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A VERDADE E A FICGAO EM UM HISTORIADOR EXPOE TUDO O QUE SOBRE JESUS, MARIA MADALENA E CONSTANTINO CIP-Brasil. Catalogagdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Ehrman, Bart D. E32v A verdade e a ficgao em O Cédigo Da Vinci / Bart D. Ehrman; tradugdo Clévis Marques. — Rio de Janeiro: Record, 2005. Tradugdo de: Truth and fiction in The Da Vinci Code ISBN 85-01-07360-1 1. Brown, Dan, 1964-. O Cédigo Da Vinci. 2. Constantino I, Imperador de Roma, m. 337 na literatura. 3. Constantino I, Imperador de Roma, m. 337 — Religiao. 4. Maria Madalena, Santa na literatura. 5. Jesus Cristo na literatura. 6. Cristianismo e literatura. 7. Cristianismo na literatura. I. Titulo. 05-3017 CDD - 813 CDU — 821.111(73)-3 Titulo original em inglés: TRUTH AND FICTION IN THE DA VINCI CODE Copyright © Oxford University Press, 2004 Publicado em acordo com a Oxford University Press. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodug4o, armazenamento ou transmissao de partes deste livro através de quaisquer meios, sem prévia autorizacdo por escrito. Proibida a venda desta edigio em Portugal e resto da Europa. Direitos exclusivos de publicagao em lingua portuguesa para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina, 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literaria desta tradugado This translations of Truth and Fiction in the Da Vinci Code, originally published in English in 2004, is published by arrangement with Oxford University Press, Inc. Impresso no Brasil ISBN 85-01-07360-1 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ -20922-970 8 SUMARIO Parte II: Jesus e Maria Madalena 5. As fontes histéricas sobre Jesus 133 6. O Jesus histérico de nossas fontes 157 7. Jesus, Maria Madalenae casamento 181 8. O feminino nos primérdios do cristianismo 205 Epilogo 231 Notas 239 Indice 247 Agradecimentos Gostaria de agradecer a duas pessoas pela ajuda na redacao deste livro. A primeira é meu amigo e editor na Oxford University Press, Robert Miller, que teve a idéia, convenceu-me a p6-la em pratica e leu o manuscrito com cuidadosa aten¢io para com detalhes. A outra € meu ex-aluno Andrew Jacobs, na Universi- dade da California, em Riverside, cujos pertinentes e minucio- sos comentarios a partir de uma redagio inicial do livro em muito suiperaram © que se poderia esperar da amizade e do coleguismo. Introduca4o O Cédigo Da Vinci, de Dan Brown, é um enorme sucesso edito- tial, deixando muito para tras quaisquer outros concorrentes em memoria recente. No momento em que escrevo (14 de junho de 2004), o livro esta ha sessenta e trés semanas na lista de best sellers do New York Times, que continua liderando. No inicio do ano, suas vendas chegavam ao ritmo astronédmico de 100.000 exemplares por semana, de acordo com a edicio de 9 de feverei- ro de 2004 da revista Publishers Weekly. Quando sair a edigio em brochura, cabe esperar mais uma gigantesca avalanche de ven- das, ultrapassando os muitos milhdes de exemplares j4 impressos da versio em capa dura. Como tantas outras pessoas, minha primeira informagao a respeito de O Cédigo Da Vinci foi através de comentarios de amigos e conhecidos. Eu acabara de escrever um livro intitulado Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew [Cristandades perdidas: as batalhas pelas escrituras e os credos que nunca conhecemos] para a Oxford University Press. 12 AVERDADE E A FICCAO EM O CODIGO DAVINCI O livro tratava das diferentes formas do cristianismo primitivo que nunca chegaram “1a”, crengas e praticas cristés que seriam descartadas, proibidas e destruidas pelos dirigentes da Igreja pri- mitiva, empenhados em estabelecer formas ortodoxas de com- preensao da religido. Havia em meu livro extensos debates a respeito de alguns dos livros apdécrifos e heréticos que seriam proibidos pelos fundadores da Igreja primitiva. Eram os outros evangelhos, epistolas e apocalipses que tinham valor de escritu- ra sagrada para este ou aquele grupo cristio, mas cairam no de- sagrado das autoridades que tomariam as decisGes sobre o que deveria ser incluido no cénone das Escrituras, e o que deveria ser excluido. Em conseqiiéncia de sua exclusao, esses livros aca- baram sendo perdidos — e nessa condi¢gao ainda hoje se encon- tram muitos deles, com a excecio de uns poucos que foram surgindo aqui e ali, muitas vezes em importantes descobertas arqueoldgicas dos séculos XIX e XX. Além de meu livro Lost Christianities, publiquei uma coleta- nea desses chamados livros heréticos que sobreviveram, num volume intitulado Lost Scriptures: Books That Did Not Make It into the New Testament [Escrituras perdidas: livros que nao foram in- tegrados ao Novo Testamento] (igualmente publicada pela Oxford University Press). Nenhum desses dois livros foi escrito para especialistas familiarizados com essas questGes, mas para leigos, para os quais constituem novidade. Naturalmente, quando fiquei sabendo da existéncia de O Cédigo Da Vinci, minha curiosidade foi despertada, pois se trata- va de uma obra de fic¢ao moderna — uma historia de suspense e assassinato, cheia de complicados enredos e subenredos, complés e revelagGes — que mencionava algumas dessas questdes ligadas ao cristianismo primitivo, aos evangelhos perdidos e 4 maneira INTRODUCAO 13 como apresentavam Jesus, em certa medida chegando a se ba- sear nelas. Segundo O Cédigo Da Vinci, no entanto, esses evan- gelhos perdidos nao representam um visio herética de Jesus, antes apresentando a verdade histérica a seu respeito — sobretudo, que era casado com Maria Madalena e que tiveram um filho, dando assim inicio a uma linhagem sagrada ainda hoje viva. Eu sabia, naturalmente, que se tratava de um livro de fic¢do, mas 4 medida que o fui lendo (parecendo impossivel larga-lo, como para tantas outras pessoas) dei-me conta de que os perso- nagens de Dan Brown faziam na realidade afirmagées histéricas sobre Jesus, Maria e os evangelhos. Em outras palavras, a ficgao era erguida sobre alicerces histéricos que o leitor era convidado a encarar como factuais, e nao ficticios. Todavia, como muitos historiadores que passaram a vida es- tudando as fontes antigas a respeito de Jesus e do cristianismo primitivo, imediatamente comecei a encontrar problemas en- volvendo as alegacédes histéricas feitas no livro. Havia numero- sos erros, alguns deles verdadeiros disparates, que nao s6 pareciam ébvios a um especialista como eram desnecessdrios para a cons- trugao do enredo. Se o autor simplesmente se tivesse dado ao trabalho de pesquisar um pouco mais, teria podido apresentar adequadamente o contexto histérico de seu relato, sem com- prometer a histéria que queria contar. Por que entao nao tera pura e simplesmente conferido os fatos? Como O Cédigo Da Vinci ja estava vendendo muito quando meu livro Lost Christianities foi langado, minha relagdes-publicas na Oxford University Press, Tara Kennedy, e meu velho amigo e editor Robert Miller sugeriram que eu fizesse uma relagao dos problemas histéricos encontrados no livro, para que pudesse ser apresentada pelo pessoal do marketing a quem se interessasse.Tra- 14 AVERDADE E A FICCAO EM © CODIGO DAVINCI tei entao de juntar apressadamente algumas idéias, a partir de uma simples leitura do romance de Dan Brown. Esta lista sumdria aca- baria na Internet e viria a ser incluida (com minha autorizacio, mas sem que eu pudesse trabalh4-la editorialmente) num dos li- vros recentemente publicados a respeito de O Cédigo Da Vinci, editado por Dan Burstein com o titulo Secrets of the Code: The Unauthorized Guide to the Mysteries Behind The Da Vinci Code [Se- gredos do Cédigo: guia nio-autorizado sobre os mistérios por tras de O Cédigo Da Vinci]. Burstein é um jornalista freelance que fez uma compila¢ao das mais interessantes, reunindo a respeito de O Cédigo Da Vinci opinides de especialistas (e leigos) numa s€rie de campos do conhecimento, da histéria antiga da Igreja (o meu campo) a Leonardo da Vinci, passando pelas sociedades secretas de catélicos romanos. Ele incluia a lista simples de dez problemas hist6ricos que eu elaborara para meu editor. Ei-la aqui, tal como foi apresentada originalmente: Alguns erros factuais em O Cédigo Da Vinci 1. A vida de Jesus decididamente nao foi “registrada por milhares de seguidores em toda a regiao”. Ele sequer podia contar milhares de seguidores, muito menos alfa- betizados (p. 220). 2. Nao é verdade que oitenta evangelhos tenham sido “es- tudados para compor o Novo Testamento” (p. 220). Fica parecendo que houve um concurso, sendo os evange- lhos enviados por correio... 3. Nao é verdade, de jeito nenhum, que Jesus nao tenha sido considerado divino até o Concilio de Nicéia e que até entao fosse considerado apenas “um profeta mortal” INTRODUGAO 15 (p. 221).A enorme maioria dos cristaos j4 o considerava divino no inicio do século IV. (Havia inclusive quem pen- sasse que ele era tao divino que sequer seria humano!) . Constantino ndo encomendou uma “Biblia novinha em folha” que omitisse qualquer referéncia 4s caracteristi- cas humanas de Jesus (p.222). Para come¢o de conversa, ele jamais mandou fazer uma nova Biblia. Além disso, os livros que efetivamente chegaram a ser incluidos es- tio recheados de referéncias a suas caracteristicas huma- nas (ele sente fome, fica cansado e com raiva; fica indignado; sangra, morre...). . Os Manuscritos do Mar Morto nio foram “encontra- dos na década de 1950” (p, 223). A descoberta deu-se em 1947. E os documentos de Nag Hammadi ndo con- tam em absoluto a histéria do Graal, tampouco enfa- tizando caracteristicas humanas de Jesus. Muito pelo contrario. O “decoro social” judaico de modo algum proibia que “um judeu fosse solteiro” (p. 232). Na realidade, a maior parte dos membros da comunidade a que se referem os Manuscritos do Mar Morto eram celibatarios. Os Manuscritos do Mar Morto nio sao “os mais anti- gos registros cristdos” (p. 233). Sao judaicos, nada tendo de cristdos. Nao temos qualquer informagio sobre a ascendéncia de Maria Madalena; nada existe que possa vincula-la a “casa de Benjamim”, e ainda que houvesse este vinculo, nem por isso ela seria uma descendente de Davi (p. 236). Maria Madalena estava gravida no momento da crucifi- cacao? Essa é muito boa (p, 241). INTRODUCAO 19 que tenta explicar o contexto histérico do mistério. O Graal nao € o calice de Cristo, mas o recipiente que continha sua se- mente — trata-se na realidade de uma pessoa, Maria Madalena, mulher e amante de Jesus, de quem estava gravida e a quem daria uma filha. Depois da crucificagao, Maria e a filha fugiram para a Franga, de onde a linha ancestral divina de Cristo teve prosse- guimento através dos tempos. Foram preservados documentos secretos sobre a existéncia dessa descendéncia de sangue de Cristo. Esses documentos ce- lebram o principio feminino nos primeiros tempos do cristia- nismo, incluindo alguns evangelhos primitivos que seriam proibidos pelo cristianismo no século IV, especificamente pelo imperador Constantino. Constantino destruiu os mais de oitenta evangelhos que supostamente poderiam ser integrados ao Novo Testamento, elevou Jesus da condi¢4o de simples mortal 4 de Filho de Deus e calou completamente a tradi¢ao sobre Maria e o di- vino feminino, demonizando o feminino no cristianismo e des- truindo sua verdadeira natureza de celebracio da deidade feminina. Mas ha séculos a verdade sobre Jesus e Maria é conhecida do Priorado de Sido, que ha muito promove reunides secretas para celebrar essa unido sagrada e adorar o divino feminino. Esta sociedade secreta, da qual Jacques Sauniére fora o mais recente diretor, mantém o timulo de Maria Madalena e as centenas de documentos que contavam a verdade sobre o divino feminino. Outras pessoas famosas haviam dirigido o Priorado de Sido e celebrado a verdade do casamento de Jesus e Maria — entre elas, particularmente, Leonardo da Vinci, que retratou Maria Madalena em seu famoso afresco A siltima ceia, fornecendo indi- cag6es da verdade sobre Jesus e Maria em muitas de suas outras INTRODUCAO 23 apenas encher um tanque de 4gua morna e comegar a jogar as barras de ferro e de sabao. Invariavelmente, o ferro afundara e o sabao flutuara. Estabelece-se assim uma espécie de probabilidade antecipatoria que consideramos como uma prova — a saber, se fizermos a mesma Coisa Outra vez, obteremos o mesmo resultado. A hist6éria nao € assim porque os acontecimentos do passa- do nunca podem ser repetidos. Desse modo, para estabelecer os niveis de probabilidade, é necessario utilizar outros tipos de “pro- vas”, diferentes das obtidas em experiéncias repetidas e contro- ladas. E o fato é que, tal como a ciéncia, toda histéria € uma questao de probabilidades. Certas coisas sao praticamente certas (os Aliados efetivamente venceram a Segunda Guerra Mundial). Outras sao altamente provaveis, mas nao tao certas (George Washington usaria dentadura). Outras coisas sio ainda menos certas, mas ainda assim provaveis (César teria cruzado o Rubicio). E no entanto, outras ainda sao auténticos pontos de interroga- ¢4o (teria sido Maria Madalena companheira intima de Jesus?). Que sera que torna certas coisas mais certas ou pelo menos mais provaveis que outras? Invariavelmente, é a natureza da com- prova¢ao. Dispomos de milhGes de testemunhas oculares capa- zes de atestar a vitoria dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Mas quantos seriam os depoimentos de testemunhas sobre a satide dentaria de Washington ou as atividades militares de César? Muito poucos, com efeito. E quanto a Maria Madalena e Jesus? Concretamente, no que diz respeito a Maria Madalena, al- gumas de nossas fontes encontram-se na Biblia. O que levanta uma outra questo, cuja importancia sera revelada 4 medida que tratarmos das afirmagées histéricas de O Cédigo Da Vinci: qual a influéncia do fato de uma fonte antiga (por exemplo, o Evange- lho de Marcos) constar da Biblia para sua confiabilidade hist6ri- Parte Um O Imperador Constantino, o Novo Testamento e os outros evangelhos 32 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS Os confrontos entre cristaos e pagaos Ao contrario do que afirma Teabing, nao é verdade que “cris- taos € pagaos comecaram a lutar entre si, e o conflito chegou a propor¢6es tais que ameacou dividir Roma ao meio”. Isso seria superestimar a forga do cristianismo antes da conversio de Constantino, fazendo parecer que os cristaos eram quase tao numerosos quanto Os pagaos € estavam constantemente no ata- que e no contra-ataque. A realidade é muito diferente. Antes de Constantino, no inicio do século IV, os cristéos eram uma pe- quena minoria no império, sujeitos 4 persegui¢ao dos grupos maci¢amente majoritarios — os pagdos e suas autoridades go- vernamentais, Ser4 provavelmente necessario, aqui, determo-nos em al- gumas defini¢des. O termo pagao, quando usado nesse contex- to, ndo tem uma conota¢ao negativa. Refere-se simplesmente a qualquer adepto de uma das religides politeistas do império — ou seja, aquelas religises em que muitos deuses eram ado- rados. E como todos no império, 4 excegao dos judeus e dos cristios, adoravam muitos deuses, a expressio abarca 0 grosso da populagio. Os deuses adorados eram de todos os tipos. Havia os “gran- des deuses” que conhecemos da mitologia grega e romana — por exemplo, os gregos Zeus, Ares e Atena, ou seus correspon- dentes romanos Jupiter, Marte e Minerva. Mas havia também deuses para cada localidade e cada fungdo: deuses que viviam nas cidades e aldeias do império e as protegiam (deuses diferen- tes para lugares diferentes), deuses da familia e do lar, deuses das florestas, dos rios e dos campos, deuses de varias fungdes — os que faziam crescer a lavoura, mantinham fertil o gado, prote- 36 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS que afirma Teabing, Constantino nao preservou suas convic¢des pagas até o fim da vida. Ele trataria de assinalar sua conversio num momento decisivo ocorrido no campo de batalha. A conversiao de Constantino Infelizmente nado dispomos de relatos dignos de crédito a res- peito do que realmente aconteceu quando Constantino se conver- teu, mas apenas de informes como o que veio a ser registrado por seu bidgrafo religioso, Eusébio, autor cristao do século IV as vezes conhecido como “o pai da Histéria da Igreja”, por ter sido o primeiro cristéo a escrever um relato abrangente da His- toria da Igreja desde os tempos de Jesus até sua propria época,a época de Constantino. Além dos dez volumes de sua Histéria da Igreja, Eusébio escreveu também uma biografia de Constantino. Como se poderia supor, a biografia adota a perspectiva crista do autor. Mas ainda assim ele afirma ter tomado conhecimento da famosa conversao de Constantino da boca do préprio interessa- do, alguns anos depois.’ Seja como for, o contexto histérico da conversio é claro. Depois da abdicagao voluntaria de Diocleciano em 305 E.C., Constantino subiu ao trono; na cidade de Roma propriamente dita, no entanto, Maximiano reivindicava para si o trono impe- rial, até ser derrotado em batalha por Constantino. Mas o con- trole da cidade foi assumido entao pelo filho de Maximiano, Maxéncio. Constantino pretendia ser o inico governante do império, o que significava dar fim a Maxéncio e seu exército, Constantino marchou sobre Roma, travando-se uma grande batalha na ponte Milviana, sobre o rio Tibre. Constantino rela- taria mais tarde ter recebido um sinal sobrenatural antes da ba- 40 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS ceu também no ano de 325, como assinala o proprio Teabing. Este se equivoca ao sustentar que foi entao que Constantino tentou unificar o império sob o cristianismo. Isto na realidade ja vinha acontecendo. Mas havia um problema nessa utilizagio do cristianismo como instrumento de unificag4o: a propria Igreja crista estava desunida em varias questGes fundamentais, sendo a mais importante delas a das concepcdes teoldgicas. Para que pudesse unificar o império, 0 cristianismo tinha primeiro de se unificar. E é este o verdadeiro motivo pelo qual Constantino convocou um concilio de bispos (aproximadamente 200 a 250) para resolver problemas que vinham causando disputas internas entre os cristaos; 0 concilio reuniu-se na cidade de Nicéia e por isto ficou conhecido como Concilio de Nicéia. O Concilio de Nicéia Teabing faz mengao ao concilio em conversa com Sophie Neveu em sua casa. Explica-lhe que o Concilio de Nicéia foi convoca- do por Constantino para corroborar a divindade de Jesus, com isso consolidando a base de poder do préprio imperador. Durante essa fusdo de religides, Constantino precisou re- forcgar a nova tradicao crista, ¢ para isso promoveu uma fa- mosa reuniao ecuménica conhecida como o Concilio de Nicéia. (...) — Nesse concilio — disse Teabing —, muitos aspectos do cristianismo foram debatidos e receberam votac¢io — a data da Pascoa, o papel dos bispos e a administragao dos sacramentos, além, naturalmente, da divindade de Jesus. 44. CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS Assim reza 0 poema que da inicio a este Evangelho: No principio era o Verbo e 0 Verbo estava com Deus e 0 Verbo era Deus. No principio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. (Jodo 1:1-3) Quem seria entio, para Jodo, este “Verbo” que no inicio es- tava com Deus e na realidade era o préprio Deus? Nao pode haver dividas a este respeito, pois diz ele no fim do poema: E oVerbo se fez carne, e habitou entre nds; e nds vimos a sua gloria, gloria que ele tern junto ao Pai como Filho tinico, cheio de graga e de verdade. (...) Pois de sua plenitude todos nds recebemos graca por graca. (Jodo 1:14, 17) Para este autor, j4 no primeiro século, Jesus Cristo é um ser di- vino (o “Verbo”) através do qual Deus criou o mundo, um ser que revelou completamente Deus a seu povo, pois era ele proprio um ser divino que desceu do céu para fazer-se carne. 48 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS pareciam ter lido o Novo Testamento é patente: simplesmente ainda nao havia um Novo Testamento. Na verdade, todos os li- vros do Novo Testamento (os escritos de Paulo e os evangelhos, por exemplo) ja estavam redigidos. Mas ainda nao haviam sido reunidos num canone de escritura nem eram conhecidos em seu conjunto como o Novo Testamento. A forma¢ao do cénone surgiu como conseqiiéncia das controvérsias, inclusive a que gira- va em torno da identidade de Jesus nos primeiros séculos. Havia nos séculos II e III outros cristéos que assumiam a atitude inversa, insistindo em que Jesus era tio plenamente divi- no que nao poderia ser humano. Esses fiéis sio as vezes chama- dos de “docetistas” (da palavra grega dokeo, que significa “parecer’”’), pois sustentavam que Jesus nado era humano, apenas parecia s€-lo. Era plenamente Deus. Desse modo, Jesus apenas pa- recia ter carne e sangue humanos, emog6es e fraquezas huma- nas, assim como a possibilidade humana de sofrer e morrer. Na realidade, seria tudo uma aparéncia. A maioria dos cristaos rejeitava tanto a 6tica dos adocionistas quanto a dos docetistas, insistindo em que em certo sentido Jesus era ao mesmo tempo humano (como afirmavam os adocionistas) e divino (como sustentavam os docetistas). Mas como poderia ser as duas coisas a0 mesmo tempo? Neste ponto é que se manifestavam algumas das mais interessantes dis- cordancias entre os préprios cristaos primitivos,e foram elas que acabaram levando ao Concilio de Nicéia. Antes dessa época, surgiram algumas curiosas solugGes para a questdo de saber como Jesus podia ser ambas as coisas ao mes- mo tempo, assim como para o problema correlato: como podia ele ser Deus, se Deus Pai é Deus, nao podendo haver dois deu- ses, mas apenas um? Como explicar isso? Uma das primeiras 52 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS do cristianismo (embora o debate tenha prosseguido durante dé- cadas depois do concilio). Mais importante ainda é que, ao con- trario do que afirma Teabing, nao se tratou de uma votacio sobre a divindade de Jesus. Ha 250 anos os crist3os estavam de acordo que Jesus era divino. A questao era apenas saber como ele era di- vino, e para isso foi convocado o Concilio de Nicéia. Constantino segundo Teabing A respeito de outros comentarios de Teabing sobre o imperador Constantino teremos de nos deter em outros capitulos. Ele sus- tenta, por exemplo, que a Biblia crista, tal como a conhecemos — os vinte e sete livros do Novo Testamento — foi organizada pelo préprio Constantino, na tentativa de assegurar a unidade da Igreja, com a qual precisava contar como for¢a unificadora em seu império.Trata-se, como veremos, de uma alegacdo com- pletamente sem fundamento; a formagao do canone do Novo Testamento foi um longo e trabalhoso processo que comegou séculos antes de Constantino, nao se tendo completado senao muito depois de sua morte. Na realidade, ele nada teve a ver com isso. Entre outras coisas, os quatro evangelhos que para nds constituem o Novo Testamento ja estavam firmemente estabe- lecidos muito antes da converséo de Constantino, e os “outros” evangelhos ha muito haviam sido proscritos pelos lideres cris- taos,na qualidade de invencdes heréticas — nao foram, portanto, proibidos por Constantino. Além disso, Teabing sustenta que Constantino tratou de forjar uma versdéo masculinizada da religiao crista, vedando e mesmo demonizando o elemento feminino, de tal maneira que a verda~ AS DESCOBERTAS DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO... 57 rio, nas fontes de Nag Hammadi Jesus é apresentado como mais divino que nos evangelhos do Novo Testamento. (7) O Vaticano nada fez para acobertar qualquer dessas descobertas. Isso nao significa que as descobertas dos Manuscritos do Mar Morto e da Biblioteca de Nag Hammadi nao tém importancia para a compreensao da figura histérica de Jesus e das histérias a seu respeito. Muito pelo contrario: ambas as descobertas foram imensamente relevantes, mas nao pelos motivos enumerados por Teabing. Para avaliar plenamente a importancia dessas descobertas, precisamos analisa-las separadamente, comegando pela mais fa- mosa das duas, os Manuscritos do Mar Morto. Os Manuscritos do Mar Morto A descoberta Nao resta divida de que os manuscritos do mar Morto repre- sentam a mais significativa descoberta de manuscritos nos tem- pos modernos.? A histéria de sua descoberta é das mais interessantes, pois se deu por simples acaso. No inicio de 1947, um menino pastor beduino chamado Mohamed edh-Dhib (que significa “Mohamed, o Lobo”) conduzia um rebanho de ove- lhas e bodes para uma fonte de agua no deserto da Judéia, perto das ruinas antigas conhecidas como Qumran, no litoral noroes- te do mar Morto, cerca de 11 quilémetros ao sul de Jericéd e 19 quilémetros a leste de Jerusalém. Um dos animais extraviou-se, e ele foi A sua procura. Tentando alcangar uma caverna elevada na face do penhasco, ele atirou uma pedra [4 dentro e ouviu quando ela se chocou contra alguma coisa. No dia seguinte, AS DESCOBERTAS DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO... 61 géncias de admissao, penalidades pela violacio dos habitos co- munitérios, e assim por diante. Os especialistas estao praticamente convencidos de que essa comunidade era formada por um gru- po de judeus conhecidos em outras fontes antigas como essénios. Lendo esses livros, constatamos que a comunidade dos essénios estava cheia de homens solteiros e celibatarios que dedicavam a vida a pureza, na convicgao de que viviam o fim dos tempos. Acreditavam eles que logo Deus viria a intervir na histéria para derrotar as forg¢as do mal e recompensar os homens de bem. Outros livros contém as oragdes e salmos da comunidade — livros de poesia muito semelhantes aos salmos da Biblia Hebraica. Outros versam sobre estritas interpretagdes das leis de Moisés, mostrando como devem ser entendidas e cumpridas pelos membros da comunidade. Outros ainda sao de carater visiona- rio, indicando o que acontecera no fim dos tempos, quando as for¢gas do bem (do lado dos membros da comunidade) entrarem em confronto com as forgas do mal (o Diabo e seus represen- tantes terrestres — vale dizer, os exércitos romanos), derrotan- do-as antes da instauracdo do reino de Deus na Terra. No computo geral, foram descobertas de grande importan- cia para a compreensao do judaismo na época de Jesus — ainda que nunca mencionem diretamente Jesus e seus seguidores, ao contrario do que afirma Leigh Teabing. A caracteristica mais importante dos Manuscritos do Mar Morto sera provavelmente o fato de chamarem a aten¢io para o carater central do apocalipticismo judaico no meio em que vivia Jesus. Considerando-se a importancia do pensamento apocaliptico para o entendimento de Jesus (tema de um posterior capitulo deste livro) e potencialmente também para entender sua relag¢ao com as mulheres (um elemento central de O Cédigo Da Vinci), passarei AS DESCOBERTAS DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO... 65 com os que se alinharem com o bem, pois sao as forgas do mal que estdo no controle deste mundo) serao soerguidos dentre os mortos € receberao sua recompensa eterna. De modo que aqueles que hoje softem podem alimentar a expectativa de serem vali- dados, quando se manifestar o reino do bem que nao podera deixar de vir. Mas quando acontecer isto? 4. Iminéncia.Os apocalipticistas judaicos sustentavam que este ato final de julgamento aconteceria muito em breve. Estava para chegar a qualquer momento. Questio de muito pouco tempo. Os apocalipticistas acreditavam que as coisas nao podiam piorar ainda mais, devendo Deus, portanto, intervir muito em breve para derrotar as forgas do mal e instaurar o seu reino. Quio bre- ve entdo seria este prazo? “Em verdade vos digo que est4o aqui presentes alguns que nao provarao a morte até que vejam o Reino de Deus, chegando com poder.” Sao as palavras de Jesus (Mar- cos 9:1). O préprio Jesus, como vemos, era um apocalipticista judaico, com pontos de vista semelhantes aos dos essénios da comunidade dos Manuscritos do Mar Morto, embora nao fosse membro da comunidade nem provavelmente jamais tivesse tido contato com eles. Em outro momento, diz ele: ‘Em verdade vos digo que esta gera¢do nao passara enquanto nio tiver aconteci- do tudo isto.” (Marcos 13:30) Jesus compartilhava portanto a visio apocaliptica dos essénios de Qumran. Mas também diferia deles de muitas maneiras — e € por isso que os estudiosos consideram quase que unanime- mente que ele nao pertencia a esta comunidade. Os essénios de Qumran empenhavam-se, por exemplo, em preservar sua pure- za tratando de se distanciar das influéncias corruptoras do mun- do que os cercava; Jesus, por sua vez, estava constantemente cercado de “coletores de impostos e pecadores”, sem se preocu- AS DESCOBERTAS DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO... 69 Ali tratou de partilhar a descoberta, rasgando os livros em peda¢os para que todos recebessem uma parte. Mas ficou evi- dente que os outros nao estavam interessados, e ele embrulhou tudo em seu turbante, voltou para casa e os depositou no cerca- do onde mantinham os animais. Naquela noite, naturalmente, sua mae usou algumas daquelas folhas ressecadas e quebradi¢as para acender o fogo e preparar a refeicao noturna. Neste ponto, a histéria complica-se um pouco, pois entra em cena a vida real, s6 que de uma forma quase irreal. HA muito tempo Mohammed Ali e sua familia estavam envolvidos em san- grenta disputa com uma tribo de uma aldeia vizinha. A coisa tivera inicio cerca de seis meses antes, quando o pai de Ali, tra- balhando como vigia noturno de maquinas de irriga¢4o impor- tadas da Alemanha, matou a tiros um intruso. No dia seguinte, o pai de Ali fora por sua vez assassinado pela familia da vitima. Varias semanas depois da descoberta dos livros antigos contidos no pote, Mohammed Ali e seus irmaos ficaram sabendo que o assassino de seu pai estava adormecido 4 margem da rodovia, perto de um pote de melado de cana. Langaram mio das picare- tas, encontraram o sujeito ainda adormecido e o massacraram. Em seguida, abriram-lhe o peito, arrancaram-lhe 0 cora¢ao ain- da quente e o comeram, num supremo gesto de vinganga. O problema em toda essa hist6ria — bem, na realidade ha- via muitos problemas — era que 0 sujeito assassinado era filho do delegado local. A esta altura, Mohammed Ali comegava a pensar que talvez os livros velhos encontrados valessem alguma coisa, e temeu que sua casa fosse alvo de busca, ja que ele e os irm4os seriam os principais suspeitos do assassinato a sangue frio. Decidiu entao entregar um dos livros ao sacerdote copta local, para que 0 mantivesse em seguranga até passar a tempestade. AS DESCOBERTAS DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO... 73 Gnosticismo € uma palavra empregada pelos estudiosos para se referir a um amplo espectro de religides existentes no segun- do e no terceiro séculos da era crista. Deriva do termo grego gnosis, que significa “conhecimento”. Essas religides so ditas gnosticas porque dao énfase a necessidade do verdadeiro conhe- cimento para alcangar a salvacdo; mais especificamente, exigem que obtenhamos o verdadeiro autoconhecimento. Somente quando as pessoas efetivamente conhecem a si mesmas é que podem livrar-se dos males deste mundo. E acontece que os males deste mundo tém a ver com nossa existéncia material em si mesma, pois, segundo os gnosticistas,o mundo da matéria é in- trinsecamente mau, devendo livrar-se dele os espiritos aprisio- nados em nossos corpos, materiais e impregnados do mal. Essa libertagao é possivel quando tomamos conhecimento de quem somos realmente. Embora fosse muito amplo o espectro de crengas e praticas entre os diferentes grupos gnésticos (exatamente como aconte- ce hoje em dia entre os grupos que se consideram cristdos), ha indicagdes de que a maioria dos gndsticos da Antigiiidade abra- ¢ava certos postulados fundamentais: 1. O mundo. Ja vimos que os apocalipticistas judaicos eram dualistas, na medida em que acreditavam na existéncia de dois componentes fundamentais na realidade: 0 bem e o mal. Os gnés- ticos eram ainda mais radicalmente dualistas, acreditando que o mundo fisico era em si mesmo mau, em oposi¢ao ao mundo do espirito, que é bom. 2. O reino divino. O verdadeiro Deus, portanto, nao criou este mundo material. Ele é absolutamente espiritual. Segundo os mitos relatados pelos gnésticos — alguns dos quais estao pre- servados nos tratados de Nag Hammadi —, no passado eterno o AS DESCOBERTAS DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO... 77 a ele, e muito menos enfatizam o que quer que seja sobre seu carater. Por outro lado, alguns dos documentos de Nag Hammadi sdo cristaos e efetivamente mencionam Jesus. Fazem parte deste conjunto evangelhos apdécrifos que parecem representar uma pers- pectiva gnostica. Todavia, longe de apresentar Cristo como um ser humano, esses documentos mostram-se mais interessados em suas qualidades divinas. No préximo capitulo, examinarei alguns desses outros evan- gelhos, textos evangélicos primitivos que nao foram integrados ao Novo Testamento, Esse exame mostrara ainda mais claramente o quanto Leigh Teabing errava 0 alvo ao afirmar que os evange- lhos suprimidos nos primérdios da Igreja apresentam Jesus de uma forma mais humana que os quatro relatos canonicos. Exa- tamente o contrario é que se verifica:sio os evangelhos do Novo Testamento que apresentam Jesus como humano, indo os ou- tros evangelhos muito mais longe no empenho de apresent4-lo como um ser sobre-humano. Isso se aplica nao s6 aos documen- tos encontrados em Nag Hammadi, mas também aos outros evan- gelhos — gnésticos ou nao — que vieram a ser redescobertos na era moderna. 82 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS Trataremos de muitas dessas quest6es em capitulos poste- riores. Por enquanto, examinaremos alguns dos evangelhos apocrifos primitivos que chegaram até nos para ver como retra- tavam Jesus, como um ser humano ou com um ser sobre-hu- mano. Nao pretendo aqui abarcar todos os evangelhos apécrifos de que temos noticia; eles poderdo ser encontrados em outras fontes.' Meu objetivo é simplesmente fornecer um apanhado dos tipos de livros que encontramos fora do canone. Comegarei com um documento que poderia apresentar um Jesus dos mais humanos, por se tratar de um relato sobre o menino Jesus e as varias atividades com que esteve envolvido quando jovem. In- felizmente para a tese de Teabing, até mesmo esse relato primi- tivo empenha-se em retratar um Jesus sobre-humano, e nao simplesmente humano. O Evangelho da Infancia do Senhor Jesus O relato denominado Evangelho da Infancia do Senhor Jesus, de Tomé (que nao deve ser confundido com o Evangelho Copta de Tomé descoberto perto de Nag Hammadi), trata da vida de Jesus ainda menino.? Certos estudiosos datam este livro do ini- cio do século II, o que faz dele um dos mais antigos evangelhos nao constantes do Novo Testamento que chegaram até nos. As histdrias dessa narrativa mostram interessantes relatos das ativi- dades de Jesus a partir dos primeiros anos de juventude. Por tras da narrativa vamos encontrar uma pergunta que ainda hoje dei- xa intrigados alguns cristdos:“Se na idade adulta Jesus era o Fi- lho miraculoso de Deus, como teria sido quando crian¢ga?” O que verificamos é que ele era mais do que travesso. 86 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS de um monge cristdo do século VIII enterrado no Alto Egito. Esse relato fragmentario, no entanto, € muito antigo, datando provavelmente do inicio do século II, o que faz do Evangelho de Pedro um dos mais antigos relatos da vida de Jesus (na reali- dade, de sua morte e ressurrei¢ao) que chegaram até nés fora do contexto do Novo Testamento. Mais uma vez, caberia esperar encontrar aqui um Jesus dos mais humanos, mas o que acontece € que sao enfatizadas ainda mais suas qualidades sobre-humanas.’ O fragmento evangélico de que dispomos comeg¢a com as seguintes palavras: “Mas nenhum dos judeus lavou as mos, nem tampouco Herodes ou qualquer de seus juizes. Como nao que- riam lavd-las, Pilatos levantou-se.” E um comeco significativo por dois motivos. Ele deixa claro que imediatamente antes do inicio do fragmento o evangelho continha um relato do epis6- dio em que Pilatos lava as maos — histéria que s6 pode ser encontrada em Mateus, no caso dos evangelhos do Novo Testa~ mento. E evidencia acentuada diferen¢a em rela¢do ao relato de Mateus, que nada diz a respeito da recusa de outros personagens de lavar as maos. Aqui, Herodes, o “rei dos judeus”, e seus juizes judeus recusam-se (ao contrario do governador romano, Pilatos) ase declarar inocentes do sangue de Jesus. Isso permite deduzir um importante aspecto do resto da narrativa,na medida em que a0 aqui os judeus, e nao os romanos, Os responsaveis pela morte de Jesus. Esse evangelho fragmentario é muito mais virulenta- mente antijudaico que qualquer dos outros que chegaram a ser integrados ao Novo Testamento. A narrativa prossegue com a solicitagao do corpo de Jesus feita por José (de Arimatéia), a zombaria contra Jesus e sua cru- cificagdo. Tais relatos sio ao mesmo tempo semelhantes e dife- rentes do que lemos nos evangelhos canénicos. No versiculo 90 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS O Apocalipse Copta de Pedro Um dos mais interessantes relatos sobre a morte de Jesus encon- trados na Biblioteca de Nag Hammadi ocorre num texto que nao é conhecido como evangelho, mas como apocalipse (ou seja, uma revelacao da verdade); também teria sido supostamente escrito por Pedro, embora se trate igualmente de um pseud6nimo. Uma das caracteristicas mais interessantes dessa narrativa é 0 fato de tratar- se de um documento gnéstico com toda certeza escrito para opor- se aos Cristaos que atacavam 0 gnosticismo — ou seja, aqueles que viriam a decidir quais livros deviam ser incluidos no canone do Novo Testamento. Verifica-se, contudo, que, em vez de se opor a eles por acharem que Jesus era divino, opde-se na realidade por sustentar que Jesus era humano. Vale dizer que este livro vai justa- mente de encontro as alegagdes de Leigh Teabing de que os evan- gelhos gnésticos retratam um Jesus mais humano e menos divino. O livro comega com as palavras do “Salvador”, informando a Pedro que existem muitos falsos mestres “cegos e surdos”, que blasfemam contra a verdade e ensinam o mal.* Pedro, por outro lado, terA acesso ao conhecimento secreto, ou seja, 4 gnose (Apocalipse de Pedro, 73). Jesus diz entéo a Pedro que seus ad- versarios “carecem de percep¢ao” (ou seja, de gnose). Por qué? Porque “se apegam ao nome de um homem morto”.® Em ou- tras palavras, pensam que é a morte humana de Jesus que im- porta para a salvagao. Para esse autor, os que sustentam semelhante coisa “blasfemam contra a verdade e proclamam o ensinamento do mal” (Apocalipse de Pedro, 74). Com efeito, aqueles que seguem um homem morto afer- ram-se 4 morte, e nao 4 vida imortal. Tais almas esto mortas e foram criadas para a morte. 94 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS do de Jesus transcende completamente sua humanidade. Mas que vamos encontrar em outros livros da Biblioteca de Nag Hammadi, inclusive os que sao chamados de evangelhos? Cor- roboram a tese de Leigh Teabing? O Evangelho Copta de Tomé Nao ha divida de que o mais famoso evangelho da Biblio- teca de Nag Hammadi é 0 Evangelho Copta de Tomé (que nao deve ser confundido com o Evangelho da Infancia do Senhor Jesus, mencionado anteriormente). Dada sua importancia, dedi- carei mais tempo 4 andlise de sua mensagem que no caso dos outros evangelhos que vimos examinando. Desde que foi encontrado, o Evangelho de Tomé tem sido objeto de muito debate. Entre as principais questdes esta a de saber se deve ou nao ser considerado um evangelho “gnéstico”. Meu ponto de vista é que, embora 0 Evangelho de Tomé nao exponha de forma clara e coerente o sistema gnéstico, efetiva- mente pressupde um, tal como descrevi no capitulo 2. Nesse evan- gelho, Jesus é o revelador divino do conhecimento secreto que pode proporcionar a libertac¢io desse mundo material do mal. Ele nao é apresentado aqui como um simples mestre humano, mas como um revelador divino. Tal perfil depende de um en- tendimento gnéstico do mundo e do lugar que nele ocupamos. Antes de descrever os ensinamentos contidos no Evangelho de Tomé, devo dizer algo sobre o carater desse evangelho como um todo.* Ao contrario do Evangelho de Pedro, o Evangelho de Tomé é um texto completo: chegaram até nés o seu inicio, o seu fim e tudo 0 que est4 entre os dois. Consiste ele em 114 98 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS trar.O conhecimento precisa ser buscado, e quando nos damos conta de que tudo que julgavamos saber sobre este mundo esta errado, ficamos perturbados. Mas é entdo que nos damos conta da verdade sobre este mundo e ficamos perplexos. E quando isso acontece, acabamos em Ultima andlise retornando ao reino divi- no de onde procedemos, dominando tudo que existe ao lado dos outros seres divinos. Afirma um outro ensinamento: “Aquele que conseguiu com- preender o mundo encontrou apenas um cadaver, e aquele que encontrou [o] cadaver é superior ao mundo” (ensinamento 56). Este mundo material esta na realidade morto, nao ha nele qual- quer sinal de vida. Para haver vida é necessdrio que haja espirito. Quando nos damos conta do que é realmente o mundo — morte —, tornamo-nos superiores ao mundo, elevamo-nos acima dele. Por isso é que aquele que se da conta disso “nao provara a mor- te” (ensinamento 1). Dar-se conta da desvalia deste mundo material e esquivar-se a ele € como despir a vestimenta da materia (o corpo) e libertar- se de suas amarras. Surge assim uma forte imagem da salvagao: “Quando vos despirdes sem vos envergonhardes e tomardes vos- sas vestes e, colocando-as sob vossos pés, pisardes nelas como criancinhas, entdo vereis 0 filho daquele que vive, e nao tereis medo” (ensinamento 37).A salvagao significa livrar-se do corpo. Segundo este evangelho, os espiritos humanos nao tiveram origem neste mundo material, mas no mundo que esta acima: Jesus disse: “Se vos perguntarem ‘De onde viestes?’, respondei “Viemos da luz, do lugar onde a luz nasceu dela mesma. (...)’ Se vos perguntarem ‘Sois vés?’, respondei ‘Somos seus filhos, e 2 somos os eleitos do Pai vivo’.” (ensinamento 50) 102 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS qual o texto enfatiza tao fortemente a unidade, a singularidade, a solidariedade: “Pois muitos dos primeiros serao os tltimos e se tornario um s6” (ensinamento 4); “Bem-aventurados sao os soli- tarios e eleitos, pois encontrarao o Reino” (ensinamento 22). E afirma Jesus, no momento em que os discipulos perguntam “‘Nés também, como criang¢as, entraremos no Reino?”: Quando fizerdes do dois um e quando fizerdes o interior como oO exterior, 0 exterior como o interior, o acima como o embaixo e quando fizerdes do macho e da fémea uma s6 coisa, de forma que o macho nio seja mais macho nem a fémea seja mais fémea, e quando formardes olhos em lugar de um olho, uma mao em lugar de uma mao, um pé em lugar de um pé, e uma imagem em lugar de uma imagem, entdo, entrareis no Reino. (ensinamento 22) Trata-se de restabelecer a unidade original de todas as coi- sas, sem que haja partes, mas apenas um todo, nem o de cima nem o de baixo, nem o de fora nem o de dentro, nem macho nem fémea. E ai que se encontra a salvagio para aqueles que foram separados, apartados do reino divino. Ser talvez esta idéia que dara sentido aquela que € possivel- mente a mais estranha e certamente a mais polémica parte do Evangelho de Tomé, ensinamento 114,no qual Maria Madalena se destaca — embora nio certamente como mulher e amante de Jesus: Simao Pedro disse-lhes: “Que Maria saia de nosso meio, pois as mulheres no sao dignas da vida.” Jesus disse: “Eu mesmo vou guid-la, para torna-la macho, para que ela também possa 106 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS dos ao canone. E também esta certo ao afirmar que os outros evangelhos foram banidos da utilizagao pelos cristaos pelos Pais da Igreja. Onde se equivoca é ao afirmar que, se esses outros evangelhos tivessem sido incluidos no Novo Testamento, teria- mos de Jesus uma visio mais humana. Na realidade, é exatamente © contrario que acontece. Os evangelhos extracandnicos ten- dem a apresentar Jesus como um ser mais divino. Como tera sido entao que os evangelhos de Mateus, Mar- cos, Lucas e Jodo vieram a ser incluidos no Novo Testamento, ficando de fora todos os demais? Tera sido efetivamente obra do imperador Constantino, como afirma Teabing? E a questo de que trataremos no préximo capitulo. 110 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS Longe de ter simplesmente aparecido prontinho e acabado para Os cristaos, de uma hora para outra, o canone resultou de um longo processo, ao longo do qual os cristdos, examinando atentamente os varios livros que foram escritos, vieram a deci- dir quais os que deveriam ser incluidos no canone sagrado das Escrituras e quais teriam de ser excluidos. Foi um processo que levou muitos anos — na realidade, séculos. Nao se tratou (ao contrario do que sustenta Teabing) da deciséo de uma pessoa, nem sequer de um grupo de pessoas (por exemplo, um concilio da Igreja); foi resultado de um prolongado e as vezes acerbo processo de debates e discordancia. O processo s6 chegaria ao fim muito depois da época de Constantino, mas iniciou-se sé- culos antes. O inicio do processo Para nds, hoje em dia, pode parecer estranho, mas no mundo da Antigitidade nao era comum que as religides tivessem li- vros sagrados reverenciados como guias da fé e das praticas religiosas. A parte o judaismo, tudo indica que nenhuma das religides espalhadas pelo Império Romano se valia dessa ma- neira de livros sagrados. Isso nao quer dizer que as religides nao tivessem suas crengas e suas praticas — efetivamente as tinham, mas elas nao estavam baseadas em textos sagrados con- siderados conjuntos de “instrugdes” de procedéncia divina. Nem mesmo 0s livros culturalmente seminais de Homero —a IIfada ea Odisséia — eram encarados dessa maneira. Eram vistos, isto sim, pelo que efetivamente eram: um conjunto de excelentes histérias contendo descri¢es mitolégicas dos deuses. Nao eram, 114 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS estudiosos acreditam que foi escrito mais tarde, por um segui- dor de Paulo, usando seu nome como pseudénimo), o autor instrui seus leitores cristéos a pagarem por seu pregador, tratan- do em seguida de citar “as Escrituras” para corroborar sua tese (I Timéteo, 5:18).* O interessante é que ele cita duas passagens: uma da lei de Moisés e a outra das palavras de Jesus (“O traba- lhador é digno de seu salario” — ver Lucas 10:7).As palavras de Jesus aqui estao em consonancia com as Escrituras. O mesmo ocorre no que diz respeito aos escritos de seus seguidores. O ultimo livro do Novo Testamento a ser escrito, como ja indiquei, foi I] Pedro. Curiosamente, este autor (que mais uma vez parece ser um pseud6nimo, j4 que Pedro morrera muito antes desse livro ser escrito) refere-se a falsos mestres que interpretam erroneamente as “epistolas de Paulo”, afirma, “exa- tamente como fazem com o resto das Escrituras”’ (II Pedro, 3:16). E evidente, portanto, que este autor cristao desconhecido in- cluia as epistolas de Paulo entre as “Escrituras”’. O que quero dizer é que pelo fim do século I e no inicio do II — centenas de anos antes de Constantino — os cristdos ja conferiam autenticidade canGnica a certos livros ¢ tratavam de decidir quais deles a mereciam. As motivagGes para uma colegio de livros O que compelia este movimento para conferir autenticidade canonica a um grupo de livros? Como podemos ver nas cita- ¢Ges acima, os cristaos haviam se acostumado a mencionar cer- tos textos para estabelecer ao mesmo tempo aquilo em que se devia acreditar e como se comportar na convivéncia. Como Estas pecas de marmore sao os restos de uma estatua monumental do imperador Constantino, posterior a 315 E.C. A estitua, com 9 m de altura (a cabeca com 2,6 m), ficava numa imponente construgo0 publica recém-erguida na cidade de Roma, a Basilica Nova. A construgao da basilica teve inicio sob Maxéncio, 0 imperador rival derrotado por Constantino em 312. A instalagao dessa estatua gigantesca assinalou a presenga triunfante do novo imperador na antiga capital do império. Bart Ehrman Israel Museum, Jerusalém Algumas das cavernas (cima) da desér- tica regiio ocidental do mar Morto, perto da comunidade de Qumran, onde foram encontrados os Manuscritos do Mar Morto (dois dos quais sao vistos ao lado). Institute for Antiquity and Christianity, Claremont, California Os livros gnésticos (acina) descobertos em 1945 perto de Nag Hammadi, no Egito, e o lugar onde foram encontrados (abaixo). Institute for Antiquity and Christianity, Claremont, California Rylands Library, Universidade de Manchester P®, fragmento do evangelho de Joao (18:31-33, 37-38) descoberto num monte de lixo nas areias do Egito. Do tamanho de um cartao de crédito, este pedaco é 0 mais antigo manuscrito do Novo Testamento ainda existente, datando de aproximadamente 125-150 E.C, Reproduzido aqui (frente e verso). 118 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS vro e constatou que na realidade havia varios trechos que podiam ser interpretados de um ponto de vista docético. Escreveu entao um pequeno panfleto “Sobre o chamado Evangelho de Pedro”, enviando-o aos cristaos de Rossus com recomendag6es para que deixassem de utilizar o livro nas cerim6nias da comunidade. Temos aqui uma historia interessante, pois revela muita coi- sa sobre a maneira como os cristéos vieram a decidir se deter- minado livro devia ou nao ser considerado parte das Escrituras € portanto adequado para uso na instru¢4o e orienta¢ao nas igre- jas. Tanto os cristéos de Rossus quanto Serapiaéo concordaram em que um livro de carater apostdlico — ou seja, escrito por um dos seguidores mais proximos de Jesus (ou pelo menos um companheiro de seus seguidores) — podia ser considerado acei- tavel. Mais que isso, no entanto, o livro precisava ser “ortodo- xo”, vale dizer, tinha de apresentar uma interpretagdo correta dos ensinamentos de Cristo. Um livro que nao atendesse a essa exigéncia nao era, naturalmente, apostdlico, uma vez que os pré- prios apéstolos certamente transmitiriam o significado auténti- co de Jesus e de seus ensinamentos. Na visio de Serapiado, o chamado Evangelho de Pedro nao era ortodoxo; nao podia, portanto, ter sido escrito por Pedro. Por esse motivo, nao devia ser usado nas cerimGnias de culto cristao. Em outras palavras, tinha de ser excluido do canone. Tudo isso aconteceu 150 anos antes de Constantino. Irineu e a quadrupla Escritura Mas seria verdade que Constantino foi responsavel pela decisao final sobre os quatro evangelhos que acabaram sendo incluidos 122 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS discutindo Mateus e Marcos, tendo sido esta discussao preserva- da apenas na ultima parte de sua frase final. Assim, o Caénone Muratoriano abarca os quatro evangelhos que acabaram sendo incluidos no Novo Testamento, e nenhum outro. Depois de tratar de Jodo, o canone menciona os Atos dos Apéstolos e logo as epistolas de Paulo — referindo-se a nove epistolas para sete igrejas (corintios, ef€sios, filipenses, colossenses, galatas, tessalonicenses e romanos), a duas das quais (corintios e tessalonicenses) ele escreveu duas vezes;e quatro epistolas a pes- soas (Filémon, Tito e duas a Timéteo). Este canone, em outras palavras, compreende todas as treze epistolas paulinas. Descarta explicitamente, contudo, a epistala “aos laodicenses” e a epistola “aos alexandrinos”, ambas “forjadas em nome de Paulo para promover a heresia de Marcido”. Numa imagem memoravel, ele afirma que elas “nao podem ser aceitas na Igreja Catdlica, pois nao tem cabimento misturar o fel ao mel”. (Cabe observar que nao se tratava de queimar esses livros; eles simplesmente nao deviam ser lidos, ou, presume-se, copiados.) O canone passa ent&o a relacionar como aceitaveis a episto- la de Judas, duas epistolas de Joao, a Sabedoria de Salomdao (que, obviamente, nao foi incluida no Novo Testamento), o Apocalipse de Jodo e o Apocalipse de Pedro (que nao deve ser confundido com o Apocalipse Copta de Pedro analisado no capitulo ante- rior), assinalando que alguns cristaos nado aceitavam a leitura deste ultimo na igreja. Sustenta que um livro intitulado O pastor, de Hermas, devia ser lido, mas nao na igreja, como uma escritura, pois “Hermas [o] escreveu muito recentemente em nossa épo- ca, na cidade de Roma, quando o bispo Pio, seu irmao, ocupava a sede [episcopal] da igreja da cidade de Roma” (linhas 73-76). Em outras palavras, trata-se de um texto novo (préximo de “nossa 126 CONSTANTINO, O NOVO TESTAMENTO E OUTROS EVANGELHOS Na segunda categoria, ele inclui os livros que sao “objeto de disputa”, podendo ser considerados canénicos, mas contestados em certos quadrantes. Desse grupo fazem parte Tiago, Judas, II Pedro e II e III Joao. Eusébio refere-se entao aos livros que considera “esptrios”, © que normalmente quer dizer “forjados”, mas devendo neste contexto significar “inauténticos, embora 4s vezes considerados candnicos”. Entre eles estdo livros como os Atos de Paulo, O pastor de Hermas, o Apocalipse de Pedro, a Epistola de Barnabé, a Didaché dos Apdstolos e o Evangelho Segundo os Hebreus. Estranhamente, Eusébio também inclui neste grupo, “se parecer adequado”, o Apocalipse de Joao — estranhamente porque ca- beria esperar que este livro fosse considerado antes “objeto de disputa” do que “espurio”. Finalmente, Eusébio estabelece uma lista de livros que sao heréticos e nao podem ser aceitos na Igreja: os evangelhos de Pedro, Tomé e Matias e os atos de André e Joao. Constantino requisita cinqiienta biblias cristas Vemos, portanto, que o cAnone ainda nao estava estabelecido definitivamente na época de Constantino, embora todos os cris- téos “ortodoxos” concordassem em que os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e Joao faziam parte das Escrituras canénicas. Constantino nada teve a ver com esta decisao, Na realidade, existe nas fontes antigas apenas uma Unica indi- cacao de que Constantino desempenhou algum papel no estabe- lecimento do c4none cristao, e pode ser a isso que se refere Leigh AS FONTES HISTORICAS SOBRE JESUS 135 Teabing afirma mais adiante que foram postos de lado e por fim destruidos quando Constantino estabeleceu o canone do Novo ‘Testamento: — Como Constantino promoveu Jesus a divindade quase quatro séculos depois da sua morte, existem milhares de docu- mentos contendo cronicas da vida Dele como homem mortal. Para reescrever os livros de historia, Constantino sabia que ia preci- sar tomar uma iniciativa ousada. Surgia naquele momento o fato crucial para a historia crista. (...) Constantino mandou fazer uma Biblia novinha em folha, que omitia os evangelhos que falavam do aspecto humano de Cristo e enfatizava aqueles que o tratavam como divino. Os evangelhos anteriores foram con- siderados heréticos, reunidos e queimados. (pp. 222-223) Acontece no entanto, sustenta Teabing, que nem todos esses documentos anteriores chegaram a ser destruidos. A misteriosa seita conhecida como Priorado de Sido preservou milhares des- ses registros ao longo dos séculos, juntamente com os restos mortais de Maria Madalena. Esses milhares de documentos fo- ram guardados em “quatro enormes bats”, sendo conhecidos como os “Documentos Puristas”. Teabing explica mais adiante a Sophie que desse relicario fazem parte milhares de paginas de documentos da era pré-Constantino, inalterados, escritos pelos primeiros seguidores de Jesus, e que oO reverenciavam como um mestre e profeta totalmente huma- no.Também se diz que parte do tesouro é o lendario Documen- to “Q” — um manuscrito que até mesmo 0 Vaticano admite crer que exista. Supostamente, trata-se de um livro contendo os ensinamentos de Jesus, talvez escrito por ele mesmo. (p. 242) AS FONTES HISTORICAS SOBRE JESUS 143 afinal ele era judeu. Infelizmente, tampouco aqui vamos en- contrar muita coisa. Nesse periodo as fontes judaicas nao sao tao numerosas quanto as pagas, mas ainda assim dispomos de algumas, entre elas os escritos do prolifico filésofo judeu Filon de Alexandria e do historiador judeu Flavio Josefo. Filon nao faz qualquer mengao a Jesus, como tampouco quaisquer das outras fontes judaicas da época, 4 exce¢ao de Josefo. Este es- creveu uma série de obras, varias das quais chegaram até nds, entre elas uma histéria dos judeus em vinte volumes desde os primérdios (Adao e Eva) até sua época, em fins do século I (a obra foi escrita em 93 E.C.). Nessa histéria, ele trata de um grande nimero de personalidades judaicas importantes, varias delas tendo vivido préximo a sua época (algumas com o mes- mo nome de Jesus). E efetivamente menciona duas vezes Jesus de Nazaré. Numa das referéncias, fala de um homem chamado Tiago, que era “irmao de Jesus, chamado o Mesias”. E tudo o que diz a seu respeito nesta referéncia. Na outra, contudo, for- nece informag¢6es mais amplas: que Jesus era conhecido como autor de “feitos espetaculares”, e tinha seguidores tanto entre Os gregos quanto entre os judeus, que foi entregue a Péncio Pilatos pelos “‘lideres” do povo judeu, foi crucificado e que ainda podiam ser encontrados seguidores dele na época em que es- crevia.” Infelizmente, Josefo nao fornece qualquer outra infor- mac¢ao sobre a vida de Jesus. No periodo dos cem anos subseqiientes 4 morte de Jesus, é tudo de que dispomos de fontes nao-cristas. Desse modo, se quisermos descobrir mais sobre o que Jesus realmente disse e fez, estaremos necessariamente limitados ds fontes cristis. AS FONTES HISTORICAS SOBRE JESUS 151 dos autores, Lucas (continuarei a chama-los pelos nomes tradi- cionais, embora nao conhegamos suas verdadeiras identidades), indica no inicio de seu evangelho quais as fontes de que se va- leu: relatos escritos sobre Jesus e tradi¢gdes orais que circulavam a seu respeito (Lucas, 1:1-4). E uma pena que tenha desapareci- do a maior parte dessas fontes escritas mais antigas. Contudo deixaram algumas pistas. Os estudiosos estio convencidos de ter encontrado duas das fontes utilizadas por Lucas e Mateus.* A primeira, curiosamente, ¢ o Evangelho de Marcos. Desde o sé- culo XIX, os estudiosos do Novo Testamento sabem que o Evan- gelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, possivelmente em torno de 65 ou 70 E.C., e que tanto Mateus quanto Lucas, es- crevendo dez ou quinze anos mais tarde, recorreram a Marcos no relato de suas hist6rias sobre Jesus. Por isso € que os trés evan- gelhos tanto repetem as mesmas histérias, nao raro exatamente nas mesmas palavras. Como seria possivel, com efeito, tanta con- vergéncia literal entre esses trés relatos da vida de Jesus? Dois deles copiavam o terceiro no caso de certos relatos. Mas Mateus e Lucas tem em comum outras histérias que nao se encontram em Marcos. De onde proviriam? E aqui que entra em cena a teoria de um evangelho que teria sido perdido, o Q. Nao se trata, como sustenta Leigh Teabing, de um evange- lho escrito pelo préprio Jesus para fazer a cr6nica de seu minis- tério. Q é a designagao empregada pelos estudiosos do Novo Testamento para se referir a uma fonte hipotética, a que teriam tido acesso tanto Mateus quanto Lucas (embora nao Marcos nem Joao), contendo muitos dos ensinamentos mais notaveis de Je- sus, entre eles a oragao do Pai-nosso e as Bem-aventurangas, encontrados em Mateus e Lucas, mas nao em Marcos. (Q é aqui a inicial de Quelle, que significa “fonte” em alemao.) AS FONTES HISTORICAS SOBRE JESUS 155 de retornar a Belém, onde seu antepassado Davi nascera mil anos antes? Se hoje em dia fosse realizado um censo dessa natureza, e vocé tivesse de retornar 4 casa onde viviam seus antepassados mil anos atras, para onde se dirigiria? E o que pensar da morte de Jesus? Por que afirma Jodo que Jesus morreu no dia em que a refeicio da Pascoa judaica estava sendo preparada (Jodo 19:14), ao passo que Marcos afirma que ele morreu um dia depois que ela foi feita (Marcos 14:12; 15:25)? Por que sera que Marcos afirma que Simao de Cirene carregou a cruz de Jesus (Marcos 15:21) e Joao insiste em que ele a carregou sozinho por todo o percurso (Joao 19:17)? Por que relata Marcos que Jesus nada disse durante todo o percurso do calvario, como se estivesse em esta- do de choque, enquanto Lucas declara que ele conversou nu- merosas vezes, tanto no caminho da crucificagdo como ja crucificado? E que dizer do ministério de Jesus? Por que sera que, segundo Mateus, Jesus recusou-se a apresentar uma prova de sua identidade (Mateus 12:38-39), embora, para Jodo, Jesus tenha passado a maior parte de seu ministério puiblico fazendo exatamente isso (Joao 4:54; 20:31)? E por que os discipulos nunca entendem quem é Jesus no Evangelho de Marcos, mas sao ca- pazes de fazé-lo prontamente no de Joao? Por que Jesus nunca discute sua propria identidade em Marcos, e no entanto, em Joao, praticamente s6 fala disso em todas as suas manifestagGes? Por que Jesus purifica o templo somente no fim da vida nos trés primeiros evangelhos, quando, em Joao, € praticamente a pri- meira coisa que faz em seu ministério? Poderiamos seguir quase indefinidamente assinalando diver- géncias entre os evangelhos, mas preferirei aqui simplesmente remeté-lo a outras discussdes sobre a questao.'° Quero apenas enfatizar que, como nossos evangelhos derivam de tradi¢Ges orais O JESUS HISTORICO DE NOSSAS FONTES 159 Segundo Teabing e Langdon, nao sé Jesus era casado com Maria Madalena como pretendia que ela, e nao Pedro, levasse adiante sua missdo de fundagao da Igreja crista. Assim interpreta Teabing uma passagem fundamental num dos evangelhos apécrifos: A essa altura dos evangelhos, Jesus j4 desconfia que vai ser logo preso e crucificado, Entdéo da a Maria Madalena instru- gGes sobre como conduzir sua Igreja depois que Ele morrer. (...) De acordo com esses evangelhos originais e inalterados, nao foi a Pedro que Cristo deu instrugdes para fundar a Igreja crista. Foi a Maria Madalena. (p. 235) Maria devia nao apenas dar continuidade ao ministério de Jesus na Igreja como também desempenhar o papel daquela atra- vés da qual a linhagem de Jesus seria mantida viva. Pois 0 fato é que gestou o filho dele: — De acordo com o Priorado — continuou Teabing —, Maria Madalena estava gravida quando Jesus foi crucificado. Para segurang¢a do filho ainda nao nascido de Cristo, ela nao teve escolha senao fugir da Terra Santa. (p. 241) Haveria algum fundo de verdade historica em alguma des- sas afirmativas sobre Jesus e Maria, ou nao passariam de mais um elemento da fic¢ao literaria de O Cédigo Da Vinci? A tnica maneira de ir ao fundo do problema consiste em fazer uma per- gunta mais essencial: como podemos saber alguma coisa sobre o personagem histérico de Jesus? Como vimos no capitulo anterior, a Gnica maneira de saber algo sobre Jesus ou qualquer outra pessoa no passado consiste O JESUS HISTORICO DE NOSSAS FONTES 165 judeu solteiro.) A titulo de exemplo, os ensinamentos de Jesus que fazem mais sentido em algum outro contexto provavelmente derivam mesmo desse outro contexto, e nao de sua vida. A guisa de exemplo, certos ensinamentos de Jesus encontra- dos no Evangelho Copta de Tomé e em outros escritos da Biblio- teca de Nag Hammadi tém um carater nitidamente gndéstico. O problema é que nao temos qualquer indicagao de que o gnosticismo ja existisse nas duas primeiras décadas do século I— especialmente nas regides rurais da Galiléia. Esses ensinamentos de teor gnéstico devem provir de tradi¢des posteriores, tendo sido postos na boca de Jesus em algum outro contexto (por exemplo, no século II, em lugares como o Egito ou a Siria). Isso nio quer dizer que devamos descartar todos os ensinamentos contidos em Tomé. Mesmo neste evangelho, por exemplo, Jesus conta a para- bola da semente de mostarda, que é igualmente relatada (de ma- neira independente) por Marcos. Nada ha de especialmente gnostico nesse ensinamento, que é encontrado em duas fontes independentes, uma das quais muito primitiva. Conclusao? Pro- vavelmente, deve ter saido mesmo da boca de Jesus. Sao esses, portanto, alguns dos principais critérios utilizados pelos especialistas para avaliar as fontes mais antigas de que dis- pomos sobre a vida de Jesus. Saber o que ele disse e fez nao é simplesmente uma questdo de “acreditar na palavra de alguém” ou aceitar tudo (ou qualquer coisa) que se afirme a seu respeito nas fontes dos evangelhos. Cada palavra de Jesus, tudo o que ele supostamente disse e tudo que se afirma ter vivenciado (inclu- sive, por exemplo, a alegacio de que foi casado) deve ser subme- tido a esses critérios, para estabelecer se se encaixa de maneira verossimil nas circunstancias histéricas de sua vida. Os ensi- namentos e os atos de Jesus que ndo atendem a esses critérios © JESUS HISTORICO DE NOSSAS FONTES 169 De fato, como o relampago relampeja de um ponto do céu ¢ fulgura até o outro, assim acontecera com o Filho do Homem em seu dia. (...) Como aconteceu nos dias de Noé, assim também ocorrera nos dias do Filho do Homem. Comiam, be- biam, casavam e davam-se em casamento até o dia em que Noé entrou na arca; entao veio o diltivio, que os fez perecer a todos. (...) Sera desse modo o Dia em que o Filho do Homem for revelado. (Q, via Lucas 17:24; 26-27, 30; cf. Mateus 24:27, 37-39) Vos também, estai preparados, porque o Filho do Ho- mem vira numa hora que nao pensais. (Q via Lucas 12:40; Mateus 24:44) Da mesma forma que se junta 0 joio e se queima no fogo, assim sera no fim do mundo: o Filho do Homem enviara seus anjos e eles apanharao do seu Reino todos os escAndalos e os que praticam a iniqiiidade e os langarao na fornalha ardente. Ali havera choro e ranger de dentes. Entao os justos brilharao como o sol no Reino de seu Pai. (M, via Mateus 13:40-43) Cuidado para que vossos coracdes nao fiquem pesados pela devassidio, pela embriaguez, pelas preocupag6ées da vida, e nao se abata repentinamente sobre vés aquele Dia, como um la¢o; pois ele sobrevira a todos os habitantes da face de toda a terra. Ficai acordados, portanto, orando a todo momento, para terdes a forga de escapar de tudo o que deve acontecer e de ficar de pé diante do Filho do Homem. (L, via Lucas 21:34-36) Existem muitos ensinamentos como esses em nossas tradi¢Ges, € eu aqui tratei apenas de reunir alguns poucos exemplos. Devo frisar que esses ensinamentos apocalipticos de Jesus vém de nos- sas fontes mais antigas (lembre-se de que, quanto mais antiga, melhor), sio comprovados independentemente e merecem todo crédito no contexto em que se enquadram (valendo lembrar que pontos de vista semelhantes foram encontrados nos Manuscritos O JESUS HISTORICO DE NOSSAS FONTES 177 do Filho do Homem, que promoveria uma inversio radical: os que agora se encontravam bem seriam condenados, e os que sofriam, seriam aben¢oados. Havia nessa mensagem apocaliptica a adverténcia de iminente destrui¢géo para todos os que nao ouvissem as palavras de Jesus nem se voltassem para Deus, como ele desejava. Mas quando haveria de acontecer isso tudo? Quando che- garia o Filho do Homem? Quando seria o advento do reino? Seria algo muito distante no futuro, depois de passados anos, décadas, séculos ou milénios? Pelo contririo, tal como a maio- tia dos apocalipticistas judaicos de sua época, Jesus parece ter entendido que o advento do reino de Deus era iminente. Diz ele no mais antigo dos evangelhos que chegaram até nos: De fato, aquele que, nesta geragao adiltera e pecadora, se envergonhar de mim e de minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhara dele, quando vier na gloria de seu Pai com os santos anjos. Em verdade vos digo que estao aqui presentes alguns que nao provarao a morte até que vejam o rei- no de Deus, chegando com poder. (Marcos 8:38-9:1; grifo nosso) Em verdade vos digo que esta gerag#o nao passara enquanto nao tiver acontecido tudo isto, (Marcos 13:30; grifo nosso) Atengio, e vigiai, pois nao sabemos quando sera o momen- to. Sera como um homem que partiu de viagem: deixou sua casa, deu autoridade a seus servos, distribuiu a cada um sua responsabilidade ¢ ao porteiro ordenou que vigiasse. Vigiai, portanto, porque nao sabeis quando o senhor da casa voltara: 4 tarde, 4 meia-noite, ao canto do galo, ou de manha, para que, vindo de repente, nao vos encontre dormindo. E o que vos digo, digo a todos: vigiai! (Marcos 13:33-37) Capitulo Sete Jesus, Maria Madalena e casamento Um dos principais personagens histéricos de O Cédigo Da Vinci é uma das primeiras seguidoras de Jesus, Maria Madalena. Fica- mos sabendo ao longo da narrativa que Maria nado era apenas uma das seguidoras de Jesus — era sua esposa e amante, com quem teve um filho, que por sua vez deu inicio a uma linhagem familiar que chega até nossos dias, protegida pelos membros de uma sociedade secreta, o Priorado de Sido. Devo assinalar que esta visio de Maria Madalena e Jesus nao constitui uma contri- buicdo original da ficgao de Dan Brown. Ele foi buscar uma parte de suas “informacgGes” num best seller da década de 1980, intitulado Holy Blood, Holy Grail [Sangue sagrado, Graal sagra- do], explicitamente citado por Brown mas nao reconhecido como fonte principal de boa parte do que ele tem a dizer sobre Maria Madalena (e 0 Priorado de Siado).' Seja como for, qual- quer um que tenha lido os dois livros percebera 0 alto grau de dependéncia. Holy Blood, Holy Grail nao foi escrito por estu- JESUS, MARIA MADALENA E CASAMENTO 187 tas —- © que provavelmente deve mesmo ter acontecido —, o fato é que a vasta maioria era de camponeses. E as camponesas de regides como as areas rurais da Galiléia necessariamente pas- savam a maior parte do tempo trabalhando em casa; nao havia grande disponibilidade de tempo (se é que havia alguma) para atividades de lazer como sair de casa num dia de semana para ouvir um belo sermio. Nao surpreende, assim, que a maioria dos seguidores de Je- sus fossem homens, com maior probabilidade de estarem na rua do que presos dentro de casa. Além disso, j4 esta muito bem estabelecida em nossos registros histéricos a tradi¢ao de que os seguidores mais préximos de Jesus eram homens. Sao eles os doze discipulos, cujo género nunca esteve seriamente em divida: doze homens que faziam parte de um grupo maior, predominante- mente de homens, ao redor de Jesus. Era esta nao s6 a situagao real no que diz respeito ao ministério ptblico de Jesus, como também a situagao ideal que ele mesmo parece ter contempla- do. Pois, como j4 vimos, uma das tradi¢ées firmemente esta- belecidas a respeito dos ensinamentos de Jesus é que ele esperava um iminente advento do reino de Deus, que governaria seu povo através de mediadores humanos. E quem seriam esses mediado- res? Basta lembrar 0 ensinamento de Jesus que ficou registrado em Q, um ensinamento aprovado em nossos critérios de auten- ticidade histérica: “Em verdade eu vos digo, a vés que me seguistes: quando as coisas forem renovadas, e o Filho do Ho- mem se assentar no seu trono de gloria, vos assentareis, vOs tam- bém [os discipulos], em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mateus 19:28; cf. Lucas 22:30). Os futuros governantes do povo de Deus seriam todos homens. JESUS, MARIA MADALENA E CASAMENTO 191 memoravel, encontrado apenas no Evangelho de Lucas, em que Jesus encoraja sua amiga Maria Betania na decisao de acompa- nhar seus ensinamentos, em vez de se dedicar As tarefas “femini- nas” do lar (Lucas 10:38-42). Que podemos dizer sobre a credibilidade dessas tradi¢gGes em seu contexto, a luz de nosso critério de que qualquer tradi- ¢40 a respeito de Jesus precisa ser situada de modo plausivel num contexto palestino do século I, para ser aceita como verdade hist6rica? E um fato que as mulheres eram em geral considera- das inferiores aos homens no mundo antigo. Mas havia exce- ¢6es: escolas filoséficas gregas como a dos epicuristas e a dos cinicos, por exemplo, pregavam a igualdade para as mulheres. Naturalmente, nao havia muitos epicuristas nem cinicos no meio em que se movia Jesus na Palestina, e talvez possa ser depreendido de nossas limitadas fontes que, nessa area rural do impé€rio, as mulheres viam-se em geral ainda mais limitadas em suas possi- bilidades de participar de atividades sociais fora de casa e longe da autoridade de pais e maridos. Parecera entao verossimil que um mestre judaico viesse a estimular e promover tais atividades? Nio dispomos de elementos sélidos que indiquem que ou- tros mestres judeus tivessem seguidoras na época de Jesus. Mas sabemos que os fariseus eram apoiados e protegidos por mulhe- res poderosas na corte do rei Herodes, o Grande. Infelizmente, as poucas fontes de que dispomos pouco se manifestam sobre as mulheres de classes mais baixas, que nao tinham riqueza nem posi¢ao que lhes permitissem tornar-se independentes de pais e maridos. Existe, no entanto, uma outra consideragdo que torna facil acreditar que Jesus efetivamente tenha sido seguido por mulhe- res em seu ministério. Estamos falando de um elemento especi- JESUS, MARIA MADALENA E CASAMENTO 199 o reino de Deus, este comeco modesto apresentara gigantescos resultados, manifestando-se o reino em todo o seu poder. Jesus acreditava que os ideais do reino deviam ser concreti- zados no presente. E acreditava que no reino nao haveria casa- mento nem relagGes sexuais. Era, evidentemente, o que pensavam também os essénios, seus companheiros de ideais apocalipticistas. E eles aplicavam na pratica este entendimento, mantendo-se celibatarios e solteiros. E portanto perfeitamente plausivel — e mesmo provavel — que Jesus fizesse o mesmo. Outras indicagdes no mesmo sentido podem ser encontra- das nos escritos dos seguidores de Jesus apds sua morte. O autor cristao mais antigo cujos escritos chegaram até nds ¢ o apdstolo Paulo, que nao foi um dos doze discipulos de Jesus, mas se tor- nou um lider do movimento fundado em seu nome apdés sua morte. Tal como Jesus (e os essénios antes dele), Paulo também fora um apocalipticista judeu. E depois de se converter 4 fé em Cristo nado abriu mao de sua visio de mundo apocaliptica, tra- tando, isto sim, de transforma-la 4 luz de sua crenga de que o fim dos tempos ja tivera inicio, com a morte e ressurrei¢do de Jesus. Paulo esperava estar vivo quando Jesus voltasse do céu para o julgamento na Terra e 0 estabelecimento do reino de Deus (ver I Tessalonicenses 4:13-18;I Corintios 15:50-57) — em outras palavras, tornou-se um apocalipticista cristdo. E qual era sua visio do casamento? Curiosamente, parece ter sido comparavel a visio do préprio Jesus, segundo a qual, 4 luz da iminéncia do fim, cabia a cada um dedicar-se integralmente ao advento do reino, em vez de se casar e se envolver em relagGes sexuais. Aconselhando os cristaéos da cidade de Corinto sobre ca- samento e relagdes sexuais, diz Paulo: “Contudo, digo aos celiba- tarios e as vitivas que € bom ficarem como eu” (I Corintios, 7:8). © FEMININO NOS PRIMORDIOS DO CRISTIANISMO 207 dor patriarcal Constantino, no século IV, que o feminino passou a ser demonizando no cristianismo e as mulheres vieram a ser menosprezadas, enquanto o principio masculino, tanto nos se- res humanos quanto na divindade, tornou-se absolutamente dominante e sagrado. Seria este um retrato fiel do cristianismo anterior a Cons- tantino? A Igreja cristé primitiva efetivamente atribuia um papel de destaque as mulheres? Estavam homens e mulheres realmente empenhados em celebrar 0 principio divino e em cultuar o as- pecto feminino da deidade? E este empenho acaso envolvia a pratica de rituais sexuais secretos? Tera sido o principio femi- nino demonizado por Constantino e seus parceiros masculinos de religiaio? E dificil responder a algumas dessas perguntas. Podemos comegar examinando a questao pratica de saber se 4s mulheres era conferido um lugar significativo nos primeiros anos da tra- di¢ao crista e se elas continuaram a ocupar posi¢des de destaque (e mesmo de poder) até a época do imperador Constantino. As mulheres nos primérdios do cristianismo As mulheres realmente parecem ter desempenhado um papel de maior destaque nos primérdios da Igreja cristaé do que na sociedade como um todo. Ja vimos que o préprio Jesus interagiu amplamente com as mulheres. Houve mulheres, entre elas Ma- ria Madalena, que apoiaram a pregagao itinerante de seu minis- tério com seus prdprios recursos. Jesus participou de debates e confrontos piblicos com mulheres. Curou mulheres em publi- co.Tinha seguidoras do sexo feminino, algumas das quais 0 acom- O FEMININO NOS PRIMORDIOS DO CRISTIANISMO 211 versio de situag4o, sendo os humildes e oprimidos elevados a posigdes de poder. Naturalmente, as mulheres viam nisso uma mensagem de esperanc¢a — especialmente as que eram mantidas sob o tacio masculino em sociedades patriarcais antigas. Como vimos, Paulo também era um apocalipticista. Sera que isso tam- bém explicaria o papel importante desempenhado pelas mulheres em suas igrejas, no sentido de que, de certa forma, ja aplicavam aqui e agora os ideais do reino, invertendo os pressupostos pa- triarcais da sociedade a que pertenciam e desempenhando um papel equivalente ao dos homens no contexto social mais res- trito das igrejas? Um versiculo fundamental para compreender a viséo que Paulo tinha das mulheres encontra-se na Epistola aos Galatas 3:28, onde ele afirma que todo cristao que foi “batizado em Cristo” ja comegou a vivenciar a liberdade em relagao as distingdes so- ciais do momento presente: “Nao ha judeu nem grego, nao ha escravo nem livre, nio hd homem nem mulher; pois todos vés sois um s6 em Cristo Jesus.” Considerando-se este versiculo, poderiamos esperar que nio houvesse nas comunidades cristas distin¢des com base em posi¢do ou status social: todos sao iguais “em Cristo”. Mas também fica claro,em outros escritos de Pau- lo, que, tal como Jesus, ele nunca propugnou uma revolucio social em que as diferen¢as deste mundo fossem eliminadas, para a promogao de uma sociedade melhor. Paulo nunca prega a abo- ligaéo da escravidao, por exemplo; pelo contrario, presume que continuara existindo como institui¢ao social neste mundo (ver sua carta a Filémon). E embora “em Cristo (...) ndo haja ho- mem nem mulher”, a realidade € que os individuos, inclusive os cristAos, continuam vivendo neste mundo até 0 advento do rei- no. Desse modo, embora Paulo pregasse que as distingdes de O FEMININO NOS PRIMORDIOS DO CRISTIANISMO 215 digSes posteriores, como a de Tecla, batizando). Segundo esse trecho em Timéteo, contudo, tudo isso é proibido. As mulheres devem manter-se completamente caladas e submissas; sua salva- ¢ao s6 podera advir da geragao de filhos.* Devo aqui destacar dois pontos: (1) foi esse o ponto de vista que acabou levando a melhor nos confrontos entre as mulheres que queriam ocupar um lugar de maior proeminéncia na comu- nidade crista e os homens (e possivelmente também mulheres) que queriam que as mulheres ficassem subordinadas aos homens; e (2) essa restri¢ao ao papel a ser desempenhado pelas mulheres nao se manifestou inicialmente com o imperador Constantino, tendo sido inaugurada séculos antes. E uma visio que jd pode ser encontrada nos escritos do préprio Novo Testamento, Mas como sera que passamos do Paulo de Galatas 3:28, se- gundo quem, em Cristo, os géneros sao iguais, ao “Paulo” das epistolas pastorais, que insistia no dominio masculino? Muitos estudiosos dao a seguinte explicac4o. Nas igrejas primitivas, ha- via um fervor apocaliptico, considerando-se que estava prOxi- mo 0 fim de tudo. No reino que logo seria instaurado, haveria total igualdade, uma igualdade que devia ser manifestada de certa forma no aqui e agora, como forma de antecipar a maneira como seriam entdo as coisas. Mas o reino nao chegou, e a Igreja pre- parou-se para a vida a longo prazo, o que levou os cristios a retomarem a vida normal de acordo com os padroes estabeleci- dos na sociedade como um todo — o que significou, entre ou- tras coisas, que as mulheres fossem afastadas das posi¢gdes de prestigio, tornando-se subservientes aos homens. Com o passar do tempo, sem que adviesse o Reino, a religiio tornou-se pa- triarcal. Isso aconteceu com relativa rapidez, de modo que, na maioria das igrejas cristas do século II, as mulheres ja nao de-

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