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POLITICA Aristoteles Tradugdo, Introdugdo e Notas de Mario da Gama Kury uw Instituto Nacional do Livro PSE7 Editora Universidade de Brasilia Sumario Apresentagao: Mario da Gama Kury Notas a Apreseritacao LIVROI Capitulo I: a cidade é a mais elevada forma de comunidade e visa ao bem maior dos cidadaos; composigao da cidade e seus objetivos; exame da comunidade doméstica Capitulo II: Os escravos; a escravidao é natural? dbjegées a natura- lidade da escravidao; a arte de comandar os.escravos difere da arte de comandar pessoas livres. Capitulo III: as riquezas ¢ os modos de adquiri-las; as riquezas nao devem ser adquiridas por si mesmas; actimulo natural e antinatural das riquezas; origem da moeda. Capitulo IV: © aciimulo natural de riquezas é necessario a familia e a cidade; importancia das financas no governo da cidade. Capitulo V: as relagdes entre marido e mulher e entre pais e fillios; a administracao da comunidade doméstica; qualidades morais nas pessods livres e nos escravos. , LIVRO IT: Capitulo I: natureza da cidade ideal; teorias da Reptiblica de Platao. Capitulos II e IIT: criticas ao sistema proposto por Platao. Capitulo IV: a teoria de Faléas. Capitulo V: a teoria de Hipédamos Capitulo-VI: a constituigao dos lacedeménios. Capitulo VII: & constituigao dos cretenses Capitulo VIII: aconstituicao dos cartagineses. Capitulo IX: os legisladores mais antigos; Sélon e outros menos importantes. . 13, 17 23 31 4 a LIVRO II Capitulos I a II: definicao do cidadao e seus direitos; definicao da cidade com base na distribuicao do poder politico; o bom cidadao e © homem bem; posicao dos artifices e assalariados na cidade ideal. Capitulos 1V a VI: objetivos da cidade; as boas e mas constituicées; - democracia ¢ oligarquia; igualdade e desigualdade entre os habi- tantes da cidade nas diversas constituicoes, fapitulo VII: 0 conceito de justica; o melhor governo é o da “maioria ou oda minoria? Capitulo VIII: distribuicao do poder politico; pretensoes das varias classes componentes da cidade em relac&o ao poder politico. Capitulos IX a XII: a monarquia. LIVRO IV Capitulo I: objetivos da ciéncia politica; exame das outras formas de governo. : Capitulos 1] e IIL: democracia e oligarquia. Capitulo IV: as varias espécies de democracia. Capitulo V: as varias espécies de oligarquia. Capitulos VI e VII: 0 governo constitucional; meios de chegar ao governo constitucional; a constituico dos lacedeménios. Capitulos VIII: a tirania. Capitulos IX ¢ X: a melhor constituicao para uma determinada cidade. : Capitulos XI a XIII; como estruturar uma constituicao; 0 poder executivo; o poder judiciario. LIVRO V Capitulo I: as revolugdes e suas causas; maior estabilidade das democracias em comparagao com.as oligarquias; Capitulos I] ¢ II: situages que levam a revolugdes. Capitulos 1V a VI: revolugdes nas democracias, nas oligarquias, ras aristocracias ¢ nos governos constitucionais. Capitulo VII: precaucoes contra as revolugées. Ny 2 89 101 S Ss 124 123 131 133, 137 141 143 161 165 173 183 Capitulos VIII e IX: causas determinantes da destruigao das mo- narquias e meios de preserva-las. Capitulo. X: curta duragio das tiranias no passado: discussao das revolugées na Reptiblica de Platao. LIVRO VI Capitulos I a II: diferencas entre as varias espécies de democra- cias; a liberdade é 0 principio basico da democracia; diferenca basica entre as democracias e as oligarquias; espécies de democra- cia; instituicdo e preservacao de uma democracia. Capitulo IV: instituigao de uma oligarquia. Capitulo V: importancia da distribuicéo das fungdes de governo nas oligarquias ¢ nas democracias. LIVRO VIL X Capitulo I; 0 modo de’ vida mais desejavel para as cidades e os individuos. : Capitulos Il e III: em que consiste a felicidade? Capitulos IV e V: a cidade ideal; 0 territér.o da cidade ideal; as comunicacées maritimas e seus efeitos. Capitulo VI: o carater dos cidad4os na cidade ideal \ Capitulos VIL-a IX: distingao entre os cidadaos e os demais compo- nentes da cidade. Capitulo X: localizacao da cidade. Capitulo XI: planejamento da cidade. Capitulos XII a XV: sistema educacional da cidade ideal; seus objetivos ¢ pontos de partida. LIVRO VHI Capitulos I e II: continuacao do exame do sistema educacional da cidade ideal; controle da educacao pela cidade; em que deve consistir a educacéo? Capitulos III e IV: matérias a serem ensinadas e suas finalidades; os exercicios fisicos. Capitulos V a VII: a musica na educagio. Notas Indice geral 189 201 208 213 215 219 223 229 235 237 245 247 249 267. 271 287 305 Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem aurorizacdo escrita do Editor Impresso no Brasil Editora Universidade de Brasilia Campus Universitario — Asa Norte 70.910 Brasilia — Distrito Federal Copyright©1985 para a tradugao da Politica, Editora Universidade de Brasilia Direitos exclusivos para esta Edi¢ao: Editora Universidade de Brasilia FACIMAR = Faculdade de Ciéncias unoanas de Mal. Candido Rondon - Pry gquipe Tioica + BIBLIGTECA - Editor ° Reg. 16% Data 22/0} s FP Uicio Reiner Supervisor Grafica : Elmano Rodrigues Pinheiro Controle de Texto ‘Wilma Rosas Saltarelli ISBN 85-230-0011-9 ee Ficha Catalografica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia Aristételes. ATI7p Politica. Trad. de Mario da Gama Kury: Brasilia, Editora Universidade de Brasilia, 1985 Biblioteca Classica UnB Traduzido do Grego 138) A717p 32 t Apresentacgao 1. O autor Aristoteles nasceu em Stagiros (posteriormente Stagira, atualmente Sta- vra), na Calcidice, territério macedénio, em 384 a. C., e morreu em Cilcis (atval Evripo), na Eubéia, em 322. Era filho de Nicémacos, da confraria dos asclepiadas, médico e amigo de Amintas II, rei da Macedénia. E provavel que Arist6teles tenha vivido parte de sua infancia ém Pela, sede da corte dos reis macedénios, ¢ que tenha herdado de seu pai o interesse pelas ciéncias naturais, constante em sua obra. Aos dezoito anos ele ingressou na escola de Platao, em Atenas, e nela permaneceu até 348-347 +; época da morte do mestre, primeiro como aluno e depois como colaborador de certo. modo independente. Desgos- toso com a escolha de Spéusipos, representante de uma tendéncia do platonis- mo que lhe repugnava — a de transformar a filosofia em matemitica, Aristéte- les deixou a Academia. Juntamente com Xenécrates, outro filésofo platénico descontente, ele aceitou o convite de um colega na Academia —.Hermias, futuro governante de Atarneus e Assos, na Misia (Asia Menor), que reuniuem torno de-si um pequeno circulo platOnico; Aristételes permaneceu em Assos até a morte de Hermias, em 345 a. C., € 14 contraiu matriménio com Pitias, sobrinha de Hermias. De Assos ele foi para Mitilene, na ilha de Lesbos, talvez por influéncia de Te6frastos, seu discipulo, colaborador e sucessor, natural de Eresos, na mesma ilha. Erh 343-342 Filipe, entao rei da Macedénia, convidou- ‘0 a voltar a Pela para ser professor de seu filho Alexandre; durante esse petiodo Aristételes compés para Alexandre duas obras, que se perderam, chamadas Os Colonos e -Sobre a Monarquia; tudo indica que suas aulas a Alexandre a respeito de politica foram a origem de seu interesse pelo ssunto. Suas relacdes com Alexandre terminaram quando este foi alcado & reg éncia do império, em 340, aos dezenove anos; naquela ocasiio Aristételes provavel- ménte voltou a Stagiros. Em 335, pouco depois da morte de Filipe, Aristételes regressou a Atenas. Nos arredores da cidade, presumivelmente entre 0 monte Licébetos e 0 rio ilissos, onde havia umi pequeno bosque consagrado a Apolo Licio e as Musas, Aristéxeles se instalou em alguns prédios existentes no local e fundou sua escola; entre os prédios havia umia colunata coberta (peripatos"), origem do home da escola. LA ele constituiu uma colegao de manuscritos — prototipo de todas as’ grandes bibliotecas da antigilidade, e também de mapas, além de um museu com objetos para ilustrar suas aulas, especialmente de zoologia; consta que Alexandre teria contribuido com uma elevada soma para a colecio. Aristoreles estabeleceu normas para a sua comunidade, inclusive refeigses em comum ¢ um seminario mensal. Uma de suas realizages mais importantes foi a organizagao de pesquisas em grande escala, das quais o levantamento de 158 constituices de cidades-estados helénicas foi um exemplo. Sob sua direcio Teéfrastos realizou pesquisas botanicas e Aristéxenos pesquisas musicais; além disto 0 primeiro compilou historias basicas do pensamento helénico anterior, englobando a fisica, a psicologia e a cosmologia; Eudemos fez 0 mesmo em felacao & matemiticu, & astronomia e a teologia, e Ménon em relacio a medicina. Durante sua segunda estada em Atenas morreu Pitias, sua primeira mulher, e Aristéreles passou a viver com Herpilis, da qual teve um filho chamado Nicémacos, a quem dedicou uma-de suas Evicas. Ap6s a morte de Alexandre, em 323 a.C., recrudesceram em Atenas os sentimentos antimace- dénios, e uma acusacio de impiedade foi levantda contra Aristéreles; este, alegando querer evitar que os atenienses “pecassem duas vezes contra a filosofia" (referindo-se ao processo do qual resultou a morte de Socrates), deixou a escola entregue a Teéfrastos ¢ retirou-se para Calcis, onde morreu, A principal fonte para a biografia de Aristételes é 0 livro V da Vida dos Filésofosrde Diogenes Laértios, que viveu na primeira metade do século III d. C. mas usou fontes muito mais antigas,-hoje perdidas. 2. O “corpus” aristotélico. De acordo com o catélogo constante do livro V da Vida dos Filésofos de Didgenes Laértios, Aristoteles teria escrito cerca de quatrocentas obras, das quais restam quarenta € sete, entre as certamente auténticas, as provavelmente auténticas, as de autentididade duvidosa e as espuirias, além de fragmentos das obras perdidas. Destas quarenta € sete somente uma pertence 4 classe das chamadas exotéricas, ou seja, obras de divulgacao, para a gente de fora da escola, Portanto o puiblico: € a Constituigdo dos Atenienses, descoberta no fim do século passado; as demais se incluem na classe das obras esotéricas, ou acroaméticas, isto é, destinadas ao estudo dentro da escola, subdivididas em notas de aula ¢ em obras realmente cientificas. O estilo das obras exotéricas era mais cuidado, € muitas delas tinham a forma de didlogos, a-maneira platnica; a elas se aplicam os elogios de Cicero e Quintiliano, respectivamente nas Académicas, 2, 38, 119, e'nas Instituisies Oratérias, X, 1, 83. Entre as obras esotéricas chegadas até nds so geralmente consideradas auténticas as seguintes: Primeiros Analiticos, Segundos Analiticos, Tépicos, Refutagies Sofisticas, Fisica, Do Céu, Da Gerardo © da Decomposicdo, Meteorolégicos, Da Alma; os opisculos segaintes entre os chamados em conjunto Pequenas Obras sobre Ciéncias Naturais: Do Sentido e das Coisas Senstveis, Da Meméria e da Reminiscéncia, Do Sono, Dos, Sones, Da Adivinhacao pelo Sono, Da Longevidade e da Brevidade da Vida, Da Juventude e da Vethice, Da Vida e da Morte e Da Respiracdo; Histéria dos Animais (0s livros VII, parte do VIII e IX seriam espiirios), Das Partes dos Animais, Da Matcha dos Animais, Da Geragdo dos Animais, Metafisica, Etica a Nicémaces, Politica, Retérica, Poética (incompleta). Sao tidas como provavelmente auténti- cas as seguintes: Da Interpretagao, Do Movimento dos Animais, Etica Eudémia (ralvez anterior 2 Etica a Nicdmacos). Sao de autenticidade duvidosa as Catego- rias @ a Moral Maior, S86 consideradas esptrias: Do Mundo, Do Espirito, Das Cores, Das Coisas Ouvidas, Fisiognoménicos, Das Plantas, Das Coisas Maravilhosas que se Ouvem, Problemas Mecanicos, Problemas, Das Linhas Indivisiveis, Da Situacao dos Ventos, Sobre Melissos, Xendfanes © Gérgias, Das Virtudes e dos Vicios, Da Economia e Retérica a Alexandre, Os. numerosos fragmentos (680) das obras petdidas constam da coletanea de Valentinus Rose Aristotelis qui Ferebantur Librorum Fragmenta, Leipzig, 1886, que contém ainda duas Vidas do fildsofor 3. A Politica Nos capitulos iniciais da Etica a Nicémacos Aristoceles aplica o termo “politica” a um assunto tinico — a ciéncia da felicidade humana — subdividido em duas partes: a primeira é a ética e a segunda é a politica propriamente dita. A felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, e a vida de um homem é 0 resultado do meio em que ele existe, das leis, dos costumes e das instituicdes adotadas pela comunidade qual ele pertence. Na zoologia de Aristételes 0 homem é classificado como um “animal, social por natureza” (Politica, 1253a, livro 1, capitulo I, § 9), que desenvolve suas potencialidades na vida em sociedade, organizada adequadamente para seu bem-estar. A meta da “politica” é descobrir primeiro a maneira de viver que leva & felicidade humana, € depois a forma de governo e as instituicdes sociais capazes assegurar aquela maneira de viver. A primeira tarefa leva ao estudo do carater (ethos), objeto da Brica a Nicémacos, a ultima conduz ao estudo da constituicio da cidéde-estado, objeto da Politica, Esta, portanto, é uma seqiiéncia da Etica, ¢ € a segunda parte de um tratado “nico, embora seu. titulo. corresponda & totalidade do assunto. Alias, j4 na geracao anterior a Aristételes, Platao, seu mestre, havia abrangido as duas partes do assunto em um sé diélogo — A Repiiblica. No esquema global das ciéncias segundo Aristéveles, a “politica” pertence \\ao grupo das ciéncias praticas, que buscam 0 conhecimento como ‘um .mcio |para a acdo, em contraposicao as ciéncias tedricas (a metafisica e a teologia, por exemplo), cujo conhecimento € um fim em si mesmo. As ciéncias praticas se , subdividem por sua vez, de conformidade com a'siscemética dicorémica de Arist6teles, em dois grupos: as ciéncias “poiéticas” (ou seja, produtivas), que | nos ensinam a produzir coisas, € as ciéncias no sentido mais estrito, que nos aa mostram como agir; as primeiras visam a algum produto ou resultado, enquanto a pratica mesma do conhecimento adquirido € o proprio fim no caso das Gltimas. As primeiras incluem as profiss6es e os oficios ¢ as tltimas abrangem as chamadas “belas artes” (a misica e a danca, por exemplo), que sio em si mesmas um fim. A ciéncia pratica por exceléncia é a “politica”, isto é, a ciéncia do bem- estar ¢ da felicidade dos homens como um todo; ela é prética no sentido mais amplo da palavra, pois estuda no somente 0 que € a felicidade (0 assunto da Erica) mas também a maneira de obté-la (0 assunto da Politica); ao mesmo tempo ela é pratica no sentido mais estrito, pois leva a demonstracao de que a felicidade nao é o resultado de ages, mas é em si mesma uma certa maneira de agir Apés estes esclarecimentos, limitemo-nos agora & Politica Em sua maior parte as obras esotéricas de Aristételes assemelham-se a compilaces de varias “ligées" acerca dos diferentes aspectos do assunto em exame, reunidas as vezes sem muita concatenacéo para formar em conjunto um tratado abrangente. Esta observacao se aplica especialmente 2 Politica, aparentemente constituida de trés grupos de “licbes", ou exposicdes, aos quais faltou 0 toque final; por isto eles nao esto suficientemente entrosados e se sobrepdem parcialmente. Os trés grupos seriam em linhas gerais os segaintes: primeiro, os livros I, Il e III, & guisa de introdugao (a teoria do Estado em geral ea classificacao das varias espécies de constituices); segundo, os livros IV, V e VI, tratando da politica pratica (natureza das constituicdes existentes e dos principios para seu bom funcionamento); terceiro, livros VII e VIII, exami- nando a politica ideal (estructura da melhor cidade, obviamente inacabado) . Com efeito, € evidente em toda a Politica o tom de aula, ou exposicao de professor a alunos, como se sé tratasse de apostilas talvez organizadas por discfpulos com base nas ligdes do mestre, para sua preservacio e utilizacao futura. Dai a forma de cetto modo confusa em que a obra chegou até nossos dias, levando muitos estudiosos a propor uma nova seqiiéncia dos livros, por considerarem a disposicao tradicional dos mesmos completamente ildgica. Alguns editores modeérnos da Politica sugericam que os livros ‘VII e VIIL da seqiiéncia tradicional fossem postos no lugar dos livros IV e V, € 0s livros IV, V e VI fossem postos no lugar dos livros VI, VII e VIII, ou ainda no lugar dos livros VI, VIII e VII Os propugnadores da alteracio da seqiiéncia tradicional dos livros da Politica alegam a necessidade de estabelecer uma sucessao légica baseada no contetido dos mesmos, ¢ fazem correces.conjecturais no texto para criar referéncias cruzadas, de forma a justificar a seqiiéncia defendida por eles; na realidade, as ‘razdes fundamentadas nas referéncias cruzadas e na seqiiéncia logica do contetido parecem favorecer tanto ou mais.a ordem tradicional dos livros, e este fato reforca a posi¢do dos defensores da seqiiéncia dos livros constante dos manuscritos. As longas lucubrasdes dos estudiosos apenas evidenciam a forma solta da obra como a conhecemos, muito provavelmente resultante de sua condico de notas tomadas por alunos, ou apostilas*, Independentemente da ordem discutivel nd seqii@ncia dos livros ha tem- bém diferencas acentuadas de fundo e forma entre os préprios livros; 0 VII eo VIII, por exemplo, diferem dos trés primeiros por seu dogmatismo, e seu estilo mais elaborado leva a crer que eles se inspiram em obras mais cuidadas, certamente exotéricas. Hé também afinidades entre os livros II, Il, VII e VII e a Btica Eudémia. Os livros IV e VI se distinguem dos demais por seu carater eminentemente pritico e menos idealista; o livro V, principalmente, pela atencio dispensada 20s meids de preservar as formas de governo, mesmo as mais corrompidas, tem afinidades com O Principe de Maquiavel; estes trés livros diferem do resto da Politica: também pela quantidade de detalhes histéricos neles mencionados. E possivel que tais discrepincias se devam ao fato de as aulas que deram origem & Polftica datarem de periodos diferentes, a0 longo dos anos em que Aristételes esteve & testa de sua escola, durante os quais suas idéias podem ter- se modificado e amadurecido. ‘A despeito da aparente desordem na composi¢ao, a Politica € uma das obras de. Aristételes mais. interessantes para o leitor moderno, talvez pela permanente atualidade dos temas nela tratados. O fato ¢ que, para uma obra composta ha mais de 2.300 anos, a Politica justificaria por si mesma, em grande parte, a fama de Aristétéles ao longo de mais de dois milénios. Apesar de sua perenidade, para uma fruicio mais completa’da obra convém ter em vista certas peculiaridades da época em que foi concebida; entre elas sobressai a naturalidade com que Aristételes admite a escravidao e a justifica; nao se deve esquecer que mesmo os génios sao influenciados pelas realidades diante de seus olhos, sobretudo se elas se explicam por uma necessidade inelutavel, como a de os escravos na antigilidade serem o instrumento dé producio por exceléncia, equivalente as maquinas de hoje, € que certamente pareceria a ‘Aristételes mais justo, ou menos injusto, poupar nas freqiientes guerras estes instrumentos tinicos de trabalho, para depois escravizd-los, em vez de maté-los - cruelmente em sua condicao de prisioneiros; quando se acha natural a pior das formas de atrocidade, que é a guerra, todas as outras parecerao igualmente natarais, inclusive formas atuais de sujeigao, como a ideolégica, e de crueldade, como a praticada sob 0 impulso do fanatismo politico ou religioso. Melhor, porém, que emitir juizos subjetivos sobre Aristételes é par os leitores em contacto direto com ele, para que formem por si mesmos uma opinigo a respeito dos méritos ou deméritos do filésofo que“inegavelmente mais influenciou a filosofia ocidental, ¢ sobre o qual o severo Darwin disse: “Linnaeus and Cuvier have been my cwo gods, but they were mere schoolboys to old Aristotle.” (citagao de W. D. Ross no verbete ARISTOTLE do “Oxford Classical Dictionary”, pagina 116, inicio da coluna b) 10 Mario da Gama Kury 4. O estilo das obras esotéricas. Nada poderia caracterizar melhor os aspectos mais representativos do estilo de Aristéreles nas obras esoréricas do que uma observacao dele mesmo, no livro TIT, capitulo V, §§ 4 (final) e 5 (inicio) = 1279b: “0 método de quem estuda filosoficamente qualquer matéria, e nao apenas seu aspecto pratico, consiste em no negligenciar ou omitir qualquer detalhe.” Realmente, esta ceterminacao no sentido de ser exaustivo marca indelevelmente o estilo do autor da Politica (qu de seus compiladores que o repetiam), que nao recua diante da repeticéo e da monotonia para exprimir seu pensamento; € 0 estilo como conséqtiéncia do método. Esta preocupacao detalhista leva Aristételes a ser difuso € confuso as vezes, e muitos trechos da Politica ‘sao um desafio & argucia do leitor (e 0 pesadelo do tradutor). Mas em uma obra como a Polttica © fundo prevalece sobre a forma, e neste ponto tanté 0 leitor quanto o tradutor sentir-se-A0 recompensados em seu esforco constante para acompanhar 0 raciocinio do autor. A propésito, ‘vale a pena transcrever um trecho de carta do poeta inglés Thomas Gray (século XVIII), citado por H. Rackham na introdugao sua tradugio da Etica a Nicémacos (Londres, 1934), comentando o estilo de Aristételes: "Em primeiro lugar, Aristételes é de longe o autor mais dificil com © qual jamais me intrometi. Depois, éle é de uma concisio seca, que nos leva a imaginar que estamos consultando.um indice ¢ nao lendo um livro; para todo o mundo ele tem o gosto de palha cortada, ou melhor, de légica picadinha; ele tem uma violenta preferéncia por esse tipo de arte, ¢ de certo modo ele o inventou; sendo assim, ele freqiientemente se perde em distingdezinhas sem importancia € sutilezas verbais, e 0 que é pior, deixa-hos 0 encargo de sair desse emaranhado como pudermos. Em.terceiro lugar ele sofreu enormemen- _te nas mios de seus divulgadores, como acontece inevitavelmente com todos 03 autores que buscam o maximo de brevidade. Em quarto e dltiino lugar, ele abunda em coisas boas € incomuns, que o tornam mais que merecedor do esforco que exige de nds . 5. A traducdo. Procuramos fazer uma traducio fiel 3 forma e ao espirit do original, ou seja, reproduzir o que Aristételes escreveu e como ele escreveu. Muitas vezes surge a tentago de, para maior clareza, parafrasear o original, & maneica de numerosos tradutores; resistimos tanto quanto possivel, pois:se a obra é em si mesma de leitura dificil seria incorreto dar a impressio de uma falsa fluéncia Algumas dificuldades decorrem obviamente de erros introduzidos nos manus-. critos através dos muitos séculos decorridos em sua transmissio até as “Teubner, 3! edigio, Le tratados nos textos que transcreviam, & em certos casos separados por mais de um milénio do grego do tempo de ‘Aristéreles (os manuscritos.niais antiges da Politica que aos restam datam do século XV, ou.seja anteriores em apenas um século 2 sua primeira edicio). No caso destes erros, detectados pelos editores sucessivos de: Aristételes, mulriplicaram-se as propostas de correcdes dos erudités, e naturalmente os editores tém nao. somente ‘o direito mas até o dever de exercer 0 seu senso critico na escolha da conjectura que Ihe pareca mais condizente com-o.espirito do autor no conjunto da obra; 0 mesmo se aplica aos tradutores. Tais ocorréncias, todavia, raramente sao de molde a alterar 0 sentido geral das idéias. Quitras dificuldades resultam da obscuridade de certos trechos — felizmente nao muito numerosas, esctitos inicialmente de maneira poucd clara, mesmo para a época, ou tornados ininteligiveis com o passar dos séculos, pela impossibilidade de entender certas alusoes a fatos € Circunstincias Gbvios em seu tempo, mas cujo significado se diluiu completa depois de ‘mais de dois milénios. Nao se imagine’ que procuramos eximir-nos da responsabilidad Ss; queremos apenas evitar que nos s¢jam arribuidos os alheios. Afinal é amplamente reconhecida a dificuida- de de certas obras de Aristételes, ¢ esta circunstincia é bem ilustrada por uma observacdo de Ibn-Roschd (Averroes, fildsofo arabe nascido na Espanha em 1126 e comentador de Ariscéreles), citada por Renan em sua Vie d'Averroés: “Ua jour, disaic Ibn-Roschd, Iba-Tofail (Abentofail) me fit appeler et me dit: "Jai entendu aujourd'hui |'émir des cfoyants se plaindre de l'obscurité d’ Aris tore et dé ses traducteurs: Pliit d Diew, disait il, qu'il se rencontrat quelqu'un qui vouliit commenter ces livres et en expliquer clairement le sens, pour les rendre accessibles aux bommes!” (citado por E. M. Cope no frontispicio de sua obra An Introduc- tion to Aristotle's Rhetoric, don, 1867), Abencofail foi professor de Averroes. men Serviu'de base 4 no: traducio 0 texto editado por E. Susemihl na colecio 1882; consultamos também o texto € 0 aparato critico da edicao de Immanuel Bekker nas obras completas de Arist6teles para 2 Real Academia da Prussia, Berlim, 1831, cuja paginacio reproduzimos ao altc de nossa tradugio, por ser usada como referencia em quase todas as obras posteriores relativas 20 nosso autor; reproduzimos também a divisio tradicio- nal dos livros em capitulos, usada em obras anteriores a edicio de Bekker eem algumas traducées da Politica. ° ‘Nas passagens mais obscuras do texto consultamos as traducdes de Benja- min jowet (volume X das obras completas de Aristoteles, Oxford, 1921), de H. Rackham (Loeb Classical Library, London, 1932), e de Thurot, revista por Bastien (Paris, reimpressao de 1926): Rio, maio de 1982, - Notas & Apresentacao (a) E possivel que Aristételes, antes de ingressar na escola de Platao, haja freqiientado a de Isécrates, que depois de Homero é 0 autor mais citado nas obras do estagirita. (b) Para facilitar a composicio tipogréfica as palavras gregas so transcritas em caracteres latinos. : () Aqui, como em toda a traducio, “cidade” corresponde & cidade-estado, a polis helénica. (d) Outra evidéncia de que a Polftica, & semelhanca das demais obras esotéricas de Aristételes, é 0 resultado de aulas ou de exposicdes de um mestre a alunos anotadas por estes, é a abundancia de promessas nao cumpridas de voltar a assuntos nao tratados exaustivamente e de.examinar mais detidamente asstin- tos novos surgidos por ocasiao do exame de outros. (e) Provavelmente o Protréptico, hoje conhecido apenas por fragmentos, alias numerosos € extensos (os de n! 50 a 63 na coletanea de Rose), mas famoso na antigiiidade. POLITICA LIVRO Capitulo I Vemos que toda cidade! € uma espécie de comunidade, e toda Comunidade se.forma com vistas a algum bem, pois todas as aces de todos 05 homeas sio praticadas com vistas ao q’-e Ihes parece um bemise todas as comunidades visam a algum bem, é ev'dente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras te1a mais que todas este objetivo € visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade politica. : Aqueles? que pensam que as qualidades do rei, do dono de uma propriedade do chefe de familia sio as mesmas nao se exprimem bem:\ eles acreditam que a diferenga entre estas varias formas de autoridade nao € especifica, mas consiste apenas no maior ou menor niimero de pessoas a ela sujeitas, isto é,/quem manda em poucas pessoas é um chefe de familia, em, mais pessoas €"o0 dono de uma propriedade, em um numero ainda maior-é um estadista ou rei, como sé nao houvesse diferenca entre uma grande proptiedade e uma cidade, mesmo pequena) éles também pensam em relagao ao estadista e ao rei, que quando 0 governo é pessoal seu chefe € um réi,¢ quando o governo segiie os principios da ciéncia politica € os cidadaos ora governam, ora sio governados, seu chefe é um estadista; mas estas idéias nfo correspondem.a verdade. © que dizemos se tornard claro a quem examinar o assunto de acordo com © nosso método habitual *, Da mesma forma que €m outras matérias é necessario decompor o conjunto até chegar a seus elementos mais simples (estes so as menores partes de um todo),)com a cidade também, exami- nando os elementos dos quais, ela se compée discerniremos melhor, em relacio a estas diferentes espécies de mando, qual é a distingao entre elas, e saberemos se é possivel chegar a uma conclusio em bases cientificas a propésito de cada afirmacdo feita pouco antes/$e estudarmos as coisas em seu estagio inicial de desenvolvimento, quer se trate deste assunto ou de outros, teremos uma visio mais clara delas’ : As primeiras uniées entre pessoas, oriundas de uma necessidade 1252 a 1252 b natural, s20 aquelas entre seres incapazes de existir um sem 0 outro, ow seja a uniao da mulher edo homem para a perpetuacio-da espécie (isto no € 0 resultado de uma escolha, mas nas criaturas humanas, cal como nos outros snimais ¢ nas plantas, hé um impulso natural no sentido de querer deixar depois de um individuc um outro ser da mesma espécie), ea unio de um comandante ¢ de um comandado naturais para a sua preservacio reciproca (quem pode usar o seu espirito para prever é naturalmente um comandance € nacuralmente um senhor, ¢ quem pode usar 0 seu corpo para prover é comandado e naturalmente escravo); o senhor € 0 escravo tém, poriante, os mesmos interesses. cAssim a mulher € © éscrayo s&o diferentes por natureza (a natureza nada faz mesquinhaméante, como os cuteleiros de Delfos quando produ zem suas fucas* mas cria cada coisa com um unico propésito; desta forma cada instrumento ¢ feito com perfeicao, se ele serve no para muitos usos, mas apenas para um). Entre os barbaros, porém, a mulher ¢ 0 escravo ocupam a mesma posicio; a causa disto é que eles nao tem uma classe de chefes naturais, e em suas nacdes a unio conjugal é entre escrava € escravo. Por esta razio os poetas dizem> Helenos sio senhores naturais de barbaros", ¢omo se por natureza barbaro e escravo fossem a mesma coisa Destas duas unides, entéo, compde-se inicialmente a familia, e Hesio- do estava certo quando disse*: (Primeiro a casa, uma mulhes e um boi no arado”, pois 0 boi é 0 escravo do pobre. A comunidade formada naturalmente para as necessidades didrias € a .casa, ou seja, séo as pessoas chamadas por Carondas’ de “companheiras.do tabuleiro de pac”, e pelo cretense Epimé- aides’ "companheiros de lareira 1(A primeira comunidade de varias familias para satisfacao de algo mais que as simples necessidades diérias constitui um povoado. A mais aatural das formas de povoado parece consistir numa colénia oriunda de uma familia, composta daqueles que alguns chamam de “alimentados com o mesmo leite”, ou filhos € filhos dos filhos)Em decorréncia desta circiins- rancia nossas cidades foram inicialmente governadas por reis, e racas estrangeiras ainda 0 sao, pelo fato de se distribuirem em povoados organizados & maneira monérquica; como cada familia é dirigida por seu membro mais veiho, as colénias oriundas da familia também o eram, em virtude do parentesco de seus membros. E isto que Homero diz”: . cada um dita a lei 20s filhos € as esposas...”, pois eles vivem dispersos (assim se vivia antigemente). Por esta mesma razao todos os homens dizem que os.deuses tinham um rei, pois uns ainda sao © outros ja foram governados por reis (como os homens. imaginam os deuses:sob forma humana, supdem também que sua maneira de viv semelhante 2 deles). . A comunidade constituida a partir de varios povoados € a cidade definitiva, apds atingir o ponto de uma auto-suficiéncia praticamente completa; assim, 20 mesmo tempo que jé tem condig6es para assegurar a vida de seus membros, cla passa a existir ambém para Ihes proporcionar uma vide melhor. Toda cidade, portanto, existe naturalmente; da mesma forma que as primeiras comunidades; aquela dv estagio final de ureza de uma coisa € 0 Seu estégio final, porquantd o-que cada cx quando o seu crescimento se completa nds chamamos u de cada coisa, quer falemos de um homem, de um cavalo ou de ume familia, Mais ainda: 0 objetive para c qual cada coisa foi criada — sua finalidade — é 0 que liad de inelher pate ele, ea auro-suficiéncia € uma finalidade € 0 que ha de’melhor natures Estas consideracoes deixam claro que a cidade € uma criacao natural, © que. homem € por natureza uma animal social, © um. homem que por MacutezeeTao por mero acidente, nao Teesse-parte de cidade alguma, seria desprezivel ou estaria acima da humanidade (como o “sem cla, sem cis, sem lar” de que Homero” fala com escarnio, pois ao mesmo tempe ele é vido de combares), e se poderia compara-lo 2 uma pega isolada do jogo de gamao. Agor: dente que o homem, muito mais g outro animal gregaria, € um. animal su za nada f, sposito, € & homer n da fala. Na ve cial, Como cuscumamos €0 unico entre os mod lade, a simples vor pode inidicar a ‘outrus animais a possuem (sua envolvidd somente terndi-las reza foid acéo ponto de ter sensacdes do que € doloroso ou entre si), mas a fala com a finalidade de indicar » conveniente 0 nocive,¢ portanto também © justo € 0 injusco; a-caracteristica especifica do homem em ‘comperacivy com os outros animais .é que somente ele tem o sentimento do bem ¢ do mal, do justo e adavel e &: 9 injusto.¢ de outras qualidades morais, © € a comunidade de seres com eal sentimento'que constitui 2 familia ¢ e cidade Na ordém natural.a cidade cem precedéncia sobre a familia © sobre cada um de ns individyalhente, pois o todo deve necessariamente-ter precedéncia sobre as partés; com efeito, quando tédo 0 corpo é destruido pée mao-ja nao existem, a nao ser-de maneira equitoca, como quand diz que a mao esculpida em pedra € m&6, pois a mo nessas para nada servira e todas as coisas sdo'definidas por sua fungao ¢ atividade, de tal forma que quando elas j4 nao forem capazes de perfazer sua fungao nao se podera dizer que stv a0 mesmas coisas; elas terdo apenas o mesmo nome. E claro, portanto, que a cidade tem precedéncia por natureza sobre o individuo. De fato,se.cada individuo isoladamente nao é auto-suficiente, conseqiientemente em rélagio & cidade ele é como as outras partes em relacio a'seu todo, e um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja auto‘suficiente a ponto de nao ter necessidade de fazé-lo, nao € parte de uma cidade, por ser um animal selvagem ou um deus. Existe naturalmente em todos os homens o impulso para participar de tal comunidade, ¢ 0 homem que pela primeira vez uniu os individucs assim foi o maior dos benfeitores. Efetivamente, o homem, quando perfeito, é 0 melhor dos animais, mas é também o pior de todos quando afastado da lei € da justica, pois a injustica é mais perniciosa quando armada, e 0 homem nasce dorado de armas para serem bem usadas pela inteligéncia e pelo talento, mas podem sé-lo em sentido inteiramente oposto. Logo, quando destituido de qualidades morais 0 homem € 0 mais impiedoso e selvagem dos animais, ¢ 0 pior em relagio ao sexo ¢ A gula. Por outro lado, a justica € a base da sociedade; sua aplicacao assegura a ordem na comunidade social, por ser o meio de determinar 0 que € justo. Capitulo II ‘Agora que conhecemos claramente as partes componentes de uma cidade, temos de falar primeiro do chefe de familia, pois toda a cidade se compée de familias. A fungao do chefe da familia se.desmembra em partes correspondentes aos elementos dos quais a familia por sua vez se compde, ea familia, em sua forma perfeita, é composta de escravos e pessoas livres. Tudo deve ser investigado primeiro em seus elementos mais simples, € os elementos. primarios e.mais simples de uma familia sio o senhor e 6 escravo, o marido € a mulher, 0 pai e os filhos; cumpre-nos portanto investigar 0 que é cada uma destas trés relagdes € 0 que deveria ser, ou seja, as relacdes entre senhor e escravo, as relagées matrimoniais? (nfo existe uma palavra exprimindo exatamiente as relaces que unem a mulher € 0 marido) em-terceiro lugar as relagdes entre pais e filhos, que também nao tém uma denominacao propria; sao estas as relacdes de que falaremos: agora. Ha outro elemento que algumas pessoas identificam com a chefia da familia e outras consideram sua parte mais importante; examinaremos também sua natureza (refiro-me 4 chamada arte de enriquecer). Falemos inicialmente do senhor e do escravo, investigando as necessidades da vida pratica e procurando também chegar a uma teoria melhor do que as exigtentes atualmente sobre suas relacées. Alguns estudiosos opinam que © exercicio da autoridade do senhor é uma ciéncia, ¢ que a funcao do chefe de familia, a do senhor, a do estadista € do rei sao a mesma coisa, como dissemds de inicio. Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos € contréria & natureza, e que a distincao entre escravo e pessoa livre é feita somente pelas leis, e nio.pela natureza, e que por ser baseada na force tal disting&o é injusca. Os (bers sio um dos elementos constituintes da familia ¢ a arte de enriquecer é parte da funcao do chefe de familia (sem 0 minimo necessario & existéncia nfo é possivel sequer-viver, € muito menos viver bem). Da mesma forma que nas atividades diferenciadas os obreiros devem ter os instrumentos apropriados a execucao de seu trabalho, o chefe de familia 1253 b 12544 deve ter seus proprios instrumentos; alguns instrumentos so inanimados, outros s4o vivos (por exemplo, para o piloto o timao é um instrumento inanimado € o marinheiro vigilante oa proa das naus é um instrumento vivo, pois o elemento auxiliar em qualquer atividade € um instfumento); assim, os bens sao um instrumento para assegurar a vida, a riqueza é um conjunto de. tais instrumentos, 0 escravo é um bem vivo, e cada auxiliar & por assim dizer um instrumento que ‘aciona os outros instrumentos. N verdade, se cada instrumenco pudesse executar a sua missao obedecendo 2 ordens, ou percebendo antecipadamente 0 que lhe cumpre fazer, como se diz das estatuas de Daidalos'' ou dos wipodes de Héfaistos que, como fala © poeta”, “entram como aurématos nas reunides dos deuses”, se, entio, as lancadeiras tecessem ¢ as palhetas tocassem citaras por si mesmas, Os comstrutores nfo teriam necessidade de auxiliares e os senhores nao necessitariam de escravos. Os instrumentos mencionados sio instrumen- tos de producdo, ao passo que’os bens sao um instrumento de acao!: com efeito, de uma lancadcira obtemos algo mais que seu simples uso, mas uma Foupa ou um leito s’o apenas usados. Como existe uma diferenca especifica entre producao e aco, ¢ ambas requerem instrumentos, resulta que tais instrumentos devem apresentar a mesma diferenca, Mas a vida & acao, © no produgao, e portanto 0 escravo é um auxiliar em relago 20s instrumentos de acao. Falamos em “bens” no sentido de “partes"; uma parte € nao somente parte de outra, mas pertence totalmente 2 outra, € acontece © mesmo com os bens; logo, o senhor é unicamente o senhor do escrayo, € nao Ihe pertence, enquanto o escravo é no somente 0 escravo (do senhor, mas Ihe percence inteiramente. por natureza nfo a simesmo, mas 2 outra pessoa, uma pessoa é um ser humano pertencente a rc humanc, ele é um bem,.c¢ um.bem é um separavel de seu dono. Em seguida deveremos alguém que seja assim: por natureza, e se & conveniente ¢ justo para alguém ser um escravo ou se, a0 contrario, toda escravidao é antinatural. Nao é dificil atinar reoricamente com a resposta ou aferir-the a.cereza pelo que realmente acontece.ptandare Shedece} 340 condicdes nfo somente Taevieiveis mas timbém convenientes Agu Vitéveis mas também convenienres JA /Stres, com cfeiro, desde a hora dé set HaSCIMeNtO SEO Barcados | mandados ou para mendar, e h4 muicas espécies de mandantes e mardados (a autoridade € melhor quando € exercida sobre stiditos melhores: por exemplo, mandar num’ser humano é melhor que mandar num animal selvagem; a obra é melhior quando executada Por auxiliares melhores, ¢ onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer. que houve uma obra), pois em todas as coisas compostas, onde uma pluralidade de partes,” seja continua ou descontinua, é combinada Para constituir um todo tinico, sempre se verd alguém que manda e alguém que obedece, e esta peculiar. dade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorréncia da natureza em seu todo, pois mesmo Onde nfo hé vida existe um principio dominante, como no caso da harmonia musical", ‘Mas estas consideracdes fogem as nossas indagacdes presences. Em primeiro lugar, um animal é coastitufdo de'alma e corpo, e-destas partes'a primeira é por natureza dominante e 2 segunda é dominada. Para descobrir o que é natural devemos conduzir as nossas investigaces de preferéncia para es coises em seu estado nacural, ¢ nfo para as deteriora des. Consegiientemiente, ao estudar 0 homém cumpre-nos considerar aquele que esté nas melhores condigdes posstveis de corpo e alma; nele apareceré claramenté 0 principio por nés enunciado, pois naquelés que sio maus ou estio em més condigées pode-se ser levado a’pensar que © corpo muitas vezes comands a alma por causa de stias condicées deteriora- das ow contra a nacurezé. De conformidade com o que dizemos discernir a nacureza do comando do senhor ¢ do n senor, ¢2 in vivo que se pode ca: a alma domina 0 corpo com a'prepotéacia de.u a aucoridade de um.estadista ou fei; estes exempl para © corpo é ‘© cofiveniente ser gove: parte emocional ser governada pela inteligéncia enquanto para 2s duas é nocivo em todos os videnciam @ alia, € para e dotada de razao, ou em posicées con Arias As mesmas consideracdes se aplicam aos animais em relacio ao homem: a natureza dos animais domésticos é superior.& dos animeis sclvagens, ¢ portanto para todos os 'primeiros € melhor ser dominado: pelo homem, pois este condicéo Ihes dé seguranca.7Entre os sexo! tafibém, 0 macho € por nafurez@ Superior © a [emea inferior; aquele domine ¢ esta é dominada; 0 mesmo principio se aplica necessariamence 2 tado 0 género humano;/portanto, todos os homens que diferem entre si pari pior Ao mesmid grau em que a alma difere do corpo 0 ser humano difere de um animal inferior (e esta é a condicio daqueles cuja funcao é usar 0 corpo € que nada melhor podem fazer), sfo naturalmente escravos, e para eles é meihor ser sujeitos & autoridade de um senhor, tanto quanto © € para os seres jé mencionados. E um escravo por natureza quem é susceptivel de pertencer a outrem (e por isto é de outrem), e participa da tazio somente até 6 ponto de apreender esta participagio, mas nic a usa além deste ponto (os outros animais nao séo capazes sequer desta apreensio, obedecendo somente a seus instintos). Na verdade, a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais servicos corporais para atender as necessidades da vida sfo prestados por des da vide sa ACOs Por ambos, tanto pelos escravos quanto pelos animais domésticosfA intencac ‘da naturéza € fazer também _os corpos dos homens livres e dos escravos. diferentes — os tiltimos fortes para as atividades servis, os primeiros Cerectos, incapazes para’ tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadaos \ / 12546 12554 (esta se divide em ocupagées militares e em ocupac6es pacificas); embora aconteca freqiientemente 0 oposto — escravos tendo corpos de homens livres € estes apenas a alma que lhes é propria, é evidente que se os hoinens livres nascessem tao diferentes de corpo quando as estétuas dos deuses, todos diriam que os infetiores mereceriam ser escravos de tais omens; se isto é verdade em relacio.ao corpo, ha razées ainda mais justas para a aplicacao desta regra no caso da alma, mas nao se vé a beleza da alma tao facilmente quanto a do corpo. E claro, portanto, que ha casos de pessoas livres € escravas por natureza, € para estas Ultimas a escravidao & oposto esto também de certo modo com a tazio./De fato, os termo eseravidao” € “escrat Saciavo” Go ambigacs, pols hi excrhios e escravidao até| por forca de lei, de fato, a lei de que falo é uma espécie de convencaol. segundo a qual tudo que é conquistado na guerra pertence aos conquista-| lores,/Este_direito convencional € contestado por muitos JUrstas por instituir”ume lei_conéréria_a outa", cles consideram feplpnante qee alguém com podér bastante para usar a violéncia, ¢ superior em forca, Possa manter a vitima de sua violéncia na condicao de escravo e stidito, Mesmo entre os sabios ha quem pense de uma manéira ou de outra. Masa Fazio dessa divergéncia e o que faz com que as doutrinas se atritem, € 0 fato de, até certo ponto, o mérito, quando dispde de meios, ter realmente um poder maior para usar a forca; como s6 se encontra uma forca superior onde ha um mérito superior de alguma espécie, o mérito parece inerente & forca'’, € a disputa é simplesmente acerca da justica (um lado sustenta que “OTundaiiento da justia €@ benevoléncia, enquanto 0 outro identifica a justica com o poder mais forte); se estes pontos de vista forem dissociados €.se se estabelecer entre eles esta distin¢4o, os outrés ja nao terio peso ou plausibilidade contra a teoria de que o homem superior em mérito deve comandar e ser o senhor"’. Algumas pessoas, tentando apegar-se obstina- damente a algum principio de justica (pois a lei é um principio de justica), afirmam que a escravizacio de prisioneiros de guerra é justa; ao mesmo tempo, todavia, elas contradizem a afirmacdo, pois h4 a possibilidade de as guerras serem injustas em sua origem, e nao se admitiria de forma alguma que um homem que nao merecesse a escraviddo pudesse tornar-se real- mente escravo — de gutra forma, pessoas da mais alta nobreza passariam a ser escravos e descendentes de escravos sé fossem aprisionadas em guerras e vendidas. Elas, portanto, nao querem dizer que os préprios helenos, se’ aprisionados em guerra, s4o escravos, mas.que os barbaros sio. Quando falam assim elas esto apenas buscando os principios de uma escrevidio natural, da qual falamos no principio, pois sio compelidas ‘a dizer que existem certas pessoas essencialmente escravas em toda parte e outras em parte alguma. O mesmo se pode dizer em relagdo a nobreza: as pessoas nobres entre nés se consideram nobres nao somente em suas cidades mas em toda parte, embora pensem que os nobres entre os barbaros s40 nobres somente em sua prépria terra (isto equivale a dizer que hé duas espécies de 1255 b nobreze € de liberdade, uma absoluta e outra relativa, como diz a Helena «de Teodectes*: : “Mas quem se atreveria a me chamar de serva, a mim, que por dois lados descendo de deuses?"). Falando assim elas baseiam a distingao entre escravo e homem livre apenas nos conceitos de nobreza e de humildade; presumém que, da mesma forma que de um homem se origina outro homem e de um animal outro animal, de-um homem bom nasce outro homem born; mas a natureza, embora queira fazer isto na maioria das vezes, nem sempre consegue. E claro, entao, que ha um certo fundamento para a divergéncia, e que nem todos, sio escravos ou homens livres por natureza, bem como que em alguns casos existe a distingao, quando a escravidio para um e o dominio Para outro sao convenientes, e que é justo e inevitavel para um dos lados ser governado e para o outro governar segundo a sua propria natureza, ou seja, exercendo.o comando; 0 abuso dessa autoridade é: inconveniente Para ambos os lados, pois o que é conveniente para uma parte é também para o todo, e.o'que é conveniente para o corpo é igualmente conveniente para a alma, € 0 escravo € parte de seu senhor — parte de um corpo, viva mais separada dele; logo, ha uma certa comunidade de interesses € amizade entre 9 escravo.€.0 senhor.quando eles. sao qualificados pela natureza para as respectivas posicGes, embora quando eles nao as ocupam nestas condi¢des mas em obediéncia a lei e por compulsio, aconteca o contraric. Estas consideraces evidenciam que a autoridade de um senhor sobre escravos e a auroridade de um governante nao sio comparaveis, € que nem. todas as formas de mando sao iguais, como algumas pessoas afirmam. Com efeito, ha uma forma aplicével aos homens naturalménte livres, ¢ outra aos escravos; a autoridade do chefe de familia é do tipo monérquico, pois cada familia € governada por um chefe, enquanto a aucoridace politica‘é exercida sobre homens livres ¢ iguais. O genhor nao _ tem este nome pelo fato de possuir algum conhecimento cientifico, mas Por ser o que é, e a mesma observacio se aplica 20 escravo @ ao, homem livre. "Mas pode haver uma.ciéncia do senhor e uma ciéncia do escravo (esta exa ensinada em Siracusa” por um homem que, mediante salério, transmitia As criangas 0 conhecimento dos deveres servis rotineiros); de fato, pode haver estudos cientificos mais profundos sobre tais matétias, como por exemplo os referentes arte Culinaria e outras modalidades de servicos domésticos, pois’ cada servical tem sua funcio, algumas mais importantes, outras’' mais obscuras e, como diz 0 provérbio. “Escravo em frente a escravo, senhor em frente a senhor”® Todas estas ciéncias, todavia, so servis. A ciéncia do senhor, por sua vez, ensina a usar os escravos, pois a fungio.do senhor nao é adquirir escravos, mas usé-los. Esta ciéncia nada tem de grande ou notavel, pois ela apenas ensina o senhor a dirigir as tarefas que o escravo deve saber como executar; na verdade, as pessoas ricas que do querein sujeitar-se.a situacdes desagradaveis ‘tém empregados que assumem este encargo, enquanro elas se dedicam & politica ou a filos ciéncia da aquisicao de escravos — da aquisicio legitima, quero dizer — difere das oucras duas, ou seja da ciéncia de ter escravos e da ciéncia de ser escravo, ¢ sob alguns aspectos sé assemelha a estudo da guerra ¢ sob outros ao da caca, Mas basta de distingées entre escravo e senhor Capitulo III Investiguemes, entéo, a propriedade em geral e a arte de enriquecer, de acordo com nosso método usual, pois j4 vimos"' que o escravo € parte da propriedade. Em primeiro Jugar pode-se indagat se a arte de enriquecer é a mesma que a economia doméstica, ou uma paste dela, ou subordinada a ela, se 0 € no mesmo sentido em que a arte de fazer lancadeiras é entido-em que a arte de fandir 0 subordinada @ arte de tecer, ou no 5 bronze € subordinada a escultura (as duas nfo S40 subdrdinadas de maneira idéntica; a producao de langadeiras proporciona instrumentos, enquanto @ fundicio de bronze’ supre material, ¢ chamo matetial a substancia com a qual uma certa obra é ptoduzida - por exemplo, a 1 é 0 jal para c tecelao e o bronze para o esculror) claro, portanto, que 2 arte de enriquecer nao é a mesma coisa que administrar a casa, porquanto a funcao da primeira ¢ proporcionar € a da Ultima é usar (qual seria a-arte do uso do contetido da casa senao a economia’ doméstica?) Quanto a ser a arte de enriquecer uma parte da economia doméstica, é essunto controverso. Efetivamente, ‘se quem se dedica a enriquecer tem de descobrir onde € possivel ebter bens ¢ didheiro, mas ha muitas espécies de bens ¢ riquezas, entio antes de mais nada @ agricultura é uma parte da.economia doméstica ou é uma ciéacia diferente? A mesma pergunta se aplica & conservacio e & aquisigao de géneros alimenticios, ‘Ademais, ha muitas espécies de géneros alimenticios e ha, portanto, modos de vida diferentes, seja para os animais, seja para os homens, pois € impossivel viver sem.alimentos, de tal modo que as diferencas entr’: os alimentos fizeram com que os modos de vida dos animais também fossem diferente. Dos animais selvagens, alguns sao gregarios, outros sao solité- rios, como conseqiiéncia da adequagdo de seus habitos & obtenc&o de alimento, pois alguns deles sao carnivoros, outros herbivoros e outros onivoros; assim a natureza diferenciou-lhes os modos de vida para adequa- jos & disponibilidade de alimentos ¢ & sua predilecio por eles. Como as diferentes espécies de animais preferem alimentos diferéntes, em vez de materia i256 a 1256 b todos gostarem dos mesmos, até entre os animais carnivoros € os herbivo- tos os modos de vida de uns diferem dos outros. O. mesmo acontece na espécie humana, pois ha grandes diferencas de modo de vida entre os homens; os mais indolentes séo ndmades, ja que obter alimento & custa de animais domésticos nao requer fadiga ou operosidade; tendo os rebanhos de deslocar-se de um lugar para outro em busca de pasto os préprios homens sao também forcados a seguir com eles, comio se estivessem explorando uma fazenda mével. Outros homens vivem da caca, € povos diferentes vivem de tipos deferentes de caca (uns, por exemplo, sao ladrées de rebanhos, outros séo pescadores — os habitantes das margens dos lagos, pantanos e rios ou de mares propicios & Pesca — € outros vivem de aves ou de animais selvagens). A maior parte dos homens, porém, vive da terra e dos frutos de seui cultivo. Sao estes praticamente todos os modos de vida existentes entre os homens cuja atividade se restringe ao seu labor individual e que nao obtém seu alimento através de trocas ou comércio — os modos de vida dos pastores, dos lavradores, dos salteadores, dos Pescadores, dos cacadores, Outros também vivem pacatamente, combinando algumas dessas atividades, com- pensando as deficiéntias de uma delas com as outras de’modo a serem auto-suficientes; por exemplo, uns combinam a vida de pastor com a de salteador, outros a lavoura com a caca, e assim por diante, pasando o tempo em tais combinagGes de objetivos de acordo com suas necessida- des. Os meios de obter os alimentos estritamente necessarios sio eviden- temente um dom que a natureza concede a todos os seres, nio somente nos primeiros dias de sua existéncia, mas também quando atingem a maturidade. Alguns animais produzem, juntamente com suas crias, 0 alimento suficiente. até que sua descendéncia, possa prover o préprio sustento (por exemplo, todas as espécies que procriam sob a forma de larvas ou ovos). Os seres das espécies viviparas trazem o sustento para suas crias dentro de si mesmos durante certo tempo — a substancia chamada leite. Devemos portanto inferir que a natureza Ihes proporciona meios de subsisténcia também depois de crescidos, e que as plantas existem para o bem dos animais ¢ os outros animais para o bem do homem, e as espécies domésticas existem tanto para seu servico quanto para seu alimenito, € se nfo todas, ao menos a maior parte das espécies selvagens para seu alimento€ para satisfazer-Ihe outras necessidades, proporcionando-lhe roupas ¢ varios instrumentos. Se, portanto, a natureza nada faz sem uma finalidade ou em vio, necessariamente a natureza fez todos os animais por causa do homem. Sendo assim, mesmo a arte da guerra sera por naturezae de certo modo uma arte da aquisicao’ (a arte da caca é uma parte dela) quando usada adequadamente contra animais selvagens e contra homens que, embora marcados pela natureza para a sujeicao, se recusam a aceité- la, mormente porque este género de guerra € por natureza justo, Ha, Portanto, una espécie de arte da aquisicao que € por natureza uma parte da economia doméstica, uma vez que esta deve ter disponiveis, ou proporcionar ela mesma, as coisas passiveis de acumulacao necessarias 4 1257 a vida e teis 2 comunidade composta pela familia ou pela cidade. Tais coisas parecem constituir a verdadeira riqueza, pois a quantidade desses bens necessarios por si mesmos a uma vida agradavel nao é infinita, apesar de Sdlon® dizer: "Nao foi fixado para o homem um limite de riquezas.” Na verdade, foi fixado um limite, tal como para as outras artes, pois nenhum instrumento pertencente. a qualquer arte é infinito, quer em . nimero, quer em tamanho, ¢ as riquezas s4o um aglomerado consideravel de instrumentos para o chefe de familia ou para o estadista. EB dbvio, entio, que ha uma arté da aquisi¢ao, naturalmente pertencente ao chefe de familia e ao estadista,'e que ha razdes para isto. Existe outro género de arte da aquisicio, chamado freqiiente © _ justamente de arte.de enriquecer, e este originou a nogao de que nao ha limites para as riquezas € aquisicées; devido. sua-afinidade com a arte da aquisicao.de que falamos, muitas pessoas supdem que se trata de uma s6 arte; realmente, embora ela nao seja idéntica a arte da aquisicao menciona-_ - da, também nfo esté muito distante da mesma. [ma dees natural ¢ 4) (outta nio é, resultando de certa experiéacia e habilidade /Podemos iniciar ‘© seu estudd com @ Seguinte observacao: ha duas maneiras de usar cada bem; ambos os usos se relacionam com o réprio bem, mas. nfo se relacionam da’ mesma maneira — uma é peculia: A coisa e a outra nao Ihe é aoutran peculiar, (Tomemos como exeniplo unr sapato: el? pode ser calcado e pode) Ser permutado, e ambas as situacdes sio maneiras de utilizar-se de um? \capstos com defelze, mesmo quem permute um spate por diaheiro ou génefos alimenticios, com quem.o quer possuir, utiliza-o como sapato, embora no seja este 0 uso especifico do sapato, que ndo foi criado com 0 propésito de ser permutado. 5 { Observacéo idéntica se aplica a outros bens, porquanto a permuta> } (‘Bode estender-se a todos eles, e em sua origem ela é natural, c coisas os homens tém de mais, e outras de menosf Esta constatagio prova qué a arte da aquisigao nao € por natureza uma parte da atte de enriquecer, pois a arte da aquisicao ei Aci ara satisfazer as necessida- des proprias do. hhomern,/Na comunidade primitive OU set familia, nao i avia lugar para o comércio, g ue sé ay ce quando 2s comunidades se_} |tornam mais numerosas.\Os membros da comunidade primitiva costums- ‘vam partilhar os produtos que tinham; ao-contrario, um agrupamento dividido em diversas familias tinha acesso também a numerosos produtos pertencentes a seus vizinhos, de acordo com as necessidades que o forcavam a partilhar por meio de trocas, como niuitas tribos barbaras ainda fazem; tais tribos, alids, nao vao além da permuta de alguns produtos por outros, por exemplo entregando vinho em troca de grios, e fazendo o mesmo-com varios produtos semelhantes. js permuta deste tipo nao era} portanto, contraria A natureza, nem era pafte da arte de enriquecer, pois existia apenas para preencher lacunas com vistas & auto-suficiéncia; dela, porém, originou-se a arte de comerciar; com efeito, essas comunidades, depois de suprir-se mais ¢ mais de produtos vindos de fora, obtendo aqueles de que eram carentes € fornecendo aqueles que Ihe sobravam, tinham necessariamente de instituir 0 uso do dinheiro, porquanto as coisas naturalménte nécessérias A vida muitas vezes ao sao faceis de Coadwair; cOnsequentemente os homens, para efeito de permutas, pactuaram dar e Feceber certas substancias que fossem por si mesitias produtos ateis ¢ faceis de conduzir nas circunstancias normais da vida (o ferro, por exem- plo, a prata € outros da me: ), definidas de inicio apenas por su Tamanho © peso, mas finalmence marcadas com um simbolo, de modo a dispensgr oy uswarios da obrigaco de pesi-las, pois o simbolo indicava o seu valor. As: ia im, com a invengae da mocda, em decorréncia do indispea> savél intercimbio de produtos, passow a existir outra forma da arte de entiquecér_o cSmiéccio;-que-w principio apareceu_como uma insti { simples, mas posteriormente se tornou muito mais complexa, jose a experiéncia revelava fontes ¢ métodos de permuta capazes de proporcionar maiores’ lucros| Dat emiérgin a idéla de qué a ate de enriquecer ést& especialmente vinculada ao dinheiro, e que sua funcio é descobrit as fontes capazes de proporcionar um suprimento meior de produtos, no pressuposto de que esta arte cria riquezas e possés; efetiva- , Mente, presume-se que a riqueza consiste ém grande quantidede de { dinheiro, pois € com o dinheiro que se fazem os negécios e 0 comércio. fm outras pocas, ao COnMTaTIO, PENSAVESE GUE Oo dinhéiro era uma tolice, uma simples convencio sem qualquer fundamento natural, pois quando se adotam outros meios de troca ele nada vale, nao tendo em si mesmo qualquer utilidade na satisfacao das necessidades basicds da vida, de tal, maneira que um homem dispondo de dinheiro pode muitas vezes carecer)) do minimo necessario & subsistencia’ye UE ACOMEECET 6 absurdo “delim homem dispor de“dinheiro em abundancia e morrer de fome, como , (0 famoso Midas da lenda, que devido a sia insacidvel ambicao foi levade a fazer uma prece em consequéncia da qual todos 05 alimentos a ele servidos / _.S¢_transformavam em ouro(Por isso procura-se uma definicao diferente para a riqueza e para a arte de enriquecer, e quem procura tem razo, pois a arte de enriquecer ¢ a riqueza ‘naturais sao diferentes; a arte natural de enriquecer pértence & economia doméstica, enquanto a outra pertence ao comércio, gerando a riqueza nao de qualquer maneira, mas pelo sistemade permuta de produtos/ sta arte de enriquecer parece relacionada com ©) dinheird, pois 0 dinheiro é o primeiro elemento € 0 limite do comércio’ A qiqueza derivada desta arte de enriquécer €itimicada, pois da mesma forma » que a arte da medicina é ilimitada quanto & busca da satide, e cada arte é€ ilimitada quanto & sua finalidade (elas querem atingir suas finalidades o maior ntinero possivel de vezes, enquanto elas nao sao ilimitadas relativa- mente 20s meios para atingir 0s seus fins), esta arte de enriquecer nio tem limites quanto ao seu fim, e seu fim é a riqueza e a aquisicao de produtos no ‘sentido comercial. Mas o ramo da aite de enriquecer restrito A 1258 economia doméstica tem um limite, na medida em que’ ganhar dinheiro nao a fungao da economia doméstica: Deste ponto. de vista, portanto, parece necessério haver um limite a toda a riqueza, mas na realidade observamos que acontece 0 contrério, pois todas as pessoas engajadas e enriquecer tentam aumentar o seu dinheiro a0 A razio disto éa ‘estreita afinidade existente entre os dois ramos da arte de enriquecer. Em ambos o instrumento € 0 mesmo; éles usam os mesmos bens, embora nao o facam da mesma forma — o fim de um € 0 incremento das posses, enquanto o do outro é-diferente. Por isto algumas pessoas supdem que a fungao da economia doméstica € aumentar as posses, e esto sempreSOb a impressfo de que seu dever é preservar-lhes o valor em dinheiro ou sumentéclas infinitamente.fA causa deste estado de espirito é 0 fato de a} intencio destas pessoas ser apenas viver, € nao viver bem; da mesma formal aue o desejo de viver €ilimirado, elas querem que os meios de satisfazé-lo} ambém sejam ilimitad 7 ezubém sejam iimitados —__ As proprias pessoas cujo objetivo é uma vida agradével perseguem-na medindo-a pelos prazeres do corpo, de tal forma que, como estes parecem depender da posse de bens, todas as. suas energias se concentram na atividade de enriquecer, e consequentemente surgi a segunda espécie de” arte de enriquecer. Como seus desejos de tais prazeres so excessivos, essas pessoas tentam descobrir uma arte capaz de lhe proporcionar praze- res excessivos, € se nio conseguem obté-los com a arte de enriquecer, rentam chegar a eles por outros meios quaisquer usando cada uma de suas faculdades de maneira contréria A natureza, A funcio da coragem nio é produzir a riqueza, mas inspirar ousadia; também nao € esta a funcio da arte militar, nem da arte médica, mas-compete & primeira conseguit a vitdria e & tiltima preservar a’satide. Tais pessoas, porém, transformam =. todas estas faculdades em meios-de proporcionar riqueza, na_conviccdo de que a riqueza é-0 fim a atingir e que tudo mais deve contribuir para s, consecucio deste fim. [Discutimos o ramo da arte de entiquecer que trata} do supérfluo, definindo-o e explicando a razio de recorrermos a ele, ¢ 0) ramo que trata do’ necessario mostrando que este tiltimo, dedicado a) assegurar a subsisténcia, € diferente do consagrado ao supérfluo e é por atureza parte da economia doméstica; ele nao se assemelha ao ramq! | lirpitado, pois tem um limite, ne ‘Agora podetnos também responder & pergunta feita no principio, ou seja, se a arte de enriquecer € fungao do chefe de familia e do estadista ou se, a0 contrario, os suprimentos devem estar disponiveis de antemio, pois, de mesina forma que a ciéncia politica nao cria seres humanos, mas, recebeado-os da natureza, faz uso deles, compere & natureza proporcionar alimeato por meio da terra, ou do mar, ou de algo mais, enquanto a tarefa do chefe-de familia é, partindo destes suprimentos recebidos antecipada- ” . mente, dispor deles da maneira mais adequada, De fato, nao cabe a arte de 1258 b tecer produzir 1a, mas usé-la, ¢ também saber que espécie de ld é boa'e apropriada, ou m4 e imprépria. Se assim nfo for, deve-se perguntar por que a obtencao de riquezas é parte da economia doméstica, enquanto 2 arte da medicina nao é parte dela, embora os membros da familie devam ser saudaveis, da mesma forma que eles devem estar vivos ou preencher quaisquer outras condicdes essenciais. Mas, apesar de caber de certo modo 20 chefe de familia e ao governante cuidar até da satide, por outro lado isto nfo Ihes compete, e sim ao médico; também a respeito da riqueza, embora ela seja de certo modo de alcada da economia doméstica, por outro lado ela nao é, competindo a outra arte subordinada a segunda cuidar da primeira. De qualquer modo seria melhor, como jé foi dito, que os meios de subsisténcia fossem proporcionados antecipadamente pela natureza, pois € funcio-da natureza assegurar o alimento &s suas criaturas, j4 que todas as criaturas recebem o.alimento de quem as cria. Conseqiientemen- te, a arte de obter riqueza através dos frutos da terra ¢ dos animzis pode ser praticada naturalmente por todos. Como dissemos.antes”, esta arte se desdobra em duas, ¢ um de seus ramos é de natureza comercial, enquanto 0 outro pertence 4 economia doméstica; este tiltimo ramo € necessério e louvavel, enquanto o ramo ligado & permuta é justamente censurado (ele nao € conforme a natureza, € nele alguns homens ganham & custa de outros). Sendo assim, a usura é detestada com muita razo, pois seu ganho vem do préprio dinheiro, e nao daquilo que levou & sua invengao. Efetivamente, 0 objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta, mas os juros aumentam a quantidade do proprio dinheiro (esta é a verdadeira origem da palavra*: a prole se assemelha aos progenitores, e os juros so diaheiro nascido de dinheiro); logo, esta forma de ganhar dinheiro é de todas a mais contraria & natureza. Capitulo IV. Ja definimos adequadamente o aspecto cientifico do assunto, € devemos discuti-lo agora do ponto de vista prético, embora, apesar de @ teoria de-tais matérias ser um tema digno de homens livres, seu lado prético'seja considerado desabonador, condizeate apenas com pessoas de condico inferior. Na pratica, os ramos tteis da arte de enriquecer séo, primeiro, um conhecimento especializado daquilo que se possui, do que é mais vantajoso, e onde ¢ em que condicdes a vantagem é maior (por exemplo, as diversas racas de cavalos, bois, carneiros e outros animais — é nlecessatio ser um pefito a respeito da vantagem de uris comparados com outtos, da maior vantagem das varias racas nas diversas regides, pois algumas se dio melhor em certas regides ¢ outras em regides diferentes); em segundo lugar, o conhecimento da agricultura, e este se subdivide em ~ preparar a terra.e plantar; também a apicultura, a pesca e a avicultura podem ser tteis. Esteg sio os ramos e primeiros principios da arte de enriquecer propriamente dita. Da -outra, que trata da permuta, 0 ramo mais importante € 0 comércio, com suas trés subdivisdes: a navegacio, 0 transporte terrestre ea venda, que também diferem entre si por serem uma mais seguras ¢ outras mais lucrativas; o segundo ramo € 0 empréstimo de dinheiro eo. terceiro.é o trabalho assalariado, do qual uma das subdivisdes € a dos artifices e a outra é a dos serventes € trabalhadores bracais, treis somence por sua forca fisica. H4 uma terceira forma de arte de enriquecer, situada entre a que trata da permuta e a arte de enriquecer propriamente dita, pois ela possui ao mesmo tempo um elemento da arte natural de enriquecer e do ramo que lida com a permuta: ela se relaciona com os’ produtos extraidos da terra e’as coisas que crescem da terra e, embora no déem frucos, podem ser titeis, como por exemplo todas as formas de mineracio € o corte das 4tvores respectivamente; quanto & mineracao, ela se subdivide em varios tipos, pois ha muitas espécies de metais obtidos da expioragao da terra. Dessas atividades as mais técnicas so aquelas em que os facores aleatérios se reduzem ao minimo possivel; as 1259.4 mais mecdnicas so, aquelas que causam nos obreiros 0 maior desgaste fisico; as mais servis sao aquelas em qué o corpo é mais usado, e as mais ignébeis sio as que demandam o minimo de inteligéncia. Jé descrevemos de uma forma geral estes varios ramos, e um tratamento detalhado e especifico dos mesmos, embora util 2 pratica de cais atividades, seria cansativo como. assunto de um estudo prolongado. Ha livros a este respeito escritos por certos autores. — por exemplo Cares de Paros * e Apolodoros de Lemnos‘ ‘escreveram sobre a agricultura em geral e sobre a fruticultura, € outros também sobre diferentes especialidades; tais assuntos, portanto, devem ser estudados nestes autores por. quem tiver interessé neles, mas cumpre acrescentar algumas referéncias esparsas a métodos que proporcionaram sucesso nos negocios a certas pessoas. Tudo isto pode ser util a quem da valor a arte de enriquecer. Ha, por exemplo, 0 caso de Tales de Milecos”, que é uma especulacao bem-sucedida na erte de ganhai dinheiro, mas- que, embora Ihe seja atribuida devido & sua sabedoria, na verdade € de aplicacio generalizada. Por causa de sua pobreza, imputada & inutilidade da filosofia, Tales era alvo de escarnio; gracas, porém, a seus conhecimentos de astronomia, ele previu, ainda em pleno inverno, que haveria uma abundante colheita de azeitonas; ele obteve, entio, algum dinheiro e adquiriu os direitos de uso de todos os lagares: em Miletos e em Quios", pagando pouco porque ninguém competia com ele; quando chégou a época da extragio do azeite, houve uma sibita procura de numerosos lagares ao mesmo tempo, ¢ sublocando- os nas condices que quis ele ganhou muito dinheiro, provando que para q filésofo é facil obter lucro quando ele quer, mas nao é disto que ele cuida Isto se conta como uma demonstracao da inteligéncia de Tales, mas j4 dissemos anteriormente que 0 expediente de aproveitar uma oportunida- de para assegurar um monopdlio é generalizado no mundo dos negécios. Tanto é assim que até algumas cidades recorreram a tal pratica como um meio de obter recursos quando estes escasseiam, instituindo um monopé- lio na yenda de certos produtos. Houve alguém na Sicilia que usou uma importancia em dinheiro de que era depositario para comprar todo 0 ferro nas fundi¢ées locais; depois, quando os distribuidores vierai dos centros consumidores, ele era o inico vendedor, ¢ embora nao elevasse demasia- damente o preco.obteve um lucro de cem talentos com o investimento de cingiienta’. Quando Dionisio" teve conhecimento da operacio, ordenou ao homem que ficasse com seu dinheiro mas saisse imediatamente de Siracusa, pois ele estava inventando modalidades de lucro nocivas aos interesses do préprio tirano. Na realidade este expediente é semelhante 3 idéia de Tales, pois ambos os homens conseguiram assegurar um monopélio para si mesmos. O conhecimento de tais expedientes é ttil também aos estadistas, pois -muitas vezes estes necessitam de, recursos financeiros ¢ de meios de obté-los como os descritos aqui, da mesma forma que as familias, mas em escala maior; por esta razfo alguns estadistas dedicam sua atividade exclusivamente as finangas, em vez de & politica. Capitulo V Como dissemos antés**’, a ciéncia da economia doméstica tem trés ramos ~~ um trata das relacdes éntre senhor e escravo, outro das relacées entre paie filhos e outro das relacdes entre marido e mulher, pois faz parte da economia doméstica 0 comando .ta mulher € dos filhos pelo chefe da familia (dela ¢ deles como criaturas liv rés, embora nao éom a mesma forma de comando, mas o da mulher de maneira democrética “ € 0 dos filhos monarquicamente *); com efeito, o macho é naturalmente mais apto para @-comando do que a fémea (exceto em alguns casos em que sua unio se . constitui contra a natureza) e o mais idoso.e plenamente desenvolvido é mais apto que os mais jovens e imaturos. E verdade que na maiofia dos casos de governos democraticos 0 governante e 0 governado se alternam (eles tendem a estar num nivel igual em sua natureza e a nao ter qualquer diferenca), embora apesar disto durante o. periodo em que um é governante e 0 outro é governado eles se esforcem por distingilir-se através de formalismos, titulos ¢ honrarias, como se pode.ver no discurso de Amasis a propésito de sua bacia de lavar os pés “; 0 macho, todavia, sempre se relaciona com a fémea da maneira mencionada. O comando do pai sobre os filhos, por outro lado, é como o de um rei, pois 0 pai € 0 comandante tanto por sua afeigao quanto por sua idade, caracteristicas do governo real (por isto Homero” chamava apropriadamente Zeus de “pai dos homens e deuses", como rei de todos eles). De fato, embora por natureza o rei deva ser superior, ele pertence 4 mesma espécie de seus stiditos, e esta é a relagao entre o mais idoso € os mais jovens € entre 0 pai e seus filhos. E claro que a economia doméstica se interessa mais pelos seres humanos da casa que por seus bens inanimados, e mais pelas qualidades daqueles que pelas de seus bens, que denominamos riquezas, € mais por seus membros livres que pelos escravos. Primeiro, entio, deve-se levaatar quanto aos escravos a seguinte diivida: um escravo, sendo um instrumento, possui qualquer outra qualidade além de sua capacidade de servir,, mais valiosa que esta (por exemplo, moderacao, coragem, senti- mento de justica e outras qualidades morais), ou nao tem outras 1259 b 12604 qualidades além de sua utilidade fisica? De um modo ou de outro ha uma divida: se os escravos possuem qualidades morais, onde esté a diferenca entre-eles © os homens livres? Ou se nao possuem, isto é estranho, pois eles sao seres humanos e participam da razio. E aproximadamente a _ mesma a dificuldade levantada acerca da mulher e'da crianga; tém elas também qualidades, ¢ deve a mulher ser moderada, corajosa e justa, € pode uma crianca ser chamada de imoderada ou moderada, ou no? Este ponto merece consideragdes de ordem geral em relaco.2o comandanite e ‘comandado naturais: as qualidades do comandante e do comandado séo as mesmas, ou sio diferentes? Se ambos devem partilhar a nobreza de cardter, por que deveria um deles comandar sempre ¢ 0 outro ser sempre comandado, incondicionalmente? Nao podemos dizer que a diferenca & apenas quantitativa, pois a diferenca entre comundar © ser comandado € qualitativa, e diferenca quantitativa nao equivale a diferenca qualitativa de forma alguma. Por outro lado, se, 20 contrario, € adequado a um ter nobreza de carater, mas ao outro nio, isto € surpreendente, pois se o comandante nao é moderado e justo, como podera comandar bem? E se 0 comandado nao 0 é, como poderé obedecer bem? Sendo imoderado ¢ covarde, ele nao cumprité qualquer dos devetes de sua condicao. E evidente, portanto, que ambos devem possuir qualidades morais, mas que hé diferenga entre suas qualidades, da mesma forma que ha diferenca entre aqueles que so por natureza comandantes e comandados. Isto nos leva imediatamente de volta & natureza da alma: nesta, hé por natureza uma parte que comanda e uma parte que € comandada, as quais atribuimos qualidades diferentes, ou seja, a qualidade do racional e a do irracional. E claro, entio, que o mesmo principio se aplica aos outros casos de comandante e comandado. Logo, ha por natureza varias classes de comandantes e de comandados, pois de maneiras diferentes o homem livre comanda 0 escravo, o macho comanda a fémea e o homem comanda a) crianga. Todos possuem. as ‘arias partes. da alma, mas possuem-nas diferentemente, pois o escravo no possui de forma alguma a faculdade de deliberar, enquanto a mulher a possui, mas sem autoridade plena, e a crianca a tem, posto que ainda em formacao. Deve-se necessariamente supor, entio, que 0 mesmo ocorre quanto &s qualidades morais: todos devem partilhd-las, mas nao ‘de maneira idéntica, e na proporcao conve- niente a cada um em relacao as suas prOprias funcdes. Logo, o comandante deve possuir qualidades morais de forma: perfeita, pois sua funcio, de maneira absoluta, é aquela de um organizador, ¢ a razio é organizadora; os comandados, por outro’ lado, devem partilhar esta qualidade na medida que Ihes € conveniente. E evidente, entao, que todas as pessoas mencionadas possuem suas proprias qualidades morais, e que a moderacao de uma mulher e ade um homem nao sao idénticas, nem sua coragem e sentimento de justica, comé pensava Sécrates™ ; uma é a coragem de comando, a outra é de obediéncia, € © mesmo acontece com as outras qualidades. Isto se torna igualmente claro quando se examina 0 assunto com mais detalhes, pois é enganoso dar uma definico geral de qualidade moral, como alguns fazem, dizendo que ter qualidades morais € estar.em boas condigdes quanto & alma, ou agir retamente, ou alguma coisa desse tipo; aqueles que relacionam separada- mente as qualidades de pessoas diferentes, como faz Gérgias ”, esto mais certos que aqueles que definem as qualidades genericamente. Devemos entao dizer que todas aquelas pessoas tém suas qualidades proprias, como © poeta disse das mulheres: "O siléncio da graca as mulheres”, embora isto em nada se aplique ao homem. A crianca ainda nao é completamente desenvolvida, € portanto suas qualidades obviamente nao podem ser consideradas apenas em relacao a ela ‘mesma, e sim ao homem inteiramente desenvolvido, oui seja, 2 pessoa que tem autoridade sobre ela. Da mesma forma as qualidades doescravo também devem ser consideradas em relacZo ao seu senhor. Demonstra- mos que 0 escravo € tril para as necessidades da vida; conseqiientemente, é claro que ele requer apenas uma pequena parcela de qualidades, na realidade apenas o bastante para impedi-lo de falhar em suas tarefas devido & imoderacao e covardia. Supondo, entao, que é verdadeiro o que vem de ser dito, deve-se levantar a seguinte duvida: os artifices ” também devem ter qualidades? (Com efeito, eles freqiientemente falham no cumprimento de seus deveres por causa da imoderacdo.) Ou é diferente o seu caso? Na verdade, 0 escravo vive em-comum com’ seu senhor, enquanto o artifice esta mais afastado, e sua condicao requer apenas qualidades proporcionais a sua dependéncia, pois a condicio dos artifices mecanicos é uma espécie de escravidio limitada, e enquanto 0 escravo existe por natureza, nenhum sapateiro ou qualquer outro artifice exerce seu oficio por natureza. E evidente, entZo, que o senhor deve sera origem das qualidades de um / escravo, e nao um simples conhecedor da arte de ser senhor, que ensina ao escravo suas tarefas. Enganam-se, portanto, as pessoas que consideram os escravos destituidos de raciocinio’e nos dizem para dar-Ihes apenas ordens “, pois eles, ainda mais que as criancas, devem ser advertidos. Mas em relacio a estes assuntos concluamos da seguinte maneira: a questio das qualidades inerentes separadamente ao homem e & mulher, aos filhos e a0 pai, e 0 modo certo ou errado de conduzir as suas relagdes reciprocas € a maneira adequada de seguir o caminho certo e eviter 0 eirado, sio assuntos qué terdo de ser discutidos quando tratarmos das varias formas de governo”. Com efeito, uma vez, que cada familia € parte de uma cidade, ¢ as pessoas a cujas relacdes nos referimos séo partes de uma familia, e que as qualidades das partes estao ligadas as do todo, impde-se que a educacio das criancas é das mulheres seja conduzida com vistas a forma de constituigio adotada, se faz alguma diferenga para a qualidade da cidade. BIBLIOTECA DA TACIMAR 1260 b que as criancas tenham qualidades e qué as mulheres tenham qualidades E faz necessariamente diferenca, pois as mulheres constituem metade da populacio livre, €°as criancas crescem para participar do governo da cidade, Entio, ja que estas questdes foram resolvidas, e as que ainda t¢m de ser discutidas sé-lo-4o em outro lugar, consideremos encerrados os Presentes assuntds, € recomecemos examinando em primeiro lugar as varias opinides emitidas sobre a melhor forma de governo. , LIVRO II Capitulo 1 Ja que nosso propésito principal é a identificagio da melhor formade 1261 a comunidade politica para quem quizer realizar seu ideal de vida, devemos também estudar as constituicées atualmente adotadas por algumas das cidades tidas como . bem’ governadas, e igualmente quaisquer outras propostas por certos fildsofos e consideradas dignas de aten¢ao; assim poderemos discernir 0 que ha nelas‘de certo e conveniente, e ninguém pensar que a busca de algo diferente delas se origina inteiramente de um desejo de ostentacio sofistica; a0 contrario, ver-se-a que empreendemos lesta investigacio porque as formas de consti uigéo existentes nao sto. - atisfatérias. Tmppre-tos adotar como ponto de partida o ponto de partida natural ) para investigacdes como esta: devem todos os cidadaos ter a propriedade { de tudo em comum, ou nada devem ter ei-comum, ou algumas coisas devem ser propriedade de todos € outras nao?! Nada ter eni comum. € “obviament® impossivel, pols a cidade €-tssencialmente uma forma de comunidade, ¢ antes de mais nada ela deve ser © lugar de todos; uma | cidade tem de ser em um lugar, e uma cidade pertence aos cidadaos em’; omum! Mas sera melhor para uma cidade bem organizada ter tudo em j comum, até onde for possivel, ou sera melhor'ter somente algumas coisas [2m comum, ¢ outras nio? Por exemplo, hipoteticamente os cidadios “podem ter os filhos, as mulheres e os bens em comum, como ha Repriblica de Platao", na qual Socrates diz que deve haver comunidade de filhos, mulheres e bens. Qual é, entdo, o melhor sistema? O adotado atualmente, ou a legislacao proposta na Repiblica? De inicio, ha muitas dificuldades na. comunidade de mulheres, e 0 principio no qual. Sécrates baseia a necessidade de tal instituigao nao é firmado por seus argumentos. Ademais, 0 ésquema, como um meio para atingir o fim por ele atribuido & cidade, é literalmente impraticavel, ¢ cle nao diz claramente em parte alguma como devemos interpreté-lo. Refiro- me ao ideal da mais completa unidade possivel de toda a cidade, que € a hipotese adotada, por Sdcrates. 1261 b E claro,-antes de mais nada, que se a imposicao da unificacdo for além de certo ponto, jé n3o havera uma cidade, pois a cidade é por natureza uma pluralidade; se sua unificagao avancar demasiadamente, a cidade sera reduzida a uma familia, e a familia'a uma individualidade, pois poderiamos dizer que a familia € mais una que a cidade, € 0 individuo mais ‘uno que a familia; logo, mesmo que qualquer legislador fosse capaz de unificar a cidade, ele nao deveria fazé-lo, pois com isto destruiria a pra Cidade nao € consticuida somente de numerosos-Seres humanos, mas €/ , Tae também composta de seres humanos especificamente diferentes./A cidade nao é constituida de pessoas homogéneas; uma alianga € uma cidade sao coisas diferentes;-a alianca vale por sua quantidade (seu objetivo essencial € @ ajuda miicua), da mesma forma que uma quautidade :ais peseda de qualquer coisa valerd mais que uma menos pesada; uma cidade difere igualmente de uma tribo, quando a populacio desta nfo é organizada em povoados, mas vive esparsa como os arcadios, € os elementos constituintes de uma unidade como ela devem ser especificamente diferentes. Conse- aiientemente, a igualdade. qualificada, ¢ nao a igualdade pura e simples, éa salvaguarda das cidades, como dissemos na Etica ". Mesmo entre homens livres € iguais este principio tem de ser mantido, pois todos nao podem mandar ao mesmo tempo ", mas devem re je cada ano, ou governam, da mesma forma que todos os sapateiros seriam também} carpinteiros ‘se sapateiros e carpinteiros se alternassem nas profisses, ém’ vez de as mesmas pessoas serem permanencemente carpinteiros ‘ou sapateiros. (Como, porém, a permanéncia na fungao pode ser melhor ent ~“€Ertos casos para a comunidade, é obviamente melhor, nesses casos, que as mesmas pessoas governem permanentemente, se possivel; onde isto for impossivel devido 4 igualdade natural dos cidadaos, sera justo; indepen- dentemente de ser bom ou mau governar, que todos participem dleernada- mente do governo, pois assim a submissao altérnada & auroridade entre pessoas iguais imitara a sua desigualdade original, j4 que uns governam e outros s40 governados alternadamente, como se se tornassem outras pessoas; desta maneira: os diferentes cidadios, cada vez que exércem fungdes piblicas, ocupam cargos diferentes. Estas consideracées deixam claro que nao é da natureza da cidade ser uma unidade na‘acepcao em que certas pessoas dizem que ela €, e o chamado bem maior para as cidades seria na realidade a sua destruicao, enquanto sem divida alguma o bem de uma coisa é aquilo que a preserva. Outra ordem de consideracdes demonstra igualmente que tentar unificar excessivamente uma cidade nao / / é benéfico:/em termos de auto-suficiéncia o individuo é sobrepujado pela familia e a familia pela cidade, © €m principio a cidade sé passa a existir quando a comunidade é bastante diversificada para ser auto-suficiente; se, entao, quanto mais auto-suficientemente € uma cidade, mais ela é preferivel, um grau menor de unidade é preferivel a um maior. Mas mesino supondo que para a comunidade fosse melhor ter um grau maior de unidade, nao estaria provado de forma alguma que tal unidade resulta do fato de todos os homens dizerem “minha” e “nao minha” ao mesmo tempo, 0 que, segundo Sécrates", é 0 sinal da perfeita unidade em uma cidade. A palavra"todos” é ambigua; se 0 significado é qué cada individuo diz "minha ¢ “nao minha” ao mesmo tempo, talvez o resultado almejado por Sécrates cenha sido de'certo modo obtido; cada homem chamara cada pessoa “meu filho", e cada mulher “minha mulher”,‘da mesma forma que seus bens e tudo que Ihe couber. Mas esta nao seria a maneira de falar de homens que’ tivessem suas mulheres e filhos em comum; eles diriam “de todos’, € nfo “meu” ou “minha”, De forma idéntica seus bens seriam mencionados como pertencentes a todos, nio separadamente, mas coleti- vamenre. Vemos, entio, que a palavra “todos” é am mua (de fara, as palavras “todos”, “ambos”, “impar” e “par” causam confusées na argumen- racdo, mesmo em debates légicos). Logo, em certo sentido é admiravel que todos digam a mesma coisa quando falam a mesma palavra — na verdade isto é impossivel, mas em outro sentido isto nao seria sinal de unanimida- de. Mas a -proposicao de Sécrates ainda tem outra desvantagem; a propriedade comum a maior numero de donos recebe atencao meno#; 05 homens cuidam mais de seus bens exclusives, e menos dos que eles possuem em comum, ou somente até onde vai a sua parte individual, pois além de outras razées eles pensam menos nos bens comuns no pressupos- to de que alguém mais esta pensando neles, do mesmo modo que nos servicos-domésticos um grande nimero de criados as vezes. tem. menos cuidado com os deveres que um nimero menor. Acontece entio na proposicao de Sécrates que. cada cidadao tem mil filhos, e estes nao hes pertencem individualmente, mas cada crianca é filha de qualquer um, de tal forma que todas-olharao cada cidadao com indiferenca. Mais ainda: cada um fala de seus concidadaos que esto prosperando ou fracassando como “meu filho” somente no sentido da fracio que cada um deles € do todo, significando “meu filho e filho de nao sei quantés mais” (com “nao sei quantos mais” quer dizer cada um dos mil cidadaos, ou seja qual for 0 niimero de cidados de que se compée a cidade), € mesmo assim de maneira duvidosa, pois nao hé certeza quanto a quem € realmente filho de quem, e se o filho de cada um sobreviveu. Qual € ento a melhor maneira de usar a palavra “meu”: esta-em que cada uma das duas mil ou dez mil pessoas aplica a palavra as mesmas pessoas, ou a maneira de dizer “meu” nas cidades atuais? Na verdade, a mesma pessoa é chamada de “meu fitho” por um homem e de “meu irmio” por outro, e outro a chama de “meu sobrinho” ou qualquer outra designacao de parentesco, seja pelo sangue ou por afinidade € casamento (primeiro 0 seu, ou entio o de algum parente); ou talvez alguém o chame de companheiro de cla ou de tribo; na realidade, é melhor para uma criaiica ser hoje o sobrinho certo de alguém do que filho nas circunstancias descritas acima. Ademais, seria impossivel evitar.que umas pessoas considerassem outras seus irmaos, ou filhos, ou 1262 a 1262b \ pais, ou mies reais, pois elas seriam levadas a esta suposicao pela semelhanga existence entre filhos e pais. Ha mengdes a situacdes veridicas deste tipo em obras escritas por autores que percorrem o mundo; eles dizem que alguns povos da alta Libia t¢m suas mulheres em comum, ¢ que as criangas nascidas dessas unides sfo entregues aos habitantes corn os quais elas se parecem mais. Ha também fémeas, tanto na raca humana quanto entre outros animais (por exemplo, cavalos e gado) que teem uma forte tendéncia para produzir filhos parecidos com os pais, como ocorria com a égua de Farsalos chamada “Justa”. Mais ainda: nao seria facil Para quem instituisse esta comunidade evitar incovenientes como a ocorréncia de ultrajes, homicidios involuntérios e as vezes voluntarios, brigas; insultos, enfim atos nefandos quando praticados contra pais, macs © consangilineos préximos, como se no se tratasse de parentes; eles tendem a ocorrer com mais freqiiéncia quando as pessoas ndo conhecem seus parentes do que quando os conhecem, e também, quando ocosrer, se os culpados conhecem seu parentesco Ihes é possivel cumprir o ritual costumeiro de expiacdo, enquanto para quem nao o conhece a expiacao € impossivel. Também é absurdo que quando se estabelece a comunidade le filhos, apenas os amantes sejam proibidos de ter relacdes sexuais, enquanto se consente o amor € a intimidade entre pais e filhos e’entre irmaos — comportamento extremamente indecoroso, pois o simples fato de haver amor entre eles é indecoroso. E também absurdo que se proibam as relagdes sexuais entre eles somente para evitar os prazeres exagerados, € que se pense que nao faz diferenca o fato de as partes serem em um dos casos pai filho e no outro irmaos. Esta comunidade de mulheres ¢ filhos parece mais conveniente entre os agricultores que entre os guardiaes, pois haveria menos amizade entre eles se seus filhos e mulheres fossem de todos, € a falta de amizade entre as classes oprimidas € conveniente por favorecer sua submissao & autoridade e evitar rebelides.{De um modo ’\gétal, leis deste tipo levariam ¥ uma sieaagao Comiris quel resultante de leis certas, que Sécrates pensava estar propondo com suas idéias a respeito das criancas e mulheres. De fato, consideramos.a amizade o maior bem para a cidade, pois ela é a melhor salvaguarda contra as revolucoes, ¢ unidade da cidade, louvada por Sécrates mais que tudo, parece — ¢ ele afirma que €— uma conseqiiéncia da amizade, tal como é descrita por Arist6fanes* nos discursos sobre 0 amor, nos quais ele diz como os amantes, em conseqiiéncia de sua extremada afei¢io, desejam crescer juntos e tornar-se uma 56 pessoa em vez de duas. Em tal uniao, ambas as pessoas, ou pelo menos uma, se destruiriam, ¢ na cidade a amizade se diluiria inevitavelmente em conseqiiéncia desse tipo de associagdo, e as expressdes “meu pai” e “meu filho” desapareceriam completamente. Na realidade, da mesma forma que quando se poe uma pequena quantidade de substincia"doce em muita Agua a docura se torna imperceptivel na mistura, aconteceria também que © relacionamento inerente iqueles expresses se reduziria a.nada, porquanto na cidade descrita por Plato seria praticamente desnecessério que as*pessoas se preocupassem umas com as outras, como 0 pai com seus filhos, ou um filho com seu pai, ou irmio com irmao. Com efeito, ha dois motivos para as pessoas se preocuparem com as coisas e gostarem delas: o septimento de propriedade e@ © de afeigio, e nenhum desses motivos pode subsistir entre os componentes ‘de tal cidade, Em relacio a transferéncia de algumas criaacas, por ocasiéo do nascimento, das classes dos agricultores e artifices para a dos guardiaes”, ¢ da dos guardiaes para as dos agricultores e artifices, também ha muita confusio quanto & maneira de fazé-la, e tanto os pais que dio as criangas quanto os funcionérios que as transferem tém de saber a quem elas so dadas. O que foi dito acima ocorreria inevitavelmen- te ainda mais com as criancas transferidas, como: por exemplo ultrajes, relagées sexuais’ iJicitas e homicidios,’ pois .os filhos dos guardiaes entregues a cidaddos de outras classes néo chamariam de irmaos ou {ilhos ou pais e mies os membros da classe que deixaram, nem os que fossem viver entre os guardiaes falariam assim em relacdo as oueras classes, ¢ sem isco ndo haveria o cuidado de nao cometer as ofensas’ mencionadas por causa de parentesco, Estas so as nossas conclusdes sobre a comunidade de criangas ¢ mulheres. Capitulo II Em continuac&o, deverémos examinar a regulamentagao da proprieda- de em uma comunidade destinada a ter as melhores instituigdes politicas, indagando se a propriedade deve ser comum ou privada. Esta perguaca pode ser feita independentemente das disposicées relativas as criangas e a8 mulheres, ou em ouitras palavras:. mesmo que haja familias separadas, como ocorre autalmente em toda parte, ndo haveria vantagem em ter € usar os bens em comum, total ou parcialmente? Por exemplo, deveriam as terras cultivadas ser propriedades separadas, mas seus produtos deveriam set levados a um depésito.comum para ser consumidos, como se faz entre algumas_cacas?yOu, 20 contrério, deveriam as terras ser comuns € ‘eultivadas em comum, mas seus produtos deveriam ser divididos para uso em separado, como dizem que dcorre entre alguns barbaros? Ou tanto as terras cultivadas quanto seus produtos deveriam ser propriedade comum? Se os lavradores das cerrds constituem uma classe diferente”, a solucao seria diferente e mais facil, mas se os proprios cidadaos as cultivam para si mesmos a regulamentacio no sentido da propriedade comum das terras causaria grande descontentamento; com efeito, se na fruicéo do produto no trabalho de produgao eles nao tiverem: os mesmos direitos, havera inevitavelmence querelas entre aqueles que aproveitam ou recebem muito mas trabalham pouco e entre aqueles que recebem-menos-etrabalham. mais. Em geral viver em comum e partilhar todas as atividades humanas é dificil, principalmente partilhar.iva forma acima comentada. Esta dificulda- dese evidencia na parceria formada para as viagens maritimas de negocios, pois pode-se dizer que os parceiros em tais viagens, em sua maioria, se desentendem por causa de atritos decorrentes de assusitos corriqueiros € detalhes; também. nos atritamos mais com nossos servicais com os quais mantemos contactos mais assiduos para tarefas, rotineiras. A comunidade de bens, portanto, taz consigo estas e outras dificuldades do mesmo género, e:0 sistema atual, se aperfeigoado por boas praticas e pela ordenacao através de leis corretas, seria muito melhor; com efeito, ele tem os méritos dé ambos os sistemas — quero dizer, as vantagens de os bens } 1263 a 1263 b serem comuns ¢ de eles serem possuidos como propriedade privada, pois 0s bens devem ser comuns em certo sentido e privados de um modo geral. A administracao dos bens, dividida entre os respectivos possuidores, nao provocara queixas reciprocas, e eles crescerdo porque cada um se dedicara aos _mesmos como a um négécio pessoal, s6 seu; por outro lado, as qualidades dos cidadaos fario com que “os. bens dos amigos sejam comuns”, como diz 0 provérbio, quanto ao uso". Tal sistema ja existe em algumas cidades, embora somente em esboco, nao sendo portanto. impraticavel, e especialmente nas cidades bem administradas ‘parte dele j& funciona e parte pode vir a funcionar, porquanto os individuos, embora possuindo privadamente seus bens, pdem os fruros dos mesmos a servico de seus amigos, ¢ fazem uso das posses dos amigos como se se tratasse de bens comuns; na Lacedeménia, por exemplo, as pessoas usam 05 escravos das outras, € os cavalos e caés, como se fossem seus, ¢ quando Ihes faltam provisoes em viagem elas se apropriam do que encontram nos campos atrayés dos lugares passam'y-E obviamente melhor, pOrantO, que a propriedade seja privada aS-Giie © uso seja comum, e preparar os cidadios para este sistema é a tarefa especifica do legislador. Hi também uma diferenca indizivel, em termos de prazer, quando uma pessoa sente que um bem € exclusivamente seu, pois [ instinto generalizado de amor proprio. certamente nao é uma. vaidade, € sim-um sentimento natural, embora o egoismo’seja censurado com razio (este, porém, nao é apenas amor pfdprio, mas amar a si mesmo mais do que se deve, da mesma form; weza € O amor excessivo ao dinheiro, semelhantes). Acresce que fazer favores e prestar assisténcia a amigos ou héspedes ou companheiros é um grande. prazer, e. isto _sé € possi quando se_dispoe de bens préprios/ Estas vantagens sao perdidas por aqueles que levam a extremos a unificacZo da cidade, € cles também deixam de cultivar duas qualidades: a moderacio em relacao as mulheres. (€_uma conducts louvavel abster-se por moderacio das que pertencem a outros) €.a liberalidade no uso das proprias posses (certamente ninguém mais Seria capaz-de demonstrar a sua liberalidade ou de praticar um Gnico ato de genetosidade, pois esta s6 existe quando se faz uso das préprias posses). Tal legislacao, portanto, é aparentemente atraente, e pode parecer © fruto de amor & humanidade, pois quem houve falar nela acolhe-a com alegria, pensando qué gracas a suas virtudes miraculosas todos se torniarao amigos de todos, principalmente quando alguém proclama em tom de acusaio que os males atualmente existentes nas cidades — as questdes “judiciais entre cidadaos a propésito de contratos, os processos por falso testemunho e a adulacao aos ricos — sao devidos ao fato de as riquezas nao serem possuidas em comum. Nada disso, :porém, ocorre por causa da “Tnexisténcia da comunidade de bens} mas por causa da perversidade, pois vemos muito mais discérdia entre aqueles que possuem ou usam os bens 1264 a em comum do que entre aqueles que tém bens prdprios, embora os primeiros nao sejam tao numerosos em comparacio com o grande ntimero de possuidores de bens préprios( Seria justo €numerar Wao Somente os males dos quais os homens se livrariam adotando a comunidade de bens, mas também todas as boas coisas que eles perderiam, pois a vida em tais * circunstancias parece absolutamente impossivel.SA~causa do erro de Socrates deve-estar no fato de suas premissas serem incorretas. Certamen- te deve haver alguma unidade tanto na familia quanto na cidade, mas nao deé-maneira absoluta, pois de um lado a cidade deixaria de existir como tal se sua unificacdo nao tivesse limite, e de outro, mesmo que ela continue a ser uma cidade, por estar préxima do ponto em que deixaria de existir como tal ela seria una cidade: pivr, como se # harmouia fosse redueidu w uma nota $6 ou 0 ritmo no verso a um tinico pérmadores, pois pode ser realmente desvantajoso modificar as leis, e a pietexco de defender o bem comum alguém pode introduzir na legislacao medidas que na realidade levatiam ‘a destruico das leis e da propria constituicao. J&-que mencionamos esta questio, é ‘melhor entrarmos em dutros poucos. detalhes pertinentes a éla, porquanto como jd dissemos ela envolve dificuldades. Pode-se pensar que seria melhor haver alteracdes; de fato, em outfas ciéncias este procedimento se mostrou benéfico — a medicina, por exemplo, progrediu gracas a alteracdes no sistema tradicio- nal, da mesma forma que a gindstica e, de um modo geral, todas a artes ¢ faculdades humanas; j4 que a politica deve ser inclujda entre estas, é claro que o mesmo principio se aplica igualmente a ela. Isto se-evidencia nos préprios fatos, pois as leis antigas eram excessivamente simples e barbaras; os helenos, por exemplo, andavam sempre armados”, e compravam as esposas uns dos outros; os costumes remanescentes da antigiiidade em toda parte sdo inteiramente absurdos, como por. exemplo uma lei de Cime® referente aos crimes de morte, segundo a qual se 0 queixoso apresentar um certo mimero de parentes seus como testemunhas da morte, o acusado sera considerado culpado do crime. Em geral todos os homens desejam nao 0 tradicional, e’sim o que é bom. E provavel que os primeiros homens, nascidos da terra” ou sobreviventes de alguma forma de destruicio, fossem semelhantes & gente vulgar ou mesmo aos néscios de hoje (esta € realmente a tradicao™ a respeito dos homens nascidos da terra), € seria absurdo se nos mantivéssemos fiéis as suas opinides. Mesmo quando se trata de leis escritas, nao é melhor manté-las inalteradas, pois tal como acontéce com as outras artes é impossivel que a ordem politica seja perfeitamente delineada em todos os seus detalhes; ela deve ser delineada em suas generalidades, ao passo que nossas aces séo de cardter individual. Estas consideracdes evidenciam que as vezes, e em certos casos, as leis devem ser modificadas, mas se olliarmos 0 assunto de outro ponto de vista, parecera que deveremos agir com muito cuidado. Com efeito, nos casos em que a melhora fosse pequena, € claro que alguns erros do legislador ou do magistrado deveriam ser relevados, porquanto habituar os homens a modificar facilmente as leis é um mal; para o povo, o bencficio com a alteracao nfo seria to grande quanto o mal decorrente do fato de ele acostumar-se a nao confiar em seus governantes. © exemplo relativo as artes ¢ falaz, porquanto mudar uma lei e uma arte nao é a mesma coisa; de fato, a lei nao tem outra forca além do costume para compelir 3 obedién- cia, € 0 costume sé se consolida em um lapso de tempo; logo, passar facilmente das leis existentes para leis novas é enfraquecer 2 forca da lei, Ademais, mesmo que a modificagéo da lei tenha cabimerto, serdo todas as leis susceptiveis de alteracio, e em todas as formas de constituiggo, ou nlio? E sera qualquer pessoa, ao acaso, competénte para introduzir tais alteracdes, ou somente certas pessoas sé-lo-4o? Ha realmente uma grande diferenca entre estas alternativas. Abandonemos, porém, estas indagacoes Por enquanto; elas sero mais oportunas em outras ocasides. Capitulo VI Sao dois os pontos a ser considerados a respeito das constituicdes da Lacedeménia e de Creta, e de um modo geral também a respeito de outras formas de constituicao: um € se sua estrutura legal tem algo de extraordinario, ou nao, em comparac&o com o sistema ideal, e 0 outro é se elas tém qualquer dispositivo realmente antag6nico ao principio ¢ carater fandamentais da constituigéo que seus autores tinham em vista: Admite-se geralmente que numa cidade destinada a ser bem governa- da o8 cidadaos devem ficar livres das fadigas ligadas & satistacao de suas necessidades clementares; nao é facil, porém, deverminar a maneira de atingir este objetivo. Na Tessdlia a classe servi! levantou-se muitas vezes contra os tessilios, da mesrha forma que os hilotas se levantaram muitas vezes contra os lacedeménios, para os quais eles eram inimigos sempre na expectativa de um desastre que Ihes permitisse livrar-se de seus senhores: Nada deste género ocorreu até agora em Creta, € a razao disto talvez seja 0 faro de as cidades vizinhas naquiela ilha, mesmo quando em guerra umas com as outras, néo acolherem em circunsténcia alguima fugitivos de outra cidade como aliados, porque como cada uma delas. possuia sua propria classe servil isto seria contrério aos interesses de todas elas, enquanto os espartanos esto inteiramente cercados de vizinhos hostis — os argivos, messénios ¢ arcédios. Também na Tessalia os primeiros levantes de servos ocorreram porque ‘0s tessélios estavam ainda em guerra contra seus vizinhos —. 0s aqueus, os perrébios e os magnésios. Mesmo que nao houvesse outras dificuldades, a simples necessidade de policiar a classe servil € um assunto complicado — ha o problema de como conduzir as relacdes com ela; se lhe fosse dada liberdade, sua insoléncia cresceria seus membros passatiam a ter a pretensao de ser iguais a seus senhores, ¢ se fossem obrigados a levar uma vida dificil conspirariam contra eles € os odiariam. Torna-se claro, portanto, quando isto acontece, que os cidadaos ainda nfo descobriram a melhor mancira de tratar a classe servil. O relaxamento dos costumes das mulheres da Lacedeménia também 1269 b 1270 a frustra as intengdes da constituicio local ¢ € nocivo ao bem-estar da cidade. Na verdade, da mesma forma que o homem ea mulher so parte de uma familia, é Gbvio. que a cidade também € dividida em uma metade de populacao masculina ¢ outra metade de populacio feminina, de tal forma que em todas as constituicées nas quais a posicio das mulheres é mal ordenada se pode, considerar que metade da cidade nao tem leis, Foi isto que ‘aconteceu na Lacedeménia, pois o legisiador, querendo que toda a comunidade fosse igualmente belicosa, atingiu claramente seu objetivo em relacdo aos homens, mas falhou quanto as mulheres, que vivem licensiosa- mente, entregues a todas as formas de depravacio ¢ da maneira mais luxuriosa. Disto resulta inevitavelmente que numa cidade assim estrutura- da a riqueza’é excessivamente apreciada, especialmente se os homens se deixam governar pelas mulheres”, como ocorre na maioria das ragas com vocacao militar belicosas, 8 excecao dos celtas € outras racas que dao preferéncia as ligagdes entre homens. Efetivamente, tem-se a impressao de que © primeiro criador de mitos teve boas razdes para unir Ares e Afrodite, pois todos os homens de espirito marcial parecem inclinados a buscar com ardor uma companhia, seja de homens, seja de. milheres. Existia tal caracteristica entre. os lacedeménios, ¢ no periodo de sua hegemonia muitos assuntos eram decididos pelas mulheres (afinal, que diferenca ha entre as mulheres governarem ¢ 0s governantes serem governados pelas mulheres? O resultado é idéntico). Mesmo a respeito da bravura, que nao tem utilidade na vida didria € 6 € necessaria na guerra, a influéncia das mulheres na Lacedeménia foi extremamente perniciosa; isto ficou patente na época da invasic tebana”, durante a qual elas nao tiverarn a menor utilidade, ao contrario das mulheres de outras cidades, ¢ cousaram mais confuséo que 0 inimigo. Provavelmente 0 relaxamenito dos costumes das mulheres da Lacedeménia comecou a manifestar-se por uma boa razio, pois os lacedemdnios permaneciam fora dos lares durante longos periodos em suas expedicdes militares, quando lutavam contra os argivos ¢ também durante as guerras contra os arcédios eos messénios; voltando a viver em paz, cles se entregaram ao législador jé preparados para a obediéncia pela vide militar (esta possui muitos componentes da virtude); as mulherés, porém, resistiram & tentativa de Licutgos” para submeté-las ao dominio des leis, ¢ ele desistiu; elas sao culpadas, portanto, pelo que aconteceu, e conseqiien- temente por esta falha na constituicio, como € ébvio; mas no estamos procurando determinar quem pode ser desculpado.e quem nao pode, ¢ sim 0 que esté certo ou nao esté certo na constituigéo como ela & De acordo com 0 que foi dito antes, o mau comportamento da mulher nio somente infunde um at de licenciosidade a propria constituicgo, mas também tende de certo’ modo a estimular 0 amor a riqueza. Além do que “vem de ser mencionado, pode-ser criticar a constituicZo dos lacedeménios quanto & distribuicao desigual das riquezas; com efeito, alguns lacedemé- nios possuem riquezas grandes demais, enquanto outros as tém extrema- mente pequenas; devido a esta circunstancia a terra passou a pertencer a 1270b poucos, € isto se deve também a dispositivos legais falhos, j4 que o legislador considerou humilhante vender uma propriedade da familia —e tinha razio — mas permitiu alienar livremente as terras a titulo de doacéo ou legado. Tanto aquela quanto este levam inevitavelmente a0 mesmo resultado, Desta forma as mulheres se tornaram possuidoras de cerca de dois quintos de todo 0 territério da Lacedeménia, por causa do grande ntimero delas que herda propriedades e da pratica de dar grandes doves; melhor seria se a lei proibisse os dotes ou os limitasse a bens diminutos ou modestos, mas agora os pais tém poderes para dar herdeiras em casamento a quem quiserem,e seeles morrem sem ter deixado disposicdes testamen- tarias especificas a este respeito 0 executor do testamento, seja ele quem for, pode dé-las em casamento a quem ele quiser. Disto resultou. que embora 0 territério da Lacedem6nia seja capaz de manter mil e quinhentos cavalarianos e trinta mil hoplitas*, 0 atimero dos primeiros nao chega sequer a mil, A deficiéncia de seu sistema fundiario foi comprovada pelos fatos, pois a cidade nfo pode suportar um tinico golpe®, sucumbindo por causa do ntimero reduzido de seus homens, Havia entre os lacedeménios a tradi¢ao ‘de concederem a cidadania a estrangeiros — isto no tempo de seus primeiros eis, de tal modo que nao lhes faltavam habitantes naquela época, embora eles tenham estado envolvidos em guerras durante um longo periodo. Diz-se mesmo que em certa ocasiio o ntimero de cidadéos espartanos-chegou a dez mil, Seja isto verdade ou nao, é melhor para uma cidade -manter uma populagio masculina qumerosa, adotando medidas para igualizar as riquezas. A legislacao relativa & natalidade também € de certo modo um 6bice & correcio deste mal. Efetivamente o legislador, querendo aumentar ao maximo o mimero dos lacedeménios, criou incentivos para que os cidadios tivessem tantos filhos quantos pudessem; para isto hé uma lei'insentando do servico militar os pais de trés filhos, € isentando de todos os impostos os pais de quatro filhos. Seja como for, é claro que se nascerem numerosas criancas ¢ as terras forem divididas proporcionalimente ao seu nimero, haverd inevitavelmente muitos ho- mens pobres. Além disso, os dispositivos referentes A instiuigio dos éforos ” também sio deficientes. O poder dos éforos se estende as matérias mais importantes, mas eles sio escolhidos por codo 0 povo; sendo ‘assim, pessoas muito pobres as vezes exerciam essas funcdes, € por causa de sua pobreza eram facilmenre subornadas, Isco acontecia com freqiiéncia no pasado, mas também ocorreu recentemente no caso dos findrios"", no qual certos éforos, que s¢ deixaram subornar recebendo dinheiro, fizeram © possivel para arruinar totalmente sua cidade, Pelo fato de a autoridade dos éforos ser excessiva, equivaléndo praticamente a uma tirania, os reis também eram levados a fazer demagogia, de tal forma’ que, também por isto, o poder real ¢€ a propria constituigio foram afetados, ¢ uma 127la@ democracia se originou da aristocracia. E verdade que a autoridade dos éforos mantém a integridade da constituicdo, pois o povo permanece décil por participar da escolha dos detentores do mais alo poder constitucional, e assim, devido ao discernimento do legislador ou por acaso, a instituicko dos éforos € vantajosa 4 condugao dos assuntos da cidade. Com efeito, para preservar.a constituicio todos. os segmentos da cidade devem empenhar-se no sentido de que ela continue a existir ¢ permaneca a mesma; entao, os reis tém este empenho em decorréncia das honrarias que Ihes advém de sua condiga0, os nobres por serem os componentes do Conselho dos Ancigos — um prémio a qualidade dos mais idosos — e o Povo por causa dos éforos, escolhidos por toda a populacio; mas a eleicdo dos éforos, a qual acertadamente todos os cidadéos podem concorrer, no deveria ser feita como € agora, pois 0 método adotado é pueril'”. Ademais, os éforos tém jurisdicio sobre as questdes judiciais mais importantes, embora sejam homens comuns; seria melhor que eles nio decidissem as questGes com base em sua prépria opiniao, e sim ségundo normas escritas € de acordo com as leis. O modo de vida dos éoros também nao esta em sintonia com: as intengdes da constituicao; ele € demasiadamente dissoluto, enquanto a conduta imposta aos demais cidadaos “€ extremamente severa, a ponto. de tornar-se insuportavel, levando-os a desrespeitar ocultamente a lei para gozar os prazezes do corpo.. As normas para a funcio dos membros do Conselho de Anciaos também nao so boas; € verdade que se trata de homens notaveis ¢ convenientemente educados para as virtudes varonis, e pode-se dizer que de certo modo a instituicgao é dei] para a cidade, mas a vitaliciedade no, exercicio das fungdes de juizes das causas mais importantes é um critério altamence discurivel, pois da mesma forma que ha a senilidade do corpo também existe a do espirito; sua educacio nao € tio perfeita a ponto de eliminar a possiblidade de o legislador desconfiar de que eles nao sejam sempre homens bons, ¢ isto é ‘perigoso. Parece mesmo que pessoas conduzidas aquelas fungdes se deixaram corromper mediante presentes ¢ trairam muites vezes o interesse piblico para favorecer. alguém, seria melhor se eles nao, fossem isentos da prestacao de contas no exetcicio de suas fungdes, como sao agora, Pode-se dizer que entre suas atribuicdes esta incluida a.de exigir a prestacio de contas dos ocupantes de todos os cargos; esta atribuicio Ihes dé poderes excessivos, & achamos que a prestagao de contas nao deveria ser feita desta maneira. Além disto, 0 sistema de eleicao dos membros do Conselho de Anciaos é nio somente pueril mas é até inconveniente que um candidato a cargo tao honroso deva cabalar voros;, os homens mais dignos dos cargos devem set designados para ocupé-los quer queiram, quer nao queiram. Mas o legislador faz evidentemente neste caso 0 mesmo que fez no resto da constituigao: induz os cidadaos @ ambicgo € joga com ela para a escolha. dos ariciios do Conselho, pois ninguém pleitearia 0 cargo se nao fosse ambicioso; no entanto, a ambicio de honrarias e © amor ao dinheiro so as causas.da maior parte das injusticas voluntartas entre os némens. Quam 4 i1z/1 D monarquia, a questao de saber se ela € ou nao a melhor forma de governo para as cidades ser objeto de outra discussao'; de qualquer modo, seria conveniente. escolher os reis nao da maneira adotada atualmente, mas dando a devida importancia & sua conduta na vida. E claro que nem os prdprios legisladores imaginam que podem fazer dos reis homens dotados de boas qualidades, e as vezes até desconfiam deles, considerando-os destituidos de méritos suficientes; por isto os espartanos costumam mandar.com eles seus inimigos nas mesmas missGes, e pensam que 9 preservacao da cidade depende da oposig&o entre seus dois reis; também nfo sao bons os preceitos legais relativos aos repastos coletivos chamados “fiditias", elaborados por seu criador; os recursos para eles deveriam sair dos fundos ptiblicos, como em Creta, mas entre os lacedeménios todos tém de contribuir, embora alguns sejam muito pobres € incapazes de dispor de dinheiro para esta despesa; 0 resultado, entao, € 0 contrario do almejado pelo legislador, que julgiva democratica a instituicao dos repastos coletivos; regulada pela lei d2sta maneira, todavia, ela funciona de modo nada democratico, pois para »s pobres a participacao nao é facil, enquanto ‘suas normas determinam que a cidadania seja interdita a quem nfo puder pagar a respectiva despesa. A lei relativa aos almirantes lacedeménios foi igualmente criticada por outros autores, ¢ com razio, pois ela se tornou a causa de sedigdes, ja que, em adicéo aos reis propriamente ditos, que s40.comandantes vitalicios, a fungao de almirante equivale a funcdo de mais um rei, Outra critica possivel.contra a intengao do legislador é uma feita por Platio-nas Leis. Todo o sistema da legislagao dos lacedemGnios visa a uma parte das qualidades do homem — o valor militar, por ser este citil para conquistas, conseqiientemente 2 forga dos lacedeménios foi preservada enquanto eles estiveram em guerta, mas comegou a declinar depois que eles construiram um império, porque no sabiam como viver ém paz, € nao foram preparados para qualquer forma de atividade ‘mais importante para’ eles que a militar. Outro erro nao menos sério: eles pensam que os bens mais cobicados-na vida sao obtidos mais por causa das qualidades que dos defeitos — e nisto eles estao certos,, mas créem. que esses bens valem mais que as qualidades que os conquistam — e nisto eles esto errados. As'finangas publicas entre os lacedeménios também estio mal estruturadas:. embora sejam forcados a, sustentar grandes guerras eles nada tém no tesouro publico eos impostos sao mal pagos, pois sendo os préprios lacedeménios donos da maior parte das terras, nfo Ihes convém fiscalizar-se uns aos outros quanto ao pagamento dos tributos. Assim ‘o legislador chegou ‘a um resultado oposto ao pretendido, pois tornou a cidade pobre é os cidadaos Avidos de riquezas. Mas basta de ponderacées sobre a constituicio dos lacedeménios, pois estes s40 Os seus principais pontos criticdveis. Capitulo VII ‘A constituigéo cretense assemelha-se & da Lacedem6nia, mas embora em uns poucos pontos ela nfo seja pior, de um modo geral lhe € inferior quanto & elaboracao. E provavel, e realmente se afirma’, que a constitui- ¢B0 dos lacedeménios em sua maior parte foi copiada da cretense'; ¢ na maioria das vezes as coisas mais antigas eram menos elaboradas que as mais novas. Dizem que quando Licurgos deixou sua fun¢io de guardiio do rei Carilaos” ¢ empreenden suas viagens", passou a maior parte do tempo em Creta por causa das relaces estreitas entre os dois povos; com efeito, os litios'” eram colonos lacedeménios, e os fundadores vindos para a colonizacio. encontraram © atual sistema de leis j4 vigente entre’ os habitantes anteriores do local; por isto, até hoje os periecos'° usam essas mesmas leis na forma original, na crenca de que Minos" as criou. A ilha de Creta parece ter’ sido feita pela natureza pata dominar a Hélade; com efeito, sua localizacao é privilegiada, pois ela se estende pelo mar em torno do qual quase todos os helenos esto estabelecidos; um de seus extremos fica 2 pequena distancia do Peloponeso, e 0 outro dista pouco da parte da Asia préxima a Triépion e Rodes'?. Em decorréncia desta localizaco Minos conquistou o império do. mar", submeteu algumas das ilhas proximias e estabeleceu coldnias em outras, mas afinal perdeu a vida perto de Camicos quando atacava a Sicilia. As instituicdes cretenses sao andlogas as da Lacedeménia; nesta‘a terra € trabalhada pelos hilotas, e entre os cretenses pelos periecos'; em ambas existem os repastos coletivos, ¢ nos tempos mais antigos os lacedem6nios no os chamavami de “fiditia” e sim de “andria”'", como os cretenses ainda chamam; isto prova que eles tiveram origem em Creta. O mesmo acontece com a forma de governo, pois os éforos tém poder idéntico ao das autoridades chamadas “cosmos” em Creta, & excecéo de que o numero de éforos é cinco € o de cosmos & dez; os membros do Conselho de Anciios na Lacedeménia sao iguais em niimero aos ancidos componentes do chamado Conselho em Creta, Anti- gamente existia a monarquia em Creta, mas os cretenses a aboliram, e os cosmos t2em 0 comando ‘na guerra; todos_os cretenses participam da 12724 1272 b assembléia, que nao tem outro poder exceto o de sancionar as resolucdes j4 tomadas pelo Conselho de Ancifos e pelos cosmos. As normas relativas aos repastos coletivos em Creta sio melhores que as dos lacedeménios; efetivamente, na Lacedem6nia cada cidadao paga uma cota de participacio, € quando no pode realizar o pagamento é impedido por lei de gozar dos direitos de cidadania, como foi dito antes" em Creta o sistema é mais comunitério, pois de todas as colheitas e das criagdes de gado nas terras pUblicas, bem como dos tributos pagos pelos periecos, uma parte é destinada ao culto dos deuses e as despesas piblicas, e a outra aos repastos coletivos, de tal forma que todos os cidadaos (as mulheres, as criancas € os homens) so alimentados por conta dos fundos ptiblicos; os legisladores imaginaram muitos dispositivos sabios para assegurar 2 observancia benéfi- ca da sobriedade & mesa; eles instituiram também a segregacio das mulheres, para evitar que elas tivessem muitos filhos, promovendo tam- bém a unido entre pessoas do sexo masculino (voltaremos.a trater deste assunto mais tarde, e entio discutiremos se tal medida é boa ou nao)". E evidente, portanto, que ‘as normas relativas aos repastos coletivos s40 melhores em Creta que na Lacedeménia, mas a instituicio dos cosmos é ainda pior que a dos éforos; de faco, os inconvenientes inerentes as funcdes dos éforos existem também em relacio aos cosmos, pois o . exercicio de sua funcdo pode caber a qualquer pessoa, seja ela quem for, 0 passo que no existe em Creta a vantagem decorrente da existéncia desta funcao para o governo da cidade, Na Lacedeménia, como a escolha é feita entre todos os cidadaos, 0 povo, por participar das fun¢des mais altas, deseja que seja mantida a constituigao; em Creta, porém, 0s cosmos nao sao eleitos entre todos os cadadaos, mas somente entre certos clis, e os anciaos do Conselho sao escolhidos somente entre os cidadios que foram cosmos. Podem sez feitas a respeito das normas réiativas ao Conselho de Ancidos dos cretenses as mesmas criticas jé emitidas a propésito dos lacedeménios', pois a isencio da responsabilidade de ser chamados a prestar contas ea vitaliciedade do exercicio da funcio Ihes dé uma importancia maior que a decorrente de seus méritos, e 0 exercicio de sua fungio de forma discricionéria, e nfo sob a égide de normas escritas, é realmente perigoso. O fato de o povo tolerar docilmente sua exclusio nao é prova de que tais dispositivos sejam bons, pois se os cosmos nao obtéem vantagens pessoais, como 08 éforos, é porque vivem numa ilha distante de qualquer outra gente disposta a corrompé-los. O remédio que eles empre- gam para atenuar esta falha também é fora do comum, e menos compativel com uma forma constitucional de governo que com uma oligarquia'’*; efetivamente, com freqiiéncia os cosmos so destituidos de suas fungdes por uma conspiracao levada a cabo por alguns de seus colegas ov pelos cidadaos; os cosmos também téem o direito de renunciar durante o seu mandato, Seria preferivel que todos estes pontos fossem regulamentados por lei, em vez de deixados & discricao dos individuos, pois este critério é perigoso. O pior de todos os expedientes é o da suspensao dos cosmos do exercicio de suas funcdes, usado com freqiiéncia por membros das classes dominantes quando desejam livrar-se de. algum proceso judicial; isto prova-que a forma de governo, embora possuindo algumas caracteristicas de governo constitucional, é preponderantemente pligérquica. Os mem- bros da classe dominante constituem freqiientemente grupos com elemen- tos do povo € seus amigos; tais grupos passam a Iutar uns contra os outros, provocando a anarquia e ameacando a estabilidade do governo. Que diferenca ha entre tal situacao e a destruicio temporaria das instituicdes da cidade, ou seja a dissolucdo da comunidade politica? Esta é uma siruacéo muito perigosa para uma cidade, pois d4.a quem queira atacé-la a oportuni- dade de fazé-lo. Mas como foi dito Creta é salva’ por sua localizacao, porquanto a distancia tem o mesmo efeito da lei dos lacedeménios que regula a presenga de estrangeiros na cidade’. E por isto que os.perietos vivem conformados em Creta, enquanto os hilotas se revoltam com freqi@ncia na Lacedeménia. Ademais, Creta nao exerceu o dominio sobre qualquer territério estrangeiro, e s6 recentemente a ilha foi alvo de invasdes militares (quando isto aconteceu, tornou-se manifesta a fraqueza de suas leis). O que ja foi dito por nds a respeito desta constituicao é suficiente. Capitulo VIII Parece que os cartagineses também tém uma boa constituicio, supe- 1273 a tior em muitos aspectos, 4s de outros povos, e parecida principalmente com a dos lacedeménios em muitos pontos. Estas trés constituicoes — a * cretense, a lacedem6nia e em terceiro lugar a cartaginesa — sio de certo modo muito proximas entre si e diferem muito das demais, Numerosos dispositivos da ultima so excelentes, ea prova de sta boa estruturacao é gue © povo permance fiel ao ordenamento constitucional, ¢ que em Cartago nem ocorreram rebelides dignas de mencio, nem apareceu tirano algum, As afinidades entre a constituico dos cartagineses ¢ a dos lacedemé- nios séo os repastos coletivos de suas heterias, correspondentes as fidi- tias™ € 0 6rgi0 composto pelas autoridades chamadas Cento e Quatro, correspondente a instituicéo dos éforos (exceto quanto a um ponto de superioridade — os éforos provéem de qualquer dar classes, mas os cartagineses escolhem esses magistrados por seu mérito); também os reis © Conselhio dé Ancidos correspondem aos reis e ao Conselho de Ancifiose da Lacedem6nia, mas outra peculiaridade superior € que-os reis cartagine- ses nao se restringem & mesma familia, nem saem de qualquer familia indistintamente, mas se ha alguma familia melhor que as outras eles sao escolhidos nela, e no segundo o principio de hereditariedade e idade. O poder dos reis-se estende a matérias da maior relevancia; se eles forem mediocres causarao gtandes.males, como j4 aconteceu com os teis dos lacedéménios. A maior parte dos t6picos da constituicao cartaginesa passiveis de critica por se désviarem da constituicao ideal é comum a todas as constitui- sées de que jé falamos, mas os desvios em relacio & aristocracia € a0 governo constitucional as vezes séo no sentido da democracia, ¢ as vezes da oligarquia. ‘A submissGo dé alguns assuntos € nao de outros a assembléia “do povo €'decidida.pelos reis depois de ouvirem 0 Conselho de Ancigos, | \desde cue haja unanimidade; em caso contrério, tais assuntos deverao ser 1 1273.b necessariamente submetidos 20 povo; quando os reis levam um assuntoao Povo, eles nao falam apenas para que o povo ouca decisées jé tomadas por seus governantes; 0 povo tem o poder soberano de decidir, e quem quer que deseje pode falar contra as propostas apresentadas — direito inexis- tente nas outras duas constituicdes, Por outro lado, dar aos membros das pentarquias”, idetentores de: grandes poderes, o direito de eleger-se a si mesmos e de escolher 0 érgio supremo dos Cento ¢ Quatro, bem como 0 fato de seu mandato ser mais longo que o de quaisquer outras autoridades (de fato eles exercem virtualmetne o seu poder antes e depois de assumir as fung6es), sio caracteristicas oligérquicas; as peculiaridades de nao receberem salarios e de néo serem escolhidos mediante sorteio, e Outras do mesmo género, devem ser definidas como aristocrdticas; 0 mesmo se aplica 20 fato de os membros das pentarquias serem os juizes em todos os Processos judiciais, em vez de haver tribunais diferentes para questdes diferentes, como acontece na Lacedeménia. Mas o sistema cartagings desvia-se da aristocracia em direco 3 oligarquia principalmente a propési- to de certa ideia compartilhada por muitas pessoas; com efeito, 05 cartagi- neses pensam que os governantes devem ser escolhidos no somente por “seus méritos mas também por sua riqueza, pois dizem que um homem pobre nao pode governar bem por nfo dispor de tempo. Se, entio, a escolha pela riqueza é oligarquica e a elei¢o pelo mérito é aristocrética, deve haver um terceiro sistema, no qual se enquandra a constituicéo de Cartago, pois’ 14 ambas as qualificacbes so consideradas para efeito da escolha, principalmente para as fun¢dés mais importantes, como as dos reis e comandantes. Mas devemos reconhecer que este desvio da aristocra- cia é um erro do legislador, pois um dos pontos mais importantes a ter necessaziamente em vista desde o principio é que os melhores cidadaos devem poder dispor-de tempo'e nao devem ter de degradar-se de modo algum, nfo somente no exercicio de suds funcdes mas também como simples cidadaos. Se é necessario olhar para a questo dos meios suficien- teg para assegurar a disponibilidade de tempo, é lamentavel que as mais altas fungbes do governo — a realeza e 0 comando — devam estar A venda, De fato, esta lei dé mais valor & riqueza que ao mérito, e torna toda'a cidade mais gananciosa, pois quando os dirigentes de uma cidade julgam alguma coisa digna de apreco os outros cidaddos seguem com certeza 0 seu exemplo, e uma cidade em que’as boas qualidades nao sio altamente distingiiidas certamente néo pode ter um governo aristocrético, Muito provavelmente as pessoas que compram cargos aprenderao paulacinamen- te a tirar provéito pecuniario deles, pois rerio chegado ao poder gastando dinheiro; seria absurdo supor que um homem de poucas posses mas respeitavel quisesse aproveitar-se do cargo, mas que alguém muito pior, tendo gasto dinheiro para ser eleito, nao quisesse fazer 0 mesmo. Logo, devem governar as pessoas capacitadas para governar, ¢ mesmo que o legisiador n&o cuidasse de assegurar recursos a5 pessoas respeitdveis, de qualquer forma seria melhor que lhes assegurasse meios para disporem do, tempo necessario ao exercicio dos cargos..Poder-se-ia também considerar um mal 0 exercicio de muitos cargos pela mesma pessoa (isto € tido como uma distingao em Cartago). Um homem se desincumbe.melhor de uma tarefa nica, e o legislador deve ter em vista a consecucio deste objetivo, evitando incumbir o mesmo homem ao mesmo tempo de tocar flauta € fazer sapatos. Sendo assim, exceto para uma cidade pequena € politica- mente melhor e mais democratico que os cargos de governo sejam distribufdos entre numerosas pessoas, pois € inais equitativo para todos, como dissemos™, ¢ as funcdes séo melhor exercidas e as tarefas mais prontamente executadas quando separadas do que quando acumuladas nas mesmas maos. Isto se torna mais evidente em relacao aos deveres militares € navais, pois em ambos os setores os deveres de comands e obediéncia se distribuem a bem dizer entre todos. Embora 2 constituico dos cartagineses seja oligérquica, eles escapam aos perigos de sua forma de governo ensejando o enriquecimento de parcelas sucessivas da populaco gracas 20 envio das mesmas as suas col6nias; agindo assim eles prenivem o mal e dio estabilidade 2o governo. Isto, porém, é obra da sorte, ao passo que evitar sedicées é tarefa do legislador. Na situagao atual, sé ocorresse algum infortinio ¢ a classe dominada se revoltase macicamente, nao haveria remédios para restabele- cer a paz por:meios legais. Estas ‘sto as peculiaridades das constituigdes dos lacedem6nios, dos creteases e dos cartapineses, just instants famosas. ~ oe lhe tee aa Commi of Capitulo IX Entre os homens que se manifestaram a respeito de politica, alguns | 1274 a no participaram de nenhuma atividade politica, mas viveram toda a sua} vida como simples cidadaos, Sobre quase todos eles j4 foi dito cudo que merécia ser mencionado™. Ouiros foram Tegisladores, em suas cidades de origem ou entre pOvos estrangeiros, depois de ter atuado.intensamente no Boverno de suas respectivas cidades; alguns destes apenas elaboraram leis, Outros estrururaram também constituicées — por exemplo Sélon e Licur. 805, que nos deixaram leis e constituicdes. Ja falamos da constituicao dos lacedeménios; quanto a Séloa, alguns o reputam um bom legislador, por ter posto fim a uma oligarquia excessivamente fechada e por tet emancipa- do 0 povo da escravidio, ao mesmo tempo que estabelecia a tradicional democracia ateniense, harmonizando otimamente os varios ingredientes ~ da constituicéo: 0 Conselho do AreSpago é um ingrediente oligérquico, as funcées piiblicas eletivas séo aristocraticas e os tribunais so deiocraricos Embora na realidade a respeito de alguns desses ingredientes — 0 Conselho € a eleicao dos alzos funcionérios — pareca que Sélon apenas se absteve de eliminar instituigdes existentes, na realidade ele criou a demo- Cracia, gracas & organizacao dos wibunais & base de jurados convocados entre todos os cidadaos. Esta é a razdo das criticas que lhe so feitas por algumas pessoas, que o acusam de haver destruido.2 forca dos outros doig_ | es —0 Conselho do Areépago ¢ 08 altos funciondrios eleitos, em sonsegiiéncia de haver dado o poder supremo aos tribunais, cujos jurados } sram escolhidos mediante sorteio/De fato, com 0 crescimento Constante do poder dos tribunais, os demagogos passaram a cortejar 0 povo, como se este fosse um tirano, ¢ conseqiientemente a forma de governo evoluiu para_a_democracia atual; Efialtes e Péricles(reduzizam 0 poder-do\ um subsidio aos jurados nos tribunais, e assim cada demagogo aumentou | sucessivamente o poder do povo até se A democracia atual. Isto, } porém, no parece ter acontecido segundo um plano premeditado por } Solon, mas como um resultado das circunstancias (com efeito, tendo sido a 1274b causa da virdria na batalha naval" durante a guerra com os persas, 0 povo tornou-se orgulhoso e passou a prestigiar demagogos sem valor quando os cidadaos mais respeitéveis passaram a opor-se 2% sua politica); 0 préprio Sélon, alis, aparentemente deu 20 povo. apenas o poder necessério para ‘IEEE os altos funcionérios e para cobrar-lhes a prestacéo de contas em suas fungSes, pois se nao tivesse sequer este poder 0 povo continuaria a ser escravo, € portanto hostil,.j4 que antes escolhia todos os magistrados apenas entre os homens notaveis e ricos, ou seja entre.os chamados “homens de quinhentos médimnos", os zeugitas” e uma terceira categoria de proprietarios, chamados cavaleiros'#*; os cidadaos da quarta classe — os tetas" — nao tinham acesso as funcdes piiblicas, Zéleucos™, autor das leis dos lécrios epizefirios, e Carondas™, autor das leis dos caténios ¢ de outras cidades calcidias” na costa da Itélia e da Sicilia, eram apenas legisladores. Alguns pesquisadorés tentam demons- trar que Onomicritos"® foi a primeira pessoa versada em legislacdo, e que ele, embora l6crio de nascimento, estudou em Creta,,onde viveu da pratica de sua arte profética; Tales teria sido seu companheiro; Licurgos e Zaleucos teriam sido alunos de Tales, e Carondas de Zéleucos; estas elucubragdes, todavia, so totalmente incompativeis com a cronologia. Hoive também 0 corintio Filélaos, que deu leis aos tebanos; este Fildlaos era da familia dos Braquiadas e tornou-se amante de Diocles, vencedor nas Olimpfadas™, mas quando este abandonou Corinto devido ao!horror causado por sua paixdo pela propria mie, Alcione, partiu também para Tebas, onde ambos terminaram suas vidas. Ainda hoje os habitantes de Tebas mostram os seus ttimulos, um em frente ao outro, estando um deles voltado para 0 territério corintio e o outro nao. H4 uma lenda segundo a qual eles mesmos teriam determinado aquela disposicao das sepulturas: Diocles, revoltado por causa de seu infortinio, para que o territério corintio nao fosse visivel de sua sepultura, ¢ Fildlaos para que fosse da sua. Eles foram viver em Tebas por este motivo, e Fildlaos veio a ser legislador dos tebanos @ respeito de varias matérias, entre as quais a procriacao de filhos — as chamades leis da adocio pelos tebanos; tais leis foram elaboradas especialmente por. Filéla0s, com o objetivo de assegurar a preservacio do ntimero de propriedades. Nada ha de especial na legisla- go de Carondas, & excecio das acdes judiciais por falso testemunho (ele foi o primeiro a instituir a demincia por perjiirio), mas pela precisio de suas leis foi muito superior em clareza aos demais legisladores, mesmo aos de hoje. Caracteristico de Faléas* € um dispositivo destinado a igualizar as propriedades; de Platio séo caracteristicas a comunidade das mulheres, dos filhos ¢ das propriedades, os repastos coletivos para as mulheres, € também a lei sobre a embriaguez, determinando que as pessoas s6brias presidam os banquetes, além da regulamentacao dos.exercicios militares no sentido de tornar os homens ambidestros pela prética, sob o fundamen- to de que nao se deve ter uma das mos titil e a outra intitil. Hé também as leis de Drécon**, mas ele legislou no contexto de uma constituicéo existente, e nada hé de caracteristico em suas leis, que mereca mencio, exceto sua severidade na imposicao de pesadas penas. Pitacos! também elaborou leis, mas nfio uma constituicao; uma lei caracteristica de Pitacos é no sentido de que, se alguém comere algum delito em estado de embriaguez, deve pagar uma indenizasao' maior que a dos ofensores sébrios, pois'jé que mais pessoas sio insolentes quando ébrias do que quando sobrias, ele teve’ em vista nfo o fato de os ofehsores ébrios serem justamente considerados menos culpados, masa utilidade da repressio. Androdamas™ de Région também se tornou legislador dos calcidios de Tracia™, e sao dele algumas leis sobre homicfdio e sobre filhas ‘inicas herdeiras; nao é possivel, porém, mencionar qualquer dispositivo legal que lhe seja caracteristico. Sio estas as nossas observacGes sobre os sistemas constitucionais em vigor, ou imaginados por alguns teéricos. SE apt ea LIVROIII Capitulo 1 . Para os estudiosos da natureza do governo, do que é cada uma de suas 1275 @ formas e de quantas sao elas, a primeirs. pergunta a fazer se refere a cidade: que € ima cidade?" Ate hoje esta €-imtaquestao-controvertida;-algumas ‘pessoas dizém que a cidade pratica ur. ato, outras que no é a cidade, mas a oligarquia ou a tirania no poder; vemos que a atividade do estadista e do Jlegislador_tem por objeto a cidade, e uma constituicto € a forma de “Organizacao dos habitantes- de uma cidade. Mas a cidade é um complexo, no mesmo sentido de quaisquer OUtras coisas que sao um todo mas se compéem de muitas partes; é claro, portanto, que devemos primeiro investigar a natureza do cidadao, pois uma cidade é uma multidao de cidadaos, e portanto se deve perguntar quem tem direito ao titulo de cidadao, e qual é essencialmente a-natureza do cidadao. Ha opinides diferentes quanto a isto, pois nem todos concordam com que o cidadio seja sempre o mesmo, e freqiientemente alguém que seria cidadao numa democracia ‘ndo € cidadio numa oligarquia. Nao devemos: levar em ~consideragao aqui aqueles que adquirém a cidadania de alguma maneira excepcional — por exemplo, os cidadaos por adocao. A cidadania nao resulta do fato de alguém ter o domicilio em certo lugar, pois os estrangeiros residentes e os escravos também séo domiciliados naquele lugar, nem sao cidadaos todos aqueles que participam de. um mesmo sistema judiciario, assecuratério do direito de defender-se em uma agio e de levar alguém. aos. tribunais (este direito cabe também as partes engajadas em um contrato comercial, que também podem acionar € ser acionadas nos tribunais); na verdade, ém muitos lugares mesmo este direito de aco apoiado nas leis nao é totalmente extensivo aos residentes estrangeiros, que sao obrigados a apresentar uin cidadao responsavel por eles, de tal forma que eles somente participam deste privilégio de maneira incompleta; estes sio cidadaos somente no sentido em que aplicamos o termo a criancas ainda muito novas para serem arroladas como cidadaos € aos ancifos ja isentos dos deveres civicos, pois nao os chamamos cidadaos de mancira absoluta, mas com a qualificacio de’os primeiros ainda nao 1275b terem idade ¢ de os iltimos j4 serem idosos demais, ou alguma expresso equivalence (isto nao faz diferenca, porque o sentido é claro). Queremos definir um cidado no sentido absoluto, como alguém ‘que nao tenha desqualificagdes desta natureza, que imporiam uma qualificacao corretiva, pois dificuldades deste género podem também ser levantadas e superadas a propésito de cidadaos cujos direitos foram cassados ou que: foram exilados. Um cidadao integral pode ser definido por nada mais nem nada menos que pelo direito de administrar justica e exercer funcdes publicas; algumas destas, todavia, sao limitadas quanto ao tempo de éxercicio, de tal modo que no podem de forma alguma ser exercidas duas vezes pela mesma pessoa, ou somente podem sé-lo depois de certos intervalos de tempo pré-fixados; para outros encargos nao ha limitacdes de tempo no exercicio de fungées publicas (por exemplo, os jurados e os membros da assembléia popular). Talvez se possa dizer que estas pessoas nao 'sio funcionérios de modo algum, e que suas funcées nao lhes dao participagio no governo, mas certamente seria ridiculo negar a autoridade de quem exerce o poder supremo. Isto, porém, iio faz qualquer diferenga, pois se trata de uma questéo puramente semantica, por néo haver denominacao comum ao jurado ¢ a0 membro da assembiéia popular, susceptivel de ser aplicada com propriedade a ambos. Para efeito de distincao, portanto, chamemos as duas funcdes de cargos sem limitacdes. Conseqiientemente, dizemos que séo cidadaos aqueles que podem exercer tais fungdes ptiblicas. Esta.é de um modo geral.a definigao de cidadao mais adequada a todos aqueles que geralmente sio chamados cidadaos. Nao se deve esquecer, outrossim, que coisas cujos principios subjacentes diferem especificamenre, sendo um deles o primeiro, outro o segundo e outro o terceio, nada ou quase nada tém em comum que seja digno de mencio, quando consideradas nesta relacao. Com efeito, vemos que as constitui- Ges diferem uma das outras em espécie, « que umas sao posteriores € outras anteriores, porquanto formas erréneas e divergentes sio necessaria- mente posteriores as formas certas (depois pareceré mais claro 0 sentido em que aplicamos termo “divergente” a constituicdes"?)-Entao 0 cidadao sera necessariamente diferente sob cada forma de constitui¢ao, e portanto a definicao de cidadio que j4 demos aplica-se especificamente a cidadania em uma democracia; ela pode ser boa sob outras formas de governo, mas no nesessariamente. De fato, em algumas cidades 0 povo nio é reconhecido como parte constitutiva das mesmas, e nelas nao hé assem- bléias populares regulares, mas assembléias extraordinarias, com partici- pantes selecionados, e as aces judiciais sao distribuidas por grupos entre juizes diferentes — na Lacedeménia, por exéemplo, as acdes por inadim- pléncia contratual so julgadas pelos éforos, que as distribuem entre si mesmos, enquanto os casos de homicidio’ sao julgados pelos ancidos, e outras acdes sto julgadas por outros magistrados; este método nao é seguido em Cartago, onde certos magistrados julgam todas as causes. Mas nossa definicio de cidadao ainda comporta uma correcao, pois sob as outras formas de constituicao um membro da assembléia ou de um 1276 a tribunal de jurados nao € um funcionario sem restrigées, mas um funcionario definido de acordo com suas atribuicdes. Todos eles, ou alguns deles, recebem encargos deliberativos'e judiciais relativos a todas as matérias ou a algumas delas. Entao, o que € um cidadio passa a ser claro depois destas consideracées; afirmamos agora que aquele que tem o direito de participar da funcao deliberativa ou da judicial é um cidadao da comunidade na qual ele tem este direito, e esta comunidade — uma cidade — € uma multidao de. pessoas suficientemente numefosa para assegurar uma vida independente na mesma. Na pratica, porém, a cidadania é limitada ao filho de cidadaos pelo lado do pai e pelo lado da mae, e nao por um lado s6, como no caso do filho apenas de pai cidadau ou apenas de mae cidada; ourras pessoas fazem esta exigéncia retroagir ainda mais, & segunda ou 4 terceira geracdo precedente, ou até a geracgdes mais recuadas. Julgando esta definicao apenas politica € apressada, algumas pessoas fazem a seguinte pergunta: como este antepassado da terceira ou quarta geracdo chegou a ser cidadao? O leontino Gérgias'", em parte por perplexidade e em parte por ironia, disse que pildes sio os objeros feitos pelos artifices de pildes, e os cidadaos de Larissa '"' sio feitos pelos governantes'"’. Trata-se, todavia, de uma questio simples, pois se tais antepassados gozavam do direito de cidadania na forma expressa em nossa definicio de cidadao, eles eram cidadaos, pois € obviamente impossivel aplitar a qualificagao baseada no fato de descender de um cidadio ou de uma cidada aos primeiros colonies ou aos fundadores de uma cidade. Surge uma dificuldade maior no caso daqueles aos quais é concedida a cidadania em seguida a uma revoluso — por exemplo, a investidura de cidacaos efetuada por Clistenes'* em Atenas, ap6s a expulsio dos tiranos, quando elé arrolou nas uribos atenienses muitos estcangeiros residences, tanto imigrantes quanto escravos. A divida nestes casos nfo é quanto & prépria cidadania, mas se os. investidos nela a receberam legitima ou ilegitimamente..Também a este respeito se pode levantar uma nova diivida: se um homem é um cidadao ilegitimamente, seria ele verdadeira- mente um cidadao? Na verdade, “ilegitimamente” significa “etradamen- . As vezes vemos governando erradamente autoridades a respeito das quais nao poderiamos negar que elas governam, mas poderiamos dizer que no governam legitimamente, ¢ um cidadao é definido por certa funcao de governo (um cidadao, como dissemos, é uma pessoa que participa de tais ou «ais fungdes); € claro, portanto, que mesmo homens admitidos ilegitimamente @ cidadania devem ser tidos como cidadaos, embora a divida quanto. a legitimidade ou ilegitimidade de sua admissio se inerligue com a pergunta feita anteriormente'’. Algumas pessoas perguntarn: em que circunstancias uma ocorréncia é ato da cidade, ou nao é? Por‘exemplo, quando o governo se transforma de oligarquia ou tirania

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