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O preço da traição

Ricardo de Almeida Rocha

Era uma mulher escultural, belíssima. Os cabelos escorriam pelas suas faces
em movimentos de pantera. O conjunto de pálpebra superior, cílio e margem supra-orbital
lembrava o interior de uma igreja bizantina. Conforme a luz, seus olhos mudavam de cor: no
verão eram verdes; no inverno, azuis. O delicado septo nasal formava com o dorso do nariz o
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desenho da Ursa Menor e brilhava como as estrelas quando ela passava seu creme facial. O
contorno de sua boca, delineado com perfeição, compreendia lábios carnudos, intensa e
naturalmente vermelhos, inequivocamente femininos, mesmo quando ela falava com a energia
máscula de que era possuída quando desejava alguma coisa.

– Aja, Bruno. Ele apenas está usando você. Você precisa fazer isso. Ele tem
tudo. E quanto a nós, o que temos?

Ele acredita que as coisas virão a seu tempo. Não argumenta das palavras da
esposa. O futuro lhes reserva o melhor.

O futuro? Nunca chega sem que seja conquistado. Sabe Deus se haverá outra chance.

Graças ao amor que Leslie lhe dedicava, Bruno Molinari livrara-se de todo o peso de
uma infância miserável. Mais que isso; graças a ela, conhecera a felicidade.

Contemplou-a. O sol resplandece em voluptuosidade. Ele adivinha o cheiro de


seu hálito, e os demais.

O tempo não passa para ela. Parece ter os mesmos quinze anos de quando
Bruno a viu pela primeira vez. Nunca mais foi o mesmo depois de passar por ela na rua
principal do balneário de Tundra. Eram então adolescentes.

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Ele vivia metido com uma turma mal vista pela comunidade. Mas Leslie o compreendia.
Sensível, filha de um deputado, dava um jeito para que ele sempre se saísse bem de suas
confusões. Fazendo-se de contrariada, repreendia-o por essas atividades, mas sutilmente o
incentiva a mantê-las. Eram a certeza de dinheiro.

Sempre apaixonado, não havia o que não fizesse por ela.

– Então faça, Bruno. Eu te conheço. É o que está querendo fazer.

A música chegava da rua em acordes lascivos. No arrabalde, da janela da casa


dos Molinari, dava para ver, na frente de uma loja, junto a caixas de velas e encartados de
incenso, uma imagem de Janaína, ao lado do comércio de material de construção, perto da ponte
velha, entre a colina Efe e o bairro de Ipiranga. O sol morria numa incisão dourada ao longo do
rio, desde a serra. As águas duplicavam a vegetação cerrada das margens onde dos braços das
árvores pendiam sinos amarelos. Longe, ouvia-se o silvo de um navio entrando na enseada. O
vento ondulava as águas ali rasas do oceano. O sol já se havia posto no horizonte, vermelho
como a atmosfera da cidade.

Porque não podia mais agüentar a excitação da demora, Cláudio Boguski


acendeu um cigarro. Jantara com Bruno, Leslie e outros amigos, numa grande confraternização.
Recolhera-se ao quarto de hóspedes para descansar. Foi providenciada para ele uma jovem bem
novinha da zona de prostituição. Agora a fumaça em seu pulmão atenua ou realça a avidez ao
pensar naquela adolescente a quem chamavam Margherita. Era demais para um homem de sua
idade, já com problemas de coração. O que ela tanto faz nesse banheiro?

Nada que mereça atenção, queridinho. Queria ficar bem cheirosa. Estavam lhe
pagando bem, ele merecia.

Dinheiro não é tudo. Que viesse logo se sentia algum afeto por aquele velho.
Ele realmente não agüenta mais a demora.

Mas Margherita demorava. Cláudio se esforçou então por pensar noutras coisas.

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Nos novos projetos da organização da qual era presidente, uma associação que trocara a
filantropia por uma bem ramificada distribuição de drogas e acompanhantes, secreta apenas para
o conhecimento oficial das autoridades.

Com o coração cheio de orgulho, lembrava de seu discurso no jantar, com o


qual introduzira Bruno Molinari entre eles. Cláudio o descobrira. Tirara-o da delinqüência e...
Quando enfim retomava o controle, ouviu a voz de Margherita.

Ela se aproximou e sentou no seu colo, beijando e mordiscando sua orelha. A


língua fez uma massagem lateral no canto da boca do homem que encontrou por dentro do
vestidinho um mamilo já endurecido. A outra mão entrou por baixo, segurando uma coxa.

Subitamente, ela se levantou e começou a remexer os quadris ao som do ritmo


que pela janela entrava. Cláudio contempla, deslumbrado. Margherita pegava a barra do vestido
e lançava para o alto, e suas pernas apareciam e desapareciam em resplendor de ninfa.

Desabotoou os dois botões do decote e dançou assim mais uns minutos. A voz
de Cláudio se juntou ao som frenético dos trios-eletrélicos. Venha. Safadinha.

Calma. Quer merecer cada centavo. Isso exige preparação.

Ele já disse que não se importa com dinheiro. Quer ver? Tirou três notas de um maço e
lançou na direção dela. Sem deixar de dançar, abaixou-se e pegou as notas. Colocou-as num
bolsinho estratégico entre as flores de algodão.

Decerto não havia, pensou Cláudio, entre todas as prostitutas de Tundra, uma outra mais
cruel. Quanto tempo mais ia levar aquele jogo? Mas não reagia senão com a resposta viril,
porque se agradava daquelas coisas.

Ela abre mais o vestido e tira-o por cima, sem deixar de cuidar do dinheiro ao enrolar a
roupa sobre a cadeira. Rebolando sempre, aproxima-se da cama onde Cláudio está sentado e
senta-se de novo em seu colo. Os longos cabelos castanhos aos cabelos grisalhos se misturam. O
dedo grosso procura seu lugar.

A mocinha teve um breve estremecimento enquanto olhava para cima, por trás dos
ombros dele, pela fresta da janela, em direção ao quarto do casal.

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Leslie Molinari falou com o marido, de costas para ele, observando o momento no
quarto de hóspedes. Bem, se Bruno está assim tão vacilante, há alguém que pode agir
imediatamente. Espera apenas um sinal. O rosto inesquecível não demonstra qualquer emoção.

Não! – ele corre até a janela. Não! – agarra a mulher pelos ombros e a sacode. Mande-a
embora! O que pensava estar fazendo? Leslie perdera todo respeito? Mande-a embora!

Estava compadecida pela fragilidade de seu homem, um tanto decepcionada. Desculpe,


não era a intenção. Amava-o. Mas precisa agora ser dura. Não gostava de ser assim. Desculpe,
amor.

– Pensei que pudesse ser difícil pra você pelo teu envolvimento. E a garota não tem
nenhum.

– Mande-a embora. Farei o que eu tenho de fazer.

A mulher segura as mãos de Bruno com carinho, solta-se, vira-se de novo para
Margherita e faz sinal de negativo. Ele olhou para uma e para outra, olhou para Cláudio e por
fim seus olhos se perderam no vazio. Tudo bem. Seu amor e seu desejo aos quereres de Leslie
vinculam-se. Deixemos apenas, disse, ele terminar.

Quando Margherita passou pelos seguranças, Leslie observava. Bem, estava na hora,
disse. Está iluminada. Cada vez que Bruno se decidia pelas vontades dela, sentia-se
rejuvenescer.

Desceram. Leslie pôs água para ferver. Bruno observava pela porta entreaberta a lua no
oceano no fim da rua. Pesou em seu espírito o que estava por fazer. Imaginou se o pagamento ao
cúmplice não poderia incluir tudo. Se teria remorso e o quanto. Contemplou a própria sombra
na parede com irritação.

Saindo ao pátio, a mulher chamou a atenção imediata dos homem. Havia há pouco dito
algumas gracinhas para Margherita. O quanto ela devia ser deliciosa e coisas tais. Mas agora
surge diante dele uma deusa, na presença da qual a jovenzinha desapareceria pulverizada por
tanta majestade. Olá rapazes, disse a deusa. Ela achou que uma xícara de café viria bem agora.
Supunha que estavam um tanto cansados.

– Todos bebemos muito e vocês ainda terão de virar a noite.

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Era verdade. Eles agradeceram. Obrigado, Leslie. E então? – ela perguntou. Divino,
disseram. Era desvendada no conjunto transparente de camisão e pantalona.

Bruno espreitava. Olhou de um em um minuto no relógio até o tempo da bula se


cumprir. Já estão dormindo. Sai até o quarto onde Cláudio adormecia. Precisa de pelo menos
dez horas de sono. Em casa, costuma apagar antes que o locutor do telejornal diga Boa-noite.

A porta se abriu. Estremeceu. Bruno. Você me deu um susto, garoto. Acontecera


alguma coisa?

Talvez você sinta frio.

– Ora, garoto, em pleno verão de Tundra?

Cláudio garantiu que estava bem. Sugeriu rindo que o pupilo se preocupasse antes com
sua linda esposa ou –

Bruno espera que ele continue bem, do outro lado. A própria barriga do velho sufocou
os tiros. Há terror naquele olhar e fragmentos indiscerníveis junto ao sangue espirrado.

A música continuava a chegar, alta, da rua.

Bruno se detém diante dos homens adormecidos. Um pouco de água deve ajudar. De
fato, eles começam a acordar. Então o outro recebe o sinal, atravessa o pátio e pula o muro. A
polícia já está ali.

Está feito.

Abraçando-o apaixonadamente, Leslie o beija e então percebe o sangue. Não poderia ter
agido de modo mais limpo?

Está se lavando. Ela sabe que começaram uma viagem sem volta e não tem qualquer
convicção de que serão transportados para algum lugar glorioso. Ela queria tanto. Amava-o
tanto, queria vê-lo como primeiro dentre os primeiros, o maior de todos.

Observando perplexo o tremor das próprias mãos, Bruno viu tudo recomeçar...

Castanheiras acompanham toda a orla marítima de Tundra, praticamente uma


continuação da praia de Dois Anjos. Rente aos recifes de corais, passavam de quando em
quando os barquinhos com os vultos inclinados. À direita de quem chega, ergue-se o monte
Santa Lúcia, imponente, assemelhando-se a um vulcão.

Os quarteirões de Tundra impressionam pelo relevo acidentado, quase verticalmente


subiam. Quem olhasse a sudoeste veria montanhas, verdes algumas, com casinhas nos cumes;

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cinzas, outras, de pedra inóspita. O vento nunca parava de soprar, apenas mudava de direção.
No terral, sabia-se que não tardaria a chuva. Entretanto, tardavam tanto o terral quanto a chuva,
às vezes meses.

A viração trazia um gosto de mar.

As mulheres de Tundra, que todo o ano esperavam a visita da temporada, saíam. O


barulho das ondas fazia parte do cenário em qualquer lugar da cidade e, se você dormisse num
outro lugar e durante o sono fosse trazido, pensaria ao acordar, antes de abri os olhos, que estava
chovendo muito.

Calor do fim de janeiro. A primeira fase da temporada de verão vive seu último final de
semana. Os turistas festejam. Os nativos, em minoria, enveredavam por seus caminhos
cotidianos, as sobrancelhas franzidas sob cenhos agitados. Alguns gesticulam e falam com os
que caminham ao lado, outros simplesmente falam sozinhos – o verão para os homens que
trabalham num balneário, às vezes de terno, enquanto as mulheres seminuas desfilam por toda
parte, o verão faz coisas assim, o calor agita e não raro transtorna.

A pequenina Tundra tinha alma de metrópole. Determinadas horas do dia as pessoas se


acotovelavam ao longo da rua principal, sobretudo ao entardecer, ou indo para as pousadas ou
para os restaurantes, para a Câmara do Comércio, lojas, prefeitura, ou, como Berebger naquele
dia, para o Grande Hotel.

Viera comemorar o êxito de um grande projeto, agora se preparava.

Por ele passam advogados, políticos, donos de bares, banqueiros, hienas, macacos,
palhaços e tigres. O circo está na cidade. Um investidor em camisa pólo e calça de algodão
pendurado no celular. Saindo da praia, musculosos e alegres rapazes de sunguinhas se exibiam
com amigas em lycra enfiada. A crente girava a sombrinha e a católica cheia de compras
gingava.

Moças cansadas voltam para casa depois de um dia de trabalho nos hotéis e outras
passam por elas prevendo-se na mesma situação dali a algumas horas, as horas da noite. Sim.
Lavadeiras, arrumadeiras, passadeiras e cozinheiras suportam os olhares de assédio dos turistas
que compraram cidade e habitantes quando alugaram uma casa para o verão. Quem dera fosse
uma homenagem, pensa Isabela. Que pena ser apenas devassidão.

O brilho da noite de Tundra tremeluzia nos olhos nervosos de Bruno. Os músicos e


cantores dos trios exerciam seus talentos com a mesma naturalidade dos traficantes e daqueles
que nos quiosques marcavam encontros de prostituição infantil. Houve um crime e o policial
tem de tomar providencias. Fica para mais tarde, de madrugada. Combinado.

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Estavam começando os cultos nos terreiros, casas simples de pescador. Paira essa
estranha energia do choque entre tradições corrompidas e outras cada vez mais viscerais – o
Orixá supremo e o Jeová bíblico debatem acaloradamente e depois se juntam num abraço que se
faz sentir na terra. A luz nascente testemunha a fantástica mistura de raças, descendentes dos
negros naquela enseada traficados, parentes dos portugueses que os vendiam, velhos índios,
novos alemães, eslavos, norte-americanos, cafuzos, mulatos, mamelucos, drogados, devassos,
corruptos e beatos.

Embreado na cintilação mística, Bruno de repente se viu diante da boate do Grande


Hotel, envolto na névoa marinha, rodeado por hostes de vagabundos que estendiam-lhe a mão,
súplices. Os pneus trepidavam atrás dos dois. Com Bruno estava Zenon, um homem pardo,
pacato, de uns 38 anos. O grupo de moças saía com estardalhaço. Eles entraram. Zenon sentou-
se ao lado do balcão e aí ficou. Bruno caminhou diretamente para a mesa no canto esquerdo.

A mão dentro do blazer, uma arma. Quatro homens sentados sem tempo de reagir – dois
quase o conseguiram, mas foram fuzilados por tiros vindos do balcão. A moça que seduzia o
homem tomando uísque, em meio aos próprios gritos na tentativa de escapar, uma bala perdida
a colheu na jugular, aloja-se na cartilagem. Caiu. Verte agora o sangue que anuncia a entrada da
morte.

Um homem saiu correndo sem desvios para a casa de Cláudio Boguski no jardim
Marli, defronte ao parque de diversões. Embarcados de um navio liberiano apareciam num e
noutro lado da cidade. Leo Sil entra e resfolegando interrompe a reunião. Cláudio fazia cálculos
e determinava nomes e datas. Parou. Meu Deus, Leo; o que houve? A testemunha se unge da
alegria subserviente dos bajuladores. Não era mais preciso fazer planos quanto a Lieyder
Berebger.

Ele e os que com ele estavam acabam de ser mortos por Molinari.

E onde está ele?

Fugindo. Todas as polícias atrás dele.

Polícia é problema de pobre. Problema para Cláudio eram os fiéis a Berebger que não
estavam com ele.

Serão fiéis a um cadáver?

Tudo é possível.

– Vá, encontre Bruno antes e diga-lhe que apenas se mantenha vivo e daremos um jeito
nos seguidores do traidor.

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O preço da traição

Raiou o dia. Molinari e Zenon escapavam pelo amanhecer. Iam a pé, sem um destino.
Pretendiam, de fato, apenas sobreviver até as coisas esfriarem. Estavam atentos a qualquer um
que se assemelhasse ao estereótipo. Berebger queria o controle do tráfico, da prostituição, da
Câmara, dos concursos de trovas e da garota-verão.

Molinari não podia permitir. Cláudio era como um pai para ele.

– Você conhece esses caras? – perguntou Zenon.

Oito homens recostados em dois carros com as portas abertas.

Seriam homens de Berebger?

– Não vou ficar aqui para descobrir.

No minuto seguinte escutavam o som de motores. Enveredaram por ruelas, despistando


os perseguidores. Porém Tundra não é tão grande. O país inteiro na verdade é pequeno quando
se trata de homens visados pela organização, ainda que por uma facção dela.

Uma porta entreaberta. Entreolham-se e, silentes, concordam. A deliciosa mestiça lá


dentro sorri para eles. Por aqui, diz ela. O oluô os espera. Desconcertados, entram no aposento.

Não é de todo uma situação desconhecida, pensa Bruno. Lembra-se da tia. Uma mulher
estranha. Inspiração de fantasias, mas muito estranha. Agora na fumaça de incenso devem surgir
imagens, velas, charuto e cachaça.

Um velho sentado à mesa e nada além de conchas de búzios espalhadas. Fique à


vontade, meu filho. Sentou-se. Zenon permanece de pé, vigiando pela janela.

Portanto Bruno pensava estar acostumado com o rito, mas nunca teve contato direto. Na
verdade não se preocupava tanto assim com o futuro. Não tirava da cabeça era a mulata que os
recebeu. Não tia, não é que eu não acredite nessas coisas.Mas não posso me concentrar. A
senhora não percebeu que não sou mais um garoto? A irmã de seu pai era realmente atraente,
não bonita; mas aquela mulatinha... Não imaginava que devotas podiam ser tão lindas. Seja
como for, nada que se comparasse à sua mulher. O que reservava afinal o seu destino?

Grandes coisas. Pelo menos no futuro imediato.

– Mas você não suportaria ouvir tudo agora.

É assim tão terrível?

Dependerá de como administre os acontecimentos.

– Diga.

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O preço da traição

Depois que ele estivesse preparado.

Quanto?

O velho não levará em conta a ofensa. Na verdade a maioria tornou o dom um


comércio.

– São mais ofensivos do que sua insinuação.

O velho não quer dinheiro?

Trabalhou a vida inteira. Não precisa daquele dinheiro.

Guarda o bolo de notas.

– E o que quer?

Que Bruno fique quieto.

Enfadado com o médium, faz menção de sair. Desculpe, mas preciso ir.

– Você será grande.

Han?

O mais querido e também o principal. Conquistou um lugar.

– Mas não se deixe levar pela ambição ou guiar pela luxúria.

Era como se Zenon não estivesse ali até que falou. Vamos. Não corremos mais perigo.

E quanto a você, Zenon, seu destino será trágico.

Ah sim?

Era verdade, mas haveria uma compensação.

– Seu filho herdará o lugar que você jamais terá.

O filho? O velho realmente nada sabia. Não havia oferenda no mundo que desviasse
Curtis de seu caminho. É um jovem e promissor advogado. Jamais se meteria naquele tipo de
negócio. Não enquanto Zenon estivesse vivo.

– É você quem está dizendo...

Vamos, diz Bruno ao perceber que a profecia abalara o companheiro. Vamos embora.

Estão saindo e trocam um longo olhar com a jovem mestiça. O babalaô não erra, diz ela.
E pensa no que profetizou no dia anterior, que Isabela teria um filho de olhos verdes como os de
Bruno.

– Escute-o.

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Mais do que por amor ou por desejo casou-se Bruno com Leslie Henning. Precisava de
uma companhia para enfrentar o mundo e cumprir as coisas que estavam além dele, apesar de
serem sua missão. Porém com o correr do tempo, ela percebeu uma face dele que não conhecia,
ou pensava desconhecer: a determinação, a vontade férrea. Então, não seria correto dizer que ele
era de todo dependente. Sua ascendência de Leslie sobre ele não é absoluta, mas um conjunto de
signos que só funcionam em sentidos específicos.

Mas estremecia diante dela, como para um bebê a presença materna, por mais contínua
que seja, será sempre extraordinária; esse bebê terá contudo seu próprio caminho ao crescer.
Essa devoção da parte do namorado punha a nu uma timidez que a marginalidade não destruiu
mas exacerbou. Era um homem meigo demais, apaixonado demais, bondoso demais, precisava
dela demais – e, como ela também o amava demais e era preciso harmonizar a vida do casal
num mundo hostil, tomou para si esse dever de ser a sua força. E para não deixar de amar seu
homem, fazia com que os méritos coubessem sempre a ele. Porque ela o acendia, mas ele era o
fogo.

Quando Bruno disse que iria à boate acabar com Berebger, Leslie concordou e lhe deu
todo apoio, sem o qual ele possivelmente não teria ido. Não por ter ela qualquer coisa contra o
rival de Cláudio. Pelo contrário, admirava todos os que se rebelavam, os que não se submetiam,
era a sua filosofia de vida: não dobrar-se diante de ninguém, não fazer qualquer coisa apenas
porque todas as pessoas faziam. Ademais, não gostava de Cláudio, jamais gostara. O que fizera
um dia pelo menino Molinari fizera com o intuito conseguido, a gratidão eterna de alguém cheio
de potencial como Bruno, um jovenzinho rebelde, inseguro, disposto a fazer qualquer coisa
contra a lei que não o protegera de uma infância infeliz.

Agora Leslie passava momentos de angústia sem saber como as coisas haviam
transcorrido. Esperava o marido, ansiosa. Onde estaria?

Outro lado da cidade.

Os homens enviados por Cláudio encontraram Bruno e levaram-no ao patrão. No


interior de um aposento luxuoso e sombrio, Cláudio Boguski discursava para um pequeno
séqüito.

– Você foi achado nas ruas negras da madrugada de Empatia atrás de droga e trazido
para nosso seio. E se mostrou digno de confiança – falava mirando diretamente o rapaz, mas
logo ampliou o olhar para todos – Nossa sociedade é algo de que um homem possa se orgulhar

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em ser membro. Debatemos o futuro da humanidade; vigilantes, retiramos de seu convívio os


que não merecem fazer parte dela. Somos uma família que gosta das coisas boas da vida.
Gostaríamos que todos fizessem parte, mas nem todos estão preparados. Berebger é uma prova
viva do que estou falando.

Uma prova morta. Um dos homens comentou e todos riram.

Cláudio prosseguiu: Queremos que floresça a fraternidade. Pretendemos influenciar as


nações no sentido de nossa filosofia de vida, baseada nessa fraternidade. Temos tutano, somos a
medula da sociedade. Bem-vindo, Bruno Molinari.

No quarto da casa de Bruno, distante cerca de 10 minutos de carro (20 de bicicleta,


quando Bruno trabalhava como mensageiro), Leslie pensava em Cláudio, na terrível influência
que exercia sobre seu homem. No quanto Bruno o admirava, àquele ponto, de matar por ele –
matar, o que definitivamente não era uma coisa fácil para ele. Tinha horror a sangue. Desmaiara
ao presenciar o parto do único filho do casal, que ainda com poucos dias de vida, morreria.
Leslie não gostava de Cláudio, não gostava nada de Cláudio. Falava de família, de comunidade
futura, livre das mazelas do presente – como era capaz de tal descaramento? Não eram uma
família, mas uma boiada num curral. Estavam unidos sim, mas não por livre vontade. Por medo.
Por medo uns dos outros e de não saberem viver uns sem os outros – de encarar uma outra
forma de vida que deles exigisse o que não poderiam: ser apenas o que cada um era. Estavam
tão viciados numa falsa idéia de comunidade, de sociedade, de família, que desconheciam quem
eram em si mesmos. Eram uma instituição, uma organização, uma sociedade, não pessoas.

– Sem nossa sociedade secreta, o que seríamos? Quantos fomos ajudados por irmãos
quando estávamos à beira da ruína? Quantos salvos da miséria pela caridade fraternal? E agora,
os que foram salvos, são eles próprios instrumentos de salvação! Quem está livre da violência e
da desumanidade do mundo? Poderíamos ser mortos por esses tantos desgarrados que andam,
loucos, por aí. Teria sido assim comigo se não fosse a iniciativa desse bravo rapaz. Sem que
ninguém mandasse, ele decidiu cortar o mal pela raiz.

Entretanto deveriam observar que, além dos rebeldes, ninguém fora ferido no atentado
da boate. Bruno tivera esse cuidado, mas, evitando o olhar de Zenon, não pode nesse momento
deixar de pensar na mulher do balcão.

Senhor, ali estavam alguns dentre aqueles que Cláudio chamara, avisou alguém .
Entraram os homens de Berebger.

–Não se assuste, meu caro Molinari. Eu os mandei vir aqui.

Queria lhes falar. Não podiam ser tão insanos como aquele perdido. Escutariam.

– Porque acima de você estão os interesses de nossa sociedade, mas abaixo de mim

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O preço da traição

agora você é o primeiro, herdeiro de meu lugar e da gestão de nossos negócios.

Ouviu-se um burburinho respeito. Cláudio falara. Bruno sorriu discretamente. Mais


tarde, ao descer no elevador, Bruno estava nas nuvens. Cláudio falara. Conversar com os
espíritos, ter o dom da profecia, é algo extraordinário. Desde o princípio simpatizara com aquela
gente. Embora, concluiu, o valho nada fizera além de verbalizar o inevitável...

Quando Bruno chegou em casa, Leslie dormia profundamente. Teve um primeiro


impulso de acorda-la, compartilhar a alegria. Sentimentos que, de tão remotos, nem se
lembrava mais. Ecoava em seus ouvidos as palavras de incentivo de seus empregados, homens
que Cláudio lhe destinara para segurança pessoal.

A agitação convulsiona sua alma e ver sua mulher, nereida branca em pala de renda sem
abotoamento, não era calmante. A expressão de Leslie dormindo era a de quem ama a si mesma.
Estava de lado, a barriga desvendada numa tonicidade adolescente. Os braços recolhidos
mostravam loiras e brilhantes tenuidades. A pele nos joelhos, insolitamente clara, mostravam-se
hidratadas como a terra na chuva. Bruno deu a volta na cama. À janela, significante visão
posterior. Desviou os olhos para uma réstia de mar ao longe, suspirou forte. Aproximou-se da
cama e sentou-se. Aproximou-se enfim da cama e sentou-se. Levou a mão por dentro, seguindo
o sulco até espalmar largos carinhos. Seus feixes nervosos enviaram uma mensagem confusa, de
amor talvez ou de animalidade.

Espreguiçando-se, Leslie despertou sorrindo. Percebeu a mão, virou-se, percebeu o


desejo dele, sinal do controle que poderia exercer. Rejeitou esse pensamento. Assim, não o
poderia amar. E adorava amá-lo. Era o melhor da vida.

Suas carícias fizeram com que ele se esquecesse da sua ascensão. Beijaram-se
longamente. Ardor ilimitado, mãos licenciosas, busca de posições.

A vida de Bruno seguia o rumo que Leslie indicava, da pequena necessidade doméstica
aos grandes projetos para o futuro, tudo passava por um leito largo de cimento, como
costumavam ser as camas em Tundra, absolutamente resistente. Ali surgiam idéias, novas
formas de se buscar a existência ideal, o sentido das coisas e um sentido de fazer as coisas,
assim ou de outro modo.. Novas formas de vida num repente, através da mágica de estarem
juntos.

Depois do amor, Bruno contou a respeito do velho.

– Oluô? O que é isso?

– Um tipo de médium, de babalorixá. Não sei se o nome é esse, mas o que importa é

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que acertou em cheio.

Sim. Impressionante como. Vivera ali a vida inteira, naquela cidade de macumbeiros,
sem nunca se sensibilizar com essas coisas.

– E agora, porque a predição foi tão agradável, resolveu acreditar...

Leslie estava enganada. Argumentou Bruno que nem acreditara na hora, mas o velho
acertou, era um fato.

– Quando Cláudio morrer, eu serei o primeiro.

– Vaso ruim não quebra fácil, meu menino.

Bruno não entendia a implicância de Leslie com relação a Cláudio. Ele é um homem
bom. Era como um...

– Pai para você.

Isso. Ela sabia.

Não, não sabia. Exceto que Bruno quer se convencer disso.

– Ele me ama como a um filho.

A gente ama embora as pessoas a quem amamos tenham falhas. Cláudio amava Bruno
porque...

– Quero dizer, porque você fez isso, porque fez aquilo. Nunca embora tenha feito
alguma coisa.

Como por exemplo o próprio Berebger. Foi fiel durante tanto tempo, Errou uma vez e se
tornou anátema. E quem arriscou a pele para elimina-lo? O que é estar acima dos demais
estando abaixo de Cláudio?

– Você permanece serviçal, só que agora com a inveja de todos.

Só há uma maneira do que ele disse ter alguma utilidade prática.

Bruno tinha o ar de um menino a quem roubaram seu doce.

– E qual é?

Sendo o mais alto abaixo dele quando ele não existir mais.

Essa hora vai chegar.

– Já chegou, se você quiser.

Leslie se pusera de pé num salto, levada por uma sensação estonteante, abrasadora.
Teriam enfim as coisas que sonharam ao se casar. Lembra?

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A fronte de Bruno estava banhada de transpiração. Sem captar exatamente do que se


tratava, procurava ponderar sobre o que a mulher dizia, pela análise de sua frieza ao falar e o
envolvimento das suas palavras naquela aura plena de voluptuosidade.

Quando se casaram, lembrou, nada tinham além do amor. E os planos... Viagens à


Europa, uma casa isolada nas montanhas e uma mansão na praia, cheia de mantimentos e
amigos o tempo todo, visitas que o tivessem na mais alta conta social. As recordações se
encadeavam. Maquinalmente aspirou as duas carreiras que acabara de dispor no espelhinho, um
hábito que Leslie abominava; mas dessa vez ela não reclamou. Fez-lhe um carinho longo
enfiando os dedos nos cabelos dele a partir da nuca, levando-o a um arrepio. Filha do futuro que
subitamente descortinara, ela andou com as palmas das mãos e os joelhos sobre a cama. Beijou-
lhe o peito nu, beijou-lhe a barriga, o amor por Leslie preenche toda minha existência.

Enquanto ela usava os lábios e a língua para lhe transmitir mensagens celestiais, Bruno
pensava que não resistiria se a perdesse, se perdesse um corpo tão forte e um espírito tão
surpreendente. Pressentia com temor uma possível separação. A divergência quanto a Cláudio
será capaz de causa-la? Vibrando, ele deixou-se conduzir a um êxtase cheio de dilemas.

Bateram à porta.

Bruno enfiou a cueca e foi abrir, Leslie andou para onde sua nudez não pudesse ser vista
por quem estava batendo; bastava chegar à janela. Olhou e viu Margherita passando na rua, toda
faceira como sempre. Invejou-a. Teve pena dela. Tão menina assim, pelas ruas, em camas
nojentas...

Leslie chega em Tundra aos dezesseis anos. Queria se livrar da presença do pai
moralista que em casa se transformava, sobretudo dentro do quarto da menina. Talvez a vida
correta que pregava fosse tão enfadonha que ele precisava de um estímulo a mais para excitar-
se.Mesmo depois de vários namorados, Leslie jamais ouvira de nenhum tantas obscenidades
como quando das visitas do pai durante as noites. Pior quando começou a menstruar. Ela lhe
implora uma trégua, mas ele não a poupa, exige mudanças. Extrapolara, pensou ela. Tomou
coragem e contou à mãe. Se ela não acreditou ou sempre soube, o fato é que Leslie, se não tinha
prazer em ficar, foi convidada a sair de casa, porque pessoas não se tornam boas por serem pais,
assim como a idade não traz necessariamente sabedoria.

Sozinha, veio de Pai-Bó, numa carona que a iniciou na prostituição. Tentaria mudar de
vida quando chegasse em Cascatinha. Lá o mercado de trabalho era bom. Conheceu um rapaz
em Tundra, um médico, que em poucos dias de namoro lhe propôs o casamento. Estando ela em
muitas dúvidas, pois não o amava embora não desgostasse de todo de sua companhia, aceitou o
convite para lhe dar uma resposta durante um jantar na casa dele.

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O preço da traição

– Com que então minha princesa ainda não decidiu?

–Por favor, não se ofenda, mas acho que é melhor a gente continuar amigos.

–Você está me dizendo que todos esses dias me fez de bobo?

–Claro que não. Gosto muito de você, só que não...

Interrompida. Ele avança com fúria, rasga-lhe as roupas entre bofetadas. Violenta-a
cirurgicamente. Ainda quase tão fora de si como nos terríveis momentos sob o corpo do médico,
Leslie o espera numa tarde depois do trabalho. O que é, está querendo mais, doçura? Como
resposta, a faca na mão de Leslie desceu-lhe no meio dos olhos. Quando ele levou as mãos ao
rosto, a faca movimentava-se de baixo para cima entre as suas pernas.

Ela fugia pelas ruas de Tundra em pleno carnaval, quando viu Bruno. Graças às
amizades dele na cidade, cada vez mais influentes, seu crime jamais seria julgado. Quando se
sentia deprimida, pensava: aquele era o corpo de seu pai e chegava quase a passar do horror à
felicidade.

Ouviu? Leslie!

– Não, querido... O que foi?

Cláudio pedira que ela fizesse um jantar bem gostoso, ele viria. Daria a honra de jantar
na casa deles.

Leslie disse que precisavam comprar alguns fogos.

Ah, querida, não devia ser assim sarcástica.

–Você é tão ingênuo... Não percebe que ele o humilha? Apenas usa você. E não quero
viver ao lado de um homem que se deixa usar assim.

Molinari estremeceu.

Ela disse que até faria o jantar. Desde que lhe servissem a morte de sobremesa.

Estava louca...

– Se você fizer isso, me submeto com você a essa humilhação – continuou Leslie como
se não tivesse ouvido o comentário –, que um outro homem mande sua mulher cozinhar para
ele. Não vê? Só faltou pedir um prato especial.

– Ele pediu – disse Bruno, cabisbaixo.

–Não acredito! – com gestos largos, Leslie levou as mãos à cabeça. – O que ele quer?

Chuleta de boi na grelha.

Com ou sem pimenta?

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O preço da traição

Com pimenta e champignon.

Envergonhado e constrangido, ele a viu dar uma gostosa risada.

Ao chegar precedido por seus homens, Cláudio se movimentava pelo jardim. Não
chegava a ser uma figura que impusesse respeito, não era autoritário. Tocava as pessoas pelos
flancos, como a cavalos, que logo se punham bem domados. Suas ordens eram a bem dizer
carinhosas. Era isso que Leslie mais temia nele. Agora ele toca nas pétalas das calêndulas,
abelha polinizando o desejo que se sentia por meio das flores que ela havia plantado, aspirando-
a, ouvindo a água do chuveiro e imaginando-a nua. Leslie não podia se dizer infeliz desde que o
notara, com instinto feminino mas que determinava tudo que era frieza de homem, qual um
cavalo sim, mas cujo passo amplo Cláudio não conseguia ensinar. Diante de Bruno, agora
materializam-se também a presença dela, já desenvolta, efetivamente com os cabelos molhados.
Ao vê-la, pensamentos lascivos mal levaram Cláudio a uma histeria interior mal disfarçada.
Deixou cair um olhar sutil a seu decote, retornando depois os olhos, pudicamente, aos olhos
dela, lagos de pura obscenidade, obras de arte, como podia ser que a dona deles escolhesse
alguém tão insignificante como Bruno para esposo? Ela poderia ter príncipes, reis... Ela o
poderia ter, sim, a ele, Cláudio, completamente.

Leslie fora feliz naquela casa, lá conhecera a paz; eis que agora alguma coisa a
incomodava, e tinha decerto a ver com Cláudio, com a maneira sem cerimônia como ali se
comportava. Uma casa precisa ter a alma de seus moradores e não conhecia a alma daquele
Bruno subserviente, ela, que o sabia de cor, todas as peculiaridades de seu caráter, todo acento
de sua personalidade, firme como a casa, dependente apenas da casa e do que havia no entorno,
os cavalos pastando ao redor, o café e a cereja, as coisas que ela sabia o marido atentava com
quase devoção, as aves praianas e os morcegos frutíferos, a fala dos coloridos pássaros
repetidores, choramingando por causa de um tempo que parecia se perder desde que
conheceram a segurança da proteção da sociedade de Cláudio.

À mesa fumegava o rosbife, retiniam os talheres.

Cláudio já lhe dissera que estava linda?

Sorrindo, com vontade de derramar o vinho não no copo mas naquela careca nojenta,
respondeu que sim, que ele já lhe dera a honra de ouvir aquilo.

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O preço da traição

A carne estava deliciosa. Cláudio lambia os beiços. Bem temperada, tenra, perfeita,
disse, olhando de soslaio o colo de Leslie, que não se pintava mas gostava de decotes. Os outros
homens igualmente se fartavam. Macarrão importado acompanha o prato principal, salpicado de
milho e atum. A carne de fato muito tenra Leslie se esmerara em bate-la, levando para cozinhar
o tempo certo, tudo cronometrado, para que todos ficassem satisfeitos. A aparência dos pratos
fez água na boca de todos, Fora um dia difícil. Ninguém relaxara. Agora, com a adesão dos
homens de Berebger conseguida, estavam todos exaustos e famintos.

A adesão dos homens de Berebger... os mesmos que pela manhã seguiam Bruno e
Zenon pelas ruas batidas de Tundra. Ali estavam dispostos a seguir as ordens de Molinari
quando por alguma razão Cláudio ali não estivesse para dá-las. O corpo de Berebger nem
esfriara estirado no instituto médico legal em Empatia. Bruno entendia aquilo como o maior dos
elogios e se punha realizado, Leslie nem chegava a ficar por demais chateada com isso como se
fosse uma ausência que alimentaria de saudade o seu amor quando o amado voltasse a si. Os
homens mastigavam a carne quente e macia como se não houvesse amanhã, como se todo
destino estivesse ligado à voracidade com que se lançavam ao prato.

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O preço da traição

Quando limpavam os lábios com guardanapos que apenas mulheres mais atentas
perceberiam encardidos, Cláudio falou. Deixem-me arrazoar um pouco mais sobre esse rapaz
cuja existência nos deixa um pouco mais tranqüilos. Temos alguém com tanto zelo assim pelo
nosso bem e pelo bom andamento de nossos assuntos, temos Bruno Molinari. Mais tarde, todo
já se haviam retirado, mas Cláudio deve ficar. Foi veementemente convidado, embora nem fosse
necessária tanta insistência de Leslie, para que passasse a noite na casa de seus anfitriões.
Entendeu o recado. A cadela...

Bruno disse a Zenon que, sabe, estava pensando naquela ulorixá. Foi corrigido:
Ialorixá, senhor vice-presidente. Tudo bem. Mas antes de tudo eram amigos.

– Deixe de bobagem.

Falavam, é claro, da filhinha-de-santo, da pretinha gostosa? Ela dissera que Bruno


levasse em conta o que o velho profetizara. Mas ele argumentou que se ele próprio não cuidasse
de si, nenhuma adivinhação viria em seu socorro.

A cidade dorme no silêncio cansado de outra noite bêbada. As folhas das árvores
farfalham à brisa da manhã. Bruno Molinari, o que ele pensava ser e querer e os meios
que achava lícito para alcançar as coisas pretendidas, e aquele outro ser dentro dele, que
Leslie deixava claro amar tanto, o que lhe era tão fundamental, entraram enfim num
anunciado impasse. Sente-se doente daqueles males cuja convalescença será quase
sabática, quebrará uma rotina e nas revelações pertinentes a essa quebra sábias decisões
serão tomadas. Não sabe dizer se está melhor ou pior, decerto diferente, entorpecido,
atilado, tem um corpo quase paralelo às vicissitudes de seu ser, como se sonhasse, como
se estivesse mais desperto do que nunca, com os olhos mais abertos ou mais fechados
que jamais.

Os que dançaram e a madrugada atravessaram, estiram agora seus corpos em


qualquer lugar da praia, fornicam na encosta da Colina Efe, ou se arrastam em busca de
um quiosque na sobrenatural busca de um sentido, sem rumo exceto o próximo trago de
crack ou a quimera das macumbas, com olheiras fundas que apontam para o vazio das
velas sete-dias coruscando na treva geral.

Às 7:30, Carlo Guisem estava batendo à porta de Bruno.

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