Incluindo o narrador, os personagens aqui se identificam com seus
prprios papis sociais: a me, a irm, a ex-mulher, o cunhado. As situaes se alternam, tumultuosas, como numa mascarada trgica. Tenso, o espao compartimentado; distribui-se em seces fechadas: apartamentos, prdios, condomnios privados e um stio, lugar da infncia degradada do narrador, por onde entra no inferno do contrabando e do trfico das drogas. O tempo no flui; varia segundo as idades dos prdios. Estamos num presente alucinatrio, que ondeia entre sonho e viglia. Feito imagem de suas relaes com os outros e por essas relaes esvaziado, o personagem narrador relata a sua existncia fantasmal; a explcita diferena entre o real e o fantstico exigir-lhe-ia um Eu pessoal que no tem. Estorvo o relato exemplar de uma falha, de uma vertigem, de uma depossesso. Exemplar tambm quanto forma - mais forma de novela do que de romance - Estorvo uma narrativa a galope solto, num ritmo de suspense; sua temporalidade prpria, carregando o tempo fixo, espacializado, recorrente, das coisas e situaes, o andamento gil, mas numa chave onrica, obsessiva, que impossibilita, apesar das repetidas referncias do narrador sua infncia, o reencontro do tempo perdido. Assim o passado do narrador se anula, seu futuro a expectativa do pior, e a procura de si mesmo, um movimento inconseqente, marcha voluntria para o suicdio-assassinato. Outra particularidade formal desse relato, em correspondncia com o andamento gil, lesto, frentico, a causalidade do imaginrio, anulando a causalidade natural. Em vrios momentos, o narrador no sabe (e o leitor com ele) se conta o que lhe aconteceu ou aquilo que imagina ter-lhe acontecido. Sonhamos a nossa realidade ou realizamos os nossos sonhos? De qualquer forma, a realidade, muito nossa - de uma poca, de uma gerao, de um pas - que Estorvo configura, a realidade de um sonho mau, de um demorado pesadelo.
A fico de Chico Buarque transporta o peso desse pesadelo. Antes
de ser novela ou romance uma esplndida e angustiante parbola.