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BIBLIOTECA DO LEITOR MODERNO ate GEORG LUKACS ENSATOS SOBRE LITERATURA Coordenazia © prefdcio de LEANDRO KONDER EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA S.A. RIO DE JANEIRO desenho de capa: BuGtNto uinscH Dit para a lingua portuguésa reservados pela EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA S.A. Rua 7 de Setembro, 97 que se reserva a propriedade literdria destas tradug6es 1965 Impresso nos Estados Unidos do. Brasil Printed in the United States of Brazil SObre Georg Lukes (preficio de Leandro Konder) . INDICE Introdugio aos Escritos Estéticos de Marx e Engels (tradugio de Leandro Konder) +... Narrar ou Descrever (tradugio de Giseh Vienna Konder) Balzac: Les Mlusions Perdues (tradugio de Luis Fernando Cardoso) ‘A Polémica entre Bslaac e Stendhal (tradog Gszzaneo) © Homanismo de Shakespeare (tradugio de Roberto Franco de Almeida) Dostoievski (tradugio de Elio Géspari) © Humanisme Cléssico Alemgo — Gothe e Schiller (tradugio de Hilda Vieira de Castro Merquior) . co ‘Thomfas Manne a Tragédia da Arte Moderna (tradugio de Carlos Nélson Coutinho) . n a 9s us 138 us 163 178 Sobre Georg Lukdcs LEANDRO KonDER Quen &, exatamente, ésse Georg Lu- kées, cujo nome vem Baila sempre que fazemos comentiérios a respeito das vicissitudes da filosofia marxista no nosso ‘culo, ou sempre que discutimos o papel da ideologia na tura? A quase totalidade da critica admite a excepcional impor- tfincia de Lukées como pensador. Eas suas concepedes em ma- téria de arte e literatura constituem © que de mais ambicioso se realizou até hoje neste dominio em nome do marxismo: to- dos Ihes reconhecem a significago, ainda quando as combatem. Mas em que 6, precisamente, que o pensamento filosético lu- kacsiano marca a sua presenga no quadro evolutivo da filosofia contempordnea? E, em especial, qual & a sua efetiva contr cdo para o enriquecimento da moderna critica Titeréria, da moderna teoria da literatura? Sabemos, decerto, que Lukécs € marxista. Mas a condi- fo de marxista constitui, afinal, apenas um coméco de expli- cago. Marxistas foram, por exemplo, Lénin ¢ Rosa Luxem- Dargo, cujas posigées nem sempre coinciditam, Morxistas fo- ram Stalin e Trétski, mas tiveram divergéncias profundas, Mar- xistas so os livros'do russo Rosental e do italiano Anténio Gramsci, cujas interpretagdes filoséficas do marxismo esto 1 ra longe de pressupor teorias do conhecimento idénticas. Marxista & (ou pretende ser) a politica cultural defendida por Kurella na Alemanha ¢, no entanto, seus principios divergem dos da politica cultural preconizada por um outro marxista, 0 aus- trfaco Ernst Fischer. Marista € 0 préprio Lukacs, o que nao impede que outros marxistas 0 considerem “revisionista” © ou- tros, ainda, o considerem “dogmitico”. Nos nossos dias, mais claramente do que nunca, percebe- mos que 0 marxismo no é um bloco monolitico, uniforme. Estamos prevenidos de que 0 marxismo é uma vasta e complexa concepeéo do mundo, muito mais cheia de sutilezas do que fa- zem supor os panfletos propagandisticos (pré © contra). Assim, quando nos informam que Lukécs marxista, es- tamos no direito de indagar: que tipo particular de marxista é Este fl6sofo? Como aplica éle os principios ¢ métodos do mar- xismo & apreciagdo dos fendmenos artisticos literdrios? Ainda se toma mais dificil a reconstituigo daquilo que hhé de especifico na posigéo lukécsiana dentro dos quadros do pensamento filos6fico contempordneo quando atentamos no fato de que esta posicao sofreu diversas e significativas modificagées 10 longo da existéncia ativa do pensador. Mesmo depois da sua adesio 20 marxismo, € no interior da perspectiva marxista, a stia posigdo apresenta substanciais mudancas. Lukécs nasceu na Hungria, em 13 de abril de 1885, Esta nna iminéncia de tornar-se octogendrio, portanto. Descende de aristocratas judeus. Freqlentou os meios universitérios alemaes, onde entrou em contato com Max Weber, Simmel, Manheim, Dilthey, Husserl, Heidegger ¢ Jaspers, entre outros. ‘Ao publicar os scus primeiros livros, nfo era marxista. Fazendo abstragio de dois estudos — um sdbre a evolugao do drama moderno € outro sObre questées metodologicas da hi téria da literatura — que nio tiveram maior repercussio ime- diata, a sua primeira obra importante foi A Alma e as Formas, de 1911, cuja perspectiva filoséfica era fundamentalmente kan- tiana, A’ segunda obra importante, A Teoria do Romance, es- crita sob o impacto da guerra de 1914-18, reflete uma decidida “abertura” para a histéria no pensamento de Lukécs, mas a his- téria é encarada através das categorias idealistas de Hegel. S6 depois da guerra, depois da vitéria da revolugio bolchevista na 2 Riissia e depois da sua ligacio com 0 movimento operdrio hin- garo, € que Lukécs se tornou, de fato, marxista “Kant, Hegel, Marx: através dos seus trés livros, Lukées refaz, assim, por sua conta, © caminho da filosofia cléssica ale- ma” (Lucien Goldmann), primeito livro marxista de Lukécs — Histéria e Cons- ciéncia de Classe (1923) — representa o balango das experién- cias tidas pelo pensador no campo da atividede revolucionéria, no curso da qual chegara a ser uma espécie de Ministro da Edu- cagio do efémero govérno Bela Kun. Lukécs incide num érro fundamental de perspectiva politica: sob a influéncia das con- cepgées de Rosa Luxemburgo, admite que esteja iminente uma revolugao de caréter proletério em téda a Europa, Por outro Jado, 0 conceito de dialética adotado por Lukécs em Histéria e Consciéncia de Classe implica em uma teoria do conhecimento segundo a qual a unidade entre sujeito e objeto, postulada pela gnosologia marxista, tende a se transformar em uma identidade teal do sujeito e do objeto do conhecimento, pressupondo, por conseguinte, uma tese hegeliana: a do conhecimento que cami- nha para uma consciéncia absoluta capaz de esgotar 0 real. Foram-lhe acerbamente censurados os “desvios”: 0 “u- xemburguismo” na politica ¢ a persisténcia de um certo “heze- snjsmo” na filosofia. Lukécs acabou fazendo autoeritica, admi- tindo como procedentes as objecdes. ‘Nos anos que se seguiram a publicagao do livro “renegado” © pensador hingaro retomou o estudo dos problemas da litera tura, que jé abordara nas obras da fase pré-marxista. Estéve na Uniéo Soviética, discutindo com escritores sovitticos ¢ defen- dendo 0s critérios marxistas contra as simplificagdes ¢ 0 imedia tismo politico ensejados pelo stanilismo (desta época so os seus estudos sébre Balzac ¢ 0 seu ensaio Narrar ou Descrever). Sun- tamente com Michail Lifschitz, Lukécs desenvolveu paciente tra- balho de reconstituigio das idéias estéticas de Marx ¢ Engels, ’ base de cuidadoso levantamento ¢ interpretacdo de textos. De- pois de concluido éste trabalho, Lifschitz publicou os textos ex- traidos as obras de Marx e Engels em uma coletinea, para a qual Lukécs escreveu um prefacio, logo transformado’ em en- saio: Introducao aos Escritos Estéticos de Marx e Engels Finda a guerra de 1939-45, o autor do controvertido His t6ria e Consciéncia de Classe voltou 4 Hungria, Participou dos 3 Encontros Internacionais de Genebra e orientou a sua interven- 40 no sentido de incentivar uma forma de compreensio capaz de ensejar fecundo didlogo entre a intelectualidade burguesa de formacdo democrética ¢ os intelectuais marxistas, revolucioné- ros: a ideologia do citoyen. A ideologia do citoyen aparecia a Lukécs, sob a euforia decorrente da vitéria s6bre 0 nazismo, como uma via de evo- Ingo “natural” da melhor tradi¢ao burguesa para a perspectiva revolucionéria mais avancada. “Parecia-me que estivéssemos en- trando num névo perfodo, no qual viesse a se tornar possfvel, tal como ocorrera durante a guerra, uma alianga de tédas as fOrgas democréticas, socialistas e burguesas, contra a reagio”. © filésofo acreditava com demasiada precipitaco em tempos amenos para a humanidade: a guerra fria se encarregou de the desautorizar a visio otimista, Ante a critica dos seus compa- mheiros ¢ — sobretudo — ante a evidéncia dos fatos, Lukacs voltou a fazer autocritica. As duas autocriticas lukéesianas — a de depois da pri- meira guerra ¢ a que se seguiu & segunda guerra mundial — deram margem a especulagdes variadas. Ainda hoje, € comum vermos 03 dois episédios serem objeto de interpretagces arbi- trérias (¢ freqtientemente contradit6rias). Para certos “intérpre- tes”, Lukécs nao passaria de um oportunista, de um militante maledvel, sempre disposto @ sacrificar as suas conviegées pes- soais ¢ @ aderir 2 “linha” adotada pela dirego do seu partido, desde que a adestio ofereca vantagens priticas, Para outros (is vézes para os mesmos “intérpretes” que © apresentam como oportunista), Lukées passa por ser a vitima honesta e indefesa ccujas “retratagées” foram arrancadas a férca, sob ameacas de morte. Que dizer a isso? Antes de mais nada, cumpre-nos obser- var que Lukes tem sido duramente reprovado por suas posi- Ges e nem sempre tem concordado em reformulé-las. Por oca- sito do aparecimento do seu livro A Desiruipgo da Razao (1953), 0 Ministro da Cultura da Hungeia — Josef Szigeti — € outros altos dirigentes partidérios reprovaram-lhe uma pre- tensa tentativa de atribuir maior importancia A contradig&o. ra- cionalismo versus irracionalismo do que A contradi¢ao materia~ lismo versus idealismo no desenvolvimento da reflexio filos6- 4 fica. Lukes repeliu as criticas © se recusou a qualquer recuo, resistindo a tédas as presses. Com isso, nfo esté exclufdo, dbviamente, 0 reconhecimen- to de que outras circunstancias, ‘tenham possibilitado outras pressdes as quais no fdsse possivel resistir. Como poderia o emigrado Lukées, suspeito de “revisionismo”, publicar na Unido Soviética, as vésperas da guerra de 1939-45, uma andlise com- preensiva do jovem Hegel, enfrentando a propaganda oficial que facia de Hegel uma “béte noire”, um aleméo conservador quase pré-nazista? Lukes guardou o livro e s6 0 publicou depois da guerra, Tanto as explicagdes que dio Lukées como oportunista como as que o figuram na condicio de vitima indefesa sfo uni laterais € misturam uns poucos elementos de verdade a muitos elementos de mentira. Como considerar oportunista um inte- Tectual que, nas condigdes de trabalho mais dificeis, soube temar com tenacidade contra a maré? Lukées poderé, acaso, ser con- siderado um oportunista por ter feito concessdes téticas (recurso 1 eufemismos, citagdes protocolares de Stalin, etc.) em face da burocracia staliniana? Mas o siléncio © as ‘concessdes taticas no eram impostos pela situagio? ‘As pressdes nido servem para explicar, por si mesmas, as autocriticas lukacsianas, porque, mesmo depois de modificad as circunstincias ¢ cessado 0 constrangimento, Lukécs se man- feve nas posigies que adotara em decorréncia das autocriticas. ‘As presses podem nos ajudat a compreender — isso sim — alguns aspectos das concessdes feitas pelo ensafsta no curso da sua luta por manter, ao mesmo tempo, a sua condigéo de mil tante revoluciondrio ea sua condigdo de intelectual indepen- dente. Eis que Lukées aparece, ento, ante 0s nossos ollios, como tum intelectual cujas posigGes foram reformuladas no em fun- do das pressées impostas mas em decorréncia de seu conven- Cimento pessoal da necessidade de reformulé-las (convencimen- to que perdurou quando as pressGes j4 se haviam modificado) ; , da mesma forma, nos aparece também como um revolucio- nario que, para salvaguardar simultineamente as suas prerroga- tivas de militancia partidaria e critica, foi levado a fazer con- cesses, sem que por isso se tenha revelado um oportunista. 5 ‘A questio é complexa. A trajet6ria intelectual de Lukécs apés a sua adesio a uma perspectiva marxista nao pode ser de- vidamente compreendida se Lukécs ¢ transformado num sim- bolo, se éle é transformado a priori em mértir indefeso da ho- nestidade intelectual triturada pelo stalinismo, ou se éle & re- presentado como cimplice oportunista do stalinismo. ‘Nao cabe, aqui, evidentemente, uma andlise do statinismo, um exame aprofundado das relagoes entre a atividade cultural de Lukics ¢ 0 perfodo stalinista. possfvel encontrar, em um ‘ou outro ponto da vasta obra marxista do pensador htingaro — se bem que nfo, a nosso ver, nas duas autocriticas, ou nas concessdes titicas de linguagem — a presenca limitadora de cle- mentos que refletem aquilo que havia de circunstancial nas con- digdes da “politica de cérco”, nas condigies da institucionaliza- gio do “comunismo de guerra”, sobre as quais germinow 0 sta- inismo, Na Unido Soviética cereada por um mundo capitalista hos- til, © ante a iminéncia do esmagamento da revolucdo socialista, descavolveu-se a tendéncia para uma sistematizagio rigida e “fechada” dos pontos de vista marxistas. Deu-se ao marxismo, para defendé-lo da insfdia de inimigos muito poderosos, 0 caré- ter de uma “ortodoxia”. E, dada a centralizagao do comunismo mundial em témo da revolugio soviética (gerada pela necessi- dade de protegé-la), a tendéncia atingiu, de um ou de outro modo, 0$ escritores comunistas dos mais diversos paises. Em tais circunstincias, num periodo de agugamento da luta de clas- ses em escala internacional, € compreensivel — embora, a rigor, nao se possa dizer que tenha sido inevitével — que um etftico doublé de militante politico (como & Lukécs) fosse levado a sacrificar inadvertidamente a riqueza de nuances da sua con- ‘cepcio, trocando-a, de boa 16, por um esquema sélido, apto a ser brandido como arma de efeito imediato contra um inimigo ameagador. ‘Nas idéias trabalhadas por Lukéics — como nas idéias de priticamente todos os tedricos marxistas militantes de entre 1930 © 1955 (a excecao, talvez, de AntOnio Gramsci) — contram-se_ aspectos fortemente “datados”, isto € compromet dos. com circunstincias histOricamente superadas, O que tora a obra lukécsiana 10 significativa, do ponto de vista cultural, porém, € precisamente o fato de que cla no essencial nfo tenha 6 sido atingida pelos tragos de comprometimento com as tendén- cias limitativas da época em que foi elaborada. Lukécs € um dos raros autores do nosso tempo cuja obra € de conhecimento verdadeiramente imprescindivel para um ‘exame honesto dos problemas da cultura contemporanea, sejam quais forem as conclusdes a que nos possa levar éste éxame. Dai a necessidade de proporcionar ao piblico brasileiro culto ‘um convivio com os scus textos, um acesso direto as suas idéias. Lendo o ensaista famoso 6 que poderemos formar as nos- sas convicgdes a respeito dos seus pontos-de-vista e a respeito ddas grandes questdes a que se referem tais pontos-de-vista, evi- tando as ilusdes que nos so impingidss pelas imagens roman- ceadas ou caticaturadas de Lukics que alguns dos seus “exege- tas” fazem circular entre nés. Através dos trabalhos selecionados para a presente cole- tinea (uma selegio submetida ao proprio Lukécs © aprovada por éle), os Ieitores brasileiros entrario em contato direto com lum pensamento cujo vigor marxista no foi, no fundamental, afetado pelas ““doencas infantis” do comunismo. Os fariseus poderdo se entusiasmar na faina ingléria de colhér na fisionom intelectual do mestre hringaro os sinais deixados pelas cataporas ideolégicas © pelas deformacdes circunstanciais, mas s6 encon- trardo irrelevantes marcas epidérmicas. ‘Acham-se reunidos, aqui, trabalhos publicados em diver- 0s livros ¢ escritos em diferentes épocas, ao longo de tOda uma vida de dedicagio 20 estudo dos problemas literérios (e, espe cialmente, dos problemas ideol6gico-literdrios). Por isso, colo- ‘camos no final de cada matéria a data em que ela foi elaborada, © ensaio que abre 0 volume, por exemplo, voltado para 0 com- bate ao esteticismo © ao sociologismo, denunciando a contrafa- ‘eGo caricatural das concepcées auténticamente marxistas pela estética do marxismo vulgar, foi escrito em 1945. No ensaio seguinte, escrito em 1936, Lukées propde um critério metodolégico para caracterizar a atitude naturalista como oposta ao procedimento realista, O naturalismo — com © predominio do método descritivo sObre 0 método narrative — representa um afastamento em relagdo aos grandes mestres Epicos do passado e abre caminho para o formalismo. O ter- ceiro ensaio, por sua vez (escrito pouco antes), estuda a apli- cagio do método realista tal como ela foi feita por Balzac na 7 aC 45 Musdes Perdidas, E & ainda a Balzac que éstd dedicado o trabalho seguinte, © quarto ensaio seleciontte par era cgente livro: le analisa’os pontos de convergéncia ¢ sepontes de divergéncia que se manifestam nas concepgses dos dois maiores escritores da primeira metade do sSculo 31% Dea, zac ¢ Stendhal, © auinto ensaio 6 um pequeno trabalho recente, dedicado comikespeate. Uma das constantes na eftca lukicsana, orm feral £ i Preocupacdo de, na incorporagio & perspectiva reve, ciondria do presente, no deixar perder nada do que ha de sraggle ma cultura do passado, Em sua admizacao pele grandocs Fe gncontrardo uma andlise aprofundada do romance ‘Datiy Raustus de Thomas Mann, no qual Lukécs vai encontrar hi, sPsincnada defesa da integridade humana contra a alienasie a dilacerago dos homens acarretadas pelo eapitalismo, ‘So apenas oito trabalhos de um escritor i le nimero de outros. Nio podem dar uma i a sua obra, evidentemente. Mas podem comecar 2 proone Sai04 indngaro. Quem sabe se, depois do aparecimento dean Ensaios Sébre Literatura 1 Introducdo aos Escritos Estéticos de Marx e Engels Os sscrttos de Marx ¢ Engels em ma- téria de literatura t8m uma forma bastante peculiar; convém, portanto, demonstrar desde logo ao leitor a necessidade de tal forma, a fim de que éle encontre a justa colocacdo para uma correta leitura e compreensio désses escritos. Deve-se, antes, dizer que Marx ¢ Engels nunca escreveram um livro organizado ou mesmo um ensaio sobre problemas literérios no sentido es- trito da palavra. E verdade que 0 Marx da fase da maturidade sempre acalentou 0 propésito de expor num alentado ensaio suas idéias sObre Balzac, seu escritor preferido. Mas éste ficou, como tantos outros, no terreno das aspiragBes. O grande pen- sador foi tio absorvido até o dia da sua morte pelo trabalho na sua obra econémica fundamental que nem éste projeto nem o de ‘um livro sobre Hegel puderam ser realizados. Por esta raz30, 0s escritos estéticos de Marx ¢ Engels so constituidos em parte de cartas © anotagdes de conversas ¢ em parte de trechos extrafdos de trabalhos dedicados a temas di versos, nos quais Marx e Engels afloraram os problemas ca tais da literatura. Assim € Obvio que a escolha ¢ ordem dos u textos de Marx ¢ Engels sbbre o assunto jamais so devidas aos dois autores, Os leitores alemfes conhecem, por exemplo, a ex- celente edigio da coletinea Marx und Engels iiber Kunst und Literatur (Verlag, Brano Henschel, Berlim): ela foi elaborada pelo prof. M. Lifschitz. A constatagio déste fato niio implica, porém, de modo al- gum, em que os trechos recolhidos deixem de constituir uma tunidade conceitual orginica e sistemdtica: s6 devemos, antes, nos entender acérea do cardter desta sistematicidade, que re- sulta das concepgées filos6ficas de Marx ¢ Engels, Naturalmen- te, nio cabe expor aqui de modo amplo a teoria marxista © sua sistematizagio: limitamo-nos a chamar a atengéo do leitor para dois pontos de vista decorrentes dela. O primeiro consiste em que o sistema marxista — em nftido contraste com @ moderna filosofia burguesa — ndo se desliga jamais do processo unit rio da historia. Segundo Marx Engels, 36 existe uma ciéncia unitéria: a cigncia da histéria, que concebe a evolugio da na- tureza, da sociedade, do pensamento, ete., como um processo histérico Gnico, procurando descobrir déste processo as leis ge~ rais e as leis particulares (isto é, aquelas que so especilicas de determinados perfodos. Isso, contudo, nao implica de modo al- gum — c éste € 0 segundo ponto de vista — num relativismo hist6rico. A esséncia do método dialético, de fato, esti exata- mente em que para éle 0 absoluto ¢ 0 relativo formam uma unidade indestrutivel: a verdade absoluta possui seus proprios ‘elementos relativos, ligados ao tempo, a0 lugar e as circunstin- cias. E, por outro lado, a verdade relativa, enquanto verdade real, enquanto reflexo aproximativamente fiel da realidade, re- veste-se de uma validez absoluta. Necessiiria conseqiiéncia do ponto de vista acima referido & a rejeigéo pela concepgéo marxista da acentuada separagio ¢ do isolamento dos ramos particulares da ciéncia, tal como so comuns no mundo burgués. Nem a ciéncia, nem os seus diver- sos ramos, nem a arte, possuem uma histéria auténoma, ima- rnente, que resulte exclusivamente da sua dialética interior, A evolugdo em todos ésses campos é determinada pelo curso de t6da a hist6ria da produgéo social, no seu conjunto: e s6 com base neste curso € que podem ser esclarecidos de maneira ver- dadeiramente cientifica os desenvolvimentos ¢ as transforma- ges que ocorrem em cada campo singularmente considerado. 2 F claro que esta concepgio de Marx e Engels, que contradiz francamente tantos preconceitos modernos, nfo’ comporta uma interpretagdo mecanicista, como a que costumam fazer nume~ rosos pseudo-marxistas ou marxistas vulgares. No deseavolvi- mento das anélises mais particularizadas que se seguirio, ha- veremos de voltar a esta questo, Basta-nos, por ora, salientar que Marx e Engels jamais negaram a relativa autonomia do de- Senvolvimento dos campos particulares da atividade humana (Gireito, cigncia, arte, etc.); jamais ignoraram, por exemplo, o fato de que 0 pensamento filos6fico, singularmente considerado, se liga a um Outro pensamento filoséfico que 0 precedeu © do qual le é um desenvolvimento, uma corregio, uma refutacio, etc, Marx e Engels negam apenas que seja possivel compreen- der o desenvolvimento da ciéncia ou da arte com base exclusi- vamente, ou precipuamente, nas suas conexdes imanentes. Tais conexdes imanentes existem, sem duivida, na realidade objetiva, ‘mas s6 como momentos da tessitura hist6rica, como momentos do conjanto do desenvolvimento histérico, no interior do qual, através do intrincado complexo das interag&es, 0 fato eco- némico (ou seja, 0 desenvolvimento das {reas sociais produti- vvas) assume 0 papel principal. Portanto, a existéncia ¢ a esséncia, a gtnese ¢ a eficécia da literatura $6 podem set compreendidas e explicadas no qua- dro histérico geral de todo o sistema. A génese ¢ o desenvolvi- mento da literatura sio parte do processo hist6rico geral da so- ciedade, A esséncia e 0 valor estético das obras literdrias, bem como a influéncia exercida por eles, constituem parte daquele proceso social geral e unitério através do qual o homem faz seu © mundo pela sua prépria consciéncia. Do primeiro ponto de vista, a estética marxista ¢ a hist6ria marxista da literatura © da arte fazem parte do materialismo hist6rico, ao passo que, do segundo ponto de vista, a estética marxista é uma aplicagio do materialismo dialético (sendo, em ambos 0s casos, uma parte peculiar, especial, do conjunto, com determinadas leis especifi- cas, determinados principios exclusivos: 0s princfpios es- t6ticos). ‘Os princfpios gerais da estética ¢ da hist6ria marxista da literatura encontram-se, pois, na doutrina do materialismo hist6- rico. S6 a partir do materialismo histérico podem ser comprecn- didas a génese da arte e da literatura, as leis do seu desenvol- B vimento, as suas transformagies, as linhas de ascensio e queda ro interior do proceso do conjunto. Por isso, cumpre-nos exa~ tninar preliminarmente algumas questdes gerais bisicas do mate- rialismo hist6rico. E nao apenas tendo em vista a necessidade de fundamentar cientificamente 0 nosso empreendimento mas, tam- bém, porque exatamente neste campo devemos distinguir com clareza 0 auténtico marxismo (a verdadcira visio dialética do mundo) da sua vulgarizagio deformadadora, que — no terre- no em que nos colocamos — comprometeu da maneira mais perniciosa 0 marxismo aos olhos de um vasto cfrculo de pes- 508s. E sabido que o materialismo hist6rico discerne na base econémica o prinefpio diretor, a Iei determinante do desenvol- vimento histérico. Do ponto de vista da sua conexso com 0 processo evolutive do conjunto, as ideologias — e, entre clas, a literatura © @ arte — aparecem tnicamente como superestru- turas, que s6 0 determinam por via secundaria, Desta constata- ‘so fundamental, 0 materialismo vulgar parte para a conclusio, mecinica ¢ errénea, distorsiva e aberrante, de que entre base © superestrutura s6 existe um mero nexo causal, no qual o pri- miro térmo figura apenas como causa e 0 segundo aparece tni- camente como efeito. Aos olhos do marxismo vulgar, a supe restrutura é uma conseqiiéncia mecnica, causal, do desenvolvi- mento das férgas produtivas. © método dialético nfo admite se- melhante relagGo. A dialética nega que possam existir em qual- quer parte do mundo relagdes de causa ¢ efeito puramente vvocas: ela reconhece mesmo nos dados mais elementares do real complexas interagées de causes ¢ de efeitos. E 0 materialismo hist6rico acentua com particular vigor o fato de que, num pro- ceess0 to plurilateral © cheio de estratificagdes como € 0 pro- cesso da evolucfo da sociedade, 0 processo total do desenvol- vimento histérico-social s6 se concretiza em qualquer dos seus momentos como uma intrincada trama de interagdes. Unica mente w'a metodologia déste tipo nos permite atingirmos — ainda que epidérmicamente — a questdo das ideologias, Quem quer que veja nas ideologias o produto mecinico e passive do processo econémico que lhes serve de base nada compreenderé da esséncia e do desenvolvimento delas, e nio estaré represen- tando © marxismo, mas uma imagem deformada ¢ caricatural do marxismo. 4 Em uma das suas cartas, Engels se exprime a respeito do problema nos seguintes térmos: "O desenvolvimento politico, Juridico, filoséfico, religioso, literério, etc., bascia-se no eco- némico. Mas todos reagem mbtuamente uns sdbre 0s outros ©, também, sObre a base econdmica, Nao & exato que a situacho econdmica seja a tinica causa ativa e todo o resto nio passe de cfeito passive. Em lugar disso, hé uma ago reciproca sObre a base da necessidade econdmica, a qual — em iilima insténcia — sempre acaba por preponderar”. Tal orientagio metodolégica marxista tem como conse gliéncia a atribuigio A energia criadora e a atividade do sujeito de um papel extraordinariamente importante no desenvolvimen- to histérico. A idéia central do marxismo no que se refere & evo- lugo histérica é a de que o homem se féz homem diferencian- do-se do animal através do seu proprio trabalho. A fungio cria- dora do sujeito se manifesta, por conseguinte, no fato de que o homem se cria a si mesmo, se transforma éle mesmo em ho- ‘mem, por intermédio do seu trabalho, cujas caracteristicas, pos- sibilidades, grau de desenvolvimento, etc., so, certamente, de- terminados pelas circunstincias objetivas, naturais ou sociais. Este modo de conceber a evolugio histérica esté presente em téda a visio marxista da sociedade e, também, na estética mar- ‘a. Marx diz, em uma passagem, que a miisica suscita no ho- mem o senso musical; e essa concepgao, igualmente, é uma parte da concepgao geral do marxismo no que concerne a todo 0 de- senvolvimento social, Marx coneretiza déste modo a abordagem do problema: “somente através do desenvolvimento objetivo da riqueza da esséncia humana, pode ser, primeiramente, em parte aperfei- goada e em parte criada a riqueza da sensibilidade subjetiva Jumana, Tsto €: um ouvido musical, um 6lho capaz de colhér a beleza da forma; em suma, sentidos pela primeira vez capa- citados para um desfrute humano, sentidos que se afirmam como faculdades essenciais do homem”. Tal concep¢io assume gran- de importincia néo s6 para uma compreensio do papel hist6- rico e socialmente ativo do sujeito, mas porque nos esclarece quanto 20 modo pelo qual 0 marxismo enxerga os periodos da hhistéria da humanidade considerados em si mesmos, ¢ como encara o desenvolvimento da civilizagao, 0s limites, a problemi- fica e a perspectiva désse desenvolvimento, Marx conclui da se- 1S guinte maneira o raciocinio acima citado: “‘A educagio dos cin- co sentidos é trabalho de t6da a histéria universal até 03 nossos dias, O sentido subordinado a exigéncias praticas animais € um sentido limitado, Para o homem faminto, nao existe a forma hu- mana do alimento ¢ sim apenas a sua existéncie abstrata como alimento: 0 alimento pode se apresentar indiferentemente em qualquer forma, ainda que seja mais grosseira, ¢ no se con- seguiré dizer em que ponto a sua atividade nutrtiva se diferen- ciaré da do animal. O homem angustiado por uma necessidade nfo tem senso algum, mesmo para 0 espetéculo mais belo: 0 mercador de pedras preciosas s6 vé 0 valor comercial delas, nio vé a beleza e a natureza peculiar de cada pedra; éle no possui qualquer senso estético para 0 mineral em si. Portanto, a obje- tivagdo da esséncia humana, quer do ponto de vista’ tedrico, quer do ponto de vista prético, & necessdria tanto para tornar jumanos 0s sentidos do homem como pata criar um sentido humeno adequado & inteira riqueza da esséncia humana € na- tural”, A atividade espiritual do homem dispée, pois, de uma cer- ta e relativa autonomia para cada um dos scus campos; e isso diz respeito sobretudo & arte ¢ a literatura, Cada campo, cada esfera de atividade se desenvolve espontineamente — por tra- bbalho do sujeito criador — vinculando-se de modo imediato as suas criagdes precedentes e desenvolvendo-as depois, ainda quando por meio de erfticas e polémicas, J4 advertimos’ quanto 10 fato de ser relativa esta autonomia ¢ néo comportar a mesma, em absoluto, a negago de prioridade da base econdmica; disso, porém, néo resulta, de modo algum, que a conviceo subjetiva de que cada esfera da vida espiritual se desenvolva espontinca- ‘mente seja mera ilusio. A autonomia a que nos referimos é fun- dada objetivamente na esséncia mesma do desenvolvimento, na diviséo social do trabalho. Sdbre esta questo, Engels escreve: “As pessoas que se focupam déle (do desenvolvimento ideol6gico; GL) pertencem, por sua vez, a esferas particulares da divisdo do trabalho, ¢ tm a sensa¢ao de cultivar um campo aut6nomo. E, na medida em que elas constituem um grupo independente dentro do quadro da divisio social do trabalho, as produgées delas (abrangendo (98 seus erros) exercem uma influéncia que reage sbbre todo 0 desenvolvimento social, inclusive 0 econémico, Contudo, no fi- 16 nal, elas ficam sujeitas a influxo predominante do desenvolvi- mento econémico”. E, no trecho que se segue, Engels elucida ‘bem a sua concep¢ao metodolégica do primado do econdmico: “A supremacia final do desenvolvimento econémico, ainda nes- tes campos, é para mim certa, mas ela se realiza’ dentro das condigdes prescritas pelas peculiaridades de cada campo. Na fi- Josofia, por exemplo, se realiza pela ago de influéncias eco- némicas (que, por sua vez, costumam atuar através dos seus disfarces politicos) s6bre 0 material filos6fico subsistente, for- necido pelos predecessores. A economia nio cria aqui nada de rnévo, e sim determina a forma da transformacdo ¢ do aperfei oamento do contetido do pensamento preexistente; ¢, ainda as- sim, costuma fazé-lo de maneira indireta, pois so os reflexos politicos, juridicos, moras, etc., que exercem a maior pressio Gireta s6bre a filosofia”. ‘Tudo que Engels afirma aqui sobre a filosofia pode ser também amplamente aplicado aos principios fundamentais da evolugio da literatura. E claro que todo desenvolvimento, enca- rado de modo conereto, tem 0 seu cardter particular, ¢ o para- Telismo entre dois desenvolvimentos jamais pode ser generali zado mecénicamente. E claro que, no quadro das leis que dizem respeito & sociedade inteira, o desenvolvimento de cada esfera assume o seu caréter particular, com suas leis prOprias. Se agora coneretizamos corretamente 0 principio geral as- sim alcangado, chegamos a formular um dos principios mais importantes da concep¢do marxista da histéria. No que concer- , 0 materialismo histérico reconhece — ainda neste ponto, em franca oposigio 20 marxismo vulgar — que 0 desenvolvimento das ideologias ndo acompanha me- cinicamente e nem segue “pari passu” 0 grau de desenvolvi- ‘mento econdmico da sociedade. Na histéria da humanidade sob © comunistno primitivo © sob a diviséo da sociedade em clas- ses, a respeito da qual escreveram Marx e Engels, nfo é de ma- reeita alguma necessério que a cada florescimento econdmico ¢ social corresponda infalivelmente um florescimento da literatura € da arte, da filosofia, etc.: nfo 6 absolutamente necessirio que uuma sociedade mais evoluida socialmente possua uma literatura, ‘uma arte, uma filosofia infalivelmente mais evoluida do que as de uma sociedade com nivel inferior de progresso. 7 ‘Marx € Engels insistem, em muitas ocasiées, sObre a desi- gualdade de desenvolvimento no campo da histéria des idcolo- gias. Engels, por exemplo, ilustra as consideragses citadas hd pouco recordando como a filosofia francesa do século XVIII ¢ 4 filosofia alema do século XIX nasceram em paises completa ‘ou relativamente atrasados, 0 que mostra que, no campo da filosofia, a funcfo de guia pode ser exercida pela cultura de wm ppais que, no campo econdmico, mantém-se em grande atraso quando comparado com outros pafses circunstantes. Estas veri- ficagdes foram formuladas assim por Engels: “Daf decorre 0 fato de que paises econdmicamente atrasados possam, em filo- sofia, desempenhar o papel de primeiro violino: a Franga o féz no século XVIII com relagao & Inglaterra, em cuja filosofia os franceses inicialmente se basearam; mais tarde, a Alemanha 0 {féz com relagio as outras duas”. Marx formula éste pensamento — referindo-se principal- mente & literatura — de maneira, se possfvel, ainda mais clara e mais concisa. Ele afirma: “Em arte, nota-se que determina das épocas de florescimento nfo apresentam relagfo alguma com o desenvolvimento geral da sociedade » também com a base material, isto €, com a ossatura (por assim dizer) da sua organizacio. Por exemplo: os gregos, comparados com os mo- dernos. Ou, ainda: “Shakespeare. De certas formas de arte — a epopéia, ‘por exemplo — recomhece-se francamente que ni mais podem ser produzidas na sua forma cléssica, isto 6, na- dquela forma que imprimiu o seu sélo a t6da uma época do mun- do, mal sobrevinda a produgio artistica como tal. Ou seja: re- conhece-se que, no proprio ambito da arte, algumas das suas criagées notiveis $6 so possiveis num grau’evolufdo do desen- volvimento artistico. Se is80 ocorre na relagio entre as diversas formas artisticas, no mbito da prépria arte, internamente, jf é ‘menos estranho que 0 mesmo se dé na relagio da arte como um todo ¢ 0 desenvolvimento geral da sociedade”. Tal concepgio do desenvolvimento histérico exclui, nos marxistas auténticos, tda esquematizacéo ¢ téda manipulacao de dados & base de analogias ou paralelismo mecinicos. De que modo 0 principio do desenvolvimento desigual se manifesta em tum determinado campo ¢ em um determinado perfodo da hist6- ria das ideologias & um problema histérico concreto, ao qual 0 marxismo s6 pode dar resposta & base de uma anélise concreta 18 da situagio concreta, E € por isso que Marx exclui desta manei- ra as consideragbes precedentes: “A dificuldade reside apenas nna formulagéo geral dessas contradigées. Basta que cada con- tradigio venha a ser especificada ¢ ela € logo resolvida". ‘Marx e Engels se opuseram, durante tOda a vida déles, as vulgarizagdes esquematicas de seus auto-intitulados discipulos, gue pretendiam substituir 0 estudo concreto do processo hist rico conereto por uma concepeio da histéria apoiada em dedu- ‘es ¢ analogias meramente artificiosas, com a supressio das relagSes complexas ¢ coneretas da dialética por meras relagies mecinicas. Um excelente exemplo da aplicagio désse método pode ser encontrado na carta de Engels a Paul Emst, na qual Engels toma decididamente posigéo contra a tentativa feita por Paul Emst de difinir © cardter “pequeno burgués” de Ibsen a partir de um conceito geral de “pequeno burgués”, elaborado por Ernst & base da analogia com o tipo do espftito pequeno ‘burgués alemio, ao invés de se reportar as peculiaridades con- cretas da situacdo hist6rica norueguesa, As indagages histéricas de Marx e Engels no campo da arte © da literatura estendem-se ao inteiro desenvolvimento da sociedade humana, Mas, nfio menos do que no caso das suas (entativas para individualizar no desenvolvimento geral da so- ciedade humana os tracos do desenvolvimento econémico © so- cial, 0 interésse principal déles, no campo da arte e da literatu- a, se voltou para a individualizagao dos tragos essenciais do presente, da evolucio moderna. E, se considerarmos nesta pers- pectiva (a perspectiva voltada para a evolucio moderna) a con- cepeio marxista da literatura, veremos ainda mais claramente fa importincia assumida pelo ‘principio da desigualdade de de- senvolvimento na determinagdo das peculiaridades de qualquer periodo. Sem divide, 0 sistema de produglo capitalista representa © grau econémico mais elevado no quadro do processo evolutivo das sociedades divididas em classes, Mas também no ha duivi- da de que, para Marx, tal sistema de producéo ¢ essencialmente desfavorével ao desenvolvimento da literatura e da arte. Marx Go 6 0 primeiro nem 0 tinico a dar conta do fato e a descre- vé-lo, Sdmente com éle, porém, as causas efetivas do fendmeno aparecem na sua integridade real. Pois sOmente uma concepcio compreensiva, dinfmica ¢ dialética, pode proporcionar 0 qua- 19 dro exato dessa situago, Naturalmente, éste nfo é o lugar para abordarmos, nem mesmo de modo sumério, tal questio. ‘A propésito da questio aflorada, entretanto, o leitor poderd ter ocasiéo de constatar de maneira particularmente clara a colocagio da teoria e da histéria marxista da literatura como parte de um todo complexo, que & o materialismo histérico. Marx nao determina o sentido fundamentalmente hostil & arte do sistema capitalista de producdo a partir de pontos de vista estéticos. Assim, se quisermos medir as assertivas de Marx s6- bre 0 assunto & base de critérios quantitativos e estatfsticos — © que nio é licito, certamente, para quem queira alcangar uma justa compreenséo do problema — chegaremos a conclusio de ue @ questo da qual falamos mal chegou a interessé-lo. Quem, porém, tenba estudado a fundo ¢ de maneira apropriada O Ca- Dital & outros escritos de Marx teré 2 oportunidade de notar que algumas das suas indicagdes, consideradas no quadro de con- junto de todo o sistema, oferecem uma penetragao na esséncia do problema bem mais aprofundado do que a dos escritos dos anticapitalistas roménticos, que por téda a vida se ocuparam de estética. De fato, a economia marxista reconduz as categorias. do set econémico (0 ser que constitui o fundamento da vida so- cial) as manifestagbes das formas reais de tal ser, isto 6, as for- ‘mas que manifestam relagdes inter-humanas ¢, através das rela ‘des inter-humanas, que manifestam a relago entre sociedade € natureza. Mas, a mesmo tempo, Marx demonstra que, no ca- pitalismo, t6das éssas categorias aparecem necessiriamente numa forma reificada; e que, com essa forma reificada, ocultam a sua verdadeira esséncia, quer dizer, a sua esséncia de relagio entre homens. Nessa subversio das categorias fundamentais do ser humano reside a fetichizagGo inevitivel que ocorre na sociedade capitalista. Na consciéncia humana o mundo aparece comple- tamente diverso daquilo que na realidade éle €: aparece altera- do na sua propria estrutura, deformado nas suas efetivas cone- xées, Torna-se necessério um trabalho mental de tipo comple- tamente particular para que o homem do capitalismo penetre nesta fetichizacio € descubra no interior das categorias reifica- das (mercadoria, dinheiro, prego, etc.) que determinam a vida cotidiana dos homens a verdadeira esstncia delas, de relagSes sociais, relagSes entre homens. 20 ra, a humanitas — ou seja, 0 estudo apaixonado da na- tureza humana do homem — faz parte da esséncia de téda lite ratura e de t6da arte auténtica; daf que tda boa arte e t6da boa literatura sejam humanistas, nfo s6 ao estudarem apaixonada- mente 0 homem e a verdadeira esséncia da sua natureza huma- nna, mas, também, por defenderem apaixonadamente a integri- dade /umana do homem contra tOdas as tendéncias que a ata- cam, a envilecem e a adulteram. Como tddas essas tendéncias, ¢ naturalmente antes de tOdas a opressio ¢ a exploragio do hhomem pelo homem, assumem a mais desumana das suas for- ‘mas na sociedade capitalista — exatamente por seu cardter rei- ficado e objetivacdo aparente —, todo verdadeiro artista e todo verdadeiro escritor um adversério instintivo de qualquer alte- ragio do principio do humanismo, independentemente do grau (maior ou menor) em que seja alcangada a consciéncia disso nos espiritos criadores individualmente considerados. Repetimos que € dbviamente impossivel discutir aqui am- plamente 0 problema. Analisando alguns trechos de Goethe ¢ de Shakespeare, Marx poe em evidéncia esta ago anti-humana do dinheiro, que altera ¢ deforma a esséacia do homem: “Sha- Kespeare mostra bem, sobretudo, duas propriedades do dinh: ro: 1) dle & a divindade visivel, a transformagio de tédas as qualidades humanas e naturais no contrério delas, a inversio universal das coisas, aquéle que concilia os inconciliéveis; 2) éle € a alcoviteira universal, 0 rufio que corrompe os homens ¢ 05 povos. A inversdo € a transmutagto de tOdas as qualidades hu- manas € naturais, a conciliagio dos inconciliéveis — 0 poder divino — do dinheito, tudo isso provém da sua esséncia de ser genérico dos homens alienados, que se expropriam ¢ se per- dem néle, dinheiro, O dinheiro € 0 poder alienado da humani dade. Aquilo que cu nfo posso fazer como homem, isto é, aqui Jo que eu nfo consigo com as minhas f6rgas essenciais indivi- duais, eu 0 consigo pelo dinheiro, O dinheiro transforma, pois, cessas forgas essenciais em algo que clas nflo sto, quer dizer, no contrério delas”, ‘Mas com isso nfo s¢ exaurem os temas principais ora abor- dados, A hostilidade da ordem de producio capitalista a arte se manifesta igualmente na divisio capitalista do trabalho. Um maior desenvolvimento na compreensio déste aspecto do tema nos remeteria, ainda uma vez, a0 estudo da economia como 21 uma totalidade. Do ponto de vista do nosso problema, vamos nos contentar em fixar aqui um s6 principio, que seri, nova- mente, 0 principio do humanismo, o principio que a luta eman- cipadora do proletariado herdou' dos grandes movimentos de- maocraticos ¢ revolucionétios precedentes (heranca elevada a um plano qualitativamente superior): a reivindicagao de um desen- volvimento harménico ¢ integral para 0 homem. A hostilidade a arte © & cultura, prépria do sistema capitalista, comporta, a0 contrario, o fracionamento da totalidade concreta em especiali- zagies abstratas. Mesmo 0s anticapitalistas romanticos reconhecem que é ésse, realmente, o estado de coisas. Com a diferenga, porém, de verem néle apenas a expresso de uma fatalidade, uma calami- dade, pelo que procurarm — ao menos sentimentalmente, ideal- mente — refugiar-se em sociedades mais primitivas, assumindo, déste modo, uma posigéo que devia inevitivelmente naufragar @ assumir caracteristicas reacionérias. Marx e Engels jamais ne- garam o cariter progressista do sistema capitalista de produ- ‘do, mas, ao mesmo tempo, desmascararam-the desapiedadamen- te 05 aspectos desumanos. Eles compreenderam claramente, © claramente 0 exprimiram, que sOmente trilhando tal estrada a hhumanidade poderia aleangar as condigGes materiais bésicas para a sua Tibertagdo real e definitiva, no socialismo. Mas a com- preensio do carter ccondmica, social ¢ histdricamente neces- séria da ordem social capitalista e a fundamentada repulsa a qualquer “ret8mo” a épocas superadas ndo embotam a critica da civilizagio capitalista por Marx e Engels; antes a agugam. Ouando se vottam para 0 passado, essa atitude néo comporta 4 evasio romantica para tempos idos; ela nos lembra o inic daguela luta libertéria que emancipou a humanidade de um pe- Hiodo de explorago ¢ opressio ainda mais surdo © mais deses- perado: o periodo feudal Por isso, quando Engels fala do Renascimento, suas con- ideragées se referem a essa tuta de emancipacio, &s conquis tas iniciais da Iuta dos trabalhadores em busca da’libertagio; e quando éle contrapde a divisio capitalista do trabalho aos pro- cessos vigorantes naquele tempo, no o faz tanto para exaltar éstes iltimos, © sim, principalmente, para mostrar o caminho que conduz a humanidade a libertagio vindoura (0 caminho de ado libertéria das préprias classes trabalhadoras). Falando do 22 Renascimento, Engels pode afirmat: “Foi a maior revolucio progressista que a humanidade conhecera até aquéle tem; ‘uma época que necessitou de gigantes ¢ engendrou gigantes. Gi gantes pela férca do pensamento, pelas paixdes ¢ pelo cardter, pela universalidade ¢ pela doutrina. Os homens que fundaram 2 moderna denominacéo burguesa foram tudo, pelo menos bur~ ‘gueses limitados. Os herdis daquele tempo, na realidade, ainda ndo haviam sido esmagados pela diviséo do trabalho, cujos efeitos mutiladores, que tornam o homem unilateral, sentimos tio freqiientemente nos seus sucessores. O que particularmente os distingue € que todos viviam ¢ atuavam nos movimentos do seu tempo, na luta pritica, tomando posicio ativa e participando das contendas, quer com a palavra escrita ¢ falada, quer com a espada, ¢ as vézes com ambas. Daf aqucla inteireza ¢ férga de carter, que faz com que tenham sido homens completos. s eruditos de biblioteca representam excegdes: gente de se gunda ou terceira ordem, on filisteus prudentes que nao querem ‘queimar os dedos”. ‘Marx e Engels exigiam dos escritores do sew tempo, por conseguinte, que éles, através da caracterizacéo dos seus perso- nnagens, tomassem apaixonadamente posigio contra os. efeitos pemiciosos ¢ envilecedores da divisio capitalista do trabalho ¢ colhessem o homem na sua esséncia ¢ na sua totalidade. E exa- tamente porque percebiam na maior parte dos seus contempo- xineos a felta dessa aspiracio a integralidade ¢ & esséncia, a de- ficiéneia no anseio pela totalidade, consideravam-nos epigonos sem importanei Na sua critica a Sickingen, tragédia de autoria de Lassalle, Engels escreve: “Com thda a razSo, ela se opde & péssima indi- vidualizacdo hoje muito em voga, € que se reduz a sofisticacao de pedantes, além de constituir a caracteristica essencial de uma literatura de epigonos, que se perde no nada”. Mas na mesma carta Engels indica também a fonte onde o poeta moderno pode buscar esta fOrga, esta amplitude de horizontes, esta totalidade. Na sua critica ao drama de Lassalle, éle nfo se limita a Ihe re provar o ter superestimado politicamente 0 movimento aristo- critica de Sickingen (que era substancialmente reacionério ¢ no tinha, desde 0 inicio, qualquer possibilidace de éxito), ¢ 0 ter subestimado ao mesmo tempo as grandes revolugdes cam- ponesas da época: indica, também, de que modo uma vasta c 23 rica representagio da vida do povo teria podido conferir ao drama caracteristicas mais realistas e cheias de vida. As observagoes feitas até aqui mostram como a base eco- ndmica da ordem capitalista de produgdo repercute na li- teratura independentemente da subjetividade dos escritores. Marx ¢ Engels, porém, esto bem longe de descuidar — por um tinico momento que fdsse — déste iiltimo aspecto (0 aspecto subjetivo). Voltaremos a abordar mais a fundo esta questio; por ora, limitamo-nos a uma breve indicagio: é exatamente & identificacio do escritor burgués com a sua classe, com os pre- conceitos da sociedade burguesa, que 0 acovarda, que o faz dar a5 costas aos problemas essenciais. No curso das lutas idcol6- gicas ¢ literérias realizadas nos anos que se seguiram imediata- mente a 1840, 0 jovem Marx desenvolveu uma critica aprofun- dada a0 romance de Eugine Sue Os Mistérios de Paris, muito lido naquele tempo e bastante popular na Alemanha. Aqui, limi- tamo-nos a lembrar que aquilo que Marx mais fustiga em Sue € precisamente 0 fato déle se adaptar ¢ se assimilar & superficie dia sociedade capitalista, deformanda e falseando a realidade por motivo de oportunismo. Naturalmente, hoje, ninguém mais 16 Sue. Mas a cada década surgem, em consondncia com os even- tuais humores da burguesia, escritores que se pdem “‘em moda”, © para os quais — com as variantes do caso — essa critica con serva a sua validez, Estamos vendo que 2 nossa andlise, fixando-se inicielmen- te na génese € no desenvolvimento da literatura, passou quase que insensivelmente a tratar de problemas de estética, no’ sen- tido estrito do térmo. E, com isso, chegamos ao segundo com- plexo de problemas da concep¢ao marxista da arte. Marx con- siderou extremamente importante a indagaglo acérca das pre- missas hist6ricas e sociais da génese © do desenvolvimento da literatura, mas jamais sustentou que as questées a ela concernen tes ficassem, assim, sequer aptoximativamente exauridas. “A di- ficuldade no esté em compreender que a arte ¢ a epopéia gre- gas se achem ligadas a determinadas formas de desenvolvimen- to social. A dificuldade esta em que ainda hoje elas nos propor- cionem um g6zo estético © valham, em certos aspectos, como norma e modélo inigualével”, ‘A resposta de Marx Ai questo que éle mesmo coloca para si ainda uma vez, de cardter histérico-conteudistico. Ele en- 24 foca as relagdes existentes entre o mundo grego, como infincia normal da humanidade, ¢ a vida espiritual dos homens nascidos bem mais tarde. A questio nfo o leva ao problema da origem da sociedade, entretanto: leva-o A formulagéo dos principios fundamentais’ da estética (ndio de maneira formalista, entende- se, mas em uma ampla perspectiva diakttica). A solugo forne~ cida por Marx, com efeito, suscita dois grandes complexos de problemas relativos a esséncia estética de t6da obra de arte de téda c qualquer época: que significagio possui o mundo assim representado, do ponto de vista da evolugdo da humanidade? E de que modo 0 artista representa um dos seus estgios, no qua- dro geral dessa evolugdo? © caminho que leva & questo da forma artstica deve par- tir daqui. E tal questo, naturalmente, s6 pode ser colocada e re- solvida numa intima conexdo com os principios gerais do mate~ rialismo dialético. Uma tese fundamental do materialismo dia- Iético sustenta que qualquer tomada de consciéncia do mundo exterior nao € outra coisa senio 0 reflexo da realidade, que ‘existe independentemente da consciéncia, nas idéias, represen tages, sensagdes, etc., dos homens. £ claro que o ‘materialis- mo dialético, que na formulagio geral déste principio concorda com todos 05 tipos de materialismo ¢ se opde a tédas as varian- tes do idealismo, é decididamente diferente do materialismo me- canicista, Quando Lénin criticava o velho materialismo, a pro- pésito, éle insistia precisamente neste motivo fundamental, que € 0 de que o velho materialismo néo estava em condigdes de conceber dialéticamente a teoria do reflexo. ‘A obra de criacio artistica, por conseguinte, enquanto constitui uma forma de reflexo do mundo exterior na conscién- cia humana, esté inserida ma teoria geral do conhecimento pro- fessada pelo materialismo dialético. B certo que a obra de cria- cio artistica, dadas as suas peculiaridades, constitu uma parte Singular, com caracteristicas proprias, da teoria materialista dia- lética do conhecimento, na qual vigoram normas absolutamente diversas das de outros’ campos abrangidos pela referida teoria. Nas consideracées que se sezuem, procuraremos falar a respeito dle algumas dessas peculiaridades do reflexo literdrio e artistico, sem pretender, dbviamente, nem de longe, tragar um quadro exaustivo (ou'mesmo esbogado) do conjunto delas e de seus problemas. 25 A teoria do reflexo néo € absolutamente nova em estética. ‘A imagem consubstanciada na palavra reflexo, como metéfora que exprime a esséncia da criacéo artistica, tomou-se famosa gracas a Shakespeare, que, na cena dos comediantes em Hamlet, indica essa concepgdo da arte como constituindo a base da sua teoria © prética literdrias. Porém a idéia em si é muito mais antiga: ela j4 constitufa um problema central na estética de Atistbteles; e, desde entdo, excetuadas as épocas de decadéncia, predomina em quase t6das as grandes estéticas. E claro que uma exposicio histérica da evolucio das concepgdes estéticas mio cabe nesta Introdugao. Basta-nos, contudo, recordar de passage o fato de que muitas estéticas idealistas (como, por exemplo, a de Plato) basciam-se, a seu modo, nesta teoria. ‘Mais importante, ainda, & 2 constatacao de que quase todos 03 grandes escritores da literatura mundial escreveram instintiva- mente (com maior ou menor grau de consciéncia) segundo tal teoria, e que os esforgos déles para esclarecerem a si mesmos 0s principios basicos de suas prOprias criagdes resolveram-se no sentido dessa teoria. A meta de quase todos os grandes escri- tores foi a reproducio artistica da realidade: a fidelidade ao real, © esfdreo apaixonado para reproduziclo na sua integridade ¢ totalidade, tem sido para todo grande escritor (Shakespeare, Goethe, Balzac, Tolstoi) 0 verdadeiro critério da grandeza literdria. Que a estética marnista, @ propésito dessas questées funda~ mentais, nfo encampe as reivindicagdes de uma “inovagao radical”, 6 coisa que s6 surpreende aqueles que, sem motivo sério e’sem verdadeiro conhecimento de causa, vinculam a concepcio do mundo do proketariado a qualquer “novidade absoluta” ou a um “‘vanguardismo” artistico, acreditando que a emancipagdo do proletariado comporte no campo da cultura uma completa remincia ao passado. Os clissicos ¢ fundadores do marxismo jamais adotaram tal ponto de vista. No entender Géles, a concepeio do mundo do proletariado, a sua luta de emancipagio e a futura civilizacio a ser criada por essa uta devem herdar todo 0 conjunto de val6res reais elaborados pela evolueo plurimilenar da humanidade. Lénin constata, numa passagem de um dos seus trabalhos, que uma das razSes da superioridade do marxismo em compa- ragio com as ideologias burguesas consiste exatemente nesta 26 capacidade do marxismo de incorporar criticamente téda a heranga da cultura progressista e de assimilar orgénicamente tudo que € grande no passado. O marxismo supera éstes seus predecessores apenas (se bem que éste “apenas” signifique mui- tissimo, quer metodoldgicamente, quer no que concerne 20 contetido) no tornar conscientes as aspiragées déles, eliminando os desvios idealistas © mecanicistas dessas aspiragées, recondu- zindo-as as suas verdadeiras causas ¢ proporcionando-Ihes a inser¢io apropriada dentro do sistema de leis da evolugdo social. No campo da estética, no campo da teoria e da historia da literatura, podemos concluir, resumidamente, que 0 marxismo eleva a esfera da clareza conceitual aquéles princfpios funda~ mentais da atividade criadora que vivem ha milénios nos sistemas dos melhores pensadores € nas obras dos mais notaveis escritores e artistas. Se agora pretendemos esclarecer algum dos aspectos mais importantes dessa situaco, deparamo-nos com a questéo: 0 que € essa realidade que a criagao artistica deve refletir com fidelidade? Aqui, importa acima de tudo 0 cardter negativo da resposta: essa realidade nfo € sdmente 2 superficie imediata- mente percebida do mundo exterior, nfo & a soma dos fendme- rnos eventuais, casuais e momentineos. Ao mesmo tempo que coloca o realismo no centro da teoria da arte, a estética marxista se preocupa com o mais firme combate a qualquer espécie de naturalismo, qualquer tendéncia présa a reprodugio fotogréfica da superficie imediatemente perceptivel do mundo exterior. Ainda neste ponto, a estética marxista nada afirma de radical- mente n6vo; limita-se a desenvolver a0 seu mais alto nivel de consciéncia ¢ clareza aguilo que sempre se encontrou no centro da teoria e da pratica dos grandes artistas do passado. Enquanto combate 0 naturalismo, entretanto, a estética do ‘marxismo combate, com nfo menos firmeza, um outro falso extremo: aquela concep¢éo segundo a qual, partindo da idéia dde que 2 mera cépia da realidade deve ser rejeitada e da idéia de ue as formas artisticas sdo independentes dessa realidade super- ficial, chega a atribuir, no ambito da teoria e da prética da arte, uma. jndependéncia absolute das formas artisticas; chega a considerar a perfeiglo formal como um fim em si mesma e, por conseguinte, a prescindir da realidade na busca de tal perfeigéo, figurando ser completamente independente do real ¢ possuir 0 27 direito de modificé-lo e estlizé-lo arbitririamente, E uma luta nha qual 0 marxismo continua e desenvolve as concepcdes que os mestres da literatura mundial sempre tiveram em relagdo 3 esséncia da verdadeira arte: concepcdes segundo as quais & arte cabe representar fielmente o real na sua totalidade, de mancira a manter-se distanciada tanto da e6pia fotografica quanto do puro j6go (vazio, em sitima instincia) com as formas abstratas. Essa maneira de conceber a esséncia da arte nos pe em contato com um problema central da teoria do conhecimento do materialismo dialético: o problema das relagdes entre fen6- meno ¢ esséncia. O pensamento burgués e, em conseqiiéncia, aestética burguesa nunca puderam atingir 0 n6 désse problema. ‘Toda teoria e t0da prética naturalista sfo levadas a unir de mancira mecéinica ¢ antidialética fenémeno ¢ esséncia, formando uma turva mistura, na qual a esséncia & necessariamente sacri- ficada e, em muitos casos, chega a desaparecer completamente. Ji a filosofia idealista da arte e a sua prética de estilizacdo, a0 contrério, captam claramente a antitese entre fendmeno ¢ essén- cia, mas, por {orga da caréncia de dialética ou por forca da inconseqiiéncia da dialética idealista, detém-se exclusivamente ra antitese que existe entre os dois ‘térmos, sem reconhecer a unidade dialética dos opostos que subsiste no interior dessa antitese. (Essa problematica pode ser claramente percebida em Schiller, tanto nos seus ensaios estéticos — extraordindriamente interessantes e profundos — como na sua pritica postica) A literatura © a teoria literdria dos periodos de decadénci costumam unificar as duas tendéncias erréneas: substituem, a verdadeira busca da esséncia por um jOgo de analogias super ficiais que, tal como as concepgies da esséncia pelos cléssicos do idealismo, prescinde do real. Tais construcbes anal6gicas se compdem de particulares naturalistas, impressionistas, etc., © éstes particulates inorgénicos se articulam em uma’ pseudo- unidade, sob a égide de uma concepcdo do mundo mistficada. A auténtica dialética da esséncia ¢ do fendmeno se baseia no fato de que esséncia ¢ fenémeno sio momentos da realidade objetiva, produzidos pela realidade ¢ no pela consciéncia humana. No entanto —e éste € um importante axioma do co- nhecimento dialético — a realidade apresenta diversos.graus: existe a realidade fugaz e epidérmica, que munca se repete, a realidade do instante que passa, ¢ existem elementos © ten- 28 déncias de uma realidade mais profunda, que ocorrem segundo determinadas Ieis, ainda que se transformando com a mudanca as circunstincias. Tal dialética atravessa tOda a realidade, de modo que, numa relago désse tipo, relativizam-se aparéncia ¢ realidade: aquilo que era uma esséncia que se contrapunha 20 fenémeno aparece, quando nos aprofundamos ¢ superamos a superficie da experiéncia imediata, como fenémeno ligedo a uma outra e diversa esséncia, que s6 poderd ser atingida por inves- tigagées ainda mais aprofundadas. E assim até o infinito ‘A verdadeira arte visa 0 maior aprofundamento © a méxima compreensio. Visa captar a vida na sua totalidade onicompreensiva. Quer Ja, a verdadeira arte, aprofunda- se sempre na busca daqueles momentos mais essenciais que se ‘acham ocultos sob a capa dos fendmenos; mas nao representa ésses momentos essenciais de maneira abstrata, fazendo abstra~ co dos fenémenos e contrapondo-se aqueles, ¢ sim apreende exatamente aquéle processo dialético vital pelo qual a essén se transforma em fenémeno, se revela no fen6meno, fixando, também, aguéle aspecto do mesmo processo segundo’o qual 0 fendmeno manifesta, na sua mobilidade, a sua prdpria esséncia, Por outro lado, ésses momentos singulares nfo s6 contém néles ‘mesmos um movimento dialético, que os leva a se superarem ‘ontinuamente, mas se acham em relagio uns aos outros numa permanente 2¢80 e reacio mitua, constituindo momentos de lum processo que se reproduz sem interrupcao. A verdadeira arte, portanto, fornece sempre um quadro de conjunto da vida humana, représentando-a no seu movimento, na sua evoluclo e desenvolvimento. Desde que a concepeio dialética apreende, de tal modo, numa unidade universal mével, o particular e o singular, & claro ‘que essa concep¢ao deve se manifestar de maneira peculiar nas formas fenoménicas especificas da arte. Porque, 20 contr da ciéncia, que resolve éste movimento nos seus elementos abstratos e se esforga por identificar conceitualmente as normas que regulam a interagdo entre os elementos, a arte conduz a 4. Em uma obra publicada doze anos depois déste ensaio (Prolegdme- nos a uma Esiétien Marsista, 1957), 0 autor viria a spresentar a sua concepeio em forma um potco diferente, colocando a particularidade hho centro da estética mariste ¢ asveverando que, na arte, “tanto a idade como a universalidade aparecem sempre superadas na par- ticularidade”. (Nota do tradutor) . 29 intuigo pela sensibilidade désse movimento como movimento mesmo, na sua unidade viva. Uma das mais importantes cate~ ‘orias desta sintese artistic é a do tipo. E nao foi por acaso ‘que Marx e Engels se reportaram a éste conceito quando qui- seram definir 0 verdadeiro realismo. -Escreve Engels: “Realismo significa, a meu ver, além da fidelidade ao particular, fiel repro- dugdo de caracteres tipicos em circunstancias tipicas”. Mas Engels afirma igualmente que no ¢ Iicito, absolutamente, con- trapor a tipicidade ao cardter tinico do fendmeno, fazendo dela ‘uma generalizacio abstrata déste: “*. . cada um é um tipo, mas, 20 mesmo tempo, também & um individuo singular determinado, ‘um “ste”, como’se exprime o velho Hegel. E assim deve ser”. Portanto, o tipo nfo é, para Marx e Engels, 0 tipo abstrato da tragédia clissica, nem 0 personage que resulta da genera- lizagio idealizante ‘de Schiller, © muito menos aquela média gue pretenderam estabelecer a literatura ¢ a teoria literéria de Zola € seus sucessores. O tipo vem caracterizado pelo fato de que néle convergem, na sua contradit6ria unidade, todos os fragos salientes daquela unidade dindmica na qual a auténtica literatura reflete a vida. Vem caracterizado pelo fato de que néle t6das as contradiedes — as mais importantes contradigves sociais, morais ¢ psicolégicas de uma época — se articulam em uma unidade viva. A representagdo da média, 20 contrétio, implica em que tais contradigdes, que formam sempre o reflexo dos grandes problemas de uma época, aparecam necessiriamente diluidas e enfraquecidas no animo e nas experincias de relagGes inter-humanas de um homem mediocre, sacrificados assim os seus tragos essenciais. Na representacdo do tipo, na criacdo artistica tipica, fundem-se 0 concreto e @ norma, o elemento humano eterno © o histdricamente determinado, 0 momento individual e 0 momento universal social. £ na representacio tipica, pois, na descoberta de caracteres ¢ situagdes tipicas, que as mais importantes tendéncias da evolugo social conseguem uma expressio artistica apropriada. A essas observagGes de cardter geral, devemos acrescentar uma outra: Marx e Engels viam em Shakespeare ¢ em Balzac (em face, digamos, de Schiller, de um lado, e de Zola, de outro) a tendéncia artfstica realista que melhor correspondia a estética deétes. A preferéncia por éstes grandes escritores indica, por si mesma, que 2 concepcio marxista do realismo nada tem a ver 30 com a cépia fotografica da vida cotidiana. A estética marxista se limita a augurar que a esséncia individualizada pelo escritor no venha representada de maneira abstrata ¢ sim como esséncia orginicamente inserida no quadro da fermentacdo dos fendmenos a partir dos quais ela amadurece. Nao é absolutamente neces- sério, a nosso ver, que o fendmeno artisticamente fixado seja atingido como fendmeno da vida cotidiana ¢ nem mesmo como fendmeno da vida real em geral. O que quer dizer: até mesmo (© mais extravagante jOgo da fantasia poética © as mais fantis- ticas representagées dos fenémenos sto plenamente conciliéveis com a concepefo marxista do realismo. Nio é de mado algum por acaso que precisamente algumas novelas fantasticas de Balzac e de E, T. A. Hoffman se contas- sem entre aquelas criagdes artisticas pelas quais Marx tinha particular aprégo. Naturalmente, ha fantasia e fantasia. E hé fantdstico ¢ fantastico. Se, neste campo, quisermos procurar um critério de valorizacdo e discriminaglo, deveremos voltar as teses fundamentais da dialética materialista e a teoria do reflexo da realidade. ‘A cestética marxista, que nega 0 cardter realista do mundo representado através de’ particulares naturalistas (que escamo- teiam as fOrgas motrizes essenciais dos fendmenos), considera coisa perfeitamente normal que as novelas fantésticas de Hoft- man e de Balzac representem momentos culminantes da lite- fatura realista, porque nelas, precisamente em virtude da repre- sentagdo fantdstica, as fOrgas essenciais aos fendmenos so postas tem especial relévo. ‘A concepgio marxista do realismo € a do realismo da esséncia artisticamente representada. Ela representa a aplicagio dialética da teoria do reflexo ao campo da estética. E mio € facidental que © conceito de tipo seja aquéle que com maior clareza evidencia tal peculiaridade da estética marxista. Por um lado, o tipo fornece uma solucio para a dialética esséncia- fendmeno — solugo especifica da arte, que no se aprovcita em qualquer outro campo — e, por outro lado, o tipo remete sempre aquele processo hist6rico-social do qual a melhor arte realista constitui o ficl reflexo. Essa determinagio marxista do realismo prolonga # linha que grandes mestres do realismo, como Fielding, adotaram na sua pritica artitica; ésses mestres. se intitulavam historiadores da vida burguesa, historiadores da vida 31 privada. Mas Marx, a propésito da relagio entre a grande arte tealista © a realidade hist6rica vai ainda além dos maiores rea- listas ¢ aprecia os resultados obtidos por tal arte melhor do que éles. Em uma conversa com seu genro, o eminente escritor socialista Paul Lafargue, Marx se exprime nos seguintes térmos acérea da fun¢do de historiador-artista em Balzac: “Balzac nao foi apenas o historiador da sociedade do seu tempo, mas igual- mente 0 criador profético de figuras que, sob Louis Phillippe, achavam-se ainda em estado embrionério'e que s6 alcancariam (© sea completo desenvolvimento apés a morte do autor, sob Napoledo IIT”. ‘Todas essas exigéncias manifestam a resoluta © radical objetividade da estética marxista. Segundo tal concepsao, o trago dominante dos grandes realistas & pois, a tentativa apaixonada ¢ espontinea de captar © reproduzir a realidade tal como ela é, objetivamente, na sua esséncia. A ésse respeito, so numerosos (05 equivocos correntes acérca da estética marxista. Costuma-se repetir que ela subestima 2 ago do sujeito, que ela subestima a eficdcia do fator artistico subjetivo na criagio da obra de arte. Costuma-se confundir Marx com aquéles vulgarizadores que permanecem tedricamente presos as tradigdes naturalistas © apresentam como marxista 0 falso e mecinico objetivismo dessas tradigSes. Tivemos, contudo, ocasiio de constatar que um dos problemas centrais da concepgio marxista € a dialética do fendmeno € da esséncia, a descoberta ¢ enunciagio da cia no contexto das contradit6rias manifestacées fenoménicas. Ora, se no cremos que 0 sujeito artistico “erie” ex nihilo algo de radicalmente nOvo, se teconhecemos que éle descobre uma esséncia que existe independentemente déle (c no € aces- sivel a todos € permanece por muito tempo oculta até para o maior dos artistas), nem por isso a atividade do sujeito cessa ou vem diminuida em Seja lé 0 que for. Portanto, se a estética mai xista identifica 0 maior valor da atividade criadora do sujeito ar- {fstico no fato déle assumir nas suas obras 0 proceso social wr versal e toné-lo sensivel, experimentalmente acessivel, ¢ se nessas cobras se cristaliza a autoconsciéncia do sujeito, o despertar da consciéncia do desenvolvimento social, nada disso implica em uma subestimacao da atividade do sujeito artistico, e sim, pelo contrério, temos uma legitima valorizacéo desta atividade, mais elevada do que a de qualquer outro critério precedente. 32 Ainda aqui, como em tudo, o marxismo nada cria de “radi calmente ndvo”. Jé a estética de Platéo, a sua doutrina do reflexo artistico das idéias, aflorava essa questo. Mas também neste campo 0 marxismo recoloca sObre seus préprios pés a verdade que os grandes idealistas tinham descoberto invertida. Por um lado, 0 marxismo nfo admite, como vimos, uma exciu- siva contraposiggo entre fendmeno ¢ esséncia, procurando a essncia no fendmeno e 0 fendmeno na relacao orgiinica com a esséncia. Por outro lado, o captar estiticamente a esséncia, a , no constitui para o marxismo um ato simples e defi ¢ sim um proceso; um process que é movimento, aproximagao gradual da realidade essencial (mesmo porque a tealidade mais profunda e essencial é sempre apenas uma porcdo daquela tota~ lidade do real que integra até mesmo o fendmeno superficial) . Por isso, se 0 marxismo realga a objetividade mais radical do conhecimento € da representagdo estética, acentua também, a mesmo tempo, o papel indispensével do ‘sujeito criador, ja que éste proceso, esta aproximacao gradual da esséncia oculta, uma estrada que se abre simente para os maiores ¢ mais per severantes génios da criacdo artistica, A objetividade da ciéncia ‘marxista chega ao ponto de ndo reconhecer nem mesmo i abstragiio — a abstracdo verdadeiramente sensata — a propric- dade de mero produto da consciéncia humana, ¢ demonstra, a0 contrério, especialmente para as formas primérias do processo social (isto €, as formas econdmicas), de que modo a abstragéo se realiza e opera a base da propria realidade social ¢ de seus objetos. Mas, para poder acompanhar 0 processo de abstragao ¢ entender a fantasia, trilhar o caminho dela, elucidar os seus desenvolvimentos, é preciso concentrar em figuras e situagies tipicas 0 tecido do processo global, do conjunto da evolucdo social. E, para isso, requer-se um génio artistico da maxima srandeza. Vemos, por conseguinte, que a objetividade da estética marxista nfo se acha absolutamente em contradi¢ao com 0 re- conhecimento do fetor subjetivo na arte. Mas ainda devemos considerar esta idéia de outro angulo diferente: 8 nossas con- sideragies precisamos acrescentar que a objetividade marxista rio significa neutralidade em face dos fendmenos socisis. Exa- 33 tamente porque — como justamente reconhece a estética mar- xista — 0 grande artista no representa coisas ou situacoes es- taticas, e sim investiga a direcdo ¢ 0 ritmo dos processos, cum- pre-lhe, como artista, definir 0 carter de tais processos. E, uma tomada de consciéncia déste género, jé estd implicita uma tomada de posigio. A concepcdo segundo a qual o artista seria 56 um espectador passivo désses processos, situar-se-ia acima de todo e qualquer movimento social (a flaubertiana impassibi- {ité) & no melhor dos casos, uma ilusio, uma forma de auto- fengeno; mas quase sempre nao passa de uma evasio, uma fuga ante os grandes problemas da vida e da arte. Nao hé grande artista em cuja representagio da realidade nao se exprimam, a0 mesmo tempo, também as suas opiniGes, desejos, aspiragies ‘apaixonadas © nostilgicas. Seré essa constatagao contraditéria em relagéo & nossa assertiva de que a esséncia da estética marxista € a objetividade? Entendemos que no. E, para poder destrinchar a questio, devemos lembrar ligeiramente 0 problema da chamada arte de tendéncia ou de tese, procurando esclarecer qual seja a inter- pretagdo maraista do problema e quais as relagdes dessa inter- pretagio com a estética marxista. O que € a tese? Numa acepsao superficial, é uma tendéncia politica ou social do artista que éle quer demonstrar, defender e ilustrar com a sua propria obra de arte. & interessante ¢ sintomético que Marx Engels sempre se exprimissem com ironia a respeito de tais construgbes arti- ficiosas, quando tratavam de uma arte dessa espécie. A ironia les se torna especialmente aspera quando verificam que cscritor, para demonstrar a verdade de qualquer proposicio ou justificagio, violenta a realidade objetiva, deformando-a (Vejam-se, em particular, as observagées criticas de Marx sObre Sue). Mesmo quando se trata de um grande escritor, Marx protesta contra a tendéncia para utilizar t6da a obra ou mesmo lum s6 personage como expressio direta e imediata das opinides do autor, 0 que priva o personagem da auténtica possibilidade de viver até 0 fundo suas préprias faculdades vitais segundo as leis intimas ¢ orginicas da dialética de seu proprio ser. E & isso que Marx desaprova na tragédia de Lassalle: “Terias podido fazer com que em grau maior as idéias mais modernas falassem de mais pura forma, ao passo que, na realidade, além da idéia de liberdade religiosa, a idéia central (da obra) ficou sendo a da 34 tunidade burguesa. Deverias, por conseguinte, ter shakespearia- nizado mais, ¢ 0 é10 mais grave que te indico € 0 de teres Schillerianizado, isto & 0 d¢ teres transformado os individuos fom meros porta-vozes do espirito do tempo”. No entanto, semelhante rejei¢ao da literatura de tendéncia, no significa de maneira alguma que a verdadeira literatura nao iplique em uma tendéncia. Observe-se que a realidade obje- tiva, em si mesma, ndo é uma cadtica mistura de movimentos sem diregio e sim um process evolutivo que possui interna mente tondéncia mais ou menos acentuada e que — sobretudo — possui uma tendéncia fundamental propria déle. O desco- mhecimento désse fato, désse dado, e uma tomada de posigdo falsa em face da sua éxisténcia ocasionam sempre grandes pre~ juizos a qualquer criagao artistica. (Veja-se a critica de Marx A tragédia de Lassalle) . Com a observactio precedente, ja se define a “participagio” do artista nas diversas tendéncias que encerra o processo social ¢ em particular nas tendéncias fundamentais déste proceso. Na linha da observacio feita, Engels exprime do seguinte modo © seu ponto de vista sobre a fendéncia na arte: “Nao sou, de maneira alguma, um adversério da poesia de tendéncia como tal. O pai da tragédia, Esquilo, e 0 pai da comédia, Aristéfanes, foram ambos decididamente poetas de tendéncia. Dante e Cer- vantes no o foram menos. Eo maior mérito de Kabale und Liebe de Schiller é 0 de ser 0 primeiro drama politico alemao die tese. Os russos e noruegueses modernos, que escrevem exce- lentes romances, sfo romancistas de tendéncia. Mas considero que a tese deva brotar da situacto © da acto, sem que a ela se faga referéncia de maneira explicita, e o poeta nao esta obri ‘gado a pér nas méos do leitor jé pronta a solugao histérica para s conflitos histéricos por éle descritos”. ‘Aqui, Engels explica claramente de que modo a tese se concilia com a arte e ajuda o artista na producio das maiores criagGes, desde que amadureca orginicamente da esséncia ar- tistica da obra, da representacio ariistica, quer dizer (conforme rnossas consideragées anteriores), da realidade mesma, da qual a arte constitui o reflexo dialético. Ora, quais sZo as tendéncias fundamentais em fungdo das quais os criadores de obras lterérias, que almejam ser artistas devem assumir posigio? S40 os grandes problemas do progresso do género humano. Nenhum grande 35 escritor pode se permitir permanecer indiferente em face déles, nenhum grande escritor pode deixar de tomar apaixonadaments posicéo diante déles, se quer criar auténticos tipos, se quer ‘tingit um profundo realismo, Sem tal tomada de posi¢ao, um escritor jamais poderd distinguir aquilo que é essencial daquilo que nfo 0 €. Do ponto de vista da totalidade do desenvolvi- mento social a possibilidade de realizar uma distingao justa a respeito & vedada aguele que ndo se entusiasma pelo progresso, que no detesta a reaco, que nfo ama o bem e nao repele 0 mal. Neste ponto, porém, vemo-nos aparentemente a bracos com uma profunda contradicéo. Da argumentacdo precedente, parece resultar que todo escritor da sociedade dividida em classes deve possuir, para ser grande, uma concepcéo do mundo — uma concepeio ‘ilos6fica, sociolégica e politica — progres- sista. Parece resultar que, em suma (para dar a essa aparente contradigao uma formulacdo clara), todo grande escritor deve ser politica e socialmente de esquerda. No entanto, no poucos entre os grandes realistas da hist6ria da literatura’ — ¢ exata~ mente os autores preferidos por Marx e Engels — demonstram © contrério: nem Shakespeare, nem Goethe, nem Walter Scott ou Balzac tiveram uma posigdo politica de esquerda. ‘Marx e Engels nfo s6 no procuraram evitar essa questio como a submeteram, de fato, a uma anélise sutil ¢ profunda. Numa famosa carta ‘a Miss Margaret Harkness, Engels aborda largamente 0 problema, isto é, o fato de que Balzac, portador de sentimentos politicamente realistas e legitimistas, admirador da aristocracia em declinio, exprima, nas suas obras, em dltima instancia, exatamente a concepcé0 oposta. “Balzac era legiti- mista em politica, & certo; a sua grande obra uma constante clegia s6bre a inevitével decadéncia da boa sociedade; tOdas as suas simpatias se voltam para a classe condenada a perecer. Nao obstante, a sua sitira nunca é tio cdustica € a sua ironia munca € téo amarga como quando éle pde em cena aquéles homens e mulheres com os quais mais profundamente simpatiza 68 aristocratas”. E, em n{tido contraste com isso, éle apresenta (08 seus adversérios politicos, os republicanos revoliosos, como os linicos verdadeiros hersis da época. As conseqiléncids ltimas dessa contradi¢do vém sintetizadas por Engels da seguinte form: “Que Balzac tenha sido, assim, constrangido a agit contra as 36 suas préprias simpatias de classe € contra os seus preconceitos politicos, que éle tenha enxergado a necessidade da superagio dos seus diletos nobres © que os tenha descrito como homens que nio mereciam melhor sorte — que Balzac tenha enxergado ‘0s homens do futuro somente 14 onde, naquele tempo, era possi- vel aché-los — tudo isso eu considero que constitua um dos ‘maiores triunfos do realismo € um dos tragos mais grandiosos do velho Balzac”. "Tera ocorrido, talvez, um milagre? Ter-se-4 revelado aqui ‘uma no sei qual genialidade artistica “irracional”, misteriosa, que nao pode ser apreciada conceitualmente © que rompeu as cadeias das concepedes politicas que a adulteravam? Nada disso. ‘Aquilo que a andlise de Engels sObre o tema demonstra é, subs- tancialmente, um fato simples e claro, cuja verdadcira signific io, contudo, s6 foi pela primeira vez efetivamente descoberta © analisada por éle © por Marx. Trata-se, antes de mais nada, Gaquela honestidade estética incorruptivel, isenta de qualquet vaidade, propria dos escritores e artistas verdadeiramente gran- des. Para étes, a realidade, tal como ela € ¢ tal como ela se manifesta na sua esséncia, apés pesquisas cansativas ¢ aprofun- ddadas, esta acima de todos os seus desejos pessoais mais caros © mais intimos. A honestidade do grande artista consiste preci- samente no fato de que, quando a evolugio de um personagem entra cm contradigdo com as concepgbes e ilusdes por amor ‘das quais éle se engendrara na fantasia do escritor, éste 0 deixa desenvolver-se livremente até as tiltimas conseqiléncias, e nfo se incomoda com a anulagio das suas mais profundas convicg®es pela contradigéo em que ficam face auténtica ¢ profunda Gialética da realidade. ‘Tal 6 a honestidade que podemos loca lizar e estudar em Cervantes, em Balzac, em Tolstoi. ‘Mas também esta honestidade tem 0 seu contetido concreto. Para percebé-lo, basta confrontar 0 legitimismo de Balzac com (0 de um escritor como Bourget, por exemplo. Bourget esta cefetivamente em guerra contra 0 progresso, quer mesmo impor 2 Franca republicana 0 jugo da velha reagio; éle se serve das contradigées e do cardter problemético da vida moderna para apresentar como remédio a ideologia superada dos velhos tempos. O verdadeiro contetido do Iegitimismo balzaqueano, 20 contritio, € a defesa da integridade do homem durante a ascen- so capitalista iniciada em Franca na época da Restauraglo. 37 Balzac nfo percebe apenas a forca irresistivel désse. proceso; percebe igualmente que a irresistibilidade déle deriva dos mo- ‘mentos progressistas de que éle se compée. Percebe que essa evolugdo, a despeito de todos os seus tragos adulterados ¢ adul- terantes, alcanca no desenvolvimento da humanidade uma etapa mais clevada do que a feudal ou semifeudal, esta sendo des- truida, por vézes de forma horrenda, na passagem para aquela. Porém, ao mesmo tempo, Balzac verifica que éste mesmo pro- cesso traz consigo uma dilaceracao, uma deformagio do homcm, e éle repele tal coisa em nome da salvaguarda da integridad¢ humana. Dessa contradicio (insolivel para Balzac como pen- sador), deriva a sua posigao “‘consciente” em face das questoes sociais e politicas. Quando éle estuda e representa o mundo com ‘os meios da verdadcira objetividade realista, contudo, nio s6 reflete a verdadeira esséncia do progresso com fidelidade, através da criagéo dos seus personagens, mas mergulha fundo dentro de si mesmo ¢ chega 8s auténticas rafzes do seu amor © do seu édio. Como pensador, Balzac € fruto do ambiente de Bonald e De Maistre; como ‘criador, éle possui uma visto mais aguda e mais penetrante do que os pensadotes politicos da direita. Através das suas relagGes com a integridade do Hromem, sua consciéncia disceme as contradigées da ordem eco- némica capitalista, a problemética da civilizagao capitalista; ¢ a imagem do mundo fornecida por Balzac criador aproxima-se extraordinariaments do quadro critico da sociedade capitalista em formacao elaborado por seu grande contemporaneo, 0 socia- lista Fourier. Em sua acepedo marnista, 0 triunfo do realismo significa um completo rompimento com aquela concepgo vulgar da literatura e da arte que deduz mecfnicamente o valor da obra literdria a partir das concepgdes politicas do escritor, da sua pseudopsicologia de classe. O método marxista aqui indicado se presta magnificamente para esclarecer fendmenos literdrios, mesmo 0s mais complexos. Mas s6 quando se sabe utilizé-lo concretamente, com geauino espitito historicista e com discer- nimento estético ¢ social. Quem se iludir pensando que vai encontrar néle um esquema aplicével a todo e qualquer fend- meno literdrio mostrar que adota uma interpretagio dos clis- sicos do marxismo tio falsa quanto a dos marxistas vulgares de velho estilo. Para que nfo reste equivoco algum a respeito, 38 ‘mitimo-nos frisar, ainda uma vez: 0 triunfo do realismo néio Einifica, segundo Engels, que a ideologia abertamente procia- mada pelo escritor seja indiferente para o marxismo, como no significa que t6da criagdo de todo escritor represente um triunfo Go realismo pelo simples fato de se afastar um tanto da ideologia abertamente proclamada. $6 se realiza a vit6ria do realismo quando artistas efetivamente grandes estabelecem uma relacio profunda e séria, ainda que nfo conscientemente reconhecida, Com uma corrente progressista da evolucdo humana. Do ponto de vista marxista, 6 tio inadmissivel colocar no pedestal dor lissicos escritores ineptos ou mediocres por obra de suas con- vicgdes politicas, como querer reabilitar, com base na formula~ cdo de Engels, escritores de maior ou’ menor habilidade mas completa ou parcialmente reacionétios. ‘Nao foi por acaso que falamos, a respeito de Balzac, da salvaguarda da integridade do homem. Na maior parte dos grandes realistas € éste 0 motivo que leva & reproduc do mundo real, se bem que — & dbvio — com caracteristicas e tons bastante diversos conforme as épocas e 0s individuos. Gran- deza artistica, realismo auténtico ¢ humanismo silo sempre in- dissoliivelmente conexos. E 0 principio unificador € precisa mente aquéle de que falamos: a preocupacio com a integridad do homem. Tal humanismo € um dos prinefpios fundamentais ‘mais essenciais da estética marxista. Devemos reafirmar, aqui, gue foram Marx e Engels os primeiros a colocar 0 principio da humanitas no centro mesmo da concepeio estética. Ainda a ste propésito, como no mais, Marx e Engels foram os continua Gores da obra dos maiores representantes do pensamento filo- s6fico e estético ¢ o desenvolveram, elevando-o a um nfvel qu fitativamente mais alto. Por outro lado, como nfo so os ini ciadores do humanismo e representam 0 coroamento de uma Tonga evolugio, a posicdo de Marx e Engels no que se refere uo humanismo 6, sem ddvida, @ dos seus defensores mais con- jentes. sey, ee tal é a posigdo déles, 0 6 — contririamente aos pre- conceitos burgueses habituais — exatamente com base na con- ‘epee materialista do mundo pelo marxismo. Numerosos pen- sadores idealistas jf sustentaram parcialmente principios huma- niistas andlogos aos de Marx e Engels; numerosos pensadores ‘dealistas Jutaram em nome do humanismo contra tendéncias 39 politicas, sociais © morals combatidas também por Marx ¢ Engels. Mas 36 a concep¢o materialista da historia estd em condigies de reconhecer que a verdadelra e mais profunda lesao a0 principio do humanismo, a dilaceragGo e mutilagao da inte- gtidade humana, 6 apenas a conseqiiéncia inevitével da estrutura econémica, matetial, da sociedade. A divisio do trabalho nas sociedades'divididas em classes, a cisio entre cidade © campo, a divisio entre trabalho fisico e trabalho espiritual, a exploracao © a opressio do homem pelo homem, a parcelarizacho do trabaiho nas condig6es antichumanas da ordem capitalista de producio, tados tes processos so processos econdmicos, materiais. Sobre 08 efeitos culturais e artisticos de todos ésses fend- ‘menos, ja escreveram (em tom ora elegiaco ora irdnico) mesmo pensadores idealistas, revelando grande profundidade ¢ agudeza de visio; porém s6 a concep¢o materialista da hist6ria de Marx © Engels estava em condigdes de alcancar as raizes da questo. Eo fato de que éles the penetrassem nas raizes possibilitou-lhes a superego da critica meramente irOnica em face das manifes- tagSes anti-humanas do desenvolvimento e da existéncia das sociedades divididas em classes, a supera¢do dos Jamentos ele- Biacos © da evocacdo nostalgica de tempos passados pretensa- mente idilicos. Eles soubersm demonstrar cientificamente de onde provém ¢ por onde 6 dirigido o processo geral, bem como de que modo seré possivel salvaguardar realmente a integridade humana, a integridade do homem real. Demonstraram de que modo se devem modificar as bases materiais de que resultam necessiriamente a mutilagio € corrupca0 do humano. De que modo a humanidade adquire consciéncia de que modo 0 pro- letariado, portador social ¢ politico avangado desta consciéncia, pode criar bases materiais que facilitam o aperfeigoamento social, politico, moral, espiritual e artistico, impulsionando a huumanidade a um nivel jamais alcangado no passado. ‘A questio acima referida se situa no centro do pensamento de Marx. E uma vez éle contrapés a situagio do homem na Sociedade capitalista a situacdo do homem na sociedade socia- lista: “No lugar de todos os sentidos fisicos e espirituais, colo- cou-se, portanto, pura e simplesmente, a alienacéo de’ todos éstes sentidos, substituidos pelo sentido do possuir. A esta absoluta pobreza precisou ser reduzido 0 ser humano para que 40 ale pudesse engendrar de dentro de si mesmo a sua riqueza fntima... Assim, a supresséo da propriedade privada representa a completa emanelpacdo de todos os sentidos, de tédas as facul- dades humanas, E representa essa emancipacio exatamente pelo fato de que tais sentidos e faculdades se torem humans tanto subjetiva como objetivamente” Assim se acha 0 humanismo socialista inserido no contro da estética marxista, da concepcio materialista da histéria. Em ‘oposigio aos preconceitos burgueses (que se apoiam na. con- cepgo tsca © antidialética propria do marxismo vulgar), 6 preciso frisar bem que esta concepeao penetra nas raizes mais profundamente entranhadas no terreno, mas nem por isso nega fa beleza das fléres. Ao contrario, é exata ¢ Unicamente @ concepgio materialista da histéria, a estética marxista, que fornece os instrumentos para uma justa compreensio déste pro- cesso ma sua unidade, na sua orginica conexo entre raizes © flores. Por outro lado, aquela afirmacéo de principio da concepeao materialista da histéria segundo a qual a verdadeira e definitiva emancipagio da humanidade em relagio 88 conseqiiéncias dis- torcivas da sociedade dividida em classes s6 se pode realizar através do socialismo néo comporta, absolutamente, uma con- traposicio rigida, antidialética, esquemética reptidio sumério da cultura das diversas sociedades divididas e Classes © nem a indiferenga em face das diversas realizagdes ddessas sociedades, bem como em face da ago cultural e artistica das mesmas (como ocorre freqiientemente nos vulgarizadores superficiais do marxismo). Sem davida, a verdadeira hist6ria da humanidade comegar4 com o socialism. Mas a pré-hist6ria que conduz a0 socialismo constitui um elemento essencial da formagio do préprio socialismo. E os marcos désse caminho nao podem deixar indiferentes aquéles que o trilham, os defen- sores do humanismo socialista e da estética marxista. (© humanismo socialista torna possivel & estética marxista 1 unifieagdo do conhecimento hist6tico do conhecimento artis- tico, a continua convergéncia na diregéo de um ponto focal do juizo histérico © do juizo estético. Désse modo, a estética marxista resolve precisamente aquéle problema que mais ator- mentara os seus maiores predecessores, aquéle problema crucial 4a que desafiava os grandes ¢ era passado por alto pelos andes: © da unidade entre 0 valor estético permanente da obra de arte © 0 processo histérico do qual a obra de arte — exata- mente na sua perfeicdo, no seu valor estético — nfo pode ser separada. (194s) tradugo de Leaxono Koxoen, 4a 2 Narrar ou Descrever? Contribuigao para uma discussio sobre © naturalismo € 0 formalismo “Ser radical significa tomar as coisas pela raiz, Mas para‘o homem a raiz € 0 homem : Kan, Maex Exxrnemos, desde logo, in medias res. Em dois famosos romances modernos, Nand de Zola ¢ Ana Karenina de Tolstoi, encontra-se a deserigao de uma corrida de cavalos. Como se desincumbem do empreendimento os dois eseritores? ‘A descrigio da corrida é um espléndido exemplo do virtuo- sismo literdrio de Zola. Tudo que pode acontecer numa corrida, fem geral, vem descrito com exatidao, com plasticidade ¢ sensi- bilidade.’ A descrigio de Zola € uma pequena monogratia sobre a modema corrida de trote, que vem acompanhada em todas as suas fases, desde a preparagio dos cavalos até a passagem pola linha de chegada, com a mesma insisténcia. A tribuna os espectadores aparece com t6da a pompa c todo o colorido ide uma exibigio de moda parisiense sob o Segundo Império. ‘Também o que acontece na pista vem representado com exatidao em todos os aspectos: a corrida termina por uma grande surprésa 43 © Zola nao se limita a descrever esta suprésa, mas desmaseara também a complicada trama que a causou. No entanto, esta descrigéo, com todo 0 seu virtuosismo, no passa de uma digressio dentro do conjunto do romance. Os acontecimentos da corrida so apenas débilmente ligados 20 entrecho © poderiam facilmente ser suprimidos, de vez que 0 onto de conexi consiste apenas no fato de qué um dos mits amantes passageiros de Nand se arruinou e1 déncia do desfecho da trama. cane Uma outra conexio entre a cortida eo tema central é ainda mais débil, tanto assim que néo se pode sequer dizer que seja um elemento do entrecho, embora — por isso mesmo — seja ainda mais sintomética para 0 estudo do método de composigdo utilizado por Zola: o cavalo vencedor, que ocasiona 2 surprésa, chama-se também Nand. E Zola nio deixa de subli- thar claramente esta coincidéncia ténue e casual; a vitGria do oménimo da mundana Nand é um simbolo do’ triunfo desta xno mundo e no demi-monde parisiense. ‘A corrida de cavalos de Ana Karenina 6 0 ponto crucial de um grande drama. A queda de Wronski representa uma reviravolta na vida de Ana, Pouco antes da corrida, Ana fica sabendo que esté gravida e, depois de uma dolorosa’hesitacgo, decide comunicar a sua gravider a Wronski. A emogio susci- tada pela queda de Wronski provoca a conversa decisiva de Ana com Karenin, seu marido, T8das as relagdes entre os principais personagens do romance entram numa fase decididamente nova, apés a corrida. Esta, por conseguinte, nio ¢ um “quadro” ¢ sim uma série de cenas altamente draméticas, que assinala uma profunda mudanca no conjunto do entrecho. ‘As finalidades completamente diversas 2 que atendem as cenas dos dois romances se refletem em t6da a exposigio. Em Zola, a corrida é descrita do ponto de vista do espectador; em Tolstoi, 6 narrada do ponto de vista do participante. __O relato da corrida de Wronski constitui 0 verdadeiro objetivo visado por Tolstoi, que sublinha a importincia de nenhum modo episédica on casual do evento na vida do seu ambicioso oficial. Bste se prejudicou na sua carreira militar em virtude de uma série de citcunstincias e, em primeiro lugar, em virtude da sua ligagio com Ana. A vitria na corrida, diante de tOda a Cérte © da sociedade aristocrética, esté entre “4 fas poucas possibilidades de satisfazer a sua ambi¢lo que Ihe restam abertas. Todos preparativos ¢ todas as fases da corrida, portanto, so momentos de uma aco importante e vém contados fm dramética sucessio. A queda de Wronski é o vértice de toda festa fase dramética da sua vida e com ela interrompe a narragio da corrida, sendo apenas acenado, de passagem, em uma tinica frase, 0 fato de que o seu rival o ultrapassa. ‘Com isso, entretanto, esta longe de ser exaurida a andlise da concenteagao épica desta cena, Tolstoi nao descreve uma “coisa’": narra acontecimentos humanos. E esta é a sazo de que 0 andamento dos fatos venha narrado duas vézes, de maneira genuinamente épica, ao invés de ser descrito por imagens. Na primeira narragdo em que Wronski, que participava da corrida, tra a figura central, era preciso expor, com preciso © compe- {éncia, tudo aquilo que era essencial na preparagio da corrida © no seu préprio transcurso. Na segunda, porém, as figuras principais passam a ser Ana ¢ Karenin. ‘A excepeional arte épica de Tolstoi se manifesta no fato de que éle nio faga com que ao primeiro que siga imediata- mente o segundo relato da corrida, mas comece a narrar todo 6 dia precedente de Karenin ¢ a evolugdo de suas relagdes com ‘Ana, para fazer do relato da corrida, afinal, 0 pice do n6vo dia.’ A corrida torma-se, assim, um drama psicolégico: Ana s6 facompanha Wronski com os olhos ¢ nada vé da corrida prd- priamente dita ¢ nem dos outros. Karenin observa exclusiva mente Ana e suas reag6es ante o que se passa com Wronski. ‘A tensfo desta cena, quase sem palavras, prepara a explosio de ‘Ana, quando, ao voltar para casa, confessa a Karenin suas relagées com Wronski. leitor ou o esctitor formado na escola dos “modernos poderia objetar, neste ponto: admitindo que estejamos diante de Uois métodos diferentes de representagho artistica, nfo seré o proprio fato de vineular a corrida a importantes vivéncias inter~ hhumanas dos personagens principais que tornaré a corrida um lemento acidental, uma mera ocasiéo para que ecloda 2 catés- trofe do drama? E, a0 contrério, no serd 0 caréter completo, acabado e monogrifico, da descriggo de Zola aquilo que dé o cxato quadro de um fendmeno soci is-nos agora em face de um problema: o que & que se pode chamar de acidental na representacéo artista? Sem ele- 45 mentos acidentais, tudo & abstrato © morto. Nenhum escritor pode representar algo vivo se evita completamente os elementos acidentais; mas, por outro lado, precisa superar na representacio a casualidade nua ¢ crua, elevando-a ao plano da necessidade. " E sera que € 0 carster completo de uma descrigo objetiva que torna alguma coisa artisticamente “necessiria”? Ou nio sera, antes, a relagio necessdria dos personagens com as coisas € com 03° acontecimentos — nos quais se realiza o destino deles, © através dos quais éles atuam e se debatem? © Jé a ligacdo entre a ambigio de Wronski ¢ a sua partici- aco na cotrida manifesta uma necessidade artistica bem diversa ‘da que poderia ser oferecida pela descrigio “‘completa” de Zola. © assistir ou participar de uma cortida de cavalos pode se objetivamente, apenas um episédio. Tolstoi relacionou o mais, intimamente possivel tal episédio com um drama de importincia vital. De certo modo, a corrida é sdmente uma ocasigo para fazer eclodir 0 conflito; porém esta ocasiao, estando ligada A ambigdo social de Wronski — que é um importante componente a tragédia em desenvolvimento — nada tem de casual. A literatura acumula exemplos nos quais aparece de forma ainda mais clara o contraste entre 0s dois métodos, no que concerne & necessidade ou casualidade da representacio de scus objetos. ‘Vejamos a descricio do teatro que se encontra neste mesmo romance de Zola e comparemo-la as das lusoes Perdidas de jalzac. Exteriormente, ha semelhancas. A estréia com que se inicia o romance de Zola decide a carteira de Nand. Em Balzac, a estréia determina uma profunda mudanga na carreira de Lucien de Rubempré, sua passagem de poeta desconhecido a jomalista inescrupuloso © coroado de éxito. Também 0 recinto do teatro é descrito por Zola de maneira cuidadosa e completa. Primeiro, visto da platéia: tudo que acontece nas cadeiras, nos corredores, no palco, o aspecto assu- mido pela cena, tédas as coisas descritas com impressionante hhabilidade literéria. Depois, a obsessio zoliana pelo carter completo ¢ monogrifico passa adiante e um outro capitulo do seu romance esta dedicado & descrigio do teatro visto do palco; ‘com néo menor vigor, sio descritos as mudangas de cendrio, (8 vestuérios, etc. © 0 que se passa durante as representagies © 0s intervalos. Por fim, para completar 0 quadro, um terceiro 46 capitulo contém a proficiente ¢ zelosa descrigéo de um ensaio geral. Este cardter completo de inventério nfo existe em Balzac. 0 teatro e a representacio, para éle, constituem sdmente 0 am- biente em que se desenvolvem fntimos dramas humanos: a ascensio de Lucien, 0 prosseguimento da carreira artistica de Coralie, o aparecimento da paixio entre Lucien ¢ Coralie, bem como dos futuros conflitos de Lucien com seus velhos amigos do ciroulo de D’Arthéz e com seu atual protetor, Lousteau. ‘Também do inicio da sua vinganca contra Madame de Barge- ton, etc, Mas o que é que ver representado em tOdas estas Tutas, ‘em todos éstes conflitos direta ou indiretamente conexos ao tea tro? A sorte do teatro no capitalismo: a universal ¢ complexa dependéncia do teatro em relagio ao capital e em relagio a0 jornalismo dependente do capital; as relagdes entre o teatro © a Iiteratura, entre o jornalismo e a literatura; 0 carter capitalista da relagio entre a vida das atrizes © a prostituigéo aberta ou distargada, Tais problemas sociais também sio aflorados pot Zola. Mas so descritos apenas como fatos sociais, como resultados, ‘como caput mortuum da situacao. O diretor do teatro, em Zola, repete incessantemente: “Nao diga teatro, diga bordel”. Balzac, cantretanto, representa o modo pelo qual o teatro se prostitui no ccapitalismo. O drama das figuras principais é, ao mesmo tempo, © drama das instituigdes no quadro das quais elas se movem, 0 Grama das coisas com as quais elas convivem, o drama do am- biente em que elas travam as suas Iutas ¢ dos objetos que ser- vem de mediagio as suas relagdes reciprocas, Este 6 um caso extremo, € claro. Os objetos do mundo que citcunda os homens nfio so sempre ¢ necessiriamente tho liga- dos as experiéncias humanas como neste caso. Podem ser ins- trumentos da atividade © do destino dos homens ¢ podem ser — como aqui se passa com Balzac — pontos eruciais das expe- rigncias vividas pelos homens em suas relagdes sociais decisivas. Mas podem ser, também, meros cendrios da atividade e do des- tino déles.. Persistiré 0 contraste por nés indicado mesmo onde se trata sOmente, na realidade, da representagio de um cenario? 7 No capitulo introdutério do seu romance Old Mortality, Walter Scott descreve uma exibi¢ao militar, associada a festejos populares, organizada na Escécia depois ‘da restauracio dos Stuart e da tentativa de renovar as instituigdes feudais. A pro- mogio tem por objetivo passat em revista os ficis € provocar os descontentes, a fim de que se desmascarem, Na obra de Scott, cla se realizn na véspera da insurreigo dos putitanos oprimi- dos. A grande arte épica de Scott fixa neste cenério todos os contrastes que estdo prestes a explodir numa Iuta sangrenta, A comemoracio militar revela, em cenas grotescas, o envelheci- mento sem esperanca das relagdes feudais a surda resisténcia da populacio contra a tentativa de renové-las. A competicio de tro a0 alvo que se segue a revista das tropas mostra 2 contradi- ‘gio instalada no seio de ambos os partidos adversérios: s6 os elementos moderados de um do outro tomam parte no diver- timento popular. Na hospedaria, assistimos a brutalidade da soldadesca do rei e, a0 mesmo tempo, ali se revela em t6da a sua tétrica grandeza a figura de Burley, que depois viré a ser uum dos cabegas da revolta puritana. Em suma: Walter Scott, contando o que se passou nesta celebracéo militar e descreven- do 0 cenério em que ela se realizou, desenvolve tddas as ten- déncias € todos os personagens principais de um grande drama histérico, colocando-se, de golpe, bem no meio da acdo, ‘A descrigo agricola e premiago dos agricultores em Madame Bovary é uma das mais celebradas obras-primas da arte descritiva do moderno realismo. Flaubert descreve, aqui, cfetivamente, s6 0 “cenério”, uma vez que tdda a exposicao nfo passa de uma ocasio para enguadrar a cena decisiva do amor entre Rodolfo ¢ Ema Bovary. O cenério € casual, um ver- Gadeiro cenério, no sentido literal da palavra. E esta casuali- dade vem claramente sublinhada pelo proprio Flaubert, Unindo € contrapondo os discursos oficiais a fragmentos do coléquio amoroso, Flaubert institui um paralelo irénico en- tre a banalidade piblica e a banalidade privada da vida peque- no-burguesa. E tal contraste irénico é desenvolvido,com extre- ‘ma coeréncia e grande arte. Fica, todavia, nfo resolvido 0 contraste pelo qual éste ce- nério casual, éste pretexto casual para a descri¢#o de uma cena de amor, se torna, 20 mesmo tempo, no mundo de Madame Bovary, ‘um acontecimento importante, cuja minuciosa descri- 48 do & exigida pelos fins almejados por Flaubert, isto 6, pela completa representagio do ambiente, A ironia do contraste no esgota 0 significado da descrigio. O “cendtio” possui uma sig- nificagGo auténoma, enquanto elemento destinado a completar fo ambiente, Aqui, porém, os personagens sfo Unicamente espec~ tadores —e por isso se tornam, pata o leitor, elementos cons- titutivos, homogéneos ¢ equiavientes, dos acontecimentos des- critos por Flaubert, relevantes apenas do ponto de vista da re- constituigéo do ambiente. Tornam-se manchas coloridas dentro de um quadro, que s6 ultrapassam os limites estéticos da moldu- ra na medida em que s¢ eleva a irbnico simbolo da esséncia do filisteismo. Tal quadro assume uma importincia que néo dima- na do fntimo valor humano dos acontecimentos narrados € nfo tem relagio priticamente alguma com os acontecimentos, sen- do a relacdo obtida, ao invés disso, por meio da estilizaggo formal. © contetido simbélico € realizado em Flaubert através da ironia © possui um notével nivel artistico, alcangado com meios — pelo menos em parte — genulnamente artisticos. Mas, quan- do, como ocorre em Zola, 0 simbolo deve adquirir por si mesmo uma monumentalidade social, quando tem a fungio de im- primir a um episédio que em si é insignificante 0 sélo de um grande significado social, entdo se abandona o campo da verda- deira arte, A metéfora aparece inchada de realidade. Um traco scidental, uma semelhanca de superficie, um estado de animo, um enconto casual passim a oonstuir a expressio imediata de vastas relagées socials. Em qualquer romance de Zola se pode encontrar grande quantidade de exemplos disso. Lembre- mo-nos apenas do paralelo entre Nand © a mésca dourada, pa- ralelo com que se pretendia simbolizar o fatal influxo daquela sObre a Paris de antes de 1870, Zola mesmo € quem declara ex- pressamente 2 sua intengdo: “Na minha obra, impera a hiper- trofia do particular realista. Do trampolim da observacdo pre- cisa, parte-se para se alcangar as estrélas. A um Gnico mover de asas, a verdade se eleva a simbolo”. Em Walter Scott, Balzac ou Tolstoi, vinhamos de conhe- cer acontecimentos que eram importantes por si mesmos, mas cram também importantes para as relagdes intershumanas dos ppersonagens que os protagonizavam ¢ importantes para a signifi- cago social do variado desenvolvimento assumido pela vida hu- 0 mana de tais personagens. Constituiamos 0 péblico de certos acontecimentos nos quais os personagens do romance tomavam parte ativa. Viviamos ésses acontecimentos. Em Flaubert ¢ em Zola, os mesmos personagens so ¢s- pectadores mais ou menos interessados nos acontecimentos — fe com isso os acontecimentos se transformam, 20s olhos dos lei- tores, em um quadro, ou melhor, em uma série de quadros, B: ses quadros, nés os observamos. 0 (© contraste entre o participar e 0 observar nfio € casual, pois deriva da posigéo de principio assumida pelo escritor,” em face da vida, em face dos grandes problemas da sociedade, ¢ no do mero emprégo de um diverso método de representar de- terminado contetido ou parte de contesdo, Esta constatagdo é necesséria a fim de colocarmos concre- tamente 0 nosso problema. Tal como ocorre nos demais cam- pos da vida, na literatura nfo nos deparamos com “fendmenos uros”, Engels recorda que o “puro” feudalismo s6 existiu na constituigéo do efémero reino de Jerusalém. No entanto, é evi dente que 0 fendalismo constitui uma realidade hitérica ¢ pode, agicamente, ser objeto de uma indagagio. Ora, ¢ certo que nio existe qualquer escritor que renuncie completamente a descrever. E também seria pouco licito afirmar que 0s grandes represen- tantes do realismo posterior a 1848, Flaubert e Zola, tenham renunciado de todo a narrar. O que nos importa so os princt pios da estrutura da composigdo ¢ nfo o fantasma de um “nar- rar” ou “descrever” que constituam um “fendmeno puro”. O que nos importa € saber como ¢ por que a descti¢éo — que oF ginalmente era um entre os muitos meios empregados na criag artistica (e, por certo, um meio subaltemo) — chegou a se tornar o principio fundamental da composigao. Pois, déste mo- do, 0 carater ¢ a fungio da descrigio na composigo épica che- garam a sofrer uma mudanga radical, Jé Balzac sublinhava, na sua critica & Cartuxa de Parma de Stendhal, a importincia da descrico como meio de compo- sigo essencialmente moderno, O romance do Século XVII (Le Sage, Voltaire, etc.) mal conhecia a descricio, que néle exercia uma funcio mfnima, mais do que secundéria, A si 50 Go muda sdmente com 0 romantismo. Balzac salienta que a tendéncia literéria representada por éle (e da qual éle consi- dera Walter Scott 0 fundador) assinala. maior importincia & descrigio, Mas, quando Balzac, acentuando o contraste com a saridez’ dos Sécvlos XVII e XVIII, se declara seguidor de um método moderno, éle alinha téda uma série de momentos esti- Iisticos que considera caracteristicos de tal orientagio. A des- crigio 6, entio, no pensamento de Balzac, um momento entre ‘outros; ao Tado dela, vem particularmente’ sublinhada a nova importincia assumida pelo elemento dramitico. (© novo estilo brota da necessidade de configurar de modo adequado as novas formas que se apresentam na vida social. ‘A relagio entre o individuo e a classe tomara-se mais complexa do que nos Séculos XVII e XVIII. O ambiente, 0 aspecto ex- terior, os hébitos do indivfduo, podiam (por exemplo, em Le Sage) ser muito sumariamente’indicados ¢, no entanto, a des- ppeito dessa simplicidade, podiam constituir uma clara e com- peta caracterizagdo social. A individualizagéo era alcancada quase que exclusivamente pela propria aco, pelo modo segun- do o qual os personagens reagiam ativamente 20s aconteci- mentos. Balzac vé claramente que éste método nao the pode mais bastar. Rastignac, por exemplo, é um aventureito de tipo com- pletamente diversos do de Gil Blas. A descricéo exata da pen- so Vauquer, com sua sujeira, seus odores, seus alimentos, sua eriadagem, é absolutamente necessiria para tornar realmente de todo compreensivel o tipo particular de ayentureiro que € Ras- ‘ignac, Da mesma forma, a casa de Grandet, 0 apartamento de Gobsek, ete., precisam ser descritos em seus pormenores para gue éstes completem a representagio dos tipos diversos de usu- rio, social ¢ individualmente, que eram éles, ‘Ainda que prescindamos do fato de que a reconstituigéo do ambiente nfo se detenha, em Balzac, na pura descrigao, © venha quase sempre traduzida em agdes (basta evocarmos 0 velho Grandet, consertando a escada apodrecida), verificamos que a descricao, néle, nfo é jamais sendo uma ampla base para © n6vo, decisivo elemento: o elemento dramético. Os persona- gens de Balzac, to extraordinariamente multiformes e comple- X0s, nfo se poderiam mover com efeitos draméticos tio con- vincentes se 0s fundamentos vitais dos seus caracteres no f6s- 5 sem to largamente expostos. Em Flaubert ¢ em Zola a descri- do tem uma fun¢do absolutamente diversa. Balzac, Stendhal, Dickens, Tolstoi representam a socieda- de burguesa que se est consolidando através de graves crises; ‘epresentam as complexas leis que presidem & formagio dela, 665 miltiplos e tortuosos caminhos que coduzem da velha socie- dade em decomposigao & nova que est surgindo, Bles mesmos viveram ésse proceso de formagio em suas crises, participa- tam ativamente déle, se bem que em formas diversas, Goethe, Stendhal € Tolstoi tomaram parte em guerras que serviram de parteiras a tais transformagoes. Balzac participou das especula- goes febris do nascente capitalismo francés e foi vitima delas. ‘Tolstoi acompanhou as etapas mais importantes désse revolu- cionamento na qualidade de proprietério de terras ou colabo- rando em varias organizacdes sociais (recenseamento, comissio contra a carestia, etc). A éste respeito, éles séo, também na sua conduta de vida, os continuadores dos escritores, artistas © si ‘bios do Renascimento ¢ do Iluminismo: séo homens que parti- cipam ativamente ¢ de vérios modos das grandes Iutas sociais da época © que se tornam escritores através das experiéncias de uma vida rica ¢ multiforme. Nao slo ainda “especialistas”, no sentido da divisio capitalista do trabalho, Flaubert © Zola iniciaram suas atividades depois da bata- Jha de junho, numa sociedade burguesa j cristalizada e consti- tuida. Nao participaram mais ativamente da vida desta socieds- de; nfo queriam participar mesmo. Nessa recusa se manifesta a tragédia de uma importante geracio de artistas da época de transigdo, j4 que a recusa é devida, sobretudo, a uma atitude de ‘oposicio, isto é, exprime o édio, o’horror e 0 desprézo que éles. ‘ém pelo regime politico e social do seu tempo. Os homens que aceitaram a evolugio social desta época tornaram-se estércis © mentirosos apologistas do capitalismo, Flaubert e Zola sio de- masiado grandes e sinceros para seguir éste caminho. Por isso, como solugio para a trdgica contradicéo do estado em que s¢ achavam, 56 puderam escolher a solidio, tornando-se observa- dores e criticos da sociedade burguesa. Com isso, entretanto, tornaram-se ao mesmo tempo escri- tores profissionais, escritores no sentido da divisio capitalista do trabalho. Este € 0 momento em que o livro se transformou completamente em mercadoria e o escritor em vendedor da re- 52 ferida mercadoria, a no ser quando, por acaso, 0 esctitor dis- punha de uma renda. Em Balzac, encontrévamos ainda a tétrica grandeza da acumulacéo primitiva no campo da cultura. Goe- the ou Tolstoi podem ainda, no que se refere a0 fenémeno de que estamos falando, assumir a atitude senhorial dos que nao vivem sdmente da literatura, Flaubert ¢ um asceta voluntirio © Zola, constrangido pela necessidade material, € ja um escritor profissional no sentido da diviséo capitalista do trabalho. Os novos estilos, os novos modos de representar a real ade no surgem jamais de uma dialética imanente das formas artisticas, ainda que s¢ liguem sempre as formas e sentidos do pasado. Todo n6vo estilo surge como uma necessidade hist6- Fico-social da vida e é um produto necessério da cvolugdo so- cial, Mas © reconhecimento do cardter necessério da formagéo dos estilos artisticos nao implica, de modo algum, que 8563 es- tilos tenham todos o mesmo valor ¢ estejam todos num mesmo plano. A necessidade pode ser, também, a necessidade do at- {isticamente falso, disforme ¢ ruim. ‘A alternativa participar ou observar corresponde, entéo, @ duas posigdes socialmente necessirias, assumidas pelos escrito- res em dois sucessivos periodos do capitalismo, A alternativa narrar ou descrever corresponde 20s dois métodos fundamen- tais de representacéo proprios déstes dois periodos. Para distinguir nitidamente entre os dois métodos, pode- ‘mos contrapor um testemunho de Goethe 2 um de Zola, ambos referentes jis relagdes entre observacdo ¢ cringio artistica. Diz Goethe: “Jamais contemplei a natureza com objetivos poéticos. Os desenhos de paisagens, primeiro — e a minha atividade co- ‘mo naturalista, depois — me tém Jevado a observar continua cc minuciosamente os objetos naturais e, pouco 2 pouco, aprendi a conhecer bem a natureza, mesmo em seus minimos detalhes, de modo que, s¢ — como poeta — tenho necessidade de algu- ‘ma coisa, disponho dela ao alcance da mo, ¢ néo me 6 fa pecar contra a verdade™. ‘Também Zola se exprime muito claramente sobre 0 modo como se aproxima de um objeto para atender & suas finalidades como escritor: “Um romancista naturalista quer escrever um ro- mance sobre © mundo do teatro. Ele parte dessa idéia geral sem dispor de um tinico fato, sequer de uma figura. Sua primeira Preocupagio seré a de tomar apontamentos sObre tudo 53 que possa vir a saber acérea déste mundo que pretende des sentacio, etc. Depois, falaré. com os que dispuserem de maiores informagdes a respeito do assunto, colecionaré. frases, anedo- tas, flagrantes. Mas isso nio basta. Ler, também, os documen- tos escritos. Por fim, visitaré os lugares indicados, ¢ passacé um dla qualquer em um teatro para conhecé-lo em seus pormeno- res, Permanecerd algumas noites no camarim de uma atriz ¢ procuraré identiticar-se 0 mais possivel com 0. ambiente. E, iceesatel decinneto eaive ania yar aia fard por si mesmo, O romancista deve se limitar a ordenar os fatos de modo logico.... O interésse nao se concentra mais na originaidade da trama; assim, quanto mais esta € banal € ge- nérica, tanto mals tipica se torna” (os gritos sio meus, GL). Estamos diante de dois estilos radicalmente diversos, de uas maneiras diversas de encarar a realidade. " ur Compreender a necessidade social de um dado estilo bbem diferente de fornecer uma avaliagio estética dos talon artisticos désse estilo, Em estética néo prevalece o principio de que “tudo compreender é tudo perdoar”. $6 0 sociologismo vul- gar, que se circunscreve & procura do chamado “equivalente s0- cial” dos escritores individualmente considerados © estilos sin- gulares, er que os problemas fiquem resolvidos ¢ eliminados com a indicagdo da gnese dees. Bste método (cuja explicacio nfo cabe aqui) significa na prética uma tentativa de reduzi todo 0 desenvolvimento artistico da humanidade 20 nivel da bburguesia ‘decadente: Homero, Shakespeare aparecem como ‘produtos” equivalentes a Joyce e John dos Pastos. A tarefa da eritica literéria fica adstrita & descoberta do “‘equivalente so- cial” de Homero ou Joyce, Marx colocou 0 problema de modo bem diverso. Depois de ter analisado a génese da epopéia ho- miérica, éle acrescentou: “A diliculdade, entretanto, no con- siste em compreender que a arte © a épica grega estejam liga- as a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade consiste em que elas continuam a suscitar em nés um prazeres- Aco ¢ yale, sob eetos aspects, como nomas © modelos in- 54 Tal indicagio de Marx, naturalmente, se refere também a casos em que a estética precisa pronunciar uma apreciacio ne- gativa, Nos dois casos, a valoracdo estética no pode ser me- cnicamente separada da dedugao historica. Que os poemas ho- méricos sejam mais verdadeiramente poemas épicos ¢ no 0 se- jam tanto os de Camdes, Milton e Voltaire, € uma questo a0 ‘mesmo tempo histérico-social e estética, Nao existe uma “macs- tia” separada ¢ independente de condigies histéricas, sociais © pessoais que sejam adversas a uma rica, vivida ¢ ampla repro- Gucio da realidade objetiva. A incleméncia social dos pressu- postos © condigdes exteriores da criagio artistica exerce neces- Striamente uma agio deformadora sObre as proprias formas ¢s- senciais da representacio. Isso vale também para o caso de que estamos tratando, Flaubert escreveu uma autocritica extremamente instruti- va, referente a0 seu romance A Educagdo Sentimental, na qual se 1é: “Ble (0 romance) ¢ excessivamente verdadeiro e, do ponto de vista estético, padece de um éro de perspectiva. O plano era bem pensado, mes terminou por desaparecer. TOda Obra de arte deve ter um vértice, um cume; deve formar uma ppirimide, ou um facho de luz que caia sdbre um ponto da es- fera. Na vida nfo hi nada disso. A arte, contudo, nfo € a na~ tureza, Nao importa: acredito que ninguém foi mais Ionge em matéria de sineeridade”, Esta confissio, como tédas as declaragées de Flaubert, da testemunho de um ‘absoluto respeito pela verdade. Flaubert’ ca- racteriza com exatidiio a composicio do seu romance € esté certo em sublinhar a necessidade artistica dos pontos culminan- tes. Mas teré razio ao dizer que no seu romance ha ‘“excessiva verdade"? Ser exato que os “pontos culminantes” existem ape~ nas na arte? Nao € exato, naturalmente, Essa confissio flaubertiana, ‘Ho integralmente sincera, no nos interessa sOmente como auto- critica relativa ao seu romance, mas sobretudo porque ela nos revela a sua errénea concepeao da realidade, da esséncia obje- tiva da sociedade, da relaglo entre arte © natureza. Sua concep- 0, segundo a qual os “‘pontos culminantes” existem apenas na arte e vém, portanto, ctiados pelo artista (que pode decidir ‘eri-los ou néo, a seu bel prazer), € um puro e simples precon- ceito subjetivo. Trata-se de uma coneepgio que & um precon- 55 ceito resultante de uma observacio exterior e superficial das ma- nifestagies da vida burguesa, das formas de vida caracteristicas da sociedade burguesa, uma observacdo que faz abstracdo das fOrcas motrizes do desenvolvimento social e da acto que estas continuamente exeroem, inclusive sObre a superficie da vida. Considerada désse modo abstrato, a vida aparece como um rio que corre sempre de maneira igual, como uma lisa ¢ monétona superficie sem articulagées. Embora, de tanto em tanto, essa monotoniasejainterrompida por britis castes “improvi- sada Na realidade — e, naturalmente, também na reatidade ca- pitalista — as catéstrofes “improvisadas” so preparadas por um Tongo processo. Elas nio se acham em rigido contraste com © pacifico andamento da superficie, e sio a conseqlincia de uma evolugo complexa e desigual. F esta evolugao que articula objetivamente a superficie aparentemente lisa daquela esfera a que se refere Flaubert. De fato, o artista deve iluminar os pontos essenciais de tais articulagSes, mas Flaubert incorre num pre- conceit quando cré que elas — as articulagSes — nfo existem independentemente do artista. ‘As articulagdes nascem por obra das leis que determinam © desenvolvimento hist6rico da sociedade, em decorréncia da ago das {reas motrizes do desenvolvimento social, Na reali- dade objetiva, desaparece o falso, subjetivo abstrato contras- te entre o “normal” ¢ 0 “anormal”. Marx enxerga mesmo na crise econdmica o fendmeno “mais normal” da economia capi- talista: “A autonomia que assume — um em relagao 20 outro — ‘momentos estritamente conexos e complementares, a crise a destr6i violentamente. Por isso, a crise revela a unidade dos mo- mentos que estavam reciprocamente isolados”. 34 a ciéncia burguesa da metade do Século XIX, investida de uma fungio apologética, enxerge a realidade de maneira bastante diversa, A crise Ihe aparece em forma de “‘catéstrofe”, interrompendo “sibitamente” 0 andamento “normal” da eco- nomia. Do mesmo modo, t6da revolugio Ihe aparece como algo catastréfico e anormal. Nas suas opinides subjetivas ¢ nos seus propésitos como escritores, Flaubert ¢ Zola no so de modo algum defensores do capitalismo. Mas sdo filhos da época em que viveram e, por isso, a concepgo que éles tinham do mundo sofre constante- 56 mente 0 influxo das idéias do tempo. Isso € valido principal- mente para Zola, cuja obra se ressentiu decisivamente dos pre- conceitos da sociologia burguesa. Essa é a razéo pela qual em Zola a vida se desenvolve quase sem saltos e articulagies, po- dendo-se mesmo consideré-la, da sua perspectiva, socialmente normal: todos 0s atos dos homens aparecem como produtos normais do meio social. H4, porém, outras f6reas em agio, bas- tante diversas e heterogéneas, como a hereditariedade, que atua sobre 0s pensamentos ¢ os sentimentos dos homens, ‘como ne- cessidade fatalista, provocando catéstrofes que interrompem 0 fluxo normal da vida, Basta pensar na embriaguez.hereditéria de Etienne Lantier, em Germinal, que provoca varias explosses € catéstrofes bruscas que néo tém relagdo orgénica alguma com © caréter de Btienne; Zola mio quer mesmo estabelecer tal re- lagio. O mesmo acontece em L’Argent, com a catéstrofe provo- cada pelo filho de Saccard. Em téda parte, a ago normal ¢ ho- mogénea do ambiente fica contraposta, sem nexo algum, as brus- cas catéstrofes determinadas pelo fator hereditério. SB evidente que nfo nos defrontamos, aqui, com um refle- xo exato ¢ profundo da realidade objetiva, ¢ sim com uma ba- nal deformagao das suas Ieis, devida ao influxo de preconcei- tos apologéticos exercido sdbre a concepgao do mundo adotada pelos escritores désse periodo, O verdadeiro conhecimento das Forgas motrizes do processo social ¢ © reflexo exato, profundo € sem preconeceitos da agio déste proceso sdbre a vida huma- na, assumem a forma de um movimento: um movimento que representa ¢ esclarece a unidade orgénica que liga a normali- dade & excegio. ‘A verdade do processo social é também a verdade dos des- tinos individuais. Em que coisa, entretanto, e de que modo, tor- nase visivel tal verdade? E claro, ndo sdmente para a ciéncia © para a politica fundada sdbre bases cientificas, mas também para 0 conhecimento pritico do homem na sua vide cotidiana, ‘que essa verdade da vida s6 se pode manifestar na praxis, no conjunto dos atos e ages do homem. As palavras dos homens, seus pensamentos ¢ sentimentos puramente subjetivos, revelam- se verdadeiros ou no verdadeiros, sinceros ou insinceros, gran- des ou limitados, quando se traduzem na pritica, isto é, quando 08 atos ¢ as f6rgas dos homens confirmam-nos ou desmentem-nos na prova da realidade. $6 a praxis humana pode exprimir con- 57 cretamente a esséncia do homem. O que é f6rga? O que é bom? Perguntas como estas obtém respostas tnicamente na praxis. E através da praxis, apenas, que os homens adquirem in- terésse uns para 0s outros ¢ se tornam dignos de ser tomados como objeto da representagao literdria. A prova que confirma tragos importantes do cardter do homem ou evidencia 0 seu fracesso nfo pode encontrar outra expressio sendo a dos atos, a das agdes, a da praxis. A poesia primitiva — quer se trate de {fébulas, baladas ou lendas, quer se trate de formas espontneas, safdas mais tarde dos relatos anedéticos — parte sempre do fato fundamental da importincia da praxis; ela sempre tepresentou 0 sucesso ou o fracasso das intengées humanas na prova da expe- rigneia e disso decorreu a sua profunda significado. Ainda hoj a despeito dos seus pressupostos freqlientemente fantésticos, ingEnuos e inaceitéveis para 0 homem moderno, essa poesia con tinua viva, por colocar no centro da representagdo exatamente éste fato fundamental da vida humana. \e O interésse que tem a reuniéo de varias agdes numa con- catenagéo orginica também é devido fundamentalmente a0 fato de que, nas mais diversas ¢ variegadas aventuras, se expe con- finuamente 0 mesmo trabalho tipico de um carter humano. Tanto em Ulisses como em Gil Blas, essa é a razio humana € poética do imperecivel vigo alcangado por uma sucesso de aventuras. E o fator decisivo € naturalmente o homem, 0 reve- lar-se dos tragos essenciais da vida humana: o que nos interessa 6 ver como Ulisses ou Gil Blas, Moll Flanders ou D. Quixote reagem diante dos grandes acontecimentos de suas vidas, como enfrentam os perigos, como superam os obstéculos, ¢ como os tragos que tornam interessantes e significativas as suas persona- lidades se desenvolvem sempre mais ampla ¢ profundamente na cdo. Se nfo revelam tragos humanos essenciais, se nfio expr mem as relagdes orginicas entre os homens € os acontecimen- tos, as relagSes entre os homens e 0 mundo exterior, as coisas, as Forgas naturais e as instituigdes sociais, até mesmo as aven- turas mais extraordindrias tornam-se vazias ¢ destitufdas de con- teido. E necessério néo esquecer que, na realidade, téda ago — ainda que nfo revele tragos humanos tipicos e essencizis — contém sempre nela o esquema abstrato (conquanto deform: do ¢ apagado) da praxis humana como um todo, Eis por que 58 exposigdes esqueméticas de ages de aventuras nas quais apa- recem apenas sombras humanas podem, néo obstante, suscitar “de modo transitério — certo interésse: € 0 caso dos roman- ces de cavalaria ou, em nossos dias, dos romances policiais. A cficdcia déstes romances pOe a nu uma das raizes mais profun- as do interésse do homem pele literatura, que € o interésse pela riqueza e vatiedade de céres, variabilidade e multiplicidade de faspectos da experiéncia humana. Se a literatura artistica de uma época no consegue encontrar a concxo existente entre a praxis ea riqueza de desenvolvimento da vida intima das figuras tipi- cas do tempo, o interésse do piblico se refugia em sucedaneos abstratos e esquemiticos da literatura. Este 6 precisamente o caso da literatura da segunda me- tade do Século XIX. A literatura bascada na observagio © des crigfo elimina sempre, em medida crescente, o intercimbio en- trea praxis e a vida interior. Talvez nunca tenha havido uma época na qual, como ocorre na nossa, 20 lado da grande litera tura oficial, pululasse tanta literatura de aventuras vazia e sim- pplista. E nfo nos iludamos pensando que tal literatura seja lida Sdmente por “gente inculta” ¢ que as elites se atenham & gran- de literatura moderna: comumente, dé-se 0 contrério, No mais das vézes, 08 modemos clissicos sao lidos em parte por senso ‘do dever e, em parte, pelo interésse no que concemne 20 con teiido que reflete (se bem que de modo enfraquecido e atenuado) ‘os problemas do tempo. Para distragio, entretanto, para diver- so, devoram-se os romances policiais. Quando trabalhava em Madame Bovary, Flaubert lamen- tou em varias ocasiées que do seu livro estivesse ausente 0 ele~ ‘mento divertimento, Lamentos semelhantes acham-se em muitos dos escritores modernos notéveis: éles constatam que os gran- des romances do passado uniam a representagio de séres hu- ‘manos ricos de significado as tenses e divertimentos, ao passo {que na arte modema entram em cena a monotonia ¢ © aborreci- mento, Esta situagio paradoxal nfo 6 de modo algum o efeito de uma falta de dotes literérios nos escritores da nossa época, {que produziu um némero considerdvel de escritores dotados de incomum talento. A monotonia € 0 tédio decorrem dos padres da criagdo artistica e da concep¢ao do mundo adotada pelos ¢s- critores. 59 Zola condena como “antinatural” 0 emprégo de elemen- tos excepcionais por Stendhal e Balzac. Ble diz, por exemplo, sdbre 0 modo como é tratado o amor em O Vermelho € 0 Ne~ gro, 0 seguinte: “Assim, se abandona a verdade cotidiana, a verdade contra a qual nos chocamos, ¢ 0 psicélogo Stendhal passa 20 terreno do extraordindrio, tal como o narrador Alexan- dre Dumas. Do ponto de vista da exatidao, da veracidade, Julien me causa tanta surprésa quanto d’Artagnan”, No seu ensaio sObre a atividade literéria dos Goncourt, Paul Bourget formula muito claramente 0 n6vo principio de composig2o: “O drama € acio, como indica a etimologia, ¢ a ago nfo é mais uma boa expresso dos costumes. O que ¢ sig- nificativo em um homem nao é aquilo que éle faz em um mo- mento de crise aguda e apaixonada, ¢ sim os seus hibitos cot dianos, os quais nfo denotam uma crise, mas um estado”. Aqui, e sdmente aqui, € que se toma inteiramente com- preensivel a acima citada autocritica flaubertiana quanto a0 seu método de composigéo. Flaubert confunde a vida em geral com a vida cotidiana do burgués médio. Este preconceito possui, sem divida, suas proprias raizes sociais, porém no deixa por isso de ser um preconceito, nao deixa de deformar subjetivamente 0 reflexo literdrio da realidade, impedindo-o de ser tio amplo € tao justo como poderia. Flaubert luta durante t6da a sua vida para romper o cérco migico dos preconceitos assumidos da ne~ cessidade social. Mas éle nao luta contra os preconceitos mes- ‘mos ¢, como 0s considera como fatos objetivos aos quais nada se pode opor, a sua luta & trégica e va. Ble a empreende inces- santemente ¢ do modo mais apaixonado contra 0 tédio, a bs xeza € a repugniincia dos temas burgueses com que se ocupa a sua atengio de escritor. A cada vez que trabalha em um ro- ‘mance burgués, jura que néo voltaré mais a se ocupar de ma~ téria tdo vil. Todavia, s6 encontra safda na fuga em um exotismo de fantasia; 0 caminho que leva a descoberta da verdadcira {intima poesia da vida Ihe & barrado pelos scus preconceitos. ‘A ‘intima poesia da vida é a poesia dos homens que lu- tam, a poesia das relagdes inter-humanas, das experiéncias € agdes reais dos homens. Sem essa intima poesia néo pode ha- ver epopéia auténtica, nao pode ser elaborada nenhuma com- posicéo épica apta a despertar interésses humanos, a fortalecé- los € avivé-los. A epopéia — e, naturalmente, também a arte 60 do romance — comsiste no descobrimento dos tragos atuais © significativos da praxis social. O homem quer ver na epopéia a clara imagem da sua praxis social. A arte do poeta épico re precisamente na justa distribuigéo dos pesos, ma acentuagao Apropriada do essencial, A sua agfo € tanto mais geral ¢ em- polgante quanto mais éste elemento essencial — 0 homem ¢ a sua praxis social aparece, &do na forma de um rebuscado produto. artificial virluosistico, mas como algo que nasceu © feresceu naturalmente, quer dizer, como algo que nao é inven- tado e sim, apenas, descoberto Por isso o romancista ¢ dramaturgo alemio Otto Ludwig (cuja obra, de resto, é bastante problemética), em seus extu- dos sObre Walter Scott ¢ Dickens, chega a esta justissima con- lusio: “.. .08 personagens parecem ser a coisa principal ¢ 0 ‘movimento dos acontecimentos serve apenas para introduzir os Personagens como tais em um jogo naturalmente atraente; nfo Seorre, pois, que éles estejam em cena apenas para ajudar a manter © movimento. O fato € que o autor torna interessante faquilo que precisa ser tornado, enquanto que é interessante por si mesmo fica entregue as suas préprias fOrgas. Os per~ Fonogens constituem sempre principal. E, na realidade, um aeontecimento — por maravilhoso que seja — nao nos inte~ yessard a longa prazo tanto como os homens aos quais nos fei- ‘goamos com a convi A extensio da descrigfio, sua passagem 2 método dominan- te da composigao épica, & fenémeno que ocorre num perfodo fem que se perde, por motivos sociais, a sensibilidade para os ‘momentos essenciais da estrutura épica. A descricio € um su- edineo literdrio destinado a encobrir a caréncia de significa so épica. ‘Ainda aqui, entretanto, como se dé sempre na génese de novas formas ideolégicas, prevalece o principio da agao € rea- ‘edo. O predominio da descricéo nao é apenas efeito, mas tam- Bém se torna causa: causa de um afastamento ainda maior da Iiteratura em relaclo 20 significado épico. A tirania da prosa do ccapitalismo sobre a fntima poesia da experiéncia humana, a erucldade da vida social, o rebaixamento do nivel de humani- Gade so fatos objetivos que acompanham o desenvolvimento do capitatismo e désse desenvolvimento decorre necessariamen- te o método descritivo. Uma vez constituido éste método, © 61 aplicado por escritores notveis (a seu modo, coerentes), ele repercute, de ricochéte, sObre o reflexo literétio da realidade. nivel poético da vida social decai — e a literatura sublinha © aumenta esta decadéncia, Vv ‘A narragdo distingue e ordena. A descrigio nivela t6das as coisas. Goethe exige da poesia épica que ela trate todos os acon- tecimentos como definitivamente jé transcorridos, em oposigio A contemporaneidade da aco dramética. Com isso, Goethe de- fine de maneira justa a diferenga entre 0 estilo épico ¢ 0 estilo dramético. © drama se situa a prior’ em um nivel de abstragio bastante mais elevado do que a epopéia. O drama tem sempre © seu centro em um confit, ¢ tudo que no se refira direta ou indiretamente a éte conflito ‘aparece como absolutamente deslo- cado, supérfluo ¢ fastidioso, A riqueza de um dramaturgo como Shakespeare deriva de uma rica ¢ diversificada concepcao do proprio conflito. Mas, na tendéncia para a exclusio de todos os particulares que nfo’ se refiram a0 conflito, a verdade € que no hd diferenga substancial alguma entre Shakespeare ¢ os ‘mregos. A localizagio da agéo épica no passado, pedida por Goe- the, comporta a selego do que é essencial neste copioso oceano ‘que é a vida e a representacéo do essencial de maneira a susci- tar a ilusio de que a vida t6da esteja representada na sua ex- tensio integral. O critério que decide se um pormenor € ou no € pertinente, 6 ou nio & essencial, precisa ser, por conseguinte, mais “largo” na épica do que no drama; tal critério precisa re- conhecer como essenciais também conexdes tortuosas indiretas, Dentro desta concepcio mais ampla e extensa do essencial, to- davia, a selegéo deve ser t80 rigorosa quanto a do drama: aquilo que nfo concerne & substincia é um estOrvo, um obstéculo nfo menos grave aqui do que o € no drama. SOmente no final é que a tortuosidade dos caminhos da vida se simplifica. $6 a praxis humana pode indicar quais te- ham sido, no conjunto das disposigées de um cardter humano, as qualidades importantes ¢ decisivas. S6 0 contato com a_pra- xis, s6 a complexa concatenagdo das paixdes ¢ das variadas 6 ages dos homens pode mostrar quais tenham sido as coisas, as instituigdes, etc., que influfram de modo determinante sObre os destinos humanos, mostrando quando e como se exerceu tal in- fiuéncia, De tudo isso 56 se pode ter uma visto de conjunto quando se chega 20 final. F a prépria vida que tem realizado ‘@ selegdo dos momentos essenciais do homem no mundo, quer subjetiva, quer objetivamente. O escritor épico que narra uma experiéncia humana em um acontecimento, ou descnvolve a narragdo de uma série de acontecimentos dotados de signitic do humana, e o faz retrospectivamente, adotando a perspecti- va alcancada no final déles, torna clara ¢ compreensivel para © Keitor a selegdo do essencial que j foi operada pela vida mes- ma. O observador que, por fOrga das coisas, é, 20 contratio, contempordneo da ago, precisa perder-se no ‘intrincado dos particulares, ¢ tais particulares aparecem como equivalentes, pois a vide nJo'os hierarquizou através da praxis. O caréter “pas- sado” da epopéia, portanto, é um meio de composicéo funda- mental, prescrito pela prépria realidade ao trabalho de articula~ fo © ordenamento da matéria E verdade que o leitor, ao ler, desconhece © final. Aos seus olhos, na leitura, oferece-se uma quantidade de pormeno- res © particularidades cuja significagio e importancia nem sem- pre éle pode avaliar, desde logo. So elementos que Ihe sus tam presseatimentos que o curso ulterior da narracio poderd confirmar ou dissipar. Mas 0 leitor ¢ guiado pelo autor através da variedade © multiplicidade de aspectos do entrecho, e 0 au- tor, na sua onisciéncia, conhece o significado especial de cada articularidade, por menor que seja, sua ligacdo & solugéo defi- nitiva, sua conexéo com o desenvolvimento conclusivo dos ca~ racteres, e 86 Ihe interessam as particularidades que podem se vir para a realizagdo da trama e para 0 desdobramento da ago no sentido de suas conclusdes finais. A onisciéneia do autor d4 seguranca a0 leitor e permite que éste se instale familiarmente no mundo da poesia, Mesmo nao sabendo antecipadamente 0 que aconteceré, 0 leitor pode pressentir com suficiente acuidade ‘© caminho para o qual tendem os acontecimentos em decorrén~ cia da/légica interna'e da necessidade interior existente no de- senvolvimento dos personagens. De fato, 0 leitor nfo sabe tudo a respeito da agdo, seu andamento, a respeito da evolugdo a ser 63 softida pelos personagens; em geral, contudo, sabe m: ‘05 prOprios personagens. No curso da narragio, e na medida em que os seus mo- mentos essenciais vao sendo revelados, é verdade que as par- ticularidades assumem uma nova luz. Quando Tolstoi, por exem- plo, na novela Depois do Baile, fala do pai da mulher amada pelo protagonista principal da histéria ¢ atribui 20 velho um comovente espirito de abnegacdo pela filha, 0 leitor sente o fas- cinio da narracao sem captar-Ihe tOda a significacdo. S6 depois da narragéo do castigo militar, em que 0 mesmo pai amoroso aparece investido das fungdes ‘de carrasco impiedoso, é que a lensio se desvenda completamente. A grandeza da arte épica de Tolstoi consiste precisamente no fato de que éle sabe manter a unidade na tensio e nao faz com que o velho oficial aparega desde logo como um mero “produto” bestial do tzarismo, mos- trando, a0 contrério, de que modo o tzarismo “bestializou” um homem bom, abnegado, capaz. de altrufsmo em sua vida privada, de que modo éste homem chegou a se fazer 0 executor passivo (€ até zeloso) de agées bestiais. Torna-se claro que todos os matizes ¢ t6das as nuances do baile 6 podiam ser selecionadas e descrtas a partir do ponto de vista alcangado com a cena da puni- clo. O observador “contemporaneo”, que nfo narrasse 0 baile retrospectivamente, a partir daquele’ ponto de vista alcancado por um evento ulterior, tetia visto e descrito necessariamente Particularidades bem diversas, mais superficiais e menos essen- ciais. do que © costume de se afastar dos acontecimentos, que permite exprimir uma selecdo dos elementos essenciais ja operada pela praxis humana, pode ser encontrado nos auténticos narradores ‘até mesmo nos casos em que éles adotam a forma da narragio na primeira pessoa, isto é, quando fazem supor que o narrador seja um personagem da propria obra. Este € exatamente 0 caso da novela tolstoiana ora recordada, Se tomarmos, inclusive, 0 caso de um romance narrado em forma de diétio — como o Werther de Goethe — poderemos, ainda, obscrvar que os epi- s6dios singulares so colhidos no passado ¢ enfocados de uma certa (conquanto pequena) distancia, a qual propicia a neces- sétia seleco dos elementos essenciais na influéncia dos siconte- cimentos ¢ dos séres humanos sébre o proprio Werther. 64 S6 assim as figuras do romance adquirem contornos cla- ros ¢ definidos, sem todavia perderem a capacidade de se tran formar. $6 assim a transformagio dos personagens se realiza sempre de maneira a fazé-los alcangar um enriquecimento hu- mano, de modo a fazer com que seus contornos encerrem uma vida mais intensa. A preocupacio central da leitura de um ro- manee é aquela que nos leva a uma espera impaciente da evo- ugdo dos personagens com que nos familiarizamos, a uma es- pera do éxito ou do fracasso déles. £ por isso que na grande arte épica o fim até pode ser antecipado desde 0 principio. Basta pensar nos exérdios dos poemas homéricos que résumem com brevidade 0 contetido © a conelusao da narragéo. ‘Como se explica, entio, que a tensfo continue a reinar? A tensio nao consiste, sem divida, na cutiosidade estética de ‘ver como o pocta se desincumbiré da tarefa prefixada. Con- siste, isso sim, naquela curiosidade bem humana de saber que inicitivas deveré tomar Ulisses e que obstaculos deverd ainda superar para chegar a uma meta que jé conhecemos. Também na novela de Tolstoi ha pouco referida, 0 leitor sabe com antece- déncia que © amor do narrador nfo o levaré ao casamento. A tensio nio reside, pois, no desejo de saber 0 que acontecera afi- nal com éste amor, ¢ sim no desejo de saber como chegou a se formar aquéle espirito de irdnica e madura superioridade, que ji se f@z notar como caracteristico do personage que narra os eontecimentos. A tensio propria da obra de arte verdadeira- mente épica concerne sempre — por conseguinte — a destinos hhumanos. ‘A descrigo torna presentes tédas as coisas. Contam-se, narram-se acontecimentos transcorridos; mas s6 se descreve aquilo que se vé, ¢ a “presenca” espacial confere aos homens © as coisas também uma “presenga” temporal. Tal presenga, contudo, é uma presenca equivocada, nao é a presenca imediata da ago, que & propria do drama. A grande narrativa moderna cchegou 20 ponto de tecer 0 elemento dramético na forma do romance precisamente através da transformagio de todos os acontecimentos em acontecimentos do passado. A presenga oca- sionada pela descricéo do observador, ao contririo, € 0 pr6- prio antfpoda do elemento dramético. Descrevem-se situagées s, iméveis, descrevem-se estados de alma dos homens ou 65 estados de fato das coisas. D se estadas do spi estas de fata eserevem-se estados de espirito ou Desta forma a representago degencra em esb er de o princfpio natural da solegho pica, Um dado estado” de Animo é, em si mesmo — se ndo esti ligado as ages essenciais de um homem —, to importante ou irrelevante como qualquer outro. E essa equivaléncia ainda € mais nitida quando se trata de objetos. Em uma narragio € lgico que se fale apenas daque- les aspectos de uma coisa que so importantes para as fung5és gue a coisa assume no ato humano conereto em que figura, T6- das as cols apresentam em si mesmas uma infinidade de que- ldades. Se o escritor que se limita a descrever aquilo que vai observando tem a ambigio de reproduzir de modo completo a presenga objetiva da coisa, dois caminhos Ihe esto ao aleance: 1) ow renuncia de todo a qualquer principio seletivo e se dedi- c2 a0 trabalho de Sisifo de exprimir em palavras um némero intinto de qualidade; 2) ou, entio, i prferéncia aos aspctos is esponténeamente adaptados & descricé i perficiais da coisa. ee * De qualquer modo, o fato de se perder a liga i da nacraio) entre as Colas © fancho que els sun em coneretos acontecimentos humanos implica na perda de signifi- cago artistica das coisas. As coisas s6 podem adquirir um sig: nificado quando, nessas condigées, vém ligadas a uma idéia abs- trata que o autor considera essencial & sua propria visio do mundo. Com isso, nfo se pode dizer que a coisa assuma uma verdadsta significago podtica, ainda que se imapne estar a rir-lhe tal significago, pois 0 que ocorre é i seteré ransformado emainbolo, Daf decorre claramente que os problemas estético - ae ens Mas a perda da significacio intima das coisas, € por co seguinte do ‘ordenamento e da sclegdo épica, nfo se limita 20 nivelamento indiferenciado € nem A transformagio do reflexo da vida em natureza morta. A representacio e caracterizacio dos homens e objetos de acbrdo com a experiéneia sensivel ime- liata € uma operacio que possui a sua propria logics - db Sen, eapectcn Ge Win os sotto e wears Tia com: segue mesmo alguma coisa de pior que o mero nivelamento, isto 6 consegue uma ordenacio hierérquica as avessas. Tal conse~ 66 aligncia esté implicita no método deseritivo, pois para provocé-la Basta o fato de descrever com a mesma insisténcia os elementos jmportantes ¢ os elementos inessenciais, que permite uma inversfio de sentido e a passagem do segundo ao primeiro plano. Em muitos escritores, essa caracteristica vem unida 2 uma forma apagada, que dilui téda significacio humana. 'Em um ensaio cheio de feroz ironia, Friedrich Hebbel ana- lisa um representante tipico dessa descrigéo por esbogos: Adal- bert Stifter, que se tornou, gracas A publicidade feita por Nietzs- che, um clissico da reacio alema. Hebbel mostra como em Stif- ter se diluem e desaparecem os grandes problemas da humani- dade, com as particularidades “amorosamente” delineadas se~ pultando o essencial: “Assim como a folhagem parece muito Inais imponente se 0 pintor descuida da arvore, assim como a Arvore aparece mais quando st suprime 0 bosque, aqui explode tum regozijo geral: artistas cujas fOrcas mal chegam para captar a vida mitida da natureza, e que evitam por instinto metas mais ambiciosas, passam a ser louvados ¢ exaltados, sio postos até fcima de outros que nao descrevem a danca dos mosquitos tni- Camente pelo fato de que ela nio scja visivel ao lado da danca Gos planétas. Agora, comeca a florescer por téda parte o inci- Gemal eo acess6rio: a lama das botas que Napoledo usava wo momento da sua derrota é descrita com o mesmo treme- Dando eserapulo com que se descreve 0 conflito abatide sobre fo vulto do heréi... Em suma, é a virgula que vestiu casaca €, do alto do seu complacente orgulho, concede um sorriso & pro- posicéo —- sem a qual, entretanto, cla (virgula) nfo existiria” ‘Hebbel discerne aqui, agudamente, o outro perigo fund mental que & imanente A descricé0: 0 perigo de que as pa ularidades se tornem aut6nomas, ‘Com a perda da verdadeira arte de contar, as particularidades deixam de ser portadoras de Tnomentos conerctos da ago, os pormenores adquirem um sig- nificado que nao depende mais da ago ou do destino dos ho- mens que agem. Com isso, perde-se t8da e qualquer ligacdo tistica ‘com o conjunto da composiéo.-A falsa contemporanci- dade, que € propria da descricdo se manifesta, assim, na desit- tegragdo da composigéo em momentos desligados e autGnomos. Nietzsche, que observava com lho arguto os sintomas da deca- déncia na arte e na vida, pOe a nu éste processo, mostrando- The as conseqiiéncias estiisticas até em uma nica frase. Diz o7 éle: “A palavra torna-se soberana e salta fora da frase; a frase sai dos seus limites € obscurece o sentido da pagina, a pagina adquire vida as expensas do conjunto — ¢ © conjunto néo & mais um conjunto. Esta imagem, entretanto, vale apenas para 6 estilos decadentes. A vivacidade, a vibragao © a exuberdncia da vida se refugiam em estruturas menores, a0 passo que 0 resto fica pobre de vida. O conjunto jé néo € mais vivo, € um con- junto composto, artificial, um artefato”. A autonomia dos pormenores tem efeitos bastante diver- sos, se bem que igualmente deletérios, sObre a representagao da vencia dos acontecimentos pelos homens. Os escritores ‘se ¢s- forgam por descrever do modo mais completo, mais plistico e mais pitoresco possivel, as particularidades da vida, logrando excepcional perfeigio artistica no seu trabalho. Mas a descricao das coisas nada mais tem a ver com os acontecimentos da evo- lugio dos personagens. Endo s6 as coisas sdo descritas inde pendentemente das experiéncias humanas, assumindo um signi- ficado auténomo que no Ihes caberia no conjunto do romance, como também o modo pelo qual séo descritas conduz a uma espera completamente diversa daquela das agdes dos persona- gens. Quanto mais os escritores aderem 20 naturalismo, tanto mais se esforcam por representar apenas homens medfocres, atribuindo-lhes sdmente idéias, sentimentos e palavras da reali- dade cotidiana superficial, de’ modo que o contraste se torna cada vez mais estridente.” No didlogo, 0 que se encontra é a rosa cha e drida do dia a dia da vida burguesa; na descriglo, €0 virtuosismo de uma arte refinada, de laboratério, déste mo- do os homens representados no podem mesmo ter relagio al- guma com os objetos descritos. E, quando se institui uma relagao & base da descrigio, © negécio ainda se tora mais grave. O autor, entio, estard des- crevendo do ponto de vista da psicologia dos seus personagens Mesmo prescindindo completamente do fato de que é impossi- vel desenvolver tal representacao de modo conseqiiente (a nfo ser na forma de um romance escrito na primeira pessoa © mat- cado por um subjetivismo extremo), ésse tipo de relacio des- {Gi qualquer possibilidade de se obter uma composicéo artis- tica. O ponto de observagao do autor se desloca continuamente de um lugar para outro e esta variacio permanente de perspec- tiva gera um festival de fogos fatuos. O autor perde a clarivi- 68 déncia © a onisciéncia que distinguem o antigo narrador. O. {autor se pée intencionalmente no nivel dos scus personagens. Passa a saber da situagdo déstes apenas aquilo que eles mes- Pas aber eu ss pet 00 at do método descritivo transforma 0 romance em um rutilante caos ‘passa © hilito sem vida de um fugaz estado de nimo. A cor ts: spac ds oe ore SN ea ae narrativa, a série temporal dos acontecimentos € recriada artis- ‘© proprio escritor que, na sua narragdo precisa ‘mover-se on [A desctigio rebaixa 05 homens 20 nivel das coisas inani- madas, Perde-se nela o fundamento da composi¢io épica: 0 es- Tritor que segue o método descritive comple base do movi- Snento das coisas. J4 vimos como Zola representa © modo pelo Gqual um escritor deve tratar um tema, O verdadeiro centro dos Scus romances & um complexo de coisas: o dinheiro, a mina, tlc. Tal método de composigéo tem como efeito o tornar 05 Giversos ¢ determinados aspectos objetivos do complexo de coi- sas em partes individualizadas dentro do romance. Vimos como om Nand 0 teatro vem descrito: em um capitulo, visto da pla- tdia; em outro, visto dos bastidores. A. vida dos homens, 0 des~ fino dos protagonistas constituem apenas um ténue fio, neces- oo sitio para ligar éstes quadros, objetivamente acabados em si mesmos, ‘A essa falsa objetividade corresponde uma subjetividade igualmente falsa. Do ponto de vista da conexio épica, ‘nko hé por que erigir em principio bésico da composiggo a sim ples sucesso dos acontecimentos de uma vida, nio ha por que ‘construir 0 romance com base em uma subjetividade isolada, lit ‘camente concebida, a de um personagem entregue apenas’ a si mesmo. A sucesso de impress6es subjetivas 6 to pouco sufi ciente para fornecer a conexio épica como a sucessio de com- plexos de coisas fetichizadas (ainda que se tente transformar tais coisas em s{mbolos). Em ambos os casos, teremos sempre quadros que s¢ colo- cam uns ao lado dos outros, mas que se mantém isolados, do Pontos de vista artistico, tal’ como os quadros de um museu. Quando os homens ndo se acham em relagées mituas, contra- itérias, uns com os outros, quando os homens néo sao subme- tidos & prova da efetiva aco, tudo na composigio épica fica abandonado 20 arbitrio e ao acaso. Nenhuma psicologia, por mais refinada que seja, ¢ nenhuma sociologia, por mais preten- s®es de pseudociéncia que apresente, podem instituir dentro désse caos uma auténtica conexio épica, nivelamento determinado pelo método descritivo faz. com que nos romances tudo assuma um caréter episédico. Muitos eseritores modemos olham com superior desprézo para os mé- todos antiquados ¢ complicados com os quais os velhos roman- cistas desenvolviam 0s scus enredos ¢ institufam entre os scus Personagens ligagoes intrincadas ¢ contraditérias, das quais re- sultava a composigéo épica. Sinclair Lewis compara, a propésito, (© método de composicéo de Dickens e 0 de Dos Passos: “O método cléssico, oh sim, era armado de maneira um bocado cansatival Por uma malfadada coincidéncia, o senhor Jones ti- nha de viajar exatamente na mesma diligéncia que 0 senhor Smith, ¢ isso para que chegasse a ocorrer alguma coisa de dolo- 1050 ou de divertido. Em Manhattan Transfer, os. personagens runca se encontram ou, quando 0 fazem, o encontro acontece do modo mais natural do mundo”. © “modo mais natural do mundo” é, aqui, precisamente aquéle pelo o qual os homens no estabelecem ‘relagdes entre ales, ou 86 estabelecem relagies do tipo fugez superficial, que 70 aparecem de improviso ¢ de improviso desaparecem. O destino pessoal dos homens perde o interésse, por nao chegarmos a co- hecé-los realmente; os homens nfo’ participam ativamente da cdo, apenas passciam, agitados por pensamentos diversos, sObre © fundo objetivo das’ descrigdes que constituem o romance. Tsso tudo é, sem divida, muito “natural”. Porém a ques- tio € a de se saber o que é que resulta disso para a arte da nar- ago, considerada em suas finalidades. Dos Passos possui um talento incomum ¢ Sinclair Lewis € um cscritor notével. Por isso mesmo, assume grande interésse a afirmagéo de Lewis a propésito dos personagens de Dickens ¢ dos personagens de Dos Passos: “E certo que Dos Passos jamais criou ¢ jamais conse- guiré criar personagens duradouros como Pickwick, Oliver, ‘Micawber, Nancy, David e sua tia, Nicholas, Smike e pelo me- nos uns outros quarenta”. a Esta € vina confssio preciosa, que revela extraorinéia sinceridade, E, se Sinclair Lewis tem razio (e, com t8da a cer- teza, éle a tem), qual € afinal 0 valor artistico do “modo mais natural do mundo” de ligar os personagens? v Ba vida profunda das coisas? A poesia das coisas? A ver- dade poética dessas descrighes? Objecdes. semelhantes a estas podem impressionar os admiradores do método naturalista, © Para responder a elas, ainda uma vez nos reportaremos 20s problemas fundameniais da arte épica. © que € que torna poé- ticas as coisas na poesia épica? Seré exato que 6 a descri¢éo técnicamente perfeita, desenvolvida com 0 maximo virtuosismo, de todos os pormenores do teatro, do mercado, da bélsa ¢ dé outros ambientes, que fornece a poesia peculiar as coisas? Per~ mitam-nos que duvidemos. O paleo @ orquestra, os camarins © os bastidores so, cm si mesmos, objetos inanimados, sem in- terésse e sem poesia. Continuam a sé-lo ainda quando se en- chem de séres humanos e s6 com 0s acontecimentos nos quais se realizam as experiéncias da evolugdo déstes homens é que éles adguirem a capacidade de provocar em nds emogies posticas, © teatro € a bolsa de val6res sf0 pontos nodais no eruzamento das mais diversas aspiragbes humanas: so cenérios, campos de batalha nos quais se manifestam as contraditérias relagdes mé- tuas que vinculam os destinos humanos uns aos outros. Sé na 7 ‘medida em que fornecem a indispensével_mediagio conereta para a manifestacdo de relagées inter-humanas coneretas é que © teatro e a bélsa adquirem valor poético, tornam-se poéticos. De fato, néo existe na literatura uma “poesia das coisas” inde- pendente dos acontecimentos ¢ experiéncias da vida humana 1Iss0, contudo, nfo basta. E mais do que duvidoso que a tio propalads “plenitude” de descrigo, a verdade dos pormeno- res, seja capaz de dar ao menos uma idéia geral eficaz do obje- to descrito. Qualquer coisa que tenha uma fungio efetiva na acdo de um homem (¢ desde que tal ago nos desperte um in- terésse poético) s6 se torna podticamente significativa por f6rca do seu nexo com a ago narrada de modo apropriado. Basta Tembrar 0 efeito altamente poético dos utensflios salvados do naufrégio em Robinson Crusoé. #0 contrario se infere de qualquer das descrigées de Zola. ‘Tomemos, por exemplo, um quadro de Nand, fixando © que se passa nos bastidores: “Um telio estava sendo baixado, Prepa- rava-se 0 cenério do terceiro ato, a caverna do Etna. Alguns hhomens colocavam mastros nos encaixes, outros iam buscar grossas cordas para amarré-las nos mastros. Ao fundo, para produzir a chama que deveria brotar da forja de Vuleano, um ‘écnico colocava um lampadério provido de globos vermelhos © acendia-os. Era uma confusfo, uma aparéncia de atropélo, na qual, entretanto, os menores movimentos estavam calculados. E, no meio da barafunda, o ponto, para desentorpecer as pernas, asseava a passos curlos” A. que pode servir semelhante descrigio? Quem nfo co- hece o teatro no poderé, com base nela formar uma idéia exa- ta da cena. E aquele que conhece a técnica de encenagio tea- tral ela no diz nada de ndvo. Do ponto de vista poético, a des- crigio € ubsolutamente supérflua. A aspiragio & maxima “yerdade” objetiva implica em uma tendéncia bastante perigosa para o romance. Nao € preciso en- tender de eavalos para reviver o drama da corrida de Wronski. As descrigdes dos naturalistas, entretanto, aspiram, na termino- logia détes, a uma sempre maior precisdo técnica, com a utili- ago da linguagem técnica apropriada a0 campo de que se tra- ta. Assim, a oficina ou 0 atelier s20 descritos, © mais possivel, com o vocabulério do operirio metalirgico & do pintor. Dai resulta uma literatura para o especialista, ou uma literatura para 2 aquéles que se agradam dessa cansativa aquisicdo literdria de conhecimentos téenicos, désse enxério na literatura de expres- ses provenientes de um jargdo especializado, Os Goncourt exprimiram tal tendéncia da mancira mais precisa e paradoxal quando escreveram: “Ai daqueles produtos artisticos cuja beleca s6 existe para os artistas... Esta é uma {das maiores besteiras que jé chegaram a ser ditas, Quem a disse foi d'Alembert”. Combatendo a profunda verdade enunciada pelo grande iluminista, eis que 0s corifeus do naturalismo ade- tem irrestritamente @ teoria da arte pela arte. ‘As coisas s6 tém vida poética enquanto relacionadas com acontecimentos de destinos humanos. Por isso, 0 verdadeiro narrador épico nao as desereve e sim conta a fungéo que elas assumem nas vidas humanas, Trata-se de um cinone funda- mental da poesia, j4 claramente reconhecido por Lessing: “Con- sidero que Homero nada pinta que ndo sejam agoes em desen- volvimento, e todos os corpos, tdas as coisas singulares que éle Pinta s6 sto fixadas pela patticipagio que tém nessas agoes”. Lessing prova tal assertiva de modo convincente, aduzindo um exemplo homérico tio significative que julgamos conveniente transcrever todo 0 trecho do seu Laocoon. Trata-se da representagio do cetro de Agaménon ¢ do ce- tro de Aquiles: “...se devemos ter uma imagem mais precisa déste cotto, entio, 0 que é que faz Homero? Pinta, acaso, além das incrustragSes de ouro, a madeira, as partes esculpidas? Fé- lo-ia, se a descrigéo devesse servir para fins heréldicos, para que um dia no futuro um outro cetro pudesse ser feito & base do ‘mesmo modélo (ai esta a critica antecipada da “preciso” pre~ conizada pelos Goncourt ¢ por Zola — G.L.). No entanto, es- tou seguro de que muitos poetas modernos teriam feito tal des- crigio heraldiea, na ingénua convicgdo de terem pintado 0 ce- trode modo a permitir que um pintor pudesse imitar tal pin- tura. Que importa, porém, a Homero 0 nfo equivaler a um pin- tor, o ficar abaixo déste na pintura? Ao invés de uma reprodu- Jo da imagem do cetro, Homero nos conta a histéria déle. Primeito, foi trabathado por Vulcano; depois, brilhou nas mfos de Jdpiter, veio a simbolizar a dignidade funcional de Meredrio, veio a ser 0 bastio de comando do guerreiro Pelope, veio a ser © bordio pastoral do pacifico Atrev. (...) Também quando Aquiles jura pelo seu cetro que se vingaré do desprézo com 73 que fora tratado por Agaménon, Homero nos conta a hist6ria déste outro cetro. Nés o vemos verdejar no monte, ser separado do tronco, desfolhado, polido, adaptado e pésto ao servigo dos jutzes do povo como sinal da dignidade divina do cargo. (...) ‘A Homgro nfo importava tanto dar uma descrgio dos dois cetros dé diferentes matérias e diversas aparéncias quanto dar ‘uma imagem sensivel da diversidade de podéres que tais cetros simbolizavam. Um era trabalho de Vulcano, o outro fora talha- do por mio desconhecida nas montanhas; um era antiga pro- priedade de uma casa nobre, 0 outro estava destinado & pric meira mio que o empunhasse; um brandido por mao sobreposta 42 muitas ilhas e dominando téda Argos, 0 outro levado por um grego entre muitos, um grego obrigado A observincia das leis como todos os outrosSsEssa era, na realidade, a distancia entre Agaménon ¢ Aquiles, uma distancia que 0 proprio Aquiles, com téda a sua coga ira, no podia deixar de reconhecer”, ‘Temos af uma exposi¢ao precisa daquilo que na poesia épica torna as coisas verdadeiramente vivas e posticas. E, se pensamos nos exemplos anteriormente tirados as obras de Wal- ter Scott, Balzac, Tolstoi, devemos constatar que éstes autores escreveram, mutatis mutandis, com base no mesmo princfpio de Homero que Lessing analisou. (E dizemos mutatis mutandis porque j4 indicamos que a maior complexidade das relagdes so- ais implica na aplicagéo de novos meios para a nova poesia). Bem diversas tornam-se as coisas onde predomina o mé- todo descritivo e onde a poesia se compromete em uma vi com- peticlo, com as artes figurativas. Aplicado & representagio do homem, o método descritivo s6 pode transformar o homem em natureza morta, ‘S6 a pintura prdpriamente dita, a auténtica pintura, possui fos _meios para fazer com que as’ modalidades corporais do homem se tornem expressies imediatas das qualidades mais, profundas do seu cardter. E nfo é certamente por acsso que, zna mesma época em que as tendéncias pictério-

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