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HILARIO FRANCO JUNIOR Doutor em Historia pela Uniyersidade de Sao Paulo, com pés-doutorado na Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Medieval na Universida je Sao Paulo e autor de 0, dentre eles A Idade Média: nascimento do Ocidente » bizantina (Scipione) ¢ Feudalismo — uma sa, guerreira e camponesa (Moderna). FIMAC DISTRIBUIGRA DE LIVROS Rua José Lavarini, 184 Sta. Efigévia - B, hie. - MG TEL: (031) 283-1188 FAX: (93 Qgeea-1€17 As Cruz Guerra Santa entre Ocidente e Oriente a Professor de Histor diversos livros a resp (Brasiliense), A ci sociedade EpIrORA MODERNA D HILARIO FRANCO JUNIOR 1999 DENACAO EDITORIAL sot DICAO DE TEXTO: demic Garcu Tel ASSISTENCIA EDITORIAL: Sinus Valin Ascott ERENCIA DA PREPARACAG E DA REVISAO: PREPARACAO DO TEXTO: REVISAO: CGERENCIA DE PRODUCAO GRANICA. EDICAO DE ARIE PESQUISA ICONOGPAFICA: 11 u Filson Carlo Veta Franco Junior air vada €1D for DIAGRAMACAO: Stn CARTOGRAFIA: Ane thle de Al le Servet, Luiz A Sit TRATAUAENTO DE IMAGENS: SAIDA DE FLMES; Helv REVSAD DE FUMES: Linewat nari, Dato De ras Buse COORDENACAO DO PCP. F IMPRESSAOE ACABAMENTO: (ent Dados Internacionais de Cetalogactio na Publicado (CIP) {Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Frapeceifeien, Hiking di vs Palo ert, WB ngda eisai par 0 pyr Hogngh Uae Ta Historia indica para caloge sistem: Fakes ais wt 80502 ISBN. 85-16-02323-0 o Penal e Loi 9,610 do 19 de lvoroito J 900, i to Cou Ropredugt prornein A dos os eirettes reservados Eprrora MOpERNA Lipa. Jenvinho CHP usin sy 1500 thug Pade Adeline, hnalas © Atendimentor Tel. (OLD Fay (0111) 6090-150 yowew ender conn be 1999 sao Brasil Impresso I Introdugao 5 AS motivag6: materiais . 7 O paleo: a sociedade feudal, 7. © contexto demografico, 10: O contexto comercial, 13: contexte social, 15; O contexto politico, 18 AS motivagdes psicoldgicas ii] Religiosidade, 21; Belicismo, 23. Contratualismo, 25: Guerra Santa: sintese da mentalidade feudal, 26 As Cruzadas no Oriente Médio ..... see 30 A Cruzada Popular (1096), 31: 4 Primeira Cruzada (1096-1099), 32; A Segunda Cruzada (1147.1 149), 35: A Terceira Cruzada (1189-1192), 37; A Quarta ‘Ceuzada (1202-1204), 39: A Cruzada das Criangas (1212), A Quinta Cruzada (0217-1219), 44. 4 Sexta Cruzada (1228-1239), 460A, Cruzadas de Sao Luts (1248. 1250, 1270), 47; Os Estadaa\ latinos 40 Oriente Médio, 49 As Cruzadas na Europa.; 53 A Reconquista Ibérica (78-1499), 53: A, alemaes (1125-127 7: & Cruzada Albigen: A heranga das Cri Zadas). 62 A influéncia politica, 63; Minflueneis econdmica, 65; A influence; social, 68; A influéneia Teligigsa.70: A influéncia cultural, 73 Conclusao 76 Sugestdes de leitura .... 78 Bibliografia , 79 InTROODUCAO Julho de 1099: exércitos cristios entravam em Jerusalém provocando muilas mortes, estabelecendo um do estrangeiro que se considerava legi- timo e que em nome disso segregava ¢ despertava muito édio. Novecentos anos depois, a situagéo nao é essencialmente diferente, ainda que com outros: personagens — judeus no lugar de cristaos, mas com apoio destes; palestinos no lugar de turcos, mas com apoio de quase todos os muculmanos. Os dois grupos, no passado e no presente, consideram realizar uma “guer a santa” que justifica seus excessos. O fendmeno, hoje, é acompanhado por todos através dos jornais e da televisao. B na Idade Média, por que e como ocorreu? Esse foi 0 movimento que chamamos de Cruzadas, embora tal pala- yra (como outras do vocabulario de um historiador, caso de “feudalismo”, “mercantilismo” etc.) nao fosse conhecida no momento histérico para 0 qual a empregamos. De fato, 0 termo aparece, & de forma muito esporadi- ca, apenas em meados do século XII, quando aquele fendmeno historic jd perdia sua forga. Os textos medievais falam, geralmente em “peregrina- cio”, “guerra santa”, “expedigdo\da Cruze “passagem”, A expressao “Cruzada”, quando surgiu, derivava dofatode seus participantes conside- rarem-se “soldados de Cristo maréados com o,sinakda cr uz” e por causa disso usarem uma cruz bordada.na roupa. Mas 0 que foram,exataménte as CruzaidasTeremios todas as paginas seguintes para responder a essa questa ,mas simplificadamente podemos dizer que foram expedigdes militares-empreendidas contra os inimigos da Cristandade ¢ por isso legitimiadas pelt [greja, que concedia a seus partici- ios espirituaig eanateriais. Portanto, foram Cruzadas tanto pantes privilé as lutas contra os mugulmanos do Oriente Médio da Peninsula Ibérica quanto aquelas contra os eslavos pagdos da Europa Oriental e contra os: heréticos de qualquer parte da Europa Ocidental. Que privilégios eram aqueles recebidos pelos cruzados? O principal deles — o da indulgéncia — concedia 0 perdao dos pecados, perspectiva 5 muito atraente naquela sociedade de forte religiosidade, sociedade mais clerical que civil, na qual pecado e crime cram a mesma coisa. Fazer 0 voto de cruzado era se tornar (na definigdo do historiador inglés Jonathan Riley-Smith) “uma espécie de eclesidstico tempordrio”, era estar submeti- do & protecao da Igreja e estar isento da jurisdicdo laica. No plano mate~ rial, enquanto participava de uma Cruzada, o individuo beneficiava-se de uma suspensio do pagamento de juros e de uma moratéria autorizan do-o a pagar suas dividas apés seu retorno. De que maneira comegava uma Cruzada? A iniciativa, na maioria das vezes, era do papa, que como chefe espiritual pregava a realizacio dela pessoalmente (como fez Urbano I, na Primeira Cruzada) ou atrayéy de eclesidsticos (como ocorreu na Segunda Cruzada, com Sao Bernardo), A data de seu inicio também era marcada pelo papa. O comando cabia igualmente a ele por meio de um representante, o legado pontificio, cuja fungao, porém, era teérica, j4 que naturalmente as operagdes militares eran, quase sempre decididas pelo rei ou pelos senhores feudais mais importan- tes que dela estivessem participando. Assim, algumas vezes, como aconte- ceu com a Quarta Cruzada, o papado perdia 0 controle real da situagao. E os recursos materiais, de onde provinham? As Cruzadas eram nanciadas pelos préprios cruzados ¢ pela Igreja. Os pequenos nobres em- penhavam seus bens e em troca de dinheiro libertavam os camponeses de- pendentes de suas terras. Os grandes senhores feudais faziam a mesma coisa e ainda recebiam ajuda de seus vassalos. Os soberanos criavam no- vos tributos. A Igreja recebia donativos e¢ taxava as rendas de clérigos e leigos. Em alguns casos, os cruzados levantavam empréstimos junto a mer- cadores (como fez a Quarta Cruzada com os yenezianos ou as Cruzadas de » Luis com os genoveses) ou junto.a Ordens Religiosas (nessa atividade destacaram-se os templirios). Quantos individuos dela’ participavam? O ntimero de cruzados é di- ficil de ser calculado, pois a documentagao oudtao nos dé nenhuma infor- magao nesse sentido ou as cifras $40 claramenteexageradas, mais simbéli- cas que reais. Além disso, uvisturavam-Seoas Gruzadas muitos individuos nao-combatentes (como Mmercadores, artesavs, nitilheres e criangas). A pro- porgao entre guterreiros ¢ nao-cembatentes’cra grande, talvez de um para dois, e no grupo dos guetteiros, entre-cavaleiros e infantes, estava perto de um para sete. No gerals'’s aniaigres Cruzadas nao devem ter ultrapassado os 10 mil combatentes, ] As Motivacées Mareriais Se por pelo menos 200 anos (de fins do século XI a fins do XID houve um fluxo constante de ocidentais para a periferia da Eu- ropa crista (Oriente Médio, Penin- sula Ibérica e Europa Oriental), devem ter existido razGes profun- das para isso. Um conjunto de fa- tores materiais € espirituais provo- cou as Cruzadas, que representa ram originalmente uma espécie de saida, de solugao, para os proble- mas entio vividos pela sociedade feudal. Logo, é importante conhe- cer esse quadro do qual as Cruza- das resultaram e que elas acaba¥ riam por transformar. O Patco: a Soctepape. Feupat Procuremos, de inicio, muito, rapidamente, entender o que foi essa sociedade. Ela nasceu em fins do século X, como resultado do cruzamento de mais antigas (romanas e germani- cas) com a noya Conjuntura sécio- instituigdes bem polftico-econémica decorrente do fracasso do Império Carolingio, dividido pelos descendentes de Carlos Magno desde 843. Em ou- tras palavras, o feudalismo foi uma resposta espontinea da sociedade crista ocidental a crise geral que a abalava naquele momento. De fato, cada uma das caracterfsticas do feudalismo responde a um as- pecto daquela crise. Economicamente, & medida que © setor mercantil, muito im- portante na Antiguidade Classica, ia devaindo, o setor agricola torna- va-se osptincipal. Desta forma, a economia feudal foi fundamental- ihente agraria? com cada unidade de produg¢ae(chamada de senho- rie procurando. ser auto-suficien- teisteré, como herdeiro do lati- fundio romano dos tiltimos tem- pos} cada senhorio produzia no s6 para suas necessidades de alimen- tagio, mas também de vestudrio, armamentos ¢ utensflios. As ativi- dades mercantis encontravam-se bastante reduzidas, recorrendo-se a elas apenas quando as condig6es locais nao permitiam a produgdo As Cruzapas de uma determinada mercadoria (especiarias em toda a Europa, sal nas regides afastadas do mar, ce- reais no caso de uma ma colheita). Contudo, é importante obser- var: nio € 0 [ato de ser ag voltada a subsisténcia que diferen- cia a economia feudal da de outros momentos histéricos. O essencial cola e esté no tipo de mio-de-obra em- pregada na agricultura feudal. Ela nao era mais escrava como na An- tiguidade, nem assalariada como na Modernidade, pois ambas pres- supdem uma economia mercantil, na qual ou o trabalhador (escravo) oua forga de trabalho (assalariada) sao mercadorias. Recorreu-se a um tipo intermedidrio, a servidaio, na qual 0 trabalhador presta servigos obrigatérios como na escravidao, mas nado € considerado um objeto (na definigio de um filésofo da Antiguidade, 0 escravo é “uma fer- ramenta que fala”). Demograficamente, a situa- cao indicava no mesmo sentido. Ou seja, em fungio das epidemias, das invasdes, das fracas colheitas, da fraca propensdo do escravo a se. reproduzir, o ntimerode trabalha- dores em fins da Antiguidadeséra pequeno. Procurou-se-enlad dar ag, camponés melhores condigdes We vida, na esperanga de quesouves: se um crescimento poptilacional, 0: cristianismo tambénr contribtiu para a mudanga de situacio do es- cravo, pois, apesar de aceitar a es- cravidio, reconhecia a condigio humana daquele trabalhador. O re- sultado disso tudo foi o surgimen- to da servidao, isto 6, de campone- ses dependentes, sem liberdade pessoal, vinculados aos lotes de terra em que trabalhavam, mas ten- do, por outro lado, sua subsistén- cla garantida por ficar com uma parte do que eles mesmos produ- ziam naquela terra Politicamente, o feudalismo acterizou-se pela fragmentagio do poder central, ou seja, pela so- lucdo oposta as fracassadas tenta- tivas de reunificagdo do Ocidente. Desde a queda do Império Roma- no, sonhava-se com o restabeleci- mento da unidade politica, porém © insucesso da mais importante dessas tentativas, ade Carlos Mag- no (que reinou de 768 a 814), mos- trou que a unidade politica era coi- sa do passado, Pelo contrario, as invasdes vikings, muculmanas e htingaras que entdo atingiam a Eu- ropa Ocidental sé poderiam ser en- frentadas eficientemente com a re- gionalizagdo da defesa. Ademais, isso estava de acordo com a situa- gdo econémica e a auto-suficiéncia de cadaregido, como acabamos de lembrar. Cada detentor de senho- rio assumia a defesa de seu patr MOnig/é dos trabalhadores depen- denites-uevali moravam, ganhando deStaoniangira o poder politico na- quele territorio, Socialmente, havia necessi dade de uma nova estrutura, mais de acordo com a desorganizag do provocada pela queda do Império Romano e com a inseguranga de- corrente das invasdes germanicas. Essa situagdo, por sua vez, levara ao quase completo desaparecimen- to das camadas sociais médias e a Documento textual 1 — Os pequenos e médios proprie- tarios rurais, sem recursos para alojar, sustentar e treinar gru- pos armados particulares que defendessem suas terras, ce- diam a propriedade delas ao mais poderoso latifundiario da regiao, mantendo porém sua posse provisdria, isto é, na con- digao de feudo. Como exemplo disso temos a doagao feita, em abril de 920, por parte de 18 in- dividuos que entregaram suas terras ao conde catalao de Pallars: “Em nome de Cristo, todos nds abaixo assinados Ihe entregamos de boa vontade nossas terras no condado de Pallars e na cidade de Baén, a fim de que 0 senhor seja nosso. defensor contra todos os ho- mens de seu condado”. formagao de uma poderosa cama- da eclesiadstica. Surgia aos poucos uma noya sociedade, que apresen- tava grande distancia entre a elite clerical e guerreira, de um lado, ¢ a massa de camponeses, de outro. A aristocracia detentora de terras,, © portanto de poder econdmigo-e politico, desejando perpetuar aque- Ja situacao, construiu uma ideolo- gia que a justificava: a sociedade de ordens, Nela, a condigao socialde cada individuo era definidaspor Deus logo ao nascimento, figando portanto estabelecida a vitalicieda- de e heredita bre € nobre, edade: filho de no- Iho de camponés € camponés. Como se acreditava que a condigao de cada pessoa tinha sido determinada por uma ordem As Morivacors Mareriats divina, daf a expressiio “sociedade de ordens”, ndo havia possibilida- de de mudangas. Tratava-se de uma sociedade de rigida estratifi- cagiio. Mais que isso, cada homem devia aceitar com resignagao seu destino, pois se rebelar seria com- prometer sua salvacdo espiritual, sua vida eterna. Apenas a aristocracia (ecle- sidstica e laica, ambas tendo uma origem social comum) era deten- tora de terras ¢ nelas, de poderes politicos e sociais. Ser detentor de terras implicava ser guerreiro para defendé-las das constantes inva- s6es, da inseguranga geral da épo- ca. Ser guerreiro implicava ter terras, pois 0 tipo de guerra da épo- ca representava grandes gastos em equipamento (cavalos, armaduras, armas) € em treinamento constan- te para poder usd-lo (0 que impos- sibilitava qualquer outra ativida- de). O guerreiro possuidor de ter~ ras era protetor da populagao lo- cal e naturalmente recebia a obe- diénéia dos.protegidos. Ele exer- cia assim’ fungGes que anterior- mente cabiam ao Estado. Comostayia duas camadas basicasctia sotiedade feudal (cléri- gos=guerrcirOs, & camponeses), trés erat aserelatbes sociais possiveis. Emi prificiro lugar, as relagdes ho- rizOniais na aristocracia, quer di- zer, apenas entre aristocratas. Esse Lipo de relago se dava por meio do contrato feudo-vassalico, pelo qual um homem livre (a partir dai cha- mado de senhor feudal) entregava a outro de igual condigio (conhe- cido por vassalo) um bem qualquer As CRUZADAS (feudo), geralmente uma certa ex- tenso de terra (senhorio), em tr ca de servico militar. Em segundo lugar, ocorriam relagdes horizontais no campesina- to, com os trabalhadores organizan- do-se para empreender em conjun- to certas tarefas (arar um campo, desmatar uma drea, construir mora- dias). Por fim, havia as relag6es es- senciais, as relagdes verticais aris- tocracia-campesinato: elas signifi- cavam obrigagées que um homem nio-livre (servo) devia a um_ho- mem livre (senhor feudal ou-vassa- lo, clérigo ou leigo, pouco importa), em troca de protegao e do direitode viver e cultivar um ote de terra deste ultimo. Caleula-se que 0 con- junto dessas obrigagdes levava o servo a entregar a seu'senhor cerca. de metade do que produziay Como toda formagao social, 0 feudalismo nao era estético e come- cou a se transformar praticamente a partir do momento em que surgiu. Foram essas mutagdes originadas no interior do préprio feudalismo Documento iconografice 1 — Dois individuos acabaram de firmar um contrato feudo-vassdlico, transformando um deles @m senhor feudal e 0 outro em) sev vassalo; Apesar‘de nig: ser 0 mais comum, no cao mostrado por essa miniatura francesa do século XII tal contrato foj registrado por escrito. Ele 6 entao cortado ao meio, ficando cada uma das partes com uma metade, prova do compromisso » firmado. que criaram condig6es para 0 sur- gimento das Cruzadas. Estas repre- sentaram, como ja dissemos, uma valvula de escape para as tenses sociais, econémicas e politicas pre- sentes na sociedade feudal. Relembrado esse quadro ge- ral, devemos agora examinar os ele. mentos materiais que, partindo do feudalismo, estiveram na origem das Cruzadas. O Contexto Demosrarico Q,eontexto de expansiio de- mografica éo primeiro deles, A pe- quena populagdo do Ocidente tinha comegado a crescer com 0 inicio do feudalismo, pois este remoyera os obstaculos que impediam a tendén- cia natural que toda espécie tem de se multiplicar. Em primeiro lugar praticamente desapareceram as epi- demias (peste, malaria) que tinham desempenhado papel fundamental ho retrocesso demografico dos pri- meiros séculos medievais. Isso se 10 deveu aos contatos comerciais me- nos intensos com o Oriente (de onde quase sempre provinham as epidemias) © a0 maior isolamento entre o que dificultava a difusao das doengas. Em segundo lugar, com o feu- dalismo praticamente acabaram as invas6es estrangei as grandes batalhas, ou seja, a guerra tornou- se menos mortifera, Apesar de constantes, as guerras feudais pou- co afetavam 0 comportamento de- mografico da sociedade, jd que ge- ralmente colocavam frente a frente apenas algumas dezenas (no maxi- mo, centenas) de cavaleiros. Além disso, tais guerras nio tinham por objetivo fundamental destruir o ad- versdrio, mas aprisiond-lo, Podia-se assim pedir um resgate pelo prisio- neiro, j4 que uma das obrigacdes do vassalo para com seu senhor feudal era pagar 0 resgate deste, caso ele fosse capturado. Um terceiro fator determi- nante do surto demografico foi a abundancia de recursos naturais. A existéncia de uma pequena popu- lacdo entre os séculos IV e X five: racom que as regides ocidentais, as e vastos territérios ficas sem abandonados, recupérandovas- sim sua fert se de florestas ilidade ou recobrindo- © pastagens natu; rais. Dessa forma, nos primeiros tempos do feudalismo havia mais terras inexploradas do que cultiva das, havia recursos suficie para alimentar uma populagaéo bem superior a entao existente. Contri- buindo no mesmo sentido, mais ou menos a partir do ano 1000 ocor- reu uma suavizacio do clima euro- ntes As Morivacoes Mareriais peu, que se tornou mais quente e seco. Isso. permitiu certos cultivos em locais anteriormente impr6- L. prios, caso das vinhas na Inglater Por fim, 0 crescimento popu- lacional esteve claramente ligado as. inovagbes das técnicas agricolas verificadas na época. Discute-se, contudo, 0 tipo de ligagao: 0 incre- mento demografico pressionou por uma produgdo maior e assim surgi- ram as inovagGes, ou foram as no- yas técnicas que permitiram uma alimentagio melhor e desta forma o crescimento da populagio? Pouco importa para n6s, neste livro, acompanhar tal debate, Basta cons- tatar que, a partir de um certo mo- mento, realmente houve uma me- lhoria na qualidade da alimentagao e isto contribuiu para uma queda na mortalidade. A alteragio alimentar pode até mesmo explicar a mudanga na proporgao entre populagdo mascu- lina e feminina, favordvel & pri- meira antes do século X ¢ a segun- da posteriormente. Tal se devia ao fato de,acvelha dieta ser pobre em protéinas e sobretudo em ferro, éleitiento qué amulher necessita é ém maior quantidade que o homem (devidosl menstruacgdo, gravidez e Jactigdo), daf'a anemia e portanto amenardefesa do organismo con tratcertas doengas. O progresso tecnolégico — especialmente o novo método de atrelagem animal, o sistema de rodizio de cultivos, 0 arado — fez com que desde o sé- culo X se consumisse leguminosas fei, (ervilha, lentilha, Ao, bico ete.) € uma maior quantidade As CRUZADAS ‘Aumentos Percentuats NA Poputacio Européta Entre os Anos 200 & 1300 t Fi T a oe” % de aumento 241 ou mais 121.a 240 [media 120% | 61a 120 || 60 ou menos f t f l McEVEDY , C. e JONES, R. Atlas of world population history. Harmondsworth, Penguin, 1978. p. 23 de carne, ovos e€ laticinios, possi- bilitando a diminuigado da mortali- dade feminina. Em razao disso tudo, a popu- io da Europa Ocidental passou de (em milhées de individuos) 18. no ano de 800 para mais de 22en0, ano 1000, quase-26 em 1100, quase 35 em 1200 e mais de-50 em 1300. E significativo que-a regiaio queco- nheceu o mais acentuadorerescl- mento demografico tenhasidoa que forneceu o maior niimero de cruzados — a Franga passou de 5 milhdes de habitantes em torno do ano 800, para 6,5 milhGes no ano 1000,°7,75 milhdes em 1100, 10,5 milhdes em 1200, 16 milhdes em 1300, En¥’suma, sem o surto demo- graficoas Cruzadas nao teriam sido posSiveis (guerreiros suficientes para’a luta contra os infigis & os pa~ vidos) nem necessarias (atividade para os desempregados). Documento textual'2 — As Cruzadas foram pregadas pelo papa Urbano Il no Concilio de Clermont, em novembro de 1095. Conhece- mos atualmente quatro versdes desse discurso, bem diferentes entre si, mas todas vendo as Cruzadas, dentre outras coisas, como escoa- mento do excedente populacional. Aqui esté a versao provavelmente mais fiel, do cronista Foucher de Chartres: “Apés ter prometido a Deus manter a paz em suas terras e ajudar fielmente a Igreja a con- 12 As Mortvacgores MATERIAIS servar seus direitos, vocés poderao ser recompensados empregando sua coragem em outro empreendimento. Trata-se de um negocio de Deus. E preciso que sem demora vocés partam em socorro de seus irmaos do Oriente, que varias vezes ja pediram sua ajuda. Como a maior parte de vocés ja sabe, os turcos invadiram aquela regiao; mui- tos cristéos cairam sob seus golpes, muitos foram escravizados. Os turcos destroem as igrejas, saqueiam o reino de Deus. Por isso, eu os exorto e suplico, e nao sou eu quem os exorta, mas 0 proprio Senhor, a socorrer os cristaéos e a levar aquele povo para bem longe de nos- sas terras. A todos os que partirem e morrerem no caminho, em terra ou mar, ou que perderem a vida combatendo os pagaos, sera concedida a remissdo dos pecados. Que combatam os infiéis os que até agora se dedicavam a guerras privadas, com grande prejuizo dos fiéis. Que sejam doravante cavaleiros de Cristo aqueles que nao eram senéo bandoleiros, Que lutem agora contra os barbaros os que se batiam contra seus irmaos e seus pais. Que recebam as recompensas eter- nas os que até entao lutavam por ganhos miserdveis. Que tenham uma dupla recompensa os que se esgotavam em detrimento do cor- po e da alma. A terra que vocés habitam é estreita e miseravel, mas no territério sagrado do Oriente ha extensdes de onde jorram leite e mellLali. O Contexto Comerciat Este é outro elemento a ser levado em consideragao para se entender a origem das Cruzadas. As novas técnicas agricolas t nham permitido uma significativa elevagdo da produtividade, que nao s6 satisfazia as necessidades de uma populagdo em crescimen- to, como ainda gerava um exce dente. Paralelamente, aumenta- vam as necessidades dossmerca dos bizantino e mugulmano.por, géneros alimenticios e maté primas ocidentais. Assim, a exis- téncia do excedente produtivo permitia & Europa trocd-lo por bens que ela nao produzia (espe- seda, perfumes etc.). I O coméreio péde entiio se ex- pandir, e a Itilia teve nisso um pa- pel essencial, gracas a varios fato- res, Sua localizagao geografica, no centro do Mediterréneo, tornava- naturalmeite predisposta a ser 0 elo de Jigacdo entre Ocidente e Orien- té. Sets recursos, agricolas limita dos fizeram_da atividade mercantil uma necessidade, pois apenas 0 co- méréio.poderia fornecer os bens in- dispensdveis E significativo que as duas maiores cidades comerciantes itali- Veneza e Génova, fossem desfavorecidas agrarias. O es- anas, particularmente para as atividades treito contato que elas mantinham com civilizagdes comerciais como a bizantina e a muculmana certa- S As Cruzapas mente reforgou aquela tendéncia. Por fim, nao se pode esquecer que a tradigfo comercial e urbana itali- ana vinha da Antiguidade, e sempre forte do que no resto da foi 14 mais Europa catélica. Veneza, talvez a maior cide de ocidental, ha muito tempo man- tinha intensas relagdes comerciais com o Oriente. Desde 0 século VIL levava trigo, vinho, madeira, sal e peixe defumado para Bizdincio, ob- tendo em troca especiarias, seda outros manufaturados. Desde o sé- culo IX, os venezianos comercia- vam também com os mugulmanos do Egito, fornecendo-Ihes merca- dorias escassas naquela regiao (fer- ro, madeira, escravos) em troca de especiarias e ouro. Sua importncia no Império Bizantino cresceu tanto que, em fins do século X, o imperador con- cedeu-Ihes a Bula de Ouro, docu- mento pelo qual os navios de Ve- heza pagariam apenas a metade das taxas alfandegdrias devidas pe los estrangeiros. Mais ainda: uy) século depois receberam isengig total de impostos e uma feitoria ey Constantinopla, Entende-se assity que Veneza tenha desempenhado importante papel nas Cruzadas, jx gue possufa no Oriente interessey a defender e ampliar. Génova, a maior rival venezj- ana, conquistara em principios do século XI a hegemonia mercantil no Mediter os mugulmanos e se apossando das ilhas de Elba, Sardenha e Corsega Assim, para ela os interesses co. merciais e 0 combate ao in ineo ocidental derrotando eram uma mesma coisa, 0 que facilmente aidentificou com as Cruzadas. Mas seu apoio aos cruzados (transporte, provisOes, empréstimos) estava sempre condicionado ao recebj- mento de privilégios comerciais nas cidades conquistadas por eles. Foj assim que os genoveses puderam formar um vasto e rico império co- Documento textual 3 — Os:interesses comerciais levaram os venezianos a manipular a Quarta Cruzada para conquistar a cidade crista de Zara, no litoralda atual Crodcia, em.1202. O fato foi assim narrado por um contemporaneo,0 francés Villehardouin: “Os vene- zianos pediram aos condes e.bardes pata pagar a despesa [de trans- Porte até a Terra Santa] que em seguida partiriam. [...] Eles paga- fam o que puderam, mas nao'tinham.nem‘a metade do valor. [...] Entao o doge [governante Veneziano]-disse a seus homens: ‘Senho- res, essa gente nao pode pagar mais do que ja pagaram. Vamos |hes propor um acordo, O'rei da Hungria nos tirou Zara, na Esclavénia. Ela 6 uma das cidades mais fortes do mundo e apesar de nosso po- der nao sera jamais recuperada sem ajuda dessa gente. Vamos lhes pedir para reconquista-la e daremos um prazo para os 34 mil mar- cos de prata que eles nos devem . O acordo foi concluido, ape- sar de ter sido combatido por alguns que preferiam que 0 exército [cruzado] fosse dissolvido” . 14 lonial — arrancado dos bizantinos e muculmanos — abrangendo Chi- pre, as principais ilhas do Egeu e territérios do Mar Negro. Assim como os interesses co- merciais italianos influiram nas Cru- zadas do Oriente Médio, o mesmo fizeram os interesses alemaes em re~ lagio A ocupagiio da Europa Orien- tal. Neste tiltimo caso, tal papel cou- be a Hansa TeutOnica, liga de co- merciantes alemaes que dominaya 0 As Morivacors MaTeriats tréfico mercantil no norte europeu, recolhendo num local e vendendo em outro produtos como peles, mel e cera da Russia, trigo e madeira da Pol6nia, minerais da Hungria, peixe da Noruega e Isléndia, cobre e ferro da Suécia, vinho da Alemanha, 1a da Inglaterra e tecidos de Flandres. Assim, os alemaes estavam atrafdos pela idéia de dominar ocupar e colonizar os territérios dos eslavos, que eram pagaos ¢ cujo nome era interpretado como uma predestinagdo a serem escravos: de sloveni- nu (palavra com que Os es- lavos se designavam) deri- varia Sklave em alemao, slave em inglés, schiavo em italiano, esclave em fran- cés, esclavo em espanhol e “escravo” em portugués. O Contexto Sociat Um aspecto importante do contexto social das Cruza das'é a maior mobilidade que ent@o comegava a ocorrer, com adenta transformagio da sociédade de ordens em soci- ediide,estamental. Ou seja: enquanto na primeira delas 0 individuo é (e portanto nao pode deixar de ser) de deter- minada camada social, condi- cio estabelecida por ordem divina desde 0 nascimento, na segunda © individuo estd (© que pressup6e situagao passivel de mudanga) num certo grupo social. Documento iconografico 2. Um banqueiro italiano com clientes, segundo um manuscrito’do. século XIV. As atividades mercantis; em expansao desde principios do século XI, hayiam revigorado a circulagéo das moedas, que passaram_<« ser trocadas, emprestadas e guardadas por um novo tipo de profissional, o banqueiro. Este contribuiu indiretamente para as Cruzadas, financiando pessoas que queriam ir oté a Terra Santa e estimulando aquelas expedi¢ées, na expectativa de que elas intensificariam a nova economia mercantil e monetaria. Ld Tal transformac © estava muito ligada 4 expansio demogra- fica, que reduzirao tamanho do lote de terra de cada familia campone- sa, obrigando muitos individuos a tentarem um novo tipo de vida. Como dessa forma a tendéncia & auto-suficiéncia dos senhorios se tornava impraticdvel, cada regido passou a se dedicar ao tipo de culti- vo ou criagdo que melhor se adap- tava a suas condigées de solo, cli- ma etc. Sabemos que surgiu assim um excedente produtivo que permi- tiu o desenvolvimento das trocas Ora, os camponeses que an- teriormente nao tinham outra op- cao de vida senao os trabalhos agricolas e obrigatérios, passaram a ter no comeércio uma atividade mais compensadora. Da mesma forma que a vida rural identifica. ya-se com a servidao, a vida urba. na passou a se identificar com a lis berdade. Daf um conhecido pro- vérbio medieval afirmar que “O ar da cidade da liberdade”: em varias regides, um servo que residisse numa cidade um ano e um dia sem ser r clamado por seu senhor tor. nava-se homem livre. Portanto, de diferentes formas (fuga, compra da liberdade, alforria, sublevacdo) crescia 0 ntimero de camponeses que escapavam a servidao. Debili- tava-se um dos sustentéculos do feudalismo, Documento iconografico 3— A cidade de Obidos, em Portugal. Apesar de seu cardter essencialmente artesanal e mercantil, as lades feudais nao podiam descuidar do propria defesa, em razao da fraqueza do Estado. Dai todas elas oficinas, pracas ¢ igrejas. contarem com murclhas ¢ torres-fortes que cercavam seu centro urbano, casas, lojas 16 E natural, contudo, que nem todos os individuos que consegui- ram abandonar 0 campo e a servi- dao tenham podido tornar-se co- merciantes, surgindo portanto um crescente grupo de marginaliza- dos. Na verdade, toda sociedade gera seus marginais, aqueles que sfio rejeitados ou que se afastam da vida social por nao se encaixarem nas normas de comportamento em vigor ou por colocarem a socieda- de diante de suas préprias contra- dicdes. No caso do Ocidente na época das Cruzadas, dois tipos de marginalidade nos interessam: a heresia e a pobreza. Uma porque serdé combatida pelas Cruzadas, outra porque forneceré elementos para elas. Numa sociedade religiosa como a feudal, pensar de modo di- ferente ao da Igreja era cometer ao mesmo tempo wm pecado e um cri- me, era se expor a punigdes espiri- tuais e corporais. Por que, entao, surgiam lantas doutrinas contestan- do as verdades oficiais, proclama- das e defendidas pela Igreja? Exa- tamente pelo fato de os grupos he- As Morivacors Mareriats réticos estarem, através da negagao dos valores religiosos socialmente aceitos, criticando toda a organiza gdo. , todo statu quo. Assim, combater as heresias era, para as camadas dirigentes, combater um elemento desagregador da socieda- de feudal, era preserva-la e portan- to se preservar. Nos primeiros tempos do feudalismo, a pequena populacao proporcionava ao servo uma certa seguranga. Apesar da dureza de suas condig6es, ele podia, para ali- mentar sua familia, contar com um pedago de terra sem correr 0 risco, de ser privado dela e podendo transmiti-la a seus herdeiros. Com a expansdo demografica e 0 conse- qiiente desenraizamento, muitos individuos deixaram de ter o mini- mo para a subsist@ncia, dependen- do da caridade alheia, de servigos eventuais ou do crime. Por isso 0 cronista Guibert de Nogent (1053- 125) fala da grande tranqtiilidade estabelecida na Franga com a Pri- meisa’Cruzada, quando ladrées e bandoleiros partiram para o Orien- te Médio. Documento textual 4 Um’ cronistaalemao,andnimo, falando dos participantes da Segunda Cruzada, mostra-o papel que os aventu- reiros, os criminosos e os despossuidos.tiveram no movimento: “As intencdes destas varias pessoas efam diferentes. Algumas, avidas por novidades, iam na verdade apenas para ver outras terras. Outras, por causa da pobreza e da exigtiidade de seu patriménio, estavam decidi- das a combater nao somente os inimigos da Cruz de Cristo, mas mes- mo cristaos, toda vez que isso pudesse aliviar sua pobreza. Havia ain- da os que estavam oprimidos por dividas, ou que desejavam fugir ao servigo devido a seus senhores, ou que estavam mesmo esperando o castigo merecido por suas infamias”. 17 As Cruzapas Um dos elementos sociais de mais ativa participagao nas Cruza- das foram os secundogénitos de fa- milias nobres. Fato compreensivel, pois nos costumes sucessérios do direito feudal havia a norma de pri- mogenitura, segundo a qual com a morte do detentor da terra esta de- veria passar indivisa para seu filho primogénito, de maneira a nao al- terar a relagdo contratual senhor- vassalo. Os demais ou entravam para 0 servigo de seu irmao mais velho ou se tornavam clérigos, re- cebendo portanto terras da Igreja. Com 0 surto populacional, no entanto, aquelas solugées se reve- laram limitadas. O primogénito herdeiro nao tinha feudos sufici- entes para tantos irmaos. A Igreja, apesar de ser a maior possuidora de terras do Ocidente, também nao possufa as areas necessdrias para atender todos aqueles nobres sem senhorios. Assim, € natural que a pequena nobreza sem terra ou com escassos recursos visse nas Cruza- das uma possfvel fornecedoracde riquezas. O Contexto Potitico Tentando obter terras; aque- la nobreza despossu{da’e turbulen- ta atacava os feudos .vizinhos, fos- sem laicos ou eclesidsticos. Além disso, a Igreja era prejudicada pe- las constantes guerras feudais que afetavam a produgio e diminufam 0 dizimo (10% dos rendimentos) que todo cristao Ihe devia, Diante disso, a Igreja buscou pacificar a Europa feudal por meio de dois movimentos que ameagavam seus transgressores com punigdes espi rituais. A Paz de Deus (fins do sé- culo X) proibia ataques a clérigos nao-armados, camponeses ¢€ Co- merciantes. A Trégua de Deus (ini- cio do século XI) interditava as lu- tas trés dias por semana e em Cer- tas épocas do ano. B sintomatico que o Concilio de Clermont (1095), durante o qual © papa Urbano IL pregou a realiza- go da Primeira Cruzada, tenha sido reunido para renovar e confirmat as disposigGes da Trégua de Deus. O Concilio de Latrao (1215) insistiv nessa idéia ao pregar a Quinta Cru- zada, afirmando que “para realizar esse projeto é extremamente neces- sdrio que os principes cr servem a paz entre eles” tos ob- Documento textual 5 — Antes de tudo, a Paz e a Tré- gua de Deus procuravam de- fender as pessoas e os bens da Igreja, como nos conta Raul Glaber, um cronista do século Xi: “Para mostrar o respeito e afeveréncia devidos a santida- de das igrejas, decidiu-se que todos-aqueles que, persegui- dos por qualquer falta, af pro- curassem refugio, deveriam permanecer ilesos, salvo os que tivessem violado o dito pacto de paz. Da mesma ma- neira, nado deveriam sofrer qualquer violéncia os clérigos, monges, religiosos e aqueles que em sua companhia atra- vessassem uma regido”. ae As Morivagors Mareriats Anniv 30 SONISSVSSVa O Munvo Meortrraneo Em 1092, Pouco Antes pas Cruzapas vaionraias OawNWLINs VLU Oavanvo S/ viuONnH eetoue : & hiss \ 20 I" S| aw © “aindy Boe PDN feiniage Z, 0 Poe a, s ERO veng en feBenigN 5 \ ep ou, aocass ep OuBy se6e610 $8) ‘SDe0HND McEVEDY. C. Alas de histéria medieval. Lisboa, Ulisséia, 1973. p. 63, a Se inicialmente a Igreja foi a maior interessada nos movimentos de p: num segundo momento também as monarquias passaram a perceber a utilidade deles. Em es- pecial a das Cruzadas, que aten- diam as pretenses politicas mo- ndrquicas ao desviar para outros empreendimentos a nobreza e seu espirito bélico e irrequieto. Muitas vezes, 0s préprios reis participa- ram de Cruzadas (caso da Segun- da, Terceira, Quinta, Sexta, Sétima e Oitava), levando consigo para fora do pafs boa parte da aristocra- cia guerreira. Outras vezes organi- zaram Cruzadas no préprio reino, para ampliar seu territério e co- mandar a cavalaria local (caso da Reconquista Ibérica e da Cruzada Albigense). Devido a questées de potiti ca eclesidstica, a Igreja tinha gj da outra razao para promoyey as Cruzadas: tentar a reunificagdg da Cristandade, isto é, do conjunto dos territ6rios cristaos, De fato, uma série de divergéncias juyfdi- cas, eclesi sticas, teoldgicas & po liticas, existentes ha séculos entre as Igrejas de Roma e de Constynti- nopla, tinha culminado em 1054 no chamado Cisma do Oriente. Quer dizer: na divisdo da Igreja Cristi em uma Igreja Catélica Romana (comandada pelo papa) ¢ Numa Igreja Ortodoxa Grega (liderada pelo bispo de Constantinopla), As- sim, a Igreja Ocidental via nas Cruzadas um instrumento de pres: so que Ihe permitiria submeter a Igreja Oriental 20 ? As Motivacoes Psicotocicas Tao importante quanto o con junto de fatores materiais que con- tribui para a ocorréncia dos fend- menos hist6ricos, é 6 contexto psi- colégico em que eles acontecem. No caso das Cruzadas, devemos le- var em consideracao trés elementos, fundamentais da mentalidade da Epoca: a religiosidade, o belicismo © 0 contratualismo. RELIGIOSIDADE Esse era 0 grande trago men- tal da época das Cruzadas, trago formado a partir do contatoycom a realidade. Como foi mostrado pelo historiador Mare Bloch, o boment da &poca feudal vivia muito proxi- mo e dependente de uma natureza desordenada e rude, que a.pobreza de seu instrumental nado permitia controlar: “Numa palayra, havia por detrés de toda vida social um fundo de primitivismo, de submis- sdio aos elementos indisciplinaveis, de contrastes fisicos que nado po- diam ser atenuados”. Isso gerou uma religiosidade conereta, presa ao palpavel: o inti- mo contato do homem com a natu- reza apresentava-lhe mistérios ex~ plicdveis somente pela atuagdo de forgas sobrenaturais que se tentava controlar através de ritos apropria- dos. Distinguia-se dois tipos daque- las forgas: as do Bem, que se pro- curava agradar visando ao dominio humano sobre a natureza, para fazé- la trabalhar em seu beneficio (cli- ma favordvel, fertilidade da terra e dos.animais); as forgas do Mal, que sé procurava subjugar impedindo a ocorréncia de fenémenos naturais wiolentos, prejudiciais ao homem (terremotos, intindagdes, secas). Tabvisiode mundo aplicava- se tamibéni as rélacdes sociais. A re- ligiosidade feudal tinha como ideal umpestilo de vida herdico, de busca de proezas ascéticas. Via-se a santi- dade como acessivel pelo esforgo. Esse ideal cristao era preferencial- mente atingivel nos mosteiros, mas estava também ao alcance dos leigos de origem modesta que nio podiam se tornar monges. Bastava optar por 21 As Cruzapas uma vida de privagées e rudeza, de severidade, que era um trago ca- racteristico da espiritualidade po- pular da Idade Média: era como se uma maior violéncia para com o proprio corpo compensasse as de- ficiéncias de conhecimento ¢ refle- xdo religiosos. Tal espiritualidade resultava em um conjunta de obrigacoes dos vassalos-homens para com 0 se- nhor-Deus: preces, esmolas, jejuns e, sobretudo, peregrinagées. Estas: cram viagens a santudrios em que se venerayam reliquias, ou seja, restos de corpos santos (ossos, ca- belos, unhas) ou objetos tornados: sagrados pelo contato com aqueles corpos (roupas, enfeites). Por exem plo, ia-se a Chartres, no norte da Franca, ver a santa tinica da Vir- gem; a Roma, visitar os restos mor- tais de Sio Pedro e Sio Paulo; a Compostela, na Espanha, cultuar 0 corpo santo do apéstolo Santiago; a Jerusalém, visitar o Santo Sepulcro € os locais por onde Cristo passaras As peregrinagées cumpriam duplo papel. De um ladostta uma forma de peniténciaoO peregrine: era sempre um ¢st¥angeiro? unt ho mem que procurava wespiritualizas Gio separando-se de set’ mundo’ bitual, conhécendo as dificildades € 08 perigos dos caminhos Eatig- nificativo que os mais importantes centros peregrinatérios, qué atrafam individuos de todos os cantos da Cristandade, estivessem em, ou proximo a, territérios muculmanos — Jerusalém ¢ Compostela. Ou seja, locais que para serem aleanga- dos pelos peregrinos exigiam mai- ores dificuldades do que santudrigs mais préximos, Viajar perto de 5 mil quilémetros até Jerusalém, nas condigdes da época, era realmente uma aventura cheia de riscos. Alids, no discurso papal de Clermont, segundo a versio que nos foi deixada pelo cronista Guj- bert de Nogent, Urbano I teria in- sistido nesse aspecto: “Irmaos, pa preciso sofrer muito em nome de Cristo. Miséria, pobreza, nudez, perseguigdes, indigéncia, enfermi- dades, fome, sede e outros males” Documento iconografico 4 — Estatua do apéstolo Santiago, na entrada da stedral de Compostela, noroeste da Espanha, local para onde a cada ano se dirigiam milhares de peregrinos procedentes de toda a Europa, muitos dos quais acabavam por se envolver na luta contra os mugulmanes ibéricos Cruzada @ peregrinacéio eram fenémenos estreitamente 22 Portanto, quanto mais obsticulos uma peregrinae © peregrino estaria purificando seus pecados. fio colocasse, mais Documento textual 6 — No Concilio de Clermont, que pregou a Primeira Cruzada, um canone definia aquilo que se- ria depois chamado de “indul- géncia da Cruzada”, isto é, a retribuigdo espiritual dada a quem enfrentasse os mugul- manos: “Tera valor de penitén- cia a viagem de todos aqueles que, agindo somente por de- vogdo e nao para conquistar dinheiro ou honra, partirem para Jerusalém visando liber- tar a Igreja de Deus”. A mesma idéia seria repetida nas demais Cruzadas, como vemos em uma bula de 1213, do papa Ino- céncio III: “Nés, depositérios da miseric6rdia divina, e a quem foi transmitida a autoridade dos bem- aventurados santos Pedro e Paulo, por cujo poder, apesar de sermos indignos dele, Deus nos ha permiti- do ligar e desligar, concedémos 0 perdio absoluto dos pecados ast0- dos que empreendam pessoalmente e a sua custa esse trabalho merité- rio [a Cruzada]”. Por outro lado, as peregrina: g6es eram uma forma de leyar os individuos a terem contato com Te- liquias. Essa pratica era considera- da importante, pois se atribufa as. reliquias poder magico, protegendo ou curando seu portador, Mesmo. aqueles que ndo podiam possuir As Motivacons Psico.daieas uma reliquia, beneficiavam-se com a simples proximidade de uma de- las, o que dava ao peregrino a espe- ranga de ser, de alguma maneira, tocado por aquela sacralidade. Ape- sar de existirem em grande ntimero e estarem presentes em toda parte, as reliquias € 0s corpos santos nao chegavam a satisfazer a imensa ne- cessidade do sagrado que havia na sociedade medieval. Em virtude disso, 0 culto de imagens ganhou muito prestigio e¢ algumas delas chegaram mesmo a se tornar tam- bém objeto de peregrinagio. Beuicismo Daquela religiosidade concre- ta e atuante decorria 0 belicismo, a interpretagéo do mundo como um grande choque entre as forgas do Bem e do Mal. Essa crenga antiqii- issima, pré-crista, foi se prolongan- do e sendo reforgada na sociedade ocidental, desde a crise do Império Romano no século II, devido as muitas inVasdes estrangeiras (ger- manicas, muculmanas, vikings, hungaras, eslavas) e aos longos pe- iiodos de lutas internas (guerras su- coss6rias disputas territoriais) Com o tempo, o dado material traisferiu-se para o emocional: des- ‘de® século XI, 0 Diabo era visto como um vassalo de Deus cafdo em felonia (isto €, traig&o por quebra do contrato vassdlico). Para serem vassalos fi os homens deviam portanto estar em combate constan- te contra 0 Diabo. A missa era con- siderada pelos leigos uma simula- is 23 As Cruzapas go simbdlica daquele combate. As igrejas do estilo romanico (veja Documento iconografico 10), tipi- cas da idade feudal, ficaram conhe- cidas por “fortalezas de Deus”: sim como os castelos senhoriais ti- nham fungdes defensivas contra inimigos humanos, as igrejas ti- nham contra as forcas demoniacas. Nessa guerra total que envolvia o universo, 0 Bem contava com pre- ciosos guerreiros, os santos. Os clérigos e os guerreiros constitufam-se na elite dirigente da sociedade feudal exatamente devido a seu papel de protetores. Cada um daqueles grupos era especialista num tipo de combate: os guerreiros, com seus cavalos e suas armaduras, langas e espadas, enfrentavam os invasores de suas terras; os clérigos, com suas armaduras simbdlicas (as. batinas) e suas armas espirituais (sacramentos, preces, exorcismos), enfrentayam os inimigos da fé, as forgas do Mal. De acordo egm essa visdo de mundo, qualquer jyimioo era visto como parte dos ey ércite demonjacos, de forma que ércitos, comba- té-los era ao MesMo teMpo ora po. litica e religiosa. O maior exemplo disso foram as proprias Cryzadas. Documento textual 7 _ Os cruzados eram vistos Como ho- mens generosos, desprenqidos, verdadeiros martires, como nos mostra este texto do sécyjo XI: “Nao sao realmente mértires aqueles que renunciam a gj pro- prios e a seus bens, que nao te- mem nem a ruina que uma lon- ga auséncia pode ocagjonar, nem a indoléncia do clima, nem a agitagao do mar tempestuoso, nem o estrondo de suas yagas, nem os inumerdaveis perigos da rota e do deserto, nem og sofri- mentos da fome e da sede, nem a propria morte?”. Documento iconografico 5 — Sée Jorge, em afresco de igreja de Sao Zeno em Verona, norte da Italia. Esse santo & t bom exemplo do belicismo da mentalidade medieval: um texto ¢ meados do século XI estabelece mesmo uma etimologia fantasiosa, segundo qual Georgius virio das palavras gregos gerar ("“sagrado’ gyon (“combatente’) de forma que seu nome significaria “santo lutador’ ConTRATUALISMO A realidade social do feudalis- mo estaya fortemente baseada na idéia de contrato, de reciprocidade de direitos ¢ obrigagdes. Isso nao acon- tecia apenas na aristocracia guerreira com 0 contrato feudo-vassilico, re- gulador das relagdes entre vassalo ¢ senhor feudal. A sociedade como um todo era vista daquela forma. A desi- gualdade social ¢ a exploragao de uma camada pelas outras cram mas- caradas por uma ideologia, segundo a qual havia uma troca equilibrada de servigos, com alguns rezando pelo bem de todos (clérigos), outros pro- tegendo 0 conjunto da sociedade (guerreiros) e outros se encarregando da produgao (camponeses). Mas 0 contratualismo nao era apenas um dado social, juridico e ideol6gico. Era também um ele- mento central da mentalidade e por As Morivacors Psico.deicas isso ultrapassava o nivel das rela- g6es inter-humanas para atingir as proprias relagdes com Deus. Havia muito de barganha, de negdcio, nas relagdes com 6 mundo sobrenatu- ral: um certo numero de preces po- dia ser trocado pela obtengao de ri- queza; uma peregrinagao a um san- tudrio, pela recuperaciio da satide; um jejum podia ser oferecido em troca de uma graga qualquer. Por ser um trago da psicolo- gia coletiva, 0 contratualismo era comum a todos os homens da épo- ca, independentemente da categoria social ou do grau de cultura. Sao Luis, rei de Franca entre 1226 e 1270, homem de cultura e de since- ra religiosidade, fez voto de cruza- do durante uma grave enfermidade, ou seja, comprometeu-se a trab Ihar por Deus (recuperando a Terra Santa) caso fosse ajudado por Ele (sendo curado). Documento textual 8 — A concepgao de Cristo como senhor feu- dal que exige o servigo militar de seus vassalos foi formulada de ma- neira clara na Bula Quia Major, escrita pelo papa Inocéncio Ill em abril de 1213: “Se qualquer monarca daiterra tivesse sido expulso de seus Estados por inimigos, nao iriacondenar como infiéis ¢ destinar a todos os suplicios que merecems grandes ctilpados, aqueles de seus vas- salos que nada fizeram por sua/pessoa e seus. bens? Da mesma forma, o Rei dos reis, Nosso Senhor Jesus Cristo, qué deua vocés um corpo e uma alma e todos os otitros bens que possuem, condenara vocés como culpados de grande ingratidao.e de crime de infidelidade se negligen- ciarem ir em seu socorro.quiando Ele esta expulso do reino que adqui- riu com o prego de seu Sangue,{:..] Qual desculpa podera dar quem se recusar a alguns pequenos trabalhos para punir as ofensas feitas a seu Redentor e vingar os ultrajes que Ele recebe? Qual desculpa podera dar quem, para poupar sua pessoa e seus bens, impede que se recupe- re os locais testemunhos da Paixdo e da Ressurreigao de Nosso Se- nhor, onde Deus, nosso rei, dignou-se, ha alguns séculos, a realizar, no meio da Terra, a salvagao dos homens?”. 25 As Cruzapas Documento iconogrdfico 6 — Peregrino entrando em Jerusalém, em vitral da catedral francesa de Chartres, séeulo Xill. Na troca de esforcos fisicos pela salvagéio espiritual, a peregrinacdio a Jerusalém era muito popular entre os cristéios devido as dificuldades em realizé-la (distéincia, custo, perigo mugulmano). Nesse quadro, ascrelagoes homem-Deus passaram a ser’con® cebidas como relagGes wiissal0-se- nhor feudal. O _homem ‘recebera do Senhor a Terra como feudo (da mesma forma que um, Vassilo-re- cebia a terra de seu Senhor feudal) € em troca precisava, com) qual- quer vassalo, ser-Lhe fiel e pres- lar servigo militar (combatendo os inimigos de Deus). Mesmo sim- ples gestos religiosos foram mar- cados por essa nova concepgiio: a partir do século X gene, ralizou-se a atitude dye colocar as Mas juntas ay fazer uma prece, repro. dugao do gesto do vassa. lo ao presiar homenager, a seu senhor feudal Guerra Santa: Sintese DA MENTALIDADE FeupaL Da reunido dos tréy elementos da mentalidady feudal que acabamos de examinar, é que surgiu oes. pfrito de Cruzada: a) Detly é 0 Senhor do mundo ¢ og homens, sendo seus yas- salos, devem servi-Lo, re. cuperando as regides rou. badas pelos infigis, pa. gaos e heréticos; b) a Cru. zada & uma peregrinagig armada, um exército de penitentes, de pecadores buscando indulgéncia (desde fins do século XII, as mulheres dos cruzadog também ganhavam indul- géncia permanecendo fiéis); ¢) a honed caValeiresca que se busca numa CritZada nao pode ser obtida de-otitra forma nem ao longo de toda’uma vida; d) o carater sagra- Yo dos locais disputados reforea a obr igdio dos homens para con seu Senhor e torna-os “soldados de Cristo”, e) a caridade fraterna do cristianismo é praticada ao se aju- dar os cristaos oprimidos pelos mugulmanos na Terra Santa ou na Peninsula Ibérica. 26 he Os cronistas das primeiras Cruzadas falam em pessoas mila- grosamente marcadas na carne (ge- ralmente no ombro direito) com ) divina e uma cruz, sinal da beng do agrado de Deus pela participa- ¢fo delas na Cruzada. Outros cro- nistas nos contam que a Cruzada Popular foi inicialmente guiada por um ganso inspirado por Deus. Ou- tros ainda afirmam que & Quinta Cruzada juntaram-se animais, pei- xes, padssaros e borboletas (estas consideradas portadoras da alma, desde os antigos egipcios), insetos que revoavam também em torno do contemporaneo Sio Francisco de Assis. Em suma, a Cruzada era uma obra aprovada por Deus. Em fungao disso tudo, desen- volveu-se no Ocidente a concepgio de Guerra Santa, existente, alias, também entre os mugulmanos. De inicio havia uma clara diferenga en- tre tais concepgoes, pois para os As Mouyacors Psico.oaicas cristdos tratava-se de uma guerra defensiva ou de liberagao de cris- laos oprimidos, engutanto para os Luma guerra para a muculmanos e expansao da fé em Ald. A partir de fins do século XI, contudo, na pré- tica essa teoria ficou invertida, com 08 cristdos atacando e os mugulma- nos se defendendo, Os bizantinos, por sua vez, nao aceitavam aquela idéia, ja que para eles nenhuma guerra podia ser santa, apenas necessaria. Sob essa perspectiva, morrer na luta nao é martirio, pois yerdadeiros martires enfrentam 0 inimigo apenas com as armas da fé. A princesa e cronista bi- zantina Ana Comneno (1083-1148) indignava-se ao ver cruzados lutan- do na Semana Santa, e entre eles sa~ cerdotes armados e empenhados no combate. Essa diferente visio das coisas explica, ao lado de raz6es po- liticas e econémicas, a desaprovagao bizantina perante as Cruzadas. Documento textual 9 — Ainda que'sem jamais ter sido um con- ceito tao bem elaborado e acabado, quanto nocristianismo medieval, o islamismo tinha sua nogao de Guerra Santa (djihad) tratada em va- rios versiculos de seu livre Sagrado,.0'Corao. Algunsdeles sao: “Com- batei pela causa de Deus aqueles qué vos combatem, mas sem prati- car injustica, pois Deus detesta.os injustos. Combatei-os onde quer que se encontrem e expulsai-os de onde eles:Vos, éxpulsaram. Os que creram, migraram e combateram:pela causa de Deus podem es- perar a misericordia de Deus, odndulgente, o Misericordioso. Que combatam pela causa de Deus aqtieles dispostos a sacrificar a vida terrena pela futura, pois a quem combater pela causa de Deus, quer sucumba, quer venga, dar-Ihes-emos magnifica recompensa. Os cren- tes combatem pela causa de Deus, os incrédulos combatem pela cau- sa do sedutor [Satanas]. Quando enfrentardes os incrédulos em bata- Ina, combatei até domina-los, e tomai os sobreviventes como prisio- neiros; quanto aos que morrerem pela causa de Deus, Ele nao deixa- ra perder suas almas”. ae As Cruzapas No Ocidente, porém, certas idéias do cristianismo eram interpre- tadas de forma diversa. Lembrava- se com freqiiéncia as passagens bf- blicas nas quais Cristo afirma que “toda drvore que nao produz bom fruto é cortada e langada ao fogo”. No século V, Santo Agostinho (354- 430) reconhecera que certas guerras eram feitas por ordem de Deus. Em fins do século VI, 0 papa Gregorio Magno admitia como justa a repres- sao a pagaos e hereges. im meados do século IX, 0 papa Ledo IV afir- mava que todo aquele que morresse lutando em defesa da Igreja recebe- ria uma recompensa celestial. Pou- co depois, outro papa, Joao VII, co- locou as vitimas da Guerra Santa entre os martires. Em 1064, 0 papa Alexandre II ofereceu indulgéncia a quem lutasse contra os mugulmanos na Peninsula Ibérica. Poucos anos depois, Gregorio VII deu absolvigaio a quem morresse lutando pela cruz Foi contudo no século XH, com Sao Bernardo (1091-1153), que a idéia de Guerra Santa foi me- lhor elaborada e justificada, gay nhando contornos definitivoss Para ele, a Cruzada, mais que‘um fato’ politico e militar, er®uma litargia. devendo por isso estar abérta a to- dos e€ nao apenas avinalite. Pelé contrario, dela déveriam participar de preferéncia os mauss€ristios, 04 grandes pecadores© Uma atividadle tao purificadora deveria Ser Consi- derada santa. Como a Cruzada iria “vingar a honra ultrajada de Je- sus”, ela transformava a atividade guerreira de algo condendvel numa virtude, quase em santidade. O verdadeiro cruzado nao hitaric apenas com a espada, mas lambén com a fé, daf 0 combate termina ou com a vit6ria militar ov cop gloria do martirio, Enfim, o cruzado era conyide de reiro, ideal concretizado Con as Ordens Religiosas Militares: o¢ dens mondsticas que além de gues tarefas espirituais dedicayam-se ¢ rado uma espécie de monge luta armada. Elas estiveram po isso presentes nos trés grandes ps cos das Cruzadas. Dogdimento iconografico 7 — Escultura de monge-cavaleiro, na igreja frances de Conques, principios do século Xil. O desenvolvimento do espirito de Cruzad permitiu 0 surgimento desse tipo de personagem, mista do ponto de vista social (ao mesmo tempo eclesidstico & guerreiro), mas una do ponto de vista mental (ao mesmo tempo combatente de Mal incorpéreo e do Mal terreno, nesse caso os muculmanos). 28 No Oriente Médio foi 0 caso sobretudo dos hospitaldrios e dos templarios, cujo papel foi funda- mental na manutengao de varias pragas-fortes conquistadas e cons- truidas pelos cruzados. Na Europa eslava foi o caso dos cavaleiros teuténicos, que desempenharam papel fundamental na submissio e conyersio dos prussianos e dos le- tonios. Na Peninsula Ibérica desta- cam-se as Ordens de Santiago, Ca- latrava, Alcantara e Avis, que, além de importante participagdo na reconquista das terras cristis ante- riormente ocupadas pelos mucul- manos, colaboraram também na ta- refa colonizadora daquelas areas, As Morrvacors Psico.ocicas permitindo sua definitiva reinte- gragdio ao mundo cristio Em suma, os conceitos de Paz ¢ Trégua de Deus e de Guerra Santa, aparentemente contraditérios, eram na verdade complementares. Para que houvesse paz no interior da Eu- ropa catélica, era preciso levar a guerra as regides nio-catélicas. Daf o Coneflio de Arles (1037-1041) ter imposto como peniténcia aos culpa- dos de homicidio durante a Trégua de Deus exatamente uma peregrina- gio a Jerusalém, Paz ¢ Trégua de Deus ¢ Guerra Santa eram idéias es~ ireitamente associadas, que sinteti- zavam a trilogia mental feudal que examinamos neste capitulo. As Cruzapas no Oriente Mépto Conseqiiéncia de um conjun- to de fatores materiais e psicolégi- cos, as Cruzadas ocorreram onde quer que aquelas necessidades e an- siedades pudessem ser satisfeitas Foi 0 caso do Oriente Médio, onde as Cruzadas objetivavam recuperar para o cristianismo a Terra Santa, isto €, Jerusalém e regides vizinhas Na verdade, a Cidade Santa estava em maos muculmanas desde 638, sem que isso tivesse causado problemas maiores, pois os drabes nao impediam que cristaos peregri nassem até 14. Apenas em 1009, co- incidindo com a clima de espera do fim do mundo que dominowo Oci- dente entre 1000 ¢ 1033)-as relagoes. ficaram estremecidas quando o Santo Sepulcro foi destrufdo pelo’ califa. As peregrinagdes cristas tor naram-se mais dificeis, No entanto, 0 que. déspertousas Cruzadas foi a conjuncio dedois fa- tores. Um, interno & Europa catélica, como vimos, foi 0 crescimento popu- lacional e as tensdes sociais dai decor- rentes, Outro, externo, foi a chegada ao Oriente Médio de um povo de ori- gem mongol recém-convertido ao is- lamismo, os turcos, que em 1071 ocu- param Jerusalém. No mesmo ano, os bizantinos sofreram uma grande der- rola para Os Lurcos e temerosos pelo destino do império pediram ajuda aos ocidentais. F interessante observar que, apesar de sensibilizado pela questao de Jerusalém, o papa somen- te langaria 0 apelo as Cruzadas em 1095, quando era preciso expandir sua politica da Paz e Trégua de Deus. O discurso papal entusiasmou 08 guerreiros feudais, que participa- tam deavérias Cruzadas, tradicional- mente designadas pelos historiadores por numerais, da Primeira a Oitava Cruzada. Ovdiscurso papal também teVe.réssonancia entre as pessoas mais simples, e nesse caso surgiram Cruzadas as quais foram dados nomes: indicativos de sua composigao social, como, por exemplo, a Cruzada Popu- lar ou a Cruzada das Criangas. Mais recentemente, um estu dioso refez a lista de Cruzadas feu- dais e contou 23 delas. O mesmo procedimento no caso das popula- res levou-o a identificar seis Cruza- 30 das daquele tipo. De qualquer for- ma, tudo isso € apenas um recurso didatico usado pelos historiadores, ja que na verdade havia um fluxo constante de peregrinos, armados ou nio, em diregdo a Jerusalém. Mas nao se pode negar que em cer- tos momentos aquele fluxo se in- tensificava. E essa enumeragio classica que vamos adotar a seguir. A Cruzapa Poputar (1096) Apés o discurso do papa Ur- bano Hem Clermont, em 1095, 0 entusiasmo despertado pela idéia de se partir para Jerusalém foi muito grande. Enquanto a nobreza feudal Documents iconografico 8 — Estailumi o Eremita, pregando para guerreiros fe As Cruzapas No Ortenre MEDIO iniciava seus preparativos, necessa- riamente demorados, 0 movimento. utiu nas camadas populares francesas ¢ alemas. Mesmo sem um plano preestabelecido e sem condi- g6es materiais adequadas, milhares de individuos decidiram se dirigir para o Oriente Médio. Um grupo liderado por er Sem-Bens partiu antes: encabegado por Pedro, 0 Eremita, outro, alguns dias depois. Ambos os gru- pos, compostos de pequenos cava- leiros, camponeses, clérigos, aven- tureiros, maltrapilhos e deser dos, tiveram no caminho dificulda- des em obter provisées e chegaram muitas vezes ao limite da fome, passando entio a rouba dra francesa do século XIII mostra Pedro, udais que foram ao Oriente Médio com a Primeira Cruzada, Pequeno, magro, sempre descalso, usando um velho traje mondstico, comendo apenas peixe, montando um jumento, Pedro exercia um grande carisma sobre os pessoas mais simples, que viam tudo que ele fazia como “algo quase divino”, na definig¢éo de um dos mais importantes cronistas da época, Guibert de Nogent. Até mesmo os pélos reliquias sagradas por muita gente. de seu jumento eram considerados a1 As Cruzapas O fanatismo quase ingénuo dos participantes desta Cruzada Po- pular e os problemas materiais pelos quais passaram levaram-nos em va- rios locais, sobretudo na Alemanha, a massacrar comunidades judias. Boa parte daqueles milhares de pe- regrinos que tinham partido em abril de 1096 morreu durante a viagem, Os que chegaram ao Império Bizantino olharam com inveja e ran- cor o esplendor e a riqueza de Con- stantinopla, cuja populagao, por sua vez, vill surpresa ¢ assustada aque- les bandos miser Para Ana Comneno, 0 nao era um santo eremita, mas ape- veis € ignorantes. lider deles nas um mendigo que ela chamava de Pedro, 0 Louco. O primeiro contato entre cruzados e bizantinos foi de miitua incompreensao, e as demais. Cruzadas apenas alargariam 0 fosso entre as duas partes da Cristandade. Sentindo o incontido fervor daqueles cruzados e preocupado com os problemas que eles come- gavam a the causar, o imperador bi- zantino forneceu-lhes transporte para a Asia. L4 os cruzados ataea® ram territério turco, com umdparte deles morrendo em batalha, en- quanto outros ficaram ceréadds num local sem agua,spadecendo. grandes tormentos; qué conheee-, mos gragas ao relato de unppartici- pante (veja Documento'texttal10), Os bizantinos enviarametro- pas de apoio, porém o fratasso da Cruzada Popular era definitivo. Em novembro de 1096, os sobreviven tes ou retornaram a Constantinopla (caso de Pedro, o Eremita) para aguardar a Cruzada dos Bares, que Documenio textual 10 -_ Um cronista anénimo assity descreveu as agruras da Cruzi_ da Popular: “De tal modo 4, nossos sofreram sede, que 4j- guns abriam as veias de Seg cavalos e jumentos a fim de b&- ber seu sangue; outros pediat, a um companheiro que colhey- se com as maos a urina, paha com ela mitigar a sede; outros, ainda, escavavam 0 solo umidy, deitavam-se e espalhavam terbg no peito, tamanho era o ardy; de sua sede”. estava a caminho, ou volta m Pare suas regides de origem. Como es- creveu um historiador, a Cruzada Popular foi uma agitacao andrquica que expressou de forma violenta e confusa 0 entusiasmo gerado pelc discurso papal de Clermont. A Primeira Cruzapa (1096-1099) Enquanto isso era organizada wverdadeira Primeira Cruzada, for- mada pela nobreza e supervisione daspelo*papado. Apesar de haver unYcomando tinico na pessoa do re~ présentante papal, Ademar de Monteil, bispo de Puy, na pratic: foi formada por varios exércitos Um deles, de franceses do norte (regiao de Paris. Bretanha, Normandia) pelo irmao do rei, Hugo de Ver mandois, dirigiu-se para a Iulia embarcando em Bari e chegando & feudais auténomos chefiado Constantinopla em novembro 32 1096. Outro, constitufdo por fran- ceses do leste ¢ alemies, comanda- dos pelo duque da Lorena, Godo- fredo de Bulhao, atravessou a Hun- gria, passou pelos Baleas e chegou a capital bizantina um més depois do grupo anterior. Em abril do ano seguinte, 14 chegou 0 exército de franceses do sul, liderado por Rai- mundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, que cruzara os Alpes ¢ a Itflia do norte para chegar 4 Grécia e daf a Bizancio. Na mesma época, 14 chegavam também os normandos, do sul da Itélia, comandados por Boemundo, duque de Taranto. O imperador bizantino Aleixo I exigiu de todos esses chefes cru- zados um juramento de fidelidade e © compromisso de que as primeiras terras conquistadas fossem entre- gues a Bizancio. Juridicamente, os bizantinos tinham razao, pois aque- les territérios eram seus antes da H i IP Se Fras As Cruzapas No Ormente Mépio, conquista mugulmana, Contudo, isso contrariava os interesses parti- e abria uma aria culares dos cruzados questo que posteriormente cr muitos problemas. A recusa do con- de de Toulouse em fazer o juramen- to contribuiu para estremecer ainda mais as ja frageis relagdes entre cruzados e bizantinos. Os cristaos encontravam-se divididos, mas para sua sorte 0 mesmo ocorria, & de forma mais dramatica naquele momento, com os mugulmanos. A campanha comegou com 0 cerco a cidade de Nicéia, que os turcos haviam ocupado alguns anos antes, local estrategicamente im- portante por sua proximidade de Constantinopla. O bloqueio dos cruzados por terra foi eficiente, mas eles precisavam de apoio naval, que o imperador forneceu, isolando to- talmente a cidade. Os turcos resol- veram capitular, entregando Nicéia Documento iconografico 9 —O sitio de Nicéia, ety 1097, segundo uma iluminura do século XIV. Avcaminho de Jerusalém, ‘os.cruzados tentaram conquister Nicéia e, recorrendo a uma espécie de guerra psicolégica que visava atemorizar seus habitantes, passaram a arremessar cabegas de inimigos decapitados por sobre os muros que protegiam a importante cidade, ee As Cruzapas a Aleixo, que em troca garantia res. peitar a vida dos habitantes daquela cidade. Para os cruzados, esse acor- do foi encarado Como uma traigio, que arrancava aos ocident sibilidade de uma y complet ais a pos- it6ria militar a, cheia de gléria ¢ saques, A seguir, a Cruzada alcangou a Siria, depois de uma caminhada lenta e diffeil devido aos obstacu- los Seograficos, a dificuldade de aprovisionamento, aos desentendi- Mentos entre os chefes Cruzados ¢ A Tesisténcia dos turcos. Os ociden- lais ficaram Surpresos com 0 valor militar dos inimigos, t cronista afirma que “ observado sen anto que um “tivessem eles "ea, Coragem @ - Apés aconquis. fa de algumas Cidades, que nao fo- tam alias devolvidas ag imperador bizantino conforme tinha sido com- binado, os Cruzados chegaram fren- tea Antioquia, importante centro comercial e estratégico, Acidade foi Cereada, mas a sj. luagdo era tio diffeil a praticar SMO Com cadiveres, turcos, Por fim, aps sete Meses, sracas a ajuda de € UM cristo’ arm. » Chega- Xército turce de 40 invertia. D Sitiados, Socorro e a Situag se, com 08 latinos ficande 34 bi- A fome, a falta de ae 7 zantino e as desergdes oe ava moral dos cruzados, A eda qi numa situagaéo muito meus da do ocorreu o famoso mat francés Santa Langa. Um ean aa André | teve visdes nas quais mare Ihe indicou uma igrej ee que? em que estaria a 1B aristor A centurido romano ferira a indica | descoberta da langa no logilane do suscitou grande entusia ahi certeza de que Deus 0s a ee sim motivados, os cruza' . para uma batalha em camp © conseguiram a vito * eria nat A etapa seguinte 5 ws antes oy 0 aberto ralmente Jerusalém, sper cada chefe cruzado se srando ree em agoes isoladas, aoe exitoril lizar alguma conquista Finalmet para beneficio prone de 12 le, no inicio de 1099, cer am mal" mil cruzados puso se ado-d cha para Jerusalém, Mee sitio fol alguns meses Heperss | 7 cruza- dificil e prolongado, mee na Cida- dos conseguiram aes 10 de,Santa a 15 de julho com inerivel ferocidade. J, escrita pellistéria oriental, Oe em 184 pelo bispo Gui piso Tird (1130-1190), cone ee tere da-seguinte maneira: “APO ida Ja cid iversos bairros 4 matado em diversos bai am, 08 sncontrav: e de todos os que encont je uma ail Principes ouviram dee eft grande parte do povo tin! 36 e para giado no Templo de Salom’ oe nd lé se dirigiram conduzin ge in imensa multidao de ee espa fantes, que atingiam core aan nao das todos os que aparecia 2 Documento textual 11 — A violéncia dos cruzados na conquista de Jerusalém foi re- gistrada por varias fontes con- temporaneas. A Historia andni- ma da Primeira Cruzada, obra feita por volta de 1100, narra: “lOs cruzados] foram perse- guindo e massacrando os mu- gulmanos até o Templo de Sa- lomao, onde houve tal carnifici- na que os nossos caminhavam. com sangue até a altura dos tor- nozelos”, depois do que “os mugulmanos vivos arrastaram para fora da cidade seus mor- tos, que formavam montes tao altos quanto casas. Logo depois os cristéos rezaram e agradece- ram a Deus pela vitéria: Jerusa- lém era novamente sua”. As Cruzapas No OrtENTE Métpio perdoando ninguém e inundando a praga com 0 sangue dos infigis. Eles assim cumpriram os justos decretos de Deus, a fim de que os que ti- nham profanado 0 santudrio do Se- nhor por seus atos supersticiosos: purificassem-no com seu proprio sangue e morressem naquele mesmo lugar em expiagio de seus crimes”. A SeGunpA CRUZADA (1147-1149) Menos de meio século de- pois da conquista da Primeira Cruzada, uma parte da Siria caté- lica foi recuperada pelos mugul- manos. Para impedir que, entusi- asmados, os infiéis partissem so- bre Jerusalém, resolveu-se pro- Documento iconografico 10 — A basilica de Maria Madalenc, em Vézelay, na Borgonha, onde em 1146 0 abade cisterciense Bernardo de Claraval pregou a Segunda Cruzada 35 As Cruzapas mover uma nova Cruzada, Ela foi pregada por Sao Bernardo, talvez a personagem de maior prestfgio em sua época, o que permitiu reu- nir trés contingentes: 0 exército. alemao do imperador Conrado II, 0 exército francés do rei Luis VII € 0 exército de europeus do norte (ingleses, flamengos e frisios). Este ultimo grupo, que ao contré- rio dos primeiros pretendia atingir a Terra Santa por mar, ao passar pela Peninsula Ibérica ajudou os cristaos locais a arrancarem Lis- boa dos mugulmanos. Nesse mes- mo ano de 1147, um grupo de ale- maes penetrava na Europa eslava. As Cruzadas orientais e ociden- tais se sobrepunham. Tendo chegado ao Oriente Médio antes dos demais, os ale- maes de Conrado IIT nao espera- ram apoio e sem maior planeja- mento penetraram em territério léia. Os sobreviventes juntaram-se ao exéreito francés, que chegou logo depois, porém os constantes atritos entre alemaes e franceses, dificultavam uma acdo conjunta dos cristaios. Além disso, ocorriam tam- bém desentendimentos entre Luis VII e Raimundo de Poitiers, prin- cipe de Antioquia, por causa de Eleonor da Aquitania, esposa do primeiro e sobrinha do segundo, que, mesmo acompanhando o ma- rido a Cruzada, nao chegava a me- recer a indulgéncia por fidelidade conjugal... Quando finalmente Conrado e Luis chegaram a um acordo, tomaram a decisaio pouco feliz de atacar a poderosa cidade de Damasco, 0 que redundou em mais uma derrota cristae assim no fracasso dessa Cruzada. Os desentendimentos nio eram exclusividade dos cristios turco, sendo esmagados em Dori- diversas yezes debilitaram 0 mun- Documento textual 12 — Ao lado do fervor que a idéia de Cruza- da despertava em muita gente, também-havia alguns que viam com ma vontade aquele espetaculo de milhares de pessoas abandonando suas casas e afazeres por uma aventura de motivos e resultados du- vidosos. Esse foi.o Caso de-um cronista alemao andnimo que, ao ver na cidade de Wurzburg a passagem da Segunda Cruzada, conside- rou-a obra do Diabo: “Em razdo dos pecados.dos homens, Deus per- mitiu que um flagelo se abatesse’sobre a Igreja ocidental. Viu-se apa- recer pseudoprofetas, filhos de Belial, testemunhos do Anticristo que por suas palavras vazias enganam os cristaos e por sua va pregacdo levam quase todo o género.humano a partir para a liberagao de Jeru- salém e para a guerra contra os sarracenos. A pregacao deles teve um efeito tao monstruoso que quase toda a populagao, como em um voto coletivo, se ofereciaa um massacre geral. As razGes de cada um eram diferentes, mas poucos tinham intencao santa e salutar, infla- mados pelo amor da majestade divina a derramar sangue no comba- te pelo Santo dos santos”. 36 do mugulmano, facilitando a tare- fa dos cruzados. O melhor exem- plo disso era a Scita dos Assassi- nos, de grande e importante ativi- dade entre fins do século XI e me- ados do XII]. Tratava-se de extre- mistas dentro do gi xiita, que considerava legitimas 1 upo extremista apenas as tradig6es religiosas transmitidas por descendentes de Maomé. Fanatizados (“assassinos” significa literalmente “fumantes. de haxixe”), aqueles homens bus- cavam matar sistematica e organi- zadamente os inimigos de suas idéias, criando assim 0 que cha- mamos de terrorismo. Mas este atingia tanto outros mugulmanos, quanto cristéos. Nao poucas vezes os assassinos fizeram acordos ¢ trabalharam com os cruzados. Mas em fins do século XII, 0 mundo islamico recuperou certa unidade, gragas ao surgimento de uma nova poténcia, 0 Egito lidera- do pelo habil Saladino, sultéo de 1171 a 1193. Em poucos anos, ele eliminou varios rivais mugulma- nos, apoderando-se de regides que praticamente cercavam os Estados: cristdios, Pouco depois inyadiu o Reino de Jerusalém, conquistou suas principais fortalezasee por fim, trés meses apés adeécisiva vi- toria de Hattin, ocupou a prépria Jerusalém, em outubro de fT 84s A Cidade Santa tinha perma- necido crista por apenas (ou por longos, do ponto de vista mugulma- no) 84 anos. A noticia da perda de Jerusalém comoveu e movimentou © Ovidente na preparagado de uma nova Cruzada. As Cruzapas No Oren MEDIO A Terctira Cruzada (1189-1192) O papa autorizou varios pre- gadores a percorrerem a Europa e estendeu a indulgéncia As pessoas que, nao podendo participar da Cruzada, financiassem a ida de ou- tros indivfduos. Trés soberanos to- maram a cruz: o rei francés Filipe Augusto, o rei inglés Ricardo Co- ragiio de Ledo e o imperador ale- mao Frederico Barba Ruiva. Além dos cruzados daquelas regides, participaram também guerreiros da distante Escandindvia e marinhei- ros das cidades italianas. Aparen- temente forte, essa Cruzada softia, contudo, da mesma debilidade das loam Poacetlrvon afore Senrolacholascliesy Sredibergan(qe? ola BPs canatttrerrs Pr. Loroinf eer 3 Ddcumento iconografico 11 — Clemente Ill, que pontificou entre 1187 e 1191, determina a realizagao de uma Cruzoda para recuperar Jerusalém. Para tanto, ele instituiu 0 “dizimo Saladino”, um imposto de 10% sobre os rendimentos totais dos eclesiasticos, a fim de financiar os senhores laicos que iriam participar dessa Cruzada. 37 As Cruzapas Documento textual 13 — Apesar da consternagao que a queda de Jerusalém provocou no Ocidente, dando origem a Cruzada dos Reis, alguns viram aquele fato por outra optica. O cronista inglés Raul, o Negro, por exemplo, explicou a perda da Cidade Santa como resultado do comportamento dos cruzados: “Pela permissao ou pelo julgamento de Deus, o castigo abateu-se sobre a Palestina em razao de seus peca- dos. Que outra nagdo conheceu tantas delicias? Eu guardarei siléncio sobre 0s outros vicios que as cidades de Antioquia e Jerusalém aberta- mente cultivaram. Eu mesmo vi o patriarca de Jerusalém que veio a Europa buscar ajuda. Ele trouxe consigo uma enorme quantidade de objetos de prata e de ouro cuja passagem provocava uma balbtirdia nojenta. Eu senti o cheiro das fumigacoes aromaticas, muiltiplas e vari- adas, que perfumavam suas roupas e turvavam o cérebro. |...] Se esti- mamos as outras delicias daquela terra a partir do que vimos, pode- mos supor que ha muito tempo Deus odiava aquela situagdo. Outras raz6es levam 4 mesma conclusao, em primeiro lugar o fato de os ve- Ihacos banidos de seus paises ou fugidos de castigos procurarem refil- gio na Palestina. Com tais recrutas, aquela terra formou um povo cuja delinqliéncia floresceu mais livremente que em outros lugares, pois todos os crimes do mundo foram reunidos ali”. anteriores: falta de um comando pessoais impediam que chegassem tinico e de um planejamento glo- bal. Mais uma vez cada exército Seguia caminhos diferentes e j4 chegava ao Oriente Médio militar- mente desgastado e com 0 espirito cruzadistico enfraquecido O imperador aleméo, que par- tra antes, conseguiu algumascwit6- rias na Asia Menor, mas.teVe o fim pouco glorioso de morrer afogado ao tentar a travessia de umitioyo que provocou a dispersdio das forcas ger” manicas. Paralelamente, um grupo, de combatentes de varias nacionali- dades cercava a importante-fortale- za de Siio Joao de Acre, quetesistin por dois anos, s6 caindo em maos dos cruzados em meados de 1191, Enquanto isso, Filipe ¢ Ri- cardo néo haviam sequer partido, pois antigas diferengas politicas e a um acordo, Finalmente, eles se reuniram no sul da Franga e resol. veram dirigir-se para Marselha, en) seguida para Génova e daf para q Sicilia, onde, porém, novos de. sentendimentos os retiveram poy Seis meses. Quando chegaram ao Oriente, a resisténcia de Acre jj estava fraca c os cristios, com oy reforéosfranceses © ingleses, fi Walnfente*tomaram a cidadela, que Seria’ desde entao o principal ponto deapoio ocidental e o tiltimo bas Udo latino a ser reconquistado pe. los mugulmanos, lo mais tarde, O que parecia ser uma boa perspectiva para a Terceira Cru- apenas um séew zada niio teve, porém, continuida- de. Filipe Augusto, sempre des- confiado de Ricardo (aliado no 38 Oriente Médio, mas adversario na Europa), resolveu voltar para a Franga, cujos problemas 0 preocu- pavam mais que a Cruzada, Ricar- do Coragio de Leao, grande guer- reiro que era, conseguiu algumas vitorias sobre Saladino, mas nem sempre soube explorar convenien- temente seus resultados © preferiu fazer um acordo com os mugulma- nos. Por esse tratado, Saladino re- conhecia a posse do litoral sirio- palestino aos ocidentais e permi- tia aos cristaos peregrinarem a Je- rusalém, que continuaya contudo sob seu dominio. De qualquer forma, a Tercei ra Cruzada garantiu territéric damentais para a sobrevivéncia dos Estados francos, adiando por um século seu desaparecimento Por isso, em vez de “semifr s fun- icasso” (na expressao do historiador suico Paul Rousset), é preferivel consi- derd-la um semi-sucesso. A Quarta Cruzapa (1202-1204) Varios fatores iam aos pou- cos enfraquecendo o espiritocde, Cruzada — os novos intetesses comerciais e politicos, 6 surgimen- to de uma nova tolerancia entre, cristaos e mugulmanos gragaS a longa convivéncia, a liberdadé de peregrinagado conseguida por trata- dos — e fazendo com que o movi- mento fosse muitas vezes desvia- do de seus objetivos originais. O melhor exemplo disso foi a Quarta Cruzada, que, resultante dos ve- As CRUZADAS NO ORIENTE MEDIO lhos desacordos entre ocidentais e bizantinos e dos interesses econd- , acabou por se micos de Venez: tornar a primeira Cruzada contra os cristaos. Contudo, € curioso como uparentemente essa Cruzada come- cava da mesma forma que a pri- meira, incentivada por um papa de prestigio (Inocéncio IIL), movi- mentando a nobreza feudal, mas nio soberanos, reunindo efetivos: sobretudo franceses. A questio do transporte e dos recursos financei- ros acabaria, no entanto, por des viar os rumos da Cruzada, revelan- do as transformagées que ocorriam no Ocidente e portanto nas pro- prias Cruzadas. De fato, assinou-se com Veneza um acordo pelo qual ela forneceria transporte e provi- sdes para os cruzados em troca de uma certa quantia em dinheiro e metade das conquistas que fossem feitas. Como na época do embar- que os cruzados nao tinham a quantia total, os venezianos propu- seram uma moratoria, desde que recebessém ajuda para ocupar a cl- dade’ de Zara, no litoral adridtico (veja Documentortextual 3). Aoneordaiicia dos cruzados jdceratin desvirtuamento, pois se trataivade apolar as pretensdes ma- teriaissde um grupo (Veneza) con- tra Outro, também cristo (0 rei da Hungria, possuidor de Zara). Ade- mais, 0s venezianos s6 aceitaram a presenga, na Cruzada, de um repre- sentante papal que tivesse fungoes apenas espirituais. A Quarta Cruza- da comegava com um ato de rebe- lido em relagao ao papa. 39 As Cruzapas Para complicar a situagao, 0 principe bizantino Aleixo pediu o apoio das cruzados para destituir um usurpador que ocupava 0 trono de Constantinopla e nele recolocar seu pai, Isaac Il. Prometia em tro- careunificar as Igrejas Ortodoxa e Catélica, pagar uma grande quan- tia em dinheiro e fornecer provi- sdes aos cruzados Tal proposta interessou ao chefe da Cruzada, Bonifacio de Montferrat (amigo de Filipe da Su- abia, genro do imperador bizanti- no destronado), pois liquidar a divida para com Vene- za, obter recursos para dar prosse- guimento & Cruzada e por fim ao Cisma de 1054 (o que agradaria ao papa, descontente desde a tomada de Zara). Aos venezianos, a pro- ssim poderia posta também interessava, ja que era uma grande oportunidade par recuperar privilégios comerciais de que tinham gozado anterior- mente em Bizancio, Mais ainda, era uma rara ocasifio para se tentar ocupar partes dos mercados orien- tais dominados por Constantino- pla, grande rival comercial: Dessa forma,cm julhode 1203 Constantinopla eracdtacada por mar pelos venezianos-e por ters ra pelos francos. Apés uma curti resisténcia, 0 imperador usurpa dor, que contava com pequenm ac I fo. Os cruzados rece apoio popular, fugiu. Ise reentronizado beram autorizagao para acampitr perto da capital, podendo mesm visitd-la. O contato direto entre a populagao bizantina e os Latinos si aumentou 0 6dio que uma série de eventos histéricos vinha alimen tando ha séculos. Os gregos des prezavam aqueles homens rude’, ambiciosos e violentos, que havian propositadamente provocado um incéndio que destruira varios quar teirées e matara muitas pessoas, Os latinos, por sua vez, estavam desgostosos pelo fato de Aleixo nao ter cumprido totalmente suay promessas Pretendendo defender seus direitos, os ocidentais atacaram novamente Constantinopla, may foram rechagados. Dias depois, en abril de 1204, um segundo assalty teve sucesso, Seguiram-se varios dias de desordem, com os latinos matando, queimando, violentando, Sobretudo saqueando, apossando. se das. fmensas riquezas de Bizin cid, S€gundo um participante ¢ eronssta do ucontecimento, “os Documento textual-14. Preocupado com as conseqiiéncias da violéncia dos latinos,em.Constantinopla, o papa Inocéncio Ill re- criminou seu representante, que nao conseguira controlar a Cruza- da: “Na verdade, como a Igreja Grega podera ser trazida a uniao eclesidstica e 4 devocao pela Sé Apostélica, quando tem sido asse- diada por tantas afligdes e perseguigoes, de tal maneira que nao vé nos latinos senao um exemplo de perdido e de obras tenebrosas ¢ que agora, com razao, detesta-os mais que a caes?”. 40 As Cruzapas No Ortente MEDIO, ‘ouewo, OWSILN opSeuuBeied ap soxquao siedioutid * souewinony, ea oxXOpoLO OW!SIUENSUO Op OBSUedXS OXOpoyo OWSIUBNSHD | ~ Lan ® oe oo e aN POS a = = of —WuUSLPIONI PS er OSL fnASt cor SVQYZNY} SVUIWIY” OULVND sva SvLOY SY FRANCO JUNIOR, H. e ANDRADE FILHO, R. O. Arlax de Scipione, 1997. p. 23, Jo Paulo, eral. 5, ed. Si ge historia St As Cruzapas ganhos foram tio grandes que nin- guém saberd dizer 0 montante em ouro e prata, baixelas, pedras pre- ciosas, tecidos de cetim e de seda, peles e todos os mais ricos bens que jamais foram encontrados na Terra”. Dentre as riquezas saquea- das destacavam-se as reliquias, de que Constantinopla abundava, e que foram ent&o espalhadas por toda a Buropa. Surgia assim 0 Império Lati- no de Constantinopla, Para seu tro- no foi eleito Baldufno, conde de Flandres, e a seguir procedeu-se a partilha dos despojos, cujos maio- res beneficiados foram os venezia- nos. Contudo, o Império Latino era fragil devido as contraditérias am- bigdes de seus chefes, a hostilidade da populagio bizantina, & forte resi téncia do clero ortodoxo e a rivali- dade comercial entre venezianos e genoveses: 57 anos depois, um no- bre grego apoiado por Génova res- tabeleceria 0 Império Bizantino (1261). Mas era entdo um Império Bizantino definitivamente enfra- quecido, e que por isso desapare- ceria perante os turcos,.em’1453. A Quarta Cruzada foi, a longo. prazo, mais prejudicial aos cris tdos que aos mugulimanos, A Cruzapa pas Criancas (1212) Apesar de tudo, o verda- deiro espfrito das Cruzadas ainda no morrera, como fica claro com a chamada Cruzada das Criangas, movimento es- pontaneo, popular. Seus participan- tes nio eram apenas pessoas de pouca idade, pois “crianca”, na lin- guagem da época, designava nao so- mente uma faixa etdria, como tam- bém “gente simples ¢ pobre”, geral- mente camponeses dependentes. Essa Cruzada foi na verdade um duplo movimiento, cada um de- les sem relagio com o outro, mas ambos significativamente saidos das duas regides mais povoadas da época. Da regiao de Coldnia, na Alemanha — estimulados por Ni- colau, um profeta popular que ti- vera uma visdo anunciando a liber- tacdo do Santo Sepulero —, parti- ram cerca de 20 mil miserdveis sem recursos e organizagdo para alcangar sua meta. Muitos desisti- ram ou morreram no caminho. Mi- Ihares de outros chegaram a Géno- Documento iconogréfico 12 — Um grupo de jovens camponeses pobres, malvestides e mal- armados, conhecidos genericamente por “criangas” (pueri) ao As Cruzapas No OrteNTE MEDIO. Documento textual 15 — Por volta de 1230, um monge alemao de Marbach, na Alsacia, assim descreveu 0 inicio do ramo local daque- la Cruzada: “Naquela época ocorreu uma expedicao ridicula. Criangas e homens estupidos tomaram a cruz [tornaram-se cruzados] sem ne- nhuma reflexao, por curiosidade mais que por interesse por sua salva- ao. Dela participaram criangas dos dois sexos, rapazes e mocas, e Nao somente gente pequena, também adultos, mulheres tanto casadas quanto solteiras, todos marchando com o bolso vazio e nao somente em toda Alemanha, mas igualmente nas Galias [Franca] e na Borgo- nha. [...] A multidao crédula, vendo naquela gente o efeito de uma ver- dadeira piedade animada pela inspiragao divina, e nao de um ato irres- ponsdvel, ajudava os viajantes dando-Ihes viveres e todo 0 necessario. Aos clérigos e uns poucos outros de espirito equilibrado que se opu- nham a essa partida julgada por eles completamente inutil, os leigos resistiam com veeméncia, taxando os clérigos de incrédulos e dizendo que eles se opunham aquele empreendimento por inveja e avareza, é nao em nome da verdade e da justiga”. va, de onde comerciantes inescru- pulosos os levaram ao Oriente, mas como escr Da regio de Vendéme, na Franca, sairam por volta de 30 mil “criangas” lideradas por outro pro- feta, Estévao, que afirmava ter re- Vos. cebido uma carta de Cristo (como se contara também de Pedro, 0 Eremita) designando-as para liber: tar secu tiimulo dos infigis. Blas se dirigiram para Marselha, de onde pretendiam embarear paraaTerra Santa, Sem dinheiro para pagar’o uansporte, foram levadasspara’o ito ¢ vendidas comacescravos. Se para nds, hoje, & 6bvio. que aquela Cruzada estavadestinas dh ao fracasso, como foi possiVel que naquele momento muita gente tenha participado dela? A resposta deve considerar dois elementos. Primeiramente, 0 fato de se tratar de um grupo social que crescera mito com a expansao demogr ca e que encontrava sérias dificul- dades para trabalhar e obter o ne- cessdrio a sua sobrevivéncia. Para aquelas pessoas, o Oriente Médio era a terra sonhada de abundancia e de espiritualidade. Em segundo lugar, havia a crenga de que, gragas a sua pureza, pessoas simples poderiam ter su- cess@Onde nobres ¢ reis haviam fa- Ihado. Qofita-se que o ramo francés daguéla Cruzada foi seguido por pagsros ebotboletas, milagre que expressavaya@ Simpatia divina por aquélaspessdas,. O envolvimento Uagtie les miseraveis era uma critica Agen que as Cruzadas tinham to- mado. O historiador inglés Peter Raedts resumiu bem a questio: “A Cruzada das Criangas aparece, na teoria ¢ na prética, como uma res surgéneia da Cruzada Popular, na qual a violéncia militar e as virtu- des cavaleirescas cedem lugar as armas misticas dos pobres”. 43 As Cruzapas A Quinta Cruzapa (1217-1219) O IV Coneilio de Latréo (1215) havia pregado a necessida- de de uma nova Cruzada na Terra Santa, movimento que, ao contrério dos anteriores, quase no contou com franceses, envolvidos na Cru- zada Albigense (veja no préximo que da Austria desembarcaram em Acre em setembro de 1217, rece- bendo logo depois 0 apoio do rei de Chipre e do conde de Antioquia. O exército cristo nao era fra- co, porém mais uma vez faltava unidade de comando. Doente e de- sanimado, logo no comego de 1218 o rei htingaro voltou para seu pats, Joao de Brienne, 0 rei latino de Je- rusalém — mas gue viyia em Acre capitulo). Assim, a Quinta Cruzada reuniu htingaros, austriacos, ciprio- las, frisios, noruegueses e francos da Sitia. O rei da Hungria e 0 du- pois desde 1187, como sabemos, os mugulmanos haviam reconquistado a Cidade Santa —, resolveu adotar um plano concebido ja no século Documento textual 16 — A chave estratégica do Egito era a cidade de Damieta, cuja Torre da Corrente cortava o Rio Nilo com uma longa e forte corrente de ferro que impedia a passagem dos navios. Daj o interesse de Jodo de Brienne em toma-la, como nos conta um cronista anénimo mucgulmano: “Os francos apressaram- se em montar um acampamento cercado de fossos e trincheiras, e logo depois partiram para o ataque a Torre da Corrente, Queriam muito tomé-la, pois era a Unica forma de abrir caminho aos seus navios para o interior do Egito. Oito catapultas nado cessavam de arremessar pedras, de dia e de noite. Constantemente arremessa- vam flechas e langas, e um grande nimero’de muculmanos perde- ram a vida; 0 terror era geral. Em pouco tempo abandonaram as aldeias que rodeavam Damieta e adesolacdo estendeu-se até o Cai- ro. [...] Numa sexta-féira [dia’santo para .os mucgulmanos], os cris- taos atacaram a Torre da Corrente. Setenta barcos cobertos de cou- ro & prova de nafta avangaram coordenadamente. O ataque foi vio- lento, mas ndo,teve éxito. Qutro.ataque ocorreu domingo. Nesse dia os francos usaram quatro’navios coroados cada um por uma torre, trés voltados.contra’a.Torreda Corrente e o quarto contra a cidade. O inimigo esforgou-se muito e esteve a ponto de triunfar. Tinham alcangado a muralha quando o mastro que sustinha uma das torres quebrou-se e todos os guerreiros que estavam nela cai- ram na agua. A maior parte deles se afogou, afundados pelo peso das armas. Aquilo causou grande alegria aos muculmanos, [...] Mas os ataques prosseguiram. [...] Haviam-se passado quatro me- ses desde a chegada dos cristaos quando eles tomaram a Torre da Corrente”. 4A anterior, mas que nunea havia sido posto em pratica. Era atacar 0 Egi- to, o mais rico territério mugulma- no, 0 que, pensava-se, enfraquece- tia o sultao, facilitando a retomada de Jerusalém, Agindo nesse senti- do, os cruzados conseguiram, de- pois de 18 meses de cerco, ocupar a importante cidade de Damieta. O sultao al-Kamil, do Egito, propés trocar Damieta por Jerusa- lém, mas os reforgos crist&os re- cém-chegados da Europa opuse- As Cruzapas No Ortente MEDIO ram-se. Mais uma vez revelava-se o radicalismo dos novos cruzados, diferente do espirito de convivén- cia que caracterizava os latinos que viviam na Terra Santa. Des- contente, Jodo de Brienne retirou- se € 0 comando ficou com os radi- cais. Pouco familiarizados com o Oriente, resolveram atacar 0 Cairo na época da cheia do Rio Nilo, Iso- lados pelas Aguas, os cruzados vi- ram-se obrigados a trocar sua reti- rada por Damieta. Documento iconografico 13 — Francisco de Assis (1 182-1226}, representado em um nanuscrito francés. Filho de um rico burgués italiano, Francisco tivera, na juventude, uma experiéncia de guerra, mas desde sua converse espiritual, em 1206, defendia a calequizocdo dos infigis pela palavra e pelo exemplo, néo pela forga, Com essa intengdo, ele chegou ao Egito durante o cerco cristéo de Damieta, Sua anticruzada réio leve sucesso, mas apontava para uma nova direcdo, a da negociagéo, que seria posta em pratica na Sexta Cruzada. O encontro de 1219 entre 0 sultdio e Sao Francisco foi narrado assim, anos depois, pelo bidgrafo oficial do santo: “Admirado, osultéo co ver 0 espirito e 0 fervor do serafico Pai, néio apenas o ouvia com grande satisfac, mas até insistiv com repetidas suplicas que permanecesse algum tempo com ele. Mas 0 servo de Deus, iluminado pela forsa do alto, logo Ihe respondeu: ‘Se mie prometeres que vocé e os seus se conver terGo a Cristo, permanecerei de muito bom grado. Mas se hesitas em abandonar a jei impura de Maomé pela fé santissima de Cristo, ordena imediatamente que se ABKo umaggrande fogueira. [-.:] Seem seu nome e no de seu povo vocé prometer abragar a teligidio de Cristo caso ev saia ileso dd fogoeira, estou disposto‘a entrar nela. Se o fogo'mexeonsumir entre suas chamias, diribua-se isso aos Meus‘pecados, mas se, como éspero, a virtude divina me conservar ileso, vocé reconhecera a Cristo’. [ essa proposta o sultéo respondeu que néo podia aceitar, pois temia uma sublevagéo popular. Mas ofereceu-lhe numerosos ¢ ricos prosontos que o homem de Deus desprezou como se fossem lama” JA As Cruzapas A Sexta Cruzapa (1228-1229) Realizada pelo imperador ale- mio Frederico II, ela é um claro exemplo de como a “moral do lu- cro sobrepujava a moral de nobre- a politica derrotava a mistica”, nas palavras do historiador Paul Rousset. De fato, as ambicdes im- periais em relagéio ao Oriente Mé- dio tinham levado Frederico a se casar com a filha de Joao de Brien- ne, tei exilado de Jerusalém. Foi para fazer valer seu direito aquele trono que Frederico resolveu reali- zar uma Cruzada. Mas isso nfo era juridica mente possivel, pois naquele mo- mento ele estava excomungado, pelo Papa devido a um choque de interesses envolvendo a Italia. Em termos praticos, a excomunhao im- pedia que ele tivesse o apoio da populagaéo catélica dos Estados cruzados do Oriente Médio. Dian te disso, 0 imperador germanico, grande conhecedor da lingua e da cultura arabes, iniciou negaciagaes com o sultao. O resultado foi o Tr tado de Jafa (veja Documento tex tual 17), pelo qual Jerusalém e ou tros Lerrité reino latino. Jerusalém tornava cidade aberta, com os islamitis conservando us mesquitas e os cristdos, 0 Santo Sepulcro. O que 0s esforgos mi es dos ocidentais nado haviam obtido, a diplomacia conseguiu ios eram devolvidos se Uma nova pega do jogo poli tico internacional da época iris contudo, anular o esforgo diplor tico de Frederico II. Tratava-se dos mongois, que haviam submetido uma drea muito vasta no Extrem) Oriente das primeiras décadas do Documento textual 17 — O Tratado de Jafa visto por Ibn-Wasil (1207-1298), alto fu Ncionario da corte’do sultao: “A trégua foi conelu- ida. 0 Sultao fez proclamar em Jerusalém que os mugulmanos de viam deixar a cidade @ entrega-la aos francos. Os muculmanos sal- ram no meio de dou fi berd Sritos, choros elamentagdes. Essa decisao desagra- ortemente a todo o mundo muculmano;que-entristecido ao sa- essa perda desaprovou's critigol O.ato do sultao al-Kamil, ja que pe dessa nobre cidade e\Sualiberacdo de maos infiéis ti: nia sido uma das grandes.realizago8s de’ al-Malik an-Nasir Saladino, de feliz memoria, bem sabia que Deus salve Sua almal_Mas- al-Malik, os francos no poderiay\ defender Jerusalém 0 que, quando tivesse¢ Sata sob controle, ele purificaria Jerusalém dos francos e os ex- Pulsaria: Ele dizi! és ings concademos apenas 6 igrejas e casas em ruinas. A zona Sagrada, o Rochedo venerado e todos os outros santuarios, meta de nossas peregrinagées, permanecem sob nossa administracdo e autoridade’, Depois disso o imperador [Frederica {i} pediu ao sultao permissao de visitar Jerusalém”. 46 As Cruzapas No Ortenre MEDIO Documenio iconagrafico 14 — Varios islamitos se aproximam de um acampamento cuzado pedindo para serem batizados, mas era apenas uma armadilha para ali penetrarem e matarem cristéos. Essa imagem do muculmano como pessoa ardilosa, traidora, “infiel”, era muito forte e freqiiente no Ocidente cristéia, como prova essa iluminura do século XIV, mesmo passado o momenio mais intenso das Cruzadas. século XIII, Liderados por Géngis Khan, eles tinham dominado, des- trogado ou expulsado, por onde passavam, muitas populacdes. Foi que aconteceu na Asia Central com os Ahwarizmianos (racialmen- te iranianos, religiosamente mu- culmanos tio paraa Asia Menor, pressionan- que se deslocaram en- do a Sfria franca e tomando Jeru- salém em 1244, Essa nova perda da Cidade Santa levou o papayitd ano seguinte, durante o Concilio de Lyon, a pregar a redtizagagade mais uma Cruzada. A resposta a essé°apelo foi aidéia de Cruzada estava desgastada, os italianos eatlenrits fraca encontravam-se envolvidds avais. uma vez na disputa entre Igreja e hnpério, a Inglaterra conhecia pro- blemas internos, a Peninsula Ibéri- cacontinuava suas proprias Cruza- das, a Europa Oriental sentia a ameaga mongol. Portanto, apenas a Franca tinha condigdes de partici- par dessa nova Cruzada, e isso ia ao encontro do espirito muito reli- gioso de seu rei, Luis IX, depois canonizado como Sao Luts. As Cruzapas pe Séo Luis (1248-1250, 1270) No seu planejamento militar, & sUberang frahess retomou o ve tho projeto.d& conquistar 0 E quethesparecia.a chave para o do- Pondo-o em mito da Palestina prdticayconseguiu tomar Damieta com certa facilidade, mas a indeci- so em logo atacar o Cairo deu oportunidade aos mugulmanos de prepararem a defesa. Meses de- ha sobre pois, ao retomarem a ma © Cairo, os cruzados foram derro- tados diante da fortaleza de Man- v7 As CRUZADAS Documento textual 18 — Joao de Joinville, amigo e cronista de SAo Luis, deixou-nos esse relato da doenca que atingiu os cruzados apos a derrota: “Ao fim de nove dias, os corpos de nossos homens mortos pelos sarracenos em Mansura subiram a tona [das aguas do rio] porque, diz-se, a bilis estava podre. Eles vieram flutuando até a ponte que estava entre nossos dois acampamentos e nao podiam pas- sar porque a ponte era baixa. Havia um tao grande numero deles que todo 0 rio estava cheio de mortos de uma margem 4 outra, bem como na sua extensao. [...] Apesar de ser Quaresma, nds nao comiamos ou- tros peixes além de barbotos, que sao peixes vorazes e que comiam os mortos. Por causa disso e da incomodidade do pais, onde jamais cho- ve uma gota de agua, veio a ‘doenga do exército’, que fazia a carne de nossas pernas secar, a pele ficar manchada de preto e da cor da terra como uma velha bota. Quem tinha essa doenga ficava com as gengi- vas podres e nao escapava, morria. O sinal de morte era quando o na- riz sangrava, e logo depois se morria”. sura ¢ na retirada, atingidos por uma epidemia. O proprio Sio Luis foi aprisionado. Para que ele e seus homens fossem libertados, exigiu- se a restituigio de Damieta € 0 pa- gamento de uma grande quantia em dinheiro. A noti IX causou consternagao em toda Europa, ¢ especialmente na Fran- da prisdo de Luts ca, onde surgiu um movimento po- pular que pretendia ir ao Oriente resgatar o rei, No entanto, essa Cru zada dos Pastores (1250-1251) de generou em pilhagens-e desor dens (veja Documento texural.25) ea mie do rei, a regenté Branea de Castela, precisousmandar extent har seus parti¢ipantes Libertado, Luis.ditigit@se én- to A Siria, onde ficou quatfo.anios, reconstruindo e reforgiindo for zas cristas e aguardando 0 momen: to de atacar Jerusalém. Contudo a morte de sua mae, regente de Fran- ¢a, obrigou-o a voltar & Europa. A Sétima Cruzada terminava sem ne nhum resultado significativo Quando em 1268 os mucul manos conquistaram Antioquia, 4 tinica grande cidade que ainda per manecia em maos cristds, Sdo Luis novamente se fez cruzado. No en. tanto, ele recebeu poucas adesées ¢ mais zada se dirigiu para a Tunisia, mai criticas que apoio. Essa Cru para atender aos interesses politicos do irmaéo do rei sobre a Sicilia do queas consideragées de orden es: fratégica, La, logo apdés o desem. barque,uma epidemia matou cente nagsde cruzados, inclusive Sao Luis, Sen’ suadideranga e seu entusiasmy thaWerdade cle era um dos poncos \ pedigiio fracassou, com os sobrevi aaintda acreditar na Cruzada), & ventes retornando pouco depois para a Franga O melancolico final da Oite va Cruzada era significativo. Apis quase dois séculos, 0 quadro hist rico geral que dera origem as Cru. 48 , = SPaeS De _ : Documents iconog ; = nografico 15 — Luis IX Peto, rei de Franca de 1226 a 12 ‘ANenizado como §, ‘ Boni no Sao Luis pelo papa ‘ io Vill em 1297. Devido a roti ai 48 Cardter @ : “se ies 20 espirito cristaio rigoros Oi personage bi Cristandade Mediador ey da pe Oca. M ruzadas m de alto prestigio em tendo por isso servid ™ varios conflitos europeu: las sua tentativa de rec eaazadas sem os de onémico: Teveloy ios politico $ que vinham acontecendo utrapas Moment, rapassada: poucos naquele cup cOmpartilhavam de 5 Veadistico, @ fo se seu espirito ‘ mo muito “98 expedicdes ao Oriente Zadas z tinha-se Modific “Mente, Levan lo Mento de su ado profun ao desapaeei razdo de ser ¢ lescrédito, © ¢ e ser “ontinu; 10 sew ato de o papades ter ado a mo "0 depois da y 6 . © Catélico 291) 0 regar Cruzakis mes perda do tiltimo terri na Siria (Acges?eer ‘40 tem 1 De Nuita impo Penas mo Importaticig inte tra que a instituicao fae Va Viva, mas sem 0 espiri aS Motivagdes origir 1 Originais, « Nenhuma res k * apelos ssonancia daque As Cruzapas No Oriente MEDIO Os Estapos Latinos po Oriente Mépio De qualquer maneira, por quase dois séculos — da conquist de Jerusalém em 1099 A perda d Acre em 1291 o Laos oCi dentais mantiveram territort Ma Ali os fran cos constiturram Estados estrutu regiao sirio-palestin rados de uma forma que poderia mos chamar de feudo-colonial. De um lado, porque s quadros dirt ventes eram oriundos da pequena eudal curopéia ¢ portanto cdes entre cles eram regidas xelas normas do feudalismo oci dental. De yULrO, porque s domina mao-de-obra ¢ riquezas cram ex ploradas pela elite ocidental, eram das de etnia e religifio diferente irios, arménios, egipcios, gregos divididos em seitas mugulmanas (sunita, Xiita, ismaelita) ou cristas: nao-catolicas (ortodoxa, monofist ta, nestiriana) Os Estailos francos eram qua iro. Qseino de Jerasalém, regiao deSoh nedregasd c,pGuco propicio wFericultued, de Tasral indspito que nao Taree Q.gemercio mari Hanotinhaamda vizinhanga sem pre paPiges’ do Egito, a maior po- eéncia Inugulmana da epoca. Por gaNto, sua condigdo de Estado mais importante nao se devia a razdes econdmicas ou estratégicas, mas de 0 religioso pre Seu primeiro chefe foi Godofredo de Bu Ihao, que © titulo de

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