Anda di halaman 1dari 12
. race pcae aust genre & PF , 492, ' a Feptes gis paote, mantis Fe ’ Nestas aulas, vou discutir algumas doutrinas conhecidas (a esta altura talvez nem tanto) acer- ca da percepgao sensivel. Receio que nao chegue- 1 mos ao ponto de decidir da verdade ou falsidade dessas doutrinas; na verdade, porém, essa é uma questo que ndo pode ser decidida, pois ocorre que todas essas teorias querem abarcar 0 mundo com. as pernas. Na discussio, tomarei como pretexto t principal The Foundations of Empirical Knowledge', do professor A. J. Ayer, mas também mencionarei Perception2, do professor H. H. Price, e, mais adian- te, o livro de G, J. Warnock sobre Berkeley}. HA bastante 0 que criticar nesses livros, mas escollo- os por causa dos seus méritos, e nao de suas defi- ncias. Parecem fornecer as melhores exposicbes disponiveis das razdes aceitas para sustentar dou- trinas que remontam pelo menos a Heréclito — 8 SENTIDO E PERCEPGAO mais completas, cocrentes ¢ exatas em sua ter nologia do que, por exemplo, as que se encontram ‘em Descartes ou Berkeley. Nao ha diivida de que 08 autores desses livros j4 nao sustentam as teo! neles expostas, ou, de qualquer modo, de que nao as exporiam novamente da mesma forma. Mas eles, pelo menos, defenderam-nas hd nao muito tempo, e, evidentemente, um bom ntimero de grandes fi- Idsofos sustentou essas teorias ¢ propés outras dou- trinas delas resultantes, Os autores que escolhi pa- ra discutir podem diferir entre si com base cm cer~ tas sutilezas que, eventualmente, levaremos em con- ta — por exemplo, parecem divergir quanto a sa- ber se a distingao principal que estabelecem é en- tre duas “'linguagens’” ou entre duas classes de en- tidades —, mas acredito que concordam entre si, ‘¢.com os seus predecessores, em todos os seus prin- cipais pressupostos (que, em sua maior parte, pas- sam despercebidos). Suponho que, idealmente, uma discussio desta cespécie deveria comegar pelo exame dos textos mais antigos; mas, neste caso, tal caminho nos é vedado pelo fato de esses textos no mais existirem. As dou- trinas que estaremos discutindo — ao contrério, por exemplo, de doutrinas acerca dos “‘universais’” — ja eram bastante antigas no tempo de Platao. ‘A doutrina geral, enunciada na sua generali- dade, apresenta-se assim: nés nunca vemos, ou, de outro modo, percebemos (ou ‘“sentimos’”), ou, de Ss SENTIDO E PERCEPGAO 9 sentimos qualquer maneira, nunca perc diretamente objetos materiais (ou coisas materials), mas somente daclos dos sentidos (ou nossas préprias idéias, impressdes, sensa, percepGes sensiveis, per ceptos, etc.). Podemos muito bem desejar saber quao séria se pretende essa teoria, 0 quao estrita e iteralmen- te os filésofos que a propuseram queriam que fos- sem interpretadas as suas palavras. Mas acho que, por ora, é melhor nao nos preocuparmos com essa questo. Na verdade, nao é nada fécil respondé-la, pois, por mais estranha que pareca a teoria, 0 fato E que nos dizem por vezes para ndo nos preocupar- ‘mos com ela — na realidade, ela nada mais faz que expor aquilo em que sempre acreditamos. (Pode- se ficar com uma parte ¢ jogar fora o resto.) Seja como for, esta claro que consideramos a doutrina digna de ser enunciada, e que as pessoas a acham per~ turbadora; portanto, podemos pelo menos come- gar com a certeza de que a teoria é merecedora de uma atengao séria. Minha opiniao geral sobre a teoria é a de que se trata de um ponto de vista académico, imputavel, primeiro, a uma obsessio por umas poucas pala- ras, cujos usos so simplificados em excesso e no Jo realmente entendidos, cuidadosamente estuda- dos ou corretamente descritos; ¢, segundo, a uma “obsessio com uns tantos “*fatos"” mal estudados (¢ quase sempre os mesmos). (Disse “‘académico’’, i 3 10 . SENTIDO E PERCEPCAO mas poderia também ter dito “filos6fico”; simpl ficagio excessiva, esquematizacio ¢ constante re- petigiio da mesma série de ‘‘exemplos” estéreis nao apenas no sio peculiares a este caso, mas siio por demais difundidos para poderem ser descartados co- mo uma fraqueza ocasional dos fildsofos.) O que acontece, como procurarei mostrar, é que as pala- vras correntes sto muito mais sutis em seus usos, € marcam muito mais distinges do que as vislum- bradas pelos fildsofos, e que os fatos da percepcio, tal como descobertos, por exemplo, pelos psicé gos, mas também pelo comum dos mortais, so muito mais diversos complexos do que se tem pen- sado. § fundamental, aqui como em toda par abandonar os velhos habitos da Gleichschaltung, a adoracio profundamente arraigada de dicotomias bem-arrumadinhas. Assim, néo vou — que isto fique claro logo de inicio — sustentar que devamos ser “‘realistas””, isto é, abracar a doutrina segundo a qual realmente percebemos coisas (ou objetos) materiais. Essa dou- trina nio seria menos académica e errénea que a sua antitese. A questo ‘Percebemos coisas inate= riais ou'dados dos seatidos?”” parece sem dti muito simples — demasiado simples —, mas é to mente enganosa (ef. a questo igualmente ampla ¢ simplista de Tales — “De que € feito o mundo?” Um dos pontos mais importantes a compreender £ que esses dois termos, ‘‘dados dos sentido SENTIDO E PERCEPCAO Mt ‘coisas materiais", alimentam-se um ao outro — 0 que é facticio nao é um dos termos do par, mas a pré- pria antitese.4 Nao existe uma espécie de coisa que nés percebemos, mas muitas espécies diferentes, cujo nii- mero pode ser reduzido (se & que pode) pela investi- gacio cientifica, € nao pela filosofia: sob muitos as- pectos, mas nao sob todos, canetas so muito diferen- tesde arco-itis, e estes sio diferentes sob muitos, mas no sob todos os aspectos, das imagens consecutivas que, por sua vez, sob muitos aspectos, mas nao to- dos, sio diferentes de imagens na tela do cinema — e assim por diante, sem que se Ihe possa determinar um limite. Assim, ndo devemos procurar uma resposta para a pergunta “Que espécie de coisas percebe- mos?"’, Acima de tudo, o que temos de fazeré, nega tivamente, to da ilusio” — um “‘argumento” que foi julgado, de certa forma, falacioso por aqueles que foram os scus mais competentes partidérios, mais plenamente mes- tres de certo estilo especial e desenvolto de inglés filo- s6fico que mascarava as dificuldades (Berkeley, Hu- me, Russell, Ayer). Nao existe uma maneira simples de livrar-se dessas ilusdes — em parte porque, como veremos, niio existe um “‘argumento” simples. Te- uma massa de faldcias sedutoras (verbais, na parte), € é preciso desenredé-las uma a uma € dar a conhecer uma grande variedade de motivos ocultos — uma operagio que, em certo sentido, nos deixa no ponto em que comegamos. 12 SENTIDO E PERCEPCAO Num certo sentido, porém, esperamos pode! aprender algo de positivo no tocante a uma técnica Para dissolver as inquietagdes filos6ficas (algumas es- pécies de inquietacao filosdfica, no a filosofia in- tcira), e, também, algo acerca dos signi algumas palavras (‘‘realidade”’, “‘parece””, “tem aparéncia de”, etc.), as quais, além de filosofica- mente muito escorregadias, so interessantes por si mesmas. Além disso, nfo hd nada tio obviamente macante quanto a constante repetigio de assercoes que nio sio verdadeiras, e que, as vezes, sao des- providas da minima sensatez; se pudermos reduzir um pouco esse estado de coisas, tanto melhor. ng Examinemos, entio, as primeiras paginas do Foundations de Ayer — a origem, dirfamos, de um Procedimento de sedugio. Nesses pardgrafos!, jé Parece estarmos a ver 0 homem comum, aqui com a aparéncia implausivel do préprio Ayer driblando vivamente para colocar-se diante de seu proprio objetivo* € posicionando-se para consumar a sua propria destruicao, . Normalmente, nao nos ocorre que haja neces- sidade de justificar a crenca na existéncia de coisas materiais. Neste momento, por exemplo, nao te- nho a menor dtivida de estar efetivamente perce- bendo objetos familiares, cadeiras ¢ mesa, retratos, 'vros € flores que mobiliam a minha sal: 5 estou, a0 fato de Ayer ser ime de futebol de Londtes. (N.T.) 14° SENTIDO E PERCEPGAO portanto, convencido de que existem. Reconhego, de fato, que as vezes os sentidos enganam, mas is- so nfo me leva a suspeitar de que as minhas per- cepcdes sens6rias nao sejam, em geral, dignas de confianga, ou mesmo que possam estar me enga- nando neste exato momento. E esta nao é, acredi- to, uma atitude excepcional. Creio que, na préti- ca, a maior parte das pessoas concorda com John Locke em que ‘a certeza da existéncia das coisas in rerum natura, quando temos o testemunho dos sen- tidos para nos apoiarmos nela, nao constitui ape- nas 0 mais alto grau que nossa constituigio fisica, pode alcangar, mas é, também, proporcional As ne- cessidades impostas por nossa condigio Gontudo, ao nos debrucarmos sobre os scr tos dos fildsofos que mais recentemente se ocupa- ram do t6pico da percepcao, comecamos a nos per- guntar se as coisas so assim tio simples. £ verda- de que, em geral, eles dao por bem fundada a crenga na existéncia de coisas materiais; alguns, na ver~ dade, dirao que ha ocasides em que se estd certo da verdade de proposicées tais como ‘isto é um ci- garro’’, ou “‘isto é uma caneta”’. Mas, mesmo as- sim, a maior parte deles no est4 preparada para admitir que alguma vez percebamos diretamente objetos como canetas ou cigarros. Aquilo que, em sua opinio, percebemos diretamente, é sempre um objeto de um tipo diferente desses, um objeto a que agora se costuma dar o nome de ‘dado do sentido”. SENTIDO E PERCEPCAO 15 Nesse trecho estabelece-se, pois, um certo ti- po de contraste entre © que nés (ou 0 homem co- mum) acreditamos (ou acredita) e 0 que os filéso- fos, pelo menos ‘a maior parte deles’”, acreditam ou “esto dispostos a admitir””. Devemos exami- nar os dois lados desse contraste, e, com um cuida- do especial, aquilo que o efetivamente dito pressu- poe ou implica. Para comecar, examinemos o lado do homem comum. ‘a claramente implicito, de inicio, que 0 homem comum acredita que percebe coisas mate- riais. Ora, se se tomar isto como significando que © homem comum diria que percebe coisas materiais, o erro é manifesto, pois ‘coisa material” nao é ex- Pressio que 0 homem comum use — ¢ 0 mesmo pode dizer de “‘percebe’’. Pressupde-se, entio, que a expresso “‘coisa material”” apareca aqui nao como aquilo que o homem comum diria, mas para designar, de um modo geral, a classe de coisas em que este tiltimo acredita, e das quais, de tempos em tempos, diz perccber exemplos especificos. Mas en- ‘Go teremos, sem diivida, de perguntar 0 que essa — cadeiras, mesas, quadros, flores, ca- netas, cigarros; a definigZio da expressio “coisa ma- terial”’ nao é aqui (nem em qualquer outra parte do texto de Ayer) levada a cabo.? Mas 0 homem comum acredita que 0 que percebe é (sempre) algu- nelhante a pegas de mobilidrio ou ou- 16 SENTIDO E PERCEPGAO tros “‘objetos familiares” — espécimes de produ- tos téxteis e afins de tamanho moderado? Podemos pensar, por exemplo, em pessoas, vozes, rios, mon- tanhas, chamas, arco-fris, sombras, imagens na tela do cinema, gravuras em livros ou penduradas nu- ma parede, vapores, gases — em tudo aquilo que as pessoas dizem que véem (ou, em alguns casos, ouvem ou cheiram, i. e., “percebem’), Sao todas elas “‘coisas materiais""? Em caso contrério, quais exatamente nao 0 sao, e exatamente por qué? Nao nos é concedida nenhuma resposta. O problema & que a expressio “coisa material” jd est funcionan- do, desde o inicio, simplesmente como contraste pa- ra “‘dado dos sentidos’””; nao Ihe atribuem neste ca- 80, nem em qualquer outro, nenhum outro papel para desempenhar, e, além disso, nio ocorreria a guém tentar representar como um tinico tipo de coisas as coisas que 0 homem comum diz que ““per- cebe' 2. Além disso, parece também estar implicito (@) que, quando o homem comurm acredita nio es- tar pereebendo coisas materiais, acha que esta sen- do enganado pelos sentidos, e (6) que, quando cré estar sendo enganado pelos sentidos, acha que nio estd a perceber coisas materiais. As duas coisas es- to erradas. O homem comum que viu, por exem- plo, um arco-iris, se persuadido de que o arco-iris nao é uma coisa material, nio concluiria de ime- diato que estaria sendo enganado pelos sentidos; e, SENTIDO E PERCEPGAO 17 sabendo que 0 navio no mar, num dia claro, esté muito mais distante do que parece, tampouco con- cluiria que o que vé nao é uma coisa material (e, Tenos ainda, que estaria a ver um navio fantasma), Quer dizer, no ha um contraste simples entre aqui Jo em que 0 homem comum acredita quando tudo vai bem (esté “‘percebendo coisas materiais”) ¢ quando algo vai mal (os “‘sentidos enganam-no” € ndo esta “‘percebendo coisas materiais””), como de Festo também nao 0 hé entre aquilo que acredita Perceber (‘‘coisas materiais”) aquilo que os filé- sofos, por seu lado, esto dispostos a admitir, seja ‘4 o que for. O terreno jé esté sendo preparado pa- ra duas falsas dicotomias, 3. E, a seguir, também nao se sugere delica- damente, nesse trecho, que o homem comum é um Pouco ingénuo?3 ““Normalmente nao ocorre’” ao homem comum que a sua crenca na “existéncia de coisas materiais”” precise de justificacio — mas tal. vex isso devesse ocorrer-Ihe. Nao tem ‘qualquer dui- Vida"’ de que realmente percebe cadeiras e mesas — mas talvez devesse ter uma ou duas dtividas, € nio se dar to facilmente por “satisfeito”. O fato de que os sentidos as vezes nos enganam “no o leva a suspeitar’” de que as coisas nao sio o que so — mas talvez uma pessoa mais reflexiva fosse evada a pensar assim, Ainda que, na apartncia, esteja-se apenas a descrever a posicio do homem comum, na verdade esses volteios verbais j ope- 18 zi SENTIDO E PERCEPCAO ram, sutilmente, a destruico gradativa dessa po- sigao. 4. Contudo, 0 que talvez seja ainda mai portante, esté também implicito, e até mesmo da- do por certo, que existe esparo para a dtivida ea des- confianca, quer 0 homem comum as sinta, quer ni. A citago de Locke, com a qual se diz que a maior parte das pessoas estaria de acordo, contém de fato uma forte suggestio falsi. Sugere que quan- do, por exemplo, olho para uma cadeira a alguns metros de distancia, em plena luz do dia, acredito que tenho (apenas) toda a certeza de que necesito, € que posso conseguir, de que existe uma cadeira, € que a vejo. Mas, na verdade, neste caso o homem a diivida no como desmedida, ex- cessivamente sofisticada ou pouco pratica, mas co- mo um absurdo manifesto. Diria, com razao: “Se isto nfo é ver uma cadeira de verdade, entio nao sei o que seja ver uma cadeira.”” E, além disso, em- bora a suposta crenca do homem comum em que as “percepgies dos sentidos’” podem “em gers ou “agora” ser confidveis contraste implicitamen- te com 0 ponto de vista dos filésofos, verifica-se que este ponto de vista dos filésofos nao é 0 de que as “percepges dos sentidos”” ndo possam ser dignas de confianga “agora”? ou “em geral”’, ou sempre que ele achar que 0 sejam; pois, aparentemente, os fi- lésofos ‘em sua maior parte’’ sustentam, na reali- dade, que aquilo que o homem vulgar acredita ser im- comum veri SENTIDO E PERCEPCAO 19 © caso no o é nunca — “aquilo que, em sua opi- nigo, percebemos diretamente é sempre um objeto de tipo diferente”’. O filésofo nao vai, de fato, ar- gumentar que as coisas esto erradas mais vezes do que supde 0 irrefletide homem comum, mas que, de uma forma ou de outra, ele esté errado o tempo todo. Portanto, é enganoso sugerir no somente que sempre haja espaco para dtivida, mas também que a discordancia do filésofo com o homem vulgar se- ja apenas de grau; na verdade nao se trata, absolu- tamente, dese tipo de discordancia, 5. Considere-se, a seguir, o que aqui se diz. so- bre 0 engano dos sentidos. Admitimos, afirma-se, que ‘As vezes somos enganados pelos sentidos””, ainda que, em geral, achemos ser possivel ‘“‘con- fiar’” nas “*percepcies dos sentidos”” Em primeiro lugar, embora a frase “engana- dos pelos sentidos” seja metafora corrente, nao dei- xa de ser uma metafora; e isto é digno de nota, pois, no que vem a seguir, a mesma metifora é freqiien- temente retomada e continuada pela expressio “ve- ridico"’, e retomada muito a sério. Na verdade, nos- sos sentidos so mudos — ainda que Descartes e outros falem do ‘*testemunho dos sentidos”’, os sen- tidos no nos dizem nada de verdadeiro, nem de fal- so. A situagio fica ainda pior neste ponto, com a introdugio no explicada de uma criacio inteira- mente nova, as “‘percepgies dos sentidos””. Essas entidades que, sem divida alguma, no figuram ab- 20 SENTIDO E PERCEPCAO solutamente na linguagem do homem comum, nem fazem parte de suas crengas, trazem consigo a im- plicagao de que, sempre que “‘percebemos”” algu- ma coisa, h4 uma entidade intermediria ¢ sempre pre- sente que nos informa sobre algo além dela mesma. A questo que se coloca, ento, é a seguinte: pode- mos ou no confiar no que cla nos diz? Mas, evi- dentemente, apresentar a questo nesses termos sig- nifica, simplesmente, abrandar as supostas opinides do homem comum tendo em vista o tratamento que se Ihes vai dar em seguida, bem como preparar 0 caminho ao praticamente atribuir a ele o chamado ponto de vista dos filésofos. A seguir, é importante lembraz que falar de engano sé faz sentido a partir de um fundo generali- zado de nZo-engano, (Nao se pode enganar a to- dos 0 tempo todo.) Deve ser possivel reconhecer um caso de engano comparando 0 caso atipico com os mais normais. Se digo: *O mareador de combus- tivel as vezes nos engana”’, comprecndem-me as- sim: embora o marcador As vezes esteja de acordo com o que est4 no tanque, outras vezes assim no acontece — as vezes indica dois galies, ¢ tanque estd quase vazio. Mas suponhamos que cu diga: “A. bola de cristal as vezes nos engana.”” Trata-se de uma afirmacio intrigante, pois, na verdade, nao fa~ zemos a menor idéia do que podieria ser 0 caso “nor — nao ser enganado pela bola de cristal. SENTIDO E PERCEPGAO au Além disso, os casos em que o homem comum pode afirmar ter sido “‘enganado pelos sentidos”” nao so, de forma alguma, comuns. Ele nao fala- ria de “engano dos sentidos”” ao deparar-se com casos normais de perspectiva, imagens especulares ou imagens onfricas; de fato, quando sonha, olha para o fim de uma estrada longa e retilinea, ou pa- rao seu rosto no espelho, nao é, ou raramente é, enganado. Vale a pena lembrar-se disto, tendo em ista outra forte suggestio falsi, a saber — quando 0 fildsofo cita como casos de “ilusio’” todos esses, € muitos outros fendmenos muito comuns, esté ou mencionando casos que o homem comum jé admi- te como casos de ‘“engano pelos sentidos’”, ou ape- nas ampliando um pouco o que ele admitiria de bom grado. I isso esta bem longe de ser 0 que na verda- de acontece. E mesmo assim — mesmo que 0 homem co- mum nio aceite nada como fanios casos de ‘‘enga- no pelos sentidos’’, como parecem fazer os filéso- fos — seria decerto completamente errado sugerir que cle considera todos os casos que aceita como sen- do exatamente do mesmo tipo. Na verdade, a ba- talha jé estaré meio perdida se tal sugestio for acei- ta, As vezes, o homem comum preferiria dizer que 0s seus sentidos so enganados em vez de dizer que foi enganado pelos sentidos — a rapidez da mo engana os olhos, etc. Mas h4, realmente, um grande ro de casos nos quais, ao menos no que diz 22 SENTIDO E PERCEPCAO respeito a scus limites, nao ha como afirmar cor certeza (e seria tipicamente académico tentar de dir) quais so os casos em que se poderia, ou nao, aplicar naturalmente a metafora “enganado pelos sentidos””. K evidente, porém, que até 0 mais sim- ples dos homens desejaria distinguir: (a) os casos em que o rgio sensério esta desarranjado ou em tado de anormal tro, lade, ou, de um modo ou de ou- m condigées de funcionar normalmente, (b) 6 casos em que o agente intermediario (medium) — ou, em termos mais gerais, as condigdes da percep- (0 — é de algum modo anormal, ou inconvenien- te, € (¢) os casos em que se faz uma inferéncia erra- da ou uma interpretacao errada das coisas, diga- mos, por exemplo, quando se faz uma interpreta- Ho equivocada de um som que se ouve. (I claro que esses casos no sio mutuamente excludentes.) E ha, também, os casos muito comuns de erros de leitura, audigao errdnea, lapsos freudianos, etc., que parecem nao caber em nenhuma dessas categorias. Ou seja, para repetirmos mais uma vez: nao hé uma dicotomia nitida e simples entre coisas que vo bem € coisas que vio mal; como sabemos muito bem, as coisas podem ir mal de muitas maneiras diferen- tes — as quais nao precisam ser, e no hd por q achar que 0 devam, classificaveis de um modo geral Finalmente, para repetir aqui um ponto jé por nés mencionado, é evidente que o homem ndo supde que todos os casos em que é “enganado mum SENTIDO E PERCEPGAO 23 pclos sentidos” sejam semelhantes, no sentido espe- cifico de que, nesses casos, nao “‘percebe coisas ma- teriais"’, ow esid percebendo algo nao real ou nioma- terial. Olhar 0 diagrama de Miiller-Lyer (em que, deduaslinhascom omesmo comprimento, uma pa- rece ser mais comprida que a outra), ou olhar para, uma aldeia distante num dia muito claro, do outro lado de um vale, é coisa muito diferente de ver um fantasma ou, durante uma crise de delirium tremens, ver ratos cor-de-rosa. E, quando o homem comum vé no palco a Mulher sem Cabega, 0 que vé (c isto éoque vé, quereleo saiba, quer nao) nioé algo “ir- real” ou “‘imaterial””, mas apenas uma mulher con- traum fundo pretoe acabeca dentro de um saco pre- to. Seo truque for bem executado, nao percebe bem o que vé (pois deliberadamente Ihe dificultamn isso), se se quiser, nao vé o que lé est4; dizer isto, po- , est muito longe de concluir que ele vé algo ré diverso, Concluindo, entio, no hé absolutamente ra- Zio alguma para se endossar as sugestdes de que aqui- Jo que ohomem vulgar acredita perceber.a maior par- te do tempo constitua um tipo de coisas (i.c., “obje- tos materiais”), ou que se diga que reconhece qual- quer outro tipo de casos nos quais é “enganado’”.+ Vejamos, agora, 0 que é que se diz sobre os filésofos. Afirma-se que os fil6sofos ‘‘niio esto, em sua maior parte, dispostos a admitir que alguma vez per- 24 SENTIDO E PERCEPGAO ccbamos diretamente objetos como canetas ou ci- garros’’. Ora, é evidente que 0 que nos deixa aqui insatisfeitos é a palavra ‘“‘diretamente”” — que jé desfrutou de grande prestigio entre os fildsofos, mas que é, atualmente, uma das mais traigociras da selva, lingiistica. Temos aqui, de fato, 0 caso tipico de uma palavra que jé possui um uso muito especial, uma palavra cujo sentido foi aos poucos ampliado, sem cuidado, definicao ou limite, até transformar- se primeiro, talvez, em algo de obscuramente me: taférico, e, por fim, tornar-se totalmente desprovi- da de sentido. Nao se abusa impunemente da lin- guagem comum.5 1, Em primeiro lugar, € fundamental com- preender que, aqui, a prerrogativa fica com a no- a0 de perceber indiretamente — “diretamente”” vai buscar o seu sentido (seja 14 qual for) no con- traste com o seu oposto®: enquanto o proprio “tin- diretamente”’ (2) tem uso apenas em casos especiais, € também (6) possui usos diferentes em casos diferen- tes — embora isto, evidentemente, no queira di- zer que nao existam bons motivos para usarmos a mesma palavra. Podemos, por exeniplo, contras- tar a pessoa que viu o desfile diretamente com aque- la que o viu através de um periscépio; ou podemos con- trastar 0 local de onde se pode ver a porta direta- mente com aquele outro, de onde ela s6 pode ser vista no espelho. Talvez se possa contrastar 0 fato de ver uma pessoa diretamente com o fato de ver, di- 5 ) SENTIDO E PERCEPGAO 25 gamos, sua sombra na persiana; e talvez seja pos- sivel contrastar o fato de ouvir musica diretamente com 0 ouvi-la a partir do exterior da sala de con- certos. Contudo, estes dois iltimos exemplos suge- rem dois pontos adicionais. 2. O primeiro desses pontos é que a nogio de nao perceber ‘‘diretamente”” parece achar-se mais & vontade em situagdes onde, como no caso dé pe- riscépio e do espelho, mantém ligago com a idéia de um desvio direcional, Parece que € 0 caso de nio estarmos olhando direlamente para o objeto em ques- tao. Por este motivo, ver a sombra da pessoa na per- ana é um caso duvidoso, e ver alguém através de binéculos ou éculos nao pode ser considerado, de modo algum, um exemplo de ver alguém indireta- mente. Para casos como estes, dispomos de contras- tes distintos e expressdes diferentes — “a olho nu’? em oposicao a ‘pelo telescépio”’, “a vista desar- mada"’ em oposigao a ‘‘de dculos””. (Na verdade, essas expresses est3io muito mais solidamente es- tabelecidas no uso corrente do que “‘diretamente”.) 3. O outro ponto é que, em parte sem diivida pelas razdes acima apresentadas, a nogio de per- cep¢io indireta no est4 A vontade a nio ser com 0 sentido da visio. No caso dos outros sentidos niio existe nada de andlogo & “linha de visio". O sen- tido mais natural da expresso “ouvir indiretamen- te" € 0 de algo nos ser dito por um intermedidrio — o que é coisa completamente diferente, Mas se- 26 SENTIDO E PERCEPCAO r4 que eu ouco um grito indiretamente ao ouvir- Ihe 0 eco? Quando toco em uma pessoa com uma vara de barco, toco-a indiretamente? Ou, se alguém me oferece um porco dentro de um saco, sera que eu poderia sentir 0 porco indiretamente — através do saco? E nao fago a menor idéia do que seja chei- rar indiretamente. S6 por esta razio parece existir algo de muito errado na pergunta “‘Percebemos ou no as coisas diretamente?”, pois nela, evidente- mente, est implicito que o perceber se aplica a qual- quer dos sentidos. 4. Mas, também por outras razées, é extrema- mente duvidoso saber até que ponto poderia ou de- veria ser estendida a nogio de perceber indireta- mente. Abrange, ou deveria abranger, o telefone, por exemplo? E a televisio? E 0 radar? Sera que, nesses casos, nos afastamos demais da metéfora ori- ginal? Seja como for, satisfazem 0 que parece ser uma condicao necessaria, isto é: a existéncia simul- tnea e a variacdo concomitante, como as que exis- tem entre 0 que se percebe abertamente (os ruidos no receptor telefdnico e os lips na tela do radar) © 0s candidatos aquilo que talvez estivéssemos dis- postos a descrever como “percebido indiretamen- te””. E essa condi¢io exclui claramente, enquanto casos de percepgio indireta, 0 fato de ver fotog fias (que, estaticamente, registram cenas do passa- do) e filmes (que, apesar de no estaticos, nio sfio vistos no mesmo instante em que os eventos sio re- SENTIDO E PERCEPGAO 27 gistrados). Existe, por certo, uma linha diviséria a ser tragada em algum ponto. E certo, por exemplo, que nio falaremos de percepcao indireta em todos os casos em que vemos algo de que se pode inferir aexisténcia (ou a ocorréncia) de outra coisa; dirfa~ mos que vemos os canhées indiretamente se, a dis- tancia, 0 que vemos sio apenas os seus clardes 5. De modo muito diverso, se estivermos se- riamente inclinados a falar de algo como sendo per- cebido indiretamente, teremos de fazé-lo com rela- do a um tipo de coisa que (pelo menos as vezes) mal percebemos, ou podiamos perceber, ou que — como no caso da parte de trés de nossa cabeca — outros pudessem perceber. Pois, de outro modo, nao dirfamos que percebemos a coisa por inteiro, mesmo indiretamente. Nao hd divida de que surgem com- plicagies a esse respeito (talvez em decorréncia do microscépio eletrénico, por exemplo, sobre 0 qual pouco ou nada sei). Mas que, em geral, gostaria- mos de estabelecer uma distingZo entre ver indire- tamente, por exemplo num espelho, aquilo que po- demos mal ter visto, e ver, numa camara imida de Wilson, por exemplo, sinais (ou efeitos) de algo que, em si, ndo é absolutamente perceptivel. Para dizer © minimo, neste diltimo caso nao seria natural falar de percepcio indireta. 6. Um tltimo ponto, Por razdes nao de todo obscuras, na pratica preferimos sempre aquilo que se pode chamar de expressiio ‘valor A vista’ & me- 28 SENTIDO E PERCEPGAO indireto"’, Se eu afirmar que vejo na- me téfora do vios inimigos indiretamente, minha afirmagao plesmente colocara uma diivida quanto ao que que ro dizer cxatamente. ‘Quero dizer que posso ver 608 blips na tela do radar” — “Pois entio, por que no falou assim?”” (Compare-se: **Posso ver um pa to irreal.”” “Mas que diabo é isso?”” *“Trata-se de um pato de chamariz.”” “Ah, bom, mas por que ja nao disse logo?””) Quer dizer, raramente existe (se € que existe) alguma razdo especial para se di- zer “‘indiretamente”” (ou ‘‘irreal’’); essas palavras se aplicam a um niimero por demais grande de ca- sos diferentes para que possam ser exatamente aqui- lo que se procura em qualquer caso especifico. Assim, fica bastante claro que 0 uso dado pe- los filésofos a ‘*perceber diretamente”, seja cle qual for, no é nem o comum, nem o convencional, pois, na esfera desse uso, nao s6 € falso, como simples- mente absurdo, que objetos como canetas ou cigar- ros nunca sejam percebidos diretamente. Mas nao nos é dada nenhuma explicagio ou definicao desse novo uso? — pelo contrario, ele nos é apresentado com a tranqiiilidade de quem nos imaginasse ple- namente fami ém fica evi- dente que © uso dos fildsofos, seja ele qual for, choca-se com diversos canones acima mencionados — nao parecem ser consideradas quaisquer restri- ‘ges que levem em conta circunstancias especiais, ou alguns dos sentidos em particular, e, além dis- SENTIDO E PERCEPCAO 29 80, parece que 0 que se diz. que percebemos indire- tamente nunca é — no é 0 tipo de coisa que jamais poderia ser — percebido diretamente. Tudo isso confere agudeza & pergunta que o proprio Ayer formula algumas linhas abaixo do tre- cho que até aqui comentamos: ‘Por que no po- demos dizer que temos consciéncia direta das coi- sas materiais?”” A resposta, diz ele, é fornecida “‘por aquilo que se conhece como argumento da ilusio”’. E isso o que vamos examinar a seguir. E bem pos- sivel que a resposta nos ajude a compreender a pergunta.

Anda mungkin juga menyukai