E
à memória do mestre Raimundo Irineu Serra, na expectativa de que os valores exaltados na
doutrina daimista, fundada por ele — Amor, Verdade e Justiça —, se tomem realidade.
Agradeço ao jornalista Bernardo Horta, que desde o início desta dolorosa jornada colaborou na
elaboração deste livro movido por um profundo desejo de que cheguemos a um final feliz.
SUMÁRIO
Prólogo ........................................... 09
LSD e Revolução .................................... 11
AJornada do Herói.................................. 47
Lavagem Cerebral................................... 61
O Xamanismo...................................... 71
Mestre Irineu....................................... 93
As Fardas. ........................................ 105
Sebastião Mota ....................................111
A Cura da Aids I ................................... 123
A Cura da Aids II .................................. 131
A Cura da Aids III.................................. 139
UDV. ............................................ 145
A Barquinha ...................................... 151
A História ........................................ 161
Jambo ...........................................211
CONFEN......................................... 219
Conclusão ........................................ 231
Glossário......................................... 237
PRÓLOGO
Este livro tem como objetivo a denúncia. Não foi escrito com finalidade literária. Nem poderia,
já que, sendo estrangeira, não sei escrever corretamente em português. Desconheço a gramática
portuguesa, suas regras, técnicas de redação, leis de concordância e outros elementos
necessários para a prática da literatura.
A consciência de que a denúncia tinha que ser feita compeliu-me a passar por cima da questão
formal.
Trata-se de uma denúncia complexa, que abrange diversos assuntos. O principal deles, em
torno do qual giram os outros, é o uso da bebida conhecida no Brasil com o nome de "santo
daime", (ayahuasca) e sua utilização dentro de uma atividade religiosa desenvolvida por uma seita
que se alastra por todo o país e se estende até a Europa, os EUA, o Japão e outros países da
América Latina.
A complexidade do assunto exigiu um relato autobiográfico para que o leitor pudesse entender
os caminhos que trilhei, os objetivos que me levaram a percorrê-los e os motivos éticos que me
determinaram escrever este trabalho.
Como a questão principal, o uso da referida bebida, não é muito conhecida pela opinião
pública, foram necessários alguns capítulos explicativos sobre as origens dessas práticas, bem
como a separação do joio do trigo, já que nem tudo que acontece é denunciável. Há muita coisa
louvável.
Obviamente não sou a única vítima, há muitas outras. Entre elas, minha filha, hoje com dezoito
anos.
Outras vítimas ajudaram de forma valiosa, fornecendo dados, relatando casos e incentivando
para que este trabalho se tornasse realidade, e assim fossem poupadas outras vidas.
Alguns nomes foram substituídos por outros fictícios, por necessidade de preservação pessoal.
Já os denunciados aparecem com seus nomes reais, para que não reste nenhuma dúvida a
respeito de quem estamos falando.
Com o fim de facilitar a compreensão dos leitores não familiarizados com tais assuntos foi
acrescentado um glossário.
LSD E REVOLUÇÃO
Em 1974, já morando no Brasil, por questões profissionais visitei o Equador. País estranho.
Naquele tempo, beneficiados com a crise do petróleo, os equatorianos viviam um dos seus
melhores momentos econômicos. O sucre, moeda local, valia mais do que o dólar, e a sociedade
equatoriana vivia uma verdadeira febre de consumo. As pessoas admitiam que não sabiam como
gastar o dinheiro, e, assim, Quito possuía a maior quantidade de restaurantes —em proporção ao
número de habitantes —do mundo. A febre de consumo era tamanha, que algumas pessoas
jantavam fora duas vezes na mesma noite.
Hospedei-me na casa de uma família de judeus prósperos, amigos dos meus pais, cujos filhos, que
estudavam nos Estados Unidos, encontravam-se de férias em casa, na cidade de Quito.
Logo fui convidada pelo filho mais velho a conhecer uma tribo indígena num lugar relativamente
próximo à cidade. Aceitei. No dia seguinte, bem cedo, pela manhã, partíamos numa camioneta,
quatro rapazes e eu. Me perguntava o porquê do convite, de eu tê-lo aceito sem pensar. Minha
intuição me dizia que a experiência seria legal.
A cidade foi ficando para trás, e a paisagem, cada vez mais empolgante. Quito é uma das capitais
mais altas do mundo, situada a mais de três mil metros de altitude, e nós subíamos por uma
estrada belíssima, atravessando montanhas, beirando lagos e rios.
A conversa, própria de judeus jovens, cultos e inteligentes, era salpicada por observações —por
parte deles —do gênero: "Olha que planta bonita! Qual será o efeito que ela tem se fumada?" Eu
carregava comigo um papel mata-borrão com uma quantidade de ácidos de excelente qualidade,
porém disfarçava. Fingia não entender. As insinuações continuavam. Chegamos a Otavalo, uma
vila muito mais alta do que Quito, cujos habitantes, conhecidos como "otavalenhos", apresentavam
fortes características orientais e diferiam de tudo o que eu conhecia, tanto na forma de vestir-se
quanto em hábitos e tradições.
Tanto os homens como as mulheres usam a mesma indumentária, e, segundo os meus cicerones,
há séculos é a mesma. Compõe-se de calças de brancura impecável, largas e curtas até a metade
da canela, blusa branca bordada, chapéu preto e um poncho preto dobrado e usado só de um
lado, por cima do ombro. As mulheres usam colares de diversas voltas no pescoço, bem
apertados, parecendo ouro, e tanto os homens como as mulheres têm o cabelo comprido e
trançado numa trança só.
O orgulho étnico dessa interessante população reside em não ter pertencido ao império inça, do
qual o Equador de hoje era uma remota província, e, ao mesmo tempo, de não ter-se deixado
dominar pelo conquistador espanhol. Assim, eles conservaram através de milênios sua identidade
cultural, suas tradições, seus mistérios.
A distribuição da vila, em torno de um mercado central, assemelhava-se à dos povoados tibetanos.
Numa parte do mercado vendiam-se ervas. Os rapazes conversavam com os vendedores de ervas
sobre alguma coisa que não prestei atenção. Soube mais tarde que era a respeito de alucinógenos
locais.
A altitude de aproximadamente três mil e quinhentos metros torna tudo muito diferente. O céu
parece estar mais perto. Durante o dia o calor era intenso, e o frio da noite também. No segundo
dia tomamos parte dos ácidos que eu tinha levado. A experiência foi agradável. O grupo se
harmonizou. Eles já o tinham tomado nos Estados Unidos, e parecia que nos conhecíamos há
muito tempo. No caminho da expansão da consciência, os relacionamentos são fundamentais. O
clima de camaradagem estabeleceu-se no grupo, e todos nos sentíamos felizes e plenos.
Havia um pequeno restaurante freqüentado pêlos hippies que descobriram o lugar. Entramos e
sentamos. No cardápio, no meio da lista dos pratos, estavam escritas pêlos clientes itinerantes, em
inglês, alemão, francês e outros idiomas, referências aos tipos de alucinógenos que se podiam
encontrar na região. Por exemplo: "O sanpedrito da dona Maria dei Socorro não é bom", "Se for
tomar a purga com Celestino leve chocolate", e outras com as mais variadas referências
alucinógenas, em diversas gírias internacionais.
Um índio jovem, com quem os rapazes tinham conversado no mercado, percebeu que estávamos
viajando e perguntou o que tínhamos tomado. Trocamos idéias com ele, e nos falou do "São
Pedro".
Eu já tinha ouvido falar que existiam em alguns lugares do mundo índios que utilizavam plantas
alucinógenas, mas era algo que me soava exótico demais. A possibilidade de vivenciar uma
experiência dessas nos deixou extasiados. No início, a proposta de permanecer em Otavalo era de
um ou dois dias, no máximo. Resolvemos ficar e encarar esses mistérios.
Eu estava eufórica, acreditava estar trilhando o caminho de Jack Kerouac, William Burroughs, Allen
Guinsberg, que eram, e continuam sendo, os maiores malditos da contracultura. Sabia que eles
tinham percorrido selvas, florestas e desertos atrás de substâncias expansoras da consciência,
que desenvolvessem a telepatia e aumentassem a percepção.
São Pedro é o nome sincrético de um cacto de três a seis metros de altura que só cresce em
lugares de mais de dois mil metros de altitude. Os índios preparam uma bebida que denominam
"cimora", fervendo pequenas fatias do cacto. A cultura indígena lhe atribui a propriedade de "abrir
as portas do céu", daí o nome de São Pedro. Seu princípio ativo é a mescalina, igual ao do peyote
mexicano.
Acertar os detalhes de como, quanto, onde e com quem foi fácil. À noite tomamos a cimora, na
casa de um curandeiro.
Não havia conforto algum, era cansativo. O curandeiro — ou xamã — utilizava um chocalho e
entoava alguns cânticos que me pareciam mantras. Alguém explicou que se chamavam "ícaros",
que eram algo assim como um mantra pessoal e que os curandeiros recebiam seus ícaros do
astral, numa espécie de iniciação.
Comparando com a experiência de expansão da consciência que eu mais conhecia na época, o
LSD, poder-se-ia dizer que foi uma viagem leve. Mas foi o bastante para sentir com clareza que
me encontrava frente a uma das mais misteriosas vivências que o ser humano pode atingir, e que
por trás dessas pessoas tão estranhas havia um conhecimento que vinha sendo guardado há
milênios e que dependeria da minha atitude desvendá-lo ou não.
A sessão acabou sem maiores acontecimentos, e voltamos para a hospedaria, a pé, numa noite
sem lua, silenciosos e introvertidos.
Ficamos com vontade de aprofundar a viagem. Nos dias seguintes procuramos saber de algum
curandeiro que trabalhasse com ayauhasca, mas parecia que não era o momento. Matamos a
vontade de viajar acabando com meu estoque de papel mata-borrão.
Quando retornamos a Quito, procuramos saber mais sobre a misteriosa bebida que tinha sido
impossível encontrar. Conseguimos a informação de que o caminho era procurar nas regiões de
floresta amazônica e de que a área de Iquitos, no Peru, era uma das mais apropriadas.
Como a minha passagem de retorno ao Brasil percorria Quito — Lima — Santiago — Buenos
Aires e, depois de alguns dias. Rio de Janeiro, achei interessante desdobrá-la, e assim, junto aos
meus parceiros de aventuras, embarquei rumo a Iquitos.
Não foi difícil. Chegamos numa quinta-feira e na sexta já sabíamos que os curandeiros,
vegetalistas ou ayauhasqueiros abriam os trabalhos geralmente aos sábados.
Passamos o dia colhendo informações de como escolher o melhor deles. Achava estranho pedir
seriamente referências sobre algo que ainda considerava um "barato".
Os conselhos que recebíamos e os critérios utilizados me resultavam um tanto hilariantes. Todo
esse vaivém aumentava nossa expectativa. Após horas de procura, sentamos numa sorveteria
para checar e cruzar informações e democraticamente escolhemos um deles e acertamos todos os
detalhes para o trabalho, que começaria no sábado à noitinha. Nossa ansiedade não tinha limites.
Recebemos instruções de fazer abstinência de sexo, álcool, outras drogas e carne de porco.
Finalmente chegou o momento. O local era uma espécie de palhoça de aproximadamente vinte
metros de diâmetro. No centro, o ponto do curandeiro: uma mesa com objetos de poder —cristais,
penas, imagens etc. — e alguns garrafões com um líquido marrom esverdeado. Olhando para o
conteúdo do garrafão, tive a idéia de que estava frente a um poder que teria uma influência
determinante na minha vida. O curandeiro discursava, enquanto as pessoas acabavam de chegar
e calmamente buscavam um lugar para se acomodar. O discurso era uma ladainha de feitos
maravilhosos relatados pelo vegetalista como obra do seus poderes, e dava para perceber logo
que a modéstia não era seu forte. Falava sobre curas que tinham acontecido com pessoas que
tomaram a purga preparada por ele, de como achava feitiços nas pessoas e as livrava deles.
Enfim, se a metade fosse verdade, estaríamos na presença de um dos homens mais poderosos do
mundo. Dava para perceber que entre as pessoas presentes havia outros curandeiros. Após todo
mundo ter encontrado um lugar para se ajeitar, houve um breve silêncio, seguido de uma reza
conduzida pelo curandeiro e acompanhada pêlos presentes, e deu-se o inicio da sessão.
Um a um fomos bebendo um copo daquele líquido de sabor ácido e enjoativo e voltando aos
nossos respectivos lugares. O mestre curandeiro entoava seus ícaros. Quando calava, alguém
dentre os outros curandeiros presentes entoava o seu. Eles não deixavam o silêncio tomar conta.
As pessoas iam se aquietando, e os ícaros quebrando o silêncio davam-me a impressão de que
rasgavam um véu invisível que nos estava levando a outra dimensão.
Comecei a sentir alfinetadas pelo corpo todo. Ao mesmo tempo, minha cabeça disparava. Como
num filme acelerado, imagens de minha vida se misturavam, ao mesmo tempo que parecia haver
uma voz em off dentro de mim que fornecia uma explicação de cada visão. Compreendi que estava
tendo visões, embora a mente pouco ou nada pudesse compreender. Os ícaros tinham um papel
fundamental: seus sons pareciam abrir minha consciência para um conhecimento deslumbrante.
Quando entre um e outro fazia-se um pequeno silêncio, a experiência ficava difícil e algumas
pessoas saíam para vomitar. Entendi por que quando tomávamos o LSD dávamos tanta
importância ao som.
O que mais impressionava era a velocidade com que a consciência funcionava. Adquiri a certeza
de que existia uma realidade invisível, que dava sustentação ao universo tridimensional que
acreditamos conhecer. O invisível suporte do visível. Neste conceito cabiam todas as buscas da
humanidade, atrás de sabedoria, poder, magia, conhecimento e também religião — religação.
A nossa cultura academicista, universitária, cartesiana, lógica e petulante tinha criado tal crosta
nas consciências, que a função de Aldous Huxiey e Thimoty Leary, ao nos guiar pela senda
alucinógena, era de pôr-nos em contato com um removedor de couraças semelhantes a inúmeras
camadas de tinta, que precisavam de uma substância que progressivamente as amolecesse, para
posteriormente removê-las. Era esse também, num nível mais massificado, o efeito do trabalho dos
Beatles ou dos concertos de bandas de rock:
através da sua música, muitas vezes ouvida em estados de consciência alterada, pessoas no
mundo inteiro rasgavam o mesmo véu que separava os diversos níveis de realidade, da mesma
forma como nós o estávamos fazendo nessa palhoça. A diferença residia na metodologia. Essa
forma um tanto indígena, um tanto mestiça, parecia ser mais garantida, ao menos era legal, não
dava cadeia, e transmitia uma segurança silenciosa através de seus enigmáticos oficiantes.
Algumas pessoas levantavam e saíam às pressas para vomitar e quando retornavam aos seus
lugares aparentavam se sentir melhor.
Quando o trabalho acabou, uma corrente de tranqüilidade e bem-estar espalhava-se por todos os
cantos. Senti vontade de conversar com as pessoas, de saber o papel que a ayauhasca ocupava
na vida delas. Assim, fiquei sabendo que, na sua maioria, integravam as camadas mais carentes
da população, ou seja, não tinham acesso a boas escolas e muito menos a universidades. Serviço
de saúde, nem pensar! Recorriam à ayauhasca em busca de alguma cura, da solução de algum
conflito, para se livrar de algum trabalho de inveja ou de mau-olhado. Não pareciam nem um
pouco preocupadas com as questões éticas e/ou esotéricas que nos afligiam. Aceitavam natural e
espontaneamente que a poderosa bebida os levasse ao ponto invisível onde o poder se
manifestava.
Na volta ninguém conseguia dormir, nos sentíamos eufóricos e ao mesmo tempo cansados, porém
não era fácil transmitir o que acontecia com cada um. A telepatia imperava de forma amena.
No dia seguinte, cada um tomou seu rumo. Eles de volta a Quito, e depois para os EUA, eu para
Buenos Aires, a caminho do Rio de Janeiro, Uma certeza: não éramos mais os mesmos. A
ayauhasca assemelhava-se a uma iniciação, um batismo. Nunca mais tive notícias dos meus
companheiros; não sei se continuaram a jornada.
O avião fez escala em Santiago do Chile. Eram os primeiros tempos da ditadura militar do general
Pinochet. Os carabineiros (a polícia chilena, calcada nos moldes da Gestapo) entraram no avião e
ostensivamente revistaram as bagagens de mão e nos comunicaram que quem estava em trânsito
deveria permanecer no avião, numa espera de mais de três horas. Normalmente minha reação
teria sido algo como pedir para descer, criar algum caso para exercitar a contestação às normas
impostas. Em vez disso, para minha surpresa, fiquei calma, sentada na poltrona, meditando sobre
o poder que as sociedades repentinamente investem em oficiais, soldados e policiais, que na
maioria das vezes atuam de forma irracional e gratuita.
Algumas horas depois, estava em Buenos Aires. Meus pais e minha família moravam lá. Eu sabia
desde criança que esse não era meu lugar, sem saber sequer o porquê. Não é à toa que na época
já morava no Rio de Janeiro.
Estava frio, era um inverno rigoroso que contrastava com o clima agradável da Amazônia e do
Equador. Atravessando a cidade, compreendi que para mim ela representava o lugar no planeta
onde vingava um conhecimento que seguia a trilha oposta à da ayauhasca. Tive a certeza de que
não era o meu lugar. Os valores que sustentavam essa cultura não eram os que eu buscava. Pelo
menos tinha a certeza do que eu não queria.
Nos dias seguintes em Buenos Aires, tive algumas experiências desagradáveis que me deram a
determinação de me instalar definitivamente no Brasil.
Parecia haver um efeito retroativo na ayauhasca ou talvez a porta de percepção que ela me tinha
aberto nunca mais se fechasse.
Sentia uma enorme diferença na minha forma de compreender os fatos do cotidiano.
Na volta ao Rio, a experiência peruana era cada vez mais presente.
Reencontrei os amigos brasileiros, companheiros de viagens, e resolvemos marcar uma data para
tomar ácido juntos.
Nesses tempos, cada vez com mais freqüência, tinham-se noticias de alguém que tinha embarcado
em alguma bad trip ou que tinha "comido uma pálida" —referência à palidez que caracteriza a
queda brusca da pressão sanguínea. Eu mesma achava que os ácidos não tinham mais aquela
conotação divertida das primeiras experiências. O divertido dava lugar ao cáustico. No início
achava graça nas contradições e absurdos da nossa realidade, que o ácido me mostrava. Depois
de um tempo ou de certa quantidade de experiências alucinógenas, as incoerências tomavam-se
cada vez mais nítidas e mais difíceis de serem aceitas. Ai residia o foco da bad trip. Muitos se
atiraram de janelas, cometeram loucuras, achando que sair desta para a melhor era a chance.
As viagens de ácido, depois da ayauhasca, tomaram-se desagradáveis.
Era possível sair do corpo, porém ficava difícil voltar. Compreendia, no Rio de Janeiro, a
experiência de Iquitos: os ícaros garantiam a viagem e seu correspondente retorno ao corpo. O
xamã, ou curandeiro, era o elemento mediador que estabelecia a conexão entre os dois planos da
realidade.
Resolvi parar de usar LSD e, já que no Rio a possibilidade de achar ayauhasca era remota,
prometi a mim mesma que um dia iria para a Amazônia aprender mais com a poderosa bebida.
Enquanto isso não acontecesse, trilharia somente os caminhos tradicionais:
ioga, meditação, sufismo...
Assim, além de praticar ioga, adquirir técnicas de meditação, estudei Patanjali, Krishnamui ü,
recebi algumas iniciações na ordem rosacruz, e mergulhei na teosofia, a doutrina secreta de
Helena Blavatsky. Freqüentei as escola do quarto caminho, cuja proposta me fez reconhecer
alguma antiga empatia, talvez originária de vidas passadas, e encontrei nas práticas deixadas pelo
mestre Gurdief o trabalho ao qual eu mais me adaptava.
O VEGETAL
O DAIME
Em 1983, um dos meus objetivos imediatos era ir morar fora da cidade do Rio de Janeiro. Alguns
meses após ter tomado o vegetal mudei-me para Penedo, que, apesar de estar a uma distância de
menos de três horas do Rio de Janeiro, afastava-me psicologicamente da experiência com o
vegetal.
Uma das primeiras pessoas que conheci em Penedo — uma colônia fundada por finlandeses no
interior do estado do Rio — foi a Patrícia, dona de uma loja de artesanato, com quem fiz alguns
negócios de compra e venda.
Nesses dias vi no Jornal do Brasil um anúncio do lançamento do livro de um ex-guerrilheiro, que
morava em Visconde de Mauá (RJ), a pouco menos de trinta quilômetros de Penedo, a respeito de
uma bebida alucinógena (o santo daime) e suas experiências numa viagem que ele teria feito a Rio
Branco. O Livro da Mirações tinha seu lançamento marcado para o dia seguinte — por
coincidência eu estava com planos de ir ao Rio nesse dia — no teatro da praça Cardeal Arcoverde,
em Copacabana.
Pensei comigo mesma: vou lá, compro o livro, peço para ele autografá-lo e pergunto se trouxe o
santo daime, e se eu poderia tomar. O lançamento estava previsto para as oito da noite. No teatro
não cabia mais um alfinete. As onze da noite, Alex Polari de Alverga, o autor, não tinha chegado.
Fui dormir com a sensação de que não fora desta vez.
Retornei a Penedo. A Patrícia, a quem eu conhecia superficialmente e só por aquelas poucas
transações comerciais, veio me visitar com a intenção de se despedir de mim, já que tinha vendido,
a loja e o sítio onde morava e estava de mudança para Visconde de Mauá.
Pouco ou nada sabia a seu respeito, porém perguntei-lhe: "Você conhece um sujeito chamado Alex
Polari?" Ela estranhou a pergunta, ficou encabulada e quis saber o que eu quereria com ele.
"Eu soube que ele lançou um livro sobre o santo daime, e eu já tomei ayauhasca e o vegetal, e
estou querendo conhecer o daime", respondi.
Ela suspirou e disse:
"Agora entendo o que me trouxe aqui. Na hora que cheguei à tua porta, refleti: O que eu estou
fazendo aqui? Quase não conheço esta mulher, por que teria que me despedir dela? A questão é a
seguinte: eu estou me mudando para Mauá por causa do daime. Vendemos tudo o que tínhamos,
sítio, loja etc., e vou com a família toda, marido e cinco filhos. Compramos um sítio lá próximo ao
que será a futura comunidade e onde hoje tem a igreja".
Combinamos que ela me telefonaria quando tivesse um "trabalho" do qual eu pudesse
participar.
Mais uma vez a ayauhasca batendo à minha porta, mais uma vez a questão do terrorismo estava
presente, agora na forma de um ex-guerrilheiro.
Ela ligou na semana seguinte, e lá fui eu, subir as montanhas à procura da expansão da
consciência.
O lugar não poderia ser mais exótico. Chegava-se ao sítio, onde se encontrava a igreja,
atravessando outras três fazendas, uma delas da Patrícia, por uma trilha barrenta. Uma vez no
sítio, a aventura começava: a igreja ficava escondida em cima de um morro de uma altura
semelhante à do Pão de Açúcar, e a única forma de chegar a ela era uma trilha estreita e íngreme.
Vale a pena acrescentar que chovia. Bem na minha frente, vários homens com roupas brancas
carregavam outro, montanha acima, numa rede. Depois soube que o carregado era Alex Polari,
que estava tendo uma crise renal e não podia andar por suas próprias pernas, porém não queria
deixar de comandar o trabalho. A chegada lá em cima era deslumbrante; enquanto se subia não
dava para ver muita coisa, já que o mato alto nos dois lados da trilha atrapalhava a visão. Uma vez
no topo, a paisagem aparecia como que de repente. Toda aquela região é muito bonita, e o local
onde existia a primeira igreja, que foi demolida alguns anos mais tarde, é sem dúvida um dos mais
bonitos cartões-postais de Mauá.
Além do magnetismo do local, alguns poucos "fardados" começaram a chegar, aumentando assim
o clima de mistério. Era a primeira vez que via a "farda", roupa que não se parece com nenhuma
indumentária conhecida. As mulheres usavam coroa! As "fardadas" eram uma senhora acreana,
chamada "madrinha" Cristina, e a Sônia, sendo esta última esposa do Alex. A Patrícia estava "se
fardando" nesse dia.
Veio alguém me dar as explicações de como seria o trabalho. Eu as achei desnecessárias. Já tinha
tomado a bebida, tinha estudado e praticado a doutrina sufi, onde os bailados duram horas, até a
exaustão, e fazem parte do caminho para se atingir a expansão da consciência.
O trabalho começou. O Alex estava no comando, sentado numa espécie de trono, não podia bailar
devido à doença. A Sônia deu início à música e ao bailado. Era dia de São José de 1984, hinário
(conjunto de hinos) do Alfredo Mota. Alguém me emprestou um hinário e um maracá. Após poucos
hinos entrei no bailado, tentando sincronizar leitura, passo, maracá e alinhamento na fila —era
muito difícil. Era muito mais do que a minha vã presunção poderia imaginar. Quando pensei que
estava conseguindo, alguém me chamou uma fiscal — e falou: "Vamos pitar!"
Saímos, na chuva, andamos um pouco até uma casinha de sapé e plástico preto e pitamos, ou
seja, fumamos um cigarro de maconha.
Retornando, tentei entrar novamente na corrente (conjunto de pessoas bailando). Não me
lembro bem se ainda consegui bailar um hino: o mundo desabou. Apaguei de um jeito como jamais
tinha acontecido em toda a minha performance alucinógena — desmaiei.
Ouvia as vozes das pessoas que, enquanto me carregavam, diziam para si mesmas: "Vamos
colocá-la perto do Alex". Acredito que deve ter sido em alguma poltrona perto dele. Eu não
conseguia entender nada. Os hinos penetravam na minha consciência com a força de um furacão.
Eu achava que estava morrendo. Ao mesmo tempo, não achava nada. A minha mente havia saído
dos trilhos. Nunca até o momento eu tinha vivido uma experiência na qual eu não pudesse manter
o controle da situação. Pensava na minha filha, quando soubesse que eu tinha morrido, ria de mim
mesma e do absurdo que era esse temor da morte, e os hinos relatavam meus medos como se
estivessem sendo cantados só para mim.
Apesar do caos mental, uma coisa ficava bem clara: enquanto os hinos eram cantados, a
consciência se iluminava, e dava para perceber com clareza que estávamos dentro de um poder
superior.
Nesse tempo, o ritmo do ritual era fraco, os músicos idem, e quando acontecia uma pequena
demora entre um hino e o seguinte, minha consciência começava a entrar numa área obscura, os
medos voltavam, o desespero tomava conta. Então ouvia-se a voz do Alex cobrando da Sônia para
não demorassem a reiniciar a música. Parecia que ele sentia quando aumentava a sombra.
É preciso dar o testemunho de que esse trabalho, esse hinário foi a mais intensa experiência
de transcendência que jamais sonhei ou imaginei ter. Tudo o que eu tinha estudado até o momento
era confirmado através dos hinos de forma poética e profunda. O hino oitenta e quatro, do Alfredo
Mota, diz:
"O daime é o daime eu estou afirmando
é o Divino Pai Eterno e a Rainha Soberana.
O daime é o daime O professor dos professores
É o Divino Pai Eterno E seu Filho Redentor.
O daime é o daime
O mestre de todos os ensinos
É o Divino Pai Eterno
E todos os seres divinos".
Essa experiência marcou a minha entrada num plano da consciência universal, onde jamais
pensaria chegar. Numa das mirações vi a mim mesma numa vida anterior, num lugar semelhante a
Stonehenge, num ritual da antiguidade e com as mesmas pessoas que estavam no daime,
explorando os mesmos níveis de conhecimento.
Quando o trabalho acabou, já com o dia claro, eu não podia acreditar no bem-estar e na alegria
que sentia. Não esperava ouvir grandes verdades iniciáticas. A madrinha acreana chegou sorrindo
e me cumprimentou dizendo: "O daime te mostrou, né?". No momento lembrei-me dela bailando,
do seu porte, da sua leveza, e decidi: "Vou ficar neste caminho e desvendar estes mistérios".
A partir desse momento passei a tomar daime praticamente toda semana. Morava a trinta
quilômetros de Mauá. Tinha uma loja onde atendia os turistas até sábado as cinco da tarde, e
domingo a partir das nove da manhã. Nos dias em que havia trabalho, fechava a loja, começava a
subida da serra para Mauá, com chuva, atoleiros e todos os componentes que tornavam a
experiência mais desafiadora ainda, e chegava na hora de os trabalhos começarem. Ao
amanhecer
— com o término dos trabalhos, que costumavam durar doze horas
— era a primeira a sair, descer aquela serra, como quem passa de um plano a outro da
consciência, sabendo o que está fazendo. Chegando em casa, após um banho, retomava o
atendimento no comércio, como se tivesse dormido a noite inteira. Achava que esse desafio era
mais uma proposta de autodomínio dentro da qual o trabalho espiritual fazia ainda mais sentido.
O frio das madrugadas em Mauá numa igreja sem paredes, após várias doses de daime, é algo
que jamais esquecerei. Houve uma madrugada em que, por volta das quatro horas da manhã, os *
trabalhos foram suspensos porque a água do "ponto", do local, estava congelando.
E eu, que sempre tinha sido sensível ao frio desde criança, precisando tomar cuidados especiais,
percebia que lentamente a proposta sufi do trabalho estava dando seus frutos, que pouco a pouco
minha resistência ao frio aumentava paralelamente a minha compreensão.
Mesmo assim, passava muito mal. Observava que o grupo ia se tornando mais homogêneo e o
comportamento das pessoas mais estereotipado.
O autoritarismo grassava, em especial nas mulheres. A função de fiscal (pessoas que organizam
os trabalhos) parecia avalizar comportamentos dignos de carcereiros ou guardas de campos de
concentração. Exatamente o oposto a tudo aquilo que se cantava nos hinos. À frente desta atitude
estavam o Alex e a Sônia. E, para tornar mais absurda a situação, cariocas, paulistas e mineiros,
entre outros, adotavam o jeito acreano de ser: sotaque, hábitos e modos próprios daquelas
pessoas que vinham de um lugar tão distante nos ensinar os mistérios dessa poderosa bebida. Tal
atitude parecia-me uma estranha simulação por parte dos novos adeptos, que não haviam nascido
no Acre.
A cada trabalho minha proposta de desenvolvimento individual dentro do coletivo ficava mais
determinada. As atitudes que eu condenava nas pessoas funcionavam como um espelho ao
contrário.
Muitas vezes fiquei chocada ante situações de injustiça, de arbitrariedade, de fanatismo. A
resposta era o vômito. Vomitava tanto os "sapos" que tinha engolido ao longo da vida, assim como
os que decorriam de acontecimentos no grupo. Achava que era o meu padrão de aprendizado, que
por alguma razão tinha que expandir minha consciência com essas pessoas tão diferentes de mim
mesma.
E, apesar de tudo, dois anos após a primeira experiência com o daime — também no dia de São
José — fardei-me (ingressei na doutrina), pois considerava que ali poderia desenvolver minha
espiritualidade, rumo ao conhecimento. No dia 20 de março de 1985 entrei formalmente para o
CEFLURIS, uma das instituições daimistas fundadas no Acre, que fazem uso da ayauhasca.
A questão não era tão esotérica assim, era falta de outra opção mesmo.
Mais uma vez encontrava sustentação em Aldous Huxiey. A respeito disso, ele tinha dito:
"A experiência alucinógena faz com que as pessoas assimilem afirmações religiosas
do calibre de: Deus é Amor, ou Embora Ele me extermine, ainda assim confio Nele.
Não é preciso dizer que esta espécie de auto-transcendência temporária não é
garantia de um esclarecimento permanente ou de um aperfeiçoamento duradouro de
conduta. É uma graça gratuita, que nem necessária nem e, suficiente para a
salvação, mas que, usada apropriadamente, pode ser enormemente útil para aqueles
que a receberam. E isto é válido tanto para as experiências que ocorrem
espontaneamente, para as que são o resultado de ter engolido alguma coisa ou
substância, ou para as que decorrem de exercícios espirituais ou mortificações
corporais".
A JORNADA DO HERÓI
"Somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto
psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, para assumirmos, dai
por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar, e que mais tarde
precisarão erguer-se sobre os próprios pés. É uma enorme transformação e seria,
certamente, um ato heróico, caso fosse praticado conscientemente. E existe aí também um
ato heróico de parte da mãe, responsável por tudo isso."
Otto Rank
Quem de nós, quando criança, ao ouvir uma história de heróis ou assistir a um filme de aventuras,
não imaginou a si mesmo como o personagem central, aquele que vence o monstro, resgata a
mocinha e acaba sendo carregado nos ombros da multidão?
Há em todo ser humano um herói em potencial, e isso é o que faz a vida ser uma grande jornada.
E para que esse herói possa se manifestar, é preciso subir montanhas, percorrer trilhas, lutar
contra dragões, atravessar desertos, rios, territórios inimigos, entrar em outras galáxias, enfrentar
criaturas monstruosas, descer aos infernos, atrás de um objetivo ou ideal. Ou seja: ser capaz de
adquirir novos conhecimentos vencendo os perigos, superando as adversidades e os medos.
Este objetivo está sempre presente nos mitos e nas histórias em forma de uma proposta ou de um
desafio. É preciso encontrar um tesouro escondido, resgatar uma donzela ou alguém prisioneiro,
libertar uma cidadela das mãos de algum poder malvado. Para isto é preciso que o herói vença o
medo do desconhecido, que saiba suportar a solidão e a rejeição, que tenha claros seus objetivos
e metas e,, acima de tudo, que tenha confiança na sua "capacidade de ser herói".
Esta capacidade reside em todo ser humano. Porém, a sociedade contemporânea não estimula
seu desenvolvimento. Desta forma, quem consegue realizar sua jornada heróica exerce grande
fascínio, pois se toma um modelo de pessoa capaz de ousar, de assumir riscos e de não se
intimidar pelo extraordinário e/ou pelo desconhecido.
Cada vez que alguém consegue superar seu próprio sofrimento, transforma-se num testemunho do
poder da energia criativa da vida existente em cada um de nós.
As montanhas, os rios e os desertos que devem ser atravessados, os inimigos e monstros a serem
vencidos simbolizam as dificuldades que cada um deverá encontrar para se tornar o herói. Caso
não consiga, será uma vítima. Não existe uma terceira possibilidade.
A jornada do herói começa no ato de nascer, porque de alguma forma, ao respirar por nós mesmos
pela primeira vez, gravamos na nossa consciência que há determinadas coisas que ninguém
poderá fazer por nós. Trata-se da caminhada para o amadurecimento de nossa capacidade para
suportar as dores, carregar as humilhações, as incompreensões e a solidão.
Assim, utilizando essa linguagem simbólica, durante milênios, os seres humanos tentaram
encontrar o caminho para transcender as limitações das suas vidas. As histórias de heróis e
heroínas foram transmitidas oralmente, pêlos mais velhos, tanto na forma de contos infantis como
em peças de teatro, na literatura ou nos mitos.
Nessa linguagem simbólica o lado obscuro da realidade, que permanece encoberto, os mistérios
ocultos dos quais nada conhecemos, são representados pelas paisagens sombrias, pêlos locais
ermos ou pêlos personagens oriundos das camadas mais baixas da população. E os
acontecimentos que o herói atravessará neles ou com eles, geralmente envolvendo viagens
perigosas, são a sua descida até o mundo da sombra coletiva, de onde ele retornará para o limiar
da consciência, porém já com algum elemento que simbolize a integração dessa sombra. Ou seja,
a conscientização de emoções, sentimentos e desejos que sempre estiveram com o herói e ele
ainda não sabia.
Uma estrutura de personalidade estável só pode ser encontrada num ser humano capaz de
integrar "a sombra", a dualidade.
O conceito de sombra se refere ao que está inconsciente dentro de cada um de nós. A mitologia
costuma utilizar a imagem do dragão como inimigo tradicional do herói. Obviamente, o tipo de
herói, assim como o de dragão, varia de cultura para cultura e segundo a faixa etária do nosso
herói. O dragão pode estar representado nos poderes destruidores da natureza capazes de
produzir catástrofes, nas provas escolares, nas doenças, no envelhecimento, na criação dos filhos
ou em qualquer outro elemento que implique perigo ou limitação para a vida do herói.
Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos contemporâneos do mito do herói, disse:
"Os incidentes fantásticos e irreais representam triunfos de natureza psicológica, e não
física".
Todas as culturas são cheias de histórias de heróis que foram, venceram e voltaram, e tais
histórias formam parte da tradição oral de muitos povos e que cada geração passou para a
seguinte.
Joseph Campbell estabeleceu um paralelo entre todas as culturas e os mitos dos seus respectivos
heróis: para concluir com sucesso a jornada, ele precisa cumprir três estágios básicos: "separação,
iniciação e retorno".
A separação, a partida, pode ser física ou psicológica: o herói precisará entrar em outros mundos,
reais ou simbólicos, regidos por outras leis, onde não terá aliados ou amigos e onde deverá
enfrentar os desafios. Essa fase está associada, na maioria dos casos, ao corte simbólico do
cordão umbilical, ao fim da dependência psicológica da figura dos pais. É uma fase que precisa de
ousadia, de capacidade de se abrir ao novo.
Como se verá em capítulo posterior, se esse processo não for cumprido na sua plenitude, se a
separação não for bem resolvida, o ser humano heróico encontrará dificuldades nas próximas
etapas da sua j ornada.
Ao enfrentar os desafios, acontece a iniciação. Esse é um estágio especial de provas e vitórias. É
um tempo na vida do herói em que ele está "morto" para o mundo dos seus. Esse estágio acontece
em territórios desconhecidos, em cidadelas inimigas, em florestas ou em regiões isoladas. O perigo
dessa etapa reside na possibilidade de o herói se perder em labirintos. Aqui ele encara o dragão,
corre os maiores riscos, questiona valores e normas sociais dominantes, desce aos infernos e
transpõe seus limites. O sucesso desse estágio se traduz na aquisição da capacidade de tomar as
rédeas da sua própria vida.
No retorno, terceira e última etapa do processo, acontece a reintegração ao seu meio, à sua
sociedade, da qual se afastou no inicio da jornada. É o momento das recompensas ligadas ao
sucesso por ter conseguido vencer o estágio anterior, que denominamos "iniciação". Às vezes,
essa etapa da jornada é a mais difícil. Após seu longo afastamento, onde vivenciou processos
dolorosos de transformação, ele poderá encontrar dificuldades para se reintegrar à situação inicial.
Mas esse é também o momento da possibilidade de um final feliz, da integração da sombra.
A revolução industrial trouxe mudanças de hábitos e costumes que transformaram
profundamente a vida dos indivíduos: ideais democráticos, autodeterminação, maquinarias que
facilitaram o trabalho, métodos científicos de pesquisa. O que, por um lado, se apresenta como
melhora das condições de vida do homem na Terra, por outro, fez entrar em colapso a linguagem
simbólica dos mitos que sustentaram durante milênios a psique humana — o conjunto dos
processos psicológicos de nossa raça.
No século passado, Nietzsche já avisava nas palavras do seu personagem Zaratustra: "Mortos
estão todos os deuses".
O herói moderno, hoje, não sabe para onde caminha. Campbell acrescenta:
"Não se sabe o que move as pessoas. Todas as linhas de comunicação entre as
zonas consciente e inconsciente da psique humana foram cortadas e fomos divididos
em dois. No consultório do psicanalista moderno, os estágios da aventura do herói
ainda aparecem nos sonhos e nas alucinações dos pacientes. Camada após camada
de falta de auto-conhecimento é penetrada, exercendo o analista o papel de auxiliar
de sacerdote que conduz a iniciação. E, sempre, passados os primeiros percalços da
jornada, a aventura se desenvolve, seguindo uma trilha de trevas, horror, desgosto e
temores fantasmagóricos".
O CONTADOR DE HISTÓRIAS
0S SOLITÁRIOS
A partir de todo esse processo de transformação das sociedades, com a dissolução das grandes
estruturas familiares, com a aceitação do divórcio como prática freqüente, com a pílula e a com
revolução sexual, no mundo inteiro começa a aparecer a cultura dos singles, das pessoas que
moram sozinhas, com independência financeira e poucos vínculos afetivos duradouros.
Esta nova forma de viver é incentivada também pêlos padrões de consumo, que produzem tudo
para solitários: apartamentos de um quarto, freezers com capacidade de conter a alimentação para
uma pessoa, secretária eletrônica e todo tipo de prestação de ï serviços que antes eram
divididos entre os membros da família.
Assim, deslumbrados pela aparente "liberdade", milhões de pessoas no mundo inteiro enfrentam a
realidade de ser singies — e a solidão. Apesar do aparente padrão de realização existencial que
! essa forma de vida sugere, não demora em aparecer o vazio.
Quanto mais se tenta preenchê-lo, maior fica o buraco. As formas tradicionais de
preencher essa solidão são diversas. Enumerarei as mais freqüentes:
a) Consumir tudo o que vier pela frente, em especial aquilo que vem pronto para
indivíduos.
b) Sair, se divertir, namorar, "ficar", flertar, transar.
c) Ter um hobby ou praticar algum esporte.
d) Militar na política, abraçar alguma causa, adquirir uma ideologia.
e) Usar drogas ou beber.
Como estes itens se revelam insuficientes para preencher o tal vazio, muitas pessoas passam a
procurar "valores mais transcendentes", e é aí que aparece a busca da religião — a "religação"
com o sagrado — que promete ser, além de transcendente, duradoura. E são esses milhões de
pessoas no mundo inteiro que se tornam alvo das seitas.
No momento, a maioria das religiões tradicionais passa por uma fase de reajustes. As condições
de vida mudaram tanto que as religiões tiveram que mudar, em conseqüência disso. Aquelas que
só estavam defasadas da realidade uns duzentos anos tiveram que correr, e muito, para ficar só
cem anos para trás. Mesmo assim, seu discurso enfraqueceu.
Desta forma, surgem as seitas, organizações que, por seu tamanho e extensão, criam a
expectativa de que, se integrando a elas, o indivíduo, até agora isolado, insulado, passará a fazer
parte de um grande oceano de "irmãos de fé".
Um dos sintomas desse processo é o que acontece com as salas de cinema no mundo todo:
aqueles cinemas tradicionais, que foram construídos para serem freqüentados pelas famílias — e
durante algumas décadas embalaram várias gerações com histórias de heróis, mocinho e bandido,
aventuras, suspense e outros —, hoje, pelo hábito de assistir ao vídeo em casa, mudaram de
destino.
Foram comprados por organizações religiosas e transformados em pontos de pregação.
Assim, os mesmos locais onde a fantasia do celulóide permitia às pessoas encontros com
os heróis, com o mundo encantado, hoje são utilizados como "postos de lavagem cerebral".
A seguir, uma enumeração de características de personalidade que tornam as pessoas possíveis
alvos das seitas, elaborada pela Fundación SPES, organização não-governamental com sede na
Argentina, que presta atendimento terapêutico a pessoas que foram vítimas de seitas e aos seus
familiares:
1. Dificuldades na comunicação.
2. Alto nível de angústia.
3. Insatisfação geral com a vida.
4. Pensamento ou consciência do tipo mágico.
5. Pouca capacidade de aceitar a frustração.
6. Descontentamento com as normas sociais.
7. Medo de enfrentar uma realidade externa considerada caótica.
8. Ausência de propósito interno.
9. Necessidade de segurança, progresso, auto-valorização e poder.
10. Suscetibilidade aos estados de transe.
11. Encontrar-se em estado de crise, insatisfação e/ou instabilidade com os estudos, com a
profissão, com a vida social, afetiva etc.
12. Inquietações intelectuais e/ou religiosas.
13. Curiosidade ou interesse pelo desconhecido, esotérico e misterioso.
14. Imaturidade, identidade não consolidada.
15. Personalidade dependente.
16. Conflito materno, paterno, ou matrimonial permanente.
17. Comunicação familiar pobre.
18. Síndrome da ausência do pai.
19. Carência de guia, direção, controle e limites paternos.
20. Carência de atenção e afetos positivos incondicionais.
É interessante destacar que os itens citados podem propiciar tanto o uso de drogas quanto a
participação em seitas. Dentro das drogas, incluímos o álcool também. As duas atitudes, o uso de
drogas e a integração a grupos sectários, preenchem o mesmo vazio:
a falta de uma jornada. Se o primeiro passo da viagem do herói é a separação, neste caso ele é
dado tanto na busca da droga quanto de um grupo religioso. Ambos representam a entrada num
território desconhecido, numa galáxia diferente, que terá de ser atravessada ou um labirinto onde
nosso herói poderá se perder. Ambos oferecem algumas "garantias", que não demoram em
mostrar sua condição efêmera.
A aparente diferença só reside na questão legal, de resto a semelhança é grande. Na essência, as
drogas e os mecanismos de fanatismo representam o engano do herói, a trilha errada. O principal
resultado desse erro é a perda da capacidade de pensar e/ou agir por si próprio. Ou seja, o tempo
que o nosso herói que errou de caminho permanece usando drogas, ou dentro de uma seita, é
aquele em que ele está morto para o mundo, do qual se separou ao iniciar sua jornada. É o tempo
em que ele está ausente.
O passo que completa a jornada é o retomo. O herói tem que retornar. O importante é que ele
retome vencedor, o que neste caso significa recuperar a capacidade de ser ele mesmo, de ter
autonomia de pensamento. Como se verá mais adiante, os casos de suicídio ocorridos na seita do
santo daime podem ser compreendidos como o fracasso do herói na sua jornada. O apelo dos
daimistas, incitando a juventude a abandonar o "mundo de ilusão" e ir morar nas comunidades que
a seita mantém na floresta amazônica, representa uma das ciladas que o herói deve vencer. Na
verdade, essa retirada arrogante e presunçosa para "a torre de marfim" proposta na doutrina do
santo daime não é outra coisa que a incapacidade de lidar com os sofrimentos, com os atritos e
com os conflitos que a vida nos apresenta. Por trás do discurso da "doutrina salvadora" se esconde
a sombra que os daimistas não conseguem integrar. Muitos, como Jambo1, tiveram que enfrentar
dragões acima da sua capacidade e não conseguiram completar a terceira etapa da jornada — o
retorno —, transformando-se em mártires.
O crescente uso de drogas, assim como o desenvolvimento de inúmeras seitas no mundo inteiro,
nos faz refletir sobre a falta de espaço na sociedade contemporânea para que os indivíduos
possam realizar sua jornada heróica.
l Ver p. 211.
LAVAGEM CEREBRAL
Todas as culturas criaram através das religiões um emaranhado de normas e princípios éticos que
têm dois objetivos básicos: um, administrar o comportamento humano (monogamia, conceito de
propriedade privada etc.); e outro, submeter os indivíduos com o intuito de enquadrá-los para
satisfazer as necessidades do grupo (produzir e consumir). Estes últimos costumam adquirir um
caráter hipócrita e despertar no indivíduo com tendências xamânicas o processo de rebeldia e
contestação.
Para a grande maioria dos seres humanos, a vivência em grupo é o tema fundamental no seu
trabalho de desenvolvimento pessoal. Assim, durante séculos a estrutura familiar foi o principal
campo de trabalho para essa necessidade de interagir com o grupo. As famílias como grandes
clãs, os grupos de famílias, as aldeias e os povoados proporcionavam a gama de situações e
elementos onde o indivíduo processava sua condição de ente social. E a religião, seja qual for,
cumpria um papel aglutinador. Enquanto doutrinava, formulava a ética, impunha as noções
básicas do bem e do mal que regulam a sociedade humana.
Neste século assistimos às maiores quedas da história: religiões tradicionais perderam sua força e
cada vez são menos ouvidas, a família — os grandes clãs — foram se dissolvendo, as aldeias e
os pequenos povoados foram esvaziando-se como conseqüência do êxodo em direção às grandes
cidades. Tudo isso produziu enormes contingentes de indivíduos solitários e carentes daquele
sentimento de "pertencer a", "ser parte de", "na minha família se faz assim"...
Na sociedade humana, o vazio não existe. Quando um elemento deixa de existir é substituído por
outro: o vazio deixado pela família e pela sociedade é preenchido em muitos casos por esses
grupos que chamamos de seitas.
Veremos agora como se chega a uma seita e como ela se apresenta:
Qualquer pessoa que possua algumas das características mencionadas no capítulo anterior, A
Jornada do Herói, sai buscando consciente ou inconscientemente como preencher suas carências
ou como elaborar seus conflitos.
Tais carências e conflitos somados constituem um enorme peso para a personalidade não muito
bem estruturada. Na atual conjuntura as possibilidades de encontrar uma solução criativa para o
eu fragmentado são poucas. Assim a grande maioria vive num estado de estupor semicataléptico e
vai compulsoriamente se deixando levar pela grande correnteza que hoje representa a luta pela
sobrevivência, que cada vez se mostra menos compensatória.
Neste ponto da história, qualquer elemento externo que apareça exercendo uma oratória —que
para ser brilhante só precisa exagerar na simplificação — será ouvido com muita atenção. O carro-
chefe do discurso de proselitismo sempre é algum questionamento aos valores que estão sendo
difíceis de sustentar: o emprego pouco compensador, o estudo, a vida familiar sem gratificação,
algum vício como o alcoolismo, alguma doença, uma relação findando etc.
"Nossos filhos vão seguindo os flautistas que tocam uma doce melodia cuja letra diz:
'Vem conosco. Abandona este universo chato de emprego, escola, pressões
familiares e tantos outros problemas. Nós pensaremos por você, cuidaremos de
você, te daremos um lugar livre de ambições. Aqui está o amor. Vem, vem, vem...'"
diz Lee Hulquist em "Seguiram o Flautista".
Assim esse discurso ou proposta, num momento de tensão interna considerável, soa como o canto
das sereias, como as flautas encantadas do país de Hamelin, promete ser algo assim como um
ritual de passagem que abre uma porta para outra dimensão, sem as chatices de emprego, escola,
família...
Esse discurso tanto pode ser político, do tipo Sendero Luminoso, IRA, Baader Meinhoff; religioso,
do gênero Hare Krishna, Testemunhas de Jeová, Meninos de Deus; "esotérico-libertador", no
estilo Rajneesh, Santo Daime e por ultimo, um formato muito em voga ultimamente, de
comunicação com extraterrestes ou ainda intraterrestres.
Atualmente, a proliferação dessas organizações alastra-se por todo o planeta. Em muitos países
existem sistemas terapêuticos específicos para reestruturar as personalidades que tentam se
libertar dessa experiência ou retornar dessa viagem, assim como organismos oficiais que
procuram manter as seitas sob determinado controle.
O perigo de não fiscalizar tais grupos foi demonstrado no caso da Guiana Francesa, quando o
pastor Jim Jones conduziu ao suicídio coletivo quase mil pessoas. É raro o ano em que não
acontece uma tragédia causada por alguma seita. Os Adoradores do Sol, nos EUA, provocaram
um suicídio coletivo com o incêndio da sede, em 1993. No ano seguinte, uma seita canadense
com filiais na Suíça também provocou uma tragédia. Em março de 1995 uma seita japonesa —
"Verdade Suprema" — chocou a opinião pública no atentado com gás venenoso, que causou
diversas mortes no metro de Tóquio.
A fórmula é sempre a mesma: uma estrutura piramidal em cujo vértice superior há um líder mais
ou menos misterioso e inacessível, que possui a dica certa sobre o fim do mundo. Em torno dele,
uma corte de acólitos seguidores que formam uma barreira intransponível.
No degrau logo abaixo, jovens, muitos jovens, que seguem à risca as práticas e as determinações
que vêm de "cima", acreditando que, se provarem "entrega" e "firmeza", talvez um dia poderão
estar mais próximos do topo dessa pirâmide humana.
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É sempre bom lembrar que, quando essas instituições chegam às manchetes dos jornais
internacionais, é devido a grandes tragédias. Porém, diariamente, no mundo todo, cada vez mais
pessoas perdem suas vidas anonimamente por causa desses surtos coletivos — e disso ninguém
tem notícia.
Para compreender o processo empregado pelas organizações e que aqui denominamos "lavagem
cerebral", vale a pena relatar uma lenda originária do sul dos Andes, conhecida, tanto na Argentina
como no Chile, com o nome araucano de "imbunche".
Esse personagem lendário, o imbunche, teria sido vítima de bruxas ou feiticeiros inescrupulosos,
ávidos de poder, que, com o objetivo de dominá-lo e escravizá-lo, lhe teriam quebrado os ossos,
partindo seu corpo em pedaços, recompondo-o posteriormente de forma propositalmente errada.
Assim, sua cabeça ficaria orientada para trás, os olhos, os ouvidos e a boca ficariam fechados, e,
desta forma, os captores conseguiriam quebrar a vontade da sua vítima.
A lenda expressa com profundidade o conceito de fragmentação do ser, a perda da capacidade de
comunicação, o bloqueio do livre-arbítrio e dos sentidos, que caracterizam as vítimas das seitas e a
falta de escrúpulos no que diz respeito aos meios e aos fins de seus líderes e dirigentes.
Tais líderes, na maioria das vezes, tomados de profunda megalomania, em geral assumem
posturas tensas, usam muito o dedo indicador, olham para os outros de cima para baixo e
apresentam discursos plenos de expressões como "não pode", "não deve", "sempre", "nunca", "de
jeito nenhum". Eles escondem, desta forma, um grande fracasso na sua jornada pessoal, no
confronto com a própria sombra. São seres profundamente recalcados.
Na biografia de muitos tiranos da antiguidade, de líderes religiosos, de assassinos famosos, de
terroristas ou de ditadores, encontramos alguns elementos em comum: em todos os casos, trata-se
de pessoas com inteligência e talento acima da média que passaram por humilhações, rejeições e
medos durante sua infância, ameaçando-os de forma quase constante.
Assim, por trás de uma aparência amigável, de um paternalismo benevolente, de alguém que
apresenta sinais de auto-realização, esconde-se uma personalidade calculista, violenta, cruel,
sádica, com disposição para tratar as pessoas como ele foi tratado na infância, ávido de vingança
e de poder.
Cari G. Jung, A. Miller e outros estudaram profundamente a personalidade de Adolf Hitier como
padrão desse fenómeno não somente para entender as motivações dos líderes, como também as
das pessoas por eles lideradas:
Embora talentoso quando criança, Hitier sofrera humilhações, espancamentos e privações. Ele
conseguiria angariar, mais tarde, o apoio das massas para inflingir aos judeus os mesmos
sofrimentos pêlos quais passara na infância, pois o povo alemão sentia-se como uma criança
maltratada e abandonada.
Para Lutz Muller, o líder e os liderados formam juntos figuras inter-rela-cionadas e com exigências
mútuas de uma tragédia inconsciente e monstruosa que as pessoas representam há séculos e que
ainda não aprenderam a compreender.
E os jovens que, pelas características próprias da adolescência ou da imaturidade, acreditam não
serem compreendidos e enfrentam grandes dificuldades para manter o diálogo com a família,
encontram nesses lideres alguém com condições de substituir a figura do pai, e desta forma a
tragédia continua em exercício.
Alguém já disse que as seitas conseguem depravar Deus, transformando-o no sucedâneo do
álcool e das drogas. Um grave erro cometido por autoridades, formadores de opinião e pessoas de
influência social é acreditar que as seitas são menos nocivas do que as drogas. Como já foi dito,
em muitos países esse erro está sendo desfeito. Existem fundações que tratam das vítimas das
seitas com uma metodologia terapêutica específica, semelhante à terapia dos doze passos dos
alcoólicos anônimos (AA).
Nos dois casos, na droga e no sectarismo, a pessoa vira um imbunche, as estruturas da
personalidade são dinamitadas.
O erro da sociedade em não dar a devida importância ao problema das seitas reside no fato de
que, na aparência, estas não agridem fisicamente como as drogas. Também na aparência, não há
tráfico e, como fachada, falam em Deus.
No caso do CEFLURIS, o grau de perigo é infinitamente maior, porque, para consumar a
lavagem cerebral, eles se utilizam de uma substância poderosa como poucas, a ayauhasca. Além
disso, o CEFLURIS tem no seu comando um ex-terrorista e recebe financiamentos e vultosas
doações de ONGs européias que, sem dúvida alguma, não sabem o que estão fazendo. Pensam
que estão ajudando os seringueiros como Chico Mendes a morar na floresta numa proposta de
desenvolvimento sustentável e desta forma tentam lavar as culpas inseridas no inconsciente
coletivo dos europeus pêlos abusos cometidos na Amazônia por seus antepassados.
Após o suicídio do jovem Jambo na comunidade da seita situada na floresta, no estado do
Amazonas, onde só se chega após três dias de viagem de canoa, o "comando" da instituição
baixou a seguinte determinação: só pode alugar canoa para fazer a viagem até o Céu do Mapiá
(nome da comunidade) quem tiver autorização de algum líder da seita. Essa atitude configura a
criação de um feudo em território brasileiro.
E a Constituição brasileira garante o direito de ir e vir a todos os cidadãos dentro do território
nacional.
Será, talvez, o próximo passo declarar a independência? Criar uma república alucinógena?
Para se entrar lá será preciso uma carteirinha de imbunche?
Quando o cérebro foi lavado, ou seja, quando a vontade individual foi anulada, quando se
perdeu a capacidade de pensar por si próprio, a pessoa passa a ser comandada como um robô. E,
nesse estado, ela aceita realizar qualquer ato que por si mesma condenaria. Assim, no mundo
inteiro, assassinatos cometidos por adeptos como os seguidores de Charles Mason, que
degolaram a atriz Sharon Tate e seus nove convidados, acontecem sem nenhum questionamento.
Não é preciso ir tão longe: freqüentemente aparecem nas manchetes de jornais brasileiros casos
de assassinatos de crianças em rituais satânicos, nos quais seus participantes acreditam estar
realizando uma atividade como qualquer outra, na maioria dos casos, em nome de Deus.
Foram-se a identidade, os conflitos pessoais, os laços familiares, os sentimentos e as emoções
individuais. A vida torna-se aparentemente mais simples. O eu interno desaparece, ou melhor,
está eclipsado, soterrado.
Algumas pessoas conseguem viver nesse estado de catalepsia pelo resto da vida. Outras, devido
a breves lampejos de lucidez, percebem que perderam a autonomia de pensamento. Na maior
parte dos casos, tais momentos são tão fugazes que em nada modificam o estado atingido, e
levam a pessoa a um processo de depressão que às vezes acaba num desfecho trágico.
Além do mais, cada seita possui sua metodologia para a manutenção do estado de imbunche em
que estão os seus adeptos. O mesmo acontece com as fugazes tentativas de recuperar a lucidez,
já mencionadas. Os sectários não hesitam em empregar o terror, em condenar os "dissidentes"
como traidores da causa, na maioria das vezes submetendo-os a sessões de tortura psicológica.
O XAMANISMO
Uma tentativa de definição seria: Xamã é aquele homem ou mulher que entra em estado de
consciência alterada com o propósito de penetrar no mundo invisível, na realidade incomum, e
nesse universo busca encontrar o conhecimento e o poder para ajudar os seus semelhantes,
libertando e redimindo almas perdidas ou descobrindo as causas das doenças.
Sob diversos nomes encontramos xamãs em diversas culturas:
na Sibéria, na Lapônia (Finlândia) e até nas Américas.
O xamã, segundo a ótica "civilizada", é o diferente, o esquisito, o desajustado, aquele que não se
enquadra. Essa característica pode ser inata ou adquirida. Adquirida voluntariamente através de
algum tipo de estágio com um xamã, por escolha pessoal, ou devido a alguma doença, muitas
vezes grave, que o levou além das fronteiras da vida, quase até à morte, e da qual retornou como
herói vitorioso. A partir desse aprendizado, ele passa a ser um guia para outros doentes que
acompanha na batalha para vencer a doença.
O xamanismo é uma grande e rica jornada, uma espécie de aventura em que os dois heróis,
paciente e xamã, envolvem-se com o objetivo de vencer e retornar. Para ter êxito na empreitada, o
xamã não precisa somente de conhecimento dos mistérios contidos nas doenças, é necessário
também abnegação. Essa abnegação irá criar no doente um senso de obrigação, uma espécie de
compromisso de
lutar lado a lado para vencer o inimigo, que na maioria dos casos é a doença.
Pode não ser a doença do corpo físico — os xamãs são seres mediais, são o elo entre o mundo
visível e o invisível. E, neste último, encontram-se as causas de todos os sofrimentos dos seres
humanos. Assim, o xamã sabe que alguns distúrbios ou conflitos podem ter sua origem na inveja,
por exemplo, da qual seu paciente foi vitima, o que o tornou vulnerável e posteriormente doente.
Na maioria das culturas os xamãs são também os guardiões da tradição, assim como os canais de
manifestação da justiça pelo seu profundo conhecimento da ética. Nos contos infantis, os
personagens do velho sábio, do barqueiro, que conhecem as fórmulas para derrotar os medos, as
discórdias ou os demônios, podem ser interpretados como figuras xamânicas.
Josef Campbell afirma que a função do xamã consiste em ser o canal de comunicação com a
sabedoria tradicional:
"O xamã não carece de sofisticação no seu conhecimento do mundo, nem é inábil a
utilização dos princípios da comunicação por meio de analogias. As metáforas pelas
quais vive e trabalha foram objetos de longa meditação, pesquisas e de discussão ao
longo dos séculos — ou mesmo milênios. Além disso, serviram às sociedades inteiras
como principais bases do pensamento e da vida. Os padrões culturais foram
moldados a elas. Os jovens foram educados, e os anciãos se tornaram sábios, por
intermédio do estudo, da experiência e da compreensão de suas efetivas formas
iniciatórias. Pois essas técnicas, baseadas na utilização de metáforas, tocam e põem
em jogo as energias vitais de toda a psique humana. Elas servem de vinculo entre o
inconsciente e o campo da ação prática — e não de modo irracional, decorrente de
uma projeção neurótica, mas de maneira tal a permitir uma compreensão madura,
ponderada e prática do mundo dos fatos, necessária à repetição, que está sub-
metida a um inflexível controle do que se passa nos domínios do desejo e dos
medos".
O que varia de cultura para cultura são as características dos seus xamãs, como as dos seus
heróis, e os métodos 'por eles empregados. O que é constante em todos os casos é sua
abnegação e sua capacidade de seguir junto com o sofredor para que ele possa cumprir com êxito
sua jornada.
E a vitória se obtém, em outros planos da realidade, no que alguns cientistas denominam
"realidade incomum", a qual só pode ser atingida através da alteração da consciência.
Fisiologicamente os estados de percepção alterada acontecem quando uma parte do cérebro
denominada tálamo — responsável pelas informações — ativa uma glândula denominada hipófise.
Essa modificação da fisiologia cerebral pode acontecer de forma espontânea, como conseqüência
de algum abalo emocional intenso ou pela repetição ritmada e metódica de determinados sons,
palavras, mantras, danças, músicas; por rituais que envolvam exercícios de meditação e
concentração ou pela ingestão de substâncias psicoativas.
Independentemente da forma como foi atingida, a expansão da consciência nos leva para uma
viagem dentro de nós mesmos, para territórios que na maioria das vezes nos são desconhecidos.
E esses territórios são as áreas onde os xamãs encontram seus conhecimentos e para onde levam
as pessoas que os procuram em busca de curas, tanto espirituais como psíquicas ou físicas.
São freqüentes, em trabalhos xamânicos, propostas como "descobrir seu animal de poder" ou
"encontrar sua força animal". Hoje em dia, com a vida cada vez mais civilizada, fica muito difícil
lembrar de que também somos um corpo e que ele tem necessidades, desejos e prazeres. Para
poder ser uma pessoa plena, qualquer indivíduo deve ter consciência de sua totalidade instintiva
original. Assim a "meditação do animal de poder" estabelece a ligação com nossa força animal e
nos proporciona sabedoria, proteção e saúde.
Essa ligação deve ser originária dos tempos em que convivíamos, com os animais, nas selvas e
florestas, e eles significavam para nós, homens primitivos, fonte de perigos e de alimentos,
simultaneamente.
Na América do Sul muitas tradições xamânicas se perderam em decorrência da forma violenta
como fomos conquistados, tanto pêlos portugueses como pêlos espanhóis. Preservaram-se as
tradições que se mantiveram escondidas sob a proteção da floresta.
Em quase toda a bacia amazônica existem até hoje tais práticas nas quais, através da viagem a
outros planos da realidade, os seres humanos conseguem manter-se integrados e sadios.
As práticas xamânicas envolvem técnicas, exercícios e conhecimento das plantas de poder, que
não são de forma alguma imprescindíveis. Existem xamãs que obtêm curas, resolvem conflitos,
encontram objetos ou seres considerados desaparecidos só pelo emprego de sons —seja de
tambores ou chocalhos, cânticos e outros recursos através dos quais atingem o estado de
consciência expandida.
E entre os que usam as plantas de poder, há uma enorme variedade de formas de utilização.
Dependendo da situação, pode ser que somente o xamã utilize a planta, faça a viagem, encontre
nela a solução do caso e a entregue ao doente. Talvez ambos usem a planta, que pode ser
fumada, bebida ou esfregada na pele como unguento. Também existem os casos em que o doente
usa a planta e o xamã faz o trabalho de suporte cantando ou produzindo sons com instrumentos,
exercendo desta forma seu papel de mediador entre os dois mundos.
Na região amazônica os xamãs que usam plantas são chamados "vegetalistas", e uma das plantas
mais utilizadas é a ayauhasca.
No Brasil denomina-se ayauhasca o produto do cozimento de um cipó, o "jagube", (Banisteropsis
caapi), junto a uma folha conhecida pelo nome de rainha ou chacrona ÇPsychotria viriáis). O cipó
representa o princípio masculino e a folha, o feminino.
Já na Amazônia peruana o nome de ayauhasca é usado para o cipó. No seu cozimento cada
xamã utiliza diversas folhas, como a chacrona ou a datura.
Existem outras plantas, denominadas plantas professoras, que o xamã bebe durante seu processo
de aprendizado, geralmente em condições de dieta e isolamento, muito mais rigorosas que as
exigidas para os trabalhos com a ayauhasca. A idéia das plantas professoras é a seguinte: através
da dieta, o corpo do xamã, ou eventualmente do paciente, é preparado para receber o "gênio da
planta", que aos poucos vai se instalando na consciência e passando seu conhecimento durante
os sonhos. Esse processo de "sonhar" continua, às vezes, até meses após as plantas terem sido
ingeridas.
O xamã, ou vegetalista, deve passar por todos esses processos para atingir a condição de
curandeiro e ser capaz de curar. Essa condição de curandeiro não deve ser confundida com o
mesmo nome dado no Brasil às pessoas que fazem uso do curandeirismo, ou prática ilegal da
medicina.
As plantas professoras são sempre ingeridas em locais isolados, na floresta ou na selva, e o
trabalho com elas nunca dura menos de uma semana. Também existem regras de tempo e
frequência: entre uma e outra tomada, às vezes devem-se esperar vários meses.
O mesmo vale para a ayauhasca: existe um tempo que deve ser respeitado entre uma e outra
tomada, da mesma forma como a dieta que deve ser seguida à risca.
A dieta para a ayauhasca consiste na abstinência de álcool, sexo e carne, dois dias antes e dois
dias após a ingestão. Já para as plantas professoras a dieta é mais rigorosa, dura até semanas,
quando se faz abstinência de sal, açúcar, carne de porco e sexo. Na tradição vegetalista, as
mulheres menstruadas não podem ingerir a ayauhasca. Todos esses cuidados — o afastamento
para lugares isolados, assim como a dieta — têm por objetivo afastar as interferências negativas
que impedem o mergulho, tanto do xamã como do doente, .na realidade incomum ou invisível, e
desta forma contribuir para o sucesso da experiência. Esse afastamento equivale ao segundo
estágio da jornada do herói, a separação, é o tempo em que ele morre para o mundo e no qual
recebe sua iniciação.
O mestre Irineu —fundador da primeira seita daimista, que deu origem a todas as outras que hoje
estão espalhadas pelo Brasil — assim como o mestre Gabriel — fundador da União do Vegetal —
conheceram a ayauhasca através de xamãs da Amazônia brasileira. Posteriormente cada um deles
elaborou uma linha de trabalhos ritualísticos incorporando à tradição indígena elementos católicos
e espíritas.
Foram contemporâneos, e ao que me consta, igualmente honestos e autênticos nas suas
propostas e objetivos. Ambos podem ser definidos como xamãs ou heróis, pela sua abnegação,
suas propostas redentoras e pelo exemplo de integridade que nos deixaram.
Eles devem ter percebido o vazio espiritual que as religiões tradicionais e oficiais, na região norte
do Brasil, não preenchem, assim como a necessidade que o ser humano tem de buscar sua
autotranscendência.
Desta forma, num processo xamânico, cada um à sua maneira, foram canais de resgate tanto da
tradição vegetalista como do cristianismo joanino — fundado por São João Batista e São João
Evangelista.
Filosoficamente o cristianismo estaria dividido em duas grandes vertentes: a petrina e a joanina.
A primeira, um caminho aberto por São Pedro, poderia ser chamada de vertente "esotérica". Sua
base reside na criação da igreja e, a partir daí, a constituição de estruturas de poder que lhe
permitiram realizar a evangelização massiva, manter hierarquias eclesiásticas e o óbvio
comprometimento com o poder político e econômico.
A segunda — joanina — segue a trilha de São João Batista e do Evangelista, sendo um caminho
sem igrejas, sem hierarquias eclesiásticas, de desenvolvimento interior, de estudo e prática da
doutrina, transmitida sem dogmas, longe do poder político e econômico. Esse cristianismo, que se
manteve ofuscado pelo outro durante os últimos dois mil anos, vem emergindo por diversos canais,
em diversos lugares do mundo, e é considerado a vertente "esotérica" da doutrina cristã.
A essência do conhecimento contido nas pregações das "chamadas" da União do Vegetal é a
mesma que a dos hinos do mestre Irineu e a dos manuscritos do Mar Morto, descobertos quase na
mesma época em que esses dois mestres recebiam do astral suas doutrinas, e são exemplos
plenos do cristianismo joanino.
Poderíamos definir as duas propostas, a do mestre Gabriel e a do mestre Irineu, como formas de
transformar o xamanismo individual em coletivo, através do resgate da tradição cristã.
VEGETALISMO
Xamanismo que Emprega Plantas de Poder
Como já foi dito no capítulo sobre xamanismo, o xamã é aquela pessoa, dentro de um grupo, que
se predispõe a ser o mediador entre o mundo visível e o invisível, um canal de manifestação da
justiça e das energias curadoras. Essas atividades só podem ser realizadas em estado de
consciência alterada. Tal alteração pode ser atingida através das diversas formas mencionadas no
mesmo capítulo.
Acredito que nos lugares onde era difícil encontrar plantas com esses poderes, ou onde o clima
não é favorável ao seu plantio, os métodos empregados eram retiros, jejuns, exercícios ritualísticos
e outros.
Os povos oriundos de regiões desérticas, como os primitivos habitantes do México, da Bolívia, do
norte da Argentina e do Equador, utilizaram os cactos, como o peyote, a huaichuma, todos
parecidos entre si, com o mesmo princípio ativo: a mescalina. Na Lapônia e na Finlândia a tradição
xamânica utilizou diversos tipos de cogumelos, com efeitos semelhantes aos dos cactos.
Já na bacia amazônica, encontramos uma variedade infinita de plantas e cogumelos com poderes
diversos. A atitude de procurar soluções para os problemas nas plantas não é exclusividade do ser
humano. Os animais sabem reconhecer as plantas com propriedades eméticas, purgativas, e
alguns macacos reconhecem folhas ou raízes que possuem efeitos alucinógenos e as consomem
sempre que possível. Sabem também reconhecer aquelas que são venenosas.
Em todas as culturas coube ao xamã essa função. Quando se diz que ele invoca seu animal de
poder, ele está ativando na sua consciência o mesmo conhecimento que os animais utilizam para
reconhecer as propriedades das plantas.
Assim, na bacia amazônica, o xamã é chamado de vegetalista, e a beberagem por ele preparada,
na maioria dos casos, independentemente das plantas que a bebida contenha, recebe o nome de
"vegetal" ou "purga".
Existem diversos tipos de vegetal: aquele que serve para curar doenças, que será bebido pelo
paciente; aquele que o xamã deverá beber, para saber o que está acontecendo com seu cliente; o
que serve para desfazer feitiços, e uma variedade infinita, assim como são infinitas as razões e
motivos pêlos quais os seres humanos sofrem e clamam por ajuda.
O vegetal mais utilizado na Amazônia é a ayahuasca, também conhecida como yagé, caapi, mariri,
produto obtido do cozimento do cipó jagube (Banisteropsis caapi). Como já foi dito, na maioria das
vezes a outra planta é a Psycotria viriais, cujo nome popular é chacrona ou rainha.
O antropólogo Edward McRae listou os usos da ayauhasca:
a) Rituais mágicos ou religiosos, para receber orientação divina e se comunicar com
os espíritos que animam as plantas e para receber um espírito protetor,
b) Adivinhação, para saber se estão vindo estranhos, descobrir o paradeiro de
inimigos e quais são seus planos. E para saber se um cônjuge foi infiel ou prever o
futuro com clareza.
c) Feitiçaria, causando doenças por meios psíquicos ou conseguindo prevenção contra
as más intenções de terceiros.
d) Determinar a causa de uma moléstia ou curá-la.
e) Produzir estados prazerosos ou afrodisíacos, reforçar a atividade sexual e atingir
o êxtase ou um estado de intoxicação que facilite a interação social entre os
homens.
MESTRE IRINEU
Das suas origens, pouco ou nada se conhece. Sabe-se que nasceu no Maranhão,
provavelmente no dia 15 de dezembro de 1892. Como bom sagitariano, teria partido numa
caminhada destinada a superar seus limites. O centauro, símbolo do signo de Sagitário, indica a
capacidade do ser humano de transpor obstáculos e limites.
Uma das limitações que o mestre teria superado sozinho foi o analfabetismo. Ao constatar, já
adulto, a importância de saber ler e escrever, aprendeu, usando as cartilhas, os fundamentos da
leitura e da escrita em poucas semanas.
Alguns dos seus biógrafos afirmam que ele teria chegado ao Acre com as forças do marechal
Rondon. Já outros contestam de forma veemente tal afirmação:
"Eu estava passeando Na praia do mar Escutei uma voz
Mandaram me buscar".
(Hino 84)
Já no Acre, perto da fronteira com o Peru, ele conheceu a ayauhasca através de um
vegetalista.
Na primeira vez que bebeu o vegetal ele viu a "rainha da floresta", uma entidade feminina que
lhe convidou a se apresentar num encontro na mata, ao qual ele deveria comparecer após uma
dieta. Somente poderia comer "macaxeira insossa", ou seja, sem sal. No encontro, que durou
vários dias, ela lhe revelou os fundamentos da doutrina do santo daime e lhe entregou a
incumbência de difundi-la:
"A Virgem Mãe me deu O lugar de professor Para ensinar as
criaturas Conhecer e ter amor".
(Hino 28)
O ritual e as fardas (indumentária utilizada nos rituais) foram recebidos (captados mediunicamente)
da mesma forma, assim como o nome "daime", originário da segunda pessoa do plural do
imperativo afirmativo do verbo dar, dai-me:
"Dai-me amor, dai-me amor Dai-me o pão do Criador Dai-me
amor, dai-me Livrai-me de todo mal".
(Hino 42)
A doutrina recebida pelo mestre consiste numa filosofia e numa prática de vida. O método pelo
qual essa filosofia é ensinada pode ser melhor entendido participando-se dos trabalhos.
Há dois tipos de trabalhos: os de "bailado" e os de "concentração". Em todos eles bebe-se a
ayauhasca, que a partir do mestre Irineu recebeu o nome de santo daime.
Nos bailados, durante o trabalho ritual, as pessoas organizam-se em fileiras, as mulheres
separadas dos homens, assim como as moças dos rapazes. No centro, em tomo de uma mesa,
com imagens de santos, cristais e outros objetos, os músicos executam as melodias, ao som das
quais são cantados os hinos.
Esses trabalhos começam por volta das seis horas da tarde e acabam no amanhecer do dia
seguinte.
O bailado assemelha-se ao que é praticado pêlos sacerdotes sufis há alguns séculos. A idéia
de passar a noite bailando, todos no mesmo passo, que varia de hino para hino, uns no compasso
de valsa, outros no de marcha, tem por objetivo levar o corpo à exaustão. Assim, superando a
limitação imposta pelo cansaço, é possível transpor os limites do ego. Para poder manter a
harmonia dentro do bailado e sob os efeitos do daime, acompanhando o canto e tocando o
maracá, é preciso concentrar ao máximo a atenção. Desta forma se realiza uma antiga exigência
comum a todas as linhas iniciáticas: a concentração. Enquanto o pensamento se concentra no hino
que está sendo cantado, a atenção, no canto e no bailado, é possível manter a harmonia com a
força, e então a consciência se expande. Se, pelo contrário, o participante deixa o pensamento
vagar à vontade, como acontece no dia-a-dia, perde-se o prumo, e tudo pode acontecer: vomito ou
somatizações de qualquer outra forma.
O ritual que o mestre nos deixou se parece muito com o exercício de andar no fio de uma navalha.
O hinário do cruzeiro, conjunto de cento e vinte nove hinos que o mestre Irineu recebeu ao
longo de sua vida, é uma das mais belas e originais versões da doutrina esotérica. Nele, os
ensinamentos essênios, o cristianismo primitivo, os manuscritos do Mar Morto parecem tomar vida
ao som de melodias simples e belas:
"Jesus Cristo veio ao mundo Replantar santas doutrinas Os
descrentes assassinaram E ainda hoje é quem ensina".
(Hino 59)
A doutrina espírita e o conceito da reencarnação também estão presentes nos hinos:
"A morte é muito simples Assim eu vou te dizer Eu comparo a
morte É igualmente ao nascer.
Depois que desencarna Firmeza no coração Se Deus te der
licença Volta em outra encarnação.
Na terra como no céu É o dizer de todo mundo Se não preparar
terreno Fica espirito vagabundo".
(Hino 74)
E também:
"A minha Mãe me trouxe Ela deseja me levar Todos nós temos a
certeza Deste mundo se ausentar.
Eu vou contente, Com esperança de voltar Nem que seja em
pensamento Tudo hei de me lembrar."
(Hino 111)
Outra das características interessantes desse hinário é sua flexibilidade: para aquelas pessoas
que têm na religiosidade uma atitude meramente devocional, ele é perfeito. O canto dos hinos, à
luz do daime, produz experiências devocionais que beiram o transe.
Para os estudiosos, os intelectuais, ele é um caminho de compreensão "não-linear", em
outras palavras, "quântico". Cada vez que se canta, se entende um pouco mais:
"No cruzeiro tem rosário Para quem quiser rezar Também tem
a santa luz Para quem quiser viajar"
(Hino 93)
Tive a oportunidade de conhecer contemporâneos do mestre. Uma coisa em comum a todos os
relatos: ele era uma pessoa que agia sempre de forma correia. Ninguém lhe atribui qualquer
atitude errada, injusta ou qualquer deslize:
"Estou na terra, estou na terra Estou na terra eu devo amar Para
ser um filho seu Fazer bem, não fazer mal".
(Hino 19) Ou ainda:
"Sou filho do meu Pai Eu devo ser atencioso Abraçar a todo
mundo E não querer ser orgulhoso".
(Hino 45)
A humildade, a simplicidade de sua personalidade, a falta de arrogância também aparecem nos
hinos:
"Eu sou filho da terra Vivo nas matas sombrias
Implorando ao Pai Eterno E a sempre Virgem Maria.
Aqui eu toco meu tambor E nas matas eu rufo caixa Todo mundo
vai atrás Procurando mas não acha"
(Hino 100)
Também:
"Todo dia eu canto e peço Para limpar meu coração Para seguir
neste caminho E deixar a ilusão".
(Hino 67) As fraquezas humanas não lhe eram desconhecidas:
"Eu ensino é com amor Com firmeza e lealdade Mas quando
vem falar comigo sempre trazem a falsidade".
(Hino 73)
No encontro com a rainha da floresta ele recebeu as instruções de estruturar o que veio a ser
chamado posteriormente de "a doutrina".
Nela, as pessoas que assumem o compromisso de professá-la se fardam e têm por obrigação
comparecer aos trabalhos oficiais. O calendário desses trabalhos também foi organizado pelo
mestre Irineu. Em geral, os rituais coincidem com as datas que comemoram o dia dos santos
católicos. Os trabalhos acontecem na véspera do dia santo, durante a noite, e findam no
amanhecer. Existem duas épocas do ano denominadas "festivais", nas quais acontece uma maior
freqüência de trabalhos. O festival de inverno começa em 12 de junho, véspera do dia de Santo
António, e acaba no dia 5 de julho. Durante esse período de pouco mais de vinte dias toma-se o
daime cinco ou seis vezes. Já o festival de verão começa no dia 7 de dezembro, véspera da festa
de Nossa Senhora da Conceição, e acaba no dia dos Santos Reis. Também durante esse período
realizam-se diversos trabalhos.
Fora os festivais e dias santos, toma-se daime em trabalhos de concentração, que são
realizados todo dia 15 e 30 de cada mês.
Os trabalhos de concentração são os que têm mais influência da tradição vegetalista. Vestindo
uma farda diferente da que se usa nos bailados, as pessoas ficam sentadas. De um lado da mesa,
as mulheres; do outro, os homens. Toma-se daime diversas vezes, e a maior parte do tempo os
participantes ficam em silêncio. Esse silêncio é interrompido por alguns hinos.
Há também os trabalhos de cura, que acontecem de acordo com a necessidade e
disponibilidade dos doentes e das pessoas com poderes curadores.
Desta forma, os fardados nessa religião ingerem a bebida numa freqüência muito maior que os
xamãs tradicionais fazem nas suas regiões de origem.
Pouco conheço sobre os efeitos dessa freqüência nas pessoas do Alto Santo, periferia da
cidade de Rio Branco, onde o mestre deixou sua igreja. Porém, conheço muito bem seus efeitos
nas pessoas das grandes cidades, cujas consciências foram treinadas pela educação, pela mídia
e por todo o aparelho social para não se expandirem.
A transferência da doutrina daimista para cidades como Rio de Janeiro e São Paulo trouxe
sofrimentos, desagregação e conseqüências que, pelo que me consta, o mestre Irineu condenaria.
Vi famílias se dissolverem, pessoas abandonando estudos, empregos, ficando absortas pela
saturação, na consciência de conteúdos psicológicos inconscientes trazidos pelo daime. E o que é
pior: achavam que estavam, desta forma, se iluminando. Acompanhei não somente o caso da
minha filha, como outros não menos trágicos, que acabaram em surtos psicóticos ou em suicídio.
Tomando-se a ayauhasca nas cidades, já acontece uma transgressão às restrições que os
vegetalistas preservam há milênios. Tive oportunidade de ouvir xamãs da Amazônia peruana
condenarem violentamente o fato de a pessoa, sob o efeito da ayauhasca, sentir o cheiro do
escapamento dos carros. Segundo esse xamã, a pessoa que, sob efeito da poderosa bebida,
sentir o cheiro de gasolina pode enlouquecer. Da mesma forma, a dieta e o jejum são exigências
que não são cumpridas pelo CEFLURIS.
As pessoas que praticam o culto do santo daime nas grandes cidades trabalham nos seus
empregos até poucas horas antes de começarem os trabalhos, aos quais obviamente chegam de
ônibus ou carro. Apôs o fim dos rituais, entram nos seus carros, às vezes param em restaurantes
no caminho para casa e, depois de algumas horas de descanso, quando não diretamente,
retomam aos seus locais de trabalho, onde continuam com suas atividades normais de "pessoas
civilizadas".
De fato, muitas dessas pessoas chegaram ao santo daime na mesma busca em que os habitantes
da Amazônia procuram os vegetalistas. Atrás de soluções para seus problemas, que podem ser de
saúde ou não, procurando respostas profundas para seus questionamentos íntimos, numa
tentativa sincera e bem-intencionada.
Muitas delas são os xamãs das suas próprias famílias, aquelas que, segundo Cari G. Jung, têm a
coragem de realizar, vivenciar e superar a doença do grupo familiar. O problema não reside na
ayauhasca, na doutrina, no ritual. É o contexto da situação urbana que traz o problema.
Na época em que o CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes) estudou a liberação do uso da
ayauhasca e sua difusão fora da Amazônia, houve vozes isoladas que alertaram sobre tais
perigos. '
Mas os interesses políticos e econômicos falaram mais alto.
A doutrina que o mestre Irineu desenvolveu com o objetivo de redenção transformou-se numa
atividade altamente lucrativa, como aconteceu com a pregação de Jesus Cristo e com o mau uso
que muitos fizeram dela.
Hoje, os dirigentes das seitas utilizam a trilha aberta pelo mestre para vender ayauhasca
misturada com anfetaminas, nas grandes cidades da Europa, e cobram por esses trabalhos
quinhentos marcos por pessoa, prometendo em troca a cura da AIDS, entre outros males, segundo
noticiou em outubro de 1994 a revista alemã Der Spiegel.
Onde o mestre Irineu estiver deverá ter o mesmo sentimento que Jesus ao observar o que se
faz com o cristianismo.
Mais uma vez, é preciso lembrar a advertência de Cari G. Jung: quem quiser encontrar Deus não
deve procurá-lo nas igrejas.
A questão é polemica e delicada porque no mundo inteiro algumas linhas terapêuticas e grupos
de pesquisa vêm fazendo avanços a partir da utilização de plantas alucinógenas no tratamento de
seus pacientes, que nesse processo conseguem trazer à tona conteúdos inconscientes, valiosos
para sua cura.
No entanto, o problema reside na elaboração do material inconsciente com que a pessoa se
depara no processo. Na maioria das vezes, aqueles que manifestam conteúdos inconscientes, em
conseqüência da experiência com o daime, não têm acompanhamento adequado de um xamã,
mestre ou psicólogo. A manifestação de elementos do inconsciente, por si só, é insuficiente para
sua elaboração. É preciso saber ler, decifrar, elaborar e integrar o que foi revelado. Se isso não
acontecer, o indivíduo pode sofrer graves lesões psicológicas.
Vale também citar que os conteúdos do inconsciente do atual homem civilizado são bem mais
complexos que os dos habitantes das florestas ou dos contemporâneos acreanos do mestre Irineu.
AS FARDAS
Uma das principais características da minha geração é a de reivindicar liberdade de expressão em
tudo: no comportamento, na forma de vestir, de pensar, de se relacionar, de viver.
Tudo o que é massifïcante, que enquadra, é rejeitado. A roupa, com todo o seu simbolismo, é
utilizada como código de informação sobre os valores do usuário.
Portanto, os mesmos conceitos para nós valem de forma inversa: toda e qualquer forma de
uniforme ou farda é sempre condenada, pois significa uma despersonalização.
A primeira pessoa que vi fardada no daime foi a madrinha Julia, em Mauá, minutos antes de
começar meu primeiro trabalho. Lembro que a idéia que me veio foi: "Jamais vestirei uma roupa
dessas". Dois anos mais tarde, vesti.
As fardas — indumentárias obrigatórias para os adeptos do santo daime — são duas: uma de festa
e a outra de trabalho. Esta última é muito semelhante à farda escolar das crianças no Brasil:
para as mulheres, saia de pregas de poliéster azul, blusa branca e tênis; para os homens, calça de
poliéster azul, camisa branca e gravata azul.
Já a farda de festa é mais complicada, em especial a feminina. As mulheres usam saia branca de
pregas , quase até o tornozelo, e por cima dela um saiote verde de vinte centímetros de
comprimento. A camisa é de poliéster branco, de mangas compridas, e por cima há complicados
arranjos de fitas. Na cabeça, uma coroa.
Nas fitas verdes que atravessam o peito, há uma estrela de seis pontas, que simboliza o
fardamento; do lado direito e do lado esquerdo, uma folha para as moças ou uma rosa para as
mulheres.
Já para os homens, a farda de festa consiste num terno branco, duas linhas verdes paralelas à
costura da calça e gravata preta.
Acredito que a idéia original do mestre Irineu de fazer com que as pessoas usassem farda tinha
o objetivo de evitar o constrangimento dos mais humildes. A roupa é universalmente utilizada como
forma de mostrar quanto se tem, ou de fazer acreditar que se tem.
Assim, no terreno da espiritualidade, seríamos todos irmãos, todos iguais, segundo o hino do
mestre:
"O sol que veio à terra para todos iluminar não tem bonito nem
feio ele ilumina todos iguais".
(Hino 64)
Também acredito que a farda, embora recebida do astral pelo mestre Irineu, seja condizente com a
roupa própria para o clima do Acre e com a época em que a doutrina começou.
Quando o daime saiu dos limites da Amazônia e veio para o sul do pais, em especial para Mauá,
surgiu no meu entender um dos primeiros sinais de fanatismo ou falta de senso em saber adaptar
elementos culturais. Uma comparação que me ocorria, naquele tempo, era a das roupas que as
mulheres inglesas vestiam na Índia —nos tempos em que a colonizaram —segundo a moda de
Londres, num clima tropical que em nada se assemelhava ao da Grã-Bretanha. O frio de Mauá e
de muitos lugares do sul é em muitos graus inferior ao do clima quente do Acre.
Achei que se deveria adaptar a farda, de acordo com a região, ou criar uma farda de inverno. A
rigidez característica do pensamento sectário não permitiu. O que acabou acontecendo era
exatamente aquilo que o mestre quis evitar: as pessoas passaram a ostentar casacos e agasalhos
de acordo com o volume da sua conta bancária.
E os humildes, por cima da farda, se enrolavam num cobertor para poder agüentar o frio das
madrugadas na montanha.
No início de 1995 estive em Rio Branco, no Alto Santo, local onde o mestre Irineu deixou sua
igreja, que fica a poucos minutos do centro da cidade, numa estrada barrenta.
Nos dias de trabalho oficial, a caminho do Alto Santo, quilômetros antes de se chegar lá, pela
estrada vi grupos enormes de pessoas fardadas, as mulheres ostentando suas coroas. Aquilo me
remeteu à mesma emoção dos cariocas das favelas do Rio de Janeiro, que são reis por um dia na
avenida, durante o carnaval. O mestre Irineu conseguiu uma simbiose interessante entre o sagrado
e a necessidade, considerada profana por tantos, que o ser humano tem de reinar sobre si mesmo.
ACURA DA AIDS I
Neste capítulo, e nos dois seguintes, selecionei os casos de portadores do HIV que achei mais
significativos. Muito mais se poderia contar sobre fatos estarrecedores ocorridos no CEFLURIS
com portadores do vírus da AIDS que tentaram curar-se com a ayauhasca e foram lesados pela
seita.
Poucas doenças ao longo da história tiveram uma conotação moral tão culposa quanto a AIDS.
Nem a sífilis, antes dos antibióticos, gerava tanta culpa, pois no fundo tinha uma espécie de
glamour machista. Era "doença de homem".
Já a AIDS parece ter vindo para detonar tudo àquilo que ficava subentendido, que era para se
calar.
No ocidente, o elaborado sistema de culpa judaico-cristão desaba em cima do portador do vírus.
As religiões tradicionais têm dificuldade em lidar com a síndrome, em especial após o surgimento
de padres e pastores contaminados.
Logo no primeiro ano de existência da igreja daimista de Mauá houve a primeira morte. Um rapaz
fardado, que morava na comunidade, onde poucos sabiam que era portador do vírus, contraiu uma
pneumonia e teve um rápido fim.
Não demoraram a aparecer outros portadores do vírus. Além dos estragos que a doença causa
nas formas do pensamento, a certeza de uma morte sofrida torna a agonia ainda mais terrível. Em
geral, a atitude dos doentes era a de não tomar o AZT, tomar daime, fazer "trabalhos de cura" e se
deixar levar.
No carnaval de 1989 apareceu, na minha residência, um desconhecido:
Nome: Nestor Perlonguer
Nacionalidade: argentina
Profissão: antropólogo, poeta, professor da Unicamp e bolsista da Fundação Guggenheim.
Havia tomado daime em São Paulo, num grupo ainda pequeno comandado por Pedro Malheiros,
que fora incumbido pelo padrinho Sebastião (ainda vivo e liderando o CEFLURIS) de organizar a
igreja daquela cidade. Veio à minha procura, querendo tomar daime em Mauá.
Explicou que o que ele buscava na bebida era o êxtase, no sentido dionisíaco. Não acreditava em
religião e sim em expansão da consciência através do êxtase. Entendia que o daime associado
aos bailados o levariam a este estado. Abstraia-se do conteúdo religioso.
Subimos a serra. No carnaval são realizados trabalhos nos quais se canta o hinário de António
Gomes, contemporâneo do mestre Irineu. A igreja naquele tempo ainda era em cima do morro.
Após certa quantidade de hinos, vi que ele não conseguia mais bailar. Saímos e sentamos numa
pedra. Ele disse que nunca tinha visto "nada tão forte", e o trabalho estava leve. Trocamos idéias
sobre religião. Enquanto conversávamos, ainda sob os efeitos do daime, eu tinha a sensação de
ver a morte no rosto dele. Contou que era a primeira busca do êxtase através de um caminho
espiritual. Anteriormente tinha tentado atingir a consciência expandida através da prática da
homossexualidade e de todos os abusos possíveis dentro dela. Não tinha se furtado a nada. Na
Argentina, um dos países mais fechados à questão homossexual, tinha sido fundador do primeiro
grupo de militância pêlos direitos dos homossexuais. Era preso continuamente. Às vezes no
mesmo dia em que tinha sido solto o prendiam de novo.
"Me levavam puxado pêlos brincos", comentou. Vale esclarecer que no tempo em que ele usava
brincos na Argentina, só alguns audaciosos em São Francisco ousavam usá-los.
No Brasil, havia produzido um trabalho antropológico, pioneiro no gênero, que tinha se
transformado no livro O Negócio do Michê. O trabalho consistia numa pesquisa antropológica e
no respectivo mapeamento das áreas de prostituição masculina em São Paulo. Ele pensava
naquela época defender tese na Sorbonne, em Paris, sobre o mesmo tema.
A amizade com Nestor mostrou-me outro universo de daimistas.
Até então, as pessoas que formavam o grupo de Mauá eram na sua maioria cariocas, alternativos
que pretendiam formar parte da contracultura, mas que não tinham a cultura necessária prévia
para poder de fato fazê-lo. Muito menos uma formação esotérica que desse um suporte e/ou uma
meta ao trabalho com o daime.
Estas carências justificavam muitos deslumbramentos. Através de Nestor conheci um tipo de
vanguarda esotérico-universitária-nova era-paulista que, partindo de diversas origens, convergia no
daime. A mistura era, além de eclética, interessante. Tinha de tudo:
antropólogo pai-de-santo, sociólogo erudito em orixás, iogues, ex-saniases do Rajneesh, ex-padres
da teologia da libertação, anarquistas, astrólogos, terapeutas alternativos e tradicionais, músicos,
pessoas de teatro, donas-de-casa, além dos habituais curtidores de barato.
A mistura não era muito harmoniosa, porém achei-a divertida. Detesto caretice e pessoas
massificadas. Gosto de indivíduos que buscam, que procuram.
Na época, Nestor pretendia viajar a Paris para defender tese na Sorbonne sobre a evolução da
prostituição masculina.
Alguma coisa nesse trabalho em Mauá, durante nossa conversa naquela pedra, determinou uma
súbita mudança nos planos: resolveu que sua tese seria sobre o santo daime e a vida nas
comunidades daimistas.
Partiu numa viagem para o Céu do Mapiá e depois Paris. Na primeira escala, na floresta
amazônica, conviveu com Sebastião Mota durante algumas semanas, colhendo material para a
tese. Já em Paris, telefonou angustiado, era maio de 1989. Um dos motivos da sua angústia eram
manchas na pele e feridas na boca que não saravam. Sugeri o teste HIV. Aquele militante que
tinha encarado a polícia argentina, que tinha se aprofundado nos subterrâneos da prostituição e da
degradação em São Paulo, que tinha enfrentado a floresta amazônica para chegar aonde o
padrinho residia, morria de medo do teste. Foi difícil. Mais difícil ainda abrir o envelope com o
resultado: positivo.
O medo, a frustração e a tradicional rejeição com que os franceses recebem os estrangeiros
fizeram com que retomasse ao Brasil, sem chegar a defender a tese.
Antes de retomar foi visitado em Paris por dois daimistas franceses, residentes no Brasil, de férias
na França. Sophie, cuja chegada ao daime eu tinha presenciado em Mauá, dividia seu tempo entre
o Brasil, os Estados Unidos e a França, negociando cristais, e Antoine, que residia w comunidade
de Mauá.
Convidaram-no a tomar daime num parque, nas proximidades de Paris.
Antoine foi categórico: disse ao Nestor que não deveria tomar AZT nem fazer tratamento algum —
só uma colher de café de daime, todo dia de manhã, em jejum. Assim, ele "garantia" a cura.
Nestor me telefonou apavorado, a imposição de Antoine colocara-o em crise.
Perguntou minha opinião. Achei loucura. Então, ele me perguntou como eu tomava daime e
discordava dos dogmas. Os dogmas eram conseqüência de devaneios de daimistas, no meu
entender.
Retornou ao Brasil, doente, cheio de culpas por não ter completado sua missão. Além da AIDS
para atrapalhar, havia a rejeição dos acadêmicos franceses: o tema santo daime, cultura
alternativa, não interessava na França.
Uma vez em São Paulo, a doença tornou-se prioridade. O assédio dos daimistas deixava-o irritado.
O daime piorava as diarréias e irritava as mucosas do aparelho digestivo. Queixava-se de ser alvo
do fanatismo místico-religioso. Criticava asperamente, e com fundamento, a instituição que se tinha
formado a partir da bebida, a avidez por dinheiro da cúpula da seita e o novo chefe da igreja de
São Paulo, o antropólogo Walter Dias, até seus últimos dias de vida, em 1992.
Guardou, sim, uma especial consideração pelo amigo e antropólogo Edward McRae e por Ulysses
e João, segundo ele, as únicas pessoas que empregaram o amor e a solidariedade conforme se
expressa nos hinos.
Até as últimas vezes que o visitei no hospital, em São Paulo, não cansou de me advertir dos
perigos que a expansão do daime nas grandes cidades significava. Insistia na idéia de encontrar
uma forma de alertar a sociedade a respeito.
Foi enterrado em São Paulo, num dia chuvoso, ao som dos hinos do daime.
ACURA DA AIDS II
A BARQUINHA
A idéia da viagem é constante na vivência de expansão da consciência e em todas as outras
formas arquetípicas de saída do ego. A barca que leva as almas aparece também em diversos
mitos e culturas.
Nos primeiros anos das minhas vivências com o daime na comunidade de Mauá, como já foi
dito, tive uma constante luta interior entre a vontade de ir fundo na viagem e as discordâncias com
a ética vigente no grupo.
A igreja do Rio de Janeiro — Céu do Mar — crescia e se desenvolvia paralelamente. Sabia,
através de fardados cariocas, que lá a situação não era diferente.
Um dia, um casal de fardados do Rio de Janeiro veio fazer o trabalho no Céu da Montanha, em
Mauá. Fiquei impressionada com o carisma de ambos. Disseram-me ser psicólogos, já tomando
daime há algum tempo no CEFLURIS. Pediram minha ajuda para achar uma casa ou sítio para
alugar perto da comunidade, já que estavam dispostos a freqüentar mais assiduamente os
trabalhos em Visconde de Mauá e queriam ter seu canto. Não entraram em detalhes, porém deu
para perceber claramente que se encontravam no mesmo conflito que eu e procuravam em Mauá
uma forma de continuar sua caminhada. Não encontraram o sítio para alugar e foram embora. Isso
deve ter acontecido em 1988.
Em 1991, aconteceram os problemas com minha filha e o CEFLURIS. Continuar tomando
daime em Mauá, nem pensar! Porém precisava entender melhor toda a questão. Eu tinha
procurado essa bebida para conseguir a plenitude do meu ser e dos seres que amava.
Minha filha estava alienada pelo mau uso da experiência alucinógena, e não podia esperar
encontrar aliados fora do universo da ayauhasca.
Entendi que eu tinha que resgatá-la de dentro para fora. Tinha ouvido falar que, no Rio de Janeiro,
existia um ponto da Barquinha, outra seita do Acre que utilizava o daime. Esperava encontrar lá um
espaço neutro, limpo de cargas conflitantes e histórias pessoais, onde pudesse clarear minha
consciência. Não foi difícil achar, e mais uma vez, num dia de São José, começava eu a navegar
nas águas do daime, só que em outro rio, em outro barco.
Minha surpresa foi grande ao ser recebida por aquele mesmo casal de psicólogos que tinha
conhecido anos atrás em Mauá — Philipe Bandeira de Melo e sua esposa Marilia —, agora
conduzindo a Barquinha no Rio de Janeiro. O local do trabalho era a residência deles. A recepção
foi carinhosa e discreta. Havia outros ex-daimistas. Sentaram-me à mesa do ponto. O daime que
foi servido era o mais forte e apurado que eu tinha bebido até então.
Fiquei surpresa com o ritual. Um grupo, do qual eu fazia parte, sentou em torno da mesa, situada
numa espécie de tablado. Ao fundo, num altar, imagens católicas, orientais e africanas. No centro
do altar a figura em destaque: São Francisco das Chagas. A farda usada por homens e mulheres é
semelhante à roupa de marinheiros, só que cheia de enfeites. O Philipe vestia farda de
comandante. O tablado é separado da platéia por espesso cortinado que vai sendo aberto lenta e
parcimoniosamente ao som dos primeiros salmos que dão início ao ritual.
Os salmos são cânticos iniciáticos com uma temática semelhante aos hinos do mestre Irineu.
Desde os tempos em que eu havia tomado a ayauhasca na União do Vegetal, não tinha feito um
trabalho assim, passivo. Nos rituais do daime, as pessoas cantam, participam ativamente. Já na
UDV permanecem sentadas ouvindo as chamadas, as músicas ou fazendo perguntas ao mestre
da sessão.
Na Barquinha, uma pessoa (a puxadora) canta o salmo e as demais repetem só uma estrofe.
A força do daime me surpreendia. Num momento do trabalho olhei para o Philipe e pensei como
teria sido a jornada dele após nosso última encontro em Mauá.
Já foi dito várias vezes que a ayauhasca tem poder de tornar as mentes telepáticas. No final do
trabalho, acontece uma sessão de bailado opcional, da qual não é obrigatório participar.
Enquanto o bailado acontecia, o Philipe chamou-me para responder a pergunta que eu tinha
formulado telepaticamente. Desta forma, fiquei sabendo que, por discordar da maneira com que o
CEFLURIS agia, e devido à certeza de que a trilha aberta pelo mestre Irineu o levaria ao
conhecimento, tinha pedido ao mestre, em oração, que lhe mostrasse um caminho digno para
poder continuar tomando o daime e realizando o trabalho de curador, que sem dúvida alguma é
sua vocação.
Tinha embarcado para a cidade de Rio Branco com o intuito de encontrar a fonte onde o mestre
começara. Chegando lá, pediu a um motorista de táxi que o levasse "ao daime". Prontamente, o
táxi rumou para o bairro denominado Vila Ivonete e o deixou num local denominado "Centro
Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz" (a Barquinha).
Philipe é psicanalista de formação junguiana. Segundo Jung, o acaso não existe, tudo o que
acontece, inclusive o que se apresenta como erro, é parte de um plano que organiza a realidade.
Desta forma, Philipe tinha conhecido a Barquinha, comandada por seu Manoel de Araújo, e acabou
trazendo essa linha de trabalho para o Rio de Janeiro, constituindo assim o único ponto fora do
Acre.
Senti verdade, sinceridade e transparência nas colocações dele. Fui convidada a voltar e voltei
diversas vezes. Uma questão me intrigava: o daime era sempre de uma qualidade como eu nunca
tinha visto nas igrejas do CEFLURIS, forte e apurado. Os trabalhos, semelhantes a sessões de
mesa de centro espírita, impecáveis. Eu me sentia bem, mas não em casa. Freqüentei algumas
vezes com o intuito de conhecer mais e entender o processo no qual o poder da ayauhasca me
colocara.
Um dia, a casa estava diferente. O padrinho de Rio Branco tinha chegado e comandaria os
trabalhos. Tinha sido convidada a elite do Céu do Mar, a igreja do Rio de Janeiro da qual Philipe se
afastara. Não cabia um alfinete, as pessoas sentavam no chão, na escada, na varanda. Quando o
trabalho acabou, o clima era de festa.
A casa fica numa ladeira de Santa Teresa, num local belíssimo, e o clima do Rio de Janeiro,
sempre ameno, é um convite para festa. As conversas das pessoas eram as mesmas que em
qualquer outra festa.
Aproveitei para conhecer o padrinho, seu Manoel de Araújo. Conversamos a respeito da
existência do mal e do porquê do sofrimento como sistema de aprendizado. Senti nesse homem,
baixo de estatura, uma força, uma energia que o fazia parecer um gigante. A reunião continuava,
em clima de alegria comum a qualquer festa. Perguntava a mim mesma que impressão ele estaria
tendo. Dava para perceber que, enquanto conversava comigo, estava ligado em tudo o que
acontecia. Soube que nos dias seguintes haveria outros trabalhos e resolvi participar deles. Saí
desse primeiro encontro com seu Manoel com a sensação de que o daime estava virando uma
questão social. Já era possível o local, o tipo de festa e de daime que se pretendia tomar. Quase a
mesma coisa que qualquer outra festa mundana. Só que em vez das bebidas comuns, ayauhasca.
No trabalho seguinte, as mesmas pessoas, todo mundo muito elegante, animado e social. Os
comentários sobre a qualidade do daime me lembravam os tempos do LSD.
De repente, no meio do trabalho, parecia ter-se formado um furacão. Seu Manoel discursava.
Aquele homem, de fato, tinha se transformado num gigante. O discurso, na força do daime, era
uma manifestação xamânica. De forma brilhante, ele explicava o sentido e a razão de se tomar a
ayauhasca. Observava que a maioria estava ali "curtindo um barato" elegante e que não dava
cadeia. Segundo ele, o ato de tomar daime era um sacramento, algo assim como uma comunhão,
e, nessa casa, o objetivo era a caridade. Falava que nesse caminho não havia lugar para vícios,
uma referência óbvia à maconha usada no CEFLURIS com o nome de santa maria. Uma daimista
do Céu do Mar, sentada perto de mim, me fazia sinais indicando que então esse não era o lugar
dela. Seu Manoel também condenava o vicio do cigarro.
Quando voltei, no trabalho seguinte, não tinha ninguém do CEFLURIS. Só as mesmas pessoas
dos trabalhos iniciais, num clima de centro espírita.
Freqüentei mais algumas vezes e, por razões de ordem prática, não retornei.
Dois anos mais tarde, quando viajei a Rio Branco com o objetivo de resolver a situação da
minha filha e devido ao fato de que o CONFEN iria reabrir os estudos sobre o daime em função
dos processos que corriam na justiça, achei que era minha obrigação visitar as lideranças das
diversas seitas que utilizam a ayauhasca e me explicar, esclarecendo que a questão não era
contra a bebida e sim contra o mau uso que o CEFLURIS faz dela.
Encontrei seu Manoel saindo de uma grave doença. Muitos quilos mais magro, porém seus
olhos azuis estavam mais penetrantes e a mente ainda mais alerta. Lembrou-se do nosso encontro
no Rio de Janeiro de forma divertida: "A senhora esteve lá no dia em que eu desci o malho!"
Conversamos longamente e me convidou para um trabalho nos dias seguintes.
Compareci pontualmente, e seu Manoel me recebeu vestindo a farda de comandante. O local é
a residência dele; há uma casa de oração, um coreto, e diversas construções num grande terreno.
Na entrada, uma enorme cruz iluminada, como a utilizada no daime, com duas hastes horizontais,
o que significa a segunda vinda do Cristo. Sentei com ele na varanda, enquanto as pessoas iam
chegando, cumprimentando-o e lhe pedindo a bênção. Ele não é presunçoso, como outras
lideranças, não coloca dedo em riste, não supõe estar em cima de um pedestal, mas é respeitado
e tem autoridade, que exerce de forma simpática. Trocamos idéias sobre diversos assuntos. O
problema de minha filha o preocupava de forma sincera. Talvez o que mais me impressionou nele
é o fato de termos origens socioculturais tão diferentes e ao mesmo tempo conseguirmos um
entendimento conceituai muito mais profundo que com muitos eruditos da região sul do país cuja
vivência e cultura são semelhantes às minhas. A impressão que ele me passou é a de ser alguém
cuja consciência consegue se acoplar à consciência universal.
Os trabalhos da Barquinha acontecem num salão grande, onde há bancos semelhantes aos
das igrejas para os participantes permanecerem sentados.
Na frente, uma espécie de tablado, com um grande altar e uma mesa em torno da qual se
reúnem os músicos e os "médiuns de mesa" mais desenvolvidos. Esse tablado é separado do
salão por um espesso cortinado, como no Rio de Janeiro, que vai se abrindo devagar no início do
trabalho.
Os músicos executam as melodias dos salmos, o "puxador" canta e a assistência repete as
estrofes.
Seu Manoel me convidou a descer para conhecer o trabalho dos "guias".
Num espaço localizado num nível mais baixo daquele onde se realiza o culto, que sugere o porão
de um navio, cada médium incorporado tem seu espaço para trabalhar, ajudado e amparado por
outros dois médiuns que fazem o papel de assistentes.
Desta forma, essa população carente de todo e qualquer tipo de assistência social ou médica
recebe um atendimento xamânico que em muito se assemelha aos itens enumerados na lista feita
pelo aprendiz colombiano no capítulo sobre vegetalismo.
A Barquinha conseguiu, desta forma, transformar o que seria o trabalho individual do xamã em
algo que poderíamos denominar "xamanismo coletivo". Os médiuns tomam o daime para abrir suas
faculdades mediúnicas e os consultantes para se tornarem, através da expansão da consciência,
mais receptivos às forças xamânicas.
Assim, cada um, na medida de suas possibilidades, de forma ordeira e com respeito, vai
desvendando sua própria história.
Não há padrinhos, luta pelo poder, lavagem cerebral, e sim humildade e devoção.
Paralelamente, a Barquinha desenvolve um trabalho de distribuição de donativos e assistência
aos mais carentes, muito semelhante aos centros kardecistas.
A Barquinha e a UDV são uma prova de que a ayauhasca, quando utilizada com dignidade,
pode ser considerada um auxiliar precioso.
Para que essa dignidade não seja deturpada, como acontece no CEFLURIS, o zelo pela ética e
pela moral, tanto dos oficiantes como dos participantes, é questão primordial. Os postulados
básicos — Verdade, Amor, Harmonia e Justiça adquirem sob a luz da ayauhasca uma condição de
realidade, deixando de ser simples palavras.
O relato que se segue é absolutamente verídico, e minha intenção, ao escrevê-lo e publicá-lo,
é alertar, avisar a tantas pessoas que buscam encontrar, através da fé, a certeza de não estarem
sozinhas no mundo. Muita gente acredita que, por estar integrada a uma irmandade, estará livre
de traições, mentiras e decepções.
Muitos fatos escabrosos e escandalosos foram suprimidos, para evitar que o texto se tornasse
monótono e desagradável. A descrição de detalhes comportamentais serve para que o leitor possa
elaborar, por si próprio, uma versão objetiva desta lamentável situação.
Após ter percorrido as diversas trilhas que prometiam a expansão da consciência, como já foi
relatado, encontrei-me, aos quarenta anos, morando numa colônia finlandesa eqüidistante do Rio
de Janeiro e de São Paulo, e a meia hora de viagem de Mauá, onde estava começando um
trabalho com ayauhasca.
Na época eu era auto-suficiente financeiramente e criava minha filha, então com oito anos de
idade.
A primeira vez que tomei o daime —em março de 1984, no dia de São José — a Verônica
ficou em casa sob os cuidados da empregada. O sistema educativo que empreguei sempre com
ela fora baseado na amizade e na sinceridade. Como não era freqüente eu dormir fora de casa,
expliquei aonde iria, o que faria e prometi completar o relato na volta.
O trabalho durou a noite inteira, e quando descemos o morro, encontramos todos os carros
que estavam estacionados com todos os pneus furados. Talvez tenha sido um aviso do destino
que eu não soube compreender corretamente, o qual indicava que essa escolha era complicada.
Passamos o dia deslumbrados pelo que tínhamos visto no daime, lutando com o barro, com os
macacos e com o cansaço para poder deixar os carros em condições de descer a serra.
Cheguei em casa, na noite do dia seguinte ao trabalho, num estado psicológico difícil de
explicar.
Relatei a experiência para minha filha, que perguntou se havia crianças que tomavam o daime.
Respondi que sim, e ela pediu para tomar na próxima vez que eu fosse. Na hora, os
questionamentos me invadiram. Tinha visto a Patrícia, enquanto esperávamos os carros ficarem
prontos, abrir a boca da sua filha caçula, que estava encatarrada, e jogar daime dentro, como
quem coloca um aditivo na gasolina. Ela percebeu minha surpresa e esclareceu: "O daime é um
depurador, bota pra fora tudo aquilo que não precisamos..."
Será que eu não tinha fé o bastante? Se estava acreditando que havia encontrado um
caminho baseado na verdade, poderia negá-lo para minha filha? Será que a consciência de um
ser humano de oito anos de idade precisava de expansores? Achei que, se negasse, criaria atrito,
me parecia melhor "deixar acontecer". Assim, no próximo trabalho, fomos as duas juntas.
Uma das características do daime é seu desagradável sabor. Não se parece com nada, mas
seu gosto é uma das maiores dificuldades da beberagem.
Não lembro qual foi o hinário cantado no dia em que a Verônica experimentou o
daime. Porém, o que ficou gravado foi o comentário dela com referência às muitas
menções que os hinos fazem ao poder:
"Aqui dentro desta casa, dentro deste poder" ou "Este poder que é Pai" ou
"O poder que Deus me dá".
Ela disse: "O sabor não achei tão ruim assim, o que me preocupa é o que poderá
acontecer contigo no meio desses malucos que ficam a noite toda cantando ao poder.
Penso que eles serão capazes de qualquer coisa".
Foi este sem dúvida o mais claro aviso que eu não soube compreender. Se pudesse voltar atrás no
tempo, naquele instante eu abriria mão do daime, apesar das promessas de iluminação e de
conhecimento que a bebida prometia.
Hoje me arrependo profundamente por não ter feito isso, pois assim teria evitado muitos
sofrimentos.
A partir daí, a Verônica começou a questionar as atitudes das pessoas que tomavam o daime com
assustadora lucidez. Ela não tomou mais, e o contato com as pessoas que tomavam ficava cada
vez mais difícil devido às criticas que fazia, com muito fundamento.
Era fácil observar, nas pessoas, algumas atitudes preocupantes:
após tomar o daime, algumas vezes passavam a perder os bons modos, fazendo questão de
demonstrar que não se importavam com as regras, com o recato ou com a boa educação. Falavam
alto, andavam mal vestidas, enfiavam o dedo no nariz, não usavam talheres à mesa, pegavam a
comida com as mãos e por ai afora.
Enquanto eu tentava ter uma leitura do gênero "O daime está diluindo estruturas arcaicas e junto
vai-se a educação...", a Verônica insistia em condenar essas atitudes como sinal do perigo que
significava o uso excessivo e contínuo do daime.
Assim, com o intuito de respeitar a opinião dela e ao mesmo tempo manter o meu espaço interno
para continuar a exploração do caminho que tanto me interessava, aluguei em Maringá (distrito
próximo a Mauá) um chalé dentro do sitio de uma ex-diretora de escolas com quem a Verônica
ficava vendo televisão e comendo besteiras até a hora de dormir com toda a segurança. Isso me
permitia tomar o daime livre de culpas maternas.
Com o passar do tempo, as previsões feitas pela Verônica pareciam ir se cumprindo, no que dizia
respeito ao perigo de as pessoas se acharem poderosas. Isso valia para a maioria mas não para
todos. Paralelamente, ela começava a me dar trabalho com alguns problemas que eu não sabia
como resolver.
Por um lado, dificuldades nos relacionamentos. Em quase todos os lugares. Na escola, com os
vizinhos, comigo. A terapia com a psicóloga de nada adiantava. Sentia medos absurdos e
indiscriminados. Tratava dela com homeopatia e acupuntura. Pouco a pouco foram aparecendo
manifestações de paranormalidade. Ela via coisas, seres andando pela casa, e esses seres
derrubavam panelas, causavam uma desordem visível.
Comecei a me apavorar. Às vezes ela incorporava em casa, de repente. Como eu não possuo
nenhum tipo de paranormalidade, me era muito difícil entender essas experiências. A questão me
afligia muito. Ver uma menina linda, cheia de vida, aos dez anos, se debatendo com essas forças
me deixava agoniada, e me fazia sentir impotente.
Tentei rezas, benzeduras, centros kardecistas, tudo em vão. Tinha lido no livro que a Vera Froes
escreveu sobre o daime que o Sebastião Mota, quando criança, tinha problemas semelhantes.
Prometi a mim mesma que quando ele chegasse a Mauá o consultaria a respeito. A ocasião não
demorou.
Fui avisada num dia de meu aniversário que o padrinho tinha chegado e que, como estava doente,
faríamos um trabalho mentalizando sua cura, e que cantaríamos o hinário dele de farda branca,
apesar de não ser um trabalho oficial. Considerei esse encontro um presente. Ainda era na igreja
antiga, em cima do morro. O trabalho começou, e o padrinho Sebastião bailava no comando, sem
farda, com uma roupa de cor marrom. Ao ver esse homem cansado, adoentado, me perguntava se
eu também não estava entrando na viagem do culto à personalidade. Os pensamentos de que
aquilo era um "marketing esotérico" me assustavam. O daime estabelece contatos telepáticos entre
as pessoas. Parecia que ele me respondia, mostrando-me a simplicidade com que vivia, a
diferença entre ele e outros gurus, e como sabia dominar "as forças".
Pensei em conversar com o padrinho no intervalo que acontece, no seu hinário, no hino de
número cem. No hino de número vinte, ele se retirou do trabalho. Achei, então, que não era para
acontecer naquele dia.
Sempre na prática já mencionada, de ser a última a chegar e a primeira a sair, quando o trabalho
acabou, desci às pressas, rumo ao carro, que estava estacionado junto à casa onde funcionava a
sede da fazenda. Era um domingo, e eu estava com pressa, já que teria que cuidar de uma lojinha
que tinha aberto em Maringá.
Enquanto esquentava o motor do carro, fui surpreendida pela imagem do padrinho refletida no
espelho lateral, sorrindo e dizendo:
"A senhora desejava falar comigo?"
Então a telepatia que havia sentido com ele era verdadeira, pensei.
"Queria sim, —respondi —"mas o senhor não ficou no trabalho, e quando lhe procurei já não
estava."
"É que, como não estava com a farda, senti que não era correio ficar bailando no meio desse
povo todo, que estava aí, fardado, pedindo pela minha saúde. Quem sou eu, para não usar farda?
Porém percebi que a senhora tinha alguns assuntos para tratar comigo, e por isso aqui estou" —
disse ele.
Fiquei muito impressionada. Relatei-lhe os problemas pêlos quais a Verônica estava passando.
Ele parecia ter absoluto domínio do tema. E sentenciou:
"O que acontece com ela é que seu 'perispírito' percebeu a enorme responsabilidade que é
tomar daime e está com medo. Porque para vocês, mulheres, tomar daime é dar testemunho da
existência da Virgem Maria e para os homens tomar daime é testemunhar a existência do Cristo.
Essa responsabilidade só pode caber aos seres humanos, os animais não podem dar esses
testemunhos".
E mais ainda:
"A senhora me traga ela hoje até as cinco da tarde, que terei uma conversa para esclarecê-la".
No momento, deviam ser' aproximadamente oito horas da manhã e eu tinha o compromisso de
tomar conta da loja pelo resto do dia.
"Eu não posso voltar hoje" — respondi — "e ela não pode vir sozinha, porque onde estaremos
é longe."
"A senhora diz a ela que eu a esperarei até as cinco", completou ele, encerrando o assunto.
Divagamos um pouco sobre outras questões e parti. Quando cheguei ao chalé falei com a
Verônica sobre o encontro e ela ouviu, pensativa. Mais tarde foi brincar com uma colega do Rio de
Janeiro que tinha casa de campo em Maringá e nenhuma ligação com o daime.
Por volta das três horas da tarde, ela chegou à loja, junto com a família da menina,
perguntando se eu a deixaria ir com eles até a comunidade do daime, já que precisavam ir até lá
para entregar alguma coisa e não sabiam como chegar. Obviamente deixei e observei
deslumbrada que ela estaria chegando na hora em que o padrinho havia pedido.
Quando retomou. Verônica relatou o seguinte:
"Perguntei onde ele estava e me informaram que estaria no quarto dele, na 'casa do padrinho'.
Quando cheguei lá, ele estava deitado, com a cabeça na direção da porta. Aí eu falei:
Padrinho, eu sou... Ele não me deixou acabar a frase e completou:
A filha da mulher com quem eu falei hoje de manhã.
Nós conversamos e eu decidi que vou passar a tomar daime".
Nunca soube o que eles conversaram, mas o carisma do padrinho impressionou-a o bastante,
ou talvez ela tenha projetado nele sua carência de pai. O caso é que essa conversa foi de
influência marcante para Verônica.
Algum tempo depois, quando procurei saber com os espíritas kardecistas a respeito do
perispírito que o padrinho tinha mencionado, tive uma grande decepção ao constatar que ele
estava errado:
trata-se de uma camada energética existente entre o corpo físico e o astral que não tem
capacidade de conhecimento ou de compreensão, como o velho Mota tinha afirmado.
Uma gafe? Será que o velho blefava com a espiritualidade, e por carência de figuras fortes
estávamos caindo num engodo?
Resolvi aquietar minha mente, fortalecer a fé e observar atentamente, mais do que nunca. Me
parecia que o importante naquele momento era que ela se libertasse dos medos, das angústias, da
sensação de ser diferente.
Porém, isso não me parecia suficiente. Questionava, comigo mesma, o fato de permitir que minha
filha tomasse uma bebida catalogada como "alucinógeno". O relatório elaborado por uma comissão
multidisciplinar do CONFEN fez a balança pender definitivamente: segundo esse documento, não
havia perigo algum. Trechos desse relatório foram transcritos no capítulo sobre o CONFEN que
compõe este livro.
Desta forma, com aval espiritual do padrinho e federal dos conselheiros do CONFEN, Verônica
começou a freqüentar os trabalhos com certa regularidade. Parecia estar melhorando.
Na noite do dia 31 de dezembro de 1988, em que o Bateau Mouche afundou —fato de que só
viemos a saber após o trabalho —, tivemos uma das mais marcantes experiências desse período.
Cantávamos o hinário do Alex. A corrente se desfazia. Alex parecia não ter força de comando
suficiente para mantela. As pessoas se espalhavam dentro e fora da igreja, passando mal, urrando,
vomitando, gemendo. O trabalho aconteceu na igreja antiga, em cima do morro, e chovia
torrencialmente. Os banheiros ficavam a certa distância; eram fossas, e as paredes feitas de
esteiras.
Vi que a Verônica estava entrando na onda de sofrimento coletivo, a corrente não existia. Ela
disse que queria ir ao banheiro e precisava que eu fosse com ela. Peguei um guarda-chuva e
saímos. Quando chegamos, ela tentava entrar no banheiro através da parede de esteira, e não
pela porta. Custei a convencê-la. Diluviava. Quando tentamos voltar para a igreja, ela caiu numa
poça. Inerte, não respondia. Como era mais alta do que eu e mais pesada, não conseguia
carregála. Pedi ajuda aos curadores que tentavam dar assistência à enorme quantidade de
pessoas que passavam mal. Ninguém estava conseguindo ajudar ninguém. Entendi que estávamos
pondo em liberdade forças sobre as quais não tínhamos domínio algum, e que havia prioridade de
atendimento condizente com o padrão socioeconômico do sofredor.
A única pessoa que se habilitou para nos ajudar, embora só com apoio moral, foi a Noia, outra
das consideradas "rebeldes" e muito hostilizada. Ficamos, as duas, acompanhando no canto os
hinos que vinham da igreja, onde a corrente estava se refazendo, e tocando maracá junto da
Verônica, deitada na poça, sob uma chuva torrencial, sem que ninguém se dispusesse a carregá-la
para dentro. Nessa noite meus questionamentos chegaram a seu ponto mais exigente:
"Que estava fazendo eu, com minha filha deitada numa poça, sob a chuva, sacudindo perto do
ouvido dela uma latinha cheia de bilhas e achando que isso era um caminho espiritual?"
Finalmente, o Rodrigo nos ajudou e conseguimos levar a Verônica para dentro. Não foi fácil trazê-
la de volta. Quando abriu os olhos, como se nada tivesse acontecido, falou: "Vou me fardar".
Tentei saber o que tinha acontecido com ela durante aquela experiência e não consegui nada. Dois
anos mais tarde, assistimos juntas ao filme de Akira Kurosawa, Sonhos, no qual há uma cena que
mostra uma espécie de pedreira para onde vão as almas dos desencarnados que por alguma
razão continuam sofrendo depois de mortos.
Ela disse ter estado num lugar semelhante naquela noite e que tinha visto Jesus Cristo andando
entre os sofredores e dando-lhes alento e conforto.
O fardamento dela também aconteceu no dia de São José, em 1989, três meses após esse
trabalho de réveilon. Como São José é considerado o protetor da família, ingenuamente imaginei
que, assim, minha família —eu e Verônica —estaria protegida.
O que mais me chamava atenção era a forma como ela se integrava facilmente aos núcleos mais
recalcitrantes da comunidade. Como, até então, ela tinha tido problemas para ser aceita em
grupos, achei que o daime estava operando um processo de socialização e me mantive como
observadora, a distância.
A adolescência se aproximava, e as dificuldades se insinuavam cada vez com mais intensidade.
Sentia que ela procurava, como a maioria dos adolescentes, "a sua tribo", e que talvez os teens do
daime representassem esse papel.
Não demorou para aparecerem os problemas. Com constrangimento, as pessoas me procuravam
para fazer queixas quanto ao comportamento da Verônica. Segundo os relatos, ela teria
conseguido que duas famílias, numerosas e amigas entre si, moradoras na comunidade daimista,
brigassem por intrigas criadas por ela.
Os temas das intrigas eram semelhantes aos das peças de teatro de Nelson Rodrigues, e o fato de
minha filha demonstrar esse poder, com doze anos de idade, me deixava perplexa.
Resolvi apostar na fé. A proposta da doutrina daimista é Amor, Verdade e Justiça; portanto, no
meu entender, deveria ir fundo nessa viagem.
Quando ela fez catorze anos os conflitos na escola e no meio social eram cada dia mais graves. As
condições de sobrevivência numa sociedade em crise, num lugar sem recursos, como a cidade de
Resende (a mais próxima do local onde morávamos), não me davam chance de procurar ajuda
especializada. O Gilberto Gil apregoava naquela época: "A fé não costuma falhar". Decidi confiar
na fé.
Mas chegou um momento em que descobri que ela tinha armado tal rede de mentiras e intrigas,
que havia deixado a direção e administração da escola de cabelos em pé. E para evitar que eu a
desmascarasse, espalhava por todo canto que eu era louca e que, se soubesse das encrencas em
que ela estava metida, "eu a mataria". A diretoria da escola vivia o conflito de não me avisar ou
correr o risco de que eu "a matasse".
Tomar conhecimento desses fatos, quando se está envolvido num caminho de conhecimento que
apregoa amor, verdade e justiça, é muito mais difícil de engolir do que qualquer outro tipo de
"sapo".
A psicologia não se cansa de repetir que nós nos projetamos em nossos filhos. Até certo ponto,
sim, quando temos a esperança de que os valores em que acreditamos e a moral que professamos
serão absorvidos, como que por osmose, pêlos nossos filhos. Constatar que o(a) filho(a) transgride
a lei, seja espiritual ou material, é uma das dores com mais intenso sabor de fracasso que se
conhece.
Ante outras atitudes de descontrole, e por não saber o que fazer, achei que uma medida
importante seria afastá-la por um breve período de tempo — uma semana — do ambiente onde
aconteciam essas confusões todas. Nesse período, eu poderia procurar, com mais tranqüilidade,
uma ajuda, um caminho de cura.
Naquele tempo, próximo ao local da comunidade do daime, em Mauá, morava uma família de
gaúchos que tinham se comportado sempre de forma gentil e atenciosa, e na casa deles minha
filha gostava de ficar.
Levei-a para lá com a promessa de buscá-la após uma semana. Ficou combinado, inclusive, dia e
hora — na sexta-feira seguinte.
Cheguei pontualmente, levando a notícia de que tinha marcado um tratamento com um médico de
quem ela dizia gostar.
Chegou algumas horas mais tarde do combinado, vindo da comunidade do daime. O olhar,
estranho. A expressão do rosto, também. Parecia um robô.
Disse compulsoriamente: "Resolvi assumir a doutrina, vou morar por aqui".
Poucos dias antes, ela tinha se referido com desdém a respeito dos jovens que moravam em
comunidades daimistas, dizendo: "Eu jamais moraria numa comunidade, sem estudar, sem ver TV.
Vir visitar, tudo bem, ficar uns dias, também. Mas morar, jamais!"
Tentei lembrá-la dessa opinião tão recente, mas a coerência não interessava. A impressão que
tinha era a de não estar falando com minha filha, e sim com outra pessoa no corpo dela.
Compreendi que tinha havido manipulação na consciência dela. Tinham "feito sua cabeça". Achei
que não era grave, se a coisa parasse por aí. Procurei a direção da comunidade. Na época o líder
era o Alex que estava no Céu do Mapiá (AM), e tinha deixado o comando com um colegiado, do
qual faziam parte diversas mulheres.
Marquei uma reunião com elas na mesma noite. Defini a atitude delas como lavagem cerebral.
Tinham usado o daime para "lavar o cérebro" da minha filha, que vivia uma aguda crise existencial!
E para afastá-la de mim, não só física como psicologicamente.
Pelas regras do próprio CEFLURIS e do CONFEN, é proibido ministrar daime a menores sem a
presença dos pais. Falei que estavam desrespeitando a doutrina, fazendo jogo sujo, e que, caso
não desistissem, eu os processaria.
Admitiram a culpa. Prometeram, juraram não fazer mais. Convidaram-me para fazer um
trabalho de cura só de mulheres, na casa da estrela, para limpar o astral.
A casa da estrela é um local onde se realizam trabalhos fora do calendário oficial, que
poderiam ser denominados, mais genericamente, xamânicos. São os trabalhos de cura. O local é
chamado "casa da estrela", fica escondido na mata, longe da igreja, e para se chegar lá é preciso
encarar trilhas estreitas e complicadas.
Na estrela acontece também outro tipo de trabalho, denominado "jogo divino". Esse jogo tem
por finalidade resolver conflitos entre os membros da seita. Quando isto acontece, são convidados
os envolvidos e pessoas chegadas a eles. Todos se sentam numa roda, e em vez de tomar daime,
só pitam santa maria, ou seja, fumam maconha.
Resolvi aceitar o convite.
O trabalho foi marcado para a madrugada seguinte. Dormi no sitio dos gaúchos, perto da
comunidade. Deveria chegar à casa da estrela antes das quatro da manhã. O local onde a casa
fica é longe e ermo. Não tinha despertador, porém algumas pessoas prometeram me acordar.
Ninguém o fez. Acordei sozinha às três e meia. Vesti a farda azul às pressas e, sem lanterna, parti
no escuro. Tinha uma sensação desagradável de estar iniciando uma jornada rumo às trevas.
Tentava afastar esses pensamentos, sobrepondo a eles a fé no daime.
A dificuldade consistia em separar as coisas. Separar a ayauhasca das pessoas. Mas como?
Se acreditava que a bebida aumentava minha compreensão, deveria fazer o mesmo efeito nas
outras pessoas. E se elas também se beneficiavam desse efeito, não poderiam ser capazes de
fazer uma maldade tamanha com uma adolescente.
Andei aproximadamente dois quilômetros no escuro. Conhecia mais ou menos o local, e sempre
que havia passado por ali fora durante o dia, ou à noite com lanternas. Eram trilhas no mato com
algumas pontes semelhantes a pinguelas ou passarelas. Não havia a luz do luar. Um sentimento
muito forte de segurança me conduzia.
Quando cheguei à casa da estrela, só havia duas mulheres: a Cristina Mota e a Bei. As duas
com formação espírita. Era uma madrugada fria. '
A medicina tradicional admite que, em determinadas horas, a nossa capacidade de absorver
substâncias é maior do que em outras. Parece que uma das horas em que essa nossa capacidade
torna-se maior é por volta das quatro da madrugada.
Tomamos um daime muito apurado. Pitamos. O pito era de flor, onde tem maior concentração
de THC. Como já foi dito, na linguagem daimista, pitar significa fumar maconha, e pito de flor é o
cigarro preparado com a flor da cannabis onde há maior concentração do princípio ativo
denominado THC, abreviatura de alcalóide tetra hidro cannabiol.
Senti no ar uma intenção de me desestabilizar. Começaram a cantar hinos. Parecia não haver
uma forma preestabelecida no trabalho. Enquanto elas se perdiam em relação ao rumo a seguir,
eu sentia que devia segurar a integridade do meu ser com todas as minhas forças. Por outro lado,
queria acreditar em alguma boa intenção dessas mulheres, que tinham acordado de madrugada e
estavam ali, aparentemente, tentando me ajudar.
Olhavam-se entre si. Tomamos mais daime, pitamos outra vez. A força era muito grande,
amanhecia. A Bei "deu passagem", incorporou o que parecia ser uma entidade feminina sofrendo.
Alguma coisa me dizia que ela estava ali para me mostrar o que eu já tinha sofrido em outras
vidas junto a Verônica e o que me esperava de sofrimento nesta.
Quando o trabalho acabou e me dirigi à sede da comunidade, constatei, espantada, que na
escuridão tinha passado beirando formigueiros enormes de formigas vermelhas. Se tivesse pisado
em algum deles, teria sido atacada por elas. Isso me reforçou o sentimento de que alguém invisível
tinha me acompanhado na caminhada, impregnando-me com a sensação de segurança.
Quando acabou o trabalho, tivemos uma reunião de mulheres na sede da comunidade. Era sábado
de manhã. Admitiram que tinham manipulado a consciência da Verônica, movidas por sentimentos
de pena. Porém tinham compreendido o erro e não mais o cometeriam.
Sugeriram que voltasse para casa sozinha, para evitar discussões no carro, já que o clima ainda
era delicado e a estrada de Mauá é perigosa.
No dia seguinte, domingo, ela desceria para Penedo de ônibus. Resolvi acreditar. Sentia que
estava travando uma luta que poderia ser definida como o indivíduo contra o coletivo.
Desci a estrada Mauá — Penedo chorando. Tinha entrevisto durante o trabalho algo infernal que
não conseguia entender. Aguardei com impaciência o dia seguinte, o retomo da minha filha. Ela
chegou, como tinha sido combinado. Estava estranha, o olhar e a voz não eram dela. Começou a
ficar agressiva. Me peitava, desafiava, me ofendia, eu não entendia aonde ela queria chegar. Eu
tentava me segurar no amor. Eu a amava, como ainda a amo. Não sei como, de repente
estávamos brigando fisicamente. Utilizando ela uma força descomunal, jogou-me no chão e
chutava minha cabeça em nome de Jesus Cristo e do santo daime. Fugiu para Resende, onde
procurou pessoas desavisadas, que a acolheram e acobertaram seu retorno à comunidade do
daime, em Visconde de Mauá.
Naquele tempo eu tinha uma vaga noção das condições em que o CONFEN tinha liberado o uso
da ayauhasca. Porém, sabia com certeza que os menores de idade só poderiam tomar o daime na
presença dos responsáveis e que a permanência deles nas comunidades só era possível com uma
autorização específica, o que eu não estava disposta a dar. Era evidente uma confabulação entre
ela e as pessoas da comunidade. O chefe, Alex Polari, encontrava-se no Céu do Mapiá (AM), e no
seu lugar ficou um sujeito de nome Alfredo, famoso pela sua ambigüidade moral.
Assim, para evitar mais confrontos, resolvi consultar na justiça qual seria o caminho para retirar
minha filha do Céu da Montanha. Fui recebida por uma promotora da Vara de Família e Menores.
Tentei ser objetiva, sabendo que a história era difícil de explicar. Ela não me deixou acabar e
interrompeu-me, dizendo:
"Quer dizer que a senhora ia lá em cima tomar essa porra para ficar doidona, levou a filha para
endoidar junto e agora que não está conseguindo segurar o rojão vem aqui pedir ajuda?"
"A questão não é bem essa" —respondi. "Eu vim saber, além de como fazer para tirá-la, o que
fazer, já que ela está agressiva ao ponto de bater em mim." E mostrei-lhe as marcas da surra.
Ela respondeu:
"É bem simples: eu mando a polícia lá, arrebento, acabo com essa pouca-vergonha e coloco sua
filha numa casa para adolescentes prostitutas, usuárias de drogas, delinqüentes..."
"Obrigada "—respondi —, "procurarei outro caminho."
Bom, pensei, se é esta a forma em que se ministra a justiça, vou ter que contar só com a justiça
divina. A dor que eu sentia não me deixava raciocinar. Minha filha era toda a família que eu tinha, a
pessoa a quem eu mais tinha amado, porém sem esperar nada em troca. Seria esta uma lição do
carma? Para aprender o quê? Voltei para casa atordoada, me perguntando continuamente em que
ponto eu poderia ter errado tanto. Em confiar em Deus? No daime? Os hinos do mestre Irineu
surgiam em meio aos meus pensamentos:
"A minha Mãe que disse tudo eu tenho que vencer sigo neste
caminho nada eu tenho a temer".
A proposta da doutrina do daime é basicamente Amor, Verdade e Justiça. Sem estes valores, o
que sobra da nossa dignidade como seres humanos? Resolvi acreditar como forma de não
enlouquecer.
No dia seguinte, recebi um telefonema do fórum de Resende: a minha filha tinha se apresentado
ao juiz na companhia do chefe interino da comunidade do Céu da Montanha, o já mencionado
Alfredo. Este último tinha se oferecido gentilmente para acolhê-la, devido ao fato de "ela correr
risco de vida na minha companhia", e ele sentir-se com responsabilidade espiritual, e por ser pai de
outras adolescentes, solicitava a guarda.
O juiz, sem sequer ter me ouvido, havia entregue a guarda dela a um sujeito sem moral alguma.
Não acreditei no que ouvi. Fui pessoalmente falar com o juiz.
Perguntei-lhe se conhecia os predicados da pessoa a quem tinha entregue minha filha e sobre o
porquê de não ter sequer me ouvido a respeito. A resposta foi textualmente a seguinte: "Na minha
leitura, a senhora foi amante desse sujeito, ele não lhe quis mais, e a senhora está com dor-de-
cotovelo."
Isso aconteceu em junho de 1991. No momento em que escrevo este texto, esse juiz ocupa o
cargo de corregedor na cidade do Rio de janeiro. Vivemos um momento político com a promessa
de mudanças nas instituições. Me pergunto: que tipo de mudanças são possíveis numa sociedade
cujos magistrados agem dessa forma?
A partir daí, iniciei uma jornada dolorosa, com descidas aos infernos e travessias em mares de
lama. Transitei pelas trilhas das mentiras em nome de Deus, aprendi como se desfaz a identidade
dos seres humanos, como se roubam almas, como se deturpam as sagradas escrituras.
E, como muitas mulheres em todo o planeta, senti na pele o que as estruturas patriarcais são
capazes de fazer para impedir que a nova consciência feminina se manifeste. Houve muitos
momentos nos quais, me sentindo atropelada, ignorada, desrespeitada pêlos integrantes do
judiciário, tive vontade de parafrasear Federico Felhni, no seu filme Cidade das Mulheres,
dizendo: "Eu não nasci em Marte, não. Nasci e moro aqui na Terra e o meu único crime é o de ser
mulher e exercer o direito de ser mãe".
Não somente tentaram me destruir, como fizeram com que minha filha fosse privada do direito de
ter um lar, uma mãe provedora.
Assim, presenciei, estarrecida, a conivência do poder público com os estelionatários da fé, seu
cinismo, sua omissão.
Era um inverno muito frio. Sentia uma dor de aborto, de ter sido desgarrada nas entranhas. Sem o
apoio da justiça, só me restava a fé. Passei a manter contato com o Eduardo Mota, adepto da
comunidade daimista, em cuja casa minha filha estava morando. Ela tinha saído da casa do
Alfredo, por exigência minha. Sabia que lá ela seria obrigada a satisfazer as motivações escusas
do sujeito que tinha ido junto com ela ao fórum. Resolvi ceder temporariamente, enquanto
negociava a saída dela da comunidade, com a condição de que ela saísse da casa dele. Na época,
o argumento que usei para conseguir a transferência dela foi o de que eu denunciaria o
envolvimento da seita com o uso da maconha.
Ela saiu na hora em que recebeu o recado.
O Eduardo Mota era tido como pessoa conciliadora e gentil. Acreditei que se abria uma brecha. Ele
passou a visitar minha residência com um discurso espiritual e fraterno que não me convencia. Eu
retrucava que não concordava que minha filha ficasse lá. Num segundo momento, ele começou a
me pedir dinheiro porque, segundo seu raciocínio, estava sustentando minha filha, e aos poucos foi
ficando prepotente e grosseiro. Eu queria ver a Verônica e não me achava em condições de ir para
a comunidade. Implorava para que ela viesse me ver em casa, quando o Mota vinha. Tudo em vão.
Finalmente, em setembro, um mês antes de ela completar quinze anos, veio um dia para casa na
companhia do Mota. Ele assumia o ar de cavaleiro medieval ao qual foi confiada a guarda da
donzela. Tentei falar com ela no meu quarto, enquanto o supradito aguardava na sala. Ela se
recusava, simulava estar com medo de ficar sozinha comigo. Exigia a presença do guardião. Só
respondia às minhas indagações olhando para ele. Era evidente que a lavagem cerebral tinha sido
bem-feita. Expliquei para ambos que de maneira alguma ela ficaria na comunidade: ou eles
concordavam de forma amena em organizar a saída dela, ou eu utilizaria o poder público.
Não houve acordo. Recorri à promotoria. Consegui mostrar, embora sem muita credibilidade, que o
daime não era, como a promotora se referia, "uma porra que dava doideira", e sim uma substância
cujo uso tinha sido liberado e regulamentado por organismo federal, o CONFEN, e que as
condições em que minha filha se encontrava fugiam a essas determinações. A promotora chegou à
conclusão de que suas grosserias iniciais não me amedrontaram e marcou uma reunião com os
daimistas, com minha filha, com o juiz e comigo.
Faltaram à reunião e foi-se mais um mês para se marcar outra. Finalmente compareceram.
Enquanto aguardávamos ser recebidos pelo magistrado, minha filha me evitava e o Mota cantava
hinos do daime no hall do fórum.
Dessa vez o juiz foi categórico: explicou para Verônica que não havia possibilidade alguma de ela
permanecer lá. Ela esperneava, argumentava. O juiz retrucava. A situação era ridícula, pela falta
de senso, de compreensão. Assim mesmo, chegou-se a um acordo: ela ficaria na comunidade até
o dia 6 de novembro — estávamos em outubro de 1991 — data na qual um amigo meu, morador
das proximidades, pegaria meu carro e iria buscá-la para evitar os atritos que obviamente
aconteceriam caso eu fosse pessoalmente. Todos concordamos. Ao sair, o Mota, ainda
assoviando hinos afirmou: "O juiz não está com nada".
A empáfia dele me estremeceu. Não consegui compreender o que ele queria dizer.
No dia 5 de novembro, na véspera do dia de buscar Verônica, o Mota me telefonou dizendo para
não mandar o carro porque a minha filha não retornaria para casa, como tinha sido combinado,
Tentei argumentar a respeito do compromisso com a justiça. Em vão. Os cérebros que passam por
processos de lavagem ficam imunes à lógica e à coerência. Fiquei paralisada, estarrecida. Até o
momento, todas as situações difíceis que tinha encarado na vida sempre apresentavam alguma
coerência. A situação era irracional, absurda, e eu não tinha parâmetros para compreendê-la.
No dia seguinte, ainda chocada, recebi o telefonema da promotora, perguntando se tudo tinha
corrido como previsto. Relatei-lhe o telefonema do Mota: mais uma vez ela demonstrou seu pavio
curto: "A senhora venha aqui ao fórum amanhã, às cinco da tarde, buscar sua filha".
Tentei perguntar o que ela iria fazer. Presunção minha... "A senhora quer sua filha? Amanhã à
tarde!", foi a resposta.
Pontualmente, no dia 7 de novembro, compareci ao local onde a justiça é ministrada. O que lá
aconteceu mais parecia um filme de neo-realismo. De um lado, oficial de justiça, assistentes
sociais, funcionários do fórum. De outro, minha filha, na condição de vítima, e vários daimistas, no
papel de guardiões da donzela. O Mota era obviamente um deles. No meio, a promotora aos
berros.
Eu não conseguia chegar a menos de três metros de distância do ponto em que a Verônica se
encontrava, já que ela entrava em pânico, com gestos teatrais que impressionavam fortemente a
assistência. Ela se recusava a voltar para casa.
Enquanto eu aguardava, o oficial de justiça me relatou os acontecimentos na comunidade do
daime:
Tinham chegado à comunidade daimista por volta das onze horas da manhã. Ele num carro,
munido de um mandado de busca e apreensão, e uma Kombi lotada de policiais militares para
garantir o cumprimento do mandado. Nesse horário a maioria dos moradores da comunidade
encontrava-se no pátio, em frente à cozinha comunitária, onde era servido o almoço. Com a
chegada do aparato policial, o caos se manifestou. A Verônica, como não poderia deixar de ser,
bateu o pé dizendo que de lá não sairia. As mulheres, que não eram poucas, fizeram uma corrente
em torno dos policiais e começaram a rezar, enquanto a Sônia, esposa do Alex Polari,
argumentava aos berros com o oficial de justiça que não poderiam entregar minha filha àquela
mulher (eu), e as crianças choravam aos berros.
A queda-de-braço tinha durado mais de quatro horas. Finalmente, minha filha tinha sido colocada
no carro com o oficial de justiça, e uma comitiva de daimistas tinha vindo atrás, uns de carro, outros
de moto.
Achei estranha a presença de uma daimista chamada Carminha, de quem minha filha dizia, até
poucas semanas antes de ficar lá na comunidade, sentir "ódio" e "repulsa". Ela veio ao fórum e
estava sendo tratada como madrinha da Verônica.
A queda-de-braço continuava. Por um lado, a promotora argumentando que não existia outra
possibilidade: ela tinha que voltar para casa já que, por não termos parentes, era o único lugar
possível.
De outro lado, minha filha, simulando um sotaque caipira carregadíssimo, que insinuava
deboche, sustentando que para casa não voltava. Houve momentos terríveis, quando ela era
compelida a argumentar a respeito da sua recusa.
A promotora chamou-me para sua sala, para conversarmos a portas fechadas e determinar até
quanto ela poderia pressionar. Enquanto discorríamos, alguém bateu na porta e disse alguma
coisa ao ouvido dela que eu não consegui entender. A seguir, houve um escândalo: a promotora,
como que possuída, tomou das mãos da Carminha a mochila da Verônica e, aos gritos e
impropérios, ameaçava e dava ordens de bater na máquina alguns termos.
O que tinha acontecido era o seguinte: enquanto nós duas estávamos trancadas na sala, para
resolver como sair dessa situação, a esposa de um juiz, que se encontrava de passagem pelo
fórum, à espera do marido, tinha presenciado uma cena chocante:
A Verônica estava num canto com a Carminha — a atual "madrinha" — que apoiava uma mão
na testa da minha filha e com a outra segurava a mão dela, dizendo: "REPITA o QUE ESTOU
DIZENDO. REPITA O QUE ESTOU DIZENDO! VOCÊ NÃO É FELIZ COM SUA MÃE! VOCÊ SÓ É
FELIZ LÁ!" (na comunidade do daime). Esse episódio está registrado no processo de número
209/91, folha 7, no fórum do município de Resende (RJ).
Na hora, foi lavrado um documento e aberto um processo, onde consta, além dos fatos citados,
uma determinação do juiz e da promotora, pela qual todos os daimistas, em especial o Mota e a
Carminha, ficavam a partir daquele instante proibidos de se aproximar da Verônica, por todo e
qualquer meio, seja por telefone, carta, bilhete, presentes ou visitas.
Após os daimistas terem assinado o documento, foram literalmente expulsos do fórum, ao som
nada melodioso dos gritos e impropérios da promotora, que ameaçava acabar com "essa pouca-
vergonha de beber essa porra!".
Assim, já sem os guardiões, minha filha ainda resistia. Passava da meia-noite, e a promotora
apelou: "A única chance, não sendo a casa da tua mãe, é a casa do menor de rua".
Para minha consternação, ela aceitou. Foi levada para lá num carro da policia militar e passou a
conviver com menores delinqüentes, infratores, como forma de reafirmar sua fé no daime e provar
sua absoluta integração à seita.
Os dias passavam e eu oscilava entre a angústia e a depressão. Tentava visitá-la e, aos gritos, ela
me punha para fora. Soube, mais tarde, que os daimistas visitavam-na assiduamente.
Os absurdos se sucediam, criando um emaranhado de situações incompreensíveis. Ninguém
conseguia extrair dela o que eu poderia ter de tão perigoso assim. Porém, as pessoas que nada
tinham a ver com a história aproveitavam-se da situação para projetar nela seus recalques.
Desta forma, num dia, enquanto tentava falar com minha filha, fui agredida verbalmente por uma
vereadora que, a todo custo, argumentava que eu deveria fazer um exame de consciência para
avaliar meu comportamento como mãe. Cheguei em casa chorando, relembrando-me de todas as
situações de dificuldade que tinha vivido sozinha, sem ajuda alguma, para criar minha filha com (
dignidade. Lembrei-me das vezes em que tive que fazer opções duras, por falta de dinheiro, do
gênero: ambas precisávamos de dentista, o dinheiro só dava para pagar um tratamento, então eu
protelava o meu. Onde estaria essa vereadora naquele momento? Quantas vezes tinha virado
noites cuidando das febres, trabalhando para poder pagar escolas particulares, tentando ser pai e
mãe, já que o pai verdadeiro tinha se omitido?
É óbvio que quando se cria um filho não se medem esforços e não se espera recompensa. Da
mesma forma, não se espera tropeçar com uma seita ensandecida nem com desconhecidos, que
foram muitos e que me colocaram na situação de Judas, apedrejando-me e condenando-me.
A mesma vereadora, que acumulava a função de diretora da casa do menor, onde minha filha
permaneceu, expulsou-a, quando tomou conhecimento de que ela tinha feito ligações interurbanas
para os chefes da seita em outras cidades, deixando uma conta, que em muito excedia a receita
para cobrir todos os custos da casa.
O natal se aproximava. Nessa data, nos anos anteriores, tínhamos estado em Mauá, fazendo o
trabalho onde se canta o hinário de mestre Irineu. Nesse ano, obviamente, eu ficaria em casa. E a
minha filha?
Uma amiga minha do Rio de Janeiro prontificou-se a vir buscá-la, levá-la para a cidade
maravilhosa, onde o programa seria uma casa com piscina, outros adolescentes, festa, passeios e
tudo mais. Para isso ser possível seria preciso uma autorização da Vara de Menores. Essa amiga,
pessoa idônea, mãe de dois rapazes, conhecia a Verônica desde que ela tinha três anos. Soava
estranho precisar de um documento emitido pela Promotoria. De qualquer forma, conseguimos o
papel, com carimbos e assinaturas, e lá se foram. A Verônica parecia não concordar com a
viagem. Logo que chegaram ao Rio, minha amiga ligou desesperada: a Verônica fugira para a
casa de daimistas, prometendo voltar. A autorização da promotora era necessária justamente para
manter o controle, evitando contatos da Verônica com o daime. Como se verá mais adiante, a má
vontade em viajar e a insatisfação que ela demonstrava ante a disposição da minha amiga de vir
buscá-la estavam ligadas a uma confabulação comandada por Alex Polari e sua mulher Sônia
(nesse tempo em Mauá), na qual eles faziam até trabalhos, com o objetivo de "abrir o coração" da
promotora e "mudar minha cabeça", e assim a Verônica poderia estar presente no natal, junto com
eles. Segundo carta do Alex enviada a ela, contrariando a proibição judicial, "seria o maior
presente de natal que Deus poderia nos dar".
A casa de daimistas para onde ela tinha se dirigido era a do ator Carlos Augusto Strazzer, pai de
três adolescentes, todos daimistas, e que na época encontrava-se gravemente doente.
Pessoa de profunda sensibilidade, Carlos Augusto demonstrou compreender como ninguém o que
estava acontecendo e apontou um caminho para uma solução digna.
Após conversar com a Verônica e induzi-la a retornar para casa da minha amiga, me telefonou
dizendo: "O que se passa com a tua filha é conseqüência de uma desastrada intromissão das
pessoas da seita num relacionamento entre mãe e filha. A religião, que deveria ter funcionado para
unir, foi utilizada para separar. Você não deve se afastar, deve lutar dentro da doutrina, continuar
tomando daime. No dia dos Santos Reis — 6 de janeiro — o padrinho Alfredo (principal líder da
seita, normalmente na Amazônia) estará no Rio de Janeiro". (Nessa data acontece um trabalho de
daime que é um dos pontos alto» do calendário daimista.) "Eu falarei com ele — acrescentou —
para se reunir contigo, tomar conhecimento dessa história e encontrar uma solução."
O Carlos Augusto me emocionara, achei que, enquanto houvesse pessoas com essa clareza,
nem tudo estava perdido. Na data combinada, viajei ao Rio e antes de ir para a igreja passei na
casa dele.
Com enorme sabedoria, ele me explicou que em todo grupo humano o ponto mais delicado são
os adolescentes. De alguma forma, o caso da Verônica era um alerta. Segundo ele, eu deveria
conseguir que o Alfredo entendesse que a questão devia ser focalizada não como uma situação
conflitante entre mãe e filha, e sim como uma manifestação de que a organização não dispunha de
um fórum especial para tratar desses casos, e que, se continuassem sendo tratados no "grito" ou
no diz-que-diz, não demoraríamos em amargar terríveis tragédias.
Chegando à igreja, procurei o Alfredo. Eu o tinha conhecido anos atrás, quando viera da
Amazônia conhecer a comunidade e ajudar na sua estruturação. Nessa época ele era um caboclo
simples, humilde, usava chinelos de dedo e calça surrada. Era simpático e tímido. Não tinha o
hábito de tratar com urbanóides do sul do país.
Músico nato, cativava as pessoas com seus modos delicados. Mas com o tempo, e com o
poder, o padrinho Alfredo se modificou muito. Ao procurá-lo, não demorei para perceber que o
"circo estava armado". Com a desculpa de que estava doente, com úlcera no estômago, foi
adiando a nossa conversa até o final do trabalho. O Alfredo já não era mais o mesmo.
Elegantemente trajado, ficara inacessível, como todo líder de seita, cujos acólitos mais próximos
mantêm no alto de um pedestal.
A reunião aconteceu com o dia amanhecendo. Depois de uma noite inteira tomando daime, pitando
(fumando maconha) e bailando, o raciocínio é sinônimo de desafio. Da reunião participava o staff
do Céu do Mar e outras pessoas que, além de não conhecer o caso, nada tinham a ver.
As pessoas interferiam, chegavam a gritar colocando-se entre o Alfredo e mim, não me permitindo
falar quando eu tentava relatar os fatos que incriminavam os daimistas. Sentia-o dividido: se por
um lado entendia que tinham sido cometidos muitos erros, por alguma razão não lhe interessava
resolver a questão.
Fazendo uso de um raro talento político, ele concluiu: "O caso é complicado, não me cabe
encontrar a solução. Só posso lhe dizer que enquanto o problema não estiver resolvido, e a
senhora não estiver morando de forma harmoniosa com sua filha, ela está proibida de tomar
daime. Só não sei lhe dizer de que forma a senhora vai chegar a essa harmonia. Porém, reafirmo
aqui minha determinação de que enquanto a senhora não me comunicar que as coisas se
resolveram, a Verônica não fará trabalho de daime".
Compreendi que ele havia sido engolido pelo espírito de grupo. Aquele homem simples que eu
tinha conhecido anos atrás, estava inebriado pelo poder. Coloquei para ele a seguinte
comparação: "Há alguns séculos, o homem civilizado chegou à bacia amazônica, tomou o ouro e
as pedras preciosas dos índios, e em troca deu bolinhas de gude e espelhinhos. A ayauhasca
pode ser comparada ao ouro, pelo seu enorme valor para se atingir o conhecimento. E o senhor
como os índios está recebendo, em troca desse ouro, espelhinhos e bolinhas de gude".
Posteriormente, soube que na época ele se encontrava no Rio de janeiro devido a problemas que
tinham acontecido com uma jovem carioca, que como tantas outras tinha-se deslumbrado com o
universo descortinado pela bebida e seguido a trilha que leva para o Céu do Mapiá, na floresta
amazônica. Lá, fora seduzida pelo padrinho Alfredo, que já é casado com três mulheres, e a moça
tinha apresentado um surto esquizofrênico.
Além da poligamia em si, o caso é agravado pelo fato de que duas de suas mulheres são irmãs e
moram na mesma casa com aquele que hoje é o líder do CEFLURIS.
Me pergunto: Até que ponto essa transgressão às leis afeta os filhos do padrinho e os adeptos por
ele comandados? E, além disso tudo, seu envolvimento com a jovem — o que evidencia mais um
caso escandaloso com menores —me dava a impressão de que não havia comando maduro e
isento no CEFLURIS. Hoje tenho certeza absoluta de que não há.
Obviamente, a sugestão dada pelo Carlos Augusto Strazzer a respeito de se criarem normas
específicas para os adolescentes não tinha nem sido considerada, e seis meses depois, na
comunidade Céu do Mapiá, o adolescente Jambo tomava a trágica atitude de pôr fim à própria
vida. Confirmava-se, assim, a intuição e o profundo conhecimento da questão que o Strazzer
demonstrara ter. Seis meses após o suicídio do Jambo, Carlos Augusto também partiu, levado por
uma terrível doença.
Após a reunião, retornei para Penedo, decepcionada.
A partir de então, com quinze anos de idade, tendo casa para morar com dignidade, uma mãe
disposta a não poupar sacrifícios para fazer dela uma mulher resolvida, minha filha tornou-se uma
peregrina. Foi acolhida por diversas famílias de Resende, que se apiedavam dos seus relatos
patéticos e mentirosos. A maioria dessas famílias eu não conhecia. Em comum a todas as casas
por onde passou: foi expulsa por criar desavenças entre os membros da família. Os endereços
dessas residências me eram ocultados. Eu não parava de implorar às autoridades, ao Conselho do
Menor. A promotora me aconselhava esquecê-la porque, segundo ela, minha filha "não prestava".
Em vão, tentava explicar que ela tinha sido vítima de uma lavagem cerebral e que enquanto não
fosse feito um tratamento específico para resgatar sua identidade tudo seria em vão.
Eu suspeitava de que a lavagem cerebral continuava, que os daimistas persistiam no aliciamento
da Verônica. Porém, não tinha provas concretas. Ela rejeitava tudo o que poderia vir de mim.
Consegui uma psicóloga que se dispôs a tratá-la, omitindo o fato de ser eu quem pagava o
tratamento. Para que isso fosse possível, precisei de autorização da Promotoria da Infância. Para
concordai a promotora exigiu que eu fizesse um eletroencefalograma. Eu não podia acreditar em
tamanho absurdo. O exame seria feito por um neurologista a pedido e por conta da justiça. Eu
queria apenas que minha filha recebesse a ajuda de um tratamento psicológico.
Quando o médico solicitado para fazer o exame soube da motivação, recusou-se a fazê-lo. Teve
de ser intimado judicialmente, e eu fui acompanhada por uma assistente social ao consultório dele.
Os absurdos me esmagavam. O exame foi feito, o resultado: normal. Nesse absurdo passaram-se
vários meses. Finalmente o tratamento com Verônica começou.
Nesse período, ela morava numa casa relativamente próxima à minha residência, cujo endereço
me era cuidadosamente ocultado. Para vê-la, eu precisava deixar recado com uma assistente
social que realizava a função de mediadora.
Durante esse tempo todo, de absurdos e disparates, minha cabeça corria o risco de dar um nó. Era
muita coisa em jogo: em primeiro lugar, minha filha, com quinze anos de idade, peregrinando de
casa em casa, no meio de desconhecidos, sendo rejeitada, passando necessidade, quando tinha
um lar e uma mãe provedora.
Em segundo lugar, minha religiosidade estava em crise. Tudo isso estava acontecendo porque
tinha buscado um caminho que me aproximasse de Deus. Como entender? Como aceitar?
No meu desespero, achava que tinha que encontrar uma solução dentro do próprio daime. Passei
a freqüentar igrejas e grupos do Rio e São Paulo, tentando achar uma solução através da
expansão da consciência.
Um dia, antes de ir ao Rio para um trabalho de daime, na véspera do dia de São Pedro, 28 de
junho de 1992, sabendo que a Verônica estava precisando de roupas, mandei-lhe recado pela
assistente social para passar na minha casa, no dia seguinte, e irmos juntas a Resende comprar o
que ela estivesse precisando.
Fui para o Rio e, durante o trabalho no Céu do Mar, alguém me disse que o Jambo tinha feito a
"passagem" (expressão usada pêlos daimistas para se referir à morte). Com dificuldade consegui
extrair detalhes que os daimistas se recusavam a dar. O clima de terror pairava no ar.
Disseram-me que ele tinha se jogado numa fogueira no Mapiá.
O que esse menino, que eu tinha conhecido tempos atrás em Mauá, estaria fazendo no Mapiá? O
que o teria empurrado para o fogo?
Chegando a Penedo, a Verônica apareceu em casa logo em seguida, como tinha sido combinado.
Contei-lhe a tragédia. Ela começou a rodar sobre si mesma como um pião e dizia: "Ele não podia
ter feito isso! Nós tínhamos sido nomeados responsáveis por zelar pela 'bandeira da paz', no caso
eu deveria ter ido primeiro. Além do mais ele era do 'daime eterno' e, portanto, não poderia ter se
suicidado, porque a vida dele pertencia ao daime!"
O daime eterno é uma espécie de confraria dentro da seita, formada só por homens que, através
de algum ritual de passagem que desconheço, entregam a vida ao daime.
Eu não consegui acreditar no que ouvia. Esses símbolos e atitudes fascistas, "bandeira da paz",
seguem um modelo de criação corporativista do gênero juventude janista, juventude peronista,
juventude nazista, tudo o que eu tinha combatido durante a minha vida inteira. E esse par de
adolescentes inocentes tinham sido programados para serem utilizados com essa finalidade, em
nome de Deus! O Jambo tinha pago com a vida de uma vez só, e a Verônica pagava em pequenas
prestações, dia após dia. Ela chorava e eu morria de vontade de pegá-la no colo, de lhe explicar o
processo a que tinha sido submetida, mas ela não permitia sequer que me aproximasse.
Fora essa tragédia, o ano de 1992 transcorreu sem grandes novidades. Sabia que minha filha
estava morando num condomínio a menos de um quilolitro de distância da minha residência,
porém não tinha acesso a ela. Para entrar em contato com ela, precisava localizar a assistente
social e contar com a boa vontade dela. Sabia que freqüentava a escola e que a família com quem
morava era de um coronel do exército. Eu suspeitava de que os daimistas de Mauá continuavam
com o processo de sedução mas não podia provar.
No final do ano, o coronel exigiu a saída imediata dela. A Verônica tinha conseguido perturbar a
ordem familiar, desacatar sua autoridade e semear a discórdia.
Eu continuava tomando daime, pedindo às forças com que a ayauhasca nos põe em contato a
ajuda necessária para restaurar nosso vínculo, trazer minha filha para casa e reparar os efeitos de
tanto sofrimento. Só tinha a fé para me agarrar.
Quando saiu da casa do coronel, arrumou outra casa, outra família, não houve nenhuma ajuda
para trazê-la de volta.
Durante 1993 ela ficou com diversas famílias da cidade de Resende. Eu sempre sabendo de longe
os passos que ela dava.
Cidade pequena, as pessoas gostam de dar más notícias. Era normal ouvir: "Ontem vi sua filha
bêbada, em tal boate...". Sabia que ela trabalhava numa butique de Resende e mandava
interlocutores, sem apelar.
Nesse meio tempo a comunidade daimista do Céu da Montanha passava por uma profunda
reformulação. Alex Polari, seu fundador, morava na Amazônia. O médico José Rosa tinha
assumido a direção e estava "limpando a casa". Eu o conhecia dos tempos em que o grupo de
Mauá era pequeno. Demonstrávamos simpatia mútua. Presenciei um longo e doloroso processo
através do qual ele havia se curado de um câncer no pâncreas, que o tinha levado à beira da
morte.
Tudo indicava que a limpeza que ele estava realizando na comunidade não era só física — era
espiritual e moral. Seu intuito era resolver todas as travas que tinham se originado nesses últimos
anos — a minha história não era a única, havia outros casos bem escabrosos — para deixar o
lugar em condições de receber grupos de americanos que chegariam para fazer tratamento com
ayauhasca, orientado por ele. Anteriormente, José Rosa já tinha consultório em Boston.
No dia 3 de novembro de 1993, o Zé Rosa, como é chamado, apareceu de repente na minha casa.
Sentamos para conversar na frente de um pequeno altar com daime e fotos do mestre Irineu. Com
modos carinhosos e sinceros, passou a me relatar que no momento em que estava começando o
trabalho de finados, na noite do dia 1° de novembro, sem prévio aviso, a Verônica tinha se
apresentado a ele, vestindo a farda, dizendo que estava precisando tomar daime.
Ele disse ter conhecimento "por alto" que havia uma história complicada a respeito, porém no
momento sentira uma voz interior dizendo: "Deixa..." Assim ele concordara que ela fizesse o
trabalho, com a condição de bater um papo no final e ouvir dela o que estava acontecendo.
Quando o trabalho acabou ela já não estava mais no salão para bater o tal papo.
Seguindo sua consciência, tinha se prontificado a vir à minha casa saber por mim o que tinha
acontecido e em que pé estavam as coisas.
Relatei-lhe os fatos, e ele ficou tremendamente chocado. Expliquei também que, segundo a
Verônica havia dito às assistentes sociais e à psicóloga, ela não estaria mais interessada em tomar
daime. Eu sabia que havia na própria comunidade pessoas interessadas em sabotar a liderança
dele, pelo seu intuito de limpar a casa. Como existia uma proibição judicial, e do padrinho Alfredo,
de a Verônica freqüentar e tomar o daime, a questão me parecia uma cilada, armada pêlos
inimigos dele, com a colaboração dela.
Disse-lhe também que admirava sua determinação de enfrentar com coragem a tarefa de
transformar a comunidade num ponto de luz, pois até agora era a escuridão que tinha dominado, e
fui bem sincera: "Como é que você vai conseguir colocar em atuação forças curadoras num local
onde se cometeram tantas injustiças, onde se originou tanto sofrimento? Como você vai agir em
relação a uma história tão truculenta como a nossa? Nos varrendo para baixo do tapete, como uma
sujeira desagradável?"
Emocionado, ele me respondeu que tinha a firme determinação de limpar nossa história — minha
e da Verônica — e se colocava à disposição. Perguntou onde eu estava tomando daime.
Respondi que com diversos grupos alternativos em São Paulo e no Rio de Janeiro, e às vezes na
Barquinha, também no Rio.
Sempre com a voz embargada pela emoção, me disse: "De jeito nenhum! Não faz sentido você
viajar tantos quilômetros. Teu lugar é em Mauá! Volta! Vamos tomar daime juntos e começar a
resolver esse caso".
Foi embora, depois de me abraçar com carinho e reafirmar que, juntos e com fé, iríamos vencer.
Fiquei emocionada, mas desconfiada. No mesmo dia, perguntei para a assistente social que
história era essa de a Verônica ir a Mauá tomar daime. Não havia uma proibição judicial a
respeito? Não era função do Conselho Tutelar do Menor zelar por ela e fazer respeitar a lei?
Ela também ficou surpresa e visitou a Verônica para saber o que havia acontecido. Minha filha
negou os fatos de forma veemente.
"De jeito nenhum! Jamais voltei a tomar o daime. Isso só poderia ser produto da imaginação de
uma mente doentia!", respondeu a Verônica.
Percebi que havia mais podre no reino do daime que a minha imaginação era capaz de supor.
Três semanas depois da visita do Zé Rosa, no dia 28 de novembro, recebo o telefonema de uma
senhora que dizia ser proprietária da loja onde a Verônica estava trabalhando e que a minha filha
estava mal. Segundo ela, o que a Verônica tinha era falta de mãe. Respondi que mãe ela sempre
teve, que nunca tinha me furtado a exercer essa função.
Ela queria saber se eu estava disposta a receber minha filha. Nada neste mundo me faria mais
feliz!
A ligação caiu. Meia hora mais tarde a Verônica chegava em casa aos berros:
"Mãeeeeeeeeeeeeeeee!", chorava compulsivamente. Pela primeira vez em quase três anos pude
abraçar minha filha.
Ambas choramos. Não conseguíamos falar. Deitou-se na minha á cama e dormiu
imediatamente.
Eu não cabia dentro de mim. Era uma mistura muito grande de emoções com
surpresa. Agradeci às forças invisíveis, ao plano espiritual.
Quando acordou, pegamos o carro, fomos a Resende catar as coisas dela. Da mesma forma
que sua identidade estava aos pedaços, as suas coisas estavam espalhadas em diversas casas.
Ela estava estressada, esgotada, mal alimentada. Disse estar com úlcera por passar fome.
Acolhi-a com amor e coloquei uma única condição: fazermos uma terapia familiar. Ela aceitou.
Na convivência cotidiana percebi que tinha se tornado uma alcoólatra. Isto, somado às diversas
violências de que tinha sido vítima, sempre sendo tratada como intrusa nos locais onde morara, a
deixou, além de estressada, confusa. Se antes de sair de casa já tinha o hábito de mentir, esse
hábito havia se tornado uma arte.
Na butique onde trabalhava, por ser véspera de natal, o horário de trabalho acabava às dez da
noite. Estava de aviso prévio e trabalharia até o natal. Após essa data, estaria livre.
Como a maioria dos terapeutas tem férias em janeiro, a terapia familiar só começaria em fevereiro.
Na convivência com ela dava para perceber que a programação introjetada no seu inconsciente,
pela lavagem cerebral, de renegar a mãe, de faltar à verdade em nome do daime, de não ter o
direito de ser feliz e coisas semelhantes, fora um trabalho bem-feito. Quando ela se surpreendia a
si própria numa situação de prazer e descontração comigo ou consigo mesma, sua cabeça entrava
em pane.
A tensão interna que ela suportava, por um lado, me inspirava compaixão e, por outro, revolta.
Revolta contra o estelionato espiritual e contra a impunidade desse bando de delinqüentes que não
têm respeito por seus semelhantes, nem por Deus. Usam o sagrado para destruir.
Mais uma vez, a história da ayauhasca ligada ao terror, ao ódio, à submissão, ao atropelo.
Desta forma — pensava eu — só um terapeuta experiente e conhecedor do universo da
ayauhasca, como é o caso do Zé Rosa, poderia curar essas feridas. Começava o ano de 1994 e
acontecia mais um festival do daime, como acontece todos os anos nessa época.
Resolvi dar um voto de confiança ao doutor José Rosa e fiz o trabalho do dia dos Santos Reis
em Mauá, na noite de 5 de janeiro, dois anos depois daquela mesma data, quando tinha
acontecido a reunião com o padrinho Alfredo.
Diversas pessoas, que tinha conhecido em outras igrejas ou grupos de daimistas durante esses
dois anos, vieram para participar também, como forma de testemunhar a solução do caso. Foi um
voto coletivo de fé na ayauhasca e na proposta de Justiça, Paz e Harmonia.
Quando cheguei, o Zé Rosa me recebeu emocionado: "Obrigado por ter vindo", falou. O
trabalho foi bom. Pairava no ar um clima de restauração. No final conversei longamente com Zé
Rosa. Relatei-lhe que três semanas após sua visita a Verônica tinha retornado e expliquei que ela
apresentava sérios sinais de desestruturação psicológica e evidenciava dependência do álcool.
Ele me pediu um tempo até fins de janeiro, quando estaria mais desocupado, e nos convidou a
passar o último fim de semana do mês na casa dele, para juntos, os três, estabelecermos as bases
do que seria nossa terapia. Aceitei.
Na primeira semana de janeiro, a Verônica matriculou-se numa escola de Resende para
começar as aulas em fevereiro. Escolheu um curso de inglês, outro de violão. Prometi a ela e a
mim mesma que meus esforços teriam uma só meta: reestruturá-la.
Como as aulas começariam no mês de fevereiro, ela nada tinha a fazer no mês de janeiro.
Tinha conhecido, numa rápida passagem por nossa casa, um jovem casal de amigos meus de São
Paulo, e gostado deles. Achamos que seria bom para ela passar uns dias naquela cidade. Tinha
sido convidada por eles para assistir ao Holiywood Rock, e posteriormente aproveitar o feriado de
25 de janeiro numa ilha do litoral paulista. Adorou a idéia e preparou sua mala em clima de alegria.
Tinha uma evidente dificuldade em admitir que estava feliz.
Viajou no dia 15 de janeiro. Meus amigos a esperaram na rodoviária. Quando chegou lá. Verônica
disse a eles que essa viagem selava seu reencontro comigo.
Em São Paulo, foram a uma festa de aniversário na qual havia daimistas. A programação negativa
ativou-se como num programa de computador.
Mentiu, criou intrigas, falseou fatos, distorceu conceitos, e no fim de janeiro recebi uma carta do
casal de amigos na qual me informavam que ela tinha desaparecido, mas que os tranqüilizara,
porque estaria bem. Soube também que o senhor Wilson Carneiro, responsável pela Colônia 5000,
comunidade daimista da cidade de Rio Branco, estava em São Paulo com uma comitiva. Na hora
compreendi que minha filha estava sendo levada para lá.
Apelei ao doutor José Rosa, que tinha se prontificado a limpar a história. Após alguns telefonemas,
ele descobriu que a Verônica estava, junto com a mencionada comitiva, na casa dum tal de
Glauco, famoso defensor do daime, autor de uma tira de história em quadrinhos publicada em um
grande jornal, denominada Geraldo, e candidato a padrinho na máfia daimista, já que possui um
ponto de daime em São Paulo, onde se faz apologia do uso de drogas, em especial da maconha.
Após diversas tentativas frustradas de falar com o Glauco, percebi que o circo já estava montado e
que sozinha não tinha como enfrentar tamanho corporativismo.
Ela estava com dezessete anos e, devido ao processo que ainda corria na vara de menores de
Resende, sob a responsabilidade da justiça.
Comuniquei os fatos ao promotor e ainda acrescentei que, se não fosse tomada alguma medida
enquanto a Verônica ainda estava na casa do Glauco, ela seria levada para Amazônia, para o
quartel-general do daime, e dali seria difícil tirá-la.
Com a tradicional empáfia de que se revestem alguns cidadãos quando se tornam promotores e
juizes, o promotor me respondeu:
"A senhora não precisa se preocupar, faltam duas semanas para o carnaval, tenho certeza de que
sua filha volta logo que o carnaval acabar, só que talvez volte grávida".
Esta resposta, como a do outro juiz já mencionado no início deste relato, exprime a ética reinante
em certos membros do judiciário.
No dia 8 de março, recebi pela secretária eletrônica, um recado da Verônica, informando-me que
estava em Rio Branco e que eu não precisava me preocupar, já que "uma família" tinha a guarda
dela.
Comuniquei o fato ao juiz, que disse nada poder fazer, já que poderia ser uma mentira dela e
talvez ela estivesse em outro local.
Pedi auxilio a uma conselheira do CONFEN, profissional séria e consciente, psicóloga
especializada na questão do menor e em relações entre pais e filhos, que considerou o caso
gravíssimo. Segundo ela, a situação era tão grave, que cabia uma consulta ao jurista que tinha
presidido os trabalhos que culminaram com o relatório do CONFEN de 1992.
O doutor Domingos Bernardo G. de Sá, que presidiu os trabalhos do CONFEN, recebeu-me
polidamente, porém com o mesmo ar de nojo de quem é obrigado a se deparar com seus tapetes
persas sujos com esgoto. Soube, posteriormente, que dois de seus filhos são membros da
comunidade daimista do Rio de Janeiro, o Céu do Mar.
Manifestou muita preocupação de que o caso viesse a público e, assim, o trabalho por ele
presidido fosse "por água abaixo".
Aconselhou-me a procurar o psicólogo Paulo Roberto de Sousa e Silva, responsável pelo Céu do
Mar. Mais uma vez senti vontade de citar Federico Feilini, para explicar que não sou marciana e só
estava querendo que a lei fosse cumprida com o objetivo de preservar a dignidade da minha filha,
já que deve haver poucos lugares mais indignos do que a Colônia 5000.
Sabia que do Paulo Roberto não poderia esperar nada de bom. Ele mesmo já estava envolvido
com diversos problemas por causa
de menores, mulheres, daime misturado com anfetaminas, prática de curandeirismo, entre outros.
Uma liderança emergente nesse tempo no cartel daimista de São Paulo, Leo Artese, me procurou
oferecendo-se como mediador para resolver a questão. Fiz força para acreditar na sinceridade que
ele apregoava. Viajei para aquela cidade, onde tivemos uma reunião, na casa do Leo, com o
padrinho-mor de São Paulo, o antropólogo Walter Dias. Pude apreciar mais uma vez o perfeito
funcionamento da estrutura de cartel. O Nestor Perlonguer tinha me advertido diversas vezes da
periculosidade do citado padrinho, no tempo em que eu o visitava durante sua doença em São
Paulo.
A mentira, o atropelo dos sentimentos, da dignidade, são para o staff daimista uma tática
operacional. Ouvia o Walter me enrolando, como tinha ouvido, dois anos antes, o padrinho Alfredo,
os daimistas de Mauá e outros.
Quando vi que eu estava virando um "embrulho para presente", e que o Leo me segurava para o
Walter dar o laço na fita, aproveitei a oportunidade para mudar de assunto e perguntar ao
responsável pela seção de "embrulhos" o que ele achava a respeito dos casos de pessoas que
manifestavam surtos psicóticos e esquizofrênicos em decorrência de trabalhos com daime na
igreja sob seu comando. Obviamente, para trabalhar com a ayauhasca dessa forma é preciso
dominar com perfeição a arte do cinismo.
Voltei para casa com a certeza de que a vida da minha filha só seria salva com uma intervenção
direta e específica de Deus.
Somente um poder superior poderia desfazer a grande cilada que os daimistas nos arrumaram.
Tiraram-lhe o direito de ser, de ir e vir, de ter uma moradia digna, de estudar, de namorar, de se
divertir, de ser feliz.
Verônica é uma vítima. Um joguete nas mãos de criminosos. Fizeram de uma adolescente linda,
inteligente e cheia de vida um imbunche, em nome de Deus.
Cheguei em casa e resolvi arrumar os armários. Nunca tinha mexido nas coisas dela. De repente
achei um embrulho com cartas. Muitas cartas. Datavam do período em que fora retirada da
comunidade de Mauá até pouco tempo atrás. Dois anos de correspondência assídua. Os
remetentes, Alex Polari, sua mulher Sônia Falhares, o Mota e sua mulher Cristina, a Carminha,
que protagonizara a cena no fórum de Resende, flagrada pela promotora, e mais, muitos mais.
Vale lembrar que havia uma determinação judicial específica proibindo qualquer contato deles com
ela e que fora assinada pêlos daimistas.
O tema principal e constante na maioria das cartas era a necessidade de a Verônica assumir seu
papel de "mártir da doutrina".
Neste ponto é preciso explicar que o CEFLURIS vive um processo que poderia ser chamado de
"reedição do cristianismo". Segundo acreditam os daimistas, o mestre Irineu seria a reencarnação
de Jesus Cristo, o padrinho Sebastião seria São João Batista, o padrinho Alfredo seria o rei
Salomão, Alex Polari seria o rei Davi e a Verônica seria a reencarnação de Santa Bárbara.
Numa das cartas, ela é induzida a se comportar como a santa, que, não estando disposta a abrir
mão da sua fé, preferiu ser degolada pelo próprio pai.
Num desdobramento do mesmo conceito, para os integrantes da seita eu ocuparia o lugar de
satanás, seria sua versão feminina. Alex Polari e outros descrevem correntes de oração feitas para
mudar minha cabeça e meu coração. No meio daimista é proibido pronunciar meu nome. Quando
alguém porventura precisa se referir a mim, sou chamada de "aquela mulher".
Assim, confirmei as suspeitas que eu tinha, durante esse tempo todo, de que ela continuava sendo
aliciada pêlos daimistas. Aliciada é pouco. Durante o período em que ela esteve na casa do menor
de rua, na cidade de Resende, onde eu tentava visitá-la e era repelida aos gritos, os daimista
mesmo proibidos pela justiça de procurá-la, colocaram-na na situação de "santa viva".
Pelas cartas dá para deduzir o seguinte: um ou dois deles desciam a serra diariamente e vinham
visitá-la trazendo bilhetes, recados, cartas, presentes, etc. O teor das cartas é um só:
"Você nos ensina, com tua fé, com tua coragem!"
"Você é o exemplo vivo que nós temos para continuar
nossa caminhada!"
"Você nos pertence, na terra e no astral!"
"Você é o símbolo da luta do santo daime!"
"Um dia tudo isto fará sentido!"
"A batalha é pesada, mas com a graça de Deus e o poder
do daime venceremos!"
Ela recebeu cartazes com os dizeres: "Verônica, nossa fé, nossa esperança!"
A ladainha de baboseiras permitiria escrever várias páginas.
O importante neste ponto é salientar que uma adolescente, com quinze anos de idade, era desta
forma colocada numa situação que lhe exigia representar um papel de mártir, de modelo de
renúncia, e assim ficava impedida de desfrutar a vida à qual tinha direito. Podendo morar
confortavelmente, se divertir, sem precisar passar privações nem humilhações, servia como
espelho de um bando de recalcados.
Deixou também um diário no qual escreveu relatos estarrece-dores. A situação em que ficara,
morando em casas estranhas onde era tratada como intrusa, somada à imagem mentirosa que era
obrigada a manter, escondendo de todo mundo os contatos que mantinha às escondidas com os
daimistas, levou-a a um estado de tensão interna que, ao meu ver, a empurrou ao alcoolismo.
Chorei muito lendo as descrições das suas bebedeiras, sua solidão, suas carências. O pior de tudo
é que ela acreditava piamente que tudo isso acontecia em nome de Deus. E mais, eu sofria por
amá-la, por querer ajudá-la, por ter a disposição de fazer o que fosse preciso para ela sair desse
engodo, encontrar um caminho digno para ser feliz, mas nada podia fazer.
Ela estava em Rio Branco, na Colônia 5000. Os daimistas, no Acre, declararam à justiça que ela
tinha chegado àquela cidade sozinha, fugindo das surras que recebia em casa, e que o senhor
Wilson Carneiro a tinha acolhido por pena, quando, na verdade, viajara com ele, com sua
passagem paga pelo Glauco. Assim, conseguiram que a guarda da Verônica fosse outorgada ao
filho do Wilson, Raimundo Nonato, que assassinou um adepto da seita, cortando-lhe o pênis.
Escrevi algumas cartas para ela, enquanto a justiça se punha em andamento com toda a lentidão e
morosidade de que é capaz. Nunca obtive resposta.
Um dia recebi um telefonema dela, e com a voz visivelmente alterada, falando numa vez só, disse:
"As roupas e as coisas que deixei lá em Penedo, dá para alguém".
Tentei conversar, fazer perguntas. Tudo em vão — virara um imbunche.
Em setembro de 1994, cumpridos todos os ritos jurídicos, o juiz de Resende assinou um mandado
de busca que foi encaminhado à justiça do Acre como carta precatória.
Nele, o magistrado ressaltou que assinava a peça munido da certeza de que sua função era zelar
pelo bem-estar de uma menor. Que por ser a Colônia 5000 um lugar impróprio e desaconselhável
para a permanência dela, exigia sua imediata transferência para local idôneo, enquanto era
providenciado seu recambiamento a esta cidade e seu afastamento do mencionado Raimundo
Nonato.
Na época, fui entrevistada pelo jornalista Roni Lima, da Folha de S. Paulo, a quem relatei
sucintamente o caso e entreguei uma lista de casos escabrosos, como os já mencionados. Mostrei-
lhe também as cartas dos daimistas.
Como é da praxe jornalística, ele entrevistou a outra parte, o CEFLURIS. Ouviu do doutor José
Rosa a afirmação de que eu sou doente mental e que tinha inventado essas histórias. Alex Polari,
que estava presente na entrevista, admitiu só o suicídio do Jambo, negando o resto, assim como
as informações sobre a venda e exportação do daime para a Europa.
No mês seguinte, em outubro de 1994, a revista alemã Der Spiegel publicou uma matéria
ampliando e confirmando os fatos;
o relato descreve os trabalhos realizados pêlos daimistas na Europa, cobrando a quantia de
quinhentos marcos por pessoa, e a existência de anfetaminas misturadas ao daime.
O Alex Polari escreveu carta que foi publicada na seção dos leitores do referido jornal,
esclarecendo que o trabalho deles tem por objetivo a caridade.
A partir daí, a guerra ficou cada vez mais acirrada. Passei a receber ameaças. Um daimista de São
Paulo foi incumbido pelo Polari de "negociar" comigo.
Parecia que tínhamos voltado aos tempos do terrorismo. Minha impressão era a de que nunca
saímos deles. Me sentia como devem se sentir os parentes dos seqüestrados quando negociam o
valor do resgate. A mensagem era a seguinte: "O que você quer para parar de dar entrevistas a
jornalistas?"
Minha resposta era óbvia: "A Verônica, minha filha, sem daimista nenhum no caminho dela para
interferir na sua reestruturação".
Pois eu temia que ela saísse daquele antro, viesse para casa, e eles continuassem com as
atitudes que tiveram na época da saída dela de Mauá, três anos antes. Se fosse dessa forma, de
nada adiantaria.
Ela iria fugir para a casa de outro imbunche, crente que assim ganharia o reino dos céus.
A negociação transcorria da mesma forma que os familiares dos seqüestrados negociam com os
seqüestradores. Pedi ao negociador que transmitisse ao chefe Polari o seguinte recado: Já que ele
quer que a posteridade o reconheça como líder espiritual de uma doutrina que apregoa a Verdade,
a Harmonia e a Justiça, que tal desfazer as mentiras e retirar o processo mentiroso que tinham
acionado na justiça do Acre contra mim, me acusando de espancar minha filha?
Já que admitiam que foi um erro do seu Wilson Carneiro tê-la levado, por que não retirar o
processo em que afirmavam que ela tinha chegado lá sozinha?
Que tal admitir para minha filha que erraram ao ensiná-la a mentir em nome de Deus, a induzi-la a
renegar a mãe para provar fé na doutrina?
Obviamente, até hoje não recebi resposta.
O tempo transcorria e o mandado não estava sendo cumprido. O juiz de Resende nada mais podia
fazer.
No final de novembro recebi o telefonema de um daimista de São Paulo dizendo que tinha passado
dois meses no Céu do Mapiá e, estarrecido pêlos fatos que lá presenciara, havia retornado com o
objetivo de desmascarar essa farsa. Passara também pela Colônia 5000, em Rio Branco, e ficara
chocado com os maus-tratos que minha filha sofria.
A prefeitura de Itatiaia, município fluminense do qual Penedo faz parte, sensibilizada com a
divulgação do caso, arcou com as despesas da viagem, e assim, junto com um advogado, em
dezembro de 1994, parti para o Acre.
Dezembro é mês de festival daimista. Eu estaria chegando na véspera do aniversário do mestre
Irineu, ponto alto das celebrações na cidade de Rio Branco, para onde convergem os daimistas do
mundo inteiro.
O avião fez escala em São Paulo e lá apresentou um problema mecânico. Fomos obrigados a
permanecer várias horas num salão do aeroporto.
Ao meu lado estava um grupo numeroso de espanhóis, obviamente daimistas.
Uma das mulheres do grupo começou a puxar assunto. Enquanto conversávamos polidamente,-
um espanhol ensandecido atravessou o salão dirigindo-se na minha direção com dedo em riste e
aos gritos: "É ela, é ela". (Ele me reconhecera pela fotografia publicada na Folha de S. Paulo.) "A
louca! Está indo para Rio Branco chafurdar lama! Tem que ser internada! Se eu tivesse uma mãe
assim, não ia querer morar com ela!"
Na minha mente, passou, como num filme, a imagem de que situações como essa teriam levado
pessoas inocentes à fogueira da inquisição. Se há um povo no mundo com propensão ao
fanatismo, é sem dúvida alguma o espanhol. Ele continuava gritando feito um louco:
CONFEN
O Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) é um órgão normativo e, como seu nome já o
diz, trata das questões relativas às substâncias entorpecentes. Embora a ayauhasca não seja
precisamente entorpecente — muito pelo contrário —Já que não existe um organismo para tratar
de substâncias alucinógenas, coube ao " CONFEN, pelo menos até agora, determinar as normas
para seu uso.
O primeiro trabalho sobre a ayauhasca elaborado pelo CONFEN foi realizado a partir da visita dos
drs. Isac Germano Karniol e Sérgio Seibel a três lugares da cidade de Rio Branco: a União do
Vegetal, a Colônia 5000 e a igreja do Alto Santo, no período de 23 a 26 de outubro de 1985.
Apenas três dias.
Houve, posteriormente, em 1987 e 1992, outras comisões que realizaram visitas a locais onde se
realizam cultos com a ayauhasca, :
inclusive no Céu da Montanha e no Céu do Mapiá.
Devo lembrar, com o intuito de esclarecer, que fiz parte do CEFLURIS a partir de 1984 e,
portanto, acompanhei o desenvolvimento do grupo e presenciei as visitas dos membros
do CONFEN ao Céu da Montanha.
Há coisas que a linguagem erudita não consegue expressar tão bem quanto a gíria ou a
linguagem popular. Neste caso, a expressão "foi para inglês ver" define com exatidão o
que acontecia.
Nos dias das visitas dos conselheiros "a casa era arrumada", as pessoas inconvenientes
eram propositalmente banidas e a proibição de usar a santa maria (maconha) vigorava
com rigor.
Os conselheiros limitaram-se a ouvir e apreciar o que lhes foi apresentado, sem questionar ou
verificar coisa alguma.
O último relatório foi assinado pelo dr. Domingos Bernardo Galiuci de Sá, citado anteriormente, e
elaborado por diversos conselheiros que formaram uma comisão multidisciplinar de estudos.
Comentarei alguns trechos desse relatório:
4) Padrões morais e éticos de comportamento em tudo semelhantes aos existentes e
recomendados na nossa sociedade, por vezes até de um modo bastante rígido, são observados
nas diversas seitas. Obediência à lei pareceu sempre ser ressaltada.
Na época, fatos como o assassinato de um adepto na Colônia 5000 já tinham acontecido. Os
detalhes desse crime, por si só, deveriam ter merecido alguma reflexão por parte dos conselheiros:
como já foi dito, Raimundo Nonato, responsável pela colônia, assassinou em 1983 um rapaz
conhecido pelo apelido de Ceará, decepando-lhe o pênis. Vale acrescentar que outros membros
da comunidade daimista seguraram o referido Ceará durante a operação e, após consumada,
esfaquearam-no até a morte. O caso foi noticiado na imprensa, foi aberto um processo na justiça
—que tive oportunidade de ver na minha visita a Rio Branco, em dezembro de 1994 —e
posteriormente foi arquivado, sem ter sido julgado.
No mesmo ano, pouco tempo após esse crime, um músico da cidade de São Paulo, na época com
23 anos, viajou para Rio Branco com o intuito de conhecer a fonte do daime, que ele já tomava na
localidade de Visconde de Mauá.
A freqüência com que é ingerida a bebida na Colônia 5000 — em alguns casos mais de uma vez
por semana, sempre associada à cannabis — o fato de se encontrar longe do grupo familiar, em
condições de vida e cotidiano bem diferentes do que estava habituado, tudo isso, somado a alguns
outros elementos que mereceriam um estudo psicológico mais profundo, fez com que
apresentasse um surto de psicose maníaco-depressiva. Segundo relato do próprio, ele
permanecia dias no pico maníaco, sem conseguir parar de falar, sem dormir por mais de uma
semana, e depois caía na fase depressiva, semelhante à descida aos infernos. Na época, o corpo
diretivo da Colônia 5000 estava com as barbas de molho, em função do assassinato já
mencionado e de diversas apreensões de maconha. Outro escândalo poderia ser fatal para a
seita. Assim, ele foi mantido amarrado a uma cama, com alimentação precária e sem nenhum tipo
de assistência médica ou psicológica. Após alguns meses, quando a poeira baixou, foi internado
no Hospital Psiquiátrico de Rio Branco, cujo diretor fazia parte da seita.
A família do rapaz não foi avisada do estado em que ele se encontrava, nem da sua internação.
Desesperados, os pais, partindo do último telefonema a cobrar que tinham recebido meses antes,
iniciaram um longo e doloroso percurso, que acabou quando encontraram o filho, no já
mencionado hospital, em condições precárias, desnutrido, doente e sem nenhum tipo de
assistência médica ou psiquiátrica.
A bem da verdade, deve ser dito que esse músico, depois do surto de Rio Branco, foi submetido a
diversos tratamentos dentro da medicina oficial e da alternativa, e ainda hoje, após doze anos,
precisa de auxilio terapêutico. Atualmente mora com os pais, trabalha, toma daime nas igrejas de
São Paulo. Um elemento da maior importância nesse caso foi a determinação dos pais de
percorrer o país em busca do filho, tê-lo achado e ter conseguido encaminhá-lo. Me pergunto: se
os pais não tivessem recursos ou condições, o filho estaria vivo?
Ainda sobre os padrões morais e éticos citados pelo documento, cabe ressaltar que o atual líder da
seita, Alfredo Gregório —na época da visita do CONFEN, seu pai, o padrinho Sebastião, liderava o
CEFLURIS — é casado e mora maritalmente com três mulheres na mesma casa, sendo duas
delas irmãs, e tem filhos com as três. É bom salientar que a doutrina pregada pêlos daimistas
exige, inclusive, castidade aos seus adeptos.
9) Findas as cerimônias, todos de uma maneira aparentemente normal e ordeira voltam aos seus
lares. Os seguidores das seitas parecem ser pessoas tranqüilas e felizes. Muitos atribuem
reorganizações familiares, retorno do interesse pelo trabalho, encontro consigo próprio e com
Deus, através da religião e do chá.
Em relação ao item 9 deve ser colocado que os seguidores da seita não são tão ordeiros nem tão
felizes. A ayauhasca traz para a consciência do indivíduo conteúdos das camadas mais obscuras
do inconsciente, que precisam ser elaborados cuidadosamente. Quando isto não acontece,
algumas pessoas tomam-se vulneráveis e, após os trabalhos, apresentam sintomas preocupantes.
Acompanhei casos de pessoas que abandonaram suas responsabilidades, deixaram de cumprir
suas obrigações familiares, saíram dos seus empregos, desestruturaram suas vidas, achando que
tudo isso fazia parte do "mundo da ilusão".
A respeito desse assunto, em carta enviada ao padrinho Alfredo Gregório em 5 de julho de 1992, o
psiquiatra Carlos Renault, membro da seita e responsável pela igreja "Virgem da Luz", no Rio de
Janeiro, afirma:
"Na Virgem da Luz, temos atendido a pessoas que se afastaram da igreja do Rio de Janeiro —
Céu do Mar, comandada pelo Paulo Roberto Sousa e Silva — porque não davam conta de
assimilar o processo de conhecimento da nossa santa doutrina e se beneficiar com o trabalho.
Ficavam confusas, nebulosas na mente, e suas experiências com o daime eram relatos de grande
devaneio e desvarios de pensamento. Saiam do daime e procuravam a mim e a Eliane (esposa do
autor da carta e também terapeuta) no consultório, com a seguinte queixa: Tenho medo de
enlouquecer, não estou entendendo mais nada!'
Os casos que hoje vemos de suicídios dentro de nossa irmandade e de desequilibrados crônicos
são de pessoas que não tiveram acesso à alternativa de um tratamento de apoio. Não podemos
deixá-las à mercê do seu próprio desequilíbrio, do seu caos interno, com as forças negativas
rondando, impelindo-as para o pior.
Algumas delas dizem: 'Quero seguir, tomar daime, morar na comunidade do Mapiá e não quero
fazer tratamento psicoterápico, pois não preciso'. Mas em muitos casos o eu interno sumiu,
eclipsou-se, está perdido, e a pessoa não se dá conta. Ela fala sem eixo, sem essência, sem
discernimento".
É bom relembrar que os argumentos acima são colocados por um psiquiatra daimista, membro
do CEFLURIS.
12) Entre as seitas só uma parece ter usado outra droga (Cannabis sativa, maconha) que não é o
chá dentro da procura religiosa. Por acordo de cavalheiros, na época, com autoridades multares e
policiais, que aparentemente está sendo seguido, esta prática foi abandonada.
Já em relação ao item 12 deve ser acrescentado que, além da maconha, que continua sendo
usada, segundo depoimento dado à tevê de Rio Branco, em novembro de 1994, por um integrante
da Colônia 5000, foi constatada a presença de anfetaminas no daime que é vendido na Europa.
Como na composição original da bebida tais substâncias não existem, fica evidente que o daime é
assim balizado, ou seja, misturado (revista Der Spiegel, outubro de 1994).
Outra prática empregada na referida colônia é a utilização da "mescla", cigarros feitos de
maconha e pasta-base de cocaína.
13) Antigamente o cipó e a chacrona só eram encontrados na mata virgem. Algumas seitas têm
procurado cultivar essas plantas com relativo sucesso. Ressalta-se no entanto que a preparação
do chá é bastante difícil e prolongada, envolvendo toda uma "tecnologia" que provém de datas
imemoriais, realizada dentro de um determinado ritual. Da forma como é preparado, nos parece
difícil que uma quantidade muito maior que a necessária nos cultos seja factível de preparo. Ou
seja, parece difícil a preparação do chá em quantidades a serem utilizadas com abuso, de uma
forma não-ritual, dentro da sociedade geral.
No que toca ao item 13 só posso definir este parecer como ingenuidade dos conselheiros.
Atualmente cada "feitio" de daime no Céu do Mapiá produz acima de mil litros. Acrescente-se que
há diversos "feitios" ao ano naquela localidade e que cada igreja faz seus próprios preparos. O
preço médio do litro de daime é de trinta a trinta e cinco dólares. A matéria-prima é fornecida de
graça pela floresta e os trabalhadores são os membros da seita, obviamente não remunerados.
Poucas atividades devem ser tão lucrativas quanto esta.
Em maio de 1995, o IBAMA apreendeu um caminhão com 1.200 litros de daime que
vinha de Rio Branco para abastecer as igrejas do sul do pais. Motivo da apreensão:
devido à falta do cipó na comunidade Céu do Mapiá, os daimistas invadiram uma
reserva indígena, atrás da matéria-prima para preparar o chá e, nesse intuito,
desmaiaram uma grande área de mata nativa. Os índios fizeram a denúncia e o Instituto
de Meio Ambiente a acolheu.
17) Em casos isolados encontramos adultos, jovens provenientes de cidades grandes de outros
estados do Brasil, que, à procura de um caminho de vida, parecem ter encontrado essas religiões.
Parecem, no entanto, estar bem integrados consigo próprios e com o trabalho que estão
realizando.
Item 17: Aqui a falha foi não ter entrevistado os familiares dessas pessoas nos seus locais de
origem. Assim, os conselheiros teriam encontrado famílias destruídas, crianças cujos pais as
abandonaram, casamentos desfeitos, pais inconformados... Teriam sido informados dos empregos
e dos estudos que essas pessoas largaram por considerá-los parte do mundo da ilusão. Também
saberiam que muitas dessas pessoas venderam seus bens e entregaram o dinheiro
obtido pela venda ao CEFLURIS.
CONCLUSÃO
Como foi colocado no prólogo, o objetivo deste, livro é a denúncia. Esta denúncia abrange
duas questões: uma, o uso de substâncias alucinógenas; a outra, o crescimento descontrolado das
seitas.
Ao longo do livro pretendi mostrar que os dois assuntos, embora no caso específico do
CEFLURIS funcionem juntos —o uso da bebida e a estrutura sectária —, em determinado
momento se bifurcam.
Houve duas denúncias: uma sobre o caso da minha filha, Verônica, e a outra sobre o caso do
Jambo. Foram encaminhadas ao CONFEN. Esse órgão estudou — essa é sua alçada — a questão
relativa à bebida. Não foram considerados os pontos que dizem respeito ao aliciamento sectário.
No mundo inteiro as sociedades criam mecanismos para se auto-administrar. O tema das
seitas e seu crescente poderio têm sido objeto de estudo e avaliação em muitos países. Hoje em
dia existem terapias específicas para reestruturar a consciência das pessoas que participaram de
seitas. As constantes matérias em jornais do mundo inteiro sobre abusos cometidos pelas seitas
(vide o caso recente da seita japonesa Verdade Suprema), por si só, já deveriam representar uma
tomada de consciência por parte da sociedade brasileira.
Na Inglaterra as pessoas que acompanham o fenômeno do crescimento das seitas se
denominam cult watchers, e algumas das organizações anti-sectárias mais conhecidas naquele
país são: Ca-talyst, Fair, Cristina Rescue, entre outras.
Essas organizações fornecem auxílio terapêutico tanto aos adeptos como aos seus familiares. Em
alguns casos vão mais longe:
dispõem de serviço de seqüestro da pessoa que se encontra dentro da seita, para sua posterior
reestruturação, processo que recebe também o nome de "assessoramento para o abandono".
Quando se colocam tais questões em debate, surge logo o argumento da liberdade de culto.
Mas antes da liberdade de culto existe o direito à vida e a garantia, na Constituição, de que é dever
do Estado zelar pela integridade dos cidadãos. No momento em que a policia no Japão encontra
gás venenoso na sede de uma seita, não se questiona a liberdade de culto.
Os casos expostos neste livro merecem uma avaliação especial porque junto à temática das seitas
temos a utilização imprópria de um potente alterador da mente, o que torna o perigo ainda maior.
Para compreender a problemática do CEFLURIS, torna-se fundamental uma reflexão profunda
sobre a necessidade das pessoas de transcender os limites dos seus egos e as fronteiras que
delimitam os caminhos pêlos quais se busca essa transcendência.
Durante estes últimos quatro anos nos quais tenho lutado para salvar a vida da minha filha,
tropecei com todo tipo de incoerência e erros conceituais. Foram esses erros que me impeliram a
escrever, entre eles: "A senhora ia beber essa porra para ficar doidona", "Não se pode cercear a
liberdade de culto garantida pela Constituição", "A atitude do juiz de Rio Branco em não cumprir a
carta precatória foi descortês" ...
Em relação à ayauhasca, ela não pode ser colocada como ré. Ela não é boa nem ruim. Há
milênios vem sendo utilizada Tanto para curar como para fazer o mal.
O fato de que existem terapeutas e grupos sérios utilizando-a para realizar curas e reestruturar
pessoas que se fragmentaram através do uso de tóxicos, ou como conseqüência de outros
sofrimentos, não devolve a vida àqueles que a perderam pelo mau uso da ayauhasca.
A inexistência de problemas na União do Vegetal ou na Barquinha demonstra que seu uso correio
é viável. O que aproxima essas duas organizações é, sem dúvida, a semelhança dos seus
princípios éticos. Nenhuma delas faz comércio da bebida, nem a mistura com outras substâncias.
Ambas exercem controle moral sobre seus integrantes e as duas evitam publicidade, escândalos e
atitudes fanáticas.
O desconhecimento da matéria demonstrado pelas autoridades e pêlos membros do Conselho
Federal designado para administrar a situação sugere que o uso da ayauhasca deveria ser
controlado por aqueles que provaram que sabem utilizá-la. Existe um órgão semelhante nos EUA
que controla o uso religioso do peyote.
Quando os organismos oficiais aprovam uma substância para ser utilizada como medicamento,
essa atitude sugere abranger também suas possíveis conseqüências negativas. No caso da
talidomida, as pessoas vitimadas por essa substância souberam a quem recorrer em busca de
auxílio e ressarcimento. O mesmo não acontece com a liberação da ayauhasca. Os familiares das
pessoas que se desintegraram pelo uso delituoso da bebida não souberam a quem recorrer, e
ainda mais: como eu, foram ameaçados pêlos integrantes do CEFLURIS.
As lideranças sectárias pseudo-religiosas constituem cada vez mais uma preocupação em muitos
países. Dia após dia surgem casos de desequilibrados que conseguem induzir, em nome de Deus
e das escrituras sagradas, pessoas a um fim trágico.
Tenho participado, nos últimos anos, de alguns debates sobre o assunto com autoridades,
formadores de opinião e pessoas interessadas nesta problemática. A questão é ambígua. Muitas
vezes, chegou-se à mesma conclusão: na atual conjuntura, o Brasil só tomará conhecimento
desse problema quando acontecer alguma grande tragédia, como a da Guiana ou, mais
recentemente, a do Japão.
Ao mesmo tempo, cada vez mais linhas terapêuticas no mundo inteiro pesquisam o fenômeno da
consciência expandida como caminho para a cura. Também foi dito que para expandir a
consciência não é necessário beber ayuahasca ou qualquer outra substância.
Muitos terapeutas —como Stanilav Groff, que começou utilizando o LSD com seus pacientes —
hoje trabalham com outros elemento, como técnicas de respiração, para conseguir os mesmos
resultados obtidos com as substâncias psicoativas.
Assim como a prática da hipnose foi regulamentada, acredito que não deve demorar a criação
de um código de ética que controle a beberagem da ayuahasca, que tanto pode levar as pessoas à
cura quanto à morte.
GLOSSÁRIO
Ácido Lisérgico: Substância descoberta em 1943 pelo dr. Albert Hofmann, cujo princípio ativo
assemelha-se à psilocibina.
Aldous Huxiey: Escritor e pesquisador inglês, autor de diversas pesquisas com mescalina e LSD.
Escreveu diversos livros sobre o tema: Moksha, A Ilha, As Portas da Percepção, entre outros.
Alma-grupo: Conceito espiritualista, segundo o qual grupos de seres humanos representam
falanges ou grupos do mundo espiritual.
Alto Santo: Localidade próxima à cidade de Rio Branco (AC), onde diversas seitas que utilizam o
daime nos seus rituais têm sede.
Alucinógeno: Substância extraída de plantas ou produzida artificialmente, cujo uso provoca
expansão da consciência.
Araucano: Referente às tribos de nativos araucanos, oriundos do sul do Chile e da Argentina.
Arquétipo: Segundo o psiquiatra suíço Cari Gustav Jung, padrão psíquico humano localizado no
inconsciente coletivo
Auto-hemoterapia: Tratamento que objetiva corrigir deficiências imunológicas a partir de injeções
do sangue do próprio paciente.
Ayauhasca: Bebida obtida a partir do cozimento do cipó jagube e da folha rainha, de efeito
alucinógeno, utilizada com fins religiosos por diversas seitas na região amazônica.
Bad trip: Expressão utilizada por usuários de substâncias alucinógenas quando a experiência — a
viagem — é difícil ou desagradável.
Bailar/bailado: Nome dado às danças e/ou movimentos ritmados no ritual do santo daime.
Barato: Termo utilizado por usuários de substâncias alteradoras da consciência para definir o
efeito conseguido.
Barquinha: Nome de uma das seitas da cidade de Rio Branco que utiliza o santo daime em seus
rituais.
Benzedura: Ação de benzer.
Caapi: Um dos muitos nomes do cipó (jagube) com que se prepara a bebida denominada
ayauhasca. Cabeça feita: Gíria utilizada para definir o estado mental da pessoa que utilizou uma
substância com o objetivo de expandir sua consciência.
Cannabis sativa: Nome científico que define a planta conhecida vulgarmente no Brasil como
maconha.
Canto iniciátíco: Cânticos utilizados pelas religiões nas cerimônias de iniciação e nos rituais.
Carma: Segundo as doutrinas espiritualistas e as religiões orientais, trata-se do ciclo das
reencarnações em função da lei de causa e,1, efeito.
Casa da estrela: Local nas comunidades daimistas onde se realizam os trabalhos de
cura.
CEFLURIS: Nome de uma das organizações religiosas que fazem uso do santo daime, denunciada
neste livro. A sigla é formada pelas palavras Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo
Irineu Serra.
Céu da Montanha: Nome da comunidade daimista localizada em Visconde de Mauá
(RJ).
Céu do Mapiá: Nome da comunidade daimista localizada no igarapé Mapiá (AM).
Céu do Mar: Nome da comunidade daimista localizada na estrada das Canoas, no Rio de Janeiro.
Chakra: Ponto do corpo — ao todo, são sete — onde se cruzam os canais por onde circula a
energia vital.
Chamada: Cânticos utilizados na União do Vegetal durante os trabalhos com ayauhasca.
Cimora: Um dos nomes como é conhecida no Equador a bebida alucinógena obtida a partir do
cozimento de um cacto denominado "huaichuma".
Cochinada: Sujeira feita por porcos. Nome utilizado pêlos xamãs peruanos para definir trabalhos
espirituais que objetivam o mal.
Colônia 5000: Nome da comunidade daimista situada a poucos quilômetros da cidade de Rio
Branco.
Comando: Nome genérico utilizado para definir o indivíduo ou o grupo de pessoas que têm a
responsabilidade de comandar os trabalhos no ritual do santo daime.
Comungar: Na União do Vegetal, nome dado ao ato de beber a ayauhasca.
Concentração: Ritual realizado nas igrejas daimistas, no qual as pessoas permanecem em
silêncio. Não há cantos nem bailados.
Curador: Pessoa que possui o dom de realizar curas espirituais.
Curandeiro: Alguém que realiza curas sem capacitação acadêmica.
Druidas: Sacerdotes com características xamânicas das antigas religiões da Irlanda e da Grã-
Bretanha.
Endorfïnas: Substâncias produzidas pelo nosso sistema endócrino cuja descarga na corrente
sanguínea produz uma expansão da consciência muito semelhante à que se obtém com o uso das
substâncias já mencionadas.
Essênios: Sociedade secreta anterior ao nascimento de Cristo que preservou o cristianismo
primitivo.
Fanerotimico: Termo utilizado pêlos pesquisadores de substâncias expansoras da consciência,
que depois cedeu lugar a "psicodélico".
Feitio: Cerimônia de preparo dá ayauhasca.
Ícaro: Cânticos iniciáticos utilizados pêlos xamãs peruanos durante os rituais.
Iniciação: Ritual religioso que marca um novo grau no processo de desenvolvimento espiritual.
LSD/LSD23: Nomes dados ao ácido lisérgico.
Mantra: Som ritualístico cuja enunciação põe em ação influências espirituais.
Maracá: Instrumento musical semelhante a um chocalho, utilizado por xamãs e também nos
rituais do santo daime...,
Mescalina: Principio ativo de algumas plantas alucinógenas.
Miração: Alucinação provocada pela ingestão da ayauhasca.
Passagem, fazer a: expressão utilizada para se referir à morte.
Point: Ponto de encontro.
Psicoativo: Substância com o poder de alterar a mente.
Psicodélico: Substância cuja ingestão provoca delírio ou alucinações.
Puxador(a): No ritual, pessoa que comanda e inicia o canto.
Quarto caminho, escola do: Nome da escola filosófica que segue os ensinamentos de G.I.
Gurdieff.
Saniase: Nas religiões orientais, discípulo adiantado.
Sanpedrito: Nome da bebida obtida pelo cozimento do cacto São Pedro.
Seitas: "Movimentos totalitários caraterizados pela adscrição de pessoas dependentes das ideias
de um líder, que podem se apresentar como entidade religiosa, cultural, cientifica ou grupo
terapêutico; que utilizam técnicas de controle mental e persuasão coercitiva com o objetivo de que
os adeptos dependam da dinâmica do grupo e percam sua estrutura de pensamento individual em
favor das formas de pensamento do grupo". Esta definição foi dada pela Jonhson Foundations
Winspread Conference Center, na conferência realizada em 1985 em Raci-ne, EUA.
Teologia da libertação: Conceitos filosóficos e religiosos elaborados por frei Leonardo Boff.
Yagê: nome utilizado por algumas comunidades indígenas para se referir ao cipó (jagube) com
que é preparada a ayauhasca.