Anda di halaman 1dari 7

As bases da criação

GÉNESE

Por muito que disfarçassem, consideravam-no um


monstro e (pior que isso) um incapaz. A atenção, a
deferência recebida não era mais que uma capa grosseira
para a convicção mal disfarçada, enraizada na mente de
todos: aquele seria sem dúvida um ser inferior, um erro
da natureza.

Qualquer medição das concretizações nos testes


revelava a verdade nua e crua: não conseguia estar à
altura dos companheiros. O corpo frágil na morfologia
peculiar – constituída pelo tronco, cabeça e pares de
membros (inferiores e superiores) - nunca lho permitiria.

Os progenitores foram convocados várias vezes para


reuniões de esclarecimento e a expectativa da escola era
que com a educação e acompanhamento apropriados, o
ser (era assim que o tratavam) acabaria por mudar.
Adaptar-se ia e assumiria gradualmente comportamentos
mais consentâneos, com padrões sociais não patológicos.
No entanto, passaram-se anos e o SER foi crescendo sem
que tivesse ganho tais características. Era sonhador, um
idealista por vezes taciturno e sempre, sempre
incompreendido.

1
Quando fez dezoito anos, os pais intercederam e
mediante conhecimentos e favores devidos, moveram as
influências necessárias. A acção de amigos de amigos bem
colocados conseguiu-lhe o emprego onde serviria como
funcionário público no quinto andar de um edifício
decrépito: o número treze da Rua das Gáveas, mesmo
junto a alguns dos restaurantes de Fado mais apreciados.

A DESCOBERTA DE SI PRÓPRIO

O primeiro dia foi pacífico e ficou a conhecer a malta


lá da repartição

“Isto até é fácil. Não é a trabalheira que parece, pá”


trauteava o Antunes - alentejano magricelas e de bigode
quase tão negro como o do Vitorino.

“O pior é quando o chefe Pereira dá nos azeites. Mas


a gente finge que é moco, que não ouve, damos-lhe um
desconto…” continuava o bom do Vitorino, preocupado
em instruir o neófito nas lides da casa.

E ele concordava, a tudo anuía silenciosamente. Ora


apresentava o polegar erguido em sinal de assentimento
ora fazia os gestos curtos mas veniais com a cabeça.

Meio-dia em ponto, levaram-no a almoçar à tasca do


Silva e como era quarta-feira (dia de cozido) foram-se a

2
excessos. Vieram de lá bem atestados, com vontade para
fazer a sesta e muito, mas muito avessos ao trabalho!

As coisas não corriam mal até aquele dia em que saiu


para jantar fora, beber umas quantas e ouvir “blues”. Na
sala escura do bar, mesas baixas e cufos vermelhos
acomodavam confortavelmente os vários clientes e ao
canto, guitarra, bateria e sintetizador esforçavam-se para
acompanhar os berros da vocalista – uma miudinha de
cabelo oxigenado decididamente pouco madura para fazer
de Betty Smith

There ain't nothing I can do, or nothing I can say


That folks don't criticize me

E a gaja continuava…

But I'm goin' to, do just as I want to anyway


And don't care if they all despise me

Pensou como seria bom que ela se calasse por uns


instantes. Talvez por brincadeira, puxou do bloco de notas
e desenhou-a muda, com uma fita grossa a tapar a boca e
bem amarrada a uma das colunas de modo a não poder
dançar. O pandemónio que aconteceu depois - viu como
por magia serem executados os seus desejos, a realidade
moldando-se aos seus desenhos - deu-lhe certezas quanto
ao desígnio que lhe cabia. Soube então que todas as
tentativas para o demover seriam inúteis.

3
CONFLITOS

O cabelo esbranquiçou completamente e deixou


crescer a barba, uma barba branca e farta, de pelos
fininhos, que lhe tapava quase totalmente o pescoço.
Desinteressou-se completamente dos temas de conversa
habituais. Se lhe falavam do Benfica, retorquia “Terra”. Se
lhe falavam de mulheres, mostrava enfado e respondia
“Génese”. Se o interpelavam sobre política então fazia
cara feia e proferia enfaticamente “Paz e Bem”. As coisas
pioraram quando trouxe a bola para o escritório e o
desgraçado do Antunes caiu na asneira de dizer

“É pá. Deixa cá ver essa bola para eu dar um chuto


como o Cristiano Ronaldo”

Virou-se para o outro fuzilando-o com o olhar. Disse


qualquer coisa esquisita de que já não me lembro bem. Só
sei que o pobre do alentejano virou-se e, rabo entre as
pernas, enfiou-se atrás da secretária. Nessa tarde nem
daria mais um pio.

No dia seguinte apareceu túnica e sandálias,


passando o tempo todo (manhã toda) a rabiscar e a
distribuir os papéis com desenhos esquisitos. Disse que
tinha descoberto algo de novo, que sabia fazer uma coisa
até ali nunca vista e à qual deu o nome “Criar”.

“E como é que funciona isso de criar?” perguntou o


Benevides, cheio de manha, com esperteza beirã.

4
“É simples” respondeu. “Imagina uma coisa que não
existe. Pois bem… a gente vem e faz com que exista.
Depois dizemos à coisa que fomos nós que fizemos isso –
que a criámos”

O outro não parecia lá muito convencido e


argumentou enfaticamente “É pá. Deixa-te disso que a
gente aqui é funcionário e não tem de fazer existir o que
não existe. Temos é que fazer existir o que existe,
entendes? Passar carimbo…”

E arrematou, matando definitivamente a conversa


“Além disso, o que é que ganhas com isso de criar? Serve
para alguma coisa? “

INTERNAMENTO

Iam-lhe aturando as madurezas e suportando todas


as incongruências, manias e obsessões até que chegou o
dia em que foi o atingido o limite, caiu a gota de água que
fez transbordar repentinamente o copo. Parece que uma
das criações mais exóticas – o pequeno casal de “quase
nudistas” - foi-se à maçã raineta que o chefe Pereira
reservava para comer à hora do lanche. O desgraçado,
quando lhe deu a fome, procurou, procurou e nada…

Nessa mesma tarde, chamaram a equipa constituída


pelo psiquiatra e dois paramédicos. O Deus (João de Deus)

5
ainda gritou pela bola que nem um desalmado. Pela Jóia.
A sua jóia. Que sem ela – foco de todo o seu carinho e
atenção - a vida de nada valia. Mas em vão. Não lhe
ligaram nenhuma.

Amarraram-no e foi levado na ambulância velha azul


e branca cujo cilindro de luz às voltas, sem descanso,
identificava gravidade do caso e urgência para o
transporte.

Objecto amado, a jóia, a bola azul da qual nunca se


separava, foi colocada em cima do tampo da mesa, sem
qualquer cuidado, mesmo ao lado do pisa-papéis. E ali
ficaria, esquecida e só, por vários dias. Até que chegou o
substituto.

O substituto era um gajo da Buraca, baixo e


atarracado, adepto fanático do FCPê. Sopinha de massa,
metia “xis” em tudo o que pegava: “Xou xim! Xim Xenhor,
já xtá o que me mandou. Ah… ora essa, não xateia nada, a
xente xtá cá é pra ixo…”. O Benevides quando queria
entrar com ele, perguntava-lhe sempre como é que se
escrevia chato, ser era com Xis ou cê e agá.

Quando o gajo viu a jóia, a bola, disse logo

“Atão vomexês tinham aqui o esférico e não me


diziam nada?”

E, ainda falando, pegou na coisa com as duas mãos e


deu-lhe um chuto forte. Mesmo forte…

6
O DESTINO DA JÓIA

A pequena bola azul foi aumentando gradualmente


de velocidade e, em aceleração contínua, veria passar
veloz a Proxima Centauri. Pouco depois chegaria ao
sistema planetário, a esse sistema que chamamos “solar”
onde ocuparia posição vogando em elipse imaginária (a
terceira). Frustrados que estavam por falta de
oportunidade (má sorte o casal ter comido a fruta) os
planos de criação, sobraram apenas as bases, sementes
rudes, imperceptíveis. E sendo assim, restava à bola
permanecer bailando em torno do astro rei e esperar
muito tempo - quase uma eternidade. Porque enquanto a
criação é rápida e normalmente consiste em acto decidido
e espontâneo, evoluir é bem mais complexo e exige
decididamente muito mais tempo.

Anda mungkin juga menyukai