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ee eteneny Platao: Idealismo, Virtude e Transcendéncia Etica 4.1 Virtuosismo platénico e socratismo A principal parte do conjunto de premissas socraticas vem desembocar direta- mente no pensamento platénico. De fato, Plato (427-347 a.C.), 0 discipulo mais notavel de Sdcrates e o fundador da Academia, por meio de seus didlogos Fedro e Repiiblica (livros IV ¢ X), que especificamente abordam a questo, desenvolve com acuidade os mesmos pressupostos elementares do pensamento socratico: a virtude é conhecimento, e 0 vicio existe em fungio da ignorancia. Ao raciocinio socratico somam-se as influéncias egipcia, pitagorica e érfica, que acabam por tornd-lo um pensamento peculiar. De qualquer forma, em sua exposic&o do problema ético ressalta-se, sobretudo, o entrelagamento das preocupacées gnoseoldgicas, psico- légicas, metafisicas e éticas propriamente ditas.? Toda a preocupacio filoséfica platénica decorre nao de uma vivéncia direta e efetiva em meio as coisas humanas. Todo o sistema filosdfico platénico é decor- réncia de pressupostos transcendentes, quais a alma, a preexisténcia da alma, a reminiscéncia das ideias, a subsisténcia da alma...” O que ha é que Platao, dife- 1. “A retagiio entre a psicologia e a ética ¢ exposta em dois didlogos: no livro IV da Reptiblica e no Mito do Cocheiro, no Fedro” (Chai, Introdugdo 4 histéria da filosofia, 1994, v. I, p. 214). 2. “E-concordamos também que, quando o conhecimento chega de certa maneira, € uma recorda- Gao. Ao dizer de certa maneira, quero dizer por exemplo, que quando um homem, vé ou ouve alguma coisa, ou percebe-a por qualquer um de seus outros sentidos, ndo conhece apenas a coisa que chama a sua atenciio, mas, ao mesmo tempo, pensa em outra que nao depende de 1 PANORAMA HISTORICO rentemente da proposta de Sécrates, distancia-se da politica e do seio das ativida- des pratico-politicas. Se Sécrates ensinava nas ruas da cidade, Plato, decepcio- nado com o governo dos Trinta Tiranos e com o golpe que a cidade desferiu con- tra a filosofia, ensinara num lugar apartado, no recéndito onde o pensamento pode vagar com tranquilidade, e onde se pode desenvolver um modo de vida ao mesmo tempo que preocupado com a cidade, dela, de suas corrupgées, torpezas e problemas, distante: a Academia? Sécrates via na prudéncia (phrénesis) a virtude de cardter fundamental para oalcance da harmonia social. E a prudéncia estava incorporada a seu método de ensinar e ditar ideias, com vistas & realizacdo de uma educacao (paidéia) cidada. Quando a condenaciio de Sécrates firmou a hostilidade da cidade ao fildsofo, & qual eta inerente a politicidade do convivio, iniciou-se um processo académico de distanciamento da cidadania participativa; esta era a derrocada do ideal de perfeic&o democratica. O que ha é que a prudéncia (phrénesis) socratica converte-se em vida tedrica (bios theoréticos). Esta, declarada como a melhor das formas de vida, entre as possiveis e desejaveis formas de vida humana (fildsofo, cavaleiro, arteséo), pas- sou a servir de modelo de felicidade humana. Tudo isso com base na tripartigao da alma da seguinte forma: alma logistica, correspondendo A parte superior do corpo humano (cabeca), a qual se liga a figura do filésofo; alma irascfvel, corres- pondendo a parte mediana do corpo humano (peito), caracterizada pela coragem como virtude cavalheiresca; alma apetitiva, correspondendo 4 parte inferior do corpo humano (baixo ventre), & qual se ligam os artesdos, os comerciantes ¢ 0 povo. ‘ As poténcias da alma (psyché) humana vinculam-se, portanto, aos modos de vida, de maneira que: (a) a parte logistica da alma passa a representar 0 que diferencia 0 ser humano de outros seres; (b) a parte logistica da alma passa a representar a imortalidade do ser; (c) a parte logistica da alma passa a represen- tar o que ha de mais excelente no homem que 0 faz assemelhar-se aos deuses; (d) a alma logistica (logistikén) é hegeménica diante das outras partes da alma humana: (e) a alma logistica é capaz de reflexdo (didnoia), de opinido (déxa), e de imaginacao (phantasia); (e) a alma logistica é capaz de razio (nofis) e é esta sua maneira de conhecer, mas de uma diferente. Nao afirmamos que esse homem lembra 0 que surgiu em sua imaginacao” (Platao, Fédon, 1999, p. 136). 1. Bmtorno do século Vi a.,, destacou-se a figura de Tales, de acordo com toda a tradigao que se formou acerca de sta personalidade, alcangando grandes repercussdes na posteridade por meio da anedota da eserava trécia, o que aparece consignado no Teeteto de Plato. Nessa passagem da obra do fildsofo da Academia, sublinha-se que as preocupagées filosdficas afastam o pensador da tealidade, dicotomizando sua personalidade humana sua personalidade astronémico-cientifica A importineia da verdade ¢ a prevaléncia da ditima personalidade sobre a primeira atestam © valor atribuido & especulagao, coincidente com o inicio da reflexdo humana pelas causas ¢ principios do universo, ¢ 20s iniciadores da atividade especulativa quando se firmaram as bases do paradigma teorético com a Academia de Platao. PLATAO: IDBALISMO, VIRTUDE E TRANSCENDENGIA ETICA is razao que permite ao homem acessar, por meio da contemplacio, as ideias que somente aos deuses sio acessiveis.' A ciéncia sé é possivel do que é certo, eterno e imutdvel, Somente as ideias so, para Platao, certas, eternas e imutdveis, tendo-se em vista que tudo o mais que se conhece é incerto, perecivel e mutavel. Do que se disse anteriormente, somente aalma logistica é capaz de ciéncia, e esta ciéncia (epistéme) a qual se refere Platao, deriva da contemplacio das ideias perfeitas e imutaveis pelo fildsofo.? 4.2 Virtude e vicio: ordem e desordem Cada parte da alma humana exerce uma fungdo, e estas funcées delimitadas, sincronizadas e direcionadas para seus fins so a causa da ordem e da coordenacao das atividades humanas. Assim, as diversas faculdades humanas estiio dotadas de aptidao para a virtude (areté), uma vez que a virtude é uma exceléncia, ou seja, um aperfeicoamento de uma capacidade ou faculdade humana suscetivel de ser desenvolvida e aprimorada.* O virtuosismo platonico tem a ver, portanto, com 0 dominio das tendéncias irasciveis e concupisciveis humanas, tudo com vistas & supremacia da alma racio- nal. Entao, virtude significa controle, ordem, equilibrio, proporcionalidade..., sendo que as almas irascivel e concupiscente submetem-se aos comandos da alma racio- 1. Af nao hé movimento, nao hd discurso, no h4 pensamento: a ideia encontra-se absorvida em sua plenitude de inteligibilidade,. Assim. “(...) 0 noiis intui ¢ 0 logistico pensa e fala sobre o einai te kai tén ousian através do noiis, assemethando-se aquilo do que fala € pensa (ser € substineia)” (Andrade, 1994, p. 137). Das sombras sensiveis ao imutavel do inteligivel, todo tipo de recurso simbélico humano é eliminado, para que se viskumbre em sua pureza a forma (morphé) sem qualquer interferéncia de elementos da razéo mundana. 2. Assim € que a opiniio ndo € ciéncia, € algo entre o ser e 0 nao ser (Reptiblica 478 4), uma vez que néo se estabelece, stor meio desta, as bases de um conhecimento sélido ¢ sustentvel, permanecendo-se na inconsténcia da aparéncia, na fluidez ins6lita do relativo e particular. Da mesma forma como opiniao nao € ciéncia, opdem-se, também, os sujeitos-artifices da déva da epistéme, ou seja, 0 philodoxos e 0 philosophos, na perspectiva de que o primeiro ianga suas observacées com base no conhecimento empiricamente captado, enquanto 0 segundo constrdi 0 saber sobre a experiéncia contemplativa, que se baseia no conhecimento daquilo que nao é contingente, aa 3. Ba andlise que da tematica faz Chaui: “Embora a psicologia e a ética recebam exposicdes diversas, em todas elas Platdo estabelece uma relaciio precisa entre areté, dynamis, episeéme e téchne, A areté, vimos, & a exceléncia ética, 0 ser bom. Os mitos platOnicos evidenciam que a areté uma dynamis, uma possibilidade ou potencialidade da alma que precisa ser atualizada, Aatualizagao ¢ feita pela téchne como terapia e paidefa. Estas pressupdem a ciéncia, a epistéme, que indica qual é a areté de cada funcdo da alma ~ qual a exceléncia de cada uma delas ~e qual a hierarguia entre essas fungdes. A téchne, isto ¢, a paide(a dialética desfaz os conflicos entre as fungdes da psykhé (sta desordem), fazendo com que cada uma realize sua fungi prépria” {Chauii, Introducdo 4 histéria da filosofia, 1994, v. 1, p. 218). i 114 nal, esta sim soberana. Desse modo, boa sera a conduta que se afinizar com os ditames da razio.* Aharmonia (armonia),? uma vez dominados os instintos ferozes, o descontro- le sexual, a fiiria dos sentimentos... surge como consequéncia natural, permitindo alma fruir da bem-aventuranca dos prazeres espirituais e intelectuais. A ética que deflui da alma racional ¢ exatamente a de estabelecer este controle ¢ equilibrio entre as partes da alma, de modo que 0 todo se administre por forca racional e nao epitimética ou irascivel.* O vicio, ao contrario da virtude, estd onde reina o caos entre as partes da alma, De fato, onde predomina o levante das partes inferiores com relacdo a alma racio- nal, af estd implantado o reino do desgoverno, isso porque ora manda o peito, e suas ordens e mandamentos so torrentes incontrolaveis (dio, rancor, inveja, gandncia...), ora manda a paixao ligada ao baixo ventre (sexualidade, gula...). Entao, buscar a virtude é afastar-se do que é tipicamente valorizado pelos homens, que é o que mais ainda o mantém ligado ao corpo e ao mundo terreno, e procurar o que é valorizado pelos deuses, e que mais o distancia do corpo e do mundo terreno, O homem deve sim buscar identificar-se com 0 que ha de melhor e mais excelente, e nesse sentido deve buscar inspiracdo nas faculdades que ca- racterizam os deuses, 0s mais excelentes dos seres, e ndo os animais. A alma que valoriza a mundanidade acaba por construir em torno de si certa corporalidade, que possui o peso das carnes humanas, ¢ nao a leveza caracteristica dos deuses.4 i 1. “Nao se afirma que uma alma que possui inteligéncia e virtude ¢ boa, ¢ que outra que é infame e corrompida é ma? Nao se afirma com razio? ~ Com toda a razio” (Platao, Fédén, trad., 1999, p. 160) 2, Mas ~ disse Séerates ~ niio vemos agora que a alma faz, exatamente 0 contrério? Que dirige € governa as coisas de que pretende ser composta, resiste a elas no decorrer de quase toda stia existéncia, reprimindo a umas, duramente, pelas dores, como no gindsio, ¢ a medicina tratando a outras com maior docura, contentando-se em ameagar ou reprimir os desejos, os dios, 05 medos, como coisas de natureza distinta a sua? Foi isso que Homero representou tao bem quando, na Odisséia, diz que Ulisses: ‘Golpeando o peito dirigiu-se duramente a set cora¢io: Suporta corac%o! Jé que maiores torturas suportaste’. Crés que Homero teria dito i isto se julgasse que a alma é uma harmonia que deve ser governada pelas paixdes ao corpo? Nao é mais légico que julgasse que a alma deve domind-las ¢ dirigi-ias e que é, enfim, coisa por demais divina para ser comparada com uma simples harmonia? (Platéo, Fédon, trad., 1999, p. 162) 3. Qual a tarefa ética ou moral da alma racional? Dominar as outras duas faculdades, ¢ harmo- nizé-las com a razio” (Chaui, Intraducdo a histdria da filosofia, 1994, v. 1, p. 214). 4, = No entanto, se a alma se afasta do corpo maculada, impura, como se houvesse estado sempre mesclada com ele, até o ponto de julgar servi-io, embriagada pelo corpo, até o ponto de crer que nada existe além do fisico, do que se pode ver, tocar, comer ¢ beber, ou do que se presta aos prazeres do amor, a0 passo que detesta, receia e foge de tudo que € obscure e invisivel, de tudo que é inteligente, crés que essa alma pode, ao separar-se do corpo, ver em si mesma, por si mesma ¢ sem mistura? ~ Nao, nao creio. ~ Ao contrario, conforme penso, sai toda misturada com uma corporalidade que, por ela haver-se habituado com o corpo, parece-lhe intima e natural, porque nunca deixou de viver em comunidade com ela e multiplicou as oportunidades de exercitar-se nisso” (Platio, Fédon, trad., 1999, p. 147). 115 VIRTUDE B TRANSCENDENCIA TICA Lastreado num dos principais ensinamentos de Sdcrates é que Platao erigiu seu sistema, obviamente jd sincretizado com o orfismo e 0 pitagorismo: “.Parece-te, portanto — replicou Sécrates -, que os desejos de um fildsofo nao tém por objeto o corpo e que, ao contrério, trabalha para afastar-se dele dentro do posstvel, a fim de se ocupar apenas de sua alma? ~ Com certeza. ~ Assim, de todas essas coisas que acabamos de falar ~ disse Sécrates =, € evidente que o trabalho do filésofo consiste em se ocupar mais parti- cularmente que os demais homens em afastar sua alma do contato com 0 corpo” (Plato, Fédon, trad., 1999, p. 125). Sacrificar-se pela causa da verdade significa abandonar os desejos do corpo, e fazer da alma o fulcro de conducio da conduta em sie por si. Ao que deve visar o homem, para que sua ética se fortaleca? Ao aprimoramento da alma, e, sobre- tudo, daquela sua parte que se determina a ser a parte que mais faz o homem semelhante aos deuses: a razao. De fato: “Deste princfpio - prosseguiu Sécrates — nfo se segue que os fildsofos precisam pensar e dizer: a razdo deve seguir apenas um caminho em suas investigacSes, enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupsao, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade. Porque © corpo nos oferece mil obstdculos pela necessidade que temos de sustenté-lo, e as enfermidades perturbam nossas investigacées. Em primeiro lugar, nos enche de amores, de desejos, de receios de mil ilusdes e de toda classe de tolices, de modo que nada é mais certo do que aquilo que se diz correntemente: que o corpo nunca nos conduz a algum pensamento sensato. Nao, nunca! Quem faz nascer as guerras, as revoltas e os combates? Nada mais que o corpo com todas as suas paixdes. Com efeito, todas as guerras tém origem apenas no desejo de acumular riquezas, e somos obrigados a acumulé-las pelo corpo, para servi-lo, como escravos, em suas necessidades. Eis 0 motivo de nao termos tempo para pensar em filosofia; e 0 pior é que, quando conseguimos alguns instantes de paz e comecamos a meditar, esse intruso irrompe em meio de nossas investigacdes, nos entorpece, nos perturba € nos impede o discernimento da verdade. Esté demonstrado, ao contrario, que, se desejamos saber realmente alguma coisa, é.preciso que abandonemos 0 corpo e que apenas a alma analise os objetos que deseja conhecer, Somen- te entao usufruiremos da sabedoria pela qual estamos apaixonados, isto é, depois de nossa morte e de maneira alguma no decorrer da vida. Ea propria razao o afirma, j4 que é impossivel conhecer alguma coisa de forma pura, enquanto temos corpo; é preciso que nao se conheca a verdade ou ent&o que se a conheca apés a morte, pois entao a alma se pertencera, livre desse far- do, e nao antes, Enquanto estivermos nesta vida ndé-nos aproximaremos da verdade a nao ser afastando-nos do corpo e tendg.felagio com ele apenas o 1 116 estritamente necessério, sem deixar que nos atinja com sua corrupgao natural, € conservando-nos puros de todas as suas imundicies até que o deus venha nos libertar. Dessa forma, livres da loucura do corpo, conversaremos, como & correto, com homens que usufruirdo a mesma liberdade e conheceremos por nds mesmos a esséncia das coisas, e talvez a verdade nfo seja mais do que isso. Mas tenho grande temor de que aquilo que nfo esteja puro nao possa alcancar a pureza. Aqui est, meu caro Simias, 0 que me parece que 08 verdadeiros filésofos devem pensar e a linguagem que devem usar entre eles. Pensas como eu?” (Plato. Fédon, trad., 1999, p. 127-128). Adotado o modus vivendi virtuoso, o homem tem os deuses a seu favor. Trata-se de um sacrificio que tem suas compensagées sobretudo tendo-se em vista que justos e injustos, bons e maus, virtuosos e viciosos submetem-se ao jul- gamento dos deuses, e se a justica humana é impune para recriminar condutas, e se a ética humana é insuficiente para controlar os desregramentos humanos, existe a continuidade da vida para provar que os que se desigualam dos demais pela virtude terfo suas recompensas, e que os que se desigualam dos demais pelo vicio terdio suas punigdes, Caso contrario, se assim nao fosse, ensina Sécrates, que grande beneficio seria a morte opaca e escura, prenhe de trevas e siléncio, pois daquele que erra apagaria todos os vicios e atrocidades. A mecanica da justica esta a apontar para algo mais além da vida e da morte. Como diz Sécrates: “Existe, contudo — prosseguiu Socrates —, ao menos uma coisa em que seria justo que todos vés refletisseis: se a alma é de fato imortal, se faz ne- cessdrio que zelemos por ela, no sé durante o tempo presente, que deno- minamos viver, mas ao longo de todo o tempo, pois seria grave perigo nao se preocupar com ela, Suponhamos que a morte seja apenas uma completa dissolugao de tudo, Que maravilhosa ventura estaria entao reservada para os maus, que se veriam libertos de seu corpo, de sua alma e de sua propria maldade! Mas, em verdade, uma vez que se tenha demonstrado que a alma é imortal, no haverd escapatéria possivel para ela em face de seus males, exceto que se torne melhor e mais sabia. (...) Entdo, a alma comedida e sabia segue a seu guia de livre e espontanea vontade € nao desconhece a sorte que a espera: mas aquela que esta presa a seu corpo pelas paixdes, como eu dizia anteriormente, permanece por muito tempo ligada a ele e a este mundo visivel, e s6 depois dé haver resistido ¢ sofrido muito é arrastada a forca pelo génio que lhe foi designado. Quando chega a esta reuniao de todas as almas, se ela é impura, se est macuiada por algum assassinato ou qualquer outro crime terrivel, todas as outras almas fogem de sua presenca e lhe demonstram horror; nfo encontra nem com- panheiro nem guia e vaga em completo abandono até que, apés wm certo ‘tempo, a necessidade arrasta-a até o lugar que merece. Mas aquela alma que passou sua vida no comedimento ¢ na pureza tem os préprios deuses por companheiros e guias, e ocupard o lugar que lhe esta destinado, j4 que 14 ha 4 17 lugares maravilhosos e diferentes da Terra, e nao é 0 que imaginam aqueles que tém o habito de fazer descricbes, como jé ouvi algumas” (Plato, Fédon, trad., 1999, p. 178) 3 Idealismo ético e mito de Er O platonismo, ao contrério do que faz o aristotelismo, como se verd adiante,* prima pelo idealismo e no pelo realismo, nao obstante sua obra caminhar paulati- namente em direcdo & maturidade mais realista, o que se nota na diferenca de sua teoria politica entre os textos A reptiblica ¢ As leis. Isso porque o nticleo da teoria platdnica repousa na nogdo de ideia (efdos), que penetra inclusive o entendimento do que seja o bem supremo do homem. A efdos, por distanciada dos mais vulgares desejos e tendéncias humanas realizaveis, inscreve-se, portanto, no quadro das especulagdes humanas, mas jamais das realizagdes humanas, Isso porque a ideia do que seja o Bem Supremo nao pode ser atingida pelo homem, nem realizada concretamente. Enfim, a ideia do Bem que estd a governar todo cosmo (kdsmos) representa a grande prioridade do sistema de Idéias concebido por Plato.” As ideias de ética e de virtude liga-se diretamente a ideia de conhecimento como algo necessirio.® De fato, o platonismo nao nega sua heranga socrética, € faz o conhecimento derivar dos altiplanos do Mundo Ideal. £ por reminiscéncia que se podem recuperar as ideias que estio latentes na alma humana, mas que foram esquecidas pela passagem da alma de sua condigao no Hades para a Terra. Recuperar o conhecimento latente na alma humana é reacender labaredas de vidas precedentes, uma vez que dessas vivéncias anteriores se podem extrair os conceitos primordiais ja aprendidos e efetivamente adquiridos pela alma. Em que consiste a felicidade parece ser um problema comum a ambas as Ethicae (EN ¢ FE), pois tanto numa, como noutta, expéem-se as opinides vulgares acerca da mesma (Eth Nic., 1095 a, 14/1095 b. 13: Fth. Eud. 1214 b, 29/1215 a, 19, para, metodologicamente, superar-se 6 falseamento das premissas endoxoldgicas, das oporias e dos juizos erréneos. “Donde mejor se ve como concebia el esta solucion es en ia Reptiblica, pues toda Ja estructura de esta obra descansa sobre el criterio de que ka idea del bien, el principio primario de todos tos valores, ocupa un lugar predominante en el centro del easupos” Jaeger, Paidéia, 1949, 11, p. 288). De pronto, deve-se dizer que a justica é uma virtude, ¢ liga-se diretamente & virtude a ideia de conhecimento (36 se erra por ignordncia, no lema socrético), de modo que a virtude é algo ensindvel. No entanto, se todo conhecimento somente pode ser dito como tal se se detiver nas Esséncias, ¢ no nas aparéneias, entdo, a justica que se ensina ¢ acerca do que fi e nio do ‘que parece ser; em meio ao duatismo (presente em Tales, Parménides, Herdclito, Anaximenes, Anaximandro, Empédecles) mitoligico mistico flagrante entre Bem (euja causa é Deus e que existe como ideia) e Mat (cuja causa € outra que nao Deus e que inexiste como idei}, a justiga ensindvel é algo que aponta para o Bem. Consulte-se, a respeitb destas impressées, Kelsen, A ilusdo da justiga, 1995, p. 1-7 e 142-182. , __PANORAMA HISTORIC Assim, incumbe a alma logistica a contemplacao da verdadeira Realidade, de onde se extraem os conhecimentos certos e definitivos para serem seguidos pelos homens. Essa questdo é ilustrada pelo Mito da Caverna (Reptiblica, livro V), mas pode ser esclarecida, ainda, a partir do Mito de Er, apresentado em meio a uma exposicio de Sécrates a Glauco sobre arte e técnica, no final livro X do didlogo Reptiblica (525 a-621 d) de Platao.' Anarrativa do mito” detém-se fundamentalmente na figura de Er, guerreiro origindrio da Panfilia (Asia Menor), que, morto em uma batalha, teve seu corpo posteriormente encontrado entre outros cadaveres de guerreiros, mas na espantosa condigao de cadaver sao e integro. Uma vez encontrado, reconduzido a sua patria e velado por doze dias (dwdekataios) (Rep., 614 a), no tiltimo desses doze dias, recobrou a vida e contou aos circunstantes o que havia visto no Hades. A partir de entao, advém seu relato pessoal, tudo narrado por Sécrates, ba- seado nas tradicdes populares a respeito de como seria a vida no Além, contando que, ao deixar 0 corpo, sua alma foi para um lugar maravilhoso, uma grande pradaria, onde se aglomeravam intimeras almas, e onde se avistavam quatro uracos, dois no solo e dois no céu. Os juizes, que ali se encontravam, avistavam 08 justos, e a estes recomendavam seguir a direita e para o céu, por uma das aberturas,® e avistavam, da mesma forma, os injustos, e a estes recomendavam seguir A esquerda e para baixo, por uma das aberturas.* Esses mesmos juizes, que selecionavam os justos e os injustos, recomendaram a Er que nao tomasse nenhuma das direcdes, mas que retornasse ao mundo e servisse de testemunha aos homens do que havia visto ali. De uma das aberturas da terra, conta Er ter visto surgir almas Sujas e em- poeiradas, que contavam sofrimentos e dores, e, pelo contrario, de uma das aber- turas do céu, almas puras, que contavam das maravilhas que haviam visto,* todas vindas de uma longa viagem. Sdcrates, em sua narrativa do relato de Er sobre o supraterreno, insiste em contar apenas 0 essencial a Glauco, atribuindo ainda a Er outras informacées acerca da vida no Além. Assim, as almas injustas pagavam, para cada injustica cometida, dez vezes mais (dekdkis); a duracdo de cada punigao é de cem anos (vida humana); para cada boa acao, na mesma medida, a recompensa é © fato de se abordar um mito nao torna a pesquisa parte de wma panactia figurativa; o mito é tao significative como método, em Plato, como o didlogo e a discussao dialética. De fato: “Por vvezes, abandona a discussio dialética e exprime ideias de acesso dificil por meio do mito. Este encontrava-se na tradigao, servia para embelezar a exposigao ¢ repousar o espirito com sua beleza postica, exprimindo o provavel ou o possivel, mas nao o absolutamente certo, Pensa-se que s6 se empregava nas obras destinadas ao ptiblico, € ndo ao ensino” (Pereira, Estudos de historia da cultura cldssica, 7. ed., 1993, 1». p. 478). 2, Esta narrativa ja foi abordada em outra obra, Consulte-se Bittar, Tearias sobre a justiga: apon- tamentos para a histéria da filosofia. Sao Paulo : Juarez de Oliveira, 2000. 3. “tots mén dikaious keketiein poretiesthai ten eis dextan te kai anw did toti ouranoti” (Rep., 614 °) 4, “toiis dé adikous tén eis aristerén te kai kétw” (Rep., 614 ©). 5. “tds dau ek toit ouranod eupathelas diegetsthai kai théas amechdnous tb kdtlos” (Rep., 615 a). PLATAO: IDEALISMO, VIRTUDE E TRANSCENDENCIA BFICA 9 decuplicada. A narrativa de Er sobre o sistema de punicdes e recompensas baseia-se no testemunho de almas que, além de terem visto coisas feias e padecido coisas ruins, presenciaram grandes criminosos (parricidas, tiranos...) serem impedidos de deixar as entranhas da terra ao tentarem delas sair. Logo em seguida a uma permanéncia de sete dias nessa pradaria, onde tais fatos narracios foram presenciados por Er, as almas dela se deslocaram por quatro dias, caminhando em direciio a uma coluna luminosa, que se vertia em direco ao céu, Ali se avistavam Lachésis (pasado), Clotho (presente) e Atropos (futuro), filhas da Necessidade, responsaveis pelo movimento dos arcos celestes. Apresentando-se, relata Er, diante de Lachésis (futuro), cada alma recebia sua sorte no porvir, e isto tendo-se em vista 0 reencontro préximo com um corpo carnal,! mas tudo nao por intervencdo e responsabilidade da divindade, mas por sua prépria liberdade de escolha (aitia eloménou; Theds analtios) (Rep., 617 € Timeu, 42 d); escolhendo os modelos de vida (td twn biwn paradetgmata) (Rep., 618 a), as almas 0 faziam com base em experiéncias e habitos de vidas anteriores,” selecionando o que melhor thes conviesse num futuro proximo. Nesse sentido, tendo em vista a liberdade de escolha de cada alma, podiam ser escolhidas vidas animais ou humanas;? apés a escolha, cada alma recebia seu deménio, que Thes encaminharia nas dificuldades da vida.‘ Feito isso, o dem6nio de cada alma encarregava-se de conduzir sua pupila diante de Clotho e, em seguida, de Atropos, tornando irrevogavel o destino por ela escolhido livremente, dentro de seu cabedal de responsabilidades e experiéncias anteriores. Em seguida, todas as almas apresentavam-se diante do trono da Necessidade, para, posteriormente, passarem pela grande planicie do Léthes, onde, pela noite, beberiam da agua do rio Amelete, responsavel pelo esquecimento do que viram e vivenciaram. Feito esse ritual, em meio & noite, apds fortes estrondos e relimpagos luminosos, cada alma é conduzida ao local onde renascer4. Er, por sua vez, nao tendo bebido da agua do rio Amelete (responsavel pelo esquecimento das vivéncias anteriores), e tendo recebido a orientagao de retornar ao mundo para contar sua experiéncia no Além, recobrou sua consciéncia, e, tomando novamente posse de seu corpo, que foi retirado de campo em meio aos andrajos de guerra, péde, liberto do adormecimento que acomete todas as almas, trazer seus relatos sobre 0 que seria a responsabilidade de cada qual por seus atos e pelo prdprio destino. Sécrates, entdo, conclui diante de Glduco sua dissertacao sobre o mito, en- cerrando seu didlogo, afirmando que se pode ser feliz, bem como agradar aos deuses, neste mundo, bem como no Além (Rep., 621 d). “arche dlles periédou thnetott génous thanatephérou” (Ibidem, 617 d). “kata synétheian gar tod protérou biow ta polld aireishtai” {Ibidem, 620 a), “wwn te gar pdntwn bious kai dé kai tous anthrwpinous dpantas" {Ibidem, 618 a). “ekeinen dekdstw én eileto daimona” (Ibidem, 620 d). aeNE 1 PANORAMA HISTORICO. 4.4 Etica, justica e metafisica A admissio de uma Realidade (divina) para além da realidade (humana), importa, também, a admissdo de que existe uma Justiga (divina) para além da- quela conhecida e praticada pelos homens. O que é inteligivel, perfeito, absoluto e imutavel pode ser contemplado, ¢ é do resultado dessa atividade contemplativa que se devem extrair os principios ideais para o governo da politefa, tarefa dele- gada ao fildsofo.' Mesmo estando a Idéia da Justica distante dos olhos do comum dos homens, sua presenca se faz sentir desde o momento presente na vida de cada individuo. Existe, para além da ineficaz e relativa justica humana (a mesma que condenou Socrates & morte!), uma Justica, infalivel e absoluta, que governa o kdsmos, e da qual nao se pode furtar qualquer infrator. A justica nao pode ser tratada unica- mente do ponto de vista humano, terreno e transitério; a justiga € questéo meta- fisica, e possui rafzes no Hades (além-vida), onde a doutrina da paga (pena pelo mal; recompensa pelo bem) vige como forma de Justia Universal. O homem justo, por suas razées singulares, participa da ideia do justo e, por isso, é virtuoso. A cosmovisdo platénica, que segue rigorosamente passos pitagéricos, permite a abertura da questo da justica a caminhos mais largos que aqueles tradicio- nalmente trilhados no sentido de se determinar seu conceito. O que a proposta platonica contém é uma reducio dos efeitos racionais da investigagao, e uma maxi- mizacdo dos aspectos metafisicos do tema.’ Nesse sentido, toda alma que perpassa a sombra e a inedgnita da morte encontrard seu julgamento, que sera feito de acordo com os impecaveis mandamentos da Justica. A doutrina da paga no Além dos males causados a outrem, deuses e homens, possti cardter essenciatmente 6rfico-pitagérico,? e é o cere da justica césmica platénica. Aconduta ética e seu regramento possuem raizes no Além (Hades), de modo que © sucesso terreno (homicidas, tiranos, libertinos...) ¢ o insucesso terreno (Sécrates...) no podem representar critérios de mensurabilidade do cardter de um homem (se justo ou se injusto). No reino das aparéncias (mundo terreno, 1, Onde o filésofo platénico governa no so necessatias les, pois sua vontade é a vontade do Estado; as leis somente aparecem como um paliativo, como uma akernativa vidvel para a falta de um verdadeiro homem sibio. Nesse caso, as leis no devem e ndo podem ser desobedecidas er hi- pétese alguma, como se afirma no Politico, 300 (Kelsen, A ilusiio da justi¢a, 1995, p. 498-503). », Assim, ocorre que a nocdo de justica funcionaliza-se, de modo que seja feita parte de uma ordem de coisas muito maior: sua importéncia como maximo valor humano diminui a medida que a investigagdo evolui em seus aspectos metatisicos e cranscendentes. De fato, a Justica participa lo Bem, Ideia Maior que tudo ordena, e para o que tudo teleologicamente se direciona, ou sea, da Ideia que congrega todas as demais virtudes (Amizade, Coragem, Amor...). A prdpria paga no Além € somente meio para a realizagao do Bem Supremo, como se pode inferir do texto da Repiiblica: A respeito, consulte-se tbidem, 1995, p. 447-448. 3. Consulte-se, a respeito do misticismo platdnico: Comford, Mysticism and science in the pytha- gorean tradition. In: The pre-socratics: a collection of critical essays, 1974, p. 135-160. ; ____PLATAo; IDEALISMO, VIRTUDE & TRANSCENDENCIA ETICA cant sensivel), 0 que parece ser justo, em verdade, nao o &; 0 que parece ser injusto, em verdade, nao 0 é. A inversiio ético-valorativa operada por Plato! faz com que todo o equilibrio das relacdes humanas baseie-se em critérios palpaveis, acessiveis aos sentidos, passiveis de serem discutidos pela opinitio (déxa); 0 que ha é que se cria uma expectativa de justica, somente realizavel no Além apesar de, por vezes, imedia- tizar-se na vida terrena. Nos textos do Gérgias, das Leis, da Repiblica, a retribuicéo aparece como a forma providencial de justica césmica. Nas Leis, sobretudo, a ordem do mundo é dada pela justica retributive (Leis, 903).? Esta ¢ infalivel.? O melhor & alma que se separa do corpo é nada dever a ninguém, pois aquele que algo dever, ainda que se esconda (Leis, 905) sob a justica encaminhada pela providéncia divina, havera de sucumbir. De fato, a retribuicdo ¢ 0 modo de justica metafisica (Reptiblica, 613), que ocorre desde o aqui e também no Além. A justica agrada a Deus, ea injustica o desagrada; mais que isso, a justica é causa de bem para aquele que a pratica, e causa de mal para aquele que a trans- gride.* Passam a direita e para cima de Deus as almas que se destinam a fruir os gozos celestes, e passam a esquerda e para baixo de Deus as almas destinadas ao cumprimento de penas;’ as almas cumprem seus ciclos num longo periodo de provas, durante 0 qual permanecem indo e vindo entre duas tealidades. ‘Yoda alma que retorna de seu ciclo tem o direito de escolher, diante de trés moiras, a sorte que deseja cursar, em um vasto leque de opgGes, podendo optar por profissdes e posic&es sociais as mais variadas, levando-se em conta as aptidées que JA possui e que ja adquiriu em vivéncias passadas; logo em seguida, submete-se a alma a beber a dgua do rio Ameles para o esquecimento do que viu e posterior renascimento.* O préprio renascimento, momento de unido do corpo com a alma, Plato nao dé grandes garantias acerca do destino dos justos nesta vida - embora ele tenha a certe~ za de que os deuses os nao esquecerao (Rep. 6132-b; comparar Leis X, 899¢-900b) ~, mas é na vida fiutura que a justiga recebe a’sua recompensa suprema, tal como é descrito em termos ardentes no ‘Mito de Be in Reptblica X” (Peters, Termos flaséficos gregos, 1983, p. 55, verbete dike). 2. “Enquanto identifica justiga com retribuicdo, Platdo no apenas assume a doutrina érfico- pitagérica, mas aceita uma visio do povo grego que vem da Antiguidade” (Kelsen, 0 que é justica? 1998, p. 99). Cf. Op. cit, p. 325-327. . 4. O castigo corrige, emenda, ensina; é a tinica forma de corregid'tto incorreto: também a intimi- dacio metalisica {temeridade pelo futuro no Hades) é aliada da correco e educagio das almas. Ver a esse respeito as consideracdes acerca da pedagogia penal de Platiio no texto A ilusdo da Justiga, de H. Kelsen, 1995, p. 305-310. 5. Fsté-se a utilizar da palavra Deus (Théos), no contexto dos estudos da Reptiblica, mas ha que se ressaltar que a presenca de Deus é muito mais sensivel nas obras posteriores a Replica. Nestas, Plato parece assumir todas as consequéncias diretas e¢ indiretas do uso do termo Deus, como principio e causa do existente, em sua reflexao. Esta é a opinido de Jaeger, Op. cit. p. 289. Daia ideia fundamental da doutrina platonica de que a concep¢ao.de justica ¢ inata ao homem quando de seu nascimento, pois conheceu 0 que é 0 justo e 0, injusto no Além, disto tendo-se » ' 122 PANORAMA HISTORICO que estd presa como a um cdrcere aquele, significa a justia em funcionamento, mecanismo que responsabiliza cada alma por sua conduta aqui e no Além.* A conclusao nao é outra senao a de que nao se pode ser justo ou injusto somente para esta vida, pois se a alma preexiste ao corpo, é porque também subsiste A vida carnal, de modo que ao justo cabera o melhor e ao injusto o pior, Aqui residem esporos da doutrina érfico-pitagérica e de um dualismo escatolégi- co. Ao justo, a Ilha dos bem-aventurados; ao injusto, 0 Tértaro (Gérgias, 447).# Nesse sentido, o mecanismo é implacdvel, pois toda alma compareceré diante de um tribunal, que sentenciaré os acertos e os erros, determinando o fim de cada qual no Além.? 4.5 Etica, alma e ordem politica A ordem politica platénica estrutura-se como uma necessidade para a realiza- co da justica, um imperativo para o convivio social,* onde governados obedecem e governantes ordenam.* E, nesta ordem, onde uns obedecem e outros ordenam, deve haver uma cooperacdo entre as partes para que se realize a justica. Aalma tripartite, cuja estrutura é dada pelo Fédon, é feita paradigma funcio- nal para a explicacao da estrutura do proprio Estado (Rep., 368 ss), em que a razao deve imperar sobre a paixdo, sob pena de o cocheiro nao conseguir corri- gir 0 curso da alma desgarrada pelos instintos, como narrado no Fedro, 246. A divistio do trabalho é a regra de justica no Estado Ideal; trés classes dividem-se em trés atividades (politica; defesa; economia), nao podendo haver intérferéncia de uma classe na atividade da outra (Rep., 592); a interferéncia representa a injustica,® pois cada classe corresponde a uma parte da alma, e a alma racional, aliada a epitimética, deve governar. Nesse sentido, a justica na cidade é ordem; a desordem é sindnimo de injustica.’ A justica é a satide do corpo social, pois onde esquecido transitoriamente, cabendo ao fildsofo, por mai€atica, trazer & tona esse conhecimento previamente adquirido, reavivando apenas o que j4 se conhece por experiéncias anteriores, Cf. Kelsen, A ilusio da justica, 1995, p. 315-323. Essa mesma reflexdo reaparece no comego e no fim da Reptiblica, CE. Op. cit. p. 300-304. ’ Para que se percebam de mais perto as nuances que est4o a governar 0 cosmo, a cidade e 0 homem, leia-se, obrigatoriamente, Rachel Gazolla de Andrade, Plato: 0 cosmo, 0 homem € a cidade, 1994, onde se encontrard excelente andlise da teoria platénica. Cf. Kelsen, A ilustio da justiga, 1995, p. 238-241. Cf. Ibidem, p. 462 “La justicia, en efecto, fa justicia en la ciudad, consiste simplemente en que cada una de las clases sociales que hemos dicho, 0 mas concretamente los hombres a ellas pertenecientes, hagan io que les corresponde: ios guardianes, que gobiernen: fos soldados, que combatan y los de la clase econémicamente productiva, que produzcan” (Robledo, Platén: los seis grandes temas de su filosofia, 1993, p. 559). ReRe sow 10, VIRTUDE E TRANSCENDENCIA BTICA cada um cumpre o que lhe é dado fazer, o todo beneficia-se dessa complementa- ridade. © Estado Ideal platénico descrito sistematicamente na Reptiblica é apenas meio para a realizagao da justiga.| De fato, porém, esse Estado nao existe na Terra, e sim no Além, como modelo a se inspirar (Rep., 592). Nesse Estado, a Constituicao (politefa) é apenas instrumento da justia, pois estabelece uma ordem juridica. De qualquer forma, para Plato, o Estado Ideal deve ser liderado nao por muitos (democracia), uma vez que a multidao nao sabe governar? mas por um tinico (teoeracia), 0 fildsofo, o sabio, pois este contemplou a Verdade, e esta apto a realizd-la socialmente. Aqui, poder e filosofia (platénica) aliam-se. Conclusées A ética platénica destina-se a elucidar que a ética nao se esgota na simples localizacao da acéo virtuosa e de seu discernimento com relagio & aco viciosa. De suas principais figuras textuais, de seus principais mitos, podem-se inferir licdes que fazem a alma orientar-se de acordo com padrées de conduta ditados com base na nocio de Bem. Se sua natureza é metafisica, também a natureza da verdadeira e definitiva justiga sera metafisica, Ao se moldar a conduta de acordo com estes reclamos, estara, definitivamente, a alma a orientar-se de acordo com 0 Bem; ao desviar-se destes, estard, literalmente, deixando o barco ser guiado pela correnteza e nfo pelo timoneiro. No controle das outras partes da alma pela alma racional reside a harmonia da virtude; no descontrole, 0 vicio. De qualquer forma, a educac&o (paidéia) da alma tem por finalidade des- tinar a alma ao pedagogo universal, ao Bem Absoluto. No mundo, a tarefa de educacdo das almas, para Platao, deve ser levada a cabo pelo Estado, que mono- poliza, no didlogo da Repuiblica, a vida do cidadao. A educacao deve ser piblica, com vistas no melhor aproveitamento do cidadio pelo Estado e do Estado pelo cidadao. Assim, justica, ética e politica movimentam-se, no sistema plat6nico, ‘num sé ritmo, sob a melodia de uma tinica e definitiva sonata, cujas notas séo as ideias metafisicas que derivam da Idéia primordial do Bem. Tamanho idealismo filoséfico haveria de produzir condigées favoraveis para o desenvolvimento de uma corrente de pensamento igualmente contundente, mas profundamente empirica: o aristotelismo. “ C£. Kelsen, A ilusdo da jeestipa, 1995, p. 453-457. Cf. Ibidem, p. 458. A respelto do problema da educacao predominantemente pitblica em Platéo, comenta-se: “En realidad, la creacién de un sistema completo de educacién elemental, considerado como la paideia de} pueblo y como base de la alta educacién de que se habla ocupado en sus obras, anteriores, constituye tina de fas mds audaces innovaciones de Platén, digna de este gran genio educativo” (Jaeger, Paidéia, IH, 1949, p. 318). eur '

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