura Viva passa a ser política do Estado Brasileiro, no ano em que completa 10 anos.
Muitos tem sido os desafios, as aprendizagens e as conquistas deste processo de discussão e
consolidação da diversidade cultural no país. Tanto para os diversos movimentos e
manifestações culturais, quanto para os órgãos governamentais envolvidos na gestão do
Programa nas esferas municipais, estaduais e federais. Trata-se de um conceito de política
pública que se propõe amplo, atingindo diversos territórios e agentes culturais
“invisibilizados” pelas representações hegemônicas, sobretudo nos meios de comunicação.
Como argumenta Célio Turino, ex-secretário da Cidadania Cultura do Ministério da Cultura,
os Pontos de Cultura:
“São organizações culturais da sociedade que ganham força e
reconhecimento institucional ao estabelecer uma parceria, um pacto, com o
Estado. Aqui há uma sutil distinção: o Ponto de Cultura não pode ser para as
pessoas, mas sim das pessoas; um organizador da cultura no nível local,
atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura. Como um elo
na articulação em rede, o Ponto de Cultura não é um equipamento cultural
do governo nem um serviço. Seu foco não está na carência, na ausência de
bens e serviços, e sim na potência.”(TURINO, 2009. p. 64).

O Ponto de Cultura não tem um modelo único e fixo, seu único e principal aspecto em
comum é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e a
comunidade. Fundamentado nesta lógica da parceria (do poder público, da comunidade e de
instituições afins), e fruto de um processo que se propõe pedagógico e participativo, faz-se
fundamental reconhecer a diversidade de manifestações e realidades culturais dos agentes
envolvidos no Programa e encontrar alternativas e novos canais de diálogo. Estes desafios
vem estimulando novas formas de inclusão e governança que foram sendo transformados ao
longo desta década. Este processo inspirou uma série de experiências técnicas e
metodológicas em diversas as áreas políticas, sociais, culturais, profissionais e etc, voltadas à
inclusão e respeito ao diversos olhares dos agentes envolvidos.
Consideremos ainda que o Programa foi criado durante a
gestão do músico Gilberto Gil no Ministério da Cultura, por muitos
considerada “revolucionária” por questionar o lugar elitista de “cereja do
bolo”, no qual a política cultural vinha sendo historicamente encontrada. “A
vontade de comunicar e misturar culturas, chave para o Tropicalismo, é
retomada nas ações do MinC, tendo Gil como ministro, cujo principal
esforço foi expandir o conceito de cultura e torná-la mais acessível,
reconhecendo-a como uma ferramenta estratégica para o desenvolvimento.
A cultura, enquanto direito inalienável do ser humano, é também um dever

882

V V
de Estado, que deve garantir o acesso e a produção de cultura como parte
das ações para a cidadania. Segundo Gil: ‘É preciso recentralizar o
que está centralizado nas mãos de poucos. As matrizes da indústria
cultural não deixaram nada para as periferias. Por isso, hoje, o papel
do Estado brasileiro na formulação de políticas públicas é empoderar
as micro manifestações, para que eles se apropriem cada vez mais dos
espaços públicos e que sejam protagonistas na proteção e promoção
da diversidade’.” (CARVALHO, 2009, p. 144).

Para Márcia Rollemberg, também ex Secretária do Programa, este princípio participativo deve
permear todas as esferas do Cultura Viva, pautando e demandando práticas da Secretaria da
Cidadania e Diversidade Cultural:
“A necessidade de ampliação e diversificação estrutural das fontes de
fomento a programas, projetos e ações socioculturais, foi pontuada como um
desafio a ser superado, e para isto toda a sociedade deve ser envolvida,
atendendo ao princípio do “nada sobre nós sem nós”, assim como a Gestão
do Conhecimento, como método, mas principalmente como prática diuturna
de cultura organizacional, precisa ser exercitada” (ROLEMBERG, 2015, p.
14).

Assim sendo, se o ano de 2004 foi um momento de formulação e implementação do


Programa, dez anos depois esta Gestão do Conhecimento de forma participativa e aplicada
ainda é um grande desafio. E é exatamente neste ponto que estamos experimentando
possibilidades.
A prática que aqui apresentamos se propõe a discutir experimentações, suscitar questões,
trocar experiências com outros pesquisadores e interessados em pesquisa na área de cultura.
Assim, após traçadas as algumas considerações teóricas, históricas e políticas, se faz
importante pontuar como se deu esse esforço articulado de estimular a cultura da pesquisa
junto aos Pontos de Cultura executando projetos de pesquisa-ação participativa na Teia Rural
e na Teia Nacional da Diversidade. Observamos ainda que, ao mesmo tempo, discutir o
Programa Cultura Viva à luz de suas principais demandas10 junto a colegas da pesquisa
acadêmica e gestores, revela diferentes visões quanto aos limites e a legitimidade das
diferentes metodologias de pesquisa.

Formação do GT Pesquisa Viva na Comissão Nacional dos Pontos de Cultura


No âmbito do Programa Cultura Viva, as Teias estaduais e nacionais5 são as instâncias
máximas de encontros do Cultura Viva, com o objetivo de estimular a reflexão e trocas de
experiências políticas, sociais, culturais e artísticas do universo de agentes do Programa. As
Teias são planejadas e produzidas pelo poder público junto aos Pontos de Cultura, e a

5
Os Fóruns e os governos municipais e estaduais tem menos influências, as decisões são tomadas pelo MinC.

883

V V
mobilização contínua dos Pontos se dá através dos Fóruns6 Estaduais, Regionais e temáticos7.
Por sua vez, os Fóruns são encontros presenciais pautados pelas discussões pertinentes ao
Programa e à realidade cotidiana dos Pontos de Cultura, e por agendas da sociedade civil
organizada que envolvem agentes da cultura, e o poder público, como por exemplo mudanças
nos rumos da política pública, redesenho, contingências, fenômenos sociais, votação de leis e
emendas na área de cultura, etc, sendo uma das interfaces mais importantes da gestão
participativa.
Durante a Teia Estadual do Rio de Janeiro de 2013, a Teia Rural, foi realizada a primeira
pesquisa-ação participativa de avaliação deste tipo na rede dos Pontos. Esta experiência levou
à formação de um grupo que se propôs a compartilhar e replicar esta proposta de pesquisa-
ação participativa junto a outras esferas do Programa, o chamado Grupo de Trabalho Pesquisa
Viva. De forma sistemática vários agentes (ponteiros, participantes da comissão organizadora,
gestores públicos, pesquisadores acadêmicos, interessados em geral) participaram da
elaboração e do desenvolvimento da pesquisa-ação-participativa de avaliação do encontro.
A metodologia desenvolvida pela antropóloga Marcella Camargo, que conduziu o processo da
pesquisa, foi sendo apropriado pelo GT. Nesta proposta metodológica, os participantes são ao
mesmo tempo atores e autores do desenvolvimento metodológico da investigação: desde a
elaboração das perguntas até a sua análise, apresentação e discussão dos resultados finais.
Este processo permite assim que as percepções, experiências e expectativas sejam trocadas a
cada etapa. A iniciativa realizada em dezembro conquistou mais adeptos no primeiro encontro
do ano de 2014, em janeiro, no Ponto de Cultura Casa Nuvem, na Lapa, região central do
município do Rio de Janeiro, onde os resultados8 da pesquisa foram apresentados, questões
pertinentes à organização do Fórum dos Pontos de Cultura do Estado do Rio de Janeiro
puderam ser discutidos.

6
Os Fóruns são encontros mensais, onde estão presentes ponteirxs, gestorxs públicos, pesquisadorxs, militantes
da cultura, e outras redes que compõe o programa Cultura Viva como a Rede de Leitura e de Memória. pautados
através do grupo de discussões pela internet, e por agendas emergências da sociedade civil organizada que
envolve a cultura, poder público, como mudanças nos rumos da política pública, contingências, fenômenos
sociais, votação de leis e emendas, etc.
7
A referência utilizada é a vivência da Rede dos Pontos do Rio de Janeiro.
8
Os resultados podem ser conferidos na integra: http://www.teiarj.org/index.php/component/k2/item/22-avaliacao-da-
teia-rural

884

V V
Em maio, durante a Teia Nacional da Diversidade 2014, estes resultados foram
novamente apresentados no Seminário Visões sobre o Programa Cultura Viva9, que reunia a
Rede de Pesquisadores do Cultura Viva. Na ocasião, uma nova pesquisa foi realizada e o GT,
que até então havia atuado em âmbito estadual, amplia suas ações nacionalmente, como
veremos adiante.
O GT de Pesquisa do Cultura Viva determinou que a sua principal missão é disseminar uma
cultura de pesquisa-ação participativa no Programa Cultura Viva:
O objetivo do grupo de trabalho é criar uma cultura de pesquisa dentro da
rede do Cultura Viva, junto a pontos de cultura, gestores públicos e
universidades. Por isso, busca-se potencializar a produção de indicadores e
informações sobre o Cultura Viva através do levantamento, disponibilização
e articulação em rede dessa produção criando espaços de intercâmbio de
informações e metodologias junto a outras redes, buscando fomentar todos
os atores do Programa como pesquisadores em potencial.

Entre as estratégias de ações desenhadas pelo grupo, estão:


Contribuir com a criação de um repositório de pesquisas acadêmicas,estudos
gerais e relatórios institucionais sobre o Programa já produzidos, em
especial, pelos Pontos de Cultura e através deles. E a fim de fortalecer a
rede, o repositório, inicialmente hospedado no site do Observatório de
Políticas Públicas
da UnB, será disponibilizado também nas plataformas do próprio
programa, como iTeia, Rede Mocambos, Culturadigital.br, Rede Livre,
Estúdio Livre, etc.

9
Cujo objetivo era a retomada da Rede de Pesquisadores do Cultura Viva. Quando foi estabelecida uma
parceria tripartite entre sociedade civil (GT Pesquisa Viva), academia (Observatório de Políticas Públicas da
UnB) e gestão pública (Fundação Casa de Rui Barbosa / MinC).

885

V V
Acompanhar as pesquisas e estudos em curso, como o Redesenho do
Programa Cultura Viva e a pesquisa de Monitoramento e Avaliação da Rede
Estadual que está sendo realizada pela Secretaria de Cultura do Rio de
Janeiro, dando retorno periódico à rede sobre seu andamento.
• Fomentar a produção de conhecimento e levantamento e novos indicadores
por parte dos próprios pontos de cultura, através da capacitação em
pesquisa-ação participativa e levantamento, com compartilhamento das
metodologias e de seus resultados.10

Esse fragmento do documento de fundação do GT faz uma síntese das dimensões que a
produção de conhecimento alcança na sociedade civil organizada, movimentos culturais,
governo, academia, e aponta para a necessidade de um esforço da troca para potencializar os
fazeres e saberes entre xs autorxs e atores de conhecimento.

A ação da avaliação da Teia Nacional da Diversidade


Realizada durante a Teia Nacional da Diversidade, em maio de 2014 em Natal, Rio Grande do
Norte, a experiência da pesquisa-ação participativa da Teia da Diversidade se mostrou
multidisciplinar e militante.
Durante o encontro, o grupo participou do Seminário Visões do Cultura Viva, organizado pela
Fundação Casa de Rui Barbosa, que reuniu pesquisadores acadêmicos, gestores públicos e
pontos de cultura para discutir a produção de conhecimento no âmbito do Programa e re-
articular a rede de pesquisadores do Cultura Viva. Além disso, os membros do GT Pesquisa
Viva participaram também do Fórum Nacional dos Pontos de Cultura, onde puderam
compartilhar a experiência do Rio de Janeiro. Passando pelo processo de votação estabelecido
para a criação de novos Grupos de Trabalho, o GT amplia sua atividade e passa a integrar
oficialmente a Comissão Nacional de Pontos de Cultura.
Como contribuição de ordem prática para a Teia da Diversidade, o GT Pesquisa Viva buscou
realizar uma pesquisa de avaliação do encontro que fosse o mais participativa possível.
Assim, o esforço do GT foi no sentido de fazer com que as contribuições dos participantes
fossem além da simples resposta ao questionário da pesquisa, mas buscassem possibilitar a
própria elaboração e execução pesquisa-ação participativa. Para tal, a metodologia empregada
passa por várias etapas, onde os diversos agentes e atores exercem distintos papéis, e
encontram a oportunidade de expor suas diferentes percepções de todo o processo.
Buscando esta diversidade na elaboração do escopo da pesquisa, o grupo convocou uma
oficina auto gestionada espalhando vários cartazes provocativos pelos espaços da Teia

10
Extraído do documento de fundação do GT apresentado para a Comissão Nacional do Cultura Viva:
http://www.iteia.org.br/textos/gt-pesquisa-viva-por-uma-cultura-de-pesquisa-participativa

886

V V
convidando o público a participar da atividade. Como é possível observar no cartaz abaixo,
este tipo de ação alcançou seu objetivo de interagir com o público, convidando-o a opinar
(neste caso, no próprio cartaz).

Cartaz Original Cartaz alterado por participante

Além de distribuir os cartazes em pontos estratégicos onde estavam sendo realizadas as


atividades da Teia, foi feita uma ampla divulgação oral e nos diversos fóruns de discussões
nos quais o GT esteve presente. Ao final, foi formada uma equipe de 10 pessoas entre
ponteirxs, produtores culturais, estudantes, pesquisadorxs, gestores e comissão organizadora
de vários estados, que se encarregara da elaboração, aplicação e divulgação da pesquisa-ação
participativa de avaliação da Teia Nacional da Diversidade. Com problemas na emissão da
passagem, a facilitadora da construção do arcabouço metodológico lançou mão do universo
da Cultura Digital e realizou a oficina através do skype, com duração de 8 horas, distribuídas
ao logo do penúltimo dia da Teia.
Após longa discussão sobre os conceitos que estavam sendo trabalhados, formulou-se
um esboço de projeto norteando os objetivos da pesquisa. Em seguida, o questionário piloto
foi desenhado coletivamente e as pessoas do GT realizaram o pré teste. Como a ideia era
alcançar o máximo possível de participantes optou-se pela pesquisa quantitativa, mas apesar
disso, todo o processo foi “qualitativo”, baseado nas expectativas e experiências de cada
integrante. Isto porque nesta metodologia os objetos são sujeitos que vivenciam, a partir de
diferentes perspectivas, o recorte do objeto re-elaborado a cada etapa.

887

V V
Feitos os últimos ajustes, a versão final do questionário foi a campo. Com o objetivo
de lançar uma campanha viral de forma criativa, foram confeccionados carimbos com o
endereço online do questionário de pesquisa, e os integrantes do grupo realizaram uma força-
tarefa de carimbar crachás, mãos, braços, panfletos e cartazes pela Teia:

Em complementação à campanha presencial, foram feitos ainda vários chamados


através das redes sociais para que as pessoas respondessem ao questionários e o longo de 45
dias, 328 participantes da Teia responderam espontaneamente à pesquisa.

888

V V
É importante ressaltar ainda que a apresentação de resultados é um outro momento de
encontro importante nesta experiência. As pessoas que estão presentes são motivadas a
analisar os dados apresentados/ as representações, contribuindo com outras interpretações do
que foi apreendido pela equipe da pesquisa, e que serão incorporados no relatório final.
Assim, entre os meses de julho e dezembro foi realizado o processo de codificação dos
dados, de forma voluntária e orgânica, pelos membros do GT, que se reuniram mensalmente
no Ponto de Cultura da Casa Nuvem. Em dezembro, os dados da pesquisa foram apresentados
na reunião da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, em Brasília, tendo sido considerado
um “momento histórico” para os presentes, “onde pela primeira vez os próprios Pontos estão
olhando para si mesmo”11. Infelizmente, esta apresentação se restringiu aos representantes de
GTs presentes, e em um curto espaço de tempo, o que limitou a possibilidade de análises e
intervenções mais detalhadas. Por esta razão, nos preparamos agora para realizar este ano uma
chamada pública de trabalhos analisando estes dados, a serem discutidos em maior
profundidade um seminário ampliado, de caráter nacional.
O fechamento da ação é fazer uma publicação virtual e colaborativa juntando os
trabalhos, textos ou outras formas de expressões que foram inspiradas a partir dos resultados
da pesquisa-ação de avaliação da Teia. Este material irá compor o relatório final desta
proposta, que também será disponibilizado nas redes do sociais, em especial aquelas ligadas
ao Cultura Viva (iTeia, Culturadigital.br, Corais.org, Estudio Livre, etc).
Além disso, temos buscado participar de outros encontros, como o Encontro Brasileiro de
Pesquisadores em Cultura, realizado em outubro na Universidade Federal Fluminense, e este
seminário da FCRB, para levar esta experiência e ampliar este debate.

Considerações finais
Segundo o seu Plano de Trabalho para os anos de 2015 e 2016, a missão do GT
Pesquisa Viva é “Criar uma cultura de pesquisa no Cultura Viva junto a Pontos de Cultura,
gestores públicos e universidades, contribuindo para a gestão participativa e a transparência
governamental através da pesquisa-ação participativa, buscando promover e reconhecer todxs
agentes do Cultura Viva como produtores de conhecimento.”12.

11
Comentário de Eduardo Bonito, co-fundador e representante do GT Pesquisa Viva na reunião da CNPDC, 12
de dezembro de 2.014 em Brasília - DF.
12
“Instituída pelo Decreto 7.743, de 01/06/2012, a SCDC tem como competências planejar, coordenar,
monitorar e avaliar as políticas, programas, projetos, ações e iniciativas para a promoção do desenvolvimento
econômico e social pela via da cultura, focada na cidadania e na diversidade das expressões culturais e na
garantia dos direitos do cidadão. Seus objetivos exemplificam a determinação e coadunam com as estratégias do

889

V V
Seguindo os passos da filosofia do Cultura Viva, onde todos são produtores de
conhecimentos sobre si mesmos, sua coletividade e sobre o universo ao qual pertencem, esta
prática estabelece diálogos, constrói parcerias diretas com a diversidade, inclusive
possibilitando a troca horizontal com pesquisadores acadêmicos. Aqui, o papel do
pesquisador/facilitador é construir pontes entre os saberes de forma que todos possam
contribuir com a formulação do instrumental metodológico.
Esta experiência coletiva desperta ainda a percepção do potencial e da importância da
produção e troca de conhecimentos. Na conjuntura administrativa e política do Cultura Viva,
isso corresponde à missão de contribuir com o monitoramento e avaliação das práticas dos
Pontos e do Programa em geral, com vistas a entender e sistematizar os desafios desta
política. Além disso, caracteriza-se por ser um método de baixo custo, cujo um dos benefícios
é descentralizar a gestão em termos de tomadas de decisão.
Finalmente, acreditamos que o encontro da prática científica de produção de
conhecimento com a ação cidadã de atuar junto à movimentos sociais tem sido não apenas
uma contribuição à construção de políticas públicas para a cultura no país como tem
repercutido na formação cultural e identitária de cada um dos que participam das atividades
aqui relatadas. Esperamos assim seguir com esta construção e incidir na gestão compartilhada
de uma cultura que seja, cada vez mais, protagonista e autônoma.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah A dignidade da política. ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994

BOURDIEU, Pierre. O Poder Símbolico. Bertrand, 1988

CARVALHO, A. A. “Produção de Cultura no Brasil: Da Tropicália aos Pontos de Cultura”. Rio de


Janeiro: Multifoco, 2009

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 3 ed. Vozes,
Petrópolis, 2000

GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura, 4 ed., Civilização Brasileira, Rio de


Janeiro, 1982

HABERMAS, Jurgen. “A Nova intransparência. Do esgotamento das energias utópicas”. Novos


Estudos, no. 18, 1987

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001

MinC de priorizar as demandas da sociedade por direito à cidadania e de reconhecer a diversidade cultural.”
Márcia Rolemberg (2014).

890

V V
RIBEIRO, Ana Clara T. “Oriente Negado: cultura, mercado e lugar”, Cadernos PPG-FAU, FAU-
UFBA, número especial 2004“Por uma cartografia da ação:pequeno ensaio de método”
em coautoria com Amélia Rosa Sá Barreto, Alice Lourenço,Laura Maul de Carvalho Costa e Luís
Cesar Peruci do Amaral, Cadernos IPPUR/UFRJ, v. 15 e 16, 2001

ROCHA, Adair. “Autores Sociais e ações na cultura e na segurança pública do Rio.” In (org)
Cláudia Maria Lima Werner, Floriano José Godinho de Oliveira, Patrícia Tavares Ribeiro Políticas
Públicas: interações e urbanidades, Faperj, Rede de Política Públicas, Ed. Letra Capital, Rio de
Janeiro, 2013

ROLEMBERG, Márcia “Cidadania e Diversidade Cultural com Participação Social”, artigo publicado
no V Seminário Internacional de Políticas Culturais, ed Fundação Casa de Rui Barbosa, Maio de 2014

SANTOS, B.S. “La reinvención del Estado y el Estado plurinacional” en OSAL (Buenos Aires:
Clacso) Año VII, 22, septiembre, 2007. Disponible
en:http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal22/D22SousaSantos.pdf

Democratizar a democracia. Os caminhos da democracia Participativa. Civilização Brasileira, Rio de


Janeiro, 2002

THIOLENT, Michel Pesquisa Ação nas organizações, ed Atlas, São Paulo, 1997

TURINO, Célio. Ponto de Cultura: O Brasil de Baixo para Cima; Editora Anita Garibaldi, São
Paulo, 2009

891

V V
QUO VADIS, FUNARTE?
Marcelo Gruman1

RESUMO: O artigo faz um levantamento histórico de uma década (2003-2013) das três áreas
de maior atuação da Fundação Nacional de Artes - Funarte (artes cênicas, artes visuais e
música) referente à captação de recursos via renúncia fiscal comparando-o, em seguida, à
dotação orçamentária da instituição para programas e ações nas áreas sob sua
responsabilidade (indo além das três áreas sob análise) no mesmo período. Chega-se à
conclusão de que, atualmente, a Funarte cumpre papel coadjuvante nas políticas públicas de
cultura do Brasil, seja como planejadora ou executora de programas e ações a partir das
diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Cultura.

PALAVRAS-CHAVE: Funarte; orçamento; Lei Rouanet; políticas culturais.

Introdução
Nas décadas de 1980 e 1990, com a alvorada da redemocratização, as políticas públicas para a
cultura caracterizaram-se pelo que se conhece por “Estado mínimo”, ou seja, a intervenção
estatal no sentido de democratizar a cultura é diminuída em favor do mercado. Entramos na
fase dos incentivos fiscais, cujo objetivo é atrair investimentos das empresas privadas para a
área da cultura, oferecendo, como contrapartida, deduções no Imposto de Renda devido.
Parecia razoável a existência de um dispositivo que pudesse estabelecer uma interseção entre
interesses entre a política pública e o capital em benefício da sociedade. Para tanto, o governo
teria de exercer sua função constitucional de planejador, regulador e fiscalizador, implantando
uma política capaz de listar ações e projetos de interesse público. No entanto, a história
recente das leis de incentivo fiscal à cultura mostra um quadro distinto, restringindo os
benefícios do sistema aos produtos e eventos artísticos, limitando o entendimento da cultura à
sua parte efêmera, e concentrando geograficamente os recursos.
Por outro lado, neste mesmo período, observamos um esvaziamento da importância de
determinadas instituições, em princípio, responsáveis por elaborar e implantar políticas
públicas no âmbito do Ministério da Cultura. Este é o caso da Fundação Nacional de Artes –
Funarte, que tem, dentre suas responsabilidades institucionais, “promover, incentivar,
amparar, em todo território nacional e no exterior, a prática, o desenvolvimento e a difusão

1
Doutor em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ). Atualmente, exerce o cargo de Administrador
Cultural na Fundação Nacional de Artes – Funarte. E-mail: marcelogruman@gmail.com.

892

V V
das atividades artísticas e culturais nas áreas de teatro, dança, circo, artes visuais, música
popular e erudita, além da pesquisa nesses campos”. De acordo com o relatório de gestão do
ano de 2010, as políticas públicas da Funarte são norteadas por três diretrizes gerais do MinC:
valorizar a produção simbólica e a diversidade das expressões e dos valores culturais
brasileiros; ampliar o acesso dos brasileiros à cidadania cultural, com foco nas ações de
inclusão social por meio da Cultura; fomentar a Economia da Cultura, promovendo a geração
de emprego e renda, fortalecendo e regulando suas cadeias produtivas e valorizando bens e
serviços culturais.
A seguir, é apresentado um levantamento histórico de uma década (2003-2013) das três áreas
de maior atuação da Funarte (artes cênicas, artes visuais e música) referente à captação de
recursos via renúncia fiscal comparando-o, em seguida, à dotação orçamentária da instituição
para programas e ações nas áreas sob sua responsabilidade (indo além das três áreas sob
análise) no mesmo período.
Chega-se à conclusão de que, atualmente, a Funarte cumpre papel coadjuvante nas políticas
públicas de cultura do Brasil, seja como planejadora ou executora de programas e ações a
partir das diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Cultura. Deve-se frisar, também, que as
mudanças previstas na Lei Rouanet não influenciam este quadro, dado que o protagonismo do
Estado permanece relegado a segundo plano pelo ínfimo orçamento destinado tanto ao MinC
quanto, ainda mais dramaticamente, às instituições vinculadas, dentre as quais, a Funarte.
Os dados referentes a projetos incentivados e recursos captados via lei de renúncia fiscal
foram obtidos através do SALICNET, disponível em:
http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php

Os dados referentes à dotação orçamentária da Funarte foram obtidos através de relatórios de


gestão da instituição disponíveis em:

http://www.funarte.gov.br/relatorios/

893

V V
PROJETOS COM CAPTAÇÃO DE RECURSOS, POR ÁREA CULTURAL
2.1 Artes cênicas

2000

1800

1600

1400
1158
1200
1007
1000 895
784
800 625 619 664
597
600 507
409 426
400

200

0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

À exceção de uma leve diminuição entre os anos de 2007 e 2008, há um crescimento constante do número de projetos na área das artes cênicas
(teatro, dança e circo) que conseguem captar recursos através da lei de incentivo fiscal. O número de projetos com alguma captação quase
triplicou no período em análise.

894

V V
2.2 Artes Visuais

1000
900
800
700
600
500
400 325
295
300 244 245 221
209 210 211 208
155
200 104
100
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Entre 2003 e 2007 houve aumento no número de projetos com captação de recursos via lei renúncia fiscal, oscilando entre 2008 e 2011 e
voltando a subir de forma constante a partir daí até 2013.

895

V V
2.3 Música

1400

1200

1000 910
869 868
718 734
800
607 638 619
576
600
434
400 278

200

0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Assim como no caso das artes visuais, na área da música o número de projetos com captação de recursos apresenta aumento entre 2003 e 2007,
oscilando para cima e para baixo a partir daí, até alcançar um ponto estável entre 2012 e 2013, na casa dos oitocentos projetos.

CAPTAÇÃO DE RECURSOS, POR ÁREA CULTURAL (em R$ milhões)

896

V V
3.1 Artes Cênicas

1000
900
800
700
600
500 409,2
400 352,5
290,7
300 246,4
176 166 170 188,8
200 137
91,5 101
100
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Quando olhamos para o volume de recursos captados, observamos que, nas artes cênicas, à exceção de 2007, há um aumento crescente e
substantivo, mais do que quadruplicando entre o primeiro e o último ano do período em análise.

3.2 Artes Visuais

897

V V
300

250

200 177,1 184

150 120,8
101,7
90,5
100 82,7 80,7
70 70,6
44
50 33,5

0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

A oscilação do volume de recursos captado pelos projetos da área de artes visuais segue a mesma oscilação observada no gráfico referente ao
número de projetos com captação. Maior número de projetos, maior volume de recursos captados. O volume de recursos captado mais do que
quintuplicou no período em análise.

3.3 Música

898

V V
300

250

180,3 186,7 186,9


200
158,1
145,1 141,9 142,7
150 130,3 130,2

93,2
100 72,1

50

0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

O mesmo paralelo que observamos para as artes visuais, quando o aumento ou diminuição do número de projetos com captação de recursos
implica o aumento ou diminuição no volume destes recursos, acontece na área da música. No período analisado, o volume captado mais que
dobrou entre o primeiro e o último ano.

CAPTAÇÃO DE RECURSOS, POR ÁREA CULTURAL (em R$ milhões)

899

V V
2003-2013
5000
4500
4000
3500
3000 2330,6 2202,9
2500
2000
1055,9
1500
1000
500
0
Artes cênicas Artes Visuais Música

A soma do volume de recursos captados pelas três áreas da Funarte que são o foco deste trabalho ultrapassa os R$ 5,5 bilhões entre 2003 e 2013.
A maior parte deste bolo é dividida entre as artes cênicas (especialmente o teatro) e a música.

DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA DA FUNARTE (em R$ milhões – dados disponíveis a partir de 2004 até 2012)

900

V V
400

350

300

250

200
140,9 149,4
150 105,7
91,7
100 55,3
42,5
26,8 28,8 30,8
50

0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Cabe observar, primeiramente, que a Funarte está em melhor situação hoje do que em 2004, ao menos quando observamos sua dotação
orçamentária. Dito isto, podemos afirmar que a acentuada oscilação desta mesma dotação orçamentária ao longo da série histórica em análise e a
dependência de emendas parlamentares que lhe deem maior robustez permite-nos afirmar que a política pública de cultura no Brasil ainda não é
encampada como política de Estado. Depende da boa vontade do governo da ocasião e dos acordos políticos costurados em sua vigência. Se a
Cultura fosse entendida como política de Estado haveria uma evolução constante nos recursos disponíveis para a elaboração e execução da
política institucional da Funarte, o que não é, claramente, o caso. O quadro é ainda mais desolador quando consideramos que a sua dotação
orçamentária deve abranger, além das três áreas analisadas, outros campos, como conservação e preservação fotográfica e de documentos e

901

V V
edição de livros. Ou seja, o fosso entre recursos via orçamento (Estado) e renúncia fiscal (iniciativa privada) é ainda maior, desfavoravelmente ao
primeiro.

RELAÇÃO ENTRE ORÇAMENTO DA FUNARTE E SOMA DE RECURSOS CAPTADOS NAS ÁREAS CULTURAIS.

100
90
80
70
60
50
40 31,2
27,7
30 22,3
14,9 15,3
20 11,2 11,4 10,6
7,5
10
0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Ilustrando o quadro anterior, observamos que, no melhor cenário dentro do período analisado, o orçamento da Funarte alcançou perto de um
terço dos recursos captados via renúncia fiscal para as artes cênicas, artes visuais e música.

902

V V
Considerações finais

A Lei Rouanet, promulgada em 1991, é vista pelos críticos das leis de incentivo como o
momento de consagração desse novo modelo que transferiu para a iniciativa privada o poder
de decisão sobre o que deveria ou não receber recursos públicos. O resultado desse processo
foi a enorme concentração na aplicação dos recursos. Um pequeno grupo de produtores e
artistas renomados, principalmente da região sudeste, são os que mais conseguem patrocínio,
ao passo que as áreas que fornecem aos seus patrocinadores pouco retorno de marketing são
preteridas, criando também um processo de investimento desigual entre as diversas áreas
artístico-culturais mesmo nos grandes centros urbanos.
As leis de incentivo, ao ganharem tanto protagonismo, esgotam o tema das políticas de
financiamento da cultura. Isto acontece, dentre outros motivos, por conta da diminuição dos
orçamentos que o poder público destina para o setor cultural. No caso da Funarte, a pergunta
que se impõe é a seguinte: pode sua política institucional depender das oscilações do
mercado, uma vez que editais importantes são financiados por recursos incentivados, ou deve
pleitear cada vez mais robustez em sua dotação orçamentária?
A Petrobrás, uma das principais financiadoras da instituição e de projetos culturais país afora,
“fechou as torneiras”, de acordo com nota publicada pelo jornalista Lauro Jardim, da revista
Veja (edição online de 19 de maio de 2014). Não aparece nem entre as quinze maiores
empresas incentivadoras no ano de 2014 (havia sido a sexta colocada, em 2013). Apesar de
contar com patrocínio da estatal, o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, carro-chefe da
instituição, voltado para grupos que pretendem montar espetáculos ou fazê-los circular pelo
território nacional, não consegue premiar nem 10% dos projetos apresentados. E não é por
falta de qualidade, e sim de verba.
O investimento direto, por outro lado, permite a execução de programas constituintes de uma
política pública de cultura democrática que deve envolver, em sua elaboração, o Estado
brasileiro, a sociedade civil organizada e a iniciativa privada. Deve ser fruto de discussão,
também, o abismo cada vez maior na proporção entre o orçamento de instituições como a
Funarte e o investimento na cultura por meio de incentivo fiscal.
Em recente entrevista ao jornal O Globo, do dia 6 de fevereiro de 2015, o ministro Juca
Ferreira afirmou que a Funarte “entrou em decadência” e está “meio que falida” por não ter
sido capaz de renovar-se na transição entre ditadura e democracia. Juca não se exime de
responsabilidade como gestor público e acredita ser fundamental elaborar uma política para as
artes, uma política de formação, sendo a Funarte importante instrumento institucional. Nas

903

V V
palavras do ministro, “temos escolas isoladas, músicos, atores e técnicos que são fruto de geração
espontânea. O Brasil faz na arte o que faz com o futebol: extrativismo. Colhe talentos sem nenhum
investimento” 1.
A valorização das instituições públicas de cultura é estratégia fundamental para o exercício
pleno da cidadania. E isto, amigos, não pode depender de caridade e boa vontade, e sim de
investimento maciço e planejamento estratégico de longo prazo.

Referências bibliográficas

FERREIRA, Juca. Juca Ferreira abre fogo contra a Lei Rouanet. Jornal O Globo, Rio de
Janeiro, 06 de fevereiro de 2015. Entrevista concedida a Fátima Sá e Cristina Tardáguila.
FUNARTE. Relatórios de atividade. Em: http://www.funarte.gov.br/relatorios/. Acesso em: 2
de julho de 2014.

MINISTÉRIO DA CULTURA. Sistema De Apoio às Leis de Incentivo à Cultura. Em:


http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php. Acesso em: 2 de julho de 2014.

1
Entrevista disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/juca-ferreira-abre-fogo-contra-lei-rouanet-15258675.

904

V V
AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O AUDIOVISUAL BRASILEIRO: NOVAS
PERSPECTIVAS
Marcelo Ikeda1

RESUMO: O modelo de política pública para o audiovisual brasileiro, cristalizado a partir


dos anos noventa, baseado nas leis de incentivo fiscal, revelou limites claros, dados os seus
pressupostos desenvolvimentistas. No entanto, percebemos nos últimos anos uma mudança de
foco, com a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (Lei 11.437/06) e das cotas na TV por
assinatura (Lei 12.485/11). Investigaremos de que modos os dois instrumentos ampliam o
poder regulatório e interventor do Estado no setor.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais; Indústria Audiovisual; Estado e Cinema;


ANCINE.

1 - INTRODUÇÃO: O MODELO DE INCENTIVOS FISCAIS NOS ANOS NOVENTA


E SUAS LIMITAÇÕES
Logo após sua posse, em março de 1990, o Presidente Fernando Collor de Mello
anunciou um pacote de medidas que pôs fim aos incentivos governamentais na área cultural,
extinguindo diversos órgãos, entre eles, o próprio Ministério da Cultura, transformado em
uma secretaria de governo. Na esfera cinematográfica, houve a liquidação da Empresa
Brasileira de Filmes (Embrafilme), do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e da
Fundação do Cinema Brasileiro (FCB), que representavam o tripé de sustentação da política
cinematográfica em suas diversas vertentes.
A atividade cinematográfica no país foi duramente atingida em consequência dessas
medidas. Se o filme brasileiro atingira o expressivo índice de 32,6% de participação de
mercado em 1982 (SELONK, 2004), menos de dez anos depois o cenário passava a ser
francamente desfavorável. Em 1990 e 1991, ainda houve um número razoável de filmes
brasileiros lançados comercialmente, como resultado inercial do período anterior. No entanto,
em 1992, apenas 3 filmes nacionais foram lançados comercialmente, de modo que a
participação dos filmes nacionais foi inferior a 1% (ALMEIDA E BUTCHER, 2003). A
velocidade de aniquilamento do mercado para o filme brasileiro, rapidamente ocupado pelo
filme estrangeiro, comprovava a fragilidade do sistema de financiamento à produção
cinematográfica, incapaz de capitalizar as produtoras para um investimento de risco.

1
Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Curso de Cinema e
Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Email: marceloikeda@ymail.com.

905

V V
Paulatinamente, após reações da sociedade civil e principalmente do setor
cinematográfico, houve a reconstrução dos mecanismos estatais de apoio à atividade
cinematográfica. Ainda no Governo Collor, houve a saída do então Secretário de Cultura, o
cineasta Ipojuca Pontes, principal responsável pelo desmonte das estruturas federais de apoio
à produção cinematográfica, substituído pelo embaixador Sérgio Paulo Rouanet. Em
dezembro de 1991, houve a publicação da Lei nº 8.313/91, a chamada Lei Rouanet, que criou
o PRONAC (Programa Nacional de Apoio à Cultura), restabelecendo o apoio estatal à
atividade cultural. Ainda no Governo Collor, Rouanet foi o primeiro responsável por uma
reaproximação política com o setor cultural, após o desgaste com o setor provocado por
Ipojuca (LOPES, 2001).
No ano seguinte, já no Governo Itamar Franco, foi criada a Secretaria para o
Desenvolvimento do Audiovisual (SDAv), no restabelecido Ministério da Cultura. Em 1993,
um ano após sua aprovação pelo Congresso Nacional, houve a publicação de uma lei
específica para a atividade audiovisual, a Lei nº 8.685/93, conhecida como Lei do
Audiovisual, que na verdade era uma versão ampliada dos artigos vetados pelo Presidente
Collor na Lei nº 8.401/92 (CATANI, 1994).
O apoio do Estado aos projetos cinematográficos passava a ocorrer numa nova base,
num modelo distinto do ciclo anterior, com a criação dos mecanismos de incentivo, baseados
em renúncia fiscal, em que pessoas físicas ou jurídicas realizam o aporte de capital num
determinado projeto, sendo que o valor é abatido – parcial ou integralmente – no imposto de
renda devido (CESNIK, 2002). Desta forma, o Estado continuava sendo o indutor do processo
de produção cinematográfica, mas introduzia os agentes de mercado como parte intrínseca
desse modelo. O Estado passava a agir no processo de desenvolvimento do audiovisual
brasileiro de forma apenas indireta, estimulando a ação de terceiros, e não mais intervinha
diretamente no processo econômico, produzindo ou distribuindo filmes. Apesar de os recursos
em última instância permanecerem oriundos do Estado, a decisão de investir e a escolha dos
projetos partiam de empresas do setor produtivo, cujo negócio muitas vezes sequer estava
relacionado à atividade audiovisual. Este modelo, baseado em renúncia fiscal, era, de um
lado, uma resposta às acusações de clientelismo na escolha dos projetos financiados pela
Embrafilme, mas, por outro, representava a busca de uma aproximação com o setor privado,
como desejo de uma reconquista do mercado interno que rapidamente passou a ser
plenamente ocupado pelo cinema hegemônico.

906

V V
A partir de 1991, ainda no Governo Collor, foram implementados os primeiros
mecanismos de reconstrução do apoio do Estado à atividade cultural, baseados num modelo
de renúncia fiscal. Apesar da existência de outros fatores que contribuíram para o processo de
“retomada do cinema brasileiro” em meados dos anos noventa, como o Prêmio Resgate, a
criação da RioFilme e a participação dos polos regionais (LOPES, 2001), é possível afirmar
que os dois mecanismos de incentivo – o Art. 25 da Lei Rouanet e o Art. 1º da Lei do
Audiovisual – representaram a espinha dorsal do novo modelo de fomento à atividade
cinematográfica no período.
As bases do processo de reconstrução dos mecanismos estatais de apoio à atividade
cinematográfica a partir dos anos noventa foram nitidamente industrialistas, com vistas a
recuperar a participação de mercado do filme brasileiro, que atingiu, no início dos anos
noventa, níveis inferiores a 1%, as políticas não conseguiram despertar os resultados
desejados.
De um lado, houve a implementação do modelo de fomento indireto, através dos
mecanismos de incentivo fiscal. Primeiro, a Lei Rouanet, comum a todas as áreas culturais, e,
em seguida, a Lei do Audiovisual, específica para o setor cinematográfico. O binômio Lei
Rouanet-Lei do Audiovisual fez o cinema brasileiro “sair do coma”, afastando a sombra de
seu total aniquilamento, que serviu como uma espécie de fantasma a atormentar os rumos da
classe cinematográfica ao longo de todo o período subsequente. O Art. 1º da Lei do
Audiovisual surgia tipicamente como uma solução de urgência, prevendo um abatimento
fiscal superior a 100% dos valores investidos. No entanto, essa distorção se manteve como
regra, vigente até hoje, e não como dispositivo temporário. No final do século passado, eram
visíveis as distorções desse modelo de fomento indireto. Embora tenha contribuído em seus
primeiros anos para uma "retomada do cinema brasileiro", a participação de mercado do
cinema brasileiro mal chegava a dois dígitos no final dos anos noventa.
No entanto, a classe cinematográfica, ainda assombrada pelo fantasma da Era Collor,
concluiu que a solução para um cinema brasileiro de maior ocupação de mercado era,
paradoxalmente, o reforço da atuação do Estado. No relatório final do III Congresso
Brasileiro de Cinema, realizado em dezembro de 2000, em Porto Alegre, reunindo
representantes dos setores de produção, distribuição e exibição cinematográficos e
audiovisuais (MARSON, 2006), as soluções apontadas, ao invés de uma correção de rumos
desse modelo, foram no sentido de um aprofundamento do modelo existente, seja pela criação
de novos mecanismos, seja pelo aumento da dedução fiscal. Concluiu-se, de maneira um tanto

907

V V
cômoda, que a solução para a crise de ocupação do mercado interno era o aumento de
investimentos, possíveis com um aumento da dedução fiscal, que atrairia mais investidores
para o setor.
A formação de um forte órgão central, como a Agência Nacional do Cinema, não
contribuiu para uma decisiva atuação do Estado na correção de rumos dessa política, já que
foi criada entre diversos paradoxos, que impossibilitaram que o órgão tivesse um poder de
fato na implementação de políticas sistêmicas que objetivassem a efetiva ocupação de
mercado do produto brasileiro. Desse modo, os mecanismos de incentivo fiscal, cujas
limitações já eram bastante visíveis antes mesmo da criação da ANCINE, continuaram como
a principal fonte de financiamento das obras cinematográficas brasileiras. Simplesmente
através do fomento, ou de normas expedidas para o aperfeiçoamento da apresentação de
projetos incentivados, não foi possível para a agência interferir de fato nos rumos do mercado
cinematográfico.
De outro lado, havia o fantasma das acusações de clientelismo e corrupção que
vitimaram a Embrafilme, além da percepção que o apoio do Estado deveria ser feito em um
outro contexto, dada a crise do Estado empresário. O modelo das leis de incentivo e a própria
criação da ANCINE se basearam nesse paradoxo: de um lado, a ambição de um
desenvolvimento sustentado do mercado audiovisual; de outro, um receio de uma participação
mais ativa do Estado na formulação de uma política setorial. Por isso, não houve de fato a
elaboração de uma política estratégica para o setor, que visasse uma ocupação sistêmica do
mercado cinematográfico. Ao invés disso, houve simplesmente uma política de oferta, que
supunha que a ocupação do mercado se daria essencialmente com a produção de obras, mas
sem a promoção de uma política de competitividade que fizesse com que essas obras, uma vez
concluídas, fossem estimuladas a circular nesse mercado. Essa total despreocupação tanto
com uma política de demanda quanto com as características específicas do mercado
cinematográfico brasileiro foram o cerne do fracasso da política de incentivos fiscais,
enquanto proposta de um modelo industrialista que visava a autossustentabilidade. Ou seja, é
possível afirmar que, ao invés de uma política industrial de ocupação do mercado
audiovisual, existiu, simplesmente, uma política de produção de longas-metragens
cinematográficos. As leis de incentivo fiscal representaram apenas a retomada da produção
audiovisual, mas não permitiram o aumento de competitividade das produções nacionais num
mercado pequeno e concentrado, em que o produto hegemônico estrangeiro tinha uma

908

V V
posição dominante. As características de criação da ANCINE tornaram-na frágil para reverter
este quadro.
As leis de incentivo concentraram-se no apoio a projetos de produção,
desconsiderando as sinergias e a necessidade de investimentos nos demais elos da cadeia
produtiva (distribuição e exibição). Análise realizada pela ANCINE (IKEDA, 2007) mostra
que entre os 793 projetos ativos em 2006 – isto é, projetos aptos a captar recursos pelas leis de
incentivo fiscais administradas pela ANCINE, ou seja, projetos com primeira autorização para
captação em 2006 ou aprovados em anos anteriores mas com renovação do prazo de captação
para 2006 – 749 projetos, ou 94,5% do total de projetos ativos eram projetos de produção de
obras audiovisuais. Todos os demais tipos de projetos, como projetos de
distribuição/comercialização, festivais internacionais, desenvolvimento e infraestrutura
técnica totalizaram apenas 44 projetos, ou 5,5% do total.
Ademais, entre os 749 projetos de produção de obra audiovisual, 579 (77,3%) são
projetos cinematográficos de longa-metragem. Os projetos de típica destinação para a
televisão – séries, programas de TV ou telefilmes – totalizam apenas 79, pouco mais de 10%
do total de projetos de produção (10,5%).
O estudo ainda aponta que, se considerarmos os valores captados pelos projetos em
andamento, 91,7% do montante captado para os projetos de produção foi destinado a longas-
metragens cinematográficos. Por sua vez, os projetos de produção correspondem a 97,1% do
total dos valores captados pelos projetos ativos em 2006.
Dessa forma, o perfil dos projetos autorizados para captação pela ANCINE revela que
as leis de incentivo na prática representaram um modelo de produção de longas-metragens
cinematográficos, desconsiderando a necessidade de investimentos nos demais elos da cadeia
produtiva, como a distribuição e exibição, e desconsiderando a produção de outras obras
audiovisuais visando prioritariamente outros segmentos de mercado, como o vídeo doméstico
e a televisão por assinatura ou aberta.
Os limites do modelo de incentivo fiscal revelaram-se claros. Em síntese, tratava-se de
uma política meramente assistencialista ao cineasta brasileiro, ao invés de buscar ser uma
política sistêmica de desenvolvimento de um mercado audiovisual. Houve uma concentração
de investimentos na produção de longas-metragens cinematográficos, como se simplesmente
um aumento da oferta levasse implicitamente a uma ocupação proporcional do mercado,
transferindo a responsabilidade para produtores e cineastas (IKEDA, 2011). Não houve, ao
invés disso, uma política que estimulasse a integração entre os elos da cadeia produtiva, entre

909

V V
produção, distribuição e exibição. Da mesma forma, houve uma concentração em
investimentos no longa-metragem cinematográfico, em detrimento dos demais segmentos de
mercado e de outros tipos de obras audiovisuais (séries para televisão, novas mídias, etc.).

2 - AS MUDANÇAS IMPLEMENTADAS A PARTIR DE 2006


No entanto, a partir de 2006, especialmente a partir da gestão de Manoel Rangel como
diretor-presidente da ANCINE, houve uma mudança de foco. Trabalho com a hipótese de que
o perfil da política pública federal para o audiovisual sofreu uma mudança de rumos, com a
introdução de dois instrumentos legais. Esses dois instrumentos arejaram a política pública do
período, que buscou alternativas ao esgotamento apontado pelo exclusivismo do modelo de
incentivos fiscais. O que busco apontar não é que esses instrumentos se revelaram como
soluções definitivas ou suficientes para o atual estágio do audiovisual brasileiro, mas sim que
apontam para um novo caminho na formulação das políticas públicas, que visam um Estado
mais participativo na condução das políticas culturais. Ou seja, o que está em jogo nas
mudanças implementadas é a direção e o papel das políticas públicas para o campo do
audiovisual. Ou ainda, que as políticas públicas para o audiovisual brasileiro ganham novas
perspectivas com a implementação de dois mecanismos: o Fundo Setorial do Audiovisual
(FSA) e a Lei da TV por Assinatura (Lei 12.485/11).

2.1 - O FUNDO SETORIAL DO AUDIOVISUAL (FSA)


O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), criado pela Lei nº 11.437/06 e regulamentado
pelo Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007, representa um novo momento no modelo
de financiamento estatal às produções audiovisuais brasileiras. Trata-se de um novo
mecanismo seletivo, mas, diferentemente do modelo das leis de incentivo, em que a
participação do Estado é indireta, por meio de renúncia fiscal, através do FSA, o Estado
assume o controle direto das políticas públicas, ao estabelecer linhas de ação e selecionar
diretamente os projetos selecionados.
Os recursos do FSA são alocados segundo linhas de ação específicas, segundo uma
lógica programática, que prioriza determinados segmentos em que o investimento é
considerado mais urgente ou crônico. Ao contrário do modelo das leis de incentivo, que se
voltava essencialmente para o apoio a projetos, escolhidos individualmente segundo os
critérios particulares definidos pelos próprios agentes de mercado, o FSA tem seus recursos
direcionados a programas, segundo a identificação de gargalos ou de segmentos prioritários.

910

V V
A seleção dos projetos passa a ser realizada diretamente pelo próprio Estado, através
de comissões compostas por servidores públicos dos órgãos governamentais envolvidos na
gestão do FSA. Como o FSA é um mecanismo seletivo, inevitavelmente os critérios de
escolha envolvem questões de mérito relativas aos projetos. Ou seja, enquanto nas leis de
incentivo, o envolvimento do Estado se limitava aos aspectos formais (contrato social da
empresa, regularidade fiscal, etc.), no FSA o Estado entra na análise do mérito.
Com isso, a participação do mercado, tanto na definição dos critérios de escolha
quanto na seleção em si dos projetos incentivados, se reduz visivelmente. O Estado deixa de
adotar uma “política neutra” para assumir uma postura mais ativa, definindo linhas de ação
prioritárias e selecionando diretamente os projetos através de uma análise de mérito sobre os
projetos inscritos, formando uma comissão composta por servidores públicos concursados.
Assim, é possível afirmar que o estabelecimento do Fundo Setorial do Audiovisual
representa uma reação ao papel do Estado na promoção das políticas audiovisuais conforme
estabelecido desde o início dos anos noventa. Ao contrário do “Estado mínimo” do Governo
Collor ou mesmo do “Estado regulador” do Governo FHC, o Estado passa a reassumir um
papel propositivo das políticas cinematográficas.

2.2 - A LEI 12.485/11 E A BUSCA PELA REGULAÇÃO DO CONTEÚDO NA


TV POR ASSINATURA
A aprovação da Lei 12.485/11 oferece novas perspectivas para a efetiva inserção da
produção independente nas grades de programação das televisões por assinatura. Trata-se,
após o fracassado projeto da Ancinav, da primeira medida efetiva de regulação de conteúdo
audiovisual. Ou seja, uma política para além da simples política de fomento, voltada à oferta
de longas-metragens cinematográficos, mas em busca de uma efetiva política de
desenvolvimento da produção audiovisual no país, articulando oferta e demanda, buscando
outros segmentos de mercado para além do cinema.
Uma das principais medidas da Lei é o estabelecimento de cotas mínimas de
programação nacional na programação da TV por assinatura, criando dois tipos distintos de
cota, as “cotas de canal” e as “cotas de pacote”. Nas “cotas de canal”, cada canal que veicule
em seu horário nobre majoritariamente conteúdo de espaço qualificado, deverá exibir no
mínimo 3h30min por semana de conteúdo brasileiro de espaço qualificado nessa faixa de
horário (Art. 16).

911

V V
De outro lado, a “cota de pacote” fornece um estímulo à programação de canais
brasileiros de espaço qualificado (CBEQ). O Art. 17 estipula que, a cada 3 canais de espaço
qualificado existentes em cada pacote ofertado ao assinante, ao menos 1 deles deverá exibir
majoritariamente conteúdos brasileiros de espaço qualificado em seu horário nobre. Essa
medida fortalecerá os programadores e empacotadores de canais independentes de produção
nacional que não conseguiam ser incluídos no line up das operadoras, por concorrerem com
um canal similar de propriedade indireta da própria operadora ou por pertencerem a um grupo
concorrente. É o caso do canal Cinetvbrasil, ou mesmo do Canal Brasil. Além disso, essa
medida permitiu a criação de novos canais, como o Prime Box e canal Curta!.
Os dois tipos de cotas se complementam, estimulando tanto a presença de conteúdo
brasileiro nos canais de programação estrangeira quanto a existência de novos canais,
programados por empresas nacionais, dedicados majoritariamente a conteúdos brasileiros.
Mas como suprir a demanda por esses novos conteúdos? Para isso, a Lei aumenta os
valores de arrecadação da CONDECINE, estendendo a tributação às empresas prestadoras de
serviço que tenham a capacidade operacional de distribuir os conteúdos previstos pela Lei,
abrangendo as empresas de telecomunicações como contribuintes. Desse modo, estima-se que
a CONDECINE teria recursos adicionais da ordem de R$600 milhões por ano para a
produção dos novos conteúdos. A execução dos valores será através do FSA, que passou a
apresentar novas linhas específicas para atender a essa demanda crescente.
Dessa forma, a Lei 12.485/11 estabelece a possibilidade de um mercado audiovisual
para a produção independente brasileira na TV por assinatura. O crescimento da produção
audiovisual é visível, assim como o aumento no número de empregos e a demanda por
técnicos qualificados. Outros desafios ainda precisam ser enfrentados pela legislação. Um
deles é o estímulo à produção regional e o desenvolvimento das produções fora do eixo Rio-
São Paulo para o atendimento dessa crescente demanda, de forma a descentralizar a produção
audiovisual.

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que as linhas de ação do FSA tenham apontado para uma nova condução do
Estado nas políticas audiovisuais, ainda permanecem os desafios para o desenvolvimento do
mercado audiovisual, tendo em vistas o atingimento das metas do PDM e a consecução dos
objetivos da ANCINE.

912

V V
Ainda que sejam vistos avanços nas novas linhas, como os investimentos em carteiras
de projetos, o suporte automático e a suplementação regional, a política de investimentos do
FSA permanece ligada uma lógica tradicional de investimento em projetos, seja em
desenvolvimento, produção, distribuição e exibição. Ainda que um pouco mais diversificados,
os investimentos permanecem concentrados na produção audiovisual.
A Lei 12.485/11 inaugurou uma política de regulação de conteúdo no segmento de TV
por assinatura, garantindo a presença de produção brasileira e de produção independente nos
canais e pacotes desse segmento de mercado. No entanto, ainda permanecem desafios a serem
superados. Esse mecanismo funcional tal qual a "cota de tela" do segmento de cinema,
ampliado para a TV por assinatura. Corresponde a um percentual pequeno, de
aproximadamente 8% do tempo de programação dos canais de espaço qualificado. Ainda,
avança pouco quanto à regionalização das obras produzidas, que, aliás, é um preceito
constitucional que não foi regulamentado.
Se os dois mecanismos instauram novas perspectivas para a política audiovisual
brasileira neste século, ainda persistem muitos desafios para o atingimento dos objetivos da
ANCINE e estabelecidos no Plano de Diretrizes e Metas (PDM). É preciso investir em
incubadoras, em arranjos produtivos locais, em projetos de inovação, em infraestrutura
técnica, em modelos de produção menos hierarquizados, atentar para os nichos de mercado,
promover sinergias entre agentes intermediários cuja atividade principal não seja o
audiovisual, estimular os mercados regionais e locais de audiovisual. É preciso também
investir fortemente na formação de talentos, mediante o estímulo à pesquisa, à publicação de
estudos e livros, à formação de cursos de pós-graduação, especialmente em gestão e em
empreendedorismo, à concessão de bolsas de estudo, especialmente no exterior. É preciso
buscar um equilíbrio entre o fortalecimento das empresas produtoras e das distribuidoras
independentes para a realização de obras com nítido apelo comercial e o estímulo à pesquisa e
à produção de obras com uma linguagem inovadora, revelando novos talentos e perscrutando
outros aspectos da sociedade e da cultura brasileira. É preciso estimular os mercados
regionais, fora do eixo Rio-São Paulo, descentralizando a produção independente no país.
Muito ainda há por se fazer, mas os avanços da política pública para o audiovisual nas
últimas duas décadas são consideráveis.

913

V V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Paulo Sérgio e BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio de
Janeiro: BNDES/Aeroplano, 2003.

CATANI, Afrânio Mendes. Política cinematográfica nos anos Collor (1990-1992): um


arremedo neoliberal. In: Revista Imagens, nº 3. Campinas: Editora da Unicamp, dezembro
1994.

CESNIK, Fábio. Guia do incentivo à cultura. Barueri: Manole, 2002.

CESÁRIO, Lia Bahia. Uma análise do campo cinematográfico sob a perspectiva industrial.
Niterói: Dissertação de Mestrado em Comunicação Social – PPGCOM/UFF, 2009.

LOPES, Denise. Cinema brasileiro pós-Collor. Niterói: Dissertação de Mestrado em


Comunicação Social – PPGCOM/UFF, 2001.

MARSON, Melina. O cinema da retomada: Estado e cinema no Brasil da dissolução da


Embrafilme à criação da ANCINE. Campinas: Dissertação de Mestrado em Sociologia –
IFCH/Unicamp, 2006.

SELONK, Aleteia. Distribuição cinematográfica no Brasil e suas repercussões políticas e


sociais: um estudo comparado da distribuição da cinematografia nacional e estrangeira. Porto
Alegre: Dissertação de Mestrado em Comunicação Social – PUC/RS, Porto Alegre, 2004.

ZAVERUCHA, Vera. Lei do Audiovisual: passo a passo. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.

914

V V
LONA CULTURAL ITINERANTE: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
POLÍTICA E CULTURAL
Marcia Barros Ferreira Rodrigues1
Clarkson Machado Diniz2
Rosely Maria da Silva Pires3

RESUMO: O presente artigo se inscreve no âmbito temático das políticas culturais e tem
como objeto de reflexão o homicídio juvenil. O estado do Espírito Santo é tomado como
escopo empírico, particularmente os municípios de Serra e Vitória. O objetivo geral é propor
um projeto de intervenção e prevenção ao envolvimento dos jovens no crime do homicídio
onde o Brasil e o ES ocupam lugar de destaque nas estatísticas criminais mundiais. Público
alvo: jovens entre 12 e 18 anos em situação de vulnerabilidade social. A metodologia toma
como ferramenta base atividades artístico-culturais, articuladas aos quatro princípios do
projeto: o protagonismo, enquanto respeito ao desejo do sujeito; a responsabilização como
processo de conscientização das consequências dos atos praticados, a sociabilidade positiva
como aprendizado coletivo e solidário no uso do espaço comum e o principio fundamental do
exercício consciente da cidadania.

PALAVRAS-CHAVES: Política cultural; arte; juventude; crime; cidadania.

O presente artigo se inscreve no âmbito temático das políticas culturais e tem como
objeto de reflexão uma proposta de intervenção na vitimização do crime do homicídio no
Brasil. Especificamente nossa proposta toma como escopo empírico o homicídio no Espírito
Santo em particular nos municípios de Serra e Vitória na Região metropolitana da Grande
Vitória. Nosso objetivo é realizar uma reflexão e propor uma intervenção em caráter
preventivo ao envolvimento dos jovens no crime de homicídio. Público alvo: jovens entre 12
e 18 anos em situação de vulnerabilidade social. A metodologia proposta é fruto das
experiências e conhecimentos acumulados e obtidos por nossa equipe permanente há mais
de uma década.4 O diferencial metodológico da proposta Lona Cultural Itinerante é a ênfase

1
Marcia Barros Ferreira Rodrigues, Pós doutora pela UFF em Ciência Política, Doutora em História Social pela USP.
Professora Associada da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), contato mbfrodrigues@gmail.com.
2
Clarkson Machado Diniz, doutorando em História Social das Relações Políticas pelo PPGHIS/UFES, mestre
Administração pela UFES. Professor do IFES no curso de Administração, campus Cariacica, contato
clarksondiniz@gmail.com.
3
Rosely Maria da Silva Pires, mestrado em Educação, área de concentração em políticas públicas pela Universidade
Federal Fluninense. Prof. Assistente da UFES, contato roselysilvapires@hotmail.com.
4
Diagnóstico sócio criminal, Serra Cidade da Paz em, 2006-2007; diagnóstico Serra: Agenda do Futuro 2012-2032
realizado em 2012; consultoria realizada em 2011 na ONU HBITAT em São Pedro, por meio do projeto “Segurança
Cidadã: prevenindo a violência e fortalecendo a cidadania com foco em crianças, adolescentes e jovens em condições
vulneráveis em comunidades brasileiras”; visita técnica, realizada em maio de 2014 ao México com financiamento da

915

V V
nas atividades artístico-culturais como ferramentas articuladas a quatro princípios: o
protagonismo, a responsabilização, a sociabilidade positiva enquanto aprendizado coletivo e
solidário no uso do espaço comum e o por último, o principio fundamental do exercício
consciente da cidadania. Nossa proposta tem uma perspectiva geral e um olhar particular.
Ou seja, ajustada as especificidades culturais locais, propomos uma metodologia
denominada Formação em Cidadania Cultural (FCC), que apresenta um novo paradigma
para projetos de intervenção social preventiva com jovens em situação de vulnerabilidade
social em nível nacional e local. Nossa perspectiva, sustentada em nossa experiência, parte
do princípio de que é possível formar jovens cidadãos a partir da cultura por meio da arte.
Desde que a sustentabilidade das potencialidades desenvolvidas pelo exercício efetivo do
protagonismo juvenil seja garantida para que seja possível o exercício da cidadania
consciente. Isso implica necessariamente na negação explícita do autoritarismo, que decide
os projetos de cima para baixo sem escutar e respeitar as demandas do sujeito, do
paternalismo e do assistencialismo que perpetuam as vulnerabilidades e não contribuem para
o exercício da cidadania.

Justificativa e fontes:
O homicídio de jovens no Brasil é um fenômeno que vem chamando a atenção há um
longo tempo por parte tanto dos órgãos internacionais ONU e UNESCO quanto do campo
acadêmico, com produções maciças e comprobatórias da tese de que está em curso: o
genocídio juvenil (WAISELFISZ, 2014). Entretanto, a despeito de todos os diagnósticos e
prognósticos produzidos ao longo das últimas décadas esse quadro não apresenta sinais de
arrefecimento, o que faz com que cada vez mais a sociedade e seus diversos segmentos
sejam conclamados a agir, conforme as possibilidades das organizações públicas e privadas
no âmbito econômico, social, político, cultural e educacional.
Nesse sentido, a despeito da nossa Constituição Federal e o Estatuto da Criança e o
do Adolescente (1990), quanto os Documentos internacionais como a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948), Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986) e a
Declaração Universal dos Direitos da Criança e Adolescente (1959), estabelecerem
determinações claras acerca da responsabilidade de todos quanto à garantia não só da vida,

FAPES à ONG Circo Volador, que atua desde 2004 em contexto social com jovens, muito similar ao canário capixaba
e projetos de extensão pela UFES realizados em parceria com a ONG Legião da Boa Vontade no bairro de Inhanguetá
na região metropolitana da grande Vitória ES.

916

V V
mas também ao bem-estar e direito ao desenvolvimento dos jovens, torna-se crucial a
participação do estado e da sociedade civil na promoção desses direitos. Diante desse
quadro, a prerrogativa fundamental dessa proposta se assenta no fortalecimento da educação
para a paz e a necessidade de uma aproximação mais efetiva e afetiva dos jovens e
adolescentes em busca de um processo de sensibilização e conscientização desse sujeito de
direito quanto à sua real importância na sociedade e no futuro do país e no exercício pleno
da cidadania. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, OMS, “O Brasil tem o
maior número de homicídios do mundo” 5. De cada 100 assassinatos no mundo, 13 são no
Brasil. Segundo o documento, o total de homicídios no mundo chegou a 475 mil. Os dados
são de 2012. O Brasil é o líder no ranking. O governo brasileiro informou 47 mil homicídios
em 2012, mas a OMS estima que o número real tenha sido muito superior: mais de 64 mil
homicídios. Depois do Brasil aparecem Índia, México, Colômbia, Rússia, África do Sul,
Venezuela e Estados Unidos. Se for levado em consideração o número de crimes e o
tamanho da população, ou seja, em termos proporcionais, Honduras é o primeiro país da
lista, seguido pela Venezuela. O Brasil, nesse cálculo, surge como o 11º lugar. A OMS
calcula que no Brasil a cada 100 mil pessoas, 32 sejam assassinadas, a faixa etária de
concentração dessas mortes é entre 15 e 25 anos. O víeis racial também chama atenção.
O estado do Espírito Santo, nas três últimas décadas entre 1979-2009 apresentou um
crescimento real de cerca de 700% no número de homicídios, saltando de 256 (12,65
homicídios por 100mil habitantes) no final da década de 1970, para 2034 homicídios em
2009 (58,32 homicídios por 100mil habitantes). Segundo dados oficiais da Secretaria
Especial de Ações Estratégicas do ES, de 2010 a 2014, houve um pequeno decréscimo nos
números, mais continua muito acima do considerado tolerável. A Região Metropolitana da
Grande Vitória (RMGV) é responsável por cerca de 70% do total de homicídios no Espírito
Santo. Entretanto, esse tipo de crime não ocorre de forma uniforme no ambiente
metropolitano, mas restrito a alguns bairros, ou conjunto de bairros, via de regra, de forma
concentrada e em regiões com elevada densidade demográfica, de ocupação recente (nos
últimos 30 anos), com baixo índice de urbanização, infraestrutura habitacional e
desenvolvimento socioeconômico. A escolha dos municípios de Serra e Vitória se justifica
pelo fato desses municípios integrarem a RMGV que concentra cerca de 70% dos crimes de

5
Ver “Brasil tem o maior número de homicídio do mundo, aponta a Organização mundial da saúde”. Jornal Metro.
Disponível em WWW.metrojornal.com.br.br/nacional/brasil/brasil-tem-o-maior-numero-de-homicidio-do-mundo-
aponta-oms-150509. Acessado em 29/03/2015.

917

V V
homicídios do estado. Segundo dados primários do CIODES (Centro Integrado Operacional
de Defesa Social da PM/ES) e consolidados pela SEAE/ES – Secretaria Especial de Ações
Estratégicas, na série temporal de 2005-2013, considerando os homicídios dolosos
consumados, incluindo tentativa de homicídio com comunicado de morte, o estado do
Espírito Santo apresenta os seguintes números absolutos.

ÍNDICES DE SERRA NOS BAIRROS DE FEU ROSA E VILA NOVA DE COLARES


E INHANGUETÁ EM SÃO PEDRO
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
ESPIRITO SANTO 1.704 1.857 1.903 1958 2.034 1.845 1.709 1.702 1.565
RMGV 1.202 1.288 1.330 1.358 1.315 1.175 1.098 1.044 964
SERRA - - - - - - - 344 344 155
CARIACICA - - - - - - - 289 222 113
VILA VELHA - - - - - - - 216 204 117
VITÓRIA
- - - - - - - 113 116 55

Fonte: Centro Integrado Operacional de Defesa Social da PM/ES) e SEAE/ES – Secretaria


Especial de Ações Estratégicas, série temporal de 2005-2013.

HOMICÍDIOS 2014
MESES VITORIA SERRA CARIACICA VILAVELHA TOT MÊS
JAN 12 40 25 25 102
FEV 14 28 26 21 89
MAR 11 34 24 22 91
ABR 9 24 17 24 74
MAI 9 29 21 25 84
TOT
CIDADE 55 155 113 117

Fonte: Centro Integrado Operacional de Defesa Social da PM/ES) e SEAE/ES – Secretaria Especial de Ações
Estratégicas, série temporal de 2005-2013

Isto posto, a escolha do escopo empírico para nossa reflexão e proposta selecionou o
Espírito Santo e os bairros de Feu Rosa e Vila Nova de Colares no município de Serra, em
função dos altos índices de homicídio juvenil, por serem bairros limítrofes e por termos

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identificado em pesquisa anterior, uma divisão simbólica entre os moradores que se dividem
entre estabelecidos e outsides (RODRIGUES e DADALTO, 2013). Dessa forma, nossa
proposta prevê a instalação da Lona Cultural Itinerante, estrategicamente num ponto de
intersecção entre esses dois bairros com a intenção de provocar uma reflexão sobre essa
divisão e a possibilidade de integração de convívio. Essa estratégia é em função de não se
observar em Feu Rosa e Vila Nova de Colares um acirramento entre gangues pela disputa do
tráfico.
Já no município de Vitória a escolha foi o bairro de Inhanguetá na grande São Pedro,
em função da estimada redução dos índices de homicídio em São Pedro, pela Secretaria
Estadual de Ações Eestratégicas/ES, em contraposição a nossa observação e experiência. A
escolha de um só bairro no município de Vitória é em função da complexidade da dinâmica
criminal da grande São Pedro, onde foi identificado grande disputa de gangues pelo tráfico
no local. Sendo assim, o bairro de Inhanguetá ao mesmo tempo exige uma ação preventiva e
concomitantemente tem uma dinâmica criminal ameaçadora e baseada no medo, que
dificulta a circulação dos jovens no bairro. Entretanto, a parceria da ONG Legião Brasileira
da BoaVontade (LBV) é importante, pois além de atuar por 50 anos no local é um espaço
neutro e estratégico e que detém um cadastro dos jovens até 12 anos o que permite acesso
privilegiado à nossa população alvo (12 a 18 anos), pois a despeito de está fora da atuação
da LBV, pela faixa etária e também pela metodologia e abordagem, o cadastro nos permite
localizar o público alvo. Quanto ao local de instalação da Lona Cultural Itinerante, nesse
bairro, deve garantir a circulação dos jovens sem conflito com as gangues. Para o êxito do
projeto a duração da intervenção da Lona Cultural Itinerante nesses locais é estimada em no
mínimo dois anos, respectivamente.

Logística do projeto
Nossa proposta prevê realizar uma etapa prévia de mobilização, a partir da
aprovação, com o poder público local – Prefeituras, buscando apoio legal e logístico para a
instalação da Lona no local indicado, garantindo segurança e preservação em termos de
defesa social. A etapa prévia consiste em informar e buscar apoio logístico do gestor público
– isso é o Prefeito dos municípios de atuação da Lona Cultural Itinerante. O instrumento
para isso é o plano de comunicação realizado pelo coordenador geral do projeto e produtor
cultural. O espaço físico de realização do projeto Lona é uma lona com capacidade para 500
pessoas, formato circo ou aranha, com 500 metros quadrados. Infraestrutura inclusa:

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montagem, banheiro químico e cerca. O espaço físico da Lona se justifica pelo fato de
proporcionar um espaço autônomo e neutro, com dimensões para abrigar todas as atividades
previstas no projeto e que acontecerão simultaneamente possibilitando a circulação dos
jovens em diversas atividades facilitando o convívio comum, a responsabilidade pela
limpeza e organização do espaço, buscando a sociabilidade solidária, fundamental para o
exercício da cidadania e execução da nossa proposta metodológica. Quanto à estrutura
logística de instalação e funcionamento da Lona está previsto no escopo do projeto.
Entretanto é necessário parceria antes do início do projeto, com o poder público local –
Prefeituras, no sentido de otimizar a preservação e o funcionamento da Lona durante o
período execução.
Os critérios de seleção da população alvo deverá ter a duração de um mês em cada
município e pelo caráter preventivo do projeto a seleção dos beneficiários diretos terá
critérios específicos: Jovens que tenham o perfil de vítimas do crime do homicídio:
majoritariamente do gênero masculino; classes C, D, E; afrodescendentes; moradores dos
bairros selecionados; faixa etária de 12 a 18 anos; fora da escola ou envolvido em conflitos
ou atos indisciplinares; fora do mercado formal; situação de vulnerabilidade social dada pela
sujeição criminal: características genotípicas, fenotípicas e culturais. Por quê? Pelo fato da
sujeição criminal legitimar uma identificação prévia que criminaliza o sujeito. Por sujeição
criminal entendemos o processo de criminalização que reforça estereótipos, aciona ódios
recíprocos e tece uma teia de significados que possibilitam a suspeição. Ou seja,
características genotípicas, fenotípicas e culturais que estigmatizam o sujeito tornando-o
suspeito previamente da ação criminal, tais como: cor, tipo físico, vestuário, gosto musical,
local de moradia e linguagem. (MISSE, 2012) Nesse sentido, nossos critérios de seleção
pretende atingir diretamente esse público para fortalecer os laços de proteção e solidariedade
no local de vivência desses jovens, oferecendo possibilidades de formação cultural por meio
da arte, protagonismo e exercício da cidadania, agindo pontualmente na prevenção a
vulnerabilidade que sustenta a sujeição criminal. (RODRIGUES e DADALTO, 2014).
Os instrumentos de seleção serão diferenciados por bairros de acordo com o
conhecimento prévio da realidade local em relação ao público alvo por meio de diagnósticos
existentes ou a ser realizado. Incluí-se também contato com lideranças informais, grupos de
enfoque com a população alvo e entrevistas com a população alvo, cadastro
socioeconômico, relatórios das atividades de projetos de extensão e grupos de enfoque com

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a população alvo. A Meta da seleção é identificar jovens em situação de vulnerabilidade
social dada pela sujeição criminal para selecionar os beneficiários.

Metodologia
Nossa metodologia é fruto das experiências e conhecimentos acumulados e obtidos
por nossa equipe permanente em vários projetos tanto de pesquisa quanto de intervenção
realizados nos municípios do estado do Espírito Santo em particular, Serra e na grande São
Pedro, o que atesta nossa expertise, capacidade técnica e acadêmica para atuação na área
temática proposta. Contendo uma proposta local que pode ser generalizada para uma
ampliação regional ou nacional.
A partir do panorama apresentado pelos dados empíricos que comprovam a
gravidade da situação do homicídio juvenil no Brasil e especificamente, no Espírito Santo.
Enfatizamos que o projeto Lona Cultural itinerante busca atuar na prevenção do
envolvimento dos jovens no crime e contribuir na diminuição dos altos índices de homicídio
que vitimiza os jovens nas Regiões metropolitanas em geral. O diferencial metodológico do
projeto Lona Cultural itinerante é a ênfase nas atividades artístico-culturais, como
ferramenta, articuladas de forma dialética a quatro princípios: O protagonismo, entendido
como respeito ao desejo do sujeito; a responsabilização enquanto processo de
conscientização das consequências dos atos praticados, a sociabilidade positiva enquanto
aprendizado coletivo e solidário no uso do espaço comum; o principio fundamental do
exercício consciente da cidadania.
Em função dos princípios enunciados, nossa intervenção parte da Oficina Base da
Formação em Cidadania Cultural (FCC), denominada: Essência e existência do ser, como
início do tratamento do problema. O funcionamento da Lona tem a seguinte logística: A
Lona comportará todas as atividades do Projeto desde a primeira etapa: Oficina Base com
suas atividades até a segunda etapa com as quatro oficinas, que funcionarão
simultaneamente. Portanto, perfazendo um período de 10 meses, nos bairros selecionados,
respectivamente. A terceira etapa (dois meses) é avaliação, monitoramento e relatório. Para
tal a Lona precisa ter uma dimensão espacial suficiente para abrigar as atividades da Oficina
de base com funcionalidade e os três palcos, onde acontecerão as oficinas de teatro, música e
dança e um espaço para livre para a oficina de desenho.

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A ideia da Lona Cultural Itinerante é a de movimento num mesmo espaço físico. Um
espaço de trânsito e convívio comum em diversas atividades simultâneas. A Lona Cultural
Itinerante concentra suas ações em atividades artístico-culturais por entender que a arte é o
meio eficaz para atingir o jovem no seu desejo. E por isso, instrumento fundamental no
estabelecimento do diálogo. Exatamente por ser o meio por excelência da manifestação da
expressão humana. O funcionamento da Lona enquanto espaço de trânsito é primordial para
o estabelecimento de limite e obedece a orientação pedagógica que estimula a convivência
solidária e criativa com respeito ao espaço comum como exercício fundamental da
cidadania.
A primeira Etapa do Projeto deverá ter a duração de dois meses, sendo três vezes por
semana. A Oficina Base: Formação em Cidadania Cultural ( FCC) é a primeira fase do
projeto e constituí um diagnóstico prévio e pontual que visa o delineamento da essência do
sujeito, no caso jovens em situação de vulnerabilidade social, por meio da valorização da sua
fala, da escuta e percepção sensorial de suas demandas, como meio de capturar e identificar
as subjetividades, as identidades, o sentimento de pertencimento social, a identificação das
vulnerabilidades aos quais estes jovens estão sujeitados (sujeição criminal), o despertar das
potencialidades e o exercício da cidadania por meio da arte. Entendida por nós, como única
forma de integralizar o indivíduo esfacelado e torná-lo cidadão (BERLINCK, 1998).
O enfoque metodológico das atividades da Oficina Base em FCC - Essência e
existência do ser deverão operar em dois níveis: Situações experienciais: Nesse 1º nível
opera-se com atividades simples que permitam aos jovens o compartilhamento de
experiências individuais e coletivas e que viabilizem a escuta e a percepção sensorial de suas
demandas. Para tal, serão criados processos que favoreçam o clima de espontaneidade das
diversas formas de expressão. Atividades: Jogos, dramatizações, relatos de casos, vídeos,
desenhos, exercícios de musicalidade e dança. A coleta de dados se dará por: Relatórios das
demandas produzidos pela observação participante dos profissionais envolvidos nas
atividades. Profissionais: Artista plástico, psicólogo e musicista com experiência no trato
com o público alvo. A meta parcial do nível um é: Destacar e valorizar os elementos
motivadores da expressão da subjetividade da população alvo como forma de incentivar o
exercício da cidadania. Atividade: Rodas de discussão.
No 2º nível opera-se com a análise dos relatórios gerados destacando as sensações,
emoções e demais efeitos percebidos na primeira fase. Neste nível trata-se não apenas de
experimentar situações novas, expor com liberdade sentimentos e ideias, mas principalmente

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da reflexão sobre a importância do exercício da cidadania enquanto direito de expressão do
indivíduo. Atividade: Debate dirigido ou livre, conforme o caso, com intervenção dos
participantes e dos observadores. Profissionais: Sociólogo e psicólogo especializados no
tema e com experiência no trato com o público alvo. Coleta de dados – Os dados serão
coletados pelos observadores que dirigiram os debates e que farão os relatórios. Meta parcial
do nível 2: Registro e confecção coletiva de um mapa da cultura local, das subjetividades, do
pertencimento social, das vulnerabilidades expressas pelas características da sujeição
criminal e potencialidades da população alvo. O número de beneficiários na primeira etapa
será de 200 jovens nos bairro selecionados respectivamente pela Oficina de base FCC. A
meta final a ser alcançada é construir o que denominamos de: Mapa Sócio-Cultural-Afetivo,
que servirá de parâmetro para as oficinas da segunda etapa do projeto que irão introduzir os
jovens em novos valores e capacitá-los para os princípios básicos do projeto: protagonismo,
responsabilização, sociabilidade positiva e exercício consciente da cidadania.
A segunda Etapa do projeto deverá ser de sete meses em cada bairro selecionado. A
partir do mapa sócio-cultural-afetivo, deverá ter início a segunda etapa do projeto que é a
construção coletiva e o planejamento, por profissionais especializados, das oficinas de cunho
artístico-cultural que serão desenvolvidas no espaço de sociabilidade comum, a Lona
Cultural Itinerante. A proposição das oficinas não significa imposição, mas estratégia
metodológica para uma aproximação mais efetiva com o publico alvo. As oficinas propostas
são quatro: Oficina de Teatro, oficina de Música; oficina de Dança; oficina de Desenho.

A filosofia
A Filosofia das oficinas na segunda etapa é articular os quatro princípios:
protagonismo, responsabilização, sociabilidade positiva e o exercício da cidadania por meio
da arte, tendo por base a filosofia de que um projeto social não deve nivelar as atividades
somente pelo gosto médio detectado no público alvo. O propósito é oferecer a demanda
solicitada, mas também apresentar um leque de opções culturais.
A escolha dessas oficinas não é aleatória está sustentada pelo conhecimento teórico e
também indiciário baseado na experiência, intuição, pistas, sensibilidade e faro, dos
profissionais que entendem a música, a dança, o teatro e o desenho como atividades
pedagógicas que permitem a comunicação e possibilitam ler o desejo dos jovens. Para tal, os
profissionais que participarão das oficinas serão especialistas no trato com o público alvo
com base nos saberes, nas vivências e experiências. Cada jovem é um texto. Desse modo, a

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ideia da Lona Cultural Itinerante é de um espaço comum onde o jovem possa transitar com
liberdade tanto espacialmente como culturalmente nas quatro oficinas, conhecendo e
participando num ambiente de diversidade. (RODRIGUES, 2005).

Política cultural: Produção de indicadores


O propósito das oficinas é atingir os indicadores qualitativos e quantitativos
(JANNUZZI, 2006). Os indicadores qualitativos serão alcançados no tempo proposto por
este projeto, ou seja, dois anos, além de permitir o monitoramento e avaliação das metas em
curto prazo. Já que a perenidade, ou seja, as metas em médio prazo poderão ser medidas e
avaliadas pelos indicadores quantitativos, após o projeto, ao longo de cinco anos.
Os Indicadores qualitativos: interesse e participação nas oficinas; responsabilização;
percepção de valores solidários; identificação das potencialidades; percepção da sujeição
criminal. Indicadores quantitativos: diminuição do envolvimento dos jovens em atos
infracionais; retorno à escola; aumento do rendimento escolar; exercício consciente da
cidadania, mensurados pela participação dos jovens em conselhos, movimentos populares e
culturais, exercício de voto consciente etc.
A oficina de teatro será desenvolvida por teatrólogo, auxiliares e produtor cultural.
Este último trabalhará nas quatro oficinas e será responsável por toda logística de
infraestrutura e funcionamento da Lona Cultural durante o período de duração do projeto,
assim como pela captação e contratação dos artistas específicos para cada uma das quatro
oficinas, garantindo não só a expertise em relação ao público alvo como também a qualidade
do desempenho do artista e cumprimento de prazos. A Atividade desenvolvida será decidida
depois da oficina de base. A Meta da oficina um é desenvolver atividade que permita
introduzir os jovens nos princípios básicos do projeto articulados aos indicadores
qualitativos e quantitativos. O prazo de atuação é sete meses três vezes por semana.
Produtos: Instrumento de avaliação: 1) Relatórios parciais por meio da observação
participante e indiciária; 2) Questionários e estatísticas oficiais; 3) Grupo de enfoque. (4)
Mesa de discussão ampliada. Profissionais: sociólogo e psicólogo. A Coordenação geral será
responsável pela orientação metodológica geral garantindo a articulação com os quatro
princípios básicos que orientam o projeto, bem como auxiliando na produção dos
instrumentos de avaliação em cada oficina.
A oficina de música será desenvolvida por musicista, auxiliares e estudantes de artes
plásticas. A Atividade desenvolvida será decidida depois da oficina de base. A Meta da

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oficina dois é desenvolver atividade que permita introduzir os jovens nos princípios básicos
do projeto articulados aos indicadores qualitativos e quantitativos. Período de 7meses três
vezes por semana. Produtos: Instrumentos de avaliação: 1) Relatórios parciais por meio da
observação participante e indiciária; 2) Questionários e estatísticas oficiais; 3) Grupo de
enfoque; 4)Mesas de discussão ampliada. Profissionais: sociólogo, e psicólogo. A
coordenação geral será responsável pela orientação metodológica geral, garantindo a
articulação com os quatro princípios básicos que orientam o projeto, bem como auxiliando
na produção dos instrumentos de avaliação em cada oficina.
Oficina de dança será desenvolvida por um coreógrafo e dançarino, auxiliares
estudantes de artes plásticas. A atividade será decidida depois da oficina de base. A Meta da
oficina três será desenvolver atividade que permita introduzir os jovens nos princípios
básicos do projeto articulados aos indicadores qualitativos e quantitativos. O prazo de
atuação é sete meses três vezes por semana. Produtos: Instrumentos de avaliação: 1)
Relatórios parciais por meio da observação participante e indiciária; 2) Questionários e
estatísticas oficiais; 3) Grupo de enfoque; 4) Mesas de discussão ampliada; Profissionais:
sociólogo e psicólogo. A coordenação geral será responsável pela orientação metodológica
geral garantindo a articulação com os quatro princípios básicos que orientam o projeto, bem
como auxiliando na produção dos instrumentos de avaliação em cada oficina.
Oficina de desenho será desenvolvida por artista plástico, auxiliares estudantes de
artes plásticas. A atividade desenvolvida será decidida depois da oficina de base. A Meta da
oficina quatro será desenvolver atividade que permita introduzir os jovens nos princípios
básicos do projeto articulados aos indicadores qualitativos e quantitativos. O prazo de
atuação é sete meses três vezes por semana. Produtos: Instrumentos de avaliação: 1)
Relatórios parciais por meio da observação participante e indiciária; 2) Questionários e
estatísticas oficiais; 3) Grupo de enfoque; 4)Mesas de discussão ampliada. Profissionais:
sociólogo e psicólogo. A coordenação geral será responsável pela orientação metodológica
geral garantindo a articulação com os quatro princípios básicos que orientam o projeto, bem
como auxiliando na produção dos instrumentos de avaliação em cada oficina.

Protagonismo juvenil
A missão do projeto é oferecer condições para que o protagonismo juvenil realmente
aconteça. Não acreditamos no paternalismo e tampouco no assistencialismo. Assim, os
indicadores qualitativos deste projeto, não serão nivelados somente pelas demandas

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solicitadas, mas pelo oferecimento ampliado do universo artístico que incluí a circularidade
entre os gostos e as culturas popular e erudita. A demanda não será atendida sem reflexão
crítica. Educar é estabelecer limites, dar forma ao sujeito num exercício conjunto de baixo
para cima, entretanto, sem democratismo e paternalismo.
Partimos da perspectiva pedagógica essencialista ou estética, em que as artes são
concebidas enquanto linguagens, como sistemas semióticos de representação
especificamente humanos. E nesse particular, permite lidar com sistemas complexos, com
signos, leituras e compreensão da realidade que, se bem conduzido, pode levar o jovem a se
apropriar da linguagem e ampliar sua comunicação:

“O objetivo do ensino das artes, para a concepção pedagógica


essencialista, não é a formação de artistas, mas o domínio, a fluência e a
compreensão estética dessas complexas formas humanas de expressão que
movimentam processos afetivos, cognitivos e psicomotores” (JAPIASSU,
2001, p. 24).

Desde o nascimento, cada criança desenvolve maneiras de se expressar buscando


uma comunicação com o mundo que a rodeia, seja através do choro, do riso, na recepção do
alimento, ou ainda na manifestação de incômodos com movimentos mais vigorosos. À
medida que cresce, descobre seus sons, seus movimentos, percebe as cores: mapeia
gradativamente seu entorno. Essas manifestações vão dando lugar a uma linguagem que é
individual, mesmo que produzida no coletivo. É a sua maneira de se expressar. Ao ir para a
escola, ou até mesmo em sua casa, a criança transforma cada ponto desses em mímica, dança
teatro, desenho: ou seja, cada vez mais, ela corporifica e registra essas percepções ou
sensações diante do mundo, através de jogos, que podem ser musicais, plásticos ou
dramáticos (espontâneos ou orientados). Neste aspecto, Olga Reverbel salienta a
importância do teatro no processo educativo da criança e faz um levantamento sobre a
presença marcante do teatro na educação através dos tempos, a partir do olhar de grandes
pensadores como Platão, Aristóteles, Locke entre outros. Em Rousseau, destaca que o início
do processo educativo das crianças deveria ser quase inteiramente baseado em jogos:
Ame a infância, estimule seus jogos, seus prazeres, seus
encantadores instintos. Considere o homem no homem e a criança na
criança. A natureza deseja que as crianças sejam crianças antes mesmo de
serem homens. Se tentarmos inverter a ordem, produziremos frutos
precoces, que não terão nem maturação nem sabor, e logo estarão
estragados (ROSSEAU apud REVERBEL, 1997, p.14).

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Essa citação referente ao pensamento de Rousseau, embora soe pessimista quanto ao
desfecho, aponta por outro lado, o reconhecimento da importância da brincadeira, do lúdico,
do estímulo à expressão em cada fase da vida humana, embora neste caso, refira-se
principalmente às crianças. Nesse sentido, entendemos que o teatro também é um grande
aliado para estimular crianças e jovens em seus caminhos expressivos, seja artisticamente,
seja diante da vida. O ensino de teatro, quando sistematizado e aberto às potencialidades
particulares pode proporcionar transformações muito ricas para o aluno que vivencia tal
experiência. No processo de ensino-aprendizagem, os alunos são estimulados a criação, a
liberarem sua expressão, muitas vezes bloqueada no intervalo entre a fase da infância para a
adolescência/juventude.
Nossa experiência aponta que o jovem quando é convidado ao processo ensino-
aprendizagem por meio das artes libera suas emoções, seus fantasmas, suas percepções de
mundo através da dramatização gráfica, visual, sonora ou corporal. A arte torna-se um canal
expressivo de proporções imensuráveis, sobretudo ao jovem que por uma série de motivos,
não teve acesso à educação de qualidade ou amparo adequado a seu desenvolvimento pleno.
Desse modo, o contato direto com a arte possibilita o desenvolvimento da expressão e da
comunicação a partir da criação e da apreciação artística que amplia a visão de mundo e
prepara para o convívio com a diversidade, seja no ambiente escolar, familiar, ou para além
dele. É nesse encontro que cada jovem poderá rever suas visões de mundo, reencontrar suas
expectativas, reafirmar sua identidade e enxergar suas potencialidades. Trata-se de uma ação
libertadora para qualquer ser humano que busca, até sem saber, a sua própria expressão.
Enfatizamos que a prerrogativa fundamental do projeto Lona Cultural Itinerante se
assenta no fortalecimento da educação incluindo a arte e a necessidade de uma aproximação
mais efetiva e afetiva dos jovens e adolescentes em busca de um processo de sensibilização
e conscientização dos seus direitos e sua real importância na sociedade e no futuro do país,
por meio do exercício consciente da cidadania. Acreditamos que o fortalecimento dos
valores que regem a convivência – a solidariedade, a liberdade, o amor, o respeito pela vida
(própria e do outro), as diferenças – deve ser impulsionado por meio de projetos e processos
pedagógicos que se aproximem desses jovens em momentos essenciais de sua vida cotidiana
nos bairros em que vivem. Pensamos junto com Kehl que é preciso criar espaços de escuta
para os jovens em que seja favorecida a convivência firmada em laços de solidariedade,
responsabilização e integração para o sucesso do protagonismo juvenil (KEHL, 2008).

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A terceira etapa do projeto será o acompanhamento e avaliação, com Duração: dois
meses. A atividade de acompanhamento se dará com base em avaliações organizadas de
forma a contemplar a objetividade e a interatividade da proposta de trabalho. Nesse sentido,
iremos consolidar os indicadores quantitativos e qualitativos combinados a partir dos dados
obtidos nas oficinas da segunda etapa pelos seguintes instrumentos: Instrumentos de
avaliação: 1) Relatórios parciais em cada etapa por meio de observação participante e
indiciária. Esse instrumento oferecerá dados tanto para a correção dos rumos do projeto
como para alimentar os indicadores qualitativos; 2) Questionários e estatísticas oficiais. Esse
instrumento oferecerá dados para a construção de indicadores quantitativos; 3) Grupo de
enfoque. Esse instrumento oferecerá dados para os indicadores qualitativos e quantitativos;
4) Mesas de discussão ampliada. Esse instrumento oferecerá dados para os indicadores
qualitativos. Profissionais: sociólogo, psicólogo, pedagogo e assistente social.

Produtos: Instrumentos de avaliação e monitoramento


O Produto final do projeto Lona Cultural Itinerante será gerar instrumentos de
monitoramento e avaliação dos resultados obtidos; produção de um livro cotendo o relato e
análise da experiência; subsídios para um Curso de pós-graduação na metodologia em
Formação em Cidadania Cultural (FCC) para capacitar educadores sociais e profissionais
que atuam em projetos de intervenção social de prevenção à criminalidade juvenil.
O resultado esperado é atingir em dois anos avaliação positiva dos indicadores
qualitativos na população alvo que participou do projeto nos bairros dos dois municípios em
Serra e Vitória. Ou seja, interesse e participação nas oficinas; responsabilização; percepção
de valores solidários; identificação das potencialidades; percepção do processo de sujeição
criminal. O impacto em médio prazo, ou seja, cinco anos, é obter avaliação positiva em
relação aos indicadores quantitativos na população alvo que participou do projeto, a saber,
diminuição do envolvimento dos jovens em atos infracionais contribuindo para a diminuição
do índice de homicídio juvenil nas áreas de atuação do projeto; retorno à escola; aumento do
rendimento escolar; exercício consciente da cidadania e protagonismo.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERLINCK, Manoel Tosta. “Alexandre e seus irmãos: Psicanálise de Pixotes?” In: Psicanálise da
clínica cotidiana. São Paulo: Escuta 1998, p. 23-42.

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V V
JANNUZZI, Paulo de Martinho. Indicadores Sociais no Brasil. Conceitos, Fontes de dados e
Aplicações. Campinas, SP: Editor Alínea, 2006, p.81-126.

JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do Ensino de Teatro. Campinas, SP: Papirus, 2001, p.24.

KEHL, Maria Rita. “O risco adolescente” In: A fratria órfã: conversas sobre juventude. São Paulo:
Olho d’Água, 2008, p.5-64.

MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a
categoria “bandido”“. Revista Lua Nova, São Paulo, 79: 15-38, 2010.

REVERBEL, Olga. Um caminho do Teatro na escola. São Paulo: Scipione, 1997, p.14.

RODRIGUES, Marcia B.F.“Razão e Sensibilidade: reflexões em torno do paradigma indiciário”. In:


(org.) VENTURA, Gilvan da Silva, NADER, Maria B., FRANCO, Sebastião P. Revista Dimensões.
As identidades no tempo: ensaios de gênero, etnia e religião, nº 17. Vitória: UFES, CCHN, 2005, p.
89-99.

RODRIGUES, Márcia B.F. e DADALTO, M.C. “Movimentos Migratórios, criminalidade e Direitos


Civis no Espírito Santo” Revista Sinais Nº14, dez. de 2013. Disponível em WWW.nei.ufes.br. p.1-
47.

RODRIGUES, M.B. F e Dadalto, M.C. “Migração e violência. O baiano na construção da sujeição


criminal na RMGV do ES”. Dilema Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, vol.7 nº1,
Jan.Fev.Mar. Rio de Janeiro. Disponível em WWW.dilemas.ifcs.ufrj.br, 2014, p. 143-166.

WAISELFSZ, Julio J. Mapa da violência. Os jovens no Brasil. Flacso: Rio de Janeiro, 2014, p. 117-
122.

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UMA EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO EM BIBLIOTECA PARQUE
Maria Antonieta Sampaio Rodrigues1

RESUMO: O presente trabalho se propõe a relatar uma experiência de mediação de leitura,


durante o ano de 2013, na Biblioteca Parque de Maguinhos. O Projeto das Bibliotecas Parque
é uma iniciativa da secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro que prioriza atividades
culturais, cursos de formação diversos e leitura para aqueles que se interessarem. Os usuários
que participam têm a possibilidade de construir um olhar mais sensível e crítico para as artes e
o que está ao seu redor.

PALAVRAS-CHAVE: Política pública cultural; Biblioteca Parque; Mediação de leitura.

UMA EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO EM BIBLIOTECA PARQUE


O projeto das Bibliotecas Parque na cidade do Rio de Janeiro, inserido em áreas
periféricas, sob o controle da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, encontra-se
fundamentado no processo de formação da cidadania e em ações de integração das
manifestações culturais e artísticas; atualmente contando com cinco unidades em
funcionamento: Biblioteca Parque de Manguinhos, Biblioteca Parque de Niterói, Biblioteca
Parque da Rocinha, Biblioteca Parque Estadual e em fase de organização a Biblioteca Parque
do Alemão. Os desafios prioritários para uma política cultural envolvem o reconhecimento e a
valorização da diversidade cultural, disponibilizando a produção de bens culturais. Baseada
no conceito de que as bibliotecas não devem ser somente espaços silenciosos, mas lugares que
se aproximem de centros culturais com ampla acessibilidade e de promoção de leitura nos
mais diversos suportes visando acesso à cultura.
A promoção da leitura é o centro do trabalho das Bibliotecas Parque. O Rio de Janeiro
vem inovando na implantação dessas bibliotecas em diversas comunidades da capital. A partir
do modelo concebido e implantado na Colômbia, as Bibliotecas Parque se fundamentam em
programas que estimulam a produção e fruição do texto da palavra através de todas as artes e
da literatura. A leitura é fundamental para a plena realização da condição humana e da
capacidade de entender o mundo. O domínio da memória escrita, as coleções de livros, o

1Mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Professora e mediadora de leitura da Bibliioteca Parque do Alemão do Estado do Rio de Janeiro. E-mail:
antonieta60@gmail.com

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acesso ao conhecimento e à poesia têm forte influência na formação cidadã. As Bibliotecas
Parque são lugares da transmissão e também das rupturas com as tradições.
A sociedade no século XXI necessita refletir sobre os empreendimentos em curso
entre nós, países latino-americanos, no que tange as políticas públicas e as práticas de leituras
ocorridas. Segundo estatísticas, cerca de 50% da população se encontra abaixo dos níveis de
pobreza. Exige-se, portanto, uma intervenção comprometida na qual todos sejam respeitados e
possam contar com uma posição digna. São necessárias mudanças significativas que ampliem
o âmbito do conhecimento de modo a orientar a população para formação de leitores. Deve-se
entender “leitor” como aquele que é capaz de ler tanto os textos quanto a realidade e, assim,
sabendo situar-se socialmente, reivindicar seus direitos de cidadania.
Para conhecer e compreender as contradições do mundo capitalista globalizado, que
exclui milhares de pessoas da participação social, é preciso recorrer aos documentos sobre as
políticas públicas de leitura. A consciência do caráter político do ato de ler é importante para
que o sujeito tenha uma atitude emancipada frente ao texto, entendendo-o como um produto e
não como verdade.
A promoção de instrumentos para ampliar sinapses mentais, como o livro e leitura,
não se dá, a partir de campanhas e programas verticais, paternalistas, pois levam ao consumo
acrítico sem despertar no cidadão autonomia de ação. Para melhorar a qualidade da educação,
faz-se necessário uma política com princípios de cidadania, comprometida com cada
indivíduo e com a coletividade, onde leitura e escrita sejam protagonistas.
O Brasil chega ao século XXI, em que a difusão do audiovisual assume significativas
proporções, com leitores ainda pouco experientes. As diretrizes para uma política pública
voltada à leitura e ao livro centrada nas bibliotecas e formação de mediadores são
contempladas no PNLL (Plano Nacional de Livro e Leitura).
O PNLL e seu desdobramento nos Planos Estaduais e Planos Municipais de Livro e
Leitura estão sendo implantados em várias cidades do país desde 2009. A leitura e a escrita
devem ser consideradas base em processos de formulação e implantação de políticas públicas
de educação e cultura dos governos em todos os seus níveis e modalidades de ensino e de
administração, e, junto com o tema das línguas, perpassá-las estruturalmente, tal como
proposto no Plano Nacional de Cultura (PNC), elaborado pelo Ministério da Cultura. A
consolidação de políticas e programas de fomento à leitura deve ser pensada a curto, médio e
longo prazos, com ênfase no caráter permanente. Nesse processo, o fomento e a elaboração de
Planos Estaduais e Municipais do Livro e Leitura articulados com o Plano Nacional se tornam

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fundamentais, mas a morosidade nas decisões e a falta de orçamento garantido comprometem
o programa.
A biblioteca se ressignifica como espaço de interações multimídias, multigeracional,
mantendo como estrutura viva e dinâmica a função pública de um espaço de encontro. É
através do convívio que se promove o acolhimento e irradiação de novos valores de cidadania
cultural. Como parte da estrutura, deve-se investir na relação biblioteca – educação, cultura e
tecnologias de compartilhamento buscando atendimento/acolhimento de diferentes públicos –
principalmente os jovens, ampliando o alcance para as famílias e o público infanto-juvenil.
Para se atingir esses públicos é preciso cuidado especial com o ambiente vivo da programação
da biblioteca, com a formação de horizontes de pertencimento e convivência através de
atividades, cursos, palestras, assim como encontros em oficinas com artistas, atores e
educadores.
A Biblioteca Parque de Manguinhos, inserida no projeto de urbanização de
comunidades do Rio de Janeiro, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
foi inaugurada em abril de 2010, em seus 2.3 mil m2, possui um confortável salão principal,
um amplo salão de leitura, salas para cursos, estudos, reuniões e fóruns, espaço multimídia,
biblioteca infantil, um cineteatro com 200 lugares, DVDteca, sala de música e espaço para
leitores especiais. Esta biblioteca pública contemporânea busca ampliar sua função
informativa e transforma-se em espaço de convivência, articulando-se entre a cultura erudita,
as dimensões populares, as diversidades locais e as linguagens contemporâneas.
O modelo atual de formação de mediadores foi desenvolvido em parceria com a
Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, que selecionou e formou agentes de leitura em alguns
estados brasileiros.2 .
Pensar a leitura é próprio da mediação, da diferença mediada tratada pela
hermenêutica contemporânea, uma busca pelo diálogo, da leitura como prática de linguagem,
de comunicação, de construção do comum e do singular, tanto no espaço como no tempo.
Considerem-se, também, as enormes dificuldades de cada um e dos sujeitos em seu conviver.
Pensemos na figura do mediador que precisa ser, antes, leitor, das situações, dos contextos e
das narrativas.
No interior dessa lógica, dessa dialógica, poder-se-ia situar, sem dúvida, o sujeito da
compreensão, que se constitui, em certo sentido, permeando o político, o cultural, o social, o
pedagógico e o estético. E que também permeia as teorias de leitura implícitas a todos esses

2 http://www.catedra.puc-rio.br/index.asp Acesso realizado em 03/12/2012.

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domínios. O sujeito da compreensão se crê capaz de converter o passado em seu próprio
passado, de apropriar-se do passado compreendendo-o, fazendo-o seu. E também se vê capaz
de mediar as diferenças: entre os indivíduos, entre as culturas. A compreensão de uma forma
de mediação está em um estender pontes no espaço e no tempo, entre sujeitos, textos, vozes,
situações, pois o que quer, ao compreender, é converter o passado em presente, o distante em
próximo, o estranho em familiar, o fora no dentro, o que não é seu em seu. Por isso, tudo
participa da formação de sua identidade em expansão.
Não há ato de leitura e de conhecimento que não se dê na interação leitor/texto,
pessoa/mundo. As interações produzem uma zona movente de sentidos, que se constitui dos
contextos múltiplos em que se inserem. Segundo focos e perspectivas atentos ao universo do
discurso (a língua posta em uso) podemos ver/ouvir diferentes vozes, animadas por distintas
ideologias, que atravessam os textos e os falantes. Somos atravessados por uma permanente
intersubjetividade, quer queiramos, quer não. Ela fala de nós e fala sobre nossas leituras.
Na recepção, a abertura e a disponibilidade de si para interagir com
uma obra nascem da subjetividade construída pouco a pouco pelas interações
com outros sujeitos, outros repertórios, outros acervos. Há que se tenha
aprendido escutar e falar para ler e escrever. A recepção de um texto, quer
ele se apresente mais fechado em seus sentidos (normas, doutrinas), quer se
apresente mais aberto (palavra sagrada, poética), carece de um leitor curioso,
estimulado, para se colocar diante da palavra alheia e descobrir a própria.
(YUNES, 2009:41).

Entre as muitas possibilidades de textos adotados no trabalho com a leitura, a


literatura merece atenção especial no contexto do Plano Nacional de Leitura, dada a enorme
contribuição que pode trazer para uma formação vertical do leitor e minimizar em parte, a
grave situação da falta de compreensão dos textos escritos e a premência de sua superação.
Para o MinC, as palavras livro, leitura e literatura referem-se, respectivamente, às três
dimensões de nossas políticas culturais – a econômica, a do direito da cidadania e a do valor
simbólico. Essas dimensões precisam ser desenvolvidas articuladamente.

MEDIAÇÃO DE LEITURA NA BIBLIOTECA PARQUE DE MANGUINHOS


Era o ano de 2013: foi um grande desafio aceitar a proposta para trabalhar como
mediadora de leitura na primeira Biblioteca Parque inaugurada no país, Biblioteca Parque de
Manguinhos. Estava prestes a defender minha dissertação de mestrado, A leitura na formação
cultural: a literatura como mediadora, no programa de pós-graduação em Literatura, Cultura
e Contemporaneidade da PUC-Rio em 11 de abril do mesmo ano, quando fui cedida em

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março de 2013 pela Secretaria Estadual de Educação para a Secretaria Estadual de Cultura
com o objetivo de exercer a função na qual me especializara, mediadora de leitura.
O que esperamos fazer quando estudamos aquilo que amamos? Praticar o que
aprendemos, certamente eis a mais importante realização de todo esforço após concluir o
mestrado. Sabia que como mediadora não “salvaria” o mundo que anda tão distante dos
livros, mesmo dos digitais, mas me encantava a possibilidade de estar num “templo” com um
acervo tão bom e vasto para oferecer aos leitores que lá escolhessem viver as experiências
incríveis que a literatura oferece ao nosso imaginário. Sabia também o grande desafio que
seria encontrar leitores num espaço/comunidade em que livro/histórias/fruição são palavras
distantes do cotidiano duro e excludente que “meu” público estava encerrado. Enfim, fui
apresentada como a esperada mediadora, cargo que ainda não havia sido preenchido desde a
inauguração da biblioteca, coincidentemente em abril de 2010:

Na primeira reunião com a população surgiram curiosos mal-


entendidos que revelam a dificuldade de tradução não das palavras, mas de
pensamento. No pódio estavam os cientistas que falavam inglês, eu, que
traduzia para o português, e um pescador que traduzia de português para
língua local, chindindinhe. Tudo começou logo na apresentação dos
visitantes (devo dizer que, por acaso, a maior parte deles eram suecos).
“Somos cientistas”, disseram eles. Contudo, a palavra “cientista” não existe
na língua local. O termo escolhido pelo tradutor foi inguetlha que quer dizer
feiticeiro. (COUTO,2009:17).

Mia Conto conta, no livro E se Obama fosse africano?, no ensaio “Língua que
não sabemos que sabíamos”, apresentado numa conferência em Estocolmo em 2008, um
material escrito para a Conferência Internacional de Literatura WALTIC, um episódio que
aconteceu em 1989 na Ilha da Inhaca, numa visita de técnicos das Nações Unidas para
educação ambiental (grifo do autor). Traziam slides, projetores, filmes, mas isto não os
salvou dos problemas de entendimento e de comunicação que ocorreram, pois Mia Couto
traduzia do inglês para o português, e o pescador traduzia para seu idioma chindindinhe.
Existem mais de 25 línguas distintas em Moçambique e logo na apresentação ocorreu uma
sucessão de ruídos na comunicação para entendimento da proposta trazida pelos técnicos das
Nações Unidas.
Bem, aconteceu algo semelhante comigo entre funcionários, visitantes e leitores que
frequentavam a BPM, eu propunha várias formas de mediação de textos e meus interlocutores
não tinham demanda para tal, compreendiam “chindindinhe”, não português. A mediadora
não era “feiticeira”, então apesar de nos comunicarmos na mesma língua, para acontecer

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comunicação e leitura, não bastava oferecer textos, livros porque para haver alguma leitura
preciso da anuência do leitor. Só existe mediação de texto se houver leitor, precisava além de
pessoas, de leitores. E talvez eu, assim como os cientistas que se propuseram a uma
“educação ambiental” para aquele povo, não conseguia passar sua “tecnologia”, pois os
usuários da biblioteca não sabiam o que significava histórias/ciência: Não quero comentar
aqui como esse conceito de educação ambiental esconde muitas vezes uma arrogância
messiânica (p.16), só entenderão os problemas ambientais que perturbam a ilha se perceberem
o entorno, os interlocutores, disse o ficcionista moçambicano. Para tal, primeiro era abrir
ouvidos e olhar atento para tudo que agora me cercava, quando entendesse a comunidade e
soubesse oferecer histórias que se relacionassem com o universo deles, daí poderia oferecer
textos que fizessem sentido.
Primeiro ponto que observei é que basicamente o pessoal que trabalhava na biblioteca
não lia livros, assim como a grande maioria dos seres humanos, era vidrado em computador e
tudo o que ele representava como valor de inclusão social. Na sua maioria, os funcionários
eram moradores do entorno e estavam atentos para os usuários com suas demandas que
também se centravam no computador, seus jogos, facebook e pesquisas no Google.
Felizmente havia dois leitores assíduos com quem conversava e trocava impressões de leitura,
uma era funcionária terceirizada de limpeza (lia biografias) e outro era um usuário que
diariamente lia as notícias nas revistas, os clássicos e mangar. A partir dele, iniciamos uma
roda de leitura com funcionários e usuários em geral, dentro da programação mensal da
biblioteca.

Vivemos dominados por uma percepção redutora e utilitária que converte os


idiomas num assunto técnico da competência dos linguistas. Contudo, as
línguas que sabemos – e mesmo as que não sabemos que sabíamos – são
múltiplas e nem sempre capturáveis pela lógica racionalista que domina o
nosso consciente. Existe algo que escapa à norma e aos códigos. (COUTO,
2009:14).

Não era mais intuição, nem observação, o público não havia comparado a ideia de um
centro cultural e muito menos de uma biblioteca. A praça foi ocupada por um show
promovido pela prefeitura com Shakira dias depois da festa junina, ou seja, os habitantes
respondiam, mas não era da forma como esperávamos. Lotaram a praça. Claro, que seguimos
batalhando pelo espaço cultural, mas ficava sempre a pergunta: O que falta? Qual, ou melhor,
quais são as questões que os afastava daquele belo espaço? Não eram dignos? Só hip hop,
funk, rede social, ar condicionado, encaminhamento de trabalho e reuniões das lideranças

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políticas é que traziam os visitantes à famosa BPM? Nem um olhar de curiosidade para as
estantes ou programação mensal? Meu trabalho seguiu as orientações de Heloísa Buarque de
Hollanda em texto escrito para discussão do Plano Estadual do Livro e Leitura:

(...) o melhor é como diria Oswald de Andrade “ver com olhos


livres”. O que eu, pessoalmente traduzo como: suspenda seus juízos de
valor, pense o mínimo que conseguir e apenas observe o momento com
atenção flutuante e um ouvido tamanho máximo3.

Eu sabia que leitura só assume importância quando passa a ser experenciada, vivida,
compartilhada, assumindo caráter histórico, pois vai além do texto. A leitura só será
formadora se concretizar-se como experiência, embora possam coexistir outros propósitos de
leitura, como divertimento, informação etc. De posse da leitura como experiência, continuei
minhas ações mesmo que tímidas e meu planejamento focados na formação de leitor.
A questão da não obrigatoriedade da presença nas atividades na biblioteca, traz dois
pontos importantes a serem considerados: o primeiro positivo, pois o mediador é levado
sempre a superar a criatividade e ser excelente observador, pois só trazendo algo muito
interessante para os usuários, a atividade acontece; o outro, é negativo, pois a circulação dos
visitantes faz com que o trabalho avance em passos mais curtos, muitas vezes tendo que
retroceder para continuar; no entanto, aqueles que participam, saem modificados pela beleza
dos textos literários e por toda a dimensão de mundo que eles descortinam.
Fiz e refiz planejamento durante todo ano de 2013 que lá trabalhei, pois em abril de
2014 a biblioteca foi terceirizada e como sou funcionária pública e segundo a OE que assumiu
todas as Bibliotecas Parque, meu salário era alto, traria problemas para nova administração.
Minha rotina na BPM, felizmente nunca foi uma rotina: em abril de 2013, passei uma
semana fazendo curso para mediadores/bibliotecários na Casa de Leitura/PROLER junto com
um pessoal da biblioteca da usina hidrelétrica de Belo Monte que veio do Pará para o curso.
Havia uma visita programada a BPM, bolei um caça ao tesouro com charadas, uma forma
lúdica para conhecerem os diferentes ambientes da biblioteca que terminou com uma
contação de história: O Baobá, onde estava escondido o tesouro, tesouro = livros. Repeti essa
atividade com grupo fechado de visitantes em outra ocasião. As atividades culturais do mês
foi um festival de dança com os grupos da comunidade (funk, hip hop, capoeira e jongo) e

3Disponível em <http://www.cultura.rj.gov.br/secao2/doc/gps_livro_e_leitura-
__final_heloisa_buarque_de_hollanda_1354734412.pdf>. Acessado em 04/02/2013

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grupo de teatro Roda Gigante, peça Troca de Plantão. As atividades contaram com público
bom e a qualidade foi de primeira ordem.
Minha proposta de leitura como um todo para 2013 estava centrada em biografias,
utilizei as coleções Crianças Famosas, Mestre das Artes: Portinari (contato com Instituto
Portinari), Monteiro Lobato (leitura de adaptação para quadrinhos de O Minotauro), Villa
Lobos, Diário de Anne Frank, Stefan Zweig. Fui buscando livros cujas biografias eram de
cantores atuais como Herbert Viana e Cazuza, mas percebi que deveria abrir meu
planejamento para outra literatura, ‘a medida que o grupo fosse se formando.
Além da oficina de brinquedos de sucata para professores das escolas da comunidade
com Deneir de Sousa Martins e assistir com as crianças os filmes Mãos Talentosas e Uma
viagem ao mundo das fábulas, passamos a ter um encontro quinzenal com duas psicólogas do
Núcleo de Atenção à Violência, NAV, para discutir problemas de violência, o que ocorria na
biblioteca e vinha do entorno. Não houve interesse dos funcionários em geral, o grupo da
Ludoteca (espaço infantil até 11 anos) trazia problemas enfrentados com as crianças, pois era
mais evidente os transtornos e dificuldades.
Devido ‘a minha experiência em Escolas do Amanhã (projeto da prefeitura do Rio de
Janeiro para escolas da periferia e em áreas de risco que promovia atividades culturais
diversas para alunos permanecerem mais tempo na escola de forma lúdica), interessei-me pelo
Projeto Mais Cultura oferecido pelo MEC com MinC, que uniria a Biblioteca-Parque de
Manguinhos junto às escolas do entorno: Maria de Cerqueira de Manguinhos e Ciep
Chanceler Willy Brandt do Jacarezinho em parceria com o Bairro Educador (projeto mantido
pela prefeitura do Rio de Janeiro que não deram continuidade) para participarem das
atividades culturais de nossa programação mensal e de mediação de leitura. Seria uma
excelente oportunidade para assistir peças, apresentações dos grupos locais sem terem que
atravessar a cidade do Rio de Janeiro. Infelizmente só o CIEP quis inscrever-se no projeto,
mas não foi contemplado com a verba.
Ainda dentro da proposta de biografia, em maio tivemos picnic literário com leitura do
livro Autorretrato de Renata Bueno e cada participante confeccionou seu próprio autorretrato.
Durante o picnic eram doados livros usados para as crianças e propus que no próximo evento
fizéssemos troca-troca de livros ao invés de doar, já que teriam algum em casa para pegar
outro novo, dariam mais valor ‘a atividade, que era realizada em parceria com CIAB -
Coletivo Integrado de Artistas de Benfica.

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Fazia semanalmente Roda de Leitura para funcionários e usuários da BPM com temas
por eles sugerido e acordado: O Leitor, E se Obama fosse africano?, Quem me dera ser onda.
Havia um participante cativo que era William, rapaz de uns vinte anos que frequentava
regularmente nosso espaço e lia muito. Poucos funcionários compareciam e alguns poucos
visitantes se interessavam.
Houve lançamento de dois livros: Outra (do grupo de sarau de poesia de Manguinhos,
que acontece todo primeiro sábado do mês no hall da biblioteca) e Uma vida positiva, de
Rafael Bolacha, com debate entre autor e Casa da Mulher e alunos do primeiro ano de
medicina da UFF, Universidade Federal Fluminense. Como o público que convidamos, era o
indicado para o livro que tratava de um soro positivo e toda sua problemática e mulheres que
sofriam violência doméstica, o autor até conseguiu vender alguns exemplares, além da disputa
pelos que foram sorteados. Mediação bem sucedida, lançamento com autor para debate com
interlocução correta.
Participei dos dois grandes eventos relacionados ao livro patrocinado pelo Estado que
são a FNLIJ e FLIP, algumas palestras foram gratuitas, mas todas as despesas ficaram a meu
encargo, ou seja, atividade do Estado e eu funcionária do estado, mediadora de leitura sem
ajuda de custo.
Realizei duas gincanas que forma sucesso com o público jovem, pois pediam que
voltasse a oferecer mais atividades desse tipo além das duas realizadas, a primeira foi a
Gincana Prosa e a segunda a Pré-Carnavalesca na BPM, cujo objetivo principal era
confraternização no período de recesso escolar dos nossos jovens usuários e oportunidade
para criatividade, pesquisa e descontração. Eles se inscreviam com antecedência e montavam
seus grupos, foram tardes inesquecíveis onde usaram internet, acervo de literatura lusófana,
cardápio de poesia, coreografia, instrumentos reciclados de carnaval, desfile de fantasias e
muita batucada e show de talentos. (Vide anexo)
A vinda do Papa Francisco a Manguinhos foi um grande momento de esperança e
debate. Em nosso cineteatro aconteceu o Fórum Social Juventude Viva com Programa
Caminho Melhor Jovem, CRJ. Foi momento de palestras e debates de cunho social. Tivemos
três dias bem movimentados, apesar de toda chuva que acompanhou a visita do papa ao Rio
de Janeiro.
Uma atividade mensal que acontecia na Ludoteca era o sarauzinho de poesia, toda
última sexta-feira do mês, onde as crianças liam, cantavam e faziam pequenas esquetes. Aos
poucos percebia-se os pequenos leitores mais afiados e confiantes.

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Como parte de nossa formação éramos convidados para palestra no CCBB, como a de
Matthew Battles sobre pesquisas recentes em torno de publicação na biblioteca da Harvard
University, assim como visitamos várias bibliotecas: Rocinha, Escola Americana, PUC
biblioteca central, todas promovidas pelo Consulado dos EUA.
Recebemos a visita da Carreta – Projeto Mais Leitura Itinerante - que foi visitada pelas
escolas do entorno e participamos no estande do Estado na Bienal do Livro com atividades de
Contação de História e Escolha uma poesia e dê de presente (atividade de mediação de leitura
com pessoas que visitavam o estande da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro),
muitos participaram da brincadeira.
Durante o mês de setembro propus um concurso de poesia para os que frequentavam a
biblioteca. Confeccionamos urna, imprimimos as regras e divulgamos com cartazete na
recepção da biblioteca e em vários pontos dos salões. Foram 39 poesias depositadas para o
concurso Poetizando e três selecionadas que receberam prêmio na celebração do Dia dos
Professores. Foi oferecido no cineteatro uma apresentação do quinteto de música barroca da
Universidade Federal Fluminense, UFF, aos professores e aos nossos poetas que após o show,
na hora do cafezinho, recebiam canudinhos com as três poesias vencedoras e também poesias
de Vinícius de Moraes, Mário Quintana e Manoel de Barros. Além de concurso de poesia
também aconteceu de HQ e os vencedores tiveram seus trabalhos expostos no salão principal
da BPM.
A nova literatura britânica e brasileira estiveram juntas num encontro em 21 de
setembro de 2013 no Cineteatro da BPM, ação promovida pelo British Council e Plupp Pensa
(Festa Literária Internacional das Unidades de Polícia Pacificadora). Os jovens escritores,
Steven Hall e Bem Markovits, que foram selecionados pela tradicional revista Granta como os
dois melhores autores da nova geração do Reino Unido, fizeram parte da mesa, “A nova
literatura britânica e brasileira: os melhores jovens escritores da Granta”. O evento fez parte
do programa de literatura do Transform, programa do British Council que
amplia oportunidades para artistas emergentes e cria intercâmbio entre as artes do
Brasil e do Reino Unido, e integra a programação da Flupp Pensa, série de encontros e
oficinas que tem por objetivo formar leitores e escritores nas comunidades cariocas nos meses
que antecedem a Flupp.
A secretaria de cultura da prefeitura do Rio de Janeiro, anualmente promove a Paixão
de Ler, que em 2013 teve como tema vozes do nordeste, poesia de cordel. Convidamos
cordelistas de Manguinhos e do Alemão para se apresentarem para as crianças, concomitante

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estava montada no hall da biblioteca uma exposição do Museu do Pontal com parte de seu
acervo da cultura popular.
Semanalmente recebia visita do projeto Circulando – grupos de abrigos mantidos pela
prefeitura do Rio de Janeiro e tínhamos atividades de leitura diversas; Os Fantásticos Livros
Voadores de Modesto Máximo que recebeu Oscar de melhor curta-metragem de animação,
poesias que foram musicadas, crônicas do Rio por João do Rio, seleção de livros sobre
cuidados com o corpo, seleção de livros sobre esporte, filme Heleno, histórias do folclore e
discussão sobre personagens, atividade lúdica a partir do livro de Roseana Murray Manual da
delicadeza de A a Z , entre outras leituras mediadas sempre de forma participativa.
Aproveitando a vinda do escritor colombiano Javier Naranjo para visita a várias
comunidades da cidade do Rio de Janeiro para lançamento do livro Casa das estrelas, O
universo contado pelas crianças, foi ter com nossas crianças na Ludoteca para uma oficina de
como chegou ‘a definição poética de várias palavras a partir das respostas das crianças que foi
entrevistando. Claro que as crianças entraram na brincadeira e leram o dicionário maluco aos
moldes da infância.
Foram oferecidos cursos gratuitos de desenho, música da Escola Portátil de Música, de
libras, alemão e do Projeto Favela Criativa patrocinado pela Light ao longo de 2013.

“O Rio é uma cidade que tem amanhã, o que é preciso lembrar


quando bater o desespero no trânsito ou uma tragédia a mais abalar a
confiança no futuro. Não é um acaso que seja aqui que um Museu do
Amanhã avança sobre o mar, confundindo e desmentindo quem associa
museu ‘a guarda do passado. Neste caso, trata-se de guarda de futuro, o que
é concepção originalíssima que coloca o Rio na ponta da reflexão sobre o
mundo em que vamos viver. O curador do museu, o físico Luiz Alberto
Oliveira, um dos melhores cérebros do país, explica que, se o amanhã guarda
muitos futuros possíveis, para o bem e para o mal seremos as escolhas que
fizermos frente a esses possíveis.”

Pensando no museu/biblioteca como lugar de aprendizado da escolha refletida e a


consciência de que o amanhã já está em nós, hoje, como podemos assistir na série de
entrevistas no RJTV sobre a biblioteca de Medelim que serviu de inspiração para as nossas
Bibliotecas Parque, como veremos nos links seguintes:

(http://globotv.globo.com/rede-globo/rjtv-1a-edicao/v/pacificacao-de-favela-na-
colombia-inspirou-modelos-de-upp-do-rio/3832273/) e

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(http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rjtv 1edicao/videos/t/edicoes/v/mobilidade-em-
favela-de-medelim-na-colombia-e-exemplo-para-upps-do-rio/3834961/ ), vejo as Bibliotecas
Parque como uma promessa de futuro melhor onde a convivência com a leitura e as artes vão
pouco a pouco se tornando um território de cultura, não mais um eixo excluído da cidade.
Prova disso está no Plano Estadual Setorial do Livro e Leitura, Superintendência da Leitura e
do Conhecimento publicado em 2014, coordenado pela SEC (Secretaria Estadual de Cultura
do Estado do Rio de Janeiro), numa construção coletiva e participativa e também coordenado
pela SEC com apoio do Comitê Gestor, o Programa Setorial de Fomento à Leitura e de
Formação para Mediação em discussão, como um alento nessa comemoração de aniversário
de 450 anos que tem por premissa a esperança de um futuro melhor.

CONCLUSÃO
O Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), visando à democratização do acesso ao
livro e formação leitora, atendendo comunidades que recebem bolsa família, já em curso
desde 2011, é uma iniciativa valiosa para difusão da cultura escrita. Importante reconhecer-se
como leitor e saber do valor da leitura na condição social e cultural. O Projeto das Bibliotecas
Parque é uma iniciativa da secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro que prioriza
atividades culturais, cursos de formação diversos e leitura para aqueles que se interessarem.
Os usuários que participam têm a possibilidade de construir um olhar mais sensível e crítico
para as artes e o que está ao seu redor. Entretanto, não há ainda estudos que verifique o quanto
a participação dos que frequentam as atividades oferecidas pela biblioteca de Manguinhos
interfere na vida daqueles que a frequentam. Isso poderia dar maior credibilidade a esse tipo
de investimento e espaço.
Apesar dos esforços em várias esferas do governo federal e estadual para construção
de uma educação e cultura de qualidade realizada nos últimos anos, ainda contamos com um
sistema de gestão e operacional caóticos, infindos trâmites burocráticos, desconfiança da
sociedade civil, indiferença evidente na corrupção política esvaziando de sentido a formação a
que se propõe. Uma rápida avaliação do Estado na promoção da leitura, revela falta de
decisão política, suas estratégias não encadeadas, a intermitência e superficialidade dos
programas. Bons projetos não bastam. Como formar leitor se estatisticamente o professor é
um não leitor? Como formar bibliotecários leitores que façam o papel da mediação,
despertando o interesse pelos livros quando atendem aqueles que os procuram?
É fato que apesar de considerar minha experiência como mediadora de leitura na BPM
no ano de 2013 como um diferencial no trabalho com o texto literário, entendo que políticas

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públicas devam ser articuladas e tenham uma dimensão mais ampla. A proliferação de
projetos realizados por ONGs, pelo Ministério da Educação e Cultura, associações religiosas
ou de caráter assistencial, enfim, várias instituições realizam projetos em prol da educação,
mais especificamente, na formação de leitores. No entanto, esses projetos, muitas vezes,
carecem de base teórica ou são projetos sem continuidade, cuja eficácia do trabalho não é
avaliada.
As políticas públicas geralmente falham na questão da continuidade das ações. A
mudança de governo, ou até mesmo de um secretário, atrapalha o andamento dos projetos que
estabeleceram laços com a comunidade e se integraram no cotidiano da biblioteca,
proporcionando experiências culturais diversas que não chegavam até eles, devido às
distorções sociais e econômicas.
A falta de norte denunciado anteriormente é grave e precisa ser objeto de reflexão e
mudanças nas atuais políticas públicas de educação e cultura. Ciente dessa realidade, ainda
assim reitero que o projeto Bibliotecas Parque contribuiu para que algumas criança e jovens
tenham uma experiência nova com o texto literário e diversas expressões artísticas. A
experiência de mediação possibilita o processo da subjetivação dos participantes, à criação de
uma cultura através da liberdade de expressão, mudando o foco da cultura do fracasso, que tão
bem conhecem os moradores de comunidades.
Entender o leitor como aquele que é capaz de ler tanto os textos quanto a realidade e,
assim, sabendo situar-se socialmente, reivindicar seus direitos de cidadania, estimulados por
vivências culturais diversificadas, é o objetivo principal da mediação de leitura. Ir ao cinema,
teatro, exposições, conhecer os pontos turísticos de uma das cidades considerada mais bela do
mundo é fundamental para romper com a dura realidade das comunidades situadas na cidade
“maravilhosa”.
Li no Jornal O Globo de 03/01/2015 a matéria O amanhã Rio, da escritora Rosiska
Darcy de Oliveira, que aponta para um futuro da Cidade Maravilhosa promissor. Fala da
escolha do Rio pelo secretário-geral da ONU, Ban Kimoon, como cidade que fará parte de
uma rede global para ser laboratório de estilos de vida sustentáveis.

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Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem apresentada à Faculdade de Letras da
UNICAMP. Campinas: 2001.

ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 2003.

943

V V
O OBSERVATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E A PESQUISA EM
POLÍTICA CULTURAL NO BRASIL
Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi1

RESUMO: O presente artigo apresenta os resultados preliminares da pesquisa realizada no


âmbito do Observatório de Políticas Públicas de Cidadania, Diversidade e Gestão Cultural
(OPCULT) da Universidade de Brasília. A pesquisa realiza o levantamento do estado da arte
das pesquisas em política cultural no país, identificando os programas de pós-graduação e
grupos de pesquisa voltados à temática da política cultural.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura, Observatório de Políticas Culturais, Pesquisa em Política


Cultural, Política Cultural.

INTRODUÇÃO
Ainda que a pesquisa em cultura não seja novidade nas ciências sociais, não é possível
afirmar o mesmo para o campo das políticas públicas culturais como objeto de pesquisa. Este
campo vem se formando no bojo da própria agenda da política de cultura e como tal, está
sujeito à fragmentações, temas prioritários e dispersão.
Se observarmos a história das políticas culturais no Brasil poderemos perceber que a
pesquisa sobre esse campo manteve uma relação direta e crítica, com e sobre, a formação da
agenda política na medida em que teóricos e intelectuais das ciências humanas e sociais
produziram reflexões sobre as perspectivas no campo da política cultural e a relação entre
Estado, Mercado e Cultura. (Sergio Miceli e Mario Brockman Machado, 1984)
Desde 1985, com a criação do Ministério da Cultura durante a gestão do ex-presidente
José Sarney, formaliza-se um campo novo no âmbito das políticas públicas e abre-se um
percurso histórico de constituição da cultura como campo de disputas na agenda das políticas
públicas do país. Durante 1985 e 1994 a instabilidade do Ministério não propiciou grandes
avanços no campo da formulação das políticas – ao contrário, apesar da aparente abertura, o
campo da cultura no âmbito das políticas públicas sofreu esvaziamentos e severos desmontes
com as trocas recorrentes de ministros e mesmo a extinção do próprio ministério e órgãos
associados entre eles a Embrafilme, Fundação Pró-memória e Funarte durante o governo
Collor. (Rubim, 2010)

1
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional (PPGDSCI/Ceam)
Universidade de Brasília. fatima.makiuchi@gmail.com

944

V V
Com a entrada do governo Itamar, o ministério retorna e entre 1994 e 2001, durante a
gestão FHC, teve como ministro Francisco Weffort. Há duras críticas sobre este período,
sendo a principal o esvaziamento do papel do Estado como indutor de políticas – prática
consoante com a radicalização neoliberal da época. Nesse período a política cultural era
praticamente inexistente quanto à discussão, eixos e prioridades, sendo confundida com as
leis de incentivo fiscal (Rouanet e Audiovisual). (Botelho, 2011)
A partir de 2002, com o governo Lula e com a gestão de Gilberto Gil a política
cultural ganha outras dimensões a partir do resgate de um conceito ampliado de cultura:
“A cultura passa então a ser considerada em sua dimensão
antropológica, o que significa assumi-la como a dimensão simbólica da
existência social brasileira, como o conjunto dinâmico de todos os atos
criativos de nosso povo, aquilo que, em cada objeto que um brasileiro
produz, transcende o aspecto meramente técnico. Cultura como “usina de
símbolos” de cada comunidade e de toda a nação, eixo construtor de
identidades, espaço de realização da cidadania.” (BOTELHO, 201, p.70).

Durante a gestão de Gil houve um esforço de reestruturação do ministério e na


formulação de políticas públicas de cultura que implicou na necessidade de se obter
informações sobre a cultura, de tal forma a sistematizar um conjunto de dados que pudessem
gerar informações não somente sobre os diversos segmentos culturais e suas relações
produtivas, mas também diagnósticos sobre as ações culturais e a diversidade do campo. Esse
esforço veio a resultar no Plano Nacional de Cultura (PNC), no Sistema Nacional de Cultura
(SNC) e no Sistema Nacional de Informações e Indicadores da Cultura (SNIIC), além de
outras ações do âmbito da gestão pública da cultura.
A partir da leitura do PNC é possível perceber que a gestão pública da cultura
incorporou a ideia de que é importante para formulação de políticas mais inclusivas, plurais e
democráticas a obtenção de dados e informações sobre as manifestações culturais em suas
distintas dimensões (simbólica, econômica, cidadã), ao mesmo tempo que fomenta a
formação qualificada de artistas e gestores culturais, a pesquisa e a pós-graduação em áreas da
cultura, conforme as metas 16 a 19:
Meta 16: Aumento em 200% de vagas de graduação e pós-graduação nas áreas do
conhecimento relacionadas às linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura, com
aumento proporcional do número de bolsas. Meta 17: 20 mil trabalhadores da cultura com saberes
reconhecidos e certificados pelo Ministério da Educação (MEC). Meta 18: Aumento em 100% no
total de pessoas qualificadas anualmente em cursos, oficinas, fóruns e seminários com conteúdo de
gestão cultural, linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura.

945

V V
Meta 19: Aumento em 100% no total de pessoas beneficiadas anualmente por ações de
fomento à pesquisa, formação, produção e difusão do conhecimento.

Mas quando pensamos em pesquisa sobre políticas culturais, qual é a agenda de


pesquisa no Brasil atualmente? Existe uma agenda de pesquisa? Quais são os programas de
pós-graduação que fomentam pesquisa na temática? A pesquisa em política de cultura está
dispersa no campo de conhecimento ou concentra-se em áreas específicas? Estas e outras
perguntas foram mobilizadoras desta pesquisa, cujos resultados parciais apresentamos.
A pesquisa desenrola-se no âmbito do projeto “Observatório de Políticas Públicas de
Cidadania, Diversidade e Gestão Cultural” da Universidade de Brasília – OPCULT/UnB,
objeto de um termo de referência de descentralização orçamentária entre a Secretaria de
Cidadania, Diversidade e Gestão Cultural – SCDC/MinC e a Universidade de Brasília, por
meio do programa de pós-graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação
Internacional do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares.
A emergência do OPCULT é ela mesma um desdobramento da política pública
cultural em curso no país atualmente que percebe a necessidade estratégica de tecer parcerias
com instituições acadêmicas no sentido de obter dados e análises longitudinais ou de
profundidade sobre aspectos da cultura e/ou da política cultural, além do investimento em
formação de gestores culturais, artistas e gestores públicos do campo da cultura.

OBSERVATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CIDADANIA E


DIVERSIDADE E GESTÃO CULTURAL E A REDE NACIONAL DE
PESQUISADORES EM POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS
A proposta do Observatório deve ser compreendida em uma dupla perspectiva: a
primeira se volta para a criação e organização de um corpo de conhecimento a ser
aprofundado por meio do fortalecimento de pesquisas, extensão universitária, estudos e
espaços de debate que fundamentem a elaboração dos mecanismos de ação de políticas
culturais, com foco na diversidade e cidadania cultural, bem como articulem uma rede de
pesquisadores e núcleos de pesquisa em todo o país, organizada a partir de uma plataforma
virtual.
O segundo viés preza por consolidar as especificidades da gestão profissional de uma
dimensão da vida social sempre incorporada no imaginário do intangível, da fluidez, do
incontrolável, isto é, amparar tecnicamente o estabelecimento de uma organização dos
procedimentos de atuação que comportem com maior propriedade este universo distinto, com
foco na formação de gestores. O que não significa um movimento em busca da

946

V V
institucionalização da cultura, mas sim a elaboração e compilação de um conjunto de técnicas
e operações apropriadas para lidar com a ampla gama de imponderáveis que a própria
natureza desse objeto abarca.
Os observatórios são comunidades de referência, reflexões, estudos e têm sido cada
vez mais conhecidos e reconhecidos pela sociedade por seu papel voltado à análise e reflexão
e também como referência no acompanhamento e fiscalização de um determinado setor ou de
temas específicos, em nosso caso, políticas públicas culturais. A função dos observatórios está
associada às seguintes atividades: recopilação e elaboração de bases de dados; metodologias
para codificar, classificar e categorizar informações; conexão entre pessoas e organizações
que trabalham em áreas similares; aplicações específicas de novas ferramentas técnicas;
análise de tendências/publicações.
A proposta do OPCULT em parceria com a Secretaria de Cidadania e Diversidade
Cultural do Ministério da Cultura (SCDC/MINC) encontra seus fundamentos na necessidade
da secretaria de sistematizar a memória institucional e produzir reflexões sobre as ações e
programas desenvolvidos desde 2003, como apontado no Relatório de Redesenho do
Programa Cultura Viva (Barbosa da Silva; Labrea et al:2012).
A SCDC/MINC junto com o IPEA produziu várias pesquisas avaliativas do Programa
Cultura Viva.
Estas pesquisas realizadas pelo IPEA (2010; 2011) apontaram que o Programa possuía
vários problemas, principalmente no que se referia à gestão, pois os instrumentos jurídicos e
normativos e as políticas de fomento disponíveis não davam conta adequadamente dessa
experiência social. Limitações de ordem prática como o contingenciamento orçamentário, a
escassez de recursos humanos, a mudança de orientação política, a ausência de um sistema de
informações adequados para o monitoramento do desenvolvimento das ações, entre outros
fatores também foram assinalados.
Em função dessas constatações, em 2012 desenvolveu-se o projeto de Redesenho do
Programa Cultura Viva.
O redesenho do programa resulta de um processo de aprendizagem sobre o funcionamento do
Programa Arte Cultura e Cidadania – Cultura Viva e é entendido como uma necessidade de
readequação e realinhamento para mudar o patamar de desempenho e controle do CV e qualificar seus
resultados, aumentando sua estabilidade, efetividade, eficácia e autorrenovação, considerando uma
política de continuidade e aprofundamento a partir dos macros temas orientadores da nova gestão da
Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC) bem como do conjunto do Ministério da
Cultura (MINC).

947

V V
A partir do mapeamento dos problemas e dificuldades para a consolidação da política
configurou-se a necessidade e a oportunidade para encetar uma atualização dos parâmetros conceituais
e do modo de implementação do programa. O redesenho faz parte de uma explícita política de
continuidade e aprofundamento das diretrizes centrais do programa e é direcionado à superação das
dificuldades e avançar no sentido das mudanças necessárias, realizando para tanto uma atualização do
programa. A orientação era ampliar as ações com consistência e responsabilidade, valores centrais
para a sustentabilidade do programa no médio e longo prazo. Quando fosse o caso, a orientação era
rever as ações para que fossem desenvolvidas com as qualidades exigidas pelo governo e pela
sociedade civil (BARBOSA DA SILVA; LABREA et al:2013, p.05).
Um dos principais resultados do Redesenho do Programa Cultura Viva foi a proposta
de um sistema de gestão do conhecimento cuja finalidade seria articular os gestores culturais
dos entes federados, pontos e pontões e o conjunto de instituições, entidades, mestres, grupos
formais e informais que são benificiários das políticas públicas desenvolvidas pela SCDC, a
fim de poder acompanhar, monitorar, avaliar, dar visibilidade ao plano de trabalho
desenvolvido e manter a memória viva do programa. O sistema realizaria um processo
contínuo de mapeamento e sistematização de informações sobre as ações e dialogaria com os
diversos ambientes e bases de dados já produzidos pelos pontos e pontões (Barbosa da Silva;
Labrea et al:2013, p.16).
Uma parte importante deste sistema é a articulação com universidades e instituições
de pesquisa o que justifica a parceria entre a UnB e a SCDC/MINC em torno da constituição
do Observatório de Políticas Culturais (OPCULT).
Entre os vários objetivos do OPCULT, três se destacam, em particular, como eixos
que definiram a necessidade de se realizar a pesquisa sobre o estado da arte da pesquisa em
política cultural no país:
Fomentar e implementar uma rede de pesquisadores, gestores e instituições que
trabalham com a produção de conhecimento sobre ou para a política e a gestão cultural.
Organizar acervo de pesquisas e estudos sobre política e gestão cultural, garantindo
sua acessibilidade
Coordenar, divulgar e fomentar a produção de pesquisas e publicações sobre a
temática.
Dessa forma, a busca por informações sobre programas de pós-graduação e
grupos de pesquisa que atuem na temática de políticas públicas culturais passa a ser
estratégica na estruturação de uma rede nacional de pesquisadores em políticas públicas de
cultura, um dos objetivos fundamentais do OPCULT. Da mesma forma, o levantamento da

948

V V
produção científica voltada ao campo das políticas culturais alimentará o banco de
informações (repositório do OPCULT) e sua divulgação poderá criar sinergias entre
pesquisadores no país.

A PESQUISA: DESAFIOS DE UM CAMPO DISPERSO


Esta pesquisa foi basicamente documental. Para o projeto geral Observatório de
Políticas Públicas da Cidadania, Diversidade e Gestão Cultural – OPCULT era necessário
realizar o levantamento das fontes de informação sobre políticas públicas culturais no que
tangia à legislação federal, aos programas federais de fomento em andamento e
principalmente às pesquisas que estão sendo realizadas no país. De certa maneira, este
material está disponível nos sítios e portais virtuais, mas estão dispersos, incompletos e sem
categorização, o que torna o acesso ao material muito difícil. O interesse em reunir, classificar
e categorizar, é o de fomentar a pesquisa na área de políticas culturais, uma vez que o meio
privilegiado para a divulgação dos resultados desta pesquisa será exatamente a plataforma
virtual do observatório cuja missão é também reunir pesquisadores das políticas culturais.
Realizar o levantamento dos programas de pós-graduação que atuam, direta ou
indiretamente, no campo das políticas públicas culturais, os grupos de pesquisa e as teses e
dissertações produzidas no campo, explicitando os principais temas estudados, vai ao
encontro da necessidade do investimento que vem sendo produzido no campo da formulação
das políticas culturais na última década. Esta necessidade se apresenta na formação em
pesquisa que permita aos gestores públicos de cultura conhecer e atuar de forma mais
eficiente e ao mesmo tempo à sociedade civil qualificar sua argumentação na mediação com o
governo em torno das questões culturais e seus fomentos. Esse movimento de formação mais
ampla e qualificada no campo da cultura e da política está, como vimos antes, explicitada em
metas a serem cumpridas no Plano Nacional de Cultura.
Neste artigo nos restringiremos apenas aos dados referentes aos programas de pós-
graduação do ano de 2012 (base de dados CAPES) e à produção de teses e dissertações no
período de 2004 a 2014.
Com essa perspectiva em mente, acessamos apenas documentos oficiais ou existentes
em portais ministeriais, como CNPq, CAPES, MEC, MinC, ou bibliotecas das instituições de
pesquisa e universidades. Foram acessados os seguintes portais e sítios:
1. CAPES – Relação de cursos de pós-graduação recomendados ou reconhecidos
2. CNPQ – Plataforma Lattes – currículos pessoais e diretórios de grupos de pesquisa
3. MinC – informações sobre programas e legislação sobre cultura

949

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4. Sistema integrado de bibliotecas PERGAMON e bibliotecas da USP, UnB,
UNICAMP, UFBA, UFF, UFMA, UFRJ, UFRGS, UFPE, UNESPAR, UERJ e UFPR

Resultados Preliminares:

Grupos de Pesquisa em Políticas Culturais:

Foram identificados os grupos de pesquisa certificados pelo CNPq cuja


linha/tema/objeto de pesquisa fosse “política cultural”. Os termos usados na busca foram:
“política cultural”, “política de cultura” e “políticas públicas de cultura”. Com essa busca
inicial encontramos no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq 96 grupos que dizem
possuir esta temática, seja como linha, tema ou objeto de pesquisa:
Estados Número de Grupos de Pesquisa por
Estado
Rio de Janeiro 21
São Paulo 13
Bahia 10
Ceará 06
Rio Grande do Sul, Distrito Federal 05
Sergipe, Minas Gerais 04
Rondônia, Paraná, 03
Amazonas, Pernambuco, Goiás, Rio 02
Grande do Norte, Paraíba, Pará, Santa
Catarina,
Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, 01
Espírito Santo, Maranhão, Piauí,
Alagoas, Roraima, Amapá

950

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Distribuição de grupos de Pesquisa por Região
Geográfica
Centro Oeste 9
Sudeste 39
Sul 10
Nordeste 29
Norte 9

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45

Distribuição de grupos de Pesquisa por Região Geográfica

Programas de Pós-Graduação.
A investigação dos programas que possuem área de concentração ou linha de pesquisa
em políticas públicas culturais ainda está em fase de refinamento. As informações ofertadas
pelo banco de dados da Capes não são suficientes para a obtenção do dado diretamente, uma
vez que não há busca por palavra chave da temática (assunto/tema), mas opções quanto às
áreas de avaliação da capes, nota de avaliação do programa ou região geográfica onde se
encontra o programa.
Com essa perspectiva, realizamos uma busca usando duas estratégias: a primeira por
áreas que consideramos mais próximas da discussão da temática “políticas públicas culturais”
e a segunda a partir do levantamento de teses e dissertações defendidas no período de 2004 a
2014 no país, rastreando dessa forma, sua origem. Na produção acadêmica levantada,
encontramos para o período, 127 teses e dissertações, cujo objeto central é a política cultural
em algum de seus aspectos. Esta produção acadêmica ainda é restrita, pois conseguimos até o
momento investigar apenas as seguintes instituições: Universidade de São Paulo,
Universidade de Campinas, Universidade Federal do ABC, Universidade Federal de Minas
Gerais, Universidade de Brasília, Universidade Federal do Maranhão, Universidade Federal
Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Paraná e Universidade
Federal da Bahia.
Seguindo a metodologia adotada, consideramos inicialmente a busca por programas na
área interdisciplinar, por entendermos que a formação e a pesquisa em política cultural porta
uma polissemia comum ao campo da cultura e que programas de pós-graduação nessa

951

V V
temática poderiam ter lócus apropriado nessa grande área. O levantamento inicial demonstrou
que esta premissa estava correta, encontrando-se o maior número de programas voltados à
temática nessa área. Em seguida, áreas das ciências sociais e humanas, do campo disciplinar
forram investigadas e cruzadas com informações já obtidas pelo levantamento da produção
acadêmica (teses e dissertações).
Com isso constituímos um primeiro conjunto de informações sobre os programas de
pós-graduação que atuam na temática (como área de concentração ou linha de pesquisa
específica em política pública de cultura) ou possuem potencial de atuar por proximidade do
tema (como políticas públicas em geral). No total foram encontrados, até o momento, 92
programas de pós-graduação:

Áreas de Avaliação (Capes) Número de Programas


Interdisciplinar 27
Ciências Sociais Aplicadas: Comunicação 10
Ciências Sociais Aplicadas: Administração 01
Ciências Sociais Aplicadas: Ciência da Informação 02
Ciências Sociais Aplicadas: Museologia 01
Ciências Sociais Aplicadas: Planejamento Urbano e 01
Regional
Ciências Humanas: Sociologia 13
Ciências Humanas: História 04
Ciências Humanas: Geografia 01
Ciências Humanas: Antropologia 02
Ciências Humanas: Educação 02
Serviço Social 10
Ciência Política 17
Ciências Agrárias: Agronomiain 01

952

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Distribuição de Programas de Pós-Graduação
por Região Geográfica
Centro-Oeste
10
Sudeste 44
Sul 21
Nordeste
16
Norte 1
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50

Numero de Programas

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa está em andamento e estes dados são preliminares. Ainda assim, já é
possível observar da distribuição pelas áreas de conhecimento dos programas de pós-
graduação dificuldades para fomentar e articular pesquisa no campo das políticas públicas
culturais. A dispersão pelas áreas de conhecimento implica muitas vezes em polissemias
conceituais e metodológicas para o objeto de pesquisa. Se por um lado esta dispersão assinala
e reforça o caráter amplo do próprio conceito de cultura, propiciando a multiplicidade de
olhares, consoante com o pluralismo e a diversidade do mundo da vida, por outro, implica em
obstáculos de caráter epistemológico, de compreensão e tradução deste mesmo mundo da vida
onde a cultura se realiza.
A cultura, e a política cultural pelo levantamento inicial, tem sido trabalhada desde
uma perspectiva histórica, como por exemplo na dissertação “Encontros em defesa da cultura
nacional: o Conselho Federal de Cultura e a organização da cultura na ditadura civil-militar
(1966- 1976)”, de Vanessa Carneiro da Paz, defendida no programa de pós graduação em
História da UFF, até pesquisa de extensão rural como a dissertação “Da política de cultura
para uma cultura política: o caso do ponto de cultura TECER – Camaragibe/PE, de Raquel de
Melo Santana, defendida no programa de pós-graduação em Extensão Rural e
Desenvolvimento Local da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
No campo da pesquisa em política cultural há muito a ser pesquisado. Segundo Rubim
2013, o campo de pesquisa em políticas culturais está sendo alterado, saindo de um panorama
deficiente de espaços de discussão e pesquisa para um campo mais articulado e pulsante a

953

V V
partir de um conjunto de iniciativas que envolvem a publicação de revistas e coleções de
livros dedicados ao tema, além da constituição de uma agenda de encontros periódicos,
nacionais e internacionais. É um campo em efervescência, em que pesquisas de natureza
diversa (longitudinais, avaliação, construção de indicadores para as políticas culturais,
identificação dos elementos que relacionam cultura e desenvolvimento, reflexões sobre as
diversas dimensões e articulações da cultura e da política cultural, estudos de caso, pesquisas
etnográficas, pesquisas quantitativas e ensaios teóricos) podem ser articuladas em benefício
da sociedade, revertendo subsídios importantes para a agenda das políticas culturais. O
OPCULT pode ser um mais dos espaços de fomento dessa articulação, na medida em que será
espaço de encontro mediatizado pela rede de pesquisadores em política cultural. Esta rede não
deverá incluir apenas pesquisadores do campo acadêmico, mas todos aqueles que se debruçam
sobre a política cultural com o intuito de gerar conhecimento. A estratégia inicial adotada para
o fomento da rede parte do mundo acadêmico já que o OPCULT encontra-se na universidade.
Mas a expectativa é que este movimento encontre e seja acolhido por grupos e pessoas que
atuem no campo da política cultural de forma mais ampla. O levantamento realizado até o
momento e os resultados encontrados dirigem-se para esta promessa: a de fomentar a rede de
pesquisa.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA DA SILVA, Frederico A., e LABREA, Valéria Viana. (orgs.). Linhas gerais de
um planejamento participativo para o Programa Cultura Viva. Brasília :Ipea, 2014.

BOTELHO. Isaura. Uma rápida reflexão sobre o MinC entre 2003 e 2011.In: Barros J.M. e
Oliveira Junior, J., (org.). Pensar e agir com a Cultura: desafios da gestão cultural.
Observatório da diversidade Cultural. Belo Horizonte 2011.

CALABRE, Lia (Org.). Políticas Culturais: um campo de estudo. Rio de Janeiro: Edições
Casa de Rui Barbosa, 2008.

MICELI, Sérgio (Org.) Estado e cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984.

RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais: estado da arte no Brasil. IN: Da Costa,
Frederico Lustosa. Política e gestão cultural: perspectivas Brasil e França. Salvador:
EDUFBA, 2013.

________. Crise e políticas culturais. In: Barbalho et al. (org.). Cultura e Desenvolvimento:
perspectivas políticas e econômicas. Salvador: EDUFBA, 2011.

________. Políticas Culturais no Governo Lula. Salvador: EDUFBA, 2010.

954

V V
PARA ALÉM DA PRIMAVERA: OS ÍNDIOS, UM MUSEU, UM LIVRO E QUASE
NENHUM AMIGO. MATO GROSSO E A POLÍTICA CULTURAL.
Maria Fátima Roberto Machado 1

RESUMO: Em plena ditadura militar, um museu universitário ousou nascer para divulgar e
apoiar culturas e sociedades indígenas, no ambiente radicalmente hostil provocado pela
expansão das fronteiras econômicas sobre os seus territórios em Mato Grosso. O livro Museu
Rondon: Antropologia e Indigenismo na Universidade da Selva, publicado em 2009, registrou
a sua trajetória e serve como uma referência para pensarmos a atualidade das questões
relacionadas às circunstâncias de uma política de proteção e valorização cultural nos lugares
mais interiores do país, onde o “exótico” para uns continua a ser, antes de tudo, o inimigo
para outros, exigindo do poder público uma postura diferente da que ainda hoje
testemunhamos.

PALAVRAS-CHAVE: Museu universitário, Universidade da Selva, povos indígenas,


política cultural, Mato Grosso.

Deixe-me começar por fazer um relato sobre um episódio que serve para introduzir de
modo não muito formal a discussão que pretendo fazer aqui. Recorro à minha própria
memória e a alguns dados esparsos que registrei, pois os acontecimentos não foram de modo
algum uma raridade e eu poderia relatar dezenas de outros, para retratar o dia-a-dia de um
museu universitário em Mato Grosso, destinado a divulgar culturas, produzir conhecimento e
a se envolver com uma variedade de atividades de extensão, em situações nem sempre muito
pacíficas.
Seria repetitivo gastar tempo e espaço desfiando as mazelas pelas quais passam as
instituições culturais no país, e ainda mais os museus como o nosso, órfão de pai e mãe: o
Ministério da Cultura jamais reconheceu as especificidades dos museus universitários como
sendo de sua alçada, e o Ministério da Educação sempre desconheceu solenemente a sua
existência. Basta dizer que sobram sempre as migalhas das suas próprias instituições
administrativas e o gestor pode ser visto com frequência enfiando a mão no bolso, recorrendo
ao seu salário para resolver as urgências.
A luta pela sobrevivência é uma constante e - dando início ao relato -, naquele ano, por
volta de 2005-2006, nós estávamos dispostos a iniciar uma nova experiência, na missão quase

1
Doutora em antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ), professora aposentada pelo Departamento de
Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso e membro do grupo de pesquisas sobre Tecnologias
Indígenas (Tecnoíndia) do Departamento de Arquitetura da UFMT. fatimac@terra.com.br

955

V V
impossível de atrair o interesse da comunidade cuiabana: fazer uma exposição de uma única
peça do acervo, que suscitasse uma discussão sobre a riqueza das culturas indígenas e as
condições de existência do seu povo, convidando os índios para uma conversa franca e o mais
agradável possível. Escolhemos um belíssimo enfeite de noiva, uma raridade de plumária
exuberante, adornada com cabelos humanos e madrepérola, pertencente à cultura dos índios
Rikbaktsa, que deu nome à exposição: Tsawatsin Tutaratsa.
Dois índios aceitaram o convite e da sua aldeia no distante Rio Juruena até a capital
teriam que enfrentar em torno de 800 quilômetros, de ônibus. Em linha reta, uma distância
maior do que a do Rio de Janeiro a Belo Horizonte. Nós estávamos contentes por ver a
oportunidade de realizar um dos principais objetivos que perseguimos no Museu, propiciando
a ocasião do diálogo com a população não indígena regional, quebrando as barreiras
existentes, que sempre dificultam as condições do encontro, do entendimento.
Fomos bem sucedidos em reunir umas 40 pessoas, a maioria de curiosos, ansiosos por
“ver um índio de perto”. O enfeite de noiva pendia solitário no centro da sala, ornado com
algumas plantas que um voluntário emprestou da área verde da Universidade, focado por uma
singela luz, tênue, de baixo para cima, de modo que realçasse a sua beleza.
Mas, na hora marcada, cadê os índios? Desapareceram! Simplesmente desapareceram.
E nós, entre decepcionados, envergonhados, desanimados e em pânico, soubemos bem depois
que eles saltaram do ônibus em plena mata densa, viajando a pé até chegar de volta à aldeia,
três dias depois. No percurso, entraram no ônibus dois garimpeiros, com os quais eles tinham
tido um conflito sério, um dos tantos que fazem parte do cotidiano das aldeias e que podem
facilmente chegar a chacinas, com o mesmo furor, com a mesma violência de antigamente.
Em desvantagem, fora de casa, entre estranhos e inimigos, o melhor era fugir, deixando para
trás a possibilidade do encontro pacífico, paciente e, às vezes, humilhante, quando cruzam a
porta estreita que se abre para eles.
Esse acontecimento chama a atenção para as particularidades de um museu modesto,
mas atuante, vivo graças aos esforços de poucas pessoas, plantado nas fronteiras da Amazônia
e do Centro-Oeste, no divisor das águas do Norte e do Sul. Um museu universitário, voltado
para as culturas e sociedades indígenas, em plena efervescência dos conflitos que se arrastam
há séculos e tomam, cada vez mais raramente, as páginas dos jornais.
O Museu Rondon, que completa hoje 43 anos de existência, é o museu público mais
antigo de Mato Grosso, o que por si só já é revelador da pouca importância desse tipo de
instituição cultural para os velhos (Cuiabá tem quase 300 anos!) e novos colonizadores,

956

V V
sempre ávidos e orgulhosos com a evolução do PIB (mais de 40 bilhões de reais), celeiro da
maior parte dos novos milionários do Brasil atual (cultura sem dinheiro é uma lástima, mas
dinheiro sem cultura também é...). Nos últimos anos, com o estímulo das políticas públicas do
governo federal, vemos o fenômeno da proliferação improvisada de museus entre as cidades
do agronegócio, jovens núcleos urbanos de 30, 40 anos, onde os migrantes do sul começam a
cuidar das suas memórias no norte, exaltando as lutas e o sofrimento na árdua missão de
“desbravar” a Amazônia. Mesmo nas aldeias, uma ou outra experiência com a cultura material
é ensaiada (repetindo um fenômeno mais presente na América do Norte), mas que no geral
sucumbe diante das primeiras dificuldades.
O livro Museu Rondon: antropologia e Indigenismo na Universidade da Selva,
publicado em 2009 2, foi uma tentativa de registrar uma história social da instituição e uma
etnografia da experiência profissional vivida por 30 anos, escrito antes da difícil decisão da
aposentadoria, já longe do cotidiano do Museu, vendo partir os meus mais entusiasmados
colaboradores (índios, indigenistas, alunos), que fizeram um trabalho voluntário incansável,
anunciando os novos tempos, com novas pessoas, então recém-chegadas ao nascente
Departamento de Antropologia. Ainda acompanhei, em 2008, a construção do espaço da
reserva técnica e da reforma das paredes da sala de exposição, cujas placas de amianto do
tempo do antigo restaurante (que abrigou o Museu e a Orquestra Sinfônica) estavam
desabando, graças a um precário mas bem vindo financiamento da Petrobrás. É através do
livro que eu faço a abordagem do trabalho que apresento aqui, pois os dados disponíveis não
atingem os dias atuais, uma vez que o Museu Rondon encontra-se fechado para o público,
com suas atividades paralisadas, com o argumento da construção de um anexo, que deveria
estar pronto para receber os visitantes na ocasião da Copa do Mundo, em julho de 2014.

O Museu Rondon e a Universidade da Selva: políticas públicas na ditadura


É admirável como no Brasil a falta de memória ou, melhor dito, a administração do
esquecimento nos traz a sensação de estar girando em círculos, reciclando ineditismos que,
quando vistos em perspectiva, no linha do tempo, nem são tão inéditos assim. Tal é caso dos
projetos para a Amazônia.

2
MACHADO, M. F. R. useu Rondon: antropologia e Indigenismo na Universidade da Selva’. Entrelinhas,
Cuiabá (MT): 2009. Apresentação de João Pacheco de Oliveira.

957

V V
Criada no final de 1969 pelo presidente Emílio Garrastazu Médici 3, a Universidade
Federal de Mato Grosso surgiu no cenário acadêmico nacional com um discurso inovador,
anunciando uma revolução na maneira de pensar e de produzir conhecimento, ao ecoar (sem
lhe dar a assinatura) as ideias vanguardistas de Darcy Ribeiro, quando ele se impôs o desafio
de inventar a nova universidade no coração do país, a Universidade de Brasília. Seu destino
era rever a estrutura obsoleta das universidades brasileiras, com a missão de dominar o saber
humano e colocá-lo a serviço do desenvolvimento nacional, desempenhando o papel de
agência de assessoramento governamental.
Ele gostava de dizer que a UnB nascia sem um molde brasileiro anterior, sem um
precedente bem sucedido, já desafiando a nova Lei de Diretrizes e Base da Educação,
ratificadora do poderio catedrático obsoleto da velha universidade, corporificado nas
universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Era uma reprovação às elites tradicionais,
produzindo na nova capital a cidade inovadora, uma gente nova, de mentalidade nova, “sem
nenhum complexo de inferioridade colonial”. Em suas palavras:
Generosidade infantil? Ingenuidade intelectual? Romantismo
revolucionário? Havia de tudo isso, é certo. Mas a isso tudo se juntava certo
grau de revolta contra a sociedade tal qual era, e a lucidez indispensável para
antever o que ela deveria ou poderia ser. Isso é o que nos movia a querer
reformar a universidade para fazê-la servir ao povão, e não apenas à sua
velha clientela. (...) o que almejávamos era formar os quadros de que
necessitávamos para, a partir da reforma da universidade, reformular a
nação. (RIBEIRO, 1995: 143).

No plano estrutural, a Universidade Federal de Mato Grosso, inspirada na UnB, foi


organizada para prover o ensino (institutos centrais, faculdades profissionais,
departamentalização), pesquisa e a extensão cultural, contando com um teatro (para 500
lugares), uma orquestra sinfônica, um núcleo de documentação, uma editora, um canal de
televisão, um ginásio de esportes, um zoológico e dois museus, com ênfase no Museu
Rondon, que era uma espécie de guardião dos propósitos da política ousada de enraizamento
na terra, visando a valorização das culturas, a proteção e a assistência aos índios. A meta,
segundo Jarbas Passarinho (DORILEO, 2005), então Ministro da Educação, era a “elevação
do padrão cultural do povo” e, ao mesmo tempo, apoiar o incremento da exploração das
riquezas, criando recursos humanos em quantidade e qualificados, voltados para o progresso
regional.

3
Os governos da ditadura deram ênfase no desenvolvimento de uma política para o ensino superior no país, com
investimentos na construção e na infraestrutura de campos universitários. No governo Geisel (1974-1979), o
número de matrículas teve um crescimento anual de 14,5% (Dossiê Geisel, FGV/RJ, 2002).

958

V V
A ordem era levar às últimas consequências o ensinamento de um índio Xavante,
Ceremecê (que deu o nome à avenida de entrada do campus), da aldeia do Batovi, no leste
mato-grossense, que soava como um mantra nos discursos oficiais: “ninguém ensina o que
não sabe”. Era preciso inverter o instituído, pesquisar para ensinar, considerando a imensidão
desconhecida que era a Amazônia e sua gente. O projeto Humboldt ou Projeto Aripuanã,
inaugurava o discurso ambiental entre nós:
Elaborado em consonância com a atual política da Universidade, que é a de
converter-se gradativamente numa agência de desenvolvimento local e
regional, o projeto visa implantar a cidade-laboratório Humboldt em plena
selva amazônica, iniciando um processo de produção de conhecimentos e de
capital humano necessários a um tipo de colonização capaz de preservar o
equilíbrio ecológico da Amazônia (Catálogo Geral da UFMT, 1973:34-35).

Embora não fosse explicitada, a proposta de criação de Cidades-Laboratório era de


Darcy Ribeiro (que, naqueles anos, se encontrava já distante, exilado), ainda da época da sua
convivência com Anísio Teixeira, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), na
década de 1950, com o propósito de realizar o que era chamado de “pesquisa empírica”,
aliada à sensibilidade antropológica, criando uma tipologia de experimentação educacional.

A nova fase inaugurada pelo Projeto Aripuanã implica na sistematização do


desenvolvimento nos grandes espaços atravessados pelas rodovias pioneiras,
que encontra como principal barreira um domínio ecológico diferente
daquele que foi, até hoje, o melhor e o mais produtivo habitat da civilização
industrial, que floresceu em áreas temperadas, fundamentalmente. Esta
grande tentativa que o Brasil principia a realizar, através da construção da
base científica de Humboldt – a da construção de uma civilização baseada
numa tecnologia e numa cultura adaptadas ao meio-ambiente equatorial, não
tem precedente histórico.
Humboldt é a resposta brasileira à Declaração de Princípios da Conferência
da ONU sobre Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, na Suécia, no ano
passado [1972], principalmente aos princípios 12 e 13, que admitem que o
aproveitamento de recursos naturais pelo desenvolvimento industrial deve
ser objeto de intensa e criteriosa investigação científica e tecnológica,
responsabilizando os órgãos nacionais para a exploração desses recursos,
que constituem patrimônio do planeta, considerado em sua realidade
astronômica, e não sob o ponto de vista menor de nações ou de empresas em
competição. (Catálogo Geral da UFMT, 1973: 35).
O Projeto Aripuanã antevia os acontecimentos, projetava o futuro que conhecemos nos
dias atuais, revelando mais continuidades do que rupturas na política governamental
brasileira. A cidade-laboratório foi implantada a quase mil quilômetros de Cuiabá, nas
margens do Rio Aripuanã, ao lado de duas cachoeiras colossais, Dardanelos e das
Andorinhas, com uma queda de 135 metros, cujo potencial hidrelétrico - já então

959

V V
dimensionado – resultou em uma obra (da construtora Odebrecht) geradora de 261 MW de
energia, deslocando 1.200 operários para o antigo território tradicional dos índios.
As ambições da cidade-laboratório não eram maiores do que os desafios que se
colocavam para o Museu Rondon 4, que prestava homenagem ao mato-grossense pantaneiro,
militar indigenista, e reunia ali os setores mais combativos da Igreja e do Estado, que
partilhavam e ao mesmo tempo disputavam a tutela dos índios, levando para dentro da
instituição todas as suas contradições: contratados como pesquisadores, lá estavam os padres
jesuítas da Missão do Utiariti (fundadores da Teologia da Encarnação e do CIMI) e os
indigenistas, do porte de Orlando Villas Boas, João Américo Peret, Noel Nutels e Apoena
Meireles. O acervo de cultura material é um testemunho desses tempos conturbados,
guardando preciosidades ainda do pré-contato, como é o caso das panelas de barro dos Waurá,
coletadas por Orlando Villas Boas no Xingu, e do enfeite de noiva dos Rikbaktsa (estrela da
exposição cultural mal sucedida e dos desencontros do relato inicial), coletado pelos padres.

Quem precisa de Museus? O Museu-tabu


Os acontecimentos que se seguiram na vida do Museu Rondon são um alerta aos
formuladores de políticas públicas, quando eles acreditam que podem prescindir do
conhecimento profundo e responsável das condições de inserção cultural, social e política das
instituições nacionais. O Museu Rondon agonizou até ser fechado, depois de promover um
simpósio para enfrentar a discussão sobre as condições de sobrevivência dos índios Cinta-
Larga, na imensa região do Aripuanã. Em seu território tradicional foram descobertas
imensas jazidas de ouro, diamante e um dos mais ricos depósitos de cassiterita do mundo,
utilizada para a produção de estanho.
O Simpósio Cinta-Larga, em março de 1973, chamou para o singelo museu a atenção
da imprensa internacional, que acossava os governos militares com denúncias de genocídio.
Alguns anos antes, o jornal londrino Sunday Times noticiava os ataques armados e o uso de
arsênico contra os índios. O massacre que ficou conhecido como O Massacre do Paralelo
Onze, em julho de 1973, onde foram mortos homens, mulheres e crianças, ocupou as páginas
de jornais do porte do Los Angeles Times, do New York Times, El País, da revista Le Nouvel

4
Havia ainda na Universidade da Selva o Projeto Buriti, que acabou por não sair do papel, apontando para a
urgência da formação da mão-de-obra “do homem amazônico”. Ele seria desenvolvido em Chapada de
Guimarães, distante 60 quilômetros de Cuiabá, nas terras de uma antiga sesmaria de cana de açúcar, comprada
por missionários americanos, que abriram ali uma escola evangélica. O propósito era impedir as práticas
predatórias na natureza, com subprojetos da Reserva Biológica, de Estudos e Pesquisas e de Cursos e Estágios
para professores do ensino básico, recorrendo aos conhecimentos tradicionais não só dos índios, mas inovando
ao sonhar elevar à categoria de docentes também os seringueiros, tropeiros, garimpeiros, sertanistas e mateiros.

960

V V
Observateur e, no Brasil, grandes jornalistas eram enviados como correspondentes para a
região pelos O Globo, Jornal do Brasil e Folha de São Paulo 5. Os assassinos (que
posteriormente morreram em condições misteriosas) confessaram estar a mando de uma
empresa seringalista (Arruda & Junqueira), de conhecidos mato-grossenses, cujos
proprietários permaneceram impunes.
Ali estava um museu plantado em terreno minado. Esses acontecimentos somavam-se
às fortes pressões da elite regional desde a criação do Parque Nacional do Xingu, que teve em
Orlando Villas Boas um dos seus principais protagonistas. Com suas fronteiras legais
aprovadas pelo Congresso Nacional em 1961, o Parque tinha nos governadores de Mato
Grosso os seus piores inimigos, por verem frustrada a sua política de colonização de novas
áreas, através da concessão de terras consideradas “devolutas”.
A história das relações entre os índios e os colonizadores marca até hoje a
ambiguidade existencial do Museu, como um órgão público destinado a divulgar as culturas e
as sociedades em um lugar onde elas são rejeitadas. Esse museu francamente necessário é um
espelho invertido da própria sociedade mato-grossense colonizadora: é no universo da cultura
e da construção das identidades que encontramos a lógica que fundamenta a sua rejeição,
sempre determinada pelos interesses econômicos sobre os territórios tradicionais.
É um museu-tabu, tal qual definimos na antropologia, pesando sobre ele uma espécie de regra
de proibição, com vistas a neutralizar as suas influências. Ele herda essa energia carregada
que emana da rejeição às próprias culturas indígenas: há entre os mato-grossenses tradicionais
a crença de que guardar ou ter um objeto indígena em casa “dá azar” (de modo mais amplo,
que o digam os políticos brasileiros que um dia viram-se da contingência de ter que enfiar
solenemente na cabeça um cocar...).
As pistas, os sinais são de toda ordem, desde que a área de antropologia reabriu as
portas da sala de exposição, no início da década de 1980. Por um lado, um mato-grossense da
elite tradicional pode a qualquer momento irromper desabalado museu adentro para expressar
a sua revolta, toda a sua mais sincera indignação, por levar aquele lugar desprezível o nome
do marechal, motor do orgulho da sua gente, o patrono das comunicações 6. Por outro, ao

5
É importante lembrar que, no início da década de 1970, os Estados Unidos conheciam o auge dos movimentos
pelos direitos civis, e as minorias, inclusive os índios, tinham um papel importante nesse contexto, que se refletia
também na grande imprensa, com a célebre bandeira da contestação histórica, que em relação aos negros
consagrou a expressão “Black is beautiful”.
6
Isso, de fato, aconteceu. Nós estávamos contentes por divulgar na televisão a criação da reserva técnica depois
de anos tentando “expulsar” a Orquestra Sinfônica para o seu próprio prédio, concluído havia mais de um ano. O
homem chegou motivado pela notícia e apresentava um estado tão alterado, tremendo, gesticulando e falando
alto, que nos vimos na obrigação de ameaçar chamar o segurança (na verdade, naquela época, inexistente). É

961

V V
mesmo tempo, um mato-grossense “pau-rodado”, vindo do sul, pode rejeitar à boca pequena a
homenagem de uma universidade a aquele “bugre preguiçoso”, que levava a vida protegendo
os índios (igualmente, como é do conhecimento de todos, “preguiçosos”).
A casa tradicional indígena, construída no pátio do Museu, no Parque Aquático,
7
motivo sempre de grande interesse dos poucos visitantes estrangeiros que visitam o
Pantanal, foi queimada quatro vezes, quando vândalos desconhecidos levaram à sua
destruição total. Na quinta vez, estudantes de uma escola particular da redondeza (do Colégio
Ascensão), de uns 12 anos, atearam fogo nas palhas da porta de entrada, que só não se
espalhou graças à atuação rápida de uma funcionária (os estudantes estavam uniformizados e,
quando cobramos uma reação educativa, o diretor quase se divertiu com a peripécia dos
meninos e preocupou-se unicamente em evitar a imprensa). Hoje, a casa tradicional já não é
mais construída, cedendo lugar às paredes de concreto do novo anexo em construção, e isso
parece ritualizar uma mudança na maneira de se relacionar com os índios e de marcar a sua
presença no campus.
Pelo menos até meados da primeira década de 2.000, as relações administrativas na
Universidade não eram diferentes. A solicitação insistente para o reparo de um fio da precária
instalação elétrica podia trazer até nós um funcionário francamente irritado, impaciente, por
8
“não gostar de ir, de estar ali”. Funcionários em vias de se aposentar, já cansados do
trabalho e do cumprimento dos horários (ou estressados pela jornada dura em alguma outra
unidade) eram para lá deslocados, para que pudessem estar em um lugar, digamos assim,
“sossegado”.
O próprio acervo do Museu, antes de ser digitalizado pelos voluntários da Asamur (a
Associação de Amigos que criamos em 2006, hoje desativada) não tinha registro como
patrimônio institucional. Ninguém sabia como classificá-lo e, na dúvida, a fragilidade das
palhas e plumas recomendava um enquadramento informal... como material de consumo!
O único momento em que o Museu tinha visibilidade expressiva entre os cuiabanos era em
abril, na Semana do Índio, embora fossem sempre ocasiões mais comemorativas do que
educativas, com centenas de crianças (geralmente dos bairros mais periféricos de Cuiabá)

oportuno anotar também que, há pouco tempo, a área de antropologia, ainda hoje responsável pelo Museu, estava
firme na decisão de trocar o seu nome, desta vez, por certo, recusando a herança maldita do polêmico militar, o
que causou um rebuliço enorme e mobilizou os seus admiradores, em especial alguns conhecidos indigenistas,
com a pronta solidariedade da Reitoria, ciosa no resguardo da memória da instituição.
7
O Museu consta de alguns guias turísticos alternativos europeus e era de se esperar que os visitantes fossem os
primeiros a reconhecer, apesar das condições de recepção, a riqueza do seu acervo.
8
Isso, de fato aconteceu, várias vezes. Em uma dessas oportunidades, eu comentei, um pouco irritada, que ele, o
ajudante de eletricista, deveria ter perdido alguma fazenda para os índios, que sem pensar me respondeu, de
pronto: “Eu não, mas o meu amigo sim!”.

962

V V
agitadas, eletrizadas em meio aos artefatos. O índio Vitor Aurape Peruare, da aldeia do
Pakuera, trabalhando no Museu desde 1990 (hoje deslocado de volta à FUNAI), fazia a
recepção aos estudantes do ensino básico e até hoje guardamos boas memórias sobre esses
encontros. Foi um tempo em que as fronteiras entre um museu etnográfico e um museu
indígena talvez estivessem mais próximas da diluição, pela presença forte e constante de
lideranças e de visitantes de várias aldeias, o que interferia de modo significativo no
ambiente. Com Peruare, entre outras atividades memoráveis, reativamos (no início da década
de 1990) o projeto Museu-Escola, e formamos a equipe local que produziu uma série de
programas de televisão, que chamamos de “Programa de Índio” (desafiávamos o estigma!),
apresentado por índios, editado, transmitido pela TV Universidade e retransmitido pela TV
Educativa, do Rio de Janeiro, com entrevistas, documentários e reportagens nas aldeias e nas
praças da cidade.
As boas e más experiências do Museu Rondon, ao longo da sua vida conturbada,
parecem responder à pergunta sobre quem precisa de uma política cultural pública consistente
para museus, em uma região, em um cenário como o nosso. Mesmo quanto feio para alguns,
indesejado, irritante, ainda assim, ele é um testemunho da fecundidade dos museus
universitários no Brasil, quando dispostos a trilhar o difícil caminho que é o da superação dos
limites impostos pela “poeira” das culturas hegemônicas. 9

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9
Agradeço à arquiteta Cristina Sá pelo estímulo para a produção deste trabalho.

963

V V
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964

V V
CULTURA POLÍTICA E POLÍTICA CULTURAL
OUVINDO OS RUÍDOS
Maria Souto de Carvalho1

RESUMO: O objetivo desse trabalho é refletir sobre as possibilidades e desafios da relação


entre cultura, política, bem público, pensamento crítico e etnomusicologia. Sobre o que de
fato estamos falando quando dizemos Políticas Culturais? Entendendo o espaço público como
um espaço de disputa é possível entender a sociedade civil, ou mesmo o Estado, como
instâncias homogêneas e unificadas? Que dizemos quando falamos sobre Cultura Politica?
Qual pode ser o papel do estudo crítico em música nesse cenário? Essas são algumas questões
que procuramos debater inicialmente neste trabalho que, de forma alguma pretende esgotar os
fluxos do tema, e mais que responder a tais questões, pretende refletir sobre contribuições
recentes de alguns autores neste campo.

PALAVRAS-CHAVE: cultura, política, etnomusicologia, bem-público, pensamento crítico.

"Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar


o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do
real horroroso da América.” Eduardo Galeanao – O Livro dos Abraços

Introdução
Nos últimos anos pudemos observar a emergência da cultura como um tema central na
arena de debates sobre as politicas públicas em diversas partes do mundo. No Brasil, esse
quadro vem gerando em ampla medida, por parte do estado, ações e programas que visam
atender e ao mesmo tempo fomentar a idéia de cultura como direito. Nessa perspectiva a
cultura se desloca do lugar acessório, meramente artístico e expressão de subjetividades
individuais, privilégio de poucos, para o lugar de algo ao qual todos tem direito e que
percorre, e em certa medida dignifica, diversas dimensões da vida, e que portanto deve ter seu
acesso garantido pelo poder público.
No entanto esse novo lugar dado à cultura traz possibilidades, contradições e desafios,
os quais estão necessariamente ligados aos fluxos e forças envolvidas nesse deslocamento.
Organismos internacionais como a Unesco e Banco Mundial vem ditando esse protagonismo
tendo como discurso a defesa da cultura como bandeira de paz entre os povos, como caminho
para diminuição das desigualdades e resolução de conflitos. Segundo George Yúdice, a idéia
de que a cultura serve como caminho para a transformação social leva a uma complexa e
1
Aluna do mestrado em Música da UFRJ - bolsista do CNPQ - mariasouto22@gmail.com

965

V V
polêmica instrumentalização do cultural, onde a sua legitimidade não deriva tanto do estético,
mas sim do modo como serve a fins políticos, sociais e econômicos. “A cultura está sendo
crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica, ou seja,
para aumentar sua participação nessa era de envolvimento político, de conflitos acerca da
cidadania” (YÚDICE, 2006).
A música se apresenta nesse contexto como uma espécie de coringa, consagrada como
riqueza nacional, com uma aparentemente instrinseca natureza agregadora, capaz de gerar
sociabilidade e apaziguar conflitos. Neste sentido, tem alcançado um campo importante de
ações e vem sendo, dentre as expressões artísticas, uma das que mais se destaca como objeto
de politicas públicas. Segundo Araujo:
No Brasil, mas de resto pelo mundo afora, são hoje muitas as áreas
da esfera pública, no sentido habermasiano da palavra, que tomam a música
como ponto de inflexão importante. Além de sua óbvia e histórica presença
na pauta dos debates sobre cultura, educação, mídia ou entretenimento,
realizados em fóruns como jornais, revistas, programação radiofônica e
televisiva, simpósios e congressos, e mais recentemente chats, blogs e sites,
a música tem sido cada vez mais tratada como vetor pertinente à formulação
de políticas e à gestão pública em diversas áreas anteriormente vistas como
não tão próximas ou mesmo distantes, como economia, turismo, variadas
concepções de direito (humanos, autorais, culturais), segurança pública,
saúde e promoção do bem- estar. (ARAÚJO, 2011, p. 4)

A etnomusicologia como campo de estudo da música na cultura e/ou estudo da musica


como cultura, traz importantes contribuições no sentido de desnudar seu caratér multifacetário
e heterogêneo. A partir deste novo paradigma de pensamento e reflexão crítica o próprio
conceito de música se torna em certa medida insustentável, quando, por exemplo, apontamos
para não existencia do mesmo em certas culturas e povos, onde a práxis sonora (ARAÚJO,
2013) não é desvinculável de outras dimensões da vida. Essa visão das expressões artísticas
com carater multidimensional, como falas de identidade e relação, que ao mesmo tempo
produzem e são produzidas, não como algo desencarnado e finalizado como obra, é um ponto
crucial no debate sobre a inserção da música e da cultura como objetos das politicas públicas
e ao mesmo tempo como dimensão da constituição de sujeitos das culturas politicas.
Dentro deste quadro se faz necessária uma análise e reflexão mais aproximada sobre
alguns conceitos e categorias jogados ao senso comum e que, ao serem desnaturalizadas,
revelam sentidos e encerram em seus diferenciados usos, particulares visões de mundo. Nesse
sentido contribui Dagnino:
“A utilização dessas referências, que são comuns, mas abrigam
significados muito distintos, instala o que se pode chamar de crise
discursiva: a linguagem corrente, na homogeneidade de seu vocabulário,

966

V V
obscurece diferenças, dilui nuances e reduz antagonismos.” (DAGNINO,
2005, p. 48).

Quais serão os limites e possibilidades gerados a partir desse novo lugar da cultura e
da música? Sobre o que de fato estamos falando quando dizemos sobre Politicas Culturais?
Entendendo o espaço público como um espaço de disputa, nesse complexo entrelaçamento, é
possivel entender a sociedade civil, ou mesmo o Estado, como instâncias homogêneas e
unificadas? Que dizemos quando falamos sobre Cultura Politica? Qual pode ser o papel do
estudo crítico em música nesse cenário?
Essas são algumas questões que procuramos debater inicialmente neste trabalho que,
de forma alguma pretende esgotar os fluxos do tema, e mais que responder a tais questões,
pretende refletir sobre contribuições recentes de alguns autores neste campo.

Do discurso a prática
Palavras nunca serão apenas palavras. No plano do discurso encerram, como campo de
disputa, visões de mundo e projetos politicos. Porém, definições borradas de certos conceitos,
idéias e referências, servem para escamotear diferenças consideráveis quando se parte do
plano do discurso para o plano da prática. Na ação politica, na proposição e elaboração de
politicas públicas, e sua consequente aplicação prática, fica evidente a batalha dos mundos
subjacente a tão corriqueiras e usuais formulações.
Segundo Evelina Dagnino, vivemos atualmente uma crise discursiva, onde o
deslocamento de sentidos que se operam nas noções de sociedade civil, participação e
cidadania, resultam em uma confluência perversa entre, de um lado, o projeto neoliberal e, de
outro, um projeto democratizante. Segundo a autora, essa crise está profundamente
imbrincada com as politicas culturais formuladas sob a hegemonia neoliberal (DAGNINO,
2005).
“Do meu ponto de vista, a primeira tarefa no enfrentamento desse
desafio passa exatamente pela visibilidade e exacerbação das diferenças
entre os dois projetos. Ou seja, pela exposição clara das relações de conflito
e antagonismo que se mantêm, hoje, diluídas e encobertas por essa aparente
homogeneidade de discurso.” (DAGNINO, 2005, p. 46)

Dentro desta complexa trama de disputas a cerca das politicas culturais, torna-
se imperativo observar que a constituição de politicas publicas traduzem não somente a idéia
e projetos de seus autores mas também refletem, necessariamente, a cultura politica dos
diferentes agentes envolvidos, no sentido dos processos de comunicação e disputa de valores,

967

V V
sejam a sociedade civil, o estado, as industrias culturais, artistas, ativistas, tidos aqui não
como entes homogêneos, mas que em si também encerram contradições e desigualdades.

Assim, as práticas de uma determinada cultura política, seja a da apropriação


do publico pelo privado, seja a da ampla participação e democracia cultural, seja a da primado
do econômico sobre todas as demais esferas da vida, seja ela advinda do estado, do mercado
ou da sociedade (como entes complexos em si), constituem precisamente aquilo que define as
politicas culturais, seus respectivos impactos e vazios, seus respectivos sons e silencios.
Neste contexto que papel pode ter a descontrução do discurso para um efetiva
construção da prática? O campo da reflexão critica que vem se fortalecendo no campo da
etnomusicologia pode e deve contribuir na desnaturalização de conceitos como os de música,
popular, erudito, e cultura, donde nascem grande parte dos equivocados caminhos na
elaboração de politicas públicas.

A centralidade da Cultura
No ambito do conceito de cultura antropológico, como modos de vida, estar no
mundo, nas diversas esferas e dimensões, como algo que constitui o ser humano, se torna
dificil pensar politicas públicas para a cultura como algo em si. São na verdade politicas que
permitam o ser continuar sendo em formas que dizem respeito a uma determinada história e
território. Diz respeito a uma garantia da existência e de seu pronunciamento.
Nos parece que, em certa medida, o que essa centralidade da cultura e as politicas
públicas consequentes dela apontam hoje, de forma genérica, é para a tentativa de garantir a
existência através de seu pronunciamento. Porém essa centralidade, ao ser colocada como
recurso para a solução de problemas sociais e econômicos, não pode se instaurar como um
substitutivo do politico, pressupondo o fim do conflito e o silenciamento das vozes através de
sua espetacularização. Ao contrário a centralidade da cultura tem como potencia a exposição
dos conflitos e sua possível elaboração em um ambiente “não letal”. Porém essa dimensão só
poderá ser constitutiva do pensamento acerca da elaboração de politicas públicas para cultura
na medida em que os agentes desta elaboração exponham também em seu processo, as
contradições, disputas e conflitos inerentes a eles. E que se compreenda essa nova cultura
como politica cotidiana, nas diferentes esferas que compões o espaço público.
O pensamento acerca da cultura nesta dimensão traz questões para as
linguagens artísticas em si que, nesse processo de desconstrução da estética, vêem suas
fronteiras se não apagadas, ao menos borradas. Nesse sentido o conceito elaborado por

968

V V
Samuel Araújo, de práxis sonora, pode se constituir como um caminho possível, não para o
cercamento de terrenos, mas como possível chave de leitura no campo da pesquisa em música
nesse contexto.
“por meio da categoria práxis sonora enfatizo a articulação entre
discursos, ações e políticas concernentes ao sonoro, como esta se apresenta,
muitas vezes de modo sutil ou imperceptível, no cotidiano de indivíduos
(músicos amadores ou profissionais, agentes culturais, empreendedores,
legisladores), grupos (coletivos de músicos, públicos, categorias
profissionais), empresas e instituições (por exemplo, sindicatos, agências
governamentais e não-governamentais e escolas), tomando como pano de
fundo a política e as lutas pela cidadania plena e pelo poder no Brasil hoje.
Neste quadro, merecem particular atenção os desafios enfrentados por
movimentos sociais opostos às diversas formas de práxis sonora que
legitimam um status quo concentrador de recursos e reprodutor de
desigualdades.” (ARAUJO, 2013, p. 8)

Diversidade e Desigualdade
A promoção e proteção da diversidade cultural pelos Estados tem sido um dos eixos
principais no ambito da politicas públicas para a cultura no Brasil e em diversos países da
América Latina. Com formações sociais multietnicas e extremamente desiguais economica,
social e politicamente, as politicas para a diversidade cultural nesses países assume por um
lado o caráter de reconhecimente e legitimação de grupos até então marginalizados, e por
outro de reforço e até re-desenho de identidades no processo de busca e construção de voz na
sociedade.
Entretanto, nesse contexto, a diversidade cultural pode ser vista e colocada como
grande solução para variados problemas, de exclusão e preconceitos raciais, a marginalização
econômica e ausência de garantia dos direitos sociais, muitas vezes encobrindo debates e
reflexões importantes sobre conflito, desigualdade, violência e poder imbrincados na história
e constituição desses povos.
A questão da diferença é um ponto crítico no entrelaçamento social e, portanto, central
na elaboração de politicas públicas. Até que ponto a garantia da igualdade é o fundamento que
permite a liberdade de buscar e constituir aquilo que nos identifica, nossa singularidade?
A diversidade cultural não substitui o politico, não leva “naturalmente” a redução das
desigualdades. Mas pode contribuir para a ampliação e perspectiva dos diálogos? Nesse
sentido, se a promoção e proteção da diversidade podem significar mais fronteiras e
demarcações, exacerbamento das identidades para pronunciar a existência, por outro podem
significar a possibilidade de encontro e negociação ao se reconhecer o outro, constituindo um
espaço politico de construção do possivel, como mediação de demandas e diferenças.

969

V V
Aa atribuições das politicas culturais devem então caminhar no sentido de
aprofundamento da cidadania cultural, fomentando o pertencimento e a partir dele a reflexão
do que está ao redor, afirmando a cultura como base para reinvindicações de direitos no
terreno público. “A diversidade e a cultura têm uma função política, como qualificação das
relações sociais e condição necessária para a formação da cidadania.” (DOMINGUEZ, 2008)
Trazendo para o ambito do estudo crítico em música e para as possíveis
contribuições da etnomusicologia nesse campo, salientamos que a noção de diferença teve um
papel importante na emergência da etnomusicologia enquanto diciplina. Para Vicenzo-
Cambria as principais questões do campo da etnomusicologia hoje giram em torno de uma
questão central que é: a compreensão de como a música contribui na construção,
representação, e negociação da diferença (CAMBRIA, In Musica e Cultura nº3). Nesse
sentido a percepção da diferença não se dá mais somente em relação aquilo que nos é estranho
e distante, como a princípio se tratou no campo, porém é reconhecida também no que nos é
familiar, dentro de nosso próprio circulo cultural e, até mesmo, dentro de nossa própria
constituição.
“A relação entre outsider e insider mudou de uma questão
intercultural para outra de tipo intracultural, e, portanto, questões de
diferença – como as de gênero, sexualidade, desvio social, e todos os outros
desvios em relação à certas tendências oficiais – encontraram também seu
lugar nos estudos etnomusicológicos.” (NETTL, 2003, s.p.).

A visão do campo da cultura, das expressões artísticas, da música, como campo


dialógico de elaboração do discurso expressivo de identidades e pertencimentos, pode ser
fundamental para uma virada na crise de representação que estamos vivendo hoje na politica.
Descobrir, por exemplo, que um dos principais problemas para uma determinada cultura é o
saneamento básico do território onde ela se encontra, fomenta, a partir da cidadania cultural, e
do sentido social que a cultura pode promover, a tradução de direitos culturais em direitos
sociais, através da luta politica e coletiva.
A garantia da diversidade cultural deve vir aliada a garantia da igualdade
social, e não como um paliativo para a mesma, que vê apenas no reconhecimento da
existência, a garantia de sua sobrevicência. E nessa jornada complexa atuam juntos e em
constante disputa, em movimento e equilibrio dinâmicos, todas as dimensões que contribuem
na construção do espaço e do bem público.

Violência como tônica

970

V V
Outro aspecto que salta aos olhos nas ações e programas de politicas públicas para a
cultura e as artes é a perspectiva de apaziguamento de conflitos e fim da violência. Ana Maria
Ochoa, em seu texto “Indicadores culturais para tempos de desencanto” (2003) analisa que
diante do completo fracasso das politicas neoliberais, do acirramento de desigualdades e da
banalidade da violência em grande parte dos países da America Latina, a cultura se torna um
campo de possibilidades para a reconstituição do tecido social.
“Nesse clima de desconcerto, de fracasso do político e do social para
conter as fronteiras do desastre, afiança-se, em alguns setores, a noção de
que a cultura serve para reestruturar o espaço público, para restaurar práticas
de convivência, ou como caminho para a paz e a reconciliação.” (OCHOA,
2003, p. 62).

Ochoa levanta muitas questões e debates que não buscaremos, e nem


conseguiriamos, esgotar aqui, porém um aspecto por ela levantado se torna interessante
colocar, na medida em que traz uma outra dimensão do que Yudice chama de
instrumentalização da cultura.

“Indubitavelmente, isso é uma realidade. Porém, surge uma


interrogação: “Que interesse invoca esse processo de instrumentalização da
cultura?” Quando se entrevistam pessoas que moram em regiões de conflito
armado intenso sobre o que significa a cultura ou a arte para eles, encontra-
se uma definição do instru- mental muito mais ampla que aquela aceita pelas
teorias de desenvolvimento ou pelos ideólogos dos movimentos sociais. Não
há apenas uma demanda material ou de identidade. Há também uma
demanda de transcendência na vida, ali onde os resquícios da criatividade
foram reduzidos ao âmbito do macabro. O que se demanda não é uma ação
fria sobre a cultura, tampouco unicamente ter recurso a um relato de
identidade; o que se demanda, muitas vezes, é a possibilidade de retornar a
imaginação para um sentido pela vida. É outro o significado do instrumental
o que aqui se invoca.” (OCHOA, 2003, p. 74).

Arte como espaço para “elaborar” a violência, pronunciá-la, e encontrar caminhos


alternativos para o conflito que não passe necessariamente pela aniquilação do outro. Espaço
de fronteira, e as vezes único espaço possível de encontro. Samuel Araujo et alli em um
trabalho intitulado “A violência como conceito na pesquisa musical” (2006), traz importantes
contribuições para esse debate acerca da violência estrutural e simbólica a qual todos nós
estamos submetidos em nosso cotidiano de relações, incluindo a prática musical e sonora. E
ressalta a importância do olhar crítico na compreensão dessas dinâmicas, que atuam na micro
e macro política.
“Uma outra compreensão do lugar da música ou seus correlatos em
contextos diversos deveria, em nosso entendimento, não só reconhecer o
papel da música e, de modo mais genérico, da comunicação sonora não-
verbal em processos sociais demarcados como violentos, mas também situar

971

V V
reciprocamente formas de violência socialmente exercida em processos
musicais ou em que a música desempenhe um papel-chave. Esta obviamente,
não é tarefa fácil, face ao caráter elusivo da significação musical.”
(ARAÚJO, 2006, p. 2)

A relação violência-cultura, violência-arte, de maneira nenhuma se dá de forma


simples e unilinear. E as politicas públicas que apontam para esse binômio não podem de
maneira nenhuma estigmatizar a questão. Seja como possível campo de um diálogo não letal e
formulação das implicações da violência cotidiana através da expressão artística, seja como
lugar de gestação da esperança, para além de aspectos materiais, mas sim subjetivos e
emocionais, seja como campo minado, também administrado por relações de poder e
violências simbólicas, a cultura e a música não são dimensões homogêneas. Portanto, sem um
aparato reflexivo e crítico, a elaboração de politicas culturais necessariamente cairá no lugar
comum de efeitos paliativos, não apropriados pela sociedade e indivíduos.

Reflexão crítica e participação


Pensar a reflexão crítica como princípio norteador das ações coletivas e da vida em
sociedade, pela desnaturalização de lugares de poder e reconhecimento da legitimidade do
outro, e a participação como método nessa construção, nos parece um caminho fértil na
gestação de novas formas na constituição artesanal do público e das politicas culturais.
Reconhecer os limites do estado enquanto ente monopolizador do público, como relações de
pessoas e trabalhos cotidianos, e deslocar a elaboração das politicas culturais a partir de
demandas da sociedade. Reconhecer potências e criar campo propício para o surgimento e
formulação de novas demandas. Cultivar um espaço de escuta e criação, uma escuta que nutra
a ação.
Nesse sentido é necessário também ressaltar a sociedade civil, organizada e
desorganizada, como espaço também de disputa, conflito e contradições. A participação em si
não garante a vitória do coletivo, pois esse não existe unissonamente, mas garante um espaço
público de reconhecimento de diferenças, diálogo e construção de pactos.
Ochoa, em seu livro “Entre direitos e desejos” (2003), ao análisar diversas dimensões
de um programa do Ministério da Cultura da Colombia, denominado “CREA – uma
expedição pela cultura colombiana”, reflete:
“Las políticas culturales que pretenden dibujar el eje de relación
entre el centro y las regiones exigen estabelecer relaciones con éstas no sólo
desde una dinámica consultiva en el diseño a los proyectos, sino en una
dinámica permanente de intercambio en os procesos de conceptualización,

972

V V
diseño e implementación de las politicas culturales.” (OCHOA, 2003, p.
114)

O CREA é um festival de artes nacional, onde são realizados mostras competitivas


desde o nível municipal, distrital, estadual, elegendo representantes que se apresentam em
uma grande mostra nacional em Bogotá. Dentre diversas reflexões que Ochoa faz, apontando
avanços e desafios desta politica pública, a participação e o debate local sobre o desenho e
implementação de tais políticas aparecem como principal ausência, gerando grande parte das
deficiências do programa.
João Domingues, em sua dissertação de mestrado sobre o programa do Ministério da
Cultura do Brasil, denominado Cultura Viva, afirma:
“Além de privilegiar o investimento direto nos projetos da sociedade
civil e não em casas “fechadas” de cultura, os Pontos de Cultura representam
uma outra forma de legitimação do que significa espaço cultural. Ao apostar
na auto-organização das classes populares, o Programa põe em xeque o que
estava consagrado e legitimado como espaço “oficial” das artes e da cultura,
normalmente disponíveis geográfica e esteticamente à alguns poucos grupos
sociais.” (DOMINGUEZ, 2008, p. 137).

Nesse sentido, a grande contribuição do Programa Cultura Viva para o


pensamento e construção de politicas públicas para a cultura é pensar a sociedade a partir de
sua potência e não de sua carência. Porém, ao seguir do discurso à prática, aparecem a
complexidade na implantação dessa politica e os limites da cultura politica do estado.

“Em todo o país, os Pontos de Cultura estão muito insatisfeitos pelas


inúmeras dificuldades vivenciadas. O Cultura Viva possui muitos méritos
em sua concepção, mas tem grandes problemas na operacionalização, pois
há grande dificuldade do Estado em acompanhar a ação democrática do
Programa.” (FÓRUM NACIONAL DOS PONTOS DE CULTURA, 2007a)

Em outro ambito das politicas públicas, não oriundas de ações do estado, mas do
trabalho e pesquisa nas universidades, Samuel Araújo análisa a atuação do Laboratório de
Etnomusicologia da UFRJ e do grupo Musicultura, em um projeto junto a escolas publicas no
bairro da Maré, Rio de Janeiro:

“Durante toda a discussão, por cerca de uma hora, era-me impossível


deixar de pensar na trágica ironia de não ter logrado algo semelhante em
cargo de gestão pública, presumivelmente com mais influência sobre o
mesmíssimo programa que me permitia, enquanto acadêmico com referência
na etnomusicologia e seu legado polifônico, mediador de saberes, que aqui
tentei apresentar como singular ao debate público contemporâneo sobre a
música, resultados tão alvissareiros em termos de articulação entre políticas

973

V V
públicas, desde as voltadas à melhoria de índices educacionais no ensino
fundamental às de fomento à pesquisa acadêmica, de integração entre os
diversos níveis do sistema educacional público, colocando em cheque certos
discursos imobilistas de manutenção do fosso entre ensino público básico e
superior, de formação reflexiva de novos sujeitos de conhecimento, tema
caro à virada epistêmica das humanidades acima aludida, e, ainda mais
significativamente, de aprofundamento do processo democrático nos mais
diversos âmbitos.” (ARAUJO, 2011, p.10).

Nesse sentido percebemos a importancia do campo do pensamento e reflexão


crítica nutridos na Universidade, enquanto espaço potente de desconstrução de discursos e,
possivelmente, de cosntrução de novas práticas.
Seja no CREA, no CULTURA VIVA ou no LE-UFRJ, os limites e possibilidades do
estado, da universidade e também da sociedade civil são muitos, e se traduzem na medida das
possibilidades de diálogo, reflexão crítica e participação para co-gestão do espaço comum.
Neste trabalho coube apenas uma pequena referência a esses projetos, de maneira nenhuma
abarcando suas complexidades.
Considerações parciais
O objetivo desse trabalho foi refletir sobre alguns conceitos que ajudam na
compreensão e apontam para as possibilidades e desafios das relações entre cultura, política,
bem público, pensamento crítico e etnomusicologia. O que realizei aqui foi um debate inicial,
necessitando ainda de um aprofundamento e pesquisa mais apurados dos desdobramentos e
implicações apontados.
Uma Politica Cultural apropriada a/pela sociedade se compõe com as notas musicais
de sua própria Cultura Politica. Para que profundas transformações possam acontecer no
âmbito das politicas públicas para a cultura, no sentido da radicalidade democrática e
aprofundamento dos direitos sociais, é preciso descortinar discursos, refletir sobre as disputas
e relações de poder, compreender direções e sentidos que se impões como naturais.
“a través de una redefinición de las formas de participación entre los
individuos de las sociedad y los funcionarios del estado, en donde cada uno
asuma sus responsabilidades integrando una cultura crítica constructiva para
reformular tanto las políticas culturales como las prácticas de cultura política
que desde allí se construyen. Con ese propósito, es necessario que haya
disposición para desconstruir el sentido de lo cultural en las políticas
culturales (…). Pero también tiene que haber una disposición para
cuestionar, desde la crítica cultural, las prácticas de poder que constituyen la
cultura política que media las politicas culturales.” (OCHOA, 2003, p. 188)

Assim como estudos antropológicos desconstruiram criticamente pressupostos


inabaláveis da cultura, como comportamento, moral e relações sociais, a etnomusicologia vem

974

V V
fazendo o mesmo com conceitos e formas canonizadas de ouvir e classificar a música e, assim
como a diciplina irmã, pode incidir seu viés critico em cima das demais expressões artísticas.
Conceitos não são meros conceitos, embasam pensamentos e ações, e no
debate/disputa no ambito público é imprescindível descortinar pressupostos dados como fatos
inexoráveis, para que se possa conhecer outras possibilidades. Esse pode ser o ponto de
transformação nutrido pela capacidade critica. Sabendo que isso, por si, não é garantia, e que
o pensamento crítico e reflexivo não é monopólio do saber acadêmico, também permeado por
disputas e lugares de poder. Mas a possibilidade de compreender a formação desses lugares
de fala e pertencimento, perceber sua constituição social, histórica, cultural, torna possível sua
relativização e transformação. Ao mesmo tempo que desestabiliza o “tecido social” por
reconhecer o movimento, torna-o permeável e objeto possível de construção coletiva. Ainda
assim é necessário crer na possibilidade da vida em comum ou no tal “tesouro perdido”
(ARENDT) do bem comum e da vida política.
Como disse Ochoa, o conflito nunca deixará de existir, porém sua solução não precisa
implicar necessariamente no aniquilamento do outro. Aqui o papel da cultura e da música,
como campo de significação e de intersubjetividades, pode sim ser o ingrediente para dar o
ponto. Como espaço não letal de elaboração e negociação do conflito, como espaço para
constituição e pronunciamento da existência, como espaço de estímulo e formulação das lutas
pela garantia dessa co-existência em diversas dimensões.

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976

V V
POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E A PROMOÇÃO DE
DESENVOLVIMENTO: QUESTÕES TEÓRICAS
Mariana de Araujo Aguiar1

RESUMO: O presente artigo tem por foco compreender a política pública de cultura sob o
ponto de vista do desenvolvimento socioeconômico. Este enfoque se explica pela importância
que a cultura tem adquirido como uma forma de diminuir os índices de desigualdade, de
promover a cidadania e a democracia. A fim de melhor entender a relação entre cultura e
desenvolvimento, o artigo busca os traços teóricos e históricos em que a discussão de
desenvolvimento se inseriu no campo das políticas públicas culturais.

PALAVRAS-CHAVE: cultura, desenvolvimento, política cultural, história, teoria.

A cultura como substrato do desenvolvimento tem sido abordado por diversos


estudiosos. As análises empreendidas têm discutido diferentes questões sobre a relação entre
cultura e desenvolvimento. Uma das questões abordadas é a compreensão da cultura como
recurso. Esta concepção está presente no trabalho de George Yúdice (2004). Sua abordagem
refere-se à cultura como recurso para alcançar fins sociais e econômicos. Ele destaca o
protagonismo socioeconômico que a cultura alcançou no mundo globalizado, em parte devido
às mudanças da globalização, que problematizaram o uso da cultura como fator nacional e
passou a reconhecer a diversidade; em parte devido às divergências políticas que implicaram
no reconhecimento da diferença cultural de grupos sociais; e em parte no reconhecimento da
cultura como promotora da coesão social.
Assim, segundo Yúdice (2004: 30), a cultura passa a ser encarada como um recurso
para gerar renda, emprego e desenvolvimento. Segundo o autor, a cultura como recurso é um
fator inerente da nossa sociedade globalizada. Essa mesma ideia foi defendida por Loiola e
Miguez (2007). Segundo eles, a cultura é um recurso tanto na dimensão simbólico-identitária
presente nas negociações e nos setores de produção, quanto na produção de bens e serviços
culturais que integram o mercado cultural (LOIOLA; MIGUEZ, 2007). Eles apontam que a
cultura é um dos fatores de produção para a indústria criativa e utilizada como atração para o
desenvolvimento econômico e turístico. Mas, os autores vão além da cultura como recurso
econômico, eles ressaltam ainda o papel da cultura como geradora de riquezas simbólicas.

1
Doutoranda do Programa Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento – PPED/ UFRJ.
E-mail: mariana_araujo_aguiar@hotmail.com

977

V V
Outro conceito presente nas obras de autores que se dedicaram ao tema é o conceito de
capital social. José Márcio Barros define capital social como um “conjunto de valores e
atitudes compartilhados, capaz de assegurar um grau máximo de segurança entre os atores
sociais” (BARROS, 2008:20). Nesse sentido, ele aponta que a cultura se faz presente em
todos os componentes básicos do capital social, uma vez que ela comporta aspectos da
identidade social, que possibilita um grau de cooperação e de confiança.
Guy Hermet (2002) ressalta alguns problemas relativos ao “capital social”. Segundo
ele, o reconhecimento do capital social, como entende Robert Putnam, como uma riqueza que
tem a confiança e a solidariedade em sua base, poderia levar a perigos como: afirmar posições
subalternas, na medida em que pode fazer com que as pessoas acreditem que a exclusão
econômica ou social é inerente ao fator cultural da sociedade. Além disso, pode permitir que
grupos minoritários que tenham uma rede de relacionamento maior que outros, exerçam uma
hegemonia econômica sobre as demais. Para o autor, não basta, portanto, um reconhecimento
do capital social, mas principalmente, permitir a participação da sociedade e a apropriação dos
projetos pelos diferentes atores sociais.
Para além dos conceitos tratados acima, outros teóricos também estudaram a
influência da cultura para o desenvolvimento econômico e social a partir de outros conceitos
que, em parte, aprofundam as questões já destacadas. Na obra Desenvolvimento como
liberdade, Amartya Sen afirma que, para que ocorra o desenvolvimento é preciso que não
haja privações da liberdade, como por exemplo: pobreza, tirania, carência de serviços
públicos, carência de oportunidades econômicas, restrição à participação política e etc. (SEN,
2000: 18). A liberdade não é apenas o fim, mas também o principal meio para o
desenvolvimento. Ou seja, é por meio da liberdade da ação dos indivíduos que o
desenvolvimento é obtido. E, as potencialidades individuais são alcançadas quando há
dispositivos econômicos, sociais e políticos, ou seja, quando há funcionamentos para o
incremento das capacidades dos indivíduos. (SEN, 2000: 25 – 26). Portanto, a perspectiva de
liberdade é colocada por Amartya Sen no centro das atenções para o desenvolvimento.
No que diz respeito à cultura, propriamente dita, Amartya Sen aponta que os valores e
costumes sociais influenciam a liberdade de desfrutar de algo. Porém, os próprios valores são
influenciados por interações sociais que, por conseguinte, refletem as liberdades de
participação política. Portanto, os costumes e os valores culturais de uma sociedade são
entremeados pelo debate público participativo. Para Amartya Sen, a liberdade atua na própria
preservação de valores e costumes, a partir do momento em que a sociedade pode decidir

978

V V
sobre como preservar suas raízes e quais são suas prioridades. Sen concluiu que o
reconhecimento da diversidade cultural é essencial no nosso mundo contemporâneo porque
permite uma ampliação da participação popular e, consequentemente, da autonomia dos
indivíduos.
O conceito de desenvolvimento de Celso Furtado também pressupõe o reconhecimento
da diversidade cultural, principalmente, das culturas inerentes a uma sociedade. Segundo a
teoria de Furtado, a introdução de elementos exógenos às culturas locais, como por exemplo,
os padrões de vida e consumo de países desenvolvidos, são incompatíveis com a situação
socioeconômica de um país subdesenvolvimento. “Esse país crescerá economicamente, mas
não se transformará, ao contrário, se deformará” (FURTADO, 2003 Apud: MENDES;
TEIXEIRA, 2004: 11). A cultura, portanto, é analisada por Furtado como: formas de viver e
de se organizar simbolicamente. Ele destaca que o desenvolvimento das regiões
subdesenvolvidas tem que ocorrer de forma endógena e não a partir da introdução de formas
de vida externas à sociedade.
Na obra Cultura e desenvolvimento em época de crise Furtado (1984) define
endogeneidade como: “A endogeneidade outra coisa não é senão a faculdade que possui uma
comunidade humana de ordenar o processo acumulativo em função de prioridades por ela
mesma definida” (FURTADO, 1984:108). Fica claro assim o processo de autonomia,
protagonismo e empoderamento social. Isso fica explícito ainda quando ele aponta a presença
dos instrumentos tecnológicos: “O que se tem em vista é descobrir o caminho da criatividade
ao nível dos fins, lançando mão dos recursos de tecnologia moderna na medida em que isso
seja compatível com a preservação da autonomia na definição desses fins” (Ibidem: 118).
Tanto Amartya Sen quanto Furtado apontam a importância do Estado para a promoção
do desenvolvimento. Eles reconhecem que o incentivo para a auto-organização da sociedade
provém do Estado, além disso, eles assinalam a necessidade de iniciativas da política pública
na criação de oportunidades sociais e culturais a fim de possibilitar uma redistribuição de
renda e uma redução das discrepâncias sociais.
A participação do Estado no campo da cultura enquanto promotora do
desenvolvimento também foi abordada por outros autores. Para Benhamou (2007), por
exemplo, o estado deve intervir não apenas pelo fator econômico, mas pelo retorno
sociocultural que a cultura pode acarretar na sociedade. A autora analisa a intervenção do

979

V V
Estado tendo por base a teoria de Bourdieu2. Segundo ela, a falta de inclinação pela cultura
vem acompanhada da falta de sentimento da importância da cultura. Assim, a intervenção do
estado “impede que se empobreça a vida cultural quando abandonada ao imperativo da
rentabilidade” (BENHAMOU, 2007:181). A importância da intervenção do Estado, portanto,
é permitir a democratização do acesso à cultura e impedir que regras do mercado, ditadas a
partir da rentabilidade e do mecenato, empobreçam a diversidade cultura e impeçam uma
fruição cultural ampla.
A importância da intervenção do Estado nos incita a pensar o conceito de políticas
públicas de cultura. Este trabalho pretende dialogar com duas abordagens principais, no que
diz respeito às políticas públicas de cultura. A primeira é a abordagem da cultura enquanto
direito social, ou seja, a cultura diz respeito a um mínimo de bem-estar e de participação na
sociedade, assim, a política cultural pode ser abordada dentro do conceito de políticas sociais3
(SIMIS, 2007). Calabre (2007) argumenta que deve ser objetivo do governo, ao realizar
políticas culturais, a promoção da democracia cultural, a fim de superar as desigualdades.
Assim, a cultura deve ser encarada como uma expressão da cidadania, incentivando a
participação popular no processo de criação cultural, promovendo as formas culturais de
diferentes grupos e etc.
Outra conceitualização da política pública cultural refere-se à importância da cultura
para o desenvolvimento humano e para a geração de renda e emprego. Por isso, elas podem
ser articuladas dentro de uma vertente de políticas para o crescimento econômico e para a
diminuição dos índices de desigualdade. Porto (2007: 177) aponta que um dos pilares
importantes que uma política cultural deve seguir é considerar a importância da cultura:
nos processos de desenvolvimento humano e no fortalecimento da
institucionalidade democrática, articulando as políticas de cultura com outras
áreas políticas, econômicas e sociais, fomentando a participação da

2
Bourdieu (2011) afirma que o valor simbólico dos bens culturais se define socialmente a partir do campo social
em que os indivíduos se inserem, gerando distinções sociais. Para ele, o valor de um bem cultural depende do
capital cultural que um indivíduo possui, ou seja, a herança familiar e sua contribuição para a formação da
educação de um indivíduo. Para Bourdieu, portanto, a ajuda pública se justifica pela perspectiva educacional, a
fim de enriquecer o capital cultural e simbólico. Assim, através da educação é possível que os indivíduos passem
a ter inclinação estética.
3
O IPEA define as principais áreas de política social no governo federal, são elas: previdência social, assistência
social, saúde, educação, cultura, trabalho e renda, desenvolvimento rural, igualdade racial e igualdade de gênero.
São diversos seus objetivos, como por exemplo: no caso das políticas de proteção social, seus objetivos são
“reduzir e mitigar riscos e vulnerabilidades a que qualquer indivíduo está exposto em uma sociedade de
mercado”; no caso das políticas de educação, cultura, regulação do mercado de trabalho, entre outras, os
objetivos são “garantir aos cidadãos mais equânimes oportunidades de acesso aos recursos e benefícios
conquistados pela sociedade, em seu percurso histórico”; além disso, as políticas sociais podem ter por objetivo
“promoção e à garantia de direitos”, como acesso à justiça, segurança pública, igualdade de gênero e da
igualdade racial. IPEA, Políticas sociais: acompanhamento e análise, Brasília: Ipea,Vol. 17, 2009.

980

V V
sociedade civil, dos criadores e suas organizações profissionais. Nesse
campo abre-se todo o mapa da economia da cultura, as oportunidades do
turismo cultural, do desenvolvimento local e comunitário, do estímulo às
indústrias culturais e da economia solidária.

Assim, a atuação de políticas públicas de cultura deve ir além das possibilidades


mercadológicas, ela deve apontar para a coesão social, para a divulgação de valores
simbólicos e para a proteção de manifestações culturais da população. Nesse âmbito, é
importante que as políticas culturais reconheçam a pluralidade cultural e permitam que
diferentes segmentos sociais continuem produzindo seus bens e serviços culturais Portanto, as
políticas culturais devem viabilizar o desenvolvimento, seja reforçando os aspectos humanos,
como solidariedade e democracia, seja promovendo desenvolvimento local, estimulando a
participação da sociedade civil nos processos de produção, criação e difusão de bens culturais.

POLÍTICAS CULTURAIS E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE


HISTÓRICA
As reflexões sobre as relações entre políticas culturais e desenvolvimento iniciaram-se
na década de 1970, nas Conferências regionais na Europa (Helsinki 1972) e na Ásia
(Yogyakarta 1973) promovidas pela UNESCO. Até esse período, o conceito de
desenvolvimento estava atrelado a aspectos economicistas. Desenvolvimento era sinônimo de
crescimento econômico, teoria que foi contestada por diversos críticos. De tais críticas,
emergiram discursos sobre identidade e diversidade cultural como uma alternativa para o
modelo de desenvolvimento que era, até então, descontextualizada dos aspectos sociais
(BURITY, 2007:56).
O aprofundamento nas relações entre cultura e desenvolvimento ocorreu na
Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, realizada no México e promovida pela
UNESCO em 1982. Esta conferência definiu que os conceitos de “desenvolvimento” e de
“cultura” estão imbricados, ressaltando:
Cultura como o conjunto de características espirituais e materiais,
intelectuais e emocionais que definem um grupo social. (...) engloba modos
de vida, os direitos fundamentais da pessoa, sistemas de valores, tradições e
crenças
(...)
Desenvolvimento como um processo complexo, holístico e
multidimensional, que vai além do crescimento econômico e integra todas as
energias da comunidade (...) deve estar fundado no desejo de cada sociedade
de expressar sua profunda identidade... [É] energia criadora e desejo de
expressar identidade (UNESCO, 1982).

981

V V
A conferência, assim, assinalou que só se pode assegurar um desenvolvimento
equilibrado através da integração dos fatores culturais e estes deverão ser incorporados nas
propostas das estratégias de desenvolvimento (SEMPERE, 2012). A partir das recomendações
apontadas na Conferência, foi aprovado o Decênio Mundial para o Desenvolvimento Cultural
de 1988-1997, no âmbito das Nações Unidas e da UNESCO. As contribuições do decênio
foram múltiplas em termos de produções e culminou com o Relatório Final, em 1998,
designado Nossa Diversidade Criativa e publicado pela UNESCO.
A Conferência Mundial sobre políticas Culturais gerou consequências positivas no
próprio seio da UNESCO. Em 1998, foi realizada a Conferência Intergovernamental sobre
Políticas Culturais para o Desenvolvimento, em Estocolmo, na qual pôde ser evidenciado um
conjunto de princípios fundamentais sobre a relação entre cultura e desenvolvimento
sustentável. Como primeiro objetivo do Plano de ação desta conferência foi recomendado aos
Estados-Nação que adotassem medidas para “Fazer da política cultural um componente
central da política de desenvolvimento” (UNESCO, 1998).
Ainda na década de 1990, a UNESCO criou a “Comissão Mundial de Cultura e
Desenvolvimento” que retratou a importância da cultura para o desenvolvimento. Segundo o
relatório da Comissão, um conceito mais amplo de desenvolvimento
tem sido defendido durante muito tempo pela UNESCO, mas
recentemente, pelo Informe sobre Desenvolvimento Humano que publica
anualmente o PNUD e também por distintos economistas, que consideram o
desenvolvimento um processo que aumenta a liberdade efetiva daqueles que
se beneficiam para realizar o que, por uma razão ou outra, têm razão para
valorizar. Desta perspectiva, a pobreza não só implica a falta de bens e
serviços essenciais, mas também de oportunidade para escolher uma
existência mais plena, mais satisfatória (CUÉLLAR, 1996: 14).

A cultura, de acordo com o relatório, passa a ser importante para o conceito de


desenvolvimento, na medida em que ela é a base social para as ações dos seres humanos. A
Comissão define cultura a partir de um conceito antropológico4. Visto desta maneira, a cultura
não é apenas um meio para alcançar um crescimento econômico, mas é um fim em si mesma,
já que a cultura atua na relação do ser humano com outros objetos “como conservar o meio
ambiente físico, preservar os valores familiares, proteger as instituições civis de uma
sociedade” (Ibidem). Assim, a cultura, enquanto meio e fim, tem levado a Comissão a:
centrar suas análises da cultura e do desenvolvimento na forma em
que diferentes maneiras de viver juntos afeta a ampliação das possibilidades
e opções abertas ao ser humano5. O desenvolvimento deve ser considerado

4
Expressão de maneiras de viver das diferentes sociedades
5
Grifo do autor

982

V V
em termos que incluam o crescimento cultural, respeito por todas as culturas,
assim como o princípio de liberdade cultural (CUÉLLAR, 1996: 14-15).

A Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, presidida Javier Pérez de


Cuéllar, propôs uma série de formulações que estivesse de acordo com o momento atual:
globalizado e midiático. Tais formulações puderam ser evidenciadas nos pontos da agenda
internacional presentes no relatório dessa comissão como: facilitar o acesso e a diversidade de
meios de comunicação, proteger os direitos culturais, preparar novas estratégias de
desenvolvimento que estejam presentes os aspectos culturais, entre outras.
A leitura do relatório da Comissão evidencia que a UNESCO tem destacado o papel da
cultura enquanto promotora do desenvolvimento, nos aspectos econômicos, mas,
principalmente, nos aspectos sociais. A associação entre desenvolvimento e cultura, desde
então, tem se tornado recorrente nos discursos da UNESCO. Baracat (2012) defende que o
alargamento do conceito de cultura, por esta instituição, levou à ampliação do conceito de
desenvolvimento socioeconômico, como se expressa no Relatório Mundial da UNESCO
(2009: 24-25):
(...) as estratégias de desenvolvimento sustentável não podem
permitir-se ser culturalmente neutras: não somente devem ser sensíveis à
dimensão cultural, mas também devem aproveitar os benefícios oriundos da
interação dinâmica entre as diferentes culturas. Uma perspectiva de
desenvolvimento mais sensível à diversidade é, consequentemente, a chave
para lutar contra os inextricáveis problemas socioeconômicos e do meio
ambiente com os quais o planeta se confronta.
(...)
O reconhecimento da diversidade cultural acrescenta uma dimensão
crucial às estratégias que consideram a sustentabilidade como elemento que
facilita a integração dos pilares econômico, social e ambiental do
desenvolvimento. Nesse sentido, a diversidade cultural pode ser considerada
como dimensão transversal-chave do desenvolvimento sustentável.

Além de atrelar as questões de desenvolvimento humano à diversidade de expressões


culturais, a UNESCO apresenta um conceito de desenvolvimento socioeconômico baseado
em argumentos culturais, afirmando que estratégias de desenvolvimento devem levar em
consideração o contexto cultural em que a sociedade se insere. Assim, alcançar o
desenvolvimento sustentável implica em valorizar as diversas formas de manifestação
cultural, os modos de vida e as redes de significados e sociabilidade.
A valorização do patrimônio material e imaterial e o reconhecimento da diversidade
cultural possibilitam que diferentes grupos desempenhem um papel mais relevante na esfera
pública Nesse sentido, a UNESCO defende que, para além da redistribuição de renda, as
estratégias de redução da pobreza devem propiciar diálogos com os diferentes grupos sociais,

983

V V
a fim de que eles possam reforçar suas competências e alcançar sustentabilidade, para
“restaurar neles a consciência da sua dignidade, o que passa pela valorização do patrimônio
imaterial do qual as pessoas interessadas são depositárias” (UNESCO, 2009: 25).
Dessa maneira, o que a UNESCO propõe vai além de garantir direitos humanos, mas
refere-se a uma mudança na perspectiva de desenvolvimento, considerando os aspectos
inerentes às sociedades e não aspectos externos de desenvolvimento. Para além do
protecionismo aos bens e serviços culturais, defender a heterogeneidade cultural tem uma
importância grande para os países em desenvolvimento. Equivale dizer que estes não devem
aderir à importação de valores de desenvolvimento, mas sim adequar-se à sua realidade
socioeconômica (BARACAT, 2012: 21).

POLÍTICA PÚBLICA BRASILEIRA DE CULTURA E A PERSPECTIVA DE


DESENVOLVIMENTO
A política pública brasileira se inseriu no debate a partir, principalmente, dos anos
2000 tanto no âmbito do Ministério da Cultura (MinC) quanto no âmbito de instituições como
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No que diz respeito ao
MinC, o alargamento do conceito de cultura ocorreu a partir da gestão de Gil, como ressaltam
Rubim (2010) e Botelho (2007). Ao adotar um conceito de cultura “antropológico”, ou seja, a
cultura vista “como o conjunto dinâmico de todos os atos criativos de nosso povo”
(BOTELHO, 2007: 128), “o Ministério deixou de ter seu raio de atuação circunscrito ao
patrimônio (material) e às artes (reconhecidas) e abriu suas fronteiras para outras culturas”
(RUBIM, 2010: 14). Assim, as políticas e os órgãos criados em sua gestão refletem um pouco
desta abordagem.
Um exemplo disso foi a criação de um Plano Nacional de Cultura (PNC), proposto à
câmara dos deputados em 2000, pelo deputado federal Gilmar Machado (PT- MG) e outros,
através da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 306. Segundo o texto da PEC, era
necessário um plano que tivesse por objetivo:
[...] o desenvolvimento cultural do país, com ações e metas
consistentes e eficazes que promovam a defesa e a valorização do patrimônio
cultural brasileiro, o incentivo na produção e difusão de bens culturais, a
formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas
dimensões, a democratização ao acesso aos bens culturais e o
reconhecimento de que somos um país multirracial, caracterizado pela
diversidade regional e pluralidade étnica marcante. (diário da câmara dos
deputados, 2000, p. 85 apud: REIS, 2010: 50)

984

V V
A PEC 306 se constituiu enquanto lei em 2010, através da Lei nº 12.343. A lei aprova
o Plano Nacional de Cultura, estabelece seus princípios, objetivos, as atribuições do poder
público, financiamento e cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais –
SNIIC como forma de avaliação e monitoramento. A Lei ainda prevê metas para a área da
cultura a serem atingidas até 2020.
Diferentes projetos e políticas se instauraram no MinC em termos de remodelação do
conceito de cultura e em termos de promoção da cultura como fator para o desenvolvimento.
Alguns documentos traçam a definição do ministério frente à perspectiva de desenvolvimento.
Um desses documentos é o Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil, datado de
2006.
Os dados inscritos no Programa ressaltam a cultura como ferramenta eficiente para a
redução das desigualdades e para a universalização da qualidade de vida (MINC, 2006).
Dentre as ações e os desafios propostos pelo programa se inserem: Elevar o orçamento da
Cultura para 1% do Orçamento da União; Ampliar o programa Cultura Viva, “como uma
ampla rede básica, pertencente à sociedade, reforçando a autonomia e a capacidade de
realização dos brasileiros” (Ibidem: 45); Reconhecer a diversidade cultural brasileira;
“desenvolver e fomentar ações e medidas de apoio à cultura, em especial à popular, que
articulem seus diversos atores em redes dinâmicas, capazes de propiciar um diálogo entre as
linguagens e tradições” (Ibidem: 46); fortalecer a economia e sustentabilidade da cultura;
aprofundar o caráter compartilhado, colaborativo e transformador da gestão cultural.
A perspectiva do governo federal, portanto, teve por objetivo incentivar a produção,
distribuição e fruição de diversas formas de cultura, incentivar a diversidade e o aspecto
econômico da cultura, e promover uma gestão participativa dos programas do MinC.
Portanto, se encontram presentes a perspectiva de cultura como impulsionador do PIB e como
estimulador da coesão social e da construção de identidade. Esses objetivos vão ao encontro
das propostas apresentadas pela Unesco, estimulando tanto o caráter cultural quanto o
econômico.
Para além das políticas culturais exercidas no MinC, a inserção da cultura no âmbito
do desenvolvimento também foi pensada no campo de atuação do Banco Nacional de
desenvolvimento econômico e social (BNDES). O BNDES, enquanto banco do
desenvolvimento, reconheceu, a partir de 2006, que a diversidade cultural do País é um
grande ativo a ser empregado em prol do seu desenvolvimento socioeconômico sustentável.
Por isso, o BNDES possui um programa designado como: Programa BNDES para o

985

V V
Desenvolvimento da Economia da Cultura (BNDES Procult) que financia projetos de
investimentos e planos de negócio das empresas atuantes nas cadeias produtivas da economia
da cultura, como audiovisual, editorial, música, jogos eletrônicos e artes visuais e
performáticas.
Nesse sentido, observa-se a inserção do Brasil no debate internacional sobre cultura e
desenvolvimento. Tanto as definições do Ministério da Cultura quanto as do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social nos ajudam a definir as perspectivas de
desenvolvimento aplicadas à cultura. Apesar de serem instituições diferentes, com funções
diferentes, o MinC e o BNDES são, respectivamente, as que definem as políticas públicas de
cultura e as estratégias de desenvolvimento do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A cultura tem sido tratada como forma de diminuir os índices de desigualdade, de
promover a cidadania, a democracia, e tem tido representatividade no crescimento econômico.
Segundo afirma Liliane Sousa e Silva (2007), o acesso à cultura, a capacidade de criá-la e de
perpetuá-la se transformou em uma forma de medir melhorias sociais e econômicas, uma vez
que, através da cultura se observa a expressão da cidadania, a participação popular no
processo de criação cultural e uma diversidade de fatores que contribui para a coesão social.
A cultura tornou-se, assim, um componente da qualidade de vida.
Para além do aumento da renda real e do crescimento econômico, a cultura pode ser
pensada enquanto impulsionadora do desenvolvimento a partir de outros determinantes como
o bem-estar, a participação dos indivíduos na sociedade, a autonomia dos indivíduos, a
integração entre os indivíduos, a coletivização dos meios de produção e das decisões.
Nesse sentido, a cultura tem penetrado a literatura que trata sobre desenvolvimento e
vice-versa, o encontro entre esses dois campos se fez presente tanto na literatura acadêmica
quanto nas políticas públicas, sejam no âmbito da UNESCO, do MinC do Brasil ou do
BNDES. A perspectiva que se busca empreender é de que políticas culturais podem viabilizar
o desenvolvimento, seja reforçando os aspectos humanos, como solidariedade e democracia,
seja promovendo desenvolvimento local, estimulando a participação da sociedade civil nos
processos de produção, criação e difusão de bens culturais. Assim, a formulação de políticas
públicas culturais tem uma importância fundamental na constituição de estratégias para o
desenvolvimento e na democratização de meios de produção.

986

V V
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988

V V
DESTOMBAMENTO, EXPLORANDO UMA POLÍTICA PÚBLICA
CONTROVERSA: O CASO DE SÃO JOÃO MARCOS
Mariana Freitas Priester1
Mariana Kimie da Silva Nito2

RESUMO: O Decreto-Lei n° 3.866/41 que estabelece a possibilidade de cancelamento do


tombamento foi instituído a partir da experiência do destombamento de São João Marcos -
RJ. Neste artigo exploraremos a história desta cidade, o cancelamento de seu tombamento e a
atuação do Estado na instituição deste Decreto-Lei, sua significação e consequências, bem
como as maneiras pela qual foi aplicado e poderia ser utilizado na atual conjuntura. Assim,
destacaremos a dualidade jurídica de tal política pública frente a valores distintos.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural, Cancelamento Tombamento, Preservação


Social, São João Marcos, IPHAN.

INTRODUÇÃO
Podem arrasar as casas, mudar o curso
das ruas; as pedras
mudam de lugar,
mas como destruir os vínculos com que
os homens se ligavam a elas? (...)
À resistência muda das coisas, à teimosia
das pedras une-se a rebeldia da memória
que as repõe em seu lugar antigo
(Ecléa Bosi)

Inicialmente, ressaltamos a dificuldade de se encontrar trabalhos sobre o assunto, que


acabam por deixar lacunas e questionamentos sobre o tema discutido. Por isso, nesse artigo
sobre o destombamento de bens culturais não pretendemos esgotar a discussão, que ainda
demanda pesquisas aprofundadas e bibliografia a respeito, mas contribuir com reflexões sobre
tal política pública.

1
Arquiteta e Urbanista graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Atualmente é bolsista do
Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural (PEP/MP) do IPHAN, lotada no Escritório
Técnico da Costa Verde em Paraty-RJ. É especialista em Master em Arquitetura (Área de conhecimento Projeto
de Arquitetura) pelo Instituto de Pós-Graduação – IPOG (2014). Tem experiência nas áreas de Projeto
Arquitetônico, Preservação e Patrimônio Cultural. E-mail: maripriester@gmail.com.
2
Arquiteta e Urbanista graduada pela Escola da Cidade- AEC-SP (2012). Atualmente é bolsista do Mestrado
Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural (PEP/MP) do IPHAN, lotada na Superintendência de São
Paulo. É especialista em Gestão de Restauro e Prática de Obras de Conservação e Restauro do Patrimônio
Cultural pelo Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada - CECI, da Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE (2014). Integra a Rede Paulista de Educação Patrimonial – REPEP, desde 2014, onde
desenvolve trabalho voluntário teórico e prático sobre a temática. Tem experiência na área de Planejamento
Urbano, Preservação, Patrimônio Cultural, Políticas Públicas Culturais e Educação. E-mail:
marykn@gmail.com; mariana.nito@iphan.gov.br.

989

V V
Antes de desencadear as discussões a cerca do destombamento, é necessário um rápido
entendimento do que vem a ser o tombamento. O tombamento - em conjunto com o registro -
é o principal instrumento que organiza e forma a base do sistema de proteção do patrimônio
cultural “sendo o embrião do conjunto normativo de proteção ao patrimônio cultural brasileiro
e, através dele, pode-se permear distintas facetas do patrimônio, mantendo-se um diálogo com
outros mecanismos de proteção” (TELLES, 2009, p.10). É também o instrumento mais
difundido, tanto popularmente quanto no Direito brasileiro, na preservação de bens materiais
(MARCHESAN apud TELLES, 2007). Assim, o tombamento é um ato administrativo por
meio do qual o Poder Público reconhece o valor cultural de bens móveis ou imóveis, a partir
da inscrição em Livros do Tombo, que faz com que estes bens respondam à sua função social
com base em limitações de propriedade com o propósito de preservá-los.
Atualmente, é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN3
responsável pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. A proteção e a organização
deste foi instituída pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que também cria a
figura jurídica do tombamento. Bens das mais diversas naturezas materiais4 podem ter valor
(es) atribuído(s) por meio do ato de tombar. Segundo o art. 17 deste Decreto-Lei, o interesse
público das coisas tombadas defende que “não poderão, em caso nenhum ser destruídas,
demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial [do IPHAN...]”.
Pois bem, e o que significa o destombamento? Destombar é cancelar o ato
administrativo de tombamento de um bem cultural.5 Ou seja, torna sem efeito as medidas
aplicadas na proteção legal do bem. Este é uma figura jurídica instituída pelo Decreto-Lei n°
3.866, de 29 nov. 1941, que a motivos de interesse público autoriza o Presidente da República
a promulgar a anulação dos tombamentos realizados pelo IPHAN6. No entanto, cancelar um
tombamento não retira o valor do bem, como veremos ao longo deste artigo, destombar pode
significar uma mudança drástica em relação à memória e a identidade da população. Trata-se,
portanto, de um ato que retira a declaração de valor cultural, conferida pelo Poder Público, e
altera o regime jurídico do bem. Assim, cancelar um tombamento se configura em uma
política pública controversa, pois ao mesmo tempo defende os interesses públicos e o bem
estar de parte da sociedade, e desfavorece determinadas camadas da população. Desta forma

3
O IPHAN é uma autarquia vinculada ao Ministério da Cultura
4
Móveis, sítio ou paisagens naturais ou realizadas pela ação humana, cidades, imóveis isolado e em conjuntos e
etc.
5
Na Lei é utilizado o termo “cancelamento” do tombamento que popularmente ficou conhecido como
destombamento ou ato de destombar.
6
A inscrição nos livros-tombo é averbada com termo de cancelamento.

990

V V
consideramos, mesmo em sua dual existência, o cancelamento de um tombamento, o
destombamento, uma política pública por buscar solucionar situações socialmente
problemáticas da qual o tombamento impediria sua resolução.
Este decreto-lei, sobre o destombamento, foi fruto do polêmico caso do cancelamento
do tombamento de São João Marcos – distrito da cidade de Rio Claro –, no Estado do Rio de
Janeiro, cujo tombamento de 1939 fora suspenso pelo Decreto-Lei n°2.269, de 3 jun. 1940. E
que também aprovou a desapropriação dos terrenos e edificações a serem inundadas na
construção do alteamento de uma barragem visando o aumento da geração de energia para
atender a cidade do Rio de Janeiro.
Atualmente, mesmo com a democratização e ampliação da participação social nas
políticas públicas em geral, veremos que o Estado ainda mantém o poder de lançar mão do
dispositivo do destombamento frente a interesses econômicos. Mas como se daria tal processo
de cancelamento na conjuntura política atual? Ficaria a preservação de bens culturais a mercê
da decisão, única e exclusiva do Presidente da República? Temos de fato, enquanto sociedade
civil a força necessária para ir contra interesses econômicos do Estado? Estas questões
surgem como um tema desafiador, a conciliação entre interesses públicos de ordens distintas,
a construção de uma barragem para o abastecimento de água da população e a preservação de
um bem cultural.

A CIDADE DE SÃO JOÃO MARCOS


A cidade de São João Marcos localizava-se no sul do Estado do Rio de Janeiro tendo
sido fundada em 1737. Surgiu devido ao caminho que ligava Minas Gerais ao porto da cidade
de Mangaratiba, posteriormente conhecido como ‘Estrada Imperial’, por onde escoou o ouro e
o café; na região existiram grandes fazendas de café tendo a cidade atingido seu auge neste
período econômico. Segundo o historiador Ney Carvalho:
São João Marcos surgiu com uma capela construída por um
fazendeiro em honra a São João Marcos em meados do século XVIII. A
partir daí ela cresceu em torno do mercado de café [...] (A História de São
João Marcos, 2011).

Atualmente, a cidade poderia ser comparada à Paraty, pela integridade do conjunto e


pela Igreja Matriz de grandes proporções, que em muito se assemelha a Igreja Nossa Senhora
dos Remédios, Matriz de Paraty - do séc. XVIII-XIX. Na reportagem publicada pela Folha de
S. Paulo, Elvira Brum, secretária de Turismo de Rio Claro relata que: “Se não tivesse sido

991

V V
destruída, São João Marcos poderia ter se transformado em uma nova Paraty” (MONKEN,
2005). O ex-morador George Costa descreve:
A cidade era tudo tipo colonial antigo, né, tinha Igreja que era muito
bonita. Tinha quatro palmeiras na frente e saia uma ladeira de pedras que
dava num beco que tinha um Cruzeiro. Tinha uma rua toda calçada de pedra
que subia, chamava Rua da Palha. E também tinha o prédio da prefeitura que
era interessante (A História de São João Marcos, 2011).

O Conjunto possuía raras construções em cantaria e um casario em estilo colonial


intacto, com exemplares únicos datados do século XVIII ao XIX: uma Igreja Matriz de
grande porte autêntica; uma capela que pertencia à Irmandade Nossa Senhora do Rosário; o
calçamento antigo em pedras, do tipo pé de moleque; ruínas da Casa do Fisco; um teatro-
cinema; duas praças − a Praça Feliciano Sodré, onde ficava o marco do tombamento e a Praça
Cinco de Julho, na qual havia uma estação meteorológica; a casa do Capitão Mor, que
posteriormente abrigou duas escolas e o clube da cidade; e demais exemplares que
requisitavam, e eram dignos, de estudos mais detalhados7.

Imagem 01 – Igreja Matriz de São João Imagem 02 – Igreja Matriz de Paraty – RJ e


Marcos – RJ e a praça no início século XX. Fonte: a praça no início do século XX. Fonte: Arquivo
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t= Escritório Técnico II Costa Verde - IPHAN/RJ.
612690

A partir do início do século XX, com o fim da economia cafeeira, o município entrou
em um processo de enfraquecimento político e econômico. Assim, seus 18.000 habitantes, no
auge de 1898, passaram a 7.400 em 1922, motivo pelo qual a cidade passou a ser incorporada
ao município de Rio Claro - RJ:
[...] o município de São João Marcos, devido à sua posição
geográfica, vem gradativamente diminuindo de rendas, o que lhe acarreta o
enfraquecimento de vitalidade, que ano a ano mais se acentua; [...]as obras
de vulto já projetadas e em vias de execução visando o aumento do potencial
hidráulico da bacia acumulada de Ribeirão das Lajes mais reduzirão as

7
Além disso, São João Marcos é a cidade onde nasceu Francisco Pereira Passos, prefeito da cidade do Rio de
Janeiro de 1902 a 1906, na qual realizou diversas transformações urbanísticas significativas nesta última cidade.

992

V V
possibilidades de vida no município, fadada a sua sede num natural
desaparecimento. (Decreto 635/38).

A partir deste decreto, a extinção do município por diversos motivos já era prevista e,
ainda, destaca a cidade como foco da represália do setor elétrico à promulgação do Código de
Águas de 1934. Os moradores já envolvidos com a comemoração do bicentenário de
fundação do município e na luta contra os rumores de alteamento da barragem pela LIGHT
fizeram um protesto contra este decreto. Os habitantes de São João Marcos eram liderados por
Luis Ascendino Dantas, funcionário público estadual já aposentado à época, que escreveu
artigos e livros sobre a importância histórica da cidade (PAULA, 1999). No memorial
dirigido ao presidente Getúlio Vargas, Dantas centrou o discurso para contra argumentar o
Decreto 635 por meio da exposição do valor cultural e economia superior a Rio Claro:
[...] Não se pode em sã consciência deixar que um município como
esse cheio de ricas tradições, e de superioridade agrícola, e que em 1939
próxima vae completar 200 anos de existência fecunda, sem ter tido nunca a
pretensão de reivindicar suas antigas freguesias, pelo respeito à vontade
daqueles povos, seja relegado a simples distrito de paz, quando agora mesmo
desenvolve a sua instrução, a sua lavoura e sua indústria, contribuindo assim,
ainda mais, para a cultura de seu povo e crescimento das rendas públicas
(DANTAS, 1938 apud PAULA, 1999, p.69-70).

Rodolfo Pimenta Velloso, engenheiro fiscal do Estado, respondeu aos apelos de


Dantas, em 1938 contestando todos os argumentos. Além de reafirmar e justificar as intenções
da LIGHT em altear a barragem, sugeriu ainda, a mudança da sede do município para outro
local. Em seu discurso incorporou argumentos técnicos para a extinção da cidade retratando
os ideais do Estado Novo: “Os interesses da pátria estão acima de quaisquer interesses
regionais, sendo plenamente justificável a destruição de uma pequena cidade com poucos
habitantes em prol de uma cidade maior e do próprio país” (PAULA, 1999, p.73).
O decreto que extinguia a cidade de São João Marcos, e a incorpora à Rio Claro, não
foi cancelado e outras tentativas para barrar a destruição e preservar a cidade foram feitas.
Em agosto de 1938, Dantas enviou uma petição ao IPHAN8 no qual solicitava o tombamento
do conjunto da cidade. Assim, como forma de proteção e reconhecimento de seu valor, logo
após completar 200 anos de sua fundação, em 19399 o Conjunto Urbanístico e Paisagístico da
Cidade de São João Marcos – RJ foi tombado e teve sua inscrição no Livro do Tombo

8
Para fins didáticos, manteremos ao longo do texto a sigla IPHAN, desconsiderando as sucessivas mudanças de
nomenclatura. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, criado pela Lei nº 378, de 13
de janeiro de 1937, tornou-se Diretoria em 1946 (DPHAN); em 1970, assume a denominação de Instituto
(IPHAN) e, em 1979, de Secretaria (novamente SPHAN). Em 1981, passa a Subsecretaria, mantendo a sigla
SPHAN. Finalmente, em 1994, readquire a designação de Instituto e recebe a nomenclatura de IPHAN.
9
O Conselho Consultivo do IPHAN aprovou o tombamento em 1938.

993

V V
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e no Livro do Tombo Histórico, pelo IPHAN. O
tombamento ocorre em um período em que as cidades mineiras eram inscritas no Livro de
Belas Artes ou Histórico; atualmente a primeira cidade reconhecida como tendo sido inscrita
no Livro Paisagístico é Paraty, em 1958.10
No entanto, o tombamento realizado para evitar a destruição, frente às ameaças por
seu declínio econômico, do raro exemplar de conjunto colonial que se constituía São João
Marcos não foi suficiente para garantir sua preservação.

O CANCELAMENTO DO TOMBAMENTO DE SÃO JOÃO MARCOS - RJ


Sustentando a ideologia do desenvolvimento do Estado Novo, o Presidente Getúlio
Vargas instituiu o Decreto-Lei n°2.269/140 que cancela o tombamento e desapropria a cidade
de São João Marcos em 03 de junho de 1940. A motivação foi a crise de fornecimento de
energia elétrica da cidade do Rio de Janeiro que seria resolvida na promoção do alteamento da
barragem do Ribeirão das Lajes11, visando o aumento da geração de energia e culminando no
alagamento parcial de São João Marcos. Tal procedimento era encarado pelos técnicos da
LIGHT, companhia elétrica que na época era estrangeira12, como “única solução para o
fornecimento de energia elétrica para a cidade do Rio de Janeiro, alegando ainda que São João
Marcos era insignificante e decadente, não justificando que entravasse o progresso nacional”
(MELLO, 1996, p. 40). Como visto a população não aceitou a destruição da cidade de
maneira passiva. Vejamos, primeiramente, que o pedido de tombamento partiu de um ex-
morador, o Sr. Dantas, em uma época em que o que determinava as ações de preservação era
a valorização de uma identidade cultural nacional determinada por um seleto grupo de
intelectuais e não pelo interesse popular. No processo de tombamento, a solicitação de
Dantas, já relata que:
Para aumentar o volume da água já acumulada, para produzir e
vender energia elétrica, no seu exclusivo interesse particular, desaparecendo
a velha e tradicional cidade (IPHAN/COPEDOC, 1938: processo de
tombamento 183-T, documento 3755 apud MELO, 2010, p.6).

10
As cidades de São João Marcos e Paraty guardam características distintas das cidades mineiras, apesar de
possuírem características coloniais. No entanto, as cidades mineiras, como Ouro Preto, têm escala monumental,
tanto em suas construções arquitetônicas quanto em seu traçado urbano que, justamente por este motivo,
consideravam-se dignas de apreciação como Belas Artes.
11
A represa do Ribeirão das Lajes foi construída em 1908 e é lago artificial mais antigo do Brasil.
12
A empresa The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Co. Ltd. era de origem canadense com capitais
ingleses e norte-americanos, começou a construção da Usina de Fontes a partir do represamento e mudança de
curso de vários rios e compra de grandes terrenos de agricultores, formando sua primeira represa, a Ribeirão
Lages, e primeira grande hidrelétrica, no município fluminense de Piraí.

994

V V
Portanto, neste caso, a atuação do IPHAN estava de fato atrelada aos valores culturais
reconhecidos pela população de São João Marcos havendo um consenso em relação à
preservação da cidade. Rodrigo Mello Franco Andrade chegou a enviar diversos ofícios aos
órgãos técnicos do Estado solicitando maneiras de evitar a destruição da cidade, embora o
Serviço de Águas e Esgotos do Distrito Federal e a Secretaria de Viação e Obras Públicas do
Estado do Rio de Janeiro seguissem afirmando não haver outra solução técnica a não ser
inundar a cidade. Apesar de todos os pareces negativos o Conselho Consultivo do IPHAN
decidiu tombar o conjunto arquitetônico de São João Marcos devido às circunstâncias
especiais de ameaça à cidade e ao seu valor cultural. O parecer de tombamento de Rodrigo M.
F. de Andrade ressalta a negligência dos órgãos públicos com relação à preservação do
patrimônio cultural que na época privilegiava claramente os interesses públicos de maior
importância; o abastecimento da capital da República; e o aumento do fornecimento de
energia elétrica pleiteado pelo Estado do Rio de Janeiro. Ainda, enfatiza que haveria recursos
que conciliassem tais interesses com os da conservação da cidade.
O pedido de tombamento e a mobilização do Conselho do Patrimônio causaram
repercussão na imprensa do Rio de Janeiro, deixando a cidade dividida entre os que apoiavam
a preservação e outros que se preocupavam com o boicote à LIGHT. Porém, o autoritarismo e
os interesses do Estado, representados pela figura de Vargas, falaram mais alto e foi
promulgado o Decreto-Lei, assim como a arquiteta Maria Cristina Fernandes de Mello
destacou:
São João Marcos [...] foi incansavelmente defendida por muitas
pessoas em épocas diferentes. Não foi suficiente tal ardor e competência
frente a um dos argumentos mais controvertidos hoje em dia – o progresso –
visto por um único ângulo, aquele dos tecnocratas. (1996, p. 38)

Com o ato de cancelamento do tombamento foram suspensas as medidas de


preservação e conservação realizadas pelo IPHAN, que entre outros efeitos jurídicos e
administrativos, impediam a mutilação e a destruição dos bens. E assim, foi possível a
desapropriação e destruição de terrenos, prédios e tudo o mais que viessem a ser inundados.
Segundo a historiadora Leda Agnes Simões de Melo:
[…] A Light ficaria obrigada a ressarcir a população e, além disso,
deveria reconstruir a Igreja Matriz da cidade, caso esta fosse ameaçada pela
inundação [...] Muitas pessoas foram desapropriadas e mandadas para outros
locais, com promessas de um futuro melhor. As indenizações e
reconstruções inscritas no Decreto-Lei de N°2.269/1940 [...] não foram

995

V V
cumpridas13, e a população ficou a mercê das cidades circunvizinhas e do
próprio Governo Federal (2010, p.07).

Além da desapropriação dos moradores, decidiu-se por demolir as casas e dinamitar a


igreja para evitar que os moradores retornassem a cidade, à época com cerca de 4.600
habitantes. Para completar o arruinamento, também foi desmatada uma área considerável da
Serra do Mar da Mata Atlântica, já tombada pelo Estado do Rio de Janeiro. Ademais, destaca-
se que a cidade destruída ficou alagada parcialmente por 10 anos. Atualmente, a região
constitui o Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos.
O destombamento de São João Marcos e sua posterior destruição causaram
irreparáveis danos sociais e ambientais. A cidade já valorada pelo próprio Estado como
relevante à história do país e a comunidade não teve lugar ao contexto autoritário e
progressista do Estado Novo. Ou seja, nem o caráter social, que diz respeito à vida e a
identidade de uma população, nem mesmo sua importância histórica e artística nacional foram
capaz de garantir a preservação da cidade, e assim, esta foi anulada – no tombamento e na
existência - em prol do desenvolvimento da capital federal a época.
Por fim, destaca-se a dualidade jurídica, no caso de São João Marcos, dividida pelo
interesse público que: tanto defendia o alteamento da barragem e o desaparecimento da
cidade, apoiado pelo governo federal e a Light; quanto a preservação e conservação desta,
sustentados pelo departamento cultural do Estado e pela população. Portanto, na decisão final,
houve uma sobreposição de interesses ao invés da abertura para um diálogo a fim de
compatibilizar a defesa de ambos os aspectos relevantes e dos interesses públicos da
sociedade. Ganhou o lado de maior poder - no caso o da empresa Light, que ameaçava o
boicote ao setor elétrico caso o aumento da barragem não fosse atendido (PAULA, 1996,
p.44).

OS DESTOMBAMENTOS REALIZADOS
No ano seguinte após o decreto de cancelamento do tombamento de São João Marcos,
o Decreto-Lei nº 3.666 foi instituído e amplamente utilizado por Vargas14. No intuito de
modernizar a cidade, e ligar os extremos do centro carioca, Vargas propôs abrir uma larga
avenida em linha reta para promover desfiles cívicos e facilitar a circulação dos carros na

13
O Decreto-Lei nº 5.739, de 1943, modificou o artigo que previa a reconstrução da Igreja por o pagamento de
uma indenização. Não foram encontrados comprovações de tal pagamento.
14
Durante o regime ditatorial, Estado-Novo (1937-1945).

996

V V
capital Federal15. A partir de tal empreendimento, foi cancelado o tombamento de três bens
culturais: o Campo de Santana que perdeu parte de seu jardim 16; e duas igrejas, que foram
totalmente destruídas, entre elas a de São Pedro dos Clérigos (1733), de grande relevância no
cenário barroco.17

Imagem 03 – Panorama antes da abertura da Avenida Imagem 04 – Panorama da construção da Avenida


Presidente Vargas. Linhas brancas delimitam os Presidente Vargas. Reparar ao fundo, canto esquerdo
quarteirões arrasados. Fonte: a permanência da Igreja Candelária. Fonte:
http://salacristinageo.blogspot.com.br/2014/09/aven http://salacristinageo.blogspot.com.br/2014/09/aven
ida-presidente-vargas-rj-completa.html ida-presidente-vargas-rj-completa.html

A história da cidade de São João Marcos e sua imediata repercussão na instituição do


Decreto-Lei n° 3.866 nos trás muitos questionamentos sobre o papel do Estado em relação à
preservação do patrimônio cultural e a cerca da relação entre as politicas públicas de
preservação frente ao poderio econômico. Como seriam avaliados, atualmente, os interesses
públicos de maior valor, conforme prevê a lei? Como medir as relações entre o interesse
cultural e o “progresso”?
Segundo reportagem publicada na Folha de São Paulo em 2005, em pesquisa realizada
no Arquivo Central do IPHAN por Thiago Guimarães, foram encontrados cerca de 15 bens
federais que tiveram o tombamento cancelado por meio deste Decreto-Lei. Estes comparados
ao total de bens tombados, até então, corresponderiam a 1,1%. E o artigo ainda destaca que
em 60% dos casos de destombamentos, logo após a suspensão da medida de proteção do bem,
antes acautelado pelo tombamento, prosseguiu-se a destruição e/ou mutilação destes.
Mesmo quantitativamente sendo poucos, há de se lembrar que interesses culturais e
sociais da sociedade, não foram respeitados e, possivelmente, foram tratados de maneira
ofensiva sem consulta popular. Ainda faltam estudos que verifiquem as consequências da
15
Na época a cidade do Rido de Janeiro.
16
Atualmente, mesmo com sua mutilação, o Campo de Santana foi tombado em 2012 pelo IPHAN.
17
Destaca-se que além do cancelamento dos tombamentos, na abertura da avenida transformou o tecido urbano,
ao longo de seu eixo casas, logradouros, e grandes edificações também foram demolidas. E nestas
transformações a Igreja da Candelária foi transformada em uma grande rotatória viária.

997

V V
aplicação do Decreto-Lei nº 3.866, e se estes eram mesmo necessários dentro da perspectiva
na defesa de motivação maior de interesses públicos, conforme determina a legislação. Ou se
foram aplicados apenas para atender uma problemática momentânea, como o caso de São
João Marcos.
No mesmo, há o relato do então diretor do IPHAN Cyro Lyra afirmando que “O
decreto 3.866 foi uma decisão casuística [de Vargas]". Ora sendo casuístico e oportunístico,
significa que sua reflexão está contra o direito da coletividade de usufruir uma memória.
Nota-se que mesmo tendo os destombamentos aplicados predominantemente nos regimes
ditatoriais e populistas, estes “[...] evocam dificuldades bem atuais na proteção do patrimônio,
como interesses econômicos, falta de recursos oficiais e erros de avaliação.” (GUIMARÃES,
2005).
O cancelamento de um tombamento pode ser um ato autoritário, não somente por seu
contexto histórico de sua criação e uso, mas também por se sobrepor a decisões sociais e
democráticas, como nos casos mencionados anteriormente. De fato, sabemos que o
tombamento, independente de sua valoração, não congela ou impede alterações no bem
acautelado nem em seu entorno, desde que estas transformações não interfiram na
autenticidade e integridade, visibilidade e ambiência destes. Porém, percebemos que a
perspectiva econômica muitas vezes se coloca sobre os interesses sociais, da memória cultural
de um povo, descartando proposições alternativas e negociações em prol da preservação de
bens culturais, como no caso de São João Marcos.
Ademais, não seria o destombamento um ato de desmoralização do corpo técnico
formado por pesquisadores e especialistas que representam uma coletividade e interesses
culturais? Caberia num processo de destombamento chamar a opinar profissionais
pesquisadores de universidades, outras instituições de pesquisa e ainda a sociedade civil?
A pesquisa realizada por Guimarães também revela que o último cancelamento de
tombamento foi realizado em 1989, o que claramente demonstra uma posição democrática e
social fruto da Constituição Federal de 1988. Segundo Menezes (2009), costuma-se
considerar que a grande novidade oferecida nos itens referentes à cultura na Carta Magna, em
seus artigos 215 e 216, é a inclusão dos bens de natureza imaterial, quando na verdade, o que
é radicalmente novo não é uma extensão do horizonte do patrimônio, mas um deslocamento
da matriz (p. 33, grifo nosso). O deslocamento de matriz supracitado representa a superação
do paradigma, no qual o Estado era o único que definia e valorava o que deveria ser
preservado, e repassava os entendimentos à população local em posição autoritária. A

998

V V
inclusão e participação das comunidades locais agora possuem respaldo constitucional para a
reivindicação de direitos e de uma atuação política compartilhada.
É importante notar que a autenticação da dimensão social da cultura, conferindo
direitos e reconhecendo identidades e memórias, encaminha as possibilidades de
desenvolvimento sustentável. É dizer, políticas culturais são políticas sociais que fomentam e
valorizam o patrimônio cultural como o eixo do desenvolvimento local. Assim, possivelmente
a luta pela defesa da cidade de São João Marcos levantaria muitos discussões e embates
políticos e jurídicos caso ocorresse atualmente.
Ademais, se consideramos que as cidades possuem uma dinâmica sociocultural e
ambiental que as mantém em constantes transformações, pois são fruto do trabalho humano.
Como afirma Santos: “[...] uma vez fundadas, as cidades vivem se refazendo, jamais estão
prontas. Talvez esse enfrentamento do espaço e do tempo através de ações sociais se pudesse
chamar com mais propriedade de história - de história urbana pelo menos [...]” (1986, p. 59).
Assim, a relação entre bens tombados individualmente e seu entorno e com os conjuntos e
sítios históricos, que após serem patrimonializados não significa que foram isoladas desta
dinamicidade da vida. Este problema conceitual esbarra nas transformações físicas materiais
sobre os bens culturais, como, por exemplo, as discussões sobre o tombamento de terreiros
que possuem uma mutabilidade espacial característica destes espaços sagrados. E, ainda, nesta
lógica sobre a dinâmica sociocultural e ambiental, não poderíamos pensar num processo de
revalidação dos bens culturais tombados, como ocorre com os bens imateriais que após o
registros são revalidados após 10 anos, ao invés de um destombamento?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos de casos, como o de São João Marcos e sobre em que medidas o
cancelamento de tombamentos foram utilizados podem nos abrir portas para discussões mais
aprofundadas sobre este instrumento e sua pertinência na conjuntura do direito sociocultural
brasileiro. E também, possibilita o entendimento sobre medidas nas quais o Estado se age em
relação às políticas culturais voltadas a preservação do patrimônio cultural. Além disto, ao
longo dos anos, as instituições de preservação vêm se esforçando para elaborar uma
preservação que de fato reflita a identidade e memória da diversidade cultural brasileira e
trabalhando na articulação interinstitucional demonstrando que a preservação igualmente diz
respeito a outras esferas governamentais configurando uma perspectiva de preservação
transdisciplinar.

999

V V
Da mesma forma, o reconhecimento do caráter social das políticas culturais faz com
que a participação e o envolvimento da população sejam elementos fundamentais na
instituição destas políticas públicas. Contudo, ainda estamos no início da discussão e a
realização de políticas públicas culturais que levem em conta a dinamicidade cultural e
incluam a participação popular em todas as etapas de implementação dos processos. Frente a
fatores econômicos e políticos, principalmente em situações-limites, a opinião popular é
envolta de determinada impotência e as relações entre vivência e espaço são tratadas como
banalidade. Assim, consideramos urgente o fortalecimento e a revisão das políticas públicas
culturais, como o Decreto-Lei sobre o cancelamento de tombamentos, para que se adequem as
transformações constantes das cidades e da vida.
É importante pensar o patrimônio não apenas em si, mas em sua dimensão social, não
apenas por sua beleza e história. Assim, preservar o patrimônio cultural: é ponderar sobre a
vida das pessoas que o atribuem valores e significados, é respeitar identidades criadas pela
sociedade, é refletir sobre a coletividade. Lembremos que, ainda é o Estado que manipula a
decisão final, a sua revelia, o que se deve tombar e destombar, registrar ou não. Não seria
legítima uma decisão e uma gestão que também incluísse a opinião efetiva da população?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Kaleh Ferreira. Rio de Janeiro: Instituto Light, 2011. Disponível em:
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Nacional do Patrimônio Cultural. Ouro Preto: IPHAN, 2009. Disponível em:
<http://www.IPHAN.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3306>. Acesso em: 5 mar. 2014.

1000

V V
MONKEN, Mario Hugo. Cidade apagada pela Light ressurge no RJ. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21
mar. 2005. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2103200509.htm>. Acesso
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PAULA, Dilma Andrade de. Na contra-mão da utopia: a memória da destruição de São João. Revista
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______. A história de uma morte anunciada. Tempos Históricos M. C. Rondon, v.01, n.01, p. 67-92,
mar. 1999.

SÃO João Marcos, Uma história conhecida por poucos. Direção de Thomas Marques e Thais Torres.
Rio de Janeiro: Publicidade e Propaganda do UBM, 2011. 8:46 min. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=UDovzU0F_0Q>. Acesso em: 05 nov 2014.

SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Preservar não é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo. Revista
Projeto. Nº1. 86, 1986. p. 59-63

TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio. Do conjunto ao sistema: Análise das normas de proteção ao
patrimônio cultural brasileiro sob a ótica dos direitos culturais, 2009. Monografia (Especialização em
Patrimônio). Programa de Especialização em Patrimônio - PEP, Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - IPHAN, Rio de Janeiro, 2009.

1001

V V
CIDADANIA E RECONHECIMENTO CULTURAL: PISTAS DE UMA
TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL NO MINC

Mariana Luscher Albinati1


Rodrigo Fagundes Bouillet2

RESUMO: Passados treze anos do início do governo petista, o conjunto das ações do
Ministério da Cultura (MinC) e sua própria reorganização institucional se apresentam como
um rico material para análise dos tensionamentos entre o referencial teórico e ideológico
inicial das políticas culturais e a sua criação efetiva na lida cotidiana tanto com a máquina
pública como com a sociedade civil. Como o governo vem preparando o Estado para lidar
com a reconfiguração do escopo da cidadania? O artigo apresenta a discussão teórica acerca
da reconfiguração da idéia de cidadania, trazendo o debate das teorias do reconhecimento, e
oferece um breve levantamento sobre a reestruturação do MinC, buscando entender como e se
esse movimento interno reflete a reconfiguração atual do conceito de cidadania cultural.

PALAVRAS-CHAVE: Cidadania cultural, reconhecimento, Ministério da Cultura

A centralidade assumida pela cultura no discurso e nas estratégias de organizações de


todos os tipos e esferas, fato que mobiliza no meio acadêmico um volume crescente de
pesquisadores, não deve ser vista sem ressalvas, como um dado positivo em si. Partir do
pressuposto de que a cultura é sempre uma “coisa boa” e de que a sua aproximação às demais
esferas da vida social acrescenta a estas, necessariamente, “coisas boas”, significa ignorar as
disputas e negociações que se estabelecem em torno da definição e dos usos da cultura.
Se por um lado as organizações transnacionais e governos locais afirmam a
diversidade cultural como valor humano e social, por outro, essa diversidade vem sendo
mobilizada como recurso em diferentes estratégias econômicas e políticas: do turismo étnico,
que recorre aos rituais de povos quilombolas situados em lugares remotos, até a revitalização
urbana, que se vale de equipamentos culturais espetaculares criados nos centros degradados
das grandes cidades. Em um cenário onde a cultura é pensada como recurso, conforme
YÚDICE (2006), a tarefa das políticas culturais voltadas para a diversidade corre o risco de
ficar restrita à acomodação dos diferentes nas regras hegemônicas do campo da cultura. A
afirmação da diferença, nesse sentido, não trata do empoderamento dos diferentes, mas de
auxiliá-los na oferta do seu recurso cultural, ou seja, na integração da sua produção simbólica

1
Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/ UFRJ - marianalbinati@yahoo.com.br
2
Bacharel em Comunicação Social pela UFF, diretor da Associação Cultural Tela Brasilis - bouillet@gmail.com

1002

V V
a interesses maiores (de mercado, de governabilidade, de pacificação, etc.). Mesmo nas lutas
por reconhecimento, que desde a década de 60 vem afirmando a importância das diferenças
culturais, a cultura pode ser entendida como recurso para a conquista de direitos.
Em 2002, o programa de cultura proposto pelo então candidato Lula à presidência,
intitulado A imaginação a serviço do Brasil, apresentou as políticas públicas de cultura como
espaço estratégico de ação para o Estado. Tal visão, destoante do cenário recente das políticas
culturais brasileiras3, mostrava-se, porém, consonante com a agenda internacional.
Organizações transnacionais como a Unesco apontavam então para a assunção da cultura
como elemento relevante nos projetos de desenvolvimento e, notadamente, a prevalência do
dado cultural na reconfiguração do escopo da cidadania. O programa da coligação liderada
pelo Partido dos Trabalhadores propunha então a incorporação da idéia de cidadania cultural,
que já vinha sendo trabalhada em algumas administrações municipais do partido, porém
considerando a necessidade de reconhecimento das diferenças:
Reconhecer esse espaço estratégico de ação do Estado é abrir o campo de
oportunidades das políticas culturais ao desafio da inversão das prioridades e
do enfrentamento à desigualdade social e à concentração de renda, partindo
de uma renovação do conceito clássico de cidadania, que opera pela lógica
do direito à igualdade, para assegurar a noção contemporânea do direito às
diferenças no plano político de ação do Estado (...). O que está em jogo aqui
– e a política cultural passa a ter papel central de denúncia e esclarecimento
– é que pensar em redistribuição ou em equidade de oportunidades de renda
significa, antes de tudo, reconhecer o outro como sujeito pleno, de direitos
iguais. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p.15).

Passados treze anos do início do governo petista, o conjunto das ações do Ministério
da Cultura (MinC) e sua própria reorganização institucional se apresentam como um rico
material para análise dos tensionamentos entre o referencial teórico e ideológico inicial das
políticas culturais e a sua criação efetiva na lida cotidiana tanto com a máquina pública como
com a sociedade civil. Como o governo vem preparando o Estado para lidar com a
reconfiguração do escopo da cidadania?
O presente artigo apresenta a discussão teórica acerca da reconfiguração da idéia de
cidadania, trazendo o debate das teorias do reconhecimento, e oferece um breve levantamento,
de caráter inicial e ainda pouco preciso, sobre a reestruturação do MinC a partir do início do
3
Enquanto nos períodos de ditadura o governo brasileiro tomou a cultura como elemento estratégico para a
consecução de seus projetos nacionais autoritários (ver BARBALHO, 1998), com os governos democráticos a
partir de 1985 “o Estado parecia persistir em sua ausência no campo cultural em tempos de democracia”
(RUBIM, 2007, p.25). Mesmo as questões da cultura tendo ganhado institucionalidade neste período com a
criação do Ministério e de diversos órgãos culturais, sua importância foi diminuindo com a ascensão do projeto
neoliberal de Estado mínimo. Assim, com baixo orçamento e relevância política da pasta e de seus órgãos
vinculados, as leis de incentivo se firmaram no período como sendo “a” política cultural brasileira.

1003

V V
governo petista, buscando entender como e se esse movimento interno reflete a
reconfiguração atual do conceito de cidadania cultural. Ainda que discursos, entrevistas,
textos dos diversos administradores públicos dos diversos níveis do Ministério, bem como as
publicações institucionais, configurem profícuo material de pesquisa para a matéria,
propomos, como estudo em caráter preliminar, o levantamento dos arranjos institucionais, a
partir do início do governo petista, que absorvem a idéia de cidadania cultural e que sinalizam
a compreensão de sua reconfiguração conceitual.

Cidadania e reconhecimento cultural


No Brasil, a noção de cidadania cultural vem sendo incorporada às políticas culturais –
na esfera prática e também na esfera crítica – a partir das décadas de 1980-90, quando os
direitos culturais ganharam inscrição na reforma da Constituição Federal. Uma série de
reflexões e debates tem tomado como referência a idéia de direitos culturais, sendo a
produção mais destacada a da filósofa brasileira Marilena Chauí, que ganhou ampla difusão
no país a partir da sua participação como Secretária de Cultura (1989 a 1992) em uma das
primeiras administrações do Partido dos Trabalhadores4 em uma grande cidade, quando da
eleição da prefeita Luiza Erundina em São Paulo. Nesta ocasião, a prefeitura implementou um
programa de cultura intitulado Cidadania Cultural, introduzindo como idéia-força a
participação social na política cultural. No livro que leva o mesmo nome do referido
programa, Chauí (2006) relata os esforços de sua gestão no sentido de afirmar a cultura como
“direito dos cidadãos, sem confundi-los com as figuras do consumidor e do contribuinte”
(p.69) e elenca os direitos que alicerçam esta concepção:
- o direito de produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais
existentes, seja pela invenção de novos significados culturais; - o direito de
participar das decisões quanto ao fazer cultural; - o direito de usufruir dos
bens da cultura, criando locais e condições e acesso aos bens culturais para a
população; - o direito de estar informado sobre os serviços culturais e sobre a
possibilidade de deles participar ou usufruir; - o direito à formação cultural e
artística pública e gratuita nas Escolas e Oficinas de Cultura do município; -
o direito à experimentação e à invenção do novo nas artes e nas
humanidades; - o direito a espaços para reflexão, debate e crítica; - o direito
à informação e à comunicação (CHAUÍ, 2006, p.70-71)

Em que pese o relato sobre algumas ações voltadas para grupos étnicos específicos
dentro da gestão que defendia a cidadania cultural (projeto “São Paulo dos 1000 Povos”,

4 A primeira eleição em que o PT conquistou a prefeitura de uma capital foi a de 1985, na cidade de Fortaleza.
Em 1988, junto com a prefeitura de São Paulo, o partido foi eleito também em Vitória e Porto Alegre.

1004

V V
“Centro de Documentação e Atividades Artístico-Culturais Afro-Brasileiras”, “Embaixada
dos Povos da Floresta”), a teorização de Chauí não incorporava então questões do debate que
agora vem sendo formulado a partir das teorias do reconhecimento, baseando-se
fundamentalmente na divisão de classes da sociedade e criticando práticas de subordinação
cultural estabelecidas pelas classes dominantes. Assim, nesta concepção, a cidadania cultural
pressupõe que
a cultura não se reduz a supérfluo, ao entretenimento, aos padrões do
mercado, à oficialidade doutrinária (que é ideologia), mas se realiza como
direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das
classes ou a luta de classes possa manifestar-se e ser trabalhada porque, no
exercício do direto à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos,
se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências,
recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural
(CHAUÍ, 2006, p.138).

A autora não menciona, assim como faz boa parte da literatura brasileira que incorpora
a idéia de cidadania cultural, as relações de dominação/subordinação que não se baseiam
necessariamente no fator econômico, mas sim, sobretudo, em aspectos culturais e na forma
como a cultura vem sendo apropriada contemporaneamente, como recurso tanto na economia
quanto nas lutas sociais.
George Yúdice (2006) defende que a transição do Estado do bem-estar social para o
Estado neoliberal, com a flexibilização do trabalho e a privatização da assistência social, é o
contexto de criação de uma nova dimensão dos direitos de cidadania: uma cidadania cultural,
fundada a partir da
confluência da legislação dos direitos civis, do aumento na imigração
(documentada e indocumentada), da permeabilidade da sociedade civil às
fundações e instituições do terceiro setor dedicadas aos serviços sociais, dos
meios eletrônicos e do mercado pós-massa (isto é, uma virada para a
comercialização de nicho) (YÚDICE, 2006, p.225).

A partir do advento do neoliberalismo e do início da chamada etapa flexível do


capitalismo, a cultura assumiu um papel central na vida social, constituindo uma espécie de
ethos cultural (Yúdice, 2006; Fraser, 2007) que determina a predominância dos aspectos
culturais sobre quaisquer outros na interpretação das necessidades na sociedade
contemporânea. Esse ethos cultural é a base da mudança das políticas de cidadania da
redistribuição para o reconhecimento, ou seja, o foco nos direitos iguais e na minoração dos
efeitos das lutas de classes muda para os direitos diferenciais (dos “outros” da sociedade, as
diversas minorias marginalizadas que a constituem) como solução para lutas identitárias.

1005

V V
Considerando a necessidade de reconhecimento, mas também a de distribuição
equitativa das benesses sociais, Nancy Fraser (2007) propõe um modelo integrador de
cidadania, que coloca a questão em termos de status social do reconhecimento: o modelo de
paridade participativa. Para Fraser, as injustiças sociais possuem duas dimensões, uma
econômica e outra cultural, ou, em outras palavras, uma dimensão de classe e outra de status,
que não devem ser reduzidas uma a outra. O modelo de reconhecimento por identidade é,
segundo a autora, profundamente problemático, pois
Ao impor a elaboração e a manifestação de uma identidade coletiva
autêntica, auto-afirmativa e autogerada, impõe-se uma pressão moral aos
membros individuais para se conformarem à cultura do grupo. O resultado é
geralmente a imposição de uma identidade de grupo única, drasticamente
simplificada, que nega a complexidade das vidas das pessoas, a
multiplicidade de suas identificações e o contra-golpe de suas várias
afiliações (FRASER, 2007, p.117)

A necessidade de estabelecer uma identidade grupal para ter reconhecidos seus


direitos, também pode mascarar as lutas internas aos grupos, favorecendo o uso de autoridade
no estabelecimento de suas representações. Por isso, o modelo proposto por Fraser se baseia
no reconhecimento não de uma identidade específica, mas do status dos membros do grupo
como “parceiros plenos na interação social”, buscando superar sua subordinação. Assim,
independente das identificações culturais dos sujeitos, para fins de justiça e do seu acesso a
uma distribuição equitativa, “somente aquelas reivindicações que promovem a paridade de
participação são moralmente justificadas” (FRASER, 2007, p.128).
José Rubio Carracedo (2000) também propõe um modelo integrador, denominado
cidadania complexa, com foco na relação entre pertencimento e participação. O autor
considera esses dois conceitos como complementares, “pero la pertenencia puede corto-
circuitar la participación quando no es reconocida o satisfecha de modo suficiente” (2000,
p.27). Desse modo se dá o desinteresse de participação na política estatal por aqueles
indivíduos e grupos que percebem que sua participação é realizada em condições de
inferioridade, devido ao insuficiente reconhecimento de seu grupo cultural de referência. A
luta desses agentes passa a priorizar então seu reconhecimento civil pleno e diferenciado, sem
o qual sua participação não será efetiva. Para que uma política de cidadania possa solucionar
as tensões entre pertencimento e participação, o modelo de cidadania complexa envolve três
exigências:
a) iguales derechos fundamentales para todos los ciudadanos (...); b)
derechos diferenciales de todos los grupos, mayoría e minorias, que
componem la estructura organizativa del Estado (...); y c) condiciones

1006

V V
mínimas de igualdad para la dialéctica o diálogo libre y abierto de los
grupos socioculturales (CARRACEDO, 2000, p.28)

A assunção deste modelo implica, portanto, a articulação de uma política universalista


de integração, de caráter distributivo e igualitário, uma política de reconhecimento baseada
em diferenças etnoculturais e uma política multicultural que inclua
“disposiciones transitorias de “discriminación inversa” (precisamente para
igualar las condiciones de partida), de currículos multiculturales, de
incentivación del intercambio etnocultural, etc., asi como la prevención
estricta de toda desviación homogeneizadora o assimilacionista em la cultura
hegemónica” (CARRACEDO, 2000, p.28)

As lutas por reconhecimento, como vimos, buscam a inserção de grupos


marginalizados no prestigioso campo da cultura, de onde se imagina poderão vislumbrar um
melhor atendimento às suas necessidades específicas e um melhor posicionamento no espaço
social mais amplo para resolução de suas necessidades básicas, que deveriam ser
contempladas por uma política distributiva universalista. Para além de sua função
dignificante, o discurso identitário a que o reconhecimento está atrelado é útil nos
enfrentamentos cotidianos dos grupos subordinados. No entanto, essa estratégia é
problemática na medida em que representa o risco de se transformar identidades em tábua de
salvação para as injustiças sociais e para tanto fazer delas coleções de traços essenciais,
oprimindo seus pretensos membros e restringindo sua liberdade de significação da vida, de
produção cultural em um sentido mais estrito ou mais amplo, de realizar intercâmbios
culturais, de ter um consumo não segmentado ao seu grupo identitário, etc.
Nesse sentido é que Fraser defende a prevalência da necessidade de uma participação
paritária sobre atendimentos diferenciais. Porém, é importante destacar que a simples
coparticipação de grupos diversos em um debate não implica em que todos sejam ouvidos e
tenham poder decisório. Carracedo lembra que a possibilidade de participação pode ser
frustrada pela falta de pertencimento, ou seja, pelo descrédito dos grupos marginalizados ao
perceberem na lida cotidiana com os grupos de maior poder as estruturas também subjetivas
que limitam a sua participação.

Sem dúvida, a participação direta, paritária, dos diversos grupos na esfera pública seria
a forma ideal de elaboração de políticas públicas, mas para que a paridade não seja apenas
formal seria necessária uma costura complexa entre políticas de redução da desigualdade e
distribuição igualitária, de participação política generalizada e paritária, além de políticas de

1007

V V
valorização das diferenças e dos diferentes, capazes de impedir que aspectos culturais que
fazem parte da desigualdade estrutural de sociedades como a brasileira, por exemplo, como o
não domínio da norma culta da língua, impeçam a participação efetiva de um expressivo
contingente populacional.
A reconfiguração da cidadania e, notadamente, sua colagem ao cultural, demanda das
políticas culturais um esforço de reformulação. Uma política de cidadania cultural consonante
com essas transformações precisa encarar os diferentes não apenas como tema de celebração.
É preciso dar condições para que participem da vida cultural em condições paritárias aos
demais agentes do campo da cultura, nas esferas do consumo, da produção e da concepção das
políticas.
No Brasil, o alinhamento da agenda pública com a agenda internacional, onde os
direitos vem se afirmando cada vez mais a partir do reconhecimento das diferenças culturais,
pode ser notado no percurso das políticas voltadas para os grupos culturalmente subordinados,
como as populações negra, indígena e LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, e transgêneros).
Os movimentos sociais têm colecionado importantes vitórias nos últimos anos,
fazendo com que o Estado assuma o compromisso de equiparar direitos, combater a violência
e a discriminação5 em relação aos grupos culturalmente subordinados. O esforço de
institucionalização materializa-se na recente constituição de órgãos executores e mediadores,
bem como suas políticas norteadoras, individualizados para a resolução das questões da
diversidade sexual e de gênero6, racial7 e étnica8.

5
A atual Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) é responsável pela articulação
interministerial e intersetorial das políticas de promoção e proteção aos Direitos Humanos no Brasil. Criada em
1977 dentro do Ministério da Justiça, recebeu status de ministério em 2003. O primeiro Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH) é de 1996.
6
Em 2009, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) criou a Coordenação de
Promoção dos Direitos de LGBT e divulgou o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNPCDH-LGBT). Em 2010, reestruturou o Conselho
Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (CNCD/LGBT), antigo Conselho Nacional de Combate à Discriminação, criado em 2001 no âmbito
do Ministério da Justiça. Em 2013, criou o Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à
Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais e o Comitê Nacional de Políticas Públicas
LGBT. No âmbito das Mulheres, em 2003 foi instituída a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da
Presidência da República (SPM/PR). Em 2008, aprovou-se o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(PNPM) e instituiu-se o Comitê de Articulação e Monitoramento. Em 2010, o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher (CNDM) foi reestruturado e passou a integrar a estrutura da SPM/PR, deixando o Ministério da Justiça,
onde havia sido criado em 1985.
7
Em 2003, criaram-se a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República
(SEPPIR/PR) – transformada em Ministério em 2008 – e o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(CNPIR). Em 2005, o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR) e em 2009 o seu Comitê
de Articulação e Monitoramento. Em 2009, a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR). Em
2010, o Estatuto da Igualdade Racial e o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR).
8
Em 2006, criou-se a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), do Ministério da Justiça, até a
aprovação do PL 3571/2008, que instituiu o Conselho Nacional de Política Indigenista. Em 2012, a Política

1008

V V
No âmbito das políticas culturais, o Ministério da Cultura, em sua reorganização
institucional ao longo das gestões petistas, vem sinalizando a incorporação do reconhecimento
das diferenças culturais ao entendimento do que deve ser uma política de cidadania cultural
pautada pela diversidade.

A institucionalização da diversidade e da cidadania no MinC


A Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC) do MinC, criada em
2012, resultou da fusão de missões de duas outras: a Secretaria de Cidadania Cultural (SCC),
de quem herdou o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania - Cultura Viva
(depois Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da Diversidade Cultural - Cultura
Viva) e a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID), de quem recebeu o legado
do Programa Identidade e Diversidade Cultural: Brasil Plural. Nesta fusão, a SCDC passou a
centralizar, no âmbito do MinC, as questões relativas à cidadania e à diversidade culturais,
por isso enfocaremos aqui a reconstrução da trajetória dentro da máquina pública que
pavimentou a sua criação.
Até a posse do governo do PT, era o decreto nº 3.049, de 06/05/19999, que estabelecia
a estrutura organizacional do MinC, dividindo-o em quatro secretarias finalísticas (Livro e
Leitura; Patrimônio, Museus e Artes Plásticas; Música e Artes Cênicas; Audiovisual) que, em
suas competências, não continham de forma explícita os vocábulos cidadania ou diversidade.
Os primeiros decretos do novo governo sobre a estrutura organizacional do Ministério
(nº 4.805, de 12/08/200310, e nº 4.889, de 20/11/200311) introduzem um novo ideário através
da adoção de “secretarias-conceito”: Secretaria de Formulação e Avaliação de Políticas
Culturais; Secretaria de Desenvolvimento de Programas e Projetos Culturais; Secretaria de
Apoio à Preservação da Identidade Cultural; Secretaria de Articulação Institucional e de
Difusão Cultural; sendo a única exceção a Secretaria para o Desenvolvimento das Artes
Audiovisuais, no lugar da Secretaria do Audiovisual.
Na Secretaria de Desenvolvimento de Programas e Projetos Culturais foi criado o
programa Arte, Educação e Cidadania: Cultura Viva, em geral nomeado apenas como

Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). Carece ainda a existência de um
Sistema Nacional de Política Indigenista bem como a aprovação do Projeto de Lei nº 2057/91, conhecido como
“Novo Estatuto dos Povos Indígenas”.
9
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3049.htm
10
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4805.htm
11
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4889.htm

1009

V V
Programa Cultura Viva, sendo por isso de interesse acompanhar as sucessivas alterações de
suas competências. Segundo o decreto de 2003, a esta instância competia:
I - elaborar, executar e avaliar programas e projetos estratégicos necessários
à efetiva implementação da política cultural;
II - formular e implementar os instrumentos necessários para a execução dos
programas e projetos aprovados, estabelecendo modelo de gestão, de
financiamento e de acompanhamento da referida execução, em articulação
com a Diretoria de Gestão Estratégica;
III - gerar informações que possibilitem subsidiar o monitoramento e
acompanhamento dos programas e projetos culturais; e
IV - realizar estudos e pesquisas aplicadas à elaboração, execução e
avaliação de programas e projetos culturais (BRASIL, 2003).

Já à Secretaria de Apoio à Preservação da Identidade Cultural, primeiro lócus das


questões da diversidade cultural, competia:
I - acompanhar, em conjunto com a Secretaria de Articulação Institucional e
de Difusão Cultural, a implementação dos Fóruns de Política Cultural,
responsáveis pela articulação entre o Ministério e a comunidade cultural;
II - subsidiar a Secretaria de Formulação e Avaliação de Políticas Culturais
no processo de formulação das políticas públicas da área cultural,
relacionadas com a promoção, a diversidade cultural, o intercâmbio cultural
e a proteção dos direitos autorais, nos níveis nacional e internacional; e
III - apoiar e incentivar as atividades de suporte à diversidade cultural e
promoção da cidadania, a cargo do Ministério (BRASIL, 2003 – grifo
nosso).

O Decreto nº 5.036, de 07/04/200412 renomeou todas as secretarias e redistribuiu suas


competências, além de criar mais uma secretaria. A Secretaria de Desenvolvimento de
Programas e Projetos Culturais, transformada em Secretaria de Programas e Projetos Culturais
(SPPC), perdeu seu inciso II original, ao que nos parece, incorporado à recente Secretaria de
Fomento e Incentivo à Cultura. Por outro lado, ganhou um novo escopo de atuação ao
reconfigurar o primeiro item de sua competência: de “I - elaborar, executar e avaliar
programas e projetos estratégicos necessários à efetiva implementação da política cultural”
(BRASIL, 2003 – grifo nosso) passa a “I - elaborar, executar e avaliar programas e projetos
estratégicos necessários à efetiva renovação da política cultural” (BRASIL, 2004 – grifo
nosso).
A Secretaria de Apoio à Preservação da Identidade Cultural, de forma mais condizente
aos novos tempos bem como aos novos termos, passa a ser Secretaria da Identidade e da
Diversidade Cultural (SID) e conquista papel protagonista e indutor ao deixar para trás a idéia
de “III - apoiar e incentivar as atividades de suporte à diversidade cultural e promoção da

12
Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5036.htm

1010

V V
cidadania” (BRASIL, 2003 – grifo nosso) e, neste novo momento, adotar a missão de “I -
promover e apoiar as atividades de incentivo à diversidade e ao intercâmbio cultural como
meios de promoção da cidadania” (BRASIL, 2004 – grifo nosso).
Para a SPPC, tais aprimoramentos estão à propósito do Programa Cultura Viva13 e da
consequente publicação do primeiro edital de Pontos de Cultura14. Para a SID, as alterações
são decorrentes da criação do Programa Identidade e Diversidade Cultural: Brasil Plural15,
que a partir de 2005 lançou editais para Culturas Populares (mestres, grupos formais e
informais) e LGBT (paradas gays), o Programa de Fomento e Valorização das Expressões
Culturais e de Identidade dos Povos Indígenas, entre outras ações.
Para fins da implementação dessas ações, a SID e a SPPC ganham também funções
administrativas, como a de seleção e supervisão de projetos, conforme o Decreto nº 5.711, de
24/02/200616.
Já em 2009, com o Decreto nº 6.835, de 30/04/200917, a SPPC passa a ter o nome de
Secretaria de Cidadania Cultural, incorporando, além de maiores responsabilidades
administrativas, novos cargos como a Diretoria de Acesso à Cultura, a Coordenação-Geral de
Fomento à Identidade e Diversidade Étnica e a Coordenação-Geral de Promoção da
Diversidade, Difusão e Intercâmbio Cultural.
O Decreto nº 7.743, de 31/05/201218, trata da fusão da SCC com a SID para a criação
da SCDC. Em seu Relatório de Gestão do Exercício de 201319 a nova Secretaria informa que
até 2010 a SID fora responsável pelo Programa Identidade e Diversidade Cultural: Brasil
Plural, transferido a partir de 2011, na nova gestão do MinC, para a SCC. A antiga SID, já
esvaziada de suas competências, deu lugar à Secretaria de Economia Criativa ao assumir o
Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura (PRODEC), instituído pelo MinC em

13
Portaria nº 156 GM/MinC, de 06/07/2004:
http://semanaculturaviva.cultura.gov.br/linhadotempo/pdf/legislacao/PRT0156_GM_06JUL2004.pdf
14
Edital n° 01 GM/MinC, de 16/07/2004:
http://semanaculturaviva.cultura.gov.br/linhadotempo/pdf/editais/EDITAL001_GM_16JUL2004.pdf
15
Primeiro programa para a Diversidade Cultural do Brasil, o Brasil Plural tem por objetivo garantir que os
grupos e redes de produtores culturais responsáveis pelas manifestações características da diversidade cultural do
país tenham acesso aos mecanismos de apoio, promoção e intercâmbio cultural, considerando características
identitárias tais como gênero, orientação sexual, grupos etários, étnicos e da cultura popular. Ou seja, traz para o
âmbito do MinC artistas, grupos e comunidades populares; povos e comunidades tradicionais: indígenas,
ciganos, pescadores artesanais, quilombolas, povos de terreiros; imigrantes; trabalhadores rurais; grupos etários:
crianças, jovens e idosos; movimentos sociais: LGBT, pessoas com deficiência física, luta antimanicomial; assim
como lida com áreas transversais ao segmento cultural: cultura e saúde, cultura e trabalho, cultura e meio
ambiente, dentre outros.
16
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5711.htm
17
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6835.htm
18
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7743.htm
19
https://contas.tcu.gov.br/econtrole/ObterDocumentoSisdoc?codArqCatalogado=5980883&seAbrirDocNoBrowser=1

1011

V V
2006, e “embrião do que agora é o objetivo relacionado à economia criativa brasileira”
(BRASIL, 2012). De forma complementar, o Relatório de Gestão do Exercício de 2011 da
SCC20 afirma que o fato de ter absorvido o Programa Brasil Plural teve como pressupostos
1) Sinergia e otimização dos recursos para consecução dos programas
Cultura Viva e Brasil Plural, ambos vinculados à agenda prioritária de
Governo; 2) Efetividade das iniciativas para os diversos segmentos
com a diminuição das sobreposições e a integração da formulação,
implantação acompanhamento e avaliação; 3) Integração de
conhecimentos e experiências, favorecendo a implementação das
políticas, com melhor aproveitamento dos recursos técnicos e
financeiros; 4) Clareza dos conceitos e das ações implementadas
favorecendo a comunicação, a participação, o controle social e a
articulação com as redes sociais; e, 5) Maior racionalização de fluxos
operacionais com estabelecimento de padrões de seleção, análise e
avaliação das iniciativas em consonância com a legislação e os órgãos
de controle, de forma a qualificar a gestão e a execução dos programas
(BRASIL, 2011).

A nova secretaria implica na alteração do Programa Nacional de Cultura, Educação e


Cidadania - Cultura Viva para Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da
Diversidade Cultural - Cultura Viva, absorvendo o legado do Programa Identidade e
Diversidade Cultural: Brasil Plural. A herança do Brasil Plural para o Cultura Viva pode ser
percebida nos novos objetivos incorporados ao programa, como o de “reconhecer e proteger a
diversidade das expressões culturais, a convivência e o diálogo entre diferentes, o intercâmbio
cultural nacional e internacional, o respeito aos direitos individuais e coletivos”. Além destes,
são acrescentados objetivos relacionados ao exercício da cidadania cultural, tanto no sentido
da participação política, como o estímulo à “participação e o protagonismo social na
elaboração e na gestão compartilhada e participativa das políticas públicas da cultura”, como
no sentido da garantia de direitos, com o objetivo de “ampliar o acesso da população
brasileira às condições de exercício dos direitos culturais” (BRASIL, 2013).
A “sinergia” que fez com que fossem unificados os dois Programas, Cultura Viva e
Brasil Plural, principais ações das antigas Secretarias da Identidade e Diversidade Cultural e
da Cidadania Cultural, sinaliza, a nosso ver, o entendimento da necessidade de incorporação
do reconhecimento das diferenças culturais – e não apenas das desigualdades regionais,
econômica, entre outras – como critério para a definição do apoio do Estado às iniciativas
culturais da sociedade civil.

20
http://www.cultura.gov.br/documents/10883/1209060/Relatorio+de+Gestao_2011_SCC.pdf/4ea494ab-2f38-
4674-b9bc-ffe3c5688ee9

1012

V V
A primeira edição do Programa determinava assim a sua destinação: “à populações de
baixa renda; estudantes da rede básica de ensino; comunidades indígenas, rurais e
quilombolas; agentes culturais, artistas, professores e militantes que desenvolvem ações no
combate à exclusão social e cultural” (BRASIL, 2004). Na nova resolução, o Cultura Viva
“tem como beneficiária universal a população do Brasil” priorizando trabalhar tanto com
“povos, grupos, comunidades e populações: I - em situação de vulnerabilidade social e com
restrito acesso aos meios de produção, registro, fruição e difusão cultural; II - ameaçados pela
desvalorização de sua identidade cultural; ou III - que requeiram maior reconhecimento de
seus direitos humanos, sociais e culturais” (BRASIL, 2013) quanto com um rol de 16 povos,
grupos, comunidades e populações descritos no documento, tais como povos indígenas,
pessoas com deficiência, população sem teto e pessoas em situação de sofrimento psíquico.
Ainda que de forma breve, recobrar a trajetória de reorganização institucional para
rastrear as questões relativas à cidadania e à diversidade culturais no âmbito do MinC,
possibilita-nos vislumbrar a construção de uma narrativa. Para além do mero encadeamento
de fatos (as sucessivas alterações aos textos), essa trajetória apresenta uma narrativa criada no
jogo de forças e interesses que desencadeou, em cada período, as alterações aos textos. O que
nos faz acreditar nesta pista são as sucessivas alterações de ordem política aos textos, com a
paulatina incorporação do reconhecimento das diferenças culturais, sua valorização,
promoção e incentivo. A confirmação desta hipótese, no entanto, demanda estudos mais
aprofundados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL, Decreto nº 4.889, de 20/11/2003. Dá nova redação aos Anexos I e II do Decreto no 4.805, de
12 de agosto de 2003. Disponível em:
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BRASIL, Decreto nº 5.036, de 07/04/2004. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo


dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas do Ministério da Cultura, e dá outras
providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
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<http://www.cultura.gov.br/documents/10883/1209060/Relatorio+de+Gestao_2011_SCC.pdf/4ea494a
b-2f38-4674-b9bc-ffe3c5688ee9>.

BRASIL. Ministério da Cultura. Relatório de Gestão do Exercício de 2012 da Secretaria de Identidade


e Diversidade Cultural. Brasília, DF: SID, 2012. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:N2LCbaMdmNsJ:https://contas.tcu.gov.br/e
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D1+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>.

BRASIL. Ministério da Cultura. Portaria nº 118 GM/MinC, de 30/12/2013. Disponível em:


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RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In:
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YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.

1014

V V
UMA “NAÇÃO ENCICLOPÉDICA” – ENSAIO SOBRE A HISTÓRIA DO
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO ATRAVÉS DO PROJETO CULTURAL DA
ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA
Mariana Rodrigues Tavares1

RESUMO: Este trabalho se destina a apresentar e analisar o projeto cultural de publicação da


Enciclopédia Brasileira do Instituto Nacional do Livro (1937-1990). Para isto, a narrativa
destacará as principais disputas em torno da escolha dos diretores e chefes de seção, tal como,
a ocorrida com o poeta Mário de Andrade. Além disso, esta análise contemplará também os
nomes dos principais ministros que acompanharam o Ministério da Educação e Cultura ao
longo dos anos 1930 e 1970, salientando seus nomes, partidos e ações. Em linhas gerais, o
que esta comunicação almeja é discutir as políticas públicas de edição em voga nos anos
1930-70, destacando a principal delas que foi a Enciclopédia Brasileira do Instituto Nacional
do Livro e suas aspirações modernistas e nacionalistas.

PALAVRAS-CHAVE: Instituto Nacional do Livro; políticas culturais de edição;


Enciclopédia Brasileira; disputas intelectuais.

O Brasil sofreu, em seu patrimônio espiritual, uma grande e profunda perda:


a morte de Mário de Andrade. (...) Sua vida foi dedicada ao estudo, à
meditação e à pesquisa. (Jornal do Brasil, 27 de fevereiro de 1945).

Foi dessa maneira que o Jornal do Brasil retratou a morte do “ilustríssimo” poeta e
modernista Mário de Andrade. Uma das maiores expressões da literatura brasileira, Mário foi
atuante, não só, no movimento modernista brasileiro como também em instituições públicas
federais de incentivo à cultura. Nas palavras de Antonio Candido, importante crítico literário
brasileiro, “para encontrarmos na literatura brasileira um morto da importância de ário de
Andrade, é preciso remontar o ano de 1908, morte de achado de Assis.” O leitor deve-se
perguntar por que razão tratar da importância da morte de Mário de Andrade logo no início
dessa narrativa? A resposta será dada nas próximas linhas, mas já é possível adiantar que
Mário foi peça fundamental para compreender a ação do primeiro conjunto dos funcionários
que atuaram no Ministério da Educação e Saúde2 e foram responsáveis pelo funcionamento

1
Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-graduação da UFF. Bolsista de mestrado CNPq com o
projeto Editar a Nação e escrever sua História: Livros, projetos editoriais e disputas letradas no Instituto
Nacional do Livro, 1937-1991 sob a orientação da professora doutora Giselle Martins Venancio. Email para
contato: historia.mari@gmail.com.
2
Sobre a denominação dos Ministérios, há de se ter atenção. Até o ano de 1953 o Ministério da Educação esteve
atrelado ao Ministério da Saúde, chamando-se, portanto, Ministério da Educação e Saúde. A partir desse ano de
1953, o Ministério da Saúde adquiriu autonomia e surgiu o Ministério da Educação e Cultura com a sigla MEC.

1015

V V
dos órgãos de fomento à cultura. Dentre estes, o Instituto Nacional do Livro, objeto de nosso
maior interesse. De maneira mais concreta, o propósito deste pequeno ensaio é tratar dos
diferentes momentos políticos ao longo dos anos de 1946-1964 no Ministério da Educação e
Saúde que depois se transformou no Ministério da Educação e Cultura, observando-os através
de uma pequena lente que adotará a história de um projeto de edição nacional, a Enciclopédia
Brasileira do Instituto Nacional do Livro como o fio condutor.

O “paulista” da Enciclopédia carioca – Mário de Andrade na consultoria técnica


do Instituto Nacional do Livro

Melhor é o fim das coisas do que o princípio delas (Eclesiastes, 7).

Já afirmavam as Sagradas Escrituras que o fim das coisas é sempre melhor que o
início delas. O ano de 1945 trouxe um pouco do significado dessas palavras. Essa data
marcou o fim de muitas coisas: da vida de Mário de Andrade, da ditadura Varguista, da
Segunda Grande Guerra e da proposta modernista da Enciclopédia Brasileira do Instituto
Nacional do Livro. Muitas foram as novidades desse ano, mas para compreender o sentido de
cada uma delas precisamos retomar as propostas de 1937 no cerne do debate de construção da
nacionalidade brasileira.

O intelectual Rodrigo Melo Franco de Andrade afirmava, em 1937, que era uma
veleidade absurda discutir sobre o que nos é próprio e o que é artificial em nós. A verdade é
que não somos ainda. Enquanto ele e o grupo de intelectuais modernistas mineiros discutiam
a definição de patrimônio para o recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Sphan), coube ao ministro Gustavo Capanema e os intelectuais ao seu redor atribuir
sentido também aos monumentos de papel, os livros. Nesse momento, cultura e nação
unificavam-se, constituindo a definição do que era ser um legítimo brasileiro. Sob essa ótica,
Melo Franco tinha razão ao afirmar que “não éramos ainda” e o que viríamos a ser estava em
curso. Nesse sentido, no Brasil, inaugurava-se um período de ação de criação e preservação
do patrimônio histórico, artístico e letrado fundado sobre sua identificação direta com o
Estado. Aos intelectuais de Capanema coube a incumbência de monumentalizar a nossa
história e eleger seus cânones. Ao Estado, a função de fundar instituições culturais dedicadas
as mais diversas áreas. Nesse sentido, em dezembro de 1937 foi criado o Instituto Nacional do

Para maiores informações ver: http://portal.mec.gov.br/?option=com_content&view=article&id=2&Itemid=171.


Acesso em 14/01/2015.

1016

V V
Livro com alguns objetivos3 e dois propósitos norteadores: Organizar e publicar a
Enciclopédia Brasileira e o Dicionario da Lingua Nacional, revelando-lhes as sucessivas
edições e editar toda sorte de obras raras ou preciosas, que sejam de grande interesse para a
cultura nacional. Tarefa complicada a do Instituto, uma vez que, esses foram os planos do
antigo Instituto Cairú criado um ano antes, em 1936, e que mais tarde originou o Instituto do
Livro. Mário de Andrade4 foi escolhido para ser o primeiro consultor técnico dessa
incumbência, a pedido de Gustavo Capanema. Após certa relutância, como pode ser vista na
carta abaixo, Mário aceitou o convite.

Rio de Janeiro, 2 de março de 1939

Meu caro Mário de Andrade,

Acuso o recebimento de sua carta, em que você diz das razões que o
impedem de aceitar o lugar de diretor da Enciclopédia Brasileira. Acho que
suas razões não procedem. Falo não apenas como ministro, mas
camaradamente. Dir-lhe-ei meus motivos de viva-voz.

Será que você não quer saber da coisa federal? Porque sei que de
mim você não foge, ao contrário, muitas provas de simpatia e estima você
tem me dado.

Entre estas quero incluir aqui a feitura deste magnífico trabalho


sobre a decoração de uma das paredes do edifício do Ministério. Estou
plenamente satisfeito com o resultado a que você chegou.

Conversaremos depois sobre o mais. Aqui quero só deixar a


expressão da minha cordial amizade.

Capanema5.

Apesar da resistência em assumir o posto, Mário acabou aceitando6, como adiantamos.


Afinal o caráter da Enciclopédia deveria ser nacional, não importando se fosse culta tal qual o

3
Para maiores detalhes ver o decreto-lei de criação do Instituto Nacional do Livro: Decreto-lei nº 93 de 21 de
Dezembro de 1937.
4
Além das questões que envolveram a situação política de Mário de Andrade
5
BOMENY, Helena. Um poeta na política – Mário de Andrade, paixão e compromisso. Org. da Coleção:
Eduardo Jardim., 1.ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p.169.
6
A chegada de Mário de Andrade a cidade do Rio de Janeiro não pode ser compreendida sem se considerar a sua
complicada situação à frente do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Com Getúlio Vargas na
presidência da República a partir do golpe que instaurou o Estado Novo a partir de 1937, novas nomeações
aconteceram e retiraram da Prefeitura de São Paulo, Fábio Prado, grande incentivador do Departamento e dos
projetos de Mário. Diante dessa nova situação, o poeta paulista recorreu a sua rede de amizades que incluíam
desde o Ministro Gustavo Capanema até os intelectuais como Rodrigo Melo Franco para conseguirem-lhe um
emprego. Com isso, Mário transferiu-se para a cidade do Rio de Janeiro onde atuou como consultor técnico do
projeto da Enciclopédia Brasileira do Instituto Nacional do Livro até o ano de 1942 quando conseguiu retornar
para o Departamento em São Paulo. Nas cartas trocadas com o Ministro Gustavo Capanema podemos perceber,
além de uma relação de amizade que conferiu a Mário um horizonte de possibilidades no serviço público,
disputas com outros intelectuais envolvendo seu posto na consultoria do INL. Para maiores detalhes ver:

1017

V V
seu “modelo”, a enciclopédia italiana7, ou mesmo popular. A Enciclopédia Brasileira tinha de
ser nacionalista, não apenas pelo que de Brasil contiver nas suas páginas, mas ainda pelo
serviço de cultura geral que tem de prestar à gente brasileira em sua tão variada
generalidade.8 O Brasil precisava desenvolver sua arte, sua música, suas letras; era mais do
que necessário ter uma ação sobre os jovens e as mulheres que assegurasse os valores da
nação que se construía. Mário, Capanema e Drummond sabiam perfeitamente disso, mas a
tarefa não era fácil e as relações mais complicadas ainda. Desde 1934, momento em que
assumiu a direção do Ministério da Educação, Capanema estreitava as relações com Mário de
Andrade ao convidá-lo a elaborar um projeto de lei de proteção às artes no Brasil e no ano
seguinte o cargo de diretor do Departamento de Teatros no Ministério da Educação. No
entanto, Mário recusou o convite alegando a preferência pelo Instituto Nacional do Livro e,
consequentemente, pela Enciclopédia Brasileira. Contudo em 1939 a situação mudou
bruscamente. Mário recusou o posto à frente da Enciclopédia por divergências quanto ao
projeto e a execução do mesmo. As cartas endereçadas ao “velho” amigo Capanema revelam
a delicada situação de Mário no Instituto,

Estive refletindo bastante estes dias e percebi definitivamente que


não poderia aceitar o cargo de dirigir a Enciclopédia, no Instituto do Livro.
As razões que tenho para isso são as mesmas que já lhe dei e a que você
respondeu. Não pude verbalmente insistir nelas porque tenho uma espécie de
defeito de alma que me põe sempre demasiadamente subalterno diante das
pessoas altamente colocadas. Por mais amizade que lhe tenha e liberdade
que tome consigo, sempre é certo que diante de você não esqueço nunca o
ministro, que me assusta, me diminui e me subalterniza. Isto, aliás, me deixa
danado de raiva e esta é a razão por que fujo sempre das altas
personalidades. Por carta e de longe, posso me explicar com menos
propensão ao consentimento.9

Ao que parecem, muito além dos “sentimentos”, as razões reais que o levaram a pedir
a demissão do posto de coordenador da Enciclopédia estavam fundamentadas em
divergências quanto à própria concepção do projeto e objetivo constante do poeta de retornar

BOMENY, Helena. Um poeta na política – Mário de Andrade, paixão e compromisso. Org. da Coleção:
Eduardo Jardim., 1.ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.
7
Um dos modelos que influenciaram a Enciclopédia Brasileira do Instituto Nacional do Livro foi o da
Enciclopédia Italiana. Para maiores detalhes ver: ANDRADE, Mário de. A Enciclopédia Brasileira. Edição
crítica e estudo de Flávia Camargo Toni, Edusp, 1993.
8
ANDRADE, 1993:18.
9
Carta de Mário de Andrade a Capanema, 23 de fevereiro de 1938. GC. Apud. SCHWARTZMAN, Simon. A
ação cultural. In: Tempos de Capanema. Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny, Vanda Maria
Ribeiro Costa. São Paulo: Paz e Terra: Fundação Getúlio Vargas, 2000, p.100.

1018

V V
para a cidade de São Paulo e, conseguintemente, para o Departamento de Cultura. Ao fim da
mesma correspondência, Mário afirma a Capanema,

Tudo isso está perfeitamente certo, mas nos separa uma distância
irredutível de pontos de vista. As suas razões são razões de ministro, as
minhas são razões de homem. Você decide com o áspero olho público, mas
eu resolvo com o mais manso olhar de minha humanidade.10

Desde então as relações de Andrade com o Instituto iriam, paulatinamente, se tornar


insustentáveis. Ainda em 1939 e até o fim de sua vida permaneceu precariamente atuando no
INL, tendo problemas inclusive com o recebimento financeiro do que produziu. Esperava por
outra nomeação que nunca aconteceu11. Desse período em diante, Mário levou a coordenação
da Enciclopédia até 194212, retornando para São Paulo a partir dessa data. Em 1945 veio a
falecer. Depois de Andrade, o projeto da Enciclopédia “adormeceu” para o Instituto Nacional
do Livro. Somente um pouco mais tarde, nos anos 1950, a Enciclopédia Brasileira renasceu
junto com outros projetos de publicação de enciclopédias. Mas antes precisamos remontar ao
ano de 1945, a saída de Vargas, Capanema e a abertura liberal democrática que se
experimentou a partir desses anos e foi vivenciada até 1964.

Uma Enciclopédia órfã? – A saída de Capanema do Ministério da Educação e


Saúde

o momento propício e indicado para convocarmos a nação a fim de


pronunciar-se e escolher os seus dirigentes (Getúlio Vargas, discurso de 02
de março de 1945)

No início de 1945, a ditadura de Getúlio Vargas entrou em sua fase final como
demonstram as palavras de reconhecimento do próprio presidente. As candidaturas à
presidência foram lançadas e, em abril, os partidos políticos se organizaram para apoiá-las. O
candidato proposto pela União Democrática Nacional (UDN)13 foi o brigadeiro Eduardo
Gomes, de oposição, enquanto o general Eurico Gaspar Dutra era o candidato do Partido
Social Democrático, da legenda governista, o PSD14. No mês seguinte, em maio, foi criado

10
Idem.
11
Vide: SCHWARTZMAN, Simon. A ação cultural. In: Tempos de Capanema. Simon Schwartzman, Helena
Maria Bousquet Bomeny, Vanda Maria Ribeiro Costa. São Paulo: Paz e Terra: Fundação Getúlio Vargas, 2000,
pp.97-122.
12
FONSECA, Edson Nery da. O Negócio das Enciclopédias. Revista de Ciência da Informação, v.1, n.2, 1972.
13
Sobre a UDN ver: BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981.
14
A respeito do PSD ver: HIPPOLITO, Lucia. De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática
brasileira (1946-64). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, 2ed.

1019

V V
um terceiro partido, diretamente ligado a Vargas, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)15,
sendo decretada, em seguida, a nova lei eleitoral para dezembro desse ano. Ainda que
houvesse a atuação do Movimento Queremista, dando origem a derivação do slogan
“Queremos Getúlio” defendendo a Constituinte com Vargas e buscando intenções
continuístas, a deposição definitiva do presidente deu-se em outubro de 1945. Junto com a
queda de Vargas, veio a saída de Gustavo Capanema da direção do Ministério da Educação e
Saúde16. As mudanças na forma de condução do Instituto Nacional do Livro e da seção da
Enciclopédia Brasileira foram inevitáveis. Além da conjuntura política, o falecimento de
Mário de Andrade conduziu Américo Facó à total direção do projeto. No entanto desde a
morte do modernista, os projetos estagnaram. Atribuímos esse aspecto, não só, a morte de
Andrade, mas ao afastamento de Capanema do Ministério, o fim da proposta modernista e a
entrada de novos nomes na pasta.
De acordo com os estudiosos do Ministro Gustavo Capanema, o programa sustentado
por ele esteve fundamentado na cultura nacional. Desde que assumiu o cargo, sua exposição
de motivos embasou-se nos empreendimentos culturais que propunham a “formação do
corpo, do espírito e da alma dos brasileiros, todas as responsabilidades de sua pasta”.17 Por
essas razões, defendo a tese de que o projeto da Enciclopédia brasileira trazia em sua
natureza o ensejo de uma época, visando à construção de uma cultura nacional. Esse debate já
existia nos círculos letrados brasileiros desde o início da década de 1910, mas somente a partir
de 1937 tornou-se política de Estado18, por meio da criação de leis e principalmente de
Instituições dedicadas a execução dessa legislação. Com a saída de Getúlio Vargas e de
Capanema, o plano da Enciclopédia Brasileira foi perdendo o sentido e estagnou.
Mais tarde com a chegada ao poder de Eurico Gaspar Dutra, o nome escolhido para
ocupar a posição de Gustavo Capanema a frente do Ministério da Educação e Saúde foi o de
Raul Leitão da Cunha. Para a direção da Enciclopédia Brasileira tivemos, como já foi dito, o
nome de Américo Facó. Sobre Leitão da Cunha não temos muitas informações. Apenas é
possível destacar o curto espaço em que atuou como Ministro da Cultura de outubro de 1945

15
Sobre a criação do PTB ver: ARAUJO, Maria Celina Soares d’. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-
65. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.
16
Sobre esse processo político de derrubada do Estado Novo ver: D’ARAUJO, Maria Celina. Getúlio Vargas
(1883-1954). Organização: Maria Celina D’Araujo. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011.
17
Para maiores detalhes sobre Gustavo Capanema e sua atuação no Ministério da Educação e Saúde ver:
WILLIAMS, Daryle. Gustavo Capanema, ministro da Cultura. In: Capanema: o ministro e seu ministério.
Organizadora Angela de Castro Gomes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. pp.251-269.
18
A respeito do debate das políticas públicas de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional
anteriores ao ano de 1937 ver: ORIÁ, Ricardo. Muito antes do SPHAN: a política do patrimônio histórico no
Brasil (1838-1937). Políticas Culturais: teoria e práxis.

1020

V V
até janeiro de 1946. A respeito de sua escolha para a causa da Educação e Cultura, temos a
suspeita de que tenha ocorrido em razão de sua trajetória no Partido Democrático do Distrito
Federal e a constante defesa da educação19. Depois de Raul Leitão, assumiram a pasta de
Educação e Cultura os nomes de Ernesto de Souza Campos (jan.1946-dez. 1946); Clemente
Mariani Bittencourt (1946-1950); Eduardo Rios Filho (mai.1950-ago.1950) e, por fim, Pedro
Calmon Muniz de Bittencourt (1950-1951). De todos esses, talvez o mais expressivo ministro
tenha sido Pedro Calmon20. Além de ter atuação no governo, Calmon foi um importante
intelectual, autor de biografias sobre o Império publicadas pela coleção Brasiliana da Cia.
Nacional. No entanto, nenhuma mudança expressiva havia sido feita nos planos da
Enciclopédia até este período. No segundo mandato de Getúlio Vargas, a modificação mais
significativa foi a transformação do Ministério da Educação e Saúde em Ministério da
Educação e Cultura21 ocorrida no ano de 1953, mas no que tangia a Enciclopédia Brasileira a
inércia persistia. Cerca de três anos depois, as coisas davam sinais de mudança. O projeto da
Enciclopédia parecia ganhar novo ânimo, mas os esforços talvez não fossem ainda suficientes
para desenvolvê-lo.

Os anos 1950: A década das Enciclopédias

Para dentro de cinco anos a Enciclopédia Brasileira – Plano Geral de Execução

O Diretor da Seção de Enciclopédia e Dicionário do Instituto


Nacional do Livro, prof. Euryalo Canabrava, concluiu o trabalho de
planejamento para a execução da “Enciclopédia Brasileira”, obra idealizada
logo depois de fundado o INL. A enciclopédia abrangerá nove setores:
Filologia – Lógica -Ciências Físicas - Ciências Naturais - Ciências
Históricas e Sociais –Artes –Organização - Economia e Administração -
Diversos. (...) Prevê o prof. Canabrava que a execução da “Enciclopédia
Brasileira”, em seis volumes necessita de cinco anos, este, frisa o chefe da
Seção de Enciclopédia do INL, é o prazo que deve ser tomado como ponto
de partida. (Diário de Notícias, 22 de abril de 1956, grifos meus).

Estávamos agora em 1956. Dessa data, passara-se cerca de vinte anos desde a criação
do Instituto Nacional do Livro, onze anos do falecimento de Mário de Andrade e a

19
Sobre o Partido Democrático do Distrito Federal ver: PINTO, Surama Conde Sá. O Partido Democrático do
Distrito Federal: Bases e Limites de um projeto democrático nos anos vinte. In: XI Encontro Regional de
História / ANPUH, 2004, Rio de Janeiro. Simpósio diferenças e desigualdades / XI Encontro Regional de
História / ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH-RJ/UERJ, 2004. v. 1. p. 118-118.
20
Sobre Pedro Calmon é válido verificar o fundo documental Gustavo Capanema disponível no CPDOC/FGV
onde localizamos um inquérito elaborado por Pedro Calmon, Alceu Amoroso Lima e Oliveira Vianna alertando
a respeito do risco comunista no Brasil. O documento data de julho de 1936. Ainda sobre a trajetória política e
profissional de Pedro Calmon ver os trabalhos e a pesquisa de Nayara Galeno do Vale intitulada Um retrato
inteiriço e harmônico da nação: identidade do historiador e escrita da História do Brasil na obra de Pedro
Calmon (1933-1959).
21
Vide a Lei nº 1.920, de 25 de julho de 1953 – Cria o Ministério da Saúde e dá outras providências.

1021

V V
Enciclopédia Brasileira não saía do mero planejamento. Os tempos eram outros. O diretor era
outro22. No Instituto Nacional do Livro as revistas ganhavam espaço. José Renato Pereira, o
novo diretor, escolheu o momento propício para lançar o INL em revista. O ano de 1956
guardava, não só, a novidade do presidente bossa-nova recém-eleito, Juscelino Kubitschek,
mas era também o momento de relembrar e exaltar o nome de Machado de Assis. Nessa data
comemorava-se o 117º aniversário do escritor, e a Revista do livro não deixaria de prestar a
sua homenagem. Mas não foi só isso. Vivíamos uma nova época e uma vez mais os laços
precisavam ser estreitados com o Ministério da Educação, dessa vez, com o auxílio de Abgar
de Castro Araújo Renault e, depois, com Clóvis Salgado23. O “olho” de um leitor atento
poderia notar o quão empenhado estava o INL em desenvolver os projetos de sua fundação,

A Revista do Livro, órgão oficial do INL, cujo primeiro número


hoje se apresenta ao público brasileiro, é mais uma manifestação dos altos
propósitos do governo em contribuir para o aprimoramento da cultura
nacional. Demonstra o empenho do INL em cumprir suas tarefas
específicas, com o apoio e plena confiança do MEC. A Revista será mais um
veículo de difusão e um campo aberto ao debate de ideias, sugestões, e
planos que visem o desenvolvimento cultural do nosso povo. (Rio de
Janeiro, 21/05/1956, grifos meus).

A esperança no cumprimento de “tarefas específicas” era grande no ano 1956. Na


realidade, foi enorme durante aquele período e nos anos subsequentes. Em novembro de 1956,
a Enciclopédia Brasileira permanecia ainda como um sonho inalcançável. O Correio da
Manhã anunciava os planos para o ano seguinte,

O INL está também preparando um vasto plano para o ano vindouro,


que inclue o lançamento da grande Enciclopédia Brasileira, acontecimento
que vem despertando o mais vivo interesse por parte dos círculos culturais
do país, bem como o da comunidade estudantil.

Mas em 1957 nada aconteceria24 e ao que parece em 1958 também não. O Correio da
Manhã de dezembro de 1958 ainda noticiava os preparativos para a publicação da

22
O primeiro diretor do Instituto Nacional do Livro foi Augusto Meyer. Ele permaneceu à frente da Instituição
por mais de dezoito anos.
23
De acordo com Maria Victória Benevides, a permanência do nome de Clóvis Salgado para a pasta da Educação
durante todo o governo de Juscelino Kubistchek se deveu ao fato de ter sido ele o único político capaz de
compor com as facções partidárias por representar o PR que, embora pequeno, servia de mediador entre o
Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN), favorecendo a estabilidade política
do período. Para maiores detalhes ver: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/Clovis_Salgado.
Acesso em 15/01/2015.
24
Vide: CANNABRAVA, Euryalo. A propósito da Enciclopédia brasileira. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 2
de novembro de 1957.

1022

V V
Enciclopédia Brasileira e já apontava o aumento do número de outras publicações, embora o
foco ainda se mantivesse na elaboração da Enciclopédia.

É natural, informou o professor Euryalo Canabrava, que


consideremos, primeiramente, nossa grande obra: a Enciclopédia Brasileira
cujo plano geral elaboramos juntamente com o Sr. Paulo Assis Ribeiro. As
normas que regerão os trabalhos nesse setor já se encontram concluídas,
estando uma equipe de pesquisa de verbetes executando as tarefas iniciais,
depois de haver seus componentes passado por um período de treinamento
teórico e prático, no qual puderam aquilatar das responsabilidades que estão
assumindo para com a cultura nacional.

Se a legítima brasileira não saía do papel, é certo que algumas outras enciclopédias e
dicionários de menor relevância tiveram espaço nos anos 1950 no Instituto Nacional do Livro.
O primeiro deles data ainda de 1956 e corresponde a publicação do Dicionário Popular
Brasileiro de Alarico Silveira25. Dois anos mais tarde, em 1958, o Instituto Nacional do Livro
lançava o primeiro tomo da Enciclopédia Brasileira do mesmo Alarico Silveira, sob a
organização de Américo Jacobina Lacombe. Um ano antes, em 1957, o INL publicava outra
enciclopédia. Tratava-se do texto de Euryalo Cannabrava e Paulo Ribeiro de Assis reunido na
Enciclopédia Brasileira; introdução, diretrizes, normas gerais26 com o prefácio do próprio
José Renato Pereira.
Mas o tempo corria. Chegávamos aos anos 196027 e ventos novos não sopravam dos
prelos do Instituto Nacional do Livro. No governo, tínhamos o excêntrico presidente Jânio
Quadros, muitas reclamações sobre a burocracia do funcionalismo público e mudanças no
Ministério da Educação. Clóvis Salgado deixava a pasta da educação, acusado de corrupção e
nepotismo28. Quanto a Enciclopédia Brasileira, a acusação não era menor,
Que se pense nos milhões e milhões de gastos com a Enciclopédia Brasileira sem que um
verbete sequer tenha sido escrito até a data de hoje. Coisas como essas explicam o descalabro da
situação em que se encontra o Ministério da Educação e, por extensão, o próprio ensino do país.

25
Alarico Silveira (1878-1943) foi um educador paulista reconhecido pela sua dedicação profissional a escrita
de uma Enciclopédia Brasileira.
26
Para maiores esclarecimentos ver: CANNABRAVA, Euryalo & RIBEIRO, Paulo de Assis. Enciclopédia
Brasileira; introdução, diretrizes, normas gerais. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957, 183 p.
Prefácio de José Renato Pereira.
27
Um pouco antes, no ano de 1959 vários candidatos foram mobilizados para a composição de Enciclopédia
brasileira. Dentre os nomes que comporiam a produção estava o de Darcy Ribeiro para os verbetes de Etnologia
Brasileira, Antropologia Cultural e Problemas Socioculturais. Mas o quadro de candidatos englobou a
participação de engenheiros, advogados, médicos, químicos e filósofos. No entanto nunca saiu do papel no
desenrolar da gestão de Renato Pereira e nem nos anos posteriores.
28
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29/01/1961.

1023

V V
Pouco mais de dois meses depois29 da denúncia sobre o ministério de Clóvis Salgado,
o atraso na publicação da Enciclopédia foi justificado pela burocracia que assombrava o
funcionalismo público do país,

Outro assunto, ligado nos mesmos Instituto e Ministério foi, do igual


modo, submetido ao estudo do presidente da República, roubando-lhe o
precioso tempo de outras tarefas. Dizia respeito à divulgação do parecer do
senhor Augusto Meyer sobre a Enciclopédia Brasileira.

O primeiro assunto ao qual se refere à reportagem dizia respeito à tentativa de


publicação pelo Instituto Nacional do Livro do Dicionário de Folclore Brasileiro de Luís da
Câmara Cascudo. Mais uma vez a burocracia do funcionalismo público se impunha,
dependendo o Instituto da aprovação do presidente Jânio Quadros para o relançamento da
obra. No ano seguinte, a promessa de publicação30 da Enciclopédia brasileira em dezoito
volumes perdurava sem que nada acontecesse.
Enquanto a Enciclopédia Brasileira era um plano adormecido do INL, vários projetos
de enciclopédias internacionais ganhavam terreno Brasil. A Enciclopédia Barsa foi lançada
no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1964 e contou com a supervisão dos editores de outra
enciclopédia: Enciclopédia Britannica, tendo como editor principal Willian Benton.
Escreveram nesta obra, intelectuais como Antonio Callado, redator-chefe, Sérgio Buarque de
Holanda e Raquel de Queiroz. Além da Britânica, tivemos também o lançamento nos anos
1960 da Enciclopédia Delta e a Encyclopédie Larousse Méthodique.
E o tempo passou. O Instituto Nacional do Livro já não era o mesmo desde a criação
em 1937. Nos anos 1960 muitas modificações aconteceram englobando desde o quadro de
diretores até a política de ações na publicação de livros. Era o tempo dos militares no governo
do país. O Brasil dava adeus à democracia e mergulhava nas águas profundas de uma
ditadura. A direção do INL coube a um militar e a Enciclopédia Brasileira continuava a não
passar de um plano ainda inexecutável. E não seria até 1973 quando a Seção de Enciclopédia
do Instituto Nacional do Livro foi extinta. Junto dela, extinguiu-se um projeto de
nacionalidade iniciado com os modernistas e que se tornou política de Estado em 1937. A
inexecução do projeto da Enciclopédia talvez possa ser explicada por uma mudança na
perspectiva de nacionalidade que se tornou incompatível com os propósitos postulados em
1937. Ao observar a ação dos ministros de 1946-64, vemos outras trajetórias e outras
propostas de governo. Ainda que alguns o tenham tido a intenção de publicar a Enciclopédia

29
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11/04/1961.
30
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1962.

1024

V V
Brasileira planejada pelo Instituto Nacional do Livro, as discussões fugiam da “invenção do
Brasil” ou mesmo da ideia de torná-lo “brasileiro” tal qual se pretendia em 1937. Como
afirmamos, os tempos eram outros. Novas concepções de modernidade se impunham. Por
essas razões, acreditamos que tenha ocorrido um esvaziamento de sentido no planejamento da
Enciclopédia Brasileira pretendida pelo Instituto Nacional do Livro. Retomar os projetos da
Enciclopédia Brasileira em diferentes momentos da história do país e do próprio Instituto
Nacional do Livro tem por objetivo demonstrar de que maneira a leitura foi instrumento de
disseminação do poder e da nacionalidade. A Enciclopédia Brasileira foi muito mais do que
um projeto frustrado do Instituto. Ela orientou diversas gestões, diretores, as muitas fases do
órgão e, principalmente, a lógica de funcionamento do instituto. A ideia de criar uma
enciclopédia nacional pode ser considerada um exemplo da tradição do Estado Novo. Na
“ansiedade” de difundir uma cultura tipicamente brasileira orientou a criação de um órgão
público dedicado à escrita e publicação de livros. Mas o lançamento da “musa inspiradora”
jamais se concretizaria. E graças a sua inexistência, ou melhor, ao seu contínuo projeto de
construção, o Instituto sobreviveu por mais de cinquenta anos.
Por acreditar que a história da Enciclopédia Brasileira não pode ser contada sem se
considerar o período e a trajetória político-partidária dos ministros, colocamos abaixo uma
tabela com os nomes dos ministros da Educação compreendidos entre os anos de 1946-1964 e
seus respectivos partidos:

Ministros Presidentes Período Trajetória Político


Partidária
Raul Leitão da Eurico Gaspar Dutra 30/10/1945-31/01/1946 PDF (Partido Democrático
Cunha do Distrito Federal)
Ernesto de Souza José Linhares (interino) 31/01/1946-06/12/1946 UDN
Campos e Eurico Gaspar Dutra
Clemente Mariani Eurico Gaspar Dutra 06/12/1946-15/05/1950 PSD-Bahia
Bittencourt
Eduardo Rios Filho Eurico Gaspar Dutra 15/05/50-31/01/1951 e PSD
18/06/1959-16/06/1960
Ernesto Simões da Getúlio Vargas 31/01/1951-25/05/1953 PSD
Silva Freitas Filho
Péricles Madureira Getúlio Vargas 26/05/1953-24/06/1953 PR
de Pinho
Antônio Balbino de Getúlio Vargas 25/06/1953-02/07/1954 PPS/PSD
Carvalho Filho
Edgar Rego Santos Getúlio Vargas e Café 06/07/1954-02/09/1954 PR
Filho
Cândido Mota Filho Café Filho, Carlos Luz 02/09/1954-17/11/1955 Ação Nacional do PRP

1025

V V
(interino) e Nereu
Ramos (interino)
Abgar de Castro Nereu Ramos (interino) 24/11/1955-31/01/1956 PRP
Araújo Renault
Clóvis Salgado Juscelino Kubitschek 31/01/1956-30/04/1956 PRM/PR
Gama
Celso Teixeira Juscelino Kubitschek 30/04/1956-04/05/1956 PR/PRM
Brant e 05/05/1956 –
02/10/1956
Nereu de Oliveira Juscelino Kubitschek 03/10/1956 – PLC/PSD/UDN
Ramos 04/11/1956
José Pedro F. Da Juscelino Kubitschek 17/06/1960 – Não identificado.
Costa 24/06/1960
Pedro Paulo Penido Juscelino Kubitschek 01/07/1960 - 17/10/1960 PR
Brígido F. Tinoco Jânio Quadros 31/01/1961 – PSD/PSB/MDB
25/08/1961
Antônio F. de Jânio Quadros, Ranieri 08/09/1961 – MDB e ALN
Oliveira Brito Mazzilli e João Goulart 11/07/1962
Roberto Tavares de João Goulart 12/07/1962 -14/09/1962 PR
Lira
Darcy Ribeiro João Goulart 18/06/1962 -23/01/1963 PDT
Theotônio Maurício João Goulart 23/01/1963 – PD/PRP
Monteiro de Barros 18/06/1963
Filho
Paulo de Tarso João Goulart 18/06/1963 – FMP
Santos 21/10/1963
Júlio Furquim João Goulart e Ranieri 21/10/1963 - 06/04/1964 Não identificado.
Sambaquy Mazzilli

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Lei nº 1.920, de 25 de julho de 1953 – Cria o Ministério da Saúde e dá outras providências.

1027

V V
CULTURAS POPULARES, POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSOS DE
“ALFABETIZAÇÃO PATRIMONIAL”: (DES)ENCONTROS NA FOLIA DE REIS
EM VALENÇA, RIO DE JANEIRO
Marluce Magno1
Regina Abreu2

RESUMO: A partir de um estudo de caso, a patrimonialização da Folia de Reis no sudeste do


Rio de Janeiro, especialmente focalizando o município fluminense de Valença, apresentamos
uma reflexão sobre a relação entre o Estado e as manifestações populares, tanto do ponto de
vista da apropriação por parte dos grupos das ferramentas e conceitos introduzidos pelas
políticas públicas, quanto do ponto de vista da apropriação por parte do Estado de conceitos e
modos de ser e de fazer próprios das culturas populares.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas, patrimonialização, Folia de Reis

INTRODUÇÃO
Desde o desdobramento do conceito de patrimônio sob o impacto da visão
antropológica, as manifestações populares têm ganho centralidade nas definições de políticas
públicas, estudos e debates sobre o processo de patrimonialização. Como marcos dessa
centralidade podemos apontar, no âmbito internacional, as Recomendações e Convenções da
UNESCO firmadas a partir do final da década de 1980 (1989, 2003 e 2005), enquanto no
Brasil temos a Constituição de 1988 (art.216) e o Decreto 3551 de 2000. As novas propostas e
determinações têm redefinido o papel do Estado cabendo-lhe, além da formulação de políticas
públicas de patrimonialização, o compromisso com ações de promoção, valorização e
salvaguarda desse patrimônio. Na relação entre as instituições e as comunidades tradicionais,
detentoras desses saberes e manifestações patrimonializáveis, é esperado da segunda uma
“participação ativa” no processo. Propomo-nos discutir essa relação na qual se espera um
protagonismo das comunidades tradicionais que, entretanto, não estão familiarizadas com os
códigos que conformam a “lógica patrimonial”, devendo-se inserir, então, num aprendizado
que a autora denominou de “alfabetização patrimonial”.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. magnomarluce@gmail.com
2
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional), Pós-
Doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. abreuregin@gmail.com

1028

V V
Neste sentido, observa-se aqui um paradoxo: o projeto do
Patrimônio Cultural Imaterial que visa “salvar” as diferenças, as alteridades
ou as diversidades culturais apresenta sua face universalista numa lógica
racionalista fundada em conceitos e categorias ocidentais. (ABREU, 2014,
p.43)

Devemos observar, ainda, que as políticas públicas de valorização e promoção que


vêm sendo introduzidas, chegam acompanhadas de um discurso de desenvolvimento
sustentável, como está evidenciado no Plano Nacional de Cultura - PNC e sobre o qual
falaremos mais adiante. Esse discurso integra a “lógica racionalista” referida por Abreu,
tornando ainda mais complexo o processo da “alfabetização” a ser experimentado pelas
comunidades tradicionais: significados, usos e valores tradicionais poderão passar por
ressignificações. São questões que nos remetem, tanto ao conceito de “ressonância” de José
Reginaldo Gonçalves, quanto às reflexões de Mônica Rotman e Alice Castells.

A intangibilidade pode ser valorizada inclusive como aspecto mais


relevante de um bem, na medida em que precisamente sua legitimação como
patrimônio será resultado das lutas pela imposição dos sentidos; são os
significados, os usos e valores que se assinalam e se atribuem às expressões
culturais os fatores que determinam seu caráter e, portanto, sua inclusão no
campo patrimonial. (ROTMAN e CASTELLS, 2007, p.4)

Dentre as ações que visam a promover e valorizar o patrimônio cultural instituídas


pelo Estado, o Registro como Patrimônio Cultural do Brasil implementado pelo Decreto
3551/2000, é a mais elevada “honraria” nacional concedida aos Bens Culturais de Natureza
Imaterial, que são conceituados como “criações culturais de caráter dinâmico e processual,
fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão
de sua identidade cultural e social”3. Mas o raio de ações de valorização e fomento da nossa
diversidade cultural é muito maior, e o documento firmado pelo Ministério da Cultura de
implementação do Sistema Nacional de Cultura - SNC (MINC, 2010) permite uma visão da
amplitude dessas ações, que tem como objetivo geral:
Formular e implantar políticas públicas de cultura, democráticas e
permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade civil,
promovendo o desenvolvimento - humano, social e econômico - com pleno
exercício dos direitos culturais e acesso aos bens e serviços culturais.
(MINC, 2010, p.38)

Leis de incentivo fiscal, editais com ofertas de patrocínio e outros constituem


mecanismos que são colocados à disposição de pessoas ou grupos produtores de cultura,
incluindo aqueles detentores de saberes tradicionais. Para lidar com essa gama de

3
IPHAN. Resolução nº001 de 3 Ago 2006, publicada no DO de 23 Mar 2007.

1029

V V
possibilidades cujo o acesso é mediado por procedimentos burocráticos e outras exigências,
os membros de comunidades tradicionais precisam intensificar sua “alfabetização
patrimonial”, se não para gerirem diretamente, pelo menos para terem controle sobre
propostas para obtenção de concessões e benefícios que intermediários (gestores culturais,
secretarias de cultura) estarão acionando em seu nome. Assim, uma dinâmica singular se
insere no seio de manifestações populares, configurando um paradoxo. Sugerimos a
necessidade de se pensar certas questões que emergem desse confronto entre a “lógica
racionalista” do Estado e as práticas tradicionais de grupos populares, lógica essa que
naturaliza procedimentos tecno-burocráticos esperando que integrantes de comunidades
tradicionais tenham participação ativa, sem questionar sobre o impacto em suas vidas com a

aquisição e o manejo desses procedimentos, assim como suas


repercussões. Quais os membros das “comunidades que serão “iniciados” no
preenchimento de dossiês, formulários, solicitações de registros? O que
significará para estas “comunidades” estas novas “iniciações”? Quais os
novos estatutos que estes indivíduos terão em suas “comunidades” após a
aquisição destas novas habilidades e destes novos modos de existência?
(ABREU, 2014, p.43-44).

No Estado do Rio de Janeiro residem diversas manifestações populares, tendo duas


delas – Jongo do Sudeste e Matrizes do Samba no Rio de Janeiro – já inseridas no Registro no
IPHAN como Patrimônio Cultural do Brasil. Outra manifestação é a Folia de Reis, que se
encontra em fase de mapeamento pelo IPHAN4 com vista a um possível Registro. Instigada
pelas questões formuladas por Abreu e residindo em Valença, município que detém uma ativa
associação de grupos de Folia, com trinta e seis Folias cadastradas sendo vinte e seis ativas,
me proponho a abraçar essas reflexões investigando a relação dos grupos de Folia com a
“lógica racionalista” que norteia as políticas públicas voltadas para a cultura.
É uma prática em várias cidades do Estado do Rio de Janeiro a realização de evento
anual denominado Encontro de Folia de Reis. Com características de um festival de folclore,
o evento, que acontece no Dia de Reis – 6 de janeiro – ou próximo a ele, reúne diversos
grupos de Folia, devotos e outros interessados (políticos, intelectuais, turistas). Os Encontros
de Folias de Valença e de Duas Barras são apontados por Daniel Bitter como os mais antigos
do estado (BITTER, 2008, p.89). O atual presidente da Associação dos Grupos de Folias de
Reis de Valença (AGFORV) valoriza o festival local – que terá seu 44º evento em 2015 –
explicando que “lá [Duas Barras] só tem três ou quatro Folias. Eles botam de vinte a vinte e

4
Informado pela Sra. Mônica da Costa, Assessora de Gabinete do Patrimônio Imaterial do IPHAN, em entrevista
concedida em 25 Set 2014.

1030

V V
cinco Folias... não são todas de lá. Mas aqui não, aqui são todas daqui! São vinte e duas na
sede do município e quatro nos distritos”. Já tive oportunidade de realizar dois encontros com
o presidente da AGFORV, quando colhi informações que parecem sugerir que o
acompanhamento do processo que envolve a realização desse Encontro de Folias pode ser
fértil para pensar as questões elencadas. Nos últimos anos a associação tem atendido ao
chamado da Secretaria Estadual de Cultura para participação em edital que poderá destinar
recursos para realização do evento. Apesar das expectativas positivas para este ano, não
tiveram sua proposta aprovada. A associação também sedia um Ponto de Cultura desde 2011.
Temos, então, que o movimento de Folias de Reis de Valença avança nessa relação
“participativa” proposta pelas políticas públicas, cujo estudo pode trazer boas contribuições
para entender o impacto dessas políticas no cotidiano desses grupos, nas relações entre seus
membros, e nos significados e usos de seus elementos rituais, materiais e imateriais.

OBJETIVOS
O objetivo geral desta apresentação consiste em refletir sobre a relação entre o Estado
e as manifestações populares, tanto do ponto de vista da apropriação por parte dos grupos das
ferramentas e conceitos introduzidos pelas políticas públicas, quanto do ponto de vista da
apropriação por parte do Estado de conceitos e modos de ser e de fazer próprios das culturas
populares. Mais especificamente, pretende-se:
Conhecer e analisar as relações que se estabelecem entre os grupos de Folias de Reis
da cidade de Valença e as instituições ou agentes que promovem ou intermediam ações que se
inserem no campo da patrimonialização, através ou apoiadas em políticas públicas;
Observar como se dá a “alfabetização patrimonial”, ou seja, a assimilação de
conhecimentos e habilidades que permitirão a esses grupos, alicerçados na “lógica das
tradições populares”, acessarem os instrumentos oferecidos pelo Estado, instituídos a partir de
uma “lógica racionalista”, que lhes proporcionarão reconhecimento e benefícios materiais;
Observar se e como se dão apropriações de conceitos e modos de ser pelas instituições
do Estado, nesse (des)encontro com a Folia de Reis;
Atentar para o impacto desse (des)encontro no cotidiano da manifestação e de seus
detentores, na construção da identidade desses grupos, e nos significados e crenças que
configuram a manifestação.

1031

V V
JUSTIFICATIVA/RELEVÂNCIA
Tanto no Brasil como no âmbito internacional, a patrimonialização de bens culturais
de natureza intangível está em efervescência. A diversidade cultural vem sendo valorizada e
promovida, também, como um caminho para o desenvolvimento sustentável, como vemos, por
exemplo, nos documentos da UNESCO. As justificativas para estabelecimento dos objetivos
da Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, tem início com a
“consideração da importância do patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade
cultural e garantia de desenvolvimento sustentável” (UNESCO, 2003). Na Convenção sobre a
proteção e promoção da diversidade e das expressões culturais, a palavra desenvolvimento,
dentro de um contexto de desenvolvimento econômico, aparece trinta e cinco vezes
(UNESCO, 2005).
No Brasil, o Ministério da Cultura, finalizou em 2011 o seu Plano Nacional de
Cultura (PNC) para dez anos (até 2020), priorizando a valorização da diversidade cultural no
território nacional e a participação social. Suas metas foram estabelecidas a partir de uma
concepção de cultura que articulada três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica. No
“aspecto da cultura como vetor econômico”, é considerado
o potencial da cultura para gerar dividendos, produzir lucro,
emprego e renda, assim como estimular a formação de cadeias produtivas
que se relacionam às expressões culturais e à economia criativa. É por meio
dessa dimensão que também se pode pensar o lugar da cultura no novo
cenário de desenvolvimento econômico socialmente justo e sustentável.
(MINC, 2013, p.18)

O turismo cultural está compreendido na chamada “economia criativa”5 . O PNC tem


meta específica para aumento na competitividade dos destinos turísticos brasileiros, e
considera que “as características culturais de uma cidade ou região são fundamentais para o
desenvolvimento do turismo local” (MINC, 2013, p.44). O Plano Nacional de Turismo 2013-
2016 aponta que de 2003 para 2009 houve um crescimento no setor de 32,4%, enquanto a
economia, como um todo, cresceu nesse período 24,6%. No número de empregos, que em
2012 estava em torno de 2,95 milhões, a previsão para 2022 é de que esse segmento esteja
empregando 3,63 milhões de pessoas (Ibidem, p.3).

5
O documento caracteriza “economia criativa” como “composta das atividades econômicas ligadas aos segmen-
tos definidos pela UNESCO: patrimônio natural e cultural, espetáculos e celebrações, artes visuais e artesanato,
livros e periódicos, audiovisual e mídias interativas e design e serviços criativos”(p.28). O artigo Indústrias
criativas: definição limites e possibilidades, de Pedro Bendassoli, professor da FGV-SP, nos permite entender o
uso do termo “criativo”, seus significados, sua abrangência e perspectivas.

1032

V V
Também nos documentos do Ministério do Turismo identificamos o discurso da
sustentabilidade para o desenvolvimento econômico através do turismo. Adequar-se a
demanda externa, entretanto, é percebida como condição para esse desenvolvimento:

O comportamento do consumidor de turismo vem mudando e, com


isso, surgem novas motivações de viagens e expectativas que precisam ser
atendidas. Em um mundo globalizado, onde se diferenciar adquire
importância a cada dia, os turistas exigem, cada vez mais, roteiros turísticos
que se adaptem às suas necessidades, sua situação pessoal, seus desejos e
preferências (MINISTÉRIO DO TURISMO, 2010, p.7).

Temos, então, um campo empírico onde se desenrola uma interseção entre as


políticas do Ministério do Turismo que entende que é preciso atrativos culturais para atender
os “desejos e preferências” do turista, e as do Ministério da Cultura que almeja “proteger os
saberes tradicionais” e contribuir “com a promoção da diversidade das expressões culturais
em todo o território nacional” (MINC, 2013, p.18). É neste cenário, aparentemente
conflituoso, que atualmente se desenvolvem as relações e as trocas entre os agentes das
políticas públicas e os detentores das culturas populares. Nele se dá, inclusive, o processo de
“alfabetização patrimonial” que pretendo estudar, através da Folia de Reis de Valença.
Entendo que o estudo que proponho neste projeto é relevante, pois tem potencial para
contribuir na compreensão desse promissor, porém delicado momento vivido pela cultura
popular.

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
O trabalho de pesquisa incluirá a observação simples e a observação participante, em
reuniões que a associação promova com os representantes dos grupos de Folia e em reuniões
com órgãos públicos nas quais participem, onde possam estar sendo discutidas questões
relacionadas ao evento Encontro de Folias ou outras questões que envolvam políticas
públicas de salvaguarda, valorização e promoção da manifestação popular estudada. Buscarei
o contato com foliões de diferentes grupos para entrevistas individuais semiestruturadas
buscando conhecer a visão dos brincantes mais distantes desse circuito de negociações.
Estarei assim fazendo um contraponto com meu principal informante, o atual presidente da
associação que, além de “dono” de uma Folia, é um ex-pedreiro que, há poucos anos, foi
aprovado em concurso público e tornou-se funcionário da prefeitura, atuando diretamente na
secretaria de cultura municipal. Esses foliões serão escolhidos, ou a partir da observação
durante reuniões, ou aleatoriamente, visitando sedes de grupos de Folia. Apesar da
formalidade que sugere o termo semiestruturada, tentarei construir uma relação amigável e de

1033

V V
confiança mútua com meus entrevistados, garantindo um ambiente descontraído, de forma
que seja possível, como recomenda Geertz, “conversar com eles”.
Uma análise diacrônica do evento Encontro de Folias também pode oferecer boas
contribuições para conhecer e analisar possíveis transformações ocorridas ao longo das mais
de quatro décadas de sua realização. Ao que tudo indica, poderei ir até às suas origens, pois
um dos foliões fundadores do Encontro ainda é vivo. Novamente a entrevista semiestruturada
parece ser o instrumento de pesquisa mais adequado para o caso.
Recorrerei a teóricos da antropologia para orientar o trabalho de campo,
particularmente Clifford Geertz e sua Teoria Interpretativa da Cultura, adotando sua
abordagem semiótica da cultura, cuja proposta é a de “auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo
conceitual no qual vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais
amplo, conversar com eles” (GEERTZ, 2008, p.17). Ainda como recomenda esse autor,
estarei atenta ao comportamento dos sujeitos observados, “pois é através do fluxo do
comportamento – mais precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram
articulação” (Ibidem, p.12).
A Folia de Reis tem sido objeto de vários trabalhos acadêmicos de cunho
antropológico. Duas produções recentes – de Wagner Chaves (2003) e Daniel Bitter (2008) –
já estão sendo estudadas, pois oferecem valioso conhecimento sobre o cotidiano da
manifestação e seus praticantes, convertendo-se em ferramentas de substancial auxílio na
busca do sucesso nessa empreitada que inclui “ganhar acesso ao mundo conceitual” dos
foliões. A leitura do livro Reis Magos: Historia – Arte – Tradições: fontes e referências, do
folclorista Affonso Furtado Silva, pesquisador atuante que goza de certo prestígio na
comunidade de foliões da região, também deverá constituir-se em uma boa base para a
construção de uma retrospectiva histórica da manifestação.
Estudando grupos populares e suas práticas tradicionais, deverei trabalhar com
conceitos como “memória coletiva” e “identidade”. Para o primeiro, recorrerei a Halbwachs e,
para o segundo, entendo que a Escrita de Si, de Kaufmann, poderá ser de grande valia.
Tendo uma comunidade de foliões como foco, e considerando que essa comunidade
vem vivenciando interações com agentes externos (pesquisadores, agentes públicos) sob um
discurso de valorização da Folia como patrimônio cultural, talvez o conceito de
“neocomunidades” formulado pelo prof. Javier Lifschitz também possa me ajudar nas
análises.

1034

V V
Na esfera das dinâmicas de patrimonialização, recorrerei à produção de especialistas
no tema, como os pesquisadores brasileiros Regina Abreu e José Reginaldo Gonçalves. Dois
conceitos formulados por esses pesquisadores terão presença significativa neste estudo. De
Regina Abreu, como o próprio título deste projeto indica, e como já detalhei anteriormente,
trabalharei o conceito de “alfabetização patrimonial”. De José Reginaldo, na medida em que
estarei num contexto de interseção entre patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável,
tomarei o conceito de “ressonância” analisando sua presença, ou não, junto aos sujeitos das
manifestações, ao longo das possíveis transformações que a interação com as políticas
públicas e seus agentes possa promover no cotidiano daquelas.
Quanto a referências teóricas construídas a partir da análise do impacto das políticas
públicas de patrimonialização, estou diante de um tema novo no cenário acadêmico. Até o
momento foi identificado um interessante artigo de Lia Calabre (Pesquisadora e coordenadora
do Setor de Estudos de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa) publicado este
ano, intitulado Práticas culturais e processos de patrimonialização:a ação das políticas
culturais e o jongo do Sudeste como um possível estudo de caso. O artigo confronta textos
acadêmicos voltados para o tema em referência, que apontam impactos, ora numa avaliação
positiva, ora negativa. Trata-se de uma produção que se inscreve na mesma dimensão de
estudo do projeto que aqui apresento, prometendo enriquecer as reflexões em torno do tema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No artigo Política cultural no Brasil contemporâneo: percursos e desafios, de Jocastra
Bezerra e Rachel Weyne, publicado nos anais do IV Seminário Internacional de Políticas
Culturais (2013) da Fundação Casa de Rui Barbosa, as autoras apontam desafios presentes
nas atuais políticas públicas, apesar dos grandes avanços ao longo da recente década. Elas
discutem justamente a interação entre Estado e os novos agentes sociais (os detentores dos
saberes populares), e as exigências burocráticas e de gestão profissionalizante envolvidas que,
incidindo sobre as práticas e saberes culturais, caminhariam para uma indesejada ação
excludente e engessadora. Suas considerações se entrelaçam com a proposta de análise objeto
deste projeto, atuando como um estimulante para a pesquisa.
Bezerra e Weyne são incisivas nas suas recomendações quanto às políticas públicas
que, no seu entender, deveriam
readequar estratégias para que a dimensão criativa não seja moldada
pelo direcionismo e racionalidade política, pois esta diz respeito, sobretudo,

1035

V V
ao que não pode e não deve se ‘enquadrar’ em projetos, o que não deve ser
‘domesticado’ pela burocracia estatal.(BEZERRA e WEYNE, 2013, p.12)

Conhecer e analisar o processo de “alfabetização patrimonial” numa situação


mais específica como o estudo de caso aqui proposto, que focaliza a Folia de Reis do
município de Valença, poderá revelar novas perspectivas neste encontro entre o racionalismo
e o saber tradicional, e no potencial ou limites das atuais políticas públicas direcionadas ao
patrimônio cultural imaterial.

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em: 19 Nov 2014.

1037

V V
A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA MUNICIPAIS:
DEMOCRACIA, DIVERSIDADE E FINANCIAMENTO EM ANGRA DOS REIS/RJ
Martha Myrrha Ribeiro Soares1

RESUMO: O artigo pretende analisar o processo contemporâneo de elaboração de políticas


públicas de cultura no município de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, especialmente, a partir
do ano de 2007, quando a Fundação Cultural, a CULTUAR é criada, até os dias atuais, com a
finalidade de dar alicerce tanto para a construção do Plano Municipal de Cultura quanto do
Programa de Financiamento da Cultura e com a preocupação de lançar bases conceituais e
metodológicas para o avanço no desenvolvimento estratégico da cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura Pública, Democracia, Financiamento, Diversidade,


Planejamento.

INTRODUÇÃO
A construção de políticas públicas em municípios deve levar em consideração duas
facetas muito interessantes e comuns, a proximidade e o distanciamento do poder público nas
relações que ali se estabelecem, entre elas as dos campos econômico, político, social e
cultural.
O diagnóstico de gestão realizado a partir das noções acima citadas significa a escolha
de um caminho que se permite reflexivo e ativo para trabalhar as contradições conviventes de
uma cidade. Território de contrários, a cidade é tensa e diversa. Daí, o atual e moderno
entendimento da necessidade de ampliação dos mecanismos de participação da sociedade em
processos decisórios em prol do reconhecimento dos direitos e deveres do conjunto dos
cidadãos e, consequentemente, da diversidade existente entre os povos.
Esta perspectiva nos traz temas relevantes para a construção de políticas públicas para
a cultura baseada em princípios democráticos onde o acesso à cidadania está intimamente
relacionado ao exercício pleno dos direitos culturais. Isaura Botelho discute as questões da
democracia cultural e da cidadania estabelecendo que o acesso, em termos amplos ou
restritos, é um fator fundamental para a realização de escolhas, para o desenvolvimento da

1
Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense/UFF. MBA em Gestão Cultural
ABGC/UCAM. Seminário Permanente de Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio de Janeiro
COMCULTURA/UERJ/MinC. Atualmente, é Assessora de Fomento e Captação de Recursos da Fundação
Cultural do Município de Angra dos Reis. Foir Gerente de Preservação e Gestão de Acervos da mesma
instituição. É servidora pública estatutária da Prefeitura Municipal de Angra dos Reis, no cargo de Assistente de
Produção de Eventos, desde 2008. E-mail: marthamyrrha@gmail.com

1038

V V
vida cultural de uma comunidade e para a permanente criação. E, está em jogo todo o
patrimônio até agora produzido pela humanidade, afirma a autora.
Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos e estão presentes nos
textos da Constituição Federal Brasileira de 1988 (art. 215 e 216) e na Declaração Universal
sobre a Diversidade Cultural da UNESCO de 2001. E, o governo municipal ao assumir suas
responsabilidades culturais adquire maiores chances de definir diretrizes políticas mais
consistentes uma vez que partiria de uma análise mais profunda de seu próprio organismo
equilibrando aos poucos as desigualdades de acesso às necessidades básicas da população.
A pesquisadora Lia Calabre afirma que a cidade ou o município é um locus destacado
dentro da gestão pública, um lugar privilegiado para a construção de democracias de
proximidade, aproveitando a confluência da diversidade em um espaço geográfico
relativamente limitado (CALABRE, 2009).
Neste sentido, a obtenção de indicadores culturais para a gestão da cultura toma cada
vez maior relevância, pois, nos ajuda a compreender sobre “os conceitos de política e gestão
cultural com os quais as administrações municipais de cultura operam” 2. O Suplemento de
Cultura da Pesquisa Básica de Informações Municipais, a Munic, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) nos últimos anos nos trouxe dados sobre equipamentos
culturais, conselhos municipais de cultura e mais recentemente sobre as estruturas de gestão
da cultura no país e atividades artísticas e artesanais existentes nos municípios. Portanto, lê-lo
e analisá-lo, também, é deveras importante para pensarmos os rumos desta mesma gestão.
Para analisar, então, o processo de gestão e institucionalização da cultura no município
de Angra dos Reis é preciso levar em consideração as inúmeras perspectivas do campo
cultural com destaque especial para a análise dos resultados obtidos nas Conferencias que o
município foi capaz de realizar nos últimos vinte anos. As demandas das câmaras setoriais de
artes participantes nos fornecem nortes para o estudo e indagações sobre os caminhos que
vêm sendo traçado na cidade. A análise de todo esse material é fundamental para que um
controle social ocorra para ampliar cada vez mais os mecanismos de participação cidadã da
sociedade angrense. Para que se possa desenvolver, com mais chance de efetividade, um
plano municipal de cultura e um programa de financiamento que o sustente.
As fontes documentais observadas nesta pesquisa, à luz de toda a contextualização
apresentada, são o Estatuto da Fundação Cultural de Angra dos Reis, o Regimento Interno do
Conselho Municipal de Cultura, o plano diretor e a lei orgânica do município, leis
2
CALABRE, Lia. Profissionalização no campo da gestão pública da cultura nos municípios brasileiros: um
quadro contemporâneo. Observatório Itaú Cultural, vol. 06. 2008.

1039

V V
relacionados ao incentivo fiscal e fundo de cultura e as cartilhas e/ou atas produzidas ao final
de cada Conferencia de Cultura realizada, a contar da primeira, em 1993 até a última realizada
em 2013, que contém as deliberações tomadas ao final de cada uma delas.
O estudo pretende ainda produzir reflexões sobre as bases construídas nas
conferências de modo a contribuir e influenciar criticamente a tomada de decisões estratégicas
para o campo da cultura, pois, tanto a elaboração e desenvolvimento de um plano municipal
de cultura quanto a criação de um programa de financiamento específico devem estar atentos
ao mundo que o circula para que as dimensões simbólica, econômica e social estejam
contempladas.
A importância da divulgação destas dimensões está também em jogo quando há a
necessidade de maior investimento na qualificação profissional e na própria organização do
campo que, quando feitos, são ainda muito tímidos e insuficientes. O conhecimento das
questões referentes ao campo cultural é primordial para o profissional que atua neste mercado.
Localizar, portanto, a atuação da Fundação Cultural do Município de Angra dos Reis
neste contexto é muito importante para que sejam avaliados os instrumentos de gestão
utilizados na implementação de políticas culturais permitindo transparecer se as ações
executadas possuíram ou possuem alcance verdadeiramente municipal, ou seja, se abrangem
todo o território e não somente uma parcela da sociedade.

CONJUNTURA E ALGUNS DADOS SOBRE ANGRA DOS REIS


Um marco relevante na história recente do campo da cultura é a entrada dos institutos
de pesquisa e processamento de dados, como IBGE e IPEA, na produção e análise de
informações. A cultura passa a ser tratada como política pública uma vez que os dados
levantados expuseram a dura realidade da população brasileira no que tange o acesso a
mesma. A sistematização de informações de um setor amplia a visão do campo enquanto
estratégico para o desenvolvimento humano.
A cidade de Angra dos Reis, segundo fontes do IBGE, possui, hoje, 184.940
habitantes, já em 2009, população estimada era de 168.664, numa unidade territorial
aproximada de 825,082 Km². A evolução populacional, baseada nas pesquisas do CENSO nos
apresenta dados que demonstra o forte crescimento na densidade populacional na cidade: em
1991, o município possuía 85.571 habitantes, em 1996, são registrados 92.115 habitantes, em
2000, há um grande salto para 119.247 habitantes, em 2007, um novo salto, alcançado o
número de 148.476 de habitantes, e, em 2010, foram registrados 169.511 habitantes. Todavia,

1040

V V
com uma densidade de 205,45 hab/km², é possível compreender a razão de muitos conflitos
existentes na cidade, tal como a ocupação territorial desordenada e o aumento cada vez maior
da violência nos bairros da cidade.
Juca Ferreira, que inicia seu segundo mandato à frente do Ministro da Cultura, contou,
em entrevista dada ao jornal Le Monde Diplomatique, no início de 2010, que as estatísticas
apontam o Brasil como possuidor de uma das maiores taxas de desigualdade do mundo e que
é preciso estabelecer políticas de inclusão das pessoas com educação de qualidade para todos
e acesso pleno à cultura constituindo a base da república a partir de uma nova inserção do
Estado.
O projeto neoliberal, no entendimento do Ministro, significa a inviabilização do país,
pois, não trata da linguagem que intermédia todas as relações com o mundo e, portanto, da
produção simbólica e de significados. Sociedades que não possuem base de direitos e
oportunidades iguais sofrem com a exclusão econômica quando “até sobre o ponto de vista
capitalista da reprodução das mercadorias, é preciso incorporar as pessoas” (LE MONDE
DIPLOMATIQUE BRASIL, 2010).
O papel do Estado para o desenvolvimento da cultura é o de dar, segundo Juca,
“infraestrutura para que as pessoas tenham possibilidade de desenvolver seu potencial
humano” e com o mercado, o Estado não concorre, pois os interesses das iniciativas privadas
vislumbram metas lucrativas de alcance bastante visíveis.
A dimensão antropológica da cultura leva em consideração toda a vinda da interação
social dos indivíduos e toda a questão que envolve construção de identidades e alteridades. É
a dimensão da cultura que está em todos os aspectos da vida humana e, portanto, a mais
abrangente e, consequentemente, a que não pode ser de exclusiva responsabilidade do setor
cultural no aparato de governo.
Concomitante, a dimensão mais restrita da cultura nos apresenta e nos confronta com a
idéia de “organização do campo da cultura”, pois sua criação e posterior aplicação, advêm de
uma “produção elaborada com a intenção explicita de construir determinados sentidos e de
alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão”. Tem como fim
permitir e criar um “circuito organizacional” a fim de prover meios ao indivíduo, condições
de desenvolvimento e de aperfeiçoamento de seus talentos, da mesma forma que garantir
canais que lhe permitam expressá-los. (BOTELHO, 2006)
Fica claro, então, que elaborar um planejamento estratégico para gerir políticas
públicas permite antecipar problemas para assim buscar soluções cabíveis e em tempo. Uma

1041

V V
intervenção planejada significa o reconhecimento, por parte dos governantes, do papel
estratégico que a área tem no conjunto das necessidades da nação.

GESTÃO E INSTITUCIONALIDADE DA CULTURA EM ANGRA DOS REIS:


DIMENSÃO E METODOLOGIA DE ANÁLISE
A cultura, dentro da estrutura da administração pública da Prefeitura Municipal de
Angra dos Reis, até o fim do ano de 2007 funcionou como setor agregado à secretaria de
cultura, esporte e lazer do município. Devido à grande demanda do movimento cultural local,
por atenção exclusiva ao setor, foi criada a autarquia, Fundação Cultural de Angra dos Reis, a
partir da Lei Municipal nº 1.918, de 21 de dezembro de 2007, que teve seu estatuto aprovado
e publicado através do decreto municipal nº 5.513, de 02 de janeiro de 2008. Angra nas
últimas estatísticas levantadas pela Munic/IBGE passou a constar como um dos 145
municípios brasileiros que possuem, como órgão gestor de cultura, uma fundação específica
para a atuação na área.
No Estatuto ficam garantidas as diretrizes estabelecidas pelas Conferências Municipais
de Cultura já realizadas e as propostas aprovadas pelo Conselho Municipal de Cultura em
suas reuniões ordinárias e extraordinárias que devem projetar, planejar, coordenar, executar e
avaliar a política cultural do município com atividades que visem o desenvolvimento cultural.
Na construção de um diagnóstico adequado para a reflexão sobre o campo da gestão
cultural, deve ser levada em consideração a perspectiva empírica e a perspectiva teórica de
modo a propor um diálogo entre elas. A sugestão é trabalhar na observação do papel e da
relevância da cultura nos processos de desenvolvimento humano que inseridos nos debates
sobre os modelos de sociedade e de mundo valorizem a criatividade dos fazeres e saberes da
população.
Atualmente, falar em desenvolvimento se baseando somente em aspetos econômicos
para prover dignidade e bem-estar humanos não mais se aplica. A linearidade anteriormente
suposta não sustenta programas que exijam uma análise profunda dos recursos de um país
nem o modo como utilizá-los, afirma a economista Ana Carla Fonseca Reis.
Na busca de soluções alternativas para superar os percalços que se impõem, o
entendimento da cultura como instrumento de transmissão de idéias e valores, permite
configurá-la como bem simbólico provido de valor econômico capaz de “contribuir de modo
substancial para a pauta de fluxos nacionais e internacionais de bens e serviços do país”.3

3
Reis, Ana Carla Fonseca, p. 218. Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável. 2008.

1042

V V
Para a dimensão cultural, a observância da diversidade cultural e seus efeitos sobre a
coesão social caracterizam o desenvolvimento social percebido através da potência da cultura
de acordo com os canais de distribuição e acesso que solidificam recursos para o
desenvolvimento econômico da sociedade.
A título, então, da efetividade desta proposta de pesquisa, diagnosticar a realidade é
identificar algumas demandas sociais com o objetivo de se formular políticas públicas.
Portanto, para planejar as etapas que permitirão uma intervenção eficaz do Estado no sentido
de alterar o quadro atual, é essencial que sejam estudas as demandas surgidas nas conferencias
municipais de cultura e suas repercussões. Devem ser previstos meios de avaliar resultados de
forma a permitir a correção de rumos e a atualização permanente.
O que devemos avaliar? Como avaliar? É importante para todo e qualquer gestor
público de cultura lançar olhares antropológicos e ter habilidade para uma noção sistêmica do
funcionamento da administração pública. Com a criação do Sistema Nacional de Cultural, é
muito natural que este perfil seja cada vez mais exigido dos gestores de cultura do Brasil e, é,
realmente, preciso ficar atento, posto que, o atendimento às responsabilidades elencadas no
Acordo de Cooperação Federativa - assinado pelos governo federal e estados e municípios
brasileiros – são prerrogativas que colaboram com a aproximação do relacionamento entre os
entes federados, principalmente, em benefício de maiores repasses financeiros para execução
de projetos e programas culturais.

A LEI ORGÂNICA E O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO SOB OS


OLHARES DA CULTURA
No ordenamento jurídico brasileiro, a Lei Orgânica é a lei maior de um município e
tem por objetivo estabelecer diretrizes para o funcionamento de cada categoria que compõe o
poder público municipal. É neste texto que encontramos informações sobre as competências
do governo municipal para a organização e definição de políticas públicas. Daí a importância
de analisá-la sob os olhares da cultura a fim de identificar os pontos que abordam o tema
direta ou transversalmente.
Logo no início da redação são definidas as competências do município junto com a
União e o Estado. E, compete à cidade de Angra dos Reis promover os meios de acesso à
educação, a cultura, à ciência e aos desportos e proteger os documentos, as obras e outros

1043

V V
bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais e os sítios
arqueológicos.4
No corpo da legislação é possível observar diversas atribuições relativas direta ou
indiretamente à cultura, porém, fora do capítulo específico que lhe é especialmente dedicado,
Da Política Cultural que será adiante exposto.
O capítulo III trata especificamente da Política Cultural para o município de Angra dos
Reis e nos três únicos artigos que abordam o tema ficam asseguradas as seguintes decisões:
A criação e manutenção pelo Poder Executivo de escola municipal de música, com
sede no Município, objetivando o ensino da arte musical, inclusive a menores interessados e a
formação da banda de música do Município, na forma que a lei dispuser. 5
Que os danos e ameaças ao patrimônio histórico artístico e cultural serão punidos na
forma da lei. 6
E, que o Poder Executivo criará e manterá um centro cultural objetivando o ensino da
arte musical, teatro, dança e artes plásticas.7
Outro ponto interessante na leitura da lei é a decisão de criação e manutenção do
Museu Municipal8 por recursos próprios ou sob forma de convênio. O Museu de Arte Sacra
de Angra dos Reis, foi criado, em 1992, dois anos após o estabelecimento da Lei Orgânica e
funciona, desde então, na Igreja de Nossa Senhora da Lapa e Boa Morte, construção de 1752,
tombada pelo IPHAN em 01/12/1954, no Livro de Belas Artes, nº 421, Processo 432-T-50.9
Dos tributos instituídos e pertencentes ao município, somente o IPTU e o ISS são
bases para arrecadação de recursos para a cultura mediante a Lei de Incentivo à Cultura e ao
Esporte, criada em 2007. Ainda no tema tributário é importante ressaltar que “às livrarias e
bancas de jornais, instaladas no Município, para venda exclusiva de livros, revistas e jornais,
fica assegurada isenção de pagamento de ISS e de renovação, de alvará de localização”.10
No que diz respeito ao registro das atividades da administração municipal 11, é curioso,
pois a lei que aponta os livros de registro que ela deve, obrigatoriamente, possuir, consta
dentre eles, a existência do Livro de Tombamento de Bens Imóveis, porém, o decreto de
tombamento que existia foi revogado e, hoje, não há legislação que proteja tais iniciativas. O
4
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Incisos II e III. Artigo 12. De 04 de abril de 1990.
5
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 251. De 04 de abril de 1990.
6
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 252. De 04 de abril de 1990.
7
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 253. De 04 de abril de 1990.
8
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Inciso XXIII. Atr. 13. De 04 de abril de 1990.
9
Sítio eletrônico da Fundação Cultural de Angra dos Reis: www.cultuar.angra.rj.gov.br
10
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 29. Dos tributos. Seção IV. De 04 de abril de 1990.
11
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 131, capítulo V, dos atos municipais, título II, Da
Administração Municipal, Finanças e Orçamento inciso XII.

1044

V V
Livro do Tombo Angrense seria rubricado e encerrado pelo Prefeito e pelo Presidente da
Câmara, conforme o caso, ou por funcionário designado para tal fim, ficando aberto a
consultas de qualquer cidadão, bastando para tanto, a apresentação de requerimento.
No Plano Diretor, analisando, então, o item III das diretrizes para a Política Ambiental
e Cultural, nos deparamos com a responsabilidade de
estabelecer uma legislação específica que permita instituir o
tombamento de bens naturais ou artificiais, componentes do
patrimônio cultural e ambiental do Município, conforme sua
relevância para os aspectos culturais, artísticos, históricos e
paisagísticos da comunidade angrense e criar condições para a
reprodução e manutenção dos traços culturais da população expressos
fisicamente no território do Município (PLANO DIRETOR, 2006).

e que vai ao encontro da proposta da criação do Livro do Tombo de Angra de maneira


a dar início a uma organização mínima que possa garantir o aumento dos mecanismos de
salvaguarda do patrimônio histórico e artístico angrense.
A fim de desenvolver as funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de sua
população, a política urbana do município de acordo com o Plano Diretor prevê a
preservação, a proteção e a recuperação do patrimônio ambiental e cultural12, inclusive
criando áreas de especial interesse urbanístico, social, cultural, ambiental, turístico e de
utilização pública13.
Ainda na Lei Orgânica, os transportes municipais estão subordinados à proteção do
meio ambiente, do patrimônio arquitetônico e paisagístico e à topografia da região,
respeitadas as diretrizes de uso do solo para atender as necessidades de deslocamento da
população, no exercício do direito de ir e vir de todos os cidadãos.14
Ressalto que a comunidade indígena Guaraní Nãndéva do Bracuí também é pauta da
lei orgânica de Angra dos Reis que garante o reconhecimento e a preservação de sua
organização social, costumes, língua, crença e tradições, e dos direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, sua demarcação, proteção e o respeito a todos os seus
bens, obedecendo ao que dispõe as Constituições Federal e Estadual.15
Na relação com a educação é importante estar atento que o estudo da história,
geografia e economia do Município, a história dos índios e dos negros da região e noções de

12
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 180 e 181. CAPÍTULO II. DA POLÍTICA URBANA.
13
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 183. CAPÍTULO II. DA POLÍTICA URBANA.
14
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 212. CAPÍTULO VI..DOS TRANSPORTES
MUNICIPAIS.
15
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 271. CAPÍTULO VII. DO ÍNDIO.

1045

V V
cidadania, (Constituição Federal, Constituição Estadual e especialmente a Lei Orgânica
Municipal) são itens já inclusos no currículo escolar da rede de ensino municipal e que
precisam do engajamento do campo da cultura para fortalecer a difusão destes conteúdos.16
Nas disposições finais e transitórias no artigo 328, o turismo cultural surge como
fator de desenvolvimento econômico e integração social, bem como de divulgação,
valorização e preservação do patrimônio cultural e natural, cuidando para que sejam
respeitadas as peculiaridades locais, não permitindo efeitos desagregadores sobre a vida das
comunidades envolvidas, assegurando sempre o respeito ao meio ambiente e à cultura das
localidades onde vier a ser explorado (PLANO DIRETOR DE ANGRA DOS REIS, 2006).

A Câmara Municipal de Angra dos Reis – CMAR, em 2011, realizou o


Seminário de Revisão da Lei Orgânica da cidade. Estavam unidos no mesmo grupo,
educação, cultura e esporte e, o compromisso era que cada setor apresentasse uma proposta de
reformulação do texto da lei. A cultura apresentou e aprovou a supressão de alguns artigos e
nova redação do capítulo DA POLITICA CULTURAL de modo a afirmar os direitos
culturais dos cidadãos, de preservar e conservar seu patrimônio histórico seja ela material ou
imaterial e, por fim, estabelecer o Sistema Municipal de Cultura, seus instrumentos de gestão.
Ainda sem desfecho, é aguardado o encaminhamento da proposta para alteração na lei maior
do município.

OS ESPAÇOS DE DEBATE E DELIBERAÇÃO DE DIRETRIZES PARA


POLÍTICAS CULTURAIS

1. O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA


O Conselho Municipal de Cultura de Angra dos Reis foi criado em 1974, no governo
de Toscano de Brito e, após longos anos de inatividade é retomado através da Lei Municipal
nº 343/L.O., de 17 de março de 1994, alterada pela 1.731/L.O. de 30 de outubro de 2006.
Atualmente, o compõe-se de onze câmaras setoriais de artes, artes plásticas, patrimônio
histórico e artístico, fotografia, teatro, dança, artesanato, folclore, música, afro, literatura e
estudantes, todas com um representante titular e seu respectivo suplente. As eleições para
ocupar as funções de conselheiros são parte das finalidades das Conferências Municipais de
Cultura que devem acontecer a cada dois anos.
Por definição do capítulo XI da lei orgânica,

16
Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis. Artigo 236. CAPÍTULO II DA POLÍTICA EDUCACIONAL.

1046

V V
os Conselhos Municipais são órgãos de cooperação
governamental que tem por finalidade, auxiliar a administração no
planejamento, interpretação e julgamento de matéria de sua
competência e a função de Conselheiro constitui serviço público
relevante e será exercida sem ônus para o Município (LEI
ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE ANGRA DOS REIS, 1990).

E, de acordo com o Regimento Interno, o Conselho Municipal de Cultura de Angra


dos Reis tem por finalidade contribuir para a elevação e difusão da Cultura em Angra dos
Reis.

2. AS CONFERÊNCIAS MUNICIPAIS DE CULTURA


Em Angra dos Reis, no período de 1993 a 2013, aconteceram oito conferências
municipais de cultura e, à exceção da terceira edição, foram encontrados os relatórios finais
produzidos em cada uma delas e que poderão ter aqui suas deliberações observadas à luz do
desenvolvimento ou não de ações direcionadas para contemplá-las. A primeira conferência
aconteceu em 1993, nos dias 27, 28 e 29 de agosto, no Convento São Bernardino de Sena,
patrimônio histórico da cidade. A segunda aconteceu em 1995, nos dias 04 e 05 de novembro
igualmente no São Bernardino. A quarta conferência aconteceu em 2006, no hotel Angra Inn,
a quinta conferência em 2008, no Centro Cultural Theophilo Massad, a sexta conferência, em
2009, nos dias 23 e 24 de outubro, no mesmo local, a sétima, em janeiro de 2011 e a oitava e
14 de julho de 2013 conforme prazo final determinado pela convocatória, feita pelo
Ministério da Cultura, para participação na III Conferência Nacional de Cultura, realizada em
novembro do mesmo ano, na capital do país, Brasília.
Através das cartilhas de diretrizes ou atas de plenárias finais, de cada conferência, é
possível identificar a criação de câmaras setoriais, assim como, o desaparecimento de outras
no decorrer dos anos. É notável de igual modo a repetição de muitas diretrizes colocadas por
algumas câmaras setoriais de uma conferência para outra, nos sugerindo que o poder público
tem graves dificuldades em elaborar metas e ações capazes de responder, ao menos, em médio
prazo, as demandas da sociedade civil pela organização do campo.
Na I Conferência Municipal de Cultura, de 1993, verificamos a presença de oito
câmaras setoriais de artes - artes plásticas, dança, folclore, literatura, música, teatro, produção
cultural e patrimônio cultural, a II Conferencia, de 1995, apresentou algumas alterações ao
acrescer duas novas câmaras setoriais, como a de artesanato e a afro-brasileira ambas saídas
de dentro da setorial de folclore, sendo assim, demonstrando o fortalecimento desses setores

1047

V V
verificamos, agora, dez câmaras setoriais: artes plásticas, dança, folclore, artesanato, afro-
brasileiro, literatura, música, teatro, patrimônio cultural, produção cultural. Da III Conferencia
Municipal de Cultura não foram localizados documentos. Em 2006, aconteceu a IV
Conferencia Municipal de Cultura que também apresentou mudanças sendo criadas as
câmaras setoriais de fotografia e de estudantes, além disso, as câmaras setoriais de teatro e
patrimônio cultural passaram a intitular-se câmara setorial de artes cênicas e de câmara
setorial de patrimônio-histórico. Deste modo, a IV CMC apresentou dez câmaras setoriais
uma vez que não houve inscrições para o setor de folclore, compuseram a conferência as
câmaras de artes plásticas, artesanato, artes cênicas, literatura, fotografia, afro-brasileiro,
dança, estudante, música e patrimônio histórico. Na V Conferencia Municipal de Cultura, em
2008, a setorial de folclore retorna com a representação e onze câmaras setoriais se fazem
presentes. A V Conferência apresentou demandas que podem se agrupar em três grandes
grupos: organização e gestão da cultura; difusão e intercâmbio cultural e financiamento e
economia da cultura.
Já a VI Conferencia Municipal de Cultura, de 2009, aconteceu para cumprir as
orientações do Ministério da Cultura a fim de definir diretrizes para a construção de políticas
públicas culturais que culminaram na recente realizada II Conferencia Nacional de Cultura,
logo, diferente de todas as outras conferências, as propostas foram feitas a partir de cinco
eixos sugeridos pelo MinC: Produção Simbólica e Diversidade Cultural, Cultura, Cidade e
Cidadania, Cultura e Desenvolvimento Sustentável, Cultura e Economia Criativa, Gestão e
institucionalidade da Cultura. Cabendo lembrar que neste ano as inscrições foram realizadas
de acordo com os eixos temáticos propostos, portanto, esta conferência em especial não gerou
demandas específicas de setores das artes, mas, sim, propostas transversais donde as diversas
manifestações culturais puderam dialogar com o objetivo maior de debater e trazer soluções
criativas para o desenvolvimento da cultura na cidade.
A VII Conferência, ocorrida em 2011, aconteceu nos moldes tradicionais nas quais as
câmaras setoriais se reuniram e definiram suas prioridades. Mais recentemente, foi realizada a
VIII Conferência Municipal de Cultura, realizada na Casa Larangeiras, e que teve a maior
complexidade, uma vez que promoveu reuniões setoriais para debater suas demandas de
acordo com os eixos temáticos que estavam sendo propostos pela convocatória do Ministério
da Cultura, ou seja, formação e qualificação profissional; promoção e divulgação do
conhecimento; financiamento à cultura; e, gestão e institucionalidade da cultura. Para além de
ter tido o compromisso de eleger seus conselheiros municipais por um mandato de dois anos e

1048

V V
delegados para a participação na Conferência Estadual e, posteriormente, da Conferência
Nacional.
Na análise da gama de propostas que, em plenária, cada câmara setorial de arte propôs,
a reflexão sobre a organização da cultura é tema latente, e, como nos sugere Antônio Albino
Rubim17 é determinante para definir as atribuições dos três principais perfis profissionais de
atuação direta na cultura, dentre eles os cargos da esfera executiva nacional e locais (estaduais
e municipais) que formulam e implementam as políticas culturais e, as funções de gestores e
produtores, os que fazem valer as diretrizes tirando-lhes o melhor efeito, de modo a associar o
primeiro a um “maestro” de projetos permanentes de cultura e o segundo com projetos mais
focados, descontinuados no tempo, dentro ou fora da esfera governamental. Esta pontuação de
idéias caminha com a crítica que o autor faz no que diz respeito à ênfase dada em leis de
incentivo como a Rouanet no país donde o papel desempenhado do produtor cultural
substituiu o do gestor por priorizar o atendimento ao mercado. Em contrapartida, deve haver
uma política cultural a organizar a produção brasileira.
Outro ponto recorrente nas propostas apresentadas nas conferências é quanto a gestão
cultural onde a formação adequada vem sendo exigida. Dentre as inúmeras atribuições
conferidas ao gestor de cultura, segundo a pesquisadora Maria Helena Cunha, ter a
sensibilidade para entender uma manifestação artística e cultural é primordial. Em seguida,
ganha espaço a visão estratégica da cadeia produtiva cultural específica do trabalho que será
realizado. Planejamento e raciocínio de longo prazo são premissas inseparáveis de um gestor
e trabalhar em articulação com o produtor cultural é diferencial, uma vez que, em contraponto
ao pensamento de Albino Rubim, a autora considera o produtor cultural estar não só ligado a
eventos pontuais, mas, também, a projetos de longa duração, fornecendo suporte à ação
planejada da gestão.
Unânime, sim, é a demanda pela construção do Plano Municipal de Cultura capaz de
orientar a partir de diretrizes, elaboradas coletivamente nos processos de participação social,
os rumos das governanças que pela Fundação Cultural de Angra dos Reis seguem. E, neste
sentido, a complexidade do campo da cultura, agravada pela enorme desigualdade social do
país, nos insere, de acordo com Calabre18, num contexto de difícil implementação de projetos

17
RUBIM, Antonio Albino Canelas. Formação e organização da cultura no Brasil. Observatório Itaú Cultural.
Vol 06. 2008.
18
CALABRE, LIA. Gestão cultural, participação social e direitos no campo da cultura: considerações
preliminares. Setor de Estudos de Política Cultural. Fundação Casa de Rui Barbosa. Ministério da Cultura. P.
41-43. 2006.

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V V
nacionais que sejam capazes de abrigar as inúmeras demandas surgidas nos processos de
realização de conferências locais de cultura. Para tal, dispor de melhorias ao acesso às
informações sobre a administração pública federal é fundamental para que o relacionamento,
de gestores, classe artística e sociedade civil, ganhe vulto.

A LEI DE INCENTIVO À CULTURA E AO ESPORTE E O FUNDO


MUNICIPAL DE CULTURA
Nas últimas décadas, no Brasil, em especial dos anos 1990 para cá, inúmeras foram as
transformações ocorridas no que diz respeito à participação do Estado no fomento e incentivo
à cultura no país. A já velha conhecida Lei Rouanet, criada em 1992, num contexto político
no qual o ideário neoliberal se impunha no país, afastava o Estado tanto da mediação quanto
da ação cultural direta deslocando a decisão sobre o que se financiar para a iniciativa privada
que, através da concessão de benefícios fiscais, movimentou e movimenta, até hoje, a
economia da cultura no Brasil.
No entanto, este mecanismo de acesso aos recursos públicos, ao longo desses anos,
recebeu severas críticas devido às conseqüências de sua aplicação, inclusive, à sua
incapacidade de promover uma democrática distribuição de recursos que garantisse a
inovação e manutenção das manifestações culturais brasileiras mais diversas. Portanto, se
vimos passando por mudanças na legislação cultural muito significa que, para além do
modelo neoliberal não se aplicar ao respeito às diferenças entre os povos, significa, também,
que outros olhares passaram a ser lançados sobre a organização, ampliação e democratização
do acesso aos recursos da cultura e, claro, ao próprio aumento destes recursos.
O panorama, entretanto, inspirou estados e municípios a seguir o modelo que se
mantinha e ainda se mantém pela lógica de mercado. E, a partir daqui, inicio uma análise mais
focada na experiência do município de Angra dos Reis, sem perder de vista, é claro, a
experiência do Estado do Rio de Janeiro.
Em 1991, o Fundo Municipal de Cultura é inserido na Lei maior de Angra dos Reis,
com nova redação dada ao artigo nº. 289, de acordo com Emenda nº 03, que autoriza “a
criação, por lei de iniciativa do Poder Executivo, a criação dos seguintes fundos de natureza
contábil e financeira”. Somente em 2007, junto com a criação da órgão gestor de cultura da
cidade, a CULTUAR, é lançada uma lei que tratava do incentivo à cultura e, também, ao
esporte, uma vez que, antes as pastas funcionavam dentro da mesma secretaria. Esta lei,
entretanto, não se tratava de um fundo e, sim, seguia os impulsos nacionais e estaduais que
apostavam todas as fichas no patrocínio indireto, com concessão de benefícios fiscais para

1050

V V
empresas interessadas em investir no setor em favor de visibilidade de suas marcas e
atendimento de seus públicos consumidores. Fica criada, então, a lei 1.919, em 27 de
dezembro de 2007 e, em seguida, o decreto 5.588 que a regulamente, em 2008. Este corpo
legislativo, cria a Comissão Municipal de Incentivo à Cultura e ao Esporte, que tem uma
composição diversa, contando com membros da cultura e do esporte, assim como, da
controladoria-geral do município e da secretaria de fazenda. O regimento desta comissão só
foi publicado, em 2011, através de portaria, com o objetivo de estabelecer novos critérios de
análise de projetos culturais ou esportivos.
Ainda em 2011, é publicada a lei que cria o Fundo Municipal de Cultura se
regulamentação. Em 2013, é publicada uma regulamentação e uma composição de comitê
gestor de fundo que posteriormente foi publicado sem efeito em Boletim Oficial do
Município. Atualmente, foi elaborado, junto com servidores e sociedade civil, a proposta de
implementação do Programa de Financiamento da Cultura [e do Esporte] que está em
processo de análise jurídica e tributária para os devidos ajustes. Em seguida, o trabalho
continua com a ampliação do debate com vereadores e sociedade civil para, enfim, alcançar a
aprovação da proposta.
Muitas são as mudanças esperadas, dentre elas a introdução das dimensões culturais –
simbólica, econômica e cidadã – na análise dos projetos culturais, a valorização do fundo
como elemento capaz de prover o mais democrático meio de acesso às verbas para o fomento
das manifestações artísticas e culturais na cidade, o estímulo da participação dos
contribuintes, o estabelecimento de contrapartidas de interesse social, e, acima de tudo, a
criação de um sistema retroalimentável e, portanto, viável e sustentável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BOTELHO, Isaura “Para uma discussão sobre política e gestão cultural” de, in Oficinas do Sistema
nacional de Cultura. 2006.

CALABRE, Lia. Políticas Culturais - Situação Nacional e Contrapontos Latino-Americanos. In


Economia da Cultura - Idéias e vivências. Org. Ana Carla Fonseca Reis e Kátia de Marco. Editora e-
livre. 2009.

CERTEAU, Michel de. A cultura no Plural. São Paulo: Papirus. 1995.

CALABRE, LIA. (org.) Políticas Culturais: reflexões e ações/– São Paulo: Itaú Cultural; Rio de
Janeiro: Fundação Cada de Rui Barbosa, 2009.

REIS E MARCO, Ana Carla Fonseca e Kátia de. Economia da Cultura: idéias e vivências/
(organizadoras). – Rio de Janeiro: Publit, 2009.

1051

V V
WU, Chin-Tao. Privatização da Cultura: a intervenção corporativa nas artes desde os anos 1980. São
Paulo: Boitempo, 2006.

RUBIM, Antonio Albino Canelas. Formação e organização da cultura no Brasil. Observatório Itaú
Cultural. Vol. 06. 2008.

REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável. 2008.

CALABRE, LIA. Gestão cultural, participação social e direitos no campo da cultura: considerações
preliminares. Setor de Estudos de Política Cultural. Fundação Casa de Rui Barbosa. Ministério da
Cultura. 2006.

CALABRE, LIA. (org.) Políticas Culturais: reflexões sobre gestão, processos participativos e
desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2009.

1052

V V
BIBLIOTECA ACESSÍVEL: POLÍTICA DE CULTURA
PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL
Mércia Carvalho Andrade1
Patrícia Dorneles2
Marina Helena Chaves Silva3

RESUMO: Neste artigo, buscamos refletir sobre a acessibilidade cultural, conceito que ainda
está em construção no Brasil. Constituiu o nosso principal foco o acesso das pessoas com
deficiência visual à leitura e, consequentemente, às bibliotecas públicas. No primeiro
momento fazemos um recorte do movimento de luta das pessoas com deficiência e elencamos
a trajetória das políticas públicas para garantia dos direitos sociais e culturais, apontando os
artigos específicos de leis promulgadas que visam garantir os direitos conquistados na
Constituição Federal de 1988. Em seguida, levantamos algumas indagações sobre a leitura e
os recursos que possibilitam o acesso das pessoas com deficiência visual no universo da
informação e conhecimento. Dentro dessa perspectiva, elegemos a biblioteca como um espaço
que pode e deve se utilizar da tecnologia assistiva para propiciar a acessibilidade cultural para
esse público.

PALAVRAS–CHAVE: Políticas Culturais, Acessibilidade, Bibliotecas, Leitura, Tecnologia


Assistiva.

INTRODUÇÃO
Há registro de que a luta pelos direitos das pessoas com deficiência no Brasil começou
a partir de 1970, num contexto de enfraquecimento do regime militar e, consequentemente, de
abertura política. Nessa época, as mobilizações sociais constituídas por pessoas com
deficiência, seus familiares e instituições que atuam nessa área passam a criar movimentos
reivindicatórios em defesa dos seus direitos por cidadania e respeito, ganhando visibilidade e
tornando-se “agentes políticos na busca por transformação da sociedade, construindo com
muita luta embates políticos que culminaram com importantes conquistas” (Brasil, 2010,
pag.10).
Com essas conquistas declaradas e garantidas na carta magna as pessoas com
deficiência continuam em luta pela aplicabilidade desses direitos que se concretizam nas

1
Especialista em Acessibilidade Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do
Memorial Régis Pacheco, espaço pertencente à Secretaria de Cultura de Vitória da Conquista na Bahia. Email:
merciapab@gmail.com
2
Doutora em Geografia, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, coordenadora do curso de
especialização em Acessibilidade Cultural promovido pela UFRJ, em convênio com o Ministério da Cultura.
Email: patrícia.dorneles.u frj@gmail.com
3
Doutora em História e especialista em Acessibilidade Cultural pela Universidade Federal da Bahia; professora
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié. Email: mhcsilva@uesb.edu.br

1053

V V
políticas públicas, tema que vamos discorrer ao longo desse artigo, dando destaque à questão
da acessibilidade nas bibliotecas públicas4.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA –


TRAJETÓRIA HISTÓRICA
A década de 1980 foi a mais significativa para esses movimentos a partir dos
preparativos para o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência e ao mesmo tempo, com a
primeira reunião de entidades representativas, na qual participaram pessoas cegas, surdas,
com hanseníase e com deficiência física de diversos estados brasileiros, com o lema
“Participação Plena e igualdade” pela libertação da tutela do Estado e das instituições
(Jannuzzi, 2004).
Durante a construção e aprovação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988),
as pessoas com deficiência tiveram uma participação marcante no debate sobre suas
demandas e reivindicações. O movimento se articulou de Norte a Sul e elaborou uma pauta de
reivindicações que tratava de questões de saúde, trabalho, educação e acessibilidade.
Conforme afirma Pereira (apud GRAEFF et al., 2013, p. 7):
...foi possível detectar o aparecimento de novos sujeitos ou titulares
de direitos cujas garantias legais se especificam guiadas pelo critério das
diferenças concretas que distinguem esses sujeitos entre si, tais como:
idosos, crianças, mulheres, pessoas com deficiências, gerações futuras.

Foram esses sujeitos que tiveram um protagonismo decisivo na garantia dos seus
direitos e cidadania, incorporando “valores, símbolos e significados, num jogo de interação e
reciprocidade entre o instituído e o instituinte.” (GOHN, 2005, p. 19).
Consubstanciando o ativismo das pessoas com deficiência, durante o processo da
promulgação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), as propostas desse segmento
não foram contempladas de forma clara e com a devida importância, isto provocou a
realização de uma grande campanha de apoio para recolher 30 mil assinaturas para garantir
junto à Assembleia Constituinte à revisão do projeto da Constituição que atendesse a contento
as propostas do movimento:
A Emenda Popular n° PE00086-5 foi submetida à ANC sob a
responsabilidade de três organizações do movimento das pessoas com
deficiência, a Onedef, o Movimento de Defesa das Pessoas Portadoras de
Deficiência (MDPD) e a Associação Nacional dos Ostomizados, e contou
com 32.899 assinaturas. A proposta continha 14 artigos sugerindo alterações
4
Esse artigo foi extraído e adaptado do Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Acessibilidade
Cultural, turma 1 (2013-2014), intitulado Implementação de Políticas de Acessibilidade de Pessoas com
Deficiência à Leitura na Biblioteca Municipal José de Sã Nunes, Vitória da Conquista-BA.

1054

V V
no projeto da Constituição, onde coubessem temas como igualdade de
direitos, discriminação, acessibilidade, trabalho, prevenção de deficiências,
habilitação e reabilitação, direito à informação, educação básica e
profissionalizante. (BRASIL, 2010, p. 68).

Dentre os direitos sociais estão agregados os direitos culturais que envolvem desde
proteção do patrimônio cultural; à produção, promoção, difusão e acesso democrático aos bens
culturais, à proteção dos direitos autorais e à valorização da diversidade cultural. Essas
conquistas foram fixadas no art. 215 da Constituição da República Federativa do Brasil,
conforme enunciado a seguir, atribuindo-se ao Estado a responsabilidade de assegurar à
sociedade o acesso aos bens culturais: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão
das manifestações culturais” (BRASIL, 1988).
Como vimos, a cultura é um direito que deve ser garantido a todos, mas não é isso o que
se observa no que diz respeito às pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida. Apesar da
ampliação da oferta de equipamentos culturais, quase nada é pensado para facilitar o livre acesso
a estas pessoas. Neste sentido, foi necessário regulamentar mediante dispositivo legal a
obrigatoriedade de realizar adaptação em espaços já existentes e a definição de normas de
acessibilidade a serem observadas em novas edificações (BRASIL, Lei nº 10.098/2000).
No entanto, desde a promulgação da Constituição até a regulamentação da Lei 10.098/
2000, temos um intervalo de 12 anos e, pouco se tem avançado nesta área. Os dispositivos legais
desta lei deram uma abrangência maior ao princípio da acessibilidade, entendida como a
necessidade de contemplar: “[...] possibilidade e condições de alcance para utilização, com
segurança e autonomia, dos espaços, mobiliário e equipamentos urbanos, das edificações, dos
transportes e dos sistemas e meios de comunicação por pessoas com deficiência ou com
mobilidade reduzida” (Brasil, 2000).
Ainda que se observe alterações citadas na lei em relação às transformações dos
espaços urbanos, instituições públicas e privadas que evidenciam o cumprimento da
acessibilidade, ainda há muito o que se fazer tanto no Brasil como em outros países do
mundo.
Vale ressaltar que o sentido de acessibilidade extrapola a concepção do direito de estar
em algum lugar, de circular ou se movimentar de uma via pública para outra. Barrozo et. al.
2012 p.18, são enfáticos ao apresentar o significado deste conceito: “Acessibilidade não é
somente a possibilidade de entrar em um ambiente, mas é o direito de participar ativamente
no meio social. Trata-se de cidadania e inclusão social”, que se “caracteriza como ‘a

1055

V V
participação ativa nos vários grupos de convivência social’” (MAZZOTA E D’ ANTINO
apud BARROZO et al. 2012, p. 18; 21).
Foi a partir desta discussão que foram intensificados os movimentos de pessoas com
deficiência, seus familiares, representantes de instituições não-governamentais e estudiosos. O
marco desse processo foi a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD), promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em
2006. Esta convenção refere-se a um tratado de direitos humanos que foi ratificado pelo poder
executivo, mediante Decreto Federal nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 (BRASIL, 2009), com
equivalência de emenda constitucional.

A CDPD E AS POLÍTICAS DE ACESSO À CULTURA PARA PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA
Sobre o direito das pessoas com deficiência de participar ativamente da vida cultural,
estabelecido no Artigo 30 da CDPD (BRASIL, 2009), devemos salientar que é impossível
ignorar as interrelações existentes entre ele e os demais artigos da convenção. Vejamos então,
o que preconiza esse dispositivo legal:
Os Estadas Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência
a participar na vida cultural, na base de igualdade com as demais pessoas, e
deverão tomar todas as medidas apropriadas para que as pessoas com
deficiência possam:
a. Usufruir o acesso a materiais culturais em formatos acessíveis;
b. Usufruir o acesso a programas de televisão, filmes, teatros e
outras atividades culturais, em formatos acessíveis; e
c. Acesso a locais de eventos ou serviços culturais, tais como teatros,
museus, cinemas, bibliotecas e serviços turísticos, bem como, tanto quando
possível, a monumentos e locais de importância cultural nacional;
2. Os Estados Partes deverão tomar medidas apropriadas para
permitir que as pessoas com deficiência tenham a oportunidade de
desenvolver e utilizar seu potencial criativo, artístico e intelectual, não
somente em benefício próprio, mas também para o enriquecimento da
sociedade.
3. Os Estadas Partes deverão tomar as providências, em
conformidade com o direito Internacional, para assegurar que a legislação de
proteção dos direitos de propriedade intelectual não constitua uma barreira
injustificável ou discriminatória ao acesso de pessoas com deficiência a
matérias culturais.

Após os avanços da CDPD/2009, observamos outro movimento sobre as políticas, no


que concerne às novas ações. Apresenta-se o “Plano Viver sem Limites”, instituído pelo
Decreto nº 7.612 de 17 de novembro de 2011 (BRASIL, 2011), o qual
...se constitui num conjunto de ações estruturadas em quatro eixos acesso à educação, inclusão
social, atenção à saúde e acessibilidade, com a finalidade de promover, por meio da integração e

1056

V V
articulação de políticas, programas e ações, o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com
deficiência, nos termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com deficiência.5

Segundo o IBGE de 2010, havia no Brasil cerca de 45,6 milhões de pessoas com
alguma deficiência e esse quantitativo representava 23,91% da população. Com o
lançamento do Plano Viver sem Limites, o governo brasileiro busca preencher uma lacuna na
história desse grupo social que vem lutando pela concretização dos seus direitos declarados e
garantidos nas legislações brasileiras.
Para além das leis e suas implicações, as barreiras existentes na sociedade contra as
pessoas com deficiência são gritantes e, foram historicamente construídas com base numa
concepção de normalidade que encontrara amparo na ciência médica e nas concepções de
ordem religiosa. Conforme Diniz; Barbosa; Santos (2009, s/p):
A deficiência já foi tida como drama pessoal ou familiar, com
explicações religiosas que a aproximaram ora do infortúnio, ora da benção
divina em quase todas as sociedades. Contestação da narrativa mística e
religiosa pela narrativa biomédica foi recebida como um passo importante
para a garantia da igualdade. As causas dos impedimentos não estariam mais
no pecado, na culpa ou no azar, mas na genética, na embriologia, nas
doenças degenerativas, nos acidentes de trânsito ou no envelhecimento [...]
O desafio, agora, está em recusar a descrição de um corpo com
impedimentos como anormal. A normalidade é um julgamento estético e,
portanto, um valor moral sobre os estilos de vida, não resultado de um
catálogo universal sobre os corpos com impedimentos.

Essa concepção de anormalidade trouxe consequências desastrosas para as pessoas


com deficiência: o preconceito e as práticas discriminatórias com reflexos em todas as esferas
das relações intersubjetivas, inclusive no âmbito da cultura. Como as pessoas com deficiência
visual podem superar esses obstáculos? Se nos determos apenas aos direitos culturais,
veremos que os mesmos sempre estiveram restritos a uma minoria, sendo, portanto, elitista.
Para as pessoas com deficiência eram considerados prioritários o acesso à saúde e a educação;
a cultura estava em plano secundário ou inexistente.
O artigo de Graeff et al. (2013, p. 133) nos permite pensar na inclusão e na
acessibilidade para além da questão de mobilidade ou da obrigatoriedade, mas incorporá-las
como algo necessário e comum para a integração de todos,

...onde as diferenças sejam parte integrante do cotidiano da


sociedade, criando uma visão automática no desenvolvimento de ações e
estruturas acessíveis em uma sociedade democrática e completamente
inclusiva, independente de capacidades físicas, intelectuais, econômicas ou
sociais.

5
Disponivel em: <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/viver-sem-limite-0>. Acesso em: 08 mar. 2014.

1057

V V
Somente a partir de 2003, no governo de Luís Inácio Lula da Silva, a cultura passou a
ser pensada como direito social básico, ou seja, no mesmo nível da saúde, assistência social e
educação (DORNELES, 2011, p.111). Foi nesse momento que o Ministério da Cultura
convocou a sociedade civil para discutir e pensar os novos rumos para o campo da cultura,
dando início ao longo processo de formulação do novo Plano Nacional de Cultura. Segundo
Coutinho (apud GRAEFF et. al., 2013, p. 126):
Retoma-se, então, o desafio de uma radical inversão de tendência no
campo da cultura, onde seja possível a criação de situações “na qual os
organismos de difusão cultural sejam apropriados coletivamente pela
comunidade (...) e, para que possamos chegar a isso, a luta pela
democratização da cultura pode e deve obter ganhos parciais de grande
importância e significação”.

Apesar de atender os anseios dos diferentes segmentos da sociedade, dentre os quais


da pessoa com deficiência, apenas a Meta 29 do PNC, estabelece ações especificas que
preveem direitos culturais para esse público alvo, a saber: “100% de bibliotecas públicas,
museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais, atendendo aos requisitos
legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção, fruição cultural por parte das
pessoas com deficiência” (BRASIL, 2012. p. 62).
O que representa esta meta? Esta é uma questão que ainda está muito restrita, na
prática, as alterações das estruturas físicas, quais sejam: banheiros adaptados; estacionamento
com vagas reservadas e sinalizadas; acesso a pessoas com deficiência ou com mobilidade
reduzidas; sinalização visual e tátil para orientação de pessoas com deficiência auditiva e
visual e, espaços reservados a cadeiras de roda e lugares específicos para pessoas com
deficiência auditiva e visual com acompanhante. Conforme a Associação Brasileira de
Normas e Trabalhos (ABNT NBR 9050) que “dá forma e conteúdo para o que está previsto
em lei” (BRASIL, 2004).
Ainda que faça referência a necessidade das instituições e os equipamentos culturais
para implementar ações direcionadas em promover a fruição plena dos bens culturais por
parte das pessoas com deficiência , a meta 29 é omissa na definição dessas medidas. Graeff et.
al. ressalta que (2013, p. 132-133):
[...] não há perspectiva de incorporação das experiências culturais
das pessoas com deficiência no âmbito das políticas culturais do PNC, salvo,
bem entendido, se essas pessoas forem colocadas no mesmo espectro dos
direitos culturais segundo os quais todos os cidadãos devem ser
contemplados em suas necessidades de fruição, criação e difusão da cultura.

1058

V V
O que se defende aqui é que o Plano Nacional de Cultura de 2010
não contempla todo o potencial ético da acessibilidade cultural,
principalmente no que se refere à temática da cidadania. Ao propor diversas
estratégias e ações que virão a multiplicar as condições de efetivação dos
direitos culturais, o PNC caminha na direção da democratização da cultura.
Porém, ao considerar acessibilidade cultural como um fim em si mesmo, o
plano contribui para manter um velho problema que obstaculiza o pleno
reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência, a saber, as
situações de “desprezo social” [...] que se realizam nas relações
intersubjetivas.

Acreditamos que superaremos esses obstáculos a partir do respeito para com as


diferenças, entendendo que todos precisam ser reconhecidos nas suas potencialidades,
independentemente de ter ou não deficiência. Para tanto é preciso criar “ações e programas
transformadores e emancipadores, que coloquem” o ‘reconhecimento intersubjetivo’
(HONNETH apud GRAEFF et. al, 2013, p.133) no centro do problema e de suas soluções
possíveis.”
Outro passo rumo à consolidação dos direitos culturais foi à criação da Lei
10.753/2003, intitulada Lei do Livro, que institui a Política Nacional do Livro (PNL), cujas
diretrizes são: assegurar ao cidadão o pleno exercício do direito do acesso e uso do livro,
promover e incentivar o hábito da leitura, assegurar às pessoas com deficiência visual o
acesso à leitura. Entretanto, essa lei ainda não foi regulamentada. A minuta do Decreto de
Regulamentação da referida lei, no seu artigo 4º, propõe que:
Art. 4º. A fim de garantir plena acessibilidade às pessoas com
deficiências que acarretem dificuldade ou impedimento de leitura do livro
convencional, conforme definido nos incisos VII e VIII do artigo 2º da Lei
nº. 10.753, de 31/10/2003, é obrigatório que toda obra publicada em
Território Nacional seja disponibilizada pelas editoras para venda ao
Consumidor interessado, por meio de versões em suporte digital, mediante
solicitação prévia à editora responsável pela publicação ou às livrarias e aos
representantes que comercializem ou distribuam aquela obra (...). Ocorre que
na mesma Lei, no Art. 12, foi facultado ao Governo Federal criar normas
regulamentares para o atendimento ao disposto nos Incisos acima
mencionados, o que impediu a aplicação imediata destes dispositivos, pois
os mesmos precisariam ser melhor explicados, esclarecidos, descritos sobre
sua aplicação concreta no cotidiano das pessoas com deficiências que
necessitam destes livros.6

Os incisos VII e VIII do artigo 2º, da Lei acima referida, dizem respeito a reprodução
de livros “em suportes digital, magnético e óptico, além do livro em braille”. Esses são os

6
Disponível em: <http://www.livroacessivel.org/o-texto-do-acordo-historico.php>. Acesso em: 08 mar. 2014.

1059

V V
dispositivos que permitem a pessoa com deficiência visual ter acesso à leitura de forma
autônoma, contribuindo para que elas possam se desenvolver na educação e no trabalho com
igualdade de oportunidades.
A Lei do Livro 10.753/2003, ainda não foi regulamentada e o Plano Nacional do Livro
e da Leitura passa por um processo de estagnação, mas na última, Conferência Nacional de
Cultura, ocorrida em novembro 2013, a proposta de institucionalizar a política pública do
“Plano Nacional do Livro e da Leitura”, ficou em 5º lugar na lista das 20 propostas
prioritárias.
Ainda no eixo da Cidadania e Direitos Culturais, destacamos outra proposta que
resultou da discussão da Conferência Livre, promovida pelo Curso de Especialização em
Acessibilidade Cultural/ UFRJ, que ficou em 4º lugar, com 480 votos, na Conferência
Nacional de Cultura, realizada em 2013, que diz respeito a: “Politicas de acesso às pessoas
com deficiência, incapacidade temporária ou mobilidade reduzida”. (Brasil, 2013, p.50).
Outro ponto que o PNLL aborda como estratégia de ação para democratizar o acesso
do livro e da leitura é sobre a ampliação do direito à informação por meio do uso de direitos
autorais não restritivos. Em prol desse intento o Ministério da Cultura do Brasil, articulou
junto com outros países a assinatura do Tratado Internacional de Marrakech 7 que foi
concluído durante a Conferência da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI),
em junho de 2013. Este Tratado tem como propósito liberar o acesso às publicações em
formatos acessíveis para as pessoas com deficiência visual sem as implicações dos direitos
autorais. Conforme assessoria de imprensa do Ministério das Relações Exteriores:
O tratado partiu de iniciativa co-patrocinada pelo Brasil, Paraguai,
Equador, Argentina e México, apoiada pelo grupo de países da América
Latina e do Caribe. Os Estados Membros da OMPI buscaram, ao longo de
todo o processo negociador, construir acordo que fomentasse a oferta de
livros para pessoas cegas, com deficiência visual ou outras deficiências para
o acesso ao texto impresso, sem prejudicar a proteção efetiva dos direitos
autorais nem criar impactos sistêmicos negativos ao regime internacional
(...). Atualmente menos de 1% das obras publicadas no mundo é convertido
em formatos acessíveis a esse grupo.

A efetivação desse Tratado vai representar uma conquista muito significativa e um


grande reconhecimento dos direitos culturais das pessoas com deficiência visual. Ainda, em

7
Foi assinado hoje, 28 de junho, o Tratado de Marrakech para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas para Pessoas
Cegas, com Deficiência Visual ou outras Deficiências para o Acesso ao Texto Impresso. O trata do foi concluído no
âmbito da Conferência da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) realizada em Marrakech, entre os
dias 17 e 28 de junho. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/ notas-a-imprensa/tratado-de-
marraqueche-para-facilitar-o-acesso-a-obras-publicadas-para-pessoas-cegas-com-deficiencia-visual-ou-outras-deficien
cias-para-o-acesso-ao-texto-impresso>. Acesso em: 08 mar. 2014.

1060

V V
2008, a Secretaria de Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura
(SID/MinC), organizou a importante, Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas
Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência - O nada sobre nós sem nós, com a
participação de artistas, gestores públicos, pesquisadores e agentes culturais da sociedade
civil, objetivando de “ debater e elaborar propostas e diretrizes para nortear as políticas
públicas culturais para as pessoas com deficiência com a participação “prioritária dos
próprios sujeitos interessados nestas mesmas políticas’. (BRASIL, 2009).
Está oficina foi um marco para aprofundar as discussões em torno da construção de
políticas públicas que integrem as Pessoas com Deficiência nas diversas áreas do saber
cultural. Durante três dias os participantes se organizaram em quatro GT’s para discutir os
seguintes eixos focais: Patrimônio, Difusão, Fomento e Acessibilidade e a interface destes
eixos com os temas: Produção artística e cultural, Políticas de apoio e financiamento e a
Funarte; Programas, editais e prêmios, Acesso às produções artísticas, espaços culturais e
formação8.

A LEITURA AO ALCANCE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA VISUAL: DO


BRAILLE À TECNOLOGIA ASSISTIVA
Superado o paradigma de que a pessoa com deficiência não teria capacidade de se
tornar um cidadão por sofrer de impedimentos e limitações e, principalmente, de barreiras
impostas pela sociedade, outras lutas se impõem no momento atual como a garantia dos
direitos conquistados expressos na Constituição Cidadã e demais documentos da legislação
brasileira que elencamos no capítulo anterior deste trabalho.
Para a pessoa com deficiência visual a oportunidade de ter em formato acessível os
conteúdos produzidos nas mais diversas áreas do conhecimento transcende a questão da
educação. Mais que para os videntes, a garantia do direito cultural propicia o empoderamento
desta parcela da população, no sentido de lhes garantir um direito que lhes foi negado ao
longo dos anos: a autonomia e a independência, aspectos que estão implícitos nessa afirmação
8
A oficina foi realizada entre os dias 16 a 18 de outubro de 2008, tendo como participantes artistas, gestores
públicos, pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil. Em comum o fato dessas pessoas atuarem na área
da cultura, especificamente relacionada às pessoas com deficiência. Esse evento contou com a parceria da
Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ) do Ministério da Saúde e o apoio da Caixa Econômica Federal (CEF). Os
resultados obtidos geraram um Relatório Final, publicado em 2009. (BRASIL. ENSP/FIOCRUZ,2009).
Informações sobre essa oficina estão disponível em: http:///brasil.campusvirtualsp.orgnode/181488. Acesso em
03 mar 2014. Relatório Final, em Vídeo, da Oficina de Políticas Culturais – Nada sobre Nós sem Nós Oficina
Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência (O vídeo tem os
seguintes recursos de acessibilidade: audiodescrição e língua brasileira de sinais (LIBRAS). Disponível em <
http://www,bloddaaudiodescricao.com.br/2012/06/relatório-final-em-video-da-oficina-de.html>. Acesso em: 04
mar 2014.

1061

V V
de Freire: “A pessoa, grupo ou instituição empoderada é aquela que realiza por sim mesma, as
mudanças e ações que a levam a evoluir e se fortalecer”. (apud Valoura, 2006, p.9) Melhor
dizendo: em se tratando da pessoa com deficiência visual, a obtenção de autonomia e
independência representa a possibilidade de decidir sobre sua própria vida e de participar
ativamente da sociedade a qual está inserida.
Para tanto, os dispositivos necessários para a apreensão das informações e do
conhecimento devem estar disponíveis nos espaços públicos, de modo que essa interação
ocorra de fato.
Interessa-nos refletir um pouco sobre a leitura e como a concebemos no contexto do
desenvolvimento das pessoas cegas. Para fazer esta interrelação, consideramos oportuno o
diálogo com Kramer (2009, p. 33) acerca da importância dessa prática social. Para começar,
devemos entender “o que é ler e escrever. Leitura é hábito? É gosto, prática, relação,
exercício, instrumento, necessidade”. A leitura é tudo isso, e para as pessoas com deficiência
visual é a possibilidade de se colocar no meio social com igualdade de direitos. E para além
da questão dos direitos, a leitura é também um instrumento que possibilita a formação do
homem. Kramer ressalta a importância da leitura como experiência e se ampara nos ensaios
de Walter Benjamin, que estabelece uma distinção entre vivência e experiência:
[...] na vivência (reação a choques) e experiência (vivido que é
pensado, narrado); na vivência, a ação se esgota no momento de sua
realização (por isso é finita); na experiência, a ação é contada a um outro,
compartilhada, tornando-se infinita. Esse caráter histórico, de permanência,
de ir além do tempo vivido e de ser coletiva constitui a experiência. (apud
KRAMER, 2009, p.33)

Kramer afirma que a “leitura pode ser fruição, divertimento, prática que informa,
comunica, avisa”. Enfatiza também que não propõe uma definição única e nem pensa que
toda leitura e toda escrita precisam concretizar-se como experiência, nem que se não for
experiência não é leitura nem escrita. A autora também indaga o ato da leitura e os seus
desdobramentos, conforme a dimensão com que ela se realiza:
[...] a leitura como passatempo ou como algo que passa para além
do seu tempo de realização, do tempo vivido? A leitura que transcende o
momento vivido, se traduz na ampliação do “pensar, do ser crítico da
situação, relacionar o antes e o depois, entender a história, ser parte dela,
continuá-la, modifica-la, redirecioná-la. (...) Vivemos um paradoxo: muito se
fala sobre leitura, muito se propõe, mas os livros que continuam a ser mais
vendidos são os didáticos. (KRAMER,2009, p.34).

1062

V V
A partir destas reflexões devemos pensar como potencializar as bibliotecas com
programas e projetos que considere a leitura literária como coadjuvante da formação
humanística do cidadão. Como afirma Kramer (2009, p.34):
[...] a leitura que provoca a ação do pensar e sentir criticamente as
coisas da vida e da morte, os afetos e suas dificuldades, os medos, sabores e
dissabores, que permite conhecer questões relativas ao mundo social e às
tantas e tão diversas lutas por justiça (ou o combate à injustiça) [...]

Estimular por meio de ações culturais o encontro do seu público com narrativas que
propiciem “levar algo para além do momento mesmo em que se realiza” (KRAMER, 2009,
p.34). Enfim, que promova novas experiências que sejam capazes de nos humanizar.
A importância da biblioteca reside nas possibilidades de ações que podem ser
realizadas no incentivo de práticas de leituras e como uma fonte dinâmica de cultura. Essas
ações devem atender às várias e amplas necessidades de seus dos usuários, sejam estes,
crianças ou adultos, estudantes ou intelectuais, universitários ou pesquisadores, que propicie
“uma convivência intensa, sadia e crítica com textos (...) levando-os a valorizar os seus atos
de ler não apenas na angulação do prazer, mas também da criticidade e autonomia para se
conduzir socialmente” (SILVA, 2008, p.24).
Porém, observamos uma descontinuidade nas políticas públicas de apoio ao estímulo
da leitura no Brasil e a biblioteca que é parte fundamental desse processo sofre com a falta de
apoio governamental, de recursos materiais, de investimentos humanos e financeiros. Essa
descontinuidade refletiu nos resultados da última pesquisa realizada pelo programa Retratos
da Leitura no Brasil (2011), promovido pelo Instituto Pró-Livro, que apontou a escassez no
número de bibliotecas no território nacional e a falta de capacitação na área dos profissionais
que estão na direção desses espaços:
Somente 79% dos municípios brasileiros contam com ao menos uma
biblioteca pública”. Junte-se a isso o alto índice de dirigentes de bibliotecas
sem formação especifica na área como afirmou a pesquisa: somente 48%
tem algum curso na área de biblioteconomia, 52% sem formação na área que
varia em profissionais de pedagogia, história e letras e que somente 57%
possuem curso superior, enquanto 40% ensino médio, 2% ensino
fundamental II e 1% dos dirigentes possuem o ensino fundamental I. Fator
que no nosso ponto de vista, dificulta a qualificação dos serviços oferecidos
por esses espaços. A pesquisa revelou, ainda, que 26% das pessoas tem
acesso a livros em bibliotecas e que 10% dos entrevistados dizem estar lendo
menos devido a alguma limitação física relacionada a visão. (SANTOS,
2013, p.3-4)

1063

V V
Neste contexto entendemos que a realidade da pessoa com deficiência visual é
ainda mais candente, pois tendo essa limitação ainda se deparam com bibliotecas sem
infraestrutura para atender as suas demandas.

ACESSIBILIDADE CULTURAL: CONCEPÇÕES E IMPORTÂNCIA


A acessibilidade cultural emerge como um novo campo de conhecimento que trata das
questões relativas à construção da autonomia de pessoas com deficiência em ambientes
culturais. Assim como cada um destes espaços tem suas especificidades, os diferentes tipos de
deficiência também englobam uma ampla diversidade de necessidades e possibilidades:
Acessibilidade é aqui entendida num sentido lato. Começa nos
aspectos físicos e arquitetônicos, mas vai muito além, uma vez que toca
outros componentes determinantes, que concernem aspectos intelectuais e
emocionais: acessibilidade da informação e do acervo. Uma boa
acessibilidade do espaço não é suficiente. É indispensável criar condições
para compreender e usufruir os objetos expostos num ambiente favorável.
Para, além disso, acessibilidade diz respeito a cada um de nós, com todas as
riquezas e limitações que a diversidade humana contém que nos
caracterizam, temporária ou permanentemente, em diferentes fases da vida.
(COHEN, 2004, p. 3)

Porém essa autonomia só será plena para estes cidadãos invisibilizados social e
politicamente, quando forem vencidas as barreiras criadas pela sociedade que não privilegia a
todos. Enquanto isso não acontece, vemos que a oferta de produtos culturais acessíveis ainda
é bastante escassa perante o alto índice de pessoas marginalizadas, ou tuteladas, em virtude de
limitações e impedimentos físicos, sensoriais, intelectual, entre outros. Constata-se uma
lentidão no cumprimento dos requisitos legais de acessibilidades cujos prazos expiraram. 9
Por outro lado, já existem, e cada vez mais se desenvolvem, diversas tecnologias e
serviços para garantir as acessibilidades atitudinal, física e comunicacional. Em relação à
acessibilidade atitudinal, torna-se imprescindível minimizar as barreiras invisíveis, ou seja,
aquelas as relacionadas aos contatos e às trocas comunicacionais entre as pessoas com
deficiência visual e as equipes dos espaços culturais, aqui especificamente em bibliotecas.
É urgente que os trabalhadores desses equipamentos sejam sensibilizados,
sistematicamente, reduzindo os preconceitos e julgamentos equivocados que uma longa

9
O artigo 24 do Decreto 5.296 de 02 de dezembro de 2004, parágrafo 2º estabelece que: As edificações de uso
público e de uso coletivo referidas no caput, já existentes, têm, respectivamente, prazo de trinta e quarenta e oito
meses, a contar da data de publicação deste Decreto, para garantir a acessibilidade de que trata este artigo.

1064

V V
história de exclusão inscreveu no senso comum em relação a realidades bastante próximas e
comuns, mas desconhecidas e estigmatizadas. Segundo Cohen (2011, p. 5) no seu trabalho
Acessibilidade e Desenho Universal em Biblioteca: “A sensibilização deve ocorrer como
resultado de programas e práticas de sensibilização e de conscientização das pessoas e da
convivência na diversidade humana”.
Com o desenvolvimento de programas de sensibilização espera-se que os membros
da equipe de um espaço cultural ganhem também maior autonomia para lidar
satisfatoriamente com situações ainda inusitadas como, por exemplo, a presença de um cão-
guia.
A implementação de medidas para garantir a acessibilidade física depende
fundamentalmente de questões políticas no tocante as prioridades do espaço cultural ao
planejamento de seus gastos, visto que normalmente envolve adaptações arquitetônicas, a
exemplo de instalação de piso tátil e corrimão nas escadas para facilitar a mobilidade e a
autonomia da pessoa com deficiência visual.
Diante de receios, hesitações ou indiferenças por parte dos dirigentes, principalmente
aqueles de espaços públicos, torna-se necessário sublinhar junto a estes o caráter legal,
instituído como prioritário e urgente, das ações de acessibilidade, inclusive em relação aos
paradigmas de conservação arquitetônica.
Os recursos de acessibilidade comunicacional são abundantes e podem variar de
acordo com a natureza do ambiente cultural e as necessidades relativas às linguagens em
torno do produto e à disposição do visitante: audiodescrição para as artes visuais e do espaço
arquitetônico; audioguia; audiolivro; acessibilidade virtual em sítios da internet, softwares e
totens eletrônicos; letras ampliadas e contraste em informações escritas, como no caso das
etiquetas, assim como disponibilização em Braille das mesmas e dos materiais impressos para
distribuição, entre outros.
No momento atual, vivemos um estágio da tecnologia em que o texto impresso é
apenas uma das formas de circulação do conhecimento e da informação, anteriormente
encontrados em livros. Vários canais de comunicação e códigos se apresentam para o livro:
impresso, audível, digital, visual, entre outros. Ao mesmo tempo, a Tecnologia Assistiva
facilita o uso desses canais, principalmente os tradutores em formato digital e leitores de tela.

REFERÊNCIAS

1065

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Deficiência. In: Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, 2012. Disponível
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1067

V V
MEMÓRIA E ESPAÇO URBANO: UMA ANÁLISE DA EFICÁCIA DO
TOMBAMENTO NO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR
Milena Guimarães Andrade Tanure1

RESUMO: Os espaços urbanos apresentam-se como patrimônio constitutivo da identidade e


memória da cidade do Salvador e devem ser tutelados pela sua natureza significativa. O
presente artigo científico propõe-se a pensar um direito à memória do espaço urbano a partir
de uma análise da eficácia do tombamento da Rua Direita do Santo Antônio, Centro Histórico
de Salvador. Assim, analisa-se um direito à preservação da memória por meio da manutenção
dos espaços urbanos constitutivos das identidades dos sujeitos, bem como a relação inevitável
que se trava entre as memórias subjetivas e as memórias do espaço urbano. A análise da
eficácia do tombamento na Rua Direta de Santo Antônio, passando por uma história deste
espaço e entrevistas e observações feitas nele, colocará em cena se o tombamento se mostrou
como medida eficaz para a preservação da memória deste espaço.

PALAVRAS-CHAVE: Memória, Tombamento, Cidade, Rua Direita do Santo Antônio.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A memória do espaço e a memória subjetiva se relacionam diretamente. A cidade,
lugar de prestígio na pós-modernidade, apresenta-se ora como pano de fundo para as
narrativas memorialísticas, ora como própria narrativa que, em seu texto urbano, representa
memórias individuais e coletivas.
A Carta Magna de 1988, ampliando o conceito de Patrimônio Cultural e inserindo no
ordenamento jurídico pátrio princípios que devem nortear os atos de preservação, e a partir do
enquadramento dos direitos culturais no rol de direitos fundamentais, coloca em cena a
existência de um direito à memória. Com base em tal direito, “todos os homens têm direito de
ter acesso aos bens materiais e imateriais que representam o seu passado, à sua tradição e à
sua História” (FERNANDES, 2012, p.5).
A cidade de Salvador, ao longo dos seus 466 anos, tem vivenciado distintos processos
de modernização que em muito interferem na constituição dos seus diferentes espaços. Há que
se perceber, contudo, que, além de processos modificatórios que resignificam tais espaços,
tem-se processos de resignificação que em muito interferem nas novas dinâmicas e na própria
tessitura do corpo urbano. Neste sentido, é preciso voltar o olhar para essa cidade a fim de

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) da Universidade do Estado da


Bahia (UNEB). Especialista em Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela UNEB, Campus I,
Salvador. Graduada em Direito pela Universidade Salvador (UNIFACS).milena.tanure@gmail.com

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V V
pensar os processos de modernização, resignificação e consequente esvaziamento do seu
antigo espaço central. Assim, o Centro Antigo, em especial, por representar o espaço em que
a cidade nasceu, e, portanto, por acompanhar uma série de modificações urbanas, situa-se
como o corpus dessa pesquisa.
O instituto jurídico do tombamento, por sua vez, selecionado para a presente pesquisa,
representa um dos mais antigos e conhecidos meios de tutelar o patrimônio e,
consequentemente, o direito à memória. No entanto, diante das deteriorações de casarões,
igrejas e monumentos no antigo centro da cidade de Salvador, surgiu o questionamento sobre
a sua eficácia. Assim a presente pesquisa propôs-se a pensar o tombamento da rua Direita do
Santo Antônio, localizada no centro histórico da cidade de Salvador, a fim de analisar a
eficácia deste instituto.

2 UM DIREITO À MEMÓRIA DO ESPAÇO URBANO


Pierre Nora (2009) afirma que o mundo está experimentando a emergência da
memória. Segundo o historiador, os países, povos e grupos sociais, ao longo dos últimos vinte
ou vinte e cinco anos, passaram por profundas transformações no tradicional modo como se
relacionavam com o seu passado.
Nora (2009, p.7) assevera, ainda, que esse movimento generalizado e enraizado se
ancora em duas principais razões. Uma delas diz respeito ao que ele denominou de
“democratização da história”, que compreenderia uma consequência da emancipação e
libertação de povos que passaram a recuperar seu passado e afirmar sua identidade. A outra
razão diz respeito ao fenômeno por ele denominado “aceleração da história”. Segundo ele,
isso significa dizer “que o fenômeno mais contínuo e permanente não é a permanência e a
continuidade, mas a mudança, e uma mudança que está afetando tudo mais e mais rapida-
mente”. Uma incerteza do futuro tem sido capaz de criar no presente uma obrigação de
recordar e o dever de que “o presente acumule assiduamente, de maneira relativamente
indiferenciada, todos os traços visíveis e todos os sinais materiais que constituem evidência e
que vão fornecer evidência do que uma nação, um grupo, uma família é ou terá sido”. Nesse
contexto em que há um obscurecimento do passado e do futuro, tem-se a recordação como
característico elemento do tempo atual, o “tempo da memória”.
Salvador não se fez indiferente às transformações e processo de modernização
vivido pelas cidades ao longo de sua formação. Dessa forma, a “aceleração da história”
também se fez presente aqui e o centro histórico foi um dos espaços mais atingidos.

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V V
A cidade representa um universo simbólico que é significado e resignificado a partir
das transformações pelas quais passa e o modo como com ela se relacionam os sujeitos. Faz-
se necessário observar, contudo, que os espaços da cidade recebem significações específicas,
seja pela sua função, por sua criação ou por algum processo histórico.
Um dos espaços mais significativos na constituição de identificação entre a cidade e o
sujeito é a região central. Milton Santos (2008), ao falar do centro histórico de Salvador em
sua tese de doutorado de 1958, destacou que, no passado, o cérebro e o coração da cidade
encontravam-se nesse espaço e apresentou o processo de modernização vivido naquele
momento.
A modernização surge como um processo que se impõe à cidade. Assim, ela ocorreu
como se nada pudesse impedir que Salvador se inserisse em um mundo moderno. Essa
modernização não respeitou, contudo, o patrimônio que representa o centro antigo e, assim,
destruiu casas e monumentos, como a Igreja da Sé (onde hoje se encontra a Praça da Cruz
Caída).
Em abordagens posteriores, de meados da década 1990, Santos (1995) destacou a
mudança do centro da cidade. Em texto cujo título é Salvador: centro e centralidade na
cidade contemporânea, o geógrafo coloca em cena como, a partir dos anos 1960, tem-se a
formação de novos espaços que se afastam do antigo centro por ele estudado.
Em sua análise, Milton Santos (1995) avalia a evolução desse antigo espaço que se
inicia enquanto “centro único, unipolar e monopolítico”, mas que depois, a partir de uma
“multipolarização”, passa por um longo processo de decadência até se tornar um “centro
velho adaptado às exigências do turismo e dos turistas”. Desse modo, em oposição a esse
antigo centro que polarizava as principais atividades da cidade, Santos (1995, p. 15) apresenta
a formação de um novo espaço central que, segundo o geógrafo, é “um centro completamente
artificial”.
Milton Santos (1995) coloca em destaque o modo como a expansão rápida do
consumo do automóvel e o marketing imobiliário estiveram atrelados a uma descentralização
urbana e a formação de bairros de classe média e classe média alta. A formação de tais
bairros, por sua vez, encontra-se vinculada a interesses por localizações privilegiadas e
decisões políticas.
No início, o centro novo ainda competia de algum modo com o centro antigo, no
entanto, isso ocorria porque as funções e hábitos que hoje existem no novo espaço central
ainda não haviam se instalado definitivamente. Ainda sobre esse novo centro, é preciso

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V V
destacar que os recursos públicos se dirigiram para ele, gerando um desnível na cidade
(SANTOS, 1995). Em certo sentido abandonado pelo poder público, o centro antigo assistia a
formação do novo centro que se operava em detrimento da deterioração do antigo espaço
central. Desse modo, “o centro novo aparecia por várias razões como um elemento que levava
à ruína mais rápida do centro velho” (SANTOS, 1995, p. 24).
Fica evidente, assim, a formação de um novo centro na cidade. Há que se destacar,
contudo, que o crescimento de um novo espaço urbano, decorrente, sobretudo, de avanços
econômicos e do surgimento de novas dinâmicas sociais, não gerou benefícios para toda a
cidade.
[...] como a modernização da cidade fora corretamente direcionada
para fora do sítio centenário, este ficou lá, à espera de sua recuperação.
Casarões se arruinando, paredes enchendo-se de chagas, telhados
destelhados, janelas decaídas, cheiro de urina tomando conta das escadas e
de esquinas. (RISÉRIO, 2004, p.590)

Hoje, no entanto, é preciso se avaliar a situação dos sítios históricos da cidade e


revalorizar esses espaços que fazem parte da identidade baiana.
Como apresenta Giovanaz (2007, p. 237)
Nossa realidade é de destruição dos lugares de memória, de
desenraizamento, de desconstrução dos suportes sociais da memória
coletiva. Todos esses elementos são criadores dos sentimentos de
continuidade, de preservação e com sua paulatina destruição o cidadão sente-
se progressivamente excluído nos seus sentimentos coletivos em relação ao
passado. Pierre Nora destaca que “os lugares de memória são antes de tudo
restos”. São sobreviventes de um tempo que já não existe, em uma sociedade
onde a positividade está ancorado no novo e não no antigo, no futuro e não
no passado.

É preciso atentar, portanto, ao fato de que “uma cultura não pode ser concebida como
um avanço atropelado em que as coisas vão sendo jogadas fora” (RISÉRIO, 2004, p.590).
Não é possível acreditar que o futuro da cidade de Salvador esteja em abandonar o seu
passado em nome de um progresso impensado. Não há como se criar um futuro sem se pensar
e valorizar a própria história.
Nesse sentido, é preciso se pensar de que forma esses espaços urbanos, sobretudo a rua
direita de Santo Antônio Além do Carmo, apresenta-se como patrimônio constitutivo da
identidade e memória da cidade do Salvador e deve ser tutelado pela sua natureza
significativa.
Pensando-se a relação entre as subjetividades, cidade e a necessidade de se preservar
locais identitários, percebe-se como a força significativa de um espaço urbano em muito se

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V V
relaciona com as vivências e experiências experimentadas nesse espaço. Assim, com afirma
Duarte (2002, p. 75): “A construção dos lugares é rica pois não diz respeito às pedras, mas às
suas escolhas, sua organização, sua finalidade e sobre o amálgama etéreo que as une”.
Desse modo, é pelo uso que o centro da cidade, por exemplo, é significado e
passa a entrelaçar memórias subjetivas e coletivas. Os elementos que compõem tal espaço,
para além de darem forma à cidade, constituem os elementos identitários que interligam
sujeitos e gerações. Dessa forma, a memória de cada um dos seus moradores se estrutura
tendo como espaço das narrativas de si a cidade que ele ajuda a moldar pelo seu uso. Nesse
mesmo sentindo, por serem vividas, em sua maioria, na coletividade, as relações entre sujeitos
e espaços compõem memórias que ultrapassam a esfera subjetiva e passam a dizer respeito a
uma coletividade que se identifica, em especial, pelo espaço em que se desenrolam suas vidas.
Fazendo uma leitura da obra A memória Coletiva de Habawachs, Giovanaz
(2007) evidencia o modo como esse autor coloca em cena que a manutenção da memória
coletiva dos cidadãos requer uma preservação dos espaços.
O autor ressalta que a permanência e a estabilidade dos objetos
materiais que nos cercam e com os quais estamos em contato diário nos
propicia um equilíbrio mental, como se fosse uma sociedade silenciosa e
imóvel, estranha às nossas transições e mudanças, proporcionando-nos uma
sensação de ordem e de continuidade. O nosso entorno material conserva
nossas marcas e a de nossos mais queridos, lembram-nos fatos importantes
de nossa vida individual e estão associados à memória de nosso grupo. Todo
espaço habitado recebe as marcas dos indivíduos que nele transitam. Os
quarteirões no interior da cidade, bem como as casas que os constituem,
estão também ligados ao solo, como as árvores, os rochedos e as montanhas
(GIOVANAZ, 2007, p.237).

Nesse sentido, subjaz a tais afirmações o fato de que ao indivíduo interessa a


manutenção dos espaços públicos constitutivos das memórias, uma vez que, constituindo-se a
memória, constitui-se a si. É em razão disso que, conforme afirma Dourado (1989, p.65, grifo
do autor), “o tema da memória é subjacente à própria condição humana, à medida que suas
raízes se fundam nas necessidades de autoconfirmação e no medo. O impulso à
autoconservação nasce do medo mítico da perda do próprio eu, medo da morte e da
destruição”.
Assim, a preservação do espaço urbano constitui a manutenção, também, das
memórias subjetivas. É por isso que “destruída a parte de um bairro onde se prendiam
lembranças da infância do seu morador, algo de si morre junto com as paredes ruídas, os
jardins cimentados” (BOSI, 1979, p.370). Assim, como afirma Habawachs (1990), sendo
eliminada ou modificada a forma ou orientação das casas ou ruas, os materiais e pedras não
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V V
irão apresentar resistência. No entanto, os grupos resistirão “com a própria resistência, senão
das pedras, pelo menos de seus antigos arranjos na qual vos esbarreis”, uma vez que dela veio
a força da tradição local. Isso decorre, em essência, do fato de que “quando um grupo humano
vive muito tempo em um lugar adaptado a seus hábitos, não somente os seus movimentos,
mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os
objetos exteriores” (HABAWACHS. 1990, p.136).
É pensando nisso que Pesavento (2005, p.16) apresenta a noção de “patrimonialização
do passado da cidade”, a qual consistiria em compreender a cidade como uma partilhada
propriedade cultural. No entanto, isso demandaria uma aprendizagem, um reconhecer a
“existência de uma história comum inscrita na cidade”, reconhecer em ruas, prédios e praças
locais com sentido e reconhecer territórios e temporalidades urbanas que dependeriam do
ensino, das ações do Estado e dos particulares. Tais atitudes implicariam em “criar
responsabilidades, em educar o olhar e as sensibilidades para saber ver e reconhecer a cidade
como um patrimônio herdado”. Tal atitude não consistiria, contudo, em uma restauração do
espaço urbano na ingênua busca por uma cidade cristalizada no passado, no entanto, “toda
arquitetura pode ser monumento, na medida em que encerrar uma memória, encarnar um
sentido a ser recuperado”.
Em razão dessa relação que se estabelece entre o espaço urbano, memórias individuais
e coletivas, tem-se a necessidade de uma tutela que assegure o direito à memória. Assim, cabe
pensar, agora, de que modo o ordenamento jurídico pátrio trata a preservação do patrimônio
cultural e, consequentemente, a manutenção dessas memórias.
Rememorando um trajeto da proteção do patrimônio no Brasil, Fernandes
(2012) coloca em cena como nos últimos dez anos tem se desenvolvido, no país, uma maior
preocupação em relação às políticas de memória e à preservação do patrimônio cultural. Um
dos fatores que teria motivado isso, segundo ele, diz respeito ao tratamento dado pela
Constituição Federal de 1988 à noção de patrimônio cultural, a qual foi ampliada, bem como
a inserção de importantes princípios responsáveis por nortear a ação preservacionista do
Brasil. Nesse contexto, é importante ressaltar como este cenário permite afirmar a existência
de um direito fundamental à memória. Assim, segundo Dantas (2010, p. 66), é possível
afirmar que “o direito à memória existe e consiste no poder de acessar, utilizar, reproduzir e
transmitir o patrimônio cultural, com o intuito de aprender as experiências pretéritas da
sociedade e assim acumular conhecimentos e aperfeiçoá-los através do tempo”.

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V V
Ao colocar em cena a necessidade de que seja tutelado um direito à memória a
partir da preservação do patrimônio cultural, a Constituição Federal coloca em foco institutos
específicos capazes de tutelar tal direito. Entre os instrumentos jurídicos para isso, tem-se os
elencados ao longo do artigo 216, § 1º, da CF/88, são eles: inventário, registro, vigilância,
tombamento e desapropriação. Além destes, tem-se dois institutos de natureza processual que
podem ser utilizados também nesse sentido: a ação popular (artigo 5º, inciso LXXIII, CF/88)
e a ação civil pública (artigo 129, inciso III, CF/88). A presente pesquisa, contudo, ateve-se ao
decreto-lei 25/1937, o qual inseriu o tombamento no ordenamento jurídico pátrio.

3 TOMBAMENTO: UM INSTITUTO JURÍDICO PELA MEMÓRIA


A presente seção objetiva analisar, sucintamente, o instituto jurídico do tombamento
focando, em especial, nos seus efeitos a fim de pensar as restrições e obrigações que ele
impõe.
Conforme nos ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p.146), o instituto jurídico
do tombamento, de acordo com o decreto-lei nº 25 de 1937 consiste na forma de intervenção
estatal na propriedade privada a fim de proteger o patrimônio histórico e artístico nacional. É
preciso se voltar, contudo, para a Constituição Federal vigente, a qual, em seu artigo 216,
ampliando a noção de patrimônio histórico e artístico para a de patrimônio cultural
(FERNANDES, 2012), apresenta clara definição do patrimônio a ser tutelado pelo Estado.
Desse modo, tal dispositivo constitucional, para além de apresentar rol taxativo, elenca
amplos elementos nacionais que, pelo seu valor como “portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988)
têm de ser preservados por todos e resguardado pela administração pública.
Por meio do tombamento, o Poder Público protege bens que, em razão do seu valor
artístico ou histórico, passam a sofrer sujeição e restrições parciais a partir da sua inscrição
em um dos Livros do Tombo. Assim, como assevera Telles (1992, p.13), tombar é consignar
“que determinada propriedade, seja pública ou privada, móvel ou imóvel, foi considerada de
interesse social, submetida a partir daí, a um regime peculiar que objetiva protegê-la contra a
destruição, abandono ou utilização inadequada”. O bem, ainda que pertencente a particular,
após o tombamento, passa a ser tido como bem de interesse público, razão pela qual se
justificam as restrições impostas ao seu titular. Há que se perceber, contudo, que esta é uma
restrição parcial que não obsta ao particular os direitos inerentes ao domínio, assim, não há
que se falar, em regra, em um direito a indenização (DI PIETRO, 2014).

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V V
O capítulo III do decreto-lei 25/1937 destina-se aos efeitos decorrentes do
tombamento. Tais efeitos se produzem quanto à alienação, deslocamento, transformações, aos
imóveis vizinhos, conservação e fiscalização. Observa-se, assim que, em decorrência do
tombamento, surgem “para o proprietário obrigações positivas (de fazer), negativas (não
fazer) e de suportar (deixar fazer); para os proprietários de imóveis vizinhos, obrigações
negativas (não fazer); e para o IPHAN, obrigações positivas (fazer)” (DI PIETRO, 2014, p.
151).
O proprietário, em razão de ter sido o seu bem tombado, sujeita-se às seguintes
obrigações positivas: conforme o artigo 19 do referido decreto, realizar as obras de
conservação necessárias para a preservação e, caso não tenha meios para tanto, deverá
comunicar a situação ao órgão competente, sob pena de ter de pagar multa equivalente ao
dobro do valor em que foi avaliado o dano sofrido pelo bem. Ademais, com base no artigo 22,
em havendo alienação onerosa do bem, tem de ser assegurado o direito de preferência da
União, Estados e Municípios, nessa ordem, sob pena de que haja nulidade do ato, assim como
sequestro do bem por aquele que titularize o direito de preferência e pena de multa de 20% do
valor do bem a ser pago pelo transmitente e o adquirente, sendo as punições determinadaspelo
judiciário. Medauar (2014) assevera, ainda, ao tratar da alienabilidade dos bens tombados
pertencentes ao domínio público, que, com base no artigo 11 do decreto-lei, esses se tornam
inalienáveis para particulares, no entanto, podem ser transferidos de uma entidade pública
para outra.
No que tange às obrigações negativas, destaca-se que, conforme determina o artigo 17,
o proprietário não pode destruir, demolir ou mutilar bens tombados, assim como não pode
repará-los, pintá-los ou restaurá-los sem prévia autorização do IPHAN,sob pena de multa de
50% do dano causado. Ademais, ainda como obrigações negativas, destaca-se o fato de que,
conforme determina o artigo 14, bem móveis tombados não podem ser retirados do Brasil,
salvo por curto prazo, com a finalidade de intercâmbio cultural e a juízo do IPHAN. Por fim,
com base no artigo 15, havendo a tentativa de realizar a exportação com finalidade diversa a
anteriormente citada, o bem será sequestrado pela União ou Estado em que se encontra e o
proprietário ficará sujeito às penas para o crime de contrabando e multa.
Por fim, há que se destacar, ainda, como obrigação inerente ao proprietário do bem
tombado, a obrigação de suportar. Nesse sentido, entende-se que o proprietário, conforme
determina o artigo 20 do decreto lei objeto da presente pesquisa, sujeita-se à fiscalização do

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V V
bem por órgão técnico competente e, caso apresente obstáculo à inspeção, estará sujeito a
pena de multa.
Aqueles que vizinhos do imóvel tombado também se sujeitam a consequências do
tombamento, obrigações de não fazer, estando eles elencados no artigo 18 do decreto-lei, o
qual determina que:
Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer
construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade nem nela colocar
anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirado o
objeto, impondo-se neste caso a multa de 50% do valor do mesmo objeto
(BRASIL, 1937).

É preciso compreender que todos estão sujeitos a essas obrigações. Tal entendimento
se estende a todos os particulares que travam alguma relação com tais patrimônios, uma vez
que “todos os particulares estão obrigados a respeitar os bens tombados e omitir
comportamentos aptos a prejudicá-los” (JUSTEN FILHO, 2014, p. 623).
Por fim, cabe registrar os efeitos do tombamento para a autarquia responsável pelo
tombamento, IPHAN, em se tratando da União, e IPAC, caso seja o Estado da Bahia.
1.mandar executar as obras de conservação do bem, quando o
proprietário não puder fazê-lo ou providenciar para que seja feita a
desapropriação da coisa (art. 19, §1º); não adotadas essas providências, o
proprietário pode requerer que seja cancelado o tombamento (§ 2º);
2.exercer permanente vigilância sobre as coisas tombadas,
inspecionando- as sempre que julgar conveniente (art. 20);
3. providenciar, em se tratando de bens particulares, a transcrição do
tombamento no Registro de Imóveis e a averbação ao lado da transcrição do
domínio (art.13). Não adotada essa providência, conforme antes salientado, a
União, os Estados e os Municípios perderão o direito de preferência a que se
refere o artigo 22 (DI PIETRO, 2014, p.154).

Como resta claro, o tombamento importa em múltiplas responsabilidades para aqueles


que se relacionam com o bem a ser tutelado, seja direta ou indiretamente, importando em
direta atuação de todos pela preservação do patrimônio cultural.

4 UMA ANÁLISE DA EFICÁCIA DO TOMBAMENTO NA RUA DIREITA DO


SANTO ANTÔNIO.
A rua direita do Santo Antônio, situada no bairro do Santo Antônio, constitui,
juntamente com outros bairros, o centro histórico de Salvador. Tal centro, em que pese não
constitua o centro das dinâmicas vivenciadas pela população baiana na atualidade, conforme

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V V
apresentado anteriormente, representa bem tombado pelo IPHAN e reconhecido pela
UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade.
A região composta pelos bairros do Carmo e do Santo Antônio Além do Carmo
representa espaço privilegiado pelos monumentos artísticos e históricos que a compõe, tais
como o Convento do Carmo, o Largo de Santo Antônio, o Forte de Santo Antônio, a Cruz do
Pascoal, a Igreja do Boqueirão e a própria vista para a Baía de Todos os Santos.
A rua Direita, com jeito de cidade do interior, conforme dito popularmente e
veiculado em sites turísticos, apresenta casas e moradores que atravessaram gerações e que,
pelas vivências ao logo do tempo, representam marco da história da cidade da Bahia. Há que
se perceber, contudo, um processo recente de modificação da rua.
A fim de avaliar a eficácia do tombamento de tal espaço, foram necessárias
visitações ao espaço, assim como o recolhimento de dados junto ao IPAC e o IPHAN e
entrevistas com moradores da rua e região.
Junto ao IPAC foi possível identificar que o único bem sob a salvaguarda
estatal é o Forte de Santo Antônio Além do Carmo. Os demais bens da rua encontram-se sob a
tutela federal, tal como a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão, o Oratório
Público da Cruz de Pascoal e o próprio Conjunto Arquitetônico, Paisagístico e Urbanístico do
Centro Histórico da Cidade de Salvador.
No que tange ao tombamento da rua como espaço integrante de um conjunto
arquitetônico maior que é tutelado pela União, o centro histórico, foi possível observar que o
ato de tombar não representou suficiente meio para a tutela do espaço. Foi possível identificar
isso ao se observar que, apesar de o tombamento da rua impor a manutenção da parte externa
das edificações, há amplo número de casas cujas fachadas se encontram manchadas, com
rachaduras e claramente agredidas pelo tempo e pelo abandono do poder público e dos
particulares que com elas se relacionam ou as têm sob sua propriedade.
Ademais, cabe registrar a existência de casas com fachadas destoando da
estrutura arquitetônica daquele espaço, uma vez apresentando vagas de garagem, andares
superiores em construção, azulejos modernos e grades de alumínio. As intervenções nos
espaços tombados, conforme visto a partir do estudo do decreto 25/1937, não poderiam ser
feitas sem a autorização do IPHAN, e, em verdade, tais alterações, uma vez descaracterizando
o espaço que se tutela, não poderiam ser realizadas.
Assim, identificou-se que, apesar de o bairro do Santo Antônio possuir bens tombados
no âmbito federal e estadual, há, em algumas áreas, “alterações significativas no seu conjunto

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V V
edificado, notadamente nas construções localizadas nas ruas situadas em trechos mais
deslocados dos principais eixos de circulação, tais como a Rua Direita de Santo Antônio[...]”
(CARDOSO, 2010, p.51). Tais alterações, como foi possível perceber, dizem respeito a obras
de modernização que, realizadas pelos particulares, e não sendo inibidas pelo poder público,
correm o risco de descaracterizar o ambiente.
Cabe registrar, ainda, que, conforme assevera o decreto do tombamento, sem a
autorização do IPHAN não é possível a colocação de edificação, anúncios ou cartazes na
vizinhança que impeçam ou reduzam a visibilidade do bem tombado. No entanto, foi possível
observar que o próprio poder público, por meio da fiação de rede elétrica, possibilita que seja
dificultada e prejudicada a contemplação da estrutura arquitetônica do espaço. É possível
destacar, por exemplo, o monumento da Cruz do Pascoal, tombado pelo IPHAN desde a
década de 1930, mas rodeado por fios que, esteticamente, prejudicam a observação da sua
estrutura e obstam a contemplação do conjunto arquitetônico em que está inserido.
No que tange às intervenções destoantes, foi possível identificar por meio de
entrevistas com moradores da região que o órgão competente para realizar as devidas
fiscalizações, o IPHAN, não se mostra atuante na região pesquisada. Pela fala de moradores,
há uma relação um tanto conflituosa com a autarquia.
Alguns moradores narraram uma inexistência de fiscalização, assim como a
burocratização para a realização de intervenções em suas casas quando noticiadas ao IPHAN.
Ademais, há críticas quanto à última pintura das fachadas realizadas pela CONDER, uma vez
que se teriam sido utilizadas tintas de acrílico que em muito se afastam das cores originais.
Identificou-se, ainda, casas em deploráveis condições cuja fachada
apresentavam placas de “vende-se”. A lamentável situação física nos leva a questionar, e
constatar, o não atendimento ao que determina o decreto do tombamento quando este permite
a intervenção da autarquia no imóvel para resguardá-lo, seja pela impossibilidade do
proprietário em fazê-la ou a não atuação do particular por motivo diverso.
Ademais, é clara a constatação do modo como a região foi tomada pelo
mercado turístico, e sobretudo pelos investidores estrangeiros que passaram a residir na região
e nela construir pousadas e restaurantes.
Nos últimos anos registra-se um crescente processo de gentrificação.
Muitas das suas edificações, notadamente aquelas situadas no lado da
encosta, de onde se desfruta ampla vista da baía, foram vendidas para
estrangeiros e para pessoas ligadas ao meio artístico, determinando um
significativo incremento no valor dos imóveis. Por sua vez, este processo
também pode vir a ser alimentado pela instalação de alguns equipamentos

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V V
voltados ao turismo, destacando-se a transformação do Convento do Carmo
no mais luxuoso hotel da cidade (CARDOSO, 2010, p.51).

Diante das observações realizadas, é preciso se colocar a impossibilidade de se


pensar que a função de proteger tais patrimônios seja dever único e exclusivo do Estado,
apesar de munido de tal competência. É necessário que se tenha em vista que a tutela da
memória por meio da preservação dos espaços históricos da cidade via tombamento
representa dever, também, daqueles que se relacionam com tais patrimônios, os cidadãos, seja
fiscalizando, cuidando do bem ou motivando a atuação estatal.
Isso se mostra um desafio a partir do momento que se identifica, no discurso de
alguns entrevistados, o sentimento de que o tombamento, muito mais do que uma via de se
tutelar bens que, para além de individuais, constituem elementos constitutivos de um povo,
representa óbice aos direitos do proprietário. Assim, conforme assevera Telles (1992, p. 14)
“o tombamento provoca, ao menos entre os não iniciados nas letras jurídicas, grande repulsa e
inconformismo, por se tratar, depois da desapropriação, da mais séria restrição ao direito de
propriedade”. Telles (1992) afirma, ainda, que o proprietário do bem tombado merece melhor
tratamento legislativo a fim de que seja compensado pelos prejuízos decorrentes do
tombamento. No entanto, que prejuízos são esses que se colocam como maiores do que a
relevância de se tutelar o patrimônio constitutivo da memória de uma cidade e daqueles que
com ela se relacionam?
Em verdade, a necessidade que se apresenta é do reconhecimento do
tombamento como via não de proteção de pedras e tijolos, mas de bens simbolicamente
relevantes para uma coletividade e para a constituição de identidade.
Nesse sentido, é válido colocar em cena o quanto apresentado pelo IPHAN e a
atuação da autarquia no intuito de gerar tal reconhecimento a partir da implantação de uma
educação patrimonial.
Educação Patrimonial constitui-se de todos os processos educativos
formais e não formais que têm como foco o Patrimônio Cultural, apropriado
socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das
referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para
seu reconhecimento, sua valorização e preservação (BEZERRA;
FLORÊNCIO; CLEROT;RAMASSOTE, 2014, p. 19)

A noção de educação patrimonial, expressão cunhada desde 1984 para as práticas


formais ou não de educação que objetivam promover o conhecimento/reconhecimento do
patrimônio cultural, perpassa pelo reconhecimento de que a forma de se garantir a

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V V
preservação dos valores culturais da sociedade, assim como a inserção do patrimônio
cultural no cotidiano das comunidades, perpassa, indubitavelmente por ações que se voltem
para a sensibilização dos cidadãos (UMBELINO, 2012).
Trata-se, em síntese, de um reconhecimento não do significado do tombamento como
instituto jurídico, mas dos elementos culturais por ele tutelados, o que, por óbvio, será capaz
de gerar um reconhecimento e uma atuação popular hábil a proteger até mesmo aqueles bens
que, em que pese ainda não sejam objeto de tutela via tombamento, representam patrimônios
a serem protegidos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa, questionando a eficácia do tombamento na Rua Direita do
Santo Antônio, partiu da hipótese de que o tombamento representaria instituto ineficaz para a
manutenção do patrimônio cultural. Tal ineficácia decorreria, sobretudo, da ausência de um
reconhecimento do bem tombado e consequente abandono simbólico e físico dos bens cujo
tombamento obstaria o pleno direito de propriedade.
A pesquisa bibliográfica, assim como a de campo, por meio de observações no
espaço escolhido e entrevistas com moradores da região, evidenciou, por sua vez, que o
tombamento, por meio de um dos textos legais mais antigos do sistema jurídico brasileiro,
impõe importantes efeitos ao Estado e aos particulares a fim de resguardar o patrimônio
nacional. Dessa forma, restou claro que, sem o tombamento, muitos dos bens constitutivos da
identidade e, consequentemente, da memória brasileira, teriam sucumbido aos processos de
modernização.
Foi possível perceber, contudo, que o tombamento não se mostra
suficientemente eficaz para uma árdua tarefa, a salvaguarda de bens de importância nacional.
Em verdade, falta maior iniciativa dos entes estatais a fim de fiscalizar e proteger tais bens,
assim como para tutelar o bem tombado quando ausente uma atuação dos particulares.
Ademais, pelo discurso que circula entre os entrevistados e demais populares sobre tal
instituto jurídico, observa-se que, em essência, ele é compreendido como danoso meio de se
obstaculizar o pleno gozo do direito de propriedade. Dessa forma, a necessidade que se coloca
é a de que se reconheça a natureza significativa do ato de preservar, assim como, do bem a ser
tutelado. O tombamento, portanto, não se mostra suficiente em razão, sobretudo, da
necessidade de uma educação patrimonial voltada para a compreensão, pelos particulares, dos
patrimônios que o circundam e compõem suas memórias individuais e coletivas.

1080

V V
Há que se ressaltar que embora “a proteção incida sobre as coisas, pois estas é que
constituem o objeto da proteção jurídica, o objetivo da proteção legal é assegurar a
permanência dos valores culturais delas identificados” (FONSECA, 2005, p.40). Assim
sendo, o dever que se coloca, além de utilizar os elementos impostos pelo próprio instituto,
como a fiscalização, é promover o reconhecimento dos valores inerentes aos bens tombados.
Isso, por óbvio, ao se tratar de um direito à memória do espaço urbano, perpassa,
inegavelmente, por um entendimento de que memórias individuais e coletivas se entrecruzam
e se relacionam diretamente com a história da própria cidade.
Ademais, como se identificou a partir da compreensão de que, mais do que tombar, é
preciso fomentar uma educação patrimonial, “[...] o grande desafio, ainda hoje, de uma
política federal de preservação no Brasil é desenvolver, numa sociedade como a brasileira,
uma política de patrimônio que seja, efetivamente, uma política pública” (FONSECA, 2005,
p. 25). O tombamento, conforme se evidencia, em que pese de suma relevância, não se mostra
suficiente para tanto se não for devidamente realizado, fiscalizado e atrelado a outras políticas
de preservação que se importem com o reconhecimento popular do bem a ser protegido.

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1082

V V
O BLOCO RASGADINHO E A COSTURA DE UMA POLÍTICA
CULTURAL EM ARACAJU (SE)
Mirtes Rose Menezes da Conceição1

RESUMO: O presente trabalho visa realizar uma breve análise sobre a atuação do Estado por
meio de políticas culturais na ressignificação de manifestações populares, em caso específico,
o Bloco Rasgadinho que ocorre durante o reinado de Momo (Carnaval) no município de
Aracaju (Se). O bloco, que nasceu por conta da iniciativa popular na intenção de inserir a
comunidade em uma das maiores festas nacionais, munido de criatividade e irreverência, e em
transformar a condição social em algo lúdico e ao mesmo tempo utilizá-lo de instrumento
para que suas reivindicações fossem atendidas por parte do poder público, hoje, tornou-se
símbolo quiçá a representação do carnaval da cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Carnaval, Bloco Rasgadinho, Políticas Culturais.

ABSTRACT: This study aims at a brief analysis of the performance of the State through
cultural policies in reframing popular demonstrations, in the specific case, the Rasgadinho
block that occurs during the reign of Momo (Carnival) in the city of Aracaju (If) . Block, who
was born due to the popular initiative in an attempt to put the community at one of the largest
national parties, armed with creativity and irreverence, and transform the social condition into
something playful and at the same time use it so that your instrument claims were met by the
government, today, became a symbol perhaps representing the town Carnival.

KEYWORDS: Carnival; Rasgadinho block; Cultural Politics.

“Quando a vida é boa/ não precisa pressa/


até quarta-feira/a pisada é esta.” Capiba

Introdução
Se existe uma festa que unifica as regiões de forma visível, esta é o carnaval no Brasil.
As origens da festa estão associadas aos gregos e aos romanos que celebravam as suas
colheitas, mas em território brasileiro seu surgimento está ligado aos portugueses. Em meados
do século XIX, a festa era composta por um caráter lúdico, onde eram encontrados desde
polvilho de farinha de trigo utilizados pelos escravos, até perfumes utilizados pelas famílias
com maior poder aquisitivo.
Por conta desses atos, muitas pessoas não se deslocavam das suas residências e as
elites realizavam os bailes de máscaras (período correspondente ao Primeiro Império). Os
1
Mestre em Sociologia e acadêmica do curso de Artes Visuais pela Universidade Federal de Sergipe.
(mirthysrose@hotmail.com)

1083

V V
bailes eram realizados em hotéis e teatros regados a música instrumental e foi em 1869 que
Correia Vasques fez uma adaptação de uma música francesa e a nomeou de Zé Pereira (sendo
executada até os dias atuais). A festa não existia na rua. Contudo, alguns profissionais da
imprensa na época começaram a fomentar a criatividade popular baseados nas festas que
ocorriam em Roma e em Veneza (onde pessoas saíam fantasiadas às ruas).
Dessa forma surge o carnaval brasileiro, abraçado pela sua distinção: de um lado
bailes produzidos pela "classe rica" e do outro pela "classe pobre" em que são encontrados os
maracatus, afoxés e frevo. O que nos leva a refletir que a festa tornou-se o lócus da
reprodução da divisão de classes da época e que perdura e se (re) compõe também nos dias
atuais.
Em Sergipe, segundo o pesquisador Luíz Antônio Barreto (2006), existe uma
associação da festa com o a existência desta em território brasileiro, destaca ele "a primeira
forma do carnaval em Sergipe, como de resto em várias partes do Brasil, foi o Entrudo,
realizado no primeiro dia do ano, com sua “Guerra de Cabacinha”, também conhecido como
Limão de Cheiro, seus bandos de mascarados, grupos folclóricos, especialmente Lambe –
Sujos e Caboclinhos". A respeito da festa em terras sergipanas, ainda descreve o autor:
Em Sergipe as tais “laranjas de entrudo” eram chamadas de Limões de Cheiro, vendidas no comércio,
antecedendo ao uso da lança-perfume. Em Japaratuba recebem a denominação de Cabacinhas, porque
ultimamente as suas formas são assemelhadas a de uma pequena cabaça. O Entrudo teve largo uso em
Sergipe. Um dos Presidentes da Província costumava convidar os seus amigos para o Palácio
Provincial, em São Cristóvão, surpreendendo-os com um banho de cheiro, uma grande bacia de água
perfumada. Também eram formados os partidos, ou blocos, que disputavam na cidade a preferência do
povo. Invariavelmente, o final da festa era marcado pelas rivalidades mais brutais entre os partidários,
não sendo raro o registro de mortes na velha capital. Os partidos sobreviveram em várias partes do
Estado, nos Micaremes, mantendo o povo dividido pela preferência que a festa impunha (Portal
Infonet, 20/02/2004).

O carnaval sergipano estava disposto por vários municípios, onde a Micareme era o
ponto ápice da festa imposta pela rivalidade dos grupos. Tanto o sucesso quanto os motivos
que levaram os blocos e, consequentemente, a festa em decadência são descritos por Barreto
(2012):
O tempo, a televisão via satélite, e outros meios de comunicação, liquidaram
com os blocos dos micaretas, que tinham ponto alto em Maroim, com os
blocos Chic e Paladino. Em outros municípios esse tipo de carnaval de rua
atraiam multidões, disputando os cordões de foliões formados em torno de
cada um dos blocos. Em Ribeirópolis a tradição carnavalesca é ainda mais
primitiva, com o grupo Reisado dos Caretas, mascarados que no mês de
fevereiro tomam as ruas, sujam os seguidores e intimidam até mesmo os
adeptos, que anualmente repetem a folia, conotando com certo erotismo a
dança entre pares do mesmo sexo. Em Lagarto, Laranjeiras, Japaratuba e
outros lugares a existência de grupos de Maracatús responde pelo carnaval.

1084

V V
Enfim, em todo o Estado, incluindo os povoados, há um potencial para a
brincadeira livre do carnaval (Portal Infonet, 24/02/2012).

Quando se refere ao ritmo que embala os dias do trânsito momesco, o autor faz uma narrativa
e uma diferenciação entre o que cada município se detém para atrair o maior número de
foliões, diz ele:
O Frevo, mais que o samba e do que as marchinhas é o ritmo carnavalesco
por excelência, e em Sergipe a pátria do frevo é Neópolis, que atrai milhares
de foliões, para a prática quase espontânea dos desfiles de rua. O público não
vai a Neópolis atraído pelos baianos e suas bandas, mas pela singularidade
do frevo, ritmo que guarda antiguidade na história dos carnavais brasileiros.
Neópolis faz uma festa de metais, e talvez aí resida o poder de atração que a
cidade tem, como teve no carnaval que findou. Talvez não seja
despropositado dizer que Nossa Senhora do Socorro tem no carnaval de
Neópolis um modelo, ainda que existam diferenças. O Mela mela tem,
também, seu vínculo com as tradições carnavalescas" (Portal Infonet, 2012).

Embebido de lembranças, entre confetes e serpentinas eis que é chegado o momento


de recordar as festas de Momo pela capital...

(Ó abre alas que eu quero passar)


Aracaju e seus "velhos carnavais"
Pensar carnaval em Aracaju é rememorar as escolas de samba, os blocos carnavalescos
e os bailes em clubes como a Associação Atlética. É pensar em ruas cheias de foliões em
frente ao Palácio do Governo com a "praça do povo" e que muito antes da instituição da
expansão da indústria do entretenimento baiano, conhecido como previa carnavalesca, que
recebeu o nome de Pré-caju, a cidade já tinha vivido seus dias gloriosos de folia momesca nas
ruas e em clubes. A esse respeito, podemos citar que em 1895, os primeiros blocos que se tem
notícia o Mercuriano representado pelas cores azul e branco e o Cardovínivo por sua vez
representado pelas cores vermelho e branco. A posteriori, surgiram os Filhos de Baco,
Arranca, Paladinos Democráticos, dentre outros.
Sobre o carnaval em Aracaju registra-se bailes de máscaras e concursos de fantasias
realizados no extinto Cinema Rio Branco, situado na Rua João Pessoa, conforme o anúncio do
jornal Correio de Aracaju de 07 de fevereiro de 1920: "O theatro Rio Branco abre hoje o seu
cyclo de alegria Carnavalesca. É um estonteante baile masque que as dez horas da noite
povoará de ruídos o vasto recinto". O jornal ainda menciona na edição de 19 de fevereiro do
mesmo ano uma descrição:
A guarda da frente, compunha-a a comissão que promoveu o carnaval deste
anno, e que vinha montada em bellos cavalos de raça. O intinerario
percorrido foi o das ruas de Pacatuba, Barão, Laranjeiras, Avenida Rio

1085

V V
Branco, praças de Palácio, Coronel José de Faro e da Matriz, ruas de Santo
Amaro, Laranjeiras, Avenida Rio Branco, Largo do Palácio, rua do Barão,
demorando-se em frente do palacete da Assembléa (Correio de Aracaju, nº
2819, 1920).

A respeito do carnaval em Aracaju, nos informa o memorialista Murilo Melins (2007)


"era precedido por batalhas de confetes na Praça Fausto Cardoso, Rua João Pessoa, Atalaia, e
pelos bailes pré-carnavalescos nos clubes da cidade" (p. 119). Em sua narrativa, o autor expõe
detalhes dos rituais que antecediam a festa, bem como de toda a folia. Nas palavras do autor:
A folia iniciava-se palidamente, a partir das 16 horas do sábado. O comércio
havia fechado suas portas ao meio-dia. Mas, à tarde, algumas casas abriam
uma das portas para a venda de lança-perfumes, confetes e serpentinas.
Vendedores autônomos espalhavam pelas calçadas máscaras, bonés, colares,
papais-sacode, apitos, línguas de sogra, saquinhos de confetes e outros
artigos carnavalescos (MELINS, 2007, p. 121).

Ainda, segundo o autor, o reinado de Momo trazia às ruas da cidade, sobrepostas pelo
significado da festa e embebidas pelo sentimento de alegria, pessoas de todas as idades e de
diversos locais do Estado para ver a entrega simbólica da chave da cidade pelo prefeito ao rei
que ordenava através de decreto "um formidável ponta-pé na tristeza" e descrevia a festa
enquanto um tempo de libertação da realidade cotidiana, pois se tratava de "um balsamo
milagroso de uma vida sofredora. Quarta-feira de cinzas é o fim da farra e com ela renasce a
dor" (p. 122).
Para Luíz Antônio Barreto, a capital também teve grande participação nos carnavais
sergipanos:
Aracaju também teve seu carnaval de blocos, sob o patrocínio de clubes
como o Recreio Club, fundado em 1916, ou como o Papai Sacode, formado
no início da década de 1930, pelos operários da Fábrica Sergipe Industrial,
criadores do adereço que hoje leva o nome de Mamãe Sacode, e que é muito
utilizado nas prévias carnavalescas, ou, ainda, como os que participaram do
Micareme do Centenário, realizado em 23 de março de 1955, nos salões da
Associação Atlética de Sergipe. Os clubes, com seus grandes salões,
tomaram o lugar dos blocos e ofereceram bailes momescos aos seus
associados ou convidados. A Associação Atlética de Sergipe, o Iate Clube de
Aracaju, a partir de 1953, o Vasco, o SEMAS, o Clube dos Comerciários, o
Cotinguiba, e até o auditório da Rádio Difusora promoviam bailes, com
orquestras e conjuntos, alguns afamados como a orquestra de frevo do
maestro pernambucano Nelson Ferreira. E quem não entrava nos clubes, ou
vivia no interior, brincava ao som das músicas de Capiba, na voz de
Claudionor Germano. Isto tudo acabou (Portal Infonet, 20/02/2004).

O autor lamenta o término do reinado momesco nas terras da capital e menciona uma
explicação para o ocorrido. Ainda segundo Barreto:

1086

V V
Situada entre dois pólos carnavalescos – Recife e Salvador – Aracaju perdeu
a sua referência com relação ao carnaval. O show nas imediações dos
Mercados, e que remontam ao Clube do Povo, tentativa de reanimar a folia,
iniciativa do então Prefeito Heráclito Rollemberg, tem sido os últimos
suspiros dos velhos carnavais (Portal Infonet, 25/02/2006).

Sem demoras, vamos nos esbaldar na história do bloco que com seu resgate tornou-se
objeto deste trabalho...

(Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô)
O Bloco Rasgadinho
O bloco Rasgadinho foi criado por seu Leopoldo Santos (morador do bairro Suíssa),
em 1962, indo até 1972, quando encerrou as suas atividades. Através das lembranças que
povoavam a memória coletiva dos moradores e ex-participantes do bloco, após uma roda de
conversa, em 2003, o bloco retornou. A priori, o bloco nasceu como alternativa para que
amigos e familiares fossem inseridos ao carnaval e estes foram às ruas com os trajes que
possuíam. A maioria dos moradores do bairro é descendente de escravos, pois estes não
poderiam morar dentro do perímetro estabelecido pelo plano que deu origem a cidade
(conhecido como "quadrado de Pirro").
O bloco consiste em um cortejo pelas ruas do bairro e há concentração em local
estabelecido. Durante o percurso, outros blocos vão incorporando e aumentando o contingente
de foliões. Cada um ao seu modo. Uns são lúdicos, outros levantam suas placas acerca das
questões que envolvem seus imaginários e suas reivindicações (existe uma diversidade delas;
desde questões políticas a questões ligadas a gênero, raça e há ainda as ligadas às classes
sindicais, entre outras). O bloco tornou-se um espaço de visibilidade, de expansão de lutas, de
expressar e exercer a liberdade, sem perder a alegria, a irreverência essencial à festa
momesca. Como esclarece José Murilo de Carvalho (1990, p. 89), para que o imaginário
social seja arraigado nas mentalidades, precisa haver uma “continuidade de sentido”. Assim,
“[...] símbolos, alegorias, mitos só criam raízes quando há terreno social e cultural no qual se
alimentam”.
Ainda a respeito do bloco e dos carnavais de rua, menciona Luíz Antônio Barreto
(2012):
O carnaval de rua, portanto, é uma mistura de ritmos, coreografias, cores,
sem uma identidade local, ainda que os esforços dos últimos anos tenham
tomado o caminho do resgate, como é o caso do Bloco Rasgadinho, que
apesar de 50 anos de fundado passou mais tempo no limbo, sem condições
objetivas de promover o carnaval de rua, principalmente na região da
Avenida Pedro Calasans. O esforço dos que fazem o Rasgadinho é digno de

1087

V V
registro e de aplauso, pelos resultados conquistados nos últimos anos, não
deixando morrer, de todo, o reinado de Momo (Portal Infonet).

No primeiro ano de retorno às ruas de Aracaju, o bloco saiu com cerca de 50 participantes que
brincavam acompanhados de carro de som. No terceiro ano esse volume foi estendido para 5
mil foliões e com uma participação de cerca de 50 mil, chegando a atingir no período noturno
uma concentração de 80 a 100 mil (atualmente acredita-se que esse número tenha superado a
casa dos 150 mil - segundo a Polícia Militar do Estado), consolidando o bloco como uma
atração a parte no carnaval de Aracaju, onde são encontradas atrações locais e nacionais,
foliões fantasiados e bonecos gigantes compassados ao ritmo do frevo.
O bloco tem uma abertura onde é promovida uma feijoada e toda a programação é
divulgada, atendendo, assim, um ritual. São montados palcos (o principal e palcos
alternativos) onde a organização tem inovado, a exemplo da edição deste ano (2015) que
trouxe o forró como uma forma de alusão aos festejos juninos e a promoção deste evento,
uma vez que 'Sergipe é o país do forró'. Vários temas já foram abordados pelo bloco, como
frevendo com sergipanidade, em 2010, quem não se comunica se trumbica, em 2011,
carnaval multicultural, em 2013, carnaval da diversidade cultural, em 2015.

(As águas vão rolar)...


Carnaval x Políticas Culturais: resgate ou apropriação?
Para a construção do presente trabalho, partimos do pressuposto interrogativo: "as
ações promovidas pelo poder público (Prefeitura Municipal de Aracaju e Governo do Estado
de Sergipe) mantêm a festa enquanto manifestação popular e/ou esta tem sido apropriada e
utilizada como "moeda de troca" de interesses, fomentando um campo tensional, de disputa e
negociável?
É valido ressaltar que não só o bloco Rasgadinho foi reativado, a partir do ano de
2003, mas muitos outros, inclusive despertando o aparecimento de outros blocos, como o
"Galo do conjunto Augusto Franco" (2009) e o "Carro Quebrado" (2005 - uma referência à
antiga nomenclatura do local). Em uma retrospectiva da vida política municipal e estadual,
percebemos que esses incentivos faziam parte de uma política adotada pela gestão do então
prefeito de Aracaju pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Marcelo Deda (1960-2013), que
administrou publicamente a cidade nos anos 2000 a 2004, em primeiro mandato, e de 2004 a
2006, quando eleito Governador do Estado. As políticas adotadas ganharam uma maior
proporção. Foram alargadas a todo o Estado, perduraram e ganharam novos incentivadores da
rede privada local.

1088

V V
Ao mesmo tempo em que se falava em resgate cultural, valorização das tradições, há
concomitantemente uma política preocupada em melhorar a imagem da cidade e empenhada
em captar a "admiração" dos olhos dos turistas, não só para a cidade, mas para o Estado como
um todo. De forma geral, a gestão baseava-se em levantar a autoestima dos sergipanos e
entendiam que para tal feito era necessário investir nas manifestações culturais (populares) e
que estas precisavam ser preservadas e consequentemente seria enaltecida uma imagem de
Sergipe como um lugar singular onde as raízes estão salvaguardadas.
O que verificamos quando analisamos jornais que retratam o período do festejo
momesco é que o bloco Rasgadinho tem se tornado o maior símbolo do "carnaval de rua" da
cidade e esse foi fato constatado durante o trânsito deste ano (2015), quando a atual gestão
municipal, cujo prefeito João Aves Filho (Democratas - DEM) suspendeu a festa2,
concentrando e/ou obrigando os foliões a brincarem o carnaval no bloco.
Ficou constatado através do trabalho de campo o quanto o carnaval, o bloco
Rasgadinho são utilizados pelo poder público como atrativos e como aliados na promoção da
construção de um imaginário coletivo acerca da imagem da cidade, baseado em uma narrativa
que esta mantém as tradições, valoriza a cultura popular e "resgata" as raízes, além de
vincular tais manifestações de forma pacífica, segura (em outras palavras uma festa familiar
para todas as idades, onde o turista pode sentir-se abraçado também, pois "pode chegar que é
de casa").
Apesar de na atualidade os poderes municipal e estadual serem de lados partidários
opostos, observa-se uma confluência com relação às ações das secretarias de cultura no que
diz respeito ao bloco Rasgadinho. As oposições são esquecidas em prol da satisfação e alegria
proporcionadas ao povo. Tal pressuposto nos remete a refletir a respeito de uma política
voltada a suscitar eventos que enalteçam a cidade enquanto lócus da produção cultural.
É inegável que o carnaval é uma manifestação popular e coletiva que acontece em um
tempo determinado e que esta se sobrepõe a vida cotidiana dos brincantes, mas quando
tratamos a festa na ótica dos gestores, é claro, a apropriação do "tempo festivo" através dos
órgãos competentes. Há uma "transferência de responsabilidade" da manifestação popular
(aparentemente espontânea) que passa a ser administrada pelo poder publico, pois este fornece
subsídios (como recursos financeiros) condicionando a trajetória festiva.
Dentro dessa esfera de interpretação que observamos o espaço de negociação
resultantes e atuantes no território festivo entre gestores públicos e brincantes, o que, por sua
2
A festa foi suspensa, mas a Prefeitura Municipal de Aracaju (PMA) deu apoio a mais de 90 blocos que
brincaram carnaval em seus respectivos bairros.

1089

V V
vez, produz ressignificações das práticas de acordo com as normas instituídas. Um exemplo
destas ações é como se prepara o território da folia (espaço onde o bloco ocupa depois do
cortejo/desfile) os órgãos municipais e estaduais unem-se, a avenida é fechada em
determinado período do dia e todo um aparato que dará suporte a festa (policiais,
paramédicos, agentes de trânsito) se faz presente em locais estratégicos. O que nos chama a
atenção são os grandes balões que carregam as marcas publicitárias dos gestores públicos e/ou
dos colaboradores.
As nossas análises nos levam a mencionar as ações dos gestores públicos como
políticas de incentivo (preservação) da chamada cultura popular que se apresenta de forma
plural e diversificada. E que em um dado momento são tidas como essencializadas e, dessa
forma, são expostas por estes como autênticas, originais, intocadas e por essa razão devam ser
resguardadas. As manifestações que não se encaixam ou se adéquam a esses critérios devem
ser 'resgatadas' para que suas raízes não sejam perdidas (como é o caso dos carnavais de rua e
da reativação do bloco Rasgadinho). Sobre esse discurso nos alerta Arantes (1990, p. 21)
"essas maneiras de pensar cultura pressupõem ou que ela seja passível de cristalização,
permanecendo imutável no tempo a despeito das mudanças que ocorrem na sociedade, ou,
quando muito que ela esteja em eterno 'desaparecimento'".

(Ai, ai, ai ai, ai ai ai,está chegando a hora! De eu partir... O dia já vem raiando, meu
bem, eu tenho que ir embora)
Considerações Finais
O bloco Rasgadinho sempre utilizou o espaço público para demarcar o seu território.
Na atualidade, esse território é demarcado de forma institucionalizada através do poder
público que disponibiliza recursos. O bloco conta com vários palcos e uma variada
programação atendendo seus diversificados perfis de foliões.
O território da folia (da festa) é demarcado pela decoração e pelos pórticos que
efetivam os limites do bloco, bem como estampam os colaboradores. Pode-se observar os
adereços que identificam o circuito da festa e os palcos que fixam os brincantes e são pontos
culminantes onde ocorrem shows de renomados artistas nacionais e locais. O bloco ainda
mantém o cortejo pelas ruas garantindo assim seu movimento.
Contudo, observamos que o discurso de afirmação da tradição se faz presente e alguns
elementos continuam a caracterizar o bloco: fantasias, placas com diversas reivindicações, a
alegria, as cores, as músicas e o espírito da festa ainda prevalecem adaptados a atual
conjuntura, pois esses elementos sofrem ressignificações ao longo do tempo.

1090

V V
A compreensão dessa esfera simbólica que o bloco representa fica mais evidente com
as ações que correspondem à intervenção por parte do poder público desde a programação à
profusão de imagens da festa e da cidade através do bloco o que tem contribuído para a
construção de novos sentidos (novas interpretações)

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1091

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em:http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/. Acesso em: 26/02/2015.

1092

V V
UMA INTERFACE DE POLÍTICA CULTURAL E PATRIMÔNIO CULTURAL: "A
EXPERIÊNCIA DA TENTATIVA DO RESGATE DO PORTAL DA ESCOLA
NACIONAL DE BELAS ARTES DO RIO DO JANEIRO, DURANTE A VIGÊNCIA
DO CONSELHO FEDERAL DE CULTURA, NO ANO DE 1976"
Monike Garcia Ribeiro1

RESUMO: Este artigo discorre sobre uma documentação oriunda do Arquivo CFC/Minc,
cujo processo de recuperação está a cargo do setor de Política Cultura da Casa de Rui
Barbosa-RJ. O corpus documental que é tema deste artigo mostra-se rico para iluminar
questões relacionadas ao contexto cultural, político, institucional e patrimonial da época de
produção da documentação e também dos períodos de posterior apropriação político-
institucional do mesmo processo. O processo documental de 1976 trata de uma solicitação do
Arquiteto Donato de Mello Jr. ao CFC para recompor o Portal da antiga Escola Nacional de
Belas Artes - RJ, instalado no Jardim Botânico. A documentação nos remete a refleti-la à luz
da Memória Social e dos estudos sobre política e patrimônio cultural, considerando que os
dois campos estarão alicerçados pela História.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural, Política Cultural, Memória Social, História


Contemporânea no Brasil.

Apresentação Tema
Este paper abordará algumas questões significativas relacionadas à área de memória
social, política cultural e patrimônio, tomando-se como base uma documentação específica
relacionada ao processo de recuperação do portal da demolida Escola de Belas Artes do Brasil
– portal que hoje se localiza no jardim botânico. A análise empreendida no presente artigo
será interessante para perceber como, nos estudos sobre memória social, políticas culturais e
patrimônio cultural, um mesmo objeto pode sofrer inúmeras apropriações culturais e políticas
no decurso de uma determinada sucessão de distintos contextos políticos e institucionais. Este
é o caso do bem cultural específico que estaremos analisando neste artigo: o portal da
demolida Escola Nacional de Belas Artes de autoria do Arquiteto francês GrandJean de
Montigny.
Sujeito a diversos ambientes políticos e contextos históricos, que vão dos anos trinta
até a ditadura militar, a trajetória patrimonial deste Portal construído nos oitocentos, pode
lançar luz sobre sutis mudanças na História da Política Cultural e Política Brasileira. O nosso

1
- Doutora em História Comparada pela UFRJ-IFCS/IH. Mestre em Memória Social /UNI-RIO. Historiadora
formada pela UFRJ. Bacharel em Museologia (UNI-RIO). E-mail: monikegarciaribeiro@hotmail.com

1093

V V
objetivo neste artigo será examinar uma documentação que ilumina esta questão, e que pode
ser encontrada nos dias de hoje no Arquivo do Conselho Federal de Cultura / Minc. Porém,
antes de detalharmos os pontos mais específicos referentes à documentação em questão,
convém esclarecer um pouco a História Patrimonial que envolve este bem cultural: O Portal
da Escola de Belas Artes. O Portal trata-se de um resquício da Academia Imperial de Belas
Artes, projetado por GrandJean de Montigny, na qual foi inaugurada em 5 de novembro de
1826 durante o 1° Reinado (D. Pedro I), produto do Neoclassicismo brasileiro.
O arquiteto francês Grandjean de Montigny chegou ao Brasil em 1816, acompanhando
um grupo de artistas franceses a convite de Dom João VI. O projeto civilizador joanino,
almejava introduzir o gosto das Belas Artes no Brasil, e neste sentido caberia aos mestres
franceses construírem uma Academia de Belas Artes, ao mesmo tempo em que, enquanto este
prédio não estivesse pronto, ministrariam aulas. Foi nesta época que Grandjean começou a
conceber a Academia, que seria inaugurada apenas dez anos depois, no Primeiro Reinado.
Segundo alguns pesquisadores, aí está o início da introdução do neoclassicismo
no Brasil, para aquela época, uma novidade que posicionava o Brasil no cenário artístico
internacional em vista da adoção do padrão cultural europeu. A Academia Imperial de Belas
Artes, com o prédio que lhe serviu de base, chegaria a pleno funcionamento aos tempos da
República, já no século XX passa a ser Escola Nacional de Belas Artes, formando diversos
pintores e arquitetos importantes que abraçaram a estética neoclássica. Os novos rumos da
recepção da história do neoclassicismo começam a ser traçados no período nacionalista
modernista de 1922, quando já se nota uma crítica contundente ao modelo neoclássico e,
conseqüentemente, aos bens culturais produzidos de acordo com a técnica, parâmetros
estéticos e procedimentos neoclássicos, questão à qual voltaremos oportunamente. Por ora, o
que importa ressaltar é que o prédio da Escola Nacional de Belas Artes, veio a ser demolido
no final da década de 1930, restando, entre suas ruínas, somente o portal desta
Academia/Escola de autoria de GrandJean de Montigny. O portal, contudo, foi preservado ao
ser levado para o Jardim Botânico na década de 1940. E é este gesto de recuperação da
memória neoclássica que permitirá o surgimento de uma questão documental, referente ao
papel do Conselho Federal de Cultura, enquanto um órgão gestor da cultura, que
analisaremos, já no contexto dos anos 1970.
Modernamente sabemos que, no âmbito da teoria patrimonial, houve um relevante
alargamento da conceituação até então elitista do que seria chamado de Patrimônio Cultural.
Através das recentes cartas patrimoniais, abandonou-se a concepção tradicional, que

1094

V V
praticamente só aceitava, como sendo Patrimônio, tudo o que se relacionava com o passado
das classes dominantes.
"A ampliação do conceito de patrimônio reforçada na Carta de Veneza (1964), e
anteriormente observada na Convenção de Haia (1954), sugeria que a preservação não se restringisse
às grandes criações, mas que se ocupasse também das obras consideradas modestas". (FUNARI e
PELEGRINI, 2006, P.53 )

De acordo com a perspectiva mais recente, adota-se uma conceituação de Patrimônio


mais complexa, diversificada e socialmente abrangente. Para que um determinado bem ou
objeto de memória possa ser considerado como Patrimônio, já não se tem mais em vista, nos
dias de hoje, apenas aquilo que seja sinônimo de erudição e refinamento do ponto de vista de
determinada classe social. A nova maneira de pensar o Patrimônio Cultural, procura estender
o olhar também para o simples e o aparentemente corriqueiro, considerando como
significativas e relevantes às memórias de expressões culturais do ser humano comum e os
fatos relacionados à sua vida cotidiana2. É bem verdade que, sendo considerado um objeto de
arte já consagrado tanto por sua filiação neoclássica, como por sua autoria relacionada ao
arquiteto GrandJean de Montigny, o Portal da Escola (após a Proclamação da República a
Academia Imperial passa a chamar-se em Escola Nacional) enquadrar-se-ia perfeitamente no
modelo mais tradicional de conceituação do que seria “Patrimônio”. Destarte, é importante
notar que os modernos usos da conceituação de Memória Social e Patrimônio Cultural
procuram estar atentos, inclusive nos casos em que estejamos diante de bens patrimoniais de
tipo tradicional, para as diversificadas recepções do bem cultural em questão e para a
abrangência social de sua percepção.
O Portal de GrandJean de Montigny, é o que tentaremos dar a perceber neste artigo, é
um destes bens culturais que, em vista da sua extraordinária importância histórica, artística e
como objeto de Memória Nacional, tem motivado múltiplas recepções e apropriações
culturais e políticas, tratando-se de um estudo de caso muito significativo da História das
Políticas Culturais no Brasil, durante a década de 70 na vigência do órgão gestor, Conselho
Federal de Cultura. Dentro deste universo de percepções e apropriações possíveis
relacionados ao Portal, estaremos trabalhando com um recorte documental e político mais
específico, que ficará bastante claro no próximo item.

2
- “(...) ampliação da noção de patrimônio histórico para a de patrimônio cultural. A perspectiva reducionista
inicial, que reconhecia o patrimônio apenas no âmbito histórico, ... , acabou sendo, aos poucos, suplantada por
uma visão muito mais abrangente. A definição de patrimônio passou a ser pautada pelos referenciais culturais
dos povos, pela percepção dos bens culturais nas dimensões testemunhais do cotidiano e das realizações
intangíveis.” FUNARI, Pedro Paulo e PELEGRINI, C.A. Sandra. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006; p. 32.

1095

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O Conselho Federal de Cultura e o Portal da Escola de Belas Artes:
Neste momento, iremos nos remeter já mais diretamente à questão que interessa ao
presente artigo. Entre os conjuntos de documentação guardados no Arquivo do Conselho
Federal de Cultura/Minc3, destaca-se precisamente por sua importância histórica um conjunto
documental, relativo ao bem cultural anteriormente descrito. Trata-se de um processo aberto
no Conselho Federal de Cultura, iniciado em 29 setembro de 1976 e finalizado no mesmo ano
de 1976 (27-Processo CFC:645/76-Câmara de Artes ), na qual apresenta-se como proponente
Donato de Mello Junior (presentemente já falecido), que na época era professor de
Arquitetura da UFRJ e membro do IHGB. Na atualidade, este corpus documental do
Conselho Federal de Cultura nos direciona para os estudos no campo de Política Cultural e
Patrimônio cultural, além, é claro de Memória social, História do Brasil Contemporânea e
História da Arte. A abordagem deste estudo de caso, em torno desta documentação, referente
ao extinto órgão gestor público de cultura, o Conselho Federal de Cultura, realizar-se-á
mediante “formulações teóricas e práticas a respeito do patrimônio cultural não podendo ser
dissociadas do contexto histórico que as originou, porquanto todo conceito é dotado de
historicidade”. (ZANIRATO, 2005)
Através desta documentação, ainda não pesquisada, oriunda do Arquivo do Conselho
Federal de Cultura/Minc, ficamos cientes de que o pesquisador da arte Donato de Mello
Junior dirigiu-se na década de setenta do século XX, em pleno governo militar do General-
Presidente Ernesto Geisel, ao Conselho Federal de Cultura, órgão ligado ao Ministério da
Educação e Cultura, com o fito de solicitar ajuda para realizar uma homenagem ao já referido
arquiteto francês Grandjean de Montigny. Com o intuito de homenagear a memória do célebre
arquiteto neoclássico que completaria no ano de 1976 o bicentenário de seu nascimento, o
Pesquisador de Arte aproveitou o ensejo da ocasião e solicitou um pedido de ajuda ao CFC,
dando origem à documentação em referência e a uma série de desdobramentos posteriores.
Dirigia-se o seu apelo de ajuda não somente ao CFC (Câmara de Artes), mas também
a outros órgãos e instituições ligados à viabilização de seu pedido de homenagem, como o
IPHAN, o Conselho Estadual de Cultura, o Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico e o
Museu Histórico Nacional, que em conjunto deveriam exercer uma ação que visava recolocar
o portão de ferro (que é também de risco de GradJean de Montigny) no portal da demolida

3
-O projeto Ação federal na cultura: História e Memória permite a Fundação Casa de Rui Barbosa-RJ
coordenar o processo de recuperação do arquivo CFC/Minc, sob a coordenação da Doutora em História Lia
Calabre, chefe do setor de pesquisa em política-cultural (e-mail:liacalabre@rb.gov.br).

1096

V V
Escola Nacional de Belas Artes instalado até hoje no Jardim Botânico. O Museu Histórico
Nacional – local onde se encontrava o portão de ferro original da antiga Escola Nacional de
Belas Artes (desenhado por GrandJean de Montigny) – foi somente inserido no processo de
homenagem a Montigny em dezembro de 1976 pelo Presidente da Câmara de Artes, Clarival
do Prado Valladares .
No mesmo processo já citado acima, aberto com a nomenclatura “Donato Mello
Junior-Grandjean de Montigny-Bicentenário do nascimento do grande Arquiteto do R.J.
Imperial”, destacamos a seguinte parte esclarecedora do andamento processual:
“Ocorre que na época da demolição a portada em cantaria e escultura
foi preservada por determinação do Dr. Rodrigo de Mello Franco de
Andrade, comprando-a e fixando-a ao Jardim Botânico no epígono da aléia
de palmeiras imperiais ‘Barbosa Rodrigues’. Quanto ao portão de ferro,
integrante da mesma portada, foi naquela época adquirido pelo então Diretor
do Museu Histórico Nacional que o fixou em uma das entradas laterais do
complexo dos edifícios daquele Museu.” (ARQUIVO DO CONSELHO
FEDERAL DE CULTURA, 1976, p. 10).

A historiadora Lia Calabre ressaltou, em relação ao papel desempenhado pelo


Conselho Federal de Cultura, sobretudo entre 1960 até os findos anos de 1970, que esta época
se expressou com uma atuação singular do governo federal no campo da cultura. Os avanços
são significativos, apesar de tratar-se de uma época de repressão política e de controle
autoritário do governo em todas as esferas da sociedade – o que ocorria inclusive na cultura,
na qual os militares vigiavam, restringiam e até mesmo proibiam algumas manifestações
culturais. Por outro lado, o CFC funcionou no período em questão como um braço do
dirigismo do governo militar, através do qual instituições da educação e cultura de diversos
cantos do país eram levadas a encontrar nele um canal de comunicação para aplacar os seus
anseios.
Foi justamente devido à característica de o CFC ter sido criado nos moldes do forte
Conselho Federal de Educação, e de ter sido idealizado como órgão gestor, normativo e de
assessoramento do Ministro do estado, o que motivou o proponente Donato de Mello procurá-
lo. Tal desejo, pedido de ajuda para recomposição do Portal, é bem verdade, não era tão
incomum entre as solicitações feitas ao CFC. O que vigorava era “o maior número de pedidos
(...) de auxílio financeiro, que poderia ser para pesquisa, restauração do patrimônio, aquisição
de equipamentos, conservação de acervos (...)”. (CALABRE, 2006 ) Tal como já foi
explicitado acima, podemos classificar este tipo de pedido, a sua natureza e seus meandros,
como sendo na esteira das preocupações teóricas do estudo do patrimônio cultural e política

1097

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cultural, Uma vez que a solicitação aludida tratou de uma recuperação patrimonial, dirigida a
um órgão gestor da cultura (CFC).
Ao nos referirmos ao papel preponderante da atuação e criação do Conselho Federal
de Cultura, no cenário nacional no âmbito de Política Cultural, recorremos, a nível teórico, às
idéias do pesquisador Alexandre Barbalho, quando ele recorda que:
“Para atuar na área cultural, o regime militar cria em 1966 o
Conselho Federal de Cultura (CFC) que reúne intelectuais renomados e de
perfil tradicional com função de elaborar a sua política cultural. (...). Em
1975, é lançada a política nacional de Cultura, primeiro plano de ação
governamental no país que trata de princípios norteadores de uma política
cultural”. (RUBIM & BARBALHO, 2007, p. 43/44)

Desta forma, podemos afirmar que foi durante a gestão do ministro Ney Braga,
designado pelo General-Presidente Ernesto Geisel (1974-1978) para o Ministério da Educação
e Cultura, que ao nível de política Cultural foi atingido um patamar nunca antes testemunhado
no âmbito nacional. Nesta época, coube ao Conselho Federal de Cultura a elaboração de uma
política cultural para o Brasil, em 1975. Neste caso, estamos nos reportando à 1ª Política
Nacional de Cultura, que incluía a cultura como preocupação governamental, sendo para
aquela época uma proposta bastante vanguardista, pois teoricamente, já se apoiava em uma
dimensão antropológica da cultura. Destacamos que, a Política Nacional de Cultura mostrou
haver a necessidade da criação de novas instituições que melhor viabilizassem esta política
cultural desejada para o país.
“A partir de 1974, na gestão do presidente Ernesto Geisel e do
ministro Ney Braga, a área da cultura passa por uma série de reformulações.
Foram criados novos órgãos, entre eles o Conselho Nacional de Cinema, a
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, a Fundação Nacional de Arte
(Funarte), e ocorreu a reformulação da Embrafilme.” (CALABRE, 2010, p.
74).

Compreendemos Política Cultural, conforme atuais definições conceituais já bem


delineadas e expressas, no mesmo sentido dos dizeres do antropólogo argentino Nestor García
Canclini, ao considerar que :
“Os estudos recentes tendem a incluir sobre este conceito todo
conjunto de intervenções realizadas pelo estado, pelas instituições civis e
pelos grupos comunitários organizados a fim de (...) satisfazer as
necessidades culturais da população e obter consenso para (...)
transformação social. Mas esta maneira de caracterizar o âmbito das políticas
culturais necessita ser ampliada tendo em conta o caráter transnacional dos
processos simbólicos e materiais da atualidade”4.(CANCLINI, 2005, p.78)

4
-CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2005,p.78.

1098

V V
Através de um exame atento da documentação guardada no Arquivo CFC/Minc,
chama atenção o fato de que o proponente, o Professor Donato Mello Júnior, tenha
encaminhado a sua solicitação à Câmara de Artes do CFC, órgão cujo presidente, Clarival do
Prado Valladares, havia aprovado o seu pedido de homenagem ao bicentenário do nascimento
de Montigny, tratando-se esta homenagem de uma recolocação do portão de ferro ao portal do
que restou da antiga Academia de Belas Artes. O parecer de aprovação, feito de próprio
punho pelo Conselheiro Clarival (Proc.645/76, p.10), foi datado em dez de novembro de
1976. Sem que haja uma explicação no próprio documento processual, apesar da aprovação da
Câmara de Artes, o processo foi encaminhado ou sofreu uma intervenção, onde o provável
“interventor” foi o conselheiro Renato Soeiro da Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Nesta intervenção, ele fez constar um parecer do IPHAN rejeitando o pedido, sob
sua assinatura (Soeiro), em 7 de dezembro de 1976.
A alegação para não haver a recomposição arquitetônica (esta que somente em 2006
seria concretizada), consta também na publicação anual do boletim do CFC. A explicação que
ali consta para a rejeição do pedido está expressa nos seguintes termos:
“Ponderando o órgão técnico competente do IPHAN o seguinte : que
o referido pórtico apresenta-se hoje não mais como elemento de acesso a um
prédio (...). Assim, o pórtico tem a feição de um arco comemorativo e não
mais a de entrada de um edifício (...) que dê acesso, mas tão somente a
jardins à sua volta. O portão estaria fechando apenas o arco central do
pórtico, sem qualquer finalidade (...).” (BOLHETIM CFC, 1976, p.171)

Os meandros políticos que parecem perpassar este pedido e seus desdobramentos,


insinuando a presença de sutis disputas políticas, ou talvez, uma disputa ao nível intelectual
ou pessoal. Estas são hipóteses a serem aventadas para a não efetivação deste pedido. Como
somente trinta anos depois o desejo do Arquiteto Donato concretizou-se, causa estranheza à
rejeição da solicitação, em vista de que seria algo de pouca dificuldade; a efetivação da
recomposição arquitetônica de todo o portal de Grandjean. É bem verdade que, em 1976, o
portão de ferro desenhado por Montigny se localizava ainda no Museu Histórico Nacional. De
todo modo, considerando que o portal pode ser examinando como símbolo de uma época, ou
melhor, como ícone de um estilo de arte, um esforço institucional para a recuperação do
mesmo seria mais do que oportuno. A este respeito, o solicitante Donato, dentro do processo

1099

V V
de solicitação5, acrescentou um inédito trabalho intelectual sobre a importância da obra do
Arquiteto GrandJean de Montigny (Título: Grandjean de Montigny – Bicentenário do
nascimento do grande Arquiteto do Rio de Janeiro Imperial {1776-1976}). O texto,
destacando a importância de GrandJean de Montigny, visava funcionar a seu modo como
forma de convencimento, de tal forma a não deixar passar a oportunidade de fazer uma
homenagem no ano do bicentenário do arquiteto francês. Esta homenagem seria feita, tal era a
proposta apresentada, através da recomposição da única parte restante da primeira Academia
de Belas Artes existente no Brasil.
Foi apenas 29 anos depois, já no ano de 2005, que a Arquiteta do Instituto de Pesquisa
do Jardim Botânico, Mônica Rocio Neves (recém-concursada em 2002), encontrou o portão
de ferro, lá abandonado, no galpão do parque do Jardim Botânico. Pelos encaixes da peça em
ferro (portão) que cabiam perfeitamente na portada (entrada em arco) do portal da Academia
de Belas Artes, e ainda através de informações oferecidas por pesquisa iconográfica, soube-se
que era o portão original de risco de Grandjean de Montigny.
Em 2006, finalizou-se o minucioso processo de restauração do portão, que finalmente
pôde voltar para o seu local de origem. Presentemente, quem desejar visitar o Jardim Botânico
encontrará o portal do antigo edifício restante da Academia de Belas Artes (inaugurada em 5
de novembro de 1826 por D.Pedro I), desenhado pelo arquiteto GrandJean e recomposto 30
anos depois, conforme os planos originais contidos no pedido de ajuda feito ao CFC por
Donato de Mello Júnior em 1976.Os acontecimentos que envolvem o processo de pedido de
restauração do Portal de GrandJean de Montigny, bem como, a posterior concretização desta
idéia anos depois, permitem tecer algumas considerações importantes sobre questões
relacionadas à Memória Social e Patrimônio, bem como, a estreita ligação entre estas duas
dimensões e as transformações históricas e desenvolvimentos do contexto social e político.
A definição de patrimônio e os atos de proteção6 dos bens culturais são historicamente
e socialmente construídos, como bem lembra o Historiador Pedro Paulo Funari. De fato:

5
- Na primeira página do Processo: CFC: 645/76 (Caixa 2, Arquivo CFC/Minc), há no penúltimo parágrafo da
solicitação de ajuda de Donato, junto ao CFC, uma parte que não foi mais mencionada em nenhum momento
deste processo de 14 páginas. Foi por esta razão que optamos por não analisá-la neste artigo, pois não a julgamos
relevante, já que ao longo das páginas seguintes do processo, uma sugestão não foi se quer citada. Donato então
diz: “Neste trabalho sugiro ainda que a prefeitura do Rio de Janeiro homenageie G. M. dando-lhe o nome de um
condigno logradouro público e o de uma Escola”.
6
-“Em termos jurídicos, a noção de patrimônio histórico e artístico nacional é referida pela primeira vez no Brasil
(embora não exatamente com essa denominação), como sendo objeto de proteção obrigatória por parte do poder
público, na constituição de 1934. Diz o art. 10 das disposições: Art. 10- Compete à União e aos Estados: III.
Proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras
de arte. (...) É, somente com o Decreto-lei 25, de 30 de novembro de 1937, que se regulamenta a proteção dos

1100

V V
“As discussões sobre o patrimônio não podem ser dissociadas de
sua historicidade, dos contextos históricos em que se tratou das questões
teóricas como práticas referentes aos usos do passado, à sua construção
social (Bond & Gilliam 1994). A própria noção de patrimônio é histórica.”
(FUNARI, 2005, p.33,34)

Desta consciência, buscamos nos municiar ao longo deste texto no qual buscamos
prestar contas do registro desta documentação que abre ao analista possibilidades dotadas de
nítido apelo patrimonial mas sem que seja possível esquecer as questões históricas que
envolvem todo o processo.
O conjunto documental até aqui evocado apresenta ricas possibilidades de análise:
histórica, patrimonial, política cultura e de memória social, esta documentação do Conselho
Federal de Cultura, órgão que foi instalado em 1967, mas criado pelo decreto-lei número 74
em 21 de novembro de 1966, foi extinto em 1990, no Governo do Presidente Fernando Collor
de Mello. O CFC, contou no dia de sua instalação com a presença maciça dos militares no
Palácio Gustavo Capanema -Rio de Janeiro (sede do CFC). Vale lembrar ainda que, na
atualidade, no âmbito da História Contemporânea, a documentação sobre o regime militar
mais preservada pelos órgãos governamentais é a que se reporta à repressão militar, desde
aquela que compreende o AI-5 até o período de distensão militar.
Os membros do conselho Federal de Cultura, até antes do Governo José Sarney, eram,
sobretudo, intelectuais de grande envergadura e renome nas diversas áreas culturais, mas
acrescidos da característica de serem intelectuais que não se opuseram ao regime de ditadura
militar, estabelecido após o golpe civil militar de março de 1964. Ao mesmo tempo, os
solicitantes de projetos culturais eram habitualmente figuras eminentes como Donato de
Mello Junior – figuras que, como os Conselheiros do CFC, eram conservadores ou liberais.
As vidas pessoais e profissionais dos conselheiros e dos solicitantes, podemos dizer que, não
foram afetadas por nenhum dos atos Institucionais do regime militar.
A documentação do Conselho Federal de Cultura que compreende o período de sua
existência de 1967 até 1990 contempla, neste sentido, uma parte da história do regime militar,
na qual a cultura passava pelo controle de um governo que, se por um lado reprimia, pelo
outro lado tinha um braço que fomentava, agindo federalmente no âmbito da cultura. Os seus
atores e os meandros dos processos interessam particularmente a História política e a História
da política-cultural no Brasil.

bens culturais no Brasil.” FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no brasil. Rio de Janeiro.p. 32.

1101

V V
“Segundo a percepção do CFC, a cultura era uma área estratégica
para as políticas do governo, principalmente tendo em vista ser esta um dos
elementos garantidores da segurança nacional. As propostas do órgão estão
voltadas para uma definição de cultura nos padrões eruditos
(...)”7(CALABRE, 2006, p. 11)

Retomando a questão central que interessa ao presente estudo, devemos nos reportar
ao ano de 1938, quando o edifício Histórico da primeira Academia de Belas Artes construída
no Brasil, durante o período Imperial, foi colocado abaixo, sem que houvesse uma
justificativa plausível para tal gesto de esquecimento. Desta Academia projetada por
GrandJean de Montigny foi tão somente conservada o pórtico em granito e o mármore onde
se destacam os ornamentos em terracota de autoria de Zéphyrin Ferrez.. O Portal após a sua
demolição foi montado e conduzido em 1940 para o Jardim Botânico, onde lá foi instalado
como monumento, para lembrar que um dia existira uma Academia de Belas Artes. Em um
curto espaço de tempo, aí encontramos em relação à História da Academia de Belas Artes no
Brasil os gestos de esquecimento e lembrança.
É possível verificar, nestes dois atos despretensiosamente inconscientes, as duas
estratégias básicas da memória coletiva8, modernamente chamada de memória social, que são:
a lembrança e o esquecimento. A memória, no sentido em que aqui a entendemos, mostra-se
fruto de uma construção da sociedade, particularmente gerada pelo embate das classes
dominantes, pois são sempre elas que possuem o poder de escolha, do que deve ou não ser
guardado para a posteridade. Devemos ressaltar que, o período de destruição intencional da
Academia aconteceu, não muito depois, da semana de artes de 1922 em São Paulo, e, depois
ainda, das gerações modernistas. Os resíduos desta luta subterrânea que afeta a dimensão da
cultura e da memória social podem ser percebidos em questões como esta de que
presentemente tratando, entremeando discursos e práticas em um complexo jogo de poderes e
micro-poderes. Deste modo, podemos retomar algumas considerações para buscar entender os
gestos de lembrança e esquecimento acima descritos, para o caso dos destinos do portal de
GrandJean de Montigny.

7
- CALABRE, Lia. “Intelectuais e política cultural: o Conselho Federal de Cultura”. Atas do Colóquio
intelectuais, cultura e política no Mundo Ibero-Americano. Rio de Janeiro. 17-18 de maio de 2006. In:
Intellèctus. Ano 05 Vol.II; p.11.
8
- HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.

1102

V V
O que imperava como discurso após e durante a semana de 22 era que a Academia9
fundada pelos integrantes da Missão Francesa teria cortado a nossa veia barroca, tão bem
adaptada às questões locais, além de cortar a tradição colonial de raízes religiosas e barrocas
no Brasil (não esqueçamos o papel relevante de Aleijadinho). Os defensores da Missão
Francesa, à época de sua estadia no Brasil durante o período joanino, afirmavam que a arte (e
a arquitetura) brasileira achava-se em um completo estado de marasmo e inércia, e portanto, a
vinda da Missão nos teria colocado em pé de igualdade em relação à tendência Neoclássica,
em voga na Europa. Neste contexto, em relação à Arquitetura, foi graças às atitudes de
Montigny que o Neoclassicismo se impôs no Brasil. Já na época do Modernismo, passaria
precisamente a imperar em certo setor da intelectualidade um discurso de ruptura que começa
a colocar em cheque este passado neoclássico que até então era sacralizado do ponto de vista
da academia e do Ensino oficial. A possibilidade de inaugurar um novo gesto em relação à
Escola Nacional de Belas Artes de GrandJean de Montigny – o do esquecimento – só poderia
vingar neste novo ambiente intelectual que traz novas cores culturais aos conturbados anos da
década de 1930.
Décadas depois, já se apresenta um contexto bem diverso, capaz de favorecer novas
condições de tratamento em relação a esta mesma questão. Tanto nos anos de 1976 como no
ano de 2006, percebemos a preocupação da elite intelectual em conservar este marco da Arte
Brasileira, que é um remanescente da Escola Nacional de Belas Artes. No ano de 1976 este
gesto de memória materializou-se mesmo quando um Arquiteto tentou, mas não conseguiu
recolocar o portão original no portal do que restou da Academia Imperial de Belas Artes. No
ano de 2006, o ato de memória acontece (de fato) não só com esta recuperação do portal,
como também através da restauração do portão de ferro de GrandJean. Como ainda para
finalizar este gesto de memória, idealizado pelo Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do
Rio de Janeiro, aconteceria no ano de 2007, nesta instituição de pesquisa, um evento
divulgado na Internet: “Em comemoração ao resgate e a restauração do Portal da Academia
de Belas Artes, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro realizará em 11 de junho, às 14h, a
palestra ‘O Portal das Belas Artes’ seguida de uma visita ao portão." (www.jbrj.gov.br/materias,
2007). Neste mesmo dia 11 de junho, o Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de
Janeiro, realizou um série de eventos em torno do Portal, que só vem a mostrar a importância
desta recuperação do Pórtico da demolida Escola Nacional de Belas artes.

9
-“Nas gélidas aulas da Academia, gélidas de idéias naturalmente, o jeito local foi, por completo, posto de lado.”
BARDI, Pietro M. História da Arte brasileira. Pintura*Escultura*Arquitetura*Outras Artes. São Paulo: Editora
Melhoramentos, 1975. p.152.

1103

V V
Considerações Finais:
Como bem frisou Jacques Le Goff, a preocupação do homem ao longo dos tempos
com a manutenção da sua memória coletiva acontece também sob a forma de uma
manifestação peculiar da sociedade, que é a comemoração. Através da Comemoração a
sociedade celebra com um monumento comemorativo, um acontecimento visto como
memorável, e neste caso a memória assume a forma de inscrição. Foi o que o Jardim Botânico
fez com a série de eventos em torno da recuperação do Portal da Escola de Belas Artes. A
comemoração significaria a perpetuação da lembrança de algo considerável importante para
um grupo. A memória coletiva é também objeto de estudo da História, de modo que esta se
estimula e faz-se a partir do estudo dos lugares da memória coletiva: lugares monumentais,
como as arquiteturas, ou lugares simbólicos, como as comemorações. A História utiliza-se
destes materiais da memória que são os monumentos, que constituem a herança do passado e
evocam o passado, além de perpetuarem a recordação. Todos estes memoriais têm a sua
história.
Neste sentido, tal qual propôs Le Goff10, a memória coletiva sempre esteve no meio da
luta das forças sociais pelo poder, a fim de controlá-la. O acontecido embate entre a Câmara
de Artes e a Câmara de Patrimônio do CFC, em relação ao pedido de Donato, e depois a
intervenção da Câmara de Patrimônio, negando o pedido de Donato, quando ele já havia sido
aceito pela câmara de Artes, revelam para nós, a luta pelo poder de decidir o que será digno
de comemoração ou não. Pois se tornar senhores da memória e do esquecimento é uma das
preocupações das classes, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.
Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva, e a história preocupa-se em resgatar os lugares da memória
coletiva de forma crítica. Enfatizamos que os documentos, o que também inclui os “restos
materiais” de uma Escola de Belas Artes (especificamente, o Portal da Academia), são frutos
da escolha de grupos e forças sociais detentoras do poder. Todo o documento é o resultado de
uma seleção, manipulação e construção orientada pela sociedade de origem. Transformar-se
em “senhores da memória e do esquecimento” é uma das preocupações mais habituais das
classes sociais dominantes, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas.

10
- Livres reflexões baseadas em: LE GOFF, Jacques. “Memória” In: História e Memória. Campinas: Editora
UNICAMP, 1990.

1104

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Graças ao objetivo de Pesquisador D. Mello Junior, em 1976, de atribuir uma
homenagem ao arquiteto Grandjean, nos foi possível, tomando este estudo de caso à luz da
contemporeineidade, refletir sobre a importância deste resquício da História da Arte brasileira,
que é o pórtico da Escola Nacional de Belas Artes. Os quadros sociais da memória, segundo a
conceituação proposta por Maurice Halbwachs, são os mecanismos dos quais se utiliza à
sociedade para evocar a lembrança no seio de uma comunidade. "Les cadres collectifs de la
mémoire .... sont...les instruments dont la memoire collective se sert pour recomposer une
image du passé qui s’accorde à chaque époque avec les pensées dominantes de la societé"11.
(HALBWACHS,1925, p.34 ) No Brasil logo após a demolição da Academia em 1938,
decidiu-se remontar o Pórtico da Academia e levá-lo para o Jardim Botânico em 1940,
instaurando no seio da sociedade uma forma de fazer lembrar que houve no Rio de Janeiro
uma Escola Nacional de Belas Artes. É assim que, identificamos um outro gesto de memória,
à lembrança que Donato M.J. fez ao propor ao CFC uma homenagem ao Arquiteto
GrandJean de Montigny, na ocasião do seu Bicentenário, através da recomposição do Portal
da demolida Academia Imperial de Belas Artes.

Fonte Documentais:
ARQUIVO CFC/MINC. Gaveta do Conselho Federal de Cultura/Mec; 27/RJ.Processo: CFC:645/76;
07-10-1976; C. de Artes. Prof.Donato Mello Junior. “Grandjean de Montigny-Bicentenário do
Nascimento do Grande Arquiteto do R.J. Imperial.”BOLETIM. Conselho Federal de Cultura. MEC-
Outubro/Dezembro; 1976, RJ:Ano:6-N°25.

Referências Bibliográficas :
CALABRE, Lia. “Intelectuais e política cultural: o Conselho Federal de Cultura”. Atas do Colóquio
intelectuais, cultura e política no Mundo Ibero-Americano. Rio de Janeiro. 17-18 de maio de 2006. In:
Revista Intellectus. Ano 05. Revista Eletrônica ISSN 1676-7640. Vol.II.

CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: história e contemporaneidade. Fortaleza: Banco do


nordeste do Brasil, 2010.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2005.

FUNARI, Pedro Paulo A. “O patrimônio em uma perspectiva crítica: o caso do Quilombo dos
palmares”.In: Diálogos. Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Estadual de Maringá. V.9, n.1,2005.
FUNARI, Pedro Paulo e PELEGRINI, C.A. Sandra. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2006.

11
-HALBWACHS, Maurice. Les cádres sociaux de la mémoire. Paris.1925.Felix Alcan. p.34 “Os quadros
coletivos da memória são os instrumentos na qual a memória coletiva se apropria para recompor uma imagem do
passado que se liga em cada época com os pensamentos preponderantes de uma sociedade.”

1105

V V
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação no brasil. Rio de Janeiro; UFRJ:IPHAN:1997.

HALBWACHS, Maurice. Les cádres sociaux de la mémoire. Paris, Felix Alcan, 1925.

LE GOFF, Jacques. “Memória” In: História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1990.

RUBIM, Antonio Albino Canelas & Alexandre Barbalho (ogs). Políticas Culturais no Brasil.
Salvador: EDFBA, 2007.

www.jbrj.gov.br/materias. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. “Palestra ‘O Portal das Belas Artes’
seguida de uma visita ao portão Jardim Botânico do Rio de Janeiro”.RJ: Junho.

1106

V V
SHOW NO CEU OU CEU É SHOW: UMA POLÍTICA CULTURAL SOB A LUZ
DOS HOLOFOTES
Naiene Sanchez Silva1

RESUMO: Este artigo pretende compreender como se desenhou uma política cultural
idealizada pela Secretaria Municipal de Educação (SME) intitulada CEU é Show e implantada
dentro dos Centros Educacionais Unificados (CEUs) no município de São Paulo. Para realizar
essa empreitada inicialmente investiremos em traçar um mapa conceitual capaz de auxiliar a
discussão sobre a política cultural a qual pretendemos observar. Outra ferramenta
metodológica será observar o andamento do CEU é Show dentro de um CEU específico onde
coletamos depoimentos de funcionários e membros da comunidade.

PALAVRAS-CHAVE: cultural, CEU, CEU é Show, espetáculo.

De Marx a Debord: da fábrica ao espetáculo


Na análise que se segue, faremos uso de dois princípios fundamentais presentes em O
Capital de Karl Marx (1885), são eles: a alienação e o fetichismo. Para Marx, os objetos são
fruto da necessidade do homem e resultado de um processo absolutamente indissociável da
sociedade. Para o filósofo, mais importante do que aquilo que se produz é compreender como
acontece o processo de produção.
Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem
e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação
impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza.
Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as
forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de
apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida
humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao
mesmo tempo modifica sua própria natureza. (MARX, 1985, p. 70)

Em suas reflexões, Marx irá fazer uma série de considerações sobre a Revolução
Industrial. Esse período histórico que impulsionou as indústrias a produzirem em grande
escala, rapidamente e a baixo custo, difundiu a especialização do trabalho e fez com que o
operário dedicasse sua função exclusivamente à repetição de uma determinada tarefa. Sob
essa condição, o operário transformou a maneira como se relaciona com o tempo e perdeu a

1
Mestra em Ciência da Informação pela USP possui graduação em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie e especialização em gestão cultural pela Cátedra de Girona / Observatório Itaú Cultural. É atriz do
Centro de Pesquisa Teatral (CPT/SESC) e orientadora do Projeto Ademar Guerra. Contato: ssnaiene@gmail.com
ou naiene@usp.br

1107

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noção do potencial gerado pelo seu próprio ofício ficando alheio ao real valor de sua mão de
obra e passou a desconhecer as etapas às quais a mercadoria que ele produzia estava
submetida. Ao homem cabe agir e transformar a natureza a partir de sua vontade e quando a
noção desse processo deixa de existir, acontece o que Marx chama de alienação.
Celso Frederico explica (2013, comunicação oral)2 que o cerne da teoria de Ludwig
Feuerbach consiste na religião e nesta como alienação. A religião configura-se como essência
humana projetada, ou seja, Deus, que está dentro do homem, é projetado para fora, porque a
religião se apresenta como a revolta do homem perante sua finitude. Partindo da premissa de
que o homem é dotado da capacidade de exteriorizar seus predicados, e na tentativa de
reconciliação com seu Deus interior, o homem cria a esfera celestial. Essa nova dimensão
pode ser reconhecida como fetichismo. Sendo assim, o fetichismo, em Marx, aparece como a
denominação utilizada para reconhecer a emancipação da mercadoria perante o homem, neste
fenômeno são atribuídas qualidades vitais à mercadoria.
É somente uma relação social determinada entre os próprios homens
que adquire aos olhos deles a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas. Para encontrar algo de análogo a este fenômeno, é necessário
procurá-lo na região nebulosa do mundo religioso. (MARX, 1985, p. 154)

O fetichismo é um processo de alienação que consiste na capacidade de o homem


alienar-se de suas qualidades e transferi-las a seres inanimados ou coisas. Segundo Francisco
Teixeira e Celso Frederico (2010), Feuerbach e Marx inspiraram Guy Debord e sua obra.
Ambos os autores esclarecem que o sociólogo francês concebeu sua ideia de sociedade do
espetáculo inspirado no pensamento de Feuerbach sobre inversão religiosa, “[...] a cisão entre
o homem real e seus atributos” (2010, p. 220). Por sua vez, o próprio sociólogo francês
comenta que “o espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa” (DEBORD, 1997, p.
19).
Na sociedade do espetáculo, o fetichismo dos objetos autonomizados que,
aparentemente governam as vidas dos homens tem seus reflexos impostos nas formas de
consciência, mantendo, assim, a passividade e a contemplação. Teixeira e Frederico (2010, p.
220) concluem que, para Debord, “[...] a sociedade do espetáculo reina soberana, graças ao
predomínio total da mercadoria”. Assim, o espetáculo, através de seu discurso ideológico,
camufla a cisão que fraciona a sociedade; ou seja, a sociedade do espetáculo versa sobre um
2
Notas pessoais da disciplina Comunicação e Crise da Cultura proferidas pelo professor Dr. Celso Frederico
pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Strictu Sensu, da ECA-USP, e de arquivos de
acesso restrito aos mestrandos e doutorandos, categorias regulares e especiais, da disciplina “Comunicação e
Crise da Cultura”.

1108

V V
discurso ideológico sustentado por imagens fetichizadas responsáveis por mediarem as
relações sociais entre os homens. Por essa razão, para Debord (1997) o espetáculo se resume
nele próprio. O modelo de organização desse tipo de sociedade está destinado a fortalecer e
considerar, exclusivamente, o discurso do espetáculo, desconsiderando qualquer outro.
Em A civilização do espetáculo – uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura,
Vargas Llosa (2013) comenta que na teoria de Debord prevalece a ditadura do espetáculo, a
qual privilegia a passividade do homem e o torna espectador, há um esvaziamento da vida
real, e a vivência é substituída pela representação. Para Debord (1997, p. 24) “[...] o
espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação concreta da alienação”. Além disso,
ele “[...] se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível” (DEBORD,
1997, p. 16). Isso porque o espetáculo exige do espectador a “[...] aceitação passiva que, de
fato, ele já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência”
(DEBORD, 1997, p. 17).
A intensidade e inevitabilidade dos fluxos e das conexões que caracterizam a
sociedade contemporânea não estão isentos da possibilidade de influência de discursos
ideologizados que flertam com ideias segregadoras. Por essa razão Debord e sua teoria não
soam ultrapassados. Conceitos como alienação, simulacro, fetiche e a mediação social entre as
imagens fetichizadas são elementos que não foram suprimidos.
Massimo Canevacci (2008) comenta que, graças à atual inevitabilidade dos fluxos
comunicacionais, em especial os gerados pelas redes digitais, a cidade se caracteriza como
detentora de uma identidade flexível, e isso reconfigura as relações sociais entre as pessoas.
Para ele, “[...] mobilidade, fluidez e hibridização, é parte da experiência cultural, corporal, e
também urbanística, da metrópole contemporânea” (CANEVACCI, 2008, p. 15).
Néstor Gacía Canclini (2013, p. XIX), por sua vez, entende “[...] por hibridação
processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Contudo, o próprio
teórico formula a pergunta: “[...] a abertura e a hibridação suprime as diferenças entre os
estratos culturais, produzindo um pluralismo generalizado, ou geram novas segmentações?”
(2013, p. 371).
E é a partir do panorama apresentado que lançaremos olhar para a política cultural
intitulada CEU é Show, a qual vigorou nos CEUs nos anos de 2010 a 2013.

O Núcleo de Ação Cultural dos Centros Educacionais Unificados

1109

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A implantação dos CEUs foi realizada pela Secretaria Municipal de Educação de São
Paulo no ano de 2003. Os equipamentos foram concebidos para reconfigurar o quadro de
escassez e exclusão social que existe nos bolsões de pobreza do município de São Paulo.
Como apresenta o site da Secretaria Municipal de Educação, para suprir as carências das
regiões onde estão situados, “[...] os CEUs garantem aos moradores dos bairros mais
afastados acesso a equipamentos públicos de lazer, cultura, tecnologia e práticas esportivas,
contribuindo com o desenvolvimento das comunidades locais”.3 O CEU pretende, portanto,
reconfigurar a maneira como os cidadãos compreendem e se relacionam com o local onde
vivem, não somente oferecendo serviços para a região em que está situado, mas também
contribuindo para o desenvolvimento das comunidades locais.
Sobre a organização dos setores e do quadro de funcionários do equipamento em voga,
vale destacar que a gestão do CEU, a qual é responsável pelo equipamento em sua totalidade,
conta com um Núcleo de Ação Cultural (NAC), um Educacional e um Esportivo, cada qual
liderado por um grupo de coordenadores contratados a partir de acordos políticos.
Dentre os projetos e programas que o Núcleo de Ação Cultural é responsável por
coordenar dentro do CEU, gostaríamos de nos ater ao extinto4 CEU é Show. A Secretaria
Municipal da Educação (SME) decidiu elaborar e financiar essa ideia, cujo objetivo era
fomentar a cultura a partir de shows que contavam com a participação de artistas
reconhecidos pelo mercado midiático. A idealização e escolha do repertorio de espetáculos
que poderiam ser contratados, incluindo os trâmites burocráticos e o contato com os CEUs,
eram operações realizadas por um órgão especifico da SME denominado Sala CEU. O
documento oficial de concepção do programa CEU é Show diz que a proposta da política
cultural está baseada na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO,
mais precisamente nos artigos 3º5 e 5º6. Lê-se:

3
A apresentação dos CEUs pode ser consultada no endereço eletrônico:
<http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/ceus/Anonimo/apresentacao.aspx?MenuID=11>. Acesso em: 19 jul. 2013.
4
A Secretaria Municipal de Educação de Fernando Haddad decidiu encerrar o programa CEU é Show.
5
Artigo 3º: A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das fontes
do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas também como meio de
acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória.
6
Artigo 5º: Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e
interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais,
tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e
difundir suas obras na língua que desejar e, em particular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito à
educação e formação de qualidade que respeitem plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder
participar na vida cultural que escolha e poder exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que
impõem o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.

1110

V V
Os dois artigos guardam intimidade com os objetivos do CEU,
particularmente no caso desse projeto, no que diz respeito à diversidade de
públicos que povoam o entorno dos CEUs interessados em estilos musicais
específicos, proporcionando o exercício da escolha tanto para quem quer
apenas ouvir, quanto para aqueles que praticam atividade cultural amadora,
7
claro, sem esquecer que se trata também de entretenimento para todos.

Inicialmente, o projeto foi anunciado pelo Sala CEU como uma política cultural que
consistia na contratação de uma apresentação musical legitimada pela grande mídia, sendo
que abertura desse show seria realizada em cada CEU por grupos ou coletivos locais. Foi
então solicitado aos coordenadores de cultura, por parte dos representantes da Sala CEU, um
relatório sobre os gêneros que mais influenciavam a região em que cada dispositivo estava
inscrito.
As pessoas que tocam por diletantismo, por prazer de participar de
uma atividade criativa e os artistas consagrados, juntos no mesmo palco,
tocando os mesmos estilos musicais, proporcionam ao público apresentações
com a novidade daquilo que está presente no entorno do CEU, e não na
mídia, com o que é conhecido pela difusão nas rádios, TVs e internet. O
local e o nacional.8

No começo, o CEU é Show manteve-se fiel à proposta sugerida. Os shows, como era
de se imaginar, angariaram grande quantidade de público e foram matéria de diversos
veículos de comunicação.
Mas esses números só adquirem vida e expressão real quando
associados à variedade e, especialmente, à qualidade da programação que,
nesta gestão, ganhou estrelas de primeira grandeza - seja na música ou no
teatro, nas competições esportivas ou nas atividades cotidianas
desenvolvidas com a comunidade.9

Tamanho sucesso de mídia e público, o CEU é Show passou por uma reformulação e
caminhou para uma segunda fase tornando-se um programa10. A SME, satisfeita com os
números e efeitos desta política cultural, resolveu acrescentar o teatro, além da música, no
repertório dos shows contratados pelo então programa CEU é Show.

7
Texto extraído do projeto CEU é Show.
8
Idem.
9
Endereço eletrônico sobre o CEU é Show. Disponível em:
<http://www.lufernandes.com.br/2010/releases/3oano-de-ceu-e-show/>. Acesso em: 01 jul. 2013.
10
O CEU é Show foi anunciado como um projeto da Sala CEU. A repercussão do projeto reverberou de maneira
positiva nas mídias e, por esse motivo, a Secretaria Municipal de Educação decidiu investir mais recursos na
ideia. O CEU é Show foi ampliado, nesse momento a SME convencionou que o projeto CEU é Show deveria
ser reconhecido como programa CEU é Show. Houve, inclusive, uma festividade que celebrou a transição do
CEU é Show de projeto para programa.

1111

V V
O principal responsável pelo programa CEU é Show dentro do dispositivo era o NAC.
Todavia, a Sala CEU reforçava a obrigação de os funcionários do equipamento,
independentemente de suas funções, trabalharem conjuntamente para atender as demandas
provenientes dos shows. Sublinhamos que a comunicabilidade entre os setores deve constituir
a lógica da gestão de qualquer CEU.
No intuito de obtermos uma análise mais aprofundada sobre o programa CEU é Show
e para uma melhor compreensão de seus desdobramentos, metodologicamente fizemos a
opção por eleger um equipamento específico, o CEU Quinta do Sol11 para darmos
continuidade a este estudo.

O CEU é Show sob a luz dos holofotes do espetáculo


Como dito, em um primeiro momento, o projeto que deu origem ao CEU é Show
consistia na contratação de um determinado espetáculo musical concebido por uma
personalidade ou uma banda destacada pela indústria fonográfica; esse show acontecia no
CEU e contava com uma abertura a ser realizada por um coletivo artístico da região onde o
equipamento estava situado. Sobre a primeira fase do CEU é Show, gostaríamos de destacar a
história de um grupo de dança do bairro da Vila Císper. Certa vez, o CEU Quinta do Sol
recebeu o show da cantora Negra Li e teve como abertura a apresentação de um coletivo de
danças urbanas da região, o Soul Old School Breakers. A abertura do show da cantora era
mais uma dentre outras ações destinadas a aproximar o setor de cultura e os dançarinos que
praticavam dança de rua dentro do dispositivo. O Soul Old School Breakers foi formado
mediante um acordo selado entre a gestão do Quinta do Sol e o NAC. Isso aconteceu porque a
gestão achava inapropriada a maneira como os dançarinos de danças urbanas se apropriavam
dos espaços do equipamento. Foi, então, que o NAC intermediou conversas com os
dançarinos, organizou horários e solicitou que, na medida do possível, os dançarinos
participassem dos eventos que aconteciam no CEU. Era solicitado que os b.boys e as b.girls 12
apresentassem um número de dança nas festas promovidas pela gestão, como a junina, o
aniversário do CEU, dentre outras. Foi assim que os dançarinos se organizaram e decidiram
formar o Soul Old School Breakers. Após esse fato, outros grupos começaram a ser formados.
Os praticantes de danças urbanas foram-se articulando e, inclusive, chegaram promover
campeonatos de dança. Certa vez, foi organizada no CEU uma grande batalha de dança de rua

11
O CEU Quinta do Sol é um dispositivo localizado na região leste de São Paulo, mais especificamente no
bairro da Vila Císper.
12
Dançarinos que praticam dança de rua.

1112

V V
em que participaram grupos de diversas localidades do Brasil. O intercâmbio entre os artistas
que praticavam essa modalidade começou a crescer tanto que muitos dançarinos vinham de
lugares distantes para praticar dança no Quinta do Sol. Houve, inclusive, dançarinos de fora
do Brasil que lá treinaram.
Esse relato deflagra como a participação do Soul Old School Breakers na abertura do
CEU é Show foi uma ação dentro de um cenário muito mais amplo que se estabelecia
mediante a parceria do NAC com os dançarinos de danças urbanas.
A influência do CEU é Show pode ser verificada sob distintas perspectivas e em
diversos contextos dentro do equipamento.
Dentre os desdobramentos do CEU é Show temos a destacar a relação desta política
cultural com os programas do Departamento de Expansão Cultural da Secretaria Municipal de
Cultura (DEC/ SMC) que atuavam dentro do CEU. Os princípios artísticos-culturais pelos
quais os programas do DEC se orientavam eram de difícil compreensão tanto para os
funcionários dos setores do CEU não familiarizados com conceitos referentes ao escopo da
cultura e da filosofia, como para a comunidade para a qual se destinavam os serviços do DEC.
Por conseguinte, apesar da constante ajuda dos profissionais que atuavam nos programas da
SMC, podemos citar o insucesso no que toca a divulgação dos programas do DEC dentro no
CEU.
Durante a vigência do CEU é Show, o setor de cultura passou a notar que haviam
frequentadores do equipamento, funcionários da gestão do CEU, do núcleo do esporte, da
educação, da faxina, da segurança, da jardinagem e até mesmo dos técnicos do próprio teatro
insatisfeitos pela grande maioria dos projetos e programas do NAC não elaborarem produtos
semelhantes ao CEU é Show. Certa vez, um funcionário administrativo do próprio setor de
cultura e também morador da Vila Císper disse que para ele era complicado auxiliar em
questões relacionadas as demandas dos diversos programas do NAC pelo fato de desconfiar
das diretrizes dos mesmos. Havia muitos casos de pessoas da comunidade que procuravam o
NAC pensando que os programas artístico-culturais oferecidos pelo DEC poderiam garantir
um futuro cujo objetivo era a inserção na mídia. O programa da SME tornou-se uma espécie
de agente mediador entre os funcionários, a comunidade e o NAC, a ponto de conferir ao
setor de cultura do CEU a responsabilidade de conceber celebridades.
Surge a dúvida: se a cultura tem a ver com o campo do desejo, como o coordenador do
NAC deve lidar com essa demanda?

1113

V V
Em sua segunda fase, o projeto CEU é show torna-se programa e a Sala CEU passou a
contratar produções mais onerosas, peças teatrais de diversos gêneros e shows de música de
estilos variados foram incluídos no repertório de espetáculos contratados. Os CEUs receberam
shows protagonizados por nomes como: Fernanda Montenegro, Jair Rodrigues, Toquinho,
Luiza Possi, Oscar Magrini, Mallu Magalhães, Glória Menezes, dentre outros. O ator Fábio
Assunção (2012) declarou: “[...] eu acho esse trabalho extraordinário. Leva teatro, música e
cultura para todos os CEUs, que são lugares sagrados em vários lugares da periferia. Estou
emocionado em fazer parte disso”. Na visão de Denise Fraga (2012), o CEU é Show é uma
iniciativa que pode transformar através da arte, como coloca a atriz ao falar sobre a
participação do seu espetáculo “Sem Pensar” no CEU é Show: “[...] Eu queria muito fazer o
Sem Pensar nos CEUs. É uma iniciativa de tirar o chapéu! Toda noite eu sonho com a
transformação das pessoas por meio da arte e esse projeto é a prova de que outros também
acreditam nisso!”.
Mas como o CEU é Show poderia transformar a realidade dos moradores dos bairros?
Seria através das mensagens dos espetáculos, como colocado por Denise Fraga? O que o CEU
e sua comunidade estava perdendo e o que estava ganhando com o programa? Seria o CEU é
Show o legitimador de uma cultura que promove o contato íntimo entre a celebridade e o
público, como declara o cantor Toquinho (2012)?
Esse é um projeto que leva o artista ao povo de uma forma muito
simples e muito verdadeira, com esses teatros sempre agradáveis que são os
teatros dos CEUs. Eu estou muito contente de ter esse contato mais íntimo
com esse lado periférico da cidade.

Rappin Hood (2012), uma das celebridades do CEU é Show, tem familiaridade com as
imediações de um CEU.
Eu cresci na Vila Arapuã. Lá perto tem o CEU Meninos, onde vejo
as crianças jogando bola, levo meu menino para andar na pista de skate. Eu
tinha o sonho de fazer shows nos CEUs e esse dia chegou! Desejo vida longa
ao projeto e agradeço em meu nome, em nome do Hip Hop e de todas as
periferias.

Devemos lembrar que o CEU deve estar aberto para incluir em sua programação os
coletivos artísticos locais que desejam se apresentar no equipamento, porém, a apresentação
realizada por eles não é remunerada. Sendo assim, quando o Rappin Hood se refere ao fato de
ser incluído na programação do CEU, está dizendo que pode ser contratado para realizar seu
show, uma vez que fez a passagem de artista local à celebridade. Como morador da região

1114

V V
próxima ao CEU Meninos, ele demonstra através de sua fala como é importante ter uma
programação cultural descentralizadora que passa a ser realizada nos CEUs. Em outras
palavras, destacou a importância da circulação dos espetáculos que faziam parte do repertório
do CEU é Show nestes dispositivos que, até então, não possuíam uma política cultural
destinada a contratação de figuras midiáticas. Como apontamos, o CEU é Show abriu portas,
através de sua repercussão e desdobramentos para o setor de cultura sugerir e colocar em
prática distintas ações culturais. Não menos importante é salientar que os espetáculos do CEU
é Show eram gratuitos. Foi um momento inédito em que o CEU incorporou em sua rotina
espetáculos que ficavam em cartaz; esse período possibilitou novas maneiras de investir em
ações referentes à formação de público dentro do dispositivo. Não obstante, sublinhamos o
direito do cidadão em desfrutar de um repertório cultural e artístico diversificado em que o
entretenimento esteja incluído, porém, este último não deve ser a única opção na programação
do CEU.
Se, na primeira fase o CEU é Show deveria ser acompanhado de uma ação cultural
proposta pela Sala CEU que previa a participação de coletivos locais através de uma
apresentação de abertura que antecederia o show contratado, na segunda fase do programa
essa ideia foi suprimida. O show de abertura foi suprimido pelas grandes produções por
motivos de logística, preparações técnicas e visuais. A coordenação de cultura do CEU
Quinta do Sol decidiu levar a questão da destituição do show de abertura para ser discutida
com a Sala CEU, o DEC e recorreu também à gestão do CEU e aos coletivos artísticos da
região para refletir sobre a possibilidade da utilização de espaços alternativos para que a
abertura do show não fosse extinta. Mas, seria essa a melhor alternativa?
Não menos importante é refletir sobre os desdobramentos da política cultural em voga
no tocante ao fato dos coordenadores de cultura dos equipamentos não serem consultados
quando o CEU é Show foi ampliado na perspectiva de contratações mais onerosas. Ou seja, a
transição da primeira para a segunda fase do CEU é Show foi uma lacuna, pois os
representantes dos CEUs não foram convidados pela Sala CEU a pensar conjuntamente sobre
a nova configuração de um projeto que já havia sido colocado em prática. Os coordenadores
de cultura e gestores foram avisados sobre as mudanças do programa após elas já estarem
consolidadas.
Não houve encontros entre os equipamentos e a Sala CEU para pensar se o programa
seguia pelos princípios da ação cultural, ou se o programa se configurava como uma
ferramenta destinada a sanar a sede por entretenimento. Nunca fez parte das reflexões dos

1115

V V
envolvidos com o programa se o CEU é Show poderia potencializar diferenças e
desigualdades nos bolsões de pobreza, da mesma maneira que não se ousou pensar se o CEU
é Show poderia reforçar o confinamento do cidadão que reside nesses locais.
Muitas eram as questões e as inquietações que pairavam sobre o NAC após a
implantação e o andamento do programa. Se a concepção dos CEUs parte de uma premissa de
conscientização através da crítica e do questionamento social, como a SME é capaz de propor
um programa que faça um elogio desmedido à celebridade proveniente das mídias massivas?
Seria papel do coordenador de cultura do dispositivo estimular maneiras para que a crítica
sobre o programa fosse feita? Em caso positivo, esse representante do NAC teria espaço e
estaria preparado para esta empreitada? Por vezes, o NAC passou a refletir sobre a
possibilidade de o conteúdo das apresentações ficar aquém do desejo de igualar-se à
celebridade. Do mesmo modo que, ao acompanhar os desdobramentos do CEU é Show, o
setor de cultura verificou que, de certa maneira, o CEU é Show instituiu que, dentro do
dispositivo, arte se configurava como sinônimo de entretenimento.
Retomando as ideias de Francisco Teixeira e Celso Frederico sobre o pensamento de
Feuerbach, é como se o homem se revoltasse com suas “finitudes” e projetasse seus
predicados para fora, “inaugurando” a cultura como esfera do entretenimento (mercadoria
fetichizada). Assim como o homem da revolução industrial que participa do processo de
confecção do objeto não se reconhece como elemento fundamental para sua concepção, o
indivíduo da sociedade do espetáculo não reconhece sua participação na condição de conceber
uma celebridade. A partir dessa perspectiva, a celebridade aparece na sociedade como uma
mercadoria fetichizada. Ela é divinizada e detentora de um estilo de vida ideal, a figura
messiânica que repassa a mensagem do espetáculo. A observação dessa política cultural
somada aos conceitos abordados permite com que despertemos para a ideia de que qualidade
de vida está relacionada com a capacidade de aparecer; mais do que isso, é como se a
capacidade de aparecer não determinasse somente a qualidade de vida desejada, mas definisse
a sensação de pertencimento; no caso, de pertencer à sociedade, ou – o que faz mais sentido –
pertencer à sociedade do espetáculo. Entretanto, a prática cultural deve fomentar a criticidade
do sujeito. Como fala Bauman (2012, p. 298), “[...] a cultura só pode existir como crítica
prática e intelectual da realidade social existente”. Contudo, a ideia de cultura disseminada
pelos desdobramentos correspondentes à política cultural proposta pela SME traduzia-se
como o avesso disso.

1116

V V
Com efeito, compreendemos, então, que fazer equivaler arte com entretenimento, mais
do que um problema estético, é um problema social. Seria da competência do setor cultural do
dispositivo sugerir ações para que a cultura não fosse resumida a ideia de entretenimento? A
lógica de uma sociedade que adere estereotipias em função de um centro controlador como
colocado por Debord, pode nos incitar a pensar que ao dedicar uma reflexão mais adensada
sobre o hiato que prevaleceu durante a reformulação do CEU é Show – passagem de projeto
para programa cujo objetivo era investir em produções mais onerosas – nos leva a enxergar a
arte13 como estrutura que deve aparecer de tal modo que esteja a serviço da preservação de
um discurso hegemônico, uma vez que, segundo Anselm Jappe (1999, p.20), “[...] o
espetáculo açambarca para si toda a comunicação: esta se torna exclusivamente unilateral, o
espetáculo sendo aquele que fala enquanto os ‘átomos sociais’ escutam”. Por consequência, a
mensagem do espetáculo resume-se à “[...] incessante justificativa da sociedade existente, isto
é, do próprio espetáculo e do modo de produção de que é originário”.
Na esteira do problema comunicacional, observamos que o mediador cultural que
coordena o setor da cultura do equipamento, além de ocupar-se das repercussões do CEU é
Show na rotina do CEU, também teve que lidar com o enxugamento das relações dialógicas
entre o NAC e a Sala CEU. Observar a transição entre a primeira e a segunda fase do CEU é
Show revela essa condição. Neste ponto da pesquisa, somos impelidos a resgatar o
significado do conceito de ideologia para olharmos, com lentes de aumento, as lacunas
decorrentes do processo de transição que houve quando o CEU é Show andava pelos trilhos
de seu projeto original e, posteriormente, quando foi reconhecido como programa. Segundo a
filósofa Marilena Chauí, a ideologia é sustentada por uma coerência racional que compreende
espaços em branco, vazios e lacunas que nunca poderão ser preenchidos em nome da
coerência ideológica (CHAUÍ, 2004). Para Eugênio Bucci14, a ideologia não é feita de ideias,
ela sintetiza o discurso, ela não está dentro da cabeça, ela desabrocha da relação entre os
sujeitos; a ideologia não está no conteúdo, está no discurso que, por sua vez, depende da
linguagem.
Para Debord (1997, p. 138), a ideologia emerge quando a relação social entre as
pessoas é mediada por imagens: “[...] o espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe
e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a

13
Consideramos aqui arte como modalidade mais potente de cultura.
14
Notas pessoais da disciplina Comunicação e Crise da Cultura proferidas pelo professor Dr. Eugênio Bucci pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Strictu Sensu, da ECA-USP, e de arquivos de acesso
restrito aos mestrandos e doutorandos, categorias regulares e especiais, da disciplina “Fabricação de Valor no
Imaginário: uma Crítica da Comunicação”.

1117

V V
submissão e a negação da vida real”. O pensador explica que a condição social imposta pelo
espetáculo “[...] é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu
monólogo elogioso. É o autorretrato do poder no momento da sua gestão totalitária das
condições de existência” (DEBORD, 1997, p. 20).
Aplicando essas ideias ao contexto do CEU, questionamos a condução do processo de
transição entre a primeira e a segunda fase do CEU é Show feito pela Sala CEU, porque o
projeto original do programa foi descartado sem nenhuma explicação, não obstante, o
programa foi reformulado sem que as instâncias que lidavam com ele na rotina do dispositivo
fossem consultadas a fim de que, coletivamente, a nova roupagem do CEU é Show fosse
desenhada. Estaríamos lidando novamente com uma proposta orientada pelo
multiculturalismo em detrimento de um contexto que possibilite a construção conjunta através
de processos interculturais? A possibilidade de ampliação do repertório de espetáculos do
CEU é Show é uma justificativa irredutível que versa, exclusivamente, sobre princípios
democráticos e, por esse motivo, não é necessário que a Sala CEU consultasse os
representantes que atuavam nos espaços e a comunidade onde os espetáculos aconteciam?

CONCLUSÃO
Chegamos à conclusão de que a gestão cultural não pode compactuar com o hiato e a
falta de comunicação. Por esse motivo, somos contrários à situação que imperou durante o
momento de transição entre as fases do programa. Sobretudo, verificamos que a gestão
cultural dentro do dispositivo é peça fundamental para lidar com os desdobramentos
decorrentes do andamento do CEU é Show. Da mesma maneira, concluímos que o CEU é
Show pode configurar-se como instrumento potente quando incorporado à proposta de gestão
cultural da Sala CEU. Tudo depende da maneira como o programa é conduzido. A partir das
reflexões realizadas, atribuímos ao NAC a responsabilidade de refletir sobre a capacidade e a
maneira como o CEU é Show mobiliza, influencia e cria conexões entre as distintas instâncias
que participam da gestão do dispositivo. Sobretudo, o NAC deve propor ações que partam da
ideia de que o CEU é Show deve ser enxergado a partir de distintos óculos. Afinal, assistir a
uma obra teatral ou a um show musical pode ser o primeiro passo para outros mais
complexos. Em oito de julho de 2013, o site do Jornal Estado de São Paulo publicou matéria
com o seguinte título: CEUs substituem astros de TV por artistas locais. O jornal explica que
a Secretaria Municipal de Educação pretendia retomar o caráter educacional do CEU

1118

V V
idealizado no governo Marta Suplicy. Por essa razão, o CEU é Show foi substituído por
propostas que investiam no cidadão protagonista.
O secretário municipal da educação, Cesar Callegari (2013 - 2014), declarou que as
contratações não cessarão, mas os shows terão menor porte e deverão oferecer contrapartida
social. O secretário comentou que a contrapartida "[...] pode ser uma oficina, por exemplo,
para formação do aluno. Dessa forma, o resultado poderá ser permanente". Ao invés de
continuar apostando no CEU é Show, a SME decidiu investir em ação educativa. A matéria
explica que uma nova comissão intersetorial formada por representantes da educação e da
cultura irá debruçar-se sobre esse assunto. Callegari (2013) critica a formação de público
sedimentada pelo CEU é Show e completa que essa "[...] é uma decisão política, de gestão. As
atividades culturais não devem ser apenas entretenimento. Devem ter compromisso com a
educação". No intuito de analisar as opiniões sobre o programa CEU é Show, utilizamos a
rede social Facebook. A escolha dessa ferramenta deve-se à malha heterogênea de contatos
que proporciona. Publicamos a entrevista do site do Jornal Estado de São Paulo comentada
acima, com a finalidade de coletar opiniões a respeito do tema. Foram abordadas pessoas com
algum tipo de envolvimento com o programa. Um gestor cultural problematizou a questão da
contrapartida exigida por essa nova proposta:
Mas daí a exigir a contrapartida social dos artistas conhecidos, já
fico em dúvida. Então a arte, em si, não tem o potencial de transformar
pessoas por si mesma? Já vi espetáculos de teatro que foram um soco no
meu estômago, sem precisar que nenhum dos atores ministrasse uma oficina
para explicar tudo... Sei não, essa história de contrapartida social sempre
aparece quando o assunto é contratar artistas. Quando é para jogar milhões
na construção de um parque tecnológico, nem de longe se cogita cobrar isso.
(Comentarista 1)

Outro gestor cultural comentou sobre a necessidade de um governo estar valorizando


sua proposta política em detrimento do que foi realizado pelo governo anterior e como isso
denuncia um descaso com os cidadãos:
Vejo um desrespeito ao CEU e às comunidades que o frequentam.
Essa conversa de que na minha gestão está melhor, que a outra, mostra que o
interesse dela é na promoção de uma gestão e não no que acontece,
aconteceu e acontecerá no CEU. (Comentarista 2)

Um artista orientador de um dos programas do DEC comentou a seguinte impressão


sobre a matéria:
Parafraseando uma canção dos Mutantes (pós Tropicália/rock
progressivo), "Acabaram-se os mistérios e eu não tenho ilusões, pois é, tudo
é como sempre foi e não há nada que eu possa mudar”. (Comentarista 3)

1119

V V
Nas palavras de Callegari (2013), justificar a não continuidade do programa
conciliando os espetáculos com uma ação educativa significa investir na possibilidade da ação
educacional corroer a ideia de entretenimento, uma vez que, para esse governo, o
entretenimento deve vir acompanhado de aprendizagem, portanto de contrapartida
educacional. Sob a perspectiva do secretário, o programa não corre em consonância com o
projeto do CEU, pois esse deve consolidar-se como um dispositivo de caráter educacional.
Com a ideia de que o público deve ser o protagonista dos espetáculos que compõem a
programação dos CEUs, o secretário enaltece que o resgate da identidade do dispositivo deve
ser retomado. Para ele, fazer da cultura um campo de experimentação significa atrelá-la a
compromissos educacionais. A partir de nossas reflexões sobre o CEU é Show, entendemos
que ter acesso a entretenimento é um direito; entretanto, ter acesso somente a ele não é
suficiente. Compreendemos que o entretenimento pode ser uma maneira de categorizar a
cultura, e discursar sobre ele pode consubstanciar-se como moeda eleitoreira.
Não se pode desconsiderar que o CEU é Show facilitou o acesso, estimulou inúmeros
e diversos questionamentos, potencializou possibilidades interculturais e trouxe à tona
cenários culturais inéditos durante sua implantação e por intermédio de seus desdobramentos.
Sobretudo, na tentativa de uma análise mais criteriosa, os conceitos teóricos nos auxiliaram na
identificação de pontos fulcrais que estão e, igualmente, extrapolam o campo das políticas
culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Educação, São Paulo, 2012. Entrevistador: Secretaria Municipal de Educação - Assessoria de
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CALLEGARI, Cesar. CEUs substituem astros de TV por artistas locais. O Estado de São Paulo, São
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<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,ceus-substituem-astros-de-tv-por-
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CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. 4. ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.

CANEVACCI, Massimo. Entrevista com o pensador Massimo Canevacci. [abr. 2008].


Entrevistadora: Júlia Aguiar. Overmundo, Porto Alegre, 11 abr. 2008. Disponível em:
<http://www.overmundo.com.br/overblog/entrevista-com-pensador-massimo-canevacci>. Acesso em:
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1120

V V
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2004.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de


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FRAGA, Denise. Teatros lotados marcaram 3º ano de CEU é Show. Secretaria Muncicipal de
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JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

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TOQUINHO. Teatros lotados marcaram 3º ano de CEU é Show. Secretaria Muncicipal de


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<http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2013.

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa
cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

1121

V V
MUSEUS NO BRASIL: ANÁLISE SOCIOECONÔMICA DE PERFIS
Nayara Souza1
Larissa Machado2
Ana Flávia Machado3

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo construir uma tipologia de museus, utilizando
como fonte básica o Cadastro Nacional de Museus (CNM) do IBRAM aplicado à estatística
multivariada de formação clusters. Tipologias são nada mais do que classificações que, em
um conjunto heterogêneo, desenham tipos de maior uniformidade e, com isso, contribuem
para reconhecimento e formulação de políticas públicas. Neste estudo, para além da
distribuição espacial, incluímos variáveis socioeconômicas referentes aos municípios onde se
localizam os museus, como também características referentes a esses equipamentos. São
identificados oito perfis de museus no Brasil, observando-se que a concentração em
determinadas unidades da federação, tamanho de município, tipo de gestão e gasto per capita
em cultura tendem a ser as variáveis mais relevantes para descrição desses tipos.

PALAVRAS-CHAVE: museus, tipologia, clusters, Brasil.

1 - INTRODUÇÃO
Entre os economistas, Jevons (1835-82) foi o primeiro a reconhecer a cultura como
um bem público. Neste contexto, ressaltou a importância do Estado no financiamento de
museus, especialmente os de temática científica. Recentemente, Frey & Meier (2006) trataram
do termo “economia de museus”, enfocando dois aspectos. O primeiro se refere ao de unidade
econômica, entendido como uma firma que produz serviços. Entre os vários insumos, acervo
e pessoal são os mais importantes. As receitas, por outro lado, advêm do número de visitantes,
compras em lojas situadas no seu interior e de marcas geradas. O outro aspecto, também,
enfatizado pelos autores, é a possibilidade deste equipamento ser argumento em uma função
de escolha sujeita à restrição institucional e ambiental.
A concepção acima reportada pretende entender o papel de um museu em uma
perspectiva teórica microeconômica, denominada teoria da escolha. Entretanto, os museus
assumem papel relevante em atividades de lazer e constituem atrações turísticas importantes,

1
Graduanda em Ciências Econômicas/UFMG e bolsista no Programa CAPES Jovens Talentos em 2014
e-mail: ntsouza@cedeplar.ufmg.br
2
Graduanda em Relações Econômicas Internacionais/UFMG e bolsista no Programa Pronoturno
e-mail: lcmachado2411@hotmail.com
3
Professora Associada IV do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG e doutora em Economia pela
UFRJ e-mail: afmachad@cedeplar.ufmg.br

1122

V V
podendo promover efeitos positivos de transbordamento sobre a economia local,
especialmente em áreas de turismo popular (FREY & MEIER, 2006).
CWI (1980) ressalta, especialmente, este último efeito dos museus sobre a
economia, pois destaca a geração de efeitos econômicos diretos e indiretos, tais como
mudança da imagem da cidade; implementação de políticas públicas de segurança para
criação de ambiente seguro; atração de novos investimentos e estímulo à integração,
desenvolvendo identidade local e senso de pertencimento. Bille & Schulze (2008) apontam
que arte e cultura podem ter um papel proeminente para o desenvolvimento regional e urbano
e, ainda mais amplo, se a definição de desenvolvimento envolver não somente geração de
renda e postos de trabalho, como também melhoria da qualidade de vida da população e
inclusão sociocultural. E ainda, de acordo com o Ibram (2014), utilizando o trabalho de
Rausell (2011), todos esses impactos dos museus na economia podem ser classificados em:
efeitos diretos, efeitos indiretos, efeitos induzidos e efeitos externos. Além disso, argumenta
dando como exemplo o Guggenhein de Bilbao, o qual teve o poder de reabilitar um espaço
urbano na Espanha ao atrair a atenção mundial e, logo, o turismo cultural, causando impacto
aos serviços urbanos em geral. Dessa forma, os visitantes externos à região do museu são
responsáveis por legitimar tal reabilitação urbana.
Entretanto, a localização das atividades culturais, especialmente equipamentos como
museus, não tem atendido a essas prerrogativas. No Brasil, Pasternak e Bógus (2012)
procuraram analisar a distribuição espacial desses equipamentos na cidade de São Paulo e sua
relação com a população a partir de suas características socioocupacionais. Para tal, o tecido
urbano foi dividido em cinco anéis – central, interior, exterior, intermediário e periférico –
que são diferenciados pelas distintas características de renda, escolaridade, perfil etário e taxa
de crescimento. Constatam que, em São Paulo, assim como em outras cidades brasileiras, a
distribuição de equipamentos culturais segue uma trajetória histórica de concentração
espacial, nas áreas centrais das grandes cidades. Grande parte desses equipamentos está
localizada no chamado centro expandido, isto é, nas áreas centrais e nos bairros nobres da
cidade.
Considerando essa problemática, pretende-se, com esse trabalho, definir uma tipologia
de museus tendo-se por fonte básica o Cadastro Nacional de Museus (CNM) do IBRAM. A
definição de tipos é feita pela aplicação de análise estatística multivariada de formação
clusters ao banco de dados organizado. Tipologias são nada mais do que classificações que,
em um conjunto heterogêneo, desenham tipos de maior uniformidade e, com isso, contribuem

1123

V V
para reconhecimento e formulação de políticas públicas atinentes a essas especificidades. No
contexto deste estudo, para além da distribuição espacial, incluímos variáveis
socioeconômicas referentes aos municípios onde se localizam os museus como também
características referentes a esses equipamentos.
Dessa forma, portanto, o trabalho está dividido em quatro seções, incluindo esta. Na
segunda, tratamos da metodologia de classificação. Em seguida, apresentamos os principais
resultados e, por fim, tecemos algumas considerações.

2 - CONSTRUÇÃO DA TIPOLOGIA MUSEAL: MÉTODO DE


AGRUPAMENTOS E FONTES DE DADOS
A análise de agrupamentos, também conhecida como cluster, é um método estatístico
que nos permite agrupar elementos de uma amostra em grupos homogêneos, ou seja,
elementos com características similares entre si são classificados em um mesmo grupo, que
por sua vez são heterogêneos em relação aos outros diferentes grupos.
A técnica utilizada para a obtenção dos clusters foi o k-Means, um método não
hierárquico. Basicamente, cada elemento amostral é alocado àquele cluster cujo centróide
(vetor de médias amostral) é o mais próximo do vetor de valores observados para o respectivo
elemento (Mingoti, 2007). Para iniciar o processo de partição é necessário escolher k
centróides iniciais. Então depois de algumas tentativas optamos por k=8, oito clusters.
Então, cada elemento da base de dados é comparado com cada centróide, através de
uma medida da distância ao centróide, a distância Euclidiana. O elemento é, então, alocado no
grupo cuja distância é menor.
A cada novo cluster formado, novos valores dos centróides são definidos para cada um
deles. Esse processo é repetido até que não seja necessária nenhuma realocação de elementos,
ou seja, todos os elementos da amostra estejam "bem alocados".
Desse modo, o agrupamento dos museus brasileiros em grupos homogêneos permite
criar tipologias, buscando facilitar o entendimento da distribuição dessas instituições pelo
país, por meio do agrupamento de características e condições socioeconômicas dos
municípios.
Para tal intento, foi necessário reunir informações de varias fontes de dados. A mais
importante é o Cadastro Nacional de Museus (CNM), uma plataforma on-line construída a
partir de questionários próprios e coordenada pelo Ibram que, desde 2006, mapeou mais de
3200 instituições museológicas em todo o país. Dados como localização dos museus, natureza

1124

V V
administrativa, cobrança ou não de entrada, situação no CNM e o tipo de acervo obtidos nessa
fonte foram incorporados. Entretanto, para esse estudo só foram incluídos museus em
funcionamento e físicos, museus esses que totalizaram 2986 unidades. Os dados são do
período de março de 2006 a março de 2014.
O Censo Demográfico de 2010, realizado pelo IBGE, reúne indicadores de todos os
5.565 municípios do Brasil. Dentre esses indicadores, extraímos para esse estudo a população
dos municípios em 2010; taxa de ensino médio de adultos com 25 anos ou mais e proporção
de domicílios com acesso a esgotamento sanitário. Essas variáveis pretendem descrever a
dimensão do público, tanto pelo tamanho como também por condições associadas à
escolaridade (diretamente) e à econômica (indiretamente), pois a visitação a museus, assim
como a freqüência a atividades culturais, está fortemente associada a essas condições (SANZ
e HERRERO, 2006; BEDATE et AL., 2009; FARIA e MACHADO 2015).
O Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013 é uma plataforma de consulta ao
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM - de 5.565 municípios brasileiros e,
ainda apresenta outros 180 indicadores. Selecionamos a renda média dos ocupados com ou
mais de 18 anos para o estudo, em consonância com os achados na literatura sobre o tema já
reportado em parágrafo anterior.
Outra fonte de dados utilizada foi o Finbra, o relatório das informações sobre despesas
e receitas de cada município brasileiro, divulgadas pela Secretaria do Tesouro Nacional. As
informações disponíveis são obtidas mediante a coleta dos dados contábeis por meio do
Sistema de Coleta de Dados Contábeis (SISTN), em parceria com a Caixa Econômica
Federal. Os dados são atualizados anualmente. Como Finbra disponibiliza informações sobre
os gastos municipais em cultura, em 2010, essa despesa foi ponderada pela população
residente em cada município. A inclusão dessa informação para construção da tipologia
pretende evidenciar a possível relação entre a presença destes equipamentos e a maior
disponibilidade e/ou foco da administração municipal ao incentivo de atividades culturais.
Dados sobre segurança pública foram extraídos do website Datasus, departamento de
informática do Sistema Único de Saúde. Trata-se de um órgão da Secretaria de Gestão
Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde com a responsabilidade de coletar,
processar e disseminar informações sobre saúde. Dessa forma incluímos informações sobre a
taxa de homicídios de homens de 15 a 29 anos de idade (por 100.000 habitantes). A inclusão
da taxa de homicídios se deve ao fato de se constituir em uma proxy para descrever grandes
centros onde a desigualdade de renda é mais elevada e, ademais, um empecilho à freqüência

1125

V V
de atividades culturais que se fazem em maior extensão nos finais de semana e em horários
noturnos. (DINIZ e MACHADO, 2011).
No Quadro 1, as variáveis são sumariadas, explicando o conceito e a fonte de onde as
informações a elas pertinentes foram extraídas.

Quadro 4 – Variáveis Selecionadas


VARIÁVEIS DESCRIÇÃO FONTE

População em 2010 População do município em 2010 Censo Demográfico (IBGE) – 2010

Taxa de ensino médio Adultos que concluíram o ensino médio - 25 anos ou mais (%) Censo Demográfico (IBGE) – 2010

Taxa de homicídios de homens de 15 a 29 anos de idade (por Datasus - sistema único de saúde –
Taxa de homicídios
100.000 habitantes) 2009

Domicílios particulares permanentes com banheiro ligado à rede de


Taxa de esgoto Censo Demográfico (IBGE) – 2010
esgoto em geral (%)

Despesa em cultura per


Total de gastos em cultura - per capita Finbra
capta

Rendimento médio dos Média dos rendimentos de todos os trabalhos das pessoas Atlas do Desenvolvimento Humano
ocupados ocupadas de 18 anos ou mais de idade. no Brasil 2013

Natureza administrativa Perfil jurídico do museu Cadastro Nacional de Museus – 2014

Situação do cadastro no Cadastro Nacional (cadastrado ou


Cadastro Cadastro Nacional de Museus – 2014
mapeado)

Ingresso Cobrança ou não de ingressos Cadastro Nacional de Museus – 2014

Tipo de acervo Tipologia das coleções que são preservadas pelo museu Cadastro Nacional de Museus – 2014

Fonte: elaboração própria

3 - TIPOLOGIA MUSEAL: ANÁLISE DOS AGLOMERADOS


Ao se aplicar o método de agrupamentos às variáveis selecionadas, classificamos em
oito perfis ou clusters ou aglomerados os 2986 museus brasileiros em funcionamento. De
todas as variáveis utilizadas apenas a cobrança (ou não) de “ingresso” não foi relevante para a
construção dos agrupamentos, uma vez que a sua variabilidade era muito pequena, dado que a
maioria dos museus brasileiros é de franca entrada. Os tipos de maior concentração de
museus, conforme reportado na Tabela 1, são o 5 com 29,64% da amostra, seguido pelo 1
(19,66%) e pelo 6 (18,69%).

1126

V V
Tabela 1- distribuição dos museus por clusters
CLUSTER MUSEUS PERCENTUAL CUMULATIVO
1 587 19,66 19,66
2 100 3,35 23,01
3 139 4,66 27,66
4 311 10,42 38,08
5 885 29,64 67,72
6 558 18,69 86,40
7 298 9,98 96,38
8 108 3,62 100,00
TOTAL 2986 100,00

Fonte: elaboração própria.

As instituições cadastradas, ou seja, aquelas que preencheram o questionário de


cadastramento do CNM e que, portanto, dispõem de um conjunto maior de informações se
concentraram no cluster 1 (Gráfico 1). Já os museus apenas mapeados, instituições cuja
existência é verificada através de contato telefônico ou por e-mail pelo Ibram, mas que não
preencheram o questionário de cadastramento, concentraram-se no cluster 6, mais de 90%.
Importante notar que, dos 2986 equipamentos, quase 50% são apenas mapeados, o que mostra
uma escassez de informações de grande parte dos museus brasileiros e que acaba dificultando
estudos mais precisos na área de museus. E ainda de acordo com a Relação Anual de
Informações Sociais em 2010, apenas 460 museus possuem CNPJ. Logo, essas instituições
têm a sua gestão dificultada, principalmente quanto à falta de orçamento próprio e quanto à
atividade de captação de recursos (Ibram, 2014).
Gráfico 1 - Distribuição dos clusters por Situação do Cadastro
1,00
0,90
0,80
0,70
0,60
0,50 cadastrado
0,40 mapeado
0,30
0,20
0,10
0,00
Cluster 1Cluster 2Cluster 3Cluster 4Cluster 5Cluster 6Cluster 7Cluster 8

Fonte: elaboração própria

1127

V V
A variável natureza administrativa (tipo de gestão dos museus) foi igualmente
significativa para a construção dos agrupamentos (veja Tabela 2). O cluster 1, que é
predominantemente de museus cadastrados, em sua maioria são instituições de gestão
municipal, destacando que esse cluster possui museus localizados em praticamente todos os
estados brasileiros. Já o cluster 6, o grupo com maior concentração de museus mapeados,
também é predominante de museus públicos municipais. Além do cluster 5, que possui
museus com essa mesma característica de gestão.

Tabela 5 - Distribuição dos clusters por natureza administrativa


NATUREZA ADMINISTRATIVA Cluster 1 Cluster 2 Cluster 3 Cluster 4 Cluster 5 Cluster 6 Cluster 7 Cluster 8

PÚBLICO MUNICIPAL 0,55 0,12 0,19 0,24 0,41 0,33 0,14 0,19
PÚBLICO FEDERAL 0,05 0,23 0,14 0,16 0,12 0,10 0,13 0,19
PÚBLICO FEDERAL 0,05 0,24 0,22 0,11 0,15 0,13 0,29 0,19
PÚBLICO 0,00 0,01 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00
PRIVADO 0,23 0,27 0,36 0,31 0,17 0,14 0,27 0,25
OUTRA 0,12 0,11 0,06 0,07 0,08 0,11 0,11 0,07
SEM INFORMAÇÃO 0,01 0,02 0,04 0,11 0,06 0,20 0,05 0,12
TOTAL 1 1 1 1 1 1 1 1

Fonte: elaboração própria.

O cluster 2 é composto por museus de Pernambuco e Bahia, e possuem gestões bem


diversas, estadual, federal e privada quase se igualam em maioria. Já no cluster 3, museus dos
estados de São Paulo e Rio Grande do Sul somam 86% das instituições do cluster, que, por
sua vez, são, em sua maioria, de natureza privada (TABELA 3).
O cluster 8, embora apresente apenas instituições de Minas Gerais e Paraná, não é
traduzido por grande disparidade de tipos de gestões, as três categorias públicas se igualam
em 20% cada e as instituições privadas correspondem 25% do total dos clusters.

1128

V V
Tabela 3 - Distribuição dos clusters por Estados
CLUSTER
ESTADOS CLUSTER 2 CLUSTER 3 CLUSTER 4 CLUSTER 5 CLUSTER 6 CLUSTER 7 CLUSTER 8
1
RONDÔNIA 0,00 0 0 0 0,01 0,00 0 0
ACRE 0,01 0 0 0 0,01 0,01 0 0
AMAZONAS 0,01 0 0 0 0,03 0,01 0 0
RORAIMA 0 0 0 0 0,00 0,00 0 0
PARÁ 0,02 0 0 0 0,03 0,01 0 0
AMAPÁ 0 0 0 0 0,01 0,00 0 0
TOCANTINS 0,01 0 0 0 0,00 0,01 0 0
MARANHÃO 0,01 0 0 0 0,02 0,01 0 0
PIAUÍ 0,01 0 0 0 0 0,02 0,02 0
CEARÁ 0,07 0 0 0,02 0,00 0,06 0,12 0

RIO GRANDE DO NORTE 0,03 0 0 0 0,02 0,03 0,01 0

PARAÍBA 0,02 0 0,01 0,01 0 0,03 0,14 0


PERNAMBUCO 0,04 0,42 0,02 0,03 0,01 0,02 0 0
ALAGOAS 0,01 0 0 0,01 0 0,03 0,08 0
SERGIPE 0,02 0 0 0,05 0 0,01 0 0
BAHIA 0,05 0,57 0,05 0,02 0,00 0,06 0,01 0
MINAS GERAIS 0,15 0,01 0 0,03 0,11 0,15 0,00 0,43
ESPÍRITO SANTO 0,02 0 0,04 0,04 0,02 0,03 0,01 0
RIO DE JANEIRO 0,05 0 0,01 0,38 0,06 0,09 0,01 0
SÃO PAULO 0,08 0 0,24 0,11 0,26 0,10 0,44 0
PARANÁ 0,09 0 0 0,07 0,07 0,10 0,05 0,57
SANTA CATARINA 0,07 0 0 0,03 0,11 0,06 0,09 0,00

RIO GRANDE DO SUL 0,18 0 0,62 0,18 0,12 0,10 0 0

MATO GROSSO DO SUL 0,03 0 0 0 0,03 0,01 0 0


MATO GROSSO 0,02 0 0 0 0,03 0,01 0 0
GOIÁS 0,03 0 0 0 0,04 0,02 0 0
TOTAL 1 1 1 1 1 1 1 1

Fonte: elaboração própria.

Observamos também que o tamanho das cidades é uma variável importante, medida
pelo tamanho da população (Tabela 4). Os clusters 1 e 6 são compostos apenas por museus
localizados em cidades pequenas , predominantemente com menos de 100 mil habitantes.

1129

V V
Tabela 4 - Distribuição dos clusters pelo tamanho dos municípios
POPULAÇÃO CLUSTER 1 CLUSTER 2 CLUSTER 3 CLUSTER 4 CLUSTER 5 CLUSTER 6 CLUSTER 7 CLUSTER 8
1.544 A 10.000 HAB. 0,16 0 0 0 0,03 0,22 0 0
10.001 A 20.000 HAB. 0,23 0 0 0 0,04 0,23 0 0
20.001 A 50.000 HAB. 0,34 0 0 0,01 0,15 0,31 0 0
50.001 A 100.000 HAB. 0,19 0 0,01 0,03 0,18 0,18 0 0
100.001 A 500.000 HAB. 0,08 0 0,30 0,51 0,36 0,07 0,18 0
500.001 A 1.000.000 HAB. 0,00 0,01 0,02 0,08 0,13 0 0,26 0
ACIMA DE 1.000.000 HAB. 0,00 0,99 0,67 0,37 0,11 0,00 0,56 1
TOTAL 1 1 1 1 1 1 1 1

Fonte: elaboração própria

Entretanto, o primeiro cluster engloba instituições, em sua maioria, com coleções


permanentes do tipo documental e histórica, artes visuais e antropologia, etnografia e
arqueologia, respectivamente. Enquanto o sexto reúne museus que não possuem essas
informações, os museus apenas mapeados pelo Ibram (Gráfico 2).
Já nos clusters 2 e 8, os museus pertencem a municípios com uma população superior a um
milhão de habitantes, com grande parte de museus sem informações de acervo, e em segundo
lugar museus de acervo voltados às artes visuais e em terceiro documental e histórico.

1130

V V
Gráfico 2 - Distribuição dos clusters por acervo
1,20
antropologia, etnografia e
arqueologia
1,00 arquivistico e biblioteconômico

artes visuais
0,80

ciências naturais e história


0,60 natural
ciência e tecnologia

0,40 documental e história

imagem e som
0,20

outros
0,00
Cluster Cluster Cluster Cluster Cluster Cluster Cluster Cluster Sem informação
1 2 3 4 5 6 7 8

Fonte: elaboração própria

Através dos indicadores socioeconômicos, os clusters 1 e 6, compostos por museus


localizados em municípios menos populosos têm baixas taxas de ensino médio, taxa de esgoto
e da taxa de homicídios. A renda dos ocupados também são as mais baixas, não chegam a R$
900,00 per capta (tabela 5).
O cluster 3, instituições localizados nos municípios com mais de 100 mil habitantes
dos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, possuem a maior média em despesa com
cultura entre os oito agrupamentos. Enquanto no cluster 8, museus localizados nos municípios
com mais de um milhão habitantes, encontram-se as maiores taxas de homicídios e ensino
médio entre adultos com mais de 25 anos, e a maior renda média dos ocupados (TABELA 5).

1131

V V
Tabela 5 - Variáveis socioeconômicas
VARIÁVEL CLUSTER 1 CLUSTER 2 CLUSTER 3 CLUSTER 4 CLUSTER 5 CLUSTER 6 CLUSTER 7 CLUSTER 8

DESPESA EM CULTURA
77,74 94,89 96,55 90,13 76,07 76,38 91,22 64,85
PER CAPTA (R$)
TAXA ENSINO MÉDIO (%) 0,29 0,53 0,52 0,48 0,43 0,26 0,50 0,56

TAXA DE HOMICÍDIOS
90,24 33813,79 4440,92 2272,29 212,35 92,57 10109,75 78456,45
(POR 100.000 HAB.)

TAXA DE ESGOTO (%) 41,98 75,73 81,99 76,94 63,46 43,77 74,08 93,93
RENDA DOS OCUPADOS
879,62 1601,39 1969,12 1670,02 1490,04 843,96 1824,29 2111,54
(R$)

Fonte: elaboração própria

Ao combinar essas descrições, podemos identificar tipos característicos dos museus


brasileiros de acordo com as variáveis que selecionamos. Deste modo, as especificidades de
cada um dos tipos são assim delineadas:
Tipo 1: Museus cadastrados, com gestão municipal, localizados em cidades pequenas (menos
de 100 mil habitantes). O cluster possui as menores médias das taxas de homicídios, esgoto e
a segunda menor renda média dos ocupados com mais de 18 anos;

Tipo 2: Museus localizados em Pernambuco e na Bahia, em municípios com população


superior a um milhão de habitantes;

Tipo 3: Museus predominantemente do Rio Grande do Sul e São Paulo, administração


privada, localizados em municípios com mais de 100 mil habitantes, além de ser o grupo
localizado em municípios de maior despesa em cultura per capta;

Tipo 4: Museus privados, com maior concentração no Rio de Janeiro.

Tipo 5: Museus de gestão municipal;

Tipo 6: Museus mapeados, porém sem informações sobre administração e acervo, localizados
em municípios com menos de 100 mil habitantes. Cluster com as menores médias de acesso a
esgotamento sanitário e de população com conclusão do ensino médio, e a menor renda média
dos ocupados com mais de 18 anos.

Tipo 7: Museus predominantemente de São Paulo, maior concentração de museus com


administração federal, localizados em municípios com população superior a 100 mil
habitantes.

1132

V V
Tipo 8: Museus localizados em Minas Gerais e Paraná, em municípios com população
superior a 100 mil habitantes. Grupo com a menor despesa em cultura per capta e maior taxas
de ensino médio, esgoto e maior média de renda per capta.

Ao se analisar a descrição destes tipos, observamos que a concentração em determinadas


unidades da federação, tamanho de município, tipo de gestão e gasto per capita em cultura
tendem a ser as variáveis que mais discriminam.

4 - CONCLUSÕES
A aplicação de análise de aglomerados ao caso de museus brasileiros cadastrados pelo
Ibram, tendo por unidade de análise o município, mostrou que a distribuição no espaço guarda
características específicas. A análise de aglomerados pode, portanto, contribuir para
direcionar uma política levando em conta as especificidades desses equipamentos, conhecer
os potenciais e fragilidades desse setor no Brasil é de suma importância para a busca de
instrumentos que possam fortalecer as potencialidades dos mesmos.
A distribuição de museus é bastante concentrada na região sudeste, corroborando o
achado – segundo um estudo4 realizado pelo Ibram – de que os equipamentos que tiveram
mais sucesso em captar recursos públicos de incentivo fiscal, independentemente da natureza
administrativa também se localizam no Sudeste, ou seja, também há concentração de
beneficiários dos incentivos. Sendo esses recursos essenciais para o funcionamento das
instituições, uma vez que os custos fixos e dinâmicos são altos e os orçamentos reduzidos.
Ademais, o tipo prevalecente é o de museus de gestão da esfera municipal, ratificando a
importância da descentralização da gestão cultural como proposto pelo Sistema Nacional de
Cultura. A municipalização da política cultural deve ser acompanhada pelo provimento de
recursos que assegurem a sustentabilidade destes equipamentos. Na esteira desta reflexão,
coloca-se também o outro perfil proeminente, tipo 6, aqueles que são mapeados mas sem
informação de acervo e se localizam em cidades de pequeno porte fora da região do Nordeste.
Sendo assim, uma política que incentive este equipamento como centralidade urbana deverá
considerar tais especificidades. Em agenda de pesquisa futura, pretende-se selecionar alguns
museus como emblemáticos dentro de cada um dos perfis e proceder a uma avaliação de
impactos sobre o entorno.

4
Museus e a dimensão econômica: da cadeia produtiva à gestão sustentável / Instituto Brasileiro de Museus –
Brasília, DF: Ibram, 2014. (Coleção Museu, Economia e Sustentabilidade, 2)

1133

V V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEDATE, A.M., HERRERO, L.C. & SANZ, J.A.. . Economic valuation of a contemporary art
museum: correction of hypothetical bias using a certainty question. Journal of Cultural Economics
33(3), 185-199, 2009.

BILLE, T; SCHULZE, G. G. Culture in urban and regional development. In: GINSBURGH, Victor
A.; THROSBY, David (Eds.). Handbook of the Economics of Art and Culture.Oxford: North-Holland
Elsevier, 2008.

CWI, D. Public support of the arts: three arguments examined. Journal of Cultural Economics, 4(2), p.
39-62, 1980.

DINIZ, S. C. ; MACHADO, A. F. . Analysis of the Consumption of Artistic-Cultural Goods and


Services in Brazil. Journal of Cultural Economics , v. 35, p. 1-18, 2011.

FARIA, D.; MACHADO, A. F. . Factors associated to art museum visitation: the Inhotim case.
Business Management Review (BMR), v. 5, p. 196-207, 2015.

FREY, B; MEIER, S. The economics of museums. In: GINSBURGH, Victor.; THROSBY, David
(Eds.). Handbook of the Economics of Art and Culture.Oxford: North-Holland Elsevier, 2008.

IBRAM. Museus e a dimensão econômica: da cadeia produtiva à gestão sustentável. Brasília, 2014.

MINGOTI, S. A. Análise de dados através de estatística multivariada. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

PASTERNAK, S. e BÓGUS, L. A distribuição dos equipamentos culturais numa cidade segregada:


São Paulo. In: XII Seminário da Rede Iberoamericana sobre Globalização e Território em Belo
Horizonte, 2012.

SANZ, J.A.L. & HERRERO, L.C.P. Valoración de bienes públicos relativos al patrimonio cultural.
Aplicación comparada de métodos de estimación y análisis de segmentación de demanda. Hacienda
Pública Española, nº178, 2006.

1134

V V
POLÍTICAS DE CULTURA E JUVENTUDE NA BAHIA:
PRIORIDADES ELENCADAS NAS CONFERÊNCIAS DE CULTURA E
JUVENTUDE
Nilton dos Santos Lopes Filho1

RESUMO: Quando se trata de uma política específica para a juventude no campo da cultura,
a pergunta necessária a ser feita é: o que querem os jovens para as políticas culturais? Mas
também outra pergunta foi feita: o que quer o campo da cultura quando da especificidade do
público jovem. Essas questões balizam esse artigo que pretende responder essas perguntas em
uma análise comparativa e reflexiva dos resultados das conferências de juventude e cultura no
estado da Bahia. Para essas análises, conceitos de cultura e juventude foram delimitados com
apoio de teóricos como Bauman e Eagleton e um quadro analítico foi produzido.

PALAVRAS-CHAVE: Política; Cultura; Juventude; Conferências.

1 – INTRODUÇÃO

A ideia desse artigo foi inspirada no texto “O que querem os jovens com a
comunicação – Reflexões a partir de processos participativos” que fiz com Daniella Rocha 2,
na ocasião para compor a pauta da discussão no Conselho Nacional de Juventude (Conjuve).
O texto foi a base para discutir o monitoramento das políticas de comunicação no Conjuve e
serviu de compilação de dados para pré-análise, pressuposto para um conseguinte olhar mais
aprofundado acerca das políticas de comunicação para a Juventude.
Dito isso, faz-se necessário dizer que, dessa influência e desse referencial, percebi que
seria importante para iniciar as reflexões acerca do meu projeto de pesquisa, a partir do olhar
sobre como os jovens baianos encaram as políticas para a cultura. O interesse se justifica pelo
objeto de estudo que é investigar o caminho percorrido por jovens no que tange o acesso às
políticas de cultura no estado da Bahia.
As políticas de fomento à produção cultural na Bahia são um exemplo das políticas de
cultura que atendem aos jovens (indiretamente – já que não têm nenhuma ação para valorizar
e influenciar a participação das pessoas de 15 a 29 anos). Mas o que então seriam as
demandas dos jovens pela política pública de cultura na Bahia? O que perpassa como

1
Nilton dos Santos Lopes Filho é mestrando no Programa Multidisciplinar de Pós Graduação em Cultura e
Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós graduado em Democracia Participativa, República e
Movimentos Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Comunicação Social com
habilitação em jornalismo pela UFBA. Coordena o Núcleo de Incidência Política da ONG CIPÓ Comunicação
Interativa. Email: niltimlopes@gmail.com
2
Daniella Rocha é jornalista e pós graduada em Democracia Participativa, República e movimentos Sociais da
Universidade Federal de Minas Gerais.

1135

V V
prioridade para essa política forjada em espaços de participação política constituída
democraticamente no Estado?
O texto será estruturado da seguinte forma: a) essa Introdução que deve dizer da minha
imbricação para escrita desse artigo e também guiar o leitor para a composição do texto que
segue; b) O capítulo Objetivo é o espaço no qual será sistematizado o compromisso desse
texto; c) O Desenvolvimento é o capítulo que contará a análise propriamente dita, inclusive
apontado a metodologia adotada e as categorias fundamentadas; d) Nas Considerações conterá
informações ainda necessárias sobre a análise e indicações de lacunas que poderão ainda ser
desenvolvida em outra análise e, por fim; e) Referências Bibliográficas na qual serão listados
os autores utilizados para sedimentar e ampliar as análises realizadas ao longo de todo texto.

2 – OBJETIVO

Sistematizar as prioridades para as políticas públicas de cultura para a juventude


baiana, a partir da análise comparativa das resoluções das últimas conferências de juventude e
cultura na Bahia.

3 - DESENVOLVIMENTO

3.1 – Contexto geral das Conferências

As conferências são mecanismos na estruturação das políticas públicas. São


importantes espaços de participação política para o exercício direto da cidadania,
complementar ao sistema de democracia representativa e prevista na constituição federal de
1988 como marco da abertura política pós ditadura militar no Brasil. Isso não significa dizer
que elas não existiram antes do processo ditatorial, como é o caso das conferências nacionais
de saúde. Porém, apenas ganharam força para as outras diversas temáticas há menos de 30
anos atrás.
As conferências nacionais, geralmente, são precedidas de etapas regionais, estaduais,
territoriais e/ou municipais, dependendo da estrutura e capacidade de mobilização social e
política de cada território, já que os eventos locais são produzidos com recursos locais,
mesmo que obedecendo a lógicas, critérios e regimentos nacionais de participação para
atender uma metodologia de sistematização das prioridades para as políticas públicas às quais
estão sendo discutidas. As etapas das conferências de cultura e juventude na Bahia seguiram
essa premissa.

1136

V V
A última conferência estadual de juventude aconteceu em 2011, em Salvador. Depois
de etapas municipais (auto-gestionadas pelos municípios) e etapas territoriais (construídas e
mobilizadas pelo Conselho Estadual de Juventude da Bahia – Cejuve - e Coordenação
Estadual de Juventude, ligada a Secretaria de Relações Institucionais), mobilizou 1604
pessoas, nos dias 28, 29 e 30 de outubro de 2011, na Escola Parque, em Salvador. Entre os
participantes estavam delegados eleitos nas etapas municipais e territoriais e observadores
cadastrados. Como metodologia, a etapa baiana trouxe um diferencial em relação à primeira
conferência realizada no estado. Os participantes deveriam construir proposições frente a um
texto de avaliação sobre o conjunto de pressupostos e ações para as políticas de juventude na
Bahia, pós primeira conferência. O texto foi construído pelo Cejuve, com apoio de consultoria
externa, a partir de documentos sobre a política para o segmento desenvolvida no Estado e
nacionalmente. O texto-base3, como se chamou, poderia ser aditivado, suprimido ou
substituído em cada eixo 4. O resultado dessa reflexão seguiu em forma de relatório para a
etapa nacional contendo as proposições referendadas em uma plenária geral com todos os
delegados. A Conferência Estadual de Juventude também serviu para a coleta de proposições
e reflexões que resultaram na construção posterior do Plano Estadual de Juventude, decretado
em 2012 pelo governador Jaques Wagner.
Já a conferência de cultura da Bahia teve sua última edição em 2013. A diferença para
a Conferência de Juventude, em relação à estrutura, deu-se pelas realizações de etapas
setoriais de cultura. As proposições nesta etapa que aconteceu na cidade de Camaçari, com
801 participantes, através de dez Rodas de Conversa Temáticas que ocorreram
simultaneamente, contando com a presença de palestrantes, responsáveis por iniciar e
qualificar o debate em torno dos temas propostos: Cidadania e Direitos Culturais, Cultura e
Desenvolvimento, Cultura e Comunicação, Planos de Cultura, Formação em Cultura, Redes e
espaços culturais, Memória Cultural, Território e identidade, Cultura e tecnologias
contemporâneas e Organização do campo da cultura. Após os debates, cada Roda de Conversa
elaborou duas propostas da Conferência Estadual e uma proposta para a Conferência
Nacional, que foram apresentadas e validadas em plenária.

3
Para ter acesso ao texto-base, basta acessar o site: http://www.juventude.ba.gov.br/wp-
content/uploads/2011/08/TEXTOBASEDA2CONFERNCIADEJUVENTUDE.pdf
4
(Direito ao Desenvolvimento Integral: educação, trabalho, cultura, comunicação; Direito ao Território: cidade,
campo, transporte, meio ambiente e comunidades tradicionais; Direito à experimentação e qualidade de vida:
saúde, esporte, lazer e tempo livre; Direito à diversidade e à vida segura: segurança, valorização e respeito à
diversidade e direitos humanos; Direito à participação).

1137

V V
3.2 – Metodologia

Para promover um olhar abrangente e específico ao mesmo tempo no que tange às


políticas de juventude e cultura, foi utilizada a metodologia de análise de conteúdo, que
permite delimitar um campo de investigação: as políticas de Cultura e de Juventude e um
objeto de pesquisa: as conferências estaduais de Cultura e de Juventude. De modo geral, esta
metodologia se divide em quatro etapas: pré-análise, categorização, codificação/contagem dos
itens e interpretação.
Na pré-análise, foram observadas todas as resoluções relativas à Conferência de
Juventude e identificadas aquelas que tratavam das questões ligadas à cultura (mesmo que não
específicas sobre o tema da comunicação). Já na Conferência Estadual de Cultura, foram
buscadas resoluções nas etapas setoriais, visto que existiu uma etapa específica com o tema
juventude e culturas digitais. Esta foi priorizada pela falta de proposições específicas para o
segmento jovem no relatório final da conferência.
Para a categorização foram definidas três categorias que buscavam englobar as
resoluções das duas conferências e se classificaram em: Legislação / Execução das leis
existentes, no qual se revelaram propostas que versam com a criação ou execução de lei para
garantir a institucionalidade das políticas e favorecer à participação social; Educação /
Formação, contendo proposições que versam acerca da relação necessária entre os dois
campos de direitos fundamentais que fortalecem a garantia de demais direitos juvenis. As
proposições convocam tanto a educação formal – assumindo a escola como espaço central –
como a educação não-formal (que aqui foi destacada com o termo formação) que convoca a
formação de jovens como agentes culturais, e, por fim; Fomento à Cultura / Incentivo
Financeiro, onde foram agrupadas as proposições que trataram dos temas, bem como a
importância de eleger um olhar de especificidade para aporte de recursos que visem a maior
participação dos jovens no acesso, produção e disseminação de produtos culturais.
Na codificação/contagem dos itens, foram contabilizados o número e o tipo de
propostas relativas à duas conferências que apareciam em cada categoria. Na interpretação,
foi feita a análise geral quanti-qualitativa dos dados, observando os aspectos comuns e
diferenciados entre as duas conferências.

1138

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3.3 – Análise de Conteúdo

3.3.1 – Conceitos

Em consonância com as discussões acerca do conceito de cultura, as prioridades


preconizadas nas conferências de cultura e juventude orientam a construção de políticas
públicas atentas à importância de fortalecer identidades culturais, compondo diretrizes que
figuram sobre as necessidades de um segmento em específico.
O conceito de cultura aqui trabalhado se relaciona com o pensamento de Terry
Eagleton, que nos propõe a ideia de que a cultura seria o conjunto de performatividades
cotidianas aliada à nossa capacidade de refletir sobre ela.
A cultura é habitus (itálico do autor), na expressão de Pierre
Bourdieu, mas também é, contraditoriamente, a existência mais sutilmente
autorreflexiva de que somos capazes. (EAGLETON, 2011, p. 149).

Para Eliot, analisado por Eagleton, todas as classes sociais devem participar do lastro
do desenvolvimento cultural, sendo a elite responsável diretamente pelo desenvolvimento
mais orgânico da cultura, mais consciente dela, porém ainda a mesma. É importante ressaltar
esse pensamento de Eliot, por ele balisar o ideal desse artigo no que tange à participação.
Eliot, como antiburguês e desenhando esse sentido de cultura, propõe uma sociedade com
amplo espaço de oportunidade.
Cultura como espaço para a participação plural, pressupõe, como diz Bauman, para
diferenciar a hierarquia da cultura, o uso do próprio plural no conceito. Ou seja, o conceito de
cultura aqui trabalhado se relaciona de maneira inversamente proporcional ao sentido da
cultura hierárquica, proposto com diferenciação:
(...) existe uma natureza ideal do ser humano, e a cultura significa o
esforço consciente, fervoroso e prolongado para atingir esse ideal, para
alinhar o processo de vida concreto com o potencial mais elevado da
vocação humana. (BAUMAN, 2012, p. 64).

Sobre o conceito de juventude, duas esferas devem ser apresentadas. A esfera formal,
constituinte da própria política, que admite como jovem aqueles que tem entre 15 a 29 anos
no Brasil. Na esfera da constituição da identidade, no âmbito das conferências, se verifica a
juventude como agentes autônomos para a produção de cultura; agentes passíveis de formação
e ampliação de conteúdo sobre o tema e; agentes carentes de legislação específica. Porém,
todas elas se enquadram no olhar para o jovem como sujeitos performativos subjetivos, termo
de George Yudice (2004). Ao contrário do imaginário constituído pela sociedade de que
jovens são, apesar de bruta força de produção, responsáveis pelos principais problemas e
1139

V V
conflitos na sociedade, as resoluções das conferências já observam esse segmento como
potenciais criadores e atuantes no desenvolvimento cultural e social do estado da Bahia.
Importante destacar que a construção desse caminho não foi feita sem tangenciar
reflexões importantes sobre o fortalecimento da democracia moderna, aspectos do lugar da
cultura e da identidade no desenvolvimento da nação, conjecturas sobre a ampliação da
participação social nas deliberações sobre as políticas públicas e, principalmente, no
reconhecimento da diversidade como estruturante na composição das diretrizes políticas.
Segundo Ulrich Beck (1995), se apoiando nas reflexões de Giddens (1995) acerca da
política na modernidade, enfatiza que a participação cidadã nos remete a um processo
emancipatório e nos afasta de uma dicotomização entre partidos políticos e eleitores, no que
Giddens chama de “política emancipatória”, delimitado por oposição à política da vida.
“A política da vida diz respeito a qual a cultura reflexiva do ego
experimenta e sofre o caráter implacável do seu construtivismo técnico e da
sua sociedade global. Agora, o microcosmos do estilo de vida pessoal está
interligado com o macrocosmos de problemas globais terrivelmente
insolúveis”. (GIDDENS, 1995, p. 61).

Tanto a conferência de cultura, quanto de juventude sofreram processos avaliativos


que se orientavam por essas premissas. As conferências e suas resoluções, apesar de acessadas
por uma parcela ainda minoritária da população – cerca de 80 mil pessoas participaram dos
processos das duas conferências (envolvendo etapas municipais, setoriais e territoriais) – se
mostram como capital político importante para a construção das políticas públicas.
Sobre as conferências, e sua importância, o professor Leonardo Avritzer reflete acerca
da dimensão da participação como marca importante desse processo democrático.
“As conferências nacionais representam um fortalecimento do marco
participativo presente na Constituição de 1988. De acordo com o texto
constitucional, a soberania popular no Brasil pode se expressar tanto pela via
da representação quanto pela via da participação”. (AVRITZER, 2012, p.
21)

Mesmo com essas considerações não podemos afirmar que essas prioridades
correspondem de fato aos interesses do público jovem da Bahia, mas sim do público que
participam dos espaços democráticos participativos e institucionalizados, como é
caracterizada a conferência.

1140

V V
3.3.2 – Quadro de Análise

Categorias de análise Conferência de Cultura Conferência de Juventude


Legislação / Execução das leis existentes Criação do Colegiado Setorial de Fazendo o uso da lei da meia entrada ser cumprida
Juventude de acordo com o na sua integralidade e buscando meios de
Sistema de Cultura previsto na punição para o descumprimento da mesma;
Lei Orgânica de Cultura da Criação de leis em âmbito nacional, municipal e
Bahia estadual que garantam a construção de espaços
culturais e de lazer nas sedes dos municípios e em
suas zonas rurais, para apresentação de diversos
seguimentos culturais que contemple o
audiovisual, teatro, aulas de dança, musicalização,
entre outros, devidamente equipados e com
profissionais qualificados, capacitando e
profissionalizando os jovens.
Educação / Formação Incentivar ações de valorização Para tanto devem ser criados e estimulados,
da cultura popular local e das programas de capacitação aos jovens produtores e
ancestralidades dos jovens na desburocratização do acesso aos recursos
Educação; públicos;
Criar circuitos culturais nas Reformulação do modelo educacional de forma
escolas, com recorte para que garanta a inclusão curricular dos diversos
juventude, em parcerias Secult e segmentos artísticos culturais, com profissionais
Secretaria de Educação (da qualificados, promovendo assim a criação da
Bahia). escola em turno integral a nível fundamental e
médio contribuindo na formação do indivíduo
autônomo e crítico, conseqüentemente na
formação integral humana.
Fomento à Cultura / Incentivo financeiro Criar edital de Culturas da Garantir através de incentivos financeiros e da
Juventude com financiamento do fiscalização à preservação da história local e o
Fundo Estadual de Cultura; turismo, a recuperação nas áreas onde existam
sítios arqueológicos, áreas de lazer como
Criar cotas nos editais do Fundo cachoeiras, trilhas, tombamentos da cultura
Estadual de Cultura já existente material e imaterial (rezadores, cantigas e festas
para proponentes jovens. religiosas, e outras manifestações tradicionais).

As resoluções das conferências trouxeram pontos específicos passíveis de cruzamento


entre as delegações frente às politicas de cultura e juventude, convocaram para um olhar sobre
a cultura que versa explicitamente acerca do olhar mais amplo sobre a Cultura – entendendo

1141

V V
os processos culturais também como fomentadores do fortalecimento de identidades,
observando especificidades do segmento – e a juventude – orientado por propostas que
atinjam a públicos amplos e tangenciem também os jovens.
A legislação apareceu como ponto estratégico no sentido da institucionalização das
políticas, fomentando a regularização de propostas realizadas em âmbito governamental, mas
que aparenta fragilizado visto que em processos de mudança da administração pública, a
gestão pode descontinuar ou mesmo nem acessar como necessidade a construção dessas
políticas. Das cinco propostas encontradas nas resoluções da Cultura, uma versou sobre
legislação, porém mais duas foram encontradas nas resoluções de juventude, que também teve
no geral 05 propostas. Então, 30% das proposições endereçadas à cultura e juventude têm a
tônica da legislação como parte fundamental.
O único setor que foi perpassado pelas proposições que tratavam de juventude e
cultura foi a educação. A maior parte das resoluções encontradas, 40%, versaram sobre esse
tópico. Ao entender a juventude como público majoritário em espaços de educação formal e
também no que tange à demanda em relação à formação profissional dentro ou fora de centros
educacionais formais, as proposições versam sobre a necessidade de ter a cultura irradiando
processos de ensino-aprendizagem.
Os outros 30% restantes de proposições se dão acerca do fomento e incentivo
financeiro para atender às demandas da juventude em prol da cultura. A única proposição
sobre esse tema que estava nas resoluções da juventude, tem um panorama mais generalista,
que propõe uma política de incentivo financeiro para a cultura de uma forma que abrange
todos os públicos. Já nas duas proposições advindas da cultura propõe fomento para o público
jovem em editais públicos, através de cotas e aporte específico.

4 - CONSIDERAÇÕES
Segundo os técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Frederico
Barbosa e Herton Araújo, de um lado, as políticas legitimistas – que identifica a necessidade
da democratização da cultura para acesso à bens culturais comuns – mostram as desigualdades
culturais homólogas às desigualdades de renda, de outro as políticas pluralistas – que propõe
olhar diferenciado para as políticas nos seios dos segmentos identitários como premissa
prioritária – indica a ausência de espaços públicos para estimular o uso de tempo livre para a
juventude como prática cultural, reconhecendo as suas diversidades.

1142

V V
As políticas de cultura e juventude na Bahia, dessa forma, devem se desenvolver
orientadas por uma estratégia que contemple: a) a especificidade do jovem como grupo
populacional em maior quantidade e com questões específicas – inclusive com reflexões
acerca da existência de uma cultura juvenil baiana; b) a prática da relação das políticas de
cultura com outras políticas, como a educação. Porém, diferente do que propõe as resoluções,
é importante perceber a demanda de jovens na relação entre a política cultural e as demais e;
c) a necessidade de institucionalizar as políticas no sentido de torna-la política de estado e
fortalecer essa especificidade entre a cultura e a juventude na constituição das políticas
públicas.
Ressalta-se aqui que o conceito de políticas culturais são as práticas que promovam o
que o professor Albino Rubim chamou de Cidadania Cultural realizada com orçamento
público e com participação de diversos atores sociais, como o próprio agente público, mas
também a sociedade civil e até mesmo o mercado. “Articular política e cultura deve supor o
reconhecimento de sua diversidade; de suas singularidades dinâmicas; de suas inúmeras
interfaces, além da complexidade de tal projeto” (RUBIM, 2007)
Porém, não se vê no poder executivo baiano a criação de projetos de política de cultura
que tenha o jovem no seu caráter autônomo. Os editais do Fundo de Cultura da Bahia não
entendem ainda, por exemplo, a necessidade de incentivar que jovens possam ser propositores
de projetos culturais e operarem recursos públicos nesse caminho. Antes de deixar o cargo,
em 2014, o ex-Secretário de Cultura, Albino Rubim, lançou um livro chamado Políticas
Culturais na Bahia Contemporânea, onde cita as políticas realizadas por sua secretaria.
Quando relaciona as políticas com o caráter identitário da cultura no estado, não cita o jovem
como público e só cita o termo “juventude” em um texto sobre a Orquestra Neojibá, sem
ampla reflexão sobre a importância do cruzamento política de cultura e público juvenil. Isso
não significa que não existiu política que tangenciasse a juventude (como o caso do programa
Trilha das Artes, parceria da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esportes e da
Secretaria de Cultura da Bahia), porém verifica-se que não há investimento em uma política
específica que coloque o jovem no lugar de produtor de cultura no estado.
Ou seja, há uma grande necessidade de que as recomendações das Conferências sejam
transformadas em política, adquirindo um lugar de deliberação que torne de fato a sociedade
civil participativa no nosso sistema de que pressupõe a participação democrática para além do
voto. E assim promover uma política que “ao expandir as fronteiras do possível, possibilite a
imaginação nas fronteiras do impossível” (RUBIM, 2007).

1143

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5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVRITZER, Leonardo. Conferências Nacionais: Ampliando e Redefinindo os Padrões de Participação


Social no Brasil in 1739 Texto para Discussão. IPEA, 2012;

BARBOSA, Frederico. ARAÚJO, Herton. Juventude e Cultura in Juventude e Políticas Sociais no


Brasil. Org. Jorge Abrahão de Castro, Luseni Maria C. de Aquino e Carla Coelho de Andrade.
Brasília: IPEA, 2009;

BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012;

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Riccardo Mazzeo. Rio de Janeiro:
Zahar, 2013;

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007;

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Editora Unesp, 2011;

GIDDENS, Anthony (org). Modernização reflexiva. São Paulo: UNESP, 1995;

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006;

RUBIM, Albino. Políticas culturais: entre o possível & o impossível. In: NUSSBAUMER, Gisele
(Org). Teorias e Políticas da Cultura: visões multidisciplinares. Salvador: Edufba, 2007.

RUBIM, Albino. Políticas culturais na Bahia Contemporânea. Salvador: Edufba, 2014.

YUDICE, George. A conveniência da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004.

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NOVAS NOTAS SOBRE A INDÚSTRIA CULTURAL E A SOCIEDADE
“EXCITADA”
Nina Reis Saroldi1

RESUMO: Neste artigo apresento reflexões recentes acerca da relação entre a economia da
cultura e o conceito de “sociedade excitada”, criado pelo filósofo Christoph Türcke. Discuto
também a proposta de mudança na Lei Rouanet e apresento parte do material da pesquisa feita
durante o Estágio Sênior como ilustração da discussão sobre políticas culturais.

PALAVRAS-CHAVE: economia da cultura, sociedade pós-industrial, subjetividade, política


cultural.

Introdução
Um dos argumentos que dão suporte ao discurso que valoriza a economia da cultura
como vetor de desenvolvimento é a ideia de que vivemos em uma sociedade “pós-industrial”.
Segundo este raciocínio, a automação dos processos de produção dos bens essenciais à
sobrevivência estaria liberando energia de trabalho humana para a produção de outros bens
menos tangíveis do que os produzidos em fábricas de setores tradicionais da economia tais
como, por exemplo, os bens culturais. No entanto, o lugar ocupado por estes na escala social
de valores precisa ser analisado com cuidado. O reconhecimento de que a arte e a cultura
fazem parte do tesouro existencial de um povo varia grandemente, dependendo da história,
das tradições locais e do momento político-econômico atravessado pelo país. Em Portugal,
por exemplo, uma das medidas tomadas pelo governo para enfrentar a crise econômica atual
foi o sumário fechamento do ministério da cultura. A guerra na Síria já destruiu grande parte
do patrimônio histórico do país e da região. Apesar da política de contenção de gastos da
chanceler Angela Merkel, ainda há forte investimento estatal na manutenção dos espaços de
arte e na formação dos próprios artistas na Alemanha.
No Brasil, o recém-empossado ministro da cultura Juca Ferreira faz coro a vários
pensadores e profissionais atuantes da área ao criticar o caráter elitista da Lei Rouanet e o

1
Mestre em Filosofia, Doutora em Teoria Psicanalítica, com pós-doutorado em Sociologia da Cultura (bolsa
Estágio Sênior CAPES/ Proc. 2467-14-3) na Hochschule für Grafik und Buchkunst em Leipzig, Alemanha (em
colaboração com o Prof. Dr. Christoph Türcke), Professora Adjunta do curso de Engenharia de Produção da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e organizadora da coleção Para ler Freud
(Civilização Brasileira) – Email: nina.saroldi@uniriotec.br.

1145

V V
controle da cultura pelo setor privado. Em entrevista recente2, ao ser indagado sobre a
suposta tentativa de “dirigismo cultural” quando defende a destinação de parte dos recursos
provenientes da renúncia fiscal para o Fundo Nacional de Cultura, o ministro responde:
“Temos uma hipersensibilidade para o dirigismo público e nenhuma sensibilidade para o
dirigismo de mercado” (FERREIRA, 2015). De fato, a ideia de “dirigismo cultural de
Estado” tornou-se uma espécie de vade retro que, como tantos outros lugares-comuns
difundidos no Brasil, impedem a discussão de seguir adiante. Os opositores da ideia de uma
distribuição mais equitativa dos recursos destinados à cultura via Estado em nosso país
parecem esquecer-se de que vivemos em uma democracia – ainda que nova e com falhas,
certamente – mas uma democracia. Há quem tema uma suposta apropriação ideológica da
cultura como se estivéssemos, ainda, na ditadura. Em muitos países reconhecidamente
democráticos como a França e a Alemanha, por exemplo, a participação do Estado na vida
cultural tem sido a garantia de sua vitalidade e, sobretudo, de sua diversidade.
Até hoje não há consenso em torno de algo como a “pureza” da cultura, ou uma visão
correta e verdadeira do que seja sua natureza. A cultura é, portanto, algo a ser disputado no
campo da política. Como observa Yúdice – no bojo da discussão sobre a conveniência da
cultura – por trás do que se apresenta como conflito de ordem cultural esconde-se, muitas
vezes, uma luta muito concreta – entre grupos de origem cultural diferente – por territórios,
verbas ou renda. Além disso, é impossível estabelecer algo que esteja fora de um determinado
jogo de interesses (YÚDICE, 2004, ps. 43 e 63).
Mas voltemos ao discurso da economia da cultura e sua relação com a chamada
sociedade pós-industrial. É importante fazer a ressalva, no que tange à substituição maciça
dos parafusos por telas, sobretudo no ambiente de trabalho, que esta substituição é, ela
mesma, mais da ordem do imaginário coletivo do que da realidade material enfrentada por
homens e mulheres no cotidiano atual, apesar da presença efetiva da tecnologia em várias
tarefas outrora realizadas por mãos humanas. O trabalho pesado envolvendo parafusos,
guindastes, linhas de montagem, escavadeiras, tratores, colheitadeiras e máquinas de costura é
feito majoritariamente longe dos olhos dos habitantes do mundo urbano desenvolvido, em
aldeias da China, nas Filipinas, na Romênia ou no interior do Brasil. Como aponta Naomi
Klein, nas chamadas zonas de exportação que abrigam as fábricas das maiores marcas de
roupa do planeta, costureiras trabalham em turnos de dezesseis horas e não podem sequer ir
ao banheiro, sendo obrigadas a improvisar com sacos plásticos embaixo das máquinas
2
Conferir íntegra da entrevista em http://oglobo.globo.com/cultura/juca-ferreira-abre-fogo-contra-lei-rouanet-
15258675, acessado em 11 de fevereiro de 2015.

1146

V V
(KLEIN, 2008, p. 236). Na mesma linha, já foram divulgadas na imprensa mundial as
degradantes condições de trabalho nas fábricas de I Pad na China, onde os operários vivem
isolados do entorno e o número de suicídios fala por si. Em outras palavras, “mundo pós-
industrial” nos olhos dos outros é refresco!

Da tecelagem à instalação
No estágio que realizei na Faculdade de Artes Gráficas e do Livro em Leipzig, na
Alemanha, tive oportunidade de conhecer espaços e iniciativas que, para os habitantes desta
cidade de aproximadamente meio milhão de habitantes na antiga Alemanha Oriental,
reforçam a ideia de que vivemos em um mundo menos pesado e mais criativo. Antigas
fábricas que atualmente abrigam espaços culturais como a Spinnerei, a Westwerk e a
Tapetenwerk são, ao mesmo tempo, ruínas de um tempo voltado para a produção planificada,
a competitividade econômica nos moldes soviéticos e a doutrinação ideológica constante,
dentro e fora dos muros da fábrica. Na Spinnerei, por exemplo, é possível ver as fotografias
das competições esportivas associadas ao pertencimento ao trabalho, os churrascos festivos ao
ar livre, no verão, toda uma série de eventos destinados a louvar o espírito coletivo e celebrar
a ditadura do proletariado. Logo depois da revolução pacífica que derrubou o Muro de Berlim
– e que teve em Leipzig seu epicentro – as operárias das fotos perderam seus empregos e
tiveram que aprender a conviver com o mundo imprevisível e inseguro do Ocidente.
Desocupados, estes espaços de trabalho e produção “pesados”, orgulho do socialismo, deram
lugar a ateliers, palcos para shows, cineclubes, galerias e até mesmo lofts para moradia. Um
dos artistas mais caros da Alemanha atualmente, Neo Rauch, ocupa um destes espaços na
Spinnerei e embora tenha seu lugar bem estabelecido no mercado global mantém-se fiel ao
galerista Gerd Lybke na pioneira Eigen+Art. Dividindo espaços mais modestos no mesmo
complexo, outros artistas sobrevivem apenas com a cabeça fora da água ou valem-se da ajuda
do Estado para continuar em seu ofício de eleição.
O importante para o nosso tema, o da relação entre a economia da cultura e a
subjetividade excitada, é que todos os envolvidos na falácia de um mundo sem indústria –
imaterial e virtual – compartilham de um único imaginário, mesmo ocupando lugares muito
diferentes no espaço – seja rural ou urbano, central ou periférico – e na escala social. Tanto a
costureira semiescrava quanto a executiva de marketing da Mercedes vêem, em outdoords e
na TV, as mesmas imagens, imagens que apostam na ideia do virtual, e não do peso do real.

1147

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Segundo Zygmunt Bauman, no termo “globalização” está embutida a ideia de que
movemo-nos no mesmo mundo (BAUMAN, 1999). No entanto, o sociólogo chama a atenção
para o fato de que este movimento conjunto se dá de maneira totalmente diferente
dependendo do lugar ocupado pelo sujeito na nova estratificação social: no andar de cima
globalizados satisfeitos, no de baixo os “glocalizados” (BAUMAN, 1999, p. 80), a saber, os
pobres ou refugiados que não podem escolher aonde vão e são transferidos pelas autoridades
de um lado para o outro. Mas o que faz deste mundo um mesmo em situações tão
radicalmente diversas? As imagens divulgadas maciçamente, sem escolher a quem vão
alcançar. Tanto o refugiado assustado quanto a garçonete, passando pelo professor, o
estudante, o comerciante, o funcionário público e o político, são obrigados a ver os
onipresentes anúncios da Zara ou da H&M no mobiliário urbano de qualquer cidade média da
Europa. Neles, um casaco de inverno é anunciado por uma bela modelo por incríveis 29,90
euros. Não parece de todo ocioso imaginar a tentação sentida por um simpatizante de
esquerda de dar uma conferida na loja, mesmo sabendo da exploração que se esconde no
preço do casaco. Isso para não falar dos inúmeros consumidores de produtos da Apple, que se
abrigam na desculpa do “instrumento de trabalho” para consumir seus gadgets, fazendo vista
grossa para o processo de produção.
É claro que a publicidade sempre trabalhou para alcançar o maior número de pessoas
possível e “celebrar” o aparato econômico-industrial das sociedades onde atua. Adorno e
Horkheimer já observavam no ensaio sobre a indústria cultural que mesmo em tempos de
escassez generalizada, durante as guerras, as empresas anunciavam seus produtos para que as
pessoas não se esquecessem do poderio industrial embutido deles (ADORNO, T. W.,
HORKHEIMER, M., 1985, p. 152), e não para vendê-los imediatamente. Na verdade, para os
filósofos de Frankfurt a indústria cultural em si mesma poderia desaparecer, na medida em
que gera tanta saturação e apatia no público consumidor. No entanto, esse desaparecimento
não conviria ao aparato econômico-industrial-ideológico ao qual serve, e a publicidade faz a
ponte entre os conteúdos da indústria cultural e o sistema que pretende manter e incrementar.
Daí, como consequência inevitável, a penetração do estilo da publicidade nos supostos
conteúdos “não-publicitários”, nos programas de rádio e TV, por exemplo, ou nas matérias de
revistas como Life e Fortune (ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M., 1985, ps. 152 e 153).

1148

V V
Excitação, hiperatividade e “síndrome de download”3
A diferença entre o que foi observado acima para os nossos dias se encontra na
intensidade dos choques audiovisuais apontados por Türcke, choques esses que, por si só,
exploram o aparelho sensório-cognitivo do cidadão comum, deixando a ele pouco tempo livre
para elaborar o que vê e resistir antes de agir, ou seja, consumir. Informação: casaco bonito
por 29,90 euros. Contrainformação: o preço baixo é resultado (se não certo, extremamente
provável) da utilização de trabalho semiescravo. A alternância e repetição vertiginosas de
ambas, informação e contrainformação, a primeira geralmente transmitida nas mídias
tradicionais e a segunda mais frequente em redes sociais e em mídias alternativas, acaba tendo
como efeito a inibição ou mesmo a neutralização de uma ação política organizada. A
contrainformação, quando posta na balança de cada consciência individual em oposição à
facilidade do consumo (é possível encontrar duas ou três lojas destas redes em um mesmo
quarteirão) e a vantagem evidente da compra para o bolso do cidadão, acaba resultando em
um impacto mínimo sobre os negócios das empresas. Os “incômodos” dos grandes
conglomerados são geralmente causados por boicotes ocasionais (exemplo: Nike, quando da
descoberta de trabalho infantil na Indonésia) ou por grupos de outsiders mais ou menos
organizados que se afastam do modo de vida consumista dominante.
Ao ser perguntado sobre a diferença entre capitalismo e comunismo o escritor Ingo
Schulze, nascido e criado na Alemanha Oriental, respondeu que no comunismo as palavras
tinham peso, e por isso eram fortemente censuradas. No capitalismo, ao contrário, a liberdade
de expressão é um valor supremo, pode-se dizer o que bem quiser, mas o impacto das
palavras sobre a ordem das coisas é mínimo ou inexistente. Na edição 2014 da Lichtfest na
cidade de Leipzig, evento destinado a marcar o aniversário das manifestações pacíficas de
massa ocorridas na cidade em outubro de 1989, e que acabaram conduzindo ao fim da
Alemanha Oriental comunista, vimos um exemplo muito concreto da liberdade de expressão
trazida pelos novos tempos. Na fachada do Commerzbank um artista fez uma instalação
visual na qual, simulando os informativos eletrônicos exibidos pelos próprios bancos e pelas
bolsas de valores no topo de seus prédios, eram exibidas frases condenatórias do capitalismo!4
Na mesma linha, é impossível não mencionar que vários artistas críticos do capitalismo
tiveram, na Alemanha, obras compradas pelo Deutsche Bank ou pela Daimler-Chrysler. Sem
querer entrar em uma discussão moralista, cabe ainda a pergunta: esquizofrenia ou denegação

3
A expressão foi criada pelo compositor carioca Fausto Fawcett e é também título de uma de suas músicas.
4
Return on Investment, Video-und Textinstallation und Live-Performance, Claudius Niessen, Leipzig. Lichtfest
Leipzig, 9. Oktober 2014 (Veranstaltungsprogramm).

1149

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(“eu sei, mas mesmo assim”) típica da nossa época? Ou nenhuma das duas: talvez o nosso
tempo se caracterize, justamente, pela impossibilidade de traçar fronteiras precisas entre o que
se pensa, o que se diz e o que se faz. E talvez, diante deste fato, a exigência de “coerência”
seja simplesmente um anacronismo, uma nostalgia indevida de uma época superada.
Sobre este ponto, é relevante abordar a grande diferença de comportamento entre as
gerações e grupos sociais no que diz respeito ao “tráfico da música”, para adotar a expressão
mencionada por Yúdice (2004, p. 60). Antes do advento da internet o mundo do funk no Rio
de Janeiro, por exemplo, foi dependente deste tipo de apropriação, sem ela seria quase
impossível alimentar suas criações:
...“os DJs confiavam numa rede de mensageiros que voavam
periodicamente para Nova York ou Miami a fim de comprar as músicas.
Esses mensageiros eram empregados das agências de viagens e linhas aéreas
ou mesmo os próprios DJs da Zona Norte, que chegavam à Nova York pela
manhã, faziam seus contatos, e voltavam para o Rio no voo da noite”
(YÚDICE, 2004, p. 175).

Se para as classes médias ou altas baixar músicas ou filmes ilegalmente é uma espécie
de “delito de cavaleiro”, justificado simplesmente pelo mantra da facilidade tecnológica, para
os mais pobres ela foi e ainda é, muitas vezes, o único meio de ter acesso aos bens da
indústria cultural.
Nota-se, também, uma clara diferença de comportamento, em relação ao “tráfico da
música” e o download ilegal de filmes, entre as gerações do videocassete e do CD e os
chamados “nativos digitais”. Por um lado, a noção de roubo de trabalho alheio parece ser
mais clara nos mais velhos, que entraram em contato com as possibilidades digitais tempos
depois de terem desfrutado da ida a shows, de terem tido a experiência de comprar discos não
só pelo conteúdo musical, mas também pela arte das capas e dos encartes, enfim, de terem
tido uma experiência mais concreta, sensorial, do que significa para um ser humano
disponibilizar um bem cultural para outro, que não o produz.
No caso dos filmes, para várias gerações a ida ao cinema compôs uma experiência que
ia além do mero “assistir ao filme”, ela marcava a pausa do trabalho e do estudo no final de
semana, o encontro com os amigos, o namoro legitimado ou o encontro clandestino no meio
da tarde de uma quarta-feira. As próprias fitas e diversos romances do séc. XX confirmam
esta hipótese. Em Filosofia do Sonho, Türcke (2008, p. 13) observa que já passou o tempo em
que as pessoas passavam a semana inteira esperando pela ida ao cinema no sábado ou no
domingo. As imagens em movimento são a alma mesma do “cotidiano high-tech” e ocupam
não só o nosso tempo livre, mas também o horário de trabalho.

1150

V V
Acredito que o laço entre esta experiência sócio-afetivo-cultural e a percepção da
necessidade de remuneração daqueles que a possibilitam não seja desprezível. Um
adolescente nativo digital, capaz de ter acesso a todos os filmes e músicas de todos os tempos
em seu próprio quarto, em um click, tende a ter a impressão de que a produção destas obras
também foi feita com o esforço de um click, e que, portanto, não é necessário remunerar seu
autor. Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin observa que o
gramofone inaugurou a era do consumo privado da obra de arte, afinal “o coro, executado
numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto” (BENJAMIN, 1994, p. 168). O
download solitário feito no ambiente íntimo ou o desfrute individual de música no I Pod em
locais públicos são, segundo meu ponto-de-vista, a radicalização do processo social iniciado
com o gramofone.
Conforme o ocorrido em vários outros aspectos da vida, a liberdade do acesso
individual aos bens e serviços – culturais ou não – sobrepõe-se ao potencial prazer do desfrute
de momentos comunitários. Em minha pesquisa, uso o referencial teórico da psicanálise para
tentar compreender como uma ética da renúncia no capitalismo industrial foi substituída por
uma ética de direito ao gozo. Os exemplos acima servem de ilustração para o entendimento de
como esta passagem de uma ética a outra se deu, ao menos no campo da relação das pessoas
com as artes e com a cultura.
Como reforço a esta nova ética, que traz em si a ordem de gozar, temos ainda o que
Richard Sennett denomina “incitação pela potência” (2006, p. 143) nos produtos disponíveis
no mercado. Ninguém consegue ouvir todas as músicas que poderia armazenar em seu I Pod,
nem guiar pelas estradas a 300km/h sem arriscar a própria vida mas, justamente, é a simples
possibilidade de fazê-lo que inflama a admiração dos consumidores por estas máquinas. No
caso dos E-readers a situação é ainda mais paradoxal, sobretudo em um país com baixos
níveis de leitura como o Brasil: seus ávidos compradores muitas vezes sequer enquadram-se
na categoria de leitores, o número de livros que eles efetivamente leem por ano não
justificaria o uso do aparelho por conta da praticidade de armazenamento. O que vale para o
consumidor do E-reader, neste caso, é alimentar sua onipotência imaginária – manifestação
contemporânea do narcisismo – pela possibilidade de ler milhões de livros que ele jamais
leria ou lerá. Há aí, por outro lado, um efeito colateral desagradável e seguidamente
recalcado: se você pode usar a potência de determinado aparelho e não o faz, a culpa é sua.
Ou melhor, a vergonha é sua. A culpa, afinal, é um sentimento íntimo, ao passo que a
vergonha se refere ao olhar do outro. O “incompetente digital”, hoje, é praticamente um pária,

1151

V V
um reacionário, um conservador, um ludita... Nesse campo, a adesão é obrigatória, e a
liberdade do cidadão tende a ser negada como nas piores ditaduras.
A propósito, as iniciativas de incentivo à leitura se realizam em um contexto marcado
pelo déficit de atenção generalizado. Como aponta Türcke em sua obra Hyperaktiv! (2012), as
crianças massivamente diagnosticadas como portadoras de Transtorno de Déficit de Atenção
são apenas um espelho da sociedade na qual são criadas. Excessivamente estimuladas por
toda sorte de distrações eletrônicas, vivendo em ambientes “acelerados” pela competividade
entre os adultos, além de serem convidadas à “pró-atividade” no ambiente escolar, não é de
surpreender que elas percam a capacidade de cumprir rituais coletivos e concluir suas tarefas,
cada uma ao seu tempo. Para complicar, elogia-se publicamente a geração “multitarefa”, sem
averiguar de fato quais tarefas podem ser efetivamente realizadas simultaneamente sem
consequente perda de atenção. Ler de maneira solitária, silenciosa e atenta torna-se, na
sociedade hiperativa, um desafio não só para as crianças, mas para elas principalmente.

Considerações finais
Tenho consciência de ter lançado, neste artigo, algumas garrafas ao mar, cada uma
delas a esperar que alguém as encontre e passe adiante a mensagem. No entanto, apesar da
aparente dispersão é possível concentrar as considerações acima em alguns pontos principais.
Antes de tudo, voltemos ao começo, precisamente à entrevista do ministro Juca Ferreira. Em
suas próprias palavras,
“Há uma quantidade astronômica de propostas todos os anos, e
muitas recebem aval para captar o benefício. Só que apenas 20% conseguem,
e isso fica concentrado em dois estados. Oitenta por cento do total
renunciado vai para (os estados de) Rio e São Paulo. Sessenta por cento,
para duas cidades (as capitais), e são sempre os mesmos (proponentes) que
recebem: os que dão retorno de imagem às empresas. Não é culpa da
empresa. Se criamos um mecanismo para isso, ele pode ser usado. Mas não é
parceria público-privada. É outra coisa.” (FERREIRA, 2015)5

As empresas que se beneficiam da Lei Rouanet, muitas delas multinacionais,


globalizadas e mergulhadas na lógica da sociedade excitada e hiperativa, valem-se deste
mecanismo de autopromoção como o macaco da banana – não se pode perguntar ao macaco
se ele quer banana e esperar que ele diga não. Concordo com a posição do ministro de que é o
mecanismo que precisa ser discutido, e não o “gosto” ou o interesse das empresas. É óbvio
que o Rock in Rio é mais interessante para elas do que um circo que só circula no interior.

5
Conferir íntegra da entrevista em http://oglobo.globo.com/cultura/juca-ferreira-abre-fogo-contra-lei-rouanet-
15258675, acessado em 11 de fevereiro de 2015.

1152

V V
Não se pode considerar política pública de cultura um mecanismo que reforça, na verdade, a
publicidade. Os projetos escolhidos pelo departamento de marketing das empresas não visam
somente a um retorno indireto ou secundário de imagem para elas, muitas vezes eles se
prestam à publicidade mais desinibida, seja por conta da linguagem estética adotada, seja por
conta da associação de seu conteúdo “cultural” ao produto ou serviço vendido pela empresa6.
Para terminar, e não menos importante, ao ser indagado acerca da adesão ao vale-
cultura, o ministro menciona a importância da escola, da formação de público e de uma
determinada “subjetividade para consumo de produtos de cultura” (FERREIRA, 2015).
Gostaria de marcar que minha insistência no tema da subjetividade tem a ver com este ponto.
Sem um diagnóstico da subjetividade contemporânea, sem a tentativa de delinear suas linhas
de força, sem detectar as fantasias que sustentam nossa convivência social e que nos fazem
agir de determinada maneira em relação aos produtos culturais, não me parece possível
elaborar políticas públicas consistentes.
Acredito que a formação de público para a diversidade cultural existente em nosso
país precisa trabalhar no sentido contrário ao dos grandes espetáculos, à lógica do grandioso,
do que alimenta a fantasia do país gigante e onipotente. Não que eles não tenham seu lugar,
mas isso já caminha por si só, é terreno conquistado. Por que reforçar, por meio da Lei
Rouanet, exclusivamente aquilo que já é dado? Para criar lugar para o novo, o pequeno, é
preciso formação – de público e de artistas – e, sobretudo, experimentação. Tanto o artista
quanto o público precisam de tempo, calma e espaço. O primeiro para criar, o segundo para
contemplar e apropriar-se da cultura para seus próprios fins. Para isso, é preciso sair da lógica
hiperativa e excitada, na qual todas as mensagens reduzem-se, no final, a um pedido de
“compre-me”.

Referências bibliográficas
ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985.

BAUMAN, Z. Globalização – as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In BENJAMIN, W. Obras
Escolhidas: Magia e técnica, arte e política, volume I. São Paulo: editora brasiliense, 1994, ps.165 a
196.

6 Em entrevista recente, Yúdice cita um exemplo emblemático de mistura de música com publicidade,
citando o caso do rapper americano Pitbull que inseriu anúncio da Kodak em seu videoclipe. Conferir
http://novo.itaucultural.org.br/observatorio-noticias/a-instrumentalizacao-da-cultura-o-consumo-
cultural-e-a-propriedade-intelectual-na-web/, acessado em 4/9/2014.

1153

V V
GROSS,T. e TIMM, T. Economia Criativa. In revista Humbolt, número 103. Bonn: Goethe Institut,
2011, ps. 64 a 69.

KLEIN, N. Sem Logo – a tirania das marcas em um planeta vendido. 6⁰ ed. Rio de Janeiro: editora
Record, 2008.

SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro – São Paulo: editora Record, 2006.

TÜRCKE, C. Hyperaktiv! Kritik der Aufmerksamkeitsdefizitkultur. 2⁰ ed. München: Verlag C. H.


Beck, 2012.

__________. Sociedade Excitada. Campinas: editora da Unicamp, 2010.

__________. Philosophie des Traums. München: Verlag C. H. Beck, 2008.

YÚDICE, G. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: editora
UFMG, 2004.

1154

V V
A NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS QUE DESPERTEM O
PÚBLICO INFANTOJUVENIL BRASILEIRO PARA A LITERATURA HISPANO-
AMERICANA
Nivia de Andrade Lima1

RESUMO: Considerando a questão identitária Latino-Americana, este artigo propõe uma


reflexão sobre a formação do leitor infantojuvenil brasileiro e o espaço que a obra de autores
hispano-americanos ocupa nessa formação. Tendo como ponto de partida a minha própria
memória de leitura e a dos escritores Ana Maria Machado, Edgardo Rivera Martínez e Dora
Alonso, na busca de um entendimento sobre a situação atual do jovem leitor nesta questão,
são analisados os livros escolhidos para os acervos do PNBE de 2013, com enfoque na
participação de autores hispano-americanos nesses acervos, assim como o papel de resistência
que projetos como a coleção argentina Chiquitos de América Latina exercem à
incomunicabilidade percebida no âmbito da Literatura entre os países da América Latina.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade, América Latina, Literatura, Memória,


Incomunicabilidade.

Introdução

A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu


“trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o
mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que
esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da
cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos.
Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo
que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades
culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre
em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia,
de ser, mas de se tornar. (HALL, 2003, p. 43)

Ser latino-americano é uma questão valorizada na construção da identidade cultural


brasileira? Direcionamos o nosso olhar e buscamos um diálogo com os outros povos da
América Latina? Ou vive a questão identitária da América Latina em um labirinto construído
sobre raízes europeias, onde precisa enfrentar o “ inotauro ianque” (SANTIAGO, 2006) e
os seus sedutores bens de consumo? Buscando na Literatura o fio de Ariadne, este artigo tem

1
Nivia de Andrade Lima é Analista de Planejamento e Gestão do Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular/IPHAN desde setembro de 2010. O seu endereço de email profissional é nivia.deandrade@iphan.gov.br
e o seu endereço de email pessoal é nivia.deandrade@gmail.com. Graduada em Administração de Empresas pela
UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1995, adquiriu em julho de 2010 o título de Mestre em
Estudos Culturais pela Universiteit Katholiek Leuven (Bélgica). Com o Curso de Especialização em Literatura
Infantojuvenil (Pós-graduação lato sensu) do Instituto de Letras da UFF – Universidade Federal Fluminense
concluído em 2014, Nivia de Andrade Lima está no momento cursando o seu primeiro ano letivo do Mestrado
em Literatura Infantojuvenil pela University of Roehampton London (Distance Learning).

1155

V V
como objetivo propor uma reflexão sobre a formação do leitor infantojuvenil brasileiro e o
espaço que a obra de autores hispano-americanos ocupa nessa formação. Partindo de minha
própria memória de leitura e experiência escolar, serão utilizados como ferramentas de estudo
os acervos do PNBE de 2013, a memória de leitura dos escritores Ana Maria Machado,
Edgardo Rivera Martínez e Dora Alonso sobre os livros que marcaram as suas infâncias, bem
como uma breve análise da coleção Chiquitos de América Latina – uma proposta argentina
iniciada em 2012 que procura despertar no jovem leitor o interesse pela literatura latino-
americana.

A leitura de literatura infantojuvenil hispano-americana no Brasil


Quando busco na memória os livros de escritores hispano-americanos que li na minha
infância e adolescência, tenho dificuldade em nomeá-los. Na escola lembro-me de que o foco
foi dado a obras de autores brasileiros e portugueses, porém com uma metodologia tão pouco
inspiradora que nos meus momentos de lazer preferia dedicar-me à leitura das histórias de
detetive de Agatha Christie. Quando vejo os jovens de hoje tão interessados em ler livros em
série sobre vampiros, ou do tipo O diário de um Banana (Diary of a Wimpy Kid) do escritor
norte-americano Jeff Kinney, me questiono se a situação não continua a mesma para estas
novas gerações, e se o que mudou não foi somente o novo tema formular em moda...
Ao ler o livro Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), da
escritora Ana Maria Machado, percebo que em sua memória de leitura os autores hispano-
americanos também foram quase excluídos: dos 155 autores citados, 104 eram de origem
europeia, 30 de origem brasileira, 19 de origem norte-americana e apenas 2 de origem latino-
americana. Do universo da literatura hispano-americana, Ana Maria Machado citou somente
os escritores argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. De forma a explorar essa questão
no âmbito escolar brasileiro atual, decidi analisar a lista dos acervos do PNBE (Programa
Nacional Biblioteca da Escola) do ano de 2013, ano ímpar, e, portanto, de atendimento às
escolas de ensino fundamental (anos finais) e de ensino médio. Essa análise buscava verificar
a participação de obras de autores hispano-americanos nesses acervos. Como resultado, os
seguintes dados foram obtidos:

1156

V V
Ensino Fundamental (Anos Finais)

Am.
Autores: Brasil Europa EUA Lat. Outros Total Países da Am. Lat.

Acervo 1 36 18 3 2 1 60 México

Acervo 2 42 12 1 1 2 58 Cuba

Acervo 3 35 18 2 2 1 58 México

Total 113 48 6 5 4 176

% de 176 64,20% 27,27% 3,41% 2,84% 2,27% 100,00%

Ensino Médio

Am.
Autores: Brasil Europa EUA Lat. Outros Total Países da Am. Lat.

Acervo 1 37 14 2 3 1 57 Argentina, Uruguai

Acervo 2 34 16 1 1 3 55 Argentina

Acervo 3 42 9 5 2 3 61 Cuba, Haiti

Total 113 39 8 6 7 173

% de 173 65,32% 22,54% 4,62% 3,47% 4,05% 100,00%

Fonte: http://www.fnde.gov.br/fnde/legislação/portarias/item/3876.
Consulta realizada em 19 de junho de 2014.

Ao analisar essas tabelas podemos inferir que dos livros selecionados pelo PNBE de
2013 para o Ensino Fundamental (Anos Finais) apenas 2,84% eram de autores hispano-
americanos, especificamente de México e Cuba; e para o Ensino Médio apenas 3,47% eram
de autores hispano-americanos, especificamente da Argentina, do Uruguai, de Cuba e do Haiti
(país que tem como línguas oficiais o francês e o crioulo haitiano). Por que participam desses
acervos tão poucos livros de autores hispano-americanos? Ao se colocarem a questão:
quantos livros de autores hispano-americanos eu li na minha infância e adolescência? - esses
jovens leitores terão certamente, como eu tive, dificuldade em nomeá-los.

A próxima questão a ser colocada é: será o fato de o Brasil ser o único país de língua
portuguesa a fonte geradora de uma barreira linguística e cultural perante os demais países

1157

V V
latino-americanos? Se considerado como argumento válido, em agosto de 2005, foi
sancionada a lei 11.161 que torna obrigatória a oferta do espanhol em todos os
estabelecimentos de Ensino Médio do país, facultando essa oferta ao Ensino Fundamental de
6º a 9º ano a partir de 2010. Porém, com base nos dados acima, a implantação do ensino da
língua espanhola nas escolas públicas parece não ter influenciado de forma expressiva a
leitura da obra literária de autores hispano-americanos, ou seja, parece não ter valorizado a
sua participação na construção do nosso capital cultural:

É a capacidade de leitura, isto é, a capacidade de atribuir sentido ao


que está escrito nos livros, que favorece aquela outra leitura, agora com
sentido metafórico: a leitura do mundo. (...) Em diferentes publicações,
autoridades e profissionais do ensino são unânimes na constatação da
precariedade do domínio de escrita e de leitura por largas faixas da
população, particularmente aquelas analisadas pelos diferentes processos de
avaliação escolar atualmente aplicados no Brasil. (...) Ou seja, literário é um
texto em cuja órbita gravitam inúmeras leituras. Recuperar, reunir e discutir
estas leituras, pondo-as em circulação entre leitores de diferentes lugares e
tempos, é o que se faz quando se ensina literatura. E dialogar com estas
leituras, nelas incluindo a nossa, é o que se faz quando se aprende literatura.
(...) Esta capacidade de leitura faz parte do capital cultural, ao qual todo
cidadão tem direito, do qual todos os alunos carecem e que cabe à escola
providenciar. (LAJOLO, 2009, p. 93-95).

E finalmente surge a questão: fora do âmbito escolar e dos acervos governamentais, é


possível encontrar livros infantojuvenis de autores hispano-americanos? Durante o curso de
especialização em literatura infantojuvenil na Universidade Federal Fluminense, fomos
apresentados a belíssimos livros infantojuvenis de autores hispano-americanos, dos quais são
exemplos: Fonchito e a lua (2011), de Mario Vargas Llosa e Marta Chicote Juiz (Peru-
Espanha); A caminho de casa (2012), de Jairo Buitrago e Rafael Yockteng (Colômbia);
Insônia (2008), de Antonio Skármeta e Alfonso Ruano (Chile-Espanha); Outroso (2006), de
Graciela Montes e Daniel Bueno (Argentina-Brasil). Porém, ao buscá-los em livrarias
brasileiras durante o curso e ao redigir este artigo, tive dificuldade de encontrá-los, pois estes
se encontravam esgotados no fornecedor ou sua venda era possível somente sob encomenda.
Podemos então deduzir que uma vez fora da lista dos acervos governamentais, as editoras
não têm interesse em reeditar essas obras? Os poucos livros publicados de autores hispano-
americanos permanecem perdendo o seu espaço para livros de maior apelo comercial que
seguem uma fórmula de sucesso?

1158

V V
Os autores hispano-americanos são lidos em outros países da América Latina?
Após refletir sobre essa relação do Brasil com a Literatura Hispano-Americana, cabe
nos questionarmos também sobre como funciona essa relação entre os países hispano-
americanos. Será o Brasil uma exceção ou essa incomunicabilidade ocorre também entre os
outros países latino-americanos? Nos anos de 1980, houve uma iniciativa importante no
sentido de divulgar a cultura tradicional latino-americana através de uma coedição promovida
pelo Centro Regional para el Fomento del Libro en América Latina y el Caribe (CERLALC)
e a UNESCO2. Com essa iniciativa, as principais editoras de países latino-americanos
publicaram livros com lendas e mitos de sua cultura. Em pesquisa realizada no site
www.cerlalc.org não logrei encontrar, porém, iniciativas recentes nesse mesmo âmbito. Em
seu artigo Acerca del colonialismo cultural implícito en la circulación de la LIJ en
Latinoamérica, a escritora e docente argentina Graciela Bialet (2014) revela a sua
preocupação em relação a essa questão problemática – o difícil acesso a livros de autores
latino-americanos – em seu país:

¿Cómo amar voces inaudibles, cómo valorar rostros invisibilizados?


Cómo desear la literatura latinoamericana que no vemos, que no circula, esa
a la cual no accedemos? (…) ¿Qué y quiénes legitiman la circulación de
textos en Latinoamérica? (…) Sabemos que la rotación de textos y autores
de literatura infantil y juvenil entre nuestros países de Latinoamérica no es
fluida. (…) es mucho más sencillo conseguir un libro europeo que hallar uno
paraguayo o de Panamá. La colonización cultural reinante no solo impone y
legitima contenidos y estéticas, sino que básicamente nos limita para
reconocernos como un tejido cultural fructífero con una inmensa producción
de calidad que ignoramos, porque los catálogos y los cánones circulantes
permiten visualizar mucho más cercana la obra LIJ de matriz sajona o
eurocentrista, antes que la propia.
(BIALET, http://www.dondevivenloslibros.com/2014/09/acerca-del-
colonialismo-cultural.html).

Ao lermos o artigo de Graciela Bialet (2014), percebemos que a problemática em


questão se repete na Argentina. País de língua espanhola, a teoria de uma possível barreira
linguística que originasse a incomunicabilidade entre o Brasil e os demais países da América
Latina se enfraquece. Infere-se, portanto, que a incomunicabilidade entre os países da
América Latina não tem sua origem na questão linguística, mas na questão cultural e
econômica. Será que não aprendemos, no Brasil e em outros países da América Latina, desde
sempre a valorizar o que é europeu ou norte-americano e a colocar em segundo plano a

2
Fonte: Muñoz (2009, p.27).

1159

V V
nossa cultura, a nossa história, a nossa literatura? Difícil encontrar uma criança brasileira
que deseje visitar outros países da América Latina, a maioria revela ter como sonho (diríamos
de consumo) viajar para a Disney, e conhecer, entre outras, as novas princesas que ficaram
famosas através do filme norte-americano Frozen (2013), inspirado na obra A Rainha da
Neve, de Hans Christian Andersen.

A dificuldade em encontrar publicações sobre a literatura infantojuvenil latino-


americana
Buscar publicações sobre a literatura infantojuvenil de outros países da América
Latina é tarefa ainda mais árdua. Com base na leitura do livro – adquirido por sorte através de
um sebo localizado na cidade do Rio de Janeiro – Historia de la Literatura Infantil em
América Latina, escrito pelo professor e pesquisador chileno Manuel Peña Muñoz, publicado
em 2009, percebo que a incomunicabilidade existe infelizmente também entre os ensaístas e
pesquisadores latino-americanos. Urge, no Brasil e nos demais países da América Latina, a
publicação do livro de Manuel Peña Muñoz, dos artigos e pesquisas do equatoriano Francisco
Delgado Santos, da colombiana Beatriz Helena Robledo, dos venezuelanos María Elena
Maggi e Fanuel Hanán Diaz, da uruguaia Sylvia Puentes de Oyenard, das argentinas Ana
María Ramb, Marcela Carranza e Graciela Bialet, dos cubanos Luis Cabrera Delgado e
Enrique Pérez Diaz, das bolivianas Gaby Vallejo e Isabel Mesa, da guatemalteca Frieda
Liliana Morales Barco, do peruano Jesús Cabel, dos cubanos residentes em Miami Antonio
Orlando Rodríguez e Sergio Andricaín, entre outros, que se especializaram no estudo e
difusão da literatura infantojuvenil de seus países. (MUÑOZ, 2009, p. 26)

A coleção Chiquitos de América Latina – uma proposta

“¡Qué maravilloso sería que a alguien se le ocurriera la genial idea


de publicar una colección donde se reuniera lo mejor de lo mejor de las
letras latinoamericanas para la infancia! Mientras tanto, nos corresponde la
ardua misión de husmear en bibliotecas nuevas y antiguas, en ventas de
libros viejos, hacer encargos a amigos viajeros, intercambiar obras por
correo, buscar mil trucos y modos de comenzar a conocer y a difundir entre
especialistas y entre niños, ese tesoro formidable que poseemos: nuestra
literatura infantil. Se trata de fomentar la lectura de libros que nos permitan
conocernos y reconocernos como pueblos y crecer al mundo desde la raíz de
nuestras verdades”. (RODRÍGUEZ, 1993. Apud MUÑOZ, 2009, folha de
rosto).

1160

V V
Em 1993, o escritor e crítico cubano Antonio Orlando Rodríguez publicou o seu artigo
La Literatura infantil y juvenil latinoamericana: un universo por descubrir. Vinte anos
depois, encontro em uma livraria de Buenos Aires a coleção Chiquitos de América Latina,
publicada pelo selo Quelonios da editora argentina Ediciones Biblioteca Nacional. Encontrar
essa coleção foi realmente como encontrar tesoros gigantes en formato pequeño3, título do
artigo do jornal argentino Página 12 sobre a coleção Chiquitos de América Latina, publicado
em agosto de 2013. Nesse artigo, Sebastián Scolnik, responsável pela área de Publicações da
Biblioteca Nacional, como que em uma resposta ao desejo de Rodríguez e a uma necessidade
premente no continente latino-americano, apresenta essa coleção que se propõe a “acercarnos
al universo latinoamericano que no se circunscriben ni a las historias nacionales ni a las
fronteras geográficas”, que busca “despertar uma curiosidad”, “un esfuerzo por incitar uma
imaginación lectora de los niños”, “un pensar por fuera de los estereotipos”.

Em 2012 foi lançado o primeiro livro da coleção: La Mujer que mató a los peces (A
mulher que matou os peixes), de Clarice Lispector. No artigo, Scolnik menciona que, apesar
de se tratar de uma escritora conhecida na Argentina, a obra de Clarice Lispector dedicada ao
público infantojuvenil ainda era desconhecida em seu país. No ano seguinte, a coleção lançou
mais dois livros, um com três contos do escritor peruano Edgardo Rivera Martínez: Pimpiro,
La sombra olvidada e Uma azucena de luz y de colores; e outro, com três contos da escritora
cubana Dora Alonso: La gata de María Ramos, Tres lechuzas en un cuento, e Historias de
Juan Palomo. E, em 2014 foi lançado o quarto livro da coleção, com a publicação do conto
La Mica, da escritora costarricense Carmen Lyra. O conto La Mica fez parte do seu livro mais
emblemático: Los cuentos de mi tía Panchita, primeiramente publicado em 1920. Ao voltar

3
Fonte: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/11-29445-2013-08-04.html. Consulta
realizada em 14.09.2014.

1161

V V
ao Brasil, procurei obras desses autores hispano-americanos nas livrarias brasileiras, porém,
não obtive nenhum resultado positivo. Com o projeto de dedicar cada volume à obra
infantojuvenil de um autor de um país da América Latina, a previsão é de que em 2015 seja
publicado um livro dedicado ao México e à escritora Elena Poniatowska. Novamente uma
autora cuja obra não logrei encontrar publicada no Brasil.
A produção gráfica desses livros, com dimensões de 15 cm x 15 cm, com as
encantadoras ilustrações da artista argentina Mariana Ardanaz4, atrai leitores de todas as
idades. Na parte gráfica textual também foi dada atenção especial ao significado de palavras
de uso mais coloquial nos países de origem dos autores. No livro Chiquitos de América Latina
– Peru, por exemplo, o significado da palavra de origem quéchua puquio (manancial) é
aclarado para o leitor. Além disso, no final do livro há uma seção chamada Un poquito acerca
de Edgardo Rivera Martínez, que traz ao alcance do leitor alguns detalhes da trajetória
pessoal e profissional do escritor, bem como a seção chamada Un poquito sobre Perú, que
através da congruência de um texto escrito e ilustrações de Mariana Ardanaz, revela para o
leitor dados sobre a história, a geografia e a cultura peruanas, como por exemplo, sobre o
Império Inca.
Las raíces del mundo inca han dado perfiles de cultura e identidad a
los actuales países de Perú, Bolivia y Ecuador, que presentan un fuerte
componente indígena en su población. (…) Para escribir una breve historia
de la literatura infantil en el Perú hay que remontarse a la época
precolombiana, cuando circulaban mitos, leyendas, poemas, cuentos,
canciones y decires aborígenes. Algunos grupos étnicos tenían un riquísimo
caudal de narraciones con que interpretaban su modo de ser y de vivir, y
también los fenómenos incomprensibles de la naturaleza y el cosmos. Eran
historias extraordinarias, en las que se encuentra el sustrato de la cultura
peruana. (MUÑOZ, 2009, p. 553).

Em um artigo publicado em dezembro de 2010 no jornal El Comercio de Lima5,


intitulado Rivera Martínez, historias sutiles, o autor Edgardo Rivera Martínez é entrevistado
sobre o seu livro Una azucena de luz y de colores, publicado em 2006 na Colômbia pela
Editora Norma. Nessa entrevista, o autor revela que os livros que marcaram a sua infância
foram os de Júlio Verne, As mil e uma noites e Mitos, leyendas y cuentos peruanos de
Arguedas e Izquierdo Ríos. O seu grande interesse pelo misterioso, o que certamente
influenciou a criação de seus contos Pimpiro e La sombra olvidada, foi despertado, revela o

4
Mais detalhes sobre o trabalho de ilustração com argila de Mariana Ardanaz pode ser encontrado em:
http://maruardanaz.blogspot.com.br/p/publicaciones.html
5
Fonte: http://www.librosperuanos.com/autores/articulo/00000001720/Rivera-Martinez-historias-sutiles.
Consulta em 14.09.2014.

1162

V V
autor, em sua infância pela leitura do poema-relato Amarú, um mito inca de transformação. A
riqueza da cultura andina está presente também no conto Una azucena de luz y de colores,
que tem como tema o sonho de uma menina em participar da dança “huaylijía” no Dia de
Reis e que para tal precisa adquirir a saia, a blusa e a “lliclla” (palavra quéchua para manta)
típicas da dança. Percebemos com a leitura dos três contos o respeito pela natureza e a
valorização da força de suas personagens femininas, personagens que protagonizam os três
textos.Amarú

Hubo una vez una gran sequía.


Casi todas las plantas y animales murieron y no había ni un poco de sombra.
Hasta el cantú, que florece en la aridez, sintió que sus flores se morían.
El último capullo del cantú transformó sus pétalos en alas y, convertido en colibrí, fue hasta la
cordillera y le cantó a una montaña que el mundo se moría debido a la gran sequedad.
Y el colibrí, sediento y agotado, murió.
Entrestecida por la devastación de la tierra y por el esfuerzo del colibrí, la montaña dejó
escapar dos lágrimas que, como duras rocas, se abrieron paso ladera abajo hasta el lago, con gran
estruendo.
El ruido despertó al Amarú, la gran serpiente alada que duerme enroscada bajo la tierra, a lo
largo de la cordillera.
El Amarú se desperezó, se sacudió, y levantó la cabeza.
De su hocio surgió la niebla y el vapor, de sus alas cayó la lluvia en torrentes, de su cola de
pez se desprendió el granizo y del reflejo de sol en sus escamas nació el primer arco iris.
De esta forma, renació la vida y reverdeció la tierra. 6

Sobre a obra da escritora cubana Dora Alonso, em seu livro Historia de la literatura
infantil em América Latina, Manuel Peña Muñoz a definiu como precursora da literatura
infantil cubana. Escritora cubana mais traduzida no estrangeiro, Dora Alonso escreveu
numerosos livros de ficção, lírica e teatro para crianças, assim como libretos para fantoches e
roteiros para rádio e televisão. Com relação à elaboração de suas obras mais conhecidas El
cochero azul e El valle de la Pájara Pinta e aos livros que marcaram a sua infância, a autora
revelou identificar-se com O Patinho Feio:

“En primer lugar, nuestra realidad actual unida a la fantasía de todo


libro dirigido a la gente menuda. Luego, elementos del folclore, humor y el
marco geográfico de alguna región determinada, en este caso Varadero. (…)
Al intentar mi segundo cuento, El valle da la pájara pinta, escogí los
elementos presentes en El cochero azul. El lugar esta vez es Viñales.” (…)
En 1988 escribe su famosa Carta Autobiográfica al Patito Feo, en la que nos
muestra cómo en la isla los cuentos de Andersen marcaron de manera tan
definitiva a los autores y en forma especial a los poetas cubanos. La escritora
recuerda su infancia, cuando, subida arriba de un árbol, leía “El Patito Feo”
y se sentía identificada con el personaje. (MUÑOZ, 2009, p. 241-245)

6
Fonte: https://pedalante.wordpress.com/2010/06/10/amaru/. Consulta em 14.09.2014.

1163

V V
Em seu conto La gata de María Ramos, há uma intertextualidade com o conto O gato
de Botas de Charles Perrault. No conto de Dora Alonso, María Ramos é abandonada por sua
gata, que ao ouvir sua dona lhe contar em voz alta a história do belo e astuto gato de botas, se
apaixona de tal forma por ele que decide fugir e partir em sua busca. Os elementos da tradição
espanhola e africana dão um sabor, uma cor, um ritmo especial à leitura, como por exemplo, o
doce típico cubano boniatillo, destacado no texto escrito, as telenovelas, o contador de
histórias na personagem Juan Palomo, e a temática da destruição da natureza transportam o
leitor para a ilha cubana, estes enriquecidos pelas seções finais do livro Un poquito acerca de
Dora Alonso e Un poquito sobre Cuba.

Conclusão
Em seu livro O século do vento (1988), o escritor uruguaio Eduardo Galeano
anunciava: “A América Latina é um arquipélago de pátrias bobas, organizadas para o
desvinculo e treinadas para desamar-se”.7 Precisamos efetivamente de políticas públicas
culturais que nos permitam amar e valorizar a nossa cultura latino-americana! Como
propostas resultantes das reflexões apresentadas neste artigo, percebe-se que é preciso
reforçar e intercambiar iniciativas como as que foram promovidas pelo CERLALC e pela
primorosa Coleção Chiquitos de América Latina. Além do incentivo à publicação de livros
infantojuvenis de autores hispano-americanos e de livros voltados à pesquisa sobre a literatura
infantojuvenil latino-americana, nas línguas portuguesa e espanhola, faz-se necessária
também a realização de oficinas para professores e bibliotecários para que estes descubram o
universo da literatura hispano-americana e levem para seus alunos estes pequenos tesouros,
antes inacessíveis, ou esquecidos nas estantes das bibliotecas.
Cuando se proclamó que la Biblioteca abarcaba todos los libros, la
primera impresión fue de extravagante felicidad. Todos los hombres se
sintieron señores de un tesoro intacto y secreto. No había problema personal
o mundial cuya elocuente solución no existiera: en algún hexágono. El
universo estaba justificado, el universo bruscamente usurpó las dimensiones
ilimitadas de la esperanza. (BORGES,
http://biblio3.url.edu.gt/Libros/borges/babel.pdf., 1944).

Referências bibliográficas

7
Fonte: LACERDA, Nilma Gonçalves – Diário de navegação da palavra escrita na América Latina. Cursos da
Casa de Leitura, 2. (Leitura e Cidadania) – Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009.

1164

V V
ALONSO, Dora. Chiquitos de América Latina. Cuba: La gata de María Ramos y otros cuentos.
Ilustrado por ARDANAZ, Mariana. 1ª Ed. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2013.

BIALET, Graciela. Acerca del colonialismo cultural implícito en la circulación de la LIJ en


Latinoamérica. Artigo publicado em 5 de setembro de 2014 no site www.dondevivenloslibros.com

BORGES, Jorge Luis. Ficciones: La Biblioteca de Babel. Fonte:


http://biblio3.url.edu.gt/Libros/borges/babel.pdf. Consulta em 14.09.2014.

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1988, p.5. (Memória do fogo, 3). In: LACERDA, Nilma Gonçalves – Diário de navegação da palavra
escrita na América Latina. Cursos da Casa de Leitura, 2. (Leitura e Cidadania). Rio de Janeiro:
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LAJOLO, Marisa. Leitura e literatura na escola e na vida. Cursos da Casa de Leitura, 2. (Leitura e
Cidadania). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009.

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Una azucena de luz y de colores. Ilustrado por ARDANAZ, Mariana. 1ª Ed. Buenos Aires: Biblioteca
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MUÑOZ, Manuel Peña. Historia de la literatura infantil en América Latina. Bogotá: Fundación SM,
2009.

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descubrir. Bogotá: Fundalectura, 1993. In: MUÑOZ. Historia de la literatura infantil en América
Latina. (2009).

SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. Página
34.

1165

V V
ACESSIBILIDADE DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA AO CINEMA:
AÇÃO DE POLÍTICA PÚBLICA DE GARANTIA DE DIREITO À CULTURA
Osvaldo Emery1
Patrícia Dorneles2
Marina Helena Chaves Silva3

RESUMO: Este artigo tem como objetivo oportunizar reflexão acerca da importância do
cinema para o enriquecimento da experiência humana, inclusive para as pessoas com
deficiência, como meio de interação de todos à sociedade e a cultura. O cinema, assim como
outros espaços de fruição de arte e cultura, deve ser repensado para atender ao maior número
de pessoas, independentemente das diferenças que lhes são inerentes. Nossa intenção é
demonstrar que a adoção de recursos de acessibilidade não favorece apenas essas pessoas,
mas a todas, sobretudo quando se põe em prática o conceito de Desenho Universal, princípio
que refuta medidas que impliquem em alternativas voltadas exclusivamente a determinados
segmentos, de modo a evitar que essas soluções reforcem eventuais estigmas e preconceitos e,
com isso, provoquem discriminação social.

PALAVRAS-CHAVE: Acessibilidade; Deficiência; Políticas Culturais; Cinema; Desenho


Universal

INTRODUÇÃO
O acesso ao lazer, ao esporte e à cultura constituem-se como bandeira de luta das
pessoas com deficiência, durante muito tempo negado ou concebido como secundário em suas
vidas. Neste contexto, o cinema, com seu imenso arquivo de obras produzidas com uma
multiplicidade de visões sobre uma vasta gama de assuntos – inclusive a deficiência – é um
dos grandes patrimônios culturais da humanidade e, como tal, a todos deve ser franqueado seu
acesso.
Vale ressaltar que o ato de assistir ao filme em uma sala de cinema não apenas
intensifica as potencialidades sensoriais dos expectadores, como também representa uma
importante oportunidade de socialização, algo de extrema relevância para todos. Para que os
cinemas possam realizar seu potencial como forma de arte e expressão artísticas e como

1
Mestre em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, e Especialista em Acessibilidade
Cultural, pela UFRJ em convênio com o Ministério da Cultura, MinC; assessor técnico na Representação
Regional do MinC no RJ e ES. Email: oemery@cultura.gov.br
2
Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; professora da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Orientadora da monografia que originou esse artigo. Email: patricia.dorneles.ufrj@gmail.com
3
Doutora em História pela Universidade Federal da Bahia e Especialista em Acessibilidade Cultural pela UFRJ
em convênio com o MinC; professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Co-orientadora da
monografia que originou este artigo. Email: mhcsilva@uesb.edu.br

1166

V V
opção de lazer e instrumento de sociabilização, as salas devem estar adaptadas para acolher
todas as pessoas, inclusive as com deficiência. Para tanto, a melhor abordagem para a
acessibilização do cinema e dos cinemas é a utilização dos princípios do Desenho Universal
aplicado às suas especificidades, foco deste artigo, que é um recorte da monografia de final de
curso de pós-graduação lato sensu em Acessibilidade Cultural, promovido pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro em convênio com o Ministério da Cultura4.
O objetivo desse trabalho é oportunizar uma reflexão acerca da importância do cinema
para o enriquecimento da experiência humana, inclusive para as pessoas com deficiência,
como meio de interação de todos à sociedade e a cultura. Partimos da premissa de que a
implementação de medidas de acessibilidade, contrariando o senso comum, não favorece
apenas às pessoas com deficiência, mas a todas as pessoas em todas as situações. Neste
sentido, pensar na experiência cinematográfica sob a lógica do Desenho Universal significa
romper com a visão pura e simples de mercado na defesa da democratização da cultura,
“como um processo contínuo, em promoção de um interesse comum, coletivo, em promoção
de grupos sociais, respeitando os desejos de cada um, fomentados pela participação popular”
(DORNELES, 2011, p. 134).
No caso específico das pessoas com deficiência, é importante ter sempre em mente a
dificuldade de sua inserção nas atividades sociais, inclusive as culturais, por conta do
preconceito e da discriminação decorrentes de um longo processo histórico de exclusão que
culmina, no final do século XIX e início do século XX, com a concepção cientificista de
normalidade (Plaisance, 2005). Essa ideologia legitimou a distinção e a exclusão das pessoas
rotuladas como imperfeitas, defeituosas, anormais.
Tal visão ainda se mantém no imaginário social, com sérias implicações para as
pessoas com deficiência, que se veem privadas de direitos diversos, dentre os quais o do
acesso à cultura. Para reverter esse quadro, segundo Maior (2013), os profissionais e as
instituições que atuam nessa área precisam desvelar a realidade vivida por esse segmento
populacional e a sua história de luta no Brasil e no mundo.

4
Trata-se de uma ação de políticas públicas para promover direitos culturais às pessoas com deficiência, no
sentido de sensibilizar e formar profissionais oriundos de diferentes estados do Brasil. O curso é direcionado aos
gestores e produtores culturais, representantes de pontos e pontões de cultura, professores de cursos de Terapia
Ocupacional ou áreas afins de universidades públicas; profissionais de instituições que atuam na área da
deficiência ou da cultura. Maiores informações sobre o curso, vide:
<http://www.medicina.ufrj.br/acessibilidadecultural/site novo/>. Acesso em: 10 fev. 2015.

1167

V V
CINEMA: ESPAÇO DE ARTE E CULTURA PARA TODOS, INCLUSIVE
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
O acesso à cultura é considerado um dos direitos fundamentais do ser humano, tal
como expresso pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948). Sua
importância para as pessoas com deficiência é mencionada na Declaração de Direitos das
Pessoas Deficientes (ONU, 1975) e reafirmada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (BRASIL, 2009a). Essa preocupação advém do reconhecimento da
importância da cultura para o desenvolvimento integral das potencialidades do ser humano e
do entendimento de que os bens culturais produzidos pela humanidade, ao longo de sua
história, são patrimônio de todos.
Como forma de arte e produto cultural, o cinema, em mais de 100 anos, amealhou um
acervo de milhares, se não milhões de filmes e muitos outros vêm sendo produzidos
anualmente em todo o mundo. Filmes silenciosos, sonoros, profissionais, amadores,
independentes, estudantis, ficções, documentários, experimentais, live-action, animação,
nacionais, estrangeiros, curtas, médias, longas, drama, horror, romance, aventura... Enfim,
existe uma variedade imensa de tipos e gêneros de filmes, cada qual expressando um registro
de uma época, uma visão de mundo particular.
Dentre os diversos tipos de filmes já produzidos há uma grande quantidade que trata
de assuntos que devem ser do interesse direto das pessoas com deficiência, a exemplo de
aspectos relativos aos direitos humanos e sobre a própria questão da deficiência. Assim,
acessibilizar o cinema representa não apenas a oportunidade de oferecer às pessoas com
deficiência uma janela para outros mundos, outras vidas e outras realidades, mas também um
espelho no qual pode ver refletida sua própria condição e as lutas protagonizadas por seus
pares que foram retratadas nos filmes.
O acesso às obras e produtos culturais, por si só, não é suficiente para garantir a
fruição integral de seu conteúdo e dos significados neles embutidos. A obra ou produto não
esgota em si suas possibilidades que se expressam também em desdobramentos que ela
produz como agente socializante e aglutinador.
Historicamente, a deficiência foi sempre um fator de estigmatização e discriminação.
Seja por conta de barreiras existentes no meio ambiente ou pelas atitudes poucos amigáveis
dos que rejeitam à diversidade corporal, essas pessoas muitas vezes acabam isoladas no seio
de suas famílias ou das instituições que as abrigam. Esse isolamento dificulta ou mesmo nega
a essas pessoas a possibilidade do convívio social em suas diversas formas e locais, incluindo

1168

V V
aqueles destinados à fruição artística e cultural. Por conta disso, lhes é subtraída uma gama de
formas de artes dependente de um locus específico para que sejam exercidas de forma mais
plena, com toda a riqueza sensorial que lhes é possível despertar, tais como: exposições,
música, teatro, ópera, dança e cinema. Enfim, praticamente todas as formas de arte, à exceção
da literatura.
É certo que há meios alternativos de acesso a estas expressões artísticas e culturais, a
exemplo das reproduções individual e doméstica: fotos, CDs, DVDs etc. No entanto, essas
representações se ressentem da diminuição de seu impacto sensorial já que, na prática, é
impossível reproduzir integralmente em um ambiente “amador” uma experiência cuja fruição
foi originalmente planejada para acontecer em um local especializado.
A reprodução doméstica do registro de um concerto, por exemplo, jamais oferecerá a
mesma riqueza sonora de sua versão original em uma sala ou estúdio apropriado, tendo em
vista que o ambiente foi cuidadosamente planejado para a obtenção da melhor qualidade
possível. A foto de uma escultura em nada substitui o seu original tridimensional em um
museu, constituindo-se, portanto, como uma simples cópia.
Com o cinema se dá o mesmo. Embora se trate de uma mídia
mecânica/eletrônica/digital, podemos observar a ausência do elemento “ao vivo” que se
encontra, por exemplo, no teatro. A reprodução doméstica de um filme é uma versão reduzida
deste mesmo filme quando exibido em bom cinema. Por melhor que sejam os equipamentos
domésticos, sua qualidade e capacidade de reprodução da imagem e do som não se comparam
às que podem ser obtidas em ambientes profissionais.
Além disso, as próprias características físicas do ambiente onde se dá a projeção, sua
arquitetura, determina a qualidade com a qual o filme será percebido pelos espectadores. A
imagem projetada na tela de um cinema tem dimensões dificilmente reproduzíveis nos lares
dos espectadores. O som da trilha do filme, para que seja de qualidade, requer um ambiente
com um volume mínimo, com acústica cuidadosamente estudada, algo praticamente inviável
de ser reproduzido em um ambiente doméstico. Enfim, se analisado do ponto de vista técnico,
é inevitável a perda de qualidade das obras de arte e produtos culturais quando vivenciadas
em ambientes “não-específicos de lazer” e cultura, “visto que não é um espaço construído
com esta função, mas que também pode cumpri-la”. (CAMARGO apud FALCO, 2007, p. 3)
Por outro lado, além dos ganhos em qualidade técnica e sensorial, a fruição dos
produtos culturais em um ambiente público, extra doméstico, representa a possibilidade de
transformar esta fruição em um ato social. Assistir um filme em uma sala de cinema cria a

1169

V V
situação de “uma congregação de estranhos”, na qual as emoções transmitidas no enredo são
compartilhadas com os outros e, neste processo, amplificadas.
Assistir a um filme em uma sala de cinema proporciona ao espectador a possibilidade
de viver novas experiências já que, àquelas oferecidas pelo filme, se somam as inevitáveis
possibilidades de imprevisto – ou aventura – desde que o espectador deixa a “zona de
conforto” de seu lar, sai à rua e se insere em ambientes públicos, misturando-se a outras
pessoas, em sua maioria desconhecidas.
Neste sentido, a ida ao cinema também oferece ao espectador, ainda que por breves
momentos, o sentimento de participar do ambiente urbano cujo local mais expressivo,
segundo Rio (1987, s/p), seria a rua: “Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais;
nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei
e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua”. Esta função também está
presente na forma mais comum das salas de cinema contemporâneas: os shopping centers,
conforme enfatiza Neves (2006, p. 16):
A incorporação das salas de cinema no shopping center
proporcionou aos frequentadores, além de uma boa sessão escurinha nas
salas, um footing antes e depois de cada sessão, entre as lojas, a praça de
alimentação e os corredores artificialmente iluminados. Este caminho
percorrido possibilita um viver social carregado de encontros, experiências e
vivências, que podem tanto ser compartilhados quando individualizados.

ACESSIBILIDADE DOS FILMES: AUDIODESCRIÇÃO E LEGENDAGEM


Por ser o cinema uma mídia que se utiliza de imagens e sons para transmitir suas
mensagens, as pessoas com deficiência visual e auditiva enfrentam dificuldade de fruir os
filmes. Isso não significa, porém, que a elas seja negado o direito de participar desse espaço
cultural, já que é dada a cada um de nós a capacidade de perceber o mundo de acordo com as
nossas particularidades: “Esta pessoa, parte do público, pode ser um cego, que vivencia o
OUVIR histórias, ou um surdo que vivencia o LER histórias, de forma similar àquela em que
todo indivíduo RECRIA os espetáculos sensoriais de um filme com a sua imaginação, única e
particular”5.
A afirmação acima aponta para dois dos recursos mais comuns visando a
acessibilização dos filmes e obras audiovisuais em geral: a audiodescrição e legendagem. Este
último recurso também pode ser substituído ou complementado pela utilização da Língua

5
Guia de Cinema e Vídeo para Cegos e Surdos, 2013. Disponível em: <http://www.filmesquevoam.com.br/cana
is.php?mod=pagina&id=65>. Acesso em: 10 mar. 2014.

1170

V V
Brasileira de Sinais (Libras), recomendada para surdos não oralizados ou que não se sintam
confortáveis com a língua portuguesa.
A audiodescrição é um recurso utilizado nos filmes para traduzir oralmente as
informações visuais não expressas por sua trilha sonora: “cenários, expressões faciais e
corporais dos personagens, conteúdo de texto, figurinos, entradas e saídas de personagens,
indicação de tempo e espaço, movimentações em geral e demais elementos relevantes para a
captação e compreensão da obra por pessoas impossibilitadas de usufruir total ou
parcialmente dos recursos visuais”. (VILARONGA, 2009, p. 1060)
A audiodescrição consiste em uma trilha sonora extra, geralmente, pré-gravada que é
inserida, preferencialmente, nos intervalos dos sons importantes dos filmes. Nos cinemas, ela
é transmitida via ondas de rádio para que seja captada apenas pelos receptores distribuídos aos
espectadores que dela necessitam. Opcionalmente, em algumas salas, os espectadores podem
utilizar seus próprios equipamentos – smartphones, aparelhos de áudio etc. Em alguns casos, a
trilha é reproduzida diretamente pelo sistema de sonorização da sala de cinema, junto com os
demais sons do filme sendo, portanto, ouvida por todos. Isso acontece, por vezes, por conta do
cinema não possuir os equipamentos necessários para transmissão individual da trilha de
audiodescrição ou, em outros casos, como forma de sensibilização da plateia ouvinte para
esse recurso. Segundo Vilaronga (2009, p. 1061), esse recurso sempre esteve presente na vida
das pessoas cegas, já que:
(...) parentes e amigos sempre complementaram as informações
capturadas pelos demais sentidos. (...) A audiodescrição vem a formalizar
essa interação solidária, possibilitando mais autonomia, sobretudo quando
respeitados os critérios técnicos que podem garantir menos interferência de
outrem quanto aos significados construídos.

Embora se destine principalmente às pessoas com deficiência visual, esse recurso


também é muito útil para pessoas com deficiência intelectual, dislexia e também idosas com
baixa acuidade visual, que, através dela, conseguem captar mais facilmente sentidos e
significados do que veem e ouvem durante a projeção de um filme.
A legendagem é uma ferramenta para traduzir em texto as informações sonoras dos
filmes. Diferentemente daquela utilizada em versões nacionais de filmes produzidos em
outras línguas, a legendagem acessiva traduz não apenas os diálogos, mas também os sons
significativos para a compreensão do filme: campainhas, toques de telefone, explosões etc.
Nos cinemas, elas são projetadas diretamente na parte inferior da tela ou em telas
específicas, diferente das utilizadas para a projeção das imagens do filme. Alternativamente,

1171

V V
podem ser utilizadas tecnologias e recursos para transmitir as legendas apenas para aqueles
que dela necessitem, mediante uso de tablets, smartphones e outros dispositivos.
A versão em Libras é utilizada para traduzir as informações sonoras em linguagem
gestual. No cinema, ela costuma ser gravada previamente por um tradutor gabaritado e
sincronizada com as imagens do filme. A versão em Libras é projetada em uma tela extra
posicionada próxima à tela convencional do cinema ou enviada para tablets, smartphones e
outros dispositivos.

ACESSIBILIDADE DOS CINEMAS PELA VIA DO DESENHO UNIVERSAL


A possibilidade de associar o acesso a um bem cultural ao acesso a um espaço público
com destinação cultural é especialmente importante para pessoas com deficiência, para quem,
tradicionalmente, é dificultada a possibilidade de incorporar às suas vidas as experiências
oportunizadas pelos ambientes naturais e públicos que a cidade e o mundo oferecem.
O Desenho Universal é um dos principais instrumentos para garantir a acessibilidade
aos cinemas. Este conceito surgiu na Universidade da Carolina do Norte, no EUA, em 1985,
como desdobramento de outras iniciativas anteriores de eliminar as barreiras físicas que
dificultavam a integração das pessoas com deficiência. Segundo seu princípio básico:
“Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes,
programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as
pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho
universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas
com deficiência, quando necessárias. (BRASIL, 2009a)

Um dos pontos fundamentais deste conceito é a universalidade das soluções utilizadas


para que, sempre que possível, todos delas possam compartilhar igualitariamente. O desenho
universal refuta medidas que impliquem em alternativas voltadas exclusivamente a
determinados grupos de pessoas, de modo a evitar que essas soluções reforcem eventuais
estigmas e preconceitos e, com isso, provoquem discriminação social. Antes disso, esse
conceito busca incorporar à dinâmica dos projetos a diversidade como uma característica
intrínseca dos seres humanos.

Segundo Carletto; Cambiaghi (2008, p. 11), “O ser humano ‘normal’ é precisamente o

ser humano ‘diverso’, e é isso que nos enriquece enquanto espécie. Portanto, a normalidade é
que os usuários sejam muito diferentes e que deem usos distintos aos previstos em projetos.
Na prática, isso é obtido buscando equalizar as formas como as pessoas usam edificações,
produtos e serviços: se servir ao mais vulnerável ou limitado, servirá a todos.

1172

V V
Uma circulação vertical com rampa, por exemplo, serve a todas as pessoas,
independente delas se movimentarem com pés ou rodas, utilizarem bengalas, andadores,
empurrarem carrinhos de bebê etc. Um elevador que anuncia os andares através de um painel
luminoso e um aviso sonoro atende as necessidades de todos, incluindo pessoas com
deficiência auditiva ou visual. Enfim, soluções deste tipo não discriminam as pessoas,
principalmente no caso de pessoas com deficiência, contribui incluí-las ao conjunto maior da
família humana.
O Desenho Universal não se limita a contemplar as necessidades de quem tem
deficiência, mas atender as especificidades de todos, entre os quais pessoas de baixa estatura,
grávidas, crianças, idosos, pessoas debilitadas etc. Ele busca também facilitar a vida de
pessoas que estejam carregando pacotes, empurrando carrinhos de bebê, levando carrinhos de
feira, visitantes não habituados com o ambiente no qual se encontram etc.

APLICAÇÃO DA ACESSIBILIDADE NOS CINEMAS


Os princípios do Desenho Universal devem ser associados a normas e recomendações
técnicas que definam os parâmetros básicos a serem aplicados em situações específicas. No
caso do projeto de espaços voltados para pessoas com deficiência, a norma técnica mais
relevante é a NBR 9050, Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos
urbanos, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, ABNT (BRASIL, 2004). Segundo
esta norma, a acessibilidade é definida como sendo a “possibilidade e condição de alcance,
percepção e entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações,
espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos”. (BRASIL, 2004, p. 2)
No caso dos cinemas a acessibilidade implica na possibilidade de alcançar o ambiente,
compreendê-lo para ser capaz de nele se movimentar com segurança e autonomia, utilizando
mobiliário, equipamentos etc. Considerando a função específica do cinema, o ambiente deve
ser capaz de proporcionar uma projeção cinematográfica de qualidade, em termos da imagem,
do som e do conforto dos espectadores, associado à provisão de meios para a utilização dos
recursos necessários à fruição dos filmes por parte de todos os espectadores.
Esses aspectos são descritos abaixo, de forma sucinta, apontando para os princípios
básicos necessários ao seu equacionamento. Não serão discutidos os detalhes da
implementação de cada um deles, disponíveis em literatura específica, em especial a NBR
9050 (BRASIL, 2004). Buscou-se uma abordagem na qual são analisados os aspectos mais
relevantes a partir de um movimento de fora para dentro, ou seja, do lar do espectador em

1173

V V
potencial, onde se dá a decisão de ir ao cinema, até o auditório, o local onde acontece a
projeção do filme.
A qualidade da técnica da projeção é definida através de parâmetros objetivos
estabelecidos por normas e recomendações específicas, entre elas, a mais completa e atual é a
Recomendação Técnica - RT 001-P-2009: Arquitetura de Salas de Projeção
Cinematográfica, elaborada pela Associação Brasileira Cinematografia, ABC (BRASIL,
2009b). Trata-se de uma iniciativa conjunta da ABC, que congrega os profissionais das áreas
técnica e criativa do cinema, e da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, através
do Centro Técnico Audiovisual, CTAv, e da Cinemateca Brasileira. Ela foi elaborada em
2009, levando em consideração as características arquitetônicas básicas para projeções com
boa qualidade técnica e conforto do espectador de acordo com as características da mídia
cinematográfica contemporânea e da fisiologia humana.
Seu ponto de partida para a elaboração da recomendação da ABC é a norma técnica
NBR12237 “Projetos e instalações de salas de projeção cinematográfica” (BRASIL, 1988),
elaborada por iniciativa do Centro Técnico Audiovisual, CTAv, do Ministério da Cultura, e
publicada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), em 1988. Os parâmetros
desta norma foram revistos para a Recomendação da ABC visando incorporar as melhorias
resultantes do desenvolvimento da tecnologia cinematográfica ocorridas desde então além de
incorporar aspectos não abordados anteriormente.
Outro avanço da Recomendação da ABC foi a inclusão da questão da acessibilidade
ao estabelecer que “o projeto da sala deverá atender aos parâmetros definidos pela norma da
ABNT, NBR 9050” (BRASIL,2004) algo que não era mencionado na NBR12237.
A Recomendação Técnica da ABC estipula distâncias máximas e mínimas para,
respectivamente, a última e a primeira fileira de poltronas. A distância máxima entre a tela de
projeção e a última fileira de poltronas tem por objetivo garantir que o espectador possa
visualizar todos os detalhes da imagem projetada na tela e que tenha sobre ele um impacto
visual adequado à fruição do filme. Para evitar que isso aconteça, a Recomendação ABC
estipula que a distância máxima seja igual a duas vezes a largura da tela de projeção, sendo
admissível uma distância igual a 2,9 vezes (Figura 2).
Quando o acesso à sala é feito pela parte posterior do auditório e a posição da cadeira
de rodas deve ficar necessariamente próxima a ele, isso pode acarretar perda de qualidade
para o espectador que utilize esse espaço, caso a distância máxima seja superior ao máximo
recomendado pela ABC (ABC, 2009). Além disso, mesmo que dentro do limite máximo

1174

V V
recomendado, esse posicionamento pode ser inadequado para o espectador em cadeiras de
rodas com algum grau de deficiência visual. Isso é piorado caso ele necessite ler as legendas
ou acompanhar a versão do filme em uma janela de Libras projetada em uma tela auxiliar.

FIGURA 2 – Área de implantação das poltronas e distâncias máxima


e mínima de implantação de posicionamento dos espectadores

FONTE: Recomendação Técnica da ABC, 1988. Disponível em: <http://www. ctav.gov.br/


wp-content/up loads/ 2009/03/rectec-0811181.pdf>. Acesso em: 13 set. 2013.

A distância mínima entre a tela de projeção e a primeira fileira de poltronas tem por
objetivo evitar que o espectador se posicione excessivamente próximo à tela e, com isso,
perceba as imagens nela projetadas não como uma superfície contínua, mas como um
conjunto de grãos (na projeção fotoquímica) ou pixels (na projeção digital). De acordo com a
Recomendação Técnica da ABC, a distância mínima entre a tela de projeção e a primeira
fileira de poltronas deve ser maior do que 60% da largura da tela.
A figura 3 apresenta a área preferencial para implantação das poltronas e
posicionamento dos espectadores (quadriculado grande) e área admissível, com menor
qualidade. No caso da primeira fileira de poltronas, também é importante limitar o ângulo
máximo de visão ao centro da altura da tela e à sua borda superior para evitar desconforto
postural no espectador. Por melhor que seja um filme, sua fruição certamente será prejudicada

1175

V V
pela dor e pelo desconforto associados a uma má postura durante a projeção que, por vezes,
pode ser superior a duas horas.

FIGURA 3 –Ângulos de visão à tela.

FONTE: Recomendação Técnica da ABC, 1988. Disponível em: http://www.abcine.org.br/ artigos/ ?id=
90&/recomendacao-tecnica-para-salas-de-exibicao-cinematografica-parte-1. Acesso em: 13 set. 2013.

A recomendação da ABC estabelece que os ângulos máximos de visão do espectador


sentado na poltrona mais próxima da tela devem ser iguais ou, preferencialmente, inferiores a
30 graus em relação a um plano horizontal que passe pelo centro da altura da tela e 40 graus
em relação a um plano horizontal que passe pela borda superior da tela. Esses ângulos são
definidos a partir da altura do nível dos olhos de uma pessoa sentada em uma poltrona de
cinema, considerada como sendo igual a 1,20m.
A NBR 9050 (BRASIL, 2004) determina que “a distância mínima para a localização
dos espaços para P.C.R. e os assentos para P.M.R. deve ser calculada traçando-se um ângulo
visual de no máximo 30º a partir do limite superior da tela até a linha do horizonte visual com
altura de 1,15 m do piso...”. (Figura 4)
É provável que a diferença entre ambas leve em conta a possibilidade de que a falta de
mobilidade física esteja associada à redução da mobilidade do tronco, pescoço e cabeça. Além
disso, as poltronas de auditório costumam ter encostos com inclinação entre 106 e 110 graus
em relação ao assento, ao passo que para a grande maioria das cadeiras de rodas disponíveis
no mercado essa inclinação é de 90 graus.
Associando esses dois fatores, fica clara a necessidade de se buscar soluções nas quais
os ângulos de visão sejam mais generosos, de modo a acomodar confortavelmente uma maior
gama de pessoas. Assim, salas de cinema nas quais as posições destinadas a pessoas em
cadeiras de rodas sejam localizadas na primeira fileira de assentos, é importante que seja

1176

V V
utilizada como parâmetro ar recomendação da NBR 9050 por considerarem as peculiaridades
de pessoas em cadeiras de rodas.

FIGURA 4 - Ângulos de visão à tela de cinema

FONTE: NBR 9050/2004. Disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/ default/files


arquivos/%5Bfield_generico_imagens-filefield-description%5D_24.pdf>. Acesso em: 13 set. 2013.

Se forem atendidas as condições mais exigentes, certamente estarão atendidas as


demais. Vale lembrar também que estamos falando em ângulos máximos de visão sendo
recomendável, sempre que possível, utilizar valores inferiores aos valores máximos. Outro
problema associado a um posicionamento muito próximo a tela relaciona-se à qualidade da
reprodução sonora. Os canais frontais da trilha do filme são reproduzidos por caixas acústicas
posicionadas acima da metade da altura da tela de projeção. Assim, dependendo do ângulo de
dispersão das caixas acústicas, o espectador sentado excessivamente próximo à tela poderá ter
prejudicada a percepção da trilha sonora.
Assim, em princípio, se respeitadas as normas e recomendações técnicas específicas e,
no caso das caixas acústicas, as características dos equipamentos, o posicionamento na
primeira fileira do auditório de um cinema não deveria trazer qualquer prejuízo à qualidade da
projeção e ao conforto do espectador. Ocorre que, no afã de vender mais ingressos em cada
sessão de uma mesma sala, não são poucas as que desrespeitam as normas e recomendações
optando instalar poltronas além e aquém dos limites recomendados.
No caso de cinemas mais recentes, com a plateia do tipo “stadium”, como o acesso
costuma ser feito pela frente a sala, onde fica posicionada a tela de projeção, e não é raro que
a primeira fileira seja posicionada excessivamente próxima da tela. No caso dos espectadores

1177

V V
sem limitações em sua mobilidade, isso não chega a ser um grande problema, já que ele
sempre pode escolher um local mais adequado para sentar no auditório do cinema. Por conta
disso, é comum que as fileiras extremas da área de poltronas do auditório, as primeiras e as
últimas, costumem ser as menos procuradas pelos espectadores.
No entanto, no caso dos espectadores com dificuldades de locomoção e, em especial,
aqueles em cadeiras de rodas, a opção de buscar um lugar mais adequado quase sempre é
inexistente. Por conta disso, a localização dos espaços para cadeiras de rodas deve ser
criteriosamente definida de modo a garantir que os espectadores neles posicionados tenham
condições de assistir com qualidade técnica e conforto.
O posicionamento dos espaços para cadeiras de rodas é uma das principais queixas dos
frequentadores de cinemas. Em matéria do jornal Estado de São Paulo, publicada em seu site
na internet, uma pessoa com dificuldades de locomoção relata os problemas enfrentados por
amigos cadeirantes: “o problema são os assentos reservados a eles – geralmente nas primeiras
fileiras, com péssima visibilidade” (CARVALHO, 2010). Já a responsável pelo blog Entre
Quatro Paredes (2011, s/p), usuária de cadeira de rodas, narra os problemas em uma ida ao
cinema, em 2011:
O Cinemark, apesar dos lugares marcados para cadeirantes, é um
péssimo cinema para nós. Nossos lugares ficam grudados à tela e, pelo
menos eu, sempre saio dos filmes com dores no pescoço e coluna.
Realmente não entendo o que custa fazer um raio de uma rampa naquele raio
de cinema ou, ao menos, fazer as entradas por cima para que nós possamos
desgrudar da tela.

Outro caso ainda mais impressionante de inadequação do posicionamento do espaço


para cadeiras de rodas, associado a falta de sensibilidade e respeito no trato com pessoas com
deficiência, foi relatado por uma espectadora de Porto Alegre, quando de uma ida ao cinema
em 2011.A situação foi reproduzida abaixo com os destaques de sua autora, Vitória
Bernardes, citado por Carvalho (2011, s/p):
Constatando a dificuldade de visualizar a tela, devido sua
proximidade, pedi para minha prima, Bruna, solicitar a ajuda de um
funcionário. Devido sua demora, solicitei que minha outra prima, Gerusa,
fosse verificar o que estava ocorrendo. Minutos depois, elas entraram
acompanhadas pelo gerente, senhor Maurício. Ele afirmou que o Cinemark
proíbe seus funcionários de prestar auxílio como “este” aos seus clientes. Ou
seja, o Cinemark, além de não disponibilizar um local decente para
cadeirantes, proíbe seus funcionários de os colocarem em uma poltrona
onde possam, ao menos, ver o filme. Apesar de preferir me locomover
livremente e saber das leis que asseguram esse direito, abdiquei disso para
me adequar ao serviço precário oferecido e, mesmo assim, escuto do
representante da empresa que isso NÃO É POSSIVEL?!

1178

V V
Como o filme estava prestes a começar, minhas primas decidiram
que elas mesmas me colocariam na poltrona. Nesse momento, o gerente
“informou” que esta ação não poderia ser feita dentro do estabelecimento.
Além de não ajudar, proibiu minhas primas de prestarem esse auxílio. No
primeiro momento da solicitação, quando a Bruna ainda estava sozinha,
o senhor Maurício comentou que o cinema não tinha “estrutura”, pois
era feito para “pessoas normais”. Normal, anormal ou qualquer outro
rótulo ou denominação que queiram dar, não importa. Tenho limitações sim,
mas, como qualquer outra pessoa, paguei por um serviço, pelo qual não fui
informada que não poderia usufruí-lo.
Durante este lamentável acontecimento, meu único desejo era me
esconder, chorar de raiva, pois além de me sentir severamente lesada como
consumidora, me senti diminuída como pessoa. E pior, pelo tom usado pelo
funcionário, me senti culpada por estragar o passeio das pessoas que me
acompanhavam, entre elas, uma criança.
Além de tudo, por instantes, o gerente me fez acreditar que o
problema em questão era eu, e não sua empresa… Que inversão de valores
é essa?

A situação relatada acima, acontecida em um ambiente destinado, em princípio, ao


desfrute de momentos prazerosos, é emblemática por vários aspectos associados à deficiência
discutidos anteriormente: a inadequação dos espaços às necessidades de pessoas com
deficiência; a discriminação que lhes é imposta, sendo consideradas, ainda, como seres à
parte, “anormais”; o estigma associado à deficiência e a humilhação e o sofrimento resultante
disso; a visão de que a deficiência seria um problema individual, pessoal e intransferível e
que, consequentemente, não haveria necessidade de que a sociedade venha a redefinir às suas
práticas para melhor acolher a diferença.

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BRASIL. ABNT NBR 9050:2004. Associação Brasileira de Notas Técnicas, 2004. Disponível em:
<http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/%5Bfieldgenerico_imagens
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Disponível em: <http://www.ctav.gov.br/wp-content/uploads/2009/03/rectec-0811181.pdf>. Acesso
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Acesso em: 15 mar. 2014.

1180

V V
“BAILE MODELO!”: REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS FUNKEIRAS EM
CONTEXTO DE PACIFICAÇÃO
Pâmella Passos1
Adriana Facina2

RESUMO: Tido como parte importante da complexa composição de identidades juvenis das
favelas cariocas, o funk foi escolhido por nossa pesquisa como um dispositivo para analisar os
impactos culturais da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Com a
presença constante do policiamento militar, há uma alteração em relação às práticas funkeiras
que já são historicamente marcadas por intensa criminalização. Nas páginas deste artigo,
pretendemos problematizar as políticas públicas de cultura para o funk, tendo o edital da
Secretaria Estadual de Cultura para o Funk (2012) como objeto de investigação e o baile da
Chatuba, premiado por tal edital, como um estudo de caso.

PALAVRAS-CHAVE: Funk, Pacificação, Políticas Culturais, Baile da Chatuba

A criminalização do funk e seu recrudescimento em favelas pacificadas


A criminalização do funk carioca não é fato recente na história do Rio de
Janeiro.Inúmeras pesquisas, artigos e livros abordam a temática a partir de diferentes prismas.
Cronologicamente falando, podemos datar o início dos anos 1990 como um marco inicial da
perseguição ao funk, processo no qual a mídia corporativa teve um papel fundamental.
Em 1992, confrontos juvenis nas areias de praias da zona sul carioca tornaram-se o
estopim para a demonização do funk e de seus adeptos, em especial seus locais de diversão:
os bailes funk, principalmente aqueles conhecidos como “bailes de corredor”, nos quais as
brigas entre galeras eram o momento central. Analisando somente a dimensão violenta mais
aparente desses confrontos, o discurso midiático e governamental passou a repreender o funk,
desconsiderando-o como manifestação cultural.
As questões de identidade, pertencimento, rivalidades territoriais que permeavam tais
confrontos foram secundarizadas em função de uma sistemática perseguição ao funk, que
resultou no fechamento de dezenas de bailes em clubes cariocas. Como desdobramento, os

1
Doutora em História pela UFF, realizando Pós doutorado em Antropologia Social do PPGAS/Museu
Nacional/UFRJ. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro(IFRJ).
Email:pamella.passos@ifrj.edu.br
2
Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), com pós-doutorado pela mesma instituição (2008-2009). É
professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ Museu Nacional/ UFRJ. Tem como
principais temas de investigação a criação artística, a produção cultural e as práticas de letramento em favelas e
bairros populares . Contato: adriana.facina2@gmail.com

1181

V V
bailes passaram a acontecer quase majoritariamente nas favelas. Sem investimentos de verbas
públicas e limitados na captação de recursos privados, os bailes de favelas tinham os
comerciantes varejistas de drogas (“traficantes”) como seus principais financiadores. 3 É
preciso lembrar que esses chamados “traficantes” também são jovens de origem pobre, em
maioria negros, e se identificam com a cultura juvenil funkeira.
De lá pra cá a luta dos funkeiros para vivenciar e afirmar seu ofício e prática cultural
tem sido árdua. Composto pelos que têm a chance de aproveitar as brechas da indústria
cultural que elegem funks que são lançados como sucesso em grandes rádios e programas
televisivos e pelos os que têm de permanecer com suas produções e circuitos independentes, o
mundo funk resistiu.
Nessa trajetória, conquistas importantes devem ser registradas. Em 2008 nasceu a
Associação de Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK). Com objetivo de lutar pelo
reconhecimento do funk como cultura e melhorar as condições de trabalho dos profissionais
desse gênero musical tão representativo da cultura carioca, reuniram-se MCs, DJs e outros
profissionais do funk e apoiadores oriundos de movimentos sociais, universidades, imprensa
alternativa etc.
A primeira vitória importante veio em 2009 com a aprovação da Lei estadual n.
5543/09 que reconhece o Funk como Cultura. Porém, a luta continuava. Apesar da vigência
da “Lei do Funk é Cultura”, como foi apelidada na época, as Unidades de Polícia
Pacificadora, implementadas a partir de dezembro de 2008, significaram uma atualização da
proibição dos bailes, desta vez nos territórios favelados pacificados. Criando suas próprias leis
e regras, como a frequente justificativa de que a “comunidade ainda não estava preparada para
o funk”, os comandos das UPPS acabavam com bailes, impediam rodas de funk 4 e
perseguiam funkeiros.
Utilizando-se de um instrumento legal, a “Resolução 013”, normativa que é resquício
do regime militar, os Comandantes das UPPs listavam inúmeras exigências, que não eram
padronizadas, e nem mesmo muito claras, para realização dos bailes. O resultado é que em

3
FACINA, Adriana. Cultura como crime, cultura como direito: a luta contra a resolução 013 no Rio de Janeiro.
In: Anais da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia. Natal, 2014.
4
A esse respeito ver MONCAU, Luiz Fernando & PIMENTEL, Guilherme. O Funk carioca e a Lei- Problemas
e recomendações. In:PASSOS, Pâmella; DANTAS, Aline & MELLO, Marisa S. Política Cultural com as
Periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro: IFRJ,2013.

1182

V V
pouco mais de 6 anos de pacificação vimos uma manifestação cultural, o baile funk de favela,
ser criminalizado a ponto de quase desaparecer em favelas com a presença de UPPs.
Como fruto da luta dos funkeiros e de moradores de favelas, da crítica de
pesquisadores militantes e de mídias contra-hegemônicas, surgiram outros caminhos e
mediações voltados para a afirmação de um direito cultural: a realização e fruição de bailes
funk.O edital destinado ao funk, elaborado pela Secretaria de Estado e Cultura do Rio de
Janeiro, é um exemplo desse processo conflituoso e complexo.

Editais “para o funk”: conquistas e limites


Em meio a elogios e críticas publicadas na imprensa na época, a Secretaria de Estado
de Cultura do Rio de Janeiro (SEC/RJ) lançou, em 2011, o primeiro edital especificamente
voltado para o funk. Denominado de “Apoio a Criação Artística no Funk”, tal edital foi alvo
de muitas avaliações positivas, visto que foi considerado um importante avanço no sentido da
democratização das políticas públicas para a cultura.Mas, ao mesmo tempo, despertou certas
iras conservadoras e elitistas que não admitiam que o gênero funk fosse considerado cultura e
financiado com verba pública. Muitas dessas críticas foram publicadas como comentários de
leitores de jornais on line, tal como demonstra a seleção abaixo5:

O pior é pra nós músicos,ouvir alguém chamar isso de música

Agora a "eguinha pocotó" é cultura, gente!

Funk é cultura???? Então tah justificado o resultado das eleições

Funk carioca não é música. Nada mais, nada menos.

Que absurdo! Era só que faltava, tantas coisas melhores a fazer em


beneficio do povão que trabalha e ajuda esse País, mas os Srs. tem a cara de
pau de perder tempo para legalizar essa porcaria que não contribui para
formação de cidadãos mas de delinqüentes. Que vergonha !

Daqui uns dias até a dança da chuva vai ser considerada movimento
cultural... Música é arte, logo, pra ser música, precisa ter qualidade artística,
coisa que Funk não tem, pois não passa de barulho e pouca vergonha...

Deixar de investir R$ 500 mil em educação já é horrível.


Desperdiçar esse dinheiro com um tal "patrimônio cultural" que é justamente
o oposto da educação, pior ainda. Que cada cidadão seja livre pra tocar ou
ouvir a música que quiser; mas usar dinheiro do contribuinte pra financiar

5
Comentários retirados de http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/998363-legalizado-funk-ganha-edital-e-festa-
publica-no-rio.shtml

1183

V V
uma cultura que incentiva seres humanos a regredirem ao nível de bestas, aí
passaram de todos os limites.

Mesmo com essas reprovações difusas que eram publicadas nos meios de
comunicação, essa política teve continuidade.Em 2013 um novo edital para o funk foi lançado
pela SEC/RJ. Cientes das dificuldades dos propositores em elaborar um projeto com todas as
padronizações que este gênero do discurso possui, a Secretaria novamente criou uma equipe
para dar oficinas e assessorar a escrita dos projetos, além de garantir uma caravana que
circulou por várias regiões do estado divulgando a iniciativa e tirando dúvidas dos candidatos
a proponentes de projetos.
Para a reflexão que propomos em nossa pesquisa, analisaremos exclusivamente o
edital de 2013, visto que algumas especificidades atendem nossa questão de pesquisa: “os
impactos culturais da UPPs”. Cabe destacar que no ano do lançamento deste segundo edital,
completavam-se 5 anos da implementação da primeira UPP, localizada no morro Santa Marta.
Nesse momento, havia um acúmulo crítico importante, produzido na universidade e fora dela,
sobre as UPPs, tanto no que diz respeito à concepção de segurança pública que elas encarnam,
quanto no que tange à atuação concreta dos policiais, sobretudo comandantes, junto à
população dos territórios favelados.Um dos aspectos mais denunciados nesse contexto era a
perseguição aos bailes funk e sua proibição.
Nesse contexto, a Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Rio de Janeiro
divulga a Chamada Pública 13/2013, denominada “Seleção Pública de Projetos de Bailes e
Criação Artística no Funk”6. Diferentemente do edital anterior, a chamada era para criação
artística, mas também focava nos bailes. Um de seus objetivos era construir um caminho
negociado para o retorno dos bailes nas favelas pacificadas, agora em novos moldes. Alguns
funkeiros se referiram a esses bailes de modo irônico, chamando os mesmos de “pacificados”
ou “permitidões”.
E assim,na contramão da política de segurança que proibia bailes funk em regiões
pacificadas, a SEC/RJ selecionaria projetos de bailes em favelas com UPPs para serem
financiados com recursos públicos. No entanto, de modo contraditório, o que pode ser
entendido como uma ação contraposta a um modelo de segurança pública, também pode ser
compreendido como uma ação complementar a esse mesmo modelo. Se, por um lado, a
SEC/RJ, através de funcionários comprometidos e engajados na causa do funk, contribuiu de
maneira significativa para a legitimação das atividades dos funkeiros, ao mesmo tempo

6
Disponível em http://www.favelacriativa.rj.gov.br/ acesso em 27/02/2015

1184

V V
recrudesceu o poder da polícia como árbitro de manifestações culturais ao incluir policiais na
banca de avaliação de projetos, numa parceria com a Secretaria de Segurança. Tal presença é
inédita nos mecanismos de avaliação de editais culturais, apontando para uma prática
discriminatória voltada para as produções culturais das juventudes de favelas e periferias.
Um dos contemplados pelo edital foi o DJ Byano. Figura histórica do funk, Byano é
DJ residente do Baile da Chatuba desde a virada dos anos 1990 para 2000. A quadra da
Chatuba, localizada no bairro da Penha, é também conhecida como Maracanã do Funk e ali se
realizava um dos bailes mais antigos da cidade, com mais de 30 anos de existência. Com a
implantação de uma UPP na localidade o baile permaneceu 5 anos suspenso. Com o objetivo
de retomar a realização do Baile da Chatuba nesse novo contexto, Byano concorreu ao edital,
do qual ficou sabendo pelo amigo Helcimar Lopes,produtor cultural residente no Complexo
do Alemão, que o ajudou na elaboração do projeto. Em suas palavras:
O Helcimar falou comigo: “Pô cara, você tá tanto tempo tentando,
tentando e não dá em nada. Pô já ouviu falar no edital?” Eu falei: Num sei
nem o quê que é isso, falei pra ele o que significa edital? Ele me mandou
uma página online eu fui e li tudinho, parecia até uma Bíblia, li tudo, tudo,
não entendi nada!(Risos) Fomos lá na Secretária lá. Li, li, li, mas são
palavras que pareciam Hebraico. A gente foi lá eu conheci o Tiago, conheci
o Alberto... é, é Bernardo, aí na época eu não tinha quase documento
nenhum, tirei tudo de novo: certificado de reservista, um monte de coisa que
precisava no edital. Demorou um ano também pra ser aprovado. Mas graças
a Deus foi aprovado. Hoje a gente tem uma parceria muito forte com o
Tiago7, graças a Deus. Porque se não fosse ele isso aqui...8

Como podemos perceber pela sua fala, as dificuldades iniciais eram


muitas:desconhecer o que seja um edital, a ausência de documentação, dentre outros fatores,
eram limites reais para a proposição do projeto. Nesse sentido, o papel de parceiros, como
define DJ Byano, desempenhado por funcionários da SEC/RJ, foi fundamental para romper as
barreiras que separavam o financiamento público para cultura das ações do funk.
Nesse sentido, identificamos um importante aspecto de aprofundamento democrático,
não apenas na criação deste edital, mas sobretudo na condução de sua execução.
Compreendendo as dificuldades e limitações do público-alvo do edital, a Secretaria de Estado
de Cultura do Rio de Janeiro proporcionou ações de formação, acompanhamento,
esclarecimento para garantir um índice expressivo de participação dos funkeiros no processo
seletivo.

7
Os nomes citados referem-se a representantes da Secretaria de Estado e Cultura do Governo do estado do Rio
de Janeiro.
8
Entrevista com o DJ Byano, organizador do Baile da Chatuba e contemplado pelo edital da SEC de 2013.

1185

V V
Porém, é preciso reconhecer uma dimensão bastante problemática e limitadora nesse
processo. A nosso ver, o mesmo edital que avança por apoiar bailes funk e prever oficinas,
caravanas e canal de auxílio com dúvidas, retrocede ao colocar em sua banca de avaliação 02
(dois) representantes da área de segurança: 01(um) representante da Secretaria de Segurança
Pública e 01 (um) da Polícia Militar.
Quando indagado sobre esta temática, um representante da Secretaria de Cultura nos
respondeu
Tem como falar de funk hoje, é, em comunidades pacificadas ou no
interior ou em qualquer outro lugar que seja se a gente não tiver, sem falar
com a polícia militar e com a secretaria de segurança? Então o que eu fiz?
Vamos chamar a secretaria de segurança, vamos chamar a polícia militar
para participar da segunda fase. A primeira fase foi aquele mesmo esquema,
a gente fez uma primeira fase era online, as pessoas se inscreviam e aí
selecionamos 60 projetos para parte oral. E então na parte oral entrou a
Secretaria de Segurança e a Polícia Militar.9

Naturalizando a relação de poder que a polícia estabelece sobre o funk, o representante


da Secretaria, a nosso ver, não problematiza a participação dos representantes da segurança
pública numa seleção da esfera cultural. A esse respeito, acrescenta:
a estratégia de ter a Polícia Militar e Secretaria de Segurança junto
era um pouco essa de validar junto com a gente quais são os bailes que a
gente acha que são modelos e que a gente precisa, é, ressignificar mesmo.
(...)
Então não é criminalizar ele, é ressignificar ele. Não é porque esse
cara há dez anos era financiado pelo tráfico de drogas que eu vou
criminalizar esse cara, que talvez eu se estivesse no lugar dele com as
condições dele teria feito o mesmo. Então não é criminalizar ele é
ressignificar esse cara, é trazer ele pro nosso lado. É falar: Amigo, teu baile
agora vai acabar as duas da manhã, não pode ter menor, não pode vender
bebida pra não sei o que.. E é isso...10

O mesmo Estado que, através de seus representantes da Secretaria de Cultura,


se abre para colaborar com o DJ Byano reconhecendo sua cultura e sua profissão no funk, é
aquele que,por meio de policiais militares, entrou em sua casa quebrando sua televisão e
queimando o sofá porque ele produzia funks que falam da realidade da Penha e que foram
nomeados como “Proibidão” ou “Apologia”, tal como relatado em entrevista a nós concedida.
Carregando na pele as marcas desse Estado opressor que criminaliza o funk, DJ Byano
nos mostrou uma cicatriz resultante de queimadura de cigarro feita em seu corpo por policiais

9
Entrevista realizada em 20 de maio de 2014.
10
Entrevista realizada em 20 de maio de 2014.

1186

V V
que sistematicamente o interrogavam e perseguiam devido a sua produção funkeira. E assim,
durante entrevista para nossas pesquisas, ao mesmo tempo que fala das perseguições,
violações e limitações sofridas, afirma que está feliz com o retorno do Baile da Chatuba.
Como ele mesmo diz, se referindo ao cerceamento do repertório musical a ser executado num
baile apoiado oficialmente pelo Estado, “se tem que ser light, será light. Temos que dançar
conforme a música”.

O Baile da Chatuba: um estudo de caso


O Baile da Chatuba caracterizava-se pelo seu imenso e fiel público. Em entrevista para
nossa pesquisa, DJ Byano afirmou que era comum ter mais de 20 ônibus cheios que
chegavam de vários lugares para curtir o baile. As caravanas de funkeiros vinham não só do
Rio, mas de Minas Gerais, São Paulo e segundo ele até Bahia. Em média, a cada sábado, entre
3 e 5 mil pessoas lotavam a quadra e seus arredores.
Além do grande público, uma característica marcante do baile da Chatuba era o seu
repertório. Os DJ’s tocavam músicas que falavam abertamente do cotidiano da favela, os
chamados “proibidões”, com menções elogiosas ao Comando Vermelho e suas lideranças
criminosas locais. O baile também contava com a presença de seus principais patrocinadores,
os comerciantes do varejo da droga, que ficavam nos camarotes e se manifestavam no clássico
momento no qual o DJ tocava o sampler “Quem quer dinheiro?”, com a voz do apresentador
televisivo Silvio Santos, e notas de dinheiro eram jogadas na quadra para o público.
Como observamos com nossos próprios olhos e o DJ Byano explicou, as casas no
entorno da quadra receberam pequenas reformas para que virassem também comércios onde
poderiam ser vendidas bebidas e comidas aos frequentadores do baile. Assim, como disse
nosso interlocutor, com o fim do baile muitas pessoas mudaram-se ou fecharam esses
pequenos negócios. Além do importante impacto cultural, o fim do “Maracanã do Funk”
gerou um grande impacto financeiro.
De acordo com Helcimar Lopes, produtor cultural que junto com o DJ Byano escreveu
o projeto do Baile da Chatuba para o edital do funk, a quadra onde era realizado o baile tem
cerca de 40 anos e sempre foi um local onde a comunidade realizava ações recreativas e
eventos, bastando apenas acordar com a Associação de Moradores do Parque Proletário.
Recentemente, esse espaço sofreu transformações importantes para as quais a comunidade
não foi consultada e sequer avisada.

1187

V V
Como denunciou Helcimar em seu perfil nas redes sociais, os camarotes da quadra da
Chatuba foram ocupados pela UPP, que levantou paredes e deixou apenas pequenas janelas,
posteriormente pintando tudo com as cores da Polícia Militar: azul e branco. Tal episódio
ocorreu finais de 2014, o Baile da Chatuba já havia ganho o edital, faltando apenas executá-
lo. Desse modo, os camarotes que antes eram usados pelos “traficantes”, agora são ocupados
pela PM, deixando clara a demarcação territorial de poder. Como parte dessa disputa
territorial simbólica, jovens moradores picharam os “camarotes da UPP” com tinta preta e
inscrições de apoio ao Comando Vermelho. Por sua vez, policiais escrevem a sigla TCP
(Terceiro Comando Puro, facção rival), em mesas de cimento que circundam a quadra.Nessa
disputa de poder simbólico, DJ Byano, entende que as UPPs proíbem eventos culturais como
uma espécie de castigo para a população, demarcando assim de modo muito concreto quem
são os novos donos do local.
Nesse contexto podemos compreender as dificuldades que Byano e Helcimar tiveram
de enfrentar na execução de seu projeto. Apesar de contar com o selo da Secretaria de
Cultura, eles foram obrigados a adiar a sua execução por meses, pois o comandante da UPP
local, policial tido como rígido e evangélico fervoroso que “odeia funk”, se recusava a
conceder autorização para tal, mesmo com toda a documentação apresentada e com a verba do
edital depositada na conta do proponente.
Conversando sobre o processo de submissão do projeto ao edital, Helcimar nos relata:
Aí veio a coisa do edital e fomos fazer o edital, sabe, aquilo foi uma esperança muito grande.
Poxa, agora a gente vai entrar na lei, a decisão vai vir de cima, e a gente tava achando que ia ser assim
“Opa, se a Secretaria de Cultura autorizou, a Secretaria de Segurança vai abrir as pernas e vai deixar
fazer...” esse era o nosso pensamento, então escrevi o edital , sabe, caprichei, passamos, entregamos
todos os documentos, a pessoa tem que dar a certidão até da alma pra 20 mil reais só, então fomos
selecionados, saímos no Diário Oficial, aí veio a primeira reunião “ Olha gente, a gente vai autorizar o
baile mas a Chatuba é emblemática, o Complexo do Alemão é emblemático mais ainda. Temos que ter
o ok da Secretaria de Segurança que não foi dado.” Então eles ficam protelando, o primeiro momento
era as Eleições, o Baile era pra acontecer em Junho, pra vocês terem noção, o dinheiro já está na conta,
o dinheiro já foi depositado na conta11

A protelação na execução do projeto, através da não autorização da realização do


baile, somado ao baixo valor financiado pelo edital, são fatores desestimulantes da produção
cultural local. As exigências infindáveis e constantes negativas resultam em desestímulo e
“aceitação” das regras impostas pelo poder público, como nos detalha Helcimar:

11
Entrevista com Helcimar, produtor cultural do Complexo do Alemão e co-autor do projeto do baile da Chatuba
contemplado pelo edital da SEC/RJ de 2013.

1188

V V
Então o baile do Coroado acontece nesses moldes, então eles querem
que a gente se espelhe no baile do Coroado, mas o baile do Coroado sempre
foi aos Domingos, e na Chatuba, o Maracanã do funk sempre foi aos
Sábados, e se você fizer nos domingos você já perde a característica, eu falei
pro Byano, você meio que já perde tudo, então a gente tá meio que numa
canoa sem (?), aí eu falei “Cara, então vamos fazer do jeito deles...” então a
gente entrou em acordo e vamos fazer.12

O baile do Coroado, realizado na Cidade de Deus é apresentado pela Secretaria de


Estado de Cultura (SEC/RJ) como sendo um modelo a ser seguido pelos demais. As
características locais em relação aos dias, horários, dentre outros aspectos é ignorada.Os
bailes contemplados pelo edital da SEC/RJ deveriam seguir algumas diretrizes que foram
explicitadas diretamente aos proponentes:
foi tudo muito conversado não só com a gente, mas com todo mundo em aberto, então “ Olha,
acabou essa coisa de baile de apologia a sexo, drogas, ou tráfico, o baile tem que ser light.” Tem que
ser dessa forma.13

O reconhecimento do funk como expressão cultural financiável pela verba pública


veio acompanhado de movimentos de contenção e adequação. O repertório musical, a
definição do dia e horários são exemplos das regras que devem ser seguidas para que os
projetos sejam executados. Ironicamente, assim como o estádio Maracanã se “adequou” às
chamadas “regras internacionais de segurança”, perdendo para isso sua tradição com os
torcedores da “geral”, o “Maracanã do funk”também perdeu várias de suas características “em
nome da segurança”.
O retorno do Baile, produto aprovado pelo edital da SEC/RJ, está agendado para o dia
07/03/2015.Olhares ansiosos aguardam esta data. Funkeiros, moradores, pesquisadores,
funcionários do governo, todos estaremos lá, aguardando o Baile da Chatuba ressurgir
financiado pelo poder público no contexto pacificado.

Considerações finais
“O funk não é modismo, é uma necessidade, é pra calar os gemidos que existem nessa
cidade”
MC Bob Rum, Rap do Silva

12
Entrevista com Helcimar, produtor cultural do Complexo do Alemão e co-autor do projeto do baile da Chatuba
contemplado pelo edital da SEC/RJ de 2013.
13
Entrevista com Helcimar, produtor cultural do Complexo do Alemão e co-autor do projeto do baile da Chatuba
contemplado pelo edital da SEC/RJ de 2013.

1189

V V
Como indicam os versos do MC Bob Rum, o funk pode ser entendido como uma
necessidade cultural da cidade. Neste artigo buscamos usá-lo como dispositivo para pensar o
que o discurso em prol da segurança pode legitimar em termos de políticas culturais e também
no que diz respeito à relativização de direitos culturais. A questão é: é possível submeter
direitos culturais à lógica de uma política de segurança pública militarizada e focada na
repressão das camadas populares? Políticas públicas democráticas podem conviver com
ocupações territoriais armadas com poderes discricionários atribuídos a seus comandantes? É
possível propor políticas culturais dialógicas em contexto de cerceamento da liberdade de
expressão?
Outro ponto importante é compreender a quem e a que interessa a criação de
bailes modelo, vigiados e rigidamente controlados, bem como o impacto dessa padronização
no campo da diversidade cultural. Compreendemos que uma política cultural emancipadora
dialoga com a diversidade, garantindo condições para a produção cultural na diferença.Por
exemplo, criando espaços acusticamente preparados para receber eventos sem incomodar a
população ao redor. Como afirmam muitos profissionais do funk que escutamos em nosso
trabalho de campo: “se o Estado não atrapalhar, ele já ajuda”.

Referências bibliográficas

FACINA, Adriana & PASSOS, Pâmella.Funk pacificado? Reflexões sobre a implementação das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) e seus impactos culturais. In: Derechos Humanos,
Democracia y Sistema Económico: mitos y realidades”. No prelo.

______________. Cartilha cultura popular e direitos humanos. Instituto de Defensores de Direitos


Humanos (DDH). Rio de Janeiro,2014.

LOPES, Adriana de Carvalho. Funke-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca. Rio de
Janeiro: Bom Texto: FAPERJ, 2011.

PASSOS, Pâmella; DANTAS, Aline & MELLO, Marisa S. Política Cultural com as Periferias:
práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro: IFRJ,2013.

RODRIGUES, André & SIQUEIRA, Raíza. As Unidades de Polícia Pacificadora e a Segurança


Pública no Rio de Janeiro. In: Comunicações do ISER, nº 67, ano 31-2012.

1190

V V
A DIVERSIDADE EM FOCO
POLÍTICA CULTURAL E PATRIMÔNIO IMATERIAL NA CIDADE DE CURITIBA
Patrícia Martins1

RESUMO: A política de preservação e salvaguarda dos bens culturais imateriais no Brasil é


muito recente e se encontra em processo de expansão. Este artigo busca refletir sobre os
impactos da política pública direcionada para o patrimônio cultural na cidade de Curitiba, no
âmbito específico dos chamados patrimônios intangíveis. Propõe-se a discussão sobre o seu
alcance, sua execução e seus desdobramentos, tendo como objeto de estudo diferentes
modalidades de projetos executados através do edital de “Registro de Patrimônio Imaterial na
Cidade de Curitiba”, lançado pela Fundação Cultural no ano de 2005. As pesquisas e projetos
contemplados pelo referido Edital, da forma em que estão sendo desenvolvidos, se
configuram como instrumento de normatizações e de “objetivações da cultura” (CUNHA,
2009), direcionados a manifestações que historicamente se mantinham à margem destes
processos. Tal compreensão evidencia as formas pelas quais lugares, pessoas e objetos
tornam-se objeto de patrimonialização, trazendo à tona imagens de uma cidade em busca de
suas nuances.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Imaterial, Política Cultural, Diversidade Cultural.

“(...) assim que o estrangeiro chega à cidade desconhecida e lança o


olhar em meio às cúpulas de pagode e clarabóias e celeiros, seguindo o
traçado de canais hortos depósitos de lixo, logo distingue quais são os
palácios dos príncipes, quais são os templos dos grandes sacerdotes, a
taberna, a prisão, a zona. Assim-dizem alguns - confirma-se a hipótese de
que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de
diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades
particulares.” (Ítalo Calvino)

A cidade, de acordo com o olhar de Ítalo Calvino, sempre pode nos surpreender. A
partir das diferentes perspectivas, olhares e situações em que a observamos, uma nova
paisagem urbana pode ser revelada. Em Curitiba, a cidade se desvela lentamente aos olhos
dos expectadores. Se antes, por conta de uma visão oficialmente construída, ela se oferecia
harmônica, unilinear e estável em seu ritmo, contemporaneamente se refaz e se revela em suas
contradições, suas formas e sua multiplicidade. Evidenciados por meio de uma produção
cultural que se faz dinâmica e se renova a cada ano, os olhares sobre Curitiba traduzem a
inquietação de uma cidade que não se basta em si mesma; em vez disso, busca ampliar suas
definições alcançando a “cidade das diferenças” preconizada por Calvino.

1
Doutoranda em Antropologia Social/UFSC. Docente do Instituto Federal do Paraná.
patricia.martins@ifpr.edu.br

1191

V V
Neste artigo, o objetivo é refletir a respeito dos impactos da política pública
direcionada para o patrimônio cultural na cidade de Curitiba, no âmbito específico dos
chamados patrimônios intangíveis. Tendo em vista que esta é uma política em construção,
propomos a discussão sobre o seu alcance, a sua execução e os seus desdobramentos,
construindo um diagnóstico como forma de instrumentalizar futuras ações2 .
Entendemos política cultural como um conceito amplo e estruturante deste cenário. Na
história do Estado nacional brasileiro as políticas culturais se apresentam, como afirma
Rubim, “pelo acionamento de expressões como: ausência, autoritarismo e instabilidade”
(2007: 101). No caso das políticas patrimoniais, voltadas aos bens de natureza imaterial, no
município de Curitiba, é possível afirmarmos que estas se exprimem até este momento pela
instabilidade, considerando a incipiência de tais ações.
Inicialmente, se faz necessário demonstrar qual o teor do conceito de política cultural
ao qual acionamos para desenvolver a análise deste artigo. Compreende-se, conforme Nestor
Garcia Canclini (2005), que as ações envolvendo políticas culturais envolvem
necessariamente uma multiplicidade de agentes, entre eles: o Estado, formulador da política
pública, os gestores locais, quem aplica esta política, e os próprios grupos aos quais se
destinam estas ações. Deste modo, é essencial para o bom desenvolvimento de políticas
culturais a compreensão desta complexidade. Sobretudo, em relação ao fato de que estas,
diferenciam-se de tantas outras políticas públicas pela dimensão de seus objetos, que se
caracterizam pelo caráter processual e simbólico. Assim, para Canclini:
Los estúdios recientes tienden a incluir bajo este concepto al
conjunto de intervenciones realizadas por el estado, las instituciones civiles y
los grupos comunitários organizados a fin de orientar el desarrollo
simbólico, satisfacer las necessidades culturales de la población y obtner
consenso para un tipo de ordem o transformación social. Pero esta manera de
caracterizar el âmbito de las políticas culturales necesita ser ampliada
teniendo en cuenta el caráter transnacional de los procesos simbólicos y
materiales em la actualida. (2003: 78)

2
Os dados analisados para a construção deste artigo partem de uma documentação recolhida junto a Fundação
Cultural de Curitiba, mais exatamente os relatórios de pesquisa apresentados pelas equipes dos projetos
contemplados ao longo das edições do edital, e ainda, os produtos finais desenvolvidos por estas ações.
Juntamente com os relatórios, buscamos também contatar os proponentes com vistas a realização de entrevistas,
questionando-os sobre o desenvolvimento e desdobramentos de suas propostas, bem como, seus
posicionamentos junto aos grupos pesquisados. E, ainda tornou-se fundamental as filmagens dos Seminários de
Encontros de Patrimônio Imaterial, evento anual realizado pela mesma Fundação, quando estas foram
localizadas, para identificar as práticas e discursos que envolveram estes projetos. Porém, ainda assim, destaca-
se a dificuldade em encontrar dados mais sistematizados referentes a um histórico de desenvolvimento destas
ações.

1192

V V
A natureza simbólica e a complexidade das redes de mediação formadas em torno
destes “bens culturais” nos conduzem também a problematizar a noção puramente
“preservacionista” e “instrumental”, que em alguns casos pode estar implícita nas definições
destas políticas culturais. Para Danilo Miranda, diretor regional do Sesc:
Essa natureza híbrida das culturas deve ser respeitada pelas políticas
culturais, respeito este que deve atender os aspectos subjetivos do
imaginário, da sociabilidade das artes, e ao mesmo tempo, objetivos das
práticas organizacionais e dos processos educativos, nos quais a difusão se
inclui. Os produtos culturais não devem ser tratados como mercadorias
consumíveis. São bens/riquezas diferentes, que podem levar à autonomia (...)
desde que não sejam banalizados e tratados na mesma dimensão comercial
de outros produtos (2005:75- 76).

Para compreendermos o caráter que a política cultural assume em Curitiba, tomamos


como objeto de estudo as ações voltadas para o patrimônio imaterial, através da execução de
projetos direcionados ao edital de “Registro de Patrimônio Imaterial na Cidade de Curitiba”,
lançado pela Fundação Cultural por meio do Fundo Municipal de Cultura no ano de 2005.
Inseridas em um contexto mais amplo de promoção dessa modalidade de patrimônio, tais
ações referem-se a novas formas de se apreender a cidade, que levam em consideração toda
sua complexidade. Porém, as questões continuam, e as perguntas se colocam: Quais são essas
imagens da cidade, e com base em quais perspectivas elas estão sendo construídas?
Tomando como base as produções realizadas por meio do referido edital, podemos
perceber que uma determinada representação da cidade é lançada. Partindo dessa observação,
acreditamos que a afirmação de Michel de Certeau traduz o nosso pensamento de que: “a
política não garante a felicidade nem confere significado às coisas. Ela cria ou recusa
condições de possibilidades. Interdita ou permite, torna possível ou impossível” (1974: 214).
Deste modo, os rumos em que os diferentes projetos contemplados por este edital vão
tomando, demonstram um campo de possibilidade e de direções que a política pública para
cultura do município poderiam tomar, no entanto, como veremos, não necessariamente se
concretizaram como um corpus sistemático de atuação.
Devido à sua relevância, as formas de expressões denominadas “patrimônio imaterial”
passaram a nortear os debates, sobretudo em congressos e convenções promovidos em nível
mundial pela Unesco e com abrangência nível local pelo Crespial (Centro Regional para a
Salvaguarda do Patrimônio Cultural imaterial na América Latina) e pelo próprio Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –Iphan. Tais discussões incluem questionamentos
relativos à sua pertinência e legitimidade como nova categoria a compor as agendas das
políticas públicas na área da cultura. Assim como no âmbito mundial, o conceito de

1193

V V
“patrimônio”, que hoje abrange as esferas material e imaterial e tem reconhecida a sua
condição de intangível, não surgiu no Brasil sem polêmicas. As questões suscitadas em torno
do debate sobre o patrimônio são extremamente complexas e não têm uma resposta pronta e
rápida, já que esta é construídas na prática, no “fazer-se” das manifestações culturais e em sua
relação com as instituições governamentais e com o mercado de bens simbólicos.
As iniciativas institucionais em torno da categoria de patrimônio cultural em nosso
país podem ser datadas a partir de 1937, com o Decreto-Lei no 25/1937. Naquele este
momento, sob forte influência de um projeto modernista de política cultural, foi fundada a
prática do tombamento como forma de preservar os bens culturais que compõem a nação.
Possuidora de caráter fragmentário e reduzido quanto ao seu potencial semântico, a concepção
de patrimônio no Brasil, ainda recentemente, era norteada por valores históricos e estéticos.
Apesar de Mário de Andrade já ter apontado, ainda naqueles primórdios, para o caráter
processual e dinâmico e também para a dimensão imaterial dos bens culturais, permanecemos,
por muito tempo, privilegiando o patrimônio de “pedra e cal” na prática da preservação.
Dessa forma, “a imagem de cultura brasileira produzida pelas instituições oficiais era, além de
restrita, morta, e tratada como mero testemunho de épocas pretéritas ou como expressões
artísticas individuais” (Londres: 2005, 151).
A partir das reelaborações conceituais acerca do patrimônio cultural pela qual passou a
Unesco – ao instituir os Programas Tesouros Humanos Vivos e Proclamação das Obras do
Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade – e também com a aproximação entre
antropologia e as políticas culturais, iniciada nos anos 1970, observamos uma tendência para
a ampliação da noção de patrimônio pelo órgão responsável por esta área no Brasil: o Iphan.
Notadamente, passando-se a se considerar os bens culturais em sua dimensão imaterial,
privilegia-se e institucionalmente assume-se o olhar para o país a partir de sua “diversidade”3.
O Brasil tem sido um dos países pioneiros quanto à criação e à aplicação de
metodologias específicas para a identificação, a documentação e o sequente registro dos bens
de natureza imaterial. Apesar de recentes, as ações desenvolvidas em torno desta categoria de
patrimônio já são passíveis de análise. Além disso, é importante ressaltar que todo o discurso

3
Para Alencar (2010) esta nova abordagem institucional para o campo do patrimônio se deve a profundas
alterações no interior do próprio MinC, que após a gestão do então ministro Gilberto Gil passa a planejar as
políticas culturais sob o viés antropológico. Em seu discurso de posse, Gilberto Gil afirma que: “(...) desta
perspectiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada.
O Ministério deve ser como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e
fazem, do Brasil, o Brasil. Assim, o selo da cultura, o foco da cultura, será colocado em todos os aspectos que a
revelem e expressem, para que possamos tecer o fio que os unem”(apud 2010: 54).

1194

V V
em torno dessas políticas começa a ser observado nas práticas aplicadas em inúmeros
processos de inventários espalhados pelo país, mesmo através da efetivação de determinados
registros de patrimônio imaterial dentro dos célebres livros4.
Em relação às políticas patrimoniais desenvolvidas em âmbito federal, o edital de
Identificação e Registro de Patrimônio Imaterial em Curitiba guarda suas devidas
especificidades. Primeiramente, o termo “registro” utilizado neste edital não remete a nenhum
estatuto jurídico, como acontece no caso federal. Aqui, a ideia refere-se muito mais à
documentação, e mesmo ao mapeamento de expressões do patrimônio imaterial, do que à
consolidação de uma legislação e à normatização de tais patrimônios. Apesar de utilizar as
mesmas categorias e os mesmos conceitos acionados pelo Iphan, o edital de registro em
Curitiba apropria-se destes à sua maneira.
Neste quadro, a categoria patrimônio é diversamente classificada. O entendimento do
Iphan e o da Fundação Cultural de Curitiba são construídos por caminhos diferenciados,
visando metas particulares. Tomando como base esta constatação, podemos afirmar que o
patrimônio, além de se configurar como uma expressão emblemática de um grupo social ou
nação, é também um processo de construção e reconstrução social e simbólica realizado a
partir de experiências individuais e coletivas. Com a consolidação dessas políticas que
envolvem o patrimônio, diferentes níveis de comunicação são acionados, inserindo
instituições, atores sociais, pesquisadores e agentes governamentais em um mesmo processo
de negociação. Dentro dessa rede, é possível compreender as dimensões que abrangem o
conceito de patrimônio. Tal compreensão evidencia as formas pelas quais lugares, pessoas e
objetos tornam-se objeto de patrimonialização, em diferentes contextos, trazendo a tona
imagens de uma cidade em busca de suas nuances.

“Em busca da Curitiba perdida”: memória e identidade através do edital de


identificação e registro do patrimônio imaterial
Se o conceito de patrimônio passou mundialmente por um processo de revisão e
ampliação, no município de Curitiba essa virada epistemológica em torno de tal conceito não
passou despercebida. No ano de 2005, a Fundação Cultural de Curitiba lançou, por meio do
Setor de Patrimônio Cultural, o primeiro edital voltado para a temática do patrimônio

4
De acordo com a classificação proposta pelo Decreto 3551/2000, os livros dividem-se entre as categorias de:
saberes (conhecimentos e modos de fazer em geral, culinária, artesanato, arquitetura, etc.), formas de expressão
(manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas), lugares (mercados, feiras, santuários, praças e
demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas) e celebrações (rituais e festas em
geral).

1195

V V
imaterial da cidade. Segundo este documento, o “EDITAL IDENTIFICAÇÃO E
REGISTRO DO PATRIM NIO IMATERIAL” regulamenta as inscrições para a seleção
de projetos no Programa de Apoio e Incentivo à Cultura – PAIC, através do Fundo Municipal
da Cultura, com a finalidade de conceder apoio financeiro para a produção de projetos de
pesquisa, preferencialmente inéditos, tendentes à identificação, registro e divulgação de bens
culturais de natureza imaterial, representativos da diversidade cultural e social de Curitiba.
(Edital de Identificação e Registro do Patrimônio Imaterial, 2005)
Com este edital, o município inicia sua atuação junto aos bens de natureza imaterial, se
alinhando a uma política em curso no âmbito federal, e também, as novas propostas
metodológicas que tangem a lida com o patrimônio. Neste artigo as seis primeiras edições do
“Edital de Identificação e Registro de Patrimônio Imaterial”. Nestas edições, mais de 130
propostas foram apresentadas, no total 19 projetos foram contemplados com a viabilização de
recursos financeiros para a sua realização .
Os temas dos projetos selecionados por este edital tratam de uma diversidade de
objetos, enfoques metodológicos e produtos culturais, revelando uma cidade múltipla e cheia
de nuances raciais, de gêneros e crenças, de saberes e modos de expressão agora desvelados.
Na análise de toda essa produção voltada ao patrimônio imaterial de Curitiba – em suas várias
dimensões, em suas formas e conteúdos – com base nas propostas, nas pesquisas e nos
resultados alcançados, é possível compreender de que modo a noção de “identidade cultural”
da cidade tem sido construída e constantemente manipulada.
Pode-se afirmar que o tema da “identidade cultural” perpassa em diferentes níveis o
edital de Identificação e Registro do Patrimônio Imaterial. Para Stuart Hall (2006) a utilização
da noção de identidade no mundo contemporâneo se configura como uma “celebração
móvel”, construída dialogicamente no contexto das múltiplas e variadas relações sociais. Em
muitos casos, o uso da noção de identidade no contexto do patrimônio cultural se corrobora
em instrumento de ação política. Para Tamaso (2006) esse fenômeno se expressa em dois
fatores: por um lado a apropriação do ‘discurso identitário’ pelos movimentos sociais que
passam a utilizá-lo como estratégia de obtenção de ganhos políticos e sociais efetivos; e, por
outro, o seu reconhecimento institucional, expresso na formulação de ‘políticas de
identidade’.
“Assim, chama-nos a atenção como estas estratégias de formação e/ou fortalecimento
de identidade incluem a revisão no conceito de autenticidade, o resgate do passado, a

1196

V V
reconstrução das narrativas que erigem a memória e, por fim, um novo significado para o que
seria patrimônio e o que deveria ser visto como patrimônio” (Tamaso: 2006, 19).
Analisando a construção de uma imagem de Curitiba a partir do “mito da cidade
modelo” no período da década de 1970 a 1990, o historiador Dennison de Oliveira afirma
que:
“Não é preciso muito esforço para se perceber que o essencial da
política de patrimônio histórico e de promoção das atividades culturais se
remetia recorrentemente a uma parte específica da memória e da cultura
imigrante. Essa parte era aquela de origem européia (...). Claro que a
celebração dos valores alemães, poloneses e italianos – os mais privilegiados
da política vigente – também fazia parte da modernização urbana pela
associação recorrentemente feita na cultura nacional entre progresso e
imigração européia” (2000: 56).

Estas mesmas inquietações movem muitos dos projetos desenvolvidos através do


Edital de Identificação e Registro. Os debates em torno das identidades curitibanas, assim, são
explicitados nos relatórios dos diferentes projetos contemplados pelo edital. Afinal, quais são
as facetas da “cidade sorriso”? Como se dão os processos de construção identitária localizados
além das referências brancas e europeizadas, divulgadas ao longo do tempo pelo poder
público? E de que maneira estas relacionam- se com aquelas que ainda integram esse universo
simbólico?
Através da análise dos projetos “Pra ver a umbanda passar”, de Luciana Moraes,
“Curitiba entra na roda”, de Miguel Novicki e “FrEstas do Carnaval”, de Selma Baptista, é
possível perceber movimentos reflexivos que apresentam e questionam a uniformidade dessa
cultura curitibana avessa a estrangeirismos locais. Supremacias étnicas são problematizadas,
em um jogo de desvelar o que, insistentemente, é tachado como invisível. Em “FrEstas do
Carnaval”, aponta-se que a partir da análise do evento ‘carnaval’ em Curitiba é possível
pensar que:
“(...) a sociedade envolvente também se coloca como passível de
objeto de reflexão, considerando as maneiras com que os sujeitos das escolas
de samba apontam descontentamentos e falhas da ‘cidade’, em que ‘níveis
mais obscuros’ da cidade de Curitiba vêm a tona. Num questionamento
reflexivo, sensitivo, estético em choque com a realidade cotidiana, com a
‘cidade oficial’(...). As manifestações populares, mais especificamente o
carnaval, na sua dimensão simbólica, colocam em cheque a estrutura social
burguesa e elitizada, construída há muitos anos e ainda recrudescida em
algumas camadas sociais, que se expressam nas representações sobre a
cidade. Viria deste fato estrutural a construção de um ethos ‘silencioso’, de
‘bom gosto’, avesso às bagunças de rua?”(2009: 05).

1197

V V
No relatório de pesquisa produzido no projeto da socióloga e doutoranda em História,
Luciana Patrícia de Morais, a pluralidade étnica é trazida à tona, em referências a elementos
tidos como marginais. Ressaltamos que os resultados desta pesquisa permitem dar visibilidade
à diversidade da composição étnico-cultural de Curitiba, trazendo à tona elementos que até o
momento tiveram papel marginal quando se pensa na memória coletiva curitibana (2006: 16).
Nesse contexto, a proposta da referida pesquisa é revelar, por meio de uma cartografia, de
dados estatísticos e também das narrativas e registros audiovisuais dos rituais umbandistas,
práticas culturais invisibilizadas.
As discussões sobre as relações étnico-raciais, religiosas e sobre a pobreza muitas têm
levado em conta as características da organização social e esquecem a herança histórica e
cultural da população, além de não enxergarem possíveis formas institucionais historicamente
determinadas de mecanismos de saberes e práticas culturais importantes para a cidade. Os
estereótipos levantados sobre a Umbanda e seus adeptos acabaram se constituindo muitas
vezes com a representação do real. Neste sentido, atentamos que as pesquisas de campo
podem mostrar estratégias singulares de organização e marcas importantes sobre a cultura
local (2006: 16).
Essas estratégias vêm à tona não apenas pelo viés de registros e levantamentos –
acadêmicos ou promovidos pelo poder público – mas também pelas ações desencadeadas por
essas iniciativas, que revelam o potencial de articulação de grupos sociais antes relegado às
margens. No entanto, como citamos anteriormente, a via das construções identitárias funciona
em diferentes sentidos, e as problematizações acerca das ideias sobre “ser curitibano” tratam
também das temáticas que se aproximam, mas não necessariamente acatam, as visões oficiais
sobre essa cultura. Neste conjunto, destacam-se os projetos “Broas”, de Juliana Reinhart, e
“Música Ucraniana”, de Paulo Renato Guérios. O primeiro está inserido, conforme a
classificação do Iphan, na categoria Formas de Saberes, e traz, em sua proposta de pesquisa,
ressignificações de uma cultura imigrante.
Através da broa de centeio podemos obter a trajetória de alguns que fizeram e fazem a
história desta cidade, podendo elegê-la como representante da cultura, memória e história da
sociedade de Curitiba. Seu fazer e seu comer está enraizado no cotidiano da comunidade e
seus descendentes de imigrantes em Curitiba. A “comunidade”, como propõe este estudo,
compartilha e dinamiza referências culturais de uma memória oficial (2007: 23).
Os sentidos dados à história, à memória e a determinados elementos da cultura local,
refletem, portanto, dimensões políticas do grupo e sua organização social, articulando-as a

1198

V V
ações do poder público. Como afirma Cunha (2009), “a ‘cultura’, uma vez introduzida no
mundo todo, assumiu um novo papel como argumento político e serviu de ‘armas aos fracos’”
(p. 312). Portanto, a cultura como “argumento político”, nesse contexto, é material de ação e
reflexão também para pesquisadores, sejam eles atuantes na academia ou em outros setores.
Em entrevista que nos concedeu por ocasião do levantamento feito junto aos empreendedores
dos projetos, Paulo Renato Guérios, antropólogo e professor da Universidade Federal do
Paraná – UFPR, comentou sobre a relação entre os conceitos utilizados na construção dos
editais e o trabalho desenvolvido pelos pesquisadores contemplados:
Então temos uma situação em que os conceitos empregados para
levar a cabo políticas culturais são de fato uma definição de gênero, ou seja,
definem todo um regime de apreciação e valoração para as manifestações
registradas, e indicam para elas uma rede específica de circulação. Os
empreendedores com menor acesso à crítica da área em geral “compram”
estes conceitos e entregam aquilo que o gênero demanda: uma manifestação
vista e enquadrada como coletiva, homogênea, ahistórica. Ou seja: o
conceito ainda exige uma maior reflexão analítica.

Mostra-se necessário, então, que o processo de elaboração de políticas públicas


relativas ao patrimônio – neste caso, especificamente do patrimônio imaterial – seja tema de
produção crítica não apenas dentro do setor responsável por sua gestão, mas também na
academia e nos circuitos articulados pelos detentores dos bens pesquisados. É preciso, ainda,
que se proponham ações nas quais as reflexões sejam produzidas de forma colaborativa.
Sublinhamos, no entanto, que nestes encontros de perspectivas deve-se lembrar que todas elas
são “formas de procurar entender e agir sobre o mundo” (CUNHA, 2009: 302), e que quanto
mais a sério levarmos o discurso de nossos interlocutores, tão mais consistente serão a nossa
produção crítica e as possíveis ações por ela propostas.
Portanto, ao tratarmos da esfera municipal, o que podemos ressaltar, ao analisarmos
com atenção o lançamento dos editais de identificação e registro de patrimônio imaterial, diz
respeito a uma virada, uma significativa mudança na forma de se olhar para Curitiba. A
cidade, até pouco tempo atrás, era percebida através de determinadas construções e de forma
unilateral; no entanto, com a sua visualização a partir de diferentes perspectivas, passamos a
vislumbrar atores, sonoridades, sotaques, espaços e práticas que até então não faziam parte da
caracterização de uma “identidade curitibana”. Ao adentrarmos na memória circense, nos
terreiros de umbanda, nas sonoridades jazzísticas, nos ofícios de artesãos e na sociabilidade
sertaneja, entre outros espaços de atuação e memória social, percebemos uma cidade que se
faz múltipla e híbrida, com a criação de uma visibilidade de aspectos culturais que antes eram,
de certa forma, negados.

1199

V V
Olhares sobre a cidade: pesquisa, mediação e patrimônio imaterial em Curitiba
Nas atuais políticas públicas voltadas para o patrimônio imaterial, constatamos não
somente a importância, mas também a necessidade de mobilização dos atores sociais
envolvidos na produção de bens culturais. Em circunstâncias normalmente marcadas pela
complexidade, os valores atribuídos ao bem cultural, quando entram em disputa, revelam um
processo de hierarquização, no qual um valor será selecionado como mais importante e mais
legítimo; os outros, por sua vez, permanecerão como seus opostos ou complementares.
Como pudemos observar, a partir do processo de seleção, uma determinada
representação da cidade e de seus habitantes se revela e vem à tona: questões étnicas e de
grupos periféricos são evidenciadas, apesar de esses mesmos grupos ainda permanecerem
somente na condição de “objetos” de estudo. Ozanam Aparecido de Souza, técnico da
Fundação Cultural de Curitiba responsável pelo acompanhamento dos projetos destinados a
este edital, afirma: havia no início uma expectativa de que os grupos produtores se
apropriassem deste edital. Porém, tal expectativa não se concretizou, e no caso dos projetos
desenvolvidos no âmbito do edital de patrimônio imaterial em Curitiba, constatamos a
participação maciça de pesquisadores acadêmicos, sobretudo das áreas de História e Ciências
Sociais, na frente da execução destas ações.
Desenvolvidos, em sua maioria, na fronteira entre a História e Antropologia, os
projetos executados através deste Edital transitam entre metodologias que vão da história oral
à etnografia. Como nos fala o relatório do projeto “Música Subterrânea”:
“Uma vez que o objeto desta pesquisa é focalizado a partir da noção
de patrimônio imaterial, que de maneira sintética e simplificadora diz
respeito aos bens culturais de natureza intangível e, portanto, aos
significados e imaginário, é preciso nos situar metodologicamente na
fronteira e no entrecruzamento entre a História e a Antropologia. Neste
sentido os métodos de coleta e interpretação dos dados, bem como da análise
das fontes utilizadas ao longo do trabalho se situaram nessa zona de
fronteira”(2007: 06).

De certo modo, estes pesquisadores atuam como uma espécie de mediadores,


acelerando a comunicação e aproximando os detentores dos bens imateriais e as políticas
públicas; são intermediários entre mundos diferenciados, tradutores das diferenças culturais,
agem como intérpretes, transitando entre diversos segmentos e domínios sociais (VELHO,
1994:81). Entretanto, essa mediação não se faz sem contradições, pois o conflito é inerente à
interação entre atores diferenciados, e esta, por sua vez, não é sinônimo de relação pacífica e
harmoniosa, assim, “a própria diferença implica possibilidade de contradição” (KUSHINIR e

1200

V V
VELHO, 2000). Porém, é fundamental reafirmarmos a importância da autoreflexão dentro
desses processos5.
Nesse contexto, entre mediações nem sempre bem-sucedidas e conflitos próprios ao
processo de patrimonialização, é que transcorre a execução destes projetos. Neles, segundo
Souza, recebe atenção especial o item da contrapartida social, espaço onde é possível garantir
alguma espécie de retorno aos grupos pesquisados. Por outro lado, os proponentes questionam
a possibilidade de uma aproximação maior com os grupos pesquisados, pois os recursos e o
tempo de pesquisa destinados a cada projeto inviabilizariam ações mais contundentes. De
modo geral, há um foco na elaboração dos produtos a serem entregues ao final das propostas
(ver gráfico 3), e os desdobramentos futuros das pesquisas ficam comprometidos pela falta da
continuidade das ações.
Torna-se, assim, fundamental refletirmos sobre os alcances destes processos. Porém,
no que diz respeito às políticas públicas, é preciso ter muito cuidado com os programas e
ações propostos para evidenciar e fomentar um bem cultural. Para Cláudia Márcia Ferreira, a
possibilidade de se implantarem ações muito bem intencionadas, mas que não traduzem numa
mudança efetiva de relação dos indivíduos com seu meio social é grande. (...) A preservação
de um bem de natureza imaterial está intrinsecamente ligada ao valor de seus significados
para seus atores sociais, o que depende de um processo amplo e complexo que envolve toda a
sociedade (2009: 3).
Nesse cenário, o conceito de “cultura” foi sendo constantemente utilizado para
legitimar esses processos de patrimonialização. Se por um lado “cultura” é um termo
complexo e caro à antropologia, por outro, grupos sociais diversos vêm se utilizando dele para
legitimar-se historicamente, o que indica que processos de patrimonialização têm, de forma
inerente, implicações políticas e de autorreflexão importantíssimas. Manuela Carneiro da
Cunha, no livro “Cultura com aspas”, trata do termo enquanto categoria analítica, traçando

5
Na antropologia, a discussão sobre a participação de pesquisadores em processos de patrimonialização já se
coloca com certa intensidade, haja vista a atuação desses pesquisadores em diversas ações institucionais, junto
aos detentores e mesmo em grupos de trabalho nos congressos da classe. Nesse caminho, Tamaso (2006) adverte
sobre a necessidade de o antropólogo relativizar a sua própria participação nesses processos, e coloca que “no
caso da participação do antropólogo no processo de inventário e registro de um bem cultural, para atender às
políticas públicas culturais, ele não está transitando em meio aos três setores: setor privado, Estado e
movimentos sociais. Ele entra como parte integrante de um dos setores. Ou seja, desloca-se do papel de
antropólogo que reflete sobre as políticas e práticas preservacionistas — e sobre os impactos destas para os
grupos portadores de bens patrimoniais — para o papel de antropólogo inventariante; o que não significa que a
participação do antropólogo seja nesse caso ilegítima. Deve, contudo, pautar-se pelo exercício da reflexão
sistemática sobre a prática antropológica, no sentido metodológico e teórico, como garantia de participação
responsável e ética” (2006: 18).

1201

V V
um panorama de seus diferentes usos discursivos e políticos, seja por pesquisadores
acadêmicos, pelo poder público ou por aqueles que a autora denomina como povos
periféricos.
Enquanto a antropologia contemporânea, como Marshall Sahlins apontou, vem
procurando se desfazer da noção de cultura, por politicamente incorreta (e deixá-la aos
cuidados dos estudos culturais), vários povos estão mais que celebrando sua “cultura” e
utilizando-se com sucesso para obter reparações por danos políticos. A política acadêmica e a
política étnica caminham em direções contrárias. Mas a academia não pode ignorar que a
“cultura” está ressurgindo para assombrar a teoria ocidental (2009: 312).
A proposição de que teorias acadêmicas e étnicas, embora caminhem em direções
contrárias, devam dialogar, nos faz pensar sobre a necessidade não apenas de uma
antropologia reflexiva, constituída pela seriedade com que encaramos o pensamento do Outro
– principalmente quando este é coincidentemente nosso interlocutor –, mas também de
políticas públicas, por assim dizer, mais voltadas para o debate entre os diferentes sujeitos.
Desse modo, há que se pensar sobre a multiplicidade de formas com as quais a cultura,
enquanto conceito, forma ou categoria analítica vem assumindo ao longo do tempo, vide a
diversidade de perspectivas encontradas nos projetos de pesquisa sobre o patrimônio imaterial
da cidade.

Apontamentos Finais
Intensas mudanças estão sendo vividas no mundo atual, uma delas relaciona- se com
os processos de globalização/mundialização, as quais implicam relevantes transformações
econômicas, políticas, sociais e culturais. Tais inovações, de diferente magnitude e impacto,
refletem nas instâncias da cultura. A dimensão cultural guarda estreita relação com a
problemática do patrimônio, e neste campo são significativas as mudanças produzidas acerca
de sua conceituação. Ao longo deste processo de análise ficou nítida a visibilidade que o
patrimônio obteve, como a multiplicação de espaços e instâncias institucionais destinadas ao
seu tratamento, o interesse cada vez mais crescente de pesquisadores acadêmicos sobre o
tema, sobretudo, dentro do próprio contexto analisado: a cidade de Curitiba.
Como visto, a política de preservação e salvaguarda dos bens culturais imateriais no
Brasil é muito recente e se encontra em processo de expansão. Sabendo da especificidade dos
objetos os quais essa política se aplica, deve-se lembrar que são processos culturais que não

1202

V V
podem ser engessados em normatizações, mas devem ser compreendidos e fomentados a
partir de suas próprias dinâmicas.
Os desafios são grandes, porém segundo a antropóloga Márcia Kersten, em sua fala na
IV edição dos Seminários de Patrimônio Imaterial realizados pela Fundação Cultural, os
projetos contemplados por este edital são importantes, na medida que:
(...) retiramos da nebulosa e trazemos estas manifestações à público, isso gera claro, um
reconhecimento social, permite também um reconhecimento entre os próprios grupos e acompanha a
dinâmica social. (2010).

Vale lembrar, que, anteriormente a formulação de tais políticas de patrimônio,


diferentes pesquisadores já vinham desenvolvendo trabalhos e/ou ‘inventariando’ diferentes
“bens culturais”, porém estas não se vinculavam diretamente a ações de políticas públicas que
acarretassem no reconhecimento, divulgação e fomento destas expressões (TAMASO, 2006).
Da forma em que estão sendo desenvolvidas, as pesquisas e projetos contemplados pelo edital
aqui analisado, ao contrário, se configuram também como instrumentos que são parte de um
conjunto de normatizações que envolvem a preservação do patrimônio cultural em Curitiba,
particularmente direcionados a manifestações que historicamente se mantinham a margem
destes processos. Mais uma vez, afirma-se a importância de se consolidarem enquanto
processos reflexivos, no sentido de contribuírem para a consolidação de políticas
participativas e inclusivas.
Ainda acompanhando a fala de Márcia Kersten no IV Seminário de Patrimônio,
observa-se que:
No município e no Estado não há registro de patrimônio imaterial,
como ocorre no âmbito federal (...) é como se fizéssemos inventários deste
patrimônio (...) nestes anos vêm se criando um saber e conhecimento muito
grande, um banco de dados sobre o que se produz em Curitiba de patrimônio
imaterial (2010).

Neste contexto, vale ressaltar que política pública implica necessariamente em


transformações, porém a questão que se coloca é em relação a intensidade destes impactos, e
ainda além, como equalizar estes impactos no interior das estruturas sociais receptoras destas
políticas. Para Michel de Certeau:

“(...) não existe “política cultural” sem que situações socioculturais possam
ser articuladas em termos de forças que se defrontam e de oposições
reconhecidas. Trata-se de saber se os membros de uma sociedade,
atualmente afogados no anonimato de discursos que não são mais os seus e
submetidos a monopólios cujo controle lhes foge, encontrarão com o poder
de se situar em algum lugar em um jogo de forças confessas, a capacidade de
se exprimir” (1995, 218).

1203

V V
Por fim, se faz absolutamente necessário, para o bom encaminhamento destes
processos de “identificação e registro”, a participação de agentes executivos do Estado tanto
nas fases de promoção e garantia de políticas públicas, quanto no acompanhamento relativo
ao acesso e aprimoramento destas ações. O que temos percebido é que a partir desta
experiência e dos resultados gerados até este momento pelo edital de patrimônio imaterial, já
seria possível delinear desdobramentos desta política, que ampliassem as ações de pesquisa e
mapeamento, buscando o fomento e a sustentabilidade de práticas sociais, que, em muitos
casos permanecem ativas sem nenhum ou pouco apoio do Estado. Alcançando,
definitivamente as práticas em si, sobretudo, os detentores destes bens culturais, quem sabe
será possível pensarmos em políticas patrimoniais que sejam também políticas de inclusão e
cidadania.

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1205

V V
POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E INCENTIVOS FISCAIS EM ÂMBITO
ESTADUAL: BREVE COMPARATIVO ENTRE AS LEIS DO RIO DE JANEIRO,
MINAS GERAIS E RIO GRANDE DO SUL.
Pedro Bastos de Souza1

RESUMO: A presente pesquisa debate o papel das leis de incentivo estadual à cultura com
base na renúncia de receitas tributárias em âmbito estadual. Apresenta um breve panorama
evolutivo do papel do Estado na promoção de políticas culturais. Parte-se da premissa de que
a cultura deve ser pensada não apenas sob o ângulo econômico, mas sob o aspecto simbólico
e como indutora de cidadania. Realiza-se uma análise comparativa entre as leis estaduais do
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, buscando ressaltar os principais aspectos
jurídicos trazidos pelas referidas normas.

PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, incentivos fiscais, leis estaduais.

1. INTRODUÇÃO
O papel do Estado na garantia dos direitos culturais vai muito além da questão do
acesso a bens de natureza artística apreciáveis economicamente. A formulação e
implementação de políticas culturais deve levar em conta, necessariamente, o aspecto
simbólico e de cidadania presentes nas mais diversas manifestações culturais. Com a
Constituição Federal de 1988 já se forma uma moldura progressista e plural do que se espera
da atuação do Estado em matéria de proteção dos bens culturais: pluralismo e diversidade são
vetores essenciais neste sentido.
Contraditoriamente, os movimentos neoliberais promoveram, desde então, um
movimento de mercantilização da cultura, com a crença de que o mercado pode, por si só,
fomentar o desenvolvimento cultural do país. O auge desta crença ocorre no governo Collor,
com o rebaixamento do Ministério da Cultura a status de secretaria e com o fim da
Embrafilme. Cada vez mais o Estado deixaria de investir em políticas culturais, o que traria
concentração do mercado, elitização no acesso e esmaecimento de aspectos importantes da
cultura popular e do patrimônio imaterial brasileiros.
A sistemática de utilização de incentivos fiscais à cultura, por meio da renúncia de
tributos, parece surgir como uma solução intermediária para este cenário. Embora represente
o afastamento da atuação direta do Estado, ao mesmo tempo não se filia a um mecanismo de

1
Mestre em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Advogado e Jornalista. Pesquisador Associado à UNIRIO – Grupo de Pesquisa CNPq Direito, Democracia e
Desenvolvimento. Contato: pedrobastos2@globo.com

1206

V V
todo liberal, já que permanece o Poder Público como coordenador e regulador. É neste
cenário que as leis de incentivo acabam por adquirir papel relevante, na medida em que
permitem, de alguma forma, que o Estado continue atuando, ainda que de forma indireta, na
promoção de políticas culturais. A partir de 2003, tendo em conta um conceito antropológico
de cultura e uma gestão mais participativa nas políticas culturais, a ação estatal adquire um
viés mais ativo.
A utilização de leis de incentivo fiscal como único (ou hegemônico) modelo de
promoção à cultura gera distorções e não permite grandes avanços na democratização da
produção, acesso e proteção a bens culturais. Contudo, se conjugada com outros mecanismos
e coordenada com políticas em nível macro, representa importante papel no fomento à cultura.
Se durante os anos 1990 e início de 2000 o governo federal concentrava uma parte
muito significativa de ações com base incentivos fiscais na área de cultura, hoje os Estados
têm, cada vez mais, levado a cabo este tipo de ação. Com base em dados fornecidos pelas
Secretarias Estaduais de Cultura, observa-se que em Minas Gerais os projetos patrocinados
somaram R$ 275 milhões entre 2011 e 2014. No Rio de Janeiro, entre 2009 e 2012 o valor foi
ainda maior: mais de 309 milhões. Já o Rio Grande do Sul, desde 2010, busca diversificar o
modo de produção de políticas públicas na área cultural, por meio do sistema Pró-cultura,
conjugando os incentivos fiscais com o financiamento via Fundo de Apoio à Cultura e ações
diretas, assemelhando-se, desta forma, com o modelo adotado pelo Ministério da Cultura em
nível federal, em que se destaca o Programa Cultura Viva.
O objetivo da presente pesquisa é realizar um breve estudo comparativo sobre as
legislações estaduais referentes ao fomento à cultura por meio de incentivos fiscais. Busca-se
não apenas realizar um estudo descritivo das leis, mas levar em conta também a evolução do
papel do Estado na promoção de políticas de cultura e na garantia de direitos culturais, tendo
como base os artigos 215 e 216 da Constituição Federal.
Tomou-se como objeto de análise os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas
Gerais, tendo como critério metodológico o fato de serem entes federativos com significativa
produção cultural e em que as leis de incentivo tem se consolidado como instrumento
relevante no financiamento à cultura, seja em número de ações, seja em volume de recursos.

1207

V V
2. POLÍTICAS PÚBLICAS E CULTURA: PAPEL DO ESTADO E OS INCENTIVOS
FISCAIS
Não se pode falar em incentivo à cultura sem inserir a discussão em um tema mais
amplo: o das políticas públicas de cultura. É preciso ter de modo claro o que se entende por
cultura e qual o contexto em que insere a participação do Estado.
Como bem lembrado por Botelho (2001, p.77), o financiamento à cultura deve ser
determinado pela política e não o contrário. Mesmo quando se transferem responsabilidades
para o setor privado, isso não exclui o papel regulador do Estado, uma vez que se está
tratando de renúncia fiscal.
De acordo com a Declaração da Cidade do México sobre Políticas Culturais da
UNESCO (1982) o conceito de cultura é definido como: “[...] o conjunto dos traços
distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou
um grupo social e que abarca, para além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos
fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”, conceito este
que se mostra afinado com a acepção antropológica de cultura.
Conforme Malinowski (1968:37), o conceito de cultura envolve manifestações as mais
diversas, incluindo bens de consumo, as normas que regem os diferentes grupos sociais, as
ideias e as artes, as crenças e os costumes. Em culturas simples ou complexas, estão
envolvidos aspectos humanos, materiais e espirituais.
Marés (1993:23) comenta que a novidade mais importante trazida com a Constituição
Federal de 1988 foi alterar o conceito de bens integrantes do patrimônio cultural passando a
considerar que são aqueles ‘portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira’. Pela primeira vez no Brasil foi
reconhecida, em texto legal, a diversidade cultural brasileira, que em conseqüência passou a
ser protegida e enaltecida, passando a ter relevância jurídica os valores populares, indígenas e
afro-brasileiros.
As manifestações artísticas – ou culturais em sentido estrito – estão incluídas neste
complexo de relações e representam o próprio sentimento da sociedade em relação a si
própria. A Constituição Brasileira reconhece o pluralismo cultural da sociedade:
democratização do acesso à cultura e valorização da diversidade étnica e regional são vetores
constitucionais expressos. Conforme previsto no art. 216, §3º, a lei estabelecerá incentivos
para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. (SOUZA, 2014, p.1).
Para que um sistema efetivo de financiamento às atividades culturais funcione é obrigatório
que se estabeleça uma política pública, em que parcerias – tanto entre áreas de governo, num

1208

V V
plano horizontal, quanto entre as três instâncias administrativas, num plano vertical – são
fundamentais para conquistar novas fontes privadas de financiamento. Conseqüentemente,
para que os incentivos fiscais funcionem é necessário que haja um clima de recepção
favorável a eles na sociedade e, nesse sentido, a postura dos governos com relação à cultura e
às artes é fundamental. (BOTELHO, 2001, p.78)
É por meio da formulação de uma política cultural que se poderá hierarquizar as
prioridades e pensar numa política de diversificação de fontes de financiamento, quadro
dentro do qual uma lei de benefício fiscal é um dos aspectos possíveis. (BOTELHO, 2001,
p.78)
Qualificado como fenômeno de extrafiscalidade, o incentivo fiscal é conceituado por
Nascimento (2013, p. 6) como “um estímulo estatal, mediante a renúncia de receitas, para que
os agentes econômicos tenham comportamento distinto daquele que adotariam naturalmente,
com base exclusiva na lógica empresarial, atendendo também aos reclames do interesse
público”.
Quais seriam estes “reclames” do interesse público? Decerto que devem espelhar o
tratamento constitucional dado à cultura, nos artigos 215 e 216, que são densificados, por
exemplo, em nível federal pelo Plano Nacional de Cultura, pelo PROCULTURA e por outros
programas setoriais. O mesmo se pode falar das normas estaduais, que, a par de ressaltarem as
peculiaridades e aspectos regionais, devem estar em consonância com um modo de pensar a
cultura que esteja conectado com as demais unidades da federação e mesmo com as visões
mais progressistas no plano internacional. Cite-se, neste sentido, a Declaração da Cidade do
México sobre Políticas Culturais (UNESCO, 1982), a Convenção para Salvaguarda do
Patrimônio Imaterial (2003), a Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais (UNESCO, 2005).
Segundo Nascimento (2013, p.13), o emprego dos incentivos fiscais como instrumento
de políticas públicas não somente está autorizado pelo ordenamento constitucional brasileiro,
como também é incentivado. Assim, as medidas extrafiscais não devem ser concedidas de
forma indiscriminada, mas sim compor um programa de ações e atender suas diretrizes
(resultados a alcançar, ordem de prioridades, duração, quantidade de recursos).
Botelho (2001, p.77) bem lembra que a busca pelo patrocínio privado reflete o movimento
mundial iniciado nos anos 1980, motivado pela crise econômica e pelas soluções procuradas
dentro do chamado quadro neoliberal, no qual os governos começaram a cortar seus
financiamentos para as áreas sociais e, mais particularmente, para a cultura.

1209

V V
Em uma breve retrospectiva histórica, em nível federal pode-se mencionar a Lei 7505,
de 1986, como uma das precursoras em matéria de incentivo fiscal à cultura, que permitiu aos
contribuintes do Imposto de Renda abaterem da renda bruta ou deduzirem como despesa
operacional o valor de doações, patrocínios e investimentos, realizados por meio de ou em
favor de pessoas jurídicas de natureza cultural, com ou sem fins lucrativos. Em 1991 surge à
Lei Rouanet (Lei 8313), que facultou às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de
parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a
projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza
cultural (art. 18).
Analisando o desenvolvimento das políticas de incentivo fiscal à cultura no Brasil em
nível federal até 2002, Arruda (2003, p.188) ressalta que, após um período de verdadeira
míngua no governo Collor – com a extinção do Ministério da Cultura – houve um incremento
da atuação do Estado durante o governo FHC, se comparados com os governos anteriores,
mas seguindo uma lógica de mercantilização da cultura, liberal até certo ponto, mas com
aumento da transferência de recursos indiretos. Conforme Arruda (2003,p.188):

“O espírito da política cultural no período nutriu-se da função


regulamentadora, uma vez que coube aos gestores do ministério o papel de
intermediários e de avalizadores do processo – expresso no julgamento de
mérito dos projetos apresentados, acompanhado da atitude de estimulação e
de incentivo, desenvolvendo o exercício normatizador, tornando a atividade
pública um meio de aproximação dos agentes no campo da cultura. O
aparente laissez-faire, todavia, alimentou-se, a rigor, da transferência de
recursos, uma vez que a lei de incentivo troca pagamentos de impostos – que
poderiam ser aplicados de modo diverso – por investimento cultural. Se os
produtores culturais são beneficiários inequívocos da política implementada,
igualmente o são os organismos privados quando podem se utilizar do
marketing cultural, com os efeitos previsíveis de valorização da imagem das
empresas envolvidas. Instalou-se uma certa pedagogia no âmbito da cultura
que produziu o disciplinamento dos agentes, criou funções, e vem
despertando uma ética muito peculiar na esfera do financiamento privado,
uma vez que é o Estado o normatizador, mas sobretudo a instância a repassar
os recursos, embora de forma indireta.”
Pouco antes da análise de Arruda, Botelho (2001, p.,73) comentara que a tônica do
setor era de recuo na formulação de políticas públicas globais, no sentido pleno do termo,
embora se fale muito em política cultural. Hoje, é o financiamento de projetos, tomados
isoladamente, que assumiu o primeiro plano do debate – através das diversas leis de benefício
fiscal existentes no país.
É possível afirmar que a partir de 2003 o Estado, especialmente em nível federal,
passa a adotar um modelo híbrido. Ao mesmo tempo em que aumenta os recursos destinados

1210

V V
à sistemática de incentivos fiscais, busca outras formas de atuação, de que são exemplos o
Plano Nacional de Cultura e o Cultura Viva. Passa, com o sistema PROCULTURA, em 2010,
a buscar uma maior integração entre a política de incentivos fiscais e outras formas de se
estimular a produção cultural no país.
Conforme destacado por Alves (2012, p.5), nas gestões dos Ministros Gilberto Gil e
Juca Ferreira (2003 a 2010), foram criados ou regulamentados vários canais de participação
da sociedade civil, possibilitando ampliar a ação das políticas culturais, como foram os casos
da regulamentação do Fundo Nacional da Cultura (FNC), da criação do Sistema Nacional de
Informações e Indicadores Culturais (2005), do Plano Nacional de Cultura com a instalação
de Câmaras Setoriais (2004), do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania –
Cultura Viva instituindo os Pontos de Cultura (2004), do Sistema Federal de Cultura (2005),
do Vale Cultura (2010) e do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura –
PROCULTURA (2010).
Houve, na concepção de Alves (2012), Rubim (2013) e Freitas (2012), uma clara
mudança de rumo na própria concepção do que seja o papel do Estado nas políticas de
cultura, em um processo de maior democratização, de valorização da diversidade,
participação da sociedade civil e mais presença da atuação pública.
Como destacado por Rubim (2013, p. 233), em alguns casos a atuação do Ministério da
Cultura passa mesmo a ser inauguradora, a exemplo da atenção e do apoio às culturas
indígenas. “Em outros casos, se não é inaugural, sem dúvida revela um diferencial de
investimento em relação às situações anteriores. É o que acontece nas culturas de afirmação
sexual, na cultura digital e mesmo na cultura midiática audiovisual.” Segundo o autor:
“São exemplos força desta atuação: o deslocamento institucional da
ANCINE para o Ministério da Cultura; a tentativa de transformar a ANCINE
em ANCINAV; o projeto DOC-TV, que associa o ministério à rede pública
de televisão para produzir documentários em todo o país; a luta pela
Televisão Pública; o programa Revelando os Brasis, que apóia a produção
audiovisual em cidades de até 20 mil habitantes; o edital para jogos
eletrônicos; os apoios às paradas gay; os seminários nacionais de culturas
populares etc.”
Conforme Alves (2012, p.4), o MinC, a partir de 2003, com as gestões de Gilberto Gil e Juca
Ferreira, buscou partir de uma concepção de cultura mais ampla, em que incorporou uma
noção de cultura de cunho antropológico e, além disso, buscou ampliar os canais de
participação dos vários segmentos da sociedade civil na construção de políticas públicas de
cultura. Como resultado desse contexto, tivemos a promulgação da lei que reconhece a

1211

V V
diversidade cultural, a criação do Programa Cultura Viva e a substituição da Lei Rouanet pelo
PROCULTURA. E, ainda, esse Ministério da Cultura, através da promoção de encontros,
fóruns e conferências, buscou criar um consenso em torno dessas ações para que fossem
ampliadas para os outros âmbitos do poder público, os estaduais e os municipais, de modo a
atingir também os seus interlocutores, representados pelos agentes culturais que fomentam
ações na área da cultura.
Paralelamente a este processo, tem-se a edição de uma série de novas leis de incentivo
fiscal à cultura em âmbito estadual e municipal, de que são exemplos o Rio de Janeiro, Minas
Gerais e o Rio Grande do Sul, escolhidas para análise específica neste estudo por uma questão
de escala: trata-se de unidades da federação populosas, com produção cultural relevante em
diversas áreas e com os mecanismos de incentivo fiscal funcionando com razoável vigor,
envolvendo um número significativo de projetos e volume de recursos.
Permanecem, decerto, algumas críticas no modelo de incentivo fiscal, por conta da
concentração de proponentes, da concentração geográfica e da priorização de projetos com
nítido apelo comercial em detrimento de manifestações populares e de raiz (Freitas, 2012).
Neste ponto, a participação de entes federativos menores, como Estados e Municípios, mais
próximos da cultura e realidade locais, pode significar um passo a mais no processo de
democratização cultural mesmo na via do incentivo fiscal, já que terão maior prioridade ações
de valorização da cultura regional/local 2

3. LEIS ESTADUAIS DE INCENTIVO À CULTURA: ESTUDO DE CASO


Cumpre ressaltar, como feito por Bevilácqua (2010, p.219), que a fixação de normas
gerais de procedimento a renúncia de receitas não implica vulneração da autonomia dos entes
federativos que dispõem também de competência concorrente para legislar sobre a matéria,
como assim fizeram alguns estados.
Faz-se, desde logo, a ressalva metodológica de que neste estudo não se está a tratar de
aspectos de direito financeiro ou de como se desenvolve, sob a ótica do ente estatal, a
mecânica da arrecadação dos tributos e os aspectos operacionais do orçamento. O enfoque,
aqui, é analisar as legislações em relação à sua finalidade de incentivadora do direito à
cultura, tendo como foco o modo de operação dos mecanismos para quem produz os bens
culturais e para quem patrocina.

2
Em que pese, por exemplo, a possibilidade expressa na lei de apresentação de projetos estrangeiros no Rio de
Janeiro e a previsão expressa de financiamento de música eletrônica no Rio Grande do Sul.

1212

V V
Apenas a título de exemplo, ressalte-se que apenas no ano de 2012 a renúncia de
receita do estado do Rio de Janeiro chegou a mais de R$ 99 milhões de reais (SEC-RJ, 2013).
Em Minas Gerais, o valor chegou a R$ 79 milhões em 2014 (SEC-MG, 2014). O estudo
fluminense aponta, ainda, o perfil dos grandes patrocinadores - empresas de grande porte,
com atuação ou capital multinacional e ações em bolsa: Petrobras, Oi, Light, AmBev e Coca-
Cola.
A lei fluminense (1954/1992) é bastante sucinta se comparada com a mineira e a
gaúcha. Conta com apenas seis artigos apresentando a estrutura básica do sistema, deixando
aspectos operacionais e técnicos para serem normatizados por decreto (Decreto 44013/2013).
Já as leis gaúcha (13490/2010) e mineira (17615/2008) trazem um grau de detalhamento
maior, contando, respectivamente, com 31 e 20 artigos. Ambas, ao contrário da lei
fluminense, apresentam diretrizes, objetivos e princípios. Embora a normatização por decreto
tenha a vantagem de se permitir maior agilidade para questões operacionais, acaba-se
deixando um poder de decisão excessivo nas mãos do Executivo, além sujeitar as políticas a
flutuações de governo. O fato é que desde 2010 já houve três decretos alterando a
regulamentação da Lei 1954/1992.
Além disso, o estabelecimento de diretrizes e objetivos na lei contribui para que se
fortaleça um arcabouço institucional a configurar uma política de Estado, já que os governos
deverão, necessariamente, seguir os princípios ali estabelecidos.
Na verdade a lei gaucha é a que mais se afina com o modelo federal, de se criar um
sistema, com princípios e objetivos bem definidos, e que conjugue as ações de incentivo fiscal
via renuncia de receita com outros mecanismos (Fundo de Apoio à Cultura e dotações
orçamentárias diretas3). Coincidência ou não, o nome dos sistemas é praticamente idêntico
(PROCULTURA E PRÓ-CULTURA).
O art 1º da lei gaúcha estabelece algumas diretrizes gerais sobre distribuição de
recursos, em que fica clara a importância de se valorizar as várias regiões do Estado e de se
estimular novas iniciativas culturais. Já o art.2º trata de princípios de gestão de modo
genérico: transparência, eficiência, racionalização, segurança, dentre outros. Trata-se de
dispositivo que pouco contribui em efetivo conteúdo, pois não seria razoável prever um
sistema “ineficiente, irracional ou inseguro”. São, contudo, palavras que andam na moda no
ideário político e jurídico.

3
Lei 13490/2010, art. 3º, I a III

1213

V V
As três leis estabelecem quais seriam as “áreas” a serem abrangidas pela lei. A ideia de
tipificar possíveis “áreas” culturais e colocá-las em uma lista aparentemente cerrada não
parece ser algo muito produtivo. Algumas “listas” acabam sendo mais sucintas do que outras,
embora o próprio conceito de cultura não deva ser encarado como algo hermético. A lei
gaúcha, neste ponto, é bastante prolixa, mas ao final de cada “área” e um detalhamento em
“subáreas”, acaba utilizando sempre a possibilidade de “outras”. Assim, vicissitudes e
peculiaridades à parte, mesmo buscando classificar manifestações acaba-se, de certa forma,
aderindo a um conceito razoavelmente amplo de cultura, que se aproxima do conceito
antropológico apresentado no tópico anterior.
Em relação à música, na lei gaucha faz-se questão de explicitar até mesmo os gêneros
musicais passíveis de apoio. Incluiu-se a música gospel (art. 4º, § 2º, mas desde que os
eventos não sejam promovidos por igrejas). Mantém-se, em tese, a laicidade do Estado. Em
sequência, a lei gaucha enumera exemplificativamente gêneros passíveis de incentivo,
incluindo manifestações típicas da cultura brasileira, ao lado de qualificações como
“eletrônica” e “country”.
A lei gaúcha, mais prolixa na enumeração, é a única a mencionar explicitamente as
culturas populares (art. 4º, I, f). A lei mineira, embora menos extensa na, traz relevante
menção ao patrimônio imaterial (art. 8º, VI). Outro ponto interessante das leis mineira e
gaúcha é prever apoio à produção científica vinculada à cultura e às áreas previstas na lei,
como cursos, bolsas de estudos e publicações (art.8º, parágrafo único e art 4º, § 1º,
respectivamente). Projetos de reforma e construção de equipamentos culturais são
explicitamente previstos na lei gaucha e mineira. Já a lei fluminense menciona vagamente o
apoio a “acervo e patrimônio histórico-cultural”.
As leis fluminense e mineira fazem curiosa menção à gastronomia (art. 2º, X; art. 8º,
VI). A lei mineira inclui, ainda, a filatelia (art. 8º, III). O apoio à produção literária está
presente nas três leis e deve incluir não só a produção de livros, mas até mesmo de revistas e
obras informativas.
Um ponto fora da curva quanto ao alcance dos projetos abrangidos é a previsão na lei
fluminense do apoio a “esportes profissionais e amadores, desde que federados” (art,2º, IX).
Existem algumas vedações quanto a quem pode beneficiar-se do incentivo fiscal. No Rio de
Janeiro, não poderá ser patrocinador quem estiver em débito com o Estado (art. 3º, §1º). Além
disso, fica vedada a utilização do incentivo quanto a projetos em que sejam beneficiários a
própria empresa incentivada, seus sócios ou titulares e suas coligadas ou controladas.

1214

V V
Tanto a lei fluminense como a lei gaúcha vedam práticas de nepotismo, no sentido de
não poder haver parentesco entre o produtor cultural e o contribuinte/patrocinador. Na lei
fluminense a vedação vai até parentes em primeiro grau e cônjuges/companheiros. A lei
gaúcha veda quando o vínculo for até terceiro grau, inclusive por afinidade. Também a lei
mineira prevê vedações semelhantes: beneficiar o próprio incentivador e os parentes em
primeiro grau /cônjuge/companheiro. 4 Por fim, a lei gaúcha veta os produtores com cadastro
sujo no CADIN.
Ainda no que tange ao âmbito de aplicação, em todas as legislações
contribuintes/patrocinadores deverão ser sediados nos respectivos estados. A lei fluminense
permite expressamente o patrocínio de produções culturais estrangeiras (art.1º, §1).
Quanto à participação de outros entes federativos, há diferenças relevantes nos três sistemas.
A lei gaucha autoriza o Estado a participar de empreendimentos conjuntos com os municípios,
os demais Estados e a União (art. 11). Já o art. 11 da lei mineira veda expressamente o apoio a
órgão ou entidade da administração direta de qualquer esfera federativa. Permite-se somente o
apoio a fundações estaduais ligadas á cultura ou a associações/fundações de apoio ligadas a
unidades culturais pertencentes ao poder público. No Rio de Janeiro é permitido o apoio a
municípios, mas apenas quanto a efemérides municipais.
Em relação ao quanto as empresas patrocinadoras podem se beneficiar, os percentuais
variam entre os estados. O Rio de Janeiro prevê 4% do ICMS a recolher em cada período
mensal para projetos nacionais e 1% para produções estrangeiras. Há uma contrapartida
obrigatória, já que para poder utilizar os benefícios a empresa deverá contribuir com parcela
equivalente a, pelo menos, 20% do desconto que pretende realizar. Já em Minas Gerais a
dedução, mensal, aumenta em razão inversamente proporcional ao tamanho da empresa: 10%
para empresas com receita até quatro vezes maior que o limite para as empresas de pequeno
porte: 7% para faturamento entre quatro e oito vezes o de uma EPP; 3% para empresas com
faturamento maior que oito vezes o de uma EPP.
Sob a ótica do volume de renuncia fiscal em relação à arrecadação do Estado, Minas
Gerais limita a 0,30% da receita líquida do ICMS (art.4º). Não há um mínimo a ser aplicado.
No Rio de Janeiro, há um mínimo de 0,25% e um máximo de 0,50% (art. 1º, §3). No Rio
Grande do Sul a lei prevê um máximo de 0,5% da receita líquida, sendo que 25% deste total
deve ser destinado a projetos apresentados diretamente pelas prefeituras municipais ou por
produtores culturais por ela autorizados (art. 27, caput e §1º). Em Minas Gerais também há

4
Lei fluminense: art. 3º, §2º e 3º; Lei gaúcha; art. 10; Lei mineira: art. 13.

1215

V V
uma “cota” para projetos do interior. Do montante total de recursos aprovados pela comissão
técnica para captação, 45% devem ser destinados para empreendedores domiciliados no
interior do Estado.
O modelo gaúcho é mais sofisticado. Como o mineiro, possui um escalonamento, que
chega a 3% do saldo devedor para valores de ICMS a recolher acima de R$ 400.000,00.
Permite-se a cumulação com benefícios de outras esferas/leis, desde que a mesma despesa não
seja patrocinada em duplicidade.
Além disso, no Rio Grande do Sul o beneficiário deverá repassar 5% do valor a ser
compensado em projetos ligados a preservação e restauração de bens móveis/imóveis
integrantes do patrimônio cultural ou para construção, reforma e restauro de equipamentos
culturais (art. 6º, II, b; c/c art. 4º, VII e VIII), via Fundo de Apoio à Cultura. Quando não se
tratar de projetos nesta área, o repasse deverá ser de 25%.
Também no Rio Grande do Sul, sempre que o evento receber mais que 80% de
incentivo fiscal no valor do projeto, será proibida a cobrança de ingressos relativos à entrada.
Trata-se, assim, de medida de democratização de acesso aos bens culturais. Registre-se que no
Rio de Janeiro há uma cota de 10% de ingressos repassados à Secretaria de Cultura.
O Rio Grande do Sul possui algumas medidas de cunho democratizante previstas no
sistema, que é integrado não só pelos projetos via incentivo fiscal como também pelo Fundo
de Apoio à Cultura. Em todas as atividades organizadas diretamente pelo Estado, estudantes
e professores possuem entrada gratuita (art. 13, § 2º). Por meio do FAC, projetos são
selecionados via editais especiais e podem ter até 100% do projeto financiado. (art.17) Um
Conselho Estadual de Cultura e um conselho de representantes dos municípios se reúnem para
julgar os projetos e estabelecer ações especiais objeto de editais específicos. A definição das
Ações Especiais deve ser precedida de audiências públicas (art. 19, §1º).
No Rio de Janeiro, os projetos culturais serão avaliados em duas etapas:
-Parecer técnico; Aprovação pela CAP. Conforme orientação da SEC-RJ (2013):

“Durante a etapa de parecer técnico, a Superintendência da Lei de Incentivo fará avaliação do projeto
cultural tendo em vista a adequação da proposta às determinações legais e os aspectos relacionados à
área específica do projeto e sua linha de ação.
A Comissão de Avaliação de Projetos – CAP - é formada por representantes da SEC e por membros
com notável experiência no setor cultural e fará a avaliação e aprovação dos projetos culturais que
estejam de acordo com a política de incentivo à cultura dispostas na Lei nº 1954/92 e no Decreto nº
44.013/2013, habilitando-os para captação de recursos. “

1216

V V
Sob o ângulo do patrocinador a lei gaúcha possui uma vantagem, pois autoriza (art.
28º) a utilização de espaço público das instituições culturais do Estado para a exposição,
divulgação das empresas patrocinadoras.

Por fim, há que se fazer remissão breve aos Decretos Regulamentadores, que prevêem
trâmites para a apresentação de projetos, critérios de avaliação e outras questões
procedimentais e burocráticas, de interesse prático para quem atua na área, mas de diminuta
relevância acadêmico-científica. São eles os Decretos 44.013/2013 (RJ), 47618/2010 (RS) e
44866/2008 (MG).

4. QUADRO COMPARATIVO

Rio de Janeiro Rio Grande do Sul Minas Gerais


Lei 1954/2006 Lei 13490/2010 Lei 17615/2008
Incentivo ao 4% do ICMS recolhido 3% do ICMS a partir de 3, 7 ou 10% (dependendo
patrocinador no mês (produções R$ 400.000,00. do faturamento da
nacionais) e 1% e tabela do art.6º (menor empresa)
(produções estrangeiras) o imposto, maior o
incentivo)
Ações Não menciona 25% dos recursos do 45% dos projetos
afirmativas para Procultura para os aprovados para o interior
desenvolviment municípios do Estado
o regional
Incentivos ao Cota de 10% dos Entrada gratuita em ações Não menciona
público ingressos (previsão em diretas para estudantes e
decreto) professores da rede
estadual.
Entrada gratuita em
projetos com mais de
80% do valor incentivado
Limite de Mínimo 0,25% e máximo Até 0,5% da receita Até 0,3% da receita
recursos do de 0,5% da arrecadação líquida do ICMS, não líquida
Estado do ICMS podendo ser menor que o
ano anterior.
Contrapartida No mínimo 20% em 5% ou 25% repassados ao 1 a 5%
obrigatória patrocínio direto FAC.
Restrições Patrocinador como Patrocinador como Patrocinador como
beneficiário beneficiário beneficiário
Parentesco Parentesco Parentesco
produtor/patrocinador – produtor/patrocinador – produtor/patrocinador –
parentes em 1º parentes em 3º parentes em 1º
grau/conjuge/companheir grau/conjuge/companheir grau/conjuge/companheir
o o e afins o

Decreto 44.013/2013 47618/2010 44866/2008

1217

V V
Agenciamento Até 5% Até 10% Até 10%

5. CONCLUSÕES
As legislações analisadas possuem muito mais semelhanças do que diferenças.
Embora caiam na atecnia de enumerar manifestações culturais incentiváveis – para depois
abrir um leque de opções por meio de cláusulas abertas - acabam abrangendo um conceito
amplo de cultura. A prática tem mostrado que muitas das atividades são transversais a
diversos nichos, valores ou bem culturais a serem protegidos, especialmente quando se
relacionam à proteção do patrimônio imaterial. Muitas vezes a letra fria da lei não capitula
determinada “área”, mas o Estado acaba desenvolvendo ações, por exemplo, no campo da
diversidade (de gênero, etnia, orientação sexual), nas quais se produz cultura por diversos
meios.
Pouco tem sido feito para atrair o patrocinador pessoa física, para quem, via de regra,
o patrocínio à cultura mediante incentivos fiscais parece ser uma realidade distante. Uma
maior penetração destes mecanismos poderia representar maior democratização no próprio
financiamento, uma vez que a pessoa física pauta sua escolha não por um esperado “retorno
de imagem”, mas por outros critérios de natureza individual ou social. É uma obviedade
afirmar que as pessoas físicas não estão incluídas como possíveis patrocinadoras nas leis
estaduais de incentivo pois não são contribuintes de ICMS. Seria interessante, contudo, prever
modelo complementar, que permitisse às pessoas físicas contribuírem para projetos culturais e
obterem, por exemplo, redução de algum imposto estadual – ITD ou IPVA, por exemplo.
O sistema do Rio Grande do Sul se mostra mais consentâneo com um modo de pensar
a ação do Estado na garantia de direitos culturais de forma mais plural e integrada, pensando-
se um modelo que conjuga os mecanismos de incentivo fiscal com ações de natureza
afirmativa, via ação direta do Estado ou via fundos setoriais, voltados para ações especiais.
Os Estados deveriam se inspirar nesta experiência e, principalmente na experiência em
âmbito federal, em especial após a implementação do Programa Nacional de Cultura,
Educação e Cidadania – Cultura Viva e do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à
Cultura – PROCULTURA (2010).
A questão de se incentivar a cultura por meio de incentivos fiscais não deve se limitar
a discussões de natureza orçamentária ou tributária e tampouco em mero cumprimento de
requisitos formais e formulários burocratas exigidos por lei ou decreto. É preciso sua inserção
em uma política de Estado, com objetivos claros de desenvolvimento cultural conforme os
ditames de um Estado Pluralista e multiétnico, previsto constitucionalmente. É com este norte
1218

V V
que se deve pensar, por exemplo, na valorização do patrimônio imaterial e nos projetos
ligados a memória.
Deve-se pensar os mecanismos de fomento à cultura também como redutores das
desigualdades regionais, o que já é, em alguma medida, objeto de preocupação nas legislações
de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Na prática, contudo, nem sempre os resultados são
animadores. É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro, em que o Noroeste Fluminense, região
mais pobre do Estado, recebeu somente 0,2% dos recursos oriundos de projetos incentivados
no ano de 2012.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FREITAS, Laura Lopes de. A lei Rouanet e a atual produção cultural brasileira: retrato da relação
entre incentivo fiscal e a produção cultural no Brasil. Trabalho de conclusão do curso de pós-
graduação em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos. Universidade de São Paulo,
2012.
MALINOWSKI, Branislaw. Une théorie scientifique de la culture. Paris: Maspero, 1968.
MARÉS, Carlos Frederico Marés, Proteção Jurídica dos Bens Culturais. Revista dos Tribunais, São
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NASCIMENTO, Carlos Renato Vieira do. Políticas Públicas e Incentivos Fiscais. RFPTD, v. 1, n.1,
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Estudos Culturais. Vol. 1, n.1, pp. 224-242, 2013.

1219

V V
SOUZA, Pedro Bastos de. A lei do serviço de acesso condicionado como instrumento de fomento à
produção audiovisual brasileira. Anais do X Encontro de Estudos Multidisciplinares em cultura.
Salvador, UFBA, 2014.

1220

V V
ESPAÇOS CULTURAIS PÚBLICOS E SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA: A
BUSCA POR UM MODELO PARTICIPATIVO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE
CULTURA
Plínio Rattes 1

RESUMO: O texto a seguir destaca o processo de construção e implementação de uma


gestão participativa no âmbito dos espaços culturais mantidos e administrados pela Secretaria
de Cultura do Estado da Bahia, durante as duas gestões do governo Jacques Wagner (PT-Ba),
2007 a 2014. O estudo relata o processo de aproximação dos espaços culturais públicos com a
sociedade civil a partir de 2007; discute como se dá hoje a participação desta última na gestão
dos primeiros; e considera a importância desta relação na elaboração das políticas públicas de
cultura e na garantia dos direitos culturais dos indivíduos.

PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas de cultura, participação social, centros de cultura,


direitos culturais.

Introdução
A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, durante o governo de Jacques Wagner
(PT-Ba), 2007 a 2014, segundo consta em seus relatórios de gestão, investiu na
reaproximação dos centros de cultura sob sua administração com a sociedade civil, buscando
formas de integrar este último nas decisões de gestão dos primeiros. Desta forma, o texto a
seguir apresenta o processo de construção e implementação do modelo de gestão participativa
colocado em prática nos 17 centros de cultura mantidos e administrados pela referida
Secretaria. A participação social na gestão de tais centros se deu de forma diferenciada em
cada espaço; e o estudo apresenta estas particularidades, além de discutir as potencialidades e
obstáculos do modelo adotado.
A motivação para o presente texto parte de dois entendimentos, primeiro, a
compreensão da importância de edifícios voltados à produção artístico-cultural como
essenciais dentro dos desenhos das cidades na atualidade, pois são locais de uso polivalente
que possibilitam, entre outras coisas, o convívio e trocas entre os grupos diversos que
compõem a heterogênea sociedade contemporânea. E, em segundo, a premissa de que é um
direito cultural dos indivíduos a participação nas decisões políticas na área de cultura; e que
há uma emergência na criação, no aprimoramento e na apropriação de mecanismos de

1
Mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, do Instituto de
Humanidades, Ciências e Artes – IHAC, da UFBA e bolsista FAPESB. E-mail: pliniorattes@gmail.com.

1221

V V
participação, consulta e controle social no campo das políticas públicas de cultura, garantindo
e fortalecendo, assim, um ambiente cada vez mais democrático e cidadão.
Entretanto, antes de entrar na questão central deste estudo, convém contextualizar e
compreender os conceitos e perspectivas que norteiam a ideia de cultura que temos na
contemporaneidade, bem como identificar como estão postas estas abordagens nas ações do
atual governo, principalmente em relação a temas como: direitos culturais; políticas públicas;
território e identidade; participação, consulta e controle social.

A Centralidade da Cultura
A Bahia foi um dos primeiros núcleos de riqueza da América Portuguesa e uma das
regiões que à época colonial mais recebeu negros africanos para trabalhar como escravos em
suas lavouras. Este fato histórico viria a marcar esta parte do país com a forte influência
africana na cultura baiana: na música, na culinária, na religião, no modo de vida de sua
população; não apenas na capital, Salvador, mas também nas cidades do Recôncavo e do
litoral. Esta imagem de Bahia negra foi vendida e bastante explorada comercialmente, através
do turismo, a partir da metade do século passado, tendo, inclusive, virado ação política, com
especial destaque para o período em que o Estado foi administrado pelo grupo liderado pelo
político Antônio Carlos Magalhães - ACM (1927-2007).
Porém, além da Bahia negra tão difundida e vendida à exaustão, principalmente entre
as décadas de 1990 e 2000, há outras Bahias, com outras características dominantes, neste
Estado que possui hoje 417 municípios. Há Bahias sertanejas e indígenas, por exemplo;
dentre tantas outras, que são, em geral, oprimidas diante da imagem principal de Bahia negra
apresentada para o resto do país e para o mundo.
Com a mudança de governo ocorrida nas eleições de 2006, o Partido dos
Trabalhadores – PT, assume o Governo do Estado no ano seguinte, interrompendo um ciclo
de dezesseis anos de administração do Partido da Frente Liberal – PFL, sob o comando de
ACM. Com a entrada de um partido de centro-esquerda, o mesmo que já havia assumido o
executivo no plano nacional quatro anos antes e garantido a reeleição naquele mesmo pleito
de 2006, diversas mudanças começam a se configurar no estado na área cultural. A primeira e
mais importante delas é a “recriação” da Secretaria de Cultura - Secult, que até então dividia a
pasta com a Secretaria de Turismo, sendo esta última privilegiada nas ações dos governos
Carlistas.

1222

V V
O que importa compreender aqui é que independente do grupo político à frente do
governo central do estado, seja ele de centro-direita ou centro-esquerda, fica evidente a
centralidade da cultura e suas diversas possiblidades de usos e dimensões nas disputas de
poder seja ela encarada, por exemplo, como recurso econômico, como posto George Yúdice
(2006) ou como política de identidade, assim definido por Stuart Hall (1997), e corroborado
por Eagleton (2003). Sabe-se que o termo cultura é um conceito complexo e para melhor
compreendê-lo se faz necessário considerar suas evoluções ao longo da história. Entender este
trajeto, seus contextos e implicações torna mais claro o lugar que a cultura tomou na vida
contemporânea. No livro A Ideia de Cultura (2003), o filósofo britânico Terry Eagleton
reconstrói este percurso evolutivo do termo que vai da origem do conceito até às suas
configurações atuais. O autor destaca as diversas significações da palavra cultura, tais como
“lavoura ou cultivo agrícola”; “civilidade e civilização”; “erudição”; “modo de vida e criação
artística”, dentre outras (2003). Neste mesmo livro, Eagleton cita Raymond Williams e
apresenta as três dimensões modernas da cultura desenvolvida pelo célebre autor de obras
como ‘Cultura e Sociedade’ (1958) e ‘Marxismo e Literatura’ (1979), tão importantes para os
estudos culturais.
As três dimensões modernas da cultura descritas por Williams seriam, resumidamente,
a cultura como civilização, como modo de vida e como arte. Estes três sentidos da cultura são
considerados como indissociáveis:
(...) se cultura neste sentido da palavra tem o imediatismo sensível
da cultura enquanto modo de vida, também herda o preconceito normativo
da cultura enquanto civilização. As artes podem reflectir a vida de
excelência, mas também são a sua medida. Se a corporizam, também a
avaliam. Neste sentido, unem realidade e desejo, à semelhança da política
radical. Os três diferentes sentidos de cultura não são, assim, facilmente
separáveis. (EAGLETON, 2003, p. 35 e 36)

Quando traz Stuart Hall para o debate, Eagleton propõe uma concepção de cultura
“igualmente generosa, como as ‘práticas vividas’ ou ‘ideologias práticas’ que capacitam uma
sociedade, grupo ou classe a experimentar, definir, interpretar e dar sentido as suas condições
de existências” (2003, p. 54). Cultura, nessa perspectiva, resulta das experiências feitas com o
mundo, são as vivências do homem e suas interações entre si e com o mundo, seria, assim, a
própria sociedade. Nesse sentido, Eagleton argumenta que “a cultura, de outro ponto de vista,
é o conhecimento implícito do mundo pelo qual as pessoas negociam maneiras apropriadas de
agir em contextos específicos” (2003, p. 54). Deste modo, Eagleton defende que as “pessoas
que pertencem ao mesmo lugar, profissão ou geração” só fazem cultura, ou ainda, constituem

1223

V V
uma cultura “somente quando começam a compartilhar modos de falar, saber comum, modos
de proceder, sistemas de valor, uma auto imagem coletiva” (2003, p. 59).
Stuart Hall, por sua vez, assinala em seu texto ‘A Centralidade da Cultura: notas sobre
as revoluções culturais do nosso tempo’ que
No séc. XX, vem ocorrendo uma revolução cultural, no sentido substantivo,
empírico e material da palavra. Sem sombra de dúvida, o domínio constituído pelas
atividades, instituições e práticas expandiu-se para além do conhecido. Ao mesmo
tempo, a cultura tem assumido uma função de importância sem igual no que diz
respeito à estrutura e à organização da sociedade moderna tardia, aos processos de
desenvolvimento do meio ambiente global e à disposição de seus recursos
econômicos e materiais (HALL, 1997, p. 02)

A cultura, assim, passaria do seu conceito inicial, que vem da raiz latina colere, “que
pode significar tudo, desde cultivar e habitar até prestar culto e proteger” (EAGLETON,
2003, p.12) até abarcar tudo aquilo que é produzido pelo homem, todo arsenal simbólico da
humanidade, desde um mero estilo de corte de cabelo passando pela língua, pelos modos de
falar, agir, se posicionar diante do mundo e etc, ocupando uma centralidade na vida
contemporânea, “substituindo”, inclusive, diversas outras forças motrizes da história: como a
religião, por exemplo. Eagleton destaca ainda as mudanças no termo cultura a partir da década
de 1960:
Hoje significa a afirmação de uma identidade específica — nacional,
sexual, étnica, regional — em vez da sua superação. E uma vez que todas
estas identidades se vêem a si próprias como reprimidas, o que outrora era
concebido como zona de consenso transformou-se em campo de batalha. A
cultura, em suma, passou de parte da solução a parte do problema. Já não é
uma forma de resolução de conflitos políticos (...) (EAGLETON, 2003, p.
58).

Este campo de batalha vivido na atualidade é corroborado ainda por Hall:


O impacto das revoluções culturais sobre as sociedades globais e a
vida cotidiana local, no final do séc. XX, pode parecer significativo e tão
abrangente que justifique a alegação de que a substantiva expansão da
cultura que experimentamos, não tenha precedentes. Mas a menção do seu
impacto na vida interior lembra-nos de outra fronteira que precisa ser
mencionada. Isto relaciona-se à centralidade da cultura na constituição da
subjetividade, da própria identidade, e da pessoa como um ator social
(HALL, 1997, p. 02).

Para Hall quanto mais importante – mais central – se torna a cultura, tanto mais
significativas são as forças que a governam, moldam e regulam. O autor questiona qual seria
o fator mais determinante em relação à cultura hoje: a política, o mercado, o estado ou a
economia. Para ele, todas estas forças têm a capacidade de controlar ou determinar o modo
como funcionam as instituições culturais ou de regular as práticas culturais de toda uma

1224

V V
sociedade (HALL, 1997, p. 15). Assim, neste campo de batalha, como é definido por
Eagleton, verifica-se que há uma intensa disputa de poder dos mais diversos atores que
compõem a sociedade. É neste contexto de disputa de poder que se dão hoje a formulação das
políticas públicas de cultura, objeto de estudo deste trabalho.
As contribuições destes autores nos permitem uma melhor compreensão dos
significados e usos do termo ‘cultura’ na contemporaneidade. Revelam também a
multiplicidade de questões que podem ser problematizadas e de interpretações que podem ser
adotadas. A própria Constituição Federal Brasileira, toma de empréstimo algumas das
abordagens contemporâneas da cultura aqui descritas. Carta magna do país, a Constituição de
1988, nos artigos 215 e 216, expressa a importância que deve ser dada à cultura, em suas
dimensões simbólica, cidadã e como fator de desenvolvimento. E são estas três abordagens da
cultura que adotamos como referência neste estudo.

Secretaria de Cultura e a institucionalização do Diálogo


Como dito no início do tópico anterior, a Cultura foi separada da Secretaria de
Turismo, a partir de 2007, ocupando assim uma pasta própria e central. O diretor teatral
Márcio Meireles assumiu o órgão na primeira gestão do governo petista (2007 a 2010) e
definiu juntamente com sua equipe as seis linhas de ações que pautariam os programas e
políticas desenvolvidas pelo órgão: “diversidade, desenvolvimento, descentralização,
democratização, diálogo e transparência”, conforme informações no site da instituição 2. Estas
mesmas linhas de ações são mantidas e ampliadas na gestão seguinte (2011 a 2014), tendo
desta vez à frente da pasta o professor e pesquisador em políticas culturais Albino Rubim.
Destacaremos neste texto duas ações da gestão da Secult: a construção e
implementação de mecanismos de escuta junto à população, na tentativa de coletar as
principais demandas da sociedade em relação ao campo cultural, bem como no estímulo à
uma maior, e cada vez mais qualificada, participação social nas decisões políticas; e o
discurso de interiorização (ou territorialização). Entender a importância destas duas ações
dentro das políticas desenvolvidas pela Secretaria, contribuem para a compreensão do
processo de implementação de colegiados de gestão participativa nos centros de cultura
mantidos pelo órgão em 12 dos 26 territórios de identidade do estado.
As políticas públicas para a cultura no Brasil passaram por uma visível ruptura com a
chegada de Gilberto Gil ao Ministério da Cultura, em 2003, no Governo Lula. Para o ex-

2
www.cultura.ba.gov.br. Último acesso em 09 de janeiro de 2015

1225

V V
secretário de cultura do Estado da Bahia, Albino Rubim (2011-2014), é a partir de Gil que o
panorama da cultura começa a mudar, passando por “um relevante processo de organização e
institucionalização”3. Ele afirma que:
A construção da Conferência Nacional de Cultura; do Plano
Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Cultura são marcos
emblemáticos do processo de mudança. Eles exigem conferências, planos e
sistemas estaduais e municipais. Eles implicam na constituição de conselhos,
colegiados, fundos e outros dispositivos. A ampliação da institucionalidade
impacta e exige uma maior organização do campo da cultura e de seus
agentes no Brasil e na Bahia (RUBIM, 2013a, p. 2).

Na ordem desta institucionalização da cultura, como cita Rubim, há uma tentativa de


estímulo da participação social nos rumos da política cultural, seja por meio de mecanismos
de participação direta, como as conferências, seja por meio da representação em órgãos
colegiados e fóruns consultivos e/ou deliberativos. Há de se destacar que este processo de
estímulo da participação social na política não é um processo fácil. O Brasil tem uma histórica
deficiência na educação de cunho cidadã e de apreço ao bem público, e passou por longos
períodos ditatoriais e totalitários no último século; enfrentou a violação de direitos
fundamentais, a exemplo da liberdade de expressão e o exercício da política. Estamos,
portanto, em um processo de aprendizado da cidadania e participação, buscando formas de
reconstruir “as pontes” entre as pessoas e a vida política do país, reaprendendo a lidar de
forma plena com a democracia. Nesse processo, é preciso destacar, no entanto, que a relação
de diálogo estabelecida é permeada de tensões e disputas de poder entre os mais diversos
atores sociais, como já exposto no tópico ‘A Centralidade da cultura’, o que demonstra e
reafirma o quanto a cultura tem desempenhado um papel central na contemporaneidade.
É possível observar que os governos de centro-esquerda eleito para a esfera federal a
partir de 2003 e estadual no ano de 2007, dedicaram grande parte de suas ações na área
cultural em estabelecer e consolidar a ideia de gestão compartilhada, de dividir com a
sociedade civil as responsabilidades pelas decisões tomadas no campo das políticas públicas.
A participação social nas decisões no campo cultural aos poucos tem se consolidado nas mais
diversas esferas, “desde os diálogos grupais no território e seus encontros interculturais até a
incidência sobre fazeres culturais locais e nas formas institucionais que assume a
participação” (FARIA, 2009, p. 98).

3
Bahia. Secretaria de Cultura. Coleção Política e Gestão Culturais. Participação, consulta e controle social.
Salvador, 2013a.

1226

V V
Espaços culturais e direitos culturais
A Fundação Cultural do Estado da Bahia - Funceb, uma das mais importantes
instituições públicas de cultura do estado foi criada em 1972, em plena ditadura militar,
durante o primeiro mandato de Antônio Carlos Magalhães (1971-1975). Porém começou a
funcionar apenas em 1974 após aprovação de seu estatuto. Vinculada à Secretaria de Cultura
do Estado, a Funceb é responsável pela elaboração e execução de políticas voltadas às
linguagens artísticas: teatro, dança, música, circo, artes plásticas e literatura, conforme
informa o site da instituição (fundacaocultural.ba.gov.br).
Durante as décadas de 1980 e 1990, a Funceb capitaneou a construção de sete centros
de cultura no interior do estado, nas cidades de Alagoinhas (Centro de Cultura de
Alagoinhas), Itabuna (Centro de Cultura Adonias Filho), Valença (Centro de Cultura Olívia
Barradas), Juazeiro (Centro de Cultura João Gilberto), Vitória da Conquista (Centro de
Cultura Camillo de Jesus Lima), Porto Seguro (Centro de Cultura de Porto Seguro) e Feira de
Santana (Centro de Cultura Amélio Amorim). Na década de 2000, assumiu a gestão da Casa
de Cultura de Mutuípe, e construiu mais três espaços nas cidades de: Guanambi (Centro de
Cultura de Guanambi), Santo Amaro (Teatro Dona Canô) e Jequié (Centro de Cultura
Antônio Carlos Magalhães). Na capital e região metropolitana, administrou ainda os espaços:
Cineteatro Solar Boa Vista (Engenho Velho de Brotas), Casa da Música (Itapuã), Espaço
Xisto Bahia (Barris), Centro Cultural Alagados (Uruguai), Centro Cultural de Plataforma
(Plataforma), Cineteatro Lauro de Freitas (no munícipio de Lauro de Freitas).
A gestão destes espaços era de responsabilidade do setor ‘Coordenação de
Equipamentos Culturais’, que a partir de 2007, após a mudança de governo do PFL para o PT,
recebeu o status de diretoria, passando a ser designada Diretoria de Espaços Culturais – DEC.
Em 2011, após 35 anos sob a administração da Funceb, a DEC foi transferida para a
Superintendência de Desenvolvimento Territorial da Cultura - Sudecult, da Secretaria de
Cultura do Estado. Segundo o diretor da DEC, o gestor cultural Chicco Assis4, a intenção da
Secult em alocar o setor na Sudecult visava que os espaços culturais pudessem ser um ponto
de criação, difusão e fruição artístico-cultural não apenas do município onde está inserido,
mas de todo o território de identidade ao qual pertence. Os centros culturais seriam também
pontos de irradiação das ações da Secretaria, inclusive, e, principalmente, àquelas que

4
Chicco Assis foi Diretor de Espaços Culturais da Secult-Ba entre março/14 e janeiro/15. Antes, ocupou o cargo
de coordenador do Cineteatro Solar Boa Vista, por sete anos. Entrevista cedida ao autor em 13 de agosto de
2014, no Palácio Rio Branco, sede da Secretaria de Cultura.

1227

V V
previam o estímulo ao encontro e debates dos atores sociais interessados nos rumos da cultura
em seus munícipios e territórios de identidade.
Segundo a Cartilha Território e Identidade, que compõe a Coleção Política e Gestão
Culturais, lançada pela Secretaria de Cultura em 2013, o objetivo do atual governo em dividir
o estado a partir dos critérios de identidade foi agregar no mesmo grupo munícipios que
compartilhassem dos mesmos sentimentos de pertencimento, e a partir daí identificar
prioridades temáticas tomando por base a realidade local e as especificidades de cada região.
O objetivo final é possibilitar o desenvolvimento equilibrado e sustentável entre as regiões.
Nesta mesma cartilha, o ‘território’ é considerado algo que vai além do espaço
geográfico e balizado por regras políticas e administrativas. O entendimento do governo é que
o território
é um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo,
compreendendo a cidade e o campo, caracterizado por critérios
multidimensionais – tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a
cultura, a política e as instituições – e uma população com grupos sociais
relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio
de processos específicos, donde se pode distinguir um ou mais elementos
que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial (BAHIA, 2013,
p. 15)

Desta forma, pensar as políticas públicas (não apenas de cultura) a partir das
necessidades do território de identidade foi uma mudança radical dentro do planejamento do
Estado. O foco das ações deixa de ser “um setor produtivo específico (o setor industrial, por
exemplo), ou de um ator social, e passa a ser o território e suas diferentes dimensões de
desenvolvimento” (BAHIA, 2013, p. 14). Portanto, é neste contexto que ocorre a
transferência da DEC para a Sudecult, superintendência responsável pela formulação e
execução de programas e políticas com foco no desenvolvimento territorial da cultura.
Há de se destacar ainda que nas últimas conferências de cultura realizadas no estado 5,
diversos municípios e territórios de identidade indicaram entre as suas principais demandas a
construção de um espaço cultural em sua comunidade. Isto sugere o quanto a sociedade
valoriza a importância de se ter um local para criar e expor suas artes e manifestações
culturais, um espaço onde possa intercambiar com outras localidades e juntos criar,
compartilhar e usufruir de suas produções e expressões.

5
Foram consultados os relatórios das Conferências Estadual de Cultura dos anos de 2007, 2009 e 2013,
disponíveis em: <http://www.cultura.ba.gov.br/wp-content/uploads/2010/12/Relatorio_SECULT-2007-
2010.pdf> e <http://culturabahia.com/>. Último acesso em 21 de dezembro de 2014

1228

V V
O gestor cultural Antonio Sartini diz em seu texto ‘Espaços Culturais: políticas de
gestão para espaços distintos’ que, em geral, as atividades culturais quando realizadas em
espaços apropriados são melhores aproveitadas e absorvidas pelas pessoas6.
(...) o relatório de consultoria contratada pelo BID – Banco
Interamericano de Desenvolvimento, (...) concluiu que as atividades eram
mais aproveitadas pela população quando realizadas nos espaços culturais,
cujo ambiente se mostrava fisicamente mais apropriado e “emocionalmente”
mais neutro (SARTINI, 2013, p. 4).

A garantia destes espaços para criação, difusão e fruição cultural, pode-se dizer, fazem
parte do escopo de direitos culturais defendidos por organismos internacionais como a ONU.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948 pelas Nações Unidas,
em seu artigo XXVII, diz que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida
cultural da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos
benefícios que deles resultam” (ONU, 1948). Segundo Bernardo Mata-Machado, historiador e
um dos responsáveis pela reformulação do Sistema Nacional de Cultura, em 2009, o direito à
participação na vida cultural “engloba os direitos à livre criação, livre fruição (ou acesso),
livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural - o direito à identidade
cultural (ou de proteção do patrimônio cultural)” (2007, p. 6).
Isto posto, entende-se que as edificações voltadas às atividades culturais, a exemplo
dos centros de cultura, podem ser instrumentos de garantia à participação na vida cultural,
uma vez que tais locais “são território adequado a abrigar toda espécie de ação cultural”
(SARTINI, 2013, p. 5) e podem, assim, acolher, apoiar e difundir a diversidade cultural tão
característica dos mais diversos territórios de identidade do estado.

Espaços culturais públicos e gestão participativa


Relatórios de gestão da Funceb dos anos de 2003 e 2004 demonstram que havia uma
estagnação de investimentos e falta de manutenção nos equipamentos técnicos (luz, som e
projeção) nos centros de cultura, principalmente no interior. Além da falta de recursos
humanos especializado: bilheteiros, técnicos de iluminação, sonorização e projeção, entre
outros tão necessários ao funcionamento satisfatório de espaços desta natureza. A
pesquisadora e gestora cultural Giuliana Kauark transcreve em seu artigo ‘Políticas culturais

6
Este texto compõe o conjunto de módulos do Curso EAD em Gestão de Espaços Culturais promovido pela
Inspire Gestão Cultural, dirigido pela pesquisadora Maria Helena Cunha. Mais informações em:
http://inspirebr.com.br/.

1229

V V
dos governos César Borges (1998 a 2002) e Paulo Souto (2003 a 2006)’, parte das
informações que compunham os relatórios de gestão da Funceb dos anos mencionados:
Os Centros de Cultura (...) apresentam deficiências de ordem
cenotécnica, com iluminação precária e equipamentos obsoletos, inexistência
de equipamentos de sonorização e de varas cênicas e de iluminotécnica,
planejamento precário além de outros problemas estruturais, que dificultam a
plena ocupação dos espaços. (...) Devolver aos Centros de Cultura, da capital
e interior, as condições básicas para que atuem como suporte natural para a
circulação da produção artística baiana, exige investimentos
consideravelmente superiores ao orçado em 2003 (BAHIA, 2003, citado em
KAUARK, 2006, p. 6)

Em relação à programação, uma significativa parcela das pautas nos dias ditos nobres
(sextas, sábados e domingos) eram ocupadas por eventos “não-artísticos”, principalmente nos
espaços culturais do interior. Estas pautas eram ocupadas basicamente por eventos político-
partidários, religiosos e formaturas. Em alguns espaços, os poucos eventos artísticos que
aconteciam eram promovidos pela própria Funceb:
Quando assinalada a limitada ocupação dos espaços, restrita a
algumas apresentações pontuais ou realização de atividades educativas, estes
são equipamentos do interior, sobretudo, ou da capital localizados em bairros
periféricos. Os Centros do interior e os espaços na capital mais deficitários,
como os Teatros do ICEIA, Solar da Boa Vista e os Centro de Cultura de
Alagados e de Plataforma (que se encontra desativado), abrigam
principalmente (ou somente, em alguns casos) espetáculos inseridos no
projeto de CirculAção Cultural e oficinas promovidas também pela SCT
(KAUARK, 2006, p. 07).

O baixo investimento na manutenção física dos espaços, a falta de pessoal


especializado, ausência de programação artístico-cultural sistemática são alguns dos possíveis
fatores apontados como responsáveis pelo distanciamento entre os centros de cultura e as
comunidades do entorno, considerando o fato destas comunidades serem um público potencial
desses espaços.
Diante deste quadro, a partir de 2007 a Funceb passou a investir na aproximação e
interação dos centros de cultura com as comunidades, grupos artístico-culturais, produtores e
agentes de cultura dos municípios e/ou bairros onde estão localizados, conforme relatório do
órgão dos anos de 2007 e 20087. Neste sentido, uma das primeiras ações foi selecionar para a
coordenação de cada centro de cultura profissionais que tivessem atuação na área cultural e
articulação com a classe e grupos artísticos dos seus municípios e/ou bairros. A ideia de levar

7
Informação disponível no relatório de gestão da Funceb dos anos 2007 e 2008:
http://www.cultura.ba.gov.br/wp-content/uploads/2010/07/relatorio_2007-2008-web.pdf. Último acesso em 16
de dezembro de 2014

1230

V V
ao posto de coordenador um perfil de profissional com articulação na comunidade visava criar
um canal aberto entre os espaços e a sociedade civil. Uma vez selecionados, os coordenadores
foram estimulados a promover nos centros de cultura encontros regulares com artistas,
produtores, agentes culturais e público interessado, visando discutir assuntos pertinentes à
gestão e aos usos que se dariam aos espaços complementares do centro (salas de ensaio, por
exemplo). Nestes encontros buscava-se também apresentar as políticas que estavam sendo
implementadas pela Secretaria de Cultura, a exemplo dos editais, conferências, as novas
regras para a utilização do fundo de cultura, entre outras.
Alinhada com as diretrizes de democratização e interiorização da
política cultural da SECULT, a FUNCEB aposta num modelo de gestão
participativa nos espaços culturais sob sua administração, o que tem
permitido um maior envolvimento das comunidades com os gestores dos
espaços. Os coordenadores dos espaços passaram a ser escolhidos a partir da
indicação das comunidades e da experiência em gestão e produção cultural
(FUNCEB, 2009, p. 65).

Experiências diferenciadas de gestão participativa foram assim promovidas em tais


espaços. Alguns estabeleceram uma forte articulação com a comunidade, como os espaços de
Plataforma (Centro Cultural de Plataforma) e Alagados (Espaço Cultural Alagados), na
periferia de Salvador, enquanto outros mantiveram uma conexão maior com grupos artísticos
residentes que passaram a realizar ações de caráter permanente, a exemplo do Cineteatro
Solar Boa Vista, no bairro do Engenho Velho de Brotas. Nos espaços do interior o Centro de
Cultura Amélio Amorim (Feira de Santana), a Casa de Cultura de Mutuípe (Mutuípe), o
Centro de Cultura João Gilberto (Juazeiro), por exemplo, também esboçaram ações neste
sentido, abrindo espaço para abrigar Pontos de Cultura e grupos artísticos residentes, além de
realizar reuniões regulares com artistas, estudantes secundaristas e universitários, produtores
culturais, educadores e público interessado sobre os usos que deveriam ser dados ao Centro.
Também foi promovido um maior diálogo com a classe artística,
convocada a se organizar em fóruns para trabalhar em conjunto com as
coordenações de cada espaço. Alguns espaços, como o Centro Cultural
Plataforma, Espaço Cultural Alagados, Casa da Música, Casa de Cultura de
Mutuípe e Cine-Teatro Solar Boa Vista conseguiram estabelecer uma relação
de parceria bastante positiva com artistas e grupos organizados, pontos de
cultura e comunidade local, resultando numa maior atuação destes nos
espaços e em sua programação. Em Mutuípe, por exemplo, a Casa de
Cultura, em parceria com a Associação Capoeira Axé Bahia, abriga o Ponto
de Cultura Vale do Jiquiriçá, que oferece atividades de formação em
capoeira e manifestações populares como samba de roda, maculelê e dança
afro (FUNCEB, 2009, p. 65).

1231

V V
Há de se destacar, no entanto, que as especificidades de cada espaço (física, de
pessoal, localização geográfica, entre outras) e a realidade local das comunidades e bairros em
que estão inseridos foram determinantes na construção deste processo de articulação e
aproximação com a sociedade civil. Os espaços de Plataforma e Alagados, por exemplo, estão
localizados em regiões com forte presença de movimentos sociais, bem como de grupos
artísticos amadores, semiprofissionais e profissionais, que antes mesmo da iniciativa do
estado em propor um espaço de diálogo, demandavam suas necessidades na área cultural
demonstrando já haver nestas regiões uma forte rede de articulação. Vale ressaltar, que os
coordenadores destes dois espaços foram eleitos/escolhidos pelos movimentos sociais e
grupos artísticos daqueles bairros, tendo sido a decisão acatada pela Secult.
No Cineteatro Solar Boa Vista, por exemplo, as articulações para a participação social
se deram, ao contrário de Plataforma e Alagados, “de cima para baixo”. No bairro do
Engenho Velho de Brotas, onde está localizado o Solar, embora se soubesse da existência de
grupos artísticos (amadores e profissionais), grupos de manifestações culturais, ONG’s que
trabalham com arte e cultura, bordadeiras e fazedores de artesanato, havia pouco ou nenhum
diálogo entre eles. Desta forma, o processo de articulação se deu a partir do estímulo da
Secult, que realizou inúmeros encontros, reuniões e promoveu diversos projetos no intuito de
fortalecer a relação destes grupos com o espaço. Em muitas das programações promovidas
pelo Cineteatro havia uma presença significativa dos grupos locais, sendo a realização de tais
atividades possível devido à articulação e parceria estabelecida com a comunidade local.
Verifica-se assim que em alguns espaços a interação com a comunidade se deu de
forma mais contundente e significativa, como no Centro Cultural Plataforma, Espaço Cultural
Alagados, Cineteatro Solar Boa Vista, Casa de Cultura de Mutuípe e Centro de Cultura
Amélio Amorim, e em outros de forma mais acanhada e irregular, a exemplo do Centro de
Cultura de Guanambi, Cineteatro Lauro de Freitas e Teatro Dona Canô. A participação da
comunidade também se deu em níveis e em campos diferentes: em alguns centros o
envolvimento da comunidade cultural se concentrou em dinamizar a programação artística;
outros avançaram, e passaram a participar nas discussões sobre os usos que deveriam ser
dados a cada espaço do centro cultural (salas de ensaio, foyer, sala principal, arena, área
externa, outros), intervindo, como no caso de Plataforma e Alagados, até mesmo na definição
da programação.
Segundo Chicco Assis, no intuito de garantir a permanência dos espaços de diálogo
que foram estabelecidos neste período, a Secult publicou em novembro de 2014, no final do

1232

V V
segundo ano da gestão Jacques Wanger (PT-Ba), uma portaria institucionalizando colegiados
de gestão participativa no âmbito dos espaços culturais. O objetivo é que tais colegiados
sejam instituídos em todos os 17 centros da Diretoria e em outros espaços culturais mantidos
pela Secult que, em caráter opinativo e consultivo, possam, entre outras coisas, colaborar na
ampliação da participação das comunidades locais e territoriais na gestão institucional e
cultural de tais espaços. Segundo a portaria, cada colegiado será composto por instâncias
básicas: a plenária e a mesa coordenadora; a primeira será constituída por agentes culturais e
representantes de instituições de reconhecida atuação na área cultural, social ou educacional
no bairro, cidade e/ou território de identidade, onde o espaço cultural estiver sediado; e a
segunda, terá limite mínimo de 05 (cinco) e máximo de 15 (quinze) membros titulares, eleitos
entre os membros da plenária, a depender das características de cada espaço cultural.
Vale registrar que documentos oficiais da Funceb e registros na imprensa à época da
construção dos centros de cultura no interior dão conta que a intenção do Estado era gerir
aqueles espaços envolvendo outras pessoas de fora da administração pública, como pode ser
observado nesse trecho de uma matéria do jornal INTERURB8:
“Todavia, para gerir o Centro de Cultura sempre será escolhido
alguém do próprio município”. Os critérios de seleção, segundo a Drª. Olívia
Barradas [Diretora da Funceb entre os anos de 1983 e 1986], serão o
conhecimento das rotinas administrativas do Estado e a sensibilidade para
área cultural. Por outro lado, para apoiar o trabalho do diretor do centro, a
FCEBa [antiga sigla da Funceb - Fundação Cultural do Estado da Bahia]
estuda a alternativa de compor um conselho consultivo em cada município,
integrado pelos representantes mais importantes de cada segmento artístico e
cultural (Salvador, 1986, p.5).

Desta forma, uma vez instituído, o Colegiado de Gestão Participativa no âmbito dos
espaços culturais da Secretaria de Cultura, atenderá um desejo do Estado colocado em prática
quase trinta anos após a finalização da construção dos centros de cultura do interior, conforme
expressado na fala da ex-diretora da Funceb, Olívia Barradas. Não se sabe, porém, se
seguindo o mesmo modelo aqui exposto.

Algumas considerações
É responsabilidade do Estado criar canais de diálogo, incentivar a participação, ouvir o
que foi debatido e apresentado como as principais demandas e necessidades, para formular

8
CENTRO DE CULTURA É EXPRESSÃO DO RESPEITO À CULTURA POPULAR, Jornal Interurb,
Salvador-Ba, julho de 1986, p. 4 e 5. A INTERURB era a Companhia de Desenvolvimento e Articulação
Municipal, órgão estadual criado em 1983. Foi responsável pela construção dos centros de cultura da Funceb no
interior.

1233

V V
políticas públicas que, de fato, representem os anseios dos cidadãos. Estes canais de diálogo
precisam ser constantemente aprimorados, buscando sempre uma participação qualificada da
sociedade civil. Contudo, na democracia, se de um lado o Estado tem suas obrigações, os
cidadãos têm seus deveres; “é necessário que eles se apropriem dos canais de participação
abertos pelo Estado, ampliando, intensificando e tornando-os vivos, constantes e mais
democráticos, desenvolvendo e aprimorando uma cultura participativa” (BAHIA, 2013a, p.
9). Garantir a participação social nos rumos das políticas públicas de cultura é, portanto,
garantir um direito cultural universal, previsto, também na constituição brasileira, que cita a
dimensão cidadã da cultura como um de seus três pilares.
Com a institucionalização dos Colegiados de Gestão Participativa, a Secult está
estabelecendo mais uma instância de participação, além dos já instituídos colegiados setoriais
de artes, dos fóruns de dirigentes municipais e das conferências de cultura; e, atenderá desta
forma, à Lei Orgânica da Cultura do Estado da Bahia9, que prevê, entre outras ações, a criação
de instâncias de consulta, participação e controle social.
A consolidação deste mecanismo de participação certamente será um marco na gestão
destes espaços culturais públicos, bem como na noção de pertencimento das comunidades
onde tais espaços estão inseridos. Mas alguns questionamentos não podem deixar de serem
postos: Será que a instituição do colegiado não engessará a participação espontânea que foi
construída ao longo das duas últimas gestões do governo estadual, uma vez que esta passaria a
ser mediada por normas e regras? Este modelo de participação tem sido discutido amplamente
entre todos os interessados? A sociedade civil terá outras formas de participar da gestão dos
espaços não sendo através dos colegiados? Além destas questões, é preciso alertar também
para a possibilidade de uma hierarquização da participação, uma vez que se prevê a
composição de uma mesa com membros que são indicados pela Secult. Como se darão as
relações de poder entre os atores sociais que comporão estes colegiados? Será que
funcionarão efetivamente como instrumentos de inclusão democrática ou se transformarão em
trampolim político de possíveis aventureiros?
Respostas a algumas destas perguntas teremos apenas com o tempo e o
amadurecimento das referidas ações. Acreditamos que o presente estudo e sua sequência
poderá contribuir para uma melhor compreensão acerca de temas tão caros à cultura hoje:
gestão de espaços culturais públicos; participação social; direitos culturais; políticas públicas
de cultura; mecanismos de diálogo. Além, é claro, de colaborar para a organização de

9
Artigos nº 4 e 6 da Lei nº 12.365 - Lei Orgânica da Cultura, de 30 de novembro de 2011.

1234

V V
informações e dados que poderão possivelmente alimentar outras pesquisas e bibliografias
referentes às temáticas mencionadas que, infelizmente, ainda são tão restritas e diminutas.

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BAHIA (estado). Secretaria de Cultura e Turismo. Memória da cultura; 30 anos da Fundação


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<http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/colegiadossetoriais/LEI-ORGANICA-BAHIA.pdf> Último
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YUDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. BH: Ed UFMG,
2006.

1235

V V
A DESCENTRALIZAÇÃO NO CARNAVAL MULTICULTURAL DO RECIFE: FESTA,
POLÍTICA E CIDADE
Rafael Moura de Andrade1

RESUMO: Apesar da relevância inquestionável da teoria elaborada por Roberto DaMatta


(1990) sobre a festa, tendo sido alvo de uma ampla política pública que promoveu uma
profunda mudança no modelo de organização da festa, o carnaval do Recife precisa ser
encarado a partir de uma outra perspectiva. É fundamental compreender a festa em seu caráter
ordinário, como se o rito fosse não de inversão de status, mas de intensificação do tempo do
trabalho e da ordem. Para tanto, este artigo propõe auxiliar na compreensão do que foi a
política multicultural implementada no carnaval do Recife especialmente em sua relação com
o espaço urbano e com as dinâmicas políticas dos bairros periféricos.

PALAVRAS-CHAVE: Carnaval Multicultural, Cidade, Política cultural, Recife.

É de fazer chorar! Quando o dia amanhece e obriga o frevo a acabar! Oh! quarta-feira ingrata,
chega tão depressa só pra contrariar. Quem é de fato um bom pernambucano espera um ano e se mete
na brincadeira. Esquece tudo quando cai no frevo, e no melhor da festa chega a quarta-feira. (É de
fazer chorar, Luiz Bandeira)

Em uma cidade como o Recife, onde o carnaval é uma festa mais que sagrada, ainda
que absolutamente profana, o rito momesco de passagem teima em repetir-se ano após ano
como se nada mais importasse. Fato social total que é, encerra em si mesmo todas as
dimensões da vida local e coloca para o observador mais atento um sem número de questões
que podem ser encaradas por outro sem número de perspectivas interpretativas. Longe de
poder encerrar num só artigo todas elas – e ainda que fosse este um grande livro, suspeito que
não seria suficiente para tanto –, proponho aqui observar a festa em sua relação com a capital
pernambucana, abordando a política da festa e a construção ritual de um imaginário urbano a
partir de uma abordagem situada na interface entre a história e a antropologia.
Diz-se por aqui que o ano só começa depois do carnaval. Há um sentido nisso.
Antes de encerrado, toda a cidade está voltada para as festas pré-carnavalescas, que chegam a
anteceder o carnaval em alguns meses, para os preparativos da folia em si, para os desfiles dos
blocos, para os ensaios de maracatu, de caboclinho, das orquestras de frevo. Tudo já é
carnaval mesmo antes do Sábado de Zé Pereira – ou Sábado do Galo, como também é
conhecido pelas bandas de cá. A importância que a folia desempenha para a cultura local é

1
Jornalista, especialista em Mediação Cultural e mestrando em Antropologia pela Universidade Federal de
Pernambuco. Bolsista CNPq. E-mail: rafael.moura.andrade@gmail.com.

1236

V V
incomensurável, tendo a cidade se desenvolvido enquanto tal na medida em que se
desenvolvia também o carnaval e sua principal expressão artística, o frevo.
Apesar da relação ser antiga2, é possível destacar a virada do século XX para o
XXI como sendo o momento crucial para uma recriação do imaginário da cidade a partir do
ritual carnavalesco. E ainda que a festa seja invariavelmente compreendida como um
fenômeno espontâneo e democrático – ou, nas palavras de Roberto DaMatta (1990), liminar –
faz-se mister destacar a presença do Estado, através da Prefeitura da Cidade do Recife, na
organização da folia a partir da política que ficou conhecida como Multicultural. Numa breve
explicação, a política do Multicultural se dividia em duas partes: a) o Programa Multicultural,
que contava com cursos de formação e capacitação, fomento a produtores culturais dos
bairros, articulação de lideranças em torno da temática da cultura popular, entre outras ações;
e b) o Carnaval Multicultural do Recife, CMR, um modelo de organização da festa que seria
implantado de maneira tão intensa a ponto de criar uma nova tradição festiva na cidade do
Recife.
Como não poderia deixar de ser, ao utilizar o termo multicultural para designar
uma política pública, tornou-se impossível dissociar tal marca das políticas e teorias
multiculturais surgidas nos Estados Unidos da América do pós-Segunda Guerra Mundial.
Conforme propõem os pesquisadores Brunno Gaião e André Luiz Leão (2013), se tratarmos o
carnaval local a partir das tensões existentes entre os campos discursivos identificados por
eles, torna-se possível observar o conflito existente entre os campos da produção erudita
(BOURDIEU, 2011) e o da gestão pública no tocante à ideia de multiculturalismo. Enquanto
o primeiro trata o tema a partir de uma perspectiva teórica advinda da sociologia e da filosofia
política, o segundo está interessado em compreender a categoria como uma marca de gestão
capaz de designar meramente um modelo de organização da festa. A tensão decorrente da
aproximação entre os campos da academia e da gestão se dá na medida em que pesquisadores,
professores e pós-graduandos começam a trabalhar para a Secretaria de Cultura e a Fundação
de Cultura da Cidade do Recife. Neste momento, o debate sobre o multiculturalismo, que no
campo teórico tem suas limitações conforme demonstrei em artigo anterior (ANDRADE,
2014), passa a ser compreendido de maneira mais ampla, adotando a compreensão nativa tal
qual elaborada pelos gestores responsáveis pela implementação da política. A academia passa,
portanto, a se aproximar cada vez mais da gestão.

2
Data do final do século XIX a re-ocupação do espaço público pelos foliões, seguindo um modelo adotado na
Europa, notadamente na França (ARAÚJO, 1997).

1237

V V
É objetivo deste artigo, portanto, apresentar a política multicultural para o
carnaval do Recife e levantar uma reflexão acerca da aproximação entre a política cultural
para a festa e as políticas para a cidade. As informações aqui apresentadas foram coletadas em
conversas com alguns interlocutores que fizeram parte da criação e implementação do
Carnaval Multicultural do Recife.

O CARNAVAL MULTICULTURAL DO RECIFE


Considerado uma festa espontânea e democrática, o Carnaval é estudado
frequentemente a partir da perspectiva inaugurada pelo antropólogo Roberto DaMatta (1984;
1990), que trabalhou a temática tendo como base a teoria ritual de Victor Turner (2013).
Segundo o autor, o carnaval seria um momento de transição, de liminaridade, entre o tempo
da ordem e o tempo extraordinário. Acabada a festa, voltaríamos à vida cotidiana regida pelo
trabalho. O problema é que, ao ser confrontada com a realidade do carnaval do Recife,
sobretudo a partir do início dos anos 2000, vê-se que a teoria torna-se insuficiente para uma
interpretação ampla da festa.
Apesar de ainda ser possível vislumbrar a folia a partir da perspectiva do folião
individual proposta por DaMatta (1990), tendo sido alvo de uma ampla política pública que
promoveu uma profunda mudança no modelo de organização da festa, o carnaval do Recife
precisa ser encarado com um outro olhar. É fundamental compreender a festa em seu caráter
ordinário, como se o rito fosse não de inversão de status, mas de intensificação do tempo do
trabalho e da ordem. Para tanto, é de fundamental importância compreender o que foi a
política multicultural implementada no carnaval do Recife.
Segundo interlocutores ligados à gestão cultural do Recife entre 2001 e 2008 – período
em que a Prefeitura local foi comandada por João Paulo, do Partido dos Trabalhadores –
inicialmente o principal projeto da recém-criada Secretaria de Cultura – já sob o comando de
João Roberto Peixe – era o chamado Programa Multicultural. Com uma vasta gama de ações
que iam desde oficinas, workshops e cursos de formação até a realização de eventos e
articulação de lideranças, o Multicultural foi o responsável por iniciar um processo que viria a
ser uma das principais marcas do carnaval organizado pela instituição. A descentralização,
que está também no cerne da compreensão de multiculturalismo conforme aplicada ao
carnaval, era um dos pontos fortes do programa multicultural e serviu, entre outras coisas,
para aumentar as formas de participação da sociedade civil na política municipal. Ao

1238

V V
aproximar as ações da Prefeitura da população das periferias, a instituição visava a alcançar
uma maior paridade de participação social.
Desta forma, ao aplicar as diretrizes do Programa Multicultural na organização da
festa carnavalesca, a PCR reestruturou o modelo de participação social na festa. O que
anteriormente era compreendido como uma festa espontânea e centralizada, passou a ser uma
festa organizada/controlada pelo poder público e descentralizada. Durante os anos de 2001 e
2008, o Carnaval Multicultural do Recife foi organizado obedecendo basicamente a seguinte
forma: 08 polos centralizados, localizados no bairro do Recife e São José, cada qual com um
nome específico e uma identidade bem definida; 08 ou 09 polos descentralizados, com
pequena variação entre os bairros escolhidos, levando-se em consideração as 06 Regiões
Político-Administrativas, RPA’s; e entre 30 e 40 polos comunitários, ou polinhos, espalhados
pelos bairros periféricos da cidade. Apesar de alguns interlocutores representantes da gestão
pública negarem haver uma diferença substancial entre os polos centrais e os polos
descentralizados, a estrutura e o tamanho dos palcos, a decoração e a área de produção de
cada polo, além da programação artística era visivelmente inferior nos bairros em comparação
com os principais polos de animação. Se colocarmos na comparação também os polinhos, a
diferença torna-se ainda mais relevante.
Outro fator importante a ser destacado como característica fundamental deste novo
modelo de carnaval é a mudança no paradigma da festa. Antes conhecida por seu caráter
participativo, passa a ser organizada a partir da ideia do espetáculo, com palcos e sistema de
som e iluminação de ótima qualidade, agremiações desfilando no centro dos polos de
animação ou a frente de cada palco e o público convidado a participar mais como espectador
do que como um sujeito ativo da folia. A participação da sociedade, neste novo modelo, muda
de contexto e passa a ser mais claramente percebida nas disputas políticas enfatizadas pela
festa que pela folia em si. Entre os modelos de carnaval participação e de carnaval
espetáculo, o Multicultural parece se aproximar mais do segundo. Mas, como já destacamos,
a participação não está ausente, apenas mudou de contexto.
Ao trazer a sociedade civil para o centro do debate sobre o carnaval, a participação
popular na festa passou a ser compreendida não mais no momento da brincadeira, mas no da
organização da folia. E neste momento foi possível compreender que o carnaval é bom pra
brincar, pra pensar, mas também é bom pra fazer política. A partir do Carnaval Multicultural,
a Prefeitura da Cidade do Recife começou a compreender o poder de mediação político-
cultural presente no carnaval da cidade.

1239

V V
DESCENTRALIZANDO A FESTA
Além da mudança no sentido da participação social na festa, outro fazer
importante deste novo modelo de carnaval deve ser destacado: a dimensão espacial.
Anteriormente concentrado na zona central da cidade, sobretudo com os desfiles de
agremiações acontecendo na Avenida Dantas Barreto e as apresentações de orquestras de
frevo no chamado Quartel General do Frevo, na Praça do Diário, o carnaval do Recife a partir
de Multicultural passou a ser festejado de maneira descentralizada. No primeiro ano, ainda
em 2001, a Prefeitura decidiu criar três polos descentralizados de folia – além dos já criados
polos principais, localizados no bairro turístico do Recife Antigo: o Polo do Ibura, na Zona
Sul da cidade; o Polo da Varzea, na Zona Oeste; e o Polo de Casa Amarela, na Zona Norte.
Cada polo criado por um motivo diferente, começava aí o processo pelo qual ficaria
conhecido o carnaval local.
O bairro do Ibura, por exemplo, fora escolhido polo descentralizado por ser
berço político do então prefeito eleito, João Paulo. Trata-se portanto, de uma escolha político-
eleitoral. Assim com foi a escolha do bairro da Várzea, tradicional reduto da esquerda
recifense. Já o bairro de Casa Amarela, localizado no coração da Zona Norte da Cidade, foi
escolhido por ser um bairro populoso e de importante localização entre os morros (Alto José
do Pinho, Morro da Conceição, Alto José Bonifácio, etc.) e os bairros de Casa Forte, Poço da
Panela, Parnamirim, estes de classe média.
A partir do segundo ano de gestão, novos polos descentralizados foram criados,
cada um atendendo a um objetivo ou demanda específica. Em comum, a necessidade de
ocupar a cidade, de fazer a festa servir como mediadora da diversidade cultural característica
da metrópole. Se antes o carnaval era realizado, sobretudo, no centro da cidade, a partir de
2002 o cenário passaria a ser diferente. Um mapa aproximado dos Polos Centrais e
Descentralizados do carnaval pode dar a dimensão do que significou a festa em termos de
ocupação da cidade.

1240

V V
Imagem 01: Polos Centrais localizados nos bairros de Santo Antônio, São José, Boa Vista e Recife.

FONTE: Google Maps.

Imagem 02: Polos Descentralizados (Nova Descoberta; Ibura; Santo Amaro; Alto José do Pinho; Casa Amarela;
Várzea; Jardim São Paulo; e Chão de Estrela).

FONTE: Google Maps

1241

V V
É possível observar na Imagem 01 que os Polos Centrais estão localizados nos bairros
onde tradicionalmente se concentravam os carnavais do Recife. Já na Imagem 02, apreende-se
a dimensão espacial da política multicultural, visto que, com a descentralização dos polos, a
festa passa a ser realizada em toda a cidade. Os espaços anteriormente relegados pelo poder
público passam a receber atenção especial, como se a gestão quisesse ocupar uma lacuna
existente, uma ausência de Estado em determinadas localidade.
Além dos Polos Centrais e Descentralizados, o esforço para a criação de um
imaginário sobre a cidade a partir da festa intensifica-se na medida em que, em certo
momento, são criados cerca de 40 Polos Comunitários, os chamados polinhos, além dos
Corredores da Folia. Estes últimos, como o nome faz supor, tratam-se de corredores
organizados em estreitas ruas das periferias da cidade por onde passagem blocos, troças e
demais agremiações carnavalescas. Já os polinhos foram criados com objetivo de, por um
lado, dar maior autonomia popular para a organização da festa e, por outro, disseminar sua
presença na festa ao máximo.
Há, portanto, dois importante fatores a serem destacados no processo de
descentralização implementado pela política multicultural no carnaval do Recife. O primeiro
deles, o da ocupação da cidade e sua consequente transformação em mediadora da diversidade
durante a festa. O segundo, o incentivo à articulação política das comunidades periféricas e o
convite à participação ativa na gestão cultural da cidade. Sobre o primeiro há pouco a
acrescentar. A partir de 2001, inicia-se um processo de reinvenção do imaginário sobre a
cidade, levando as pessoas a circularem espontaneamente entre os bairros periféricos em
busca de experiências culturais diversificadas. Moradores dos considerados bairros nobres da
cidade passam a frequentar, ao menos durante a folia, alguns bairros periféricos com o intuito
de assistir às apresentações de palco de cada polo. Desse fluxo cresce o interesse por artistas,
bandas e agremiações localizadas nas periferias, a exemplo da Orquestra Popular da Bomba
do Hemetério, criada em 2002 e comandada pelo Maestro Francisco Amâncio da Silva, o
Maestro Forró.
Com relação ao segundo fator destacado acima, é preciso entender o funcionamento
dos Polos Descentralizados. Num carnaval marcado pela ordem, como fora o Carnaval
Multicultural do Recife, organizado pela Prefeitura da Cidade do Recife, é possível
vislumbrar uma hierarquia da festa composta inicialmente por: no topo da escala, o Polo
Multicultural, localizado no Marco Zero e espaço oficial da abertura e do encerramento da
festa; logo abaixo os demais polos centrais, localizados no centro da cidade conforme

1242

V V
ilustrado na Imagem 01 e cada um nomeado de acordo com a característica a ser introduzida
no palco – por exemplo, Polo Mangue, para a chamada cena alternativa, Polo das Fantasias
para um carnaval mais tradicional, e assim por diante; e por fim os Polos Descentralizados,
cuja festa inicialmente tinha inicio apenas no domingo de carnaval e misturava atrações
nacionais – geralmente uma por noite – e artistas locais, frequentemente do próprio bairro. A
partir de 2002, segundo ano portanto da gestão do PT na cidade, os Polos Descentralizados
foram aumentando em número e importância. Passaram a ser debatidos nos fóruns temáticos
do Orçamento Participativo e também nos fóruns permanentes do Conselho Municipal de
Política Cultural e suas demandas eram levadas diretamente ao Secretário de Cultura e criador
do Multicultural, João Roberto Peixe. É neste momento que se inicia o processo de
articulação político-cultural dentro das comunidades.
Em cada bairro foi-se criando uma hierarquia que permitia ordenar a organização da
festa e envolver a comunidade. Com uma equipe composta por aproximadamente vinte
pessoas divididas nas funções de Coordenador de Polo, Supervisor de Polo, Auxiliar de
Supervisor e Apoio, foi possível dar maior protagonismo para os moradores do bairro que
passaram a ver na festa uma forma de, em primeiro lugar, ganhar um dinheiro extra – um dos
critérios para a escolha dos integrantes da equipe, segundo Prazeres Barros, então
coordenadora dos Polos Descentralizados na Secretaria de Cultura, era estar desempregado –
e, em segundo lugar, se envolver com as questões relacionadas à comunidade. É importante
observar que foi a partir da organização do carnaval e também das ações empreendidas pelo
Programa Multicultural que muitas pessoas passaram a ver na produção cultural em suas
mais diversas áreas uma possibilidade real de mudança. Este é, por exemplo, o caso de
diversas travestis e transexuais que deixaram a prostituição para se dedicar à vida artística,
como informa Zé Cleto, Diretor de Cultura/LGBT da Federação Ibura/Jordão, que congrega
56 entidades representativas dos moradores do bairro. Segundo ele, no Carnaval do Recife
20153, por exemplo, seis travestis inscreveram seus shows no edital da Prefeitura para a
seleção da programação oficial da festa. Dentre as inscrições, quatro foram selecionadas e
farão parte da festa.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

3
A partir de 2013, com a mudança da gestão do Partido dos Trabalhadores para o Partido Socialista Brasileiro, o
slogan Carnaval Multicultural do Recife foi deixado de lado.

1243

V V
A política cultural enquanto estratégia de mediação dialógica, conforme trabalhada
anteriormente (ANDRADE, 2013), desempenha um papel fundamental para o
desenvolvimento social na cidade do Recife no contexto do Carnaval Multicultural. O
processo ritual (TURNER, 2013) de construção da política multicultural e de sua aplicação
nos bairros periféricos através do processo de descentralização dos polos de animação do
carnaval promove uma mudança no paradigma organizacional da festa. Se não podemos falar
exatamente em termos da liminaridade e da inversão proposta por DaMatta (1990), ao menos
o espírito carnavalesco de Bakhtin (2010) – apenas para nos ater aos clássicos – reforçando o
diálogo na folia pode ser observado. Diálogo com a cidade, que se vê fantasiada para a festa
não apenas em seu centro histórico e comercial, mas também nas periferias mais distantes.
Diálogo entre as diferenças, entre classes e gostos diversos, entre o tradicional e o moderno e,
de diversas formas, entre o profano e o sagrado.
É curioso observar ainda que, sendo uma política de aproximação entre a sociedade
civil e o poder público, algo que caracterizou a gestão do PT em Recife, pode ser lida a partir
da ideia de fetiche da participação popular de que trata a professora Suely Leal, entendendo
as políticas de participação como sendo transformadas em valor mercadoria, numa leitura
marxista (2003, p.21). Apesar disto – ou talvez exatamente por este motivo – não deixa de
haver um caráter autoritário na criação de tais políticas, visto que a escolha dos bairros que
receberiam os polos descentralizados e da grade de programação da festa, além do modelo
predominantemente focado em atrações de palco, foi feita em última instância pela própria
Prefeitura. Desta forma, exemplifica-se a nível local a interpretação desenvolvida pelo
professor Antônio Albino Rubim sobre as tristes tradições das políticas culturais no Brasil: a
ausência, a instabilidade e o autoritarismo (2008, p.185). Para compreender a ausência e a
instabilidade nas políticas culturais da capital pernambucana seria necessário um resgate
histórico conjuntural para observar as rupturas que viriam a ser empreendidas no início da
gestão do PT em Recife e as posteriores mudanças ocorridas na gestão atual, do Partido
Socialista Brasileiro.
Se, por um lado, as duas primeiras tristes tradições carecem de uma investigação mais
apurada com relação ao contexto local, a terceira, do autoritarismo, parece um pouco mais
clara. Com a política centrada fundamentalmente na figura do Secretário de Cultura, João
Roberto Peixe, o processo de decisão acerca da política cultural, ao menos num nível inicial,
parecia também centralizada. A escolha do paradigma do espetáculo, a decisão pelo processo

1244

V V
de descentralização e os motivos escolhidos para a sua realização inicial nos bairros, todos
estes fatores, foram definidos de cima para baixo.
O autoritarismo – ou centralização, se preferirem –, por sua vez, acabou permitindo que a
população se aproximasse da gestão cultural na cidade. Se não foi possível apropriar-se
completamente da festa em todas as suas dimensões, a política multicultural em sua proposta
de descentralização ao menos permitiu a recriação de uma imagem da cidade a partir da festa
e a articulação social em torno dela para, a partir disto, criar movimentos culturais mais
consolidados e dinâmicas políticas mais participativas.

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1245

V V
FINANCIAMENTO DA CULTURA
SIGNIFICAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO TEMA NAS POLÍTICAS CULTURAIS:
O CASO PROCULTURA
Raquel Moreira1

RESUMO: Referencial de pesquisa do doutorado sobre política de financiamento da cultura,


o presente artigo é um trabalho preliminar de análise do Projeto de Lei - PL 6722/2010 nas
duas versões 2010 e 2014, tendo em vista as diversas alterações que o PL sofreu no período.
Busca-se refletir sobre as principais mudanças, ideias e tendências que perpassam os debates e
alterações em torno do Projeto de Lei, no contexto das políticas públicas de cultura. Assim,
fazemos breve um resumo dos pontos principais de alteração do PRONAC/Lei Rouanet,
segundo o Projeto de Lei na versão 2010 e em seguida da versão 2014 - PL 6722/2010-A,
comparando aspectos divergentes ou não e observando pontos críticos e possíveis tendências.

PALAVRAS-CHAVES: Financiamento; Procultura; Politica Cultural; Direitos culturais.

[...] É a medida desses recursos que dirá quanto realmente um Estado


entende e defende os direitos culturais. [...] (SHAHEED, 2011, pag.
14).

INTRODUÇÃO
Este artigo é parte da pesquisa no doutorado onde investigamos a relação entre as
políticas de financiamento da cultura e os avanços da aplicação dos direitos. O recorte da
pesquisa se dá sobre a análise dos processos decisórios, dos atores envolvidos e suas
percepções sobre os direitos culturais e o financiamento, percepções estas que podem estar
contidas na estruturação e no desenho do Projeto de Lei sobre financiamento da cultura que
há mais de quatro anos está em apreciação no Congresso Nacional – o PROCULTURA: PL -
Projeto de Lei 6722/20102. Na pesquisa, onde também cotejamos com aspectos da PEC
150/20033, confrontamos o PL com o atual mecanismo em vigor - o PRONAC/ Lei Rouanet -
especificamente no período de 2010-2014, buscando refletir sobre as indagações frente às
possibilidades da proposta do PROCULTURA e analisando os cenários que permeiam o tema

1
Doutoranda em Ciência Política pelo PPGCP/UFF – Universidade Federal Fluminense e Pesquisadora- Bolsista
em Políticas Culturais na Fundação Casa de Rui Barbosa.
2
PROCULTURA – Projeto de lei de atualização da Lei Rouanet, busca o fortalecimento do FNC - Fundo
Nacional de Cultur -, a democratização do acesso e o estímulo à economia da cultura.
3
PEC 150/2003 – A Proposta de Emenda à Constituição que estabelece um piso mínimo de 2% do orçamento
federal; 1,5% do orçamento estadual e 1% do orçamento municipal para a Cultura.

1246

V V
do financiamento da cultura: Sob qual perspectiva são delineadas as alterações do PL
6722/2010? Quais as premissas usadas e os interesses em jogo? Quais as apropriações e
significados dados ao tema do financiamento da cultura pelos gestores públicos em seus
processos decisórios, considerando que o PL trata de uma das grandes frentes para a
efetividade das políticas culturais?
Desta feita, este artigo é uma análise preliminar do PL - Projeto de Lei 6722/2010 nas
duas versões 2010 e 2014 e neste momento (ano de 2015) sinaliza-se que o PL passe por uma
possível rediscussão haja vista as últimas declarações do novo Ministro Juca Ferreira, cuja
iniciativa do PL ocorreu em seu primeiro mandato como titular do MinC (2008-10). Ao que
tudo indica, novos debates e contribuições estão por vir, estendendo o processo de apreciação
do PL entre os congressistas.

A CULTURA NA “ANTESSALA” DOS DIREITOS


Numa entrevista concedida em 2011, ao pesquisador Teixeira Coelho, a consultora
independente da ONU no campo dos Direitos Culturais Farida Shaheed delineou quais suas
prioridades à frente do cargo que ocupa desde 2009 e trouxe importantes reflexões do trabalho
de promover o (re) conhecimento e entendimento sobre os direitos culturais além da
disseminação de boas práticas da defesa desses direitos por parte dos governantes. Embora
considere parte de sua missão junto à UNESCO promover a cultura, segundo a Consultora o
escopo de sua atuação vai além da defesa da cultura per si quando diz “[...] enquanto a
promoção da cultura, bem como a garantia do pleno gozo dos direitos culturais pode exigir
recursos financeiros [...] nem todos os aspectos dos direitos culturais envolvem
necessariamente grandes recursos [...]”. (FARIDA SHAHEED, 2011, pag. 26).

“[...] o reconhecimento e respeito da diversidade cultural e da expressão


cultural muitas vezes exigem mais vontade política do que recursos
financeiros [...] Ao mesmo os Estados devem demonstrar que estão
constantemente tomando medidas necessárias para o pleno cumprimento dos
direitos culturais de acordo com o máximo de recursos disponíveis. [...]”.

Mesmo não enfatizando a questão da defesa dos recursos para a cultura como principal
medida sinalizadora de compromisso do Estado com a temática, chama-nos a atenção a fala
de Shaheed e que permeia nossa investigação sobre os processos decisórios dos atores
envolvidos na elaboração de políticas públicas e aqui, as politicas de financiamento da
cultura. Isto por que, ao discutirmos os modos e os meios pelos quais a cultura deverá ser
financiada, promovida e vista como fator importante de desenvolvimento, podemos nos

1247

V V
deparar com uma grande distância entre discurso e ações práticas efetivas. Visto que a
vontade política está entre as variáveis essenciais neste contexto, é possível considerar que
estes mesmos atores (gestores públicos) podem ou não ter o entendimento necessário sobre o
que é ou que pode ser os direitos culturais e, portanto sobre o que priorizar em suas decisões
na distribuição dos recursos públicos. Além disso, poderíamos acrescentar a este cenário a
questão da cultura política dos tomadores de decisão no país - seja no executivo ou no
legislativo. Isto considerando um país onde vícios característicos do modo de fazer política
patrimonialista e de caráter clientelista ainda permanecem (CHAUÍ, 2007).
Assim, a questão do financiamento da cultura perpassa antes pela compreensão do
que seja direito cultural e de como estes podem ser garantidos. Aliado a isto, uma boa dose de
entendimento acerca da diversidade cultural, que para Farida Shaheed, é uma questão que vai
além do fator econômico, mas principalmente do fator político. Vale lembrar que estas duas
frentes são assuntos contidos nas premissas do Plano Nacional de Cultura.
Para auxiliar nessa primeira parte da reflexão, três autores servem-nos de apoio na
compreensão de variáveis que perpassam sobre os processos democráticos no país quanto à
garantia do exercício dos direitos: aqui faremos apenas uma breve digressão sobre suas ideias.
São eles: o filósofo italiano Norberto Bobbio; o historiador e estudioso das constituições
brasileiras Marco Antônio Villaça; e o cientista político José Murilo de Carvalho.
Sobre o primeiro, citando Bobbio que havia certa vez expressado sobre sua obra A Era
dos Diretos de que “vivemos a era da expectativa de direitos”, diferente da “era dos direitos”,
Teixeira Coelho admite que as palavras do filósofo sejam menos pessimistas do que à
primeira vista possam parecer, mas trata-se de uma advertência preciosa: “estamos mais na
antessala dos direitos do que em seu território pleno” (TEIXEIRA COELHO, 2011, pag. 6 e
7). O segundo autor, o historiador brasileiro Marco Antônio Villa, nos levar a pensar sobre
estas questões em seu estudo das constituições brasileiras no livro A História das
Constituições do Brasil (2011) quando disse em entrevista ao Globo4 que “[...] ainda vivemos
numa infância constitucional [...] mas sem dúvida esta é a melhor das constituições brasileiras
[...]”, pois ajudou na consolidação da democracia do país.

4
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/brasil/ainda-vivemos-numa-infancia-constitucional-
diz-historiador-3221950#ixzz3SPrH3oyI

1248

V V
Já o terceiro autor, José Murilo de Carvalho, que ao analisa a trajetória da cidadania no
Brasil na obra Cidadania no Brasil: Um Longo Caminho (2002) propõe uma reflexão sobre o
percurso em que se constituiu a cidadania e analisa seu processo de desenvolvimento num
país marcado por períodos de autoritarismos e também de descontinuidades. Os três autores –
BOBBIO/direitos, VILLA/democracia e Carvalho/cidadania - têm entre diversos pontos em
comum, um que destacaríamos: a questão do exercício dos direitos num cenário em que as
democracias no século XXI ainda necessitam ter robustez para efetivar a plena cidadania e no
caso em questão a cidadania cultural (Chauí, 2007).
É desta perspectiva que nos remetemos às tentativas de planejamento das politicas
culturais no Brasil em três momentos diferentes do país - 1930/ Era Vargas; 1975/Ditadura
Militar; e 2000/Governo Lula - que Isaura Botelho chama de “Três Brasis”. Para a autora, este
último período (anos 2000) é o que se “vem investindo em ações mais estruturantes, que nos
permitem esperar uma melhoria significativa de espaços de gestão intergovernamental e de
cogestão com os movimentos culturais” (BOTELHO, 2007, p. 18). Assim, os “três Brasis”
sinalizam para uma leitura processual do amadurecimento do campo, sendo que a política
cultural se constituiu sob “pressupostos e conjunturas e necessidades políticas” (MOREIRA,
apud BOTELHO, 2007, p.1-2), permeadas entre os períodos de 1930/1975/2000, cujas
tentativas propiciou um desenho de políticas para a cultura, que embora descontinuadas,
foram atos recorrentes.
Desde as primeiras ideias de Mario de Andrade, em seu Anteprojeto de estudo para a
classificação do patrimônio cultural brasileiro, encomendado pelo então ministro da Cultura,
Gustavo Capanema - cuja proposta seria considerado anos mais tarde como o “gene, inovador
para a época, de um plano nacional de cultura, como o concebemos hoje“ (Botelho, 2007, p.
8); passando por Aluísio Magalhães - protagonista que “refazendo o elo projeto de
Capanema”, contribuiu sobremaneira para o fortalecendo o campo; até a proposição da
Política Nacional de Cultura em 1975 - importante marcador deste período para politicas
culturais do país. É nestas três “tentativas” (Botelho, 2006) que se formam os principais
acontecimentos que pontuam o percurso das políticas culturais do Brasil até os dias de hoje,
sendo este ultimo, e “pela primeira vez o governo federal inclui a cultura dentre as suas metas
políticas” (BOTELHO, 2006, p. 45-46).
Atualmente as politicas culturais possuem o Plano Nacional de Cultura – PNC/
Decreto Lei 12.343 de 02/12/2010 a ser implementado em dez anos e, na perspectiva da
democratização do acesso, é dedicado ao tema do financiamento um capítulo exclusivo, cujo

1249

V V
Capítulo III – Do Financiamento - trata das diretrizes que buscam dar equilíbrio para a melhor
distribuição dos recursos para a cultura.
Ao que nos parece e seguindo as pistas de Botelho, naquelas propostas já se defendiam
questões como a democratização do acesso, a difusão das criações, a preservação do
patrimônio cultural e o incentivo à criatividade, pontos bastante conhecidos nos atuais debates
sobre politicas culturais no Brasil e presentes no PNC. Entretanto há ainda um longo caminho
de consolidação e robustez de todos os esforços até agora empreendidos na busca por uma
politica publica de cultura que consiga atender às demandas latentes no que se refere ao pleno
exercício dos direitos culturais, principalmente por estes estarem com outros direitos ainda em
posição de “fila de espera” e pode ser que ainda gastemos um tempo na antessala, desejando
que se possa vislumbrar a desejada cidadania cultural.

LINHA DO TEMPO PROCULTURA5


No capítulo III do Decreto Lei 12.343/2010, o Plano Nacional de Cultura – PNC,
exclusivo sobre o financiamento, destacam-se, em especial três pontos de um tripé da tarefa
de fomentar/financiar a cultura frente ao modelo em vigor, constantes dos artigos 4º, 5º e 7º,
que tratam respectivamente de: (i) a adesão pelos Estados e Municípios ao Plano Nacional de
Cultura disponibilizará os recursos para execução das ações. (ii) o Fundo Nacional de Cultura
ser o principal mecanismo de fomento; (iii) e a diversificação dos mecanismos de
financiamento.
Estes três artigos do PNC parecem revelar alguns pontos de atenção: o primeiro
sinaliza a clara necessidade de alinhamento às políticas públicas para cultura pelas lideranças
governamentais do setor nos três níveis federativos para a consolidação de um sistema
articulado de financiamento em escala, em todo o território nacional. O segundo aponta para a
importância do Fundo Nacional de Cultura como foco essencial de garantia de distribuição
equilibrada dos recursos para a cultura, uma vez que estariam previstos neste mecanismo, os
princípios da equidade. Já o terceiro, indica a necessidade de revisar o atual modelo de
financiamento da cultura, com vistas à busca por novos caminhos para democratização do
acesso aos recursos e que sejam garantidos os princípios constitucionais da aplicação do
dinheiro público. Vale destacar que o PNC em sua parte inicial aponta 05 (cinco) diretrizes

5
Trechos destes parágrafos foram extraídos ou adaptados da Dissertação de Mestrado Política Cultural e
Financiamento: Possibilidades e Desafios do Plano Nacional de Cultura, de Raquel Moreira, defendida em
março de 2012, na Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política. Páginas de referência: 48-52;61; 82-84; 86 do texto da Dissertação.

1250

V V
sendo que 02 (duas) delas apontam de forma mais explícita estratégias e ações focadas no
tema do financiamento, a saber: a 3ª e a 4ª diretrizes, que dizem respeito à universalização do
acesso à arte e à cultura e a ampliação da participação da cultura no desenvolvimento
socioeconômico sustentável, “criando condições necessárias e induzindo estratégias de
sustentabilidade nos processos culturais” 6.
A partir daí dá-se o desenho da primeira versão do PL 6722/2010 – o PROCULTURA
e que por hora passa por apreciação no Congresso Nacional. De acordo com a publicação
Nova Lei da Cultura7, do Ministério da Cultura, estes são os aspectos que configuram, em
linhas gerais, a proposta do PROCULTURA:

“[...] A nova Lei fortalece o orçamento: cria um novo Fundo Nacional de


Cultura [...] Desburocratiza e fortalece a noção de cultura como polo
estratégico de um novo ciclo de desenvolvimento humano no país, ligado às
metas de universalização do acesso, defesa da diversidade e fomento à
criatividade cultural, além do desenvolvimento da economia da cultura no
Brasil [...] e de fontes da iniciativa privada, de forma a constituir um sistema
integrado e autossustentável [...]”.

Desta forma, a seguir descreveremos num breve resumo os pontos principais de


mudanças propostas ao PRONAC/Lei Rouanet segundo o Projeto de Lei 6722/2010, versão
2010. Na sequência, faremos um resumo da versão 2014 assinalando pontos críticos seguido
de uma análise comparativa entre ambas as versões.

PROCULTURA – Versão 2010 - Projeto de Lei 6722/2010


O primeiro artigo do PL traz algumas referências que podem nos auxiliar nas indagações
propostas aqui. O Art. 1º diz: “Fica instituído o Programa Nacional de Fomento e Incentivo
à Cultura - Procultura, com a finalidade de mobilizar e aplicar recursos para apoiar projetos
culturais que concretizem os princípios da Constituição, em especial os dos art. 215 e 216”.
Os termos “concretizem os princípios da constituição” abre importante ponto sobre os
avanços que as políticas culturais alcançaram nos últimos anos: a inserção dos Art. 215 e 216
na Constituição Federal de 1988, que inscrevem estes direitos culturais na Carta Magna,
revelando-se destacada conquista por serem assim, reconhecidos constitucionalmente. Outro
destaque, é o Art. 2º onde são estabelecidos os mecanismos pelos quais será implementado o

6
Plano Nacional de Cultura Decreto Lei 12.343/2010.
7
http://www.cultura.gov.br//site/wp-content/uploads/2010/01/projeto-15-28jan10-web.pdf. Acessado em
23/2/2015.

1251

V V
PROCULTURA. A criação do Vale-Cultura é um destes destaques8 entre os já existentes no
PRONAC/Lei Rouanet: Fundo Nacional da Cultura - FNC; Incentivo Fiscal a Projetos
Culturais; Fundo de Investimento Cultural e Artístico – Ficart.
Os mecanismos citados, que já constavam na Lei Rouanet sofreram, em maior ou menor
grau, alterações significativas que a seguir apresentamos algumas “novidades” das duas
versões a 2010 e a 2014, ressaltando que as mudanças ocorridas são as que possivelmente
mais podem impactar o atual modelo de financiamento da cultura – o PRONAC/Lei Rouanet,
principalmente sobre o uso dos incentivos fiscais e sobre o Fundo Nacional de Cultura.
Lembrando que os dois artigos acima permanecem os mesmos na Versão do PL em 2014,
exceto pelo acréscimo nesta última versão de mais um mecanismo de financiamento, ao Artigo
2º, que citaremos mais à frente.
Na versão 2010, do PL 6.722/2010, grande parte das mudanças importantes do atual
modelo de financiamento da cultura, o PRONAC, concentra-se no Capítulo II Fundo
Nacional de Cultura (artigos 11 a 20) e no Capitulo IV Do Incentivo Fiscal (artigos 24 a 35).
Ademais, como mencionado acima, os capítulos I, II e III do PL 6.722/2010 também trazem
mudanças significativas, a exemplo dos artigos 1º e 2º supracitados e do Artigo 3º, quando são
definidos os objetivos do PROCULTURA, que dos dezoito objetivos descritos, onze deles se
destacam por trazerem elementos que demonstram a intencionalidade para uma ação de
caráter mais universalista e de alinhamento com conceitos como diversidade, acesso irrestrito
e fruição. O capítulo III destaca-se nesta versão por ser um elemento novo em relação ao
PRONAC/Lei Rouanet, pois dá relevância e prevê o apoio ao Sistema Nacional de Cultura –
SNC.
Das principais9 mudanças, estacam-se as seguintes: O FNC – O Fundo Nacional de
Cultura, que antes permitia doação com 80% a 20% de contrapartida, agora poderá “fazer
empréstimos, associar-se a projetos culturais e fazer repasse para fundos municipais e
estaduais”, buscando atrair mais produtores culturais, sendo uma alternativa frente ao
incentivo fiscal. Além disso, dentre as fontes de recursos do FNC está a renúncia fiscal de
onde parte dela irá dotar o Fundo e, de acordo com as pontuações dadas pelos critérios
avaliados pela CNIC, vai se ampliando e graduando faixas de abatimento no Imposto de
Renda, de 20% a 90%. Vale ressaltar que no Art. 15, alvo de polêmica, menciona que o que

8
Na Versão de 2014 do Projeto de Lei 6722/2010-A - PROCULTURA, é crescido de mais um
mecanismo, os chamados “programas setoriais criados por leis específicas” (Cap. I, Art. 2º).
9
http://blogs.cultura.gov.br/blogdarouanet/o-que-muda-na-lei-rouanet

1252

V V
antes era utilizado somente para o mecanismo do Incentivo Fiscal, na proposta do
PROCULTURA 2010 parte da renúncia será revertida para compor o Fundo Nacional de
Cultura – FNC. Segundo o MinC esta mudança significa não a diminuição dos recursos da
renúncia fiscal, “mas a tentativa de desconcentração dos recursos”. Já o uso dos incentivos
fiscais para fins de patrocínio ou doação, passa a ter seus abatimentos também divididos em
faixas que antes eram de 30% e 100%, agora com PROCULTURA, estariam entre 60%, 70%,
80% e 90%, mas considerando os critérios e pesos acima mencionados.
A ampliação do grau de importância dado à CNIC – Comissão Nacional de Incentivo e
Fomento à Cultura também é destaque nesta versão já que a composição da Comissão passa
por uma remodelagem, agora mais representativa, tendo também as CNICs Setoriais, pelas
linguagens artísticas a exemplo de: Setorial de Música, Setorial de Artes Cênicas, Setorial de
Acesso e Diversidade, etc. Muito embora considerado controverso e polêmico por
demandar maior detalhamento e regulamentação, na versão 2010 do PL, a Comissão passa a
ter o papel de definir critérios, diretrizes e prioridades dos projetos de acordo com
enquadramento destes nas faixas de percentuais acima citadas, indo além da análise do
orçamento (na versão 2014, isto sofre nova alteração e comentaremos mais à frente). O Ficart
– O Fundo de Investimento Cultural e Artístico, um dos mecanismos de financiamento
previsto no Projeto de Lei, sofreu poucas mudanças e o PROCULTURA “vai aumentar a
atratividade, com maior dedução fiscal” 10. Por fim, o Vale Cultura – que prevê “injetar, pelo
11
menos, R$ 7,2 bilhões por ano, o que é mais de seis vezes o montante atual da Rouanet” .
Sobre a participação de pequenas empresas via lucro presumido, este assunto não foi
considerado nesta versão do PL sob o argumento de que há ainda um número muito grande
com lucro real que podem participar e portanto não justificaria inserir as empresas de lucro
presumido. Nossa percepção é que esta categoria de empresa poderia participar e com isto dar
capilaridade aos investimentos destas empresas, propiciando o fomento local.
Esse breve resumo destaca pontos relevantes de mudança do atual paradigma de
financiamento da cultura no país na versão do PL 6722/2010. Se comparadas ao PRONAC –
Lei Rouanet muitas mudanças foram desenhadas com especial atenção às questões da

10
http://www.cultura.gov.br//site/wp-content/uploads/2010/01/projeto-15-28jan10-web.pdf. Acessado em
23/2/2015.
11
O Vale-Cultura é destinado a fornecer aos trabalhadores meios para o exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura. O trabalhador com vínculo empregatício e que ganhe até cinco salários mínimos pode
receber de sua empregadora, cartão magnético com valor de R$ 50,00, para usufruto em produtos e serviços
Culturais das áreas de artes visuais; artes cênicas; audiovisual; literatura, humanidades e informação; música; e
patrimônio cultural. Para o funcionamento do Vale-Cultura, empresas são chamadas a aderir ao Programa
Cultura do Trabalhador e podem se beneficiar por meio da dedução no Imposto de Renda.

1253

V V
diversificação de fontes, da equalização da distribuição dos recursos e da democratização do
acesso. Assim, esta primeira versão buscou trazer, além das premissas baseadas no Plano
Nacional de Cultura, uma série de pontos que mexem com questões mais abrangentes e de
outras áreas das políticas públicas, por exemplo, do Ministério do Planejamento, da Fazenda,
etc. Aliado a isto, as consultas públicas ocorridas e a incursões feitas por grupos empresariais
e artísticos a favor ou relutantes às mudanças também compuseram o cenário.
Certamente o PL demanda mais debates e para tanto destaco abaixo a versão 2014 -
PL 6722/2010-A, onde são focados os pontos divergentes ou não frente às mudanças no PL
nos últimos quatro anos. Na sequência, fazemos considerações as finais com pontos críticos
das duas versões, o que será insumo para as próximas frentes desta pesquisa.

PROCULTURA – Versão 2014 - Projeto de Lei 6722/2010-A


O PL 6722/2010-A, versão 2014, logo à primeira vista apresenta um formato maior,
pela inclusão de dois capítulos a mais que já chamam atenção por contemplarem lacunas
importantes evocadas nos debates em torno da versão e cuja importância pode se justificar por
tratarem de (1) maior detalhamento dos critérios e pontuações para avaliação dos projetos
culturais apresentados e destinação de faixas de deduções fiscais; (2) a revisão das
competências da CNIC e (3) da territorialização e desconcentração da aplicação dos recursos.
Mas as mudanças vão além destes acréscimos quando ajustes finos de supressão e/ou inserção
de itens são notados e que a seguir comentamos. Vale lembrar que em função destas
alterações, a ordem dos itens das duas versões se altera, entre artigos, parágrafos e incisos.
No Capitulo I, das Disposições Preliminares, que trata dos conceitos, objetivos e
competências e da composição da CNIC – Comissão Nacional de Incentivo e Fomento
Cultural – destacam-se: O Art. 3º, dos Objetivos do PROCULTURA, onde são acrescidos
mais quatro objetivos (I, II, II E VI) do PROCULTURA e o aprimoramento de dois deles (VI
e XIII) que tratam respectivamente da democratização do acesso a diversas faixas etárias e
regiões do país; da economia criativa e da valorização das expressões regionais e do
patrimônio material e imaterial. No Art. 2º, mais um mecanismo é inserido: são os
“programas setoriais criados por leis específicas”, junto com os já mencionados na versão
2010: FNC; Incentivo Fiscal; FICART e o Vale-Cultura. Nos Art. 4º, 5º, 6º, 7º e 8º, a CNIC
tem suas competências e composição revistas, pois o CNPC – Conselho Nacional de Política
Cultural passa a ser o órgão que estabelecerá doravante as diretrizes sobre os recursos do
FNC. Além disso, destacam-se aqui “a diversidade regional e cultural” como condição para a

1254

V V
composição da CNIC, sendo a participação do Governo especificada num artigo próprio, o
Art. 7º, onde é detalhado quem comporá.
O Art.8º talvez esteja entre os artigos de maior destaque no Cap. I desta versão do
PL, pois trata de um dos mais polêmicos temas do PROCULTURA: o papel da CNIC. As
diretrizes para utilização dos recursos do PROCULTURA não só saem de sua competência,
como também ganham um capítulo próprio e ampliado em relação à versão 2010 do PL.
Naquela versão à CNIC competia estabelecer as diretrizes do PROCULTURA como um todo,
já na versão 2014, é o CNPC o responsável pelas diretrizes do FNC - que nas duas versões do
PL é citado como o principal mecanismo de fomento, incentivo e financiamento à cultura e a
CNIC fica responsável por propor critérios para utilização do Incentivo Fiscal (e não dos
outros mecanismos), porém a partir de prioridades e diretrizes apontadas pelo CNPC.
Portanto, na versão 2010 são totalmente retirados os artigos que tratavam das competências,
critérios e pesos para avaliação dos projetos culturais, os quais são reescritos na versão 2014
em capítulos dedicados ao assunto: os capítulos V e VI que tratam respectivamente de
certificação de territórios “visando dinamizar e desconcentrar a destinação de recursos”; e
dos procedimentos e critérios para seleção de projetos no incentivo fiscal nas doações e
patrocínio. Além disso, na versão do PL de 2010, competia à CNIC propor programas
setoriais de artes, que na versão 2014 possui um artigo dedicado cuja competência passa a ser
do FNC, administrado pelo Ministério da Cultura, contido no Art. 12 - categorias de
programação - que é complementado pelo Art.16 - sobre os Fundos Setoriais.
Ainda sobre o Art. 8º, um ponto de atenção vale destacar: na versão do PL 2014 nota-se
um possível certo empoderamento do CNPC, já que a ele cabe o papel de definir as diretrizes
de uso dos recursos do FNC, competência que se concentrava na CNIC. Ao que se nota, nesta
versão do PL, o CNPC passa a ter papel de importância estratégica nas decisões sobre a
execução dos preceitos do PNC e nesta perspectiva, um precioso comentário do pesquisador
da Universidade Estadual do Ceará – UECE, Alexandre Barbalho, em seu artigo Orçamento
Participativo: ou as possibilidades da democracia cultural na cidade contemporânea 12, nos
desperta indagações sobre a efetividade deste empoderamento quando discorre sobre
reconhecimento ou não de um conselho de cultura por parte dos governos ou de gestores em
posições estratégicas nas políticas culturais. Desta forma, valeria refletir sobre isto esperando

12
Políticas Culturais em Revista, 1 (5), p. 156-169, 2012 – www.politicasculturaisemrevista.ufba.br.

1255

V V
que o desfecho não fique apenas na letra da lei e que esta troca de papeis signifique não
apenas atender a interesses e conjunturas, mas de fato propicie a efetividade dos preceitos do
PNC. Assim, Barbalho assinala:

[...] os conselhos de cultura devem enfrentar dois desafios prementes, mas que
podemos resumir em uma só questão: a ampliação de sua representação. [...]
Acrescentaríamos, ainda, aos desafios dos conselhos de cultura, a conquista de
sua efetividade, ou seja, que não seja apenas um espaço de consulta, mas
também de deliberação, tanto na elaboração das políticas, quanto nas ações e
de seu orçamento [...]. (BARBALHO apud Faria Moreira, 2005, pg. 163).

Sobre os Capítulos II, e IV, que tratam respectivamente do FNC – Fundo Nacional de
Cultura e dos Incentivos Fiscais, basicamente constam de alterações de pontos ainda muito
críticos e polêmicos desde 2010 que necessita de maior amadurecimento. Neste sentido,
destacamos aqui aspectos relevantes destes dois Capítulos. O Capitulo III, será comentado na
sequência, por uma questão didática, já que os dois supracitados (II e IV) tem inter-relação.
Na versão 2014 do Projeto de Lei 6722/2010-A, o conceito do FNC tem seu texto
ampliado, trazendo ao Art. 9º um detalhamento sobre suas finalidades, especialmente no que
cerne à desconcentração do financiamento da cultura e à diversidade cultural. Aqui é reiterado
que ele será o principal mecanismo dentre os demais previstos, mas diferente da versão do PL
de 2010 que previa 80% de repasse a proponentes culturais não vinculados a patrocinador,
desta vez, na versão 2014, o percentual cai para 50%, e prevê a transferência direta de
recursos do FNC de 30% aos fundos públicos dos Estados, Municípios e Distrito Federal,
numa menção direta ao Capítulo III que trata do apoio ao SNC (Art. 19), isto provavelmente
“manteria” os 80% mencionados na versão do PL em 2010.
No Art. 13, que trata das receitas do FNC, ou seja, as fontes de recursos se comparado
ao PL de 2010 são mantidas, mas uma delas é ainda um ponto crítico e também polêmico nos
debates sobre o PL: o inciso XVI indica que uma das fontes virá dos Incentivos Fiscais (ou
seja, renúncia fiscal) e serão repassados 80% fundo a fundo, aos Estados, Municípios e
Distrito federal e 20% a editais de seleção pública. Segundo o Ministério da Cultura - MINC,
o intuito é democratizar o uso dos recursos da Lei Rouanet e redistribuir, dando reforço ao
FNC. Vale destacar que na versão 2014 do PL menciona-se que no orçamento do MINC, o
FNC deverá ser “pelo menos” de 40% da dotação.
O Capítulo IV dos Incentivos Fiscais, dos oito artigos destacam-se o Art. 20, sobre os
limites de dedução que podem ser ampliados se destinado o “excedente” a produtores
independentes ou de pequeno porte ou ao FNC (parágrafos 2º e 3º), por parte do doador ou

1256

V V
patrocinador incentivado. Na prática, “este excedente” seria de recursos próprios dos doadores
ou patrocinadores, estimulando a participação efetiva das empresas (estimulando mais
participação do “dinheiro bom”). Sobre as deduções do imposto devido, destaca-se o Art.23,
pois no caso de pessoa física (PF) e jurídica (PJ) na versão do PL 2010 deduziam-se até 80%
(Art. 27, na versão 2010) para doações incentivadas a projetos aprovados pelo MinC. No
entanto, na versão 2014 poderá ser de 100% do valor despendido. Já para patrocínio
incentivado, em 2010 a dedução era de 40%, 60% ou 80% e passa para 30%, 50%, 70% ou
100% em 2014 desde que em conformidade com os critérios previstos no artigo 31 desta
versão, que trata dos procedimentos e pesos para seleção de projetos. Lembrando que as
deduções limitam-se aos percentuais de 6% do imposto sobre a renda para PF e de 4% para
PJ, conforme lei orçamentária prevista.
Já o Capítulo III que trata do apoio ao Sistema Nacional de Cultura, não traz alterações
de grande expressão em frente à versão do PL em 2010, mas reforça sobre os critérios de
aplicação dos recursos do FNC de no mínimo 10% em cada região do país e Estado e o
Distrito Federal que receberão no mínimo o mesmo percentual de sua população em relação à
população brasileira, limitado a 2%. No Art. 19, ainda reforça-se que pelo menos 30% de
recursos do FNC deverá ser destinado por meio de transferência direta, a fundos públicos de
Municípios, Estados e do Distrito Federal o que só reitera o estímulo aos entes federados em
implementar seus órgãos constitutivos do SNC: O Fundo de Cultura; O Plano de Cultura; o
Órgão Colegiado oficialmente instituído para gestão.
Os Capítulos V e VI, são os que possivelmente trazem elementos de fato novos ao PL e
que antes sequer constavam na versão 2010, atendendo a demandas apresentadas em
audiências públicas. Os capítulos tratam respectivamente da territorialização e
desconcentração da aplicação dos recursos; e dos critérios e procedimentos para seleção de
projetos junto aos Incentivos Fiscais. Dos artigos previstos, os Art. 29, Art. 31 e 32
sobressaem-se, como elementos inovadores do Projeto De Lei 6722/2010-A.
O Art. 29 que trata da “Certificação de Território cultural prioritário” visa dinamizar as
atividades culturais e contribuir para a desconcentração da destinação dos recursos. Isto
porque, uma vez certificado determinado “território”, por meio de metodologia a ser
elaborada, este passa a ter determinadas prerrogativas face às suas características que
ultrapassam a questão geográfica, tais como aspectos estético-culturais, sociodemográficos,
econômico e histórico de destinação de recursos. Esta “distinção” buscaria ampliar as
oportunidades daquele território de ser reconhecido como alvo de destinação de recursos e de

1257

V V
investimentos. O Art. 31, que trata dos critérios, pesos e procedimentos para seleção de
projetos no Incentivo Fiscal, baseia-se na premissa de que os “incentivos deverão ser
proporcionais aos benefícios públicos gerados pela ação baseado financiada”.
Assim, a avaliação de projetos se dará em duas etapas: Habilitação – que avalia a
capacidade técnica e adequação aos objetivos da desta Lei; e a Classificação - que avalia a
partir de critérios detalhados em dois pontos: I potencialidade de acesso e II Adequação às
premissas do PNC. Ou seja, que atenda aos preceitos das políticas públicas de cultura. Sobre a
adequação ao PNC vale destacar que a pontuação maior se distribui para projetos que
permeiam os temas do Acesso, formação e que tragam impacto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS (ou Iniciais) DE UM LONGO PERCURSO


Como o foco deste artigo é um trabalho preliminar de análise do PL - Projeto de Lei
6722/2010 nas duas versões 2010 e 2014 e, portanto, uma obra inacabada, a seguir pontos de
atenção para as próximas incursões pelo tema que faremos ao longo do doutorado.

1. O PROCULTURA, ao ser lançado em 2010, provocou debates e críticas ao mesmo


tempo em que o governo buscou minimizar os efeitos distorcidos do uso do PRONAC
em duas frentes: (1) proposição do Projeto de Lei e (2) ações práticas em curso na
gestão dos recursos. Esta segunda frente caracterizou-se por lançar mão de uma
política de editais e prêmios, enquanto o PROCULTURA não era aprovado. A
possível reprodução de um “sistema de balcão” com estes editais e prêmios, trazidos
das práticas do PRONAC tornou-se alvo de duras críticas desencadeando um longo
debate.
2. Na proposta do PL, evidencia-se o fortalecimento do FNC que lançando mão de parte
da renúncia fiscal talvez esteja entre os principais pontos nevrálgicos e certamente
alvo de muito debate. Isto por que há certa divisão entre dois grupos do debate
nacional em torno da proposta do PL: Há os que, acostumados com o mecanismo
PRONAC defendam os avanços trazidos para o setor. De outro lado, há os que
identificam as distorções que não condizem com preceitos democráticos e apoiam as
mudanças (MOREIRA, 2011, pg. 81);
3. Com a proposta de reduzir de 100% para 80% o teto de renúncia fiscal permitida a
empresas que investem em projetos culturais “[...] teme-se que o movimento de Juca
dificulte ainda mais a obtenção de financiamento e que não solucione uma das
principais distorções da lei vigente: a concentração de recursos no eixo Rio-São Paulo

1258

V V
[...]” 13. Há dúvidas de que a simples mudança do teto da renúncia resolverá a questão
centralização dos investimentos no eixo Rio-São Paulo, já que a mudança do teto
poderá pulverizar os recursos visto como “dividir o mesmo bolo”.
4. Outro ponto crítico são os critérios e pontuações para avaliação dos projetos, pois se
espera uma regulamentação própria e menor centralização na definição de diretrizes e
critérios. Mas vê-se avanço neste item do PL, já que a avaliação vai além da análise do
orçamento que é feita hoje, observando critérios dentro das três dimensões da cultura
contidas no PNC: econômica, simbólica e social.
5. Uma lacuna tanto na versão 2010 quanto na de 2014 é a baixa participação das pequenas
empresas, pois PL prevê apenas as empresas de lucro real e não as de lucro presumido.
Acredita-se que contemplar estas empresas, poderia alcançar as produções de pequeno
porte em qualquer região do país.
6. O depoimento da advogada Cristiane Olivieri, especialista em políticas culturais, levanta
uma questão que chama a atenção para além das mudanças importantes propostas no
PROCULTURA: “[...] A lei (de renúncia) não vai pagar projetos pequenos. O que vemos
parece vingança dos pobres contra os ricos [...]” 14. Esta fala parece-nos ainda conter um
ranço de antagonismos maniqueístas na relação entre o público e o privado e carece de
amadurecimento do debate sobre o tema e as formas de apropriações para se possa de fato
empreender alternativas que deem conta das demandas tanto dos interesses da sociedade
quanto do Estado.
7. Aqui fica-nos mais “inspirações” e indagações de um percurso ainda longo na busca
por compreensão de questões como: que avanços podem haver se se consumar este projeto
de lei? De fato haverá democratização ou pulverização dos recursos? A concentração do
recurso é uma questão da cultura ou o problema é endêmico do modelo econômico que
vivemos? O PROCULTURA – Versão 2014 - Projeto De Lei 6722/2010-A não menciona
quais critérios para seleção dos projetos candidatos ao FNC: seriam os mesmos do
Incentivo Fiscal? Qual será o papel do Estado?
8. Em que pese as mudanças no PRONAC serem ainda alvo de discussões, ao que parece
elas evidenciam “movimentos estruturantes de forte teor politico-institucional para o setor
alterando uma lógica estabelecida” (MOREIRA, 2011, pg. 141); Se comparadas ao
PRONAC – Lei Rouanet, muitas mudanças foram desenhadas com especial atenção às

13
O GLOBO, de 7 de fevereiro de 2015.
14
Ibidem a nota anterior.

1259

V V
questões da diversificação de fontes, da equalização da distribuição dos recursos e da
democratização do acesso.

Resta-nos acompanhar as possíveis tendências e verificar, por exemplo, a hipótese


levantada por Isaura Botelho (2011) em artigo15, onde sugere que Sistema Federal de
Cultura – formado pelas entidades públicas vinculadas ao MinC e SNC poderiam ser elo de
integração e de gestão participativa interna e externa ao Ministério, viabilizando
financeiramente e estruturalmente a base de um sistema de financiamento consistente
formado pelos próprios instrumentos já disponíveis na Instituição. Sendo então o
PROCULTURA mais um elemento de contribuição neste cenário.

BIBLIOGRAFIA

Livros e Artigos
BOTELHO, Isaura. A política cultural e o plano das idéias. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas;
BARBALHO, Alexandre. (Orgs.) Polítics Culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007. P. 109-
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CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia. En: Crítica y emancipación: Revista latinoamericana de


Ciencias Sociales, CLACSO. Buenos Aires, Ano 1, nº. 1 (jun. 2008).

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Paulo: USP, 2007.

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Paulo, SP: Itaú Cultural, 2011. Quadrimestral. ISSN 1981-125X. CDD: 353.7.

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www.politicasculturaisemrevista.ufba.br. Acesso em 22/02/2015.

15
“A crise econômica, o financiamento da cultura e o papel do estado e das políticas públicas em contextos de
crise”, disponível em: Políticas Culturais em Revista, 1 (2), p. 124-129, 2009 -
www.politicasculturaisemrevista.ufba.br.

1260

V V
VILLA, Marco Antônio. In: “Vivemos ainda numa infância constitucional”. Disponível
em:http://oglobo.globo.com/brasil/ainda-vivemos-numa-infancia-constitucional-diz-historiador-
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Calabre. Brasília: Ministério da Cultura, 2006. p. 144. 1. Sistema Nacional de Cultura - Brasil. I.
Calabre, Lia. II. Meira, Márcio. III. Guapindaia, Aloysio; Meira, Márcio; Lima, Roberto e
Meireles, Silvana. IV. Botelho, Isaura. V. Porto, Marta. VI. Cunha, Maria Helena. VII. Cunha
Filho, Francisco Humberto.

MOREIRA, Raquel. In: Política Cultural e Financiamento: Possibilidades e Desafios do Plano


Nacional de Cultura/ Dissertação de Mestrado de Raquel Moreira, defendida em março de 2012 –
149 fls. Orientador: Ari Abreu Silva e co-Orientadora: Lia Calabre. Universidade Federal
Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ Ciência Política.

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____________________ In: O que muda na Lei. Disponível em:


http://blogs.cultura.gov.br/blogdarouanet/o-que-muda-na-lei-rouanet.

1261

V V
REFLETINDO SOBRE O CAMPO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA POVOS
INDÍGENAS
Renata Curcio Valente1

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo contribuir para a reflexão a respeito das
práticas e discursos adotados pelo Estado brasileiro a partir dos anos 90 nas políticas culturais
para povos indígenas, tomando como ponto de partida as medidas que vêm sendo adotadas
pelo Museu do Índio e pelo Ministério da Cultura nos anos 1990-2000. O conceito de campo,
desenvolvido por Pierre Bourdieu, e as diferentes noções para “cultura” são centrais para este
trabalho. Nele, pretende-se desenvolver, inicialmente, uma apresentação do Museu do Índio e
abordar as recentes mudanças em sua forma de atuação; em seguida, iremos abordar as atuais
ações desenvolvidas nos últimos anos definidas como “política cultural para povos
indígenas”, incluindo ações do Ministério da Cultura; por fim, foi elaborada uma análise do
Programa de Apoio a Projetos Culturais, desenvolvido pelo Museu do Índio desde 2010.

PALAVRAS-CHAVE: antropologia, administração pública, políticas culturais, povos


indígenas.

Apresentação
O presente trabalho tem como objetivo contribuir para a reflexão a respeito das
práticas e discursos adotados pelo Estado brasileiro a partir dos anos 90 nas políticas culturais
em relação aos povos indígenas, tomando como ponto de partida as medidas que vêm sendo
adotadas pelo Museu do Índio e pelo Ministério da Cultura nos anos 1990-2000.
Esta proposta segue uma linha de reflexão iniciada durante o doutorado, de análise
antropológica das políticas públicas. Na ocasião, sob orientação de Antonio Carlos de Souza
Lima, analisei o campo das políticas de “cooperação internacional” e do indigenismo nos anos
1990-2000 e desenvolvi uma etnografia sobre uma agência de cooperação alemã, quando esta
atuava em programas junto à administração pública brasileira, em políticas para povos
indígenas (VALENTE, 2010). Procurei investigar as suas redes de relações em um
determinado campo de poder, em que mecanismos de poder estatais atuam na construção de
saberes e na produção de discursos, como argumenta Michel Foucault (FOUCAULT, 1999).
Esta abordagem de pesquisa foi inspirada, entre outros, pelo denso trabalho
desenvolvido por Lima (LIMA, 1995) em que ele entende a política indigenista como um
1
A autora é economista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Antropologia Social pelo
Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu do Índio/UFRJ. É chefe de Estudos e Pesquisas
no Museu do Índio/Funai e pesquisadora associada ao LACED/PPGAS.

1262

V V
campo fértil para a análise dos poderes de Estado no Brasil e considera os estudos da
administração pública como parte dos processos de formação do Estado no país. Assim,
concebendo o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) como instituição importante para
compreensão das relações entre povos indígenas e Estado, toma-o como um “caso
etnográfico” específico para a análise da sociogênese do Estado brasileiro(LIMA, 2002, p.15).
Outra importante contribuição refere-se ao conceito de Pierre Bourdieu para “campo”,
fundamental para compreendermos as dinâmicas dos agentes sociais e os conceitos em
disputa no campo das políticas culturais na análise aqui desenvolvida. Para Bourdieu, não
podemos compreender o espaço social senão pelo modo de pensar relacional, situando cada
agente em suas relações objetivas com todos os outros, sendo este contexto marcado por
relações de força, de lutas que têm por objetivo conservá-las ou transformá-las (BOURDIEU,
2011, p.61).
Estimulada por um espírito de auto-crítica, a partir da experiência no trabalho
diretamente com políticas culturais para povos indígenas, o presente trabalho reflete uma
análise de quem está atuando neste campo, dentro de uma instituição de Estado. Trabalho há
sete anos no Museu do Índio na área de divulgação científica, desenvolvendo, junto a uma
equipe, a formulação, execução e análise de um programa de fomento a projetos culturais dos
povos indígenas desde o início de 2010, quando ele foi criado, além de acompanhar outras
ações desenvolvidas em parceria com o Ministério da Cultura. As ponderações feitas aqui, no
entanto, não refletem nem pretendem ser uma opinião oficial da instituição. O objetivo não é
de explicar o que fazemos, como em um relatório de gestão, mas compartilhar as dúvidas e
discutir os limites do trabalho na área de políticas culturais governamentais para povos
indígenas. Pretende-se contribuir, assim, para a produção de informações que subsidiem o
acompanhamento e a avaliação destas políticas pelos segmentos sociais implicados ou
diretamente afetados. Esperamos com isso, seguindo a sugestão proposta por Lia Calabre
(CALABRE,2011), garantir uma maior democratização das políticas para povos indígenas,
considerando que a divulgação de informações é falha e a participação da comunidades
indígenas nas discussões sobre as políticas é ainda precária2. Entendemos que seja

2
O Ministério da Cultura, durante a gestão do Ministro Gilberto Gil, criou os Colegiados Setoriais para o
acompanhamento e discussão do Plano Nacional de Cultura (PNC); foi criado, assim, o Colegiado Setorial
Indígena em 2010, com representação equitativa entre governo e indígenas, um de cada região brasileira, para
discutir e acompanhar pontos para elaboração do Plano Setorial das Culturas Indígenas, que comporia o Plano
Nacional de Cultura. No caso da FUNAI, a ideia de controle social pelos povos indígenas sobre a política
indigenista é bastante recente, com a criação dos Comitês Regionais criados em final de 2009 (Decreto n°
7.056), para fortalecer a política indigenista com o aumento da participação das comunidades indígenas nas
decisões que as afetam, garantindo-lhes maior transparência. Os Comitês Indígenas teriam o papel de articular

1263

V V
fundamental ampliar a discussão a respeito da participação política de povos indígenas, tendo
em vista, entre outros, o direito a consulta prévia, estabelecido na regulamentação da OIT
169.3
A discussão a respeito desses temas se justifica diante da crescente autonomia política,
da ampliação da articulação política e da crítica a respeito das políticas públicas adotadas e às
ações do Estado brasileiro direcionadas dos povos indígenas. Pretendemos com esta análise
contribuir para a maior visibilidade das práticas e dos processos adotados pelo Estado
brasileiro, e, portanto, para a democratização da informação sobre estes projetos. Neste
aspecto, o papel da Funai é preponderante em função da atuação direta nas terras indígenas,
ora colaborando para dar acesso sobre informações governamentais, ora restringindo-o, em
práticas tradicionais já ultrapassadas.
A análise das políticas culturais para povos indígenas nos coloca o desafio de
questionar o que poderia se definir como uma perspectiva “colonial” do Estado brasileiro na
definição de suas políticas culturais. Como argumenta Lima (LIMA, 2002,p.13), ainda que o
Brasil não integre os estudos sobre o mundo colonial, “podemos pensar hipoteticamente as
ações do Estado sobre os povos indígenas como parte de um movimento de colonização,
como colonialismo, retomando a ideia de George Balandier”. 4
Para Bourdieu, um dos poderes principais do Estado é o de produzir e impor
categorias de pensamento que utilizamos espontaneamente a todas as coisas do mundo e ao
próprio Estado. Para ele, é no domínio da produção simbólica que particularmente se faz
sentir a influência do Estado (BOURDIEU, 2011, p.91). Bourdieu argumenta que o Estado
contribui para a unificação do mercado cultural ao unificar todos os códigos e ao realizar a
homogeinização das formas de comunicação, especialmente a burocrática (através, por
exemplo, dos formulários). Através do enquadramento que impõe às práticas, o Estado

indígenas e servidores da Funai no planejamento das ações da coordenação, acompanhando sua execução e
avaliando os resultados da política indigenista. Outro espaço de representatividade indígena se dá com a
instituição da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), em 2007. A CNPI é presidida pela Fundação
Nacional do Índio e é composta por vinte representantes indígenas, dois representantes de ONGs indigenistas e
treze membros de órgãos governamentais, além de convidados permanentes, dentre os quais o Ministério Público
Federal.
3
O principal desafio no campo dos direitos indígenas consiste na aplicação da Convenção 169 da OIT, e não no
seu reconhecimento jurídico, o que permitiria aos povos indígenas pressionar os governos a implementar seus
direitos.O direito de consulta prévia, estabelecido na convenção, constitui inovação para a legislação brasileira e
representa uma oportunidade para a construção conjunta de novas regras de entendimento entre povos indígenas
e tribais e o Estado. Em: www.socioambiental.org/inst/esp/consulta_previa/?q=convencao-169-da-oit-no-
brasil/a-convencao-169-da-oit.
4
Balandier considera o fenômeno colonial como uma “situação histórica” e, ao analisá-lo, introduz uma
realidade fundamental para pensar processos de mudança social, que é o poder.

1264

V V
instaura formas e categorias de percepção e molda as estruturas mentais, impondo princípios
de visão e de divisão comuns, formas de pensar e de classificar (BOURDIEU, 2011, p.105).
Em suas ações governamentais, o Estado dirige as demandas indígenas, fazendo com
que elas tenham que se adaptar e se enquadrar à lógica e ao discurso do Estado, utilizando-se
de seu léxico, de suas categorias de pensamento. No plano das políticas culturais, isso se
passa a partir do que se entende pelo Estado por “cultural” e “artístico” para os povos
indígenas, o que se distingue do que os próprios povos indígenas entendem para si mesmos.
Assim, o Estado dirige e organiza a distribuição de recursos por meio de projetos e de editais,
com base neste arcabouço conceitual definido pelo Estado (RUBIM, 2012, 16). 5
O presente trabalho visa, portanto, contribuir para uma reflexão sobre as ações de
Estado e para a democratização da noção de “cultura”, considerando a diversidade de povos
indígenas existente no Brasil e a necessidade de ampliar o acesso, por estes grupos, a políticas
culturais mais adequadas a eles, o que pode ser feito por meio do crescente debate e
participação dos povos indígenas. Para tanto, iremos inicialmente apresentar o Museu do
Índio e as recentes mudanças em sua forma de atuação no que se refere às políticas culturais
para povos indígenas.
Observando a partir de uma Agência de Governo: o Museu do Índio
Nos últimos dez anos, temos observado no Brasil uma mudança significativa em
relação às políticas públicas para povos indígenas, especialmente no que se refere à área de
patrimônio cultural.
No período que vai dos anos 1980 aos 2000, ainda que as garantias dos direitos
indígenas tivessem definidas no plano jurídico com a Constituição de 1988, observava-se uma
resistência, na prática, ao reconhecimento dos direitos territoriais e de diversidade cultural.
Era ainda necessário um esforço significativo, tanto por parte dos movimentos indígenas
como por parte de profissionais do campo acadêmico, especialmente na antropologia social,
para o reconhecimento de direitos dos povos indígenas. Por muitos anos, a luta pela
regulamentação territorial foi o paradigma a partir do qual se estruturavam as ações de
governo para povos indígenas, mobilizando recursos orçamentários e ações governamentais,
envolvendo a ação de organizações não-governamentais e de organizações e organismos

5
Rubim desenvolveu uma análise sobre o surgimento e sobre as transformações ao longo do tempo da definição
de “política cultural”, mostrando que a visão a respeito de cultura vem se modificando, bem como a relação entre
política e cultura, o que define mudanças nos modelos adotados, de uma perspectiva mais elitista (de alta cultura)
e fortemente centralizador, para um modelo que reconhece a diversidade de expressões existentes, com uma
noção mais ampla de cultura.

1265

V V
internacionais para o apoio aos povos indígenas. Até então não havia uma sistematização de
políticas culturais destinadas aos povos indígenas.
Este quadro foi mudando aos poucos a partir dos anos 2000, porque, mesmo que os
conflitos em terras indígenas ainda persistissem, com o avanço da regularização de algumas
terras indígenas, abriu-se um caminho no campo das políticas de “etnodesenvolvimento”, um
desenvolvimento etnicamente diferenciado, viabilizado por meio da ocupação física, social e
cultural das terras indígenas.6 O reconhecimento do direito à diversidade cultural na
Constituição estabelece uma ruptura, ao menos em tese, do paradigma integracionista do
indígena à sociedade antes vigente. Observamos que se expande também a regulamentação
nacional e internacional para o reconhecimento de direitos culturais diferenciados 7. As
expressões culturais, lingüísticas e artísticas dos povos indígenas são valorizadas e o conceito
de cultura8 foi progressivamente ganhando espaço como uma diretriz de política pública, uma
das chaves operativas para ações e intervenções de “desenvolvimento para populações
indígenas”.
Se observarmos as duas instituições governamentais que vêm atuando neste campo das
políticas culturais para populações indígenas, a Fundação Nacional do Índio - por meio do
Museu do Índio e da extinta Coordenação de Artesanato - e o Ministério da Cultura,
observamos que há somente algumas iniciativas pontuais e muito recentes.9 Vale notar que
iniciativas para promover o artesanato indígena já vinham sendo feitas pelo SPI e pela Funai
há muitos anos. Além disso, atividades de levantamento, identificação e catalogação de
cultura material dos povos indígenas também foram sendo desenvolvidas desde a década de
50, com importantes publicações, principalmente de Berta Ribeiro10, referências que

6
Um exemplo desta tendência pode ser observado com a implementação do PDPI (Projetos Demonstrativos dos
Povos Indígenas), no início da década de 2000, que tinha como proposta o fomento a projetos indígenas a partir
de três eixos: economia, cultura e meio ambiente e deveriam ser executadas exatamente naquelas terras que
tinham sido objeto de outro projeto que o antecedeu, o PPTAL, que tinha como objetivo prioritário a
regularização de terras indígenas na Amazônia Legal.
7
O Brasil adota, em 2005, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais,
regulamentando, no plano interno, as disposições dos instrumentos internacionais relativos à diversidade cultural
e ao exercício dos direitos culturais, em particular a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural,
publicada em 2001, pela UNESCO.
8
Terry Eagleton argumenta que estamos em um momento em que a noção de “cultura” está em crise. A
definição de Clifford Geertz nos ajuda a pensar sobre “cultura” como “redes de significação em que a
humanidade está suspensa”. Para ele, a cultura é um sistema de signos passíveis de interpretação, mas um
contexto, algo dentro do qual os símbolos podem ser descritos de forma inteligível, com densidade.
9
Devemos lembrar que o próprio Ministério da Cultura foi criado somente em 1985, pelo Decreto 91.144, o que
garantiu o reconhecimento da autonomia e da importância desta área, antes tratada junto com a educação. Em:
http://www.cultura.gov.br/historico, consulta em 30/03/2015, às 19:59h.
10
Berta Ribeiro prestou consultorias e trabalhou no Museu do Índio, indo posteriormente para o Museu Nacional.

1266

V V
influenciaram as ações do órgão (RIBEIRO & RIBEIRO, 1957). No entanto, no que se refere
às iniciativas destinadas à “preservação” do patrimônio cultural e artístico das populações
indígenas, para além da cultura material, os órgãos citados passaram a empreender iniciativas
somente na virada do ano 2000, sobretudo a partir de 2003. Foi a partir da gestão do ex-
presidente Luís Inácio Lula da Silva que se revelou um crescente direcionamento das ações de
Estado para os grupos indígenas, na forma de programas, editais e prêmios.
Assim, até muito recentemente, as ações do Ministério da Cultura (MinC) não
tratavam desse tema. Foi, mais precisamente na gestão do Ministro Gilberto Gil que uma
política clara do MinC, direcionada aos povos indígenas se instituiu (RUBIM, 2008). Em sua
gestão, foi criado o Grupo de Trabalho sobre Culturas Indígenas em 2005, mesmo ano em que
foi lançado o edital de Pontos de Cultura, o Prêmio Culturas Indígenas em 2006, o primeiro
convênio para gestão específica de Pontos de Cultura Indígenas em 2008, e o Colegiado
Setorial de Política Indígena, em 2010, formado para discussão do Plano Setorial de Culturas
Indígenas, que faz parte do Plano Nacional de Cultura. Estas iniciativas estimularam novas
expressões do movimento indígena em todo o país, com o surgimento de vários pontos e
pontões de cultura e de memória, museus indígenas e outras manifestações culturais apoiadas,
além de promoverem o maior dinamismo e visibilidade aos movimentos culturais indígenas
em todo o país. Esta breve menção ao conjunto de iniciativas que foram sendo feitas a partir
do ano 2000 nos mostra como a “cultura” tornou-se uma categoria importante tanto na
retórica das instituições de Estado, com o reconhecimento e a valorização de um vasto
patrimônio cultural nacional, bem como na disponibilidade orçamentária e na variedade de
ações de governo para os povos indígenas, “grupos sociais culturalmente diferenciados”. Uma
das importantes instituições neste processo foi o Museu do Índio.

O Museu do Índio
O Museu do Índio foi criado em 1953, a partir da Seção de Estudos (SE) do Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), órgão de assistência aos povos indígenas que antecedeu à Funai,
criada em 1967. A SE (1942) tinha por objetivo promover expedições de pesquisas de campo
nas terras indígenas para o levantamento de informações e para a documentação das culturas
indígenas. Foram promovidas várias expedições de 1942 até 1950 e estas pesquisas
contribuíram para a formação dos acervos de fotografias, de filmes, de gravações sonoras, de
artefatos e objetos etnográficos, sendo a ideia original que estes acervos ficassem sob a guarda

1267

V V
e preservação de um museu, o qual viria a ser, posteriormente, o Museu do Índio. Neste
período, portanto, foi reunida uma “equipe de registro fotocinematográfico”, como diz Darcy
Ribeiro, que passou a constituir um centro de pesquisas etnológicas, formando uma coleção
de doze filmes de curta metragem (35 mm), quinhentos discos com gravações sonoras e
aproximadamente quatro mil peças e artefatos indígenas (RIBEIRO, 1951). Assim, desde
então já estava prevista a criação de um museu no SPI.
O Museu tinha por atribuição a conservação deste acervo, sendo hoje amplamente
reconhecido o seu trabalho de preservação e de gestão dos acervos sobre populações
indígenas, tanto de objetos etnográficos, como documentais. Historicamente, cabia à
Fundação Nacional do Índio, de acordo com suas prioridades políticas e orçamentárias, as
iniciativas de “preservar, proteger e divulgar” as culturas indígenas, por meio do Museu do
Índio, o que vai se manter até meados da década de 2000. Também mudanças foram feitas na
atuação do Museu do Índio recentemente, com a ampliação e diversificação de sua área de
atuação para além de preservar acervos, passando a ser a instância responsável pelo “eixo
cultura” na estrutura da FUNAI, o que define um campo muito mais amplo para proposição e
planejamento de políticas e de orçamentos na administração pública, definida no Plano Pluri-
Anual (PPA).11
Para os povos indígenas, as práticas e expressões culturais são elementos constitutivos
de suas identidades e fazem parte de um conjunto inseparável das atividades cotidianas do
grupo, presente tanto nas práticas rotineiras e diárias, bem como nos rituais e nas celebrações
sagradas.
O tema da cultura ainda é pouco debatido dentro da Funai e a definição do que venha a
ser cultura ou patrimônio cultural está em constante construção neste campo. O campo das
políticas culturais para povos indígenas pressupõe o entendimento dos significados de
“cultura, arte e patrimônio cultural” para os próprios povos indígenas e para os agentes que
atuam com o tema. Este processo envolve conflitos e tensões não só internamente à Funai,
mas também entre parceiros de outras instituições que atuam na área cultural e acadêmica. Na
Funai, além do Museu do Índio, outros departamentos como as áreas de artesanato, de
cidadania, de etnodesenvolvimento, educação ou gestão ambiental também interferem na
dimensão cultural dos povos indígenas. Parceiros da Funai, como o Ministério da Cultura ou
Ministério do Meio Ambiente também disputam conceitos e orçamentos associados à

11
No PPA, o “eixo cultura” está assim definido: “Preservar e promover o patrimônio cultural dos povos
indígenas por meio de pesquisa, documentação, divulgação e diversas ações de fortalecimento de suas línguas,
culturas e acervos, prioritariamente aqueles em situação de vulnerabilidade” (PPA 2012-2015).

1268

V V
dimensão cultural. É importante trazer esta questão à tona, buscando entender quais são os
setores que contribuem tanto para sua formulação como para sua operacionalização. Uma
forma de observar isto seria voltando-se para o contexto das políticas culturais em vigor no
Museu do Índio e em parceria com o Ministério da Cultura.

Algumas parcerias com o Ministério da Cultura


Os Pontos de Cultura
A proposta dos Pontos de Cultura tem por objetivo descentralizar e dar autonomia
para os grupos sociais e de artistas desenvolverem seus próprios projetos culturais, sem
interferência direta do Estado. A visão, nas palavras do ex-Ministro, era de que esta política
seria uma espécie de "do-in" antropológico, massageando pontos vitais, mas
momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país 12.
No que se refere aos Pontos de Cultura Indígenas existentes, hoje mais de cem, eles
tiveram algumas origens distintas: em 2005, por meio da Secretaria de Identidade e
Diversidade Cultural (SID), foi aberto o primeiro edital para inscrição de Pontos de Cultura,
seguido de novo edital em 2007, sob execução de municípios e estados. Nestas duas
iniciativas, foram aprovados 23 pontos indígenas. Somente em 2008, foi assinado um
programa destinado especificamente para o apoio a Pontos de Cultura Indígenas, que
envolveu Ministério da Cultura, Funai e uma organização da sociedade civil, a Associação de
Cultura e Meio Ambiente (ACMA), em um Termo de Parceria para viabilizar sua execução.
A ACMA se juntou a Rede Povos da Floresta para implantar 30 pontos de cultura nas terras
indígenas da Amazônia, precisamente nos estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima.
O acompanhamento deste convênio envolvia a Funai por meio da extinta Coordenação Geral
de Artesanato (CGART) e a Secretaria de Identidade e Diversidade (SID) do Ministério da
Cultura. A partir de final de 2009, o Museu do Índio passa a fazer o acompanhamento da
execução destes pontos, que foram implantados, apesar de problemas em sua execução. Em
2011, foi lançado um novo edital em que foram apoiados 54 novos pontos de cultura
indígenas ainda em implantação por meio de convênios entre MinC e organizações da
sociedade civil (Oscips).

12
Em seu discurso de posse, o ex-Ministro Gilberto Gil disse: “O Ministério não pode, portanto, ser apenas uma
caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial. Tenho, então, de fazer a ressalva: não cabe ao Estado
fazer cultura, a não ser num sentido muito específico e inevitável. No sentido de que formular políticas públicas
para a cultura é, também, produzir cultura. (...)Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a
cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer
uma espécie de "do-in" antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou
adormecidos, do corpo cultural do país.Ver: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u44344.shtml

1269

V V
Os pontos de cultura indígenas receberam um kit de equipamentos, envolvendo
câmeras de fotografias, de filmar, computadores com programas de edição de filmes e acesso
à Internet. Foram realizados cursos e treinamentos para o uso desses equipamentos, de forma
a incentivar a produção cultural, especialmente audiovisual, nas aldeias, e promover a
inclusão digital destes grupos, o que se entende como uma forma de divulgação e valorização
das culturas indígenas. Podemos argumentar que a noção de cultura supera a ideia de cultura
material, mas envolvendo acesso a tecnologias para diferentes modos de expressão, por meio
da linguagem videográfica, cinematográfica e computacional.
O problema maior encontrado na execução dos pontos de cultura de maneira geral e
mais especificamente nos indígenas foi garantir o cumprimento das normas da administração
pública (lei 8.666) pelas organizações indígenas e indigenistas, principalmente no que se
refere à prestação de contas, o que tem sido amplamente debatido.
Promoart
O Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural, mais conhecido como
PROMOART, vem sendo desenvolvido pela Associação Cultural dos Amigos do Museu do
Folclore Edson Carneiro (ACAMUFEC), em parceria com o Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular, do Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional
(IPHAN/MinC). Sua execução é realizada por meio de pólos de produção regionais, ou pólos
estratégicos, e envolve as próprias organizações de artesãos, com o apoio de várias
instituições públicas, como o BNDES.13 A proposta de inclusão dos pólos indígenas no
conjunto dos projetos do Programa Promoart foi uma iniciativa da ACAMUFEC em 2009
para que o Museu do Índio assumisse a sua coordenação, com a colaboração de antropólogos
e pesquisadores na execução direta nos pólos indígenas, visando dar maior impulso e apoio às
atividades de produção e comercialização de bens de cultura material dos povos indígenas. O
objetivo desta parceria seria atender aos interesses desses grupos e de superar obstáculos
culturais e logísticos, cabendo ao Museu do Índio atuar como parceiro na intermediação das
atividades, no acompanhamento da gestão dos projetos desenvolvidos pelos indígenas.
Os projetos foram desenvolvidos a partir de diferentes eixos de atuação, desde o apoio
à produção, à comercialização, à distribuição e à divulgação. Foram escolhidos inicialmente
seis pólos, que desenvolveram os seguintes projetos: Projeto de Tecelagem de Fibra da
Embaúba, da etnia Maxakali (MG); Projeto Oficina de Papel Nhandé Kuaxia, da etnia

13
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Ver em: http://www.promoart.art.br/.
Ver ainda: http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=128

1270

V V
Guarani Mbya (RJ); Projeto de Cestaria Kuikuro, da etnia Kuikuro (MT); Projeto Cerâmica
Asurini, da etnia Asurini (PA); Projeto de Artesanato Tradicional, da etnia Wajãpi (AP).
Apesar das inúmeras dificuldades encontradas pelos proponentes em termos da
documentação exigida, dos tipos de formulários, das planilhas detalhadas de orçamento e dos
documentos jurídicos das proponentes, as associações indígenas, os projetos tiveram
resultados bastante interessantes. Entre os resultados alcançados, observamos a participação
dos indígenas em feiras e eventos para comercialização da produção de bens de cultura
material, a realização de oficinas de repasse de saberes, principalmente associados à produção
de cultura material, além de oficinas de capacitação, aquisição de materiais e equipamentos
para produção de artefatos, publicação dos artefatos dos pólos indígenas em termos de
catálogos e apoio a organização, montagem e divulgação de exposições etnográficas no
Museu do Índio e em outros espaços expositivos. Foram incentivados ainda alguns produtos
audiovisuais que mostram os processos em questão.

Políticas culturais para povos indígenas na Funai


A primeira vez que apareceu no orçamento da União uma ação específica para culturas
indígenas foi em 1999, quando foi criada uma ação na Funai com o nome de “promoção e
preservação do patrimônio cultural dos povos indígenas”. Antes disso, outras atividades eram
desenvolvidas pela Funai, mas não pensadas ou classificadas como “patrimônio cultural dos
povos indígenas”. O antigo Programa Artíndia, de apoio ao artesanato indígena que era ligado
à extinta CGART, foi gerenciado por meio de um recurso que se originou da chamada “Renda
do Patrimônio Indígena”, uma espécie de “fundo” acumulado a partir da obtenção de recursos
pela Funai com atividades produtivas em terras indígenas. Fazia-se, por meio destes recursos,
a compra de objetos de cultura material dos povos indígenas, definidos como “artesanato
indígena”, que era comercializado diretamente com os indígenas nas aldeias, por técnicos da
Funai, eventualmente acompanhados de antropólogos. Estes objetos, depois de adquiridos,
eram distribuídos para exposição nas sete lojas da FUNAI, localizadas em várias capitais,
para promoção da venda e divulgação da arte indígena nos centros urbanos.14
Esta ação de “promoção e preservação do patrimônio cultural dos povos
indígenas” ficou sob a responsabilidade do Museu do Índio de 1999 até 2003, sendo então
transferida para a Coordenação de Artesanato (CGART). Neste período, o Museu do Índio
estabeleceu diálogo com o IPHAN, órgão responsável pela política de patrimônio imaterial,
14
As lojas ficavam em Belém/PA, Cuiabá/MT, Goiânia/GO, Recife/PE, Rio de Janeiro/RJ, São Paulo/SP e
Brasília/DF. A CGART e as lojas da Artíndia foram extintas com a restruturação da Funai pelo Decreto 7056/09.

1271

V V
estando diretamente envolvido na proposição da candidatura da Arte gráfica Kusiwa do povo
Wajãpi (AP) como patrimônio cultural do Brasil e ao prêmio da UNESCO das Obras Primas
do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, concedido em 2003. (JAENISCH, 2014)
Posteriormente, entre 2003 e 2009, foram feitas algumas atividades diretamente com
os povos indígenas, por meio da CGART, como as instalações de 28 “Casas de Cultura” nas
aldeias, o que fazia parte de um projeto para a edificação de um espaço onde os indígenas
pudessem “promover a realização de atividades com vistas a preservar, conservar seu
patrimônio cultural e suas manifestações materiais” (AMPARO, 2006). Em 2010, com a
extinção da CGART, o programa foi interrompido.15
No final de 2009, com o Decreto no.7056, a ação retorna para o Museu do
Índio, que assume as políticas culturais para povos indígenas, a partir de três ações:
Preservação do Conhecimento dos Povos Indígenas; Pesquisa sobre Populações Indígenas e
Promoção do Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas. A ação de Preservação Cultural
orienta-se, primordialmente para a conservação dos acervos da instituição, para a editoração
de publicações e para a realização de cursos. A ação de Pesquisa, mais recentemente
instituída, concentra-se principalmente no Programa de Documentação de Línguas e Culturas
Indígenas, em vigor desde 2009, que contempla vários projetos de pesquisa em linguística e
antropologia (aspectos culturais) com ênfase na capacitação de pesquisadores indígenas. Por
fim, a ação de Promoção do Patrimônio Cultural, tem como foco as iniciativas de fomento a
projetos culturais dos povos indígenas, por meio da execução das Coordenações Regionais da
Funai em parceria com os povos indígenas. Com isso, o Museu do Índio passou a interferir de
forma sistemática e direta nas terras indígenas, por meio de apoio técnico e repasse de
recursos financeiros do Programa de Apoio a Projetos Culturais dos Povos Indígenas. Este é
um campo de intervenções, que envolve várias instâncias de poder e várias formas de poder,
desde o poder econômico, o poder de nomear e classificar e, por fim, o poder de selecionar
projetos compreendidos dentro da categoria de patrimônio cultural dos povos indígenas.

A política de fomento a projetos culturais no Museu do Índio


No início de janeiro de 2010, com poucas informações concretas sobre como tratar da
ação orçamentária de “promoção do patrimônio cultural dos povos indígenas” e antes de
qualquer reflexão a respeito do que seria feito com esse recurso, passamos a receber inúmeros
pedidos encaminhados pela sede da Funai e pelas CRs para apoiar projetos, ditos “culturais”.
15
Por região, foram feitas: 10 no Nordeste; 05 no sul/sudeste; 09 no Norte (AM, AC, RO) e 04 no Centro Oeste
(MT e MS).

1272

V V
Os pedidos resumiam-se basicamente à compra de alimentos e combustível para viabilizar, na
maioria dos casos, as festividades do Dia do Índio nas aldeias indígenas. Outros pedidos
semelhantes chegavam para a compra de uniformes para jogos de futebol, para aluguel de
ônibus, para compra de miçangas e outros pedidos para todo tipo de festa. O fato é que outras
mudanças também foram observadas na Funai, com a criação de novas CRs e a extinção de
outras, o que gerou uma desarticulação e incertezas quanto à forma de atuação em campo.
Coube ao Serviço de Estudos e Pesquisas, ligado a Coordenação de Divulgação Científica, a
responsabilidade por desenvolver um programa que desse diretriz a estas demandas,
considerando o universo complexo e indefinido de interação com as Coordenações Regionais
(CR) da Funai.
A equipe responsável pela análise dos projetos é pequena, mas qualificada, e apresenta
dinâmica de trabalho com planejamento, diálogo e boa comunicação interna. O trabalho tem
abrangência nacional e visa atender, indiscriminadamente, a todos os povos indígenas no
Brasil, o que exige experiência e conhecimento. No entanto, limites foram estabelecidos de
forma a viabilizar um trabalho de ampla complexidade, não sem perdas ou prejuízos aos
povos indígenas.
A decisão tomada inicialmente foi de criar um “edital” interno à Funai, visando
atender às demandas de povos indígenas em todo o país, o que seria feito por meio da
articulação com as trinta e seis unidades descentralizadas da Funai, as Coordenações
Regionais (CRs). A publicação do edital evitaria a caracterização deste programa como um
“balcão de demandas”, uma tendência muito forte da tradição assistencialista da Funai.
Assim, foram definidas, incialmente, um conjunto de linhas de apoio, estabelecendo
uma primeira interferência, no sentido de direcionar as demandas indígenas. As cinco linhas
de apoio são: 1) produção de artefatos, 2) comercialização e-ou distribuição e-ou divulgação
da produção cultural, 3) registro e documentação do patrimônio cultural dos povos indígenas,
4) oficinas de repasse de saber e 5) celebrações ou eventos. Esta estrutura e classificação
refletem tanto a estrutura produtiva de cultura material dos povos indígenas (produção,
comercialização, repasse de saberes e registro) como também visa contemplar as diversas
demandas encaminhadas pelos povos indígenas.
A elaboração das cinco linhas de apoio ou diretrizes tinha por objetivo dar maior
abrangência em termos de expressões e temas a serem atendidos, para além das políticas para
cultura material, buscando “quebrar” as relações de favorecimento a alguns segmentos e
grupos indígenas nas ações realizadas.

1273

V V
Uma segunda interferência fica clara na definição dos valores disponíveis aos projetos
e das despesas autorizadas: o programa estabelece um valor igual e fixo de trinta mil reais
para cada uma das trinta e seis Coordenações Regionais, independentemente de sua área de
abrangência ou do tamanho da população indígena que atende. Não são apoiadas despesas
com itens de investimento, sendo, portanto, o total dos recursos direcionados a elementos de
despesas de custeio, o que acaba pesando sobre itens como combustíveis, alimentos e
“aviamentos”, necessários para todo tipo de atividade indígena, cultural ou não.
No início de cada ano, o edital tem sido publicado e divulgado para as Coordenações
Regionais no sítio do Museu do Índio e da Funai, como também por meio de mensagem no
sistema interno da Funai. As propostas de projetos devem ser discutidas entre as comunidades
indígenas e os técnicos das CRs e são encaminhadas por meio de formulários. Nestes, são
solicitadas as informações sobre a situação do grupo e da terra indígena, objetivos e
justificativas do projeto, produtos e resultados esperados, tudo isso acompanhado de uma
planilha de orçamento, com os itens de despesa discriminados. A participação das
comunidades indígenas na elaboração e desenvolvimento dos projetos é um dos princípios
adotados, além da valorização do artista e do patrimônio cultural material e imaterial
indígena, as práticas de comércio justo e o uso sustentável dos recursos naturais.
Uma vez recebidos no Museu do Índio, os projetos passam pela análise da equipe, que
faz um parecer sobre sua pertinência e importância. Em casos que nota-se alguma
inconsistência técnica, apesar de ser observada a importância do projeto, são feitas sugestões
para os técnicos das CRs na sua elaboração. Uma outra forma de interferência se dá, portanto,
na elaboração dos projetos e na “tradução” do que venham a ser as demandas dos povos
indígenas, uma vez que os projetos não são encaminhados diretamente pelos mesmos.
Os projetos aprovados seguem para o setor administrativo do Museu do Índio para a
descentralização dos recursos para as CRs, que assumem a responsabilidade da execução em
campo e, ao terminarem as atividades, pela elaboração de um relatório de atividades, com
registros do processo em andamento e apresentação de seus produtos: fotografias, filmes,
discos, cartazes, livros ou outros. Embora previsto pela equipe, o acompanhamento em campo
não tem sido realizado pelo Museu do Índio até o momento.
Tem sido muito interessante acompanhar a evolução dos projetos a cada ano e a
melhoria na definição dos projetos, nas informações repassadas, nas relações de confiança e
troca com os técnicos das CRs. Ao longo desses anos, foram inevitáveis os embates internos
no que se refere à tentativa de mudar possíveis aspectos “coloniais” presentes nas práticas e

1274

V V
nas relações assistencialistas entre CRs e povos indígenas. Fomos acusados de “antropólogos
de gabinete” por não acompanhar de perto “o que os índios precisam” e por não sofrermos,
aqui no Rio de Janeiro, as pressões que sofre quem está em campo. A maior parte dos projetos
ainda tem nas festas e celebrações sua atividade mais freqüente, sendo muitos os pedidos de
apoio para o Dia do Índio, cerimônias do Kuarup, entre outras. Observamos, no entanto,
algumas mudanças em determinadas regiões, com o interesse dos técnicos no
acompanhamento de propostas inovadoras, na diversificação de projetos, com interesse
crescente pelos indígenas nas oficinas de repasse de saber e na produção de filmes e livros,
além da cultura material, o que tem sido estimulado pelo Museu do Índio.
Outras situações de dificuldades na relação com as CRs têm relação com a falta de
recursos – equipamentos como telefone e computador, de pessoal, de automóveis ou barcos
para o deslocamento, de gasolina e mesmo de diárias – para realizar os trabalhos nas áreas
indígenas. Muitas vezes, os projetos podem ser vistos como a solução para todo tipo de
problema que se enfrentam nas CRs, no dia-a-dia com as populações indígenas. Assim,
algumas propostas poderiam atender ainda a despesas intermediárias e administrativas, e não
diretamente aos povos indígenas.
Desde 2010, já foram apoiadas cerca de 280 iniciativas culturais envolvendo povos
indígenas em todas as regiões do Brasil por meio deste Programa. Nossa experiência,
acumulada ao longo destes últimos cinco anos, nos indica a importância da continuidade no
que se refere às ações de fomento às atividades culturais dos povos indígenas, sendo a sua
continuidade um fator que caracteriza uma política pública de Estado. Ao longo desses anos,
fomos desenvolvendo um trabalho de apoio às atividades culturais com o objetivo de
promover e divulgar as diversas formas de expressão cultural dos povos indígenas, suas
manifestações culturais tradicionais e contemporâneas, visando reforçar seus modos de
produção social e os fluxos de transmissão de saberes.
Alguns casos específicos são muito interessantes de observar. Com um grupo de
mulheres Marubo, do Vale do Javari (AM), foram desenvolvidos três projetos, em anos
consecutivos, em que obtivemos excelentes resultados. No primeiro ano, apoiamos a
organização de um grupo de mulheres, visando aumentar sua produção de artesanato,
principalmente de adornos corporais. No ano seguinte, a proposta foi de doação das peças
produzidas para acervo Marubo no Museu do Índio, associado à qualificação do acervo já
existente pelas indígenas, as artistas Marubo. Para isso, o grupo formado por 10 indígenas
veio ao Museu do Índio fazer a qualificação de seu acervo, com o acompanhamento dos

1275

V V
técnicos em todas as fases do processo, o que lhes deu enorme prazer e satisfação ao
perceberem o reconhecimento do valor de sua arte.16 No ano seguinte, foi apoiada a
organização da festa Wakaya que há muitos anos não se realizava na região do Vale do Javari,
reunindo comunidades de várias aldeias. Foi feito o registro em vídeo desta festa, para ser
transmitida para novas gerações, que desconheciam os seus procedimentos rituais. Além
disso, o envolvimento de uma estudante Marubo de antropologia nas atividades de todos estes
projetos, durante os três anos, contribuiu também para a elaboração de seu trabalho final de
curso e, portanto, para sua formação na graduação em antropologia social.
Outro caso interessante foi com um grupo de ceramistas Terena. Com o apoio de
técnicos da Coordenação Regional de Campo Grande, foi feito um trabalho de inventário e
levantamento das várias formas de expressão em cerâmica nas diferentes aldeias Terena, no
estado de Mato Grosso do Sul, envolvendo artesãs e artistas. Foi feita também a qualificação
do acervo de cerâmica Terena do Museu do Índio por um representante Terena, que veio ao
Museu do Índio. O trabalho apresentado foi uma publicação, na forma de um catálogo, com
excelente padrão gráfico, que vem sendo uma referência e estímulo para outros grupos no
sentido de inventariar sua cultura material17. Muitos outros trabalhos poderiam ser
mencionados, como a publicação sobre cultura material desenvolvida pelos Kayapós da aldeia
Las Casas ou a Mostra de Cinema de Canarana e Oficina de Cinema Indígena, organizada por
um cineasta indígena Kuikuro.18 E, apesar das dificuldades, seguimos apoiando novos
projetos culturais, o que nos tem revelado muitas experiências interessantes a serem
compartilhadas.
Considerações finais
Toda e qualquer ação de Estado junto aos povos indígenas representa uma
intervenção, uma interferência na correlação de forças existente nas terras indígenas. Ao se
dar um apoio a uma atividade, está-se dando apoio a um determinado grupo, a uma
determinada coalizão, a um determinado clã. Este é um pressuposto de toda e qualquer ação
de agentes de Estado, ter ciência e compreender que sua ação ou apoio a atividades representa
16
Esta atividade vem sendo realizada com grande interesse pelos indígenas, promovendo uma renovação e
revitalização do acervo. Os indígenas vêm com emoção as fotos de parentes próximos ou de pessoas conhecidas
de suas comunidades e os objetos guardados, alguns inexistentes hoje nas aldeias, nomeando e corrigindo
algumas nomeações feitas anteriormente pelos antropólogos, ajustando informações das fichas catalográficas.
17
Uma das finalidades do catálogo é promover a divulgação e a venda destes objetos de cerâmica. Um ponto
vulnerável na cadeia produtiva é o da comercialização de bens de cultura material pela distância dos centros
urbanos e de aeroportos, o que encarece o frete e dificulta as condições de comercialização de seus bens.
18
Um aspecto importante a ser desenvolvido refere-se ao apoio a finalização de produtos culturais, como edição
de filmes, registros sonoros, produção de discos e de livros, prejudicando a qualidade de produtos culturais para
a divulgação das culturas indígenas no mercado nacional.

1276

V V
uma alteração na dinâmica interna do grupo, tanto em termos culturais e políticos como
ambientais. Não há neutralidade nesta relação.
A crescente crítica, sugestão e reflexão que os próprios povos indígenas vêm
desenvolvendo sobre a atuação dos órgãos de Estado em relação às políticas a eles
direcionada foi um dos principais fatores que nos incentivou a contribuir para uma auto-
análise das práticas institucionais de um museu, considerando-se que tem sua abrangência de
atuação tem superado às tradicionais atividades de preservar, guardar e expor objetos
etnográficos para atuar no campo das atividades de fomento e de pesquisa em escala nacional.
Pergunto-me se o que fazemos no Programa de Apoio a Projetos Culturais seria o
trabalho de um museu. Não temos a resposta a essa pergunta, mas algumas questões
levantadas por Oliveira19 apontam para o desafio que temos de recontextualizar as coleções e
os museus etnográficos, buscando identificar, a partir das mudanças no movimento indígena,
os novos papéis que os museus etnográficos têm a desempenhar na contemporaneidade. Para
ele, os museus são instrumentos poderosos para reforçar demarcações identitárias, recusando
o preconceito e a invisibilidade com que tais coletividades são tratadas em outros contextos.
Oliveira sugere ainda que se resgate a polifonia, buscando dar voz e não apenas valor estético
aos membros das coletividades.
Compreendo, entretanto, que o trabalho de apoio aos projetos culturais que vem sendo
desenvolvido no Museu do Índio apresenta um campo muito interessante para reflexão e aqui
vou finalizar com duas perspectivas que eles nos apresentam: nos permitem trabalhar com as
expressões culturais indígenas a partir da dimensão do tempo e da polifonia. Quanto à
dimensão do tempo, referimo-nos à atualização dos processos culturais e das relações sociais
a eles vinculadas. A partir de produções contemporâneas de objetos de cultura material, temos
a continuidade, em novas formas, de processos que deram origem aos objetos presentes no
acervo, o que garante a atualização dos acervos existentes e, portanto, dos processos sociais e
culturais envolvidos. Em outro sentido, com a qualificação dos acervos pelos indígenas de
acordo com as definições nativas, este trabalho dá espaço à polifonia, às expressões das
múltiplas vozes das diferentes sociedades indígenas e dos diferentes grupos dentro de cada
uma delas, com oportunidades para novas dinâmicas culturais. Tem sido crescente a
participação dos mais jovens e das mulheres nos projetos culturais, abrindo-se um espaço de

19
Oliveira, J.P. de. O Retrato de um menino Bororo: Narrativas sobre o destino dos índios e o horizonte político
dos museus, séculos XIX e XXI em: Tempo, vol.12 no. 23 jul-dez, 2007, p.85-111, Rio de Janeiro:
Departamento de História da UFF, 2007.

1277

V V
criatividade e mudança, redefinindo as relações sociais dentro dos grupos, a partir das
referências culturais e identitárias próprias. São as transformações em processo, que a nós
cabe acompanhar.

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1279

V V
POLÍTICAS CULTURAIS PARA O AUDIOVISUAL NO BRASIL:
NOTAS SOBRE OS GOVERNOS LULA E DILMA
Renata de Paula Trindade Rocha de Souza1
Fernanda Argolo Dantas2

RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir as políticas culturais para o audiovisual do
Ministério da Cultura, com ênfase para as ações da Secretaria do Audiovisual (SAv), ao longo
dos 12 anos de Governos Lula e Dilma (2003-2014). Para esta reflexão, propõe-se enfatizar
três aspectos específicos: os debates em torno da ampliação das atribuições da Ancine,
iniciado com a proposta de criação da Ancinav; o projeto de lei que visava à regulamentação
da comunicação social eletrônica; e, por fim, as ações de fomento ao audiovisual implantadas
pela SAv, com destaque para o Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do
Documentário Brasileiro, o DocTV.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais, Audiovisual, Brasil.

INTRODUÇÃO
A atuação do Ministério da Cultura (MinC) na gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira
durante o Governo Lula (2003-2010) inaugura, no Brasil, um processo de gestão democrática
e efetiva, no que diz respeito às políticas culturais. O órgão se destaca, num primeiro
momento, pela reivindicação de uma noção “antropológica” de cultura. Em seu discurso de
posse, Gilberto Gil explicita que “as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas
como exercícios de antropologia aplicada” (GIL, 2013a, p. 230). Torna-se possível, portanto,
a inclusão de outras modalidades de bens simbólicos — que abarcam as culturas populares,
afro-brasileiras, indígenas, de gênero, das periferias, midiáticas etc. — ultrapassando o
tradicional binômio artes e patrimônio material. Duas importantes consequências desta
escolha são: a ampliação do público-alvo do MinC, pois suas políticas passam a abranger a
totalidade da população, para além de apenas artistas e criadores, como produtora de cultura
(e não somente como receptora); e a transversalidade em sua atuação, que resulta numa maior

1
Doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Vice-coordenadora do Centro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), também da UFBA. Professora da Faculdade da Cidade do
Salvador. Email: renataptrocha@gmail.com
2
Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da UFBA.
Pesquisadora do CULT, vinculada ao grupo de pesquisa Miradas. Coordenadora de Fomento da Diretoria de
Territorialização da Cultura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBa). Email:
nandaargolo@gmail.com

1280

V V
participação em discussões antes consideradas específicas de outros ministérios, como as
relações internacionais, os direitos humanos e a comunicação, dentre outros (BRASIL, 2007).
Em relação à área audiovisual, a nova Secretaria do Audiovisual (SAv), inicialmente
comandada pelo cineasta Orlando Senna , aposta na “radical reconfiguração da dimensão
simbólica do mundo contemporâneo”, ressaltando duas características do sistema
comunicacional na globalização: a “forte concentração do mercado global da
mídia/entretenimento” e o “caráter assimétrico dos processos de circulação e de produção dos
bens simbólicos na arena internacional” (BRASIL, 2006, p. 4 e 5), segundo o Relatório de
Gestão (2003-2006). O texto reafirma a necessidade de se considerar a dupla natureza do
audiovisual: seu viés artístico, cultural, simbólico e sua face empresarial, industrial-
tecnológica e mercadológica. Essa perspectiva alarga de maneira inédita a atuação da
Secretaria, que aposta na ampliação de suas atividades e, ao mesmo tempo, na integração
entre os diversos elos da cadeia produtiva do audiovisual . Em pronunciamento, o então
Secretário Orlando Senna (2003), apresenta as perspectivas da política de audiovisual em
torno de seis linhas programáticas: difusão, promoção, criação, patrimônio e pesquisa,
formação e relações internacionais .
Especial ênfase é dada à necessidade de aproximar o cinema nacional da população,
através de medidas para a descentralização e democratização da produção e difusão. Para
tanto, ressaltava-se a importância de se considerar o audiovisual de forma mais ampla,
incluindo temas como a televisão na agenda estratégica de debates do MinC. No entanto,
embora necessária e frequentemente reivindicada pelos principais teóricos que se debruçam
sobre o tema, tal abrangência não se deu sem conflitos, que envolveram instituições e agentes
diversos, incluindo setores do próprio Governo Federal.
A falta de consenso sobre a necessidade de uma ação mais efetiva no campo da cultura
em geral e do audiovisual, de forma mais particular, se evidencia durante a primeira gestão da
presidenta Dilma Rousseff (2011-2014). Sob tal perspectiva, mesmo que o Partido dos
Trabalhadores (PT) tenha logrado eleger – e, posteriormente, reeleger – uma candidata dos
seus quadros para a presidência do país, em diversos momentos a continuidade das políticas
implantadas são colocadas em cheque.
A partir da gestão de Ana de Hollanda, em 2011, é possível verificar alguns desvios do
processo em curso, considerado por militantes da cultura o início de um retrocesso no MinC.
A primeira ação da ministra, com a remoção do logotipo das licenças Creative Commons do
site do órgão iniciou a primeira polêmica de sua gestão. Na prática, a retirada representava

1281

V V
que o conteúdo do site estaria protegido por direitos autorais segundo a lei, sem possibilidade
de livre reprodução, mas de modo simbólico, a ação indicava a primeira oposição ou ruptura
com as políticas anteriores do Ministério .
Havia uma aposta no desenvolvimento de ações que contemplassem o viés econômico
da cultura com a criação da Secretaria de Economia Criativa, anunciada pela Ministra como
uma espécie de carro-chefe da nova gestão. A unificação da Secretaria de Cidadania Cultural
e Secretaria da Identidade e Diversidade na nova Secretaria da Cidadania e da Diversidade
Cultural, também reforçou a mudança de orientação e gerou descontentamento entre os
ativistas da cultura que consideraram a medida um retrocesso nas políticas que vinham sendo
desenvolvidas. Nesse período, a SAv, então dirigida por Ana Paula Santana , já não apresenta
a mesma pujança e as ações mais consequentes para o desenvolvimento do setor audiovisual
são capitaneadas pela Ancine.
Durante a gestão Marta Suplicy alguns importantes projetos originados da gestão
Gil/Juca obtêm aprovação no Congresso Nacional como o Vale-Cultura e o Sistema Nacional
de Cultura, mas verifica-se uma perda gradual de prestígio da pasta, com a retração do seu
orçamento, que voltou ao patamar do primeiro ano da Gestão Lula: 0,1%. Quanto ao setor
audiovisual, o destaque fica a cargo do lançamento, em 2014, do programa Brasil de Todas as
Telas, dirigido pela Ancine. A SAv, então gerenciada por Leopoldo Nunes e, posteriormente
por Mário Borgneth , não passa por grandes revoluções, e permanece com uma atuação
discreta, focada na emissão de editais (MIRANDA, 2015).
A fim de compreender o modo como esse processo se desenvolve, nos debruçamos
sobre três diferentes iniciativas impulsionadas pela SAv/MinC e suas (des)continuidades
durante os governos Lula e Dilma (2003-2014). Inicialmente, ressaltamos as tentativas de
alargamento do âmbito de atuação da Agência Nacional de Cinema (Ancine), inicialmente
representada pela proposta frustrada de sua transformação em Agência Nacional do Cinema e
do Audiovisual (Ancinav), e posteriormente contemplada, de certo modo, na aprovação da
Lei nº 12.485/2011, conhecida como Lei da TV Paga. Em seguida, nos atemos às discussões e
posicionamentos em torno do projeto da Lei Geral de Comunicação Social Eletrônica que,
embora extrapolem o âmbito de atuação do MinC, são aqui considerados como estreitamente
relacionado ao episódio da Ancinav. Por fim, quanto à implantação de políticas, identificamos
a exitosa política de fomento da SAv, por meio de editais públicos voltados à produção,
formação e difusão. Dentre os diversos projetos e programas, destacamos, por sua

1282

V V
representatividade, o Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário
Brasileiro (DocTV).
No momento em que a segunda gestão do Governo Dilma acena para o
reestabelecimento das políticas implantadas durante a gestão Gil/Juca, ao convidar este último
para assumir novamente o Ministério da Cultua, acreditamos que a reflexão ora proposta
mostra-se fundamental.

DA ANCINAV À LEI DA TV PAGA


Em agosto de 2004, o MinC submete à consulta pública um pré-projeto com a
proposta de transformação da Agência Nacional de Cinema em Agência Nacional do Cinema
e do Audiovisual (Ancinav), que vinha sendo elaborado em parceria com o Conselho Superior
de Cinema3 há 14 meses. Após o recebimento das críticas e contribuições, o texto deveria
retornar ao Conselho para ajustes e posterior entrega à Casa Civil, que o encaminharia, por
fim, ao Congresso Nacional. Dentre as atribuições previstas para o órgão constavam a
fiscalização e regulação de qualquer plataforma de transmissão de conteúdos audiovisuais e
cinematográficos, além da articulação das políticas públicas para o setor. O texto ressaltava,
ainda, a ampliação do conceito de audiovisual, abrangência dos segmentos deste mercado e o
combate à monopolização. (BRASIL, 2004)
O documento foi alvo de duras críticas e de uma intensiva desqualificação, em
especial no que dizia respeito ao seu caráter “autoritário” e “dirigista”. Porém, se por um lado
a proposta descontentou grandes produtores e criadores (cineastas como Arnaldo Jabor e Cacá
Diegues), empresas de radiodifusão4, diversos articulistas da mídia impressa (de veículos
como Folha de São Paulo, Jornal O Globo, O Estado de São Paulo etc.) e mesmo da Motion
Picture Association of America (MPA)5; por outro, recebeu apoio de pequenos e médios
produtores, intelectuais e associações e entidades audiovisuais independentes6. Quanto ao
Governo Federal, além do MinC não obter o respaldo necessário para sua consecução, a
proposta suscitou confrontos com outros órgãos.

3
O Conselho Superior de Cinema tem por finalidade a formulação e a implementação de políticas públicas para
o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional e é formado por representantes de nove ministérios
(Casa Civil, Justiça, Relações Exteriores, Fazenda, Cultura, Comunicações, Educação, Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior e Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), seis
representantes do setor cinematográfico e três da sociedade civil (BRASIL, 2009).
4
Representadas pela Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que reúne as principais
emissoras comerciais de televisão do Brasil.
5
A poderosa associação estadunidense é formada pelos seis maiores estúdios dos EUA: Disney, Sony,
Paramount, Twentieth Century Fox, Universal e Warner.
6
Para uma análise acurada da intensa cobertura midiática do episódio, ver: LIEDTKE (2008).

1283

V V
Os números relativos à participação ativa da mídia, definida por Nelson Hoineff
(2004) como “principal campo de batalha” na guerra da Ancinav, dão conta da capacidade de
articulação da imprensa, com as principais indústrias do audiovisual nacionais e
internacionais. São reveladores os dados levantados por Simone Caldas da Silveira.
Entre o dia 06 e 31 daquele mês [agosto de 2004] foram publicadas
1037 matérias, notas, editoriais ou artigos sobre o assunto nos jornais,
revistas e noticiários on-line. A maioria, francamente negativa, explorava
itens considerados pelos articulistas como nocivos à liberdade de expressão.
De 01 de setembro a 31 de dezembro foram publicados outros 1.704 textos
citando a ANCINAV. Trocando em miúdos, em agosto foram publicadas
uma média de 34,5 matérias por dia. Em dezembro, foram 10,5. Para efeito
de comparação, junho de 2005 terminou com apenas 0,96 citações diárias em
artigos de críticas generalizadas ao governo Lula. (SILVEIRA, 2005, apud
LIEDTKE, 2008, p.13).

As principais críticas ao pré-projeto se relacionavam à perspectiva da Agência exercer


o controle sobre o conteúdo da programação das empresas de audiovisual. E, de fato, são
identificados no documento itens passíveis de serem interpretados como forma de censura7. O
MinC reconhece o caráter dúbio do texto e procede a eliminação ou reformulação dos
aspectos que referem-se a qualquer tipo de ressalva ou censura, já na primeira revisão do
projeto após a consulta pública.
No entanto, a atitude não foi suficiente para abrandar as críticas, já que a proposta
manteve outros pontos de divergência – não tão nobres ou irrefutáveis como a liberdade de
expressão –, com as grandes produtoras e distribuidoras nacionais, em sua maior parte ligadas
a concessionárias de televisão8, e internacionais. Dentre os quais, a instituição de impostos
pela aquisição de espaço publicitário em suportes audiovisuais para o anúncio de obra
cinematográfica ou videofonográfica e a taxação progressiva do setor cinematográfico. A base
de incidência da contribuição era consideravelmente elevada a fim de viabilizar Fundo
Nacional para o Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual Brasileiros, com o objetivo de
transferir recursos de grandes produções para a produção independente. Além disso, as taxas
incidiam de maneira sobreposta em diversos momentos da cadeia audiovisual, o que elevaria
o custo final do produto audiovisual.
Como o tema seguia provocando desgastes para o Governo, foi realizada uma reunião,
em janeiro de 2005, entre o Presidente Lula, o Ministro Gilberto Gil e ministérios de setores

7
Exemplo disso é o Art. 33, que delega à Ancinav a competência para dispor sobre “a responsabilidade editorial
e as atividades de seleção e direção da programação”, ou o inciso I do Art. 8º, segundo o qual “a liberdade será a
regra, constituindo exceções, as proibições, restrições e interferências do Poder Público” (BRASIL, 2004)
8
Este é o caso, por exemplo, da Globo Filmes, subsidiária das Organizações Globo e maior produtora de cinema
no Brasil, detendo uma fatia superior a 20% do mercado cinematográfico doméstico.

1284

V V
estratégicos. Segundo matéria publicada no Jornal O Globo (BRAGA; CAMAROTTI;
JUNGBLUT, 2005) este encontro seria uma forma de o Planalto assumir o controle do
projeto.
Um dos mais enfáticos críticos foi o ministro interino da Justiça,
Luiz Paulo Barreto, que chegou a pôr em dúvida a constitucionalidade de
alguns itens. Também criticaram a proposta os ministros Eunício Oliveira
(Comunicações) e Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento).
O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, disse a Gil que sua
assessoria fez uma avaliação negativa do projeto. Em comum, os ministros
críticos ao projeto alertaram sobre o dirigismo cultural contido na proposta e
até mesmo sobre eventuais interpretações de censura (Idem, ibidem).

Creditando a informação a “ministros”, o texto cita, ainda, a seguinte declaração do


Presidente Lula: “Não imaginava que tivesse tanta divergência. Como não há consenso, não
podemos pôr o assunto em pauta no Congresso. É preciso encontrar uma posição unitária do
governo” (Idem, Ibidem). Surpreende, no entanto, que os titulares dos ministérios citados
como ferrenhos críticos do projeto, possuam assento no Conselho Superior de Cinema, órgão
que havia participado de sua elaboração, ao lado do MinC, conforme já mencionado. Após a
reunião, o governo anunciou que seria encaminhada ao Congresso Nacional uma nova
proposta de legislação contemplando apenas os setores de fomento e de fiscalização na área
da produção audiovisual. A decisão foi justificada pela a criação da agência deveria suceder a
instituição do marco regulatório do setor, a Lei Geral de Comunicação de Social Eletrônica.
Quase dez anos após o episódio, o atual Presidente da Agência Nacional de Cinema,
Manoel Rangel, avalia que um dos problemas centrais do projeto foi propor “uma mudança de
conjunto no arranjo regulatório das comunicações e dos serviços audiovisuais no país.” (2013,
p. 7, grifo nosso). E sob tal perspectiva, desde então, a Ancine passou a assumir
progressivamente as atribuições anteriormente previstas para a Ancinav. Um exemplo é a
promulgação da Lei n.º 11.437/2006, que determina a criação do Fundo Setorial do
Audiovisual (FSA), prorroga mecanismos de apoio e aperfeiçoa as possibilidades de
fiscalização e acompanhamento, pela Ancine, do mercado audiovisual no Brasil. Nesse
sentido, é ainda mais exemplar a instituição da Lei n.º 12.485/2011 (Lei da TV Paga) que
unifica o regulamento dos serviços de televisão por assinatura e separa as atividades
relacionadas ao conteúdo audiovisual – produção, programação e empacotamento – das
atividades de transporte e distribuição, referentes às telecomunicações 9. Segundo a norma

9
Ademais, dentre os pontos mais importantes da Lei estão a abertura do mercado aos novos competidores,
ampliando a oferta do serviço e estimulando a diminuição do preço final ao usuário; bem como a adoção de cotas

1285

V V
(BRASIL, 2011), a regulação e fiscalização das atividades de programação e empacotamento
passam a ser responsabilidade da Ancine10.
Resulta, portanto, que, em relação ao campo audiovisual brasileiro, apenas as
emissoras de televisão aberta permanecem fora do âmbito de atuação da Ancine. O episódio
relativo à tentativa de criação da Ancinav demonstra o modo como o desmedido poder de
pressão exercido pelos proprietários das grandes emissoras de televisão aberta do país em
relação aos demais agentes do campo audiovisual incide nas políticas para o setor (SOUZA,
2014).

LEI GERAL DE COMUNICAÇÃO DE SOCIAL ELETRÔNICA


Como visto, em janeiro de 2005, a necessidade de instituição da Lei Geral de
Comunicação de Social Eletrônica é apontada pelo Governo como a principal justificativa
para a retirada da Ancinav e apresenta-se como uma importante, ainda que novamente
frustrada, consequência deste processo11. Em declaração para o jornal O Globo o ministro Gil
afirmava: “O presidente deixou claro que quer que se continue fazendo a agência de fomento
e fiscalização e que se faça a lei de comunicações para respaldar. E que tudo seja feito pelo
grupo” (BRAGA; CAMAROTTI; JUNGBLUT, 2005).
No entanto, ao contrário da comoção gerada em torno do pré-projeto de criação da
nova Agência, as discussões sobre a Lei Geral de Comunicação Social Eletrônica, passaram
ao largo da mídia, recebendo pequenas notas de veículos especializados e artigos de militantes
e teóricos da área, motivados, em diversos momentos, pela defesa pública do projeto por
agentes do MinC, a exemplo do Secretário Orlando Senna e do Ministro Gil (SENNA, 2006;
GIL, 2013b).
Como consequência deste processo, entre 2005 e 2006, foram criados um Grupo de
Trabalho Interministerial e uma Comissão Interministerial, que não chegaram a realizar uma
reunião sequer (LIMA, 2011). Dois fatos conjunturais certamente influenciam o
arrefecimento do empenho do Governo em sua tentativa de regular as comunicações: o
prolongamento da crise político-midiática do “mensalão”12 e a candidatura à reeleição do

de programação e de canais, destinadas a potencializar o mercado de conteúdos brasileiros como filmes,


documentários e séries, incluindo animação.
10
Os aspectos relativos a atividade de distribuição e de prestação do serviço serão regulamentados pela Anatel –
Agência Nacional de Telecomunicações.
11
Mais informações sobre este episódio em Souza (2014).
12
Na entrevista, o então deputado e Presidente do PTB, Roberto Jefferson, denunciou um esquema de corrupção,
do qual fazia parte, em que parlamentares que compunham a chamada "base aliada" recebiam, periodicamente,

1286

V V
presidente Lula, que transforma 2006, em um ano “dominado pelas campanhas eleitorais”
(LIMA, 2012, p. 246).
Em fevereiro de 2007, a discussão em torno da regulamentação da comunicação social
eletrônica é retomada pelo então Ministro das Comunicações Hélio Costa depois de passar
incólume pela Casa Civil da Presidência da República. Em entrevista, Costa – cuja trajetória é
vinculada à radiodifusão13, em especial como jornalista da Rede Globo – promete uma minuta
até julho. A proposta deveria ser entregue à Casa Civil, e posteriormente à Presidência da
República, que encaminharia um Projeto de Lei ao Congresso Nacional. (YODA, 2007). Em
outubro do mesmo ano, porém, é anunciada a convocação – pelos ministros da Casa Civil,
Dilma Rousseff, e da Secom-PR, Franklin Martins –, de uma reunião interministerial para
discutir uma nova proposta de Lei. (MARQUES, 2007). Segundo o colunista Joaquim
Castanheira:
Causou estranheza no Ministério das Comunicações a informação de
que a Secretaria de Comunicação Social, chefiada por Franklin Martins,
recebeu a tarefa de coordenar as discussões da nova Lei Geral da
Comunicação, nas mãos do Ministério desde o início do governo Lula. A
praia de Hélio Costa foi invadida (2007, online).

A questão volta à tona apenas em julho de 2010, quando o presidente Lula promulga
novo decreto criando, uma vez mais, uma Comissão Interministerial. A Secretaria de
Comunicação Social da Presidência lidera o processo, enquanto o Ministério da Cultura é
excluído de sua formação. Em novembro de 2010, foi anunciada apresentação da proposta do
anteprojeto de lei – que nunca chegou a vir a público – para a futura presidente do Brasil,
Dilma Rousseff, a quem foi transferida a incumbência de tornar o sistema de comunicação
brasileiro mais democrático e plural (LIMA, 2011).
O tema, no entanto, não é incorporado à agenda. Diante da resistência e da campanha
dos vários setores da mídia tradicional contra a proposta de regulamentação, a então candidata
se posiciona contra qualquer controle de conteúdo, e reforça que a regulação estaria restrita ao
caráter econômico da atividade. Em entrevista ao Jornal do Brasil durante a campanha
eleitoral de 2010, Dilma destaca: "Não acredito que tem alguém que seja contra modelos que
criem regulações para o setor, por exemplo, qual é a participação do capital estrangeiro.
Monitoramento é de conteúdo. Repudio o monitoramento de conteúdo editorial. Acho que
isso não pode se criar no Brasil" (BORGES, 2010). Durante o primeiro mandato da

recursos do Partido dos Trabalhadores para garantir o apoio ao Governo Federal. O neologismo “mensalão”,
usado para se referir a uma suposta “mesada", foi então largamente adotado pela mídia para se referir ao caso.
13
O Ministro é, inclusive, dono de uma rádio (Sucesso FM 101,7), na cidade de Barbacena (LIEDTKE, 2007).

1287

V V
presidenta, o anteprojeto de regulamentação formulado no Governo Lula não é encaminhado
ao Congresso. Para o então ministro das Comunicações Paulo Bernardo era preciso uma
análise aprofundada do documento e um maior debate sobre o tema com a sociedade
(DOMINGOS, 2011).
Há um ensaio de retomada do assunto pouco antes da campanha para a reeleição de
Dilma, em 2014, quando a presidenta informa sua pretensão de incluir no Programa de
Governo 2015-2018 o debate sobre a regulação da mídia, com foco especial em seu viés
econômico, e ao combate dos monopólios e oligopólios da rede de radiodifusão. A proposta,
no entanto, não obteve adesão dos partidos da base aliada e foi retirada do programa do
segundo mandato.

A POLÍTICA DE FOMENTO PARA O AUDIOVISUAL E O PROGRAMA


DOCTV
Um dos destaques da atuação da SAv está à cargo das políticas de fomento que
recebem novas configurações a partir da primeira gestão do presidente Lula. Diferentes
projetos de incentivo ao desenvolvimento da cadeia de produção audiovisual, valorizando, em
especial, o formato de editais públicos, têm sido desenvolvidos pelo MinC nos últimos 12
anos.
Orientado pelos conceitos centrais de regionalização e
democratização das políticas, o Programa inclui uma série de editais para
atender a demanda tradicional do setor - roteiro, longa metragem, curta
metragem, documentários, além de experiências inovadoras de produção,
fomentando novos nichos de mercado, como o Edital Jogos BR, de incentivo
à produção de jogos eletrônicos; promovendo a inclusão de setores
tradicionalmente excluídos das políticas públicas, como o Projeto Revelando
os Brasis; fortalecendo os processos de formação profissional, como o Edital
de Teses, de apoio aos trabalhos de conclusão de cursos universitários de
cinema (BRASIL, 2006, p.12).

Dentre outras14, uma das ações pioneiras neste sentido foi o Programa de Fomento à
Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro (DocTV), que pode ser observada como
um interessante contraponto para esta reflexão, pelo seu êxito e representatividade na atuação
da SAv. O Programa abarca diversos momentos da cadeia audiovisual (criação, produção,
difusão e formação); promove circuitos de teledifusão por meio da articulação entre a
produção independente representada pela Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-

14
Entre os anos de 2003 e 2010, merecem destaque iniciativas como o DocTV, Documenta Brasil, Revelando os
Brasis, Animação Um Minuto, Curta Criança e Curta Animação, XPTA.LAB, AnimaTV, Nós na Tela, Nossa
Onda e outros (BRASIL, 2006; BRASIL, 2010).

1288

V V
metragistas (ABD), emissoras de caráter público e o Estado15 (nos âmbitos transnacional,
federal e estadual); incentiva o mercado audiovisual sob uma perspectiva regionalizada; bem
como contribui para a promoção da diversidade cultural, por meio da ampliação do
conhecimento das diferentes expressões culturais. Em suas quatro temporadas, o DocTV
Brasil tem 3.000 projetos inscritos em 100 concursos estaduais, selecionando e coproduzindo
170 documentários (BRASIL, 2010).
A abertura de mercados para o documentário brasileiro, um dos mais destacados
objetivos do DOCTV, foi promovida através da exibição dos filmes pelas emissoras regionais,
do incentivo à aplicação de recursos no projeto em âmbito regional, e da valorização dos seus
espaços de mídia. (BEZERRA, MOREIRA, ROCHA, 2010). Por outro lado, o Programa
também contribui para a institucionalização do segmento audiovisual no país. Um exemplo é
o estímulo à instituição de regionais da ABDs nos estados onde esta entidade não existia, o
que permite sua nacionalização efetiva. Do mesmo modo, existiam emissoras associadas à
Abepec em apenas 19, das 27 unidades da federação, o que motiva a realização da primeira
edição do DocTV apenas em 20 Estados. A partir da segunda edição, porém, logra-se
abranger todo o país por meio de parcerias com emissoras locais, em sua maioria de caráter
público, e mesmo das instituições responsáveis pela cultura. (CAETANO, 2011).
Em 2006, o Programa torna-se um modelo de política pública, expandindo-se para
outros países. O DocTV América Latina (nos demais países, DocTV Latinoamerica) é
desenvolvido no âmbito da Conferência de Autoridades Cinematográficas Iberoamericanas
(CACI), que congrega a maioria dos países latinoamericanos, além de Portugal e Espanha. Na
primeira edição, a parceria viabiliza a realização de 13 documentários; na segunda, lançada
em 2009, são 14; e a terceira edição, divulgada dois anos depois, promove a realização de 15
filmes, exibidos em 18 canais de caráter público do continente. Também é instituída uma
Rede DocTV no âmbito latinoamericano, articulando autoridades audiovisuais nacionais e as
emissoras do campo público de quinze países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Costa Rica, Cuba, Equador, México, Panamá, Peru, Porto Rico, Uruguai e Venezuela (Idem,
ibidem).
Já em 2009, é lançado o DocTV CPLP, que reúne os países membros da Comunidade
de Países de Língua Portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,
Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste), além do território de Macau, que se encontra

15
A SAv é responsável por 80% da verba; e cada canal ou órgão de cultura envolvido, por 20%, a título de
contrapartida. (BRASIL, 2010).

1289

V V
em processo de adesão à comunidade. A EBC/TV Brasil é parceira, em território nacional, na
teledifusão das séries internacionais do programa. (MOREIRA, BEZERRA, ROCHA, 2010)
Apesar do êxito do DocTV, a gestão da SAv pós-Gil/Juca não garantiu continuidade
do programa, em especial em sua versão nacional. Sua última edição, já na versão DocTV
América Latina, ocorre no início da gestão de Ana Hollanda, em julho de 2011. Outras
iniciativas, no entanto, foram implementadas pela Secretaria como ações de fomento, sem que
nenhuma delas alcançasse a mesma representatividade. Durante o período de Hollanda à
frente do ministério tais iniciativas se concentraram em editais temáticos, à exemplo do Edital
de Desenvolvimento de Roteiro – Profissional, e do Edital Curta-Afirmativo: Protagonismo
da Juventude Negra na Produção Audiovisual.
Com a entrada de Marta Suplicy no Ministério, a SAv mantém os editais, com
propostas temáticas de políticas afirmativas, e há um movimento de alinhamento com a
Ancine, explicitado pela parceria no programa Brasil de Todas as Telas, lançado em julho de
2014, pela presidenta Dilma. O programa pretende investir 1,2 bilhão no setor audiovisual –
em especial no incentivo ao desenvolvimento, produção e difusão de conteúdos brasileiros; na
capacitação de profissionais e na expansão das salas de cinema –, e foi desenvolvido a partir
das diretrizes elencadas no Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual - O Brasil de
todos os olhares para todas as telas, publicado em julho de 2013 pela Ancine. Na ocasião, a
presidenta assinou o Decreto nº 8281/2014 que dispõe sobre o Programa de Apoio ao
Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro - PRODAV, destinado ao fomento das atividades
audiovisuais brasileiras via Fundo Setorial do Audiovisual, e institui o Prêmio Brasil
Audiovisual. O documento foi celebrado por estabelecer procedimentos simplificados,
especialmente em relação às análises de prestação de contas dos projetos apoiados. Outro
destaque do normativo se refere à flexibilização de regras para o estabelecimento de parcerias
entre o FSA e instituições de ensino públicas e privadaS (BRASIL, 2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As conclusões, ou reflexões suscitadas a partir dos três casos analisados, são várias e
muitas delas não possuem caráter definitivo. No entanto, todas remetem à necessidade de
repensar o modo como as políticas públicas para a cultura são implantadas, frente aos
conflitos de interesses à desigualdade de poder entre os principais agentes inseridos no
processo.

1290

V V
Em relação ao Estado, enquanto lugar de realização destas políticas, verifica-se que os
“límites de la acción estatal son porosos ya que son el resultado de un proceso permanente de
desafíos, restauración y re-letigimación, protagonizado por personas, grupos e instituciones
‘estatales’ y ‘no estatales’ ” (BOHOSLAVSKY e SOPRANO, 2009, p. 30). Esta breve
análise identifica, portanto, um notável embate no Governo quanto ao enfoque dado a suas
políticas de cultura e, consequentemente, do audiovisual. Em meio aos diversos interesses em
jogo, a atuação do MinC e de sua Secretaria de Audiovisual, se dá de forma conflitante,
inclusive no interior do governo, ao longo das gestões Lula e Dilma.
No âmbito regulatório, a instituição de mudanças conjunturais, em especial as que
contrariam interesses das empresas de radiodifusão são inviabilizadas por acirradas
campanhas, ou ainda por profundos silenciamentos, por parte dos meios de comunicação
tradicionais. Esse parece ter sido um ponto primordial nos episódios da Ancinav e da Lei de
Comunicação Social Eletrônica, respectivamente. Por outro lado, a necessidade de atualização
da legislação para o setor é premente16 e se mostra possível caso ocorra de forma gradual.
Por outro lado, existem ainda projetos e programas que – mesmo que sem grandes
repercussões na grande mídia, como é o caso do DOCTV – tampouco são demarcados por
estes como uma ameaça. O Programa cria um modelo inovador de negócio e fomenta a
produção independente sem colocar em cheque, pelo menos não de maneira imediata, a atual
conjuntura das indústrias culturais no Brasil. Embora necessárias e promissoras, estas ações
possuem efeitos limitados, em especial se não ocorrem de maneira processual e contínua; o
que não se verifica, haja vista que não foi dada continuidade ao DocTV, apesar do seu êxito.
Assim, uma das grandes batalhas do setor, talvez a maior, é garantir que o Estado desenvolva
políticas de Estado, e não de governo, para alcançar uma maior eficácia em suas ações.
A partir de nossa observação, verifica-se que a SAv passou a apresentar uma curva
descendente em sua atuação, em comparação ao que se entendia como atribuição da unidade
na primeira gestão do governo Lula. Em contrapartida, a Ancine aumentou seu capital político
e se solidificou como o local de formulação e implementação das políticas, bem como de
interlocução para as demandas e debates do audiovisual.
Ressaltamos, por fim, a existência de três questões-chave, ainda a serem equacionadas:
de que maneira garantir a institucionalidade das políticas para o audiovisual? Diante de tantos
e tão poderosos agentes envolvidos no processo, como implantar uma política para o setor que

16
Para que se tenha ideia da grande defasagem da legislação brasileira, a comunicação social no Brasil é
atualmente regulamentada pela Lei Geral de Comunicações de 1962. Por outro lado, a Constituição de 1988
não teve regulamentados seus dispositivos ligados à comunicação social.

1291

V V
supere os interesses políticos/institucionais e empresariais/mercadológicos? Em que pesem as
descontinuidades, o retorno de Juca Ferreira ao Ministério, sinaliza para a retomada do papel
estratégico desempenhado pela SAv, quanto à formulação de políticas e a seu poder de
fomento?

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em: 20 nov. 2012.

1295

V V
A FISCALIZAÇÃO DA LEI SARNEY
Renata Duarte1
Lia Calabre2

RESUMO: De todas as facetas que envolveram a experiência da lei 7.505/86, a primeira lei
de incentivos fiscais para a cultura do país, popularizada sob alcunha de Lei Sarney, a mais
propagandeada é, sem dúvidas, a da falta de fiscalização. Seu modelo simplificado de
operação, combinado com a sucessão de tentativas e erros que se seguem a qualquer ação
pioneira já seriam o suficiente para subsidiar as bases do problema que tomava as manchetes
de diversos jornais da época. No entanto, os meandros internos das disputas políticas de um
Ministério da Cultura recém-criado, podem nos fornecer novos elementos para compreender
não apenas essa questão pontual, mas lançar luz sobre a maneira política como se organiza a
administração pública.

PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural; Conselho Federal de Cultura; Lei Sarney; Celso


Furtado; Ministério da Cultura; Redemocratização.

AS BASES DA LEI: O CONTEXTO DA CRIAÇÃO DO MINISTÉRIO DA CULTURA


A Lei Sarney entrou em vigor em 1986, iniciando suas operações fiscais no mesmo
ano. Fora o fruto de uma convergência política que envolvia, entre outros atores, o próprio
José Sarney, agora presidente da república, após a morte de Tancredo Neves, e o famoso
economista da SUDENE3 e da CEPAL4, Celso Furtado, que retornava ao Brasil nesse mesmo
ano, no papel de Ministro da Cultura - Minc.
Seu mandato frente a pasta constituiu, em si, um desafio desde o principio. Furtado
assumia como terceiro ministro da cultura em apenas um ano. O primeiro ministro foi José
Aparecido de Oliveira, responsável pela implementação da secretaria de cultura de Minas
Gerais, organizador do Fórum Nacional de Secretários da Cultura e “grande estrategista da
candidatura de Tancredo Neves” (Santos 2012, p 163). Com um excelente trânsito no meio
artístico, coube a ele o papel de grande articulador político para a criação do Minc,

1
Cursando especialização em Gestão Cultural na Fundação Getúlio Vargas, graduada em História pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
2
Doutora em história – UFF. Pesquisadora e chefe do Setor de Políticas Culturais da FCRB.
3
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, para mais informações ver:
www.sudene.gov.br/sudene
4
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL, para mais informações ver:
http://www.cepal.org/cgi-
bin/getProd.asp?xml=/brasil/noticias/paginas/2/5562/p5562.xml&xsl=/brasil/tpl/p18f.xsl&base=/brasil/tpl/top-
bottom.xsl

1296

V V
inflamando a discussão sobre a condição da cultura brasileira ao declarar que “a letra C era
uma letra morta na sigla Ministério da Educação e Cultura, MEC.” (p 164)
No entanto, a inesperada morte de Tancredo no dia 21 de abril de 1985, mudou o
rumo previsto. José Sarney necessitava preencher o único cargo do alto escalão no governo
que seu predecessor havia deixado vago, o de governador do Distrito Federal. José
Aparecido era amigo próximo do agora presidente, e seu nome era aceito tanto pelo grupo
ligado a Tancredo, como pelos “jucelinistas”. 5
Uma vez retirada a principal figura pública, iniciou-se um tortuoso período de busca
por quem assumiria como substituto, recheado de críticas e matérias jocosas nos jornais que
inquiriam “Mas para que diabos o Brasil quer um Ministério da Cultura? Já fiz essa pergunta,
oralmente, e por escrito, dezenas de vezes e nunca ninguém me explicou.” (J. U. Ribeiro
1985)
Após dois meses de tentativas, a escolha recaiu enfim sobre outro mineiro, Aluísio
Pimenta, ex-reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, e presidente da Fundação João
Pinheiro, encerrando, no dia 28 de maio, o difícil período sucessório. Aluísio Pimenta, porém,
permaneceu apenas sete meses no cargo de Ministro da Cultura, deixando-o após uma crise
midiatizada que gerou profundo desgaste da sua imagem e da do Ministério.6

A C EGADA DE CELSO FURTADO E A REFORMULAÇÃO DO “ESPÍRITO”


DA LEI SARNEY
O desafio tornou-se encontrar um substituto que trouxesse credibilidade a pasta.
Depois de tantos erros cometidos e tamanho desgaste midiático, a escolha do novo ministro
influía diretamente na perenidade do Ministério da Cultura. No final do ano de 1985 se
realizaram as negociações políticas que desembocaram na nomeação de Celso Furtado, em
fevereiro de 1986, menos de um ano após a criação do Minc.
As razões que o qualificavam para o cargo eram inúmeras. A primeira, e mais
importante, era o grande prestígio que Furtado gozava entre a classe artística e intelectual do
país. Seu nome já havia sido anteriormente cogitado para o cargo, durante a sucessão de José
Aparecido, na forma de um abaixo-assinado contendo a subscrição de diversos notórios,
entregue em mãos pela atriz Fernanda Montenegro ao Presidente José Sarney. Na ocasião,

5
Grupo político aliado ao ex-presidente Jucelino Kubichek.
6
Ver exemplos: Jr., Matinas Suzuki. “Um ideário confuso.” Folha de São Paulo, 17 de agosto de 1985; Leão,
Serva. “Hilariante.” Folha de São Paulo, 17 de agosto de 1985; Ziraldo. “Um projeto para a arte brasileira.”
Folha de São Paulo, 17 de agosto de 1985; “Neonacionalismo.” Folha de São Paulo, 21 de agosto de 1985.

1297

V V
porém, segundo reportagem do Jornal do Brasil, Furtado teria recusado o convite, por desejar
um ministério da área econômica. (Cantanhêde 1985).
O exato motivo que levou o economista a aceitar a pasta da cultura permanece
desconhecido, mas sua posição política nos fornece algumas indicações. Furtado pertencia ao
“grupo do Poire”, denominação utilizada nos corredores do congresso à época para descrever
os políticos íntimos de Ulysses Guimarães, o líder das Diretas Já, e presidente da Câmara dos
Deputados. No delicado balanceamento de poder da nova república, a nomeação do novo
“ministro do Ulysses”7 atendia a conformação política necessária, e fornecia vantagens
adicionais.
Para além da sua vasta experiência no serviço público, Celso Furtado já havia
estruturado um ministério anteriormente, o do Planejamento, quando o assumiu em 1962,
nomeado pelo presidente João Goulart. Outro importante atributo eram os vastos
conhecimentos do novo ministro sobre economia, e principalmente, sobre leis de incentivo
fiscais. Furtado havia concebido e implantado a lei de incentivos fiscais da Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, em 1963. “Desta forma, naquele momento
político, quando ingressou no primeiro escalão do governo, a ‘estatura’ de Celso Furtado era
maior do que a do recém-criado Ministério.” (Magalhães 2012, p 178)
Ao assumir o posto, o primeiro desafio enfrentado por Celso Furtado foi o de
estruturar o Ministério da Cultura, que no momento da sua chegada, não possuía sequer
organograma definido. No momento de criação do Minc as instituições ligadas a área cultural
que existiam na estrutura do Ministério da Educação foram transferidas para o novo
ministério8, sem que, contudo, o ato político tenha sido acompanhado do ato administrativo,
ou seja, não houve planejamento prévio ou projetos de políticas para dar sustentação a nova
área que se formava.
Não foram definidas atribuições, ou dada uma nova organização decorrente das
modificações estruturais sofridas. Nada nesse sentido havia sido realizado, e tal cenário já
perdurava por um ano. A resistência que os servidores da antiga secretaria de cultura e das
instituições vinculadas, já tinham a respeito da troca de uma secretaria forte por um ministério
fraco, apenas aumentaram com essa situação. (Botelho 2001).

7
Os “Ministros do Ulysses” eram: Renato Archer Ministro da Previdência e da Assistência Social; Luiz
Henrique da Silveira, Ministro da Ciência e Tecnologia e Celso Furtado, Ministro da Cultura.
8
Foram transferidos para o Ministério da Cultura no ato de sua criação: o Conselho Federal de Cultura – CFC; o
Conselho Nacional de Direito Autoral – CNDA; o Conselho Nacional de Cinema – CONCINE; a
Secretaria da Cultura; a Empresa Brasileira de Filmes S/A – EMBRAFILME; a Fundação Nacional de Arte –
FUNARTE; a Fundação Nacional Pró-Memória - PRÓ-MEMÓRIA; e a Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB;
Fundação Joaquim Nabuco - FJN.

1298

V V
Para eles, estava claro que a criação do ministério não havia sido resultado de uma demanda
real dos órgãos de cultura, que por ventura necessitassem de uma estrutura mais complexa
para efetivar seus objetivos. O novo ministério, de acordo com essa leitura, havia sido fruto
do desejo político dos Secretários de Cultura, liderados por José Aparecido, e só servira para
desordenar aquilo que estava em perfeito funcionamento. (ibidem).
Os primeiros meses da gestão de Celso Furtado foram dedicados a dar ao Ministério
uma estrutura de funcionamento. O Decreto nº 92.489, de 24 de Março de 1986, que
reestrutura o Ministério, sintetiza esse primeiro esforço. Apenas quatro Secretarias-
Executivas9 faziam parte da administração direta do Minc, no lugar das diversas assessorias
que existiam anteriormente. Todos os demais organismos ligados a cultura pertenciam à
administração indireta, como instituições vinculadas, aquelas que são apenas supervisionadas
pelo ministério, mas não diretamente subordinadas a ele. Em meio as escassas dotações
orçamentárias, Furtado concebeu um ministério enxuto.
Em seguida debruçou-se sobre o mais importante assunto pendente, a lei de incentivos
fiscais para cultura. Proposta no congresso em quatro ocasiões pelo então senador José
Sarney, a lei foi considerada inconstitucional em todos os pleitos, pois, sob a legislação do
regime militar, apenas o poder executivo tinha o poder de legislar sobre matéria econômica.
Com a redemocratização, a Lei passou a representar um grande desejo político de Sarney,
expresso através do seu último ato como senador, antes de tomar posse como presidente
interino do país, apresentá-la pela última vez ao Congresso.
Logo após assumir, o Presidente Sarney, ordenou a formação do grupo
interministerial10, formado pelos representantes das pastas da Cultura, da Fazenda e do
Planejamento, com a finalidade de propor um substituto para o Projeto de Lei que ele havia
apresentado. Porém, com os inúmeros contratempos ocorridos durante a gestão de Aluísio
Pimenta, nada havia sido concretizado. No final de 1985 a lei, que fora enviada para discussão
no Ministério da Cultura, foi reenviada ao presidente da república sem modificações, depois
de um ano de debates infrutíferos. Após a posse de Furtado a lei é enviada novamente ao
Minc para sua revisão, dando-lhe a oportunidade de conferir-lhe um novo significado.

9
- Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN; Secretaria de Apoio à Produção Cultural -
SEAP; Secretaria de Atividades Sócio-Culturais - SEAC; e, a Secretaria de Difusão e Intercâmbio Cultural -
SEDI.
10
Ver: O Globo, Pimenta quer mais verbas para cultura 04 junho de 1985; O Estado de São Paulo, Aluísio
Pimenta, perto das raízes da cultura, 04 junho de 1985; O Globo, Investimento em Cultura terá abatimento no IR,
08 de junho 1985;

1299

V V
Em sua concepção, o funcionamento da lei era simples: qualquer cidadão poderia
incentivar uma atividade cultural utilizando parte do valor devido de imposto de renda.
Bastava o doador realizar um deposito na conta da entidade cultural que desejava auxiliar. Em
troca emitia-se um recibo que era anexado no ato da declaração do imposto. Para poder
receber os recursos, era necessário que a entidade cultural fosse uma pessoa jurídica, com ou
sem fins lucrativos, e estivesse cadastrada junto ao Minc. Estavam liberadas para doar pessoas
físicas e jurídicas, devedoras de imposto de renda, sem qualquer restrição. Um exemplo do
funcionamento do mecanismo é dado pelo próprio Ministro durante uma participação em um
programa de TV da época:
Bem, para participar da Lei Sarney é necessário que a pessoa seja
contribuinte do imposto de renda. Digamos que esse seu quitandeiro seja
contribuinte do imposto de renda. Ele precisa, portanto, ser educado nessa
direção, é necessário que ele compreenda que uma iniciativa cultural que
diz respeito a sua própria vida também passa a depender dele. Se ele está
numa cidade pequena, por exemplo, e necessita de um espaço cultural
que não existe (...) ele pode tomar a iniciativa e se reunir com um grupo
de pessoas e contribuir com seus próprios recursos para a efetivação
desse projeto. (…) Nós queremos é que na cidade onde está esse
quitandeiro, (...) que essas pessoas se organizem. (C. Furtado, Roda Viva
1987).

A fala do Ministro deixa implícitos os pressupostos ideológicos, que deram suporte


a sua iniciativa. No discurso oficial propagandeado a respeito da Lei, não são as empresas
as convocadas a utilizá-la, como se consolidou após a implementação da Lei Rouanet. A
cultura não era oferecida por Furtado como “bom negocio” a ser investido, e sim como
uma iniciativa espontânea da sociedade que deveria ser apoiada pelo Estado. Os grupos
locais eram convocados a aplicá-la, os residentes daquela comunidade, deveriam se
organizar e buscar o apoio as suas iniciativas, não sendo permitido por lei11 qualquer tipo
de mediação ou corretagem entre mecenas e artista.
Ao disponibilizar o incentivo fiscal como meio de financiar as atividades culturais
eleitas pelos habitantes daquela localidade, transferia-se a eles o poder da escolha implícita
nesta seleção. Ao conclamar a sociedade a se organizar para acessar a Lei, Celso Furtado
realiza ao mesmo tempo um discurso de empoderamento social:
E a Lei Sarney veio para, não propriamente para canalizar recursos para a cultura, mas para incitar
a sociedade a assumir a iniciativa no plano da cultura. (C. Furtado, Roda Viva 1987)

Em um momento delicado de redemocratização, o discurso de “libertação da cultura”


do jugo do governo que durante vinte e um anos a cerceou, era deveras progressista. O desejo
11
Art. 7º. - Nenhuma aplicação de benefícios fiscais previstos nesta Lei poderá ser feita através de qualquer tipo de
intermediação ou corretagem.(LEI No 7.505 1986)

1300

V V
expresso por Furtado, aquilo que nomeara reiteradas vezes de espírito da lei, era devolver à
sociedade um poder que lhe havia sido escorchado ao longo desses anos. Para o ministro, era
necessário corrigir a perversão institucionalizada no período autoritário, onde o Estado se
valia da força para usurpar o direito de seleção sobre a produção cultural da sociedade, que
não lhe pertencia. Com a promulgação da Lei, na visão do Ministro, caberia somente a
sociedade civil a decisão sobre o destino de boa parte das verbas destinadas para a cultura.
Seu espírito descentralizador transfere para a sociedade a iniciativa dos
projetos, a mobilização dos recursos e o controle da aplicação. Cria-se assim
um vínculo entre a comunidade e os agentes culturais locais, sem
interferência ou monitoramento do Estado. Evita-se a tutela de autoridades
distantes. Eliminam-se os custos administrativos, inevitáveis, se os recursos
tiverem que ser arrecadados pelo governo federal e aplicados com a
intermediação da máquina burocrática. Estimula-se a iniciativa e reduzem-se
os custos operacionais. (C. Furtado, A ação do Ministério da Cultura - 1987
2012).

Por seu posicionamento político, Celso Furtado fez questão de que o Projeto de Lei nº
7.793, a futura Lei Sarney, tramitasse normalmente pela Câmara dos Deputados e pelo
Senado. (Magalhães 2012, p 181) Poderia, ao invés disso, ter-se valido de um recurso
largamente utilizado no período, as “medidas-provisórias”, decretos presidenciais com força
de lei que entram em vigor logo após editados, sendo apreciados apenas a posteriori pelo
Congresso. Seu intuito, no entanto, era dar-lhe força política e coerência, uma vez que o
principal objetivo da lei, segundo o Ministro, era “redemocratizar a cultura”. A passagem da
PL n° 7.793 pelo Congresso Nacional mobilizou diversos grupos ligados à área da cultura.
Produtores, artistas, intelectuais e entidades de classe participaram das discussões em
plenário, além das inúmeras cartas enviadas aos congressistas.

O REMANESCENTE DO PERÍODO AUTORITÁRIO: O CONSELHO FEDERAL DE


CULTURA
Entre esses, um grupo se destacou, o Conselho Federal de Cultura. Criado em 1966 no
âmbito da ditadura civil-militar, o CFC tinha por missão formular uma política cultural para o
país. Composto por vinte e seis “personalidades eminentes da cultura brasileira e de
reconhecida idoneidade” (Decreto-lei nº 74 de 21.11.1966), nomeados pelo próprio Presidente
da República, esses notáveis eram selecionados em outras instituições culturais, sobretudo as
“tradicionais”, como o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de
Letras. O CFC funcionava como um grupo restrito, no qual seus integrantes, pertencentes a
uma elite intelectual, obtinham - com a titulação de Conselheiro - uma espécie de legitimação

1301

V V
do seu poder simbólico no campo erudito da alta cultura, uma vez que seu assessoramento era
direto ao Ministro da Educação e Cultura.
A coesão do grupo era mantida primeiramente pela própria forma de seleção. Além dos
atributos formais já descritos, Maria Quintela, em seu estudo sobre as elites culturais
brasileiras (1984), atentará para o que ela nomeia de “quadro ideológico consensual”, que
funcionaria como um requisito implícito para a convocação. Essa prática, institucionalizada
na ABL e no IHGB, irá ser transplantada para o Conselho e lá reforçada pela própria essência
do regime.
Os conceitos-chave balizadores das ações do Conselho eram o civismo e a tradição.
Em seus discursos os conselheiros os associavam a noção de cultura, cuja finalidade era
realçar os elementos que compõe a nação, fortalecendo o sentimento de pertencimento a
uma coletividade. O Estado era compreendido como um defensor dessa cultura nacional, e
sua função consistia em protegê-la das influências alienígenas12 que concorriam para
descaracterizá-la. Sob tal visão o intervencionismo era entendido como uma ação defensiva
e não como uma atuação política, e os atos decorrentes de suas práticas ganhavam uma
aparente neutralidade.
A visão conservadora e otimista trazida pelos integrantes do Conselho em relação à
cultura brasileira tornava-se assim mais um dos pilares de legitimação do regime. Em
termos concretos isso se caracterizou no interior do CFC pela produção de obras dedicadas
ao tema, pela comemoração de efemeridades, pela preservação de monumentos, pela
defesa e valorização de manifestações folclóricas, ou pelo reconhecimento dos feitos dos
“grandes homens” que compuseram a nação.
Durante o período de maior atuação do CFC, que vão de sua implantação em 1967
até 1974, coincidindo com o período de maior endurecimento do regime civil-militar, suas
atribuições extrapolaram os contornos normalmente delegadas a um órgão colegiado de
função consultiva. Conforme observa a pesquisadora Lia Calabre
A principal questão enfrentada pelo órgão foi a da determinação do limite
das atribuições. Se por um lado havia uma série de limitações legais para a
atuação de um conselho, por outro existia uma espécie de projeto do próprio
governo que imputava ao órgão um papel que deveria ser cumprido por uma
Secretaria (Calabre 2008).

Tais ações englobaram desde a distribuição de verbas para instituições culturais;


firmamento e fiscalização de convênios; organização de campanhas para promover a cultura

12
Termo utilizado pelo CFC para designar as influências culturais nocivas vindas do exterior.

1302

V V
nacional; financiamento para publicação de diversas obras; e ainda, sob orientação do
Conselho Federal, foram implantados vinte Conselhos Estaduais de Cultura. Esses Conselhos
Estaduais eram similares ao CFC, e sua instrução era para que todas as ações de cultura locais
– estaduais e municipais - passassem por seus respectivos Conselhos, e que esses, em conexão
com seu representante na esfera federal, estabelecessem a “integração da nação”, sempre
orientados por essa instância superior.
Em termos gerais, o CFC consolidou o início de uma rotina burocrática para a Cultura
no interior do Estado civil-militar. Por mais que os Conselhos Estaduais e Municipais
carecessem, em sua esmagadora maioria, de recursos para efetivar o funcionamento pleno de
suas atividades, é inegável a importância da implementação dessa organicidade. Conscientes
desse importante papel, os Conselheiros relembrariam em diversas plenárias que o CFC foi o
germe do posterior Ministério da Cultura. Todavia, após 1975, os limites da inserção de um
pensamento tradicional no interior de um Estado cada vez mais capitalista, começaram a se
revelar com mais intensidade.
Esse marco temporal dialoga com a periodização proposta por Gabriel Cohen
(COHEN, 1984), e adotada também por Renato Ortiz (ORTIZ, 2012), entre outros
pesquisadores do campo da cultura. Em sua análise Cohen identifica dois momentos distintos
na posição do Estado no campo da cultura: o primeiro compreende os anos de 1966 até 1974,
marcados pela “entrada” do Estado na cena cultural; o segundo partindo de 1975, quando se
pode observar a centralização das políticas pela cúpula do executivo, esvaziando grupos no
interior do MEC (Ministério da Educação e Cultura) entre eles, o Conselho, que começa a
perder suas funções executivas para órgãos como a DAC - Diretoria de Ação Cultural, a
Funarte - Fundação Nacional de Arte e a Fundação Pró-Memória. Em meio a esta conjuntura,
o CFC foi sendo esvaziado de seu poder político, se tornando um órgão pouco expressivo,
com baixas dotações orçamentárias, mas que continuava a existir no organograma do MEC
graças ao prestígio político de seus componentes.
Em 1985, ano em que o mandato de oito dos seus mais ilustres membros13, que
ocupavam seus postos a exatos 18 anos, iria acabar, os integrantes do conselho organizaram
um lobby na câmara para alterar o decreto-lei de sua criação. De acordo com a nova redação
proposta pelo deputado Álvaro Valle (PFL-RJ), os integrantes do Conselho poderiam ser
reconduzidos pela quarta vez ao cargo, desde que um terço dos membros da casa estivesse
cumprindo seu primeiro mandato. O ato provocou reação na classe artística que se expressou
13
Adonias Filho, Afonso Arinos, Artur César Ferreira Reis, Gilberto Freyre, José Cândido de Carvalho, Josué
Montello, Pedro Calmon e Raquel de Queiroz.

1303

V V
através dos jornais contra a medida14. No dia 12 de fevereiro de 1985, a manchete de meia
página no caderno B do Jornal do Brasil, inquiria: “Os homens cultos: sempre os mesmos?”
(Jornal do Brasil 1985) No ano seguinte, os Conselheiros se valeram do lobby político
novamente, desta vez nas votações da Lei Sarney.

A EMENDA Nº 12 E A DISPUTA DE CONCEITOS EM TORNO DA LEI SARNEY.


Durante a tramitação na Câmara dos Deputados, os componentes do CFC buscaram se
valer novamente de seu prestígio nos meios políticos para propor uma emenda ao projeto que
originou a Lei Sarney. Das nove emendas parlamentares propostas no total, são aprovadas
pelo Congresso apenas duas. Uma delas, a de número nove apresentada por Bonifácio de
Andrada, vice-líder do Partido Democrático Social – PDS, sucessor do ARENA, consistia em
uma modificação na forma de fiscalização da Lei:
EMENDA DE PLENÁRIO AO PROJETO DE LEI N° 7.793, DE 1986, DO
PODER EXECUTIVO:
Inclua-se, onde couber, o seguinte artigo:
Art As doações, patrocínios e investimentos, de natureza cultural,
mencionados nesta lei, serão comunicados ao Conselho Federal de Cultura,
para que possa acompanhar e supervisionar as respectivas aplicações,
podendo, em caso de desvios ou irregularidades, serem por ele suspensos.
§ 1º O Conselho Federal de Cultura, nas hipóteses deste artigo, será
auxiliado, respectivamente, pelos Conselhos Estaduais de Cultura e pelos
Conselhos de Incentivos Culturais, a serem instalados nos Municípios,
segundo Resolução daquele.
§ 2º Os Conselhos de Incentivo Cultural15 serão compostos de membros
designados pelo Conselho Federal de Cultura, pelos Conselhos Estaduais de
Cultura, pela Municipalidade respectiva e por fundação com
representatividade expressiva, existente na localidade. (Brasil 1986)

Para justificar a proposição de sua emenda ao Congresso, o Deputado Bonifácio de


Andrada não poderia ser mais assertivo
A emenda visa prestigiar o Conselho Federal de Cultura que é o órgão
competente para tanto, permitindo que seja auxiliado pelos Conselhos
Estaduais de Cultura e pelos Conselhos de Incentivo Cultural dos
municípios, os quais são instituídos nesta lei. As entidades municipais,
estaduais e a federal, assim envolvidas no sistema, irão permitir que a
comunidade possa fiscalizar diretamente a aplicação dos benefícios fiscais,
obtidos por esse projeto. (Brasil 1986).

A emenda aprovada, porém, sofreria dois vetos presidenciais. Os Conselhos Estaduais


de Cultura, e os Conselhos de Incentivo Cultural, por terem sua criação determinada por Lei

14
Para outros exemplos de notícias veiculadas, ver: “Antivitalício.” O Globo, 04 de abril de 1985.
“Eternos.” O Globo, 17 de maio de 1985.
15
Os Conselhos de Incentivo Cultural, se implementados, viriam a atuar junto ao Conselho Federal de Cultura e aos
Conselhos Estaduais de Cultura na supervisão dos projetos incentivados através da Lei Sarney.

1304

V V
Federal, atentavam contra o democrático princípio da autonomia dos entes da federação,
fugindo às prerrogativas da União determinar a criação de um órgão de outra esfera, seja
estadual ou municipal. Desta forma foram suprimidos os caputs um e dois, sendo incorporado
à Lei somente o corpo do artigo que na Lei se tornou o de número doze.

A emenda inicialmente buscava criar uma organicidade entre os Conselhos,


reavivando um antigo projeto do CFC, na medida em que delegava ações não apenas para ele,
como também para os Conselhos Estaduais, que se encontravam em situação pior que a
enfrentada pelo representante Federal no que concernia à participação política e orçamento. A
limitaçao jurídica às designações subsequentes ao artigo 12 restringiu as possibilidades
ofertadas ao CFC, mas sua aprovação era a prerrogativa que eles necessitavam para
reivindicar um retorno as atuações executivas. Com a regulamentação da Lei (Decreto Nº
93.335 1986), em seu artigo 22°16, o poder de cancelar determinado incentivo era agora dado,
também, a Receita Federal e ao próprio Ministério da Cultura, além do CFC, não
especificando como se daria a integração entre as três instancias fiscalizadoras.
Subsequente à aprovação da Lei, o que se assiste é uma disputa de projetos políticos
para o campo da cultura, encarnadas nas posições do Ministro Celso Furtado e do CFC. Para
os Conselheiros, os investimentos culturais feitos com recursos provindos da isenção fiscal
deveriam passar por um crivo técnico, que debateria o valor daquele projeto. Consonantes
com seu entendimento de que o desenvolvimento cultural almejado estava intimamente
atrelado à valorização e difusão da chamada “cultura erudita”, o CFC se propunha como um
corpo técnico apto a elaborar esse julgamento, uma vez que ali se encontravam personalidades
eminentes da cultura brasileira. Desta forma, a concepção de empoderamento da sociedade
defendida por Furtado entrava em franca contradição com a proposta do Conselho Federal de
Cultura, uma vez que para ele, deveria caber somente à sociedade o poder de escolha dos
projetos culturais a serem incentivados. Se analisarmos os discursos de defesa do espírito da
Lei proferidos pelo Ministro veremos que não era admissível para ele que um grupo de
intelectuais pertencentes a esferas governamentais tivessem poder de veto sobre uma escolha
realizada pelo corpo social. Em um discurso proferido na plenária do CFC em agosto de 1986,
Celso Furtado explicava:
No caso da Lei Sarney, de alguma maneira é uma mudança mesmo, no
espírito que vinha presidindo, anteriormente, nas diretrizes do governo,

16
Art. 22. O Ministério da Cultura, por sua iniciativa, do Ministério da Fazenda ou do Conselho Federal de Cultura, poderá
suspender provisoriamente a inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CPC) durante a
apuração de fraudes ou irregularidades, cancelando-a, definitivamente, após a verificação administrativa das mesmas.

1305

V V
porque este começou criando este Conselho, falando em política cultural,
como se lhe coubesse, de verdade, dar diretrizes e levar adiante a
Cultura, como que a monitora-lá. Hoje em dia, na nova lei, o governo
toma a decisão, através do parlamento, de dizer que a Cultura é,
realmente, responsabilidade da sociedade (...) e que cabe a ele, apenas,
um trabalho supletivo de apoio. (Furtado, Visita do Ministro Celso
Furtado no Conselho Federal de Cultura 1986).

Em junho de 1987, após as primeiras experiências de financiamento incentivado à


cultura, e os primeiros indícios de fraudes, Celso Furtado constata que apenas a Receita
Federal não supria a demanda de fiscalização necessária para a execução da Lei, sendo
fundamental a criação de uma equipe específica para tal fim. Por meio de portaria
ministerial (Brasil 1987) foram instituídos: um grupo de trabalho formado por quatro
17
funcionários administrativos do Minc , responsável por realizar uma análise das
instituições vinculadas ao Ministério, a fim de propor medidas para melhorar sua eficiência
administrativa; e uma comissão composta por quatro membros, que deveria agir junto a
Delegacia da Receita Federal para fiscalizar os incentivos concedidos via Lei Sarney.
Ambos os grupos possuíam a prerrogativa de utilizar material e pessoal do Ministério, ou
das instituições culturais vinculadas para assessora-los.
O Conselho Federal de Cultura se viu preterido na questão. A Comissão de
Fiscalização que Celso Furtado criara tinha como principal função a mesma atribuição que
fora dada ao CFC através do artigo nº12, fiscalizar a aplicação dos incentivos fiscais
provenientes da Lei Sarney. A reação dos Conselhos foi imediata, expressa, entre outras
manifestações, nas palavras enfáticas do conselheiro Newton Rodrigues na plenária do dia
01 de julho que classificava como ilegal o ato do Ministro, uma vez que tal função era, por
lei, de incumbência do CFC. “Realmente fica difícil entender que uma portaria ministerial,
que um dispositivo menor possa predominar sobre uma lei maior, votada pelo Congresso
Nacional”18.
No final daquele ano os Conselheiros elaboraram um parecer onde, fundamentados
nos princípios do ordenamento jurídico, justificavam ser de incumbência do CFC a
fiscalização da Lei Sarney, uma vez que a mesma tinha sido aprovada pelo Congresso
Nacional, e por possuir força de lei era superior a uma Portaria Ministerial. A intensidade
dessa alegação em um país que acabara de sair de um regime autoritário era muito grande.

17
Marileide Bandeira de Negreiros (Secretária de Análise de desenvolvimento institucional), Odette Carneiro
Lapa (Secretária de Orçamento e Finanças), Maria Helena Siqueira Rodrigues (Diretora-Geral do Departamento
Pessoal) e José Milton de Moraes Neto (Diretor-Geral do Departamento Administrativo).
18
Sessão plenária de 01 de Julho de 1987. Arquivada no Fundo do Conselho Federal de Cultura, alocado no
Palácio Gustavo Capanema.

1306

V V
Uma Portaria Ministerial é um ato do poder executivo, que tentava suplantar as atribuições
concedidas a um órgão pelo poder legislativo, uma instância democrática, eleita pelo povo,
que tantas e tantas vezes havia sido subjugada no regime anterior. O parecer foi entregue
por uma delegação de conselheiros do CFC diretamente ao presidente José Sarney 19.
A Comissão criada por Furtado foi extinta e o Ministro foi aos jornais anunciar
publicamente que os processos referentes à Lei Sarney passariam pelo crivo do Conselho
Federal de Cultura. A matéria do jornal O Estado de São Paulo do dia 3 de fevereiro de
1988 trouxe a manchete “Cultura fará seleção para lei Sarney”, onde relatava o anuncio
feito pelo Ministro em seu gabinete, “os pedidos de apoio financeiro para atividades
culturais, apresentados ao Ministério da Cultura com base na Lei Sarney, passarão a ser
selecionados pelo Conselho Federal de Cultura, e não mais pelo ministério.” Os critérios
que seriam utilizados para a seleção não haviam sido divulgados, e o redator da matéria
ressaltava “nem qual a garantia de que não será praticada uma política cultural de Estado,
de interesse do governo.” (O Estado de São Paulo 1988) Na visita que fez ao Conselho
naquele mesmo mês, Celso Furtado afirmou que a fiscalização deve se dar de maneira
sinérgica entre o CFC e o Ministério, e que seu desejo era “estreitar as relações”. Porém, a
ênfase do seu pronunciamento foi no espírito de “liberdade” contido na Lei, lembrando aos
conselheiros que mesmo em caso de indeferimento de um projeto, ainda caberia recurso
por parte das entidades ao Ministro da Cultura. 20
Após essa visita foram enviados quatro projetos para análise do Conselho, dos
quais dois foram indeferidos, um por ser considerado autofinanciável e outro por não “se
tratar de cultura” (Mariz 1988) de acordo com os conselheiros. Passado o mês de março,
cessa o fluxo de projetos e o CFC se vê novamente relegado ao ostracismo. No início do
mês de abril o conselheiro Vasco Mariz escreve um editorial para o jornal O Estado de São
Paulo, onde explicitando as concepções defendidas pelo Conselho faz um “alerta à
sociedade”, após realizar um balanço sobre os principais problemas da Lei Sarney:
Parece-me que o grande problema do Minc é identificar a real filosofia da
Lei Sarney, ou melhor ainda, como definir o tipo de cultura que merece
ser assistida. (...) Cabe ao Conselho [Federal de Cultura] melhor definir a
filosofia da lei. (...) É preciso salvar a Lei Sarney! (...) Numa época de
enorme aperto econômico, o fisco não pode, nem deve abrir mão dos
descontos sobre os impostos das empresas que não sejam efetivamente
imprescindíveis à concretização de um valioso ato cultural. Creio que, se
o Minc e o Conselho Federal de Cultura aceitarem esse requisito, estarão
dando um passo importante para salvar a Lei Sarney. (...) É preciso

19
Sessão plenária de 06 de outubro de 1987. Não publicada.
20
Sessão plenária de 09 de fevereiro de 1988. Não publicada.

1307

V V
apoiar a cultura de alto nível e não ajudar a nivelar por baixo, como se
vem fazendo lamentavelmente. É necessário educar o povo, e não descer
até o baixo nível cultural das massas. (Mariz 1988)

A resposta do Ministério a essa problemática foi a extinção tácita do órgão. Foi


reconhecida publicamente a necessidade dos projetos serem aprovados pelo CFC, mas não
lhe foi dado quaisquer meios de efetivar sua fiscalização. As dotações orçamentárias
permaneceram baixas, o quadro de funcionários subordinados ao órgão pequeno e os
projetos analisados não eram repassados ao Conselho. Ele continuou a existir no
organograma do Minc, com sua estrutura quase inalterada e a função reconhecida de órgão
responsável pela fiscalização da Lei Sarney, porém, sem poderes reais. Mantendo-se até a
data de sua extinção, em 199021, reivindicante de sua atribuição de árbitro da cultura
nacional,
Primeiro, há uma aprovação do projeto. Cabe esta ao CFC, que, pela sua
constituição, está habilitado a opinar a respeito. Não é um ato
burocrático. É um ato de cultura. (...) Temos que dar parecer, dizendo se
é, ou não, realmente, um caso de cultura (Mariz 1988)

CONCLUSÃO
A disputa política que rodeou a Lei 7.505/86, a Lei Sarney, nos possibilita observar a
complicada trama de interesses e valores conflituosos que permeia a organização da
administração pública. Todos os atores envolvidos no desencadear dos fatos - o ministro, os
conselheiros, deputados, etc... - agiram conforme uma miríade de perspectivas, que
culminaram em um aparente paradoxo ladeado pelos princípios da democracia, a lei
concebida com o discurso da redemocratização da cultura, foi deturpada através das
instituições democráticas.
A concepção de cultura defendida pelo Conselho Federal de Cultura, composto em sua
larga maioria por intelectuais com idade superior a setenta anos, carregava consigo toda uma
historicidade que não condizia mais com a dinâmica da sociedade brasileira que chegava a
redemocratização. O saudosismo dos conselheiros, que se situa entre o romântico
restitucionista e o conservador, se utilizada a escala desenvolvida por Löwy e Sayre (1995),
permeava em ideias que não mais encontravam respaldo no Brasil que passou por um
processo de desenvolvimento capitalista tão acelerado. E por esse motivo a vitória legal

21
No ano de 1990, com a posse de Fernando Collor, o Ministério da Cultura e todos os órgãos vinculados foram
extintos. No lugar foram criados uma secretaria de cultura, subordinada a presidência da republica, e dois
Institutos: o IBAC- Instituto Brasileiro de Arte e Cultura e o IBPC- Instituto Brasileiro de Promoção Cultural.
Celso Furtado, por sua vez, deixa a pasta em julho de 1988, depois de uma crise política envolvendo José Sarney
e Ulysses Guimarães, sendo substituído, efetivamente, apenas em fevereiro de 1989 por José Aparecido.

1308

V V
obtida pelo CFC não se transformou em poder político real, porque suas ideias “já não
mobilizavam mais os homens”. (Ortiz 2012, p 108)
Porém, é igualmente um engano acreditar que a posição defendida por Celso Furtado
foi vitoriosa, e os fatos demonstram isso. A Lei Sarney, quando entrou em vigor, encontrou
um país com uma indústria cultural desenvolvida que rapidamente a cooptou. Poucos projetos
incentivados através da renúncia fiscal seguiram o modelo de protagonismo cultural
concebido por Celso Furtado. E o pouco tempo na qual existiu não permitiu que soubéssemos
se a população em geral exerceria ou não essa participação, esse poder de escolha. A Lei
Rouanet, que substituiu a Lei Sarney, criada em 1991, restringiu substancialmente o espectro
dos possíveis mecenas, quando delimitou que apenas as empresas que operassem em lucro
real poderiam utilizá-la. Isso excluiu todos os pequenos comerciantes, inviabilizando o
cenário desenhado por Furtado.
Por último, é importante ressaltar que o aparente paradoxo existente na concessão da
fiscalização para o CFC, na verdade demonstra a ineficiência da democracia se tomada apenas
como um princípio. Para além, ela deve ser compreendida como um instrumento, um meio
que pode ser utilizado para a expressão das demandas sociais. Foi através do sistema
democrático que estava em funcionamento que os Conselheiros conseguiram a inserção da
sua emenda, concretizando seus interesses políticos e respaldando-os com a legítima
argumentação da “vontade do povo”, demonstrando-nos que a simples constituição de um
regime democrático não é o suficiente para garantir a democracia, enquanto princípio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Edições Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.

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1309

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Löwy, Michel, e Robert Sayre. Revolta e Melancolia: O romantismo na contramão da modernidade.


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Rio de Janeio: Contraponto, 2012.

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Ortiz, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 2012.

Quintela, Maria. “ Cultura e poder ou Espelho, espelho meu: existe alguém mais culto do que eu? .”
In: Estado e Cultura no Brasil , por (Org.) Sérgio Miceli, 113-134. São Paulo: Difel, 1984.

Ribeiro, João Ubaldo. “A cultura ministeriada.” O Globo, 26 de maio de 1985.

Santos, Ângelo Oswaldo de Araújo. Celso Furtado, Ministro da Cultura. Vol. 5, em Ensaios sobre
cultura e o Ministério da Cultura, por (Org.) Rosa Freire de d'Aguiar Furtado, 161-176. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012.

1310

V V
A IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA MUNICIPAL DE CULTURA EM RIO DAS
OSTRAS A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DA CULTURA ENQUANTO
RECURSO
Rodrigo Cazes Costa1

RESUMO: A partir do conceito de cultura como recurso (YÚDICE, 2006), este artigo
investiga o processo de implantação do Sistema Municipal de Cultura na cidade de Rio das
Ostras, município da Baixada Litorânea fluminense, a partir de um projeto de extensão da
UFF. Ao mesmo tempo em que justifica o aporte de recursos púbicos para determinadas ações
culturais, a ideia da cultura como recurso pode fazer com que percamos de vista outros
aspectos que as manifestações culturais trazem. E isso deve ser levado em conta pelos agentes
culturais de uma localidade no processo de implantação de legislações culturais.

Palavras-chave: Políticas culturais - Economia da cultura - Sistema Nacional de Cultural-


Rio das Ostras

1-SISTEMA NACIONAL DE CULTURA


A Lei 12.343/2010 instituiu o Plano Nacional de Cultura. Tal legislação estabelece
uma série de diretrizes e metas que deverão ser cumpridas, no prazo de dez anos, previstas a
sua revisão no prazo de quatro anos, de acordo com o artigo 11, parágrafo único da Lei
12.343/2010. Essas diretrizes e metas deverão nortear a política pública cultural no Brasil e
servir para que o processo de democratização cultural no país possa se aprofundar.
O prazo de dez anos para a efetivação das metas previstas na Lei 12.343/2010
determina que o Plano Nacional de Cultura seja uma política de Estado e não de governo. O
Plano estabelece um pacto político entre os atores culturais no Brasil, que deverá superar um
mero mandato eletivo das esferas federal, estadual e municipal, transformando o Plano em
orientação a ser seguida pelos governos das três esferas no país, sendo que estados e
municípios também deverão criar seus planos de cultura, a fim de garantir a integração
sistemática entre as políticas para a cultura no país.
Para que as diretrizes e metas previstas nos panos de cultura sejam efetivadas é
necessário que haja uma coordenação entre todos os entes governamentais do país: União,
estados e municípios. Para que isso seja possível é necessário que esses entes estejam
articulados em um Sistema que torne a operacionalização dessas metas algo factível e
racional. O SUS, na área da saúde, criado pela Constituição de 1988, é um exemplo de
1
Professor doutor do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense em Rio das Ostras.
rcazesc@hotmail.com

1311

V V
Sistema que busca efetivar metas de política pública em todo o território nacional por meio da
interligação entre os entes federativos. Deverá então ser criado, na área da cultura, um
Sistema que dê conta da articulação das políticas públicas para a cultura da União, estados e
municípios e implante uma racionalidade na distribuição de financiamento público para a
cultura no Brasil, mesmo que essa racionalidade seja constantemente desafiada pelas leis de
incentivo à cultura e sua concentração de recursos públicos. 2
A PEC 416/05, finalmente promulgada em 2012, acabou por regulamentar o SNC
(Sistema Nacional de Cultura) previsto no Plano Nacional de Cultura. O artigo 216-A da
Constituição Federal, então, prevê que o SNC deverá ser descentralizado e participativo. A
participação dos agentes culturais em cada esfera da administração pública é fundamental
para a efetivação do Plano Nacional de Cultura. Os estados e municípios deverão criar seus
planos e sistemas de cultura por meio de legislação própria. A criação desses mecanismos
legais são condições para que os estados e municípios que desejem obter recursos financeiros
oriundos da Lei 12.343/2010 possam aderir ao Sistema Nacional de Cultura. O ideal é que
essa legislação seja criada da maneira mais participativa possível, contando com a
colaboração dos mais variados atores culturais de cada estado e município. Somente dessa
forma a legislação irá representar os anseios desses atores, sem cair no risco de transformar-se
em letra morta ou refém de interesses localizados desse ou daquele grupo.
O Estado do Rio de Janeiro ainda não possui um Plano de Cultura, cuja legislação
tramita na Assembleia Legislativa. O mesmo ocorre em relação ao município de Rio das
Ostras, cidade fluminense localizada na região da Baixada Litorânea.

2 - A CULTURA ENQUANTO RECURSO


Nos últimos trinta e cinco a quarenta anos o mundo ocidental vem passando por um
processo de perda de importância da indústria na composição do PIB. O setor de serviços vem
ganhando cada vez mais força nessa composição e políticas públicas como a economia
criativa, pensada primeiro na Austrália3, mas que ganha força de fato na Grã-Bretanha dos
anos 1990, como alternativa à desindustrialização. Tal política pública já chegou também ao

2
No artigo “Leis de incentivo à cultura via renúncia fiscal no Brasil”, BOLÃNO César, MOTA Joanne E
MOURA, Fábio trazem os seguintes dados acerca da concentração de recursos na Lei Rouanet (8.313/1991):
“Ainda que o Sudeste concentre aproximadamente 80% do total dos recursos captados...” (p.25). Captação de
recursos via mecenato pessoa física: “...do total geral de valores solicitados apenas 53% foram aprovados, sendo
que, desse percentual, apenas 10% dos recursos foram efetivamente captados”. (p.31). Outra questão que o artigo
traz é que apenas 20% dos projetos inscritos na Lei Rouanet consegue captar recursos (p.29).
3
Na Austrália, em 1994, surgiu o Creative Nation, o primeiro projeto de política pública para Economia
Criativa.

1312

V V
Brasil, como demonstra o Plano Para a Economia Criativa 2011-2014, elaborado pela
SEC/MinC, buscando ampliar a sinergia entre economia e cultura como forma de promover o
desenvolvimento sustentável.
Dessa forma a cultura não é mais somente uma maneira do indivíduo aprimorar-se,
atingir um estágio superior de civilização, conforme o conceito de kultur alemão. A cultura
também não é mais somente um conceito antropológico a dizer que toda a manifestação
cultural possui valor e que devemos respeitar e procurar preservar todas as manifestações
culturais de todos os povos. A cultura passa, nos tempos atuais, a ser um recurso (YÚDICE,
2006), ilimitado, ao qual podemos acessar e utilizar com o objetivo de promover
desenvolvimento econômico e social, além de intervenções políticas as mais diversas.
Assim, a implementação de políticas públicas e mesmo privadas para a área da cultura
terá como objetivo principal não apenas, ou principalmente, a promoção de um determinado
tipo de arte ou saber que contenha uma mensagem ilustrativa e civilizatória, não apenas, ou
principalmente, a preservação do patrimônio cultural material e imaterial, mas, de modo
principal, a promoção da cultura enquanto ferramenta e recurso para a promoção do
desenvolvimento. As opções anteriores de políticas culturais já levavam a discussões sobre
quais manifestações artístico-culturais eram ou não dignas de serem incentivadas ou
preservadas e esse novo horizonte da política cultural, em que a cultura aparece como algo
utilitário e não um fim em si mesma, também não deve ficar isento ficar isento de polêmicas,
principalmente pelo atrito causado pela cada vez maior proximidade entre as dimensões da
economia e da cultura.
Evidentemente, a proximidade entre as esferas da economia e da cultura não é algo
próprio apenas da globalização iniciada no final do século XX. No Renascimento os grandes
artistas do período foram patrocinados pelos ricos mecenas da aristocracia italiana, como os
Médici. Nos séculos XVII e XVIII, com o fortalecimento político e econômico da burguesia,
essa proximidade ficou ainda mais evidente: “Por um lado, a cultura é o veículo no qual a
esfera pública emerge no século XVIII...” (YÚDICE, 2006, p.26). No século XX, indústrias
do entretenimento, como Hollywood, se fortalecem, tornando ainda mais próximas essas
fronteiras. (YÚDICE, 2006). Torna-se comum a menção à importância da participação da
indústria do entretenimento, nos EUA, na composição do PIB.
O período posterior à Segunda Guerra Mundial, com o aumento do poder de
consumo da classe trabalhadora, também vê a intensificação da indústria do turismo e seu
braço do turismo cultural, que estão diretamente imbricados no processo de consideração da

1313

V V
cultura como recurso: “Está claro, hoje em dia, que o turismo cultural tem-se convertido numa
forma de produção cultural” (Walle, 1998). (PÉREZ, 2009, p.11).
No final do século XX, início do século XXI, dois acontecimentos simultâneos
contribuíram para a intensificação da relação cultura e economia. O primeiro desses
acontecimentos foi a ascensão das políticas econômicas neoliberais nos EUA e na Europa, a
partir do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Tais políticas significaram um menor
aporte de recursos do Estado para a área cultural. Sendo mais escassos os recursos públicos
para a cultura, era necessário que a esses recursos fosse dada uma justificativa maior a
respeito de sua destinação:
O papel adicional conferido à cultura se deve em parte à redução da
subvenção estatal direta de todos os serviços sociais, inclusive da cultura, o
que requer uma nova estratégia de legitimação na era pós-Ford e pós-
Direitos Civis nos Estados Unidos. (YÚDICE, 2006, p.28).

Outro acontecimento foi a desindustrialização dos países capitalistas ocidentais. Com


o processo de globalização da economia cada vez mais forte a partir dos anos 1980 as
indústrias, que antes estavam em países como EUA, Grã-Bretanha e outros do mundo
capitalista ocidental foram para países onde o custo do trabalho é menor, como, por exemplo,
a China. Essa situação criou um panorama de desemprego que precisou ser suprido pelo setor
de serviços da economia. Para ajudar nessa missão a cultura foi chamada a participar dessa
nova configuração da economia como um recurso sempre disponível e inesgotável. E, nessa
nova configuração da cultura como recurso, ideias que antes existiam sobre a importância da
arte enquanto estética e terreno para que o indivíduo pudesse alcançar algum tipo de
emancipação em relação a determinadas situações sociais perdem espaço para uma visão dos
recursos artísticos e culturais do que pode ser chamada de campo expandido da cultura
(design, moda, indústria de software, etc.) que passam a também batalhar para obterem acesso
a esses recursos, muitas vezes por meio de leis de incentivo fiscal, subsídios que o Estado
fornece para incentivar o desenvolvimento de determinada área da economia, no caso em
discussão a cultura.
Não à toa a polêmica que envolveu recentemente a Lei 8313/1991, conhecida como
Lei Rouanet, dizia respeito ao desejo dos setores de moda e gastronomia4 serem agraciados

4
http://www.cultura.gov.br/banner2/-/asset_publisher/B8a2Gazsrvex/content/na-spfw-marta-suplicy-diz-que-a-
moda-e-uma-marca-da-historia/10883 Nesta reportagem, sobre a São Paulo Fashion Week, há uma defesa por
parte da ministra da Cultura à época, Marta Suplicy, que aproxima a moda do conceito de patrimônio. É um
caminho interessante para se pensar a questão, pois vai de encontro à ideia de cultura como valor.

1314

V V
com os mesmos incentivos fiscais que estão disponíveis para outros setores artístico-culturais
já consagrados como literatura, patrimônio cultural material, audiovisual, etc. O que está em
jogo, no caso do desejo da inserção dos setores brasileiros de moda e gastronomia na Lei
Rouanet e da rejeição de outras áreas consagradas a essa inserção não é propriamente um
debate acerca da importância ou não da moda e da gastronomia sob uma perspectiva artística-
cultural voltada para o potencial estético desse ou aquele desenhista de moda ou desse ou
daquele chefe de cozinha e sim do quanto essa inserção pode incentivar esses setores em
termos econômicos, gerando empregos e trazendo desenvolvimento social e do quanto de
recursos financeiros outros setores culturais podem vir a perder caso haja essa inclusão.
Assim, sendo a cultura sendo um recurso que pode ser alocado nesse ou naquele setor
por meio de políticas culturais públicas ou privadas, será sempre o retorno social e econômico
dessas políticas a ser levado em consideração em primeiro lugar. Somente ao final do
processo será examinada alguma força transformadora menos diretamente mensurável que as
ações envolvidas nessas políticas possam trazer, ainda mais se tiverem o poder de questionar
uma ordem social profundamente injusta que, muitas vezes, essas políticas só fazem atenuar
ou maquiar.

3-SISTEMA MUNICIPAL DE CULTURA EM RIO DAS OSTRAS


Rio das Ostras é um município criado recentemente (1992) no Estado do Rio de
Janeiro, na região da Baixada Litorânea. Possui como sua principal fonte de renda os
Royalties da produção de petróleo que ocorre na Bacia de Campos. Em função do
crescimento da produção de petróleo na cidade vizinha de Macaé, Rio das Ostras
experimentou um enorme crescimento populacional nos últimos tempos. Em 2004 a
população era de 45.755.5 Em 2014 a população já estava em 127.1716 habitantes, quase
200% de aumento. Tal aumento exponencial causaria problemas a qualquer cidade e em Rio
das Ostras não foi diferente. Apesar de possuir a receita dos royalties do petróleo, que
proporciona à população da cidade uma renda per capita7 em torno de duas vezes e meia
maior que o da média da população brasileira8, Rio das Ostras conta com muitos dos

http://www.culturaemercado.com.br/leirouanet/cultura-que-se-come/ Já nesta outra reportagem, “Cultura que


come”, a respeito da inclusão da gastronomia, o viés é nitidamente mercantil.
5
http://www.riodasostras.rj.gov.br/dados-do-municipio.html
6
http://www.riodasostras.rj.gov.br/dados-do-municipio.html
7
http://www.riodasostras.rj.gov.br/dados-do-municipio.html
8
http://brasilemsintese.ibge.gov.br/contas-nacionais/pib-per-capita A renda per capta no Brasil, segundo o
IBGE, está em R$ 24.065,00, dados de 2013.

1315

V V
problemas sociais que afetam o Brasil. A quantidade de estupros na cidade, por exemplo, é
um grave problema criminal.
O processo de distribuição da riqueza oriunda da exploração do petróleo também
segue a desigualdade nacional em sua distribuição9 que ocorre no Brasil. Isso resulta no
surgimento de bairros periféricos onde pobreza e violência são constantes, contrastando com
o discurso da riqueza trazida pelo petróleo. Nesse sentido a cultura pode ser mobilizada como
recurso que venha a atenuar alguns dos problemas trazidos por um modelo de
desenvolvimento econômico e social excludente de boa parte da população, inclusive por ser
um recurso infinito e ambientalmente sustentável, ao contrário do petróleo.
A cultura no município de Rio das Ostras não possui uma secretaria própria. O órgão
municipal destinado a cuidar da cultura na cidade é a Fundação Rio das Ostras de Cultura,
criada em 1997. A existência de uma fundação, ao invés de uma secretaria, aponta para uma
orientação da política cultural da cidade mais voltada para um modelo neoliberal de fomento à
cultura, com base em renúncia fiscal, do que para um modelo dependente de financiamento
público direto. No entanto, Rio das Ostras não possui, assim como a grande maioria dos
municípios no Brasil, legislação de incentivo à cultura voltada para a renúncia fiscal. O
município também não possui plano de cultura e nem sistema de cultura.
A FROC (Fundação Rio das Ostras de Cultura) administra uma série de equipamentos
culturais na cidade, com destaque para a Biblioteca Pública Municipal, o Teatro Popular de
Rio das Ostras, e o Centro de Formação Artística de Música, Dança e Teatro, localizado no
prédio conhecido pelos moradores da cidade como ONDA. Por ser uma Fundação ela pode
captar recursos via leis de incentivo fiscal à cultura, mas, numa consulta à base de dados
SalicWeb, do MinC, referente a projetos culturais realizados via Lei Rouanet, encontramos,
para o CNPJ da Fundação (02.246.138/0001-09) sete projetos voltados à captação de recursos
via mecenato (renúncia fiscal). Desses sete projetos aprovados, nenhum chegou a captar
recursos.
A participação pública na orientação de uma política cultural para a cidade, no
entanto, na falta de um sistema e de um plano de cultura municipais que sejam estruturantes
acaba por ser tornar falha. Grandes eventos culturais, como o Festival de Jazz e Blues de Rio
das Ostras, o maior da cidade e com alcance nacional, são desenvolvidos pela Secretaria de

9
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ibge/censo/cnv/ginirj.def A desigualdade em Rio das Ostras em 2010, segundo
a tabela, é de 0,5366 no índice de Gini da renda domiciliar per capta. No mesmo ano o índice de Gini no Brasil
era de 0,6086, segundo o critério da renda domiciliar per capta:
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2011/b09ufc.htm. São, ambos, índices bem altos de desigualdade.

1316

V V
Turismo do Município, dando vazão a uma política de eventos e de turismo cultural que deixa
vazios no calendário cultural da cidade, sem gerar uma continuidade de ações culturais ao
longo do ano e que, muitas vezes, não atende aos agentes culturais locais. Para que a
participação popular possa se dar de maneira efetiva na elaboração das políticas culturais do
município de Rio das Ostras é necessário que se estabeleça um sistema municipal de cultura e
um plano municipal de cultura.
Com esse objetivo o professor doutor Ernani Viana Saraiva, do curso de Produção
Cultural da Universidade Federal Fluminense, campus de Rio das Ostras, estabeleceu contato
com a FROC a fim de desenvolver um cronograma de trabalho para a implantação do Sistema
Municipal de Cultura e o Plano Municipal de Cultura. Esse contato resultou em um projeto de
extensão apresentado pelo professor Ernani Saraiva junto à UFF, com um cronograma de
execução de vinte e dois meses, totalizando oitocentas horas de ação. Como participante do
programa, na condição de apoio administrativo, uma das questões surgidas logo no desenho
do projeto, no segundo semestre de 2014, foi a sua duração. O prazo de 800 horas distribuídas
em vinte e dois meses de ação poderia ser considerado, talvez, excessivo na visão de gestores
da FROC. No entanto, resolveu-se por manter esse prazo, já que o objetivo da estruturação do
Sistema Municipal de Cultura é que ocorra da maneira mais democrática e participativa
possível, permitindo a participação plena de todos os atores culturais do município de Rio das
Ostras e uma aceleração desse processo, mesmo que atenda a finalidades do governo atual da
cidade, não seria uma política de estado adequada.
O cronograma da implantação do Sistema Municipal de Cultura, desenvolvido pelo
coordenador do projeto de extensão, professor Ernani Viana Saraiva, ficou assim dividido:
setembro de 2014- Pré-produção do projeto com desenvolvimento de minutas de lei
necessárias ao registro legal e funcionamento das instâncias e instrumentos de gestão
componentes do SMC; novembro de 2014: preparação do fórum de discussão das minutas;
janeiro de 2015- Acompanhamento dos trâmites legais sobre as minutas (jurídico e
legislativo); fevereiro de 2015- correção das minutas em função dos resultados dos fóruns de
discussão das mesmas; março de 2015- diagnóstico micro e macroambiental para dar suporte
à elaboração do Plano Municipal de Cultura; abril de 2015- fórum de discussão do sistema de
informações e indicadores culturais de Rio das Ostras; maio de 2015- elaboração do Plano
Municipal de Cultura e preparação da 2ª conferência municipal de cultura; agosto de 2015-
apresentação para discussão do plano municipal de cultura e eventuais correções; outubro de
2015- início da construção do sistema de indicadores e informações culturais de Rio das

1317

V V
Ostras. O projeto tem previsão de encerramento para julho de 2016, com possíveis alterações
no cronograma até o final do processo.
Uma das questões fundamentais na discussão a respeito da implantação do
Sistema Municipal de Cultura e do Plano Municipal de Cultura em Rio das Ostras é o
mapeamento cultural:
A importância das pesquisas, mapeamentos, informações e
indicadores culturais pode ser destacada em diversos aspectos: pesquisa
acadêmica, planejamento, avaliação das ações pelos diferentes atores do
campo cultural, elaboração, formulação e avaliação de políticas públicas.
(BARROS e ZIVIANI, 2011, p.104).

Uma das questões fundamentais na discussão acerca de um mapeamento cultural é a


do conceito de cultura a ser adotado. Outra discussão fundamental é se o mapeamento será
realizado por linguagens artísticas, dando ênfase às especificidades de cada linguagem, ou por
territórios, dando ênfase aos circuitos culturais e a sua capacidade multiplicadora. O perigo de
realizar um mapeamento que leve em conta somente a questão das linguagens artísticas em
detrimento das questões territoriais é o de isolar as demandas dessas linguagens e não pensar
numa política cultural global, que leve em conta as questões da transversalidade entre as
variadas linguagens artísticas. Isolar as linguagens artísticas também favorece a política de
balcão, do favor, do clientelismo, tão comuns na sociedade brasileira.
Já o mapeamento por territórios e circuitos culturais, conjugado a uma visão da cultura
como recurso, com todos os problemas que esta possa vir a ter, parece dar conta melhor da
dinâmica de uma política cultural pública que leve em conta, da maneira mais democrática
possível, a demanda de todos os atores culturais de um município, estado ou país. O
mapeamento por territórios não irá, obviamente, excluir um mapeamento por linguagens, mas
este será feito em consonância àquele, visando estabelecer uma política cultural pública que
distribua os recursos com um nível de igualdade o melhor possível. A questão do
mapeamento ainda não está totalmente cristalizada nas discussões a respeito da implantação
do Sistema Municipal de Cultura em Rio das Ostras. A tendência parece ser a de dar maior
peso ao mapeamento por linguagens, mas sem descuidar da importância do território.
Para que o mapeamento cultural em Rio das Ostras ocorra de forma plena também é
necessário que haja uma discussão acerca do que é cultura em Rio das Ostras. O projeto de
extensão que deu origem ao movimento institucionalizado de buscar a implantação do
Sistema Municipal de Cultura não esboça essa discussão. Há, no projeto de extensão, uma
visão da cultura que a aproxima da visão da economia criativa enquanto política pública e da

1318

V V
cultura como recurso, mas essa discussão não chega a se aprofundar, até mesmo pelo pouco
espaço existente para isso no corpo do projeto. É importante que haja esse aprofundamento
durante o período em que o Sistema será concebido. No entanto, não parece haver
possibilidade para que surja alguma tendência de considerar a cultura como algo que possa
existir sem levar em conta, de maneira predominante, a sua dimensão enquanto recurso. A
própria importância da adesão do município ao Sistema Nacional de Cultura, para além de
uma questão estruturante de políticas públicas, tem relação com a possibilidade de repasse de
recursos federais para projetos de municípios participantes do Sistema. Claro que a liberação
desses recursos, de alguma maneira, deverá estar atrelada a uma contrapartida em melhorias
para o desenvolvimento econômico e social do município, na pior das hipóteses pela
possibilidade de sustentabilidade dos agentes culturais locais.
A próxima etapa para o estabelecimento do projeto de lei que dará origem ao Sistema
Municipal de Cultura de Rio das Ostras é um amplo seminário de capacitação a ser realizado
no final do mês de fevereiro de 2015, no Teatro Popular de Rio das Ostras, reunindo os
agentes culturais da cidade que tenham interesse em participar da elaboração do Sistema.
Nesse seminário estarão presentes representantes do MinC e da Secretaria de Cultura do
Estado do Rio de Janeiro, a fim de prestar maiores informações acerca do funcionamento dos
respectivos sistemas.

4 - ÚLTIMAS PALAVRAS, POR ORA...


O desafio de estabelecer políticas culturais públicas em uma cidade pequena como Rio
das Ostras pode, muitas vezes, se tornar mais complicado do que em metrópoles como o Rio
de Janeiro e São Paulo. Em cidades maiores o patrimonialismo10, um dos maiores problemas
da vida pública do país, acaba atenuado pela impessoalidade natural às grandes metrópoles.
Em cidades pequenas, no entanto, parece haver uma maior resistência à quebra de relações
patrimonialistas que se dão por laços de vizinhança e relações muitas vezes oriundas da
infância. Nesse cenário, torna-se ainda mais fundamental a criação de um Sistema Municipal
de Cultura que seja estruturante das políticas públicas culturais, atrelado a um Plano de
Cultura que transforme as políticas culturais em políticas de Estado e não de governo e um
Sistema de Informações Culturais que possa, de fato, subsidiar a aplicação racional dos
recursos públicos, já tão escassos11, destinados à cultura.

10
No artigo “Nota sobre o patrimonialismo e a dimensão pública na formação da América Latina
Contemporânea”, Simon Schwartzman explica a questão do patrimonialismo na formação da América Latina.
11
Não falamos aqui dos recursos destinados à cultura via renúncia fiscal.

1319

V V
Na perspectiva atual em que se encontram as políticas culturais públicas, o
conceito de cultura como recurso oferece uma satisfatória possibilidade de compreensão do
processo que ocorre na elaboração e execução dessas políticas.

5-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, José Márcio e ZIVIANI, Paula. “Conhecer e agir no campo da cultura: diagnóstico,
informação e indicadores” in: BARROS, José Márcio. OLIVEIRA JÚNIOR, José. (orgs). Pensar e
agir com a cultura: desafios da gestão cultural. Belo Horizonte, Observatório da Diversidade
Cultural, 2011.

BOLAÑO, César. MOTA, Joanne. MOURA, Fábio. “Leis de incentivo à cultura via renúncia fiscal no
Brasil”. In: Políticas culturais: pesquisa e formação. Organização de Lia Calabre. Itaú Cultural,
Fundação Casa de Rui Barbosa, 2012.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 in:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm (site acessado em
16/02/105).

HERCULANO, Mônica. “Cultura que se come”. In:


http://www.culturaemercado.com.br/leirouanet/cultura-que-se-come/ (site acessado em 17/02/2015).

“Índice de Gini da Renda Domiciliar Per Capita- Rio de Janeiro” in:


http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ibge/censo/cnv/ginirj.def (site acessado em 17/02/2015).

“Índice de Gini da Renda Domiciliar Per Capita” in:


http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2011/b09ufc.htm (site acessado em 17/02/2015).

Lei 12.343/2010 in: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12343.htm (site


acessado em 16/02/2015).

Lei 8313/1991 in: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8313cons.htm (site acessado em


18/02/2015).

“Na SPFW, Marta Suplicy diz que a moda é uma marca da história”. In:
http://www.cultura.gov.br/banner2/-/asset_publisher/B8a2Gazsrvex/content/na-spfw-marta-suplicy-
diz-que-a-moda-e-uma-marca-da-historia/10883 (site acessado em 17/02/2015).

PÉREZ, Xerardo Pereiro. Turismo Cultural. Uma visão antropológica. El Sauzal (Tenerife, Espanha),
ACA y PASOS, RTPC. 2009.

SARAIVA, Ernani Viana. “Criação do Sistema Municipal de Cultura em Rio das Ostras”. In:
http://sigproj1.mec.gov.br/projetos/imprimir.php?modalidade=0&projeto_id=96676&local=home&mo
do=1&original=1 (site acessado em 17/02/2015).

SCHWARTZMAN, Simon. “Nota sobre o patrimonialismo e a dimensão publica na formação da


América Latina contemporânea.” In: http://www.schwartzman.org.br/simon/patrimonialismo06.pdf
(site acessado em 18/02/2015).

YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2006.
http://www.riodasostras.rj.gov.br/dados-do-municipio.html (site acessado em 17/02/2015).
http://brasilemsintese.ibge.gov.br/contas-nacionais/pib-per-capita (site acessado em 17/02/2015).

1320

V V
A PRIVATIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO: OS DIVERSOS INTERESSES SOBRE UM
SÍTIO ARQUEOLÓGICO EM NITERÓI/RJ
Rodrigo Pereira1
Frederico Antonio Ferreira2

RESUMO: O artigo versa sobre os atores envolvidos e suas posições frente a política de
preservação do Patrimônio Arqueológico no Brasil, a partir de um estudo de caso - a
delimitação do sítio arqueológico inserido dentro de um condomínio residencial em
Niterói/RJ. Debateremos a concepção de Patrimônio Cultural, Histórico e Arqueológico, no
que compete a preservação de espaços tombados ou registrados como sítios e também quanto
aos interesses, muitas vezes divergentes, dos atores envolvidos e o quanto estes levam às
posições díspares sobre o conceito de memória e das ações de preservação cultural no país.
Isso interfere diretamente, tanto na preservação dos bens arqueológicos, como também sua
apropriação como espaço.

PALAVRAS-CHAVE: Bem Cultural; Política Cultural; Tombamento; Privatização de


Patrimônio; Conflito de interesses.

A legislação brasileira
A primeira legislação brasileira que trata dos Patrimônios Culturais é o Decreto-Lei nº
25 de 30 de novembro de 1937, onde institui o Instrumento de Tombamento e define o
conceito de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em artigo 1°:
Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil,
quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico.
§ 1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte
integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos
separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o
art. 4º desta lei.
§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também
sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e
paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que
tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana
(BRASIL, decreto-lei nº 25/1937, p. 01).

A lei define que bens com extrema "excepcionalidade" devem ser alvo de proteção
federal, pois constituem-se como meios de acesso a história e a cultura nacional. Instituía-se

1
Mestre em Ciências Sociais (UERJ), Mestre em Arqueologia (UFRJ) e atualmente Doutorando em
Arqueologia pelo Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (UFRJ). E-mail: rodrigopereira.cso@uol.com.br.
2
Arquivista da Fundação Alexandre de Gusmão (MRE). Mestrando em História (UFRRJ). E-mail:
arquivistafred@gmail.com.

1321

V V
um período de tombamentos de elementos de "pedra e cal", focado apenas no tombamento de
edificações e monumentos (FONSECA, 2003). Em anos subsequentes, outras legislações
passaram a vigorar na defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro. Em 1961, edita-se a Lei 3924
referente aos bens arqueológicos. Em seus quatro primeiros artigos define que:
Artigo 1° - Os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer
natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se
encontram ficam sob a guarda e proteção do Poder Público, de acordo com o
que estabelece o art. 180 da Constituição Federal.
Parágrafo único - A propriedade da superfície, regida pelo direito comum,
não inclui a das jazidas arqueológicas ou pré-históricas, nem a dos objetos
nela incorporados na forma do art. 161 da mesma Constituição.
Artigo 2° - Consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos:
a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem
testemunhos da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis,
montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e
quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significado idêntico, a juízo
da autoridade competente;
b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos
paleomeríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha;
c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso
prolongado ou de aldeamento "estações" e "cerâmicos", nos quais se
encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleontográfico;
d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios
e outros vestígios de atividade de paleoameríndios.
Artigo 3° - São proibidos em todo território nacional o aproveitamento
econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas
arqueológicas ou pré-históricas conhecidas como sambaquis, casqueiros,
concheiros, birbigueiras ou sernambis, e bem assim dos sítios, inscrições e
objetos enumerados nas alíneas b, c e d do artigo anterior, antes de serem
devidamente pesquisados, respeitadas as concessões anteriores e não
caducas.
Artigo 4° - Toda pessoa, natural ou jurídica, que, na data da publicação desta
Lei, já estiver procedendo, para fins econômicos ou outros, à exploração de
jazidas arqueológicas ou pré-históricas, deverá comunicar à Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dentro de sessenta (60) dias, sob
pena de multa de Cr$ 10.000,00 a Cr$ 50.000,00 (dez mil a cinquenta mil
cruzeiros), o exercício dessa atividade, para efeito de exame, registro,
fiscalização e salvaguarda do interesse da ciência (BRASIL, LEI 3924/61,
p. 01).

A Constituição de 1988, por sua vez, relativiza a noção de "excepcionalidade" dos


bens tombados, substituindo-a em parte pela de "representatividade" e reconhece a dimensão
imaterial do patrimônio. A denominação Patrimônio Histórico e Artístico é substituída por
Patrimônio Cultural. O conceito é assim ampliado de maneira a incluir as contribuições dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essa mudança incorpora o conceito de
referência cultural e significa uma ampliação importante dos bens passíveis de
reconhecimento. Assim, pelo Decreto n° 3.551/2000, institui-se o registro e salvaguarda do

1322

V V
Patrimônio Imaterial - aquele não ligado a edificações, monumentos ou bens arqueológicos.
Na Carta Magna de 1988, define-se o que passa a ser o Patrimônio Cultural em seu artigo nº
05 e 216:
Artigo 5° - Todos são iguais Perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que
vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o
Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé,
isento de custas judiciais e do ônus da suculência;
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da
documentação governamental e as providências para franquear sua consulta
a quantos dela necessitem.
§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens
e valores culturais.
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da
lei.
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos.
§ 6º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual
de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária
líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a
aplicação desses recursos no pagamento de:
I - despesas com pessoal e encargos sociais;
II - serviço da dívida;
III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos
investimentos ou ações apoiadas (CONTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL, 2012 [1988], p.13 e 124).

No âmbito das penalizações a crimes cometidos contra o Patrimônio Cultural


Brasileiro, o Código Penal - Decreto-lei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 - define em seu
artigo nº 165:

1323

V V
Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente
em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico: Pena - detenção, de
seis meses a dois anos, e multa. Alteração de local especialmente protegido
(CÓDIGO PENAL - DECRETO LEI 2848/40, p. 65).

Desenvolvimento da ocupação da região de Itaipu

A região de Itaipu constitui-se, desde o Período Colonial, como uma região de


produção agrícola com médias e grandes fazendas. O cultivo era vinculado ao uso de mão de
obra compulsória de africanos (SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO,
CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE NITERÓI, 1991). Após uma série de trocas de jurisdição
entre os municípios de São Gonçalo e Niterói, este último tem a posse definitiva da região em
meados do século XIX. Conforme Farias, et al (2011), com o desenvolvimento urbano da
cidade de Niterói, a região oceânica do município passa a ser alvo de especulação imobiliária
a partir da década de 1940. Contudo, somente após a construção da Ponte Rio - Niterói é que
a área passa a ser ocupada com conjuntos habitacionais, próximos a costa marítima e junto as
elevações naturais constituídas de floresta atlântica que a área apresenta:
Em 1976 foi aprovado o 'Plano Estrutural de Itaipu', da Veplan Residência,
substituindo parte do antigo Loteamento 'Cidade Balneária de Itaipu”,
(aprovado em 1945) e de propriedade da Itaipu Companhia de
Desenvolvimento Territorial. O projeto previu o aterro das margens da lagoa
de Itaipu, sendo marco do processo de transformação ambiental da área, e a
abertura de um canal permanente de ligação entre o mar e a laguna de Itaipu,
para permitir o acesso de embarcações aos terrenos situados no interior da
lagoa, o que modificaria o ecossistema (FARIAS, et al, 2011, p. 72).

Conforme Pereira (2015), a expansão urbana veio de encontro a regiões até então
isoladas do litoral - como Itaipu e Itacoatiara - não respeitando o patrimônio histórico
edificado, em especial os limites da Igreja de São Sebastião de Itaipu (do século XVIII), ou
mesmo o patrimônio arqueológico com a destruição dos sambaquis presentes na área. Beltrão
& Kneip (1969) indicam que os sambaquis do local foram estudados às pressas devido a
necessidade de liberação dos terrenos para a construção de unidades habitacionais.

Contextualizando do local e do conflito


Esta situação descrita logo acima, pode ser exemplificada quando em 2013, por conta
da venda de uma casa situada em um Condomínio na região de Itaipu, o proprietário do
terreno recebeu da Prefeitura de Niterói a indicação de que deveria ser feito uma consulta ao
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) do estado do Rio de Janeiro,

1324

V V
pois o lote está localizado ao lado de um sítio arqueológico e de um bem tombado 3. O órgão
solicitava ao detentor da área um laudo sobre a possibilidade de haverem materiais
arqueológicos dentro da extensão a ser vendida. Apenas com este documento é que o órgão
liberaria o terreno para sua regularização junto a Prefeitura de Niterói. No ano de 2014
pesquisas arqueológicas e históricas realizadas in situ informaram ao Instituto que:
Do exposto, fica claro que a construção da unidade habitacional [...] não
impactou no Sítio Arqueológico Histórico CNSA RJ00135, tendo em vista
que a referida casa encontra-se a 12 (doze) metros dos remanescentes da
Capela de Nossa Senhora da Conceição desde a sua construção. Informo que
as atividades desenvolvidas na casa não geram impacto algum - como lixo
ou trepidação, por exemplo - nas estruturas que compõem o Sítio
(PEREIRA, 2014, p. 36) [grifos do autor].

Contudo, a partir do laudo e de uma atualização na Ficha de Registro de Sítio


Arqueológico, uma série de incongruências, entre a legislação de proteção aos sítios
arqueológicos e a bens tombados, foram encontradas divergências em relação a forma como o
espaço é utilizado e o preconizado pela lei. O estudo de caso apresentado nos permite
analisar como diferentes atores se apropriam de um único espaço, mesmo frente a uma
legislação federal e municipal de proteção ao patrimônio. Isso nos é indicativo não apenas de
um conflito, mas sobretudo de concepções diferenciadas sobre os conceitos de memória e de
preservação e ainda de Políticas Culturais para o local.

Sítio Arqueológico Histórico CNSA RJ00135 e os Remanescentes Tombados da Capela e


Cemitério de Nossa Senhora da Conceição
O Sítio Arqueológico em questão foi registrado pelo IPHAN no ano de 1993 e teve
sua inclusão no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos/Sistema de Gestão do Patrimônio
Arqueológico em 1997, a partir de estudos dos arqueólogos Rosana Najjar e Mauro Pazzini.
Conforme a Ficha de Registro de Sítio de 1997, o local constituía-se como: "ruína de capela e
cemitério localizados em área condominial delimitada [...]" (FICHA DE REGISTRO DE
SÍTIO CNSA RJ00135, 1997, p. 1).
De acordo com a Secretaria Municipal de Cultura de Niterói, a história da fundação da
Capela e Cemitério de Nossa Senhora da Conceição é descrita da seguinte forma:
As ruínas existentes no interior do condomínio Ubá - Itacoatiara são o
remanescente da Capela e Cemitério de Nossa Senhora da Conceição.
Edificada em alvenaria de pedra e cal, teria uma planta tradicional de nave
única e indícios de capela-mor pouco profunda. Ainda é possível

3
Respectivamente: Sítio Arqueológico Histórico do Condomínio Ubá Itacoatiara (CNSA RJ00135) e
Remanescentes da Capela e Cemitério de Nossa Senhora da Conceição (Lei Orgânica nº 1506 de 20 de outubro
de 1993).

1325

V V
identificarmos parte do seu arco-cruzeiro. A provável construção destas
edificações data do período compreendido entre os anos de 1861 e 1900, fato
que pode ser comprovado nos relatórios dos "visitadores pastorais" que, em
suas andanças pelas freguesias, registravam as edificações eclesiásticas da
região. Os registros históricos demonstram que as ruínas da capela e
cemitério pertenciam à Irmandade Nossa Senhora da Conceição, instituição
responsável por erigir as edificações, em fins do século XIX. A construção
se deu nas terras da Família Brum, que provavelmente ganhou ou comprou
este espaço do maior proprietário de terra da região, Sr. José Albino da
Costa. A construção destes bens provavelmente foi pensada num momento
em que começaram a surgir os cemitérios públicos, uma vez que, em 1855,
foi proibido o uso de Igrejas e Capelas para o sepultamento dos mortos,
costume comum até aquela data. Neste sentido, o Cemitério-Capela de
Nossa Senhora da Conceição, faz parte de um contexto em que os moradores
locais, impedidos de continuarem enterrando seus mortos na Paróquia de São
Sebastião, resolveram constituir uma irmandade, a fim de terem permissão
para construir um cemitério. As lembranças dos velórios, das quermesses e
das ladainhas trazem à tona personagens como José Brum e Francisco das
Chagas Teles. Este último era um pequeno fazendeiro com estabelecimento
na freguesia que ocupava a função de 'administrador' do cemitério-capela,
até a sua morte em 1934. Nessa ocasião, as condições econômicas da
Irmandade, bem como as condições físicas do cemitério-capela
encontravam-se bastante precárias. O falecimento de Francisco das Chagas
Teles, juntamente com o surgimento de uma nova Capela de Nossa senhora
da Conceição, em 1936, a cerca de 100 metros da antiga capela, consolidam
o fim daquela Irmandade. Em 1993, tendo em vista o grande valor histórico
e ambiental, a Prefeitura Municipal tombou os remanescentes da capela
através da lei n°. 1506 de 20 de outubro (SECRETARIA DE URBANISMO
E MEIO AMBIENTE DE NITERÓI, 2000, s/p.).

Conforme os estudos presentes no laudo elaborado por Pereira (2014), a implantação


da Capela e Cemitério de Nossa Senhora da Conceição está intimamente ligada ao
desenvolvimento da Igreja de São Sebastião de Itaipu, a qual, conforme o Monsenhor Pizarro
(ARAÚJO, 1820), estava ligada à Freguesia de São Gonçalo, sendo denominada no século
XIX como "Igreja de São Sebastião de Itaipuyg" (ARAÚJO, 1820, p. 24). Muitas igrejas
desta freguesia possuíam o direito de uso de pia batismal e de cemitério, "em benefício dos
escravos" (ARAÚJO, 1820, p. 22), como a de Nossa Senhora da Conceição, que era destinada
a realização velórios e sepultamentos. Assim, no ano de 1993, o local passou a ser protegido
pela instância municipal como bem tombado pela Lei Orgânica nº 1506 de 20/10/1993, ao
mesmo tempo em que se configurava como patrimônio arqueológico passível
obrigatoriamente de preservação, pois possuía valor para a história e memória nacionais (LEI
3924/61). Na figura 01 apresentamos as ruínas da referida capela, na figura 02 o material
arqueológico identificado em superfície pelas pesquisas de Pereira (2014), na figura 03 um
croqui com planta do bem e na 04 a fachada do bem apresentando o seu estado quando foi
tombado e comparativamente no ano de 2014, onde se visualiza a descaracterização do bem.
1326

V V
Figura 01. Ruína da Capela e Cemitério de Nossa Senhora da Conceição (Niterói/RJ), conforme Ficha de
Registro de Sítio Atualizada em 2014.

Figura 02. Material arqueológico identificado na superfície do Sítio Arqueológico Histórico RJ 00135. Fundo de
pato em louça inglesa com aplicação de temas florais na técnica transfer print (Fonte: Pereira, 2014).

Os interesses em jogo
A partir do laudo produzido por Pereira (2014), uma série de danos ao patrimônio
foram detectados na área tombada. Do ponto de vista arqueológico foram identificadas as
seguintes situações:
a) Com a implantação de cisternas em sua área, foi retirado material arqueológico e danificada
possíveis estruturas em subsolo (o que vai contra a Constituição Federal, artigo 2016, inciso V
e pode ser penalizado, conforme artigo 165, do Código Penal Brasileiro);
b) As fixações de luminárias para paisagismo no local contribuem, de forma semelhante ao
anterior, na destruição e descaracterização do sítio arqueológico (o que vai contra a
Constituição Federal, artigo 23, inciso III, VII e VIII);
c) Implantação de calçamento na área do sítio sem o consentimento do IPHAN para esse fim
(o que vai contra a Lei 3924/61 e Decreto Lei n° 25 de 30/11/1937, artigo 17);

1327

V V
d) Apesar de relativamente conservado, o desgaste natural das estruturas do sítio não tem sido
comunicado ao IPHAN e nem há medidas de mitigação aos possíveis estragos que este
desgaste pode causar as ruínas (o que vai contra o Decreto Lei n° 25 de 30/11/1937, artigo 19
§ 1º). Em especial, mencionamos que o sítio é utilizado como área de uso comum do
condomínio, o que oferece maior potencial para que as estruturas edificadas sejam
impactadas;
e) O cultivo de arbusto na mureta que constitui a área de tombamento e o sítio arqueológico
descaracteriza o entorno do bem tombado o que pode afetar o material arqueológico (podendo
ser penalizado, conforme artigo 165, do Código Penal Brasileiro);
f) Não há placa ou identificação de que ali seja uma área tombada em âmbito municipal e
Sítio Arqueológico em âmbito federal.

Figura 03. Croqui com planta do bem tombado onde pode-se ver as metragens dos espaços da Capela (Fonte:
BRASIL, 2014, p. 09).

1328

V V
Figura 04. Frente da Ruína da Capela e Cemitério de Nossa Senhora da Conceição. Na esquerda o estado do
bem quando houve seu tombamento em 1993, na direita o estado descaracterizado por vegetação inserida como
paisagismo no muro que compõe o local (Fonte: Pereira, 2014, p.35).

Destacamos que foi identificado um projeto de implantação de um "Espaço Gourmet"


na área, aproveitando-se das estruturas ainda presentes da Capela e Cemitério de Nossa
Senhora da Conceição, o que descaracterizaria por completo o bem tombado, caso venha
mesmo a ser construído4. No lugar das ruínas da igreja e do sítio arqueológico seria edificado
um local para comensalidade e festas, o que vai contra ao enunciado na lei n° 1506 de 20 de
outubro, que impede a alteração das características arquitetônicas do bem preservado.
Assim, podemos indicar que estabeleceu-se um conflito entre os interesses dos órgãos
de proteção patrimonial e os dos moradores do condomínio. Inicialmente podemos observar
que há um enorme distanciamento entre o que a legislação do patrimônio afirma e as
atividades que o local vem empreendendo. Isso nos indica um desconhecimento das
normativas de proteção, assim como a inconsciência dos morados quanto a importância da
preservação patrimonial. Conforme Coelho (1997, p. 293), "a política cultural é entendida
habitualmente como programa de intervenções realizadas pelo Estado, entidades privadas ou
grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e
promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas". Isso configuraria uma
política cultural adotada conscientemente pelo Condomínio ao promover o espaço formas de
utilização do espaço distantes do preconizado pela legislação.
A apropriação do local não como um sítio arqueológico e bem tombado nos leva a
perceber que houve uma "privatização" do patrimônio, ou seja, estabeleceu-se um uso que não
é previsto na legislação e que pode ser penalizado pelos órgãos competentes. Ao mesmo
tempo que indica que os condôminos desenvolveram uma outra forma de utilização do local
que não se relaciona a sua proteção devido a "excepcionalidade" que define-se no conjunto de

4
Por motivos ético e judiciais o artigo não apresentará o projeto e nem indicará a fonte de onde o "Espaço
Gourmet" foi analisado.

1329

V V
lei patrimoniais. Gonçalves (2005) elege três aspectos sobre os quais o patrimônio pode ser
observado na sua relação com a população de seu entorno, os quais servirão, nesse texto, para
a análise e compreensão do local e do conflito: ressonância, materialidade e subjetividade.
Quanto à ressonância, Gonçalves (2005) afirma o poder que o patrimônio tem de
evocar forças culturais dinâmicas e complexas, como representante daquela cultura. Ou seja, a
ambiguidade relacionada à sua natureza com o grupo e a natureza obtida pelo processo de
tombamento. O patrimônio deve configurar-se como forma de comunicação entre ambas as
partes, como categoria de memória coletiva. Neste ponto, não observamos que haja uma
ressonância entre os condôminos e o espaço da capela, pois seu sentido "oficial" não foi
respeitado. Entendemos que os sentidos e usos dados podem alterar-se. Contudo, para o caso
em questão, o enorme volume de história e arqueologia do local parece não ter sido
considerado na "privatização" do patrimônio.
A ressonância seria um meio de diálogo ou interlocução entre os produtores do saber e
as instancias que protegem estes (Estado, IPHAN, museus e INEPAC, por exemplo).
Pensando como numa onda sonora, o patrimônio deve ressoar no sujeito num processo de
“eco” – ida e volta – como algo que sugestiona e é sugestionado, como valores e categorias de
pensamento que são constantemente trocadas. É o alargamento da memória individual para
uma memória coletiva, mantendo-se as ambiguidades que fundam os saberes vivos e
operantes dentro do contexto do patrimônio (histórico x moderno, por exemplo). Também
essa categoria parece ter sido descartada pelo condomínio no momento em que opta por dar
um sentido totalmente "moderno" ao local com a construção do "Espaço Gourmet". Segue-se,
novamente, uma postura "privatizadora" de um bem arqueológico e histórico considerado
como pertencente a memória e história da nação. E, por fim, destaca-se a total falta de
comunicação entre o condomínio e órgãos como o IPHAN e a Prefeitura de Niterói ou ainda
com os condôminos e a população do entorno.
A materialidade não é apenas a constatação de que o patrimônio, por anos, foi ligado a
objetos materiais, construções ou monumentos, mas sim concebe-o como a própria
materialidade da cultura, como relações simbólicas e sociais que fogem da mera apreciação de
objetos. Essa categoria reside em tornar o bem cultural/patrimônio perceptível como noção
antropológica de cultura “[...] em favor de noções mais abstratas, tais como estruturas,
estrutura social, sistema simbólico, etc.” (GONÇALVES, 2005, p. 21). Nesse sentido, não
percebemos na prática de "privatização" do bem uma utilização para a construção de um
sentido de identidade, mas apenas um sentido material de reaproveitamento de um espaço.

1330

V V
Resumidamente, poderíamos perceber a materialidade do patrimônio da seguinte
forma: “[...] tende a ser concebido a partir de suas funções sociais ou de suas funções
simbólicas, deixando em segundo plano a especificidade, a forma e a materialidade desses
objetos” (GONCALVES, 2005, p. 22-23). Portanto, se o patrimônio é "bom para pensar e
viver a vida” (GONÇALVES, 2005), assim também o espaço da Capela deve exercer sua
capacidade para pensar, ser pensado e manter-se como forma de vida de um determinado
grupo (em especial o passado de ocupação de Itaipu). Ela deveria ser materializada no
cotidiano social, no ensino regular e na dinâmica das festas e do calendário das localidades
onde está inserida. Enfim, ela deve ser percebida, notada e visível para além dos moradores
do condomínio. Pereira (2015) indica que, para o caso da Igreja de Itaipu, não distante do bem
tombado em questão, não é perceptível essas apropriações para tal igreja, o que também é
notório no caso dos remanescentes em questão.
Essa relação com a categoria materialidade, de outra forma, também não é observável
no caso aqui exposto. Basta percebermos, por exemplo, que nenhuma ação de preservação
tem sido tomada pelo condomínio que, ao contrário, vem descaracterizando o bem tombado e
arqueológico para o proveito dos moradores e não leva em consideração a necessidade de
salvaguarda do local como meio de compreensão da formação histórica de Itaipu. Indicamos,
assim, que há um enorme fosso entre as percepções dos moradores do local e da necessidade
de preservação dos monumentos históricos de Itaipu. Ali, o passado não é coletivo, mas sim
privativo e passível de modificações que se relacionem ao bem estar das pessoas e não da
nação, como afirma a Lei 3924/61 e a Constituição de 1988, por exemplo.
A subjetividade pode ser entendida como a relação entre o patrimônio e a
autoconsciência individual e coletiva. Ou seja, este não existe sem subjetividade ou sem a
expressão da consciência coletiva. Ele é a expressão de um grupo e a reconstrução constante
de sua identidade (daí a ideia dele não ser algo estático ou imutável). Deve-se perceber a
cultura como sendo o próprio patrimônio em movimento, como mediador entre as categorias
de pensamento, em especial entre o grupo e a sociedade (GONÇALVES, 2005).
O patrimônio funciona, assim, como uma fronteira étnica para o grupo. Torna-se o
centro da historiografia e dos costumes dos membros daquela expressão. Culturalmente,
constitui as formas de uso social dos objetos e saberes (gera o contorno e o contexto da
cultura), mantendo uma constante ponte de mediação entre passado, presente e futuro.
Pensando no caso em questão, sob este aspecto de mediação, tem-se no texto de Gonçalves
(2005) a seguinte conclusão sobre a subjetividade:

1331

V V
[..] Os patrimônios podem assim exercer uma mediação entre os aspectos da cultura classificados
como “herdados” por uma determinada coletividade humana e aqueles considerados como
“adquiridos” ou “reconstruídos”, resultantes do permanente esforço no sentido do auto
aperfeiçoamento individual e coletivo (GONÇALVES, 2005, p. 28).

Se, em parte, o condomínio conseguiu construir um novo sentido para o bem tombado,
este sentido passa a ser o ilegal, frente a toda a legislação apresentada. Percebemos, então, que
há um posicionamento relacionado a Capela de Nossa Senhora da Conceição que não está
baseado na legislação oficial e que, portanto, oferece grande risco a preservação do bem em
questão e da capacidade que o local possui. Com a implantação de estudos arqueológico (por
exemplo), auxiliaria na compreensão do desenvolvimento histórico e habitacional da região
de Itaipu. A política cultural do condomínio afasta-se não apenas das leis, mas sobretudo da
alta capacidade do local de ser um ponto referencial para uma história da nação, que se não é
tão abrangente, pelo menos é significativa para o passado de Niterói e para os demais
moradores da região. Da forma que se apresenta, o espaço tende a ser referencial apenas para
os moradores do condomínio e com um valor muito abaixo do seu potencial histórico e
identitário.
Essa política, afastando-se cada vez mais da legislação vigente, indica, como já
afirmamos, não apenas desconhecimento acerca da legislação, mas sobretudo uma
"privatização" ou "exclusivismo" de um bem pertencente a todos. Afinal, "constitui o
patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no
País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis
da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico" (DECRETO-LEI Nº 25 DE 30 DE NOVEMBRO de 1937). Assim,
não temos no local em questão o que Fonseca (2003) indica como uma diretriz para a gestão
do patrimônio: um maior acesso ao bem (que implica na ampliação do conceito de cidadania)
e o reconhecimento dos direitos culturais que a população tem em usufruir do bem, ou seja, a
consideração de que os
[..] grupos que compõem uma sociedade [tem] o direito à memória, ao
acesso à cultura e à liberdade de criar [suas memórias], como também o
reconhecimento de que produzir e consumir cultura são fatores fundamentais
para o desenvolvimento da personalidade e sociabilidade [..] (FONSECA,
2003, p. 74).

Por outro lado, também temos de considerar que outros agentes contribuíram para a
política cultural "privativa" do sítio arqueológico e dos remanescentes tombados. Em primeiro
lugar destacamos como o IPHAN, órgão gestor e protetor dos bens culturais, mostrou-se

1332

V V
totalmente ausente do local após o registro da Ficha de Sítio Arqueológico em 1993. Apenas
em 2013, no evento de processo de venda de terreno ao lado do sítio, é que o órgão
pronunciou-se sobre a preservação dos materiais arqueológicos. Para fins de compreensão é
bom destacarmos que existem mais três unidades habitacionais que fazem fronteira com este.
Contudo, o órgão apenas solicitou para a quarta casa do entorno (que se regularizava para a
venda) um laudo arqueológico. Para as demais parece nos haver um desconhecimento da área
ou mesmo um esquecimento do restante do entorno do sítio. Desta forma, vemos certa
defasagem do órgão em não solicitar um estudo que abrangesse todas as moradias que
margeiam a área tombada e protegida, assim como a ausência de medidas que buscassem
protegê-lo.
Sobre a Prefeitura de Niterói indicamos que não houve preocupação de integração do
bem tombado à comunidade local após seu registro em 1993, o que permitiu o cercamento
e/ou englobamento do local às áreas comuns do condomínio. Como defende Fonseca (2003,
p. 75), para casos como este "[...] é fundamental que se formulem e se implementem políticas
que tenham como finalidade enriquecer a relação da sociedade com seus bens culturais, sem
que se perca de vista os valores que justifiquem a preservação". Assim, a inoperância da
Prefeitura levou o bem a ser enclausurado dentro do condomínio e perder sua notoriedade
como constituinte da paisagem histórica e urbana do município.
Da forma que se encontram os resquícios da Capela de Nossa Senhora da Conceição
na atualidade é perceptível que não há formas de acesso ao bem, o que restringe a capacidade
de ressonância, materialidade e subjetividade defendidas por Gonçalves (2005) e que
justifiquem, como afirma Fonseca (2003) a manutenção do bem cultural. Como versa o
Artigo 216 da Constituição: "o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá
e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação"
(CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 2012 [1988]), fato não
verificado no contexto de Itaipu, muito em especial se levarmos em consideração a presença
de um Museu na região5 que poderia auxiliar na gestão deste patrimônio.

A "privatização do patrimônio": algumas considerações


Do que expomos até aqui fica claro que as ações empreendidas na "privatização" do
bem tombado no referido condomínio descaracteriza tanto a política cultural oficial vigente,
como também o espírito das leis de proteção do patrimônio. As ações empreendidas pelo local

5
O Museu de Arqueologia de Itaipu, vinculado ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM).

1333

V V
têm gerado sérios e possivelmente irreversíveis danos ao patrimônio cultural em questão e
impendem o acesso da população ao local (que controla a entrada e saída de condôminos e
visitantes).
Longe de desejarmos "demonizar" o condomínio, os órgãos de patrimônio ou mesmo
nossa legislação (acusada de petrificar os bens de relevância histórica e arquitetônica com a
força do "tombamento", como afirmam Abreu & Chagas, 2003), desejamos alertar para a
necessidade de uma ação conjunta que permita um melhor aproveitamento de nosso
Patrimônio Cultural e indicar a necessidade de (re)elaboração de Políticas Culturais mais
abrangentes para casos de "privatização", como aqui exposto.
Essa ação em conjunto está de acordo com o conceito de Política Cultural proposto por
Coelho (1997):
Constituindo uma ciência da organização das estruturas culturais, a política
cultural é entendida habitualmente como programa de intervenções
realizadas pelo Estado, entidades privadas ou grupos comunitários com o
objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o
desenvolvimento de suas representações simbólicas. Sob este entendimento
imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de
iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção,
distribuição e o uso da cultura, a preservação e a divulgação do patrimônio
histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável
(COELHO, 1997, p. 293).

Nela percebemos a ideia central de que os vários agentes envolvidos atuem


conjuntamente na promoção da conservação, acesso e incentivo e divulgação dos bens
culturais, o que não é perceptível ver no caso exposto. Contudo, ela deve ser mais que uma
simples tarefa administrativa, pois envolve “conflito de ideias, disputas institucionais e
relações de poder na produção e circulação de significados simbólicos” (MCGUIGAN, 1996,
p. 01, tradução nossa). Isto é o que mais se aplicaria ao caso dos remanescentes da Capela: os
conteúdos expressos no local restringem-se a valores apenas compartilhados pelos
condôminos de forma errônea quanto a manutenção do bem tombado e arqueológico.
A política cultural para o caso em questão, deve levar em conta o condomínio que erra
em "privatizar" um bem cultural, os órgãos públicos que demonstram certa ineficiência em
suas ações e uma população alijada do bem tombado. É preferível focar-se numa gestão do
local onde os programas de intervenções e os conjuntos de iniciativas se deem de forma
consensual e resultem de uma relação de forças culturais e políticas.
Ou seja, já que temos um enorme aparato léxico de proteção do patrimônio, torna-se
preferível ou mesmo desejável que este conjunto atue para a preservação, manutenção e

1334

V V
divulgação do bem cultural presente no condomínio. Assim, nesse esforço de precisar a
definição de “política cultural” e de uma atuação mais conjunta das várias esferas
governamentais e da população que enclausurou o bem em questão, é impossível não ressaltar
a importância desse debate.
Por fim, concordamos com as reflexões de Fonseca (2003, p. 75), sobre a aplicação destas
políticas e os resultados esperados para elas: " [...] ainda que os conceitos continuem
imprecisos, é imperioso passar da teoria à prática, na esperança de que as experiências
venham, como de costume, enriquecer a reflexão, numa dialética do processo de produção do
conhecimento e de transformação da realidade".
Desta maneira, objetivamos ao longo do texto não apenas apresentar um estudo de caso, mas
indicar a real necessidade de pensarmos em políticas culturais que permitam a manutenção e a
expansão do raio de atuação do bem com sua ressonância, materialidade e subjetividade junto
a população e ainda sua memória e história de forma mais abrangente para além dos muros do
condomínio. Assim, seja ela fixada na força da lei ou no mútuo acordo entre Estado e a
iniciativa privada, faz-se necessário repensar situações em que a política cultural "privatize"
os bens e impeçam o acesso amplo a suas significações e, ao contrário, incentivar ou
promover o ingresso mais amplo a tais locais de memória e referência para a história local e
nacional.

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1336

V V
1337

V V
A INSERÇÃO DA CULTURA NA AGENDA DO GOVERNO FEDERAL A PARTIR
DO MODELO DE EQUILÍBRIO PONTUADO
Samira Chedid1

RESUMO: O presente trabalho objetiva investigar a movimentação da agenda de cultura no


Brasil a partir do ano 2003, tendo como foco o governo federal, sob a gestão de Gilberto Gil à
frente do Ministério da Cultura, momento em que finalmente ocorre a formulação de um
plano a nível nacional, permitindo um maior diálogo entre os três níveis de governo. Para essa
análise iremos utilizar o modelo de equilíbrio pontuado desenvolvido por Baumgartner e
Jones. Segundo tal modelo, a agenda governamental é marcada por períodos de estabilidade e
também por momentos de mudanças repentinas.

PALAVRAS-CHAVE: Formulação de Políticas Públicas, Políticas Culturais, Modelo de


Equilíbrio Pontuado.

A trajetória das ações do Estado brasileiro no âmbito cultural pode ser traçada a partir
da década de 1930, período que se iniciam as mudanças efetivas na área. Foi durante o
governo de Getúlio Vargas (1930-1945) que ocorre a estruturação formal de várias áreas da
administração pública, inclusive a cultural. Com a pretensão de estabelecer um sentimento de
“brasilidade”, o Estado procura se unir àqueles que conhecem as manifestações culturais do
povo brasileiro: os intelectuais e os artistas. São construídos espaços, sejam físicos ou
simbólicos, para se voltar ao caráter nacional. A esfera da cultura era vinculada ao Ministério
da Educação e Saúde (MES) e teve maior ênfase na gestão do ministro Gustavo Capanema
(1934-1945). É nesse momento em que se dá a construção de instituições como a fundação do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e é instituído o Conselho
Nacional de Cultura (1938). Somente no ano de 1953 o Ministério da Educação e Saúde se
desmembra surgindo o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação e Cultura.
Com o golpe militar de 1964 também se observa a intervenção do Estado no campo
cultural, ressaltando que a cultura é colocada como uma espécie de garantia da nacionalidade
(BARBALHO, 2013) e a maioria dos projetos culturais existentes até então são desfeitos. No
governo de Castelo Branco (1964-1967) colocou-se a necessidade de uma política nacional de
cultura. Assim, em um grupo de trabalho com essa perspectiva, propôs-se a criação de um
conselho de cultura. O Conselho Federal de Cultura (CFC) é então criado em 1966 por meio

1
Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Graduada em Ciências
Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Integrante do Grupo de Estudo
em Teorias de Administração e Políticas Públicas (GETAPP). E-mail: samirachedid@hotmail.com

1338

V V
do Decreto-Lei nº 74 e permaneceu até 1990, quando foi extinto no governo Collor. Embora
durante esses anos tenha-se chegado a apresentar alguns planos culturais, nenhum deles foi
aprovado.
No governo de Médici e Geisel a ação pública na área cultural se renova com o início
de várias políticas setoriais. No governo de Médici (1969-1974), criou-se o Plano de Ação
Cultural (PAC), com o objetivo de financiar eventos culturais, e abarcava as atividades
artísticas e culturais, o setor de patrimônio e a capacitação de pessoal. A partir do PAC o
Estado passou a construir diversas ações, ressaltando que os recursos financeiros vinham do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). No governo seguinte, de Geisel
(1974-1979) foram criados novos órgãos, como a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) e
o Conselho Nacional de Cinema por exemplo. Nesse período, houve uma grande busca para
que houvesse mais ações culturais voltadas aos objetivos do regime. Assim, no ano de 1975,
foi elaborado o Plano Nacional de Cultura (PNC) para coordenar as ações culturais e valorizar
a produção nacional. Foi o “primeiro plano de ação governamental no país que trata de
princípios norteadores de uma política cultural”. De acordo com Sérgio Miceli (1984):
Foi a única vez na história republicana que o governo formalizou um
conjunto de diretrizes para orientar suas atividades na área da cultura,
prevendo ainda modalidades de colaboração entre os órgãos federais e de
outros ministérios, [...] com secretarias estaduais e municipais de cultura,
universidades, fundações culturais e instituições privadas. (MICELI, 1984,
apud CALABRE, 2010, p. 15).

Segundo a visão de Calabre (2010), foi de 1979 a 1985 que instituições e linhas de
atuação federais se fortalecem, pois é o período que a Secretaria de Cultura é criada (1981) e
também se dá a elaboração do plano de “Diretrizes para operacionalização da política cultural
no MEC”. Contudo, na própria Secretaria há uma divisão entre os que apoiavam a criação de
um ministério específico para a cultura, para assim destacá-la nas ações governamentais, e os
que defendiam que a Secretaria tivesse uma maior atuação dentro do Ministério de Educação
e Cultura para que o crescimento no setor não diminuísse caso houvesse desvinculação. A
visão do primeiro grupo se consolidou e, no pós-regime militar, durante o governo Sarney, o
Ministério da Cultura é finalmente criado. No entanto, embora finalmente houvesse sido
criado um ministério exclusivo para a cultura, não significou que uma nova política cultural
fosse estabelecida, mas somente uma separação da área cultural antes pertencente ao
Ministério da Educação e Cultura. Ademais, na gestão de Celso Furtado a frente do MinC
ocorreu uma importante mudança para se alcançar maiores recursos ao setor cultural: foi a

1339

V V
promulgação da Lei nº 7.505 mais conhecida como Lei Sarney, que dizia respeito ao
incentivo a área cultural funcionando por meio da renúncia fiscal.
Já no governo seguinte, de Fernando Collor, o governo recua as ações no campo
cultural. O MinC se desfez e passou a funcionar apenas como secretaria, assim como foram
extintos o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a Fundação
Nacional de Artes (FUNARTE) e a Embrafilme, por exemplo. “Todo o processo foi feito de
maneira abrupta, interrompendo vários projetos que estavam em execução, desmontando
trabalhos que vinham sendo realizados por mais de uma década” (CALABRE, 2010, p. 18).
Por outro lado, foram criados o Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (IBAC) e o Instituto
Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC), além de, em 1991, Collor promulgar a Lei nº 8.313
que institui a Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet.
Após o impeachment de Collor o Ministério da Cultura é recriado no ano de 1992, no
governo de Itamar Franco, assim também como são recriadas outras instituições extintas por
Collor. Segundo Barbalho (2013) mesmo com o retorno do MinC ainda não havia estabilidade
nas políticas culturais, devido a constante troca de ministros, fato que não permitia que as
políticas fossem definidas. Com o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o
MinC passa a adquirir uma certa estabilidade, tendo Francisco Weffort a frente do Ministério.
A gestão teve como principal característica um grande apoio as leis de incentivo, entretanto,
os investimentos públicos para o setor cultural diminuem significativamente e, fica a cargo da
iniciativa privada “[...] a responsabilidade de decisão sobre os rumos da produção cultural.
[...] A decisão é privada, mas o dinheiro que financia os projetos é, na verdade, público”
(CALABRE, 2010, p.19).
Diante desses fatos históricos, pode-se dizer que a elaboração de planos e políticas
culturais a nível federal data do fim da década de 1960 e início da década de 1970 em que
uma Política Nacional de Cultura foi lançada, embora sem aprovação e resultados. Nesse
sentido, é somente a partir de 1990 que o setor cultural passa a adquirir paulatinamente um
maior espaço governamental e, por conseguinte, trouxe também a necessidade de um
planejamento específico e da prestação de contas referentes ao cumprimento das metas
apresentadas. (CALABRE, 2010).
[...] as ações do Estado no âmbito da cultura nessas últimas quatro décadas (1964 a 2002),
verificamos uma série de iniciativas na direção da elaboração de linhas de atuação política que
inúmeras vezes foram abandonadas e retomadas com pequenas alterações por governos que se
seguiram. Esse processo de eterno recomeçar, de experiências que poucos rastros deixaram, de
ausência de registros, de pouca sistematicidade nas ações, gerou alguns efeitos perversos, com grandes
desperdícios de recursos financeiros e humanos. (CALABRE, 2010, p.20)

1340

V V
Segundo Canelas Rubim (2008) somente na gestão de Gilberto Gil a frente do
Ministério da cultura, observa-se que o “[...] desafio de formular e implementar políticas
culturais em circunstâncias democráticas foi nitidamente colocado na agenda da pasta.”
(RUBIM, 2008). É nesse momento que se iniciam as discussões para a elaboração do Plano
Nacional de Cultura.
Diante dessa breve introdução o objetivo deste artigo é levantar a discussão acerca da
movimentação da cultura na agenda do governo federal, com base no modelo de equilíbrio
pontuado desenvolvido por Baumgartner e Jones (1993).

FORMAÇÃO DA AGENDA GOVERNAMENTAL


Na área da Ciência Política, foi na década de 1970 que surgiram os primeiros estudos
sobre a formação da agenda. Uma pesquisa alternativa veio de Baumgartner e Jones (1993)
que, diferentemente de autores que destacam as dificuldades de questões novas ascenderem a
agenda em razão do conservadorismo do sistema político, sustentam que a agenda possui
períodos estáveis e períodos com mudanças.
Baumgartner e Jones (1993), ao se debruçarem no estudo do processo de formulação
de políticas públicas, desenvolveram a teoria do equilíbrio pontuado. Em resumo, tal teoria
sustenta que os processos políticos são conduzidos no sentido da estabilidade e do
incrementalismo e, por outro lado, podem ocasionar significativas mudanças.
De acordo com esse modelo períodos longos de estabilidade, onde as mudanças são
lentas, incrementais e lineares são silenciados por grandes mudanças (punctuations). Nesse
sentido, as agendas mudam em razão do feedback positivo, isto é, determinadas questões
adquirem relevância e atraem outras questões. Assim, algumas alcançam popularidade
ocupando o espaço de outras, por conseguinte, surgem novos movimentos políticos.
(CAPELLA, 2006)
Na teoria de Baumgartner e Jones, a difusão de políticas pode ser vista como uma
curva em formato de S: lenta-muito rápida-lenta, até se atingir o ponto de saturação. Esse
modelo busca explicar como ocorre a alternância desses momentos. Para isso, se fundamenta
na agenda-setting e nas estruturas institucionais. (CAPELLA, 2006)
Partindo da premissa que os indivíduos possuem racionalidade limitada, os governos
delegam à agentes governamentais, encontrados em subsistemas políticos, a autoridade. São
os subsistemas que lidam de modo paralelo com as questões, ao passo que o macrossistema,
isto é, os líderes governamentais, lidam com as mesmas de forma serial. Por essa razão,

1341

V V
determinadas questões continuam nos subsistemas, constituído por comunidade de
especialistas, e outras atingem o macrossistema, modificando a agenda.
[...] a chave para a compreensão dos períodos de estabilidade e
mudança, segundo Baumgartner e Jones, reside na forma como uma questão
é definida, considerando que essa definição se desenvolve dentro de um
contexto institucional que pode favorecer determinadas visões políticas em
detrimento de outras. (CAPELLA, 2006, p. 40).

Aqui se insere o conceito de policy images, que nada mais são do que ideias que
fundamentam os arranjos institucionais e assim proporcionam uma comunicação simples e
direta entre determinada comunidade, fundamental para uma questão ascender ao
macrossistema. Desenvolvem-se a partir de informações empíricas e apelos emotivos.

Segundo Baumgartner e Jones, as questões políticas e sociais não se transformam em


problemas de maneira automática, mas é necessário que por meio de uma imagem ou através
do consenso de uma política, ligue-se o problema e uma solução.
Nos subsistemas políticos, ocorre uma situação de equilíbrio, já que predominam-se as
mudanças incrementais, lentas e graduais, além de um monopólio, uma policy image e um
feedback negativo, pois os atores políticos recebem poucos ganhos.
Por outro lado, há momentos que determinada questão se desvencilha do subsistema e
chega ao macrossistema político, logo, há possibilidade do equilíbrio inicial ser pontuado por
rápidas mudanças. Já no macrossistema, as mudanças ocorrem de forma intensa e rápida, as
policy images são distintas e o feedback positivo. (CAPELLA, 2006).
Quando determinada questão atinge o macrossistema, influencia a geração de
mudanças também no subsistema, devido ao fato de que a atenção do público e dos líderes
governamentais pode ocasionar novas ideias e atores que, por conseguinte, geram um novo
estado de equilíbrio.
Além disso, podemos ressaltar a importância do papel dos grupos de interesse na
definição de questões, principalmente quando atingem a opinião pública e os debates. Outro
ator essencial é a mídia, que pode direcionar a atenção do público para diversos elementos de
uma mesma questão e também mudar o foco de atenção para uma ou outra questão.

A AGENDA DE CULTURA
A atuação política na esfera cultural no Brasil possui uma trajetória marcada pela
instabilidade, por um “[...] processo de eterno recomeçar, de experiências que poucos rastros
deixaram, de ausência de registros, de pouca sistematicidade nas ações.” (CALABRE, 2010,

1342

V V
p.20). Nessa perspectiva, a construção de um plano a nível nacional tornou-se de extrema
relevância para direcionar o poder público na formulação de políticas públicas culturais. É por
meio da institucionalização do Plano Nacional de Cultura (PNC) através do Sistema Nacional
de Cultura (SNC) que tais políticas têm a possibilidade de adquirirem estabilidade e
continuidade.
De acordo com o Art. 215 da Constituição Federal “O Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais”. Em seu terceiro parágrafo ao fazer
referência ao Plano Nacional de Cultura (PNC), explana que o mesmo visa o desenvolvimento
cultural e a integração de todas ações do poder público que devem levar a: I- Defesa e
valorização do patrimônio brasileiro; II- Promoção, produção e difusão de bens culturais;
III- Formação de pessoal qualificado para gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV- Democratização do acesso aos bens culturais e, V- Valorização da diversidade étnica e
regional. (BRASIL, 1988).
O Plano Nacional de Cultura (PNC) está previsto no artigo 215 da Constituição
Federal e é o primeiro planejamento a longo prazo especifico do campo cultural que tem sua
formulação no Estado democrático de direito do Brasil. A elaboração do Plano como projeto
de lei é obrigatória desde a Emenda Constitucional 48, do ano de 2005 que determina que o
Plano seja realizado de forma plurianual (dez anos).
Diante dessa perspectiva, é necessário compreender a cultura como um direito do
cidadão, em que cabe ao Estado garantir a liberdade e a igualdade no acesso a diversidade e
no incentivo à produção e divulgação. A cultura aqui não deve ser compreendida apenas como
[...] um bem coletivo, uma tradição a preservar. Em sua dimensão
antropológica ela é uma produção coletiva, constante incorporação do novo.
Quando falamos em propiciar o acesso a ela, estamos falando de algo
complexo, que envolve o que vem mais de perto (a produção local) e o que
vem mais de longe (a produção nacional e internacional) no espaço e no
tempo, na geografia e na história. (BOTELHO, 2006, p.50).

No que diz respeito ao PNC, este deu seus primeiros passos após a realização de
diversos fóruns, seminários e consultas públicas com a sociedade civil. O início do percurso
de construção data do ano de 2003, na gestão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
quando ocorreu o Seminário Nacional Cultura para Todos, um intenso debate sobre as
políticas culturais no Brasil. Outra realização importante foram as Câmaras Setoriais
instituídas em 2004, que fizeram o diálogo entre o Estado e os representantes de diversas
áreas artísticas com o objetivo de elaborar políticas de cultura setoriais e transversais. A nível

1343

V V
internacional, no mesmo ano, a Agenda 21 da Cultura é aprovada em Barcelona, Espanha, no
I Fórum Universal das Culturas. Diz respeito a um documento que orienta as políticas
públicas culturais, formulado por governos locais de diversos países e assim busca contribuir
para o desenvolvimento cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do breve exposto neste artigo, buscamos trazer questionamentos acerca das
políticas públicas culturais no Brasil. Partimos do entendimento que define política pública
cultural como o: “[...] planejamento e a execução de um conjunto ordenado e coerente de
preceitos e objetivos que orientam linhas de ações públicas mais imediatas no campo da
cultura.” (CALABRE, 2010, p.11).

Na Constituição de 1988 a cultura é colocada como um direito do cidadão. No entanto,


somente quinze anos depois, a cultura é inserida na agenda do governo federal para moldar a
construção de um plano que abranja todo o território brasileiro, possibilitando a participação
da sociedade civil no momento da formulação e assim trazer um maior diálogo entre União,
estados e municípios.
Contudo, fica-se a indagação do por quê a elaboração de um plano de cultura
permaneceu fora da agenda na lacuna entre a Constituição de 1988 e ano de 2003, início do
primeiro mandato do governo Lula, sob a gestão do ministro Gilberto Gil à frente do MinC.
Resgatando o modelo de equilíbrio pontuado que busca explicar a estabilidade e as
mudanças no sistema político, podemos colocar que a cultura, até então, não estava recebendo
a atenção na agenda do governo federal. Possivelmente se encontrava num período de
estabilidade dentro do subsistema político, onde os debates se davam entre a comunidade de
especialistas.
Com a troca de mandato, organizam-se diversos fóruns e seminários com o poder
público, acadêmicos, artistas e interessados na questão trazendo a pauta de um plano de
cultura a nível nacional o que também chama a atenção da mídia, importante ator na definição
e seleção de questões.
Assim, a questão da cultura é colocada como um problema se desloca do subsistema e
ascende ao macrossistema para desse modo se formular uma política pública específica.
Segundo Capella (2006):
Discutir como os problemas são conceituados no processo de
formulação de políticas e as maneiras pelas quais as alternativas são
apresentadas e solucionadas são questões fundamentais para a compreensão

1344

V V
da dinâmica da ação estatal. Focalizar a formação da agenda de um governo,
compreender como questões se tornam relevantes num determinado
momento, mobilizando esforços e recursos, são também questões
importantes, porém ainda pouco exploradas pela produção acadêmica em
ciências sociais no Brasil. (CAPELLA, 2006, p. 45)

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1345

V V
ARTESANATO BRASILEIRO: UMA COLCHA DE RETALHOS
Selma Maria Santiago Lima1

RESUMO: Procuramos neste artigo re-conhecer o artesanato brasileiro a partir das diversas
conceituações utilizadas tanto por pesquisadores quanto pelos próprios artesãos, resultando
em uma proposta de caracterização que busca reflitir estas vertentes. Analisamos ainda
aspectos estruturais e as políticas públicas nacionais voltadas para o setor, onde finalizamos
com a proposição de ações que venham colaborar para a implantação de uma política
interinstitucional em prol do desenvolvimento organizado desta atividade em nosso país.

PALAVRAS-CHAVE: artesanato, políticas culturais, políticas públicas, desenvolvimento


setorial.

Dentre as tarefas mais complexas para uma política pública está a de adotar a
definição de conceitos que posam embasar programas e ações de determinadas áreas,
principalmente quando estes ainda não estão claramente incorporados ao próprio setor, como
é o caso que tratamos neste estudo e que procuramos clarear através de alguns caminhos
norteadores obtidos em pesquisas bibliográficas que podem melhor definir o que pode ser a
atividade do artesanato no Brasil.
Segundo o conhecimento popular e conforme descrito em grande parte das
enciclopédias, a expressão “artesanato”, que surgiu no final do século XIX, refere-se ao
trabalho manual feito pelo artesão onde o mesmo possui seus próprios meios de produção e
realiza todas as suas etapas, desde a extração da matéria-prima até a comercialização, de
maneira individual ou colaborativa, podendo também ser de base comunitária ou familiar.
Mesmo com uma definição que poderia vir a ser de consenso, o desafio de
conceituação para um artesanato brasileiro permeia toda gestão pública ou privada que busque
tratar a atividade com o respeito e a responsabilidade que os milhões de artesãos o merecem, e
como bem cita Ângelo Azevedo Queiroz, consultor legislativo da Câmara dos Deputados em
documento acerca da legislação existente no Brasil que dispõe sobre a profissão de artesão:
“A expressão do gênio inventivo do artesão, capaz de criar um
aspecto estético, com finalidade unicamente contemplativa, podia conviver
perfeitamente com a utilidade do objeto, de acordo com a finalidade para o

1
Mestre em Gestão Cultural pela Universidade de Barcelona, Especialista em Gestão de Produtos e Serviços
Culturais pela UECE, Consultora de Gestão Cultural e Professora Convidada da Universidade Nacional de
Brasília e Universidade Federal do Pará
santiago_selma@yahoo.com.br

1346

V V
qual fora concebido, tais como cozinhar, sentar, dormir, carregar água, cobrir
o corpo, alimentar, etc... Só mesmo com a revolução industrial é que o
artístico e o utilitário seguiram caminhos diversos. Essa unidade ainda
permanece na atividade artesanal e daí surge o desafio de conceituá-la.”
(QUEIROZ, 2014)2.

Diversos autores e profissionais que lidam com a prática do fazer artesanal, sejam
artesãos, sejam aqueles que lidam com programas voltados para o setor, também nos fazem
refletir sobre as raízes deste fazer humano, como nos aponta Marinho:
“[...] para conceituar o artesanato com um mínimo de racionalidade é
preciso mergulhar na odisseia humana e fazer uma nova leitura da história,
que determinou culturas; dos medos, que impulsionaram mudanças; das
estratégias de sobrevivência; dos desafios de aprendizagem; das formas de
dominação e divisão do trabalho; e, finalmente, dos artifícios para o desenho
e a construção do próprio tempo” (MARINHO, 2007, p. 03).3

Raul Córdola, renomado artista plástico pernambucano, na Revista de Artes Visuais


Segunda Pessoa, aponta
“Eis o que é o artesanato: a obra material do artesão; fruto do seu
trabalho realizado através das mãos na confecção de objetos destinados ao
conforto do homem, carregados de expressões da cultura, onde a máquina, se
utilizada, será apenas ferramenta, nunca fator determinante para sua
existência.” E destaca a área dentro de nosso sistema de produção como
sendo um setor que “Mesmo marginalizado pelos programas de
desenvolvimento regionais e nacionais o artesanato continua sendo no Brasil
uma atividade cultural de grande importância econômica. Por sua
informalidade escapa do planejamento da macroeconomia, e tem como área
de atuação as casas dos artesãos, a periferia das grandes cidades, longe dos
sistemas urbanos e das regiões fabris, e principalmente no mundo rural”.
(CÓRDOLA, 2013, p. 9)4.

O design brasileiro Eduardo Barroso Neto propôs durante o Seminário Internacional


Design Sem Fronteiras, realizado em novembro de 1996 em Bogotá/Colômbia, a seguinte
definição:
“Podemos compreender como artesanato toda atividade produtiva de
objetos e artefatos realizados manualmente, ou com a utilização de meios
tradicionais ou rudimentares, com habilidade, destreza, apuro técnico,
engenho e arte”. E complementa ainda que “deve resultar em algum objeto
ou artefato novo e fruto da transformação de matérias-primas e em pequena
escala (eliminando desta categoria as atividades agropecuárias ou pesqueiras,
embora estas sejam, muitas vezes, denominadas agricultura artesanal ou

2
QUEIROZ, Ângelo Azevedo. A legislação existente no Brasil que dispõe sobre a profissão de artesão, e os
projetos sobre a matéria apresentados ao Congresso Nacional
3
MARINHO, Heliana. Artesanato: tendências do segmento e oportunidades de negócios. Rio de Janeiro:
SEBRAE/RJ, 2007
4
CÓRDOLA, Raul. Afinal, o que é artesanato? Segunda Pessoa Revista de Artes Visuais – Ano 3, Número 2.
2ou4 Editora. 2013. Disponível em http://www.segundapessoa.com.br/edicoes/1/

1347

V V
pesca artesanal, em oposição a agricultura e pesca industrial, ou seja em
grande escala” (BARROSO, 2001, p. 3)5 .

E como definição adotada para a política pública do governo federal, observamos o


que designa o Programa Brasileiro de Artesanato – PAB, implantado pelo Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e atualmente coordenado pela Secretaria
Especial, onde artesanato
“Compreende toda a produção resultante da transformação de
matérias-primas, com predominância manual, por indivíduo que detenha o
domínio integral de uma ou mais técnicas, aliando criatividade, habilidade e
valor cultural (possui valor simbólico e identidade cultural), podendo no
processo de sua atividade ocorrer o auxílio limitado de máquinas,
ferramentas, artefatos e utensílios.”(MDIC, 2012, p. 12)6.

Neste documento, o PAB entra no ponto polêmico da definição de artesanato, ao


apontar o que “não é artesanato”, onde exclui a “simples montagem, com peças
industrializadas e/ou produzidas por outras pessoas”. A expressão “simples montagem”
propõe a exclusão de produções que, mesmo manuais, são consideradas complemento de um
processo industrial, não caracterizando por si só como artesanato. Esta questão é motivo de
disputas por espaços tanto nas ações políticas e de benefícios quanto os espaços propriamente
físicos das feiras e equipamentos culturais, como as Casas dos Artesãos, presentes em
diversos municípios do país.
Outro ponto polêmico revela ainda uma predisposição de determinadas linhas que
atuam no setor com relação às peças que não são produzidas de matéria orgânica extraídas
diretamente da natureza, como acontece na elaboração de peças a partir da reciclagem de
produtos industrializados. Neste sentido, gostaríamos de citar Freeman ao indicar que
“o trabalho artesanal com reciclagem, por outro lado, pode ser
manufaturado a partir do reaproveitamento de peças industrializadas ou
produzidas por outras pessoas, mas não será uma simples montagem, exigirá
uma adaptação ou uma transformação das peças – uma escolha inteligente de
técnicas, processos e formas para o resultado que se deseja alcançar.
Simplesmente excluir uma categoria de produto dos que se quer incentivar
não resolve as questões envolvidas na relação com o consumidor. O
problema requer uma estratégia para evitar que não se perca uma referência
cultural no artesanato pela mera substituição por fórmulas prontas, adotadas
sem a identificação ou o envolvimento criativo por parte do produtor, por
serem aceitas e até mesmo solicitadas pelo consumidor”. (FREEMAN, 2010,
p. 28)7.

5
BARROSO, Eduardo. Apostila Curso Artesanato – Módulo 1. Fórum Brasileiro de Economia Solidária.
6
MDIC- Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Base Conceitual do Artesanato
Brasileiro. Brasília, 2012.
7
FREEMAN, Claire Santanna. Cadeia Produtiva da Economia do Artesanato – desafios para o seu
desenvolvimento sustentável. Editora e-livre, 2010. Disponível em www.editoraelivre.com.br

1348

V V
Em meio a polêmicas e à diversidade de definições do que pode e do que não pode ser
considerado artesanato, procuramos estabelecer características a partir da observação feitas
junto a integrantes do segmento e apontamos algumas que observamos serem importantes em
nosso país e que podem colaborar para uma definição mais específica.
Uma delas refere se ao ambiente de produção, predominantemente encontrado em
localidades não industrializadas, onde observa-se que uma das principais características de
seu processo de criação está no fato deste processo ser fortemente relacionado às estações e
sazonalidades que a natureza propõe. Observamos ainda o ritmo de produção que diferencia-
se do predominante no sistema de produção em série, industrial, sendo esta uma atividade que
demanda paciência, seja para colher e extrair o produto da terra ou do mar com o qual se vai
laborar, seja para concluir uma peça que não sendo fabricada de forma automática, requer boa
predisposição e concentração pessoal para sua confecção. Em muitas regiões onde a principal
fonte de subsistência é a pesca costuma-se dizer que “onde há rede há renda e quando a rede
não traz o peixe, a renda põe a mesa.”
Outro fator de relevância que podemos observar trata das relações sociais do setor que,
quando feito por comunidades tradicionais, revela a capacidade de agregar pessoas em sua
elaboração, daí sua tendência a promover grupos, coletivos, cooperativas, que também se
estendem ao artesanato feito individualmente quando da comercialização e distribuição dos
produtos. Esta característica é claramente observada quando das feiras de economia solidária,
das ações que promovem o comércio justo e ainda de formas alternativas aos sistemas de
produção e comercialização vigentes no sistema capitalista que vivemos. Ou seja, o
Artesanato é ainda uma atividade criativa do homem que revela não somente sua capacidade
de aproveitamento dos elementos da natureza como também a vocação à sociabilidade e
colaboração entre as pessoas.
De uma forma geral, e ainda com base nos diversos conceitos que servem de
parâmetro para os que pensam sobre artesanato no Brasil, apresentamos uma proposta de
caracterização para o artesanato brasileiro na qual observamos e destacamos cinco elementos
fundamentais para este segmento criativo e artístico:
Habilidade e destreza manual
Expressão cultural e artística
Consciência ambiental

1349

V V
Produção atemporal
Organização coletiva
Tais características se apresentam, em algum momento ou outro, com certo destaque a
depender da bibliografia pesquisada, mas que foram levantadas considerando especialmente a
escuta feita pelo Ministério da Cultura e por esta pesquisadora junto a artesãos e instituições
que atuam no setor para uma mais adequada definição de linha política a ser seguida pelos
órgãos públicos.

PROPOSTA DE CARACTERIZAÇÃO PARA O ARTESANATO BRASILEIRO

Habilidade e destreza manual do artesão para a confecção de objetos e utensílios que


configuram-se como peças únicas, mesmo que para isto ele utilize-se de alguns instrumentos;
Sensibilidade para expressar-se artística e culturalmente refletindo seu cotidiano,
dando identidade própria (seja pessoal ou da cultura local) às peças produzidas, colaborando
para a memória e tradição de sua comunidade ou ainda inovando e apresentando uma criação
própria contemporânea, mas rica de simbologia cultural que lhe dê um valor agregado
intangível;
Ambientes de produção voltados à sustentabilidade e à relação com a natureza ou
ainda com a busca da consciência ecológica para a coleta da matéria-prima de trabalho, onde
o artesão demonstra a capacidade de reconhecer os elementos naturais adequados para seu
manuseio, bem como o tratamento a ser dado durante o modo de laboração e manipulação da
matéria-prima a ser transformada em artesanato;
1350

V V
Sazonalidade e temporalidade próprias para a sua produção, uma vez que trata-se de
atividade artística e, em muitas vezes, de transformação de material que não é facilmente
comercializado ou adquirido, devendo aguardar o tempo da colheita ou ainda a oferta da
matéria-prima para que se inicie sua produção. E ainda referimo-nos à temporalidade
específica do segmento quando, durante o próprio processo de confecção, o artesão por vezes
deve aguardar os tempos de adequação das matrizes ou ainda da preparação desta matéria-
prima para o manuseio e transformação do material bruto em artesanato, a depender do tipo
de matéria-prima que utiliza;
Tendência a produzir e/ou comercializar de forma coletiva, seja a partir das raízes da
cultura tradicional popular, seja pela necessidade de melhor organização grupal para que o
trabalho produzido possa circular em feiras e eventos e ser comercializado de forma a que o
autor das peças seja remunerado da melhor forma possível.
Com o apontamento de tais características, percebemos que o setor é bem específico e
que merece de fato maior atenção do poder público, até por que também sofre da falta de
outros estudos que auxiliem em seu diagnóstico, tais como dados e números do setor. Neste
sentido, infelizmente ainda dispomos de poucas informações, mas com os poucos estudos que
encontramos, já podemos afirmar que tratamos aqui de um grande quantitativo de
trabalhadores que necessitam de reconhecimento e de legalização para sua profissão, pois
segundo pesquisa do IBGE de 2001, existiam à época da pesquisa no Brasil 8.5 milhões de
pessoas que viviam da produção artesanal, quando faziam gerar uma arrecadação bruta
nacional de R$ 52 bilhões ao ano. Infelizmente não disponibilizamos de dados para conhecer
a evolução/involução destes números, mas acreditamos que possam ter crescido, devido a um
maior investimento do poder público no campo cultural e de parceiros como o SEBRAE em
todos os estados.

PAINEL DO ARTESANATO BRASILEIRO


Apesar de ser uma das mais importantes manifestações culturais de nosso país, o setor
artesanal carece urgentemente de uma melhor organização tanto em sua base de produção,
que envolve os próprios artesãos, seus comerciantes, pesquisadores e outros agentes
envolvidos, até os poderes públicos e outras instituições governamentais e não
governamentais que atuam no setor, revelando uma grande área a ser explorada e organizada.
Relembramos ainda que a atividade artesanal não pode ser caracterizada como muitas
outras que compõem a pauta de desenvolvimento nacional tendo em conta a grande escala de

1351

V V
produção como a área industrial ou o agronegócio, ou ainda as especificidades e influências
das leis do mercado como é tratada a área comercial e financeira, mas sim com características
muito próprias.
Consideramos que apresentar propostas de políticas culturais para uma área composta
por tanta diversidade torna-se um grande desafio em nosso país, uma vez que esta área é uma
das mais complexas em seu ciclo de produção e envolve não apenas a pasta da cultura nas
gestões públicas, mas abrange também muitas outras tais como o turismo, desenvolvimento
social, desenvolvimento econômico, trabalho e outras que a transformam em um mosaico que
é ao mesmo tempo rico e complexo para que o planejamento de uma atuação seja mais
objetivo.
Esta multiplicidade de pastas governamentais que atuam em prol do setor, que no
momento encontra-se em situação de sombreamento nas políticas nacionais, tem todo o
potencial para transformar-se em um grande modelo de governança interinstitucional, se
considerarmos que todas as áreas envolvidas realmente são pertinentes a um ou mais aspectos
do artesanato brasileiro, como pode ser observado abaixo, em uma descrição sobre os
principais agentes do artesanato brasileiro:
Sociedade civil - Artesãs e artesãos em absolutamente todos os municípios brasileiros;
Comerciantes de artesanato; Lojistas de artesanato; Pesquisadores e estudiosos; Organizações
Não Governamentais, como Pontos de Cultura, Associações e outras Entidades
representativas da classe – Federações, Confederações, etc. e Colegiado de Artesanato do
Conselho Nacional de Políticas Culturais/MINC.
Poder público e demais parceiros que atuam na área do artesanato - Secretarias de
governos municipais e estaduais; Secretaria de Economia Criativa - SEC/MINC; Secretaria de
Fomento e Incentivo à Cultura – SEFIC/MINC; Secretaria de Políticas Culturais –
SPC/MINC; Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural – SCDC/MINC; Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/MINC; Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular – CNFCP/IPHAN/MINC; Colegiado de Artesanato do Conselho Nacional de
Políticas Culturais/MINC; Programa do Artesanato Brasileiro - PAB/Secretaria Especial de
Micro e Pequenas Empresas; Programa Talentos do Brasil – Ministério do Desenvolvimento
Agrário; Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES/Ministério do Trabalho e
Emprego; Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego –
PRONATEC/Ministério da Educação; Ministério do Turismo – MTUR; Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE; Agência Brasileira de Promoção de Exportações e

1352

V V
Investimentos – APEX/Brasil; Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE e
Instituições de Ensino, Pesquisa e Extensão, tais como Universidades Públicas e Privadas e
Institutos Técnicos e Tecnológicos.
Em 2006, conforme a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos
- APEX, o Brasil exportou R$ 1,41 milhão em artesanato, sendo R$ 847 mil oriundos de
Minas Gerais, que lidera o ranking nacional no segmento. Em 2007, SEBRAE e APEX
formaram parceria para a divulgação do artesanato brasileiro no exterior; cerca de 2.700
artesãos envolvidos nos projetos de exportações da APEX venderam ao exterior US$ 11
milhões.
Ainda segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC 2006),
realizada pelo IBGE em parceria com o Ministério da Cultura, quase 70% dos municípios
brasileiros possuem algum tipo de produção artesanal, sendo a principal atividade artística nos
municípios e como uma de nossas mais importantes manifestações culturais, seguida em boa
parte por atividades ligadas à música e a dança.
Apesar da grandeza destas informações, e de efetivamente ser a maior força de
trabalho artístico deste país, o segmento artesanal nunca conseguiu se organizar enquanto
classe trabalhadora. Sua profissão, ainda não foi regulamentada pelo Congresso Nacional,
mesmo compondo a Classificação Brasileira de Ocupações – COB, mas que pouco ou quase
nunca é medida oficial e sistematicamente pelo IBGE.
O Projeto de Lei 157/2012, denominado popularmente de Lei do Artesão ou Estatuto
do Artesão, que visa à regulamentação da profissão, aguarda votação no Congresso Nacional,
mas que depara-se com toda a sorte de influências de outras pautas de maior força política.
Segundo a proposta do Projeto de Lei, a intenção é definir a profissão, sua unidade produtiva
e estabelecer ações de valorização profissional através de normas que buscam identificar os
profissionais; contribuir para políticas públicas afirmativas; reforçar a consciência social da
importância das artes e ofícios artesanais; produção de dados estatísticos sobre os artesãos;
criar linhas de crédito especiais para fomento das atividades artesanais e criar a certificação de
produtos artesanais.
Mesmo com esta ausência de reconhecimento legal vale lembrar que, segundo o
documento “Representatividade do Segmento Artesanal Brasileiro” emitido pelo Instituto
Centro de Capacitação e Apoio ao Empreendedor – CAPE
“o segmento artesanal brasileiro foi o primeiro exportador destas terras, quando Pêro Vaz
Caminha levou ao Rei de Portugal no ano de 1.500, um colar de continhas brancas e um cocar de
penas vermelhas. confeccionados manualmente pelos índios brasileiros. Somos os únicos que

1353

V V
8
podemos dizer com certeza que temos 510 anos de exportação para a Europa”. (CAPE, 2010, p.
01).
Ainda referente à necessidade de implementação de marcos legais por parte do poder
legislativo, foram registrados gargalos do setor artesanal por diversos profissionais presentes
ao I Seminário de Marcos Legais para Economia Criativa Brasileira, realizado pelo Ministério
da Cultura/Secretaria de Economia Criativa, de onde destacamos as seguintes necessidades
apontadas por seus participantes: definição de ações de fomento ao setor; criação de edital
específico de fomento ao artesanato, regionalizando de forma a ampliar o acesso e assegurar
maior igualdade na distribuição de recursos federais; estímulo a produção, circulação,
comercialização e intercâmbio da produção cultural; garantia de acesso aos pontos de
comercialização do artesão visitante, por meio de feiras e eventos nacionais e regionais
anuais, inclusive com a criação de feiras específicas de produtos brasileiros nas 05
macrorregiões, com a efetiva participação dos trabalhadores artesãos organizados na gestão
destes eventos; incentivo à qualificação profissional; estímulo à pesquisa; ampliar e
desenvolver programas públicos para formação na área do artesanato, integrando os mestres
artesãos e seus conhecimentos, em parceria com instituições de ensino, visando à capacitação
técnica, ao estímulo à pesquisa, ao resgate de técnicas tradicionais e garantindo ao artesão
ensinar em estabelecimentos formais de educação; promover iniciativas de fomento; criar um
fórum interministerial com participação de representantes do Setor de Artesanato, visando
traçar estratégias conjuntas voltadas para o desenvolvimento do setor; ampliar os mecanismos
de financiamento público e/ou privado, objetivando a produção, divulgação e comercialização
do artesanato e garantindo que, onde houver dinheiro público, o artesão participe dos eventos
sem custos; fortalecer o controle social sobre a aplicação dos recursos repassados pelos
órgãos públicos por meio de conselhos compostos por membros do governo e da sociedade
civil organizada do artesão; articulação institucional e criação de fóruns de debate nos
legislativos Estaduais e Municipais e promover espaços permanentes de diálogos e fóruns de
debate sobre o artesanato.
Com relação à existência de legislação de incentivo para o segmento, observamos que,
apesar de existirem diversas leis de incentivo fiscal voltadas às artes em geral tanto em âmbito
nacional quanto estaduais e municipais, poucas são as propostas apresentadas voltadas ao
artesanato ou ainda, das que são contempladas ou conseguem incentivos, raras as que
destinam-se a este setor. E com vistas a compensar estas diferenças visíveis nas leis

8
CENTRO CAPE. Representatividade do Segmento Artesanal Brasileiro. Disponível em
http://www.centrocape.org.br/centrocape/

1354

V V
tradicionais de incentivo fiscal com captação de recursos por parte do proponente, a maioria
dos governos estaduais apresenta propostas de isenção ou redução do ICMS - Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços, e conforme levantamento feito
pelo CDT/UNB9, das 27 unidades da federação brasileira, apenas o Amapá e Rondônia não
possuem nenhuma espécie de legislação de isenção de ICMS.

POLÍTICAS NACIONAIS PARA O ARTESANATO


Programa Brasileiro do Artesanato – PAB – o maior programa desenvolvido para o
setor é vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC,
conforme Decreto n 1508, de 31 de maio de 1995, e compõe a estrutura do Departamento de
Micro, Pequenas e Médias Empresas, da Secretaria de Comércio e Serviços, tendo como
principal objetivo gerar oportunidades de trabalho e de renda, bem como estimular o
aproveitamento das vocações regionais, levando à preservação das culturas locais e à
formação de uma mentalidade empreendedora, por meio da preparação das organizações e de
seus artesãos para o mercado competitivo, com foco na cadeia produtiva do artesanato.
Enquanto responsável pela elaboração de políticas públicas em nível nacional, conta com a
parceria das Coordenações Estaduais de Artesanato que integram a estrutura de órgãos do
estado e são unidades responsáveis pela intervenção e execução das atividades de
desenvolvimento do segmento. Sua estrutura orçamentária promove capacitação dos artesãos
e multiplicadores, feiras e eventos para comercialização de produtos artesanais e estruturação
produtiva do artesanato brasileiro, além de gestão e administração do Programa.

Artesanato Brasileiro para Exportação - Em alguns casos, os artesãos brasileiros


contam com o apoio da Agência de Promoção às Exportações - APEX, e em outros casos
desenvolvem por iniciativa própria, estratégias e diversas formas de produção e
comercialização colaborativas, que são realizadas através dos PSIs - Projetos Setoriais
Integrados que, conforme Santos10,
“são considerados operacionalizações semelhantes aos consórcios,
sendo que nestes casos não existem empresas jurídicas comerciais
exportadoras. Cada participante faz a exportação diretamente através de sua
empresa, mas todos devem ser registrados como exportadores”.

9
CDT/UnB. Resgatando A Cultura Para Competir No Mercado Inovador: Nova abordagem de
capacitação do Artesão Brasileiro. Brasília: CDT/UnB, 2012. (Pag. 122)
10
SANTOS. Evelynne Tabosa dos. Exportações de Artesanato do Ceará no Período de 2004 a 2006:
Desafios e Oportunidades.

1355

V V
Conselho Nacional de Políticas Culturais – CNPC do Ministério da Cultura - Com a
intenção de ampliar as instâncias de participação popular nas políticas culturais, as recentes
gestões do MinC vem desenvolvendo a inserção de novos assentos para representantes de
segmentos culturais e, dentre elas, o artesanato. Assim, em agosto de 2011 reuniu-se pela
primeira vez um Grupo de Trabalho para Formação do Colegiado Setorial de Artesanato, que
organizou juntamente com representantes do CNPC, da Secretaria de Articulação
Institucional/MINC e da Secretaria de Economia Criativa/MINC o Fórum Nacional de
Artesanato, voltado à eleição dos membros que iriam compor o primeiro Colegiado e
iniciando o processo de eleição de seus membros. Mesmo com a presença dos próprios
artesãos no processo, a participação no Fórum e sua representação para a eleição dos
membros do CNPC foi prejudicada devido à metodologia de inscrição, realizada
exclusivamente pela internet, o que praticamente inviabilizou o processo participativo da
categoria, pouco usuária de novas tecnologias. Tal dificuldade foi refletida nos números
finais, onde das 27 Unidades da Federação, o sistema registrou apenas 270 inscrições, sendo
metade (135) não validadas, em sua maioria por falta de documentos e finalizando apenas
com 135 inscrições válidas. Deste quórum, saíram 15 candidatos representando somente 09
estados brasileiros, revelando o quanto ainda é necessário de melhorias para que esta
atividade seja minimamente representada no CNPC.

Secretaria de Economia Criativa SEC/MINC - Recentemente criada através do


Decreto 7743, de 1º de junho de 2012, a Secretaria é responsável por coordenar quatro setores
no CNPC: Artesanato, Arquitetura, Design e Moda. Além da coordenação das atividades do
Colegiado Setorial de Artesanato, a Secretaria lançou o Edital Vitrines Culturais em parceria
com a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, vinculada à Presidência da República e do
SEBRAE, contando ainda com o apoio do IPHAN/MINC e do Ministério do
Desenvolvimento Agrário, por meio do projeto Talentos do Brasil Rural Contemporâneo. O
edital teve 815 propostas enviadas, sendo 31 do Centro-Oeste, 184 do Nordeste, 108 do Norte,
382 do Sudeste e 110 da Região Sul. Dos inscritos, foram selecionados 241 projetos de
artesãos e grupos de artesãos de 22 estados, sendo peças artesanais, de valor simbólico e
estético, que expressam atributos culturais brasileiros. Ao final de 2014 a SEC ,juntamente
aos membros do Colegiado Setorial de Artesanato, realizou consulta pública para finalização
de um Plano Setorial de Artesanato, com o intuito de conduzir as políticas para o setor.

1356

V V
Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural (PROMOART) -
Desenvolvido pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), o Programa é
executado pela Associação Cultural de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro
(Acamufec), e tem a gestão conceitual e metodológica do CNFCP. Conta com a parceria do
Programa Mais Cultura, e é considerada a ação política cultural mais específica desenvolvida
pelo MINC para o setor até o momento. Foi criado para apoiar grupos produtores de
artesanato tradicionais em busca do desenvolvimento desse setor, conforme informações
11
disponíveis em seu sítio da internet. A ideia, além de colaborar para a manutenção das
práticas tradicionais do artesanato brasileiro foi também de proporcionar condições dignas de
sobrevivência aos artesãos e estímulo a sua arte, bem como a criação de um mercado que
reconhecesse o valor do artesanato no mundo contemporâneo. Em seu primeiro ano, o
programa beneficiou grupos de artesãos com investimentos diretos nas esferas da produção,
comercialização e divulgação de produtos do artesanato brasileiro de tradição cultural. Sua
fase de implantação abrangeu 65 polos de todas as regiões do país, estratégicos para o
desenvolvimento de uma política nacional para o artesanato, com a intenção de uma
ampliação progressiva dos polos apoiados, sendo que em cada um foi desenvolvido um
projeto específico, um plano de trabalho formulado com a participação de técnicos e artesãos.
Estas atividades de planejamento foram feitas a partir de diagnósticos prévios das
potencialidades e necessidades dos polos e da proposição conjunta de ações em busca da
valorização cultural e da sustentabilidade econômica e social do artesanato.

Programa Cultura Viva – Pontos de Cultura - Implantado em 2004 e atualmente


executado pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC/MinC), o Programa
até o ano de 2012 fomentou 3662 Pontos de Cultura em todo o país, dos quais 3034 foram
conveniados até o final de 2014.12 Destes, conforme nos informou a Secretaria de Cidadania e
Diversidade Cultural, 492 Pontos de Cultura possuem o artesanato dentre suas atividades
principais, sendo a maioria da Região Nordeste. Ao analisarmos mais detalhadamente as
iniciativas que se declararam atuantes no segmento artesanal, dentre as 492 apontadas pela
SCDC, temos um número pouco representativo de instituição originalmente voltada ao
artesanato, o que faz com que pensemos que as instituições cuja atividade principal é o

11
MINC. Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural – PROMOART. Disponível em
http://www.promoart.art.br/sele%C3%A7%C3%A3o-dos-polos
12
BRASIL, Ministério da Cultura. Programa Cultura Viva. Disponível em
http://www2.cultura.gov.br/culturaviva/cultura-viva/

1357

V V
artesanato não buscam se inscrever nos editais do Programa Pontos de Cultura, reforçando a
necessidade de desenvolvimento de políticas mais formadoras para os gestores destas
instituições.

CAMINHOS PARA O DESENVOLVIMENTO DO ARTESANATO


Ao analisarmos as políticas públicas existentes em prol do desenvolvimento do
artesanato brasileiro, consideramos que o PAB é um grande pilar de conceituação e de
capilaridade para as ações governamentais, mas que a representação do setor se ressente de
uma conceituação mais firme e ainda de uma maior atuação da pasta da cultura enquanto área
primordial de identificação dos artesãos, fato observado quando dos levantamentos de
demandas nas Conferências Nacionais de Cultura, realizada em três edições - 2005, 2010 e
2013.
Outro aspecto de extrema relevância trata da necessidade de um melhor planejamento
de políticas públicas para o setor, quando observamos que no campo da produção e
comercialização falta estímulo público tanto para os processos produtivos quanto para a
circulação, comercialização e intercâmbios da produção cultural, que poderiam promover a
melhoria de processos com a troca de experiência entre os pares. Esta questão da formação
para a melhoria em todas as etapas de seu ciclo produtivo é um dos pontos mais tocados pelos
agentes envolvidos no setor, que vai desde a necessidade de repasse de técnicas tradicionais
mediante a expectativa de vida dos antigos mestres artesãos, até a qualificação da produção
para obtenção de certificados nacionais e internacionais e ainda nas questões que envolvem a
gestão e comercialização dos produtos artesanais.
Uma outra questão de grande abrangência que é constantemente apontada não só pelos
artesãos, mas também pelos pesquisadores do setor, agentes parceiros e todas as instituições
consultadas, trata da necessidade urgente de definir as responsabilidades e campo de atuação
de cada órgão do poder público. A situação atual apresenta-se bem difusa por pertencer a
diversas pastas, sendo este um modelo que se reproduz tanto a nível municipal quanto
estadual e federal. Tal confusão provoca muitos sombreamentos de atividades e provoca na
categoria dos artesãos e nos interessados pelo setor um ambiente confuso quando da busca por
respostas para as questões do setor.
Neste sentido, nosso estudo propõe que o Ministério da Cultura desenvolva a missão
de condutor de um Grupo de Trabalho Interinstitucional, envolvendo representações de outros
órgãos governamentais e de instituições e outras organizações que atuam a nível nacional

1358

V V
junto ao setor. Propomos esta responsabilidade ao MinC por diversos motivos, dentre eles por
ser nesta pasta que se encontra a representatividade da sociedade civil do setor, presente no
Colegiado Setorial de Artesanato e por, principalmente, considerarmos que o artesanato, além
de ser legitimamente uma expressão da economia criativa brasileira, é um elemento de rica
representação cultural de nossa diversidade e patrimônio reconhecido nacional e
internacionalmente.

BIBLIOGRAFIA
__________________ MINC. Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural –
PROMOART. Disponível em http://www.promoart.art.br/sele%C3%A7%C3%A3o-dos-polos Acesso
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__________________ Revista Observatório Itaú Cultural / OIC – n. 11 (jan./abr. 2011) – São


Paulo, SP: Itaú Cultural, 2011

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1360

V V
ENSAIO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE DEMOCRATIZAÇÃO DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS CULTURAIS
Silmara Costa de Oliveira1
Márcia Maria de Oliveira2

RESUMO: Neste artigo analisamos algumas tendências de mudança de postura quanto ao


processo de formulação e implementação de políticas públicas culturais na gestão pública no
Brasil, com uma participação mais efetiva e direta do terceiro setor da cultura, tanto nas
discussões quanto na parceria entre Estado e sociedade civil. Observando os novos arranjos
institucionais e os novos processos produtivos que se estabeleceram na ultima década,
identificamos que um conjunto de iniciativas na área sócioeducativa e cultural vêm sendo
desenvolvidas por organizações civis, no sentido de colaborar com ações de inclusão social
que tem dado sustentabilidade às políticas culturais e educacionais desenvolvidas no País.
Nessa perspectiva o Estado tem um importante papel na consolidação de políticas que
garantam acesso, fruição e a democratização da cultura.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas Culturais, Estado, democratização, gestão pública.

I. Introdução

O Estado ao longo dos anos vem disponibilizando recursos para implementação e


manutenção de projetos que propiciem atividades culturais como estratégia de política
pública, assim o governo tem papel preponderante na liberação de recursos e na formulação
de políticas culturais que atendam os anseios da sociedade.

A discussão sobre política cultural tem sido ampliada na última década, existe uma
preocupação para que ocorram políticas pensadas a médio e longo prazo, de modo que
questões importantes vêm sendo discutidas em âmbito nacional como a PEC 1503 que prevê a
liberação de recursos públicos, porém, ainda espera aprovação no Senado Federal.

Assim, parece haver certa tendência de mudança de postura quanto ao processo de


formulação e implementação de políticas públicas culturais e na gestão pública no país, aliado

1
Aluna Especial do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras – PPGSOF, Universidade Federal
de Roraima, Email: silmaranane@gmail.com.
2
Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia; Livre docente do Programa de Pós-Graduação Sociedade e
Fronteiras; Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado - PNPD/CAPES na Universidade Federal de
Roraima - UFRR. Email: marcia.oliveira@ufrr.br
3
Destina recursos para cultura, foi apresentada pelo deputado Paulo Rocha (PT-PA), e tramita desde 2003 no
congresso Nacional, garante a aplicação de 2% da arrecadação tributária da União para o incentivo à cultura.
Atualmente, o percentual repassado pela União é de 0,6%. Se aprovada, a PEC 150 representará um aumento de
R$ 1,3 bilhão para R$ 5,3 bilhões em dinheiro, que serão empregados na preservação, produção e difusão da
cultura nacional.

1361

V V
a esse novo processo é notável a presença do terceiro setor, tanto nas discussões quanto na
parceria entre Estado e sociedade civil, se configurando novos arranjos institucionais e novos
processos produtivos. Dessa maneira, o Estado tem um importante papel na consolidação de
políticas que atendam as necessidades da população, na execução de ações que possam
garantir o desenvolvimento não apenas econômico, mas também social, com medidas que
garantam acesso, fruição e democratização à cultura.

Considerando que um conjunto de iniciativas na área sócioeducativa e cultural vem


sendo desenvolvidas por organizações civis, no sentido de colaborar com ações de inclusão
social e que podem dar sustentabilidade às políticas culturais e educacionais de forma a
estimular a socialização da população em risco de vulnerabilidade social.

Dessa forma, a proposta dessas entidades perpassa não somente pela potencialização
das iniciativas criativas detectadas, como também proporcionar oportunidades futuras e
melhores condições de vida a adultos, adolescentes através da formação e produção de bens
voltados ao fazeres culturais, permitindo possibilidades de trabalho e geração de renda.

Assim, muitas dessas organizações vêm sendo responsáveis pelo desenvolvimento de


práticas em parceria com o Estado, já que o mecanismo público possui impasses e não suporta
sozinho a realização de ações viabilizadas por estas instituições, o que força o Estado a buscar
novas saídas e dentre elas as organizações do terceiro setor constitui uma das alternativas
privilegiadas para fazer frente aos problemas sociais que afetam o conjunto da população.

Nesse contexto, a adoção de medidas de fomento à cultura auxilia no desenvolvimento

econômico e sustentável do terceiro setor assegurando a preservação dos fazeres culturais e dá

assistência às entidades civis, objetivando minimizar os problemas sociais e os gargalos não

atendidos pelo poder público, proporcionando retorno significativos na melhor qualidade de

vida da sociedade.

II. Políticas Públicas


É importante compreender os conceitos de políticas públicas e culturais e como essas
políticas podem ser implementadas para melhor entendimento da atuação do terceiro setor e
do próprio Estado em ações sociais. Nesta perspectiva para Lucchese (2002) o conceito de
políticas públicas pode ser definido como:
[...] conjuntos de disposições, medidas e procedimentos que
traduzem a orientação política do Estado e regulam as atividades

1362

V V
governamentais relacionadas às tarefas de interesse público. Variam de
acordo com o grau de diversificação da economia e da sociedade, com a
natureza do regime político e com o nível de atuação e participação dos
diferentes atores sociais (LUCCHESE 2002, p.34).

Dias (2008), complementa que a sociedade ao longo dos anos sofreu modificações, a
modernidade tornou as sociedades mais complexas, tais mudanças trazem uma maior
diversidade das demandas da sociedade para com o Estado, desta forma para ele de maneira
simplificada as políticas públicas tratam da “gestão de problemas e demandas coletivas
através da utilização de metodologias que identificam as prioridades, racionalizando a
aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como forma de atingir os objetivos e
metas predefinidos” (DIAS, 2008, p.261).

E complementa ainda:

Uma política pública, desse modo, pode ser considerada como


programa de ação de governo, que pode ser executado pelos próprios órgãos
governamentais ou por organizações do terceiro setor (Ongs, Ocips,
fundações, etc.) investidas de poder público e legitimidade governamental
pelo estabelecimento de parcerias com o estado (DIAS, 2008, p.261).

Quando se aborda os temas política cultural, gestão cultural, projetos culturais ou


outras expressões semelhantes, está se referenciando, normalmente, a dois conceitos
diferentes de cultura, o que os torna conflitantes. O primeiro conceito de cultura é o mais
clássico e tradicional e define “Cultura é o conjunto de obras e produtos da criatividade
humana consagrada como símbolos ou manifestações da evolução civilizatória” (BRASIL,
2010). Já o segundo conceito de cultura possui a visão antropológica, que segundo Botelho
(2001, p.74) na dimensão:

Antropológica, a cultura se produz através da interação social dos


indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus
valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas.
Desta forma, cada indivíduo ergue à sua volta, e em função de
determinações de tipo diverso, pequenos mundos de sentido que lhe
permitem uma relativa estabilidade. Desse modo, a cultura fornece aos
indivíduos aquilo que é chamado por Michel de Certeau, de “equilíbrios
simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou menos
temporários”.

A cultura é um fator decisivo de progresso social, nesse aspecto Batista (2005),


“ressalta que pensar na cultura como fonte de desenvolvimento humano e social, tornou-se
mais intenso e valorizado pelos governos e gestores, a contar pelo poder que tem em
configurar e transformar sociedades e as ações no universo público”.

1363

V V
E não apenas no setor público, mas também no privado, de modo que a cultura se
revela um importante instrumento para o desenvolvimento humano. O que segundo Canclini
(1997), a cultura como fator político cria dimensões maiores e não apenas está limitada a
ações pontuais.

Ainda segundo Canclini (1997, p. s/n) a política cultural :

se ocupa da ação cultural com um sentido contínuo – por toda a vida


e em todos os espaços sociais. O papel da política cultural não reduz a
cultura ao discursivo ou ao estético. O papel da política cultural estimula a
ação coletiva, por meio de uma ação organizada, auto gestora, reunindo as
iniciativas mais diversas de todos os grupos – no plano político, no social, no
recreativo.

Pensando na cultura também como fator de desenvolvimento, mais do que nunca a


cultura tem olhos voltados para si, principalmente no Brasil, os governos e investidores da
produção cultural, tem observado que a mesma tem dado estimada contribuição “do, pelo e
para” o indivíduo e cidadão, além de ser importante fonte de estratégias governamentais.
Batista (2005).
Para Matos (2010) faz se necessário obsevar às complexidades da cultura, apontando a
importância de “compreender as políticas públicas em sua dimensão mais ampla e
contextualizada historicamente, como ação mobilizadora de diferentes atores sociais em suas
formas de ação, debate e negociação. Todos os agentes envolvidos na elaboração,
implementação e avaliação destas políticas, devem estar atentos ao seu caráter complexo e
multifatorial. Portanto, cabe ressaltar a importância de pensar conjuntamente e construir
políticas culturais continuadas em conformidade com as demandas da sociedade, observando
suas especificidades e valorizando suas formas de ser” ( MATTOS, 2011, pg. s/n). Nesse
aspecto, o Estado tem grandes responsabilidades nas suas formas de atuação, cabe a ele estar
atento as diversidades e práticas, assim:
A discussão sobre o papel do Estado na cultura deve ser feita em
cada país de forma diferente. Cada nação tem sua própria história e práticas
culturais peculiares. No caso do Brasil, onde a diversidade interna é um dos
traços mais fortes e mais nítidos da cultura, as estratégias de gestão pública
necessitam ser pensadas tanto como diretrizes gerais nacionais, quanto em
termos de ações regionalizadas. Tratar a questão da cultura no campo da
gestão pública requer a atenção para alguns pressupostos. Entre eles
destacam-se o da necessidade de perceber a cultura na qualidade de bem
coletivo e o de observar a interferência das práticas culturais enraizadas nas
ações levadas a cabo pelas mais diversas áreas governamentais. Brasil
(2010).

1364

V V
Diante disso, o que está em voga é a discussão sobre as responsabilidades do poder
público na formulação de políticas e no financiamento à cultura. “Por todo o país, crescem os
debates em torno dessa questão, que é crucial para a consolidação do setor. Todos os
elementos da cadeia produtiva da cultura são estimulados a participar da construção de
modelos mais eficientes para a atuação do Estado na área”. (AVELAR, 2010, pg. 97).

III. Estruturação, Institucionalização e Implementação de Políticas Pública no


Brasil.|
Nas últimas décadas, o Brasil passa por um processo de modificações no campo da
participação da sociedade quanto à tomada de decisões sobre os rumos da cultura no País, o
que segundo Leitão (2008) é necessário se fazer reflexões profundas de como se dará esse
processo. Ressalta as características das culturas híbridas e as influencias causadas nas
sociedades contemporâneas, “marcadas pelos grandes avanços da informação, do
conhecimento e das tecnologias, também o conceito originalmente político de democracia se
culturaliza, passando a ampliar seus significados na mesma medida em que se ampliam e
transformam as necessidades das populações”. (LEITÃO,2008,pg.s/n)
[...] Segundo Leitão (2008, apud CHAUÍ 2007, p. 46-47) Marilena
Chauí nos adverte que para aceitarmos o desafio da democratização da
cultura necessitamos inicialmente de uma nova cultura democrática, pois a
democracia tem sido reduzida a um regime político dito “eficaz”, tornando-
se mera protetora das liberdades individuais e perdendo a grandeza de seu
fundamento: a existência dos contrapoderes sociais, condição necessária para
a criação de novos direitos. Por isso, os caminhos para a democracia e a
equidade no campo da cultura nos países latino-americanos são difíceis,
especialmente no Brasil, cuja sociedade é marcada pela desigualdade e pelo
autoritarismo.

Para Leitão (2008, pg.s/n) no caso do Brasil, que teve a aprovação do Plano Nacional
de Cultura (PNC), que fora publicado pelo governo federal e instituído pela lei 12.343, de 2
de dezembro de 2010, os documentos para construção do plano apresenta dados alarmantes
sobre a desigualdade entre os brasileiros, especialmente no que se refere ao seu acesso aos
bens e serviços culturais. Com dados utilizados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE (2007) “evidenciam a concentração abissal e a necessidade extrema de
investimento neste setor, a população brasileira é acometida por um grave déficit no que se
refere ao acesso a bens e serviços culturais. Assim Leitão (2008) apresenta reflexões
importantes lembrando que embora no Brasil, o estudo sobre políticas públicas para a cultura
seja algo recente, nesses destacam-se a análise da estrutura, instituições e o fato de se reforçar
os processos de negociação das políticas setoriais específicas, e a necessidade de estar atento
aos programas e políticas setoriais”.

1365

V V
Cabe aqui fazer um resgate dos acontecimentos e como se deu a construção do PNC
feito a muitas mãos e com ampla participação social, que se deu de fato a partir de 2003, na
perspectiva de dar maior centralidade e institucionalidade à política cultural. Apresentar o
cenário da política cultural que até então era de uma “estrutura administrativa precária,
orçamentos insuficientes, baixa capilaridade no tecido político e social do país e pequena
participação nas principais decisões de governo”. (BRASIL, 2011, pg.40).
Segundo dados da cartilha de Estruturação, Institucionalização e Implementação do
SNC, (BRASIL, 2011,pg. 26):
A inspiração para o SNC veio dos resultados alcançados por outros
sistemas de articulação de políticas públicas instituídos no Brasil,
particularmente o Sistema Único de Saúde (SUS). A experiência do SUS
mostrou que o estabelecimento de princípios e diretrizes comuns, a divisão
de atribuições e responsabilidades entre os entes da federação, a montagem
de um esquema de repasse de recursos e a criação de instâncias de controle
social asseguram maior efetividade e continuidade das políticas públicas.

A partir de 2003, a Secretaria de Articulação Institucional do Ministério da


Cultura, iniciou o trabalho de proximidade com os entes federados e com os vários segmentos
da área cultural, tendo em vista, estruturar mecanismos e processos que possibilitassem o
compartilhamento de informações de gestão e fomento e que contribuíssem na formulação de
propostas e fiscalização das políticas culturais no país. “Diante disso, se iniciava o processo
de construção do Plano Nacional de Cultura, que seria o documento necessário para a futura
construção do SNC, esse, um projeto de longa duração que garantisse uma condição
necessária para a continuidade das ações de inclusão social através da cultura”. (LEITÃO,
2008, pg.s/n).
Assim o Sistema Nacional de Cultura é conceituado pelo Ministério da Cultura como
(2010 p.42):
Um modelo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de
cultura, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade civil, que tem
como órgão gestor e coordenador o Ministério da Cultura em âmbito
nacional, as secretarias estaduais/distrital e municipais de cultura ou
equivalentes em seu âmbito de atuação, configurando desse modo, a direção
em cada esfera de governo. Trata-se, portanto, de um novo paradigma de
gestão pública da cultura no Brasil, que tem como essência a coordenação e
cooperação intergovernamental com vistas à obtenção de economicidade,
eficiência, eficácia, eqüidade e efetividade na aplicação dos recursos
públicos. O SNC é integrado pelos sistemas municipais, estaduais e distrital
de cultura, e pelos sistemas setoriais que foram e serão criados.
Apesar da Constituição Federal de 1988 ter conseguido se adiantar ao definir
significados para a cultura, sugerindo uma cidadania cultural para os cidadãos brasileiros
“nossa legislação em prol de um exercício eficiente do federalismo cultural continuava no

1366

V V
começo e de forma tímida. Para constituição de um Sistema Nacional de Cultura (SNC) era
necessário definir as competências dos entes federados, respeitando sua autonomia,
enfatizando a necessidade de políticas públicas complementares entre a União, os estados e os
municípios”. (LEITÃO, 2008, pg. s/n).
Pensando na importância de consolidar políticas de estado e não apenas de governo
era fundamental que houvesse a manutenção da sinergia entre os entes federados, no sentido
de assegurar a continuação dos programas e projetos decorrentes dessas políticas. (Leitão
2008).
Considerando que a participação da sociedade legitima a gestão de políticas públicas,
produzindo contribuições novas, permitindo sua validação e, posteriormente, seu
acompanhamento e avaliação, (LEITÃO,2008,pg.s/n) complementa:

Com esta perspectiva, no presente momento, indivíduos, grupos e


setores culturais – portadores de conhecimentos e experiências diversas –
são convocados a contribuir para que as metas do PNC transformem a atual
realidade cultural brasileira. Para a implantação de políticas culturais são
fundamentais diferentes modelos e espaços participativos. É preciso
reconhecer a importância de Conselhos e outros órgãos consultivos e
deliberativos, dotados de representatividade, e outros meios que favoreçam a
participação social direta. Os objetivos devem ser lançados em fontes de
informação atualizadas, e serem passíveis de aferição. Indicadores
permitirão fazer a medição de sua evolução nas próximas décadas. Dar
estabilidade de metas é buscar um lugar onde se juntam as ações culturais
apreciadas pela sociedade, o compromisso de diferentes jurisdições do poder
público e a garantia de recursos materiais disponíveis para torná-las viáveis.

Neste sentido, ainda que as metas do PNC sejam estabelecidas por iniciativa do
governo federal, através do Ministério da Cultura em dialogo com a sociedade civil, é
fundamental contar com a união e da cooperação dos governos estaduais, municipais e do
distrito federal para garantir o alcance das metas que serão estabelecidas. (BRASIL, 2011,
pg.44)
Ao tornar-se intimamente ligado ao Sistema Nacional de Cultura (SNC) com a
assinatura do pacto federativo que se dá entre o governo federal, estados e municípios, todos
os federados assumirão também as metas do PNC. “A conformidade dos Planos de Cultura
de estados e municípios às metas do PNC, não deve, no entanto, estar juntos a outros
programas específicos já iniciados. Pode-se considerar também outros programas e ações que
sejam desenvolvidos tanto pelo governo federal, quanto pelos governos estaduais e
municipais em associação com a sociedade civil”. (LEITÃO,2008, pg. s/n)
De lá para cá, muitos passos foram dados segundo o Minc:

1367

V V
A assinatura pela União, estados e municípios do Protocolo de Intenções, visando criar as
condições institucionais para a implantação do SNC; a realização das Conferências de Cultura
(municipais, intermunicipais, estaduais e nacional, que mobilizaram o setor em todo o país; a criação
do Sistema Federal de Cultura; a reorganização do Conselho Nacional de Política Cultural e o ciclo
das Oficinas do Sistema Nacional de Cultura; a elaboração do Plano Nacional de Cultura e o seu
debate público, com Seminários realizados em todos os estados e Distrito Federal.

Como parte de uma política de Estado, as metas do PNC em seu conjunto projetam o
cenário cultural desejado para 2020 e se tornam um importante referencial para garantir o
compromisso dos próximos governos.

IV. Democratização de Recursos Públicos por Intermédio do Programa Cultura


Viva
O Ministério da Cultura, MinC, começa a ter na sua estrutura nova estrutura três
novas Secretárias de Formulação e Avaliação de Políticas, Secretaria de Desenvolvimento de
Programas e Projetos e, Secretaria de Articulação Institucional, todas ligadas ao Gabinete do
Ministro. (FIORETTI, 2011, Pg. S/N)
Com a nova estrutura e com a implementação do Sistema Nacional de Cultura se inicia
uma processo de democratização de acesso à cultura no País segundo Fioretti
(2011), apud Frederico Barbosa, (2007):

[...] duas novas linhas de atuação do MinC com a criação de um programa de apoio às
iniciativas culturais nas periferias e no interior do País, entendendo que as estratégias para as medidas
de fortalecimento da cultura precisavam ser continuadas e intensificadas, tendo a cultura como um
campo institucional passível de ser organizado com vista à democratização das relações sociais e
simbólicas.

Nessa perspectiva foram criados programas como o Cultura Viva, Mattos (2011,
pg.68):

O Programa Cultura Viva foi criado sob a responsabilidade de gestão da Secretaria de


Programas e Projetos Culturais e concebido a partir de um programa que estava em fase de
implementação pelo Governo Federal, o programa Refavela, que visava construir uma série de centros
culturais (os herdeiros contemporâneos das Casas de Cultura Francesas, derrubadas pelos estudantes
do movimento de maio de 1968) nas periferias do Brasil, baseando-se na ideia de democratização do
acesso à cultura, e em criar (literalmente) um espaço de sociabilidade cultural, implementado pelo
Estado.

O Programa Cultura Viva é um programa tão amplo que tirou milhares de iniciativas
da invisibilidade, o programa que dialoga com a Cultura, Educação e Cidadania, “propõe um
giro conceitual e político na compreensão da cultura e nas formas de ação pública”.
(MATTOS, 2011, pg.68).

1368

V V
Assim o Programa Cultura Viva, no processo de implementação, consegue, portanto,
pactuar com a sociedade:
[...] através de mecanismos de escuta social, participação e
comunicação efetivos. Seu desenvolvimento político-participativo, no
entanto, num primeiro momento foi frustrado pela falta de pessoal suficiente
na antiga SPPC (atualmente SCC). O modelo a partir do qual foi concebido
o desenho do PCV é aparentemente simples, mas também comporta a cultura
com a sua característica de fluxo de significados, modos de vida e formas de
inserção social, e não apenas as esferas artísticas, que estão presentes no
Programa, mas convivem com outras formas de cultura não legitimadas
necessariamente como artes. O programa busca traçar, portanto, uma
articulação entre as dimensões sociológicas e antropológicas da cultura. Seu
aparato conceitual é baseado num modelo em permanente construção, daí a
dificuldade de condensá-lo em formulações conceituais precisas. O
Programa segue pressupostos relevantes para a compreensão da atual
situação da população em relação ao campo cultural no Brasil, mas o PCV
adota o conceito e propõe soluções que estão para além das políticas
culturais de democratização cultural, no sentido estrito. MATTOS, 2011,
pg.70).

Muitas ações culturais específicas formam sendo criadas, os Pontos de Cultura


espalhados por todo Brasil são os principais núcleos de articulação para realização de seus
fazeres. “As outras ações, inicialmente (até meados de 2007), eram as seguintes: Agente
Cultura Viva, Cultura Digital, Escola Viva, Griôs- mestres dos saberes, Economia Viva,
Cultura e Saúde, Ludicidade (Pontinhos de Cultura). As ações em questão tem dinâmica
própria, que compõem um conjunto programático e sistemático de democratização do acesso
aos bens culturais, assim como o fomento à criação, a socialização pela cultura, a valorização
de espaços culturais, entre outros, ações visando expor seus marcos conceituais, seus
objetivos pretendidos e os públicos mobilizados”. (MATTOS, 2011, pg.86)

Considerações Finais
O Brasil historicamente sempre deixou a cultura relegada a um plano secundário, com
um modelo pensado de cima para baixo, sem a participação efetiva da sociedade, no entanto,
mesmo não sendo o ideal de gestão pública para cultura, a partir de 2013 esse cenário começa
a mudar, o Governo Federal inicia um longo processo para implementação do Sistema
Nacional de Cultura, que já era um direito previsto na Constituição Federal, no entanto, ainda
sem uma sistematização que tem seu inicio nesse período, procurando sanar as desigualdades
latentes do País, e a distribuição desigual dos recursos destinados à cultura.
A mudança de postura do poder público quanto à adoção de medidas que atendam os
anseios da sociedade, suas especificidades existentes nos diversos grupos que compõem a
cadeia produtiva da cultura, respeitando os valores simbólicos, sem deixar de pensar que a

1369

V V
cultura tem uma ampla cadeia produtiva ouvindo as reais necessidades, por intermédio de
seminários, oficinas, conferências, reestruturação dos conselhos.
Desta forma, estas políticas ampliaram a o acesso a cultura para todas as regiões do
Brasil e mais possibilitou o escoamento a produção artística, ampliando a cadeia de produtiva
do setor. O acesso aos recursos, e a democratização destes com programas como o Cultura
Viva, tirou da invisibilidade milhares de ações espalhadas por todo Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Horizonte: Duo Editorial, 2010, pg.97.

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DIAS, Reinaldo. Ciência Política. 1ed. São Paulo: Atlas, 2008. Pg. 261.

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LEITÂO, Claúdia S. Políticas Públicas de Fomento à Criação e Consolidação dos Sistemas


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Lucchese, Patrícia T. R. Políticas públicas em Saúde Pública, Et.al São Paulo:


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MATTOS, Fabrício S. Os Traços da Rede: Pontos de Cultura e Usos da Cultura na Amazônia


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1370

V V
RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS: NOTAS SOBRE A APOLOGIA À PREGUIÇA E A
IMPORTAÇÃO DA ECONOMIA CRIATIVA
Silvia Leal de Oliveira1
Thiago Novaes2

RESUMO: O presente artigo pretende situar o recente investimento no debate público sobre
o financiamento e sustentabilidade de Residências Artísticas realizando o contraste entre as
premissas das instituições e as motivações artísticas emergidas da espontaneidade e
inconstância. Apresentando o Mapeamento realizado pela FUNARTE em 2014, problematiza-
se o levantamento de dados em um contexto atual de intensa mobilidade, apresentando-se a
questão da hospitalidade e sua relação com o que atribuímos valor. Assumindo uma
perspectiva engajada, o intuito é descrever algumas relações que permeiam o trabalho da
cultura no campo artístico, onde se negociam táticas de desvio e esvaziamento da cultura do
trabalho.

PALAVRAS-CHAVES: Residências Artísticas, Globalização, Hospitalidade, Valor.

INTRODUÇÃO
A elaboração e a prática de residências artísticas internacionais vêm crescendo
mundialmente: projetos e programas desenvolvidos por pessoas, grupos e instituições são
descritos como “uma nova modalidade de produção de arte contemporânea”3. Neste breve
artigo, refletiremos sobre algumas condições globais que favorecem o trânsito de artistas, e
algumas circunstâncias locais que tomam forma a partir dos riscos que os artistas assumem
cotidianamente no desenvolvimento das distintas etapas de seus trabalhos: seja como parte de
sua formação, atuação artística ou pelo contato e convívio com outros profissionais das artes
visuais.
Colocaremos foco nos artist-run-spaces, espaços geridos por artistas, que cada vez
mais incorporam as residências como peça em sua tática organizacional. Considerando uma
certa “fragilidade dos espaços autônomos” (NUNES, 2013, p.14), que difere da situação das
instituições, como relacionar a produção de arte que se realiza no seio de organizações
estabelecidas e aquela que emerge em espaços que podem estar fadados ao desaparecimento?

1
Artista visual, Mestranda em Cultura e Territorialidades na UFF. contact@silvialeal.com.br
2
Doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasiília. novaes@riseup.net
3
Frase proferida por Fernando Cocchiarale ao descrever as residências artísticas no século XXI, em reunião na
Funarte 22/08/2014, junto `a equipe que acaba de realizar o primeiro mapeamento destas iniciativas em território
nacional.

1371

V V
Uma análise de instituições e suas normas se mostraria precária diante de uma
realidade de impermanência de espaços, o que tornaria esse método comparativo igualmente
ineficaz. Buscando ressaltar nuances muitas vezes ocultadas em mapeamentos e visões
generalizantes, voltaremo-nos para relações individuais e especificidades surgidas do
encontro entre o artista que se interessa por residir temporariamente em outro contexto
cultural e os meios que lhe são ofertados para viabilizar seu trabalho. Assim nos inspira
Márcia Ferran com a noção de hospitalidade, que parte dos indivíduos e não dos espaços:
Desde a Grécia, o ir-e-vir entre várias urbes se tornou objeto de
regulamentação específica dos Estados, mas em vez de focar o lado político-
institucional queremos aqui chamar a atenção para o lado ético-individual da
hospitalidade, passando por alguns de seus elementos desafiantes, tais como
cidadania e migrações na cidade contemporânea, sob o impacto de
fenômenos incrementados desde as três últimas décadas do século XX.
Cremos ser urgente ressaltá-la enquanto atributo de pessoas, em vez de
atributo de espaços, acreditando que é nessa esfera, tão relegada, que se dá a
compreensão da micropolítica, em que hoje repousam as verdadeiras
dinâmicas antropológicas da diversidade cultural enquanto potência,
processo instituinte! (FERRAN, 2008, p.58).

Entendemos que o desafio apresentado por Ferran esteja em pensar a respeito da


mobilidade em um contexto de pós-colonização, onde reavaliamos nossa condição global
diante de uma longa história interrompida pela guerra fria. Como sugere Homi Bhabha, este
foi um momento de bifurcação, onde os países passaram a ser considerados em
desenvolvimento, livres para escolherem entre dois regimes político-econômicos.4
Considerando visões localizadas, espontâneas e muitas vezes intuitivas, as residências
artísticas refletem este contexto histórico-global onde possibilidades (técnicas, estéticas,
linguagens, etc.) e limites (econômicos, ecológicos, políticos, etc.) vêm sendo constantemente
negociados em uma construção propriamente associativa, um social composto de relações
entre coletividades e coletividades de relações, muito mais abrangentes e complexas que a
definição e reunião de unidades.

MAPEAMENTOS VERSUS MOVIMENTOS


Aconteceu em Novembro de 2014 o Seminário sobre Residências Artísticas realizado
pela Funarte, do governo brasileiro. O evento, ocorrido no palácio Capanema no centro do
Rio de Janeiro, era aberto ao público e foi transmitido por streaming pela internet. No
auditório, cerca de 70 pessoas compartilharam conceitos e práticas voltados para a geração de

4
Homi Bhabha em entrevista com Luis Pérez-Oramas, um dos quatro curadores da Trigésima Bienal de São
Paulo “ A Iminência das Poéticas”, 2012. Disponível em: https://youtu.be/ym2dPYqIvmA acesso em: 20 nov.
2014.

1372

V V
políticas públicas na área da cultura, para que atendam e impulsionem o fazer e o pensar sobre
as residências artísticas dentro e fora do território brasileiro. Artistas, pesquisadores,
produtores e representantes de instituições e do governo apresentaram e debateram, entre
exposições sistemáticas e questionamentos provocativos, com um público bastante diverso.
A questão que parece convergir os questionamentos gira em torno do quanto devemos
fortalecer programas que associam o isolamento do artista dos problemas do mundo à máxima
liberdade criativa desejada - discurso frequente dos representantes de espaços institucionais
que já possuem seus próprios modelos de residência artística - , mas que, afinal, seria
indispensável investir nos projetos artísticos, engajados e efêmeros de residências.
Discernindo os espaços de produção de objetos de arte para o mercado de uma produção
social de espaços de residência artística, queremos chamar a atenção para uma nova visada
das políticas culturais enfocada nos processos sociais constituintes de redes de
sustentabilidade, pesquisa e formação 5. Como sugere Guattari:
Esses processos de singularização são tanto objetivos quanto
subjetivos. Mas, ao invés de coordenadas objetivas, falaremos de ordenadas
objetais. Separamo-nos aqui do ideal “capitalístico” das coordenadas
objetivas homogêneas, que são as do espaço, do tempo, das trocas
energéticas. Existem tantos sistemas energéticos, tantos modos de
temporalização e de espacialização, quantos sistemas autopoiéticos, que
afirmam suas próprias ordenadas, ao mesmo tempo em que posicionam sua
própria existência. (1992, p. 85).

Destacando o papel do artista – cidadão, que pertence a uma coletividade cujos valores
e leis pouco coincidem com aqueles praticados por grandes empresas e instituições,
enfrentando um mundo onde somente o fluxo de capital parece ser de fato livre, é imperativo
estabelecer que os desafios enfrentados por artistas e pelas instituições que promovem
residências artísticas são diferentes, cabendo pesquisar o papel do Estado dentro desta
pluralidade. Falar no fortalecimento social de uma infraestrutura de produção e circulação de
arte é se preocupar mais com a melhoria das condições de vida do artista/sociedade, e menos
na demanda das instituições de mercado? O advento de uma “nova” economia criativa deve
considerar que o mercado internacional de arte não está em crise, enquanto a situação dos
artistas é cada vez mais precária (TAWADROS, RUSSEL, 2014, no prelo).
Um dos trabalhos que precedeu a realização do seminário foi a distribuição de um
documento contendo o “mapeamento de residências artísticas no Brasil”, como parte da

5
Assim define Packer sobre o relacionamento do artista com o seu trabalho: “um envolvimento mais direto e
estrutural com a sociedade (…) frente à letargia de práticas cínicas e instrumentalizadas (…) das instituições de
legitimação da arte, como museus públicos e privados e centros culturais em seus diversos formatos e nomes, de
casa de leilões, de galerias e dos colecionadores (2014, p. 26).

1373

V V
pesquisa que vem sendo desenvolvida junto à Funarte para um nova geração de políticas
culturais. Seus objetivos eram:
Estimar o número de residências artísticas em atividade no país;
Conhecer sua distribuição geográfica no território nacional;
Conhecer características da gestão dos programas, os perfis dos artistas
apoiados, as formas de apoio, os aspectos dos projetos realizados e os resultados obtidos. 6

Tarefa desafiadora e necessária, que se propôs ao cruzamento de 191 questionários


preenchidos no período de 2 meses no site da Funarte, este conjunto selecionado busca
representar a diversidade de espaços em funcionamento, e abrir diálogo com as propostas dos
artistas, que questionam justamente as categorias primeiras que moveram a criação e a
manutenção das autonomeadas Residências Artísticas.
Diante do interesse da Funarte neste “setor emergente”, visando atender à uma
demanda social represada, este breve texto quer apresentar alguns pressupostos políticos e
artísticos que somem ao debate uma perspectiva crítica sobre essa nova política. Mesmo
inconclusivo, o mapeamento contribui às tantas redes de cartografias que vêm se constituindo
no campo da arte e da mobilidade em escala global, e que, mesmo padecendo econômica e
politicamente, são compostas de artistas que se alimentam e escapam, compõem e se
desiludem desde sua constante e permanente instabilidade.
No Brasil, a demanda das instituições de grande porte informa a alta taxa de IPTU que
é paga ao Estado, e solicita isenção fiscal como forma de reconhecimento de sua função social
de formação, incentivo à produção incluindo a prática de residências artísticas. Em geral,
estas instituições operam com a ideia de oferecer um espaço exótico, um outro desconhecido
como lugar de transcendência e liberdade, que expressam um ambiente inspirador, apropriado
para a produção de objetos de arte com valor de mercado. Paralelamente, poderíamos destacar
um outro modelo, o de residências situadas, preocupadas em gerar e pensar interações,
linguagens, processos autorais colaborativos, não hierárquicos, que apontam para distintos,
incomensuráveis modelos de desenvolvimento e produção de arte.
Sublinhando as qualidades da transitoriedade e da impermanência entre as estratégias
de produção da arte contemporânea, conceitos que abarcam a mobilidade transcontinental de
pessoas e materiais, e que vêm acompanhados de informalidades que competem na realidade
– praticando a distribuição e a otimização das responsabilidades envolvidas nas atividades
propostas por uma residência artística. O que é entendido por autonomia e hibridismo de

6
Mapeamento de residências artísticas no Brasil, 2014, Funarte.

1374

V V
espaços geridos por artistas é tema do recente livro7 de Kamilla Nunes (2013) resultado da
“bolsa funarte de estímulo à produção em artes visuais”.
Muito além de oposições, a riqueza do seminário trouxe uma quantidade e
especificidade de projetos de residência artística mais recentes, experimentais e singulares,
que sugerem a qualidade da transitoriedade como parâmetro para compreendermos e investir
neste campo.
Táticas de impermanência podem ser traduzidas como práticas de hospitalidade, onde
se agregam improvisadamente sempre novos espaços e possibilidades, mas onde também são
assumidos os conflitos e fracassos. Restando sempre uma reflexão, propomos as seguintes
categorias: espaços geridos por artistas, espaços institucionais e uma gama muito variada de
espaços/projetos autônomos de residências artísticas, que rompem com o legado histórico
romântico onde os ideais de isolamento da sociedade e acesso privilegiado a determinados
acervos/espaços de produção eram valores predominantes.
Comecemos com o fato de que um contexto comum parece ser compartilhado, como a
especulação imobiliária nos grandes centros, a circulação intensificada de mão de obra entre
países, o aquecimento global, as ferramentas de comunicação, a gentrificação, etc. O que uma
política cultural neste setor deve compreender, portanto, sobre a especificidade de cada local,
de cada projeto, para facilitar idas e vindas, florescimentos e podas em um movimento que
desafia as noções mesmas de sustentabilidade?
O lado crítico da emergência das cidades criativas vem sendo desvelado em
recentes periódicos, observando cidades como Londres e Nova Iorque (residências dos mais
ricos do mundo) que vivem o resultado da separação entre quem cria (o design) e quem
manufatura os produtos, incluindo artigos de moda, da casa, dispositivos móveis (mão de
obra). Como salienta Joseph Todd, em artigo publicado em 25 fevereiro 2015 sobre o
ocupação de bairros historicamente de trabalhadores em Londres:
aqueles que podem manter estágios não renumerados sustentam uma
cultura que exclui a maioria dos confortos de empregos oficiais (colar
branco). Que seus sotaques, construções de linguagem e conhecimento das
instituições, do seu histórico no mercado de trabalho, perpetua normas que
excluem aqueles que nasceram fora da elite cultural.8

7
Espaços Autônomos de Arte Contemporânea.
8
“That the unpaid internships they can afford to take sustains a culture that excludes the majority from
comfortable, white collar jobs. That their accent, speech patterns and knowledge of institutions, by their very
deployment in the job market, perpetuate norms that exclude those who were born outside of the cultural elite.”
Disponível em: http://roarmag.org/2015/02/london-middle-class-culture-poverty/ acesso em: 27 fev. 2015.

1375

V V
Em uma das passagens da palestra de abertura do seminário de mapeamento das
residências, Amilcar Packer expôs sua contribuição crítica e vívida de um artista e
pesquisador no campo das artes. Em seu artigo “Resiliências Artísticas”, afirma:
Talvez seja pela recusa ao trabalho, entendido como restrição das atividades humanas ao
mundo capitalista produtivista, que as residências [artísticas] possam oferecer aos profissionais das
artes uma situação não apenas privilegiada, porém realmente crítica em relação aos paradigmas
operantes. (2014, p. 35).

Notemos que a concepção de trabalho aqui defendida se remete a um contexto cultural


onde o trabalho se associa a sua raiz latina tripalium9, ou seja, quer evitar o sofrimento
inerente à exploração capitalista. Ao importar ferramentas de fomento à economia da cultura
para o Brasil, que traduções são feitas para adaptar a dignidade do trabalho, valor central do
mérito e da construção do profissional de arte, para um contexto cultural onde predomina o
elogio à preguiça?

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.


Oswald de Andrade

O Manifesto Antropofágico é amplamente citado como referência obrigatória


para compreendermos a chegada do modernismo no Brasil, nos anos de 1920. Intercalando
nomes e mitos indígenas, evocando cantos religiosos, aludindo a eventos históricos do
período colonial e traçando críticas sobre a impossibilidade de importar valores euro-
americanos para a construção de uma identidade contemporânea, Oswald de Andrade marca
com seu texto poético-político uma tomada de posição de intelectuais sobre o caráter
includente da cultura Brasileira. No entanto, tal capacidade de incluir deve considerar
também sua face de exclusão, que no dizer de Lévi-Strauss (citado por Cocco, 201210) que
significa dar ênfase às relações de poder locais e globais na sociedade contemporânea, onde a
oposição entre a antropofagia e a antropoemia está em permanente instabilidade, não
produzindo qualquer síntese.
Lido desta forma, o Manifesto carrega um silêncio sobre as relações de poder que
operam transnacionalmente em um mundo globalizado, como sugere Moacir dos Anjos, que:
considera a tradução entre culturas como a contaminação unidirecional não só imposta, mas
também concedida ou mesmo ativamente buscada – da cultura local por uma cultura hegemônica e
estrangeira (ANJOS, 2005, p.24).

9
Instrumento de tortura composto de três paus: da ideia inicial de 'sofrer', passou-se à de 'esforçar-se, lutar,
pugnar' e, por fim, 'trabalhar' (CUNHA, 1982, p. 779) .
10
Ver debate em “IV Seminário de pesquisadores do PPGARTES – UERJ”: https://youtu.be/2nbarow2WMA
acesso em: 27 fev. 2015.

1376

V V
É precisamente no espaço deixado pela solução antropofágica que pretendemos
avançar com nossa proposta.

SUSTENTABILIDADE EM CONDIÇÕES GLOBAIS


Ao pensar em uma política de mobilidade, não são apenas as estimativas de
crescimento econômico as que afetam nossas des-territorializações e re-territorializações,
sejam estas partidas ou pousos. Hoje, em muitos países, está em curso a fiscalização da
crescente emissão de carbono gerado pelas atividades de empresas, conhecido como carbon-
foot-print.11
A pegada do carbono é uma unidade de medida que orienta as políticas voltadas para a
sustentabilidade do planeta. Assumidas internacionalmente como parâmetro para avaliar o
aumento ou a redução do impacto ambiental da produção de bens de consumo, as pegadas de
carbono representam distintos estilos de vida, onde o ar-condicionado e também o
aquecimento são medidos em conjunto com as altas emissões dos carros, e mais
especialmente dos aviões. Nos países industrializados, as altas taxas de emissão de carbono
significam altas taxas a serem pagas, mecanismo que desprivilegia as nações mais pobres,
para onde migram as atividade de alto impacto, ao mesmo tempo em que denuncia o caráter
exploratório e irresponsável de grandes empresas transnacionais. Diante deste quadro, que
papel se pode esperar para o governo de um território continental que aponta para o
incremento de fluxos nacionais e internacionais de pessoas entre residências artísticas?
Felix Guattari proclama um argumento forte em defesa de uma política sustentável,
que parte do artista e da relação com seu entorno para proporcionar sua produção. Assim
define esse movimento:
O novo paradigma estético tem implicações ético-políticas porque
quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância criadora em
relação a coisa criada, em inflexão de estado de coisas, em bifurcação para
além de esquemas pré-estabelecidos e aqui, mais uma vez, em consideração
do destino da alteridade em suas modalidades extremas. (GUATTARI, 1992,
p. 137).

Se, de um lado, nosso esforço se soma a especificar o “caráter crítico e experimental


dos espaços autônomos” (Nunes, 2013, p. 75), queremos também lançar luz sobre arranjos
organizacionais e táticas que se dão em âmbito global, sugerindo que os modelos de

11
Em linhas gerais estima-se que o impacto do uso moderado de um carro durante um ano é equivalente a uma
única viagem de avião. Para calcular sua média de emissão de carbono há algumas iniciativas disponíveis através
de carbon footprint calculators.
Na Europa, existe uma tendência crescente de pessoas que conscientemente evitam contribuir para o aumento
exponencial das emissões de carbono na atmosfera, negando-se simplesmente à viagem de avião por exemplo.

1377

V V
residência impermanente e as instituições de fomento do campo da arte sejam escutados com
ênfase na descrição que nos aportam sobre as relações estabelecidas entre pessoas, projetos e
distintas construções do valor do trabalho.
Ao celebrar seus 10 anos de existência em 2008, Helmut Batista, artista idealizador do
programa de residências do Capacete, publicou Livro para Ler reunindo 11 textos de pessoas
que passaram pela residência Capacete registrando uma década de trabalho. Seu formato
impresso recolhe reflexões críticas por autores de diversos países e as publica em suas línguas
originais. A ênfase é colocada no trabalho de leitura, e critica o uso crescente da internet
como meio privilegiado de acesso e circulação de pensamento de artistas, críticos e curadores.
No prólogo, Batista revela seu desejo de uma reflexão mais cuidadosa sobre a produção que
vem apoiando e que afinal, “ler é trabalhar” (BATISTA, 2008, p. 13).
Em conversa com Leonor Antune, Batista ironiza o fato de que a mobilidade entre os
espaços de trabalho confirme muitas vezes a identidade essencial do artista contemporâneo:
“É como se não pudesse mais ser um criador contemporâneo sem ter na bagagem algumas
viagens, seja de estudo ou mesmo de lazer. O confronto com o outro parece ser algo essencial
para criar circunstâncias interessantes” (BATISTA, 2008, p. 17-18).
Se o conceito de híbrido, trazido da biologia, tem funcionado como alternativa para
compreendermos a fusão cultural, no lugar de aculturação ou mestiçagem (ANJOS, 2005, p.
28), assinala que entes, culturas, de distintas naturezas se encontraram e resultaram em um
novo ser, em uma nova cultura. Porém, como assinala Stuart Hall (2004), o hibridismo não
nos fornece uma síntese, mas denota a abertura de um espaço em permanente negociação e
construção de identidade.
Ainda que exista a perspectiva assumida por programas de residências ao ideal de
descrição do espaço de trabalho do artista renascentista (“A oficina para ele seria um refúgio
frente à sociedade”, SENNETT, 2009, p. 88), ressaltamos que o deslocamento e o incentivo
concorrem com o desejo de pessoas em trabalharem em seus respectivos ateliês, bairros,
cidades, como ato deliberado de resistência e ocupação.
Estou argumentando por políticas e epistemologias localizadas,
posicionadas e situadas, onde a parcialidade e não a universalidade é a
condição para ser ouvido por se propor a fazer conhecimento racional.
Estas são expressões das vidas das pessoas. Estou argumentando por uma
perspectiva do corpo, sempre complexa, contraditória, estruturando, e [de]
corpo estruturado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, da

1378

V V
simplicidade (Haraway, 1988, p 589)12.

Haraway para uma sensibilidade capaz de perceber a multiplicidade de vozes que se


materializam a partir de experiências vividas. Pensar sobre viagens, quando nos damos conta
do que podemos realizar onde já estamos, valorizando o que conhecemos e o que sentimos,
despertar o conflito, as dificuldades fatigadas pela rotina, mas que se mostram fortalecidas e
surpreendidas pelo acaso. É quando a residência ganha os cuidados da hospitalidade.

BIBLIOGRAFIA
ANJOS, M. [2009]. Local/Global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Zahar.
CUNHA, A.G. [1989]. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon
BATISTA, H. [2008] livro para ler. Rio de Janeiro: Capacete Entretenimentos.
FERRAN, M. de N. S. [2008]. “O abismo da hospitalidade contemporânea: cidades e
migrações”. Rev. Observatório Itaú Cultural / OIC – n. 5, (abr/jun), São Paulo, pp. 58-67.

GUATTARI, F. [1992]. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34.
HALL, S. [2004]. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.

HARAWAY, D. [1988]. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the
Privilege of Partial Perspective”. In: Feminist Studies 14, no3 (Fall 1988) pp. 575-599.

NUNES, K. [2013]. Espaços Autônomos de Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Circuito.

SENNETT, R. [2009]. O Artífice. Rio de Janeiro: Editora Record.

TAWADROS, G., RUSSEL, M. The New Economy of Art. 2014. Londres: DACS.

VASCONCELOS, A., BEZERRA, A. [2014]. Mapeamento de residências artísticas no


Brasil. Rio de Janeiro: Funarte

12
“I am arguing for politics and epistemologies of location, positioning, and situating, where partiality and not
universality is the condition of being heard to make rational knowledge claims. These are claims on people’s
lives. I am arguing for the view from a body, always complex, contradictory, structuring, and structured body,
versus the view from above, from nowhere, from simplicity” (Haraway, 1988: 589).

1379

V V
O EUCALIPTO SECA TUDO EM VOLTA
O DESAFIO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA EM PORTUGAL
Simone Amorim1
João Teixeira Lopes2

RESUMO: O presente artigo analisa aspectos da orientação das políticas de cultura


portuguesas na atualidade, especialmente as estratégias de consolidação de uma democracia
cultural. Concebido a partir do estágio doutoral desenvolvido no Departamento de Sociologia
da Universidade do Porto, em Portugal, no âmbito da bolsa PDSE/Capes/CNPq, trata-se de
um esboço preliminar de caracterização dos desafios de entender a cultura em sua dimensão
estratégica para o bem-estar social, nesse início de século XXI, sobretudo no contexto
europeu. A maior parte do conteúdo exposto no texto advém de uma entrevista realizada com
João Teixeira Lopes, Doutor em Sociologia da Cultura e da Educação, especialista e
pesquisador do tema e orientador do estágio investigativo, na Universidade do Porto, onde é
professor catedrático no Departamento de Sociologia.

PALAVRAS-CHAVE: Portugal, Políticas Culturais, Democracia Cultural.

INTRODUÇÃO
Vivem-se tempos bastante tensos na Europa, nesse início de século. Desemprego,
trabalho precarizado, racismo, xenofobia, intolerância religiosa, aumento da dívida pública
dos países, ameaças à soberania de governos democraticamente eleitos, uma lista que,
infelizmente se desdobra ad infinitum em diversos setores da vida social. Uma leitura, não
definitiva e algo superficial, que uma estrangeira pode fazer da conjuntura atual, a partir dos
dados oficiais da maior parte dos países, é a de que parece não haver se cumprido o ideal de
uma Europa em paz, unida e próspera; que norteou a criação da União Europeia na década de
1950 do século passado, ainda sob o forte impacto causado pela guerra que abalou
inexoravelmente o continente.
No momento em que o mundo todo sofre as consequências de uma crise estrutural do
sistema capitalista, que fez as economias dos países, de fato, encolherem nas últimas décadas,
a Europa assiste às consequências do desmonte do estado de bem-estar social que caracterizou
a região no século XX. O efeito disso é percebido cotidianamente na profunda crise social,

1
Simone Amorim é Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana pelo PPFH-UERJ, em estágio
doutoral no Departamento de Sociologia da Universidade do Porto (FLUP-UP), em Portugal. E-mail:
xsimoneamorimx@gmail.com.
2
João Teixeira Lopes é Doutor em Sociologia da Cultura e da Educação e Professor Catedrático do
Departamento de Sociologia da Universidade do Porto, em Portugal. E-mail: jlopes@letras.up.pt.

1380

V V
econômica e política e na intolerância ao que é diferente; a despeito do reconhecido
multiculturalismo, que amalgamou a partir da diversidade, uma identidade europeia.
É claro que relativamente à maior parte dos demais países do mundo, a situação
Europeia ainda é bastante confortável, mesmo do ponto de vista do bem-estar social. Basta
observar, por exemplo, que vinte e seis dos vinte oito Estados-membro da União Europeia,
situam-se entre os países com índice altíssimo de desenvolvimento humano, de acordo com o
ranking global do Relatório do Desenvolvimento Humano da ONU, de 2014 (com dados de
2013)3. Apenas Bulgária e Romênia – últimos entrantes na comunidade, em 2007 – aparecem
no quadrante abaixo, dos países com alto desenvolvimento humano. No entanto, a pressão por
parte de alguns líderes da União Europeia, sobretudo da Troika (constituída pelo Banco
Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão Europeia), para que a política de
austeridade econômica seja cumprida à risca pelos Estados-membros tem comprometido a
possibilidade de que esses índices sejam mantidos num futuro não muito longínquo.
Todo esse cenário de incertezas e tensões tem gerado implicações sérias na forma
como os governos da região se posicionam no que diz respeito ao que é inegociável no
contexto de cada sociedade. A fronteira a partir da qual não se deveria cruzar, sob o risco de
verem destruídos todos os ganhos históricos, que o chamado berço da civilização ocidental
logrou, ao custo de muitas cabeças literalmente rolarem, para que tais conquistas fossem
garantidas. Entender a cultura como engrenagem fundamental para o desenvolvimento
humano é, pois, um desafio posto. Inclusive, resignificando a cultura no contexto de
mercantilização e precarização da vida e das relações humanas, fortemente presente nas
sociedades atuais em todo o mundo, sob forte influência dos paradigmas europeu e
americano, neste início de século.

POLÍTICA & CULTURA: PORTUGAL NO CONTEXTO DA COMUNIDADE


EUROPEIA
João Teixeira Lopes é licenciado em Sociologia (1992), Mestre em Ciências Sociais
(1995) e Doutor em Sociologia (1999), exercendo a profissão de professor catedrático da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foi vice-presidente da Associação Portuguesa
de Sociologia, dirigente do partido Bloco de Esquerda, integrando a Mesa Nacional e a
Coordenadora Distrital do Porto. Foi membro efetivo do Observatório das Atividades
Culturais entre 1996 e 1998, sendo atualmente seu colaborador. Integrou a equipe
3
Ranking global IDH 2013 disponível em: http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/Ranking-IDH-Global-
2013.aspx, acessado em 20/02/2015.

1381

V V
coordenadora do Relatório das Políticas Culturais Nacionais (1985-95) junto ao Conselho da
Europa, em 1988. Foi programador da Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto
responsável pela área do envolvimento da população, Coordenador científico do Instituto de
Sociologia da FLUP entre 2002 e 2010 e diretor da Revista Sociologia entre 2009 e 2013.
Exerceu ainda funções de deputado na Assembleia da República, durante a IX (2002 a 2005)
e X (2005 a 2009) legislaturas.
Os trechos entre aspas no texto a seguir são transcrições da entrevista concedida pelo
Sociólogo, em fevereiro de 2015, na Universidade do Porto, em Portugal, sob o tema geral
das políticas públicas de cultura naquele país hoje, sobretudo no contexto de austeridade
vivido por alguns países da comunidade europeia. Optou-se por manter esses trechos no corpo
do texto e não como citações, com objetivo de privilegiar a fluidez da leitura.
O Estado Português tem reagido de forma bastante tímida às pressões do bloco
europeu, sobretudo no tocante à orientação das políticas sociais. Paradoxalmente, a lição
número um da cartilha da Troika, de orientação expressamente neoliberal, para que os Estados
retomem o ritmo de crescimento, é a de enxugamento dos gastos públicos. “A crise demora
tempo para surtir efeitos. O caso da saúde é emblemático. Os cortes na saúde começaram em
2011; só este ano, com uma situação aguda no inverno, com as gripes e com as infecções
respiratórias é que todos os cortes que foram feitos – isto é, redução do numero de leitos,
cortes no número de enfermeiros e não contratação de novos médicos, racionamento, não
propriamente de medicamentos, mas de material técnico – e o efeito acumulado dos cortes, foi
sentido de maneira brutal. Toda a gente até agora dizia, ‘bem, tem sido péssimo, mas a saúde
tem sido salvaguardada’, já ninguém diz isso, já toda a gente percebeu-se que mesmo na
saúde, o efeito da queda é muito grande”.
A estratégia neoliberal de enxugamento do Estado aplicada à saúde (a mesma
replicada em todos os demais setores, especialmente o social), trata de enxugar os direitos
sociais substituindo-os por favores do Estado. “Aqui há um aspecto fundamental para se
entender a sociedade portuguesa, que é a “misericordialização” da assistência social. As
misericórdias são instituições privadas de solidariedade social, ligadas à igreja, que têm
recebido um enorme apoio do Estado. O apoio aumentou. E recebem esse apoio ao mesmo
tempo em que o Estado corta nas prestações sociais e nas transferências sociais. Ou seja, há
menos dinheiro para o subsídio desemprego, há menos dinheiro para o rendimento social da
inserção, há menos dinheiro para os abonos de família. Aumentou o apoio às Misericórdias.
Nomeadamente para o apoio de emergência, para as cantinas sociais, para alimentar. Portanto,

1382

V V
a ideia é conter os efeitos mais dramáticos da crise, haver uma assistência de proximidade
clientelar, pela mão da igreja, mas evidentemente cortaram o Estado social naquilo que ele
significa de direitos estandardizados, regulamentados por lei. Contém-se uma explosão social,
mas ao mesmo tempo regride-se, o Estado social. O efeito clientelar é explosivo, uma
estratégia inteligente”.
Quando se busca uma resposta à questão sobre o tamanho da participação do Estado
português na promoção da cultura, se ela estaria adequada à realidade que se apresenta neste
início de século XXI, o elenco de argumentos para crer que não é, inevitavelmente, eloquente.
“Recentemente há uma inflexão grande. Nós não temos dados. Há sempre um atraso da
produção estatística, que não permite detectar as mudanças radicais ou drásticas, como por
exemplo em uma situação de crise. A estatística mede sempre com atraso. Na pobreza já
temos estatísticas que medem isso, a pobreza aumentou bastante. A pobreza relativa
aumentou significativamente, as desigualdades sociais aumentaram também, isso já foi
possível medir. A cultura é mais difícil medir.
O observatório, e isto é um sinal, foi desativado. O observatório de atividades
culturais, que funcionava desde 1995 foi desativado há dois anos, ou seja, quando [tudo] se
encaminha para monitoramento da cultura, quando se caminha para o diagnóstico, quando se
caminha para uma ideia de políticas públicas reflexivas. Há um outro sinal, a transformação
do Ministério [da cultura] em Secretaria de Estado.
E há ainda um outro indicador que é seguro: o orçamento do estado para a cultura
representa 0,2% do orçamento do Estado total e a queda é muito forte, ano após ano. Tinha-se
como objetivo, em finais da década de 1990, chegar a 1% do orçamento do Estado. Na era do
PIB, a recomendação da ONU, que vinha do exemplo francês era essa, mas nunca
conseguimos, jamais. Esse é um indicador de que as coisas não estão de modo nenhum a
resultar, não resultam do ponto de vista simbólico (o Ministério passou a Secretaria de
Estado), e não resulta do ponto de vista orçamental. Se tivermos em conta que a economia
esteve em recessão profunda, o investimento no setor cultural também esteve certamente em
recessão. Há um indicador, que é o indicador do Eurostat4, das práticas culturais, que mostra
também um retrocesso em várias práticas, ligadas evidentemente, às dificuldades econômicas,
portanto, eu diria que não havendo ainda uma medida direta, há indicadores que mostram o
retrocesso no investimento em cultura.

4
O Eurostat é a autoridade estatística da União Europeia. Criado em 1953 é atualmente uma Direção-Geral (DG)
da Comissão Europeia, que tem como papel fundamental fornecer estatísticas à Comissão e às outras instituições
europeias para que possam ser definidas, implementadas e analisadas as políticas.

1383

V V
O turismo tem aumentado consideravelmente. E há um turismo cultural que se tem
vindo a fortalecer. O caso [da cidade] do Porto é um bom exemplo, há algumas instituições-
âncoras, que têm um orçamento muito reduzido, ou melhor cujo orçamento foi sendo cada vez
mais diminuto, mas que conseguem ainda ter uma oferta de qualidade, como a Casa da
Música e [a Fundação] Serralves. Mas por exemplo o Teatro [Municipal] São João decaiu
imenso em programação, em atividade, está há muito tempo parado. Há períodos da
temporada que não há nada lá.
Agora o que surgiu como reação, até a chegada de novos turistas, foi aquilo que eu
chamaria de uma esfera cultural informal, de microgrupos, de microprojetos. Muito baseada
no low cost, isto é, performances, happenings, pequenas peças de teatro, exposições, flashes,
ou seja, muito ligada à movimentação cultural, à efervescência cultural, evidentemente
também ao turismo e à movida da economia da noite, o espaço da rua. Tem um efeito
obviamente positivo, muito ligado às escolas artísticas, mas que significa igualmente,
altíssima precariedade dos meios artísticos, altíssima intermitência e do ponto de vista dos
resultados, muito parcial. Eu não sei os impactos efetivos que essa atividade de microprojetos
tem no desenvolvimento cultural nem na formação de públicos. Não sei, ela é muito precária.
Ela é positiva e tem que existir, e mesmo que houvesse muito apoio público ela deveria
existir, sempre, como um canal alternativo. O que eu acho é que não chega. E que num
momento de grande retração pública, não chega. Falta estruturação da própria oferta cultural.
O Porto teve um apogeu cultural em 2001, [quando foi eleita pela Comunidade
Europeia a] capital europeia da cultura. Resultado de uma década de ouro em termos culturais
(nos anos 1990), em que a cidade trabalhou com grandes eventos, criou equipamentos e
simultaneamente formou públicos. Havia um trabalho comunitário em várias frentes, havia
orçamento. Regrediu totalmente em 12 anos. O presidente5 anterior [ao atual], usava a frase
do Goebels “quando alguém fala de cultura eu puxo a pistola”, usava isso como piada, tinha
um pendor anti-intelectual e anti-cultural imenso, a Câmara6 desapareceu do ponto de vista
cultural, este é o melhor termo. E agora ressurgiu. Ressurgiu porque se percebeu que a cultura
é estratégica até para o turismo, e percebeu-se também que é estratégica para o próprio
desenvolvimento do tecido social. O [atual] vereador [da cultura] é uma pessoa ligada ao
mundo cultural, o próprio presidente quer que a cidade tenha uma imagem cosmopolita, sendo

5
Presidente da Câmara Municipal, equivalente (imperfeito) ao cargo de Prefeito, no Brasil.
6
No âmbito municipal, não há poder executivo em Portugal, sendo as Câmaras as executoras das políticas
públicas em âmbito local. Neste caso os presidentes das câmaras têm uma função que se aproxima da dos
Prefeitos, no Brasil.

1384

V V
um homem de direita, quer que a cidade tenha essa imagem cosmopolita e nota-se que há uma
preocupação, mesmo com um orçamento muito baixo ainda, de diversificar”.
Uma estratégia que vem sendo percebida, sobretudo no perfil das atividades
organizadas pela Câmara do Porto, quando prioriza o espaço da cidade como espaço de
encontro com a cultura. Obviamente, mirando o potencial turístico da cidade, mas ao mesmo
tempo reconectando-se à uma certa movimentação cultural. São, em geral projetos menos
ambiciosos e mais capilarizados pelos concelhos, dentro da ideia que “[grandes eventos] são
atividades muito rentáveis politicamente, do ponto de vista da cultura midiática, do show, do
espetáculo é brutal, mas são às vezes muito pouco proveitosas, do ponto de vista do impacto
[cultural]. Essas atividades não têm ligação entre si, são meros somatórios de atividades, e
programação cultural tem que ser mais do que isso”.
A ideia de que o desenvolvimento cultural deve ser mais que um somatório de
atividades embute a relação entre cultura e desenvolvimento nos dias atuais, isto é, o papel da
cultura no que se pode considerar desenvolvimento na atualidade.
“O desenvolvimento cultural pode ser visto no sentido lato; desenvolvimento cultural
como um conjunto de atitudes, comportamentos, valores que efetivamente contribuem para o
desenvolvimento no seu todo, isto é, se existe uma orientação cidadã nas práticas sociais, se
existe uma preocupação com sustentabilidade, com valores como a solidariedade etc., isso
contribui evidentemente para orientações societais mais amplas, que contribuem efetivamente
para o desenvolvimento.
Embora a palavra seja polissêmica, polêmica; do que estamos a falar, quando falamos
de desenvolvimento. Nesse sentido mais vasto de atitude, de apreciação, de grande esquema
mental e coletivo, [a cultura] contribui, claro [para o desenvolvimento]. Mas também
contribui num sentido mais estrito. Há hoje evidência empírica suficiente que mostra que o
desenvolvimento do setor cultural arrasta outros setores, e arrasta de duas formas, de uma
forma mais indireta, ou seja criando pessoas qualificadas, e de uma forma mais direta criando
emprego, investimento, diretamente. Portanto, quer num nível mais vasto de atitudes
societais, cidadãs, cívicas; quer a um nível mais estrito e aqui com duas dimensões – a
qualificação da população, por um lado, e da criação direta de emprego e de investimento no
setor cultural – [a cultura] contribui [para o desenvolvimento].
Nós estamos a assistir hoje a momentos históricos com a questão da Grécia, não
sabemos muito bem qual será o resultado desse embate, mas há uma espécie de encruzilhada.
Que já não é mal, porque nós não tínhamos encruzilhada, nós tínhamos uma via de sentido

1385

V V
único, que parecia ser o fim da história, que parecia ser a austeridade infinita, e a retração
cada vez maior do Estado: se julgávamos que já todas as privatizações tinham sido feitas, se
julgávamos que já todos os cortes nas despesas sociais tinham sido feitos, havia sempre mais
a fazer. Isso parece estar agora em discussão, e há um momento de bifurcação, vamos ver o
que é que isso dá. E também na cultura, porque a cultura não é hoje em dia dissociável das
orientações ideológicas mais gastas, ela é um elemento essencial, incluído nesses debates
ideológicos. Eu acho que vai tudo depender da definição que vier a ser feita neste grande
debate que está a emergir, por isso é que estes são tempos históricos.”

DA DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA À DEMOCRACIA CULTURAL


Há alguns dias o filósofo brasileiro Vladimir Safatle destacou em um artigo 7, uma
frase de Marx interessante para o escopo deste texto, pois dá, de forma bastante precisa, o tom
do que, a despeito do quadro esboçado, gostaríamos que fosse central neste artigo. Na frase,
enunciada há mais de 150 anos, Marx dizia: “A situação desesperadora da época na qual
vivo, me enche de esperanças”. Trata-se da possibilidade que surge ao novo nesses momentos
históricos de esgotamentos, nos fins de ciclos. Que aparentemente é a situação atual não
apenas na Europa, como de muitos modelos de sociedade em todo o mundo.
Portanto, destacamos aquele que vimos como um importante ponto de inflexão no que
se refere ao investimento público no setor cultural. Aquela que seria a virada empírica do
Estado no que diz respeito ao entendimento de seu papel em relação à cultura. Trata-se do
câmbio implícito na concepção de democratização da cultura para o entendimento de
democracia cultural. Sendo que no primeiro caso a ideia central era a de expansão de um certo
inventário de práticas e bens de cultura a um conjunto cada vez mais amplo da população,
para um outro em que põe em xeque o próprio conteúdo desse inventário, ampliando-o.
Operar com essa mudança abre a possibilidade de ampliar o escopo das políticas culturais no
tecido social.
“Tenho defendido ao longo do tempo que o papel do Estado no que diz respeito à
cultura é assegurar a democracia cultural. Isto é, não é suficiente que o Estado seja um mero
regulador. Porque a ideia de regulação já traz em si uma demissão daquilo que deveria ser o
papel proativo, ou seja, interventivo do Estado, neste caso na cultura. A democracia cultural
tal como tenho vindo a defender significa a possibilidade de escolha em termos de cidadania

7
“Enfim, o desespero”, publicado no jornal Folha de São Paulo, em 24/02/2015. Disponível em:
http://tools.folha.com.br/print?site=emcimadahora&url=http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2
015/02/1593858-enfim-o-desespero.shtml, acessado em 25/02/2015.

1386

V V
cultural. Isto é, significa que você enquanto cidadão pode escolher as suas práticas e seus
consumos culturais. E poder escolher tem por trás vários pressupostos, significa que existe
uma oferta diversificada, que existem equipamentos em que você acede à cultura, mas
significa mais ainda; significa que você consegue decifrar as linguagens culturais.
Caso contrário não há verdadeira liberdade de escolha, se você consegue decifrar as
linguagens culturais, significa que você teve formação cultural e uma formação que não foi
etnocêntrica, isto é, você não foi alvo de uma imposição, de uma colonização, ou de uma
domesticação cultural. Não, você foi formado tendo a possibilidade de familiarizar-se, como
diria o Bourdieu, com vários códigos, com várias linguagens. Se assim é, você consegue
escolher, se assim é, você consegue efetivamente escolher, porque tem recursos, a montante
de decifração, de leitura, de interpretação, no sentido mais amplo daquilo que são as obras
culturais.
Caso contrário mesmo que [as obras culturais] elas existam, mesmo que elas estejam
disponíveis, você não as vai escolher porque não as lê. Isto significa, na maior parte dos
casos, que elas existem para os já privilegiados, ou seja, há países, de democratização cultural
que conseguem distribuir bem as obras culturais, que apoiam a criação cultural, mas isto não
significa efetiva conquista social, porque quem está afastado, mantém-se afastado. Tem
acesso, mas a pessoa tem que sentir o acesso como algo seu, como algo que lhe é familiar,
como linguagem que consegue decifrar. Se isso não acontece, mesmo estando próximo,
mesmo existindo uma biblioteca, um arquivo, uma sala de galerias, um espaço público
animado. Você não vai lá porque você não lê aquelas linguagens. Portanto para mim, isso é a
verdadeira função do Estado, promover a democracia cultural.
Sem dúvida [há uma ligação bastante próxima com a educação], embora muitas vezes
a educação tenha aquele sentido descendente, muito paternalista, vertical, que creio que deva
ser evitado. E além do mais, a educação pode se confundir com a escolarização, e este tipo de
democracia cultural requer formação, requer educação, mas uma educação que não seja
paternalista, que não seja descendente e que não seja meramente escolar; isto é, que seja uma
educação não formal, informal, paralela e a par, evidentemente, de uma educação formal, e da
educação escolar. (...) Sem abdicar da escola, porque a escola, em particular a escola pública
pode ser, pra muitos a única oportunidade de contato com certas manifestações culturais. (...)
A capilarização da escola é o termo-chave, isto é, pode existir um efeito no território
em que a dita democracia cultural será algo capilar – isto é, algo que está presente em várias
instituições, ou em vários contextos, mais do que instituições, contextos, porque instituição

1387

V V
tem uma carga fixista e pesada e que implica muitas vezes uma estrutura organizacional forte
e que não é necessariamente aquilo que eu digo – mas essa capilaridade implica um efeito no
território. Significa que a escola é um desses contextos de interação com outros.
A meu ver só há um efeito da escola, se houver um efeito no território, porque se a
escola for uma espécie de ilha na comunidade, você não tem transferência de disposições
(para falar em linguagem sociológica), do contexto escolar para o bairro, do contexto escolar
para o trabalho, do contexto escolar para as redes de amigos. A escola não pode funcionar
como mero parêntesis entre a família e o mundo do trabalho, ou entre a família e a cidadania
ativa. A escola tem que estar profundamente entrosada com o dito tecido social. Portanto tem
que ser uma instituição em rede, em forte interação dentro de um território. Se ela abdicar da
sua visão arrogante, “escolocêntrica”, ela conseguirá ser um pivô de dinamização brutal,
inclusive cultural. Até porque a escola tem uma coisa em seu favor, em sendo obrigatória,
sendo pública, sendo além do mais um equipamento, é uma ocasião extraordinária de
formação”.
É na França dos anos de 1950 e 1960 do século XX que podem ser encontradas as
primeiras ações mais sistemáticas do Estado com o propósito de desenvolvimento do campo
cultural, isto é, a raiz das formulações atuais sobre a centralidade dos públicos na elaboração
de políticas públicas de cultura. No entendimento de João Teixeira Lopes – para quem “as
preocupações e intervenções sobre a participação da sociedade civil na concepção e até
mesmo na gestão dos equipamentos culturais teriam tido outra gênese, associada, em
particular, aos movimentos cívicos dos Estados Unidos”:
O projeto político de Malraux assentava no núcleo-duro do que,
doravante, se designou democratização cultural: “a ambição de tornar
acessíveis as obras da humanidade ao maior número possível de pessoas”.
Para tal, exigia-se uma concentração de esforços administrativos e
financeiros em torno da difusão (em particular junto das funções de arquivo
e de salvaguarda do património), a par do apoio, em menor grau ou como
segunda prioridade, à criação artística nobilitada e consagrada. Como pano
de fundo surge, evidentemente, uma ideologia fortíssima da Nação,
consubstanciada na estatização da política cultural. (...) Não raras vezes,
democratização e democracia cultural surgem como sinônimos quando, na
verdade, apresentam perspectivas díspares e, em certo sentido, até opostas,
de política Cultural. (2009, p.2)

Entre 1970 e 1974, o Conselho da Europa marca a sua posição na viragem, orientando-
se “agora, principalmente, para os equipamentos culturais e esforça-se por
estabelecer os limites conceptuais da animação sociocultural. Chega-
se à conclusão de que a cultura não é a apenas um bem de consumo, mas
também um espaço para que os cidadãos possam formar a sua própria
cultura. Por outras palavras: o “consumo cultural” dá lugar à “participação

1388

V V
cultural” e em 1976, em Oslo, quando da Primeira Conferência de Ministros
Europeus responsáveis pelos Assuntos Culturais, determina-se a
implementação de uma política de animação sociocultural. Opera-se, então,
formalmente, a mudança de paradigma.

Desta forma, o empowerment, com clara ressonância marxista,


pretende transformar os sujeitos em protagonistas ativos da sua própria
história sem perder, todavia, o enfoque privilegiado do quotidiano: das suas
tensões, experiências e pulsões (clara influência da escola de Paulo Freire).
A auto-consciência é um processo social indispensável para combater a
dominação social e cultural, ambas íntima e finamente imbricadas. Mas,
também, de vencer a tendência amplamente instalada de dissociação entre
conhecimento e ação, saber e poder, bem como a habitual limitação a
soluções parciais para problemas que exigem complexidade e totalidade. As
instituições europeias foram, entretanto, formalizando e institucionalizando o
conceito, sem deixar de salientar a viragem ideológica que lhe subjaz”.
(Idem, p.5-6)

“É como nos CEUs8 – eu visitei vários [no Brasil]. Aquilo era a ideia que eu tinha. Isto
é, eram centros polivalentes onde era possível ter várias atividades, no território, nas
comunidades; com formadores, também eles polivalentes e que faziam o transporte entre a
animação, o desporto, a cultura a arte. Eu acho que a solução não é propriamente dissolver as
fronteiras ou as distâncias. Porque apesar de tudo, acho que são coisas diferentes. E não há
problemas em considerá-las diferentes.
Uma coisa é arte, outra coisa é a cultura, outra coisa é animação, outra coisa é
desporto, outra coisa é lazer, recreação. Acho que são diferentes, acho que não devemos
confundi-las. O que acho é que devemos colocá-las em interação, isso sim. E ter a
possibilidade de ganhos entre umas e outras, ou seja, você está a entreter-se mas percebe que
também poderá ter ganhos artísticos ou culturais, e vice-versa. E os CEUs faziam isso, eram
centros polivalentes, em que havia contaminação de usos.
Você tem um exemplo excepcional em Portugal de como isso está limitado [o
investimento público em equipamentos culturais]. Nós temos bons equipamentos culturais –
ainda temos, claro que eles vão sendo já degradados. Mas o que acontece com esses
equipamentos culturais? Muitos deles, como é o caso dos cineteatros, são tão bons, que existe
uma rede, de cineteatros em redor dos distritos. São equipamentos modernos, construídos por
bons arquitetos, com projetos arquitetônicos muito qualificados, geralmente com fortes
preocupações estéticas, ambientais, paisagísticas, funcionais; mas como não há verba para

8
Centros de Artes e Esportes Unificados, um complexo educacional, esportivo e cultural caracterizado como
espaço público múltiplo. Trata-se de uma política pública implementada pelo Ministério da Cultura do Brasil.
Disponível em: http://ceus.cultura.gov.br, acessado em 25/02/2014.

1389

V V
além do equipamento eles estão desertos, ou seja, são meramente ocupados com a oferta
cultural local, que pouco acrescenta e traz aquilo que já existe: o rancho local, a banda local.
Não conseguiram criar uma elevação de qualidade, uma elevação de rede, ou aquilo
que se chama – hoje em dia utiliza-se muito a palavra: sinergia. Isto é, gastou-se o dinheiro
todo no equipamento, porque o equipamento traz um lucro imediato, que é até um lucro
político, é um lucro de campanha eleitoral, é um lucro de visibilidade, é um lucro que está ali,
é a obra feita, é o fetiche do equipamento. Mas o equipamento significa atividade e dinâmica
cultural, isto é, se nós ficamos apenas com o equipamento, sem dinâmica cultural, mesmo que
exista uma rede formal, é uma rede de vazios. É preciso muito mais, o equipamento tem que
ser uma mola ativadora de dinâmicas locais: dinâmicas! Isso requer desde logo, um
orçamento e programação cultural, e requer outra coisa, requer alguns recursos técnicos
especializados, quer de especialidades artísticas quer de mediação e animação e requer
também recursos logísticos e financeiros, é claro.
Portanto o equipamento em si mesmo pode ser um contentor, um mero contentor. O
equipamento tem aquela aura às vezes demasiadamente institucional e pode servir para uma
institucionalização da cultura, altamente redutora, ou seja, o equipamento pode servir para
sugar, asfixiar os movimentos sociais, as associações, tudo aquilo que é mais informal e até
emergente, é preciso ter muito cuidado com isto. Muitas vezes o equipamento mesmo tendo
programação, tendo dinheiro para além do edifício, funciona depois como uma espécie de
dirigismo em escala local: “o que é bom entra no equipamento, e nós decidimos o que é bom,
o resto é lixo”.
Acho que é preciso os Estados terem algumas estruturas centrais. Como as políticas
culturais francesas sempre definiram, ou seja, uma ópera nacional, um teatro municipal, uma
companhia nacional de bailado etc. Eu acho que isso é importante. Mas é importante, se isso
funcionar como experimentação, inovação, como uma espécie de ninho de boas práticas, não
propriamente para – enfim, tem o seu lado de grande patrimônio, que eu acho que também é
importante – secar o resto, não pode ser o eucalipto que seca o resto.
Ou seja, um teatro nacional ou uma cia de dança nacional, devem existir como grandes
repertórios, mas devem existir na itinerância, na diversão, no acolhimento de outras
companhias e com os serviços educativos em rede também, nunca com estruturas de aura. Isto
foi o que aconteceu em França: a grande ópera, o grande teatro, que depois acabavam por
secar todo o resto, e por ser o cânon. Não só eram muito conservadores em inovação,
entravam mal, como desprezavam tudo que era emergente, e como, acima de tudo, não se

1390

V V
relacionavam com o território, isto é, não descentralizavam, não recebiam, nem gostavam da
itinerância, a itinerância era sempre vista como um encargo, que se fazia muito rapidamente
três ou quatro semanas por ano. É essa a ideia do eucalipto, secar tudo a volta. Isto é, eu acho
que pode existir uma estrutura central, mas esta estrutura central tem que ser porosa face as
outras e não pode nunca significar jamais 2/3 do orçamento, isto é o eucalipto.
A França tem sido o único país que verdadeiramente se tem oposto à liberalização das
indústrias culturais, ou à ideia da cultura ser uma mercadoria como outra qualquer. E daí eles
continuarem a vincar ao que eu acho que é importante, que é o cariz excepcional dos bens
culturais. Os bens culturais não são uma mercadoria como as outras. Isto é, devem ser alvo de
um mercado assistido, ou seja, é um mercado que não deve funcionar apenas segundo as leis
da oferta e da procura, porque se funciona segundo essa leis, muita produção cultural nunca
vai existir. Porque não há ainda públicos, ou se havendo não são rentáveis, não há
propriamente um retorno em termos de lucro, até por razões estritamente econômicas –
chama-se isso a “lei de Baumol”, que mostra bem que os produtos culturais não dão a
rentabilidade que outros produtos dão, não há uma economia de escala como os outros
produtos, portanto, tem que haver apoio do Estado para haver a diversidade cultural, do
contrário, não há.
O que me parece estrutural na questão das indústrias criativas, é a ideia de que para
haver a legitimidade cultural deve haver contrapartida, e isso a meu ver é perigoso. As
indústrias criativas criaram a ideia de que não há espaço para a experimentação cultural. Tem
tudo que ter um retorno ou uma contrapartida, isso ao meu ver é complicado. Não estou a
dizer com isto que não se devam exigir contrapartidas em determinadas áreas, em
determinados projetos, em determinados setores, mas tem que haver um espaço de gratuidade,
no sentido da criação ser realmente livre e realmente experimental, porque isso faz avançar a
criação e a experimentação, isso faz avançar a cultura, faz avançar a arte. Como na ciência, se
toda a ciência for aplicada, a própria ciência vai regredir, não há espaço de inovação
conceitual. Existe muito hoje em dia a ditadura da contrapartida, ela é importante, porque tem
que haver contrapartidas sociais e econômicas, mas também tem que haver um espaço livre de
contrapartidas, ou melhor, em que a única contrapartida seja trazer inovação, diversidade.
O criativo alarga o cultural, há aqui vários alargamentos. O cultural alargou a arte de
uma forma muito grande, o criativo alarga a cultura de uma forma ainda maior. O que nós
vemos é no fundo uma culturalização da própria economia, e uma estetização de amplos
setores, com a ideia de que isso tornará a economia num setor mais rentável. O que acho é que

1391

V V
depois há problemas de fronteiras que são complicados: o que é cultura, o que é
entretenimento etc., não sou um pós-moderno a ponto de pensar que tudo isso acaba por se
dissolver”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temos profundas expectativas de que, mediante a leitura deste pequeno texto (cujo
material que temos em mãos ultrapassa em muito a possibilidade de exposição da
profundidade das ideias em 15 laudas), a ironia expressa no título tenha sido deslindada.
Trata-se de uma referência às políticas de austeridade impostas pela Troika a determinados
países do bloco europeu, que ao podar qualquer possibilidade de que o movimento de
desenvolvimento conceitual das ideias acompanhe o estatuto programático das gestões
governamentais, tanto mal tem causado às perspectivas de alguns países Europeus, como no
caso português, de seguirem adiante em seus processos de desenvolvimento humano. A
austeridade anula a possibilidade de que qualquer outra orientação política seja implementada
pelos Estados. O que configura lamentável para esses Estados.
Na visão de Teixeira Lopes, “nunca a Europa teve tantos estrangeiros e nunca a
Europa teve tantos desafios ao fechamento. Essa situação tem levado, claramente, ao
crescimento do potencial xenófobo. Ele sempre existiu, mas é claramente ativado pela crise
social, em particular a questão do emprego. As relações a nível mundial são cada vez mais
desiguais e simultaneamente a Europa está a atravessar uma crise enorme. E é uma crise
acima de tudo de emprego, ou melhor, acima de tudo é uma crise de modelo social. O
desemprego cria, acima de tudo, a desfiliação, cria conflitos entre os mais pobres, cria
desespero, o conformismo, o medo. É por aí que se tem que entender a questão. A questão é
acima de tudo uma questão social. Mas o movimento de abertura europeu é irreversível, não
vai ser possível nem transformando o mediterrâneo num cemitério, como está a acontecer.
A Europa jamais vai regressar à era dos Estados-nação ou à era do fechamento
cultural. Dito isto, não quer dizer que eu não defenda uma certa especificidade, eu acho que
há lugar a uma especificidade. Que não é uma especificidade de purezas, não é uma
especificidade de cânones, mas é uma especificidade por exemplo de liberdade de expressão,
de crítica, de reflexividade, de experimentação, eu acho que isso é uma especificidade que
deve ser mantida, contra a mercantilização, contra a estandardização Mc Donald’s, contra os
fundamentalismos de todo o tipo. O fato de achar que a globalização é irreversível, e que tem
dimensões emancipadoras, não significa que eu não defenda que tem outras dimensões que

1392

V V
não são emancipadoras, e que essa especificidade rebelde, crítica europeia, ou pelo menos
essa tradição, mais até do que especificidade, deve ser reforçada. Eu acho que isso é uma
especificidade e uma tradição que deve ser preservada, claro.”
Esperamos que esta entrevista, embora não figure na íntegra neste espaço, alcance a
reflexão de todos aqueles que, interessados no tema, mantenham-se atentos a outros modos
possíveis de se estabelecerem novas coerências ao específico cultural. Num período em que a
mercantilização das subjetividades atinge escalas nunca antes imagináveis, pensar a cultura
como uma dimensão do desenvolvimento humano e uma possibilidade de avanço social é um
imperativo senão revolucionário, profundamente radical nos dias atuais.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
LOPES, João Teixeira. Da democratização à democracia cultural – uma reflexão sobre
políticas culturais e espaço público. Porto: Profedições, 2008.

LOPES, João Teixeira. a democratização da cultura a um conceito e prática alternativos de


democracia cultural. In: Saber & Educar, 14, 2009.

1393

V V
BRASIL CRIATIVO E BRASIL SEM MISÉRIA: UM ENCONTRO
POSSÍVEL?
Tereza Ventura1

RESUMO: O Artigo propõe uma aproximação comparativa entre o Plano Brasil Criativo e o
Plano Brasil sem Miséria como substrato da proposta de politica cultural apresentada pelo
Ministério da Cultura em 2011. Ao construir modelos de combate à pobreza através da
inclusão de grupos populacionais diferenciados, o Brasil sem Miséria apontou para
importância da cultura no combate as desigualdades. A complementação entre a identificação
de grupos específicos e o PRONATEC pontua um processo institucional que busca qualificar
a produção social de valor na relação entre renda, qualificação e inclusão social ou seja
capital, cultura e trabalho. O desafio que se coloca é combinar as diferenciações culturais
pensadas no quadro conceitual do Brasil Criativo como inclusão produtiva com o
reconhecimento da desigualdade econômica e social.

PALAVRAS-CHAVE: cultura, desigualdade, identidade, trabalho, inclusão produtiva

Resumo
O Artigo parte da proposta de politica cultural, apresentada pelo Ministério da Cultura
em 2011. O argumento defendido aqui é de que tal proposta, pautada na parceria entre o Plano
Brasil Criativo e o Plano Brasil sem Miséria, coloca para as politicas públicas o desafio de
reconhecer a relação entre a diversidade cultural e regimes diferenciados de desigualdade. A
complementação entre a identificação de grupos específicos e o PRONATEC pontua um
processo institucional que busca o reconhecimento de direitos e a valorização das diferentes
cadeias produtivas da cultura. No entanto, o reforço a racionalidade econômica pautada no
imperativo da integração ao mercado e o dispositivo politico da transferência de renda, deixa
na sombra a correção dos regimes diferenciados das desigualdades estruturais articulados a
diversidade cultural .

Brasil Criativo e Brasil Sem Miséria: um encontro possível?


Os manuais de politicas públicas tem em comum a assertiva segundo a qual o ciclo de
uma politica e o conjunto de práticas e ativismos sociais que lhe dão vida, vão muito além da
sua formulação. A inscrição da cultura como uma politica de interesse público é um processo
complexo, tendo em vista a sua fragilidade na agenda pública. As Politicas públicas são

1
Prof. Adjunta Departamento de Ciências Sociais UERJ. terezatons@gmail.com

1394

V V
esferas que visibilizam demandas e lutas ocultas que lograram se deslocar da vida privada
para a vida pública. Este deslocamento inscreve processos de luta e de formação de consenso
e de legitimação entre grupos que disputam por recursos distributivos e por poder. A
complexidade destes processos, não nos impede de trabalhar nos termos da análise conceitual
e dos princípios que norteiam uma proposta politica.
Se por um lado, a esfera pública que estruturou o debate sobre os direitos culturais e a
vocalização dos diferentes segmentos culturais, se consolidou a partir das Conferencias
Nacionais de Politicas Públicas, realizadas a partir da posse do Governo Lula em 2003. Os
dispositivos institucionais que orientam esse debate público foram sistematizados durante o
governo de Dilma Roussef. Os marcos normativos desta perspectiva doutrinária, estão
ancorados no Plano Nacional de Cultura (Lei 12343 dez2010) e na implantação do Sistema
Nacional de Cultura (Emenda Constitucional n.71/2012) de gestão compartilhada.
Segundo a definição do Plano Nacional, a cultura deve ser “entendida como fenômeno social
e humano de múltiplos sentidos. Ela deve ser considerada em toda a sua extensão
antropológica, social, produtiva, econômica, simbólica e estética.” (BRASIL, 2010, p.8).
Durante o governo Dilma a orientação para a inclusão institucional e jurídica da cultura se
construiu através da inserção dos dispositivos culturais na agenda de desenvolvimento social e
econômico através do Plano Brasil Criativo.
Tal agenda busca estruturar as politicas culturais as orientações doutrinárias do novo
desenvolvimentismo no que diz respeito a garantir o controle do Estado acerca dos processos
de transferências de renda, empregabilidade e de incentivo ao crescimento econômico. Entre
os principais programas de desenvolvimento da agenda governamental de Dilma Rousseff se
encontram o Brasil sem Miséria e o Brasil Maior. O primeiro se pauta por uma ampla politica
de proteção social e de superação da pobreza tem como público aproximadamente 40% da
população brasileira2. O segundo pauta-se por uma agenda de valorização de competências e
competitividade para áreas de tecnologia e inovação.

Brasil Criativo
O Plano Brasil Criativo foi construído sob a coordenação da Casa Civil da Presidência
da República. Tratava-se, segundo a Ministra da Cultura Ana de Holanda, de “retomar o papel
do Minc na formulação de politicas públicas para o desenvolvimento”. (MINC:2011)

2
O Plano Brasil sem Miséria (2011-2014) foi elaborado por uma ampla equipe interministerial sob a
coordenação da Ministra de Desenvolvimento Social Tereza Campello e Ana Maria Medeiros da Fonseca.
http://www.brasil.gov.br/ /plano-brasil-sem-miseria.pdf

1395

V V
Em seu discurso, a Ministra enfatizou a ambição de reposicionar o Minc no governo
federal na construção de modelos de formação e capacitação exclusivos para a economia da
cultura. A Ministra da Cultura Ana de Holanda, ao anunciar o Programa Brasil Criativo,
tornava pública a sua pactuação com o Programa Brasil Maior e com o Brasil sem Miséria.
“Ao planejarmos, através da SEC, um “Brasil Criativo”, queremos acentuar o compromisso
do Plano Nacional de Cultura com o Plano Brasil sem Miséria, através da inclusão produtiva
(MINC: 2011:4)
O Ministério da Cultura assinou um termo de cooperação com o Ministério do
Desenvolvimento, pelo qual seriam implementados 27 Arranjos Produtivos Locais (APLs)
através dos quais se entrelaçariam a cultura com a inclusão produtiva. O Brasil criativo,
segundo a ministra, se destacaria pela ambição de uma agenda integrada as politicas de
desenvolvimento econômico e cultural do País e não ao discurso internacional de celebração
de uma economia criativa. Neste sentido, a agenda do plano Brasil criativo em sinergia com o
Brasil sem Miséria, busca articular o crescente reconhecimento das minorias à construção de
escalas de economia criativa de tipo étnico, identitário e cultural.

O Brasil sem Miséria


O Plano Brasil sem Miséria reforçou a visibilidade institucional do público atendido
pelo sistema de cadastro único de programa social. Em consonância com o Programa Bolsa
Família, os marcos conceituais do Brasil sem Miséria se pautam pela extensão de politicas
federalizadas de direitos de bem estar social entre as quais se inclui educação, saúde,
segurança alimentar, direitos culturais e de acesso aos recursos de infraestrutura básica, como
água, moradia e energia elétrica. Neste quadro conceitual, a pobreza é apresentada como um
fenômeno múltiplo, que engloba além da renda, a privação dos indivíduos ao exercício dos
direitos e das oportunidades socioculturais de desempenho e uso de seus atributos e
capacidades. Buscava-se a partir de um conceito ampliado de pobreza e de um amplo esforço
de coordenação municipal e estadual, a constituição de um modelo institucional sistêmico que
reconhece os aspectos multidimensionais do seu público a partir de um sistema de busca
ativa. O sistema de busca ativa possibilita a combinação entre um atendimento focal de
politicas universalizadas e um mapeamento das necessidades específicas construídas a partir
de parcerias com os diferentes municípios. Trata-se de um recurso que possibilitará um
entendimento mais profundo sobre a vida cotidiana e os diferentes públicos que inscrevem a
complexidade social brasileira. Através do Busca Ativa, o Brasil sem Miséria, realiza oficinas

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de treinamento de pessoal e de mobilização social em que se debate acerca das formas de
abordagem social e individual de grupos diferentes entre si, resultando numa relação direta do
Estado com os municípios e os segmentos marginalizados. Tal procedimento, na medida em
que trouxer para o domínio politico, a especificidade da relação entre a desigualdade
econômica e o pluralismo cultural e social brasileiro, poderá adquirir uma densidade
institucional inédita nas politicas públicas. O contato direto e a classificação diferenciada dos
grupos atendidos, embora inscrito numa politica focalizada, resultou de abordagens locais,
visitas as famílias, entrevistas e coleta de informação das diferenças culturais, territoriais e
sociais entre os grupos para o desempenho da política. Neste sentido, a vida cotidiana torna-
se o indicador qualitativo que media a o sentimento da privação econômica e trás a tona
valores e dinâmicas morais e culturais que permitem uma articulação com indicadores
econômicos.
Por outro lado, o modelo de desenvolvimento do Brasil sem Miséria, em consonância
com a agenda internacional, deve combinar proteção social com modelos de acesso a renda
mínima e elaboração de formas de contribuições sociais desvinculadas da condição salarial.
Trata-se de um modelo de desenvolvimento que busca extrair contrapartidas sociais a partir
do estimulo as iniciativas empreendedoristas pautadas em vocações, habilidades e valores
simbólicos que possam validar uma nova estrutura ocupacional. Ainda que pautado na
construção de ativos econômicos, este modelo corrobora a visão, amplamente colocada na
literatura acadêmica, de que a pobreza não se fundamenta apenas pela carência de renda
(Lavinas:2003, Telles:2001, Ivo:2004).
O Programa prevê ações focalizadas na inserção produtiva, educação, disponibilização
de microcréditos e formação de competências. Neste sentido, junto ao programa de
desenvolvimento foi instituído pela lei 12.513 26/10/2011, o PRONATEC - Programa
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego. O público alvo do PRONATEC são os
beneficiários dos programas de transferência de renda, jovens pobres, comunidades rurais,
povos indígenas e quilombolas e mulheres.

PRONATEC Cultura
Através do Programa Brasil sem Miséria, comunidades tradicionais e produtores
culturais tem acesso contínuo aos cursos e projetos de educação profissional oferecidos pelo
PRONATEC. Neste contexto, a complementação entre o sistema do busca ativa através da
localização e identificação de grupos específicos e o PRONATEC pontua um processo

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institucional que busca interferir na produção social de valor na relação entre práticas
populares, renda e inclusão social ou seja capital e trabalho. A lei PRONATEC foi criada
com a ambição de expandir educação profissional para municípios diversos e prevê a oferta
de bolsas de estudos além de uma parceria com o sistema S (SENAI, SESC e SESI)3.
Na perspectiva do Plano Brasil Criativo, a inclusão social e a formação de
competências, devem estar integradas as condições sociais e culturais específicas dos grupos.
Pois neste processo de formação e reconhecimento de competências, o conteúdo simbólico
valorativo do bem produzido, prescinde de um modelo específico de produção que pode ser
artesanal, subjetivo, cooperativo e digital.
Segundo dados recentes (MDS:2014), entre os públicos específicos do Pronatec Brasil
sem Miséria 48% tem entre 18 e 29 anos e 68% são mulheres negras e pardas. O público
diferenciado trazido pelo busca ativa é composto, majoritariamente, por famílias extrativistas,
quilombolas, ribeirinhas e indígenas. Não existe ainda um programa do Pronatec cultura
voltado para estas comunidades, no entanto, o diferencial deste público são suas tradições
culturais e linguísticas.
A cultura tem sido reconhecida como um ativo intangível para a revolução cultural
digital assim como o aço e o ferro foram para a revolução industrial. Construída como o
elemento que cria o valor de troca, a cultura se articula a economia, ao marketing empresarial,
ao turismo e a qualificação do tecido urbano. O avanço das tecnologias digitais de
comunicação e de informação deslocou o conceito tradicional de valor de troca como valor
que é agregado ao produto por meio da exploração do trabalho físico, quantificado no tempo e
no espaço. Na era digital, a cultura vai refletir a dinâmica imaterial das relações de produção
de valor, cujos conteúdos, comunicativos, cognitivos, simbólicos, informacionais e
imaginários conferem aos bens e serviços o caráter distintivo de mercadoria. É o conteúdo
cultural do bem produzido seja ele material ou simbólico que vai garantir o ciclo da sua
produção, circulação e consumo, um forte exemplo é a culinária étnica. Neste sentido, o
conteúdo cultural que se quer produtivo, não se separa das relações culturais e sociais e do
conjunto do cotidiano e dos valores e das redes e vínculos sociais que lhe dão vida.

3
São organizações privadas subsidiadas pelo Estado, ‘voltadas para o ensino profissional .Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial, Comercial, de transporte e Aprendizagem rural, Serviço Social do Comércio, da
Indústria entre outros

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O Brasil Criativo
O convenio do Brasil Criativo com o Ministério do Desenvolvimento Social segundo
Claudia Leitão se pautou nas seguintes estratégias: O primeiro eixo é o mapeamento da
informação das cadeias produtivas, com diagnóstico de territórios criativos, de vocações
regionais, para formulação de políticas públicas; o segundo eixo é a capacitação técnica para
gestão de negócios criativos, com formação de gestores, do artesanato à cultura digital; e o
terceiro eixo é a promoção e difusão desses empreendimentos em feiras, rodadas de negócios,
etc.
Defendia-se uma política estruturante e inclusiva em sinergia com o desenvolvimento
territorial e com os profissionais criativos que há no Brasil (MINC:2011). O plano Brasil sem
Miséria estabeleceria para o plano Brasil criativo os aportes, a partir dos quais, públicos
específicos, vocações e habilidades serviriam de insumos para uma inclusão produtiva.
Segundo o Plano Brasil Criativo: “O objetivo é fortalecer a Economia Criativa Brasileira e
inserir os segmentos criativos nas estratégias governamentais para o desenvolvimento do país
numa ampla politica interministerial”(MINC:2011:9). De forma alinhada com o eixo inclusão
produtiva do Plano Brasil sem Miséria, o Brasil Criativo propunha criar modelos de
empreendedorismo e negócios para os diferentes territórios criativos O desenho desta politica
previa o aumento da empregabilidade no setor cultural associado à formação profissional e a
formalização de empresas de comercialização de bens e serviços culturais inseridos em
arranjos produtivos locais.
Segundo o programa divulgado pelo Minc, “a parceria com o Brasil sem Miséria
envolve a formação para competências criativas voltadas para a inclusão produtiva da
juventude, inserida no mapa da pobreza, a partir de atividades criativas e vocações
locais”.(Minc:2011).
Tratava-se de promover o mapeamento e classificação das diferentes contribuições e
escalas de produção cultural das comunidades, dentro de um programa que tem como público
alvo setores da população isolados das políticas públicas pela pobreza. No entanto, esta
clientela já inclui segundo o MDS 40% da população brasileira. Ou seja, 40% da população
brasileira preenche os indicadores de pobreza, indigência e desigualdade. Deste público 73%
são mulheres entre as quais 80% são negras, inclui também 9,967 famílias de quilombolas e
5.000 indígenas (MDS:2014). Revela-se assim, um equacionamento caro as politicas de

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desenvolvimento: a sua relação com a diversidade cultural. O programa Brasil Quilombola já
tinha divulgado que 79,78% de sua clientela vivia nos limites da linha da pobreza.
A equação entre diversidade cultural e programa de desenvolvimento tende a se fortalecer
com a institucionalização da Política Nacional de Cultura Viva (Lei 13.018/2014), uma vez
que a torna possível para as comunidades, a implementação de pontos de cultura através da
sua participação no cadastro único.
A principal clientela do programa Brasil sem Miséria é composta por comunidades
negras, indígenas, tradicionais e quilombolas, mulheres negras e jovens. O sistema de
cadastro único e de busca ativa possibilitou uma equação inesperada entre categorizações
culturais, classes sociais e economia no Brasil. Embora os relatórios do Brasil sem Miséria
não tragam qualquer referencia a implantação de politicas de inclusão produtiva através da
cultura. Pode -se extrair deste programa a visibilidade dos diversos regimes de desigualdade
e de diferenciação social articulados as dinâmicas culturais. Em contraste com a categorização
formal da pobreza e da miséria, os valores culturais podem ser pensados como uma esfera
passível de preencher uma incorporação legítima de diversas minorias sociais, configurando
um modelo que associa a diversidade cultural ao processo de reconhecimento e distribuição
de recursos de inserção social. Essa perspectiva está presente no projeto Brasil Criativo, na
visão de Claudia Leitão,“seja na produção de vivências ou de sobrevivências, a diversidade
cultural vem se tornando o “cimento” que criará e consolidará, ao longo desse século, uma
nova economia”. (Minc:2011:20).
Contudo, as afirmativas de Leitão permitem integrar o Plano Brasil Criativo numa
visão que naturaliza a relação entre economia e cultura. A afirmação de que a nova economia
cresce “graças a sociedade do conhecimento e das novas tecnologias” adota como pressuposto
que esta economia pautada na profusão de tecnologias de informação e de multimídia está ao
alcance de toda a sociedade. Pelos dados do IBGE, apenas 41% da população brasileira tem
acesso aos serviços de tecnologia digital ; já o plano Brasil sem Miséria revelou que 36% da
população está cadastrada em serviços de proteção social. O Plano Brasil Criativo “não
propõe quantificar e qualificar a economia da cultura” por que ele aposta na convicção
essencial de que “economia é cultura”.(MINC:2011:20).
Segundo Claudia Leitão, um país sem miséria só pode ser construído a partir da
inserção da diversidade cultural como recurso essencial para a formulação de politicas
públicas.(MINC:2011:20).

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Contudo, o processo decisório de trazer as competências e expectativas do tecido
social para a os marcos de regulação politica, exige o conhecimento da realidade que se busca
interferir. Quem são os atores e recursos que preenchem a categoria diversidade cultural
brasileira? Que conteúdos culturais, territoriais e simbólicos a compõe? A que valores sociais
e econômicos eles apontam? e qual o seu lugar na hierarquia entre as categorias culturais e
classes sociais no mercado de bens simbólicos e nas relações cotidianas? Na medida em que
miséria implica em classe e vivencia da pobreza e diversidade implica não apenas em um
sistema simbólico generalizante, mas em experiências vividas no corpo pela cor da pele, pela
violência e pela própria psique humana, como integrar essas perspectivas simbólicas e
econômicas na relação entre classe e cultura? Como transformar esses elementos em
indicadores de politicas públicas culturais? A perspectiva cultural inevitavelmente requer o
uso de métodos qualitativos. Tal abordagem implica uma incursão na vida cotidiana através
de levantamentos etnográficos estórias de vida, entrevistas, debates e narrativas existenciais
trazendo para o conjunto de indicadores os elementos auto-reflexivos dos próprios grupos
que se quer atingir. (ARZATE :2007) Qual seria a dimensão vivencial da pobreza para os
grupos quilombolas, indígenas e tradicionais?
A proposta de um alinhamento das politicas culturais com um modelo de
desenvolvimento que se pauta pelo equilíbrio entre crescimento econômico e politicas sociais,
envolve processos decisórios acerca de instrumentos que possam e sistematizar informações
concretas sobre as atividades econômicas relacionadas a cultura ou seja as atividades que se
adequam as demandas do capital. Contraditoriamente as diretrizes governamentais, a
contribuição do Brasil Criativo e do PRONATEC, adviria, exatamente, da sua perspectiva
qualitativa, no reconhecimento social dos valores que permeiam os diferentes modos de vida.
O Brasil criativo traria como indicador o processo que Paugam designou como de
desqualificação social. Segundo o qual, a dinâmica econômica não está associada a carência
de renda, mas à identidades subalternizadas marcadas pelo status de inferioridade, que muitas
vezes é reforçado pelos programas de proteção social a elas dirigidos.
Ao contrário da perspectiva naturalista defendida pelo Minc de que “economia é
cultura”, a legitimidade da cultura nesta agenda, ainda depende dos dispositivos que permitem
antecipar uma interpretação de seus ativos simbólicos em termos econômicos. Resta a
diversidade cultural subsidiar com ativos econômicos a construção da politica sob o risco de
não alcançar a legitimidade necessária ao seu alinhamento ao Programa de governo. Em
outras palavras, neste modelo, os arranjos institucionais de impacto no setor cultural

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dependem das informações que quantifiquem a escala de participação da cultura como ativo
de empregabilidade e geração de renda. Com este objetivo, o Ministério da Cultura realizou
uma parceria com o IBGE para a construção de uma conta satélite da cultura.

A aplicação do conceito de diversidade cultural no Brasil sem miséria


A implementação do sistema de busca ativa demonstrou o equacionamento da
dimensão simbólica e institucional da ideia de igualdade, pobreza e diferença. O Ministério de
Desenvolvimento Social realizou um plano de trabalho para classificação e identificação dos
Grupos Populacionais Tradicionais Específicos afetados pela pobreza. São considerados
GPTE: Índigenas, Quilombolas, ciganos, extrativistas, pescadores artesanais, comunidades de
terreiro, ribeirinhas, assentados da reforma agrária e moradores de rua. O diagnóstico das
caracterizações sócio culturais das populações atendidas resulta de uma estratégia de
cadastramento diferenciado, que envolveu ao lado da construção de um sistema de entrada de
dados, um trabalho específico de identificação e contato direto com os grupos. Com este
trabalho foram acrescentados nesta categoria 1, 26 milhões de famílias (BRASIL:MDS:2014).
Resta considerar de que forma este público seus valores e perspectivas podem ser
incorporados às iniciativas politicas que justifiquem também uma reconstrução social de suas
categorizações culturais.
O relatório do BSM visibilizou a importância da esfera cultural na compreensão da
forma pela qual, dinâmicas simbólicas, diferenças culturais e econômicas se interpenetram na
reprodução como na correção da violência e da desigualdade.
Na perspectiva desenvolvimentista revelada pelo Brasil sem Miséria, a pobreza e a
desigualdade inscrevem uma complexidade de distinções de corte étnico, cultural, de gênero,
sexualidade, faixa etária, estilos de vida, religião, classe social e de território que foram
classificadas por um sistema único e alinhadas a esfera pública do Estado. O aprofundamento
desta perspectiva permite minimizar os efeitos de uma politica de “gestão estratégica da
pobreza” e de caráter compensatório do processo de exclusão e vulnerabilidade social.
O cadastro do busca ativa introduziu instrumentos que permitem ao Estado instituir
politicas através de uma abordagem dos diversos regimes de entrelaçamento entre as
categorias sociais e as classes, entre as dinâmicas locais e regionais, e particularmente as
confluências entre processos identitários e os diferentes recursos de estratificação social.
Contudo, ainda são instrumentos técnicos de mensuração da relação diversidade e
desigualdade. O PBSM implementou mecanismos de coordenação federal, a partir da qual o

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Estado adquire condições sistêmicas de atingir os diferentes territórios nacionais através da
busca da uniformização dos serviços públicos. Se o Programa PBSM buscou uniformizar
direitos sociais, educacionais, culturais e básicos como acesso a água e luz e aos programas de
transferência de renda como PBF e o Bolsa Verde. O Brasil Criativo pode traduzir as
classificações e as potencialidades dinâmicas de diferenciação cultural, em extensão dos
direitos culturais e de inclusão produtiva. Tais diferenciações são pensadas no quadro
conceitual do Brasil Criativo como insumos, cimento da diversidade cultural. As
comunidades culturais ganham força como públicos específicos de políticas em contraste com
modelos generalizantes voltados para população carente ou aos cidadãos brasileiros.
Neste sentido, no Brasil Criativo, a miséria e a ausência do letramento, contrasta com
a uma rica herança cultural e linguística, seja dos escravos alforriados, dos povos de terreiros,
extrativistas, ciganos e populações tradicionais cujo enraizamento cultural é considerado
como ativo simbólico e econômico para possíveis APLs (Arranjos produtivos locais).
No entanto, é necessário uma pesquisa empírica de avaliação das condições
municipais, dos instrumentos legais e normativos de implementação desse modelo de politica.
Muitos municípios não dispõe de secretarias apropriadas, infraestrutura digital ou de um
quadro profissional para gestão de sistemas de informação e coleta de dados e
disponibilidade de contrapartida orçamentária. ( LAVINAS:2002).

Diversidade cultural: Brasil Criativo e o Brasil sem Miséria


O PBSM e o Plano Brasil Criativo permitem estruturar os pilares de uma politica de
longo alcance na direção da maior representatividade da complexidade social e cultural
brasileira. Tal representatividade deve superar o imperativo da diversidade cultural e permitir
dinâmicas de convivência social como uma relação social diferenciada em que o
reconhecimento de culturas, perspectivas sociais, articulações teórico-cognitivas, discursivas e
posicionamentos estruturais estejam ancorados em politicas específicas que assegurem a
legitimidade de grupos minoritários (YOUNG:1990). A desigualdade entre os grupos
identitários deveria ser tratada não apenas em sua dinâmica histórica e cultural, que se
mantém desde os tempos coloniais, mas a partir de posicionamentos estruturais. Os marcos
orientação destas politicas, não seriam as identidades culturais essencializadas em programas
de desenvolvimento. Mesmo porque, do ponto de vista econômico, politico e cultural as
populações tradicionais ou afrodescendentes, quilombolas, ribeirinhas ou indígenas são
heterogenias internamente e podem ser agrupadas por lógicas de pertencimento ou de

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descendência. O reconhecimento da heterogeneidade interna aos grupos permite uma
interpretação não determinista da relação entre identidade pessoal, práticas culturais,
instituições e economia (HONNETH:1994). Não existe uma dependência orgânica do
individuo em relação ao grupo, as relações de reconhecimento e auto pertencimento, são
reflexivamente e discursivamente construídas, portanto passíveis de uma revisão.
O PBSM esta pautado no desafio de combinar politicas seletivas e universais, no
sentido de colocar o Estado ao alcance da população marginalizada e ao mesmo tempo
fortalecer o exercício dos direitos sociais, culturais e políticos das minorias. Neste quadro
conceitual, somente as politicas de ordem compensatória influenciam na dinâmica material e
legal de implementação dos direitos de participação e deliberação culturais e sobretudo
politicas.
No entanto a transferência de recursos deve estar acompanhada de uma representação
decisória especifica, cuja diferença se dá também no nível da capacidade técnica, econômica,
discursiva e simbólica, no sentido de garantir o acesso igual ao exercício do direito de
participação. A implantação do PBSM prevê a perspectiva de uma gestão partilhada entre os
entes federativos associada a implantação do Sistema único da assistência social- o SUAS-
com mecanismos de participação da sociedade civil. Este também é o caso das politicas
públicas de Cultura, através da implantação do Sistema Nacional de Cultura que prevê a
transferência de recursos condicionada a participação e representação da sociedade civil.
A referência conceitual dos sistemas nacionais permite pensar uma dinâmica de
coordenação politica inovadora entre as minorias, a distribuição dos recursos e a participação
social. No entanto, em regimes compensatórios de desigualdade, incorre-se no risco de
condicionar as políticas ao público alvo. Estudos sobre a relação entre políticas públicas,
etnicidade, raça, gênero e classe tem chamado atenção para os riscos de minimizar a
desigualdade entre classes sociais e de naturalizar a relação entre diferenças e classes.
(COSTA:2012)(FRASER:2001). É o caso, por exemplo, do atendimento específico através
de CRAS- Centro de Referência e Assistência Social- aos quilombolas e indígenas e
mulheres, confirmando uma relação entre identidade e assistencialismo. O mesmo se dá em
relação ao beneficio do PBF (Programa Bolsa Família), que associa, a identidade feminina a
função da maternidade e da reprodução da família. O beneficio bolsa família proíbe a mulher
de ingressar no mercado formal de trabalho.
Os debates sobre a relação entre politicas que focalizam diversidade cultural,
estratificação e classes ainda são recentes entre nós, conquistas constitucionais e jurídicas

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V V
acopladas as politicas de ação afirmativa necessitam de uma escala temporal para uma
avaliação de seus resultados na estrutura da desigualdade. Contudo, os preconceitos e a lógica
de convivência social intercultural não acabam a partir de implementação de
constrangimentos legais.
As diferenciações de classe e a discriminação não são visibilizadas no campo das
práticas culturais, muito pelo contrário, nas rodas de samba e capoeira, nas festas tradicionais,
na culinária, no hip-hop, na apreciação e no consumo da arte de rua e popular e no laser, as
classes se misturam e se assimilam em igualdade. No entanto, o mesmo não se dá nos índices
de distribuição de renda no acesso ao exercício dos direitos de educação, moradia, assistência
jurídica bem como de representação política como prova a exclusão social do público do
Brasil sem Miséria.
Os regimes de convivência social, jurídica e cultural coexistem com os padrões
diferenciados de estruturas de assimilação e de exclusão ao bem estar social. A consolidação
de politicas públicas orientadas apenas pela ascendência cultural, coloca em risco os padrões
universais da democracia, na medida em que não alteram tais estruturas de exclusão e
assimilação. O Brasil sem Miséria contribui para desconstruir uma visão única da pobreza e
avança no reconhecimento de sua dinâmica sócio cultural. No entanto, o reforço a
racionalidade econômica pautada no imperativo da integração ao mercado seja como
consumidor ou empreendedor, deixa na sombra a correção dos regimes diferenciados das
desigualdades estruturais.

Cultura como politica, mercado e inclusão


O debate entre os especialistas em educação sobre o PRONATEC tem chamado
atenção para a questão central : de que qualidade se pretende para o ensino médio, na
perspectiva daqueles que vivem sobre o impacto da vulnerabilidade econômica?
(KUENZER:2007)
Segundo a OIT –(Organização Internacional do Trabalho), os jovens classificados
como NETT (not in employment, education and training) já alcançam 1 em cada 6 em toda a
Europa. O trabalho, ou melhor, a condição salarial (CASTEL: 1998) deixou de ser o lócus da
identidade e integração do individuo à sociedade. Portanto, a inclusão social se articula ao
tema das novas formas de administração de uma sociedade não mais salarial, industrial
padronizada, cada vez mais heterogênea e profundamente estratificada. Conforme informação
do Portal do Programa Rio sem Miséria, jovens e adultos entre 22 e 49 anos atingem 36% da

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V V
população atendida no Rio de Janeiro. Os dados de faixa etária da população atendida pelo
programa no Brasil entre 19 e 59 anos é de 42%, indicador da alta vulnerabilidade da PEA (
População economicamente ativa) no país.
Tendo em vista uma faixa etária tão jovem que tipo de pedagogia e de formação educacional
poderia incorporar a proposta neodesenvolmentista de articular competências, habilidades,
práticas e saberes populares, formas culturais com inclusão produtiva social? Qual a
contribuição social do saber prático enquanto valor?
A literatura pedagógica tem ressaltado que a separação entre o trabalho prático e o
trabalho intelectual reflete não apenas a divisão social do trabalho numa sociedade de classes,
mas o disciplinamento do corpo para atividade produtiva. Por outro lado, no modelo de
acumulação flexível a certificação apressada de cursos emergenciais focados na
empregabilidade precária, arrisca configurar o quadro conceituado como de exclusão
includente (KUENZER:2007). Através de uma pedagogia das competências é possível
oferecer justificativas para modalidades aparentes de inclusão ou exclusão produtiva.
A evasão dos alunos do PRONATEC, coloca a questão concreta de que a relação entre
competência, habilidades, vocações e inserção produtiva não é instantânea. Entre a vocação e
a inserção social opera um processo de disciplinarização e de asujeitamento ao compromisso
do desempenho profissional, que inclui dinâmicas subjetivas, culturais e psicológicas. Na
outra ponta, os profissionais selecionados para atuar no PRONATEC não estabelecem com o
programa “ vínculos empregatícios e os valores são recebidos a título de bolsa” ( Lei 12.513
art.9 § 3º).
Se por um lado, o Brasil sem Miséria é um plano de governo, o Projeto de Lei do
PRONATEC apresentado pela Presidência da República teve ampla aprovação no Congresso
e foi instituído em poucos meses, esse marco legal significa a garantia de recursos políticos
para a sua implementação e sua legitimidade como questão de Estado e não só de governo.
Os cursos na área de cultura não duram mais do que 3 meses, acresce-se a isso, a
ausência de um debate com os especialistas da área cultural e com os movimentos de cultura,
acerca de um currículo apropriado para cada setor. O saber prático relegou as classes
trabalhadoras as posições inferiores e aos baixos salários frente a atividade intelectual e a
produção de conhecimento cientifico, restrita em sua maioria, as escolas de elites que hoje
compõe a economia do conhecimento. O PRONATEC cultura é uma iniciativa que
fortalece a eficácia simbólica dos direitos e da inserção social na construção de uma sociedade
igualitária e democrática que busca a valorização das diferentes cadeias produtivas da cultura.

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V V
Ao incorporar determinadas práticas culturais aos padrões de profissionalização e inclusão
produtiva de grupos específicos, o programa pode contribuir para desconstruir padrões de
hierarquização de valores e atributos que dominam o campo simbólico cultural. Tais
hierarquias perpetuam posições desiguais, constroem visões negativas e inferiorizadas de si e
reduzem as oportunidades de acesso aos recursos que sustentam os padrões da inclusão
produtiva relegando as minorias a proteção social. Acresce-se o fato jurídico fundamental de
que, ao chancelar práticas culturais como um campo profissional, o Pronatec abre a
possibilidade de acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários.
A crescente automação do processo produtivo reduziu a necessidade do trabalho como
envolvimento físico do trabalhador. Destituído da sua materialidade fundada no corpo físico
do trabalhador, este também foi emancipado das condições mecânicas que limitavam o
desenvolvimento criativo e intelectual.
Na visão dos pensadores do capitalismo cognitivo (CORSANI, LAZZARATO e
NEGRI:1996) a qualificação deste trabalhador deve resultar de uma síntese entre saber e
fazer, o que significa unir o saber prático aos laboratórios, bibliotecas, equipamentos
tecnológicos e de infraestrutura digital. De um lado, o capital passa a requisitar as
competências e habilidades externas ao processo produtivo já capturado pelas tecnologias de
informação. De outro, chancela cadeias produtivas globais fundadas, cada vez mais, na
exploração do trabalho, desde as grandes marcas de moda até as peças de artesanato indígenas
e africanas vendidas em lojas de luxo pelo mundo.
Um duplo desafio foi colocado ao paradigma produtivista no que diz respeito a
ampliação dos espaços de poder e dominação para a esfera simbólica do discurso, da
comunicação, da imaginação e da cultura, mas também para a expansão de uma racionalidade
técnica enfraquecendo a relativa autonomia entre as esferas culturais e econômicas.
As politicas culturais que atuavam na preservação da alta cultura passaram a abrigar
um debate sobre o direito das minorias e da legitimidade de seus valores culturais enquanto
força de desenvolvimento. A inclusão da cultura ou do saber prático enquanto matriz de
desenvolvimento contradiz todo sistema de pensamento que conduziu a modernização
ocidental na defesa do Estado Nação e da homogeneidade social. Na visão de Kymlika, a
defesa da odisseia multicultural é hoje central para o equilíbrio da sociedade globalizada, na
qual as culturas passam a sofrer um crescente enquadramento institucional legal. No entanto,
a expansão da diversidade cultural, convive com a crescente mobilização nos países europeus
por legislações discriminatórias as minorias.

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V V
A defesa dos direitos culturais inscreve a tensão entre a lógica de assimilação e de exclusão as
estruturas do poder. Na medida em que as diferenças culturais foram histórica e
discursivamente construídas, a desconstrução simbólica e discursiva acerca das diferenças
abre a oportunidade de um debate sobre a desigualdade econômica a luz da diversidade
cultural. Provoca-se assim, um diálogo entre o Brasil Criativo e o Brasil sem Miséria e a
possibilidade de ampliar o papel das culturas na agenda política.

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1409

V V
DIRETRIZES PARA UM PLANO SETORIAL DE PATRIMÔNIO
NA POLÍTICA DE CULTURA DE PERNAMBUCO
Terezinha de Jesus Pereira da Silva 1
Marcos Germano dos Santos Silva 2
Augusto Eugenio Paashaus Neto3

RESUMO: As cobranças por ações nos edifícios dos patrimônios tombados em Pernambuco
são matérias frequentes nos meios de comunicação. Considerando tais questões o artigo tem
como objetivo elaborar reflexões teóricas para a formulação de um plano de patrimônio
estadual. Como metodologia de abordagem foi realizada uma pesquisa exploratória sobre o
surgimento dos planos de patrimônio em PE.,as diretrizes de planejamento do Ministério de
Cultura, outros referenciais das ações da Fundarpe, do IPHAN-5ª Regional-PE e de algumas
prefeituras. Como resultado se constata que: o Estado, via Fundarpe, carece desenvolver o
Estudo Preliminar de Patrimônio, divulgado na 3ª Semana de Cultura em 2013, para viabilizar
sua política de cultura dentro de uma visão participativa das prefeituras dos municípios e da
sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Gestão do Patrimônio, Pernambuco, Plano de Patrimônio, Política de


cultura.

1 INTRODUÇÃO
O planejamento voltado para a preservação dos bens históricos, tombados ou a serem
tombados em Pernambuco possui registros através do Plano de Preservação dos Sítios
Históricos – PPSH- 1978, produzido pela Fundação de Desenvolvimento da Região
Metropolitana do Recife – FIDEM; do PPSHI - Plano de Preservação dos Sítios Históricos do
Interior – 1982, elaborado pela Fundação de Desenvolvimento Municipal do Interior de
Pernambuco - FIAM; do Plano de Preservação de Olinda para o título de Patrimônio Cultural
da Humanidade, 1982; do IPAC/PE. O Sertão do São Francisco – 1983, Inventário de
Proteção do Acervo Cultural do Estado de Pernambuco - Fundarpe e do Estudo Preliminar do
Plano de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco - 2013, apresentado na 3ª
Conferência Estadual de Cultura, Gravatá, entre outros.
Os documentos produzidos possuem um conjunto de informações técnicas
indiscutíveis, porém é alvo de críticas, pois refletem mais os valores teóricos dos técnicos de
tais entidades, sem ter a participação e divulgação para a comunidade dos municípios. A falta
1
Arquiteta, Profa. Doutora, Depto. de Arquitetura e Urbanismo - UFPE, terezinha_psilva@hotmail.com
2
Arquiteto, Secretário de Planejamento do Cabo de Santo Agostinho - admarquitetos@gmail.com.br
3
Advogado, Diretoria de Preservação Cultural – Fundarpe-augustopaashaus.adv@gmail.com

1410

V V
de conhecimento e valorização de tais planos pela comunidade tem se mostrado pouco eficaz,
pois a população “não se envolve nem contribui para a sua proteção” ( Ramos, 2006, p.289).
Assim o plano enquanto instrumento de uma política pública não se consolida, pois não é
apropriado pela sociedade. Considerando tais questões o artigo fixou como objetivo elaborar
reflexões teóricas para a montagem de um Plano Setorial de Patrimônio Estadual.
Para desenvolvimento do tema e seu objetivo foram selecionados como estruturação
do artigo os seguintes tópicos: conceituação dos termos; localização da área de estudo e
contexto dos planos de patrimônio de PE; as legislações para o plano setorial de cultura para o
patrimônio; conclusões e as referências.

2 CONCEITUAÇÃO DOS TERMOS


Para um melhor entendimento do tema foram selecionados os seguintes conceitos:
Sistema Nacional de Cultura, Política Nacional de Cultura, Plano de Cultura, Plano Estadual
de Cultura, Plano Municipal de Cultura, Plano Setorial de Patrimônio, Política Pública,
Política de Cultura e Patrimônio Cultural.
O Sistema Nacional de Cultura representa o atual modelo que se propõe integrar a
sociedade civil, as esferas Federal, Estadual, Municipal e do Distrito Federal, referenciados
pelos seus respectivos Sistemas de Cultura, bem como amparados pelas bases legais e
procedimentos pactuados das Conferências de Cultura, para uma gestão compartilhada do
Sistema (PNC, 2011, p.21).
O termo Política Nacional de Cultura-PNC representa os compromissos do Governo
Federal e da sociedade frente aos bens do patrimônio cultural brasileiro (materiais e
imateriais): protegendo,valorizando, apoiando, divulgando, consolidando, integrando com
outras políticas públicas e acessíveis (PNC, 2011, p. 18/19). A PNC é estruturada sobre três
dimensões: simbólica (compreendendo diversas línguas, valores, crenças e práticas); cidadã
(incluindo os campos dos direitos culturais e humanos da CF/88) e econômica (participando
na geração de trabalho e riqueza) (PNC, 2011, p. 18/19).
O Plano de Cultura se constitui um “ instrumento de gestão de médio e longo prazo,
no qual o Poder Público assume a responsabilidade de implantar políticas culturais que
ultrapassem os limites de uma única gestão de governo”(PNC, Estruturação, p.48). A
formulação do Plano deve definir estratégias e metas, estabelecimento de prazos e recursos
necessários à sua implementação (PNC, Estruturação, p.48). Os Planos devem ocorrer nas três
esferas de Poder e considerar as diretrizes das respectivas Conferências de Cultura, aprovados

1411

V V
pelos órgãos gestores e Conselhos de Política de Cultura. Tais Planos devem ter sincronia
entre si e serem aprovados pelos “respectivos Poderes Legislativos (Congresso Nacional,
Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores), a fim de que, transformados em leis,
adquiram a estabilidade de políticas de Estado” (PNC, Estruturação, p.48).
O Plano Estadual de Cultura representa um instrumento de “planejamento estratégico,
de duração decenal, que organiza, regula e norteia a execução da Política Estadual de Cultura”
(PN. Guia estadual, 2011, p. 43). A formulação do Plano deve responder as perguntas: Como
estamos? Aonde chegar? Como fazer? Com quanto? e Quando fazer? Além destas perguntas-
chave se faz necessário considerar as deliberações das Conferências de Cultura. A aprovação
do Plano passa ainda pelo Conselho Estadual de Política Cultural, Assembleia Legislativa e
ao final, transforma-se em Lei, sancionada pelo governador do estado (PNC, Guia estadual,
2011, p. 44).
O termo Plano Municipal de Cultura, semelhantemente ao Plano Estadual, representa
um instrumento de “planejamento estratégico, de duração decenal, que organiza, regula e
norteia a execução da Política Municipal de Cultura”(PNC, Guia municipal, 2011, p. 44). A
formulação do Plano também deve responder as perguntas: Como estamos? Aonde chegar?
Como fazer? Com quanto? e Quando fazer? Além destas perguntas-chave se faz necessário
considerar as deliberações das Conferências Municipais de Cultura, as diretrizes das Leis
Orgânicas dos municípios. A aprovação do Plano passa ainda pelo Conselho Municipal de
Política Cultural, Câmara dos Vereadores e ao final, transforma-se em Lei Municipal,
sancionada pelo Prefeito do Município (PNC, Guia Municipal, 2011, p. 45).
O termo Plano Setorial de Patrimônio esta associado a um desdobramento do Plano
Estadual de Cultura, dentro da abrangência de patrimônio material e imaterial dos bens dos
municípios e considerando as dimensões: simbólica, cidadã e econômica (PNC, 2011, p.44).
A política pública pode ser definida como um conjunto de programas, recursos, ações
e atividades desenvolvidas pelas três esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal)
garantidas à sociedade por meio da Carta Magna de 88 (Brasil, s/d.p.1). A constituição de
uma política pública deve ser fruto dos seguintes instrumentos: planejamento; execução;
monitoramento e avaliação, conectados a planos, programas, ações e atividades (Brasil,
s/d.p.1). A formulação de um plano deve fixar “diretrizes, prioridades e objetivos gerais a
serem alcançados em períodos relativamente longos” (Brasil, s/d.p.1). Já os programas
também definem “objetivos gerais e específicos focados em determinado tema, público,
conjunto institucional ou área geográfica” (Brasil, s/d.p.1). As ações “visam o alcance de

1412

V V
determinado objetivo estabelecido pelo Programa, e a atividade, por sua vez, visa dar
concretude à ação” (Brasil, s/d.p.1).
A política de cultura esta assegurada na Constituição de 88 através do Artigo 216-A
(EC nº 71/2012), por intermédio do Sistema Nacional de Cultura (Brasil, CF88, Art.216 A).
Enquanto em nível estadual pela Constituição de 1989, o Artigo 197 especifica a
responsabilidade do Estado em garantir a todos “a participação no processo social de cultura”.
A Carta Estadual cabe promover uma participação que leve em conta as particularidades
regionais e municipais, ou seja, realizar uma política pública de cultura interiorizada dentro
das especificidades locais.
O termo patrimônio cultural expressa “os múltiplos aspectos de uma cultura de uma
comunidade” (Fundarpe, 2009, p.8). Dentro de um conteúdo plural o patrimônio cultural
abrange os bens de uma herança coletiva e passam a ser importantes ou representativos para a
história e para a identidade de uma coletividade (Fundarpe, 2009, p.8). Tais bens abrangem
elementos materiais e imateriais e sofrem uma dinâmica ao longo do tempo, conforme o
surgimento dos valores e necessidades das diversas gerações.

3 LOCALIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO E CONTEXTO DOS PLANOS DE


PATRIMÔNIO DE PE
A identificação do território através da sua espacialização auxilia no entendimento das
relações de distâncias e vizinhanças entre os municípios que constituem o Estado.
Pernambuco possui como capital a cidade de Recife e fica situado na Região Nordeste do
Brasil, ver Figura 1. Os Planos de Patrimônio da área de estudo estão relacionados com os
185 Municípios e o Território de Fernando de Noronha, que compõem as doze Regiões de
Desenvolvimento – RDs, ver Figura 1.
Em Pernambuco o surgimento dos planos de patrimônio teve início com o Plano de
Preservação dos Sítios Históricos – PPSH- 1978, produzido pela Fundação de
Desenvolvimento da Região Metropolitana do Recife – FIDEM, ver Quadro 1. O PPSH
apresentou uma formulação de diversos documentos preparatórios desde 1976, onde
englobou: cartas patrimoniais (Amsterdam/75, Quito/67, Nairóbi/76, Unesco/69), leis,
inclusive o Decreto-Lei nº 25/37, Lei nº 5575/71 - criação do IEPHA/MG), experiências de
Salvador/68, Igarassu/PE, além de diversas referências nacionais e internacionais.

1413

V V
Figura 1-Localização de Pernambuco no Brasil e suas RDs

Trabalhado por Silva,T.

Fontes:Mapa do Brasil –http://colorir-desenho.com/mapa-do-brasil-para-colorir

Mapa RDs - www.bde.pe.gov.br

Apesar de figurar no PPSH como pertencendo a RMR, o município de Camaragibe só


passou a fazer parte da mesma com a Lei Estadual nº 10/94, que englobou: Abreu e Lima;
Cabo de Santo Agostinho; Camaragibe; Igarassu; Ipojuca; Ilha de Itamaracá; Itapissuma;
Jaboatão dos Guararapes; Moreno; Olinda; Paulista; Recife e São Lourenço da Mata. Com Lei
Estadual em 1995 o município de Araçoiaba passou a incorporar a RMR, ver Figura 2.
O Plano de Preservação de Olinda conseguiu se materializar por intermédio das
diretrizes da UNESCO (Convenção de Paris, 1972), Brasil-Decreto nº 80.978 , de 12 de
dezembro de 1977, Leis dos Planos Diretores nº26/2004 e Uso do Solo nº 5.631/2008, Projeto
Piloto de Olinda(Programa de Recuperação e Revitalização dos Núcleos Históricos do
IPHAN – 1980), a Rerratificação da Notificação/IPHAN nº 11.55/79, em 1985, a Lei nº
4.849/92 (Legislação para sítio Histórico), entre outras. Mesmo com as oscilações de gestão
para manutenção do título de Patrimônio da Humanidade o município vem conseguindo com
dificuldades ter um nível mínimo de preservação dos bens patrimoniais.
O PPSHI-Plano de Preservação dos Sítios Históricos do Interior /1982 complementou
parte do PPSH com a indicação de inventário de alguns bens materiais dos municípios do
litoral, seguindo eixos rodoviários da BR-101 e PE-60, além de bens de alguns municípios do

1414

V V
agreste nos sentidos noroeste e oeste das rodovias, ver Figura3. Semelhantemente ao PPSH o
Plano funcionou mais como referencial de inventário, ou seja, sem uma transformação em lei
e recursos específicos.
Quadro 1- Histórico dos Planos de Preservação de Pernambuco
Ano Título Municípios Responsável
1978 PPSH- Plano de 1Cabo de Santo Agostinho 2Camaragibe FIDEM
Preservação dos Sítios 3Igarassu 4Itamaracá
Históricos da Região 5Jaboatão dos Guararapes 6Moreno
Metropolitana do Recife 7Olinda 8Paulista
1
9Recife 10São Lourenço da Mata
1982 PPSHI-Plano de 1Barreiros 2Bezerros FIAM
Preservação dos Sítios 3Bom Jardim 4Brejo da Madre de Deus
Históricos do Interior2 5Carpina 6Caruaru
7Goiana 8Gravatá
9Ipojuca 10João Alfredo
11Limoeiro 12Nazaré da Mata
13Paudalho 14Pombos
15Rio Formoso 16Salgadinho
17Santa Maria do Cambucá 18São José da Coroa Grande
19Sirinhaém 20Surubim
21Taquaritinga do Norte 22Toritama
23Tracunhém 24Vertentes
25Vitória de Santo Antão
1979/ Plano de Preservação Olinda – Prefeitura e
1982 para Olinda – Título Fundação
Patrimônio Cultural da Centro de
Humanidade3 Preservação
dos Sítios
Históricos de
Olinda
1983 Inventário de Proteção 1Afrânio 2 Belém de São Francisco Fundarpe -
do Acervo Cultural do 3 Cabrobó 4 Floresta DPCult
Estado de Pernambuco - 5Itacuruba 6 Orocó
IPAC /PE .O Sertão do 7 Petrolândia 8 Petrolina
São Francisco 9 Santa Maria da Boa Vista 10 Tacaratu
1997 Plano do Bairro do Recife – bairro do Recife Prefeitura do
Recife – Lei No Recife
16.290/97
1970 PHNG-Plano Parque Jaboatão dos Guararapes IPHAN
Histórico Nacional dos Prefeitura
Guararapes UFPE
2007/ Plano Pernambuco Ações nos municípios representantes das 12 RDs Fundarpe
2014 Nação Cultural
2013 Estudo Preliminar do Todos os municípios das 12 RDs Secretaria de
Plano de Preservação do Cultura de PE.
Patrimônio Cultural de Fundarpe -
Pernambuco DPCult
Fontes: 1 – PPSH/1978; 2-PPSHI/1982;3- Olinda em Títulos;

O Plano do bairro do Recife conseguiu ter um caráter legal e mesmo com a


descontinuidade das gestões municipais, vem tendo uma atualização com novas intervenções
da municipalidade e do governo estadual.
O Plano Parque Histórico Nacional dos Guararapes –PPHNG também tem sofrido
com falta de gestão e recursos financeiros e humanos. A cada dia que se passa tem sua área de

1415

V V
invasão ampliada e consequentemente com danos aos bens históricos e paisagísticos. Apesar
dos diversos trabalhos de reestudo do plano o mesmo ainda não se efetivou.
Figura 2 – Municípios da RMR

Fonte: http://www.baixarmapas.com.br/mapa-da-regiao-metropolitana-de-recife-rmr/

Figura 3- Localização dos Municípios do PPSHI 1982

Fonte:PPSHI,1982,p.13.

O Plano de Gestão: Pernambuco Nação Cultural procurou formular uma proposta que
retomou os planos já desenvolvidos dentro de uma construção de Política Pública de Cultura –
PPC, numa visão conjunta das RDs e com participação das comunidades, para elaboração de
Planos Regionais e Setoriais, ver Figura 4. Produziu um grande acervo de indicadores
culturais, porém não conseguindo viabilizar um plano com amparo legal, bem como com os
demais instrumentos de recursos humanos e financeiros.

1416

V V
O Quadro 1 demonstra que decorridos mais de 30 anos os planos de proteção
elaborados não resultaram em instrumentos com força de lei, a exceção dos municípios de
Olinda , Jaboatão dos Guararapes e Recife . Para alguns dos municípios o fato de serem
citados nos Planos gerou influências apenas nas Leis dos Planos Diretores e do Uso do Solo,
que incluíram zonas de preservação municipal institucionalizada através de leis. Outra
contribuição foi a sinalização de alguns bens e sítios com interesse histórico e cultural.
Os planos PPSH e PPSHI foram realizados tendo como bases os valores dos técnicos,
sem levar em conta as atuais ênfases de participação das comunidades. De quatorze
municípios da RMR apenas três possuem planos institucionalizados por meio de leis e
carecendo de atualizações. Considerando os municípios citados com planos
institucionalizados (Olinda , Jaboatão dos Guararapes e Recife) os mesmos representam
apenas um percentual de 1,6% dos 185.
Figura 4- Localização das RDs e Municípios do PPNC 2007/14

Fonte: Calábria,2007,p11.

O IPHAN propôs, em 2004, Termo de Referência para criação de Plano de


Preservação de Sítio Histórico Urbano - PPSH para bens tombados em nível federal (IPHAN,
Portaria nº 299,2004), porém suas diretrizes metodológicas permitem relações com
abordagens para definições de planos para planos nos níveis municipal e estadual. Conforme
Artigo 5º da referida Portaria o PPSH tem por objetivo:

1417

V V
a) preservar o patrimônio cultural da cidade para a sua população e para a
coletividade;
b) propiciar o estabelecimento de diretrizes e regulamentos para orientação,
planejamento e fomento das ações de preservação de sítios históricos
urbanos;
c) promover uma atuação pública concertada;
d) integrar ações propostas com vistas a alcançar um processo de
preservação urbana;
e) focalizar e territorializar políticas setoriais nos sítios históricos urbanos;
f) promover o compartilhamento de responsabilidades entre os diversos
agentes públicos envolvidos e a sua aplicação comum. (IPHAN, Portaria nº
299,2004)

Ainda conforme o Artigo 6º, da Portaria nº 299/2004, as etapas do PPSH podem ter as
dimensões: normativa, estratégico-operacional e avaliadora.

a) dimensão normativa, compreendendo o regulamento de ordenação


urbanística e de preservação do sítio histórico urbano;
b) dimensão estratégico-operacional, correspondendo ao programa de
atuação para o sítio histórico urbano;
c) dimensão avaliadora, correspondendo ao sistema de avaliação do PPSH.
(IPHAN, Portaria nº 299,2004)

Segundo o Artigo 9º da referida Portaria em cada proposta deve haver uma Comissão
Gestora para desenvolvimento do PPSH, caso não exista.
Os instrumentos de análise e pesquisa deverão seguir as metodologias do IPHAN
(Portaria nº 299, Artigo 11), com aspectos que abordem sobre o sítio histórico urbano; sua
dinâmica e tendências de desenvolvimento (Portaria nº 299, Artigo 12).
Segundo o Artigo 16 da referida Portaria os produtos do PPSH deverão resultar:

a) no estabelecimento de regulamentos e normas que garantam a preservação


do patrimônio cultural, dentro de uma perspectiva histórica e urbanística;
b) no aprimoramento da gestão urbana do sítio histórico;
c) na adequação do uso das áreas às possibilidades definidas pelas
características arquitetônicas e urbanísticas associadas ao valor patrimonial
do sítio;
d) na compatibilização das tendências de transformação do uso do solo à
preservação das características arquitetônicas do sítio;
e) no fomento a atividades socioeconômicas e culturais dinamizadas do sítio;
f) na melhoria da qualidade ambiental;
g) na fruição por seus usuários do valor patrimonial do sítio;
h) na correção de carências urbanas;
i) na correção de carências de infraestrutura e serviços urbanos; e
j) na melhoria dos aspectos funcionais urbanos do sítio histórico. (IPHAN,
Portaria nº 299,2004)

Como estruturação para concepção dos Planos Estadual e Municipal de Cultura existe
a recomendação para que os mesmos contenham:

1418

V V
I - diagnóstico do desenvolvimento da cultura;
II - diretrizes e prioridades;
III - objetivos gerais e específicos;
IV- estratégias, metas e ações;
V - prazos de execução;
VI - resultados e impactos esperados;
VI I- recursos materiais, humanos e financeiros disponíveis e necessários;
VIII - mecanismos e fontes de financiamento; e
IX - indicadores de monitoramento e avaliação (PNC – Guia aos
Municípios, 2011,p.44).

Da estruturação recomendada, verifica-se uma excelente concepção teórica, porém


fora da realidade dos estados e principalmente da maioria dos municípios, pois os pontos mais
críticos para viabilizar tais planos residem no item “VII – recursos materiais, humanos e
financeiros disponíveis e necessários” (PNC – Guia aos Municípios, 2011, p.44). Observa-se
ainda que o êxito para as ações nestes passa pela sintonia com as diretrizes do PNC, do Plano
Estadual de Cultura, bem como das demais estruturas de apoio dos Conselhos de Cultura, das
Conferências de Cultura , das políticas públicas de diversos setores e da falta de continuidade
das gestões municipais e estaduais.

4 AS LEGISLAÇÕES PARA UM PLANO SETORIAL DE CULTURA PARA O


PATRIMÔNIO
A formulação de um plano de cultura, municipal ou estadual, passa pelo conhecimento
das legislações nas três esferas de Poder para saber as implicações hierárquicas destas sobre
os bens com salvaguardas já existentes ou a serem protegidos. O suporte legal deve ser feito
de modo a englobar medidas que permitam preservar a integridade dos bens. Os instrumentos
legais não são mágicos há ponto de inibir por completo danos aos patrimônios, mas
funcionam como elemento disciplinador e inibidor das ações inadequadas. Além dos
instrumentos legais, também é imprescindível a conscientização da comunidade e dos que
fazem os órgãos gestores.
A Constituição de 88 afirma no Art. 215 que o Estado assegurará a todas as pessoas: o
pleno exercício dos direitos culturais; o acesso às fontes de cultura nacional; além do apoio,
incentivo e valorização na difusão das manifestações culturais. No Parágrafo 3º, do respectivo
Artigo, define a criação de lei específica para o Plano Nacional de Cultura–PNC:
I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II - produção, promoção e difusão de bens culturais;
III -formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas
múltiplas dimensões;
IV- democratização do acesso aos bens de cultura;
V - valorização da diversidade étnica e regional (CONSTITUIÇÃO,1988).

1419

V V
Ainda na Lei Maior, o Artigo 216 coloca a abrangência do entendimento do
patrimônio cultural nacional quanto aos bens de natureza material e imaterial, considerando:
(EC nº42/2003)
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico,paleontológico, ecológico e científico (EC No 42,2003).

Outro ponto a ser destacado no Artigo 216 está na colocação do envolvimento da


comunidade nas ações de proteção como colaborador das atividades de: "inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação” (CONSTITUIÇÃO, 88).
O Artigo 216-A representa uma complementação para instruções ao Sistema Nacional
de Cultura que representa parte da política nacional de cultura. Conforme Parágrafo
1ºfundadamenta-se nas diretrizes do Plano Nacional de Cultura contem doze princípios entre
os quais podem ser destacados:
[...]
III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais;
[...]
V - integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas;
[...]
VII - transversalidade das políticas culturais;
VIII - autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil;
[...]
XI - descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações;
XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura (EC No 71,
2012).

O § 2º do Artigo do mesmo dispositivo define a estrutura do Sistema Nacional de


Cultura nas esferas nacional, estadual e municipal:
I - órgãos gestores da cultura;
II - conselhos de política cultural;
III - conferências de cultura;
IV - comissões intergestores;
V - planos de cultura;
VI - sistemas de financiamento à cultura;
VII - sistemas de informações e indicadores culturais;
VIII - programas de formação na área da cultura; e
IX - sistemas setoriais de cultura (EC No 71, 2012).
Já a Constituição de Pernambuco de 89 no Artigo 197, semelhantemente à
Constituição Federal / 88, afirma o dever do Estado de garantir a todos a participação nas

1420

V V
atividades culturais, além de dar ênfase a inclusão das pessoas com deficiência. O Estado
dispõe da Lei nº 7.970/79 e do Decreto No 6.239/80 que disciplinam o tombamento e demais
instrumentos, órgãos e estrutura de proteção. Apesar de o Estado ser um dos últimos a se
inscrever no PNC, o mesmo possui elementos como: a Secretaria Estadual de Cultura, o
Conselho de Cultura , a Fundarpe – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco, o Funcultura - Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura , a 5ª Regional do
Iphan - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e planos nas Prefeituras de
Recife, Jaboatão dos Guararapes e Olinda, porém carece de orçamento financeiro
proporcional às despesas com os bens do Estado e seus planos de patrimônio.
A Lei de Cultura nº 12.343/2010 instituiu o Plano Nacional de Cultura - PNC, bem
como criou o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC.O fato da
existência de tal legislação permite que se busque o amparo legal, bem como identificar as
relações com as políticas públicas de cultura , porém as competências das três esferas do
Poder Público não destinam os recursos dentro das proporções necessárias às atividades de
preservação.
A transversalidade do suporte legal para os planos deve incluir, além dos Planos
Diretores, Leis Orgânicas e Leis de Uso do Solo dos municípios, o Decreto nº 5.296 /2004, a
Instrução Normativa nº 1 do IPHAN, bem como a NBR ABNT 9050/2004 que tratam da
acessibilidade dentro de uma visão de desenho universal.

5 CONCLUSÕES
O desenvolvimento do tema que fixou como objetivo elaborar reflexões teóricas para a
formulação de um plano de patrimônio estadual foi alcançado através da análise dos planos
existentes, bem como discussão sobre as legislações e referenciais sobre referências para
planos de patrimônio.
Como observado nos planos levantados no Quadro 1( PPSH-1978;PPSHI-
1982;PHNG-1970- Jaboatão dos Guararapes;Plano de Preservação de Olinda-
1979/1982;IPAC/PE-1983;Plano do bairro do Recife-1997; PPNC-2007/2014 e Estudo
Preliminar -2013) , nos referenciais teóricos do IPHAN (Portaria nº 299/2004), nos guias para
os estados e municípios do Sistema Nacional de Cultura, bem com pela Constituição Federal
de 1988 e Lei de Cultura (No 12.343/2010) as diretrizes para formulação dos diversos níveis
de plano são bem completas, porém de difícil execução para as carentes estruturas da maioria
dos estados e municípios no país.

1421

V V
Como resultados se constatam que: o Estado carece de um plano que contemple todas
as áreas culturais; o Estudo Preliminar do Plano de Patrimônio Estadual divulgado na 3ª
Semana de Cultura em 2013, necessita ser desenvolvido para as fases de execução,
monitoramento e avaliação; a lógica de formulação de construção dos Planos Regionais
Participativos desenvolvidos pela Fundarpe está em sintonia com as diretrizes da Constituição
Federal de 88, da Lei de Cultura nº 12.343 /2010 e do Plano Nacional de Cultura. Percebe-se
ainda que tanto a Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe,
quanto à 5ª Regional do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN-PE
precisam interagir mais para estimular os Planos Setoriais e Regionais em Pernambuco, junto
às prefeituras.
Por fim, percebe-se que pelo histórico dos planos já esboçados falta mais do que um
instrumento no papel, falta uma gestão coletiva para vencer as barreiras da falta de recursos
financeiros e humanos.

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orienta%25C3%25A7%25C3%25B5es-para-os-Estados-SNC-Perguntas-e-Respostas-dezembro-de-
2012.pdf/dde2db14-f3bb-4cc3-8812-328895390e64. Acessado em:23 jan. 2015.

1423

V V
SISTEMAS NACIONAIS EM FORMAÇÃO:
SNC E SUAS EM PERSPECTIVA COMPARADA
Tony Gigliotti Bezerra1

RESUMO: O presente artigo trata de dois sistemas de políticas públicas em formação no


Brasil: o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). Aborda-se os pontos culminantes do processo histórico de institucionalização de
cada um dos sistemas e os modelos de relações federativas adotados. Utiliza-se o método
comparativo como forma de análise da temática. SUAS e SNC possuem métodos diferentes
para inserção de estados e municípios no sistema, o que impacta no papel político atribuído a
cada esfera de governo. O SUAS encontra-se em estágio mais avançado de desenvolvimento e
implementação, se comparado ao SNC, o que se reflete no aporte de recursos para o fundo e
no nível de capilaridade territorial.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema Nacional de Cultura, políticas culturais, Sistema Único de


Assistência Social, relações federativas, políticas públicas.

INTRODUÇÃO
Este artigo trata da formulação e desenvolvimento de dois sistemas nacionais de
políticas públicas: o Sistema Nacional de Cultura e o Sistema Único de Assistência Social.
Ambos foram inspirados no Sistema Único de Saúde, que se destaca como o maior sistema de
saúde pública do mundo e propõe um modelo de gestão compartilhada, descentralizada e
participativa.
Este trabalho visa apresentar, comparativamente, o processo de formulação e
desenvolvimento destes sistemas, abordando questões como as relações federativas e o
método de inserção de estados e municípios. O objetivo é levantar dados e informações que
permitam verificar as melhores práticas na gestão de sistemas nacionais, visando o
aprimoramento do SNC e do SUAS.
O texto está organizado da seguinte maneira: primeiramente é feita uma
contextualização teórica das temáticas concernentes aos sistemas: assistência social e política
cultural. Em seguida, é apresentada uma breve descrição sobre cada um dos sistemas,
abordando o histórico de criação e a metodologia de adesão ou habilitação dos entes

1
Especialista em gestão cultural pela UFBA, mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em
Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia e Analista-Técnico Administrativo do Ministério da
Cultura, lotado na Secretaria de Articulação Institucional. E-mail: tonygb2@hotmail.com

1424

V V
federativos ao sistema. Em seguida, expõe-se um quadro comparativo, que permite a
sistematização dos dados e a análise comparativa dos dois sistemas.
A coleta de dados para esta pesquisa se processou a partir da leitura dos textos da
bibliografia sobre políticas cultuais e assistência social; da consulta aos sites oficiais do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do Ministério da Cultura e de
entrevistas com profissionais da área de gestão do SNC e do SUAS. A partir dos dados
coletados, é feita uma compilação das informações relevantes para a pesquisa, permitindo a
elaboração de texto descritivo sobre cada um dos sistemas e, consequentemente, a análise
comparativa do SUAS e do SNC. Por fim, são apresentadas as conclusões sobre o processo de
criação dos sistemas e a necessidade de interlocução e intercâmbio de experiências na gestão
de sistemas nacionais.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA TEMÁTICA E REFERENCIAL TEÓRICO


As políticas culturais e a assistência social são áreas de relevante interesse público e
tem sido objeto da atuação estatal deste os primórdios da organização social. A política do
“pão e circo”, conduzida na Roma antiga, constitui uma das primeiras experiências, ainda que
distorcidas e motivadas por interesses personalistas de manutenção do poder. Na Inglaterra, a
política de assistência social encontra na Lei dos Pobres, ainda no século XIV, uma de suas
referências iniciais. (PEREIRA: 2008, p. 61)
É importante lembrar que, se, por um lado, a implantação de políticas sociais é objeto
de ferrenhas críticas dos liberais, por representar uma intervenção do Estado na economia, por
outro lado elas são funcionais à manutenção do próprio sistema capitalista, na medida que não
alteram, em sua essência, a estratificação da sociedade entre possuidores e desprovidos dos
meios de produção. As políticas sociais representam, em certa medida, concessões feitas pela
própria classe do dominante, nas ocasiões em que se encontra temerosa das revoltas sociais ou
movida pela moral elitista de caridade burguesa.
Sabe-se que o Welfare State com as suas políticas; seu aparato
institucional, suas justificações teóricas e ideológicas e seu acervo técnico-
profissional é parte integral do sistema capitalista. Isso quer dizer que ele,
como um complexo moderno de proteção social, ancorado nos conceitos de
seguridade e cidadania social, não surgiu, resgatando Fraser, como um
coelho da cartola de um mágico. Muito do que hoje se conhece do Welfare
State tem a ver com os rumos adotados pelo sistema capitalista, que deixou
de ser liberal, no anos 1940, por uma questão de sobrevivência, para ser
temporariamente regulado. (...) É por isso que autores como Gough (1982)
vêm o Welfare State como um fenômeno também contraditório, porque, ao
mesmo tempo em que atendem necessidades sociais, impondo limites às

1425

V V
livres forças do mercado, o faz preservando a integridade do sistema
capitalista. (PEREIRA, 2008, p. 87)

Não é por outro motivo que os países que sustentam um robusto Estado de Bem-estar,
como a Suécia, estão plenamente envolvidos no comércio internacional, conduzida nos
marcos da globalização capitalista. Exemplo disso é que a Volvo, multinacional sueca do
ramo automotivo, possui fábrica na Índia, onde é denunciada por manter os funcionários em
condições desumanas de trabalho e com baixíssimos salários, enfrentando, inclusive, longos
processos grevistas (JOSE, 2011). A riqueza do Estado sueco, das empresas suecas e dos
cidadãos suecos está diretamente relacionada com a miséria em que se encontram os
trabalhadores da sua fábrica na Índia. Trata-se de faces de uma mesma moeda.
No que se refere à política cultural, as contradições do mundo capitalista também estão
colocadas. Ao mesmo tempo em se propugna suposta neutralidade ideológica da política
cultural, refletida no combate ao dirigismo de outrora, acaba-se por reproduzir, nas seleções
de projetos culturais e financiamento, os mesmo padrões de competição e meritocracia
burguesa, que ignoram e dissimulam as desigualdades e injustiças previamente existentes na
sociedade.
In the academic social sciences, students are taught to think of
culture as representing the customs and mores of a society, including its
language, art, laws, and religion. Such a definition has a nice neutral sound
to it, but culture is anything but neutral. Much of what is thought to be our
common culture is the selective transmission of class-dominated values.
Antonio Gramsci understood this when he spoke of class hegemony, noting
that the state is only the “outer ditch behind which there [stands] a powerful
system of fortresses and earthworks,” a network of cultural values and
institutions not normally thought of as political.1 What we call “our culture”
is largely reflective of existing hegemonic arrangements within the social
order, strongly favoring some interests over others. (PARENTI, 1999)

É a partir desse referencial teórico que analisaremos o Sistema Único de Assistência


Social (SUAS) e o Sistema Nacional de Cultura (SNC). Frisa-se que estes sistemas de
políticas públicas não devem ser vistos de maneira isolada, mas intimamente imbricada com
as demais políticas públicas e com as relações entre Estado e Sociedade no atual estágio de
desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Apesar de sua importância, essas políticas têm sido tratadas como secundárias no
Brasil. A assistência social é vista como o “primo pobre” do tripé da seguridade social, que
também é composta de saúde e previdência social. A política cultural, por sua vez, muitas
vezes se mistura com a educação, sendo tratada de maneira secundária, devido às grandes

1426

V V
responsabilidades na área educacional. O esforço de constituir um sistema, neste sentido, está
relacionado com o intuito de afirmar-se como campo de política pública, de forma autônoma
frente às outras áreas.

SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL - SUAS


3.1) Histórico
O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é formado por um conjunto de
componentes que interagem no sentido de organizar as políticas de assistência social no
Brasil. Ele reúne os esforços dos três níveis de governo - União, estados, DF e municípios -
com o objetivo de dar organicidade às iniciativas no âmbito da assistência social. O SUAS
possui como marcos normativos maiores a Constituição Federal, de 1988 e a Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS), de 1993, revisada em 2011. A Carta Magna, em seu artigo 194,
insere a assistência social no capítulo que trata da seguridade social, juntamente com a saúde
e a previdência social. Propõe a universalização do acesso, o caráter não-contributivo e a
responsabilidade do Estado em prestar o serviço. Gera-se a expectativa de que a assistência
social deixe de depender do voluntarismo, efetivando-se como direito de cidadania. Embora o
SUAS não seja citado expressamente na Constituição, o artigo 204, ao apresentar como
diretrizes a descentralização político-administrativa e a participação da população, fornecem o
substrato normativo para sua estruturação. A LOAS foi aprovada pelo Congresso Nacional
em 1993, a partir de um importante processo de mobilização social. O artigo sexto aborda o
sistema.
Art. 6º As ações na área de assistência social são organizadas em
sistema descentralizado e participativo, constituído pelas entidades e
organizações de assistência social abrangidas por esta lei, que articule meios,
esforços e recursos, e por um conjunto de instâncias deliberativas compostas
pelos diversos setores envolvidos na área. (BRASIL, Lei 8.742, de 3 de
dezembro de 1993, 1993).

Em 1997 é editada a Norma Operacional Básica (NOB), que conceitua o sistema


descentralizado e participativo e regulamenta a exigência de conselho, plano e fundo de
assistência social para que o município possa receber recursos federais. Em 1998, é
apresentada nova edição da NOB, que dá caráter deliberativo às Comissões Intergestoras
Bipartite e Tripartite. AS CIBs e CIT são espaços de negociação e pactuação política, com
participação de gestores dos três níveis de governo. Em 2004 é criado o Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). No mesmo ano, é aprovada a Política
Nacional de Assistência Social, por resolução do Conselho Nacional de Assistência Social

1427

V V
(CNAS). É realizado um processo de discussão e debate que culmina na aprovação, em 14 de
julho, da NOB 2005, pelo CNAS, que cita expressamente o Sistema Único de Assistência
Social (SUAS). Após longo processo de debate, é aprovada em 2011, no Congresso, a nova
LOAS, que insere o SUAS no texto legal. Em 2012, é aprovada, à luz da LOAS 2011, a NOB
2012, com novas diretrizes para as relações federativas no âmbito do SUAS, que será
explicitado a seguir.

3.2) Relações federativas no sistema


O SUAS tem, como uma de suas características, a descentralização dos recursos para
estados e municípios, para que estes desenvolvam as políticas de assistência social. O repasse
de recursos é condicionado por uma série de controles burocráticos, que visam assegurar a
gestão adequada dos recursos e a participação da sociedade. Em princípio, os estados e
municípios não têm obrigação de aderir ao sistema, tendo em vista que possuem autonomia
política, administrativa, legislativa e financeira. Na prática, eles se veem sem outra opção,
haja vista que, no Brasil, a União arrecada aproximadamente 60% dos tributos, os Estados
aproximadamente 25% e os municípios apenas 15% (CNM, 2009, p. 4). Se um município não
realiza a adesão aos programas e sistemas federais e estaduais de descentralização de
recursos, sua população é castigada pela total precariedade das políticas públicas. Neste
sentido, apesar de ser apresentada como uma faculdade para o município, a adesão aos
sistemas é, antes disso, uma imposição do modelo federativo e tributário adotado no país. Isso
permite, por um lado, que a União tenha uma ampla capacidade para implantação de políticas
a nível nacional e, por outro, retira a faculdade dos municípios de formular autonomamente
suas políticas.
O sistema é estruturado de modo que os entes federativos criem os seus próprios
sistemas estaduais e municipais de assistência social. Para receber recursos do SUAS, por
meio do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), o município precisa comprovar a
existência dos componentes mínimos de um sistema municipal de assistência social, quais
sejam: conselho, plano e fundo. O conselho é a instância de articulação e deliberação, que
efetiva a participação social e deve ter paridade entre membros do poder público e da
sociedade civil. O plano é o instrumento de gestão que permite o planejamento das ações de
assistência social e as metas a serem atingidas. O fundo permite que o município receba o
repasse de recursos do governo federal de maneira sistemática e automática.
A NOB 2005 estabelece que o SUAS possua quatro tipos de gestão: dos municípios,
do Distrito Federal, dos estados e da União. No caso dos municípios, existem três níveis de

1428

V V
gestão: inicial, básica e plena, de acordo com o desenvolvimento dos requisitos de gestão da
política de assistência social e dos equipamentos disponíveis no município.
A tramitação da habilitação dos municípios é processada no âmbito estadual, por meio
da atuação Secretaria de Estado de Assistência Social e Comissão Intergestores Bipartite,
conforme exposto abaixo.
O processo de habilitação, nas condições de gestão estabelecidos
nesta NOB/SUAS, compreende as seguintes etapas:
a) preparação dos documentos comprobatórios de habilitação pelo
gestor municipal;
b) análise e deliberação dos documentos comprobatórios pelo
Conselho Municipal de Assistência Social;
c) encaminhamento dos documentos comprobatórios à Secretaria de
Estado de Assistência Social ou congênere;
d) avaliação pela Secretaria de Estado de Assistência Social ou
congênere do cumprimento das responsabilidades e requisitos pertinentes à
condição de gestão pleiteada;
e) elaboração de parecer técnico, pela Secretaria de Estado de
Assistência Social ou congênere, das condições técnicas e administrativas do
município para assumir a condição de gestão pleiteada;
f) encaminhamento pela Secretaria de Estado de Assistência Social
ou congênere dos documentos comprobatórios e parecer técnico, anexo ao
processo à Comissão Intergestores Bipartite, no prazo máximo de 30 (trinta)
dias a contar da data de protocolo de entrada dos documentos
comprobatórios na SEAS;
g) apreciação e posicionamento da CIB quanto aos documentos
comprobatórios;
h) preenchimento, pela CIB, do termo de habilitação, conforme
anexos desta Norma;
i) publicação, pela Secretaria de Estado de Assistência Social ou
congênere, da habilitação pactuada na CIB;
j) encaminhamento para a Secretaria Técnica da CIT de cópia da
publicação da habilitação pactuada pela CIB;
k) arquivamento de todo o processo e da publicação de habilitação
na CIB. (NOB, 2005, p. 39-40)

O próprio CNAS reconheceu os problemas e dificuldades na habilitação dos


municípios, sobretudo por seu caráter burocrático e cartorial. No preâmbulo da NOB 2012,
estas contradições foram apresentadas:
14. Uma das necessidades de aprimoramento está relacionada ao
processo de habilitação dos Municípios nos níveis de gestão estabelecidos
pela NOB SUAS 2005: inicial, básica ou plena. Esse processo foi demarcado
pelo caráter cartorial, que consistia essencialmente na verificação de
documentos para comprovar os requisitos de gestão que, em muitos casos,
após visitas in loco, não se confirmavam. Na maioria dos Estados, não se
adotou procedimentos para o acompanhamento da gestão de forma
sistemática ou não foi realizada a revisão da habilitação, como forma de
reavaliação do cumprimento dos requisitos de habilitação ou mesmo de
avaliação da gestão. (NOB, 2012, p. 14)

1429

V V
A revisão da LOAS, em 2011, trouxe novidades para o processo de habilitação ao
determinar a abrangência do sistema: “O Suas é integrado pelos entes federativos, pelos
respectivos conselhos de assistência social e pelas entidades e organizações de assistência
social abrangidas por esta Lei. (Lei nº 12.435, art. 6º, § 2º, 2011). Desse modo, passa a ser
desnecessária a habilitação, já que todos os entes da federação integram o SUAS. Antes, a
habilitação deveria ser renovada de dois em dois anos pelas respectivas CIBs. De acordo com
as novas regras, basta ter a primeira comprovação para receber os recursos federais. Com a
alteração, deixa de ser necessária a habilitação, bastando comprovar os requisitos do art. 30 da
LOAS, quais sejam: conselho, com composição paritária entre governo e sociedade civil,
plano e fundo, com dotação orçamentária de recursos próprios destinados à assistência social
e a orientação e controle exercido pelo respectivo conselho.
Outra novidade da LOAS 2012 foi a instituição do Índice de Gestão Descentralizada
(IGDSUAS), que é um instrumento de aferição da qualidade de gestão descentralizada no
âmbito dos municípios, DF e estados. Conforme os resultados alcançados (notas de 0 a 1), a
União apoia financeiramente o aprimoramento da gestão como forma de incentivo. Mas, para
receber os recursos, o ente federado precisa alcançar, no mínimo, o índice de 0,2. É adotada
uma lógica meritocrática, baseado no “ranqueamento” e premiação dos municípios mais bem
avaliados. Paradoxalmente, aqueles com pior avaliação e pior qualidade na gestão não
recebem recursos, o que dificulta o seu aprimoramento.
A partir da NOB 2012, os entes federados passaram a ser avaliados por meio do Índice
de Desenvolvimento do SUAS (ID SUAS), composto de um conjunto de indicadores de
gestão, serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, mensurados por meio do
Censo SUAS, sistemas da Rede SUAS e outros sistemas do MDS. O ID SUAS permite que os
estados, DF e municípios sejam agrupados em níveis de gestão, de acordo com sua escala de
aprimoramento na gestão do sistema e o estágio de organização do SUAS em âmbito local.
De acordo com dados disponibilizados no portal do Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS) na internet, em dezembro de 2013, 99,8% dos municípios
brasileiros já estavam habilitados em algum dos níveis de gestão do SUAS. Além disso, 100%
dos estados haviam assinado pacto de aperfeiçoamento do sistema.

1430

V V
SISTEMA NACIONAL DE CULTURA - SNC
4.1) Histórico
O Sistema Nacional de Cultura teve como um dos seus marcos iniciais a criação da
Secretaria de Articulação institucional (SAI) e Difusão Cultural, em 2003, com a missão de
implementar o sistema. No mesmo ano, é apresentada uma Proposta de Emenda à
Constituição que visa proceder à vinculação de receitas orçamentária para destinação às
políticas culturais (PEC nº 150/2003). Esta proposta ainda tramita no Congresso Nacional e é
considerada importante para o desenvolvimento do SNC.
Em 2005, é publicado o decreto nº 5.520, que cria o Sistema Federal de Cultura e o
Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Ainda em 2005, é apresentada a PEC nº 416,
que institui o SNC e é aprovada a PEC nº 48, que prevê a criação do Plano Nacional de
Cultura, inserindo o parágrafo terceiro do artigo 215 da Constituição. Além disso, foi
realizada a primeira Conferência Nacional de Cultura (CNC), contando com as etapas
municipal, estadual e nacional, que apontou a implementação do SNC como uma das
prioridades para a área cultural.
Entre 2007 e 2009, destacaram-se as seguintes ações: criação de grupo de trabalho
para elaboração de estratégia de implementação do SNC, instalação do CNPC (2007),
aprovação da proposta de estruturação, institucionalização e implementação do SNC (2009),
pelo CNPC e realização de seminários do SNC nos estados. No início de 2010, é realizada a
etapa nacional da segunda Conferência Nacional de Cultura, que aponta a implementação do
SNC como maior prioridade do setor. No mesmo ano, é aprovada a Lei que cria o Plano
Nacional de Cultura (PNC) (Lei nº 12.343). Em 2011, o CNPC aprova as 53 metas do PNC. A
primeira delas prevê que, até 2020, tenha-se o “Sistema Nacional de Cultura
institucionalizado e implementado, com 100% das Unidades da Federação (UF) e 60% dos
municípios com sistemas de cultura institucionalizados e implementados”.
Em 2012, é aprovada a Emenda Constitucional nº 71, que insere o Sistema Nacional
de Cultura no texto da Constituição. Em 2013, é realizada a terceira Conferência Nacional de
Cultura, que tem como temática central os desafios da implementação do SNC. No mesmo
ano, o Ministério da Cultura promoveu um ciclo de oficinas sobre sistemas de cultura, com o
objetivo de capacitar gestores municipais para a implantação dos sistemas municipais de
cultura. Foram realizadas 21 oficinas em 18 estados da federação.
O fato de o SNC ser um tema de destaque nas três conferências nacionais já realizadas
demonstra um consenso, no âmbito da sociedade civil e dos gestores públicos de cultura, de

1431

V V
que o sistema é fundamental para o desenvolvimento do setor cultural, de modo que ele deixe
de depender das isenções fiscais e editais esporádicos.

4.2) Relações Federativas no sistema


O SNC tem buscado adotar, desde sua concepção, o modelo de gestão descentralizada
e participativa, nos mesmos moldes do SUS e do SUAS. Na ausência de um arcabouço
normativo que apontasse o modelo de adesão ao sistema, o Ministério da Cultura passa a
estabelecer, entre 2005 e 2006, Protocolos de Intenções com os entes da federação para
implementação do SNC. À época, foram assinados 21 protocolos de intenção com estados e
1967 com municípios. A partir de 2009, o MinC passou a utilizar o Acordo de Cooperação
Federativa como método de adesão de estados e municípios ao SNC. Até 2010, 363 (6,5%)
Municípios e 1 (3,7%) Estado haviam formalizado a integração ao SNC por meio de acordos.
Embora ainda não tenha sido criada a lei do Sistema Nacional de Cultura, a lei do
Plano Nacional de Cultura, em seu artigo terceiro, aborda o SNC e suas relações federativas:
§ 1° O Sistema Nacional de Cultura - SNC, criado por lei específica,
será o principal articulador federativo do PNC, estabelecendo mecanismos
de gestão compartilhada entre os entes federados e a sociedade civil.
§ 2º A vinculação dos Estados, Distrito Federal e Municípios às
diretrizes e metas do Plano Nacional de Cultura far-se-á por meio de termo
de adesão voluntária, na forma do regulamento. (BRASIL, Lei n° 12.343,
de 2 de dezembro de 2010, 2010).

O termo de adesão voluntária é o Acordo de Cooperação Federativa, que continuou


sendo celebrado entre o MinC e os estados e municípios que quisessem aderir ao SNC. Desse
modo, para se integrar ao Sistema Nacional de Cultura, o representante legal do estado ou
município (governador ou prefeito) deve assinar o acordo, juntamente com o representante
legal do MinC. O Acordo propõe a construção compartilhada do SNC, por meio de criação,
em leis municipais e estaduais, de sistemas de cultura e estruturação dos componentes
obrigatórios para o seu pleno funcionamento. A partir da publicação do acordo, o ente
federado se compromete a criar seu sistema de cultura em lei própria, conforme preconizado
pelo art. 216-A, parágrafo quarto, da Constituição. (BRASIL, 2013, p. 12)
Até 2010, os acordos possuíam prazo de vigência de um ano, o que trazia a
necessidade de renovação anual dos acordos caso o sistema não estivesse instituído. A partir
de 2011, foi feita, com apoio da Consultoria Jurídica do MinC, uma alteração no modelo de
acordo, de modo que os novos instrumentos passaram a ser assinados com prazo de vigência
por tempo indeterminado.

1432

V V
Até novembro de 2014, segundo dados do Ministério da Cultura, 1780 municípios
(31,9%), 26 estados (100%) e o Distrito Federal já haviam aderido ou manifestado interesse
em aderir ao SNC. Recentemente, entrou no ar uma plataforma informatizada para integração
ao sistema. Dessa forma, o gestor municipal ou estadual pode realizar o preenchimento
“online” dos formulários necessários à adesão. O programa gera o formulário de adesão e o
acordo, que devem ser assinados pelo chefe do executivo e enviados, via correio, para o
Ministério da Cultura. Após análise processual, é emitida nota técnica, que atesta o envio da
documentação necessária e orienta a assinatura pelo Secretário de Articulação Institucional,
representante da Ministra da Cultura. Após a assinatura, o extrato do acordo é publicado no
Diário Oficial da União. Então, o responsável pelo acordo no estado ou município deve
preencher, na Plataforma Digital, o plano de trabalho, na qual faz a pactuação dos prazos para
criação dos componentes do sistema e envio das documentações comprobatórias.
O repasse fundo a fundo, no entanto, ainda não foi implantado no âmbito do SNC. Ele
depende da aprovação do projeto de lei do Pró-Cultura (PL 6722/2010), que preverá a
realização dos repasses, e da ampliação dos recursos do Fundo Nacional de Cultura, que ainda
são insuficientes para atender a todo o país.

Quadro Comparativo
SUAS SNC

Percentual de municípios que


aderiram ou comprovaram
99,9% 31,9%
requisitos do sistema até
novembro de 2014 2

Percentual de unidades da
federação que aderiram ou
100% 100%
comprovaram requisitos do
sistema

Órgão responsável por analisar Secretaria Estadual de Secretaria de Articulação


a documentação do município Assistência Social Institucional do
e emissão de parecer/nota (SEAS) ou órgão Ministério da Cultura
técnica congênere (SAI/MINC)

Método de inserção do Não é necessário Envio de documentos de

2
No caso do SNC, é necessário proceder à adesão ao sistema, que pode ser feita antes mesmo da criação dos
componentes do sistema de cultura. No caso do SUAS, é necessário comprovar a existência dos requisitos
(conselho, plano e fundo de assistência social) para se habilitar no sistema.

1433

V V
município no sistema adesão/habilitação. De adesão para a SAI/MinC
acordo com a LOAS para celebração de
2011, o SUAS é integrado Acordo de Cooperação
por todos os entes da Federativa. A partir da
federação. Para receber publicação do acordo, o
recursos, o município município tem o prazo de
deve enviar a SEAS dois anos para criar os
documentação que componentes do sistema
comprove existência de municipal de cultura.
conselho, plano e fundo
no município.

Recursos destinados ao FNAS


36,5 bilhões de reais 91 milhões de reais
e FNC em 2013

Principal fonte de recursos Contribuição para Loterias federais


para os respectivos fundos Financiamento da
Seguridade Social
(COFINS)

Repasse fundo a fundo Em funcionamento. Ainda não entrou em


funcionamento. Depende
da aprovação legislativa.

Possibilidade de uso dos Art. 6º-E. Os recursos do Legislação do FNC é


recursos para pagamento de cofinanciamento do omissa quanto a essa
servidores públicos SUAS (...) poderão ser possibilidade. Afirma-se,
aplicados no pagamento no entanto, que os
dos profissionais que recursos não poderão ser
integrarem as equipes utilizados para despesas
de referência (...) , administrativas do MinC
conforme percentual (Lei nº 8.313, art. 4º,
apresentado pelo MDS e § 6º).
aprovado pelo CNAS.
(Lei nº 12.435, de 2011)

Possui divisão precisa de Sim, por meio da Norma Não


atribuições entre os níveis da Operacional Básica
federação (NOB)

Possui tipificação nacional dos Sim, por meio da Res. nº Não


serviços prestados 109/2009, do CNAS

1434

V V
A partir da análise dos dados do quadro comparativo, depreende-se que o SUAS e o
SNC encontram-se em estágios bastante distintos de desenvolvimento. Isso se reflete na
quantidade de municípios que aderiram ao sistema e no volume de recursos do fundo.
No que se refere à adesão dos entes federativos, identifica-se importantes diferenças
entre o modelo adotado pelo SUAS e pelo SNC. No SUAS, os entes federados estão
automaticamente integrados ao sistema, dispensando-se a adesão ou habilitação. Para contar
com o repasse de recursos, no entanto, o ente federado deve comprovar a existência dos
componentes do sistema. Ou seja, o ente só envia a documentação quando estiver com o seu
sistema de assistência social implementado. No caso do SNC, o ente federado celebra acordo
de cooperação com o MinC e, a partir daí, elabora plano de trabalho para implementação dos
componentes do sistema (conselho, plano, fundo e órgão gestor).
O órgão responsável pela análise da documentação também é diferente. No caso do
SUAS, o município envia a documentação para a Secretaria Estadual de Assistência Social,
que realiza o processo de análise processual e emissão de parecer técnico. As Comissões
Intergestoras Bipartites (CIBs), de âmbito estadual, procedem à habilitação do município e
enviam cópia para a Secretaria Técnica da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), de âmbito
federal. Isso reforça o papel do estado na institucionalização do sistema. No caso do SNC,
todo o trabalho de análise processual é realizado pelo Ministério da Cultura. Além disso, é
celebrado acordo para que, posteriormente, os municípios e estados criem os componentes do
sistema.
No caso do SUAS, a lei permite que os recursos do co-financiamento possam ser
usados para o pagamento de profissionais das equipes de referência do CRAS e CREAS, que,
via de regra, são servidores públicos. Isso deve ser reconhecido como um importante avanço
no sentido da institucionalização da política. No caso do SNC, não existe previsão legal na
Lei Rouanet, que criou o Fundo Nacional de Cultura, para o pagamento de servidores da
cultura com recursos do fundo, da mesma maneira que não existe uma divisão precisa de
atribuições entre os entes da federação para implementação da política cultural. A lei do
Procultura, que substituirá a Lei Rouanet, corre o risco de continuar com estas mesmas
debilidades.
É importante lembrar que, para implementar uma política pública, conduzida pelo
Estado, é indispensável a contratação de servidores públicos, sob pena de se degenerar em
uma lógica de terceirização e privatização. Fica evidente que o SNC, se pretende implantar
uma política pública de cultura, deve permitir que parte dos recursos a serem repassados aos

1435

V V
fundos de cultura sejam utilizados para pagamento dos servidores públicos nos estados e
municípios, sejam eles agentes culturais, produtores culturais, museólogos, bibliotecários,
arquivistas, músicos da banda ou orquestra municipal, artistas, professores de educação
musical e/ou artística, e até mesmo servidores técnico-administrativos, pessoal de apoio e
serviços gerais. Esta medida é importante para empoderar a gestão municipal, proporcionando
a contratação direta de profissionais e evitando a precarização do trabalho das pessoas
envolvidas com o fazer cultural.

6) CONCLUSÕES
A construção de sistemas nacionais é expressão da nova fase de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, no qual a emergência de um Estado de Bem-Estar Social revela-se
importante para manutenção da estratificação de classes, reduzindo as tensões sociais. Em um
processo similar ao ocorrido na Europa pós-guerra, o fortalecimento do Estado, a provisão de
serviços públicos e transferência de renda têm como efeitos a redução das disparidades de
renda, ao mesmo tempo em que se preserva a disparidades na propriedade do capital.
Tanto o SUAS quanto o SNC, em seus mecanismos de gestão, apresentam
características que reforçam os valores burgueses de competição, classificação,
“ranqueamento” e premiação. No caso do SUAS, por meio do repasse de recursos do IGD. No
caso do SNC, por meio dos editais de seleção pública. Trata-se de valores aparentemente
neutros, mas que estão imbuídos de conceitos que reforçam relações de dominação e
promoção das vaidades pessoais. Além disso, ambos os sistemas têm realizado uma
padronização e parametrização da gestão a partir de um modelo único. Este padrão possui
uma coerência interna, haja vista que busca assegurar a participação e o controle social na
condução da política. Por outro lado, o processo de padronização também gera contradições,
pois impõe duras amarras à atuação dos entes que fazem parte do sistema.
Por outro lado, a constituição de sistemas nacionais aponta para a reversão de um
processo histórico no qual ambas as políticas têm sido tratadas como secundárias para a
agenda estatal. Vale lembrar que a assistência social e a política cultural têm sido conduzidas,
majoritariamente, pela iniciativa privada. Quando atua, o Estado se volta para a concessão de
benefícios, via edital de seleção pública e isenção fiscal a produções culturais privadas, no
caso da política cultural, ou via transferência de renda e incentivos a entidades filantrópicas
privadas. Todavia, o Estado demonstra protagonismo na oferta de serviços na área
museológica, de bibliotecas e no tombamento de patrimônio cultural. No campo da assistência

1436

V V
social, destacam-se os CRAS e CREAS. O SUAS e o SNC têm o potencial de se tornarem
vetores de fortalecimento da ação estatal, por meio da oferta de serviços públicos, gratuitos e
de qualidade para a população.
O estudo comparativo do SUAS e do SNC permite uma visão mais ampliada do
processo de criação de um sistema nacional e dos passos que o SNC precisa galgar para sua
efetiva implementação. Revela-se necessário um maior intercâmbio de informações na gestão
de sistemas nacionais, com benefícios para ambas as partes. Neste sentido, a análise
comparada permite a identificação das melhores praticas na gestão de sistemas nacionais. A
troca de experiências é, portanto, de fundamental importância para o aprimoramento dos
sistemas, sobretudo aqueles em estágio inicial de formação, como o SNC.

7) BIBLIOGRAFIA
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1438

V V
A RELAÇÃO ENTRE CULTURA E DESENVOLVIMENTO E A ESTRATÉGIA DE
FOMENTO DE ARRANJOS CRIATIVOS NA AMAZÔNIA
Valcir Bispo Santos1

RESUMO: A relação entre Cultura e Desenvolvimento tem sido bastante destacada pelas
teorias contemporâneas de desenvolvimento, particularmente pelas teorias de
desenvolvimento endógeno e territorial e em teses sobre a Economia Criativa. Mas alguns
economistas já destacavam tal relação desde a década de 1970, como é o caso de Celso
Furtado. Isso possibilita que novas perspectivas teóricas projetem a cultura local e seus
agentes econômicos e sociais enquanto fontes indutoras de estratégias de desenvolvimento,
como no caso da criação de Territórios ou Arranjos Criativos. Toma-se como exemplo o caso
do complexo de feira e mercado do Ver-o-Peso, em Belém, que se singulariza pela
diversidade cultural e intensas trocas simbólicas que articulam a tradição da cultura ribeirinha
e de outros povos tradicionais da Amazônia com as culturas pop e contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura, Desenvolvimento territorial, Arranjos criativos, Diversidade


cultural, Amazônia

Introdução
Este ensaio aborda como as relações entre Cultura e Desenvolvimento têm sido
incorporadas por teorias contemporâneas de desenvolvimento, e os desdobramentos no
sentido de contribuir para a difusão de estratégias de fomento de arranjos ou territórios
criativos. Estas estratégias se utilizam, sobretudo, dos imensos recursos de diversidade
cultural, tal como os que circulam em feiras e mercados em áreas urbanas da Amazônia, como
ocorre no tradicional complexo do Ver-o-Peso, em Belém, metrópole da Amazônia Oriental.
No segundo item deste ensaio aborda-se a questão específica da relação entre Cultura
e Desenvolvimento a partir dos aportes das teorias de desenvolvimento econômico.
Inicialmente, aborda-se o entendimento de Celso Furtado sobre o processo de
desenvolvimento. Furtado considerava que o tema central do estudo do desenvolvimento é a
criatividade cultural e a morfogênese social, apesar de grande parte da literatura econômica se
concentrar mais na lógica dos meios que na lógica dos fins, onde se situariam valores
cultivados pela cultura, entre outros processos sociais. Também são abordadas as teorias
institucionalistas e de desenvolvimento endógeno e territorial, ressaltando o papel do território
enquanto construto sócio-institucional e de como o capital social, em suas tipologias e formas

1
Professor Doutor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Pará – UFPA e membro
do Instituto Luzeiro Cultural; e-mail: valcirbispo@ufpa.br

1439

V V
de mobilização, encontram-se associados aos processos de identidade cultural e de
diversidade cultural. E finaliza abordando as teorias contemporâneas que relacionam a
criatividade com processos de inovação e desenvolvimento e formam a base do que se
entende como Economia Criativa.
O terceiro item aborda o caso singular do complexo de feira e mercado do Ver-o-Peso,
em Belém, e as possibilidades de se instituir um arranjo ou território criativo nesse importante
complexo de abastecimento popular. Parte-se da constatação de que o espaço do Ver-o-Peso,
muito além de sua evidente importância econômica, também se caracteriza por sua rica
diversidade cultural. Dentro dessa perspectiva, o Ver-o-Peso se singulariza como espaço de
intercâmbio e trocas simbólicas de bens, serviços e conhecimentos oriundos de populações
tradicionais da Amazônia, sobretudo de comunidades e localidades ribeirinhas, interagindo
com outros segmentos da cultura contemporânea, inclusive com uso de novas tecnologias
digitais em alguns casos.
E nas considerações finais, argumenta-se que o fomento de arranjos e/ou territórios
criativos indicam boas perspectivas para a valorização e utilização de conhecimentos
tradicionais e da diversidade cultural enquanto elementos centrais de estratégias de
desenvolvimento urbano, sobretudo com o uso da criatividade e de recursos endógenos
ligados à cultura local e popular.

Desenvolvimento e Cultura
A despeito da falta de consenso sobre o tema, vários teóricos do desenvolvimento
consideram que a Cultura assume um papel de grande relevância nas teorias e estratégias de
desenvolvimento de uma sociedade, pois descreve seu modo de pensar, bem como seus
valores éticos e padrões de consumo. Os valores, as crenças, as tradições e os costumes de um
grupo modelam as preferências dos indivíduos que o compõem, e, portanto alteram seu
comportamento econômico. No entanto, uma longa trajetória se percorreu e ainda está a ser
percorrida no sentido de consolidar teses sobre as relações entre Desenvolvimento e Cultura.
Primeiramente, cabe um esclarecimento prévio sobre os significados acerca do termo
Cultura, sobretudo do ponto de vista do entendimento da literatura econômica. Segundo Vilar
(2007), partindo da proposição de T. S. Eliot (1962, apud Vilar, 2007:21), pode-se entender a
“cultura enquanto desenvolvimento de um indivíduo, de um grupo ou classe, ou da sociedade
como um todo”. Dessa forma, assinalam-se três (3) sentidos subjacentes à palavra “cultura”:
(1) a cultura enquanto formação ou educação, (2) a cultura enquanto identidade de um grupo
ou civilização, e, finalmente, (3) a cultura enquanto conjunto dos produtos do tríptico
1440

V V
Artes/Humanidades/Ciência. No primeiro sentido assinalado, “cultura” supõe uma
característica do indivíduo, a formação ou a educação, a “Paideia” grega, tudo aquilo que
envolve a formação da mente ou do intelecto. No segundo sentido, a expressão “cultura” é
utilizada num quadro antropológico ou sociológico para descrever um conjunto de atitudes,
crenças, costumes, valores e práticas que são comuns ou são partilhados por um determinado
grupo. No terceiro sentido, a expressão “cultura” revela uma noção, sobretudo, funcional,
traduzindo determinadas atividades relacionadas com os aspectos intelectuais, morais ou
artísticos da vida humana, como a criatividade, bem como os produtos dessas atividades.
Quando se utiliza a expressão “economia da cultura”, relaciona-se a esse último sentido, onde
a produção e o consumo de bens culturais se situam dentro de um quadro ou da lógica
industrial e/ou comercial. Os produtos e os serviços culturais podem, assim, ser considerados
como bens transacionáveis nos mesmos termos que outros bens produzidos no sistema
econômico (VILAR, 2007).
A relação entre desenvolvimento e cultura começa a receber destaque a partir das
críticas ao caráter demasiadamente economicista ou “desenvolvimentista”2 das Teorias de
Desenvolvimento. Até o início dos anos 1960, conforme Veiga, não havia necessidade de se
distinguir as teorias de desenvolvimento das teorias de crescimento econômico, pois as
poucas nações consideradas desenvolvidas alcançaram isso por meio do processo de
industrialização. Todavia, foi se tornando evidente que o intenso crescimento econômico
ocorrido durante as décadas de 1950 e 1960 em diversos países semi-industrializados não
havia se traduzido necessariamente em maior acesso de populações pobres a bens materiais e
culturais, como ocorrera nos países desenvolvidos. O caso do Brasil, inclusive, foi
considerado paradigmático nesse sentido. Desta forma, surgiu um intenso debate internacional
sobre o sentido do vocábulo desenvolvimento (VEIGA, 2006).
Um marco importante nesse debate ocorre com o lançamento do “Índice de
Desenvolvimento Humano” (IDH)3 pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) em 1990. Até o lançamento do IDH, a renda per capita se
notabilizava por ser o único critério de aferição do desenvolvimento, o que fazia com que o
desenvolvimento fosse imediatamente associado com o crescimento econômico (ibid).

2
O desenvolvimentismo é definido por Bielschowsky (1988, p. 33) como o “projeto de superação do
subdesenvolvimento através da industrialização integral, por meio de planejamento, e decidido apoio do Estado”.
3
O IDH é um índice composto que resulta da média aritmética de três índices mais específicos que captam
renda, escolaridade e longevidade, ou seja, as dimensões econômica, educacional e de saúde.

1441

V V
Mas para chegar a esse ponto, vários teóricos do desenvolvimento tiveram importante
papel no longo processo de ruptura paulatina com as teses desenvolvimentistas e
economicistas. E um dos mais importantes foi, sem dúvida, Celso Furtado4. E a trajetória de
Furtado assume maior relevância justamente por ter sido o principal divulgador no Brasil das
teses desenvolvimentistas da CEPAL5, influenciando várias gerações de intelectuais.
No entanto, na obra “O mito do desenvolvimento econômico”, publicada em 1974,
Celso Furtado rompe com as teses desenvolvimentistas ao afirmar que a noção de
desenvolvimento econômico é um simples mito. A função principal desse mito é o de desviar
as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e
das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos
abstratos, como investimentos, exportações e crescimento econômico. Os mitos, segundo
Furtado, têm exercido uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham
em compreender a realidade social, congregando uma série de hipóteses que não podem ser
testadas. A função principal do mito é orientar, em um plano intuitivo, a construção do que
Schumpeter denominou como “visão do processo social”, sem a qual o trabalho analítico não
teria qualquer sentido, ou seja, trata-se de uma visão pré-analítica (FURTADO, 1974).
Segundo Furtado, pelo menos noventa por cento da literatura sobre desenvolvimento
econômico se fundamenta na suposição de que pode ser universalizado o desenvolvimento
econômico, tal como vem sendo praticado pelos países que lideram a revolução industrial.
Assim, os padrões de consumo das populações que vivem nos países centrais (minoria da
humanidade) se tornariam acessíveis às grandes massas da população que vivem na periferia.
Essa ideia se constitui em um prolongamento do mito do progresso, elemento essencial na
ideologia diretora da revolução burguesa (ibidem).
O mais importante, segundo Furtado, é que essa ideia de desenvolvimento encontra-se
no cerne da visão de mundo que prevalece em nossa época. Na apresentação da terceira
edição revista de Introdução ao desenvolvimento em 2000, Furtado esclarece que o tema
central do estudo do desenvolvimento é a criatividade cultural e a morfogênese social,
4
Para Bielschowsky, Celso Furtado foi o grande economista da corrente desenvolvimentista de tendência
nacionalista no Brasil. Co-autor de teses estruturalistas, aplicou-as ao caso brasileiro e divulgou-as no país com
grande competência, dando consistência analítica e garantindo unidade mínima ao pensamento econômico de
parcela dos técnicos governamentais engajados no projeto de industrialização brasileira (BIELSCHOWSKY,
1988).
5
A CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) é um órgão regional da ONU, criado em 1948 com o
objetivo de estudar e propor políticas de desenvolvimento aos países da América Latina. Seus principais teóricos,
como Raúl Prebisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto, Maria da Conceição Tavares, desenvolveram uma abordagem
de cunho histórico-estruturalista, com forte viés desenvolvimentista e uma crítica contundente à teoria das
vantagens comparativas no comércio internacional, influenciando gerações de vários intelectuais brasileiros e
latino-americanos.

1442

V V
assuntos que permanecem praticamente intocados. Há evidências que a invenção cultural
tende a ocorrer em torno de dois eixos básicos: (1) na busca da eficácia da ação, também
denominada como racionalidade instrumental ou formal; (2) e na busca de propósitos para a
própria vida, conhecida como racionalidade substantiva ou dos fins. A invenção diretamente
ligada à ação gera a técnica, que supõe, por sua vez, a existência de objetivos previamente
definidos. A invenção ligada aos fins (ou desígnios) gera valores, que, por outro lado, podem
ser morais, religiosos, estéticos, políticos etc. No entanto, o fato é que, ao longo de mais de
três séculos de “desenvolvimento capitalista”, as sociedades tendem a favorecer mais a
criação de técnicas, e não de valores substantivos. Desta forma, a inovação ligada aos meios
(o chamado “progresso técnico”) possui um poder de difusão muito maior do que a criação de
valores substantivos. Ou seja, o gênio criativo do homem foi canalizado para a criação
técnica, sobretudo nestes últimos duzentos anos. É por isso que a teoria do desenvolvimento
ficou circunscrita à lógica dos meios, tendendo a se confundir com a explicação do sistema
produtivo que emergiu com a civilização industrial. No entanto, o desenvolvimento deve ser
entendido como o processo de transformação da sociedade não só em relação aos meios, mas,
sobretudo em relação aos fins (FURTADO, 2000).
A partir dos anos 1980, surge um novo paradigma nas teorias de desenvolvimento,
conhecida como teoria do desenvolvimento endógeno, com a crescente valorização de escalas
menos abrangentes e a ênfase na importância da dinâmica interna das regiões. Esse novo
paradigma de desenvolvimento, com base em enfoques institucionalistas, reconhece o fato de
que o comportamento econômico assenta-se sobre bases sociais. Cada economia regional
passou a ser encarada como um conjunto de atividades afetadas pela cultura e pelos contextos
locais, sujeito a mudanças condicionadas não apenas por fatores econômicos strictu sensu,
mas também pela história da região e por outros aspectos sociais, culturais e institucionais
específicos (AMIN, 2000).
Para compreender melhor a concepção institucionalista de desenvolvimento endógeno,
segundo Muls (2008), é necessário enfatizar no que ela se diferencia das teorias tradicionais de
crescimento econômico e de políticas regionais, que, consequentemente, consideram o Estado e
o Mercado como as duas formas privilegiadas de coordenação da economia. Na tradição da
literatura econômica, desde Adam Smith, o pensamento liberal e a tese da “mão invisível” (do
mercado) se notabilizaram por defender o mercado, enquanto forma de regulação (ou
autorregulação) ou forma praticamente absoluta de coordenação das atividades e interações
econômicas. Por outro lado, a concepção keynesiana (ou intervencionista) advoga a participação

1443

V V
do Estado na regulação – ou em boa parte da coordenação das interações econômicas, embora
dividindo-a com o mercado, segundo a chamada “síntese neoclássica”, gerando o que alguns
denominam como “economia mista”, que prevaleceu em muitos países capitalistas após a II
guerra mundial. As correntes marxistas de cunho ortodoxo, referenciando-se, sobretudo, em
leituras de Lenin, Trotsky e outros teóricos socialistas, defendem que o Estado seja o regulador
(ou a instância de coordenação) por excelência das atividades e interações econômicas,
baseando-se na crítica de que a regulação pela via do mercado, no sistema capitalista, tende a
gerar o caos no longo prazo.
Diferenciando-se da ortodoxia vigente em tais concepções tradicionais da literatura
econômica, a concepção institucionalista leva em conta as formas intermediárias de
coordenação, que são todos os organismos e instituições locais cuja atuação possui uma
finalidade produtiva ou de regulação social em um determinado território, como o seu tecido
empresarial, o poder público local e as representações da sociedade civil. Ou seja, o que a
perspectiva institucionalista de desenvolvimento endógeno sinaliza é que há outras formas de
coordenação econômica além do Mercado e do Estado, e que têm emergido como promotoras
do desenvolvimento local. Segundo Muls:
“As formas intermediárias de coordenação representam todos os
organismos e instituições locais cuja atuação tenha uma finalidade produtiva
ou de regulação social num determinado território: o seu tecido empresarial,
o poder público local e as representações da sociedade civil. A questão
central para o desenvolvimento passa a ser como articular, junto a essas três
instâncias intermediárias de coordenação, as duas formas que foram
dominantes enquanto vigoraram as versões tradicionais da teoria do
crescimento econômico.” (MULS, 2008, p.4).

No contexto dessa mudança paradigmática, também passou a ser destacada a


importância do “capital social”, conceito amplamente divulgado após a publicação do livro de
Robert Putnam em 1993, sobre a experiência das regiões administrativas italianas,
implantadas no início dos anos 1970. Esse estudo relacionou o desempenho econômico e
institucional dessas áreas com suas tradições cívicas e com sua dotação de “capital social”,
que é definido, por sua vez, como aquelas

“características da organização social, como confiança, normas e


sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade,
facilitando as ações coordenadas” (PUTNAM, 1996, p. 177).

Conforme Putnam, há dois componentes de capital social: “bonding” (vincular), entre


tipos similares de pessoas, e “bridging” (conectar), entre diferentes grupos ou “pessoas
diferentes de nós mesmos”. Segundo Michael Storper (2003), bonding significaria uma versão

1444

V V
operativa de comunidade, enquanto bridging seria uma versão operativa de sociedade. Do
ponto de vista das relações sociais pautadas pela cultura, pode-se inferir que o capital social
do tipo bonding ou comunitário está relacionado ao processo de identidade cultural, ou seja,
de pessoas que possuem vínculos e valores partilhados ou pertencentes ao mesmo grupo. Por
outro, o capital social do tipo bridging ou societário se relaciona ao processo de diversidade
cultural, ou seja, a situações onde ocorre a interação com pessoas ou grupos sociais que
possuem valores culturais e sociais diferentes do grupo em questão (SANTOS, 2014).
A visão de Putnam sobre capital social, no entanto, é passível de inúmeras críticas,
tanto por ser considerada muito restrita ao valorizar demasiadamente a modalidade de capital
social bonding ou comunitário, segundo Storper (2003), quanto por tender a não levar em
conta as contradições e os conflitos sociais inerentes às relações sociais. Pesquisadores que
utilizam uma noção crítica sobre capital social, como Carlos Milani, enfatizam que a
formação do capital social tem relação com processos de desenvolvimento local e conflitos
sociais. Usando o exemplo do município de Pintadas, na região do semi-árido baiano , Milani
observou a estreita relação entre fé cristã e transformação social, pois as noções de cidadania
e compromisso cívico, em Pintadas, passariam quase sistematicamente pela relação com a
Igreja; e, segundo, a identidade coletiva é estreitamente relacionada com o movimento social,
pois se encontra relacionada à luta histórica pela sobrevivência e ao combate contra as
desigualdades no acesso à terra e à água no semi-árido nordestino (MILANI, 2003).
A valorização do capital social resgata também a importância das redes sociais,
partindo do pressuposto de que o comportamento econômico se encontra inscrito em redes de
relações interpessoais. Daí surge a concepção de que os mercados se constroem socialmente,
contrariando a concepção abstrata de mercado dos neoclássicos. Os mercados, portanto, são
concebidos enquanto instituições sociais, construídos historicamente, onde se cruzam
diferentes forças sociais, dotadas de interesses específicos (sociais, econômicos, políticos
etc.), perfazendo a visão de estruturas e hierarquias de poder prevalentes nas sociedades e que
moldam os mercados. O que determina a alocação de recursos, portanto, não é o mecanismo
abstrato de mercado, conforme defendem os neoclássicos, mas as instituições, especialmente
as estruturas de poder (CONCEIÇÃO, 2002).
Nos anos 2000, e como decorrência do processo de globalização e das revoluções
tecnológicas digitais em curso e que tem como eixo dinâmico a informação, emerge um novo
paradigma que articula a criatividade como recurso econômico e aumenta o escopo da
economia da cultura. Por ser um termo muito recente, o conceito de Economia Criativa

1445

V V
encontra-se ainda em construção, sendo alvo de certa polêmica a sua definição. Para autores
anglo-saxões, como Throsby (2001) e Howkins (2001), tomando como referência o conceito
de creative industries (“indústrias criativas”), costuma-se enfatizar o potencial de geração de
riqueza com base na exploração intelectual, sendo que Howkins considera que o divisor de
águas da economia criativa seria o potencial de gerar direitos de propriedade intelectual (apud
REIS, 2008). No entanto, essa abordagem anglo-saxônica é alvo de criticas, sobretudo por
enfatizar demasiadamente a geração da Propriedade Intelectual (PI) e não englobar outros
aspectos chaves da atividade criativa, como distribuição e acesso.
Assim, emergem outras interpretações sobre a Economia Criativa, incorporando
atividades artesanais ou de saber comunitário. Duisenberg, por exemplo, considera que a
Economia Criativa é “uma abordagem holística e multidisciplinar, lidando com a interface
entre economia, cultura e tecnologia, centrada na predominância de produtos e serviços com
conteúdo criativo, valor cultural e objetivos de mercado” (DUISENBERG apud REIS, 2008).
Para Reis, a economia criativa compreende setores e processos que têm como insumo
a criatividade, em especial a cultura, para gerar localmente e distribuir globalmente bens e
serviços com valor simbólico e econômico. A inclusão de alguns setores de tecnologia, como
o de software, torna-se fundamental para sustentar a dinâmica de processos e modelos de
negócios que se estabelece em parte dessa economia. Assim, iPods são considerados parte do
mercado musical, aparelhos de TV como parte do mercado de audiovisual e livros do
editorial. Além de serem suportes de conteúdos culturais, possibilitam urdir novos modelos de
produção e distribuição desses conteúdos (REIS, 2008). Nesse sentido, o objeto da Economia
Criativa acaba por incluir elementos que estão ligados à criatividade em sentido amplo,
passando pela publicidade, tecnologias de informação e comunicação (TICs) e até mesmo
alguns ramos de evolução científica.
A UNCTAD (sigla em inglês de Conferência das Nações Unidas para o Comércio o
Desenvolvimento) ressalta que a base das indústrias criativas são os conhecimentos
tradicionais subjacentes às diferentes formas de expressão criativa de um país ou região, tal
como canções, danças, poesias, histórias, imagens e os símbolos que são o patrimônio
singular da terra e de seu povo. Assim, a transformação dos conhecimentos tradicionais em
produtos e serviços criativos reflete os valores culturais de um país e de seu povo. Tais
produtos possuem um potencial econômico invulgar, pois tanto podem ser demandados por
consumidores locais como entrar em canais de marketing internacionais para satisfazer a
demanda dos consumidores de outros países (UNCTAD, 2010).

1446

V V
O plano “Brasil Criativo” (2011-2014), lançado pela Secretaria de Economia Criativa
(SEC), ligada ao Ministério da Cultura (MinC), utiliza o termo “setores criativos” para
denominar as atividades produtivas que têm como
“processo principal um ato criativo gerador de um produto, bem ou
serviço, cuja dimensão simbólica é determinante do seu valor, resultando em
produção de riqueza cultural, econômica e social”. (MinC, 2012, p. 22).

Partindo dessa definição, percebe-se que os setores criativos vão além dos setores que
são reconhecidos como tipicamente culturais (tradicionalmente ligados à produção artístico-
cultural, como a música, dança, teatro, ópera, circo, pintura, fotografia, cinema), pois
englobam outras expressões ou atividades relacionadas às novas mídias, à indústria de
conteúdos, ao design, à arquitetura, entre outros (MINC, 2012).
Dessa forma, o MinC pretende posicionar-se como promotor de toda e qualquer
atividade que utilize tais insumos culturais como criadora de riqueza. Essa concepção supera
uma limitação sugerida por autores anglo-saxões, em que a propriedade intelectual seria a
principal referencia para mensurar a atividade criativa. No conceito proposto, portanto, a
análise da economia criativa deve partir da “(...) criação e da produção, ao invés dos insumos
e/ou da propriedade intelectual do bem ou do serviço criativo” (MinC, 2012, p. 22).
Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, a criatividade é vetor do processo
de inovação que, por seu turno, é considerado elemento central para a competitividade de um
país. Assim, a promoção da criatividade e do suporte aos setores criativos seriam objetivos
centrais para uma contribuição decisiva do MinC ao desenvolvimento do pais. Dessa forma, o
plano “Brasil Criativo” amplia significativamente a importância da dimensão econômica da
cultura, identificando e propondo a construção de mecanismos e instrumentos que, alem de
promover espaços para expressão da diversidade cultural brasileira, contribuirão
decisivamente para a geração de empregos em atividades geradoras de bens e serviços
(RUAS, 2011).
As políticas defendidas pelo plano “Brasil Criativo” podem ser identificadas nos
planos macro e micro econômicos. Do ponto de vista macro, se situam as políticas
estruturadas em torno dos diversos aspectos responsáveis pelo surgimento e
institucionalização de “territórios criativos” (bairros, polos produtivos, cidades e bacias
criativas). Do ponto de vista micro, se situam as políticas destinadas ao apoio direto ao
empreendedor e aos empreendimentos. Assim, a promoção de incubadoras, birôs, linhas de
financiamento e outros instrumentos de suporte são apontados como fundamentais. De
maneira complementar, a promoção de redes e coletivos de empreendedores da economia

1447

V V
criativa segue o mesmo direcionamento. Adicionalmente, a formação de capacidades criativas
demanda a articulação de mecanismos educacionais. Assim, a articulação de universidades,
escolas técnicas e profissionalizantes, organizações sem fins lucrativos e outros agentes
podem ser apontados como fundamentais para o avanço das atividades da economia criativa
brasileira e deverão ser articulados em torno deste vetor de atuação (ibid).

A dimensão simbólica e cultural do complexo do Ver-o-Peso e sua potencialidade


enquanto Arranjo Criativo
Segundo a UNCTAD, o crescimento da produção criativa dentro de um contexto
urbano deriva parcialmente da existência de externalidades provenientes da aglomeração,
benéficas às empresas devido a sua proximidade. As concentrações locais de produção
cultural em muitas partes do mundo têm produzido processos de fortalecimento econômico,
inclusive de conhecimentos tradicionais, habilidades e tradições culturais utilizados por tais
populações (UNCTAD, 2010). É o caso, por exemplo, de Sigchos, no Equador, onde uma
variedade de artesãos produz objetos de cerâmica e produtos e vestuários trançados,
reproduzindo formas, designs e cores tradicionais (SANTAGATA, 2006 apud UNCTAD,
2010). Outro exemplo é a cidade de Popayán, na Colômbia, que pertence à rede de cidades
criativas apoiada pela Unesco, reconhecida como a primeira Cidade da Gastronomia nesse
segmento. Esta cidade conseguiu realizar alguns avanços extraordinários na formalização de
sua indústria gastronômica informal. Ao facilitar o acesso ao espaço e a outras instalações e
conseguir estabelecer regulamentações obrigatórias de higiene, além de publicar pesquisas
semanais sobre comidas e restaurantes, incluindo até mesmo as menores bancas de alimentos,
Popayan conseguiu revigorar sua economia e ofereceu trabalho e fonte de renda a muitas
pessoas (UNCTAD, 2010).
No entanto, há casos de arranjos criativos em que a dimensão territorial não é
suficiente para explicitá-la. São situações em que as trocas simbólicas ocorrem em dimensões
espaciais que extrapolam a noção de território, pois fluem em espaços que funcionam como
catalisadores da diversidade cultural de determinadas regiões. É o caso do Complexo do Ver-
o-Peso, na cidade de Belém, capital do estado do Pará e metrópole da Amazônia Oriental
brasileira, também conhecida como “metrópole das águas”, por se situar no delta da bacia do
rio Amazonas, cercada por rios e igarapés, sendo que 65% da sua configuração territorial são
formadas por ilhas.
O Ver-o-Peso é considerada a maior feira livre da América Latina, mas na verdade
trata-se de um complexo de abastecimento, que também envolve os mercados de carne e

1448

V V
peixe. Caracteriza-se pela comercialização de um imenso manancial de produtos que provêm
de diversas regiões ribeirinhas, particularmente várzeas e ilhas do Pará e da Amazônia, tais
como frutas, peixes, ervas medicinais, cosméticos artesanais, alimentos comestíveis até
produtos industrializados ou feitos artesanalmente. A sua origem remonta ao período colonial
e ao processo de fundação de Belém, que originou-se de um forte criado em 1616 por uma
expedição militar portuguesa com o fim de guarnecer o estratégico delta do rio Amazonas,
mas que logo tornou-se um importante entreposto do comércio colonial das chamadas “drogas
do sertão”, que eram produtos extrativos oriundos da floresta amazônica. Em meio a essa
movimentação comercial, em 1627 se instalou um posto de arrecadação fiscal, que foi
denominado como “Ver-o-Peso” (segundo o historiador Ernesto Cruz), ou casa de “Haver-o-
Peso” (conforme Antonio Baena), pois ali eram aferidas pelo peso as mercadorias embarcadas
e os impostos recolhidos para a Câmara de Belém. Localizado no antigo porto do Piry (atual
doca do Ver-o-Peso), com o passar do tempo, o Ver-o-Peso se tornou um dos principais
pontos de abastecimento da cidade, além de se constituir um dos principais pontos turísticos
de Belém (FLEURY et all, 2011).
Para além de um mero complexo de abastecimento, o fato é que o Ver-o-Peso se
caracteriza como espaço de circulação de produtos, saberes e bens culturais, sobretudo
originários de regiões ribeirinhas, mesmo não sendo o espaço de produção desses bens, tal
como ocorre na abordagem dos Arranjos Produtivos Locais. Por isso, prescinde da visão de
território, sendo mais adequadamente caracterizado como espaço de circulação ou de fluxos, o
que reflete a natureza dos processos criativos. Ali se processam as mais variadas trocas de
saberes, especialmente de conhecimento tácito, que são tão valorizados pelos estudos e
pesquisas sobre inovações tecnológicas e sociais. E é no espaço do Ver-o-Peso, caracterizado
por essa rica diversidade cultural, que se processam algumas das trocas mais férteis entre o
conhecimento popular e a cultura tradicional e os setores criativos na Amazônia
(CARVALHO, 2011).
A proposta do projeto “A economia criativa e o Ver-o-Peso Criativo”, coordenado
pelo prof. Valcir Bispo Santos, da UFPA, é justamente fazer um levantamento amostral das
trocas criativas e de iniciativas criativas existentes no espaço do Ver-o-Peso (SANTOS,
2015).
É o caso, por exemplo, da planta “priprioca”, comercializada pelas “erveiras”, que são
as feirantes do tradicional setor de “ervas” da feira do Ver-o-Peso. A “priprioca” é extraída de
áreas de várzea por produtores agroextrativistas de várias localidades ribeirinhas. Nas

1449

V V
barracas das “erveiras”, a planta é comercializada geralmente como cosméticos em pequenos
frascos de vidro ou em saquinhos do tipo “sache” conhecidos como “essência de priprioca”.
No entanto, a priprioca também é comercializada pela empresa multinacional Natura, que a
escolheu para uma de suas linhas sob o argumento de que é extraída da biodiversidade
brasileira. Segundo a empresa, "seu perfume é marcante e inusitado, um aroma tão único e
fascinante que reúne, ao mesmo tempo, a riqueza da nossa mata e a força da tradição dos
povos da floresta". Atualmente, a Natura disponibiliza três produtos a base de priprioca: o
sabonete, o perfume e a água de banho. Inclusive, alertada pela OAB, a associação das
erveiras, conhecida como “Ver-a-erva”, entrou em um imbróglio jurídico para que fossem
reconhecidos os direitos pelo seu conhecimento tradicional acerca do uso da priprioca e de
mais outras duas ervas comercializadas pela empresa, o cumaru e o breu branco. Depois de
algumas reuniões, finalmente a Natura reconheceu as “erveiras” como provedoras de
conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, e concordou em repassar um
percentual relativo aos produtos em que utiliza as ervas citadas. Outro exemplo de
diversificação e criatividade no uso da priprioca foi feito pela cervejaria Amazom Beer, que
produz uma cerveja artesanal feita à base dessa erva. A priprioca também é usada na
gastronomia, inclusive pelo conceituado chefe de cozinha Alex Atala, dono do restaurante
“D.O.M”, em São Paulo, recentemente eleito o 7° melhor restaurante do mundo e o melhor da
America do Sul na atualidade (MENESES, 2014).

Considerações finais
A relação entre Cultura e Desenvolvimento tem sido destacada pelas teorias
contemporâneas de desenvolvimento. No entanto, antes disso, Celso Furtado em 1974 já
alertava que a ideia de desenvolvimento econômico se fundamentava em um prolongamento
do mito do progresso e na crença de que os padrões de consumo de uma minoria da
humanidade (dos países ditos “desenvolvidos” ou industrializados) se tornariam acessíveis à
maior da parte da população mundial que vive nos países periféricos. Posteriormente, Furtado
acrescentou que as teorias do desenvolvimento ficaram circunscritas à lógica dos meios,
tendendo a se confundir com a explicação do sistema produtivo que emergiu com a revolução
industrial. Com isso, fica em segundo plano a racionalidade substantiva ou dos fins, que é
aquela que é capaz de criar valores substantivos no plano estético, político, espiritual (ou
religioso) ou do saber puro, capazes de pensar o processo de transformação da sociedade “não
só em relação aos meios, mas também aos fins (...)” (FURTADO, 2000: 8).

1450

V V
As concepções contemporâneas de desenvolvimento endógeno ou territorial e as teses
institucionalistas valorizam a importância das tradições culturais. É o caso da concepção
corrente sobre capital social, como a de Putnam, que resgata a importância das tradições
culturais e territoriais para o fomento de comportamentos cívicos e de compromisso com a res
(coisa) pública. Apesar das críticas à noção de capital social de Putnam, sobretudo por tender
a camuflar os conflitos sociais, a tipologia de Putnam torna-se útil para entender a relação dos
recursos de capital social com aquelas pautadas pela cultura. Sendo a confiança a base das
relações sociais pautadas pelo capital social, é possível distinguir dois tipos de capital social.
De um lado, o capital social do tipo bonding ou comunitário, onde a cultura é a identidade de
um grupo, ou seja, é a identidade cultural, tal como na segunda acepção de cultura formulado
por T. S. Eliot. Neste caso, o capital social comunitário é um conjunto de atitudes, crenças,
costumes, valores e práticas que são comuns ou são partilhados por um determinado grupo.
De outro lado, o capital social do tipo bridging ou societário, é tão importante quanto o
primeiro, pois permite a interação com outros grupos sociais ou indivíduos de recortes
culturais diferentes. Ou seja, permite a diversidade cultural ou a tolerância cultural e a
coexistência na sociedade complexa.
Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, a criatividade é vetor do processo
de inovação que, por seu turno, é considerado elemento central para a competitividade de um
país. Assim, a cultura passa a ser considerada como elemento central para evolução da
inovação e do setor produtivo, viabilizando mecanismos adicionais de inclusão social. Por
outro, o conteúdo cultural embutido no conceito de Economia Criativa realça a noção de
diversidade cultural e das trocas simbólicas entre tradições culturais ancestrais ou tradicionais
interagindo com manifestações culturais contemporâneas.
Portanto, há um enorme potencial para o desenvolvimento de regiões
subdesenvolvidas, mas com enorme acúmulo de diversidade cultural, inclusive por meio do
fomento de arranjos ou territórios criativos, como é o caso do tradicional complexo de feira e
mercado do Ver-o-Peso em Belém, maior cidade da Amazônia Oriental brasileira. No entanto,
é preciso que as políticas públicas na área da cultura se articulem com as estratégias de
desenvolvimento territorial. Outra ação importante é no sentido de fomentar ações de
valorização da cultura local, sobretudo aquelas oriundas da tradição ribeirinha, no caso da
Amazônia.

1451

V V
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1453

V V
RUÍNAS DE SÃO MIGUEL ARCANJO:
POLÍTICAS CULTURAIS, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO.
Vânia Lima Gondim1
Mauro Meirelles2

RESUMO: O presente artigo versa sobre o processo de Inventário e Registro das Ruínas de
São Miguel Arcanjo, situado no planalto do Rio Grande do Sul/Brasil, e que são reconhecidas
oficialmente pelo IPHAN/MinC, como “Tava, Lugar de Referência para o povo Guarani”. O
presente estudo, utilizou-se de uma etnografia de documentos e textos que se ocupam da
questão com vistas a perceber o modo como a noção de patrimônio, conceito até então
inexistente entre os Guarani, adquiriu tangibilidade e conotação de luta política e de
reinvindicação de seus direitos. Os resultados apontam para um avanço de políticas
relacionadas ao patrimônio guarani; entre eles, um conjunto de ações de salvaguarda já
realizadas, em especial, no que se refere a produção do conhecimento, contribuindo para a
história até então contada apenas pelos não-índios.

PALAVRAS-CHAVE: Ruínas de São Miguel Arcanjo, Políticas Culturais, Memória,


Patrimônio, Mbyá-Guarani.

ABSTRACT: This articles is about the process related to the production of the Register of
Ruins of Sao Miguel Arcanjo, located on the high lands of Rio Grande do Sul, being Tava the
reference home land for the Guarani people in this location. To conduct this study, an
ethnographical review of documents and texts related to the heritage question, a concept not
known for the Guarani people. Heritage has acquired tangibility and a conotation of political
struggle and claims of Guarani’s rights. Results indicate advances on public policies related to
Guarani heritage. Actions on safeguard have been implemented, especially regarding
capabilities among Guarani communities to participate in the research and documentation,
contributing to the story telling so far told only by non Guarani.

INTRODUÇÃO
Este texto se ocupa do processo de Inventário e Registro das Ruínas de São Miguel
Arcanjo, situado no contexto missioneiro do Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, no
noroeste do Rio Grande do Sul/Brasil, e que foram reconhecidas oficialmente pelo
IPHAN/MinC, como “Tava, Lugar de Referência para o povo Guarani”, em dezembro de
2014. Ocupamo-nos aqui, especificamente, como se deu esse processo das Políticas Culturais
que culminaram com o Decreto 3.551/2000 que criou o Programa Nacional do Patrimônio

1
Mestre em Memória Social e Bens Culturais, na linha de Pesquisa Memória e Linguagens Culturais do
Programa de Pós-graduação em Memória Social e Bens Culturais do Unilasalle-Canoas/RS. Administradora da
UFRGS. E-mail: vaniagondim@gmail.com
2
Doutor em Antropologia Social e Professor de Antropologia Social do Programa de Pós-Graduação de
Memória Social e Bens Culturais da Unilasalle/Canoas/RS-Brasil. E-mail: mauromeirelles@icloud.com

1454

V V
Imaterial, que tem como objetivo apoiar e fomentar, por meio do estabelecimento de
parcerias, projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção do patrimônio
cultural brasileiro.
Nesse sentido, abordamos na primeira parte do chamado tempo heroico da História do
Patrimônio Cultural no Brasil que por mais de sessenta anos apenas tombou monumentos de
“pedra e cal”, passando pela discussão e percepção da diversidade cultural, como uma
representação pluralista da nação que culminaram nas inovações da Constituição de 1988. Na
segunda parte do texto, nos ocupamos dos processos de Inventário e Registro de Referências
Culturais e os desdobramentos do INRC Comunidade Mbyá-Guarani em São Miguel Arcanjo
que teve seu início no segundo semestre de 2004 e sua aprovação em 04 de dezembro de 2014
pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, a inscrição, no Livro de Registro de
Lugares do IPHAN das Ruínas de São Miguel Arcanjo como “Tava, Lugar de Referência
para o Povo Guarani.
E por fim encerramos o texto nos ocupando do processo de Registro e do plano de
salvaguarda ligado ao mesmo, qual seja, as Ruínas de São Miguel Arcanjo. As quais,
deixaram de ser o lugar de esquecimento do povo Guarani, para tornar-se um lugar de
pertencimento, princípio esse que deverá nortear a gestão do Parque Histórico das Missões.
Algo que, retomamos ao final do texto tecendo algumas considerações.

1 UMA BREVE DIGRESSÃO ACERCA DAS POLÍTICAS DE PATRIMÔNIO


CULTURAL NO BRASIL
Passado o tempo heroico da História do Patrimônio Cultural no Brasil que por mais de
sessenta anos apenas tombou monumentos de “pedra e cal” e que durante todo esse tempo
fortaleceu uma ideia conservadora e elitista acerca dos critérios adotados para o tombamento,
os quais terminaram por privilegiar bens que se referem aos grupos sociais de tradição
europeia, tem-se que com o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), esse
quadro começa a mudar. E não mais somente aqueles bens identificados com as classes
dominantes são inventariados, registrados e tombados de modo que começa a ser deixada de
lado a ideia do patrimônio cultural de uma sociedade ser avaliado somente apenas por
algumas expressões de suas matrizes culturais, estas, quase sempre majoritárias e ligadas
essencialmente a presença e colonização europeia observada no Brasil.
Ressalte-se que essa conduta certamente contribuiu para a preservação de edificações
e obras de arte monumentais, pois relacionava a noção de conservação à ideia de
imutabilidade, e que essa centrava seu olhar muito mais no objeto e quase nada nos sentidos

1455

V V
que lhe são atribuídos ao longo do tempo, ou seja, do modo como esses lugares e espaços de
memória, como quer Nora (1993), são semantizados e ressemantizados ao longo do tempo.
Contudo, isso começou a mudar, com a prática do inventário e registro e, através da
concepção antropológica de cultura, passou-se a dar voz e existência a determinadas práticas
culturais minoritárias como muito bem registra Gonçalves (1996, 2009), estas, por sua vez,
ligadas a determinados lugares, festas, espetáculos, alimentos e outros, onde a ênfase está
muito mais nas relações sociais ou mesmo nas relações simbólicas que ali são tecidas,
reiteradas, reificadas e/ou construídas do que nos objetos e nas técnicas a estas correlatas
como dantes o era.
Nesse sentido, Gonçalves (2009, p. 26) assevera que a categoria “patrimônio” não é
uma invenção moderna, estando presente tanto no mundo clássico quanto na Idade Média. Já
seu uso enquanto categoria designativa data dos fins do século XVIII e relaciona-se ao
processo de formação dos Estados nacionais de modo que a “modernidade ocidental apenas
impõe os contornos semânticos específicos assumidos por ela”. Disto decorre que, no Brasil, a
proteção ao patrimônio surge com a noção de patrimônio artístico, histórico e cultural, o que
acontece a partir da transição da República Velha para a República Nova; movimento este
resultante de uma epifania nacionalista que buscava resgatar a própria identidade do Brasil.
Nesse sentido, no intuito de se criar uma identidade nacional o governo getulista,
como bem demonstra Pommer (2009, p. 52), determinou para si “a função de desenvolver um
projeto modernizador da economia, a fim de inserir o Brasil na nova ordem internacional dos
países industrializados”. E, para isso, planejou “promover um sentimento unificador que
representasse um ‘novo país’ enquanto unidade federativa, a partir da produção de uma
homogeneidade dos elementos de pertença que pudessem embasar uma identidade brasileira”.
Portanto, é na década de 30 do Século XX que, com o Estado Novo de Getúlio Vargas,
os intelectuais modernistas comprometidos com os valores da cultura, dentre eles, Mário de
Andrade, mentor intelectual do anteprojeto de criação do atual Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), colocam em prática suas ideias propondo a criação
de um serviço estatal com foco na preservação do patrimônio nacional. Momento histórico
esse em que foi promulgado o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, pelo presidente
Getúlio Vargas, o qual deu o suporte jurídico para criar uma instituição – o antigo SPHAN –
que tinha sob sua alçada a legitimação e a proteção dos bens culturais, salvaguardando
oficialmente o patrimônio nacional. Contudo, embora não tenha sido levado a efeito por
muitos anos o aspecto da diversidade cultural, sobretudo, no que se refere àquilo que

1456

V V
preconizava Mário de Andrade, como bem demonstra Fonseca (1997, p. 135) ao reconhecer
que havia “na criatividade das manifestações populares a presença viva e dinâmica de nossas
raízes culturais”, isso começa gradualmente a acontecer.
Entretanto, será somente a partir da década de 1970, com a crise da ditadura militar,
que um grupo de intelectuais vinculados a atividades “modernas” assumiram uma concepção
diferenciada em relação a ideia de patrimônio, utilizando de uma nova estratégia de narração
da identidade nacional, a qual, tomava como referencial as narrativas históricas e
antropológicas sobre o Brasil, como demonstra Fonseca (1997, p. 14) quando este, coloca que
tais intelectuais viam “na área da cultura ‘marginal’, no conjunto das políticas estatais, um
espaço possível de resistência ao regime autoritário” de modo que, na visão destes, era preciso
se buscar a ampliação do “alcance da política federal de patrimônio, no sentido de
democratizá-la e colocá-la a serviço da construção da cidadania”.
Neste sentido, tal discurso democrático que levava em consideração a diversidade
cultural como uma representação pluralista da nação, como conquista de espaço na sociedade
e nas políticas governamentais, culminou em novos conceitos elaborados, digeridos e
incorporados à Constituição Federal de 1988 que estabelece na seção acerca da Cultura
(BRASIL, 1988), no art. 215 que: “o Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e as de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional”. E também ampliou e inseriu a imaterialidade no conceito de
patrimônio em seu art. 216, onde se lê que: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira”.
Contudo, é somente através do Decreto nº. 3.551, de 04 de agosto de 2000, que foi
instituído outro conjunto de políticas voltadas especificamente para o patrimônio cultural
imaterial, tendo como principais instrumentos para sua efetivação o Registro, o Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC), os Planos de Salvaguarda e o Programa Nacional
de Patrimônio Imaterial (PNPI). Sendo que esse último tem como objetivo fomentar projetos
de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da diversidade cultural excluída da
sociedade brasileira, e é com este e suas especificidades que nos ocuparemos no item
seguinte.

1457

V V
2 OS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E REGISTRO DE REFERÊNCIAS
CULTURAIS: SEUS FINS E PROPÓSITOS
Importa lembrar, antes de qualquer coisa, que o procedimento adotado para o registro
de um bem imaterial é diferente daquele observado para outro bem de natureza material, e que
sua manutenção se dá pela constante atualização. Pois, os bens de natureza imaterial são bens
processuais que envolvem determinados saberes, celebrações, formas de expressão e lugares,
que um grupo atribui um sentido especial e a este dá tangibilidade (Meirelles; Pedde, 2014).
Sendo, portanto, desta forma que, estes, são agregadas ao patrimônio, as referências culturais
e as manifestações sociais.
Processualmente falando e se referindo-se especificamente ao Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC) e a metodologia neste utilizada pelo IPHAN tem-se que sua
documentação é feita através do que chamamos de Inventário de modo que este, não é em si
uma política de preservação e/ou salvaguarda, mas uma metodologia que permite ao IPHAN
avaliar a real importância de um determinado bem e/ou referência cultural para que,
posteriormente, possa ser feito seu Registro e, daí para diante incluí-lo no Plano Nacional de
Patrimônio Imaterial (PNPI) onde, efetivamente, serão pensadas e implementadas as políticas
de preservação e salvaguarda devidas.
Já o Registro, como muito bem esclarece Castro (2008), nada mais é do que o seu
reconhecimento efetivo, por parte do Estado e de seus representantes legais, no caso o
IPHAN/Minc, de que determinado bem ou prática cultural representa um dado grupo, um
dado modo de vida, um determinado modo de saber fazer, etc., sendo também a expressão de
sua diversidade, reconhecida e inventariada.
Desta feita, tem-se que a legitimidade auferida – através de seu Registro pelo IPHAN
– busca colocar em destaque segundo Castro (2008, p. 19), “a sua relevância para a memória,
a identidade e a formação da sociedade brasileira”. Ressalte-se, contudo, que o registro
constitui-se em algo que, num dado tempo, atribui valor e tangibilidade a determinada
referência que faz parte de determinada prática cultural que, no momento de sua realização, é
tida como representativa de um dado momento histórico e/ou de uma época. Assim sendo, é
natural que, como quer o IPHAN, a cada 10 (dez) anos, uma reavaliação seja feita na medida
em que, essas diferentes culturas não se encontram isoladas no tempo e no espaço, mas
permanentemente em contato e em processo de fricção interétnica, como demonstra Farias
(2006).
Em síntese, tem-se que o INRC e o Registro foram desenvolvidos, enquanto
metodologia a ser aplicada pelo IPHAN, como uma forma de identificar e levantar a

1458

V V
diversidade cultural brasileira de natureza imaterial e intangível. E, sobretudo, referem-se a
procedimentos de investigação e documentação de bens imateriais que objetivam a
salvaguarda dos elementos culturais do povo brasileiro, sendo sua realização e
acompanhamento uma responsabilidade do Governo Federal, que permite, segundo o IPHAN
(2010, p. 20), “uma adequada compreensão dos processos de formação histórica, produção,
reprodução e transmissão que caracterizam esse bem, assim como das condições, dos
problemas e dos desafios para sua continuidade”.

2.1 O INRC COMUNIDADE MBYÁ GUARANI


Essa ampliação da dinâmica de preservação do patrimônio de bens de natureza
processual contribuiu para o reconhecimento e valorização dos conhecimentos, formas de
expressão dos universos culturais das sociedades indígenas, ao que Levinho (2009, p.17)
acrescenta dizendo que isso “significou também um avanço ao mudar o eixo dessas relações,
resgatando do passado as culturas indígenas existentes no Brasil e inscrevendo-as no presente,
em sua diversidade e especificidade, como partícipes igualitários do patrimônio cultural
nacional”. Disto decorre que, por mais de 60 anos, os chamados Sete Povos das Missões, no
Rio Grande do Sul, tiveram seu patrimônio missioneiro sobrevalorizado e difundido apenas
em função de seu valor artístico e arquitetônico, segundo Meira (2007).
Contudo, com a adoção da metodologia proposta pelo INRC tem-se que o patrimônio
artístico e arquitetônico das Ruínas de São Miguel Arcanjo – até então sobrevalorizado – é
deslocado para os processos culturais, contrapondo, a partir disto, o passado vivenciado na
região com a presença do povo Mbyá-Guarani3 nos dias atuais, como assevera Freire (2007).
Desta feita, com o início do INRC Comunidade Mbyá Guarani, em 2004, na Reserva
Indígena do Inhacapetum, distante 26 km do Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, e em
seguida estendido a outras comunidades circunvizinhas tem-se que se começou a evidenciar o
modo como estes ocupam o solo que via de regra, implica numa constante mobilidade entre as
aldeias que em sua tekologia4 possui assento.
E assim, ao limitar-se o espaço geográfico de abrangência do sítio do Inventário
Mbyá-Guarani de São Miguel, logo na fase do Levantamento Preliminar, foi verificado ser

3
No Brasil, os Mbyá, os Nhandeva e os Kaiová compõem atualmente os três grandes grupos da língua guarani,
integrando a família linguística Tupi-Guarani e o tronco tupi. (IPHAN, 2006, p. 5).
4
Tekologia, é o sistema de pensamento desenvolvido pelos Guarani, o qual recobre um conjunto de questões
essenciais para o ordenamento e justificação da existência da sociedade guarani e responde, igualmente, pela
manutenção do seu modo de ser, ou teko, em língua guarani. [...] a qual, por sua vez, depende da manutenção de
sua permanente ligação com a esfera divina. (BORGES, 2004, p. 122-124).

1459

V V
impossível, ficar restrito apenas aos Mbyá do município de São Miguel, uma vez que a
mobilidade é característica fundante deste grupo indígena. E, em vista disso, adotou-se, então
para esses o termo “comunidade” em São Miguel – que remete a itinerância característica
desse povo e permite lidar com os limites geográficos difusos que tal movimento implica –
ficando assim, respaldado, neste caso, destaque no social e nas relações humanas sobre o
território, desligando a pertença dos Mbyá como exclusiva de São Miguel e reconhecendo,
assim, sua intinerância constante, embora seja a cidade de São Miguel, um importante lugar
no trânsito entre Argentina, Paraguai e o Brasil, sendo então, este, definido como o centro do
Inventário.

2.1 O REGISTRO DAS RUÍNAS DE SÃO MIGUEL ARCANJO COMO


‘TAVA” E A CONSTITUIÇÃO DE UM LUGAR DE REFERÊNCIA PARA O POVO
GUARANI
Neste item, buscamos destacar algumas ações de salvaguardas já realizadas,
decorrentes do primeiro momento do Inventário, quais sejam: os filmes: “Duas Aldeias, Uma
Caminhada”5, o Livro-CD, “Tava Miri São Miguel Arcanjo, Sagrada Aldeia de Pedra: os
Mbyá-Guarani nas Missões”, onde são registrados a identidade e a memória guarani, os seus
direitos sobre a Tava São Miguel Arcanjo, bem como demonstram suas principais
dificuldades no usufruto dos recursos naturais que fundamentam o Mbyá rekó, seu modo de
ser e estar no mundo (tekologia), contendo também registros fotográficos, musicais e outros
aspectos contidos no Inventário Nacional de Referências Culturais Comunidade Mbyá-
Guarani
Ainda nesta direção, foram realizados dois encontros, em 2006 e 2007, denominados
de “Encontro Patrimônio Cultural e Povos Indígenas”, realizados em São Miguel, com o povo
Mbyá de diversas regiões. Portanto, desses encontros chegou-se a um entendimento que se
fazia necessária a ampliação do trabalho com os Mbyá, abrangendo as demais comunidades
de todo o território por eles ocupado. Para cumprir com este objetivo, o IPHAN elaborou o
projeto ‘Valorização do Mundo Cultural Guarani’6. A partir deste projeto que teve início em

5
“Mokoi Tekoa, Petei Jeguatá: Duas Aldeias, Uma Caminhada, que relata o cotidiano em duas aldeias – tekóa
Koenju e a tekoá Anhetenguá – e contém longa sequência filmada dentro da Tava. O filme, premiado no
ForumDoc de 2009, foi exibido e distribuído a todas as escolas públicas dos cinco municípios em que ocorreu o
INRC: Caibaté, Palmares do Sul, Porto Alegre, Salto Grande do Jacuí e São Miguel das Missões.”
(IPHAN/Dossiê, 2014, p. 29).
6
O projeto ‘Valorização do Mundo Cultural Guarani’ teve início em 2009 - em parceria com o Instituto Andaluz
de Patrimônio Histórico (IAPH) e com recursos do IPHAN e da Agência Espanhola de Cooperação Internacional
para o Desenvolvimento (AECID) – comportando a realização de um Inventário Cultural ampliado com os
Guarani-Mbyá e ações de salvaguarda que haviam sido recomendadas pelo INRC Comunidade Mbyá-Guarani
em São Miguel Arcanjo. (IPHAN/Dossiê/ 2014, p. 14).

1460

V V
2009, foram executadas pela equipe do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) algumas ações
recomendadas pelo Inventário Cultural ampliado com os Mbyá-Guarani, bem como algumas
demandas solicitadas no Inventário Cultural Comunidade Mbyá-Guarani em São Miguel,
apontadas no (IPHAN/Dossiê 2014, p. 14).
Assim, o projeto ‘Valorização do Mundo Cultural Guarani deu prosseguimento e, em
2011, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) realizou a primeira etapa do INRC Ampliado,
ou seja, o Levantamento Preliminar, o qual contemplou aldeias Mbyá-Guarani localizadas
nos demais estados brasileiros (SC, PR, SP, RJ, ES).
Nesta etapa ampliada, surge com o CTI uma proposta ao IPHAN para formar
pesquisadores Guarani, para que estes possam assumir a documentação de suas práticas
culturais, proporcionando uma maior integração dos pesquisadores e os membros da
comunidade pesquisada, como também possibilita que os mesmos adquiram uma maior
compreensão das políticas culturais, deixando-os preparados para executar seus projetos.
Exemplo disso foi a execução do vídeo Tava, a Casa de Pedra, que compôs a documentação
de instrução do processo de Registro encaminhado ao Ministério da Cultura.
Iniciativas como essas facilita a circulação dos jovens em diversas aldeias para fazer
as entrevistas e gravações, possibilitando a escuta da memória dos mais velhos sobre a Tava,
ao mesmo tempo em que ocorre o entendimento da implicação das políticas culturais em
conjunto com as ações de salvaguarda.
Como desdobramento das etapas do INRC Comunidade Mbyá-Guarani em São
Miguel Arcanjo, os Mbyá solicitaram formalmente ao governo federal, o reconhecimento do
Parque Arqueológico de São Miguel Arcanjo (Tava) como lugar de importância cultural para
o seu povo. Isto porque a Tava simboliza não somente a luta diária para os Mbyá, como
também a luta por territórios, uma vez que, para eles, os antepassados ali a deixaram,
justamente com a intenção de mostrar como este território consistiu num território tradicional
de luta dos Mbyá-Guarani (IPHAN, 2004, 2006, 2007; Catafesto de Souza; Morinico, 2009;
Moraes, 2009, entre outros).
A instrução do processo de Registro da Tava em São Miguel Arcanjo, oficialmente
concluído e aprovado no dia 4 de dezembro de 2014, teve início com a realização de um
estudo complementar que visava aprofundar os múltiplos sentidos atribuídos ao lugar pelos
Guarani78. O referido processo foi executado pelo Instituto de Estudos Culturais e Ambientais

7
A bibliografia etnohistórica tem tratado com cuidado as classificações étnicosociais impostas pela ordem
colonial, demonstrando que as fronteiras étnicas eram, na verdade, imprecisas e sujeitas a transformações ditadas
tanto pelas relações entre os grupos indígenas, quanto pelas situações concretas decorrentes da conquista e

1461

V V
(IECAM) e contou, durante sua realização, com a participação de alguns membros que já
haviam trabalhado para o IPHAN por ocasião do INRC Comunidade Mbyá-Guarani. Tal
estudo prolongou-se por cerca de um ano e resultou em evidência empírica de que a Tava
articulava as experiências do tempo presente com aquelas ligadas ao tempo passado (tempo
vivido pelos ‘primeiros Mbyá’, que construíram as edificações e deixaram marcas nas pedras,
como pressupõe a teoria êmica9).
Assim, dando prosseguimento à instrução do processo de Registro da Tava em São
Miguel Arcanjo, o IPHAN contratou a ONG Vídeo nas Aldeias para elaboração de um filme
sobre a Tava, de modo que, através dos cineastas Guarani Ariel Ortega e Patrícia Ferreira,
que participaram tanto da elaboração do roteiro quanto da realização das filmagens e da
edição, registraram-se “[...] as palavras dos mais velhos sobre a Tava”, ou seja, resgatou-se a
memória de tempos outros o que inclui considerar sua tekologia e sua relação com o sagrado
como algo basilar no entendimento do lugar que a Tava ocupa no seu imaginário, enquanto
categoria adjetivada (Tava Miri), e o que ela representa (GONDIM; MEIRELLES, 2014).
Desde o início do primeiro Inventário Cultural, em 2004, até a finalização do processo
de Registro da Tava em São Miguel Arcanjo, em 2014, houve, por um lado, um processo de
significação de um cognato “patrimônio” anteriormente inexistente entre os Mbyá-Guarani.
Esse processo também serviu ao IPHAN para que o mesmo aprendesse a trabalhar com os
povos indígenas e com instituições não-governamentais, os quais, como referenda o Dossiê do
IPHAN (2014), foram fundamentais para o avanço dos trabalhos e, também, para sua
conclusão, mesmo que passados dez anos e que, ainda, implicou na consolidação de uma
extensa rede de parcerias com técnicos, pesquisadores, instituições governamentais e/ou não
governamentais que tiveram como objeto a Comunidade Mbyá-Guarani no Estado do Rio
Grande do Sul e fora dele.
No filme Tava, a Casa de Pedra, contém importantes considerações sobre os sentidos
atribuídos à Tava em São Miguel Arcanjo. No que se refere especificamente a Tava como
referência cultural e objeto de Registro tem-se que “[...] o termo Tava, no caso de São Miguel

colonização de seus territórios pelos europeus. Embora a documentação oficial, sobretudo a partir do século
XVIII, demonstre uma crescente distinção sociocultural entre os Guarani monteses e os demais Guarani, esses
‘segmentos’ não viveram isolados (FAUSTO, 2005, p. 389 apud IPHAN/Parecer, 2014, p. 37).
8
E ainda, definiram como título do Registro, Tava, Lugar de Referência para o povo Guarani. Fizeram questão
de autoreferirem-se como Guarani, como forma de enfatizar o compartilhamento de significados culturais com
esse ‘grupo maior’. (IPHAN/Parecer, 2014, p. 3).
9
Neste sentido, como demonstra o Parecer do IPHAN (2014, p. 29) relativo ao seu processo de Registro, “[...] o
sistema de pensamento Mbyá, reconhece a existência de uma continuidade entre a pessoa e aquilo que ela cria”
de modo que “[...] os locais por onde passaram os ‘primeiros Guarani’ são reconhecíveis por meio de sinais que
os karaí percebem”.

1462

V V
Arcanjo, abrange as ruínas e o espaço onde, no passado, houve uma grande tekoá10 Guarani,
uma aldeia dos antigos”11, segundo consta na Ficha de Identificação-Edificações, F30/1, que
compõe o INRC Comunidade Mbyá-Guarani em São Miguel Arcanjo. Contudo, existem
outras Tavas como demonstra Litaiff (2009) quando esse se refere a narrativas coletadas por
ele, etnografia realizada junto a outras comunidades Mbyá-Guarani de Santa Catarina.
Portanto, as tavas estão diretamente relacionadas ao trânsito e à territorialidade Mbyá-
Guarani.
A Tava, assim, “[...] se constitui num lugar12, porque possui sentido cultural
diferenciado, expresso nas narrativas míticas e nas vivências que abriga, no tempo presente,
que lhe conferem singularidade” (IPHAN, 2014, p. 37), motivo esse pelo qual o referido
Parecer do IPHAN que acompanha o Dossiê se encerra recomendando enfaticamente que seja
feito o Registro e inscrição da Tava de São Miguel Arcanjo no Livro dos Lugares, criado pelo
Decreto n° 3.551, de 4 de agosto de 2000. E, nesse sentido, com a proposição de um plano de
salvaguarda ligado ao Registro da Tava, como apontado no IPHAN/Dossiê (2014, p. 55), tem-
se que, esta, deixará de ser um “lugar de seu esquecimento” para tornar-se então “um lugar de
pertencimento” do povo Guarani, princípio este que “deverá nortear a gestão do Parque
Histórico das Missões”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que pudemos perceber no presente estudo foi que a partir do processo de Inventário
e Registro das Ruínas de São Miguel, a noção de patrimônio assumiu tangibilidade e
concretude entre os Mbyá-Guarani, contribuindo para o resgate de sua própria tradição,
memória e ancestralidade, esta, através do registro da memória dos velhos, os karaí.
Da mesma forma, ao buscarmos captar as diferentes percepções existentes acerca da
noção de patrimônio, na atualidade, entre os Mbyá-Guarani constatou-se que esse cognato
assumiu no decorrer dos 10 anos que se passaram, desde seu início, no Levantamento
Preliminar do INRC Comunidade Mbyá-Guarani em São Miguel Arcanjo, muitos sentidos e
significados e que hoje, este, relaciona-se quase que estritamente a relação que tecem com a
natureza e o território, o qual tem por base sua tekologia.

10
No universo indígena, tekoa representa o lugar por excelência – espaço ambiental, sócio-histórico e espiritual
– no qual se materializam as condições de possibilidade do modo de ser Guarani. O modo de ser, modo de estar,
sistema, lei, norma, comportamento, hábito, condição de ser, costume, cultura Guarani, é representado pela
expressão teko (PEREIRA, 2013, p. 51).
11
Grifo no original.
12
Grifo no original.

1463

V V
Percebeu-se ainda, no que diz respeito aos Guarani que, estes, subverteram a lógica da
metodologia do INRC, no que diz respeito à salvaguarda das referências culturais, isto porque
para eles não interessa que o Estado brasileiro promova a salvaguarda de seus cantos, de seus
rituais, de seus saberes e de seus fazeres, na medida em que eles mesmos o fazem com toda a
propriedade, sem depender ou precisar de apoio externo.
Motivo pelo qual, a partir da realização do INRC Comunidade Mbyá-Guarani em São
Miguel Arcanjo, e do Registro das Ruínas de São Miguel Arcanjo como “Tava, Lugar de
Referência para o povo Guarani” percebeu-se um relativo avanço em termos de políticas
relacionadas ao patrimônio Guarani na medida em que, dentre as ações de salvaguarda
previstas e já realizadas, incluiu-se a necessidade de se promover a formação técnica de
lideranças e membros da comunidade guarani para atuação da produção e transmissão do
conhecimento junto a recém reconhecida Tava e, também, em outras aldeias e lugares, os
quais trazem consigo um outro lado da história, até então contada apenas pelos não-índios e
que daqui para diante será exposta e colocada em evidência.

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ORGANIZAÇÃO CULTURAL DA SOCIEDADE E DO ESTADO: UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS POLÍTICAS CULTURAIS BRASILEIRAS
Viviane Cristina Pinto1

RESUMO: Esse texto pretende traçar uma perspectiva histórica das políticas culturais
brasileiras buscando um olhar para a ação e organização cultural da sociedade e do Estado.
Para tanto, recorre-se aos processos de modernização e desenvolvimento do Estado-nação,
bem como às relações sociais e de poder no país, em que a “sociedade civil” e sua
“organização cultural” – no sentido gramsciano das expressões – irão se constituir seja para
legitimar ou contestar a formação social brasileira e de seu Estado. Nesse processo, as
políticas culturais vão se desenvolver, não sem contradições, como ferramenta de organização
de uma identidade nacional, de um potencial econômico e como mecanismo de efetivação de
direitos sociais.

PALAVRAS-CHAVE: cultura, organização cultural, políticas culturais.

Para entrar
Quando fala-se em políticas culturais o senso comum é pensar a ação do Estado no
campo da cultura, mesmo porque a ação governamental para a organização e regulação do
setor é o principal referente que temos em nossos registros e memórias. Como pode-se
constatar com a definição adotada pela UNESCO, que entende as políticas culturais “como
um conjunto de princípios operacionais, práticas administrativas e orçamentárias e
procedimentos que fornecem uma base para a ação cultural do Estado”. (UNESCO, 1969: 4,
tradução própria)
A compreensão das questões urgentes ao campo das políticas culturais demanda um
pensar que busque as relações subjacentes aos universos político, cultural, econômico e social
em uma perspectiva histórica das relações sociais e de poder. Na busca por compreender a
ação e a organização cultural da sociedade e do Estado partimos de alguns registros existentes
procurando as interfaces desse processo social com a história das políticas culturais
brasileiras.2 Entretanto, é preciso considerar o desconhecimento e os poucos registros

1
Mestranda em Estudos Culturais pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH / USP); especialista em
Gestão Cultural pelo CELACC – Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (USP);
graduada em Administração Pública pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Araraquara/SP); com
pesquisa e atuação em políticas públicas, políticas culturais, produção e gestão cultural. vivipolcult@gmail.com
2
Aqui, cabe ressaltar que a bibliografia existente sobre as políticas culturais brasileiras “caracteriza-se pela
dispersão”, tanto por ser proveniente de áreas disciplinares diversas, quanto por ter uma desigual quantidade de
registros para “os diferentes momentos da história das políticas culturais nacionais”. Desse modo, são poucas,

1467

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organizados sobre o papel dos distintos sujeitos, grupos e instituições da sociedade civil, que
cada vez mais interferem e interagem nesse processo.

Relações com o passado colonial


Ainda que uma genealogia se oponha à pesquisa da origem, na trama histórica dos
registros das políticas culturais brasileiras essa é uma primeira questão documentada. Alguns
teóricos, como Souza (2000), irão identificar o surgimento das políticas culturais no final do
período colonial brasileiro, com o processo de independência do país3. Já Rubim (2007)
rebate tal identificação explicitando as marcas históricas desse período: colonização, invasão
cultural, perseguição, controle e dominação das culturas indígenas e africanas, censura e
impedimento do desenvolvimento educacional e cultural da sociedade brasileira. A questão
aqui não é negar as ações do Estado monárquico brasileiro no desenvolvimento de uma
“cultura” específica, mas sim colocar em questão os interesses, as relações de poder e
opressão, as exclusões sociais, políticas e econômicas históricas de nossa sociedade.
No período colonial brasileiro, de modo geral, pode-se dividir a estrutura material da
“sociedade tradicional”4 em três categorias: 1) uma “pequena minoria de proprietários”
(diretos ou indiretos) da produção mercantil centrada em atividades agrárias, destinada a
abastecer os mercados externos (“como fornecedor de produtos primários tropicais”, dentre
eles o pau brasil, o açucar, o algodão, o ouro); 2) uma “grande massa de trabalhadores
escravos” (indígenas, africanos); 3) e “os simples desclassificados e marginais, subprodutos
de uma sociedade estratificada”. O Estado e a Igreja (que na época era um aparelho
ideológico direto do Estado colonialista) ocupavam o espaço de domínio dos valores que
buscavam consolidar a civilização no país. Esse processo civilizatório pode ser caracterizado
por uma cultura invasora e eurocêntrica5, destinada a servir de campo de exploração aos
objetivos da atividade mercantil européia. (Prado Jr., 1999: 33-72)
Um problema central da história da cultura brasileira, como identificado por Coutinho
(2011) e datado desde o início da independência do país, resulta dos processos de
transformação “pelo alto”, das mudanças do Estado (e de seus mecanismos de poder) sem a

quase inexistentes, as tentativas “sistemáticas e rigorosas de compreender sua trajetória histórica”: um desafio
necessário permanente. (Rubim, 2007: 12)
3
Um primeiro pensador histórico-materialista da formação social brasileira, Caio Prado Junior (1942), considera
o início de tal processo de independência “com a transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil”
(1808) e “os atos preparatórios da emancipação política do país”. (Prado Jr., 2011: 7)
4
Caio Prado denomina de “sociedade tradicional” aquilo “que compreenderia genericamente todas as formas
econômicas-sociais que precederam o capitalismo industrial”. (Prado Jr., 1999: 27)
5
Que fixa a “cultura européia” no centro de todas as outras existentes, fazendo com que prevaleça sua forma de
desenvolvimento e de pensamento sobre o mundo.

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participação popular. Tendo em mente que a transformação social implica em uma
transformação da cultura, o autor afirma a inexistência, na época colonial brasileira, de uma
“sociedade civil” no sentido gramsciano da expressão – enquanto uma “esfera social nova,
dotada de leis e de funções relativamente autônomas e específicas […]”, como, por exemplo,
a função de garantir ou contestar a legitimidade de uma formação social e de seu Estado.
(Coutinho, 2011: 14)
Se examinarmos o Brasil da época colonial, uma sociedade pré-capitalista
(ainda que articulada com o capitalismo através do mercado mundial),
veremos facilmente a completa inexistência de uma sociedade civil. Não
tínhamos parlamento, nem partidos políticos, nem um sistema de educação
que fosse além das escolas de catequese; não tínhamos sequer o direito de
imprimir livros ou publicar jornais. Em suma: a organização da cultura, se é
que se pode falar de “organização” nesse caso, era tosca e primitiva.
(Coutinho, 2011: 19)

Na leitura de Coutinho, a “organização da cultura”6 foi definida como “o sistema das


instituições da sociedade civil cuja função dominante é a de concretizar o papel da cultura na
reprodução ou na transformação da sociedade como um todo”. Para o autor pode-se dizer que
“sem uma ‘organização da cultura’, não existe sociedade civil no sentido gramsciano da
expressão”. Ele afirma que no Brasil colonial os intelectuais estavam ligados diretamente à
administração da colônia e aos seus interesses colonizadores, de tal modo que evitavam “pôr
em discussão as relações sociais de poder vigente”. De um ponto de vista geral, tratava-se de
uma organização marcada pelo incentivo a uma “cultura de fachada” ou “cultura ornamental”
e elitista, que a política oligárquica apoiava e que não tinha uma incidência sobre os
problemas reais da população. (Coutinho, 2011: 14-22)
Na história global, as fissuras na estrutura social colonial – que vão possibilitar o
desenvolvimento das nações e nacionalidades (unidades políticas e econômicas em torno de
Estados) – derivam da Revolução Industrial e tecnológica na segunda metade do século
XVIII. O desenvolvimento do Estado-nação brasileiro nas diferentes dimensões (política,
econômica, social e cultural) foi fruto de um processo de modernização fortemente

6
Expressão utilizada por Gramsci em “uma coletânea de seus escritos do cárcere” conhecida por “Os intelectuais
e a organização da cultura”, que reúne “os textos relativos à questão dos intelectuais e da relação deles com os
mecanismos de reprodução cultural da realidade (sistema educacional, jornalismo etc)”. (Coutinho, 2011: 13)
Gramsci entende os intelectuais enquanto representantes de uma elaboração social “caracterizada por uma certa
capacidade dirigente e técnica”. Ele considera, na questão da distinção entre intelectuais e não-intelectuais, que
“Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então, mas nem todos os homens desempenham na
sociedade a função de intelectuais”; e parte de um entendimento da escola como “o instrumento para elaborar os
intelectuais de diversos níveis”. (Gramsci, 7-10;12)

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condicionado pelo sistema capitalista industrial-urbano dependente7 e pela formação de uma
ordem social competitiva8. É nesse processo que a “sociedade civil” e a “organização da
cultura” do país irão se constituir seja para legitimar ou contestar a formação social e do
Estado, bem como as políticas culturais brasileiras vão se desenvolver, não sem contradições,
como ferramenta de organização de uma identidade nacional, de um potencial econômico e
como mecanismo de efetivação de direitos sociais.

Inauguram-se as políticas culturais brasileiras


Os “dois grandes processos interdependentes da era [moderna]” foram definidos como
“a criação de um sistema de Estados nacionais e a formação de um sistema capitalista
mundial”, acrescentando-se a esses o de desenvolvimento da civilização e da cultura moderna.
(Tilly apud Arrigui, 1996: ix) Tais processos vão impulsionar a transição histórica “da
existência rural para a urbana”. Na vida econômica das sociedades, há uma mecanização em
larga escala da produção (que alterou profundamente as relações de produção e trabalho) e a
reprodução e acumulação ampliada do capital dependente do poder estatal. No
desenvolvimento da civilização e da cultura moderna, sob influência do espírito Iluminista a
palavra cultura9 – que até então era utilizada na sua versão original –, passa a ser utilizada
como sinônimo de civilização10 e a recomendar uma forma de vida a superar o barbarismo, a
desfazer a rusticidade e atraso da vida rural. (Eagleton, 2005: 10)
No Brasil, os primeiros esboços da industrialização e introdução na ordem internacional
do capitalismo industrial se dão no século XIX acentuando-se no início do século XX,
sobretudo com a produção e comercialização internacional do café. Ainda em termos
econômicos, a função exportadora da organização e estrutura social do país adquire novo
7
Forma pela qual o capitalismo propagou-se como processo histórico-social brasileiro, como absolutamente
dependente do poder estatal.
8
Própria de uma dinâmica de concentração de renda e poder de uma sociedade de classes.
9
No livro Palavras-chave, Raymond Williams afirma que em todos seus primeiros usos a palavra cultura “era
um substantivo que se referia a um processo: o cuidado com algo”. Na etapa seguinte passa a ser usada por
metaforização e então “ampliou-se para incluir o processo de desenvolvimento humano, e esse, [...] foi o
principal sentido até o final do S18 e início do S19”. O autor enumera três categorias amplas e ativas de uso da
palavra cultura: (1) como “substantivo independente e abstrato que descreve um processo de desenvolvimento
intelectual, espiritual e estético, a partir do S18”, como sinônimo de civilização; (2) como “substantivo
independente, quer seja usado de modo geral ou específico, indicando um modo particular de vida”, conhecido
como o sentido antropológico, que teve seu “desenvolvimento decisivo” em inglês “no final do S19 e início do
S20”; (3) como “substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual
e, particularmente, artística”, no âmbito das artes. (Williams, 2007: 117-122)
10
Usa-se o termo civilização, em geral, “para designar um estado ou condição consumada de vida social
organizada”. O termo tornou-se comum no final do S18 e no S19 para indicar tanto um estado (uma “condição
adquirida de refinamento e ordem”) quanto um processo – enfatizando o espírito Iluminista de
“autodesenvolvimento humano secular e progressivo” –, sendo muito usado como sinônimo da palavra cultura (o
que será revisto com as críticas românticas às “pretensões da civilização”). (Williams, 2007: 82-83)

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sentido e expressão: ganha relevância no abastecimento das matérias-primas utilizadas pela
indústria; e dos gêneros alimentícios destinados à subsistência das populações urbanas que a
industrialização necessita. (Prado Junior, 1999: 83-84) A centralidade da indústria e da lógica
capitalista na vida econômica da sociedade moderna foi acompanhada pela valorização
cultural da vida urbana. Em um processo civilizatório baseado nas revoluções científica e
industrial, o “discurso competente”11 buscou afirmar “um padrão cultural único tido como
verdadeiro e melhor para todos os membros da sociedade”. Processo pelo qual as culturas
erudita e acadêmica se sobrepuseram aos conhecimentos e às culturas tradicionais e
populares. (Chauí, 1980: 40)
A estrutura da vida econômica do período caracterizou-se pela formação de uma
sociedade de classes que pôde garantir a reprodução das relações capitalistas de exploração.
De modo geral, tal estrutura dividiu-se em dois pólos opostos que expressavam a
concentração da riqueza e da expansão material: de um lado os donos dos meios de produção,
os homens de negócios, proprietários e empresários12; de outro, os detentores da força de
trabalho, os trabalhadores (não mais escravos, bem como imigrantes de diversas
nacionalidades). (Prado Junior, 1999: 93) Nesse período, ainda que a “sociedade civil”
estivesse em um estágio embrionário e a “organização da cultura” seguia correspondendo à
elite dominante, a partir das inúmeras transformações elas se tornarão cada vez mais
complexas: “começa assim a surgir, com a introdução do capitalismo, com o início das lutas
operárias e com as agitações das camadas médias, um germe do que se poderia chamar de
‘sociedade civil’”. (Coutinho, 2011: 23-24) Aqui, vale ressaltar que sobre a economia
escravista instalou-se uma sociedade autoritária e hierárquica baseada no liberalismo político,
em que “não só o Estado aparece como fundador do próprio social, mas as relações sociais se
efetuam sob a forma da tutela e do favor (jamais do direito) e a legalidade se constitui como
círculo fatal do arbítrio (dos dominantes) à transgressão (dos dominados)”. (Chauí, 1989: 47-
48)
No contexto global da virada do século XIX, o capitalismo tardio e dependente
brasileiro (e seus desdobramentos sociais) coincidem com uma outra mudança semântica na
ideia de cultura, que passa a ser utilizada como antônimo de civilização, palavra esta que
adquire uma “conotação imperialista”, como “um termo valorativo”. (Eagleton, 2005: 20-22)
Nesse novo sentido, cultura passa a ser usada pelo movimento romântico (anticolonialista)

11
Aquele “que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado”. (Chauí, 1980:7)
12
Tratava-se de uma burguesia nascente, agente estruturadora das transformações do período, dependente
recíproca do Estado em formação.

1471

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para uma crítica ao capitalismo industrial, de modo a diferenciar o desenvolvimento humano,
do material, opondo-se à “inumanidade” do desenvolvimento industrial, ao racionalismo
abstrato e ao caráter mecânico do processo de industrialização, tidos como causas do caos e
da decadência social. Esse movimento enfatiza as culturas nacionais e tradicionais, trazendo
uma nova perspectiva ao conceito de “cultura popular”13.
Nesse período histórico, outro aspecto a se considerar é o novo advento da “indústria
cultural”14, que gera questões sobre a natureza das produções culturais massivas e sobre os
efeitos do mercado à cultura. Como reação a essas mudanças correspondem certas
“modalidades de ação do Estado no campo cultural”. A teoria social clássica, nos anos 1940 e
1950, reage pela proteção da produção simbólica da “alta cultura” dos efeitos do mercado.
Nesse caso, o Estado deveria promover políticas de subsídio para a eliminação das barreiras
de preço e, consequentemente, do acesso ao consumo. Busca-se uma emancipação da lógica
do mercado, além do acesso das classes populares a um tipo específico de expressão cultural
inacessível às massas até então. A preocupação – “orientada pelos ideais iluministas” – gira
em torno da universalização da cultura (entendida no âmbito das artes consagradas e do
processo civilizatório) e da democratização do acesso (entendido na esfera do consumo). Para
garantir e ampliar o acesso igualitário aos bens e serviços culturais tidos como patrimônio da
humanidade, surgem ações do Estado conhecidas por “políticas de democratização cultural”15.
(Lima; Ortellado & Souza, 2013)
No processo dinâmico local em relação ao global, surgem duas iniciativas no campo das
políticas culturais brasileiras consideradas por muitos teóricos inauguradoras da ação do
poder político no campo da cultura, porque alteraram significativamente o cenário. No
entanto, inaugura-se também no país – “em decorrência de seu perfil autoritário e elitista” –,
uma problemática estrutural das políticas culturais brasileiras: a sua forte relação com
governos autoritários, que as utilizam para legitimar a estrutura de poder da classe dominante
e manter as bases fundamentais hierárquicas da sociedade. (Rubim, 2007: 14)

13
Segundo o Romantismo, os traços principais desse novo conceito são: o primitivismo (“idéia de que a cultura
popular é retomada e preservação de tradições”), o comunitarismo (ideia de que “a criação popular nunca é
individual, mas coletiva e anônima”) e o purismo (ideia de que o povo “é o povo pré-capitalista, que não foi
contaminado pelos hábitos da vida urbana”). (Chauí, 1989: 19-20)
14
Para referir-se “à produção cultural própria do capitalismo” – a produção de mercadorias culturais
padronizadas com a intenção de formar percepções comuns “dirigidas ao consumo em larga escala” (massivo) –
Adorno e Horkheimer propõem em 1947 o conceito de indústria cultural. (Dias apud Williams, 2007: 431-432)
15
Como exemplo dos “instrumentos de intervenção” dessa modalidade de política cultural tem-se: os “centros
culturais orientados à difusão” e as “orquestras públicas com entradas subsidiadas”. (Lima; Ortellado & Souza,
2013: 10)

1472

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A primeira iniciativa inaugural refere-se à atuação do Ministério da Educação e Saúde,
de 1934 a 1945, durante o Estado Novo, que teve à frente Gustavo Capanema na tarefa de
garantir o desenvolvimento educacional e cultural do governo Vargas. De modo geral, os
projetos deste Ministério – de reforma do sistema escolar, do desenvolvimento das artes
consagradas, bem como de ações orientadas ao grande público (como o rádio, o cinema, a
música) –, tinham o objetivo de formar mentalidades para o compromisso com os valores e as
regras da nação em construção, no sentido de minimizar os conflitos sociais. (Schwartzman,
1984)
É nesse período que fortalecem ações do Estado voltadas à identidade e patrimônio
cultural para a preservação e institucionalização de certas tradições culturais e bens materiais
e artísticos representativos dos valores e símbolos da nação.16 Além das ações de
“democratização cultural”, para impedir que a nacionalidade fosse ameaçada por outras
ideologias e nações – principalmente pelos Estados Unidos, que despontavam como novo
“centro da economia mundial capitalista”17 –, inauguram-se as primeiras “políticas de
intervenção e regulação econômica”, que deram impulso à indústria cultural nacional. (Lima;
Ortellado & Souza, 2013)
A iniciativa da gestão Capanema deve ser compreendida no contexto político em que se
inseria, como parte de um programa maior de um governo contraditório, caracterizado por
práticas populistas e conservadoras: um misto de ações afirmativas, com importantes
legislações e institucionalizações; e de ações negativas, unidirecionais, com certa censura e
opressão, próprias de um regime ditatorial. (Rubim, 2007: 16)
A outra iniciativa inaugural das políticas culturais brasileiras – simbolicamente a
principal delas, mesmo tendo sido um experimento em âmbito municipal institucionalizado
nas ações do Departamento de Cultura de São Paulo (de 1935 a 1938) –, levou um grupo de
intelectuais modernistas, tendo a frente Mário de Andrade, a buscar superar o momento em
que viviam com esforços para a realização de um objetivo comum: a construção de uma
“cultura nacional autônoma”. Tal construção se daria pela busca das raízes populares e vitais
do povo com vistas a superação dos artificialismos e formalismos da cultura erudita e
acadêmica, transplantada de modelos culturais importados. (Barbato Jr., 2004)

16
Ainda que tais ações tenham surgido no movimento de centralização política e administrativa, que no Brasil é
marcado pelo processo de independência do país, somente nesse momento histórico elas irão compor o rol de
intervenções sistemáticas e conjuntas do Estado no campo da cultura.
17
Conforme história econômica mundial como desenvolvida por Fernand Braudel no trabalho Civilização
material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII (1979).

1473

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Mesmo em tão pouco tempo, o pioneirismo da experiência do artista como homem
público – principalmente no que se refere à orientação de ações de democratização nas esferas
da cultura e educação, que abriram um universo de possibilidades de criação e inovação –
teve um impacto revolucionário para a época ao propor uma outra forma de pensar e fazer
cultura que foi e ainda é base de uma matriz que vai sendo reapropriada e adaptada ao longo
do tempo. (Rubim, 2007)
Pelos indícios histórico-culturais a iniciativa em âmbito e impacto nacional parece estar
mais condizente com uma ideia de cultura restrita ao conjunto das artes consagradas e ao
processo civilizatório, na mobilização de um ideário de padrão cultural que orienta à uma
forma de vida específica (erudita, modernizadora, que busca amenizar os conflitos sociais e
reproduzir os interesses de uma classe dominante). Pode-se afirmar que o experimento
municipal está mais afeito aos ideários anticolonialistas do movimento romântico e
modernista ao enfatizar uma cultura de raízes populares, no sentido de uma pesquisa
etnográfica e de busca pelo conhecimento do nacional-popular.

Um novo contexto
No cenário internacional, pós-Segunda Guerra Mundial – em que a democracia assume
lugar central como forma política e as críticas à ideia tradicional de cultura (elitista, pensada
predominantemente no âmbito das artes ou dentro do processo civilizatório) abrem espaço
para um entendimento ampliado e democrático –, há uma mudança precisa no debate sobre as
ações do Estado no espaço sociocultural, pautada por reivindicações populares que passam a
entender tais ações no sentido da garantia de direitos sociais básicos enquanto elemento
central para a transformação social do mundo contemporâneo. Essa guinada histórica, que
colocou a questão cultural e educacional na ordem do dia, foi fruto de uma imensa politização
e atuação – que teve seu auge nos anos 1960 – de diversas organizações e movimentos (como,
por exemplo, o movimento camponês, o movimento operário, o movimento de mulheres, o
movimento de contracultura).18
O contexto democrático possibilitará a ampliação da rede de organização cultural da
sociedade brasileira, criando a seus atores possibilidades de subsistência fora do aparelho do

18
As ideias e conhecimentos articulados por uma nova teoria crítica cultural, os Estudos Culturais, serão
fundamentais para estabelecer as bases de um entendimento democrático e ampliado de cultura, fortalecendo um
pensar sobre as condições essenciais e estruturais de ser e existir no âmbito da atuação do Estado e da sociedade.
Nessa perspectiva, a ação cultural do Estado deve reconhecer e apoiar a produção, difusão, fruição simbólica da
sociedade na sua diversidade.

1474

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Estado e de construir uma autêntica “sociedade civil”.19 (Coutinho, 2011) Nesse período
houve um desenvolvimento cultural em diversas áreas20, despontando importantes instituições
da “sociedade civil” inauguradoras de uma nova experiência de relacionar temáticas culturais,
educacionais e políticas no sentido de contestar a estrutura social desigual e atuar para
transformá-la, como é o caso dos Centros Populares de Cultura – CPCs e do Movimento de
Cultura Popular do Recife21. Entretanto, o contexto efevercente de ideias e iniciativas
populares potencialmente transformadoras na cena pública, que reivindicavam um projeto
nacional e popular de mudanças profundas na estrutura social do país, irá gerar uma reação da
classe dominante que atuará para manter a ordem estabelecida destruindo a “frágil democracia
brasileira”. (Rubim, 2007: 19)
No período compreendido como República Populista (de 1945 a 1964) – ou ainda como
“interregno democrático”22 –, o enfrentamento cultural para transformações da sociedade não
tiveram correspondência com a atuação do Estado. As políticas culturais existentes não
quebraram o ciclo de legitimação da formação estrutural da sociedade, voltando-se à produção
de “um ideário nacional-desenvolvimentista no país” 23. (Rubim, 2007: 18-19)

Tradições de uma sociedade autoritária


O cenário estimulante para o desenvolvimento e democratização da vida cultural
nacional logo foi paralizado pela “aliança entre vários segmentos das classes dominantes”
para a imposição de um regime ditatorial-militar que retomou um problema central da história
social brasileira: o movimento das transformações pelo alto, das mudanças do Estado pela

19
Como formas concretas da rede de organizações culturais do período destacam-se: “a publicação de jornais e
revistas independentes, o aumento do número de editoras, uma crescente autonomia das recém-criadas
universidades”. (Coutinho, 2011: 27)
20
Ressalta-se o surgimento de inúmeros movimentos, grupos, artistas e intelectuais que utilizaram-se de novas
formas, linguagens, temas e experiências (como, por exemplo, o Movimento Folclórico Brasileiro, o Grupo
Oficina, o Cinema Novo, a Bossa Nova, artistas como Ligia Clarck, Helio Oiticica, dentre outros). (Calabre,
2009)
21
Para se ter uma ideia, os experimentos de inserção dos trabalhadores como protagonistas da produção cultural
em diversos segmentos artísticos – com ideias e princípios na educação popular de Paulo Freire – serão a base da
pesquisa e atuação do Movimento de Cultura Popular do Recife, que ganhará repercussão nacional e estimulará a
luta do movimento camponês em diversos Estados brasileiros.
22
A memória deste “momento democrático” foi definida como paradoxal por Marilena Chauí, “porque tecida de
vários esquecimentos significativos”, tais como:
[...] o de que a Constituição de 1946 define a greve como ilegal, mantém a legislação
trabalhista outorgada pela ditadura Vargas (e que é reprodução literal da Carta del Lavoro, de
Mussolini), proíbe o voto aos analfabetos (isto é, à maioria da população, na época), coloca o
Partido Comunista na ilegalidade, conserva a discriminação racial e não questiona a
discriminação das mulheres, consagrada pelos códigos Civil e Penal etc. (Chauí, 1989: 50)
23
Destaca-se a criação e a atuação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB na “invenção de um
imaginário social” que terá grande impacto na conformação do cenário político, contribuindo com o pensamento
para grandes ações do poder Estatal que impactaram na formação e organização cultural brasileira da época.
Como, por exemplo, a construção de Brasília no governo de Juscelino Kubitschek. (Rubim, 2007: 18-19)

1475

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força, domínio e repressão, que “tentou por todos os meios destroçar o embrião de sociedade
civil autônoma que se vinha esboçando”. (Coutinho, 2011: 28-29)
Seguindo uma tendência global desse período, de aumento da mobilidade geográfica do
capital com a liberalização e expansão do comércio e da produção mundial – segundo a nova
fase de reprodução ampliada da economia mundial capitalista –, o governo criou as condições
políticas necessárias à passagem do capitalismo brasileiro para a etapa da dominação dos
monopólios internacionais. O papel do Estado como indutor da produção e do consumo de
bens simbólicos como mercadoria foi impulsionado, estimulando crescentemente a lógica da
indústria cultural. Com uma diferença aos períodos anteriores, agora grandes monopólios
passam a controlar os meios de comunicação de massa – sobretudo a televisão, boa parte da
imprensa, do cinema – e utilizá-los para fins propagandísticos e doutrinários, como
instrumento de legitimação e controle político das ideias, buscando uma integração simbólica
nacional reprodutora da idologia oficial. (Coutinho, 2011)
Para potencializar as transformações do desenvolvimento capitalista e aproveitando as
facilidades para obtenção de crédito internacional, o regime militar se pautou em uma política
de aceleração econômica dependente do capital externo. Isso se deu a partir da associação das
burguesias industriais nacionais com a comunidade internacional dos negócios. O “milagre
econômico” – período de 1968 a 1973 em que a economia do país cresceu a uma média de
11% – se deu por meio de um grande endividamento externo que, somado ao aumento do
preço internacional do petróleo e ao aumento dos juros da dívida, levaram o país à uma
grande crise e recessão a partir de 1979. Na dinâmica social, os benefícios do
desenvolvimento econômico limitaram-se aos estratos burgueses, enquanto que as classes
subalternas foram silenciadas e os opositores políticos foram fortemente reprimidos por
práticas de censura e terrorismo ideológico.
Rubim (2007) divide a ação do regime ditatorial no campo da cultura em três momentos
distintos: no primeiro, que vai de 1964 a 1968, os movimentos e setores populares são o alvo
da censura e repressão (ainda não sistemáticas); no segundo, de 1968 a 1974, a violência é
brutal e sistemática bloqueando efetivamente a efervescência anterior e gerando um enorme
vazio cultural preenchido pela atuação da mídia monopolizada; no terceiro, de 1974 a 1985 –
difundido pelos governistas como o momento de abertura política por meio de uma “transição
lenta, gradual e segura” –, se deu a maior atuação e investimento do regime militar na cultura,

1476

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com a criação de diversas instituições24 e a realização de muitos eventos, como tentativa de
cooptação dos profissionais das artes. De todo modo, foram ações limitadas às concepções
elitista e mercadológica da cultura.

A reorganização cultural da sociedade e a ascensão neoliberal


O movimento de “transição democrática” – que abrange o final do governo militar, o
processo constituinte (1987-1988) e as eleições presidenciais de 1989 –, foi caracterizado pela
crítica da esquerda socialista como uma reforma da autocracia burguesa para permanecer no
poder. Durante o período de crise da ditadura houve o ressurgimento dos movimentos sociais
e populares – fato que teve pouco relevo para a memória da interpretação sócio-política do
período, que manteve seu foco nas ações do Estado.
O uso da política e da indústria cultural para a difusão e controle ideológico da classe
dominante, o uso da força para que alguns exerçam a dominação sobre outros e o controle
privado do que é público, foram questionamentos colocados pela classe intelectual e artística
para o recém formado Partido dos Trabalhadores (1980) – que, na época, se propôs a
fortalecer e dirigir o movimento social em curso por uma transformação da ordem existente –
pensar um projeto cultural democrático e alternativo à sociedade brasileira. (Chauí [e outros],
1984)
No contexto internacional, no campo das políticas culturais, vale ressaltar os inúmeros
encontros realizados pela UNESCO (1970, 1972, 1973, 1975, 1978 e 1982), que
estabeleceram princípios significativos para a orientação da ação dos Estados. A “Conferência
Mundial sobre Políticas Culturais”, realizada em 1982 no México, por exemplo, entendendo a
educação e a cultura (em seu sentido amplo) como fundamentais para o desenvolvimento do
indivíduo e da sociedade, definem a importância: da afirmação da identidade cultural, para,
entre outras coisas, fortalecer a libertação dos povos frente a qualquer forma de dominação;
da dimensão cultural do desenvolvimento, ressaltando, em busca da humanização do
desenvolvimento, que o crescimento qualitativo tem maior relevância do que o quantitativo;
da democracia, entendendo o direito cultural como um direito fundamental humano, tendo o

24
“Dentre elas: Fundação Nacional das Artes (1975), Centro Nacional de Referência Cultural (1975), Conselho
Nacional de Cinema (1976), Radiobrás (1976), Fundação Pró-Memória (1979)”. (Rubim, 2007: 21)

1477

V V
Estado que agir para implementá-lo, com vistas à participação de todos no processo de
criação, difusão e produção cultural.25 (MONDIACULT, 1982)
Em contrapartida a uma reorganização cultural da sociedade, a ideologia neoliberal será
amplamente recomendada pelos centros da economia mundial capitalista como única forma
de superar a crise financeira vivenciada em escala global. Seguindo o receituário do Consenso
de Washington26, o modelo do Estado interventor brasileiro dará lugar ao modelo gerencial
neoliberal, que prevê ações de redução da atuação direta do Estado através de processos de
privatização, terceirização e publicização27, difundidos como forma capaz de tornar a
administração pública mais ágil, eficiente e flexível. Políticas de ajuste estrutural com cortes
orçamentários nas áreas sociais, privatizações de empresas estatais e desregulamentação
econômica são marcas desse período, em que surgem e se consolidam as leis de incentivo à
cultura no país (Lei Sarney de 1986 e Lei Rouanet de 1991, vigente até hoje). No discurso
oficial, surgiram como “solução” da escassez de recursos para a área, por outro ponto de vista,
como uma nova estratégia em favor do mercado, para livrar o Estado de suas
responsabilidades sócio-culturais.
Apesar das mudanças normativas no estabelecimento de um importante marco
regulatório do comportamento do Estado em relação aos direitos humanos e à cultura (no
sentido de definir os direitos culturais como direitos fundamentais)28; e da constituição de
novas instituições da administração pública federal29, o que marca este período é a ruptura no
modo do Estado brasileiro financiar a cultura, inaugurando uma nova dinâmica do mercado
como regulador do campo cultural. (Rubim, 2007; 2011) A instabilidade estrutural da cultura
deixa que os governos interpretem as novas diretrizes constitucionais a partir da ideologia
dominante, com a associação das ideias de cultura e desenvolvimento (do mercado). Em

25
Vale ressaltar que, desde então, a UNESCO passou a adotar uma definição ampliada de cultura: “[...] em seu
sentido mais amplo, deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Ela abrange, além das artes e das
letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”
(MONDIACULT: 1982).
26
“[…] assim denominado por corresponder às perspectivas compartilhadas pelo governo americano, Banco
Mundial e FMI -, que exigia a liberalização financeira e comercial, a desestatização, o ‘enxugamento’ do
aparelho do Estado, e incentivos à exportação para garantir o pagamento da dívida externa.” (Andrews, 2010:
87-88)
27
A publicização é a transferência de serviços (sociais, científicos) para o setor público não estatal, conhecido
como organizações sociais (OSs). (Andrews, 2010: 102)
28
A partir da Constituição Federal de 1988 o Estado deveria garantir a todos o acesso, apoio e incentivo à
valorização e difusão das expressões culturais, na sua diversidade.
29
Tais como: o próprio Ministério da Cultura (1985), “Secretarias de Apoio à Produção Cultural (1986);
Fundação Nacional das Artes Cênicas (1987); Fundação do Cinema Brasileiro (1987); Fundação Nacional Pró-
Leitura, reunindo a Biblioteca Nacional e o Instituto Nacional do Livro (1987); Fundação Palmares (1988)”.
(Rubim, 2007: 24)

1478

V V
outros termos significou o aprofundamento dos mecanismos que funcionalizam a cultura para
atender a demandas mercadológicas.
No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o programa do Estado
neoliberal para a cultura brasileira ganhou impulso com uma ampla difusão da cultura como
“negócio”30. Dessa relação intensa entre cultura e investimento fortaleceram o que
denominou-se por “marketing cultural”, em que as empresas passaram a vincular as inciativas
culturais incentivadas às estratégias de construção e viabilização de sua imagem institucional,
seja como publicidade, propaganda ou mesmo enquanto certa responsabilidade social – que,
nesse contexto, duvida-se ser uma contribuição desinteressada de retornos meramente
comerciais.
No processo de promoção da dinâmica de substituição do Estado pelo mercado, a
ideologia neoliberal expandiu as leis de incentivo à cultura por todo o país tornando-as vitais
para a economia da cultura brasileira. Essa prática de financiamento consolidou no imaginário
brasileiro um problema estrutural para as políticas culturais: sua redução aos mecanismos de
isenção fiscal. (Rubim, 2007; 2011) Com isso, os princípios do mercado – quais sejam,
racionalismo, individualismo, competitividade, lucratividade –, predominam na agenda
pública, deixando de lado o desenvolvimento da ideia e de práticas de valorização da cultura
como um direito fundamental humano, que atenda a diversidade cultural da população e não
apenas a um setor reduzido de interesse do mercado.

Uma nova e contraditória fase


Uma nova fase se inicia com a construção de um projeto político-social popular inscrito
na busca por enfrentar culturalmente a cultura da dominação. Tal enfrentamento está em uma
prática política crítica ao conceito elitista, mercadológico e funcionalista da cultura, buscando
adotar e difundir na realidade concreta um sentido ampliado, fundamentado nas suas
dimensões antropológica (como um modo de vida), econômica (como vetor de
desenvolvimento) e cidadã (como um direito). Esse entendimento amplo somado a
questionamentos dos privilégios da produção e do consumo cultural da classe dominante (e
suas consequências) serão bases fundamentais para ações afirmativas do Estado, buscando

30
Como pode-se constatar com a publicação mais famosa do Ministério da Cultura durante a administração de
Weffort (em 1995), intitulada Cultura é um bom negócio e com o quantitativo das empresas que se beneficiaram
com o incentivo comparado com o do governo anterior: “Enquanto no governo Itamar 72 empresas utilizaram as
leis, no governo FHC e Francisco Weffort, este número cresceu para 235 (1995), 614 (1996), 1.133 (1997), 1061
(1998) e 1040 (1999).” (Rubim, 2011: 34)

1479

V V
reconhecer e apoiar a produção simbólica autônoma da sociedade civil na sua diversidade,
considerando, necessariamente, o quadro de exclusões e desigualdades de nossa estrutura
social e o alijamento histórico das formas de expressão populares.
Uma nova gestão do Estado, que tem o Partido dos Trabalhadores no governo, realizará
importantes iniciativas no sentido de efetivar práticas políticas de “democracia e diversidade
cultural”31, como por exemplo: o Programa Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva,
que busca reconhecer a diversidade e a autonomia na produção simbólica de grupos e
indivíduos excluídos na lógica dominante; e o Programa Identidade e Diversidade – Brasil
Plural, com ações inaugurais para as culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, ciganas,
LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, e transgêneros), idosos. (Rubim:
2011)
É notório, entre os agentes do campo cultural, como na gestão dos ministros Gilberto
Gil e Juca Ferreira (2003-2010) a área cultural passou por uma série de ações referenciais no
debate das políticas públicas de cultura32, no esforço (simbólico e em alguns casos efetivo) de
consolidá-las como uma política de Estado, buscando dar perenidade às ações culturais
independente das alternâncias de gestão. Destacamos um avanço efetivo na construção
democrática das políticas públicas do campo: o Sistema Nacional de Cultura (SNC) 33, que
estabelece um modelo de gestão articulada e compartilhada entre o Estado e a sociedade,
organizando os meios institucionais e administrativos para a construção de políticas culturais
com a participação ativa e conjunta da sociedade civil e dos entes da federação. Sua estrutura
é composta por órgãos gestores, conferências, conselhos, planos de cultura, sistemas de
financiamento, sistemas setoriais, sistemas de informações e indicadores culturais, que são
criados e organizados por Estados e municípios. (MinC, 2011: 19-25)
Outra iniciativa do período, resultante de um longo processo de discussões, debates e
consultas públicas, trata-se da (re)formulação do Programa Nacional de Fomento e Incentivo
à Cultura (ProCultura), por este concentrar-se no fomento à utilização do mecanismo de
isenção fiscal. Esse processo (que restringiu-se ao campo simbólico) desvelou inúmeras

31
Que se concretizam no fomento à cultura popular e comunitária, garantindo a participação de diversos
indivíduos, grupos e comunidades – não mais vistos apenas como “consumidores”, mas como “produtores” – na
realização de suas práticas de produção simbólica. (Lima; Ortellado & Souza, 2013)
32
Entendendo políticas públicas enquanto práticas políticas democráticas que estão no âmbito da atuação do
Estado em construção ativa com a sociedade civil. Nesse sentido, em oposição ao modelo tradicional da política
pública – que considera o Estado centralizador das decisões, atuando sobre setores definidos e delimitados da
sociedade –, entende-se que, diferentemente dessas políticas estatais, “[...] as políticas públicas para se
realizarem têm que, necessariamente, submeter suas proposições ao debate público e serem capazes de
incorporar críticas e sugestões da sociedade”. (Rubim, 2011: 48)
33
Instituído pela emenda constitucional No 71, de 29 de novembro de 2012.

1480

V V
contradições inerentes ao funcionamento das leis de incentivo no país, tais como: o uso de
recursos públicos subordinado a demandas e interesses privados; a concentração de recursos
públicos em regiões e iniciativas mais aptas e flexíveis às necessidades e regras da economia
capitalista mundial (os números e indicadores registram a concentração na região sudeste do
país, mais especificamente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo); as características
predominantes das produções culturais nessa lógica difusionista e democratizante, segundo
concepções elististas e mercadológicas da cultura; dentre outras.
Apesar da consciência e do trabalho de desvelar os problemas no mecanismo de
renúncia fiscal, na prática política cultural o quantitativo dos projetos e valores captados por
essa forma de financiamento (característica da gestão neoliberal) aumentaram crescentemente
nos últimos anos, acompanhando o crescimento econômico do país. Em um contexto
contraditório, inúmeros esforços iniciados no período, mobilizadores de uma consciência
pública e política, sofreram retrocessos e mudanças de rumo nas gestões seguintes do governo
Dilma, com as ministras Ana de Holanda e Marta Suplicy. Atualmente há certo otimismo
entre diversos movimentos sócio-culturais com o discurso de retomada e aprofundamento das
ações iniciadas anteriormente, na solução de inúmeras questões urgentes. Certamente algo a
se acompanhar para cobrar mudanças reais e permanentes.
As contradições do período estão inscritas em um quadro complexo do ciclo de
dependência do sistema econômico capitalista em relação ao poder estatal e das inúmeras
dificuldades com as mudanças nas condições estruturais da sociedade frente ao poder
(econômico e político) das classes dominantes. Considera-se esse contexto para um pensar
crítico sobre a ação e organização cultural do Estado e da sociedade, buscando entender os
inúmeros problemas inerentes às transformações sociais que não alcançam sua “razão de ser”
(ou seja, mudanças estruturais reais, profundas e opostas à estrutura social anterior), sendo
incapazes, portanto, de romper com o ciclo de dominação e invasão cultural predominante.
Em momentos de risco à democracia brasileira – como na atualidade (março de 2015) –
uma das necessidades históricas não encarada pelo governo do Partido dos Trabalhadores,
torna-se urgente: enfrentar o poder (e interesses particulares) dos meios de comunicação
dominantes e efetivar a luta pela democratização dos meios de comunicação, atuando por uma
ruptura com o ciclo de dominação cultural em nossa sociedade.

1481

V V
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1483

V V
A IGUALDADE COMO FUNDAMENTO MORAL DAS POLÍTICAS CULTURAIS
Weslaine Gomes1

RESUMO: Este trabalho procura articular os estudos sobre teorias da democracia com o
campo de pesquisa das políticas culturais. Tal articulação tem se mostrado necessária, dado
que, atualmente, no campo das políticas culturais, tem recebido destaque as políticas que
buscam promover ideais democráticos definidos por organismos políticos internacionais
como a Convenção da Unesco para Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais de 2005. Neste sentido, compreendemos que o preceito moral de igualdade é um
importante balizador de políticas públicas, com potencial para orientar a elaboração de
políticas culturais mais democráticas e inclusivas.

PALAVRAS-CHAVE: Igualdade, democracia, políticas culturais, diversidade cultural.

INTRODUÇÃO
As discussões acerca da relação entre democracia e políticas públicas têm dado
destaque atualmente às possibilidades e aos desafios que a criação de desenhos de políticas
mais participativas e igualitárias representam para os governos. Entre os diferentes estudos
que organizam o campo de pesquisa em políticas públicas alguns têm tido um viés normativo
ao refletir sobre os processos decisórios mais adequados e as instituições democráticas mais
desejáveis, enquanto outros têm analisado experiências concretas da chamada “governança
participativa”. A constatação de elementos problemáticos nos processos de elaboração e
implementação de políticas públicas e, mais em geral, nos processos decisórios próprios dos
sistemas democráticos contemporâneos, tem levado vários autores a se perguntar quais podem
ser os efeitos das políticas públicas sobre a democracia, buscando por meio de suas
abordagens reconectar tais políticas a ideais democráticos (SCHNEIDER e INGRAM, 1997).
No campo de estudo das políticas culturais, esta questão também se encontra presente.
Alguns pesquisadores e gestores culturais buscam formas de promover a democratização do
acesso aos bens e serviços culturais e assegurar o direito de todos os cidadãos e cidadãs de
participarem da vida cultural da sociedade a qual pertencem, não apenas na dimensão da
fruição cultural, mas também como produtores de cultura.

1
Atriz e Cientista Social, formada em ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em
Ciência Política, também pela UFMG. Atualmente é professora de sociologia do Colégio Técnico (COLTEC) da
UFMG/ wes.wellida@hotmail.com

1484

V V
O paradigma de democratização cultural, que ainda hoje, orienta expressivamente a
formulação de políticas culturais no país, teve sua origem nas décadas de 1960 e 1970 2, e
possui como objetivo a superação das desigualdades de acesso à cultura (BOTELHO, 2007).
Encontramos presente neste paradigma a ideia de que há uma Cultura – entendida aqui com C
maiúsculo – que se apresenta como referência para avaliar as desigualdades de acesso à
mesma. Neste quadro ainda dominante, a cultura erudita é considerada mais “legítima” que as
demais formas de expressão cultural. Assim, caberia aos gestores públicos promover sua
difusão à todos os segmentos sociais.
Nesta linha, a democratização é entendida como um movimento de
cima para baixo capaz de disseminar, a um número cada vez maior de
indivíduos, essa herança feita de práticas e representações que, pela sua
universalidade, compõem um valor maior em nome do qual se formulam as
políticas públicas na área da cultura (BOTELHO, 2007a, p. 172)

Em nosso trabalho, opomo-nos a este paradigma ainda dominante, uma vez que ele
promove a hierarquização de práticas e representações culturais. Compreendemos que a
democratização de políticas públicas culturais não se baseia na difusão da cultura socialmente
legitimada, mas na valorização igualitária da pluralidade de manifestações culturais que
compõem as sociedades contemporâneas. Defendemos que os preceitos morais de igualdade e
participação são fundamentais para a discussão acerca de quais valores devem embasar uma
concepção democrática de políticas para a área cultural. Assim, no intuito de dar mais lastro
conceitual a essa discussão, buscamos neste trabalho conectar o debate sobre a
democratização de políticas culturais às teorias democráticas. A partir da leitura dessas
teorias, compreendemos que duas dimensões são necessárias para a democratização de
políticas públicas: os princípios de igualdade e participação política. No entanto, no presente
texto nos deteremos ao princípio igualitário.

Igualdade e políticas culturais


A igualdade política é um princípio central para diferentes teorias democráticas. Tal
princípio baseia-se no direito ao tratamento igual, por parte do Estado, a todos os cidadãos e
cidadãs. O entendimento jurídico de que “todos são iguais perante a lei” sem distinções de
qualquer natureza é uma das maiores expressões deste princípio.

2
Conforme salienta Marta Porto (2007): é possível encontrar em documentos as propostas políticas de Aloísio
Magalhães, na década de 1970, de “democratização do acesso à cultura”, pautadas pela ideia de ampliação dos
equipamentos e espaços culturais “até onde o povo está”.

1485

V V
Embora a igualdade seja um princípio fundamental para diferentes teorias
democráticas, a garantia legal da igualdade não tem sido capaz de promover sua realização na
vida cotidiana dos cidadãos e cidadãs. Nos regimes democráticos, o direito à igualdade
convive com o direito à diferença, assim como, os direitos individuais, de matriz liberal, com
os direitos coletivos. Essa convivência entre princípios que, à primeira vista, podem ser
tomados como irreconciliáveis, tem suscitado fortes debates no campo de estudos culturais.
Compreendemos que o reconhecimento e garantia do direito à diferença é condição necessária
para a promoção da igualdade nas sociedades plurais contemporâneas. Procuramos articular
os valores de igualdade e diferença por meio de um projeto político emergente: a Diversidade
Cultural. Neste sentido, apresentaremos brevemente as transformações que o princípio
igualitário passou ao longo do tempo, para, em seguida, articulá-lo com o tema da diversidade
cultural.
O direito à igualdade possui uma origem liberal, sendo um legado da Revolução
Francesa, onde estavam presentes os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. John Stuart
Mill (1964) é uma importante referência da doutrina liberal. Sua obra “ a Liberdade”
apresenta um conceito de liberdade centrado na ideia da liberdade negativa, isto é, o conceito
de liberdade está baseado no direito de não interferência do Estado ou mesmo da sociedade na
vida dos indivíduos. Ao Estado cabe interferir somente se algum dano for produzido ao
indivíduo. A igualdade, nesta perspectiva, adquire a forma negativa do direito a não ser
discriminado. As políticas estatais não devem promover nenhum tipo de diferenciação entre
os cidadãos, o que será questionado por outras correntes de pensamento, como veremos
adiante. Mas, por ora, no cenário apresentado pelo liberalismo político, o indivíduo e sua
autonomia tornam-se valores que nortearão toda a doutrina jurídica ocidental e as políticas
desenvolvidas por Estados liberais.
A doutrina liberal passou por reformulações ao longo da história, bem como, o
entendimento do princípio de igualdade. Estas reformulações podem ser observadas na teoria
da justiça de John Rawls (1997), na qual estão presentes tanto direitos negativos, isto é,
direitos de não-interferência - direito que os outros não me prejudiquem – como direitos
positivos - direitos a que outros me assistam em algumas necessidades básicas.
A concepção de justiça igualitária proposta por Rawls, dá importância aos direitos
positivos, e considera até mesmo a omissão de indivíduos e instituições sociais um problema
para a justiça. O igualitarismo reconhece que as diferentes posições ocupadas pelos
indivíduos na sociedade geram desigualdades, considerando a estrutura social o objeto da

1486

V V
justiça e admitindo que as únicas desigualdades aceitas sejam aquelas que visam a favorecer
os mais desfavorecidos. Nesta perspectiva, a realização da igualdade política compreende
também o direito à intervenção estatal a fim de garantir uma redistribuição de recursos para
corrigir as diferenças materiais.
Apesar da mudança de perspectiva na questão dos direitos positivos, o pesquisador
Farid Vanegas (2009) afirma que o princípio de igualdade liberal baseia-se no valor do
indivíduo e não do grupo ao qual ele pertence. Por isso, mesmo com as reformulações, os
problemas relacionados a tensão entre os direitos do grupo e os direitos do indivíduo frente ao
grupo persistem. Dessa forma, as teorias liberais “clássicas” de justiça são insuficientes para a
discussão sobre os direitos coletivos, direitos de grupos minoritários que historicamente foram
alijados do status de cidadania (MARSHALL, 1967)
Na tentativa de propor respostas frente à tensão existente nas democracias atuais entre
o entendimento liberal de igualdade e as diferenças culturais de grupos minoritários, surgiram
correntes teóricas como o multiculturalismo. No entanto, os pressupostos multiculturais de
respeito e tolerância entre as diferentes culturas são questionados, pois, para os críticos desta
corrente, o multiculturalismo propõe a “integração de culturas subordinadas a uma cultura
hegemônica ou majoritária, que em certo sentido as toleraria ou apoiaria como uma estratégia
para manter precisamente seu controle” (GARCIA, 2009)3.
No interior deste complexo quadro que envolve pensar diferenças com igualdade
(SANTOS, 2007), muitos movimentos sociais têm reivindicado a diferença em suas lutas por
reconhecimento. O movimento feminista, que questiona o padrão masculino como referência,
o movimento negro, que se afirma em distinção aos “brancos”, os movimentos LGBTs, que
combatem os padrões heteronormativos, os movimentos indígenas que questionam a
dimensão emancipatória do paradigma da modernidade. Esta reivindicação da diferença é
importante para tais grupos e comunidades, pois contribui para o reconhecimento das
experiências comuns de opressão e para uma representação positiva destes mesmos sujeitos.
A reivindicação da diferença – e também da identidade – destes grupos tem funcionado como
uma estratégia política para lutar contra sistemas históricos de dominação e opressão.

3
Tradução nossa: “(...) integración de culturas subordinadas a una cultura hegemónica o mayoritaria, que en
cierto sentido las toleraria o apoyaría como una estrategia para mantener precisamente su control”. GARCIA,
Camilo B. ¿Multiculturalismo o Interculturalidad? In: GONZÁLEZ, D e RENJIFO, N. (org.). Derecho,
Interculturalidad y Resistencia Étnica. Bogotá: Digiprint Editores E.U, 2009.

1487

V V
Nesse contexto, em que os pressupostos de tolerância ao diferente são questionados
pela incapacidade de promover uma igualdade política substantiva, surgiram respostas
políticas que buscaram articular o direito à igualdade e à diferença. Entre tais respostas,
ressaltamos algumas que consideramos ir além da minimização da falta de integração entre as
culturas. A perspectiva de determinados autores das teorias do reconhecimento nos parece
pertinentes em nossa discussão.
Nancy Fraser (2003) propõe uma política que combine o reconhecimento das
diferenças culturais frente à injustiça cultural e políticas redistributivas frente à injustiça
material. Para a autora, a distribuição está associada ao fim da diferenciação dos grupos e o
reconhecimento àquilo que é particular ao grupo. De um lado, há a necessidade de que as
diferenças não sejam traduzidas em desigualdades materiais, daí a justa distribuição de
recursos, e, de outro, o reconhecimento de modos de vida diferentes dos padrões culturais
hegemônicos. A autora procura estabelecer paradigmas de justiça que informam as lutas dos
movimentos sociais por reconhecimento (PINTO, 2008). Assim, as pessoas e grupos em
situação de desvantagem social, tanto cultural quanto material, teriam que se diferenciar e se
afirmar como iguais ao mesmo tempo (MENDONÇA, 2011). Este aparente dilema entre os
princípios de igualdade e diferença recebe da autora uma resposta que os articula: a noção de
paridade de participação. Esta noção está associada à distribuição de recursos e ao direito à
diferença. Estas seriam as condições para a construção de uma organização social que
possibilite a todos os membros da sociedade participarem da vida pública em condições de
igualdade (FRASER, 2008).
Em uma abordagem distinta da de Fraser, Axel Honneth (2003) compreende que o
reconhecimento perpassa três esferas: amor, direito e solidariedade. Sem aprofundar na
apresentação destas esferas, interessa-nos ressaltar que elas são indispensáveis para
compreendermos a ideia de reconhecimento como autorrealização. A experiência do amor
possibilita ao sujeito a autoconfiança necessária para manifestar seus desejos; as relações do
direito dão ao sujeito a possibilidade de manifestação pública de suas ações, uma vez,
sabendo-se respeitado por todos em sua autonomia. O reconhecimento advindo das relações
de solidariedade proporciona aos sujeitos a estima social necessária para que possam se referir
positivamente às suas habilidades e atributos singulares.
Embora adotem paradigmas diferentes, procuramos demonstrar que as teorias do
reconhecimento de Fraser e Honneth operam com as chaves do direito à igualdade e à
diferença. A primeira realiza esta operacionalização, ao articular reconhecimento e

1488

V V
distribuição, como salientamos anteriormente. Já Honneth (2003), em diálogo com Fraser
(2003), afirma não negligenciar a dimensão da distribuição, trabalhando o reconhecimento em
uma categoria ampla que engloba a distribuição na dimensão das relações jurídicas, uma vez
que há o pressuposto de que todos os membros da sociedade devam ser tratados igualmente
perante a lei; e na dimensão das relações de solidariedade, já que em uma sociedade
democrática seus membros devem poder se referir positivamente a suas capacidades pessoais.
Podemos encontrar na abordagem dos autores citados, elementos que nos oferecem
apoio conceitual para a problematização das relações culturais nas atuais democracias. No
horizonte teórico de ambos os autores, está presente o intercâmbio entre o universal e o
singular. Daquilo que é expressão do princípio de igualdade universal4 e das relações
intersubjetivas travadas pelos sujeitos. Esta mesma interlocução pode ser observada
atualmente no campo das políticas culturais. As vertentes de estudo do campo têm sinalizado
para a necessidade de construção de um novo paradigma, que não se caracterize pela adoção
de uma perspectiva multicultural, mas de uma perspectiva em que a diferença não seja
traduzida como desigualdade. É nesse cenário, que a Diversidade Cultural articula-se com o
princípio da igualdade: como um projeto político que busca garantir o direito dos diferentes
de serem tratados igualmente, e com potencial positivo para orientar a elaboração de políticas
culturais democráticas.
José Márcio Barros (2008) afirma que a Diversidade Cultural deve ser pensada sob um
ângulo de maior complexidade, que não a compreenda como um “mosaico harmônico” de
diferenças, mas como um enredo no qual estão presentes também as contradições e conflitos
culturais. O pensamento complexo sobre a questão da diversidade evita posturas românticas e
possibilita a construção de um projeto político a partir de uma realidade antropológica.
A Diversidade Cultural é a expressão de opostos. O singular, o
intraduzível, a capacidade e o direito de diferir, bem como a expressão do
universal, de uma ética e de um conjunto de direitos humanos.
Simultaneamente uma coisa e outra, é nessa tensão de opostos que sua
realidade se revela rica, dinâmica e desafiadora (BARROS, 2008, p. 17).

Segundo o autor, universalidade e singularidade se fundem na Diversidade Cultural. A


ideia de universalidade pode ser tratada também como um princípio que asseguraria que a
construção política da Diversidade Cultural não seja reduzida à defesa de particularidades,
pois esta postura enseja a tradução de diferenças como desigualdades, conforme já

4
Anotamos aqui que conhecemos as críticas a respeito do ideal de igualdade universal, originado na Revolução
Francesa. Tal ideal concebido como igualdade de oportunidades em uma sociedade capitalista, dividida em
classes, se assemelhou mais à uma promessa revolucionária do que à experiência da realidade.

1489

V V
salientamos. Nesse sentido, a dimensão da universalidade dá amplitude às diferenças e
garante tratamento igualitário aos sujeitos e grupos em situação de desvantagem social.
A Diversidade Cultural, ainda segundo Barros (2008), não é um atributo natural dos
modos de vida e das expressões culturais, dado que é “cultural”, e não “natural”. Dessa forma,
deve ser encarada como o resultado das trocas sociais, culturais, econômicas, realizadas entre
os sujeitos e grupos a partir das suas diferenças, desigualdades e tensões (MIGUEZ, 2011).
Este paradigma permite que se desenvolva uma visão política da Diversidade Cultural,
encarada como dinâmica sócio-interacional entre os diferentes, distinguindo-se de uma visão
que a limita à uma realidade antropológica.
O novo paradigma da Diversidade Cultural articula-se com um novo paradigma
democrático, que propõe o reconhecimento da diversidade do mundo e a desnaturalização das
diferenças sociais e materiais. As hierarquias raciais, étnicas, religiosas, de gênero, entre
outras, não devem ser consideradas naturais, mas como causas da desigualdade entre os
sujeitos. Este é o ponto chave para Boaventura de Souza Santos (2007), umas das principais
referências da teoria participativa: a incapacidade da razão indolente, que se considera única,
pensar diferenças com igualdade. Ainda, para Habermas (2002), as dificuldades para a
inclusão igualitária das minorias são mascaradas pela leitura liberal da autodeterminação
democrática. Isto porque a cultura hegemônica, por meio da regra majoritária, pode impingir à
estas minorias suas formas de vida, “negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa
uma efetiva igualdade de direitos” (HABERMAS, 2002).
Os direitos são cruciais para a construção do projeto político da Diversidade Cultural,
pois são a expressão legal de uma das formas pelas quais a igualdade pode ser assegurada. O
princípio igualitário em nosso trabalho, como já ressaltamos, vincula-se aos direitos culturais,
cada vez mais reconhecidos como parte de uma nova geração de direitos humanos, e que
colocam em pauta um dos fundamentos da República Brasileira: a cidadania. Segundo
Francisco Cunha Filho (2010), “ter a cidadania como “Fundamento da República Brasileira”
corresponde à compreensão de que ela é inerente a toda e qualquer atividade estatal”,
abrangendo, portanto, a área cultural. O autor empreende um esforço analítico para
estabelecer aqueles que seriam os fundamentos da noção de cidadania cultural. Tal como tem
sido esboçado atualmente, o conceito de cidadania cultural contempla:
Definição antropológica de cultura, 2) política cultural como direitos
igualitários dos cidadãos, 3) criatividade e inovação, 4) resguardo das
memórias coletivas e 5) acatamento da legislação cultural considerada
legítima (CUNHA FILHO, 2010, p. 185).

1490

V V
Outros autores, como Marilena Chauí (2006), também evidenciam a relação entre
igualdade e os direitos de cidadania cultural. A autora adota um conceito ampliado de cultura
para estabelecer os marcos do que considera direito à cultura. Entre eles, encontram-se os
direitos 1) à produção cultural, 2) à participação nas decisões do fazer cultural, 3) à formação
cultural e artística pública, 4) à experimentação do novo e 5) à informação e à comunicação.
Podemos observar que a noção de cidadania cultural proposta por Chauí apresenta
fortes elementos vinculados a ideia democrática, como pluralismo, inclusão e igualdade.
Dessa forma, não é sem propósito que podemos nos referir a uma cidadania cultural, já que
este “campo” de cidadania possui especificidades que “justificam um exercício diferenciado
deste fundamento republicano e democrático” (CUNHA FILHO, 2010).
Os direitos culturais são reconhecidos pela Unesco como “parte integrante dos direitos
humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes” (UNESCO, 2002), abarcando
o direito à 1) criação e difusão cultural, 2) participação na vida cultural, 3) respeito às
identidades e 4) o livre exercício das práticas culturais. Os direitos culturais também são o
marco da noção de Diversidade Cultural da instituição, compreendida como a “multiplicidade
de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão”
(UNESCO, 2005)
O Brasil é signatário de importantes atos normativos da Unesco, como a Declaração
Universal sobre a Diversidade Cultural (2002) e da Convenção de Proteção e Promoção da
Diversidade das Expressões Culturais (2005), ratificada pelo Brasil em 2006. O país
reconhece ainda os direitos culturais e os contempla no artigo 215 da Constituição de 1988.
Segundo Alexandre Barbalho (2007), na última década, houve no plano nacional, uma
mudança de perspectiva no tratamento dado às questões da identidade e diferença. O
Ministério da Cultura assumiu uma postura mais democrática ao reconhecer o pluralismo das
práticas culturais e as várias identidades que compõem a sociedade brasileira. Tal postura
diferenciou-se das observadas anteriormente no país, onde um discurso agregador e
essencialista foi utilizado para integrar a nação em torno de uma única identidade nacional, a
exemplo dos governos autoritários das décadas de 1930/40 e 1960/70. Mas, apesar dos
avanços, Barbalho argumenta que se faz necessário colocar na raiz das discussões os conflitos
existentes entre a diversidade e a identidade.
A questão que se coloca é como uma política pública de cultura além
de trabalhar com as identidades e a diversidade, pode incorporar as
diferenças. Como lidar com as manifestações culturais que não se encaixam

1491

V V
harmoniosamente como peças de um quebra-cabeça porque suas arestas não
permitem (BARBALHO, 2007, p. 57).

Observamos que ainda prevalece o desafio para o Brasil de se avançar em um


entendimento de diversidade cultural que não busque simplesmente a harmonia, o respeito e o
bom convívio entre as diferentes culturas, mas que reconheça os conflitos entre as identidades
e as diferenças, como parte das políticas culturais.
Há também a necessidade de construção de políticas educacionais voltadas para a
Diversidade Cultural. A educação compreendida não como tolerância ao outro (BARROS,
2008), mas como uma postura política na qual as diferenças sejam encaradas como riqueza da
humanidade (CALABRE, 2005).

Considerações Finais
Procuramos mostrar que a Diversidade Cultural é uma dimensão fundamental da
igualdade. O Brasil enquanto signatário da Convenção da UNESCO de 2005, assumiu o
compromisso de preservar e promover a diversidade das expressões culturais, levando em
consideração o caráter de vulnerabilidade de determinadas expressões frente à políticas
liberais de cunho homogeneizador. Nesta perspectiva, a igualdade política enquanto
fundamento moral da democracia, reivindica a igual valorização das práticas culturais de
indivíduos e grupos. O direito à igualdade compreende o direito do cidadão de acessar bens e
serviços culturais e envolve também o direito à diferença. O princípio igualitário orientador
das políticas públicas para a cultura baseia-se na noção de diversidade e de igualdade, que
articulados, compõem o quadro das múltiplas identidades da população brasileira. Nesse
sentido, as diferenças culturais de grupos minoritários devem ser respeitadas, como requisito
de promoção da igualdade em um contexto de diversidade cultural.

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1494

V V
POLÍTICA CULTURAL E CULTURA COMO DOMINAÇÃO ECONÔMICA
Wilq Vicente dos Santos1

RESUMO: Este artigo pretende investigar, através do apontamento histórico das mudanças
institucionais e legais ocorridas no âmbito federal no que tange a cultura, iluminar alguns
pontos da relação entre a produção cultural, as mudanças na concepção de cultura e de Estado,
e as mudanças na situação político-econômica. Traçando este retrospecto, é possível
identificar que, apesar dos avanços, muito ainda há de ser feito.

PALAVRAS-CHAVES: Cultura, economia, democracia, política cultural

INTRODUÇÃO
Uma dos desafios a serem enfrentados por um pesquisador da “cultura”, reside em
tentar compreender o significado histórico dessa palavra tão complexa, que abarca tantas
camadas de sentido e tão diversos entendimentos. Para Raymond Williams (2007),
certamente, é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa, o que se
deve em parte ao desenvolvimento da palavra em distintas línguas europeias, mas também
porque dentro deste desenvolvimento histórico passou a referir-se a “conceitos importantes
em disciplinas intelectuais distintas e em diversos sistemas de pensamento distintos e
incompatíveis”. Neste sentido, podemos abarca-la de variados ângulos e aplicar o conceito
geral de cultura tanto a valores artísticos, culturais, antropológicos e/ou como mero “bem
simbólico”.
O conceito, chave na estruturação do pensamento contemporâneo, tem se tornado
também central na orientação de práticas e ações do Estado. Evidentemente, a discussão em
relação ao conceito de cultura é bem abrangente. Cada nação tem sua própria história e
práticas culturais peculiares. Por conta disso, a análise do papel do Estado na área cultural
deve ser feita em cada país de forma diferenciada. No caso brasileiro, onde a diversidade é um
dos traços mais ricos e mais nítidos da cultura, as estratégias de gestão pública necessitam ser
pensadas tanto como diretrizes gerais nacionais, quanto em termos de ações em comunidades
locais.

1
-Mestrando do Programa de Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo. Emails: wilqvicente@usp.br ou wilqvicente@gmail.com

1495

V V
No que se refere aos aspectos político-culturais, o princípio da diversidade, fortalecido
nas últimas décadas tanto nacional como internacionalmente, se traduz na defesa do respeito à
pluralidade das culturas e do reconhecimento das identidades culturais. A ideia de diversidade
é mobilizada como um vetor que pode proporcionar um equilíbrio no mercado de bens
culturais, que, por sua vez, é marcado por fortes desigualdades e concentração nas mãos de
poucos, tanto no âmbito da produção e difusão, como no âmbito do consumo de bens e
serviços culturais. A UNESCO tem sido uma das esferas importantes de difusão do conceito
de diversidade, visando “a consolidação de um entendimento mais amplo da cultura, como
ponto central para o desenvolvimento humano e, portanto, para o desenvolvimento das nações
em um mundo globalizado” (BRANT, 2004).
Para Mario Brockman Machado,
“Esse conceito [cultura] precisa ser ampliado em definitivo, para incorporar
a memória dos dominados, a cultura popular, a história dos vencidos e
esquecidos, mas não pelo motivo grotesco de se querer enriquecer o acervo
daquilo que Roberto Schwartz chamou de 'o museu socialista dos horrores
do desenvolvimento capitalista', e sim pelo efeito didático que essa prática
acarretaria no plano político e ético, a gerar confrontos e superações”
(MACHADO, 1984, p. 13).

No Brasil, a perspectiva da diversidade vem sendo utilizada na interlocução entre o


Estado e os agentes sociais e culturais que pressionam por políticas públicas para o setor, sob
a ótica do direito à cultura. Nesse contexto, em que o Brasil abre campo para tais políticas,
ainda que timidamente, parte da atuação dos produtores culturais foi a de reivindicar a
ampliação de determinadas políticas pelo Estado.
É possível dizer que há sempre espaço para que as contradições inerentes ao atual
panorama político-cultural brasileiro criem, a depender da organização e formulação interna
de determinados grupos, condições para algum grau de instabilidade política que possam
motivar modificações mais contundentes, além das iniciativas e políticas pontuais.
Vale lembrar o esforço realizado nos últimos 12 anos pelo Governo Federal brasileiro
para tentar descentralizar as políticas públicas de cultura, por exemplo, com a aprovação da
Lei 13.018/2014, ou Lei Cultura Viva, uma política do Estado brasileiro que busca dar
perenidade às ações do Programa Cultura Viva, independente da alternância de gestões na
administração pública federal. O Programa Cultura Viva tem como objetivo estimular e
fortalecer no país uma rede de criação e gestão cultural, tendo como base os Pontos de
Cultura. Inicialmente, o Cultura Viva era formado por cinco ações: Pontos de Cultura

1496

V V
(convênios), Escola Viva, Griôs, Cultura Digital, Cultura e Saúde, sendo todas as atividades
vinculadas aos Pontos de Cultura.
No entanto, para Albino Rubim, uma
“Política de cultura orientada em perspectiva antropológica dificilmente
torna-se exequível para um Ministério da Cultura, mesmo que tenha
condições bem mais consistentes. Uma política imaginada nesta abrangência
apenas pode ser desenvolvida satisfatoriamente quando assumida pelo
governo em sua totalidade e mesmo em parceria com a sociedade” (RUBIM,
2010, p. 15).

Mesmo tentando descentralizar o papel do Ministério nas políticas culturais - com os


Pontos de Cultura, por exemplo, uma das principais ações do Programa Cultura Viva,
pioneiro no Brasil no apoio a grupos culturais e territórios antes descobertos pelas políticas de
cultura nacionais - ficou evidente a fragilidade de tais ações. Tanto que a gestão direta do
Ministério dos Pontos de Cultura durou até meados de 2011 e sem perspectivas de
continuidade sucumbiu ao tempo. Um dos principais motivos alegados naquele período foi a
falta de equipe e a distância geográfica dos grupos culturais da gestão em Brasília, o que
inviabilizou um acompanhamento mais próximo, levando um programa de caráter pioneiro ao
fim em meados de 2011. A partir de então, enfraquecido, o programa tentou viabilizar-se em
parceria com órgãos de Cultura de governos estaduais e municipais. O Cultura Viva alcançou
importantes resultados, ao fomentar, desde sua implantação, em 2005, e até o ano de 2011, o
total de 3.670 Pontos de Cultura em todos os estados da federação.
É importante notar que a aprovação da Lei Cultura Viva faz uma sinalização política
importante, mas como instrumento pode acabar sendo inócua, visto que não delimita a
estrutura e orçamento necessários para que sua política seja de fato implantada de forma
satisfatória em todo território nacional, dependendo novamente da conjuntura política e das
vontades de cada governante.
Além disso, não parece razoável no contexto político atual a revisão mais séria do
mecanismo chave de estruturação do setor cultural no Brasil hoje, que é a renúncia fiscal, tão
forte é o lobby de grandes produtores e investidores. Não sendo possível reestruturar o
sistema de financiamento à cultura no Brasil, o caminho através do qual se pode avançar foi o
da política de editais, principalmente os voltados para a diversidade cultural, no qual o
Programa Cultura Viva é uma de suas principais vertentes. Como citado anteriormente.
O avanço da política de Editais veio no sentido da transparência dos processos de
seleção, de publicidade dos critérios de investimento público em projetos propostos pela
sociedade civil, critérios da agenda da “nova gestão pública” (PACHECO, 2010). Também

1497

V V
surgiu em consonância à ideia de retomar o poder do Estado na definição do que é relevante
na cultura nos âmbitos federal, estadual e municipal, após a entrega deste poder de definição
ao mercado na década de 1990, com o surgimento dos mecanismos de incentivo fiscal no
financiamento à cultura no Brasil.
É de se pensar se essas iniciativas (política de editais) são alternativas às atuais
posições que Estado e Mercado ocupam no desenvolvimento do setor cultural ou se são, na
verdade, um novo e complexo desdobramento da relação entre ambos.
Talvez, como bem alerta Giuliana Kauark (2009), com o uso exacerbado da noção de
diversidade cultural corre-se “o risco de o conceito perder importância e esvaziar-se de
qualquer conteúdo crítico ou produtivo caso sua utilização torne-se muito ampla e
indiscriminada, podendo ser aplicada a toda e qualquer forma de diferença cultural, atribuindo
o mesmo valor a todas elas”. É de se pensar se a gestão trabalhista conseguiu absorver o
potencial crítico da dimensão cultural e política dos grupos mais radicais já que a luta agora se
restringe à disputa por recursos de editais.
Este trabalho busca, através do apontamento histórico das mudanças institucionais e
legais ocorridas no âmbito federal no que tange a cultura, iluminar alguns pontos da relação
entre a produção cultural, as mudanças na concepção de cultura e de Estado, e as mudanças na
situação político-econômica. Traçando este retrospecto, é possível identificar que, apesar dos
avanços, muito ainda há de ser feito.

VOLTA DEMOCRACIA E POLÍTICA CULTURAL


O Brasil viveu de 1964 até meados de 1985 sob um forte regime cívico-empresarial-
militar, regime esse que violou os direitos civis e humanos dos cidadãos brasileiros -
intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, inquérito militar nas universidades,
invasão de igrejas, censura etc. Tal período foi caracterizado por um Estado de exceção
permanente, suprimindo direitos básicos e impedindo a livre circulação teórica e
artística/cultural. Ao término do regime autoritário, a partir de 1985, uma parcela significativa
dos intelectuais e artistas comprometeu-se com a Nova República. Outros seguiram críticos
da nova ordem estabelecida, mas o ordenamento institucional já estava consolidado para
todos, com a presença do Estado na organização da vida cultural e social, associada ao
desenvolvimento particular da indústria cultural que ganhara fôlego no Brasil na segunda
metade do século XX.

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Uma noção abrangente de política cultural já fazia parte da agenda pública brasileira
desde do final da década de 1960, ainda no âmbito do Ministério da Educação e Cultura -
MEC. Neste período, na gestão Jarbas Passarinho (governo Médici - 1969/1974) é lançado
um dos primeiros programas de financiamento a cultura no Brasil, o Programa de Ação
Cultural – PAC. Como aponta Sergio Miceli (1984), os principais objetivos do programa
eram “a preservação do patrimônio histórico e artístico, o incentivo à criatividade e à difusão
das atividades artístico-culturais, e a capacitação de recursos humanos”. José Carlos Durand
(1991), identifica que a “promoção de uma cultura 'nacional' e 'autêntica', em seus mais
diversos gêneros e manifestações, também eram compatíveis com esse clima ideológico”.
Para Miceli (1984), o PAC “era uma tentativa de 'degelo' em relação aos meios
artísticos e intelectuais”. “Embora não tivesse a função explícita de formular uma política
oficial de cultura, […] o PAC acabou firmando um estilo novo e uma doutrina própria de
prática cultural”. Ainda na gestão Passarinho é divulgado um documento intitulado
“Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura”, de 1975, que apontava o que começava a
surgir no momento como importante, mas que “rapidamente foi retirado de circulação”
(RUBIM, 2010).
Ainda sob a égide militar, a época liderada pelo então gestor Ney Braga (governo
Geisel – 1974/1978) promoveu uma continuidade de ações, alcançando uma
institucionalidade considerável com a criação do Conselho Nacional de Direito Autoral, o
Conselho Nacional do Cinema, a Fundação Nacional de Arte e Serviço Nacional do Teatro, a
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, além da reformulação da Empresa Brasileira de
Filmes, a EMBRAFILME. Como aponta Miceli (1984), a gestão Ney Braga foi pioneira em
implementar uma então chamada “Política Nacional de Cultura”, ainda sob o regime militar.
Analisando o período e intrincada a esta concepção de política cultural, Miceli
identifica como corrente a ideia de o Estado como “o grande mecenas da cultura brasileira nos
anos 70”. Para o autor, “tal postura parece procedente caso se entenda por mecenato a
disposição em subsidiar intelectuais e artistas que não conseguem colocação segura no
mercado para os bens que produzem”. Ainda que a política de cultura fosse muito incipiente,
era possível vislumbrar um projeto cultural em expansão. E, conforme Machado, tratava-se de
um “projeto de mercado”, um projeto de “indústria cultural” (MICELI, 1984).
Ao que tudo indica, nas gestões militares houve um empenho na valorização de uma
política nacional de cultura, galgada na super-valorização de uma memória nacionalista:
“Ainda dentre esses condicionantes de ordem conjuntural, o marketing do
regime constituiu-se decerto na motivação decisiva das políticas adotadas na

1499

V V
área cultural. A chamada política de “abertura” acarretava forçosamente a
exigência de melhorar a imagem de marca do regime, quer dizer, requeria a
definição de espaços institucionais para os quais fosse possível canalizar
recursos em favor da nova geração de produtores culturais naqueles gêneros
mais dependentes do apoio governamental” (MICELI, 1984, p. 101).

É importante destacar, no entanto, o caráter do que se construía como “cultura


nacional”, ainda muito distante da ideia de valorização da “diversidade” da cultura brasileira,
que como apontamos no início do texto, viria surgir décadas depois. A este respeito, Machado
pondera: “é preciso respeitar e promover não a visão idealizada de uma suposta identidade
cultural (por vezes ingênua, por vezes intencional, mas sempre politicamente instrumental),
mas sim a pluralidade cultural enraizada na grande diversidade social, regional e étnica do
país” (MACHADO, 1984).
Os anos 1980 vieram, no entanto, romper a lógica do papel do Estado na cultura. Para
Regina Silvia Pacheco,
“Esse modelo de Estado desenvolvimentista deu sinais de esgotamento ao
final dos anos 1970, seguindo-se a prolongada crise da chamada década
perdida. Nos anos de 1980, os diagnósticos sobre o aparato estatal
enfatizavam a incapacidade de implementação das políticas públicas. Estava
explícita a necessidade de mudanças no aparato burocrático e mudanças do
papel do Estado, ao lado das requeridas reformas políticas que deveriam
acompanhar a redemocratização do país em curso” (PACHECO, 2010, p. 191).

O projeto de modelo neoliberal, implantado de forma desigual pelo continente,


consolidou as desigualdades internas e regionais entre os países do bloco, dificultou a
igualdade de direitos e aumentou os desequilíbrios sociais, colocando a América Latina frente
ao mundo internacional com uma vulnerabilidade profunda. Soma-se a isso a excessiva
concentração no campo da produção e difusão cultural, o que atravancou profundamente o
processo de democratização dos países latino-americanos. No Brasil, a atenção do Estado era
sempre no sentido de conter a crescente inflação que atingia índices alarmantes. No campo de
reformas estruturais pouco ou praticamente nada era feito.
Com o fim da ditadura cívico-empresarial-militar e após “reivindicações dos
secretários estaduais de cultura e de setores artísticos e intelectuais” foi criado em 1985 o
Ministério da Cultura que “até se consolidar [...] passou por momentos contraditórios”
(RUBIM, 2010).
Como aponta Rubim (2010), “o processo de redemocratização ocorrido no Brasil [...]
após longo período de ditadura militar” resulta no que Evelina Dagnino chama de crise
discursiva latino-Americano das políticas culturais. “Essa crise discursiva resulta de uma
confluência perversa entre, de um lado, o projeto neoliberal que se instala em nossos países ao

1500

V V
longo das últimas décadas e, de outro, um projeto democratizante, participativo, que emerge a
partir das crises dos regimes autoritários e dos diversos esforços nacionais de aprofundamento
democrático” (DAGNINO, 2005).
Em julho de 1986 é criada a primeira lei de incentivo fiscal à cultura, a chamada Lei
Sarney. Diante da crise econômica e administrativa do Estado, a produção cultural precisava
passar a contar com complementações orçamentárias através de recursos obtidos mediante
renúncia fiscal. Conforme aponta Rubim,
“A rigor, a lei terminava por contrariar todo este investimento, pois
introduzia uma ruptura radical com os modos, até então vigentes, de
financiar a cultura. O Estado, sob o pretexto de carência de recursos, reduzia
o financiamento direto da cultura e, como alternativa, propunha que as
verbas fossem buscadas pretensamente no mercado. Só que este dinheiro em
boa medida era público, decorrente do mecanismo de renúncia fiscal. Apesar
disto, o poder de decisão era privatizado, pois se desloca do Estado para o
mercado” (RUBIM, 2010, p. 12).

Mas é entre 15 de março de 1990 e 29 de setembro de 1992 que o Brasil viveu um dos
períodos mais conturbados de sua história, no que tange à política cultural. Ao assumir a
presidência, Fernando Collor de Melo editou um pacote com uma série de medidas
provisórias que, entre outras coisas, extinguiam os órgãos culturais e os mecanismos de
financiamento e atuação da União, tais como a EMBRAFILME, FUNARTE, a Lei Sarney,
entre outros. A Medida Provisória nº 151 ocupava-se da extinção e dissolução de entidades da
administração pública federal (autarquias, fundações e empresas públicas).
Sobre esse contexto das reformas na década de 1990, Flávio da Cunha Rezende,
observa que
“Sem exageros, pode-se considerar os anos 1990 como a década das
reformas da administração pública. Uma combinação de fatores como a crise
fiscal do Estado, a escala e a magnitude dos processos de democratização
política e de globalização econômica, bem como o declínio de desempenho e
accountability nas relações Estado-sociedade, aliados à urgente necessidade
de rever padrões de intervenção do Estado na economia e nas políticas
sociais, contribuíram decisivamente para a difusão em escala jamais vista
das políticas de reforma do aparato burocrático de Estado” (REZENDE,
2002, p. 112).

Em sua ânsia neoliberal, Collor acreditou que o mercado substituiria o governo no


fomento à cultura no país. De uma maneira mais ampla e extensa a todas as áreas de atuação
do governo, o mercado passou a ser visto como um substituto imediato das áreas de atuação e
regulação do Estado, este visto como corrupto e ineficiente. Em âmbito mundial, o Estado,
nesta época, foi considerado o responsável pela grande crise dos anos 1980: crise fiscal, do

1501

V V
tipo de intervenção estatal e da forma burocrática de administração. Collor agiu de maneira
drástica, ainda que orientado pela visão então hegemônica que apontava a necessidade de
reformar e enxugar o aparelho burocrático estatal. E a produção cultural foi alvo desse
processo em curso.
Olhando para o período mais recente, Rubim avalia que,
“O Ministério [da Cultura] não deu a prioridade necessária ao fundamental
debate político acerca do lugar contemporâneo do Estado no campo da
cultura, depois do Estado todo poderoso (da ditadura cívico-militar) e do
Estado mínimo (neoliberal). As poucas tentativas do Ministério de avançar
neste debate vital foram tímidas e insuficientes, como aconteceu nas poucas
páginas dedicadas ao tema nos documentos do Plano Nacional de Cultura”
(RUBIM, 2010, p. 13).

Porém, em resposta à pressão da classe cultural, mas ainda em consonância com sua
política neoliberal, inspirado nos princípios da Lei Sarney, a gestão Collor criaria em
dezembro de 1991 a Lei Federal de Incentivo à Cultura, a chamada Lei Rouanet, que viria a
pautar o financiamento oficial a partir de então, avançando pelo século XXI como o principal
instrumento da política cultural nacional. De maneira geral, a lei transfere ao mercado a
definição das iniciativas receptoras de recurso público. O discurso de então apontava a
intenção de que a isenção fiscal pudesse estimular as empresas a mobilizar uma parcela de
seus recursos próprios no apoio a projetos culturais, tendo uma parte destes recursos abatidos
como percentual do imposto a pagar.
A Lei Rouanet, ao contrário da Lei Sarney, que previa apenas o cadastramento junto
ao MinC das entidades culturais interessadas em captar recursos de empresas (tendo sido alvo
de denúncias de irregularidades), introduziu a aprovação previa dos projetos culturais por
comissão composta por representantes do governo e da sociedade civil, entre outras
modificações. O mecanismo previa o abatimento de 30 a 40% do imposto de renda, devendo
as empresas complementar o patrocínio com recursos próprios. Foram poucos os resultados
para o campo cultural de uma maneira geral. Mais tarde, ampliou-se o abatimento do imposto
de renda para 100% em algumas áreas, o que deu novo fôlego ao mecanismo.
Particularmente no início do século XXI, estas transformações foram acompanhadas
pelo florescimento de novas demandas político-sociais com teor cultural, pelo fortalecimento
da noção de “direito à cultura”, que resultaram em respostas do Estado através da concepção
de novas políticas públicas de cultura, acompanhando a crescente relevância do cenário
cultural no mundo contemporâneo. A própria Lei Rouanet já tinha sido uma das modificações
no funcionamento do Estado empreendida por um governo de orientação neoliberal. Mais

1502

V V
tardiamente, “a orientação inicial voltada à busca de eficiência e redução do gasto público foi
sendo alterada” (PACHECO, 2010). É patente que após uma primeira guinada neoliberal,
delegando atividades antes exercidas pelo Estado ao mercado, foram notadas que as
organizações públicas “também possuíam virtudes em seus vícios”. Para Pacheco (2010),
essas ações foram impulsionadas por pressões que tiveram origem em,
“Fenômenos econômicos (pressão fiscal, fim do crédito internacional barato,
competição em escala global), sociais (mudança dos padrões demográficos e
no perfil familiar, novos problemas complexos como violência, drogas, aids
e migrações), tecnológicos (novas tecnologias de informação e comunicação,
novas aplicações em saúde e consequente aumento do gasto público, opinião
pública mais informada e exigente) e políticos (questionamento da política
tradicional, proliferação dos grupos de causa única, anseios de
aprofundamento de democracia, perda de legitimidade dos governos e da
burocracia)” (PACHECO, 2010, pp. 186-187).

Tal caminho é possível de ser visto na mudança de direcionamento da política cultural,


entre a Lei Rouanet, que repassa ao mercado a diretriz do investimento público em cultura, e
editais como os Pontos de Cultura, já no governo trabalhista do presidente Lula, em que o
modelo de repasse de recursos para entidades culturais privadas permanece, mas tendo em
vista as diretrizes estabelecidas na política cultural do governo. Além disso são os Pontos de
Cultura uma política voltada para a diversidade cultural que reconhece a incapacidade do
mercado de absorver segmentos e produtores culturais relevantes em termos culturais, mas
que não fornecem retorno econômico.
Os Pontos de Cultura, ligados à Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do
MinC, no qual a sociedade civil passa a ser executora de ações culturais com incentivo do
Ministério, enfatiza a parceria do Estado com entidades privadas de interesse público sem fins
lucrativos. Esse novo tipo de programa de parceria entre Estado e a sociedade civil é tributária
da visão de que a atuação de interesse público não pode ser meramente estabelecida pelo
Estado. Tais conceitos conseguem aglutinar em torno de si, por um lado o discurso oficial do
Estado, por outro a sociedade civil na figura dos movimentos sociais e de cultura de hoje, mas
também das ONGs. Essa ambiguidade permite que distintas perspectivas muitas vezes
apareçam aglutinadas dentro das mesmas denominações, ainda que estejam dentro de um
campo de grande tensão.
Para Celio Turino apud Rubim (2010), um dos criadores do programa, “a rede Cultura
Viva deve ser maleável, menos impositiva na sua forma de interagir com a realidade, e por
isso ágil e tolerante como um organismo vivo. O objetivo é fazer uma integração dos Pontos
em uma rede global que aconteça a partir das necessidades e ações locais”. Porém, na “última

1503

V V
década […] temos observado uma inflexão nos discursos oficiais que passaram a atribuir
valor às culturas populares não só ampliando a concepção do conceito, mas forjando
declarações, plataformas e políticas de apoio e fomento a iniciativas nesse campo” (PASSOS
e AGUIAR, 2013, p. 12).
Rubim (2010) aborda a culturalização operada no campo da política, compreendida
como a agregação de novas demandas aos temas tradicionais da política moderna. O autor
enfatiza que, “reivindicadas por movimentos sociais e pela sociedade civil, demandas de teor
cultural (relativas a gênero, ecologia, orientação sexual, desigualdades regionais e étnicas,
diversidade cultural, entre outras possibilidades) passam a compor o campo das disputas
políticas”.
No entanto, o autor alerta: “O conflito entre políticas implantadas e modos de
financiamentos é evidente […] recolocar as políticas de financiamento como subordinadas às
políticas culturais desenvolvidas torna-se uma atitude política imprescindível para a
conformação de um novo patamar das políticas públicas de cultura no Brasil” (RUBIM,
2010).
Considerando tais disputas, o ponto central da discussão é a compreensão de que “a
cultura também é um espaço de relações de força, não simplesmente uma diversão inocente
ou uma arte desinteressada. Mas, o vínculo que é estabelecido entre cultura e dominação
econômica ou política permanece um vínculo rígido: a infraestrutura (o econômico) determina
a superestrutura (cultura)” (MAIGRET, 2010).

CULTURA COMO DISTINÇÃO DE CLASSES


Em artigo intitulado “Hegemonia às avessas”, de Chico de Oliveira (2007) “questiona
sobre a implicação da suposta tomada de 'direção moral' da sociedade por parte das classes
populares representada por Lula e sua política contra a pobreza e a desigualdade”
(STUCKER, 2009).
Segundo Oliveira apud Stucker (2009),
“A eleição e reeleição de Lula fez despontar “o mito da capacidade popular
para vencer seu temível adversário, enquanto legitima a desenfreada
exploração pelo capitalismo mais impiedoso”. Dessa maneira atenta para a
crescente complicação da política de representação das classes populares e
para novas configurações na política de dominação, na qual a inserção na
esfera política, midiática ou econômica desempenha um papel central”
(STUCKER, 2009, p. 118).

1504

V V
A política voltada para a “diversidade” nada mais é do que uma tentativa de
reconhecer aquilo que está fora da “indústria cultural” ou da “alta cultura”, que contam com
redes fortificadas ao longo de décadas, ou talvez de séculos, para que se legitimem e sejam
fomentadas. Em última instância, valorizar a diversidade significa olhar com atenção para a
“cultura popular”, objeto de discussão conceitual de diversos teóricos do campo da cultura.
Para Pierre Bourdieu (2013) “todo ato de produção cultural implica na afirmação de
sua pretensão à legitimidade cultural”. […] “Esta mesma lei impõe a busca da distinção,
impõe também os limites no interior dos quais tal busca pode exercer legitimamente sua
ação”. Referindo-se ao processo de legitimação da alta cultura, o também sociólogo francês
Éric Maigret (2010), aponta que,
“O princípio central da distinção é a distância com relação a conteúdos,
dando-se ênfase aos aspectos formais, pois são os menos intuitivos e que
mais demoram a se adquirir. Os ambientes cultos legitimam os cânones da
cultura numa permanente fuga para adiante, a fim de evitar sua
desvalorização: a poesia, a música e o romance se tornam cada vez mais
herméticos ao longo da história para permanecerem fechados ao grande
público” (MAIGRET, 2010, p. 190).

Maigret (2010) busca discutir a identificação entre “cultura popular” e “cultura de


massa”, entendidas como expressão pura da dominação. Para o autor, resgatando uma vertente
já trabalhada por Stuart Hall no modelo de codificação/decodificação, “a cultura 'popular' ou
de 'massa' não é nem uma expressão artística liberta das coerções de classes nem o efeito puro
de uma dominação: é uma relação negociada, mas para a vantagem dos meios dominantes”
(MAIGRET, 2010).
Isto é,
“A cultura de massa, rebatizada de 'indústria cultural' para sublinhar seu
aspecto mecânico, automatizado, não se reduz, entretanto, a seu uso pelo
ditador: ela é um bombardeio permanente de lazeres que afetam o
julgamento e entorpecem a razão. Desde seu advento recente no século XIX,
ela vem destruir a autêntica cultura popular do passado, a das tradições orais
ou culinárias que repousavam numa 'arte inferior, e as tradições da 'arte
superior', que procuram a dificuldade, a distância na expressão formal, assim
como a crítica das hierarquias. O poder daquilo que se impõe por toda parte
e não é mais cultura real, mas simples dominação, provém de seu domínio da
técnica e de sua capacidade de produzir em série programas radiofônicos,
filmes, romances, repousando em morais fáceis de captar e satisfatórias para
o espírito” (MAIGRET, 2010, p. 190).

A chamada “cultura popular” passa a ser valorizada como um “símbolo da abertura à


diversidade cultural, que se coloca como valor no mundo contemporâneo” [...] bem “como
símbolo da desigualdade e, portanto, de enfrentamento da realidade social” (STUCKER,

1505

V V
2009). No entanto, como aponta Stucker (2009) “a defesa do multiculturalismo que não põe
em relevo os processos históricos de dominação também não contribui para a desarticulação
das hegemonias de poder que conformam a opressão e desigualdade”. Neste caso, “corre o
risco de se transformar em um shopping center de culturas do mundo [...], corre o risco de
simplesmente inverter as hierarquias existentes ao invés de repensá-las de modo profundo”
(SHOHAT, Ella e STAM, 2006).
Mas, porque a cultura virou um campo de disputa simbólica? Qual é o vínculo entre
poder e cultura? A partir dessas duas inquietações e, entendendo que a ideia de dominação
passa ao mesmo tempo pelo esfera de trabalho e da cultura, buscamos apoio teórico no
jamaicano Stuart Hall, fazendo da “cultura um espaço de conflitos” e um campo de batalha a
ser conquistado, sendo que “o poder é um fato onipresente” (MAIGRET, 2010).
Já Nestor Garcia Canclini apud Sena (2009) busca uma definição para o “termo
cultura apta a captar, na atualidade, as especificidades de sua relação com tantas dimensões
distintas”. Canclini (2009) propõe “que as análises que intentam opor cultura e sociedade
oferecem, em que a última é concebida enquanto o conjunto de estruturas mais ou menos
objetivas que organizam a distribuição dos meios de produção e do poder entre os indivíduos
e os grupos sociais, e que determinam as práticas sociais, econômicas e políticas”.
Nesse caso, “as investigações desenvolvidas por Bourdieu (2013) reforçam essa
perspectiva, quando propõem que a sociedade se estrutura no entrelaçamento das relações de
força com as relações de significação que constituem o mundo da cultura”. Segundo Canclini
(2009), “pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação
ou, de modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de produção,
circulação e consumo da significação na vida social”. Tal aspecto é particularmente
interessante tendo em vista distintos aspectos da produção cultural. Para Bourdieu (2013) “o
sistema de produção e circulação de bens simbólicos define-se como o sistema de relações
objetivas entre diferentes instâncias definidas pela função que cumprem na divisão do
trabalho de produção, de reprodução e de difusão de bens simbólicos”.
Neste sentido, não é possível pensar a produção cultural “popular”, que podemos ver
realizada em Pontos de Cultura, por exemplo, aparte do sistema que define o que é produção
cultural relevante, em termos de indústria, mercado, crítica cultural, ou do ponto de vista de
um governo com uma visão de mundo e projeto político próprios. Trata-se de posições
intrincadas, que são construídas relativamente à sua posição quanto aos demais componentes
do sistema.

1506

V V
Neste sentido, “não há autonomia das práticas, que são, todas, vinculadas entre si por
efeitos de classificações sociais, nenhuma exterioridade absoluta dos grupos e dos indivíduos.
As culturas populares, camponesas e proletárias existem tão pouco que traduzem, antes de
tudo, a dominação sofrida” (MAIGRET, 2010). Maigret ainda nota que, tentativas de
contracultura se transformam em seguida “em arte consagrada e dogma cultural quando tem
êxito”, ou seja, se de início fogem, ainda que parcialmente à dominação, logo são absorvidas
conforme os interesses do sistema político e cultural dominante. Neste sentido é de se
perguntar se as políticas de valorização de iniciativas culturais populares, voltadas para a
diversidade, não acabam por ter este efeito de reafirmação da cultura hegemônica.
Segundo Hall (2013), o termo popular “indica esse relacionamento um tanto
deslocado entre a cultura e as classes”. Mais precisamente, “refere-se à aliança de classes e
forças que constituem as classes populares”. “A cultura popular é um dos locais onde a luta a
favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou
perdido nessa luta”.
A cultura ocupa um lugar central no mundo contemporâneo. “Essa centralidade da
cultura é decorrente de uma verdadeira 'revolução cultural' ocorrida no século XX, resultado
da enorme expansão das atividades, instituições e práticas culturais e da função sem
precedentes que passa a exercer nos processos de desenvolvimento e na alocação de recursos
econômicos e materiais” (SENA, 2013).
Eduardo Sena aborda a partir de Stuart Hall que,

“A revolução da informação propiciada pelas Tecnologias de Informação e


Comunicação permitiu uma inaudita expansão da produção, circulação e
troca cultural em escala global, conectando atores culturais em diversas
partes do globo. Além disso, salienta o autor, parte dessa revolução reside no
“amplo poder analítico e explicativo que o conceito de cultura adquiriu na
teorização social” (SENA, 2013, p. 20) .

Para Maigret (2010), “a construção social das comunicações […] permitiu, sobretudo,
aprofundar de maneira decisiva os debates sobre as transformações da cultura contemporânea
ao esboçar modelos de relação entre meios de comunicação, cultura e poder”.
Passos e Aguiar (2013), a partir da reflexão de Paul Tolila sobre cultura e economia,
entendem que “não é possível fazer uma discussão [cultural] sem considerar sua economia, o
que implica atenção à industrial cultural, sua estrutura e funcionamento, em especial, o seu
modelo de ação”. O chamado “oligopólio de franja” aparece como estruturante de um sistema
em que um grupo de empresas no controle do mercado “permite” a coexistência de um
mercado alternativo, simulando a existência de concorrência. No caso do cinema, por

1507

V V
exemplo, fazem “coexistir um centro oligopolístico (majors) e uma franja concorrencial
(independentes), operando o domínio da distribuição, da busca especulativa de talentos e
modismo (efeito moda) e dos direitos sobre as obras por longo período de tempo (efeito
reserva)” (PASSOS e AGUIAR, 2013). É possível pensar que a cultura da diversidade
apoiada pelas atuais políticas culturais do governo brasileiro ocupem papel semelhante em
relação à cultura de mercado, sendo uma política “permitida” na medida em que não afeta o
sistema cultural dominante.
Se como aponta Hall (2013), para os pensadores do Centro de Birmingham, a 'cultura'
era o ponto de convergência, também é necessário apontar que o conceito continua complexo,
“um local de interesses convergentes, em vez de uma ideia lógica ou conceitualmente clara”.
Para Maigret,
“A expressão 'cultura popular', pouco satisfatória, ambígua porque oculta a
violência que a constitui, só é interessante de usar na medida em que
consegue nos desenfeitiçar de uma concepção 'miserabilista' das práticas das
categorias populares. Uma vez retirado o preconceito de uma massa
homogênea e amorfa, cabe ao estudo empírico demonstrar a existência e a
lógica de práticas mais ricas do que previstas” (MAIGRET, 2010, p. 195).

A cultura está diretamente implicada numa economia cultural e, portanto, inscrita nas
forças em luta que disputam concepções e projetos de desenvolvimento. “É o social que
'codifica' as relações de comunicação – e não o inverso – sendo, o social ao mesmo tempo
simbólico, comum, violência particular de grupo e reconhecimento da legitimidade desta
violência por aqueles que a sofrem” (MAIGRET, 2010).
O caminho deste texto foi tentar apontar brevemente alguns caminhos traçados,
algumas correntes de pensamento resgatadas e algumas rupturas teóricas proporcionadas por
alguns expoentes dos estudos culturais, da sociologia, da política cultural e, que são chaves na
análise do campo cultural contemporâneo.

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WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo


Editorial, 2007.

1510

V V
CINEMA E EDUCAÇÃO: O INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA EDUCATIVO E
A SÉRIE BRASILIANAS DE HUMBERTO MAURO
Wolney Vianna Malafaia1

RESUMO: Análise dos primórdios da relação entre cinema e educação no Brasil, a partir do
debate cultural cinematográfico realizado nos anos vinte, da produção pioneira dos
professores do Colégio Pedro II, Francisco Venâncio Filho e Jonathas Serrano, culminando
com o projeto de criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), em 1936, e a
produção da série Brasilianas, por Humberto Mauro, através daquele mesmo Instituto.

PALAVRAS-CHAVE: Cinema, Debate Cultural, Cinema e Educação, Nacionalismo,


Produção Cinematográfica.

ABSTRACT: Analysis of the early relationship between cinema and education in Brazil,
starting from the cultural debate held in the twenties, the pioneering production of the Colégio
Pedro II teachers Francisco Venâncio Filho and Jonathas Serrano, which culminated in the
project of the creation of the Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), in 1936, and in
the production of the series Brasilianas, by Humberto Mauro, through that same Institute.

KEYWORDS: Cinema, Cultural Debate, Cinema and Education, Nationalism,


Cinematographic Production.

Desde a sua criação, o cinema tem suscitado inúmeros debates a respeito do seu uso
como mídia, entretenimento e educação. Nas primeiras experiências verificadas na França, ao
final do século XIX, destacaram-se duas vertentes representadas pelos Irmãos Auguste e
Louis Lumière e por Georges Meliès: os primeiros produziam um cinema apresentado como
registro da realidade; o segundo, um cinema marcado pela fantasia e pela criatividade. Essa
dupla vertente marcará indelevelmente a produção cinematográfica, constituindo os alicerces
da narrativa fílmica: o roteiro, o enquadramento e a montagem.2
A sensação de realidade apreendida, não obstante as fantasias e situações burlescas
apresentadas em vários filmes, sugeria o cinema como um instrumento de desvendamento do
real, mais do que simples registro, a própria configuração da realidade. Sua qualidade como

1
Professor do Colégio Pedro II, Campus São Cristóvão III, Bacharel em Direito (UERJ, 1983), Bacharel e
Licenciado em História (UFRJ, 1991), Mestre em História Social (PPGHIS/IH/UFRJ, 1996) e Doutor em
História Política e Bens Culturais (PPGHPBC/CPDOC/FGV,2012); E-mail: wolneymalafaia@hotmail.com;
2
Sobre essas vertentes e os primórdios da produção cinematográfica cf. XAVIER, Ismail. O Discurso
Cinematográfico. A opacidade e a transparência. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984; tb. XAVIER, Ismail.
Sétima Arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado
de São Paulo, 1978.

1511

V V
meio de entretenimento popular logo se destacou e as produções cinematográficas, em larga
escala, proliferaram por todo o mundo. Na sua grande maioria, eram filmes de curta duração,
filmados em um cenário único, contando histórias de crimes, dramas passionais, romances e
situações cômicas que faziam parte do cotidiano dos trabalhadores urbanos. Na segunda
década do século XX, desenvolve-se a narrativa cinematográfica, sendo o cineasta norte-
americano, David W. Griffith considerado o seu pioneiro. A produção da época, então,
notabilizava-se por uma certa liberalidade quanto aos costumes e ao comportamento e, após a
Primeira Guerra Mundial, um certo destaque ao papel da mulher e à sua iniciante liberação.
Ao mesmo tempo, a produção cinematográfica desenvolvia a sua função midiática,
servindo como registro jornalístico, documental e mesmo educativo, divulgando experiências
científicas, fazendo propaganda de governos, registrando os conflitos. Esse aspecto da
produção cinematográfica não pode ser descuidado, visto que realça a condição do cinema
como registro da realidade, instalando o debate sobre os limites do ficcional e do documental.
Em terras tropicais, a aventura da produção cinematográfica segue caminhos
semelhantes. Grande parte do que foi produzido no Brasil, até 1930 se perdeu devido
justamente às péssimas condições de armazenamento, a fácil deterioração das películas e o
clima tropical. Soma-se a isso tudo a inexistência de uma política de preservação dos filmes,
da parte dos produtores, visto que eram considerados produções baratas, meros
entretenimentos populares, e não obras de arte. Até a década de 1920, quando intelectuais
modernistas afirmaram o debate sobre identidade nacional, produção artística e projeto de
nação, o cinema era assemelhado às exibições circenses, ao teatro de revista, às formas mais
baratas e vulgares de entretenimento popular.3
Justamente nos anos vinte surgem os chamados ciclos regionais, ilhas de produção
cinematográfica que se afirmam como espaços de busca de uma linguagem apropriada à
cultura brasileira. Assim, são os ciclos de Santos, Campinas, Juiz de Fora, Recife e, mais
particularmente, no que nos interessa, Cataguases, com Humberto Mauro.4 Esses ciclos vêm
acompanhados de um aumento significativo da produção dos chamados filmes exaltação,
documentários que eram exibidos nos cinemas relatando as belezas naturais do país, festas
religiosas e folclóricas, acontecimentos importantes. Ao mesmo tempo, surgem periódicos
especializados como a Revista Cinearte, editada por Mário Behring e Ademar Gonzaga entre

3
Sobre os primórdios do cinema no Brasil, cf. ARAÚJO, Vicente de Paula. A Bela Época do Cinema Brasileiro.
São Paulo: Perspectiva, 1976.
4
Sobre os ciclos regionais cf. LOBATO, Ana Lúcia. Os ciclos regionais de Minas Gerais, Norte e Nordeste
(1912-1930). In RAMOS, Fernão (org.). História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p.
63-95.

1512

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1926 e 1942, tida inicialmente como um espaço próprio de divulgação do cinema norte-
americano de matriz hollywoodiana e que, com o tempo, passou a publicar artigos de defesa
da produção nacional, críticas de filmes aqui produzidos e debates sobre as condições de
produção existentes e os recursos estéticos adotados. Nesse contexto, o aparecimento dos
primeiros clubes de cinema, destacando-se o Chaplin Club, de Petrópolis, dirigido por Plínio
Sussekind Rocha e Octavio de Farias, criado em 1928, que publicará a revista Fan, defensora
do cinema mudo ante à inovação do filme sonoro (SIMIS, 1996, p. 25-27).
Esta profusão de produções, propostas e ideias permitiu o surgimento de uma vertente
da produção cinematográfica mais preocupada com a busca de uma linguagem nacional, o que
podemos ver na associação entre Humberto Mauro e a Revista Cinearte, que resultará na
produção de Lábios sem Beijos (1931) e Ganga Bruta (1933), pelo primeiro grande estúdio
brasileiro, a Cinédia, criado por Ademar Gonzaga em 1930; e de Mário Peixoto com o
Chaplin Club, o que resultará na produção do clássico Limite (1931).5
Este debate atingiu em pouco tempo as instituições governamentais, destacando-se a
relação da produção cinematográfica com o processo educativo. Em 1927, foi criada a
Comissão de Cinema Educativo do Distrito Federal, subordinada à Subdiretoria Técnica de
Instrução Pública, dessa Comissão faziam parte professores da rede pública do Distrito
Federal e produtores e diretores de documentários sobre a natureza, costumes, festas e eventos
de importância. No ano seguinte, foi publicado o Decreto nº. 18.527, de 12 de outubro, o qual
estabeleceu que os programas dos cinematógrafos deveriam ser submetidos à censura das
Casas de Diversões do Distrito Federal, tinha início aqui o controle das temáticas abordadas
pela produção cinematográfica em geral, considerada muito licenciosa para a época (SIMIS,
1996, p. 31-33).
A publicação de Cinema e Educação, de Jonathas Serranos e Francisco Venâncio
Filho, em 1929,6 constituiu-se, portanto, num marco dessa discussão. Ambos eram
professores do Colégio Pedro II e da Escola Normal, transformada em Instituto de Educação
em 1932, e integraram com destaque o grupo de educadores que produziu e assinou o
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, no qual consta uma defesa enfática do uso do
cinema na educação (CALABRE, 2009, p. 30-3). Jonathas Serrano foi professor de História,
de formação católica e integrava o Centro Dom Vital, fundado em 1922 por Jackson de

5
Cf. VIEIRA, João Luiz. A Chanchada e o Cinema Carioca (1930-1955). In RAMOS, Fernão (org.). História
do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 129-187.
6
SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e Educação. São Paulo: Comp.
Melhoramentos, 1930, 159 p.

1513

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Figueiredo, publicando artigos em que buscava conciliar os princípios do catolicismo com as
novas exigências metodológicas e teóricas da educação (LEITE, 2005, p. 35-38). Francisco
Venâncio Filho era professor de Ciências Exatas, destacando-se por trabalhos publicados
sobre Física e Química, e também pela divulgação da obra e pensamento de Euclides da
Cunha, tendo sempre adotado uma postura cientificista. Cinema e Educação é, portanto, uma
obra de contradições: a técnica e a mensagem; a aplicação de modernas tecnologias de ensino
a serviço da formação moral e, ao mesmo tempo, do desenvolvimento científico.
Características importantes da forma como o cinema era visto nos anos vinte: modernidade e
dissolução dos costumes; ciência e propaganda.7
A Revolução de 1930 acelerou as mudanças na estrutura do sistema educacional
brasileiro, que já vinham se desenvolvendo desde o início dos anos vinte. Foi criado o
Ministério da Educação e da Saúde Pública, em 1930, tendo como ministro Francisco
Campos; no ano seguinte, Pedro Ernesto assume a Prefeitura do Distrito Federal, nomeando
Anísio Teixeira como Diretor de Instrução Pública (CALABRE, 2009, p. 15-17). A gestão de
Anísio Teixeira notabilizou-se pelo incremento das atividades da Comissão de Cinema
Educativo, criando uma filmoteca do Distrito Federal e aparelhando as escolas com projetores
16mm, apropriados para as projeções naqueles espaços (SIMIS, 1996, p. 33-35).
Com a nova configuração do aparelho de Estado, tem início, também, a intervenção
oficial na área cinematográfica. A primeira medida disse respeito à censura: o decreto nº.
21.240, de 4 de abril de 1932, nacionalizou o Serviço de Censura e criou uma taxa
cinematográfica, percentual cobrado da exibição de filmes estrangeiros nos cinemas
brasileiros, que seria revertida em favor do Departamento Nacional de Ensino do Ministério
da Educação e Saúde Pública, com o objetivo de financiar a produção de cinejornais
educativos, cuja obrigatoriedade de exibição antes dos filmes estrangeiros também foi objeto
desse mesmo decreto. Outro decreto, de nº 24.651, de julho de 1934, criou o Departamento
de Propaganda e Difusão Cultural, ligado ao Ministério da Justiça, passando o Serviço de
Censura e a arrecadação da taxa cinematográfica para este Departamento. Instituía-se, aqui, a
produção cinematográfica como propaganda oficial, vertente que era difundida na Europa
principalmente pelos regimes nazifascistas (SIMIS, 1996, p. 31-35).
Tendo assumido o Ministério da Educação e Saúde Pública em 1934, Gustavo
Capanema apoia as pretensões do antropólogo Edgar Roquette-Pinto, no sentido de se

7
Cf. Instituto Nacional de Cinema Educativo: da história escrita à história contada – um novo olhar. In
www.mnemocine.com.br/index.php/cinema-categoria/25-historia-no-cinema-historia-do-cinema/113-fernanda-
caraline-de-a-carvalhal; publicado em 15 de maio de 2009, às 13:19 hs.

1514

V V
desenvolver um setor de produção cinematográfica voltado especificamente ao filme
educativo, e institui em março de 1936 a Comissão Instaladora do Instituto Nacional do
Cinema Educativo (INCE), por ele dirigida. Roquette-Pinto convidará o cineasta Humberto
Mauro a participar da mesma dando início a uma parceria que durará até 1945 (MORETTIN,
2013, p. 20-21). Em 1937, a Lei nº. 378, de 13 de janeiro, reorganiza o Ministério da
Educação e Saúde Pública, que passa a se chamar Ministério da Educação e Saúde (MES);
esta mesma lei cria o INCE, o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro e o
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CALABRE, 2009, p. 31-33).
Neste mesmo ano de 1934, acompanhando a conjuntura de grandes debates e
participação política, é criada a Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros
(ACPB), tendo início a criação de diversos outros estúdios de cinema como Brasil Vita
Filmes (1934), Sonofilmes (1937) e a Atlântida (1941). Este crescimento representa uma
articulação política que logo se faz notar pelo governo. A produção crescera mas o mercado
cinematográfico exibidor continuava dominado pelo produto estrangeiro, principalmente o de
origem hollywoodiana (SIMIS, 1996, p. 65-66).
O Estado tornara-se, também, um grande produtor. No campo do cinema educativo ou
dos cinejornais, a produção oficial havia crescido substancialmente desde 1934 e ocupava
uma boa margem do mercado exibidor justamente por conta da obrigatoriedade prevista em
lei de exibição de um curta-metragem brasileiro antes do filme estrangeiro (BERNARDET,
2009, p. 52-58). Em 1938, assume a direção do Departamento de Propaganda e Difusão
Cultural (DPDC), Lourival Fontes; em 1939, através do Decreto-Lei nº. 1915, de 27 de
dezembro, o DPDC passa a se chamar Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), saindo
da alçada do Ministério da Justiça e passando ao Gabinete da Presidência da República.
Muito embora a atuação de Lourival Fontes se desse principalmente no campo da
radiodifusão, ele vai aprimorar, também, o setor de produção cinematográfica, contribuindo
para o aumento da produção de cinejornais. Entre 1938 e 1945, a produção do Cinejornal
Brasileiro, pelo DPDC/DIP chegou ao total de 565 edições (CALABRE, 2009, p. 33).8
A aproximação com os produtores cinematográficos se deu a partir de 1942, com uma
tímida liberalização das relações políticas do aparato oficial. Lourival Fontes é exonerado da
direção do DIP e, através do Decreto-Lei nº. 4064/1942, é criado o Conselho Nacional de

8
Sobre a produção de cinejornais e o uso do cinema como propaganda oficial cf. FUNDAÇÃO CINEMATECA
BRASILEIRA. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e Propaganda, 1938-1946. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1982.

1515

V V
Cinema, subordinado à Divisão de Cinema e Teatro do DIP, composto por representantes dos
produtores cinematográficos brasileiros, dos distribuidores de filmes nacionais, do sindicato
dos exibidores e dos importadores de filmes estrangeiros. Esta Comissão organizará
discussões em torno de uma maior regulamentação do mercado exibidor cinematográfico e de
subsídios para a produção de filmes nacionais. Sendo assim, é reduzida a tarifa cobrada sobre
a importação de filmes virgens e aumentada a obrigatoriedade de exibição dos longas
nacionais, que passa de um longa-metragem a três longas-metragens por ano. Discutem
também o incentivo à produção de curtas-metragens, documentários e cinejornais por
produtores particulares, com o financiamento oficial possibilitado pela arrecadação da taxa
cinematográfica (SIMIS, 1996, p. 93-95).
Paralela à produção do filme propaganda e da construção de uma política oficial
voltada à produção e exibição cinematográficas, a trajetória do INCE se faz de maneira
criativa e precária, em muito se devendo ao trabalho de Humberto Mauro e ao apoio político
de Roquette-Pinto. A estrutura do INCE sempre foi reduzida: contava somente com dez
funcionários e se constituía de três setores: Serviço de Orientação Educacional (que abrigava
a Comissão Consultiva do INCE com representantes de várias áreas e disciplinas como
história, antropologia, ciências naturais, ciências exatas, patrimônio etc.), Serviço de Técnica
Cinematográfica, responsável pela produção dos filmes, e o Serviço Auxiliar, encarregado da
distribuição dos filmes, da propaganda e da realização de projetos educacionais (CALABRE,
2009, p. 31-33). Mesmo com essa estrutura reduzida e recursos parcos, o INCE produziu,
entre 1936 e 1945, 233 filmes, sendo dois longas-metragens: O Descobrimento do Brasil
(1937) e Os Bandeirantes (1940), ambos dirigidos por Humberto Mauro (LEITE, 2005, p. 46-
47).
O Descobrimento do Brasil foi financiado pelo Instituto de Cacau da Bahia e contou
com a assessoria do historiador Afonso D’E. Taunay, com música composta especialmente
por Heitor Villa-Lobos. Baseado na carta de Pero Vaz de Caminha e tendo como referência os
quadros pintados no século XIX a respeito do fato histórico, Humberto Mauro realizou uma
produção esmerada, em que sua preocupação com os detalhes, como o vestuário dos
portugueses e a linguagem dos nativos, é notável. Em Os Bandeirantes, também contando
com a assessoria de Afonso D’E. Taunay, Humberto Mauro reproduz a versão oficial da
historiografia de base paulistana que apresenta os exploradores como criadores do território
nacional (MORETTIN, 2013, p. 137-141).

1516

V V
Destacam-se, também, como produções do INCE, inúmeros curtas-metragens que
registram atividades folclóricas, danças, manifestações populares e o patrimônio histórico e
artístico nacional. Esta produção era destinada às escolas em geral, através de projetos
específicos ou mesmo de campanha de difusão da cultura brasileira. O Colégio Pedro II e o
Instituto de Educação do Distrito Federal, como escolas secundárias, tendo os professores
Jonathas Serrano e Francisco Venâncio Filho à frente, foram espaços privilegiados desses
projetos.
Outro projeto ambicioso foi levado à frente, por Humberto Mauro, ao final do Estado
Novo. Trata-se da série Brasilianas, composta por onze curtas-metragens, sendo dez deles
produzidos entre 1945 e 1964, todos pelo INCE, e o último, Carro de Bois, o único a cores,
produzido em 1974, já como produção particular. Nesta série, Humberto Mauro resgata a
ideia de brasilidade, o nacional visto através das manifestações interioranas populares e de
seus registros históricos. Destacam-se as cantigas populares e sua relação com o homem e a
terra, o interior do Brasil revelado pelos seus cantos e costumes. Os dez títulos produzidos
pelo INCE foram: Chuá, Chuá e Casinha Pequena (1945, 8 min.); Azulão e Pinhal (1948, 7
min.); Aboio e Cantiga (1954, 10 min.); Engenhos e Usinas (1955, 7 min.); Cantos de
Trabalho (1955, 10 min.); Manhã na Roça e Carro de Bois (1956, 8 min.); Meus oito anos
(1956, 11 min.); O João de Barro (1956, 21 min.); São João Del Rey (1958, 10 min.) e A
Velha a fiar (1964, 7 min.).9
O projeto do cinema educativo derivava-se para a construção imagética da
nacionalidade. Ao realizar essa série, Humberto Mauro vai de encontro ao que podemos
chamar de nacional-popular, que tanto animaria os debates culturais nos anos cinquenta,
sessenta e setenta.10 A ideia de um Brasil interiorano, onde estão depositados os elementos
mais característicos da nacionalidade, soma-se à ideia de modernização, onde o cinema é a
janela da modernidade. Não à toa, cineastas fundadores do movimento político e cultural
conhecido como Cinema Novo, como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá
Diegues, irão prestar homenagens sinceras a Humberto Mauro.
Pensar o projeto de construção do INCE e os seus desdobramentos, pensar o projeto
cinematográfico desenvolvido por Humberto Mauro é pensar também na ideia de Brasil e,
mais particularmente, na ideia de educação pela imagem, onde o nacional e o popular

9
Cf. www.jornalggn.com.br/video/brasilianas-cancoes-populares-de-humberto-mauro; em 15 de junho de 2014,
às 14:45 hs.
10
BERNARDET, Jean-Claude; GALVÃO, Maria Rita. Cinema: Repercussões em caixa de eco ideológica (As
ideias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). São Paulo: Brasiliense, 1983.

1517

V V
perpassam, entram em conflito, se contradizem e se integram na visão de um país em ritmo de
modernização. Este projeto de construção de uma nação, de modernização e de ideia de
Brasil, teve no Colégio Pedro II um dos seus suportes. Analisá-lo é também evocar o papel
deste Colégio nos debates políticos e culturais dos anos trinta aos anos sessenta, quando seus
profissionais e alunos assumiram uma certa proeminência na sua discussão e na sua
formulação.

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Vicente de Paula. A Bela Época do Cinema Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976, 414
p.

BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: Propostas para uma História. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979, 103 p.

___; GALVÃO, Maria Rita. Cinema: Repercussões em caixa de eco ideológica. (As ideias de
“nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). São Paulo: Brasiliense, 1983, 266
p.

CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009, 141 p.

FUNDAÇÃO CINEMATECA BRASILEIRA. Cine Jornal Brasileiro, Departamento de Imprensa e


Propaganda, 1938-1946. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1982, 187 p.

LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à Retomada. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2005, 160 p.

MORETTIN, Eduardo. Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda, 2013, 494 p.

RAMOS, Fernão (org.). História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, 555 p.

SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996, 312 p.

SOUZA, José Inácio de Melo. Trabalhando com Cinejornais: relato de uma experiência. In
CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thomé
(orgs.). História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007, p. 117-
133.

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico. A opacidade e a transparência. 2ed. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1984, 155 p.

___. Sétima Arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e
Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978, 275 p.

1518

V V
DIFUSÃO DA CULTURA BRASILEIRA NO EXTERIOR: OS ACORDOS DE
COOPERAÇÃO CULTURAL DO ITAMARATY NO GOVERNO LULA.
Yves Finzetto1

RESUMO: O trabalho pretende investigar a difusão da cultura brasileira no exterior durante


o período 2003-2010. Para isso foi escolhida como objeto de pesquisa a Divisão de Operações
de Difusão Cultural (DODC) do Itamaraty, principal órgão governamental responsável pelas
ações de difusão cultural no exterior. Pretende-se analisar os Acordos de Cooperação Cultural
e os Programas Executivos de Cooperação Cultural assinados entre o Brasil e terceiros países
no período, relacionando-os à política cultural implementada durante o governo Lula.

PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Diplomacia Cultural, Governo Lula, Ministério da


Cultura, Itamaraty

CONTEXTUALIZAÇÃO
Joseph Nye, na década de 1980, cunhou o conceito de soft power (poder brando).
Segundo o autor, soft power é "[...] the ability to get what you want through attraction rather
than coercion or payments. It arises from the attractiveness of a country's culture, political
ideals, and policies. When our policies are seen as legitimate in the eyes of others, our soft
power is enhanced” (NYE, 2002). Dessa maneira, o poder brando se contrapõe ao hard
power, caracterizado pelo uso da força, da intimidação e da coerção, por sua capacidade de
persuasão e atração por meio da cultura de um país e de seus valores políticos e ideológicos.
França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Japão e Estados Unidos fizeram uso da cultura como
instrumento facilitador para cumprir o objetivo de promover sua imagem externa, reduzir
desconfianças e promover a cooperação entre países.2 Ao final do século XIX, a França foi a
primeira a criar uma divisão específica em seu Ministério dos Negócios Estrangeiros com
vistas a coordenar o trabalho de difusão da língua e cultura francesas no exterior. Os EUA
fizeram uso da Diplomacia Cultural, durante a década de 1930, para garantir o apoio da
América Latina em uma eventual Segunda Guerra Mundial, ação conhecida por Política da
Boa Vizinhança. Além disso, no contexto da bipolaridade oriunda da Guerra Fria, os EUA
obtiveram sucesso na difusão mundial de seus valores culturais, sintetizados pela expressão

1 Mestrando em Estudos Culturais na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.


yvesfinzetto@gmail.com
2 RIBEIRO, Edgard Telles. Diplomacia Cultural: seu papel na política externa brasileira. Brasília: FUNAG,
1989. p. 67-86.

1519

V V
"American Way of Life". O Instituto Cervantes e a Agência Espanhola de Cooperação
Internacional são exemplos do esforço espanhol para difundir sua língua e cultura.
Contudo, os modelos de difusão cultural adotados pelos países são diferentes. O Reino Unido
e o Japão a realizam por meio de agências autônomas (British Council e Japan Foundation);
na França há grande intervenção e controle do Estado; e nos EUA e na Alemanha há a
presença de grupos mistos e de apoio privado. No Brasil, predominam as ações empreendidas
pelas instituições governamentais: Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), Ministério
da Cultura (MinC) e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).
A partir do fim da Guerra Fria, o acentuado processo de globalização e uma nova
realidade internacional fizeram com que muitos países rediscutissem suas políticas
isolacionistas. O Brasil passou por um processo de abertura comercial, iniciado no governo do
presidente Fernando Collor de Mello, que teve continuidade durante o governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso. A abertura comercial foi acompanhada de uma necessidade de
maior inserção externa. A formação de blocos comerciais e as necessidades de ganhos de
escala tornaram-se estratégias de sobrevivência no contexto da globalização. Dessa maneira,
em 1991, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai celebram o Tratado de Assunção, para a
constituição de um Mercado Comum do Sul, o MERCOSUL. Contudo, essa instituição não se
ocupou apenas do viés comercial. Em 1995, foi criada, também em Assunção, a Reunião de
Ministros e Responsáveis de Cultura, que "[...] propiciou a estimulação do estudo por
pesquisadores, instituições acadêmicas e culturais relativas à incidência econômica da
atividade cultural e das políticas públicas nas indústrias culturais dos países-membros”
(BIJOS, ARRUDA, 2010). Em 1996, foi criado o Parlamento Cultural do MERCOSUL, o
selo "MERCOSUL Cultural" e assinado o Protocolo de Integração Cultural do MERCOSUL.
No contexto das reformas neoliberais, oriundas do contexto descrito acima, foi
reformada a Lei de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991, reformada
em maio de 1995). Segundo José Álvaro Moisés, a conhecida Lei Rouanet criou um "mercado
de patrocínios" que propiciou o surgimento de setores interessados em investir na cultura.
Houve um forte aumento dos investimentos para a cultura com o crescimento do mecenato
privado, onde as estratégias publicitárias teriam lugar de destaque na destinação de verbas em
detrimento à função social de promoção da cultura brasileira (MOISÉS, 1998). Para o autor, o
resultado ocorreu devido ao sistema previsto pela lei, em que o investimento da empresa em
um projeto cultural era 100% abatido dos impostos. Ou seja, há uma aplicação de recursos
públicos a partir da lógica do investidor privado. Segundo dados coletados pelo autor, as

1520

V V
motivações das empresas para investimentos em cultura eram “[...] ganho de imagem
institucional (65,04%); agregação de valor à marca da empresa (27,64%); reforço do papel
social da empresa (23,58%); benefícios fiscais (21,14%); retorno de mídia (6,5%);
aproximação do público-alvo (5,69%); outro (3,25%); não citou (11,38%)” (MOISÉS, 1998).
A partir do governo Lula, com Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura, foram
elaborados novos conceitos para a atuação do Estado na área cultural. Gilberto Gil defendeu
maior presença do poder público na elaboração e execução de Políticas Culturais.
[...] o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não
deve tirar de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de
políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e
assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos
do deus-mercado (GIL, 2010).

Os primeiros quatro anos de Lula e Gil em relação a políticas públicas de cultura são
orientados a partir de três diretrizes conceituais: simbólica, econômica e cidadã. Pode-se
entender a dimensão simbólica a partir dos esforços desse governo em atribuir aos bens
culturais valor de patrimônio do povo brasileiro. Dessa forma, o primeiro mandato da gestão
Lula buscou promover a cultura brasileira a portadora de conteúdos singulares e valores
universais.
A dimensão econômica é inegável, pois, no ano de 2003, as atividades culturais foram
responsáveis pela movimentação de 7% do PIB mundial e, no ano de 2002, os Estados
Unidos, Reino Unido e China, sozinhos, foram responsáveis por 40% da circulação de
mercadorias culturais no mundo (UNESCO, 2005). Ainda sobre a dimensão econômica, a
UNESCO constatou que o comércio de bens culturais passou de US$ 39.3 bilhões, em 1994,
para US$59.2 bilhões em 2003 e, de acordo com Bentley, “há cem anos, menos de 10% das
pessoas trabalhavam no setor cultural da economia, em 1950, este percentual subiu para 15%.
Nas duas últimas décadas, houve uma explosão e, atualmente, cerca de 30% dos trabalhadores
das nações industriais avançadas encontram-se no setor cultural” (BENTLEY, 2004).
A dimensão cidadã se refere ao melhor aproveitamento dessas capacidades oferecidas
pela cultura para o desenvolvimento social da região, como a América do Sul. Essas três
diretrizes resumem uma característica marcante da atuação desse governo no âmbito da
cultura, a importância dada ao social. Para Lula e Gil, a cultura desempenha um papel
estratégico de desenvolvimento tanto no plano nacional como no plano internacional, no
sentido de disseminar a centralidade da cultura e das atividades econômicas relacionadas a
ela, defendendo publicamente a ideia de que a cultura deve ser uma das prioridades do
governo e da sociedade na construção de um novo projeto de nação. Defendendo, ainda, que a

1521

V V
meta da ampliação do grau de acesso da população aos meios de produção de cultura e aos
bens e serviços culturais produzidos é uma meta de Estado.
O reconhecimento da centralidade da cultura e sua priorização passam
necessariamente pelo fortalecimento do MinC e pela mudança de atitude em
relação às questões do setor. Trata-se de uma mudança no modo como o
governo, o MinC, os agentes econômicos do setor, os criadores e os demais
cidadãos encaram a cultura, o papel do estado na cultura e as relações
culturais. E tudo isso deságua nas questões internacionais. Reforçar a cultura
brasileira, sua difusão no exterior, a constituição de um setor empresarial
forte de produção e difusão, o grau de diversidade cultural e acesso, enfim,
reforçar a identidade cultural do país e a sua capacidade de produzir e
difundir esta cultura é algo que impacta diretamente o desenvolvimento do
país e sua inserção no mundo globalizado (GIL, 2013, p. 343).

Nesse sentido, o discurso oficial durante o governo Lula desloca as políticas culturais
para o centro do debate do desenvolvimento nacional e das relações de intercâmbio do Brasil
com outros países. Dessa maneira, a intenção deste artigo é a de analisar a atuação do
Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, especificamente as ações da
Divisão de Operações de Difusão Cultural (DODC) durante o governo Lula. Segundo o
Itamaraty:
A Divisão de Operações de Difusão Cultural (DODC) é responsável pela
difusão e promoção da rica cultura brasileira em suas múltiplas vertentes, à
exceção da audiovisual, que compete à DAV. Além disso, a DODC participa
da elaboração de acordos culturais e acompanha sua implementação. Por
meio de diplomacia cultural, a DODC proporciona maior compreensão da
realidade brasileira, afinidade com seus valores e peculiaridades, redução de
estereótipos nocivos sobre o país, e, em última análise, relações mais
cooperativas e harmoniosas com os demais países. Anualmente, diversos
postos do Brasil elaboram um Programa de Difusão Cultural, que abrange
áreas como arquitetura, design, artes cênicas, artes plásticas, dança, capoeira,
fotografia, literatura, música, teatro e gastronomia. A DODC gerencia e
administra todos esses Programas, e coordena-se com o Ministério da
Cultura e outros órgãos e instituições, com vistas a produzir uma política
cultural unificada, em que as atividades de cada posto estejam de acordo
com sua importância na agenda da política externa brasileira. Consoante
com a política externa brasileira atual, maior destaque vem sendo dado à
difusão cultural na África e na América do Sul (ITAMARATY, 2013).

Nesses dois parágrafos há uma síntese das atribuições dessa divisão. Verifica-se que a
DODC é, de fato, a responsável pela maioria das ações de difusão da cultura brasileira no
exterior em suas diferentes vertentes e linguagens artísticas. Além disso, objetiva a "redução
de estereótipos nocivos sobre o país". Cabe à DODC receber, analisar e aprovar o Programa
de Difusão Cultural dos postos no exterior de acordo com as diretrizes das políticas externa e
cultural brasileira, assim como participar da elaboração de acordos culturais e acompanhar a
sua implementação. Neste trabalho, especificamente, apresentarei o resultado de minhas

1522

V V
pesquisas relacionadas aos Acordos de Cooperação Cultural, aos Programas Executivos e a
outros instrumentos diplomáticos de cooperação na área durante o período 2003 - 2010.

Os documentos
O Sistema de Atos Internacionais do Itamaraty é um acervo que concentra os
documentos diplomáticos do governo Brasileiro. Com a pesquisa nesse acervo, utilizando
recorte específico para a cooperação cultural, pude encontrar 64 documentos referentes ao
período 2003 - 2010. São 24 Acordos de Cooperação Cultural, 24 Programas Executivos e 16
outros instrumentos.
De início, o primeiro fato a ser observado assinala que, dos 64 instrumentos, 58 foram
assinados entre o Brasil e países em desenvolvimento; e, apenas, 6 entre o Brasil e países
desenvolvidos.
Aqui, vemos de forma explícita a prioridade do fortalecimento das relações Sul-Sul
empreendida pelo governo Lula refletida nas ações de política cultural. Com Celso Amorim à
frente do Itamaraty e com o engajamento pessoal do presidente Lula, as relações com os
países em desenvolvimento foram o foco da política externa brasileira. Em seu mandato, Lula
realizou 28 viagens à África; foram abertos aproximadamente 70 postos e consulados
brasileiros no exterior, a maioria em países em desenvolvimento. Os Acordos de Cooperação
Cultural entre o Brasil e países caribenhos, como Granada, Santa Lúcia e São Cristóvão e
Névis, ocorreram concomitantemente à abertura de embaixadas do Brasil nesses países.
O Brasil foi responsável pela articulação de diversos agrupamentos multilaterais Sul-
Sul. O IBAS, criado em 2003 entre Índia, Brasil e África do Sul, caracteriza-se por ser um
grupo composto por representantes de três continentes, três democracias multiétnicas. É um
fórum de articulação e cooperação acerca de variados temas de política externa; entretanto,
duas ações revelam a prioridade na cooperação com países mais pobres. O IBAS possui o
fundo IBAS de Combate à Fome e à Pobreza, constituído no âmbito do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o qual financiou diversos projetos em países menos
desenvolvidos. “Desenvolvimento da Agricultura e Criação de Animais”, na Guiné-Bissau;
“Coleta de Resíduos Sólidos”, no Haiti; “Reforma da Infraestrutura do Sistema de Saúde”, em
Cabo Verde, são exemplos das ações empreendidas pelo agrupamento que, por iniciativas
como essas, recebeu o prêmio “Parceria Sul-Sul para Aliança Sul-Sul” e o “MODG Awards
2010”, destinado a projetos voltados para a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio.

1523

V V
O BRIC, acrônimo criado pelo economista-chefe do banco de investimentos Goldman
Sachs, Jim O’Neill, efetivou-se como agrupamento sob o impacto da crise financeira de 2009,
quando ocorreu sua primeira cúpula, em Ecaterimburgo. Brasil, Rússia, Índia, China e,
posteriormente a África do Sul, ligada ao bloco em 2010, utilizam o BRICS como fórum,
atuando tanto na esfera da governança econômico-financeira como na política. Na primeira, a
agenda do BRICS confere prioridade à coordenação no âmbito do G-20 e na reforma do FMI.
Na vertente política, o BRICS defende a reforma das Nações Unidas e de seu Conselho de
Segurança, de forma a melhorar a sua representatividade, em prol da democratização da
governança internacional. Contudo, é na vertente econômico-financeira que o mecanismo
aparenta ser mais promissor. Em 2013, na V Cúpula do BRICS, em Durban, foram lançadas
as iniciativas para o Banco de Desenvolvimento dos BRICS - voltado para o financiamento de
projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em países em desenvolvimento –, e
para o Arranjo Contingente de Reservas (CRA, na sigla em inglês) – destinado a prover apoio
mútuo aos membros do BRICS. Ambas iniciativas objetivam servir como alternativa às
chamadas instituições de Bretton Woods, referindo-se à Conferência de Bretton Woods, em
1944, quando foram criados o Banco Mundial e o FMI, em um esforço explícito de reformar a
governança financeira global, que ainda reflete a estrutura de poder criada no imediato pós-
Segunda Guerra.
Duas cúpulas inter-regionais foram estabelecidas entre 2003-2010: a Cúpula América
do Sul-África (ASA) e a Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA). A I Cúpula de
Chefes de Estado e de Governo da ASA foi realizada em Abuja, em 2006. Participam da
Cúpula 66 países dos dois continentes – 12 sul-americanos e 54 africanos –, correspondendo a
cerca de um terço do número de Estados-membros das Nações Unidas, reunindo um PIB da
ordem de US$ 6 trilhões, em 2011, e um total de mais de 1,4 bilhão de pessoas. Segundo o
Itamaraty,
a participação brasileira na ASA reflete a prioridade da América do Sul para
o Brasil e a importância crescente atribuída à África, vista cada vez mais
como parte da nossa vizinhança. O mecanismo colabora para fortalecer a
identidade da América do Sul, que se apresenta e dialoga com outra região
de maneira integrada. Além disso, constitui foro para o debate iniciativas
que visam ao desenvolvimento de seus países-membros, em uma relação
entre regiões pautada não por ajuda externa, mas sim por um processo de
cooperação horizontal entre países que compartilham problemas e desafios
comuns (ITAMARATY, 2014).

A I Cúpula de Chefes de estado e de Governo da ASPA foi realizada em Brasília, em


2005, e marcou a estruturação formal da ASPA, integrada por 34 países – sendo 12 sul-

1524

V V
americanos3 e 22 integrantes da Liga dos Estados Árabes4. Com o objetivo de aprofundar o
conhecimento entre as regiões, importante espaço vem sendo dado à cooperação cultural.
A I Reunião de Ministros da Cultura da ASPA foi realizada em Argel, em 2-
3 de fevereiro de 2006, poucos meses após a celebração da I Cúpula. Na II
Reunião de Ministros da Cultura (Rio de Janeiro, 20-21/05/2009) foi
aprovado o “Plano de Ação para a Cooperação Cultural”, cuja
implementação na América do Sul tem sido coordenada pela Biblioteca e
Centro de Pesquisas América do Sul-Países Árabes (BibliASPA), sediada
em São Paulo. Entre as ações de cooperação, destacam-se a publicação de
edições bilíngues (português e/ou espanhol e árabe) de grandes obras
literárias, a oferta de cursos de língua e caligrafia árabe no Brasil e na
Argentina (a serem estendidos a outros países sul-americanos) e a
organização de mostras de cinema. Desde 2010, a BibliASPA realiza
anualmente, no mês de março, o Festival Sul-Americano de Cultura Árabe,
evento que contempla múltiplas manifestações artísticas e culturais e ocorre
simultaneamente em diversas cidades sul-americanas (ITAMARATY,
2014).
A Constituição Federal, em seu artigo 4o, o qual estabelece os princípios das relações
internacionais do Brasil, prevê que "a República Federativa do Brasil buscará a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de
uma comunidade latino-americana de nações”. A partir dessa diretriz constitucional, grande
atenção foi dada à integração regional no período 2003-2010. O Brasil convocou com
empenho pessoal do presidente Lula a Primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da
América Latina e Caribe (CALC), que se realizou na Costa do Sauípe, em 2008.
Incrivelmente, foi a primeira vez na história em que houve a reunião de todos os 33 países da
região sem a presença dos EUA ou de outro país desenvolvido. O Grupo do Rio, por exemplo,
que se consolidara na década de 1980 como foro regional de concertação política – com
importante atuação na pacificação da América Central e na redemocratização – reunia 24
Estados. Em fevereiro de 2010, o México sediou conjuntamente a II CALC e a Cúpula do
Grupo do Rio, na chamada Cúpula da Unidade. No evento, foi aprovada a ideia de reunir
progressivamente o Grupo do Rio e a CALC no marco de um único foro, intitulado a
Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Com a Cúpula de
Caracas, em dezembro de 2011, ocorreu a primeira reunião da CELAC. Com isso, espera-se
que os países da região possam se articular a partir de uma agenda própria, livre das
interferências impostas pelos EUA em mecanismos como a Organização dos Estados
Americanos (OEA), cuja sede é em Washington. Para Cuba, por exemplo, suspensa da OEA

3 Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
4 Arábia Saudita, Argélia, Bareine, Catar, Comores, Djibuti, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Iraque,
Jordânia, Kuaite, Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Omã, Palestina, Síria, Somália, Sudão e Tunísia.

1525

V V
em 19625, a CALC e, agora, a CELAC apresentam-se como importante mecanismo para sua
inserção regional.
Finalmente, deve-se falar da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), que
possui a mais robusta estrutura institucional entre os mecanismos citados até o momento. A
UNASUL6 tem suas raízes na Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), criada em
2004, uma aproximação entre o MERCOSUL e a Comunidade Andina de Nações, com o
objetivo de integrar o continente sul-americano no âmbito político, social, econômico,
ambiental e de infraestrutura, nos moldes da integração feita em outras partes do mundo,
como na Europa; e incorporou a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-
Americana (IIRSA)7, criada em 2000, que tem implementado diversos projetos visando à
integração física da região. A UNASUL é estruturada por Conselhos formados por Chefes de
Estado, por Chanceleres e por Delegados, por uma Secretaria-Geral – que passa por uma fase
de consolidação e fortalecimento – e por doze Conselhos Setoriais, que tratam de temas
específicos: energia; defesa; saúde; desenvolvimento social; infraestrutura; problema mundial
das drogas; economia e finanças; eleições; educação; cultura; ciência, tecnologia e inovação;
segurança cidadã, justiça social e coordenação de ações contra a delinquência organizada e
transacional.
No âmbito político, a UNASUL teve atuação na solução de controvérsias e conflitos
na região, como na crise institucional na Bolívia, em 2008; na reação ao uso de bases
militares colombianas pelos EUA; na crise entre Colômbia e Venezuela, em julho de 2010; e
no apoio à ordem constitucional e democrática do Equador quando da sublevação de sua
Polícia Nacional, em 2010. Com o objetivo de desestimular aventuras antidemocráticas na
região, os Chefes de Estado da UNASUL decidiram inserir uma cláusula democrática na
organização – o que foi feito por meio do Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo
assinado na Cúpula de Georgetown (2010). Dessa maneira, na crise desencadeada pela
deposição do Presidente paraguaio Fernando Lugo, em junho de 2012, realizada sem respeito
às garantias democráticas como o devido processo legal e o direito à ampla defesa, o Paraguai

5 A suspensão de Cuba da OEA foi revogada em 2009; entretanto o país ainda não manifestou o desejo de
reingressar na organização.
6 O Tratado Constitutivo da UNASUL foi assinado em Brasília, em 2008, entre Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
7 A IIRSA foi incorporada por um dos conselhos da UNASUL, o Conselho de Infraestrutura e Planejamento
(COSIPLAN). Dentre os resultados já alcançados pelo COSIPLAN está a elaboração de um Plano de Ação
Estratégico para dez anos (2012-2022), que estabelece um conjunto de ações para cada objetivo específico do
COSIPLAN, e a definição de uma Agenda Prioritária de Projetos, composta por 31 iniciativas de caráter
estratégico e de alto impacto para a integração física e desenvolvimento socioeconômico regional, com
investimentos estimados em mais de US$ 16,7 bilhões.

1526

V V
foi suspenso da UNASUL até que houvesse pleno restabelecimento da ordem democrática no
país – o que se deu com a posse do novo Presidente democraticamente eleito em agosto de
2013.
Segundo o Itamaraty,
tem-se discutido, na UNASUL, o desenvolvimento de uma estratégia sul-
americana de aproveitamento dos recursos naturais – uma das principais
vantagens comparativas da América do Sul. No continente está a maior
reserva de petróleo do mundo e cerca de um terço de todos os recursos
hídricos do planeta. A América do Sul concentra quase 40% da reserva
biogenética mundial e é a 3º maior produtora mundial das principais culturas
agrícolas (trigo, milho, soja, açúcar e arroz). Projeta-se que, até 2050, a
América do Sul será responsável por 30% da produção agrícola do mundo
(ITAMARATY, 2014).

Sendo assim, o estabelecimento da UNASUL, seguindo o citado preceito


constitucional, apresenta-se como instituição estratégica para garantir a estabilidade política
da América do Sul, assim como para implementar ações de infraestrutura e de aproveitamento
dos recursos naturais do subcontinente. Entretanto, curiosamente, é uma das regiões com
quem o Brasil menos concentra instrumentos de cooperação na área cultural no período 2003-
2010. São apenas 8, sendo metade deles com um único país, o Paraguai. Talvez as atividades
empreendidas pelas embaixadas e consulados brasileiros já demonstrasse um volume
importante de ações, tendo em vista que o Brasil assinou acordos na área em outras décadas;
ou seja, as bases para as iniciativas já estariam, supostamente, estabelecidas. Mesmo assim, há
uma correspondência entre o estabelecimento dos mecanismos Sul-Sul citados e os
instrumentos de cooperação cultural, especialmente, com os países africanos, e até mesmo
com os países árabes e caribenhos; e esse fato não ocorre com a região prioritária para a
política externa brasileira, a América do Sul. Vale lembrar que o Itamaraty, ao definir a
Divisão de Operações de Difusão Cultural, afirma: “consoante com a política externa
brasileira atual, maior destaque vem sendo dado à difusão cultural na África e na América do
Sul”. Aparentemente, a América do Sul não foi o objeto de destaque pretendido.

1527

V V
Feitas as considerações sobre as partes envolvidas nos instrumentos de cooperação cultural e
sobre a diretriz da política externa brasileira de enfatizar as relações Sul-Sul, passemos a
analisar o conteúdo desses instrumentos. A intenção é identificar as prioridades da política de
difusão da cultura brasileira no exterior. Os instrumentos revelam: conceitos de cultura;
linguagens artísticas privilegiadas; o nível de envolvimento do governo brasileiro com a
economia da cultura e com o desenvolvimento por meio do setor cultural; a preocupação com
o debate contemporâneo acerca dos direitos autorais; e a aplicação de diretrizes
internacionais, como a Convenção da Unesco sobre a Proteção e Promoção da Diversidade
das Expressões Culturais.
Como dito anteriormente, foram analisados 64 instrumentos de cooperação cultural.
Nesta análise, as linguagens artísticas tradicionais revelaram-se como a prioridade do governo
brasileiro:

1528

V V
A Internet, Novas Tecnologias e Inovação praticamente não foram citadas. Denota-se
uma concepção de cultura ligada às artes tradicionais. Isso não quer dizer arte dita erudita,
pois muitas das ações privilegiam a arte popular, novos artistas e novas produções, o que
contribui para reduzir a ideia de que o Itamaraty privilegiaria apenas os cânones em suas
ações de difusão da cultura brasileira. Contudo, acerca de cultura digital e inovação, as ações
contidas nos acordos estão distantes da perspectiva de Gilberto Gil, Ministro da Cultura à
época.
Novas e velhas tradições, signos locais e globais, linguagens de todos os
cantos são bem- vindos a este curto-circuito antropológico. A cultura deve
ser pensada neste jogo, nessa dialética permanente entre tradição e invenção,
nos cruzamentos entre matrizes muitas vezes milenares e tecnologias de
ponta, nas três dimensões básicas de sua existência: dimensão simbólica, a
dimensão de cidadania e inclusão, e a dimensão econômica. Atuar em
cultura digital concretiza essa filosofia, que abre espaço para redefinir a
forma e o conteúdo das políticas culturais, e transforma o Ministério da
Cultura em ministério da liberdade, ministério da criatividade, o ministério
da ousadia, ministério da contemporaneidade. Ministério, enfim, da Cultura
Digital e das Indústrias Criativas (GIL, 2013, p. 305).

O discurso do ministro insere-se num contexto de debate acerca da revisão da


legislação dos Direitos Autorais no Brasil. O tema foi objeto de grande atenção durante as
gestões dos Ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, relacionando-o ao acesso à
informação e ao conhecimento e, em última instância, ao bem-estar e ao desenvolvimento
econômico. Nessa seara, parece ter havido coordenação entre o Ministério da Cultura e o
Ministério das Relações Exteriores. Trinta acordos de cooperação cultural abordam o tema
dos direitos autorais, em um esforço mútuo de intercambiar políticas e experiências que
possibilitariam a melhoria da legislação de direito autoral. Reproduzo aqui artigo contido no
Programa Executivo de Cooperação Cultural entre o Brasil e Moçambique (2007) acerca dos

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V V
direitos de autor, que se repete de forma similar ou idêntica em praticamente todos os
instrumentos analisados.
Artigo XII
As Partes reforçarão a cooperação para o desenvolvimento aperfeiçoamento
da legislação e do sistema de proteção aos direitos do autor especialmente no
que se refere à função social do sistema de propriedade intelectual, com
ênfase nos aspectos relacionados com a área de criação dos autores de ambos
os países.
As Partes, por intermédio dos órgãos governamentais responsáveis pela área
de direitos de -autor e direitos conexos, estabelecerão agenda para o estudo
comparativo da legislação de ambos os países e para a promoção de
seminários e visitas de estudos sobre sistemas de propriedade intelectual.

Em dezembro de 2007 ocorreu o primeiro seminário, “Os direitos autorais no século


XXI”, no qual foram apresentados os temas que seriam discutidos ao longo dos dois anos
seguintes: as mudanças necessárias ao Sistema de Direito Autoral; como alcançar o justo
equilíbrio desse Sistema; o quanto a Lei Autoral vigente protege de fato o autor; e o papel do
Estado na gestão coletiva dos direitos autorais. Entretanto, toda a articulação realizada por
parte do governo brasileiro ainda não se concretizou na atualização da Lei de Direitos
Autorais.
Finalmente, passemos a analisar a atuação do Itamaraty acerca do tema da diversidade
cultural. Para Rubim,
a adoção da noção ‘antropológica' permite que o MinC deixe de ter seu raio
de atuação circunscrito ao patrimônio (material) e às artes (reconhecidas) e
abra suas fronteiras para outras culturas: populares; afrobrasileiras;
indígenas; de gênero; de orientação sexual; das periferias; audiovisuais; das
redes e tecnologias digitais etc. (…) Mas a amplitude também não deixa de
trazer problemas. O principal deles, por certo, tem como horizonte a falta de
delimitação da área de atuação do Ministério. Se cultura aparece como algo
tão amplo e transversal, qual a possibilidade efetiva do Ministério da
Cultura, com suas limitações, em especial organizacionais, de pessoal e
financeiras, resolver isto de modo adequado? Isaura Botelho já advertiu que
uma política de cultura orientada em perspectiva antropológica dificilmente
torna-se exequível para um Ministério da Cultura, mesmo que tenha
condições bem mais consistentes. Uma política imaginada nesta abrangência
apenas pode ser desenvolvida satisfatoriamente quando assumida pelo
governo em sua totalidade e mesmo em parceria com a sociedade (RUBIM,
2010, p. 15).

O trecho suscita uma pergunta imediata: teria o Itamaraty auxiliado o MinC e,


consequentemente, a política cultural empreendida pelo governo brasileiro, na adoção da
visão antropológica de cultura? Sim, não há dúvidas. Em 2005, ocorre a Convenção da
UNESCO para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. O objetivo
da convenção é estabelecer um documento com validade jurídica internacional que permita

1530

V V
aos Estados-parte a legitimidade da adoção de políticas de proteção e promoção da
diversidade cultural. O processo de negociação da convenção não foi simples devido à
tentativa norte-americana de estabelecer bens e serviços culturais no âmbito dos acordos da
Organização Mundial do Comércio. Grosso modo, caso exitosos, os EUA conseguiriam
impor limites aos subsídios à produção cultural, assim como à adoção de cotas para a
produção nacional. Segundo Kauark,
para essa negociação, os ministérios da Cultura e das Relações Exteriores
estudaram e articularam conjuntamente uma posição a ser levada aos
encontros intergovernamentais ocorridos na sede da UNESCO. Para tanto,
foi criado internamente um Grupo de Trabalho Permanente sobre
Diversidade Cultural com membros das duas pastas. Este GT tinha como
finalidade analisar os documentos relativos à Convenção, bem como as
propostas dos demais países. Após a análise dos documentos, realizava-se
uma reunião de coordenação entre MINC e MRE para definir a posição do
Brasil a respeito daquilo que era o objeto da reunião seguinte e, porventura,
apresentar sugestões de redação alternativa ou novos artigos (KAUARK,
2010, p. 244).

Segundo Paulo Miguez,


esse GT foi criado justamente para definir posicionamentos a respeito da
futura convenção. Entre elas destacam-se: a defesa do direito soberano dos
Estados de formularem e executarem políticas culturais voltadas à proteção e
promoção da Diversidade Cultural; a defesa de um sistema internacional
mais equilibrado de trocas de bens e serviços culturais; a defesa da não
inclusão de compromissos adicionais a respeito da Propriedade Intelectual
no texto da citada convenção; a defesa de mecanismos eficazes de
Cooperação Internacional voltados à proteção e promoção da Diversidade
Cultural, e; a defesa dos direitos das minorias e das populações tradicionais,
como povos indígenas e quilombolas, notadamente sobre seus
Conhecimentos Tradicionais (MIGUEZ, 2005, p. 18).

Ao final, mesmo com os votos contrários de EUA e Israel, a Convenção foi aprovada
com 148 votos a favor. Em 2007, após o depósito do instrumento de ratificação do trigésimo
país, a Convenção entra em vigor. Contudo, já em janeiro de 2006, o tema é abordado no
Programa Executivo de Cooperação Cultural entre o Brasil e a Tunísia.

Artigo III
As Partes reconhecem a dupla natureza dos bens e serviços culturais como
recursos estratégicos para o desenvolvimento das nações, de acordo com os
princípios de total respeito às diferenças, respeito mútuo e enriquecimento.
Nesse contexto, as Partes se felicitam pela aprovação pela UNESCO, em
outubro de 2005, da Convenção da Diversidade Cultural e, dessa forma,
decidem consolidar a cooperação bilateral em matéria de indústrias culturais.

A partir de então, artigo semelhante aparece em mais 31 instrumentos, apresentando-


se como princípio fundamental dos acordos de cooperação cultural do Brasil com outros

1531

V V
países. Curiosamente, pouquíssimos acordos abordaram de forma direta grupos sociais
específicos, como negros, índios e mulheres. Dominam textos genéricos sobre a diversidade
cultural, étnica e linguística, que inferem a inclusão dos grupos citados. Ainda assim, há
ausência de ações pontuais para essas populações.
O Ministério da Cultura e o Ministério das Relações Exteriores, por meio de esforço
conjunto, fizeram valer a concepção de diversidade cultural adotada pelo Brasil durante o
governo Lula na Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais e garantiram o direito do Brasil de proteger e promover sua diversidade cultural com
dispositivos de política cultural8. Até o final do mandato do presidente Lula, os acordos de
cooperação cultural revelaram a convergência de ações entre esses dois ministérios. Dos 14
acordos assinados em 2010, 11 tratavam da diversidade cultural. Os documentos também
mostraram a concertação nas iniciativas de reformar a Lei de Direito Autoral. Dessa maneira,
pode-se dizer que alguns aspectos da política cultural empreendida pelo MinC obtiveram
suporte interministerial no Itamaraty.

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8 IV. Direitos e obrigações das partes


Artigo 5 - Regra geral em matéria de direitos e obrigações 1.As Partes, em conformidade com a Carta das
Nações Unidas, os princípios do direito internacional e os instrumentos universalmente reconhecidos em matéria
de direitos humanos, reafirmam seu direito soberano de formular e implementar as suas políticas culturais e de
adotar medidas para a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, bem como para o
fortalecimento da cooperação internacional, a fim de alcançar os objetivos da presente Convenção.

1532

V V
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