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LUGAR COMUM N°1344, p. 147-159 Que "negro" é esse na cultura popular negra?* Stuart Hall Comego com uma pergunta: que tipo de momento € este em que se coloca a questao da cultura negra de massa? Esses momentos sAo sempre conjunturais. Eles tém sua especificidade hist6rica; e embora sempre exibam semelhangas e continuidades com outros momentos nos quais surge uma questo como esta, eles nunca so 0 mesmo momento. E a combinagao do que é similar com o que é diferente define nao somente a especificidade do momento mas também a especificidade da questao, definindo, portanto, as estratégias de politicas culturais com as quais tentamos intervir na cultura de massa e a forma ¢ 0 estilo da teoria e critica cultural que precisa acompanhar tal combinagao. No seu importante ensaio "The new cultural politics of difference"? Cornel West propde uma. genealogia do que é este momento, uma genealogia do presente que considero brilhantemente precisa ¢ esclarecedora. Sua genealogia segue, até certo ponto, posicdes que tentei esbocar em um artigo de telativa notoriedade’ e, além disso, insere proveitosamente este momento no contexto americano, também relacionando-o com as tradigées filos6ficas cognitivas ¢ individuais com as quais este dialoga Segundo West, o momento, este momento, possui trés coordenadas gerais. A primeira é 0 deslocamento de modelos europeus de alta cultura, da Europa como sujeito universal da cultura, e da prépria cultura, em sua velha leitura Arnoldiana, como 0 tiltimo reftigio, quase diria, de patifes, mas ndo vou "What is this ‘black’ in black popular culture?”. In: Gina Dent (org.). Seattle: Bay Press, 1992. (Também se encontra em: David Morley ¢ Kuan-Hsing Chen (org.), Stuart Hall: Critical dialogues in cultural studies. Londres, Nova York: Routledge, 1996.) > Corel West, "The new cultural politics of difference". In: Russell Ferguson et al. (org.), Our There: Marginalization and Contemporary Cultures. Cambridge: MIT Press/New Museum of Contemporary Art, 1990, p.19-36. * Stuart Hall, "New ethnicities”. In: Kobena Mercer (org.), Black Film/British Cinema, ICA Docuent, Londres: Institute of Contemporary Arts, 1988, p. 27-31. 148 Ml QUE “NEGRO” € ESSE NA CULTURA POPULAR NEGRA? dizer de quem é. Pelo menos sabemos a quem este resistia - cultura contra os barbaros, contra 0 povo que se agitava nos portdes, enquanto a prosa indelével de anarquia fluia da pena de Arnold. A segunda coordenada é a emergéncia dos EUA como uma poténcia mundial e, conseqiientemente, centro de produgio e circulagao da cultura global. Esta emergéncia é simultaneamente um desloca- mento ¢ uma alteragdo hegeménica na definigdo de cultura - um movimento que vai da alta cultura a cultura americana consumida pela maioria e suas formas de cultura de massa, tecnolégicas e mediadas pela imagem. A terceira coordenada € a descolonizagao do Terceiro Mundo, marcada culturalmente pela emergéncia das sensibilidades descolonizadas. Eu entendo a descolonizagao do Terceiro Mundo no sentido proposto por Franz Fanon: incluo af 0 impacto de direitos civis e lutas negras na descolonizacao de mentes de povos da didspora negra. Gostaria de acrescentar alguns detalhes para este quadro geral, detalhes que, a meu ver, tornam este presente momento um momento peculiar para propor a questo acerca da cultura negra de massa. Primeiramente, eu recordo a vocés as ambigilidades daquele deslocamento da Europa para a América, uma vez que ele inclui a ambivalente relagao dos EUA com a alta cultura européia, e a ambigiiidade da relago dos EUA com suas préprias hierarquias étnicas internas. Até ha pouco, a Europa Ocidental nao tinha qualquer tipo de etnicidade. Ou nao reconhecia que o tinha. Os BUA sempre tiveram uma série de etnicidades, e, por isso, a construgdo de hierarquias étnicas sempre definiu suas politicas culturais. E, claro, ha o fato da cultura popular ou de massa em si, a qual encerra com ela, quer silenciadas quer nao, as tradigdes vernaculares da cultura negra popular ameri sana. Talvez seja dificil lembrar que, vista de fora dos BUA, a cultura de massa americana sempre envolveu certas tradigdes que s6 so atribuiveis as tradigdes da cultura negra popular. O segundo detalhe concerne & natureza do perfodo de globalizagao cultural agora em processo. Eu detesto 0 termo "pés-moderno global", um significante tao vazio e deslizante que pode ser entendido como qualquer coisa. Os negros estamos, certamente, numa relagao tao ambigua com 0 pés-modernismo quanto estdvamos com 0 alto modernismo: mesmo quando despojado de sua procedéncia no marxismo desencantado ou na intelectua-lidade francesa e reduzido a um status descritivo mais modesto, 0 pés-modernismo continua a desenvolver-se Stuart Hall 149 de forma extremamente desigual, como um fendmeno no qual o antigo centro- periferia da alta modernidade reaparece consistentemente. Os tinicos lugares que podem experienciar genuinamente a culindria étnica pés-moderna so Manhattan e Londres, nao Calcuta, e mesmo assim é impossivel rejeitar inteiramente 0 "pés- modemo global", na medida em que ele registra certas mudangas estilisticas no que eu quero chamar de a dominante cultural. Mesmo que 0 p6s-modernismo mas somente modernismo nas rua: nao seja uma nova época cultural, so, em si, representa uma importante mudanga no terreno da cultura rumo ao popular - rumo a praticas populares, narrativas cotidianas, narrativas locais, descentramento de velhas hierarquias e de grandes narrativas. Este descentramento ou deslocamento abre 0 caminho para novos espagos de contestagao e causa uma importante mudanga na alta cultura das relagdes culturais populares, apresentando-se, desse modo, como uma estratégica e importante oportunidade para a intervencao na esfera cultural popular. Em terceiro lugar, devemos ter em mente a profunda e ambivalente fascinagiio do pés-modemnismo para com as diferengas sexuais, raciais, culturais, e, sobretudo, étnicas. Em completa oposi io 4 cegueira e hostilidade evidenciadas pela alta cultura européia, de modo geral, quanto a diferenga étnica - sua incapacidade até de falar em etnicidade quando esta estava inscrevendo seus efeitos tao mani- festamente -, no hd nada que 0 p6s-modernismo global mais adore do que um determinado tipo de diferenga: um toque de etnicidade, um “sabor" do exético, e, como dizemos em inglés, "a bit of other" (fala que no Reino Unido possui nio sé uma conotagao étnica como também sexual). Em seu ensaio "Modernismo, pés-modernismo e o problema do visual na cultura afro-americana",‘ Michele Wallace acertou ao indagar se esta reapari¢o de uma proliferagao da diferenga, de um certo tipo de ascensao do pés-moderno global, nao é uma repetigao daquele “esconde-esconde" - um jogo que 0 modernismo jogava com o primi- tivismo - e ao inquirir se este jogo nao é novamente realizado as custas do vasto silenciamento acerca da fascinag&o ocidental para com os corpos de homens e mulheres negros e de outras etnias. Devemos perguntar acerca deste siléncio * Michele Wallace, "Modernism, postmodemism and the problem of the visual in Afro-American culture”, In: Russell Ferguson et al. (org.),op.cit..p. 39-50. 150 QUE “NEGRO” £ ESSE NA CULTURA POPULAR NEGRA? continuado no terreno movedigo do pés-modemismo, e se as formas de autorizagao do olhar aque esta proliferagao da diferenga convidae permite a0 mesmo tempo que se desconhecem nao estao, realmente, junto com a Benetton e a miscelanea de mod- clos masculinos de The Face: um tipo de diferenca que nao faz diferenga alguma. Hal Foster escreve - Wallace o cita em seu ensaio: "O primitivo é um problema moderno, uma crise na identidade cultural" $ por isso a construgao modernista do primitivismo, 0 reconhecimento e o desconhecimento fetichistas da diferenca primitiva. Mas esta resolugdo é somente uma repressao; 0 primitivo, protelado dentro da nossa inconsciéncia politica, retorna estranhamente no momento de seu aparente eclipse politico. Esta ruptura do primitivismo, administrada pelo modernismo, torna-se um outro evento pés-moderno. Esta administracao é certamente evidente na diferenga que talvez nado faga diferenga alguma e que marca o aparecimento ambiguo da etnicidade no coragao do pés- modernismo global. Mas nao pode ser s6 isso, pois naio podemos esquecer como a vida cultural, sobretudo no Ocidente e também alhures, tem sido transformada, em no: s existéncias, pelas enunciagdes das margens. Dentro da cultura, as margens, embora continuem periféricas, nunca foram um espago tao produtivo como 0 sao hoje, o que nao se dé simplesmente pela abertura dentro da dominante dos espagos que podem ser ocupados pelos de fora. E também 0 resultado de politicas culturais da diferenga, de lutas em torno da diferenga, da produgao de novas identidades ¢ do aparecimento de novos sujeitos na cena politica e cultural. Isso é vélido nao somente com relago a raga, mas também diz respeito a outras etnicidades marginalizadas, assim como em toro do feminismo e das politicas sexuais no movimento de gays ¢ Iésbicas, que é resultado de um novo tipo de politicas culturais. Eu néo quero sugerir, é Sbvio, que podemos contrapor & eterna histéria de nossa propria marginalizagao alguma sensagao confortavel de vit6rias conseguidas - estou cansado dessas duas grandes e paralelas contranarrativas. Permanecer dentro delas € cair na armadilha da eterna divisao ou/ou, ou vitéria total ou total incorporagiio, a qual quase nunca acontece em politi ulturais, mas com a qual as criticas culturais reconfortam-se a si mesmas. * Hal Foster. Recodings: Art, Spectacle and Cultural Politics. Port Townsend, Washington: Bay Press, 1985, p. 204, Stuart Hall m 151. O que nés estamos tratando diz respeito a luta pela hegemonia cultural que est, nestes dias, empreendida tanto na cultura de massa quanto em qualquer outro lugar. Aquela distingao erudito/popular é precisamente 0 que 0 pés-modemo global esta deslocando. A hegemonia cultural nunca diz respeito a vit6ria pura ow a pura dominagao (nao € 0 que o termo significa); nao é nunca um jogo cultural de inversdes; 6 sempre sobre 0 mutéyvel balango do poder nas relagdes de cultura; trata-se sempre de mudangas nas disposigdes ¢ configuragdes do poder cultural das quais ndo se pode fugir. Existe uma atitude do tipo "nada muda, o sistema sempre vence”, a qual eu leio como aum cinico inv6lucro protetor que, sinto dizer, os criticos culturais americanos freqiientemente utilizam. Um invélucro que, algumas vezes, os impede de desenvolverem estratégias culturais que podem fazer realmente uma diferenga. E como se, para protegerem a si mesmos de uma derrota ocasional, eles fingissem que tudo lhes fosse transparente e sempre igual. Agora vamos ao que me interessa: as estratégias culturais que podem fazer alguma diferenga e que podem mudar as disposiges do poder. Reconhego que os espagos "ganhos" para a diferenca sao poucos e dispersos, meticulosamente policiados regulados. Eu acredito que sejam limitados. Sei, as minhas préprias custas, que eles so absurdamente subfinanciados, que existe sempre um prego de incorporagio a ser pago quando a ponta de langa da diferenga e da transgressao & desviada para a espetacularizacao. Eu sei que 0 que substitui a invisibilidade é um tipo de visibilidade segregada que é cuidadosamente regulada. Mas simplesmente apelidé-la de “o mesmo" no adianta Deprecié-la desse modo reflete meramente © modelo especffico de politicas culturais ao qual continuamos apegados, precisamente um jogo de inversdo - nosso modelo substituindo 0 modelo deles, nossas identidades em lugar das suas - a que Antonio Gramsci chamava de cultura como "guerra de manobra" de uma yez por todas, quando, de fato, 0 tinico jogo no pedago que vale a pena jogar é o das "guerras culturais de posigao”. Antes que vocés pensem, parafraseando Gramsci, que meu otimismo da vontade terd agora ultrapassado completamente 0 meu pessimismo do intelecto, deixem-me acrescentar um quarto elemento que comente o atual momento. Se © pés-moderno global representa unia abertura ambjgua para a diferenca e para as margens, e faz com que um certo tipo de descentramento da narrativa ocidental se torne uma grande possibilidade, ele é confrontado por uma reagao que ver 152 Ml QUE “NEGRO” € ESSE NA CULTURA POPULAR NEGRA? desde © coragiio das politicas culturais: a resisténcia agressiva a diferenga; a tentativa de restaurar 0 cAnone da civilizacao ocidental; o ataque direto e indireto ao multi- culturalismo; 0 retorno as grandes narrativas da historia, da lingua e da literatura (os trés grandes pilares de sustentagao da identidade e cultura nacionais); defesa do absolutismo étnico, de um racismo cultural que tem marcado as eras Thatcher e Reagan; e as novas xenofobias que esto para subjugar a Europa. A Ultima coisa a fazer é ler-me como se eu estivesse dizendo que a dialética cultural acabou. Parte do problema € que temos esquecido que tipo de espaco 0 da cultura de massa. Ea cultura negra de massa nao esta isenta dessa dialética, que é histérica, endo uma questao de mé-fé. Conseqiientemente, € necessario desconstruir o popular te. de uma vez por todas. Nao h4 como retornar a uma visao ingénua do que ele cor A cultura popular carrega esta ressonancia afirmativa por causa da proeminéncia da palavra "popular". E, em certo sentido, a cultura popular tem sempre sua base em experiéncias, prazeres, memérias ¢ tradigdes do povo. Ela se conecta a expectativas e aspiragées locais, tragédias locais e cendrios locais que sao praticas e experiéncias cotidianas de pessoas comuns. Desse modo, ela se liga aquilo que Bakhtin chama de "o vulgar" - 0 popular, o informal, 0 lado baixo, 0 grotesco -, eis porque sempre foi contraposta a alta cultura ou cultura de elite, e é, assim, um local de tradigdes alternativas, sendo esse o motivo pelo qual a tradigdo dominante sempre teve profundas suspeitas a seu respeito, e com razio. Desconfia-se de que essa tradig&o pode ser superada pelo que Bakhtin chama de "o carnavalesco". Este mapeamento fundamental entre 0 alto ¢ 0 baixo foi dividido em quatro dominios simbélicos por Peter Stallybrass e Allon White em seu importante livro As politicas e poéticas de transgressdo. Eles falam sobre © mapeamento do alto e baixo em formas psiquicas, no corpo humano, no espago e na ordem social.’ Eles discutem a distingo alto/baixo como uma base fun- damental para 0 mecanismo de ordenamento ¢ de producao de sentido na cultura européia e em outras culturas, a despeito do fato de que o que é alto e baixo muda de um momento histérico para outro. “Peter Stallybrass e Allon White. The Politics and Poetics of Transgression, Ithaca: Cornell University Press, 1986, p. 3 Stuart Hall ml 153 O ponto importante é 0 ordenamento de diferentes morais estéticas, de estéticas sociais, os ordenamentos da cultura que abrem a cultura para 0 jogo do poder, e nao um inventario do que é alto e baixo num momento especifico. E por isso que Gramsci deu & questo que chamou de "o nacional popular" uma tamanha importancia estratégica. O papel do "popular" na cultura popular é 0 de fixar a autenticidade de formas populares, enraizando-as em experiéncias de comunidades populares das quais elas retiram o seu vigor e permitindo-nos vé-las como expresso de uma vida social especifica e subalterna, que resiste a ser constantemente transformada em baixa e periférica. Entretanto, como a cultura popular tem se tornado historicamente a forma dominante da cultura global, ela €, entao, simultaneamente, a cena, por exceléncia, de mercantilizagao das inddstrias em que a cultura penetra diretamente nos circuitos de uma tecnologia dominante - 0s circuitos de poder e capital. Ela é espaco de homo- geneizagao em que 0s esterestipos e as fSrmulas processam sem compaixdo o material eas experiéncias que ela traz para a sua rede, espaco em que o controle sobre narrativas e representages passa para as mios das burocracias culturais, as vezes até sem qualquer comentario. Ela esta enraizada na experiéncia popular e, a0 mesmo tempo, disponivel para expropriagdo. Eu quero argumentar que isso € necessario & inevitavel, também valendo para a cultura negra popular, que, como todas as culturas populares no mundo moderno, esté destinada a ser contraditéria, 0 que corre nao porque nao tenhamos combatidoa batalha cultural suficientemente bem. Lum Por definicao, a cultura negra popular 6 um espago contraditér local de contestagdo estratégica. Mas ela nunca pode ser simplificada ou explicada nos termos das simples oposigdes binarias que saio ainda habitualmente usadas para mapeé-las: alto e baixo, resisténcia versus incorporacao, auténtico versus inauténtico, experiencial versus formal, oposigdo versus homogeneizagio. Sempre existem posigdes a serem galgadas na cultura popular, mas nenhuma luta pode capturar a cultura popular, ela mesma, para o nosso lado ou o deles. Por que isso acontece? Que conseqiiéncias isso traz para estratégias de intervengao nas politicas culturais? Como isso desloca as bases de uma critica cultural negra? Embora os negros e as tradigdes e comunidades negras aparegam e sejam representados na cultura popular soba forma de deformados, incorporados € inauténticos, continuamos a ver nessas figuras e repertérios, aos quais a cultura popular 184 QUE "NEGRO" E ESSE NA CULTURA POPULAR NEGRA? recorre, as experiéncias que ficam por tras deles. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade, e na sua atengao rica, profunda e variada & fala; em suas inflexdes para o vernacular ¢ o local; em sua rica produgdo de contranarra- tivas; e, sobretudo, em seu uso metaférico do vocabulaério musical, a cultura negra popular tem permitido trazer @ tona, dentro de modos mistos e contra- ditérios, até da cultura popular mais comercial, os elementos de um discurso que é diferente - outras formas de vida, outras tradigées de representagao. Eu nao pretendo repetir o trabalho daqueles que tém consagrado suas vidas de estudo, critica e criagio a identificagao das particularidades dessas tradigdes diasporicas, & descoberta de suas modalidades, as experiéncias histéricas e memi6rias que representam. Eu digo somente trés coisas insuficientes a respeito dessas tradig&es, pois sao pertinentes ao que quero desenvolver. Primeiro, observem como, dentro do repertério negro, 0 estilo - que os criticos culturais das correntes majoritarias, muitas vezes, acreditam ser uma simples casca, um invélucro - se tornou em si a matéria do acontecimento. Segundo, percebam como, deslocado de um mundo logocéntrico - onde o dominio direto das modalidades culturais signifi- cou 0 dominio da escrita e, por isso, a critica da escrita (critica logocénttica) e a desconstrugao da escrita -, 0 povo da didspora negra tem, em oposigao a tudo isso, encontrado a forma profunda, a estrutura profunda de sua vida cultural na mtisica. ‘Terceiro, pensem em como essas culturas tém usado 0 corpo - como se ele fosse, € muitas vezes 6, 0 Gnico capital cultural que possuimos. Temos trabalhado em nés mesmos como em telas de representacgao. Existem aqui quest6es profundas de transmissdo e heranga cultural, de relagdes complexas entre origens africanas ¢ dispersdes irreversiveis da diéspora; questGes que nao quero tratar neste momento. Mas eu acredito que esses repert6rios da cultura negra popular - os quais, uma vez que nés fomos excluidos das correntes culturais majoritérias, eram freqiientemente os Gnicos espagos performaticos que nos restaram - estavam sobredeterminados desde, pelo menos, duas direges: determinados parcialmente por suas herangas, e também determinados criticamente pelas condigdes diaspéricas nas quais as conexdes foram forjadas. Apropriagdo, incorporagao e rearticulagdo seletivas de ideologias, culturas ¢ instituig6es européias, ao lado de um patriménio cultural africano - isto € Cornel West novamente -, conduziram a inovagoes lingiifsticas na estilizagao retérica Stuart Hall Bl 155 do corpo, a formas de ocupar um espago social alheio, expressividades potencializadas, estilos de cabelo, posturas, maneiras de andar, de falar, e uma forma de constituir e sustentar a camaradagem e a comunidade. O ponto de sobredeterminagao subjacente - repertérios culturais negros simultaneamente constitufdos de duas diregdes - € tal vez mais subversivo do que se pensa. E insistir que na cultura negra popular, estritamente falando, etnograficamente falando, nao existe nenhuma forma pura. Estas formas sdo sempre produto de sincronizagao parcial, de engajamento através de fronteiras culturais, da confluéncia de mais de uma tradi¢ao cultural, das negociagdes de posigées dominantes e subalterna estratégias subterraneas da recodificagao ¢ 0 transcodificagao, da significagao critica, do ato de significar. Bssas formas s sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir uma base verndcula. Portanto, elas devem sempre ser ouvidas nao simplesmente como recuperacao de um didlogo perdido que carrega indicagdes para a produgdo de novas misicas (porque nunca existe nenhum retorno para o antigo de um modo simples), mas como 0 que elas so - adaptagdes moldadas para os espagos mistos, contraditérios e hibridos da cultura popular. Elas nao so a recaperacao de algo puro pelo qual podemos, finalmente, nos orientar. No que Kobena Mercer chama de a necessidade de uma estética diaspérica, somos compelidos a reconhecer que elas s0 0 que o moderno é. Esta é a marca da diferenga dentro das formas da cultura popular - as quais sao, por definigao, contraditérias e, portanto, aparecem como impuras € ameacadas pela incorporagiio ou exclusio - esta é a marca capturada pelo significante “negro” na expressiio "cultura negra popular’. Ela chegou a significar a comunidade negra na qual aquelas tradicdes eram guardadas e cujas lutas sobrevivem na per- sisténcia da experiéncia negra (a experiéncia hist6rica do povo negro na diéspora), da estética negra (os repert6rios culturais particulares a partir do quais as represen- tagdes populares foram feitas) e das contranarrativas negras que lutamos para expressar. Aqui a cultura negra popular retoma ao terreno que defini anteriormente. A "boa" cultura negra popular passa no teste de autenticidade, que é a referéncia para a experiéncia negra e para a expressividade negra. Estas servem como garantias na determinacao de qual cultura popular negra é acertada, qual é nossa e qual nao é. Eu sinto que, historicamente, nada péde ter sido feito para intervir na esfera dominada da cultura popular majoritéria, para tentar ganhar algum espago 14, sem 0 156 Ml QUE “NEGRO” E ESSE NA CULTURA POPULAR NEGRA? uso de estratégias através das quais aquelas dimensGes eram condensadas dentro do significado "negro". Onde nds estarfamos, conforme Bell Hooks comentou uma vez, sem um toque de essencialismo, ou sem 0 que Gayatri Spivak chama de essen- cialismo estratégico, um momento necessdrio? A questao é se ainda estamos naquele momento, se aquilo ainda é uma base suficiente para as estratégias das novas intervengdes. Deixem-me explicar 6 que me parecem ser as fragilidades desse momento essencializante e as estratégias criativas e criticas que dele decorrem. Esse momento essencializa diferengas em varios sentidos. Ele enxerga a diferenga como "suas tradiges versus as nossas” - nao numa forma posicional, mas mutuamente exclusiva, auténoma e auto-suficiente - e 6, conseqiiente- mente, incapaz de compreender as estratégias dialdgicas ¢ formas hfbridas essenci is para a estética diasporica. Um movimento mais além desse essen- cialismo nao se constitui em estratégia critica ou estética sem uma politica cultural, sem a marcagiio da diferenga. Nao € simplesmente a rearticulagao e a reapropriagao como um fim em si mesmas. O que esse movimento burla é a essencializagao da diferenca dentro das duas oposigdes mtituas (ou/ou). O que ele faz € deslocar-nos para um novo tipo de posicionalidade cultural, uma légica diferente da diferenga, para resumir 0 que Paul Gilroy tem tio vividamente registrado na agenda politica e cultural da politica negra do Reino Unido: negros na diaspora britanica devem, neste momento histrico, recusar o binarismo negro ou inglés. Eles devem recusar porque 0 "ou" permanece o local de contestagdao constante, quando o propésito da luta deve ser, ao contrario, substituir o "ou" pela potencialidade e pela possibilidade de um "e", 0 que significa a I6gica da jungao preferivelmente a l6gica da oposi¢ao bindtia. Voc pode ser negro ¢ inglés n&io somente porque esta € uma posicdo necesséria nos anos 1990, mas porque mesmo esses dois termos, unidos agora pela conjungiio "e", contraria- mente 2 oposi¢ao de um para 0 outro, nao esgotam todas as nossas identidades. So- mente algumas das nossas identidades so as vezes capturadas nessa luta especifica. O momento essencializante é vulneravel porque naturaliza ¢ desistoriciza a diferenga, confunde o que é hist6rico ¢ cultural com o que é natural, biolégico e genético. No momento em que 0 significado "negro" é arrancado de seu encaixe histérico, cultural e politico, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituida, nds valorizamos, pela inversao, a propria base do racismo que estamos tentando desconstruir. Além disso, como sempre acontece quando naturalizamos cate- Stuart Hall M157 gorias historicas (pensemos em género e sexualidade), nds fixamos este significante fora da hist6ria, da mudanga e da intervengdo politicas. E uma vez que ele é fixado, estamos tentados a usar "negro" como suficiente em si mesmo para garantir 0 carater progressista da politica que combatemos sob essa bandeira - como se nao tivéssemos nenhuma outra politica para discutir, exceto a de que algo é negro ou nao é. Estamos tentados a expor este significante como um dispositive que pode purificar © impuro, trazendo de volta irmaos e irmas desgarrados que no sabem o que deveriam estar fazendo, e policiar as fronteiras - que, claro, sao fronteiras politicas, simbGlicas e de posigdo - como se clas fossem genéticas. Entenda-se aqui, lamento dizer, como se pudéssemos traduzir a natureza em politica usando uma categoria racial para sancionar as politicas de um texto cultural e como medida do desvio. Além do mais, tendemos a privilegiar a experiéncia em si como se a vida negra fosse uma experiéncia vivida fora da representagao. S6 precisamos, digamos, expressar 0 que jé sabemos que somos. Em ver. disso, 6 somente pelo modo no qual representamos ¢ imaginamos a nds mesmos que chegamos a saber como nos consti- tuimos e quem somos. N&o ha como escapar de politicas de representacaio, ¢ nao podemos empunhar a idéia de "como a vida realmente é 14 fora" como um tipo de teste para medir 0 acerto ou erro politico de uma dada estratégia ou texto cultural especifico. Enndo sera surpresa para voces que eu considere que “negro” nfo é,na realidade, nenhuma dessas coisas. Ele nao é uma categoria de esséncia. Esta maneira de compreender 0 significante flutuante na cultura negra popular é hoje, conseqiientemente, insatisfat6ria. Existe, é claro, um conjunto de experiéncias negras distintas e definidas historicamente que contribuem para aqueles repert6rios alternativos de que falei anteriormente. Mas é para a diversidade e nao para a homogeneidade da experiéncia negra que devemos agora dar a nossa ininterrupta atencao criativa. Nao é somente apreciar as diferengas hist6ricas e experienciais dentro de, e entre, comunidades, regides, campo e cidade, nas culturas nacionais e entre as didsporas, mas também reconhecer os outros tipos de diferenga que localizam, situam e posicionam 0 povo negro. A questo nao é simplesmente que, visto que nossas diferengas raciais nao nos constituern inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferengas - de género, sexualidade, classe. E também que esses antagonismos recusam-se a serem alinhados organizadamente; eles simplesmente nao se reduzem um ao outro, eles se recusam a se fundir em torno de um eixo tinico de diferenciagao. 158 MIQUE “NEGRO” E ESSE NA CULTURA POPULAR NEGRA? ‘Estamos constantemente em negociagao, ndo com um tinico conjunto de oposigdes que nos situa sempre na mesma relagdo com os outros, mas com uma série de diferentes posicionalidades. Cada uma delas tem para nés o seu ponto de profunda identificagao subjetiva. Isso é a coisa mais dificil a respeito desta proliferagao das esferas de iden- tidades e antagonismos: elas est&o freqiientemente deslocadas em relagao as outras. Assim, colocado gro 9 modo, certas maneiras nas quais homens negros continuam a viver suas contra-identidades enquanto masculinidades negras & reapresentam aquelas fantasias de masculinidades negras nos teatros da cultura popular siio, quando vistas a partir de outros eixos de diferenga, as mesmas identi- dades masculinas que so opressivas para as mulheres, que reivindicam visibili- dade para a sua dureza somente as custas da vulnerabilidade das mulheres negras e da feminizagao dos homossexuais negros. O modo como politicas transgressoras sao, num dominio, constantemente suturadas e estabill das pela politica rea~ ciondtia ou n&o examinada de outro dominio s6 pode ser explicado por este conti- nuo desl amento-cruzado de uma identidade por outra, de uma estrutura por outra. Etnicidades dominantes so sempre sustentadas por uma economia sexual especifica, uma figuragdo da masculinidade especifica, uma identidade especi- fica de classe. Nao existe garantia quando procuramos uma identidade racial essencializada da qual pensamos estar seguros de que sempre terd resultados mutuamente libertadores e progressistas em todas as outras dimensGes. Entre- tanto, existe sim uma politica ali pela qual vale lutar. Mas a invocagéio de uma experiéncia negra garantida atrés dela nao produzird esta politica. Nao é de todo inesperada a pluralidade de antagonismos e diferengas que hoje procura destruir a unidade da politica negra, dadas as complexidades das estruturas de subordinagao formadas pelo modo como nés fomos inseridos na didspora negra. Estes séio os pensamentos que me impeliram a falar, em um momento de espontaneidade, do fim da inocéncia do sujeito negro ou do fim da nogiio inocente de um sujeito negro essencial. Eu quero simplesmente finalizar lembrando a vocgs que esse fim é também um comego. Como Isaac Julien disse, numa entrevista a Bell Hooks, em que se discutiu 0 seu novo filme Young Soul Rebels, da sua tenta- tiva, no seu préprio trabalho, de retratar uma série de corpos raciais diferentes, de constituir uma gama de diferentes subjetividades negras e de se engajar com as posicionalidades de uma série de diferentes tipos de masculinidades negras: Stuart Hall ml 159 Negritude como um signo nunca é 0 suficiente. O que aquele sujeito negro faz, como ele atua, como pensa politicamente... 0 ser negro realmente no me basta: eu quero conhecer as suas politicas culturais.” Quero finalizar com duas idéias que apontam para o sujeito da cultura popular. A primeira é lembrar que acultura popular, mesmo que mercantilizada estereotipada como é, nao é, como as vezes pensamos, a arena onde encontramos quem realmente somos, a verdade da nossa experiéncia. Ela é uma arena que € profundamente mitica. E um teatro dos desejos populares, um teatro das fantasias populares. E onde descobrimos e jogamos com as identificagdes de nés mesmos, onde somos imaginados, representados, nao somente para as audiéncias lé fora, que nao entendem a mensagem, mas também para nés mesmos pela primeira vez. Como disse Freud, sexo (¢ representagao) acontece principalmente na cabeca. Em segundo lugar, ainda que o terreno do popular parega ser construfdo com binarismos simples, ele nao é. Eu lembrei a vocés a importancia da estrutura do espaco cultural em termos de alto e baixo, e a ameaga do carnavalesco bakhtiniano. Acho que Bakhtin tem sido profundamente mal interpretado. O carnavalesco is as suas nao é simplesmente a inversdo de duas coisas que continuam pres estruturas opostas; é também atravessado pelo que Bakhtin chama de dialdgico. Eu simplesmente quero finalizar com uma avaliagdo do que esté envolvido no entendimento da cultura popular, numa forma dialégica em lugar de estritamente oposicional, em As politicas e poéticas de transgressdo, de Stallybrass e White: Um padrio recorrente emerge: o "de cima” tenta rejeitar e eliminar o "de baixo” por razbes de prestigio e status somente para descobrir que nao s6 estd, de algum modo, frequen- temente dependente desse baixo-Outro (...) bem como inelui aquele simbolicamente baixo como um constituinte erotizado primério de sua propria vida de fantasia. O resultado 6 uma fuséo mével ¢ conflitual de poder, medo e desejo na construgio da subjetividade: uma dependéncia psicolégica de precisamente aqueles outros que esto sendo rigorosamente obstruidos excluidos no nivel da vida social. E por esta razio que o que é periférico socialmente é tao freqiientemente central simbolicamente...* * bell hooks, "States of desire" (entrevista a Isaac Julien), Transition, v. 1, n.3, p. 175 * Peter Stallybrass e Allon White, op. cit., p. 3. i ——Stuart Hall é um dos fundadores do Center for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham, Inglaterra

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