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Este livro é dedicado à minha filha, Verônica, na esperança de que encontre o caminho de volta.

E
à memória do mestre Raimundo Irineu Serra, na expectativa de que os valores exaltados na
doutrina daimista, fundada por ele — Amor, Verdade e Justiça —, se tomem realidade.
Agradeço ao jornalista Bernardo Horta, que desde o início desta dolorosa jornada colaborou na
elaboração deste livro movido por um profundo desejo de que cheguemos a um final feliz.

SUMÁRIO

Prólogo ........................................... 09
LSD e Revolução .................................... 11
AJornada do Herói.................................. 47
Lavagem Cerebral................................... 61
O Xamanismo...................................... 71
Mestre Irineu....................................... 93
As Fardas. ........................................ 105
Sebastião Mota ....................................111
A Cura da Aids I ................................... 123
A Cura da Aids II .................................. 131
A Cura da Aids III.................................. 139
UDV. ............................................ 145
A Barquinha ...................................... 151
A História ........................................ 161
Jambo ...........................................211
CONFEN......................................... 219
Conclusão ........................................ 231
Glossário......................................... 237

PRÓLOGO

Este livro tem como objetivo a denúncia. Não foi escrito com finalidade literária. Nem poderia,
já que, sendo estrangeira, não sei escrever corretamente em português. Desconheço a gramática
portuguesa, suas regras, técnicas de redação, leis de concordância e outros elementos
necessários para a prática da literatura.
A consciência de que a denúncia tinha que ser feita compeliu-me a passar por cima da questão
formal.
Trata-se de uma denúncia complexa, que abrange diversos assuntos. O principal deles, em
torno do qual giram os outros, é o uso da bebida conhecida no Brasil com o nome de "santo
daime", (ayahuasca) e sua utilização dentro de uma atividade religiosa desenvolvida por uma seita
que se alastra por todo o país e se estende até a Europa, os EUA, o Japão e outros países da
América Latina.
A complexidade do assunto exigiu um relato autobiográfico para que o leitor pudesse entender
os caminhos que trilhei, os objetivos que me levaram a percorrê-los e os motivos éticos que me
determinaram escrever este trabalho.
Como a questão principal, o uso da referida bebida, não é muito conhecida pela opinião
pública, foram necessários alguns capítulos explicativos sobre as origens dessas práticas, bem
como a separação do joio do trigo, já que nem tudo que acontece é denunciável. Há muita coisa
louvável.
Obviamente não sou a única vítima, há muitas outras. Entre elas, minha filha, hoje com dezoito
anos.
Outras vítimas ajudaram de forma valiosa, fornecendo dados, relatando casos e incentivando
para que este trabalho se tornasse realidade, e assim fossem poupadas outras vidas.
Alguns nomes foram substituídos por outros fictícios, por necessidade de preservação pessoal.
Já os denunciados aparecem com seus nomes reais, para que não reste nenhuma dúvida a
respeito de quem estamos falando.
Com o fim de facilitar a compreensão dos leitores não familiarizados com tais assuntos foi
acrescentado um glossário.
LSD E REVOLUÇÃO

"Atravessar os limites do eu insulado representa uma tal libertação que mesmo


quando a autotranscendência é obtida por meio de náuseas que levam ao delírio,
de paralisias que levam à alucinação ou ao estado de coma, a experiência com
drogas foi sempre considerada, e continua sendo por muitos, como
intrinsecamente divina. Êxtases através do uso de inebriantes constituem ainda
uma parte essencial da religião de muitos africanos, sul-americanos e polinésios."
Aldous Huxie
Sou fruto de uma união polêmica. Meu pai, oriundo de uma família tradicionalmente católica do sul
da Espanha, que emigrou para a Argentina em 1914, foi balizado com o nome de Jesus, porque
nasceu no dia de Corpus Christi. Quando jovem, tornou-se membro ativo do partido socialista e,
posteriormente, do comunista. A filosofia marxista condena a religião por considerá-la uma forma
de submissão e de atraso, "o ópio do povo". As convicções do meu pai a respeito do assunto eram
tão fortes, que ele chegou a entrar na justiça com uma petição para mudar o nome, alegando
razões de ordem ética. Como seu pedido não foi aceito, proibiu amigos e parentes de chamá-lo
pelo nome de Jesus.
Já minha mãe nasceu na Polônia, quando meus avós, judeus ucranianos, fugiam da revolução
comunista que tinha começado na Rússia em 1917 e se alastrava pelas repúblicas vizinhas,
formando a União Soviética. Eles chegaram à Argentina pouco antes da crise de 1929, atrás do
sonho de uma vida melhor.
Tive uma educação atéia. Meus pais e parte da minha família materna eram militantes do
partido comunista. Cresci dentro dos cânones morais que, supúnhamos, reinavam na União
Soviética.
Esses assuntos criavam uma enorme confusão na minha cabeça, quando criança. Durante
parte da minha infância, nos anos 50, moramos na Argentina. Naquela época a igreja católica
exercia enorme influência no governo e na sociedade. As minorias judias eram discretamente
marginalizadas e os adeptos de outras religiões, como os evangélicos ou os cristãos ortodoxos,
passavam desapercebidos. Religiões orientais, budismo, ioga e meditação eram desconhecidos.
obrigados a aprender religião. Eram os tempos da ditadura peronista. A reivindicação foi aceita, e
como conseqüência passamos a ter aulas de "moral" na hora das aulas de religião.
As aulas de moral eram preparadas pelo mesmo padre que ensinava religião. Quando ele chegava
à sala, as crianças judias e eu éramos retiradas e levadas para outro recinto para aprender "moral".
Copiávamos num caderno próprio para tal fim máximas do tipo "Não devo roubar", repetindo-as de
cem a duzentas vezes dependendo do humor do padre.
A questão religiosa me intrigava. Tanto na Argentina quanto na Espanha, onde morei
posteriormente durante oito anos, a religião era parte importante na vida das pessoas. Ambos os
países possuíam ditaduras com forte influência da igreja católica. Aos domingos pela manhã, o
programa de noventa por cento da população era assistir à missa, que além do mais era
transmitida por alto-falante instalados em todas as esquinas. Eu observava as pessoas, com suas
melhores roupas, de missal e terço na mão, tomada por um forte sentimento de marginalidade.
Na Argentina havia mais um elemento que contribuía para aumentar essa sensação de
marginalidade: morávamos no mesmo bairro que a parcela judia da população, na qual se incluía
minha família materna. Quando chegavam as datas em que se celebravam o dia do perdão, a
páscoa ou o ano-novo judeu, eu observava a mesma devoção que via nas pessoas que assistiam
à missa. Me perguntava por que eu também não tinha esse espaço. Meus pais como quaisquer
outros fanáticos, não permitiam sequer que essas questões fossem discutidas.
Acompanhei pela TV a entrada de Fidel Castro em Havana, (em 1° de janeiro de 1959), em clima
de festa comum às grandes vitórias. Nos almoços, nas ceias e nas reuniões familiares o assunto
era sempre "a revolução do proletariado". Meu pai tinha tido um desempenho importante e heróico
na guerra civil espanhola (1936-1939), quando o general Franco, comandando as mais
reacionárias forças que as direitas conseguiram reunir, esmagara a utopia da República
Espanhola, dando início a uma sangrenta ditadura que duraria mais de quarenta anos.
Desde criança eu observava essas conversas empolgadas dos mais velhos com uma curiosa
sensação de que não era exatamente o que estava sendo dito o que importava, e sim que tais
discussões alteravam a freqüência energética das pessoas. Elas ficavam exaltadas, eufóricas,
falantes, e embora eu não entendesse muito do que se dizia, dava para perceber que até os
assuntos de sempre, mais ou menos os mesmos, tinham o poder de criar uma atmosfera que
transportava as pessoas para outra freqüência.
Posteriormente, a partir dos anos 60, minha geração viria a se tornar quase sinônimo de
experiência alucinógena e/ou de expansão da consciência.
Nascemos no fim da segunda guerra mundial. Eu em 1944. Crescemos embalados e
influenciados pelos padrões de sucesso que Hollywood exportava através do cinema.
Doris Day, Rock Hudson e outros representavam tudo a que se podia aspirar na vida, quanto a
comportamento e possibilidades de consumo. Embora não passasse de uma miragem adocicada e
assexuada, minha geração cresceu acreditando que a vida tinha que se encaixar nos padrões
hollywoodianos, que Rock Hudson era o protótipo que todo rapaz deveria imitar e que toda garota
deveria almejar como namorado.
No fim da nossa adolescência, no começo da década de 60, o primeiro grito de alerta de que
alguma coisa não era bem aquilo que parecia foi o surgimento dos Beatles.
Inexplicavelmente, esses quatro rapazes ingleses que cantavam melodias gostosas, cujas letras a
maioria da população não entendia dia, produziam crises histéricas nas pessoas que assistiam aos
seus shows, e certo estado hipnótico naqueles que os ouviam pelo rádio ou em discos. As
emissoras de rádio não paravam de tocar seus sucessos, e o comportamento deles era
questionado pelos setores conservadores da opinião pública, que se preocupavam com os seus
cabelos. (Nos primeiros tempos, eles deixaram os cabelos timidamente crescer pouca coisa além
do permitido, o que foi o suficiente para serem taxados de afeminados.)
Estoura na França o movimento estudantil de maio de 1968. Os fatos ocorridos em Paris
sacodem a opinião pública e as consciências. Mas percebíamos, sem entender, uma espécie de
movimento sísmico subterrâneo, algo que não dava para explicar, mas que atingia e questionava
os valores que tínhamos adquirido na escola, em casa, em nosso meio ambiente. O que parecia
ser no começo uma greve operária na capital da França, ganhara imediatamente, e pela primeira
vez, o apoio do movimento estudantil. De um dia para outro, os muros parisienses apareceram
pichados com a expressão:
"Ce n'est q'un début", ("Isto é apenas o início"). Começam as passeatas, as adesões, os quebra-
quebras. Em poucos dias. Paris pegou fogo literalmente. A cidade ardia e as mentes também. Por
toda parte manifestos inflamados. Até hoje ninguém entendeu muito bem o que aconteceu. Tentou-
se em vão denominar tais fatos com nomes como "surto de demência coletiva", "psicodrama
coletivo" e outros. A partir de então, o mundo não foi mais o mesmo. O jornalista brasileiro Zuenir
Ventura, autor de 1968 O Ano que não Terminou, descreve como a sociedade brasileira foi
afetada pelos acontecimentos franceses e analisa com profundidade seus efeitos até os dias de
hoje.
As notícias da guerra no Vietnã começavam a incomodar. A mídia não tinha o poder que possui
hoje, porém a guerra lá do outro lado do mundo deixava de ser algo remoto e passava a integrar
os assuntos do nosso dia-a-dia.
Paralelamente, o movimento hippie alastrava-se pelo planeta. A proposta era contestar os valores
da sociedade considerados "alienantes" de forma amorosa, não-violenta. O lema: "Paz e amor".
Aos policiais que reprimiam manifestações ofereciam-se flores.
Sem dúvida alguma, existe uma forte ligação entre maio de 1968 em Paris e o surgimento dos
hippies. O estouro francês serviu para pôr em evidência os valores que já não tinham possibilidade
de sustentação. Mas, como mudar valores sem mudar estruturas?
Os jovens sentiam a mudança nas consciências, mas não tinham poder para mudar as
estruturas asfixiantes e obsoletas. Assim, a solução parecia ser "cair fora", algo semelhante a se
automarginalizar. A frase em voga era: "Não acredite em ninguém com mais de trinta anos". Surge,
desta forma, a cultura alternativa, que consistia em contestar os valores com atitudes chocantes,
porém não-agressivas. Usavam-se roupas fora de moda, de preferência velhas, e evitava-se ao
máximo comprar qualquer coisa. A troca, a prestação de serviços, as viagens de carona eram a
forma de instituir um novo tipo de relacionamento entre as pessoas.
Rapidamente o sucesso dos Beatles dá a volta ao mundo. O rock envolvia o planeta. Os
Rolling Stones, Woodstock (festival de rock ocorrido na época, que contou com a presença de
monstros sagrados, como Jimmy Hendrix), a maconha e o LSD, tudo surgindo de repente, pondo
em xeque o que até então era considerado inquestionável. Londres e São Francisco tornam-se as
cidades de vanguarda. As bandeiras de ambos os países —Inglaterra e EUA —são usadas de
forma debochada em buttons, em objetos indecorosos ou com qualquer finalidade de deboche: por
exemplo, papéis para enrolar cigarros de maconha eram impressos com a bandeira inglesa ou
norte-americana.
Nos EUA, dois grandes cientistas, Aldous Huxiey e Timothy Leary, comandaram as mais sérias
pesquisas sobre a experiência alucinógena entre 1953 e 1967. O texto de Aldous Huxiey que
transcrevo a seguir foi o empurrão definitivo para me lançar na caminhada da expansão da
consciência, quando eu tinha pouco mais de vinte anos:
"Essa droga extraordinária tem o poder de transportar as pessoas para outro mundo. Na
maioria dos casos, o outro mundo ao qual o LSD25 dá acesso é celestial; por outro lado, ele pode
ser purgatorial ou até mesmo infernal. Mas positiva ou negativa, a experiência com ácido é sentida
por quase todos que passam por ela como profundamente importante e esclarecedora. De
qualquer modo, o fato de que as mentes podem ser transformadas tão radicalmente a um custo tão
pequeno para o corpo é verdadeiramente espantoso".
Portanto, nos anos 60, com o avanço do rock, com a disseminação da maconha e do LSD e com a
consolidação da revolução cubana, confirmam-se três vertentes, compondo assim as variantes
pelas quais se encaminharam os movimentos de protesto, de inconformismo e de
questionamento:.
A primeira seria composta por aqueles que redirecionaram sua busca a partir da inconformidade
com as religiões oficiais do ocidente e saíram atrás de revelações filosóficas e metafísicas pêlos
caminhos orientais: a ioga, o budismo, a meditação e outros.
A segunda seria a vertente político-guerrilheira. A palavra de ordem era "questionar", rever tudo:
organização política, religiosa, econômica, social.
A terceira seria a que buscava nas experiências com o LSD e com a maconha uma expansão da
consciência que nos daria os fundamentos para a "transformação".
As três vertentes revolucionárias mencionadas tinham alguns elementos em comum.
O primeiro, o questionamento. As três se rebelavam contra tudo o que tinha sido estabelecido
durante séculos. O segundo era a necessidade de uma atitude de mudança. Não se tratava só de
questionar. Tinha que haver mudança.
No que diz respeito à mudança, a situação começava a ficar diferente. Enquanto a linha político-
guerrilheira achava que a solução estava na luta armada, seqüestrando , cometendo atentados
violentos, assaltando com o objetivo de conscientizar o proletariado, que os olhava com
desconfiança, as outras duas vertentes proclamavam a revolução interior.
A dissidência entre estas duas era a respeito dos meios válidos: uns condenavam abertamente o
uso de "substâncias químicas" e proclamavam que a verdadeira revolução estava na consciência e
devia ser obtida através da sua exploração, porém livre de químicas.
Já os que aceitavam a química tornavam-se devotos de Timothy Leary e Aldous Huxiey — os
papas da experiência alucinógena — e preconizavam os postulados dos espiritualistas, porém com
seus auxiliares químicos.
Estas três vertentes viviam se entrecruzando e, embora antagônicas, unificavam-se sob o manto
da contracultura.
Havia momentos em que parecia existir uma quarta vertente, que seria formada por praticantes
de técnicas orientais — como meditação, desbloqueio de chakras, técnicas de desenvolvimento do
poder da mente — associadas ao uso de substâncias. Porém tais grupos, formados por integrantes
das outras vertentes já mencionadas, não duravam muito tempo.
Na prática, entre uns e outros aconteciam discussões, sobre a utilização de recursos químicos
ou artificiais, que não levavam a lugar algum.
Eu pertencia à terceira, a dos usuários de substâncias expansoras da consciência, e à dos
buscadores de verdades e valores espirituais que substituíssem os que tinham ruído.
Entre os ortodoxos da espiritualidade — os devotos hare krishna, os iogues, os bioenergéticos
e outros — e os usuários das substâncias, as discussões sobre a validade das conquistas através
da química eram freqüentes e acabavam levando ambas as partes a certo sectarismo.
Era comum ouvir: "Ela é uma boa cabeça, pena que não desiste do LSD". Ou o contrário: "Eles
são ótimos. As práticas espirituais que realizam fazem muito bem. Pena que sejam tão caretas".
Com os da guerrilha, a solidariedade de ambos acima era moral. Mais de uma vez aconteceu de
ter hospedado na minha casa algum músico de rock que, além de usar alucinógenos, sempre
trazia a tira-colo algumas "figuras interessantes", algum guerrilheiro ou militante da extrema
esquerda, solicitando guarida porque estava sendo perseguido pêlos órgãos de repressão.
Obviamente, era acolhido, e as conversas e os confrontos resultantes do fanatismo comum às
duas vertentes criavam situações muitas vezes hilariantes.
Na época, minha situação profissional parecia contribuir com a possibilidade de vivenciar essas
experiências: trabalhava com interpretação simultânea (em várias línguas) em congressos e
convenções e como tour leader, acompanhando grupos de turistas, inclusive em outros países.
Vale destacar que o uso dessas substâncias, seu comércio e disseminação eram algo muito mais
inocente e inócuo do que hoje. O LSD era produzido em laboratórios caseiros, obviamente por
usuários, e comercializado pêlos próprios de forma amena e muitas vezes festiva.
Os primeiros ácidos que comprei foram através de um músico, mais ou menos famoso na época. Ia
à casa dele, onde morava com a mulher e uma filhinha de poucos meses e onde funcionava o
estúdio de ensaios e gravação. Às vezes, quando eu chegava, eles já estavam "viajando",
esqueciam o lugar em que tinham guardado os ácidos restantes, e eu ficava aguardando para ver
se em algum momento da trip recuperavam a memória.
Nas primeiras viagens, organizávamos os preparativos como se fosse um ritual: escolhíamos as
músicas que iríamos ouvir (geralmente a experiência era compartilhada por três ou quatro
"navegantes da consciência"), o que comer no final, ou se por acaso houvesse uma eventual
queda do nível de açúcar no sangue, a denominada "pálida".
Posteriormente descobrimos que viajar ao ar livre, em espaços abertos, era muito mais
interessante. Parecia que a expansão da consciência era proporcional ao espaço em que a
experiência
acontecia. Outra forma muito comum naqueles tempos era tomar ácido nos concertos de rock, que
viravam, assim, verdadeiras viagens coletivas da consciência expandida.
É interessante destacar que o fenômeno de buscar a expansão da consciência através de
auxiliares químicos não se limitava a país algum. Pelo contrário, ao que me consta, no mundo
ocidental a prática ganhava, a cada dia, mais adeptos, e em todas as línguas foram criadas gírias
especificas que denotavam padrões semelhantes de experiência.
Assim, a vivência era denominada "viagem", trip, e os usuários, "cabeça feita", "malucos",
"viajantes" e por aí afora.
Uma resultante da vivência alucinógena, quando bem conduzida, é o bom humor. No ano de 1966,
Aldous Huxiey trocava idéias com o cientista Humphry Osmond a respeito do nome "psicodélico"
ou "fanerotímico", que eram as duas denominações dadas às substâncias expansoras da
consciência naquele tempo. Discorrendo a respeito do que poderia ocorrer com a massificação do
seu uso, eles criaram o que poderia ser um jingle para publicidade na TV:
"Para este mundo trivial sublime se tornar, basta meio grama de psicodélico tomar.
Para um mergulho no inferno ou um voar angélico, você precisa de uma pitada de
psicodélico".
Como não podia deixar de ser, parte da sociedade de consumo incorporou rapidamente esses
elementos, e surgiu a moda alucinógena, que tinha sua capital mundial em Londres, na famosa
Carnaby Street. Tudo o que era vendido lá e nas lojas semelhantes em outras cidades tinha um
toque, um estilo próprio que induzia ou sugeria alucinação: roupas, objetos, enfeites, discos,
pôsteres e até material para produzir LSD em casa.
Da mesma forma como outras atividades tais como foi o surfe, o esqui e a canoagem foram
estabelecendo points de concentração no planeta, o mesmo aconteceu com a experiência
psicodélica. No Brasil, os lugares onde mais se viajava — e onde, portanto, era fácil encontrar
pessoas que fornecessem, compartilhassem a experiência ou dessem dicas dos melhores points
— eram Búzios (RJ) e Itapoã (BA). Nos EUA, Sausalito; na Espanha, Ibiza; na Argentina, Vilia
Gessei.
Outra das características peculiares do ácido lisérgico foi a de não ter caído nas garras do tráfico.
Em geral, as fórmulas eram conseguidas por estudantes universitários que o produziam em
laboratórios de fundo de quintal ou até mesmo nas próprias universidades, de forma clandestina. A
substância obtida era um líquido incolor e inodoro, e a dose era uma gota. Assim, para facilitar seu
transporte, distribuição e venda, apelava-se à criatividade. O método mais freqüente consistia em
fazer algum tipo de marcas engraçadas ou graciosas num papel mata-borrão, como pequenos
carimbos de personagens de Watt Disney, flores ou estrelas, e acima de cada desenho pingava-se
uma gota. Na hora de ingerir a dose, recortava-se o pedacinho do papel correspondente a um
desenho, mastigava-se durante alguns minutos como se fosse um chiclete e cuspia-se o que
sobrava do papel.
Assim, dizia-se: "Fulano acabou de engolir o Pato Donald", ou "Estou com os Irmãos Metralha", ou
ainda "Está rolando um Pateta ótimo". Até 1966, o laboratório suíço Sandoz produziu legalmente ,
LSD25 de excelente qualidade, com o objetivo de fornecê-lo para as pesquisas que eram
realizadas na época em diversas universidades e aos pesquisadores autônomos. Cheguei a
consumir algumas doses dessa raridade.
Vale destacar também que, enquanto milhares de pessoas no mundo inteiro usavam e
abusavam dessas práticas, com o intuito de expandir suas faculdades psíquicas, o Pentágono e a
CIA realizavam experiências fornecendo a mesma substância aos soldados no Vietnã. A questão é
polemica: diversos governos norte-americanos tentaram sem sucesso abafar a divulgação desse
fato. Segundo alguns altos funcionários desses órgãos, vítimas de raras crises de arrependimento,
os motivos teriam sido amenizar a dureza, a incoerência das experiências dessa guerra tão
cruenta. Desta forma, fazendo com que o LSD chegasse ao front, os cérebros de Washington
pensavam que aliviariam o estresse produzido pela barbárie. Mais uma vez, o feitiço voltando-se
contra o feiticeiro: grande parte os massacres ou de atitudes suicidas cometidos por soldados
americanos durante a guerra no Vietnã aconteceu sob os efeitos dessa poderosa substância. O
filme Apocalipse Now, do diretor americano Francis Ford Coppola, trata dessa questão com genial
ousadia.
Minhas primeiras experiências com o LSD foram de fato deslumbrantes. Após aproximadamente
meia hora de mastigação, deglutindo a dose pingada no mata-borrão, a temperatura do corpo
começava a se alterar, alternando sensações de frio e calor. Os músculos da face ficavam um
tanto tensos, as cores dos objetos tornavam-se cada vez mais intensas, o ouvido aguçava-se e a
mente disparava.
Tinha a sensação de que a mente tomava-se uma espécie de tela de cinema, onde eram
projetadas as crenças, os valores, os pensamentos, as lembranças marcantes e/ou traumáticas,
tudo crivado por um estranho senso de ridículo. Ria de mim mesma, achava absurdo tudo o que
tinha levado a sério. Sentia que me afastava do meu centro para me colocar numa posição de
observadora do meu próprio ser, desdobrando-me para poder questionar-me com exagerado
senso crítico. Tudo misturado com imagens e visões belíssimas.
Geralmente deixávamos o som tocando. Na experiência alucinógena, o som tem um papel
fundamental. As notas e os acordes adquiriam cores que não existem na natureza.
O "papa" Aldous Huxieyjá avisava em 1958:
"Uma das vezes que tomei LSD descobri que ouvir discos de poesias ou textos
religiosos é bom de várias maneiras. Em primeiro lugar, há a mesma experiência
estranha que se tem ao ouvir música; a sensação de que, embora o tempo
permaneça inalterado, a música dura anos. A poesia ou os textos religiosos adquirem
essa mesma qualidade quase eterna. Outro ponto interessante: a pessoa parece
penetrar no significado interior do que está sendo lido, o significado para ela própria,
mais completamente do que em circunstâncias comuns".
Após ter adquirido certo domínio sobre a experiência em ambientes fechados, parti para os
espaços abertos. No início escolhi o mar. O som das músicas era substituído pelo barulho das
ondas. A proximidade do mar, a sensação de infinito que ele sugere me cativava de forma que não
conseguia expressar em palavras. Anos mais tarde, lendo Freud a respeito do que ele chamou de
"experiência oceânica", encontrei a explicação.
Quem parte para uma vivência dessas está querendo transcender os limites do seu eu. Há
milênios os seres humanos se debatem para resolver a agonia do que se denomina o "eu insulado"
ou "ilhado" na prisão representada pelo ego. E esse ego é composto por todos aqueles elementos
citados anteriormente, que se tornam hilariantes sob a ótica do LSD — as crenças, os valores, os
pensamentos, os condicionamentos, as lembranças, entre outros. A experiência denominada
oceânica por Freud seria a saída da prisão egóica, da gaiola, e o mergulho no imenso oceano da
consciência coletiva.
Sentia-me como uma gaivota. Abandonava as preocupações do cotidiano, contas a pagar etc., e
levantava vôo, mergulhando e tornando a subir no incomensurável espaço do inconsciente
coletivo, onde a função de compreender deixava de ser intelectual para se tornar orgânica.
Naquele tempo lia Aldous Huxiey, que afirmava:
"A consciência normal é um estado de espírito muito útil e, na maioria das ocasiões,
indispensável; mas não é, de modo algum, a única forma de consciência, nem a melhor
em todas as circunstâncias. Quando se transcende o eu comum ou o modo de
consciência comum, é possível aumentar a visão, olhar mais profundamente no
inimaginável milagre da existência. A experiência alucinógena é duplamente valiosa: em
primeiro lugar, porque dá a quem a experimenta uma compreensão melhor de si
mesmo e do mundo, e em segundo porque pode ajudá-lo a levar uma vida menos
egocêntrica e mais criativa".
Mas, aos poucos, a experiência começou a não ser tão agradável assim. No início pensei que
fosse alguma mudança na qualidade dos ácidos. Mudando o fornecedor, as dificuldades
permaneciam. Os mergulhos me levavam para áreas escuras e incompreensíveis. As viagens,
além de não serem tão agradáveis quanto no início, apresentavam dificuldades para que eu
retornasse. A sensação de não conseguir voltar a mim mesma é das mais angustiantes que,
conheço.
É como se a consciência ficasse num ponto intermediário entre o individual e o coletivo, uma zona
neutra, que, além de não dar prazer, provoca agonia. Acredito que os casos de suicídio que
aconteceram sob efeitos do ácido devem ter ocorrido nesse ponto da vivência.
Por outro lado, o chamado interior para continuar com as experiências, apesar das dificuldades,
também era forte. Essa força reside no fato de que a vivência alucinógena é um dos caminhos
mais diretos para compreender e aceitar cada uma das nossas histórias pessoais. Não se tratava
de vício ou dependência, e sim de um aprendizado seqüencial. As compreensões obtidas através
do LSD permanecem claras e a maioria das pessoas sente necessidade de continuar com o
aprendizado a respeito dos mistérios do seu ser. Aldous Huxiey sempre afirmava que não se devia
tomar ácido com objetivos festivos e recomendava-o, no máximo, três vezes ao ano.
O estado de alucinação que muitos cientistas chamam de "visionário", devido às visões
características da atividade alucinógena, pode ser provocado também de outras formas.
As químicas mais conhecidas, além do LSD, são a mescalina, os cogumelos e a ayauhasca.
Embora os princípios ativos dessas substâncias não sejam os mesmos, seus efeitos são muito
semelhantes.
A mesma experiência pode ser conseguida através de hipnose profunda, embora não funcione
com todas as pessoas. Também existem os tradicionais métodos orientais, que têm sido praticados
durante milênios. Aqui temos dois tipos. A linha da ioga, através de duros exercícios de
concentração, consegue ultrapassar as fronteiras da mente racional e atingir o que os cientistas
chamam de consciência visionária. Para isto, é preciso determinação, perseverança e anos de
prática. Os monges retiram-se da vida mundana para mosteiros ou cavernas como forma de evitar
os envolvimentos da mente com o cotidiano e sua conseqüente dispersão — é o que os psicólogos
chamam de privação sensorial. A partir daí, a concentração diária e constante nas práticas
espirituais leva a resultados que, segundo a descrição dos místicos, são muito semelhantes aos
que se conseguem através de substâncias expansoras da consciência. É interessante destacar
que dentro das técnicas iogues a alteração da respiração, que às vezes é quase suprimida, é um
elemento fundamental. Essas respirações têm como conseqüência o aumento da quantidade de
dióxido de carbono no cérebro, o que produz uma atividade idêntica àquela que os cientistas
chamam de visionária.
O mesmo é conseguido através de mortificações físicas, auto-flagelação e também pelo jejum. Tais
atividades não somente aumentam a quantidade de dióxido de carbono no cérebro, como a
produção de endorfinas. Assim, muitas das visões de místicos e eremitas teriam sido provocadas
desta forma. Também as rezas, as ladainhas, as cantorias, as repetições de mantras levam o
cérebro à mesma atividade. O canto gregoriano levava os monges a um estado similar ao que se
consegue com as substâncias mencionadas.
Nos tempos em que Aldous Huxiey realizava as pesquisas, como conseqüências de
questionamentos éticos sobre a validade de utilizar substâncias, tentaram-se outros caminhos. Um
deles foi a lâmpada estroboscópica: uma engenhoca que piscava na frente do sujeito da
experiência, enquanto ele permanecia de olhos fechados.
Comprovou-se, assim, uma relação entre os impulsos recebidos pelo cérebro e a freqüência das
ondas cerebrais.
Esse experimento caminhou paralelamente à pesquisa com substâncias, e hoje seus resultados
são utilizados na fabricação de "sintetizadores de ondas cerebrais", de ampla difusão no mercado.
Trata-se de pequenas máquinas similares ao waïkman que emitem impulsos sonoros e luminosos,
induzindo o usuário a estados compatíveis aos diferentes ritmos das ondas cerebrais — vigília,
sono, disposição para atividades físicas, entre outros. Muitos médicos e psicólogos utilizam os
sintetizadores como instrumento co-terapêutico no tratamento dos seus clientes.

0S PRIMEIROS CONTATOS COM AS PLANTAS DE PODER

Em 1974, já morando no Brasil, por questões profissionais visitei o Equador. País estranho.
Naquele tempo, beneficiados com a crise do petróleo, os equatorianos viviam um dos seus
melhores momentos econômicos. O sucre, moeda local, valia mais do que o dólar, e a sociedade
equatoriana vivia uma verdadeira febre de consumo. As pessoas admitiam que não sabiam como
gastar o dinheiro, e, assim, Quito possuía a maior quantidade de restaurantes —em proporção ao
número de habitantes —do mundo. A febre de consumo era tamanha, que algumas pessoas
jantavam fora duas vezes na mesma noite.
Hospedei-me na casa de uma família de judeus prósperos, amigos dos meus pais, cujos filhos, que
estudavam nos Estados Unidos, encontravam-se de férias em casa, na cidade de Quito.
Logo fui convidada pelo filho mais velho a conhecer uma tribo indígena num lugar relativamente
próximo à cidade. Aceitei. No dia seguinte, bem cedo, pela manhã, partíamos numa camioneta,
quatro rapazes e eu. Me perguntava o porquê do convite, de eu tê-lo aceito sem pensar. Minha
intuição me dizia que a experiência seria legal.
A cidade foi ficando para trás, e a paisagem, cada vez mais empolgante. Quito é uma das capitais
mais altas do mundo, situada a mais de três mil metros de altitude, e nós subíamos por uma
estrada belíssima, atravessando montanhas, beirando lagos e rios.
A conversa, própria de judeus jovens, cultos e inteligentes, era salpicada por observações —por
parte deles —do gênero: "Olha que planta bonita! Qual será o efeito que ela tem se fumada?" Eu
carregava comigo um papel mata-borrão com uma quantidade de ácidos de excelente qualidade,
porém disfarçava. Fingia não entender. As insinuações continuavam. Chegamos a Otavalo, uma
vila muito mais alta do que Quito, cujos habitantes, conhecidos como "otavalenhos", apresentavam
fortes características orientais e diferiam de tudo o que eu conhecia, tanto na forma de vestir-se
quanto em hábitos e tradições.
Tanto os homens como as mulheres usam a mesma indumentária, e, segundo os meus cicerones,
há séculos é a mesma. Compõe-se de calças de brancura impecável, largas e curtas até a metade
da canela, blusa branca bordada, chapéu preto e um poncho preto dobrado e usado só de um
lado, por cima do ombro. As mulheres usam colares de diversas voltas no pescoço, bem
apertados, parecendo ouro, e tanto os homens como as mulheres têm o cabelo comprido e
trançado numa trança só.
O orgulho étnico dessa interessante população reside em não ter pertencido ao império inça, do
qual o Equador de hoje era uma remota província, e, ao mesmo tempo, de não ter-se deixado
dominar pelo conquistador espanhol. Assim, eles conservaram através de milênios sua identidade
cultural, suas tradições, seus mistérios.
A distribuição da vila, em torno de um mercado central, assemelhava-se à dos povoados tibetanos.
Numa parte do mercado vendiam-se ervas. Os rapazes conversavam com os vendedores de ervas
sobre alguma coisa que não prestei atenção. Soube mais tarde que era a respeito de alucinógenos
locais.
A altitude de aproximadamente três mil e quinhentos metros torna tudo muito diferente. O céu
parece estar mais perto. Durante o dia o calor era intenso, e o frio da noite também. No segundo
dia tomamos parte dos ácidos que eu tinha levado. A experiência foi agradável. O grupo se
harmonizou. Eles já o tinham tomado nos Estados Unidos, e parecia que nos conhecíamos há
muito tempo. No caminho da expansão da consciência, os relacionamentos são fundamentais. O
clima de camaradagem estabeleceu-se no grupo, e todos nos sentíamos felizes e plenos.
Havia um pequeno restaurante freqüentado pêlos hippies que descobriram o lugar. Entramos e
sentamos. No cardápio, no meio da lista dos pratos, estavam escritas pêlos clientes itinerantes, em
inglês, alemão, francês e outros idiomas, referências aos tipos de alucinógenos que se podiam
encontrar na região. Por exemplo: "O sanpedrito da dona Maria dei Socorro não é bom", "Se for
tomar a purga com Celestino leve chocolate", e outras com as mais variadas referências
alucinógenas, em diversas gírias internacionais.
Um índio jovem, com quem os rapazes tinham conversado no mercado, percebeu que estávamos
viajando e perguntou o que tínhamos tomado. Trocamos idéias com ele, e nos falou do "São
Pedro".
Eu já tinha ouvido falar que existiam em alguns lugares do mundo índios que utilizavam plantas
alucinógenas, mas era algo que me soava exótico demais. A possibilidade de vivenciar uma
experiência dessas nos deixou extasiados. No início, a proposta de permanecer em Otavalo era de
um ou dois dias, no máximo. Resolvemos ficar e encarar esses mistérios.
Eu estava eufórica, acreditava estar trilhando o caminho de Jack Kerouac, William Burroughs, Allen
Guinsberg, que eram, e continuam sendo, os maiores malditos da contracultura. Sabia que eles
tinham percorrido selvas, florestas e desertos atrás de substâncias expansoras da consciência,
que desenvolvessem a telepatia e aumentassem a percepção.
São Pedro é o nome sincrético de um cacto de três a seis metros de altura que só cresce em
lugares de mais de dois mil metros de altitude. Os índios preparam uma bebida que denominam
"cimora", fervendo pequenas fatias do cacto. A cultura indígena lhe atribui a propriedade de "abrir
as portas do céu", daí o nome de São Pedro. Seu princípio ativo é a mescalina, igual ao do peyote
mexicano.
Acertar os detalhes de como, quanto, onde e com quem foi fácil. À noite tomamos a cimora, na
casa de um curandeiro.
Não havia conforto algum, era cansativo. O curandeiro — ou xamã — utilizava um chocalho e
entoava alguns cânticos que me pareciam mantras. Alguém explicou que se chamavam "ícaros",
que eram algo assim como um mantra pessoal e que os curandeiros recebiam seus ícaros do
astral, numa espécie de iniciação.
Comparando com a experiência de expansão da consciência que eu mais conhecia na época, o
LSD, poder-se-ia dizer que foi uma viagem leve. Mas foi o bastante para sentir com clareza que
me encontrava frente a uma das mais misteriosas vivências que o ser humano pode atingir, e que
por trás dessas pessoas tão estranhas havia um conhecimento que vinha sendo guardado há
milênios e que dependeria da minha atitude desvendá-lo ou não.
A sessão acabou sem maiores acontecimentos, e voltamos para a hospedaria, a pé, numa noite
sem lua, silenciosos e introvertidos.
Ficamos com vontade de aprofundar a viagem. Nos dias seguintes procuramos saber de algum
curandeiro que trabalhasse com ayauhasca, mas parecia que não era o momento. Matamos a
vontade de viajar acabando com meu estoque de papel mata-borrão.
Quando retornamos a Quito, procuramos saber mais sobre a misteriosa bebida que tinha sido
impossível encontrar. Conseguimos a informação de que o caminho era procurar nas regiões de
floresta amazônica e de que a área de Iquitos, no Peru, era uma das mais apropriadas.
Como a minha passagem de retorno ao Brasil percorria Quito — Lima — Santiago — Buenos
Aires e, depois de alguns dias. Rio de Janeiro, achei interessante desdobrá-la, e assim, junto aos
meus parceiros de aventuras, embarquei rumo a Iquitos.
Não foi difícil. Chegamos numa quinta-feira e na sexta já sabíamos que os curandeiros,
vegetalistas ou ayauhasqueiros abriam os trabalhos geralmente aos sábados.
Passamos o dia colhendo informações de como escolher o melhor deles. Achava estranho pedir
seriamente referências sobre algo que ainda considerava um "barato".
Os conselhos que recebíamos e os critérios utilizados me resultavam um tanto hilariantes. Todo
esse vaivém aumentava nossa expectativa. Após horas de procura, sentamos numa sorveteria
para checar e cruzar informações e democraticamente escolhemos um deles e acertamos todos os
detalhes para o trabalho, que começaria no sábado à noitinha. Nossa ansiedade não tinha limites.
Recebemos instruções de fazer abstinência de sexo, álcool, outras drogas e carne de porco.
Finalmente chegou o momento. O local era uma espécie de palhoça de aproximadamente vinte
metros de diâmetro. No centro, o ponto do curandeiro: uma mesa com objetos de poder —cristais,
penas, imagens etc. — e alguns garrafões com um líquido marrom esverdeado. Olhando para o
conteúdo do garrafão, tive a idéia de que estava frente a um poder que teria uma influência
determinante na minha vida. O curandeiro discursava, enquanto as pessoas acabavam de chegar
e calmamente buscavam um lugar para se acomodar. O discurso era uma ladainha de feitos
maravilhosos relatados pelo vegetalista como obra do seus poderes, e dava para perceber logo
que a modéstia não era seu forte. Falava sobre curas que tinham acontecido com pessoas que
tomaram a purga preparada por ele, de como achava feitiços nas pessoas e as livrava deles.
Enfim, se a metade fosse verdade, estaríamos na presença de um dos homens mais poderosos do
mundo. Dava para perceber que entre as pessoas presentes havia outros curandeiros. Após todo
mundo ter encontrado um lugar para se ajeitar, houve um breve silêncio, seguido de uma reza
conduzida pelo curandeiro e acompanhada pêlos presentes, e deu-se o inicio da sessão.
Um a um fomos bebendo um copo daquele líquido de sabor ácido e enjoativo e voltando aos
nossos respectivos lugares. O mestre curandeiro entoava seus ícaros. Quando calava, alguém
dentre os outros curandeiros presentes entoava o seu. Eles não deixavam o silêncio tomar conta.
As pessoas iam se aquietando, e os ícaros quebrando o silêncio davam-me a impressão de que
rasgavam um véu invisível que nos estava levando a outra dimensão.
Comecei a sentir alfinetadas pelo corpo todo. Ao mesmo tempo, minha cabeça disparava. Como
num filme acelerado, imagens de minha vida se misturavam, ao mesmo tempo que parecia haver
uma voz em off dentro de mim que fornecia uma explicação de cada visão. Compreendi que estava
tendo visões, embora a mente pouco ou nada pudesse compreender. Os ícaros tinham um papel
fundamental: seus sons pareciam abrir minha consciência para um conhecimento deslumbrante.
Quando entre um e outro fazia-se um pequeno silêncio, a experiência ficava difícil e algumas
pessoas saíam para vomitar. Entendi por que quando tomávamos o LSD dávamos tanta
importância ao som.
O que mais impressionava era a velocidade com que a consciência funcionava. Adquiri a certeza
de que existia uma realidade invisível, que dava sustentação ao universo tridimensional que
acreditamos conhecer. O invisível suporte do visível. Neste conceito cabiam todas as buscas da
humanidade, atrás de sabedoria, poder, magia, conhecimento e também religião — religação.
A nossa cultura academicista, universitária, cartesiana, lógica e petulante tinha criado tal crosta
nas consciências, que a função de Aldous Huxiey e Thimoty Leary, ao nos guiar pela senda
alucinógena, era de pôr-nos em contato com um removedor de couraças semelhantes a inúmeras
camadas de tinta, que precisavam de uma substância que progressivamente as amolecesse, para
posteriormente removê-las. Era esse também, num nível mais massificado, o efeito do trabalho dos
Beatles ou dos concertos de bandas de rock:
através da sua música, muitas vezes ouvida em estados de consciência alterada, pessoas no
mundo inteiro rasgavam o mesmo véu que separava os diversos níveis de realidade, da mesma
forma como nós o estávamos fazendo nessa palhoça. A diferença residia na metodologia. Essa
forma um tanto indígena, um tanto mestiça, parecia ser mais garantida, ao menos era legal, não
dava cadeia, e transmitia uma segurança silenciosa através de seus enigmáticos oficiantes.
Algumas pessoas levantavam e saíam às pressas para vomitar e quando retornavam aos seus
lugares aparentavam se sentir melhor.
Quando o trabalho acabou, uma corrente de tranqüilidade e bem-estar espalhava-se por todos os
cantos. Senti vontade de conversar com as pessoas, de saber o papel que a ayauhasca ocupava
na vida delas. Assim, fiquei sabendo que, na sua maioria, integravam as camadas mais carentes
da população, ou seja, não tinham acesso a boas escolas e muito menos a universidades. Serviço
de saúde, nem pensar! Recorriam à ayauhasca em busca de alguma cura, da solução de algum
conflito, para se livrar de algum trabalho de inveja ou de mau-olhado. Não pareciam nem um
pouco preocupadas com as questões éticas e/ou esotéricas que nos afligiam. Aceitavam natural e
espontaneamente que a poderosa bebida os levasse ao ponto invisível onde o poder se
manifestava.
Na volta ninguém conseguia dormir, nos sentíamos eufóricos e ao mesmo tempo cansados, porém
não era fácil transmitir o que acontecia com cada um. A telepatia imperava de forma amena.
No dia seguinte, cada um tomou seu rumo. Eles de volta a Quito, e depois para os EUA, eu para
Buenos Aires, a caminho do Rio de Janeiro, Uma certeza: não éramos mais os mesmos. A
ayauhasca assemelhava-se a uma iniciação, um batismo. Nunca mais tive notícias dos meus
companheiros; não sei se continuaram a jornada.
O avião fez escala em Santiago do Chile. Eram os primeiros tempos da ditadura militar do general
Pinochet. Os carabineiros (a polícia chilena, calcada nos moldes da Gestapo) entraram no avião e
ostensivamente revistaram as bagagens de mão e nos comunicaram que quem estava em trânsito
deveria permanecer no avião, numa espera de mais de três horas. Normalmente minha reação
teria sido algo como pedir para descer, criar algum caso para exercitar a contestação às normas
impostas. Em vez disso, para minha surpresa, fiquei calma, sentada na poltrona, meditando sobre
o poder que as sociedades repentinamente investem em oficiais, soldados e policiais, que na
maioria das vezes atuam de forma irracional e gratuita.
Algumas horas depois, estava em Buenos Aires. Meus pais e minha família moravam lá. Eu sabia
desde criança que esse não era meu lugar, sem saber sequer o porquê. Não é à toa que na época
já morava no Rio de Janeiro.
Estava frio, era um inverno rigoroso que contrastava com o clima agradável da Amazônia e do
Equador. Atravessando a cidade, compreendi que para mim ela representava o lugar no planeta
onde vingava um conhecimento que seguia a trilha oposta à da ayauhasca. Tive a certeza de que
não era o meu lugar. Os valores que sustentavam essa cultura não eram os que eu buscava. Pelo
menos tinha a certeza do que eu não queria.
Nos dias seguintes em Buenos Aires, tive algumas experiências desagradáveis que me deram a
determinação de me instalar definitivamente no Brasil.
Parecia haver um efeito retroativo na ayauhasca ou talvez a porta de percepção que ela me tinha
aberto nunca mais se fechasse.
Sentia uma enorme diferença na minha forma de compreender os fatos do cotidiano.
Na volta ao Rio, a experiência peruana era cada vez mais presente.
Reencontrei os amigos brasileiros, companheiros de viagens, e resolvemos marcar uma data para
tomar ácido juntos.
Nesses tempos, cada vez com mais freqüência, tinham-se noticias de alguém que tinha embarcado
em alguma bad trip ou que tinha "comido uma pálida" —referência à palidez que caracteriza a
queda brusca da pressão sanguínea. Eu mesma achava que os ácidos não tinham mais aquela
conotação divertida das primeiras experiências. O divertido dava lugar ao cáustico. No início
achava graça nas contradições e absurdos da nossa realidade, que o ácido me mostrava. Depois
de um tempo ou de certa quantidade de experiências alucinógenas, as incoerências tomavam-se
cada vez mais nítidas e mais difíceis de serem aceitas. Ai residia o foco da bad trip. Muitos se
atiraram de janelas, cometeram loucuras, achando que sair desta para a melhor era a chance.
As viagens de ácido, depois da ayauhasca, tomaram-se desagradáveis.
Era possível sair do corpo, porém ficava difícil voltar. Compreendia, no Rio de Janeiro, a
experiência de Iquitos: os ícaros garantiam a viagem e seu correspondente retorno ao corpo. O
xamã, ou curandeiro, era o elemento mediador que estabelecia a conexão entre os dois planos da
realidade.
Resolvi parar de usar LSD e, já que no Rio a possibilidade de achar ayauhasca era remota,
prometi a mim mesma que um dia iria para a Amazônia aprender mais com a poderosa bebida.
Enquanto isso não acontecesse, trilharia somente os caminhos tradicionais:
ioga, meditação, sufismo...
Assim, além de praticar ioga, adquirir técnicas de meditação, estudei Patanjali, Krishnamui ü,
recebi algumas iniciações na ordem rosacruz, e mergulhei na teosofia, a doutrina secreta de
Helena Blavatsky. Freqüentei as escola do quarto caminho, cuja proposta me fez reconhecer
alguma antiga empatia, talvez originária de vidas passadas, e encontrei nas práticas deixadas pelo
mestre Gurdief o trabalho ao qual eu mais me adaptava.

O VEGETAL

Dois anos após a viagem ao Equador, em 1976, nasceu minha filha.


Nessa época minha busca espiritual continuava pêlos caminhos tradicionais.
Anos depois, num domingo no ano de 1983, leio uma matéria no Jornal do Brasil sobre uma seita
na cidade de Rio Branco (AC) que utilizava uma bebida nos seus rituais chamada santo daime. Li a
matéria com muita atenção. Nela o autor descrevia os "trabalhos de ritual", "bailados", as mulheres
usando uma roupa estranha, e pensei que talvez a bebida fosse ayauhasca ou algo semelhante.
Prometi a mim mesma que daria um jeito de fazer uma viagem ao Acre. A promessa não incluía
data.
Por uma estranha coincidência do destino, no mesmo dia três pessoas amigas minhas, mas que
não se conheciam entre si e que não eram usuárias de alucinógenos, me entregaram recortes do
mesmo jornal, com a matéria, achando que o assunto era do meu interesse.
Tive a impressão de que alguma força invisível estava querendo certificar-se de que eu entenderia
o recado.
No dia seguinte, uma segunda-feira, outra coincidência interessante: uma vizinha muito distinta e
muito culta convidou-me para uma reunião na casa dela na parte da tarde, onde compareceriam
outras mulheres, todas com filhos pequenos, na mesma faixa etária da minha filha, com o objetivo
de que juntas criássemos um programa de atividades extracurriculares para os nossos filhos.
Pouco tempo após a reunião ter começado chegaram três homens, parecendo caboclos ou
nortistas, e a dona da casa levantou-se para atendê-los com um ar de intimidade que contrastava
pela diferença socioeconômica entre ela e eles. Parecia-me que eram encanadores ou pedreiros,
que realizariam algum tipo de serviço, mas a nossa anfitriã dirigia-se a eles com ar de reverência e
consideração. Assim, ela levantou-se e pediu desculpas, já que tinha marcado a reunião sem
saber que os "mestres" chegariam nesse momento, e pediu que continuássemos sem ela.
Minha curiosidade não tinha limites, e quando ela retornou, já no final da reunião, perguntei-lhe que
mestres eram esses, e respondeu serem os mestres da União do Vegetal. Em resposta à minha
pergunta, se era a mesma bebida a que o Jornal do Brasil tinha se referido no dia anterior, disse
que a bebida utilizada era a mesma, que tinha também o nome de santo daime e que o termo
original que denominava as duas era ayauhasca. As diferenças entre o pessoal do daime e da
UDV residiam também no ritual. Eu não acreditava que a metros da minha casa tinha acontecido o
encontro que há tanto tempo esperava e imaginava que seria no Acre. Perguntei se era possível
tomar no Rio. Eles faziam trabalhos todo sábado, e no próximo eu poderia participar. O combinado
foi que alguém me apanharia na minha casa, sábado, no fim da tarde.
E, assim, no sábado seguinte, um casal de argentinos apareceu na minha residência, dizendo que
iriam comigo por sugestão da nossa amiga em comum e que nunca tinham tomado a bebida, que
seria a primeira experiência.
O local e a situação representavam plenamente o sincretismo racial e cultural característico do
Brasil. O endereço que tínhamos que procurar era numa favela na zona sul, perto do cemitério São
João Batista. A casa ficava no alto do morro, e à direita dela havia um boteco com pagode,
cachaça e toda a bagunça correspondente. À esquerda, uma igreja evangélica que com alto-
falantes pregava uma moral apocalíptica. A casa era um sobrado, e o ritual de que participaríamos,
embora sendo da União do Vegetal, era uma espécie de dissidência, uma linha talvez um pouco
diferente da tradicional. Não havia móveis, só esteiras e algumas almofadas. Além do mestre
oficiante, havia mais um casal de vegetalistas, todos do norte, e o grupo todo não passava de dez
pessoas.
O casal de argentinos me contou que ambos eram refugiados políticos, que estavam sob a
custódia da ONU e que tinham estado presos na Argentina por suas atividades terroristas.
O resto do grupo era composto por intelectuais de diversas origens, na faixa etária dos trinta e
cinco aos cinqüenta anos todos com aquele ar reprimido que tomava conta das pessoas que
tinham algo a dizer nos tempos da ditadura militar.
Bebemos um copo cheio, sem cerimonial, sem ritual. O vegetal era fraco, o trabalho também.
Numa vitrola velha começaram a tocar músicas religiosas muito semelhantes às que eram
cantadas na igreja ao lado. Eu perguntava a mim mesma por que eles não usavam música da nova
era ou mantras. Entre um disco e outro, conversas leves. A Argentina começou a me relatar suas
atividades terroristas, o tempo que passara numa cadeia em Córdoba, na Argentina, as torturas
que sofrera —quando fora presa ela estava grávida —e como seu filho tinha nascido na cadeia e
nem tinha podido vê-lo. Pensei na minha filha, na época com sete anos de idade; nesse momento,
estaria em casa dormindo. Entendi que a ayauhasca me mostrava que, caso eu tivesse ficado na
Argentina, meu destino teria sido semelhante.
Enquanto ela continuava seu relato em espanhol e bem baixinho, para não atrapalhar a miração
das outras pessoas, seu marido mantinha uma atitude tensa e alerta. Só falava para mim, e em
péssimo portunhol, com atitude de um guerreiro capaz de suportar qualquer prova: "Esse negócio
aí não me fez nada! Eu estou normal!" Compreendi que ele pertencia ao grupo da revolução do
proletariado, na Argentina, e que o que dava a ele a transcendência era a vivência da luta armada,
onde podia vivenciar a saída do ego e se projetar numa aventura maior. Entendi também que, caso
eu tivesse ficado na Argentina, meu comportamento seria igual ao dele. Morando no Brasil, eu
tinha perdido grande parte da minha rigidez e a herança guerrilheira dos meus pais.
Embora achasse o trabalho fraco, por falta de opções melhores repeti a experiência algumas
vezes. Tinha uma certeza interior de que era por aí, mas não era bem isso.
Doze anos mais tarde, no momento em que escrevia este livro, reencontrei o mestre desses
trabalhos, de quem não tive notícias durante esse tempo todo. A sincronicidade dos processos
detonados pela ayauhasca nunca deixa de me surpreender:
no momento em que se encerrava um ciclo de minha caminhada dentro da religiosidade e pensava
em encontrar, após o vegetal, outro caminho que me ligasse ao sagrado, como por um passe de
mágica, quem me iniciara nele reaparecera numa busca semelhante à minha, e, entre outros
assuntos, me deu a notícia de que aquele argentino suicidara-se.
Uma das pessoas que estava naquele primeiro trabalho, com o objetivo de ajudá-los, os
empregara como caseiros num sítio de sua propriedade num local perto do Rio de Janeiro.
Segundo soube, o casal tinha conseguido trazer seus dois filhos da Argentina, e estavam com a
vida mansa e organizada. Tudo indica que ele não suportou a gaiola do ego e não encontrou outra
forma evolutiva de transcendência.
Espero que sua alma, onde estiver, esteja sendo acolhida e assistida, para que possa seguir sua
caminhada após esta encarnação tão dolorosa.

O DAIME

Em 1983, um dos meus objetivos imediatos era ir morar fora da cidade do Rio de Janeiro. Alguns
meses após ter tomado o vegetal mudei-me para Penedo, que, apesar de estar a uma distância de
menos de três horas do Rio de Janeiro, afastava-me psicologicamente da experiência com o
vegetal.
Uma das primeiras pessoas que conheci em Penedo — uma colônia fundada por finlandeses no
interior do estado do Rio — foi a Patrícia, dona de uma loja de artesanato, com quem fiz alguns
negócios de compra e venda.
Nesses dias vi no Jornal do Brasil um anúncio do lançamento do livro de um ex-guerrilheiro, que
morava em Visconde de Mauá (RJ), a pouco menos de trinta quilômetros de Penedo, a respeito de
uma bebida alucinógena (o santo daime) e suas experiências numa viagem que ele teria feito a Rio
Branco. O Livro da Mirações tinha seu lançamento marcado para o dia seguinte — por
coincidência eu estava com planos de ir ao Rio nesse dia — no teatro da praça Cardeal Arcoverde,
em Copacabana.
Pensei comigo mesma: vou lá, compro o livro, peço para ele autografá-lo e pergunto se trouxe o
santo daime, e se eu poderia tomar. O lançamento estava previsto para as oito da noite. No teatro
não cabia mais um alfinete. As onze da noite, Alex Polari de Alverga, o autor, não tinha chegado.
Fui dormir com a sensação de que não fora desta vez.
Retornei a Penedo. A Patrícia, a quem eu conhecia superficialmente e só por aquelas poucas
transações comerciais, veio me visitar com a intenção de se despedir de mim, já que tinha vendido,
a loja e o sítio onde morava e estava de mudança para Visconde de Mauá.
Pouco ou nada sabia a seu respeito, porém perguntei-lhe: "Você conhece um sujeito chamado Alex
Polari?" Ela estranhou a pergunta, ficou encabulada e quis saber o que eu quereria com ele.
"Eu soube que ele lançou um livro sobre o santo daime, e eu já tomei ayauhasca e o vegetal, e
estou querendo conhecer o daime", respondi.
Ela suspirou e disse:
"Agora entendo o que me trouxe aqui. Na hora que cheguei à tua porta, refleti: O que eu estou
fazendo aqui? Quase não conheço esta mulher, por que teria que me despedir dela? A questão é a
seguinte: eu estou me mudando para Mauá por causa do daime. Vendemos tudo o que tínhamos,
sítio, loja etc., e vou com a família toda, marido e cinco filhos. Compramos um sítio lá próximo ao
que será a futura comunidade e onde hoje tem a igreja".
Combinamos que ela me telefonaria quando tivesse um "trabalho" do qual eu pudesse
participar.
Mais uma vez a ayauhasca batendo à minha porta, mais uma vez a questão do terrorismo estava
presente, agora na forma de um ex-guerrilheiro.
Ela ligou na semana seguinte, e lá fui eu, subir as montanhas à procura da expansão da
consciência.
O lugar não poderia ser mais exótico. Chegava-se ao sítio, onde se encontrava a igreja,
atravessando outras três fazendas, uma delas da Patrícia, por uma trilha barrenta. Uma vez no
sítio, a aventura começava: a igreja ficava escondida em cima de um morro de uma altura
semelhante à do Pão de Açúcar, e a única forma de chegar a ela era uma trilha estreita e íngreme.
Vale a pena acrescentar que chovia. Bem na minha frente, vários homens com roupas brancas
carregavam outro, montanha acima, numa rede. Depois soube que o carregado era Alex Polari,
que estava tendo uma crise renal e não podia andar por suas próprias pernas, porém não queria
deixar de comandar o trabalho. A chegada lá em cima era deslumbrante; enquanto se subia não
dava para ver muita coisa, já que o mato alto nos dois lados da trilha atrapalhava a visão. Uma vez
no topo, a paisagem aparecia como que de repente. Toda aquela região é muito bonita, e o local
onde existia a primeira igreja, que foi demolida alguns anos mais tarde, é sem dúvida um dos mais
bonitos cartões-postais de Mauá.
Além do magnetismo do local, alguns poucos "fardados" começaram a chegar, aumentando assim
o clima de mistério. Era a primeira vez que via a "farda", roupa que não se parece com nenhuma
indumentária conhecida. As mulheres usavam coroa! As "fardadas" eram uma senhora acreana,
chamada "madrinha" Cristina, e a Sônia, sendo esta última esposa do Alex. A Patrícia estava "se
fardando" nesse dia.
Veio alguém me dar as explicações de como seria o trabalho. Eu as achei desnecessárias. Já tinha
tomado a bebida, tinha estudado e praticado a doutrina sufi, onde os bailados duram horas, até a
exaustão, e fazem parte do caminho para se atingir a expansão da consciência.
O trabalho começou. O Alex estava no comando, sentado numa espécie de trono, não podia bailar
devido à doença. A Sônia deu início à música e ao bailado. Era dia de São José de 1984, hinário
(conjunto de hinos) do Alfredo Mota. Alguém me emprestou um hinário e um maracá. Após poucos
hinos entrei no bailado, tentando sincronizar leitura, passo, maracá e alinhamento na fila —era
muito difícil. Era muito mais do que a minha vã presunção poderia imaginar. Quando pensei que
estava conseguindo, alguém me chamou uma fiscal — e falou: "Vamos pitar!"
Saímos, na chuva, andamos um pouco até uma casinha de sapé e plástico preto e pitamos, ou
seja, fumamos um cigarro de maconha.
Retornando, tentei entrar novamente na corrente (conjunto de pessoas bailando). Não me
lembro bem se ainda consegui bailar um hino: o mundo desabou. Apaguei de um jeito como jamais
tinha acontecido em toda a minha performance alucinógena — desmaiei.
Ouvia as vozes das pessoas que, enquanto me carregavam, diziam para si mesmas: "Vamos
colocá-la perto do Alex". Acredito que deve ter sido em alguma poltrona perto dele. Eu não
conseguia entender nada. Os hinos penetravam na minha consciência com a força de um furacão.
Eu achava que estava morrendo. Ao mesmo tempo, não achava nada. A minha mente havia saído
dos trilhos. Nunca até o momento eu tinha vivido uma experiência na qual eu não pudesse manter
o controle da situação. Pensava na minha filha, quando soubesse que eu tinha morrido, ria de mim
mesma e do absurdo que era esse temor da morte, e os hinos relatavam meus medos como se
estivessem sendo cantados só para mim.
Apesar do caos mental, uma coisa ficava bem clara: enquanto os hinos eram cantados, a
consciência se iluminava, e dava para perceber com clareza que estávamos dentro de um poder
superior.
Nesse tempo, o ritmo do ritual era fraco, os músicos idem, e quando acontecia uma pequena
demora entre um hino e o seguinte, minha consciência começava a entrar numa área obscura, os
medos voltavam, o desespero tomava conta. Então ouvia-se a voz do Alex cobrando da Sônia para
não demorassem a reiniciar a música. Parecia que ele sentia quando aumentava a sombra.
É preciso dar o testemunho de que esse trabalho, esse hinário foi a mais intensa experiência
de transcendência que jamais sonhei ou imaginei ter. Tudo o que eu tinha estudado até o momento
era confirmado através dos hinos de forma poética e profunda. O hino oitenta e quatro, do Alfredo
Mota, diz:
"O daime é o daime eu estou afirmando
é o Divino Pai Eterno e a Rainha Soberana.
O daime é o daime O professor dos professores
É o Divino Pai Eterno E seu Filho Redentor.
O daime é o daime
O mestre de todos os ensinos
É o Divino Pai Eterno
E todos os seres divinos".
Essa experiência marcou a minha entrada num plano da consciência universal, onde jamais
pensaria chegar. Numa das mirações vi a mim mesma numa vida anterior, num lugar semelhante a
Stonehenge, num ritual da antiguidade e com as mesmas pessoas que estavam no daime,
explorando os mesmos níveis de conhecimento.
Quando o trabalho acabou, já com o dia claro, eu não podia acreditar no bem-estar e na alegria
que sentia. Não esperava ouvir grandes verdades iniciáticas. A madrinha acreana chegou sorrindo
e me cumprimentou dizendo: "O daime te mostrou, né?". No momento lembrei-me dela bailando,
do seu porte, da sua leveza, e decidi: "Vou ficar neste caminho e desvendar estes mistérios".
A partir desse momento passei a tomar daime praticamente toda semana. Morava a trinta
quilômetros de Mauá. Tinha uma loja onde atendia os turistas até sábado as cinco da tarde, e
domingo a partir das nove da manhã. Nos dias em que havia trabalho, fechava a loja, começava a
subida da serra para Mauá, com chuva, atoleiros e todos os componentes que tornavam a
experiência mais desafiadora ainda, e chegava na hora de os trabalhos começarem. Ao
amanhecer
— com o término dos trabalhos, que costumavam durar doze horas
— era a primeira a sair, descer aquela serra, como quem passa de um plano a outro da
consciência, sabendo o que está fazendo. Chegando em casa, após um banho, retomava o
atendimento no comércio, como se tivesse dormido a noite inteira. Achava que esse desafio era
mais uma proposta de autodomínio dentro da qual o trabalho espiritual fazia ainda mais sentido.
O frio das madrugadas em Mauá numa igreja sem paredes, após várias doses de daime, é algo
que jamais esquecerei. Houve uma madrugada em que, por volta das quatro horas da manhã, os *
trabalhos foram suspensos porque a água do "ponto", do local, estava congelando.
E eu, que sempre tinha sido sensível ao frio desde criança, precisando tomar cuidados especiais,
percebia que lentamente a proposta sufi do trabalho estava dando seus frutos, que pouco a pouco
minha resistência ao frio aumentava paralelamente a minha compreensão.
Mesmo assim, passava muito mal. Observava que o grupo ia se tornando mais homogêneo e o
comportamento das pessoas mais estereotipado.
O autoritarismo grassava, em especial nas mulheres. A função de fiscal (pessoas que organizam
os trabalhos) parecia avalizar comportamentos dignos de carcereiros ou guardas de campos de
concentração. Exatamente o oposto a tudo aquilo que se cantava nos hinos. À frente desta atitude
estavam o Alex e a Sônia. E, para tornar mais absurda a situação, cariocas, paulistas e mineiros,
entre outros, adotavam o jeito acreano de ser: sotaque, hábitos e modos próprios daquelas
pessoas que vinham de um lugar tão distante nos ensinar os mistérios dessa poderosa bebida. Tal
atitude parecia-me uma estranha simulação por parte dos novos adeptos, que não haviam nascido
no Acre.
A cada trabalho minha proposta de desenvolvimento individual dentro do coletivo ficava mais
determinada. As atitudes que eu condenava nas pessoas funcionavam como um espelho ao
contrário.
Muitas vezes fiquei chocada ante situações de injustiça, de arbitrariedade, de fanatismo. A
resposta era o vômito. Vomitava tanto os "sapos" que tinha engolido ao longo da vida, assim como
os que decorriam de acontecimentos no grupo. Achava que era o meu padrão de aprendizado, que
por alguma razão tinha que expandir minha consciência com essas pessoas tão diferentes de mim
mesma.
E, apesar de tudo, dois anos após a primeira experiência com o daime — também no dia de São
José — fardei-me (ingressei na doutrina), pois considerava que ali poderia desenvolver minha
espiritualidade, rumo ao conhecimento. No dia 20 de março de 1985 entrei formalmente para o
CEFLURIS, uma das instituições daimistas fundadas no Acre, que fazem uso da ayauhasca.
A questão não era tão esotérica assim, era falta de outra opção mesmo.
Mais uma vez encontrava sustentação em Aldous Huxiey. A respeito disso, ele tinha dito:
"A experiência alucinógena faz com que as pessoas assimilem afirmações religiosas
do calibre de: Deus é Amor, ou Embora Ele me extermine, ainda assim confio Nele.
Não é preciso dizer que esta espécie de auto-transcendência temporária não é
garantia de um esclarecimento permanente ou de um aperfeiçoamento duradouro de
conduta. É uma graça gratuita, que nem necessária nem e, suficiente para a
salvação, mas que, usada apropriadamente, pode ser enormemente útil para aqueles
que a receberam. E isto é válido tanto para as experiências que ocorrem
espontaneamente, para as que são o resultado de ter engolido alguma coisa ou
substância, ou para as que decorrem de exercícios espirituais ou mortificações
corporais".

A JORNADA DO HERÓI

"Somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto
psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, para assumirmos, dai
por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar, e que mais tarde
precisarão erguer-se sobre os próprios pés. É uma enorme transformação e seria,
certamente, um ato heróico, caso fosse praticado conscientemente. E existe aí também um
ato heróico de parte da mãe, responsável por tudo isso."

Otto Rank

Quem de nós, quando criança, ao ouvir uma história de heróis ou assistir a um filme de aventuras,
não imaginou a si mesmo como o personagem central, aquele que vence o monstro, resgata a
mocinha e acaba sendo carregado nos ombros da multidão?
Há em todo ser humano um herói em potencial, e isso é o que faz a vida ser uma grande jornada.
E para que esse herói possa se manifestar, é preciso subir montanhas, percorrer trilhas, lutar
contra dragões, atravessar desertos, rios, territórios inimigos, entrar em outras galáxias, enfrentar
criaturas monstruosas, descer aos infernos, atrás de um objetivo ou ideal. Ou seja: ser capaz de
adquirir novos conhecimentos vencendo os perigos, superando as adversidades e os medos.
Este objetivo está sempre presente nos mitos e nas histórias em forma de uma proposta ou de um
desafio. É preciso encontrar um tesouro escondido, resgatar uma donzela ou alguém prisioneiro,
libertar uma cidadela das mãos de algum poder malvado. Para isto é preciso que o herói vença o
medo do desconhecido, que saiba suportar a solidão e a rejeição, que tenha claros seus objetivos
e metas e,, acima de tudo, que tenha confiança na sua "capacidade de ser herói".
Esta capacidade reside em todo ser humano. Porém, a sociedade contemporânea não estimula
seu desenvolvimento. Desta forma, quem consegue realizar sua jornada heróica exerce grande
fascínio, pois se toma um modelo de pessoa capaz de ousar, de assumir riscos e de não se
intimidar pelo extraordinário e/ou pelo desconhecido.
Cada vez que alguém consegue superar seu próprio sofrimento, transforma-se num testemunho do
poder da energia criativa da vida existente em cada um de nós.
As montanhas, os rios e os desertos que devem ser atravessados, os inimigos e monstros a serem
vencidos simbolizam as dificuldades que cada um deverá encontrar para se tornar o herói. Caso
não consiga, será uma vítima. Não existe uma terceira possibilidade.
A jornada do herói começa no ato de nascer, porque de alguma forma, ao respirar por nós mesmos
pela primeira vez, gravamos na nossa consciência que há determinadas coisas que ninguém
poderá fazer por nós. Trata-se da caminhada para o amadurecimento de nossa capacidade para
suportar as dores, carregar as humilhações, as incompreensões e a solidão.
Assim, utilizando essa linguagem simbólica, durante milênios, os seres humanos tentaram
encontrar o caminho para transcender as limitações das suas vidas. As histórias de heróis e
heroínas foram transmitidas oralmente, pêlos mais velhos, tanto na forma de contos infantis como
em peças de teatro, na literatura ou nos mitos.
Nessa linguagem simbólica o lado obscuro da realidade, que permanece encoberto, os mistérios
ocultos dos quais nada conhecemos, são representados pelas paisagens sombrias, pêlos locais
ermos ou pêlos personagens oriundos das camadas mais baixas da população. E os
acontecimentos que o herói atravessará neles ou com eles, geralmente envolvendo viagens
perigosas, são a sua descida até o mundo da sombra coletiva, de onde ele retornará para o limiar
da consciência, porém já com algum elemento que simbolize a integração dessa sombra. Ou seja,
a conscientização de emoções, sentimentos e desejos que sempre estiveram com o herói e ele
ainda não sabia.
Uma estrutura de personalidade estável só pode ser encontrada num ser humano capaz de
integrar "a sombra", a dualidade.
O conceito de sombra se refere ao que está inconsciente dentro de cada um de nós. A mitologia
costuma utilizar a imagem do dragão como inimigo tradicional do herói. Obviamente, o tipo de
herói, assim como o de dragão, varia de cultura para cultura e segundo a faixa etária do nosso
herói. O dragão pode estar representado nos poderes destruidores da natureza capazes de
produzir catástrofes, nas provas escolares, nas doenças, no envelhecimento, na criação dos filhos
ou em qualquer outro elemento que implique perigo ou limitação para a vida do herói.
Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos contemporâneos do mito do herói, disse:
"Os incidentes fantásticos e irreais representam triunfos de natureza psicológica, e não
física".
Todas as culturas são cheias de histórias de heróis que foram, venceram e voltaram, e tais
histórias formam parte da tradição oral de muitos povos e que cada geração passou para a
seguinte.
Joseph Campbell estabeleceu um paralelo entre todas as culturas e os mitos dos seus respectivos
heróis: para concluir com sucesso a jornada, ele precisa cumprir três estágios básicos: "separação,
iniciação e retorno".
A separação, a partida, pode ser física ou psicológica: o herói precisará entrar em outros mundos,
reais ou simbólicos, regidos por outras leis, onde não terá aliados ou amigos e onde deverá
enfrentar os desafios. Essa fase está associada, na maioria dos casos, ao corte simbólico do
cordão umbilical, ao fim da dependência psicológica da figura dos pais. É uma fase que precisa de
ousadia, de capacidade de se abrir ao novo.
Como se verá em capítulo posterior, se esse processo não for cumprido na sua plenitude, se a
separação não for bem resolvida, o ser humano heróico encontrará dificuldades nas próximas
etapas da sua j ornada.
Ao enfrentar os desafios, acontece a iniciação. Esse é um estágio especial de provas e vitórias. É
um tempo na vida do herói em que ele está "morto" para o mundo dos seus. Esse estágio acontece
em territórios desconhecidos, em cidadelas inimigas, em florestas ou em regiões isoladas. O perigo
dessa etapa reside na possibilidade de o herói se perder em labirintos. Aqui ele encara o dragão,
corre os maiores riscos, questiona valores e normas sociais dominantes, desce aos infernos e
transpõe seus limites. O sucesso desse estágio se traduz na aquisição da capacidade de tomar as
rédeas da sua própria vida.
No retorno, terceira e última etapa do processo, acontece a reintegração ao seu meio, à sua
sociedade, da qual se afastou no inicio da jornada. É o momento das recompensas ligadas ao
sucesso por ter conseguido vencer o estágio anterior, que denominamos "iniciação". Às vezes,
essa etapa da jornada é a mais difícil. Após seu longo afastamento, onde vivenciou processos
dolorosos de transformação, ele poderá encontrar dificuldades para se reintegrar à situação inicial.
Mas esse é também o momento da possibilidade de um final feliz, da integração da sombra.
A revolução industrial trouxe mudanças de hábitos e costumes que transformaram
profundamente a vida dos indivíduos: ideais democráticos, autodeterminação, maquinarias que
facilitaram o trabalho, métodos científicos de pesquisa. O que, por um lado, se apresenta como
melhora das condições de vida do homem na Terra, por outro, fez entrar em colapso a linguagem
simbólica dos mitos que sustentaram durante milênios a psique humana — o conjunto dos
processos psicológicos de nossa raça.
No século passado, Nietzsche já avisava nas palavras do seu personagem Zaratustra: "Mortos
estão todos os deuses".
O herói moderno, hoje, não sabe para onde caminha. Campbell acrescenta:
"Não se sabe o que move as pessoas. Todas as linhas de comunicação entre as
zonas consciente e inconsciente da psique humana foram cortadas e fomos divididos
em dois. No consultório do psicanalista moderno, os estágios da aventura do herói
ainda aparecem nos sonhos e nas alucinações dos pacientes. Camada após camada
de falta de auto-conhecimento é penetrada, exercendo o analista o papel de auxiliar
de sacerdote que conduz a iniciação. E, sempre, passados os primeiros percalços da
jornada, a aventura se desenvolve, seguindo uma trilha de trevas, horror, desgosto e
temores fantasmagóricos".

O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Hoje, com a massificação de nossa cultura, a figura tradicional do contador de histórias,


responsável pela perpetuação dos mitos e lendas, foi substituída pela telinha da televisão, e os
heróis tornaram-se elementos descartáveis e condicionados ao que a sociedade deseja que a
população consuma.
Pelo que me consta, o grande elo da transmissão oral, o contador de histórias, é uma espécie em
extinção. A mídia acabou com ele.
O contador esteve presente em todas as culturas, como homem ou mulher, geralmente alguém
mais velho, como uma avó ou anciã, que através da prática cotidiana de contar histórias, nas quais
se misturava a realidade com a fantasia, iam transmitindo conceitos, valores, crenças, opiniões de
forma amena e agradável aos seus ouvintes, em geral crianças e jovens.
Nessas histórias, a consciência coletiva encontrava-se codificada, e as pessoas, ao ouvi-las,
formavam sua consciência individual.
O processo funcionava de forma tão eficiente e espontânea que quando algum ponto não tinha
ficado muito claro a criança ou o jovem pedia: "Conta aquela da moça que ...", e então, na
repetição da história, a consciência do ouvinte ia se integrando, conhecendo o padrão de
experiência que a vida iria lhe oferecer, e assim progressivamente se estruturando.
Esse personagem —o contador de histórias —teve participação ativa em todas as culturas
conhecidas. Em algumas, recebeu ajuda do teatro popular, mambembe, dos autos sacramentais,
onde os temas básicos eram sempre dramatizados.
Alguns temas são encontrados em todas as culturas, de formas diferentes: a mulher como
tentação, a virgem mãe, o ventre da baleia, o resgate com auxílio externo, a recusa do retomo ou o
rapto da donzela. Neste último, a idéia básica é sempre a de uma donzela que, por ingenuidade,
foi levada por algum malvado para um lugar de onde não poderá voltar, ou comeu alguma coisa
que a deixou desacordada, ou foi vítima de algum feitiço, obra de alguém invejoso, ou transgrediu
alguma norma do gênero "Não atravesse determinado lugar em determinadas circunstâncias",
"Não coma determinada fruta", e dai por diante.
Na solução do caso, para cumprir a tarefa de trazer a donzela de volta, sã e salva, entravam em
jogo outros elementos do mito que muito serviam para definir o tipo de cultura. Nas formas de
predominância patriarcalista, geralmente o herói se fazia presente e aceitava a missão de resgatar
a donzela como uma obrigação para :
com seu povo. Em muitos casos, o sucesso de sua tarefa era coroado com o casamento,
e "viviam felizes para sempre".
Em outras culturas, com maior influência matriarcalista, como no caso dos gregos, quem
comandava o resgate da donzela era a própria mãe, e, no decorrer da história, os elementos
arquetípicos entravam em jogo, dependendo sempre da forma como o poder fosse exercido ou
disputado entre homens e mulheres.
Assim, durante os últimos milênios, as tradições contidas nos mitos foram transmitidas
oralmente, e cada povo formava indivíduos que cultuavam valores e tradições que lhes eram
próprios e, mesmo sem saber ler ou escrever, sabiam o que era certo ou errado e a forma de
proceder frente aos desafios da vida.
As correntes do pensamento esotérico e até a antropologia, quando estudam a evolução da
humanidade como um todo, concordam em afirmar que até o início do século XX a proposta das
diferentes culturas era o desenvolvimento das chamadas "almas-grupo", dentro das quais os
indivíduos encontrariam a forma de realizar suas jornadas. O desenvolvimento individual não era
levado em consideração, e as sociedades ofereciam pouco espaço para os indivíduos.
A partir das grandes guerras ocorridas neste século, das migrações de povos, da miscigenação
das raças com sua conseqüente perda das tradições, do desenvolvimento da mídia com a tevê
interligando o planeta e da dissolução dos grandes clãs familiares, o contador de histórias
desaparece. A ânsia das pessoas de assistir às novelas na hora do jantar ou antes de dormir ê a
conseqüência de um velho hábito — o de escutar histórias — que ainda faz parte das
necessidades do nosso inconsciente.
Outro grande formador de mitos e heróis, neste século, foi o cinema. Tarzã, Bambi, Scarlet 0'Hara,
Superman e tantos outros personagens representam o poder da indústria do celulóide na formação
da consciência coletiva da humanidade no século XX.
A grande diferença entre os mitos seculares, transmitidos oralmente, e os nossos contemporâneos,
veiculados pelo cinema ou pela televisão, reside na sua durabilidade. Enquanto os primeiros
duraram séculos ou ate milênios, os atuais têm vida efêmera, são praticamente descartáveis. A
maior parte dos personagens oriundos de novelas ou filmes pouco consegue sobreviver às
transmissões das novelas ou à projeção dos seus l filmes.
Essa condição efêmera é um dos grandes abalos à nossa estrutura psicológica. Em conseqüência
disso, os valores passam a ser descartáveis também. Quando a novela da moda tem uma
personagem mau- caráter, segundo já foi veiculado por institutos de ciências sociais de diversas
universidades, há um significativo aumento do "mau-caratismo" nos relacionamentos entre as
pessoas. As novelas desenvolveram o poder de criar hábitos de comportamento e de consumo de
enorme influência.

0S SOLITÁRIOS

A partir de todo esse processo de transformação das sociedades, com a dissolução das grandes
estruturas familiares, com a aceitação do divórcio como prática freqüente, com a pílula e a com
revolução sexual, no mundo inteiro começa a aparecer a cultura dos singles, das pessoas que
moram sozinhas, com independência financeira e poucos vínculos afetivos duradouros.
Esta nova forma de viver é incentivada também pêlos padrões de consumo, que produzem tudo
para solitários: apartamentos de um quarto, freezers com capacidade de conter a alimentação para
uma pessoa, secretária eletrônica e todo tipo de prestação de ï serviços que antes eram
divididos entre os membros da família.
Assim, deslumbrados pela aparente "liberdade", milhões de pessoas no mundo inteiro enfrentam a
realidade de ser singies — e a solidão. Apesar do aparente padrão de realização existencial que
! essa forma de vida sugere, não demora em aparecer o vazio.
Quanto mais se tenta preenchê-lo, maior fica o buraco. As formas tradicionais de
preencher essa solidão são diversas. Enumerarei as mais freqüentes:
a) Consumir tudo o que vier pela frente, em especial aquilo que vem pronto para
indivíduos.
b) Sair, se divertir, namorar, "ficar", flertar, transar.
c) Ter um hobby ou praticar algum esporte.
d) Militar na política, abraçar alguma causa, adquirir uma ideologia.
e) Usar drogas ou beber.
Como estes itens se revelam insuficientes para preencher o tal vazio, muitas pessoas passam a
procurar "valores mais transcendentes", e é aí que aparece a busca da religião — a "religação"
com o sagrado — que promete ser, além de transcendente, duradoura. E são esses milhões de
pessoas no mundo inteiro que se tornam alvo das seitas.
No momento, a maioria das religiões tradicionais passa por uma fase de reajustes. As condições
de vida mudaram tanto que as religiões tiveram que mudar, em conseqüência disso. Aquelas que
só estavam defasadas da realidade uns duzentos anos tiveram que correr, e muito, para ficar só
cem anos para trás. Mesmo assim, seu discurso enfraqueceu.
Desta forma, surgem as seitas, organizações que, por seu tamanho e extensão, criam a
expectativa de que, se integrando a elas, o indivíduo, até agora isolado, insulado, passará a fazer
parte de um grande oceano de "irmãos de fé".
Um dos sintomas desse processo é o que acontece com as salas de cinema no mundo todo:
aqueles cinemas tradicionais, que foram construídos para serem freqüentados pelas famílias — e
durante algumas décadas embalaram várias gerações com histórias de heróis, mocinho e bandido,
aventuras, suspense e outros —, hoje, pelo hábito de assistir ao vídeo em casa, mudaram de
destino.
Foram comprados por organizações religiosas e transformados em pontos de pregação.
Assim, os mesmos locais onde a fantasia do celulóide permitia às pessoas encontros com
os heróis, com o mundo encantado, hoje são utilizados como "postos de lavagem cerebral".
A seguir, uma enumeração de características de personalidade que tornam as pessoas possíveis
alvos das seitas, elaborada pela Fundación SPES, organização não-governamental com sede na
Argentina, que presta atendimento terapêutico a pessoas que foram vítimas de seitas e aos seus
familiares:
1. Dificuldades na comunicação.
2. Alto nível de angústia.
3. Insatisfação geral com a vida.
4. Pensamento ou consciência do tipo mágico.
5. Pouca capacidade de aceitar a frustração.
6. Descontentamento com as normas sociais.
7. Medo de enfrentar uma realidade externa considerada caótica.
8. Ausência de propósito interno.
9. Necessidade de segurança, progresso, auto-valorização e poder.
10. Suscetibilidade aos estados de transe.
11. Encontrar-se em estado de crise, insatisfação e/ou instabilidade com os estudos, com a
profissão, com a vida social, afetiva etc.
12. Inquietações intelectuais e/ou religiosas.
13. Curiosidade ou interesse pelo desconhecido, esotérico e misterioso.
14. Imaturidade, identidade não consolidada.
15. Personalidade dependente.
16. Conflito materno, paterno, ou matrimonial permanente.
17. Comunicação familiar pobre.
18. Síndrome da ausência do pai.
19. Carência de guia, direção, controle e limites paternos.
20. Carência de atenção e afetos positivos incondicionais.
É interessante destacar que os itens citados podem propiciar tanto o uso de drogas quanto a
participação em seitas. Dentro das drogas, incluímos o álcool também. As duas atitudes, o uso de
drogas e a integração a grupos sectários, preenchem o mesmo vazio:
a falta de uma jornada. Se o primeiro passo da viagem do herói é a separação, neste caso ele é
dado tanto na busca da droga quanto de um grupo religioso. Ambos representam a entrada num
território desconhecido, numa galáxia diferente, que terá de ser atravessada ou um labirinto onde
nosso herói poderá se perder. Ambos oferecem algumas "garantias", que não demoram em
mostrar sua condição efêmera.
A aparente diferença só reside na questão legal, de resto a semelhança é grande. Na essência, as
drogas e os mecanismos de fanatismo representam o engano do herói, a trilha errada. O principal
resultado desse erro é a perda da capacidade de pensar e/ou agir por si próprio. Ou seja, o tempo
que o nosso herói que errou de caminho permanece usando drogas, ou dentro de uma seita, é
aquele em que ele está morto para o mundo, do qual se separou ao iniciar sua jornada. É o tempo
em que ele está ausente.
O passo que completa a jornada é o retomo. O herói tem que retornar. O importante é que ele
retome vencedor, o que neste caso significa recuperar a capacidade de ser ele mesmo, de ter
autonomia de pensamento. Como se verá mais adiante, os casos de suicídio ocorridos na seita do
santo daime podem ser compreendidos como o fracasso do herói na sua jornada. O apelo dos
daimistas, incitando a juventude a abandonar o "mundo de ilusão" e ir morar nas comunidades que
a seita mantém na floresta amazônica, representa uma das ciladas que o herói deve vencer. Na
verdade, essa retirada arrogante e presunçosa para "a torre de marfim" proposta na doutrina do
santo daime não é outra coisa que a incapacidade de lidar com os sofrimentos, com os atritos e
com os conflitos que a vida nos apresenta. Por trás do discurso da "doutrina salvadora" se esconde
a sombra que os daimistas não conseguem integrar. Muitos, como Jambo1, tiveram que enfrentar
dragões acima da sua capacidade e não conseguiram completar a terceira etapa da jornada — o
retorno —, transformando-se em mártires.
O crescente uso de drogas, assim como o desenvolvimento de inúmeras seitas no mundo inteiro,
nos faz refletir sobre a falta de espaço na sociedade contemporânea para que os indivíduos
possam realizar sua jornada heróica.
l Ver p. 211.

LAVAGEM CEREBRAL

"Sem a compreensão do desejo profundo que têm os seres humanos de se autotranscenderem,


da relutância natural que experimentam em tomar o caminho duro e difícil da ascensão espiritual, e
da conseqüente procura de uma falsa libertação, não poderemos entender a época em que
vivemos ou mesmo na história em geral, a vida como foi vivida no passado e como é em nossos
dias. O sectarismo é uma paixão complexa que permite àqueles que a ele se entregam usufruir o
máximo de dois mundos. Porque agem em interesse do grupo, que é por definição bom e até
mesmo sagrado, eles podem admirar a si mesmos e detestar seus semelhantes, podem buscar
poder e riqueza, podem gozar os prazeres da agressão e crueldade, não apenas sem sentimento
de culpa, mas como um indiscutível exemplo de virtude. A fidelidade ao grupo transforma esses
vícios agradáveis em atos de heroísmo. Os sectários consideram-se não como pecadores ou
criminosos, mas como altruístas ou idealistas. O problema é que seu idealismo é apenas egoísmo
sob certos aspectos, e que o ideal pelo qual estão dispostos a sacrificar suas vidas, nada mais é
que a racionalização dos interesses do grupo e das paixões partidárias. Os caminhos pêlos quais,
e através dos quais, homens e mulheres têm tentado escapar da torturante consciência de serem
apenas eles mesmos, podem ser chamados de sucedâneos das Graças. Por mais elevadas e
confortadoras que sejam as experiências psíquicas, não são a revelação, nem mesmo o caminho
para atingi-la."
Aldous Hiücley

Todas as culturas criaram através das religiões um emaranhado de normas e princípios éticos que
têm dois objetivos básicos: um, administrar o comportamento humano (monogamia, conceito de
propriedade privada etc.); e outro, submeter os indivíduos com o intuito de enquadrá-los para
satisfazer as necessidades do grupo (produzir e consumir). Estes últimos costumam adquirir um
caráter hipócrita e despertar no indivíduo com tendências xamânicas o processo de rebeldia e
contestação.
Para a grande maioria dos seres humanos, a vivência em grupo é o tema fundamental no seu
trabalho de desenvolvimento pessoal. Assim, durante séculos a estrutura familiar foi o principal
campo de trabalho para essa necessidade de interagir com o grupo. As famílias como grandes
clãs, os grupos de famílias, as aldeias e os povoados proporcionavam a gama de situações e
elementos onde o indivíduo processava sua condição de ente social. E a religião, seja qual for,
cumpria um papel aglutinador. Enquanto doutrinava, formulava a ética, impunha as noções
básicas do bem e do mal que regulam a sociedade humana.
Neste século assistimos às maiores quedas da história: religiões tradicionais perderam sua força e
cada vez são menos ouvidas, a família — os grandes clãs — foram se dissolvendo, as aldeias e
os pequenos povoados foram esvaziando-se como conseqüência do êxodo em direção às grandes
cidades. Tudo isso produziu enormes contingentes de indivíduos solitários e carentes daquele
sentimento de "pertencer a", "ser parte de", "na minha família se faz assim"...
Na sociedade humana, o vazio não existe. Quando um elemento deixa de existir é substituído por
outro: o vazio deixado pela família e pela sociedade é preenchido em muitos casos por esses
grupos que chamamos de seitas.
Veremos agora como se chega a uma seita e como ela se apresenta:
Qualquer pessoa que possua algumas das características mencionadas no capítulo anterior, A
Jornada do Herói, sai buscando consciente ou inconscientemente como preencher suas carências
ou como elaborar seus conflitos.
Tais carências e conflitos somados constituem um enorme peso para a personalidade não muito
bem estruturada. Na atual conjuntura as possibilidades de encontrar uma solução criativa para o
eu fragmentado são poucas. Assim a grande maioria vive num estado de estupor semicataléptico e
vai compulsoriamente se deixando levar pela grande correnteza que hoje representa a luta pela
sobrevivência, que cada vez se mostra menos compensatória.
Neste ponto da história, qualquer elemento externo que apareça exercendo uma oratória —que
para ser brilhante só precisa exagerar na simplificação — será ouvido com muita atenção. O carro-
chefe do discurso de proselitismo sempre é algum questionamento aos valores que estão sendo
difíceis de sustentar: o emprego pouco compensador, o estudo, a vida familiar sem gratificação,
algum vício como o alcoolismo, alguma doença, uma relação findando etc.
"Nossos filhos vão seguindo os flautistas que tocam uma doce melodia cuja letra diz:
'Vem conosco. Abandona este universo chato de emprego, escola, pressões
familiares e tantos outros problemas. Nós pensaremos por você, cuidaremos de
você, te daremos um lugar livre de ambições. Aqui está o amor. Vem, vem, vem...'"
diz Lee Hulquist em "Seguiram o Flautista".
Assim esse discurso ou proposta, num momento de tensão interna considerável, soa como o canto
das sereias, como as flautas encantadas do país de Hamelin, promete ser algo assim como um
ritual de passagem que abre uma porta para outra dimensão, sem as chatices de emprego, escola,
família...
Esse discurso tanto pode ser político, do tipo Sendero Luminoso, IRA, Baader Meinhoff; religioso,
do gênero Hare Krishna, Testemunhas de Jeová, Meninos de Deus; "esotérico-libertador", no
estilo Rajneesh, Santo Daime e por ultimo, um formato muito em voga ultimamente, de
comunicação com extraterrestes ou ainda intraterrestres.
Atualmente, a proliferação dessas organizações alastra-se por todo o planeta. Em muitos países
existem sistemas terapêuticos específicos para reestruturar as personalidades que tentam se
libertar dessa experiência ou retornar dessa viagem, assim como organismos oficiais que
procuram manter as seitas sob determinado controle.
O perigo de não fiscalizar tais grupos foi demonstrado no caso da Guiana Francesa, quando o
pastor Jim Jones conduziu ao suicídio coletivo quase mil pessoas. É raro o ano em que não
acontece uma tragédia causada por alguma seita. Os Adoradores do Sol, nos EUA, provocaram
um suicídio coletivo com o incêndio da sede, em 1993. No ano seguinte, uma seita canadense
com filiais na Suíça também provocou uma tragédia. Em março de 1995 uma seita japonesa —
"Verdade Suprema" — chocou a opinião pública no atentado com gás venenoso, que causou
diversas mortes no metro de Tóquio.
A fórmula é sempre a mesma: uma estrutura piramidal em cujo vértice superior há um líder mais
ou menos misterioso e inacessível, que possui a dica certa sobre o fim do mundo. Em torno dele,
uma corte de acólitos seguidores que formam uma barreira intransponível.
No degrau logo abaixo, jovens, muitos jovens, que seguem à risca as práticas e as determinações
que vêm de "cima", acreditando que, se provarem "entrega" e "firmeza", talvez um dia poderão
estar mais próximos do topo dessa pirâmide humana.
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É sempre bom lembrar que, quando essas instituições chegam às manchetes dos jornais
internacionais, é devido a grandes tragédias. Porém, diariamente, no mundo todo, cada vez mais
pessoas perdem suas vidas anonimamente por causa desses surtos coletivos — e disso ninguém
tem notícia.
Para compreender o processo empregado pelas organizações e que aqui denominamos "lavagem
cerebral", vale a pena relatar uma lenda originária do sul dos Andes, conhecida, tanto na Argentina
como no Chile, com o nome araucano de "imbunche".
Esse personagem lendário, o imbunche, teria sido vítima de bruxas ou feiticeiros inescrupulosos,
ávidos de poder, que, com o objetivo de dominá-lo e escravizá-lo, lhe teriam quebrado os ossos,
partindo seu corpo em pedaços, recompondo-o posteriormente de forma propositalmente errada.
Assim, sua cabeça ficaria orientada para trás, os olhos, os ouvidos e a boca ficariam fechados, e,
desta forma, os captores conseguiriam quebrar a vontade da sua vítima.
A lenda expressa com profundidade o conceito de fragmentação do ser, a perda da capacidade de
comunicação, o bloqueio do livre-arbítrio e dos sentidos, que caracterizam as vítimas das seitas e a
falta de escrúpulos no que diz respeito aos meios e aos fins de seus líderes e dirigentes.
Tais líderes, na maioria das vezes, tomados de profunda megalomania, em geral assumem
posturas tensas, usam muito o dedo indicador, olham para os outros de cima para baixo e
apresentam discursos plenos de expressões como "não pode", "não deve", "sempre", "nunca", "de
jeito nenhum". Eles escondem, desta forma, um grande fracasso na sua jornada pessoal, no
confronto com a própria sombra. São seres profundamente recalcados.
Na biografia de muitos tiranos da antiguidade, de líderes religiosos, de assassinos famosos, de
terroristas ou de ditadores, encontramos alguns elementos em comum: em todos os casos, trata-se
de pessoas com inteligência e talento acima da média que passaram por humilhações, rejeições e
medos durante sua infância, ameaçando-os de forma quase constante.
Assim, por trás de uma aparência amigável, de um paternalismo benevolente, de alguém que
apresenta sinais de auto-realização, esconde-se uma personalidade calculista, violenta, cruel,
sádica, com disposição para tratar as pessoas como ele foi tratado na infância, ávido de vingança
e de poder.
Cari G. Jung, A. Miller e outros estudaram profundamente a personalidade de Adolf Hitier como
padrão desse fenómeno não somente para entender as motivações dos líderes, como também as
das pessoas por eles lideradas:
Embora talentoso quando criança, Hitier sofrera humilhações, espancamentos e privações. Ele
conseguiria angariar, mais tarde, o apoio das massas para inflingir aos judeus os mesmos
sofrimentos pêlos quais passara na infância, pois o povo alemão sentia-se como uma criança
maltratada e abandonada.
Para Lutz Muller, o líder e os liderados formam juntos figuras inter-rela-cionadas e com exigências
mútuas de uma tragédia inconsciente e monstruosa que as pessoas representam há séculos e que
ainda não aprenderam a compreender.
E os jovens que, pelas características próprias da adolescência ou da imaturidade, acreditam não
serem compreendidos e enfrentam grandes dificuldades para manter o diálogo com a família,
encontram nesses lideres alguém com condições de substituir a figura do pai, e desta forma a
tragédia continua em exercício.
Alguém já disse que as seitas conseguem depravar Deus, transformando-o no sucedâneo do
álcool e das drogas. Um grave erro cometido por autoridades, formadores de opinião e pessoas de
influência social é acreditar que as seitas são menos nocivas do que as drogas. Como já foi dito,
em muitos países esse erro está sendo desfeito. Existem fundações que tratam das vítimas das
seitas com uma metodologia terapêutica específica, semelhante à terapia dos doze passos dos
alcoólicos anônimos (AA).
Nos dois casos, na droga e no sectarismo, a pessoa vira um imbunche, as estruturas da
personalidade são dinamitadas.
O erro da sociedade em não dar a devida importância ao problema das seitas reside no fato de
que, na aparência, estas não agridem fisicamente como as drogas. Também na aparência, não há
tráfico e, como fachada, falam em Deus.
No caso do CEFLURIS, o grau de perigo é infinitamente maior, porque, para consumar a
lavagem cerebral, eles se utilizam de uma substância poderosa como poucas, a ayauhasca. Além
disso, o CEFLURIS tem no seu comando um ex-terrorista e recebe financiamentos e vultosas
doações de ONGs européias que, sem dúvida alguma, não sabem o que estão fazendo. Pensam
que estão ajudando os seringueiros como Chico Mendes a morar na floresta numa proposta de
desenvolvimento sustentável e desta forma tentam lavar as culpas inseridas no inconsciente
coletivo dos europeus pêlos abusos cometidos na Amazônia por seus antepassados.
Após o suicídio do jovem Jambo na comunidade da seita situada na floresta, no estado do
Amazonas, onde só se chega após três dias de viagem de canoa, o "comando" da instituição
baixou a seguinte determinação: só pode alugar canoa para fazer a viagem até o Céu do Mapiá
(nome da comunidade) quem tiver autorização de algum líder da seita. Essa atitude configura a
criação de um feudo em território brasileiro.
E a Constituição brasileira garante o direito de ir e vir a todos os cidadãos dentro do território
nacional.
Será, talvez, o próximo passo declarar a independência? Criar uma república alucinógena?
Para se entrar lá será preciso uma carteirinha de imbunche?
Quando o cérebro foi lavado, ou seja, quando a vontade individual foi anulada, quando se
perdeu a capacidade de pensar por si próprio, a pessoa passa a ser comandada como um robô. E,
nesse estado, ela aceita realizar qualquer ato que por si mesma condenaria. Assim, no mundo
inteiro, assassinatos cometidos por adeptos como os seguidores de Charles Mason, que
degolaram a atriz Sharon Tate e seus nove convidados, acontecem sem nenhum questionamento.
Não é preciso ir tão longe: freqüentemente aparecem nas manchetes de jornais brasileiros casos
de assassinatos de crianças em rituais satânicos, nos quais seus participantes acreditam estar
realizando uma atividade como qualquer outra, na maioria dos casos, em nome de Deus.
Foram-se a identidade, os conflitos pessoais, os laços familiares, os sentimentos e as emoções
individuais. A vida torna-se aparentemente mais simples. O eu interno desaparece, ou melhor,
está eclipsado, soterrado.
Algumas pessoas conseguem viver nesse estado de catalepsia pelo resto da vida. Outras, devido
a breves lampejos de lucidez, percebem que perderam a autonomia de pensamento. Na maior
parte dos casos, tais momentos são tão fugazes que em nada modificam o estado atingido, e
levam a pessoa a um processo de depressão que às vezes acaba num desfecho trágico.
Além do mais, cada seita possui sua metodologia para a manutenção do estado de imbunche em
que estão os seus adeptos. O mesmo acontece com as fugazes tentativas de recuperar a lucidez,
já mencionadas. Os sectários não hesitam em empregar o terror, em condenar os "dissidentes"
como traidores da causa, na maioria das vezes submetendo-os a sessões de tortura psicológica.

O XAMANISMO

O mundo "civilizado" considera o xamã como "curandeiro", "bruxo", "feiticeiro", ou simplesmente


um "desajustado". Estas palavras encontram-se em todos os dicionários, porém as definições não
conseguem exprimir seu profundo significado.

Uma tentativa de definição seria: Xamã é aquele homem ou mulher que entra em estado de
consciência alterada com o propósito de penetrar no mundo invisível, na realidade incomum, e
nesse universo busca encontrar o conhecimento e o poder para ajudar os seus semelhantes,
libertando e redimindo almas perdidas ou descobrindo as causas das doenças.
Sob diversos nomes encontramos xamãs em diversas culturas:
na Sibéria, na Lapônia (Finlândia) e até nas Américas.
O xamã, segundo a ótica "civilizada", é o diferente, o esquisito, o desajustado, aquele que não se
enquadra. Essa característica pode ser inata ou adquirida. Adquirida voluntariamente através de
algum tipo de estágio com um xamã, por escolha pessoal, ou devido a alguma doença, muitas
vezes grave, que o levou além das fronteiras da vida, quase até à morte, e da qual retornou como
herói vitorioso. A partir desse aprendizado, ele passa a ser um guia para outros doentes que
acompanha na batalha para vencer a doença.
O xamanismo é uma grande e rica jornada, uma espécie de aventura em que os dois heróis,
paciente e xamã, envolvem-se com o objetivo de vencer e retornar. Para ter êxito na empreitada, o
xamã não precisa somente de conhecimento dos mistérios contidos nas doenças, é necessário
também abnegação. Essa abnegação irá criar no doente um senso de obrigação, uma espécie de
compromisso de
lutar lado a lado para vencer o inimigo, que na maioria dos casos é a doença.
Pode não ser a doença do corpo físico — os xamãs são seres mediais, são o elo entre o mundo
visível e o invisível. E, neste último, encontram-se as causas de todos os sofrimentos dos seres
humanos. Assim, o xamã sabe que alguns distúrbios ou conflitos podem ter sua origem na inveja,
por exemplo, da qual seu paciente foi vitima, o que o tornou vulnerável e posteriormente doente.
Na maioria das culturas os xamãs são também os guardiões da tradição, assim como os canais de
manifestação da justiça pelo seu profundo conhecimento da ética. Nos contos infantis, os
personagens do velho sábio, do barqueiro, que conhecem as fórmulas para derrotar os medos, as
discórdias ou os demônios, podem ser interpretados como figuras xamânicas.
Josef Campbell afirma que a função do xamã consiste em ser o canal de comunicação com a
sabedoria tradicional:
"O xamã não carece de sofisticação no seu conhecimento do mundo, nem é inábil a
utilização dos princípios da comunicação por meio de analogias. As metáforas pelas
quais vive e trabalha foram objetos de longa meditação, pesquisas e de discussão ao
longo dos séculos — ou mesmo milênios. Além disso, serviram às sociedades inteiras
como principais bases do pensamento e da vida. Os padrões culturais foram
moldados a elas. Os jovens foram educados, e os anciãos se tornaram sábios, por
intermédio do estudo, da experiência e da compreensão de suas efetivas formas
iniciatórias. Pois essas técnicas, baseadas na utilização de metáforas, tocam e põem
em jogo as energias vitais de toda a psique humana. Elas servem de vinculo entre o
inconsciente e o campo da ação prática — e não de modo irracional, decorrente de
uma projeção neurótica, mas de maneira tal a permitir uma compreensão madura,
ponderada e prática do mundo dos fatos, necessária à repetição, que está sub-
metida a um inflexível controle do que se passa nos domínios do desejo e dos
medos".

O que varia de cultura para cultura são as características dos seus xamãs, como as dos seus
heróis, e os métodos 'por eles empregados. O que é constante em todos os casos é sua
abnegação e sua capacidade de seguir junto com o sofredor para que ele possa cumprir com êxito
sua jornada.
E a vitória se obtém, em outros planos da realidade, no que alguns cientistas denominam
"realidade incomum", a qual só pode ser atingida através da alteração da consciência.
Fisiologicamente os estados de percepção alterada acontecem quando uma parte do cérebro
denominada tálamo — responsável pelas informações — ativa uma glândula denominada hipófise.
Essa modificação da fisiologia cerebral pode acontecer de forma espontânea, como conseqüência
de algum abalo emocional intenso ou pela repetição ritmada e metódica de determinados sons,
palavras, mantras, danças, músicas; por rituais que envolvam exercícios de meditação e
concentração ou pela ingestão de substâncias psicoativas.
Independentemente da forma como foi atingida, a expansão da consciência nos leva para uma
viagem dentro de nós mesmos, para territórios que na maioria das vezes nos são desconhecidos.
E esses territórios são as áreas onde os xamãs encontram seus conhecimentos e para onde levam
as pessoas que os procuram em busca de curas, tanto espirituais como psíquicas ou físicas.
São freqüentes, em trabalhos xamânicos, propostas como "descobrir seu animal de poder" ou
"encontrar sua força animal". Hoje em dia, com a vida cada vez mais civilizada, fica muito difícil
lembrar de que também somos um corpo e que ele tem necessidades, desejos e prazeres. Para
poder ser uma pessoa plena, qualquer indivíduo deve ter consciência de sua totalidade instintiva
original. Assim a "meditação do animal de poder" estabelece a ligação com nossa força animal e
nos proporciona sabedoria, proteção e saúde.
Essa ligação deve ser originária dos tempos em que convivíamos, com os animais, nas selvas e
florestas, e eles significavam para nós, homens primitivos, fonte de perigos e de alimentos,
simultaneamente.
Na América do Sul muitas tradições xamânicas se perderam em decorrência da forma violenta
como fomos conquistados, tanto pêlos portugueses como pêlos espanhóis. Preservaram-se as
tradições que se mantiveram escondidas sob a proteção da floresta.
Em quase toda a bacia amazônica existem até hoje tais práticas nas quais, através da viagem a
outros planos da realidade, os seres humanos conseguem manter-se integrados e sadios.
As práticas xamânicas envolvem técnicas, exercícios e conhecimento das plantas de poder, que
não são de forma alguma imprescindíveis. Existem xamãs que obtêm curas, resolvem conflitos,
encontram objetos ou seres considerados desaparecidos só pelo emprego de sons —seja de
tambores ou chocalhos, cânticos e outros recursos através dos quais atingem o estado de
consciência expandida.
E entre os que usam as plantas de poder, há uma enorme variedade de formas de utilização.
Dependendo da situação, pode ser que somente o xamã utilize a planta, faça a viagem, encontre
nela a solução do caso e a entregue ao doente. Talvez ambos usem a planta, que pode ser
fumada, bebida ou esfregada na pele como unguento. Também existem os casos em que o doente
usa a planta e o xamã faz o trabalho de suporte cantando ou produzindo sons com instrumentos,
exercendo desta forma seu papel de mediador entre os dois mundos.
Na região amazônica os xamãs que usam plantas são chamados "vegetalistas", e uma das plantas
mais utilizadas é a ayauhasca.
No Brasil denomina-se ayauhasca o produto do cozimento de um cipó, o "jagube", (Banisteropsis
caapi), junto a uma folha conhecida pelo nome de rainha ou chacrona ÇPsychotria viriáis). O cipó
representa o princípio masculino e a folha, o feminino.
Já na Amazônia peruana o nome de ayauhasca é usado para o cipó. No seu cozimento cada
xamã utiliza diversas folhas, como a chacrona ou a datura.
Existem outras plantas, denominadas plantas professoras, que o xamã bebe durante seu processo
de aprendizado, geralmente em condições de dieta e isolamento, muito mais rigorosas que as
exigidas para os trabalhos com a ayauhasca. A idéia das plantas professoras é a seguinte: através
da dieta, o corpo do xamã, ou eventualmente do paciente, é preparado para receber o "gênio da
planta", que aos poucos vai se instalando na consciência e passando seu conhecimento durante
os sonhos. Esse processo de "sonhar" continua, às vezes, até meses após as plantas terem sido
ingeridas.
O xamã, ou vegetalista, deve passar por todos esses processos para atingir a condição de
curandeiro e ser capaz de curar. Essa condição de curandeiro não deve ser confundida com o
mesmo nome dado no Brasil às pessoas que fazem uso do curandeirismo, ou prática ilegal da
medicina.
As plantas professoras são sempre ingeridas em locais isolados, na floresta ou na selva, e o
trabalho com elas nunca dura menos de uma semana. Também existem regras de tempo e
frequência: entre uma e outra tomada, às vezes devem-se esperar vários meses.
O mesmo vale para a ayauhasca: existe um tempo que deve ser respeitado entre uma e outra
tomada, da mesma forma como a dieta que deve ser seguida à risca.
A dieta para a ayauhasca consiste na abstinência de álcool, sexo e carne, dois dias antes e dois
dias após a ingestão. Já para as plantas professoras a dieta é mais rigorosa, dura até semanas,
quando se faz abstinência de sal, açúcar, carne de porco e sexo. Na tradição vegetalista, as
mulheres menstruadas não podem ingerir a ayauhasca. Todos esses cuidados — o afastamento
para lugares isolados, assim como a dieta — têm por objetivo afastar as interferências negativas
que impedem o mergulho, tanto do xamã como do doente, .na realidade incomum ou invisível, e
desta forma contribuir para o sucesso da experiência. Esse afastamento equivale ao segundo
estágio da jornada do herói, a separação, é o tempo em que ele morre para o mundo e no qual
recebe sua iniciação.
O mestre Irineu —fundador da primeira seita daimista, que deu origem a todas as outras que hoje
estão espalhadas pelo Brasil — assim como o mestre Gabriel — fundador da União do Vegetal —
conheceram a ayauhasca através de xamãs da Amazônia brasileira. Posteriormente cada um deles
elaborou uma linha de trabalhos ritualísticos incorporando à tradição indígena elementos católicos
e espíritas.
Foram contemporâneos, e ao que me consta, igualmente honestos e autênticos nas suas
propostas e objetivos. Ambos podem ser definidos como xamãs ou heróis, pela sua abnegação,
suas propostas redentoras e pelo exemplo de integridade que nos deixaram.
Eles devem ter percebido o vazio espiritual que as religiões tradicionais e oficiais, na região norte
do Brasil, não preenchem, assim como a necessidade que o ser humano tem de buscar sua
autotranscendência.
Desta forma, num processo xamânico, cada um à sua maneira, foram canais de resgate tanto da
tradição vegetalista como do cristianismo joanino — fundado por São João Batista e São João
Evangelista.
Filosoficamente o cristianismo estaria dividido em duas grandes vertentes: a petrina e a joanina.
A primeira, um caminho aberto por São Pedro, poderia ser chamada de vertente "esotérica". Sua
base reside na criação da igreja e, a partir daí, a constituição de estruturas de poder que lhe
permitiram realizar a evangelização massiva, manter hierarquias eclesiásticas e o óbvio
comprometimento com o poder político e econômico.
A segunda — joanina — segue a trilha de São João Batista e do Evangelista, sendo um caminho
sem igrejas, sem hierarquias eclesiásticas, de desenvolvimento interior, de estudo e prática da
doutrina, transmitida sem dogmas, longe do poder político e econômico. Esse cristianismo, que se
manteve ofuscado pelo outro durante os últimos dois mil anos, vem emergindo por diversos canais,
em diversos lugares do mundo, e é considerado a vertente "esotérica" da doutrina cristã.
A essência do conhecimento contido nas pregações das "chamadas" da União do Vegetal é a
mesma que a dos hinos do mestre Irineu e a dos manuscritos do Mar Morto, descobertos quase na
mesma época em que esses dois mestres recebiam do astral suas doutrinas, e são exemplos
plenos do cristianismo joanino.
Poderíamos definir as duas propostas, a do mestre Gabriel e a do mestre Irineu, como formas de
transformar o xamanismo individual em coletivo, através do resgate da tradição cristã.

VEGETALISMO
Xamanismo que Emprega Plantas de Poder
Como já foi dito no capítulo sobre xamanismo, o xamã é aquela pessoa, dentro de um grupo, que
se predispõe a ser o mediador entre o mundo visível e o invisível, um canal de manifestação da
justiça e das energias curadoras. Essas atividades só podem ser realizadas em estado de
consciência alterada. Tal alteração pode ser atingida através das diversas formas mencionadas no
mesmo capítulo.
Acredito que nos lugares onde era difícil encontrar plantas com esses poderes, ou onde o clima
não é favorável ao seu plantio, os métodos empregados eram retiros, jejuns, exercícios ritualísticos
e outros.
Os povos oriundos de regiões desérticas, como os primitivos habitantes do México, da Bolívia, do
norte da Argentina e do Equador, utilizaram os cactos, como o peyote, a huaichuma, todos
parecidos entre si, com o mesmo princípio ativo: a mescalina. Na Lapônia e na Finlândia a tradição
xamânica utilizou diversos tipos de cogumelos, com efeitos semelhantes aos dos cactos.
Já na bacia amazônica, encontramos uma variedade infinita de plantas e cogumelos com poderes
diversos. A atitude de procurar soluções para os problemas nas plantas não é exclusividade do ser
humano. Os animais sabem reconhecer as plantas com propriedades eméticas, purgativas, e
alguns macacos reconhecem folhas ou raízes que possuem efeitos alucinógenos e as consomem
sempre que possível. Sabem também reconhecer aquelas que são venenosas.
Em todas as culturas coube ao xamã essa função. Quando se diz que ele invoca seu animal de
poder, ele está ativando na sua consciência o mesmo conhecimento que os animais utilizam para
reconhecer as propriedades das plantas.
Assim, na bacia amazônica, o xamã é chamado de vegetalista, e a beberagem por ele preparada,
na maioria dos casos, independentemente das plantas que a bebida contenha, recebe o nome de
"vegetal" ou "purga".
Existem diversos tipos de vegetal: aquele que serve para curar doenças, que será bebido pelo
paciente; aquele que o xamã deverá beber, para saber o que está acontecendo com seu cliente; o
que serve para desfazer feitiços, e uma variedade infinita, assim como são infinitas as razões e
motivos pêlos quais os seres humanos sofrem e clamam por ajuda.
O vegetal mais utilizado na Amazônia é a ayahuasca, também conhecida como yagé, caapi, mariri,
produto obtido do cozimento do cipó jagube (Banisteropsis caapi). Como já foi dito, na maioria das
vezes a outra planta é a Psycotria viriais, cujo nome popular é chacrona ou rainha.
O antropólogo Edward McRae listou os usos da ayauhasca:
a) Rituais mágicos ou religiosos, para receber orientação divina e se comunicar com
os espíritos que animam as plantas e para receber um espírito protetor,
b) Adivinhação, para saber se estão vindo estranhos, descobrir o paradeiro de
inimigos e quais são seus planos. E para saber se um cônjuge foi infiel ou prever o
futuro com clareza.
c) Feitiçaria, causando doenças por meios psíquicos ou conseguindo prevenção contra
as más intenções de terceiros.
d) Determinar a causa de uma moléstia ou curá-la.
e) Produzir estados prazerosos ou afrodisíacos, reforçar a atividade sexual e atingir
o êxtase ou um estado de intoxicação que facilite a interação social entre os
homens.

Já o antropólogo Michael Taussig, no livro Xamanismo, Colonialismo e Homem Selvagem,


transcreve a seguinte lista, feita por um aprendiz de xamã, solicitando ao seu mestre os
ensinamentos que precisava adquirir:
- Fazer aparecer aquilo que foi perdido.
- Curar um sítio, local ou lar que padece de malefício.
- Impedir um roubo ou pegar o ladrão no ato de roubar.
- Curar doença, se puder ser curada. Caso contrário, como se pode saber quando uma pessoa
tem um animal dentro dela e se conseguirá ou não vomitar esse animal.
- Curar a feitiçaria na garganta quando nos sentimos mal.
- Fazer que um mal vizinho vá embora, vendendo suas terras para a gente.
- Fazer com que uma pessoa que mora num lugar distante venha ou apareça.
- Curar úlceras das pernas.
- Fazer com que alguém pague aquilo que nos deve. Que segredo pode ser usado para se ter
certeza de que pagará.
- Qual segredo deve ser usado quando um juiz ou um delegado nos ameaça de prisão.
- Segredo para que o gado fique nos currais ou no campo.
- Segredo para que o gado não fique parado no mesmo lugar.
- Segredo para tomar o gado manso.
- Segredo para curar loucos e pessoas que sofrem de epilepsia.
- Segredo para ter sorte na caça, para quando uma espingarda não dispara ou a bala não
atinge o alvo.
- Como curar um cachorro para que ele fique bom.
- Segredo para ter gado em abundância e para que ninguém faça feitiçaria.
- Segredo para ter boa sorte no comércio.
- Segredo para preparar amuletos de amor.
- Segredo para aprender a caminhar em cima da água.
- Quando um homem e uma mulher não conseguem se casar, segredo para separar os dois.
- Quando uma pessoa se esquecer de você, que remédio se pode usar?
- Quando um sítio ou uma casa está com preparado de feitiçaria, como descobrir?
- Segredo para quando um inimigo ameaça nos matar ou fez feitiçaria contra nós.
- Para poder se livrar de todo mal.
- Segredo para quando uma mulher nos humilha, ou nos faz de palhaço, por meio de feitiçaria.
- Segredo para se tornar invisível.
- Remédio para que uma mulher não precise mais ter filhos.
- Segredo para curar varizes.
- Segredo para conhecer as plantas.
- Remédios para as doenças.
- Segredos para quando os braços e as pernas forem mordidos por bruxos que nos sugam.
- Qual é o verdadeiro segredo quando se usa o ferrão de arraia como arma?
Da lista, podem ser feitas várias deduções.
A primeira: o xamã atua praticamente em todas as áreas em que o ser humano encontra
dificuldades.
A segunda: o xamanismo, como filosofia, diverge num ponto fundamental da religião católica.
Esta última nega a existência do mal. A respeito disso, São Tomás de Aquino afirmou que o mal
não tem existência por si próprio. Ele só seria a ausência do bem. Neste século, o psiquiatra suíço
Cari G.Jung afirmou a existência do mal como algo concreto. Segundo ele, na vida de todos nós, o
mal é um padrão de experiência com o qual devemos lidar. Jung desenvolveu também o conceito
de sombra, o lado sombrio que existe em cada um de nós, e dependendo das características de
cada ser, ele (o mal) teria maior ou menor chance de se manifestar. Tal manifestação aconteceria
através da mencionada sombra.
De acordo com essa ótica, o xamã seria o elemento medial que nos permite ir ao encontro da
nossa sombra, seja para integrá-la ou para externá-la.
Para se ter uma melhor compreensão dos motivos que levaram o mencionado aprendiz de
feiticeiro a relacionar esses itens, deve-se lembrar que a maioria dos xamãs amazônicos, se não
todos, são mestiços de índio ou preto com descendente de espanhol ou português.
A conquista da América, assim como o tráfico de escravos provenientes da África, é sem
dúvida um dos capítulos mais tenebrosos da história da humanidade.
A cultura indígena pré-colombiana, com seus valores, crenças, hábitos, costumes e tradições
foi atropelada, dizimada pêlos diversos conquistadores.
Os primeiros a empregarem o terror para consumar tremenda barbárie foram portugueses e
espanhóis, submetendo os índios com intuito de transformá-los em mão-de-obra e sugando as
riquezas da terra em forma de ouro, prata e pedras preciosas. Quando foram generosos, deram
aos índios bolinhas de gude e espelhinhos em troca do ouro e das pedras preciosas.
Séculos depois, a segunda leva de devastadores foram as multinacionais, que, sob o disfarce do
desenvolvimento que viria junto com a exploração da borracha, mataram, estupraram e
submeteram, não somente os índios, como também a população mestiça, produto do cruzamento
de nativos com espanhóis, portugueses e negros. Sempre empregando o terror.
O enorme fascínio que a Amazônia desperta, pela característica de ser uma das maiores florestas
do planeta, capaz de ativar todas as formas arquetípicas de aventuras de heróis, como foi visto no
capítulo a Jornada do Herói, atraiu os mais diversos tipos de aventureiros. Outro grupo perigoso
são os "missionários". Representantes das mais exóticas formas de interpretação da Bíblia,
imbuídos de não menos exóticas noções de pecado (acreditam que os índios não podem continuar
vivendo nus), empregaram diversas formas de terror para satisfazer suas tendências psicopatas.
Vide o filme de Hector Babenco Brincando nos Campos do Senhor, onde a ayauhasca é
personagem principal.
Posterior e recentemente, acompanhamos as "queimadas" com o intuito de transformar a
floresta em pasto para criação de gado e a continuidade da vigência do terror. O assassinato de
Chico Mendes está aí como prova da impunidade dos seus assassinos e do desinteresse dos
poderes públicos em modificar essa situação.
E não é só: temos os atuais garimpes da Amazônia, que além de praticar o terror, como seus
antecessores, empregam "armas" que, até agora eram desconhecidas, como o mercúrio e a
disseminação de doenças sexualmente transmissíveis, entre elas a AIDS.
Quinhentos anos de terror instalaram-se no inconsciente dos habitantes das florestas e de seus
xamãs. No trabalho com as plantas o xamã cumpre o papel de canal de manifestação do
inconsciente grupai, para que essa energia sombria seja elaborada e integrada.
Assim, o antropólogo americano já citado, Michael Taussig, chega a uma interessante
conclusão. Segundo ele, o conquistador incorpora a seu próprio inconsciente uma culpa genérica
em relação ao terror por ele empregado e pelo dos seus antepassados. E como num vínculo
freudiano de perseguido-perseguidor, contrata os serviços dos xamãs, para realizar "trabalhos"
contra este ou aquele, como os da lista elaborada pelo aprendiz.
Fenômeno semelhante acontece no Brasil com os descendentes de donos de escravos negros,
que hoje consultam, em terreiros de umbanda e candomblé, os caboclos, os pretos velhos e os
orixás, tanto para aliviar seus sofrimentos, como para fazer trabalhos e conseguir vantagens.
Não é de estranhar a existência de maus vegetalistas, dispostos a realizar feitiços e utilizar
seus poderes segundo aja mencionada lista.
Mas, obviamente, nem todo vegetalista é mau. Muitos deles conseguem integrar o lado
sombrio e, após conhecerem o mal, empregam seus conhecimentos para livrar seus pacientes de
"feitiços" e "cochinadas" (sujeira, coisa feita por porcos).
Portanto, é dessa realidade amazônica, de desaculturação e contradições extremas, que
provém o santo daime. Na Amazônia, algumas instituições religiosas procuram utilizar a ayauhasca
com correção e comedimento. Mas há grupos e pessoas que fazem má utilização da bebida,
transformando o vegetal num instrumento para lavagem cerebral, fonte de lucro e poder.
Mesmo na Amazônia, onde a ayauhasca é utilizada há séculos, existem problemas causados
pelo seu uso incorreto.
As conseqüências de sua divulgação nas cidades do sul do país, assim como em outros países,
como está sendo feita, nos EUA, Europa e no Japão, poderão ser graves.
Por esta razão, muitas pessoas condenam sua exportação e defendem a liberação do santo daime
apenas na região norte do país, onde sempre foi bebido em condições psicológicas e culturais
adequadas para seu uso.
AS PLANTAS PROFESSORAS
No universo vegetalista existe o conceito de que cada planta possui um "gênio", algo assim
como a alma-grupo de cada espécie vegetal.
Quando alguém se dispõe a tornar-se um xamã, inicia um processo de aprendizado com as
plantas chamadas professoras ou doutoras.
As primeiras plantas a serem utilizadas têm efeitos purgantes e denominam-se genericamente
purgas. Esse estágio tem como objetivo limpar o corpo de velhas toxinas para torná-lo apto para
receber as professoras.
Esse aprendizado tem como exigência a dieta e o isolamento do neófito, o que em geral
acontece em cabanas localizadas na floresta.
A dieta consiste na abstinência de sexo, sal, açúcar, drogas e carne vermelha.
Após a purga, seguem-se as plantas de efeitos eméticos (que provocam vomito), que muitas vezes
são a própria ayauhasca misturada a alguma outra planta. Durante esse estágio, o aprendiz vomita
para se livrar de outro tipo de toxinas, na maioria espirituais.
Tudo isto pode demorar uma semana ou mais. Terminado o período de limpeza, chega a hora de
receber as plantas professoras. Essa parte do aprendizado varia segundo cada xamã: uns utilizam
a ayauhasca, outros a misturam com outras plantas. Certa vez presenciei um preparo que continha
mais de vinte espécies de plantas.
Em comum a todos, existe o conceito de que uma vez limpo o corpo das toxinas físicas e/ou
espirituais, o gênio da planta começa a se instalar aos poucos na consciência do aprendiz. O
interessante nesse sistema de ensino é que não é o xamã quem ensina — ele só funciona como
mediador entre o aluno e o gênio da planta. Este último vai se instalando aos poucos, ensinando
durante o sono. Dormindo, o futuro xamã vai se iniciando nos mistérios, encontrando as respostas,
recebendo o conhecimento.
Na experiência, esse processo acontece diversas vezes. Na primeira, a fase de isolamento dura de
oito a dez dias, e é só uma parte de um estágio que pode durar até seis meses. O aprendiz
convive com o xamã, que é chamado de mestre, curandeiro ou vovô, segundo a região, e aprende
os segredos das plantas, como achá-las na mata, quais podem ser misturadas ou não. Segundo
esses mestres, há plantas ciumentas, que não podem ser misturadas com outras, já que a mistura
poderia ocasionar loucura, acabar com os poderes de quem as ministra ou inclusive matar.
Durante esse período de seis meses, o aprendiz passa por um processo de teste. Ele é testado
pelo gênio das plantas, que, em muitos casos, tenta seduzi-lo para que ele se torne um feiticeiro,
um mau xamã. É o momento em que o neófito deve vencer a tentação.
Muitos deles caem nessa cilada, encantados com a possibilidade de aprender a produzir filtros de
amor, matar pessoas a distancia, talvez, movidos pêlos arquivos de seus inconscientes, onde
estão as marcas de todas as aberrações sofridas pêlos seus antepassados.
Terminado o período de seis meses, ele retorna a sua comunidade e pode começar a trabalhar.
Outra característica interessante está no fato de que essa colação de grau não é vitalícia.
Dependendo das circunstâncias que se apresentarão para o novo xamã, os desafios, sua própria
história pessoal, ele pode voltar para o isolamento, junto ao seu mestre, ou a outro, e reatar o
contato com o gênio da planta. Ou seja: alguém pode ser xamã ou mestre durante um período e
deixar de sê-lo, caso seus poderes se enfraqueçam e ele não esteja interessado em reativá-los.
No início deste livro, achei preciso relatar fatos da minha vida pessoal para conseguir explicar o
porquê da minha busca da expansão da consciência. Escrevi sobre a jornada do herói, lavagem
cerebral e vegetalismo, pois acho importante que o leitor compreenda esses assuntos antes de nos
aprofundarmos na temática das doutrinas daimistas. Nos próximos capítulos, falarei sobre mestres
e líderes do santo daime e sobre as diferentes instituições religiosas que fazem uso da ayauhasca.

MESTRE IRINEU

Divino Pai Eterno


Quem me deu este poder
De ensinar as criaturas
Conhecer e compreender.
(Hino 28/hinârio do mestre Irineu)

Das suas origens, pouco ou nada se conhece. Sabe-se que nasceu no Maranhão,
provavelmente no dia 15 de dezembro de 1892. Como bom sagitariano, teria partido numa
caminhada destinada a superar seus limites. O centauro, símbolo do signo de Sagitário, indica a
capacidade do ser humano de transpor obstáculos e limites.
Uma das limitações que o mestre teria superado sozinho foi o analfabetismo. Ao constatar, já
adulto, a importância de saber ler e escrever, aprendeu, usando as cartilhas, os fundamentos da
leitura e da escrita em poucas semanas.
Alguns dos seus biógrafos afirmam que ele teria chegado ao Acre com as forças do marechal
Rondon. Já outros contestam de forma veemente tal afirmação:
"Eu estava passeando Na praia do mar Escutei uma voz
Mandaram me buscar".
(Hino 84)
Já no Acre, perto da fronteira com o Peru, ele conheceu a ayauhasca através de um
vegetalista.
Na primeira vez que bebeu o vegetal ele viu a "rainha da floresta", uma entidade feminina que
lhe convidou a se apresentar num encontro na mata, ao qual ele deveria comparecer após uma
dieta. Somente poderia comer "macaxeira insossa", ou seja, sem sal. No encontro, que durou
vários dias, ela lhe revelou os fundamentos da doutrina do santo daime e lhe entregou a
incumbência de difundi-la:
"A Virgem Mãe me deu O lugar de professor Para ensinar as
criaturas Conhecer e ter amor".
(Hino 28)
O ritual e as fardas (indumentária utilizada nos rituais) foram recebidos (captados mediunicamente)
da mesma forma, assim como o nome "daime", originário da segunda pessoa do plural do
imperativo afirmativo do verbo dar, dai-me:
"Dai-me amor, dai-me amor Dai-me o pão do Criador Dai-me
amor, dai-me Livrai-me de todo mal".
(Hino 42)
A doutrina recebida pelo mestre consiste numa filosofia e numa prática de vida. O método pelo
qual essa filosofia é ensinada pode ser melhor entendido participando-se dos trabalhos.
Há dois tipos de trabalhos: os de "bailado" e os de "concentração". Em todos eles bebe-se a
ayauhasca, que a partir do mestre Irineu recebeu o nome de santo daime.
Nos bailados, durante o trabalho ritual, as pessoas organizam-se em fileiras, as mulheres
separadas dos homens, assim como as moças dos rapazes. No centro, em tomo de uma mesa,
com imagens de santos, cristais e outros objetos, os músicos executam as melodias, ao som das
quais são cantados os hinos.
Esses trabalhos começam por volta das seis horas da tarde e acabam no amanhecer do dia
seguinte.
O bailado assemelha-se ao que é praticado pêlos sacerdotes sufis há alguns séculos. A idéia
de passar a noite bailando, todos no mesmo passo, que varia de hino para hino, uns no compasso
de valsa, outros no de marcha, tem por objetivo levar o corpo à exaustão. Assim, superando a
limitação imposta pelo cansaço, é possível transpor os limites do ego. Para poder manter a
harmonia dentro do bailado e sob os efeitos do daime, acompanhando o canto e tocando o
maracá, é preciso concentrar ao máximo a atenção. Desta forma se realiza uma antiga exigência
comum a todas as linhas iniciáticas: a concentração. Enquanto o pensamento se concentra no hino
que está sendo cantado, a atenção, no canto e no bailado, é possível manter a harmonia com a
força, e então a consciência se expande. Se, pelo contrário, o participante deixa o pensamento
vagar à vontade, como acontece no dia-a-dia, perde-se o prumo, e tudo pode acontecer: vomito ou
somatizações de qualquer outra forma.
O ritual que o mestre nos deixou se parece muito com o exercício de andar no fio de uma navalha.
O hinário do cruzeiro, conjunto de cento e vinte nove hinos que o mestre Irineu recebeu ao
longo de sua vida, é uma das mais belas e originais versões da doutrina esotérica. Nele, os
ensinamentos essênios, o cristianismo primitivo, os manuscritos do Mar Morto parecem tomar vida
ao som de melodias simples e belas:
"Jesus Cristo veio ao mundo Replantar santas doutrinas Os
descrentes assassinaram E ainda hoje é quem ensina".
(Hino 59)
A doutrina espírita e o conceito da reencarnação também estão presentes nos hinos:
"A morte é muito simples Assim eu vou te dizer Eu comparo a
morte É igualmente ao nascer.
Depois que desencarna Firmeza no coração Se Deus te der
licença Volta em outra encarnação.
Na terra como no céu É o dizer de todo mundo Se não preparar
terreno Fica espirito vagabundo".
(Hino 74)
E também:
"A minha Mãe me trouxe Ela deseja me levar Todos nós temos a
certeza Deste mundo se ausentar.
Eu vou contente, Com esperança de voltar Nem que seja em
pensamento Tudo hei de me lembrar."
(Hino 111)
Outra das características interessantes desse hinário é sua flexibilidade: para aquelas pessoas
que têm na religiosidade uma atitude meramente devocional, ele é perfeito. O canto dos hinos, à
luz do daime, produz experiências devocionais que beiram o transe.
Para os estudiosos, os intelectuais, ele é um caminho de compreensão "não-linear", em
outras palavras, "quântico". Cada vez que se canta, se entende um pouco mais:
"No cruzeiro tem rosário Para quem quiser rezar Também tem
a santa luz Para quem quiser viajar"
(Hino 93)
Tive a oportunidade de conhecer contemporâneos do mestre. Uma coisa em comum a todos os
relatos: ele era uma pessoa que agia sempre de forma correia. Ninguém lhe atribui qualquer
atitude errada, injusta ou qualquer deslize:
"Estou na terra, estou na terra Estou na terra eu devo amar Para
ser um filho seu Fazer bem, não fazer mal".
(Hino 19) Ou ainda:
"Sou filho do meu Pai Eu devo ser atencioso Abraçar a todo
mundo E não querer ser orgulhoso".
(Hino 45)
A humildade, a simplicidade de sua personalidade, a falta de arrogância também aparecem nos
hinos:
"Eu sou filho da terra Vivo nas matas sombrias
Implorando ao Pai Eterno E a sempre Virgem Maria.
Aqui eu toco meu tambor E nas matas eu rufo caixa Todo mundo
vai atrás Procurando mas não acha"
(Hino 100)
Também:
"Todo dia eu canto e peço Para limpar meu coração Para seguir
neste caminho E deixar a ilusão".
(Hino 67) As fraquezas humanas não lhe eram desconhecidas:
"Eu ensino é com amor Com firmeza e lealdade Mas quando
vem falar comigo sempre trazem a falsidade".
(Hino 73)
No encontro com a rainha da floresta ele recebeu as instruções de estruturar o que veio a ser
chamado posteriormente de "a doutrina".
Nela, as pessoas que assumem o compromisso de professá-la se fardam e têm por obrigação
comparecer aos trabalhos oficiais. O calendário desses trabalhos também foi organizado pelo
mestre Irineu. Em geral, os rituais coincidem com as datas que comemoram o dia dos santos
católicos. Os trabalhos acontecem na véspera do dia santo, durante a noite, e findam no
amanhecer. Existem duas épocas do ano denominadas "festivais", nas quais acontece uma maior
freqüência de trabalhos. O festival de inverno começa em 12 de junho, véspera do dia de Santo
António, e acaba no dia 5 de julho. Durante esse período de pouco mais de vinte dias toma-se o
daime cinco ou seis vezes. Já o festival de verão começa no dia 7 de dezembro, véspera da festa
de Nossa Senhora da Conceição, e acaba no dia dos Santos Reis. Também durante esse período
realizam-se diversos trabalhos.
Fora os festivais e dias santos, toma-se daime em trabalhos de concentração, que são
realizados todo dia 15 e 30 de cada mês.
Os trabalhos de concentração são os que têm mais influência da tradição vegetalista. Vestindo
uma farda diferente da que se usa nos bailados, as pessoas ficam sentadas. De um lado da mesa,
as mulheres; do outro, os homens. Toma-se daime diversas vezes, e a maior parte do tempo os
participantes ficam em silêncio. Esse silêncio é interrompido por alguns hinos.
Há também os trabalhos de cura, que acontecem de acordo com a necessidade e
disponibilidade dos doentes e das pessoas com poderes curadores.
Desta forma, os fardados nessa religião ingerem a bebida numa freqüência muito maior que os
xamãs tradicionais fazem nas suas regiões de origem.
Pouco conheço sobre os efeitos dessa freqüência nas pessoas do Alto Santo, periferia da
cidade de Rio Branco, onde o mestre deixou sua igreja. Porém, conheço muito bem seus efeitos
nas pessoas das grandes cidades, cujas consciências foram treinadas pela educação, pela mídia
e por todo o aparelho social para não se expandirem.
A transferência da doutrina daimista para cidades como Rio de Janeiro e São Paulo trouxe
sofrimentos, desagregação e conseqüências que, pelo que me consta, o mestre Irineu condenaria.
Vi famílias se dissolverem, pessoas abandonando estudos, empregos, ficando absortas pela
saturação, na consciência de conteúdos psicológicos inconscientes trazidos pelo daime. E o que é
pior: achavam que estavam, desta forma, se iluminando. Acompanhei não somente o caso da
minha filha, como outros não menos trágicos, que acabaram em surtos psicóticos ou em suicídio.
Tomando-se a ayauhasca nas cidades, já acontece uma transgressão às restrições que os
vegetalistas preservam há milênios. Tive oportunidade de ouvir xamãs da Amazônia peruana
condenarem violentamente o fato de a pessoa, sob o efeito da ayauhasca, sentir o cheiro do
escapamento dos carros. Segundo esse xamã, a pessoa que, sob efeito da poderosa bebida,
sentir o cheiro de gasolina pode enlouquecer. Da mesma forma, a dieta e o jejum são exigências
que não são cumpridas pelo CEFLURIS.
As pessoas que praticam o culto do santo daime nas grandes cidades trabalham nos seus
empregos até poucas horas antes de começarem os trabalhos, aos quais obviamente chegam de
ônibus ou carro. Apôs o fim dos rituais, entram nos seus carros, às vezes param em restaurantes
no caminho para casa e, depois de algumas horas de descanso, quando não diretamente,
retomam aos seus locais de trabalho, onde continuam com suas atividades normais de "pessoas
civilizadas".
De fato, muitas dessas pessoas chegaram ao santo daime na mesma busca em que os habitantes
da Amazônia procuram os vegetalistas. Atrás de soluções para seus problemas, que podem ser de
saúde ou não, procurando respostas profundas para seus questionamentos íntimos, numa
tentativa sincera e bem-intencionada.
Muitas delas são os xamãs das suas próprias famílias, aquelas que, segundo Cari G. Jung, têm a
coragem de realizar, vivenciar e superar a doença do grupo familiar. O problema não reside na
ayauhasca, na doutrina, no ritual. É o contexto da situação urbana que traz o problema.
Na época em que o CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes) estudou a liberação do uso da
ayauhasca e sua difusão fora da Amazônia, houve vozes isoladas que alertaram sobre tais
perigos. '
Mas os interesses políticos e econômicos falaram mais alto.
A doutrina que o mestre Irineu desenvolveu com o objetivo de redenção transformou-se numa
atividade altamente lucrativa, como aconteceu com a pregação de Jesus Cristo e com o mau uso
que muitos fizeram dela.
Hoje, os dirigentes das seitas utilizam a trilha aberta pelo mestre para vender ayauhasca
misturada com anfetaminas, nas grandes cidades da Europa, e cobram por esses trabalhos
quinhentos marcos por pessoa, prometendo em troca a cura da AIDS, entre outros males, segundo
noticiou em outubro de 1994 a revista alemã Der Spiegel.
Onde o mestre Irineu estiver deverá ter o mesmo sentimento que Jesus ao observar o que se
faz com o cristianismo.
Mais uma vez, é preciso lembrar a advertência de Cari G. Jung: quem quiser encontrar Deus não
deve procurá-lo nas igrejas.
A questão é polemica e delicada porque no mundo inteiro algumas linhas terapêuticas e grupos
de pesquisa vêm fazendo avanços a partir da utilização de plantas alucinógenas no tratamento de
seus pacientes, que nesse processo conseguem trazer à tona conteúdos inconscientes, valiosos
para sua cura.
No entanto, o problema reside na elaboração do material inconsciente com que a pessoa se
depara no processo. Na maioria das vezes, aqueles que manifestam conteúdos inconscientes, em
conseqüência da experiência com o daime, não têm acompanhamento adequado de um xamã,
mestre ou psicólogo. A manifestação de elementos do inconsciente, por si só, é insuficiente para
sua elaboração. É preciso saber ler, decifrar, elaborar e integrar o que foi revelado. Se isso não
acontecer, o indivíduo pode sofrer graves lesões psicológicas.
Vale também citar que os conteúdos do inconsciente do atual homem civilizado são bem mais
complexos que os dos habitantes das florestas ou dos contemporâneos acreanos do mestre Irineu.

AS FARDAS
Uma das principais características da minha geração é a de reivindicar liberdade de expressão em
tudo: no comportamento, na forma de vestir, de pensar, de se relacionar, de viver.
Tudo o que é massifïcante, que enquadra, é rejeitado. A roupa, com todo o seu simbolismo, é
utilizada como código de informação sobre os valores do usuário.
Portanto, os mesmos conceitos para nós valem de forma inversa: toda e qualquer forma de
uniforme ou farda é sempre condenada, pois significa uma despersonalização.
A primeira pessoa que vi fardada no daime foi a madrinha Julia, em Mauá, minutos antes de
começar meu primeiro trabalho. Lembro que a idéia que me veio foi: "Jamais vestirei uma roupa
dessas". Dois anos mais tarde, vesti.
As fardas — indumentárias obrigatórias para os adeptos do santo daime — são duas: uma de festa
e a outra de trabalho. Esta última é muito semelhante à farda escolar das crianças no Brasil:
para as mulheres, saia de pregas de poliéster azul, blusa branca e tênis; para os homens, calça de
poliéster azul, camisa branca e gravata azul.
Já a farda de festa é mais complicada, em especial a feminina. As mulheres usam saia branca de
pregas , quase até o tornozelo, e por cima dela um saiote verde de vinte centímetros de
comprimento. A camisa é de poliéster branco, de mangas compridas, e por cima há complicados
arranjos de fitas. Na cabeça, uma coroa.
Nas fitas verdes que atravessam o peito, há uma estrela de seis pontas, que simboliza o
fardamento; do lado direito e do lado esquerdo, uma folha para as moças ou uma rosa para as
mulheres.
Já para os homens, a farda de festa consiste num terno branco, duas linhas verdes paralelas à
costura da calça e gravata preta.
Acredito que a idéia original do mestre Irineu de fazer com que as pessoas usassem farda tinha
o objetivo de evitar o constrangimento dos mais humildes. A roupa é universalmente utilizada como
forma de mostrar quanto se tem, ou de fazer acreditar que se tem.
Assim, no terreno da espiritualidade, seríamos todos irmãos, todos iguais, segundo o hino do
mestre:
"O sol que veio à terra para todos iluminar não tem bonito nem
feio ele ilumina todos iguais".
(Hino 64)
Também acredito que a farda, embora recebida do astral pelo mestre Irineu, seja condizente com a
roupa própria para o clima do Acre e com a época em que a doutrina começou.
Quando o daime saiu dos limites da Amazônia e veio para o sul do pais, em especial para Mauá,
surgiu no meu entender um dos primeiros sinais de fanatismo ou falta de senso em saber adaptar
elementos culturais. Uma comparação que me ocorria, naquele tempo, era a das roupas que as
mulheres inglesas vestiam na Índia —nos tempos em que a colonizaram —segundo a moda de
Londres, num clima tropical que em nada se assemelhava ao da Grã-Bretanha. O frio de Mauá e
de muitos lugares do sul é em muitos graus inferior ao do clima quente do Acre.
Achei que se deveria adaptar a farda, de acordo com a região, ou criar uma farda de inverno. A
rigidez característica do pensamento sectário não permitiu. O que acabou acontecendo era
exatamente aquilo que o mestre quis evitar: as pessoas passaram a ostentar casacos e agasalhos
de acordo com o volume da sua conta bancária.
E os humildes, por cima da farda, se enrolavam num cobertor para poder agüentar o frio das
madrugadas na montanha.
No início de 1995 estive em Rio Branco, no Alto Santo, local onde o mestre Irineu deixou sua
igreja, que fica a poucos minutos do centro da cidade, numa estrada barrenta.
Nos dias de trabalho oficial, a caminho do Alto Santo, quilômetros antes de se chegar lá, pela
estrada vi grupos enormes de pessoas fardadas, as mulheres ostentando suas coroas. Aquilo me
remeteu à mesma emoção dos cariocas das favelas do Rio de Janeiro, que são reis por um dia na
avenida, durante o carnaval. O mestre Irineu conseguiu uma simbiose interessante entre o sagrado
e a necessidade, considerada profana por tantos, que o ser humano tem de reinar sobre si mesmo.

SEBASTIÃO MOTA (Padrinho Sebastião)


Sebastião Mota foi discípulo do mestre Irineu, com quem tomou o santo daime pela primeira vez
para curar-se de uma grave doença. Uma vez curado, tornou-se membro do Alto Santo. Anos mais
tarde, após a morte do mestre, cindiu e formou uma nova doutrina, denominada CEFLURIS
(Centro Eclético da Luz Universal Raimundo Irineu Serra), já citado neste livro. É importante
observar que, desde a década 40/50, inúmeras doutrinas daimistas surgiram a partir do Alto Santo.
Embora existam diferenças entre elas, o ponto em comum é a beberagem da ayauhasca.
O primeiro contato que tive com o padrinho Sebastião foi através do seu hinário. As pessoas que
tinham estado no Acre falavam dele com admiração.
Sutilmente em seu primeiro livro sobre o daime — O Livro das Mirações — e escancaradamente
no seguinte, que viria a ser publicado nove anos mais tarde — O Guia da Floresta —, Alex Polari
se referia a ele mais ou menos como Castaneda a DonJuan. Devido à minha irreverência e à
alergia que tenho a toda e qualquer manifestação de culto à personalidade, procurei ficar alerta.
Quando comecei a tomar daime em Mauá, em 1984, não existiam hinários impressos. No ritual, é
da maior importância acompanhar o hino que está sendo cantado, não só no canto, como também
no pensamento. Assim, entrei na maratona de copiar hinários, de forma manuscrita, o que me
lembrava um pouco as aulas de moral que tive quando criança, na Argentina.
Já nos primeiros trabalhos dava para perceber uma grande diferença entre o hinário do padrinho
Sebastião e o hinário do mestre, que louvava o lado feminino da divindade, as forças da natureza
de forma singela e profunda. O do padrinho Sebastião realçava o tema do sofrimento de Cristo e o
aspecto pecador da humanidade. Também prometia punições:
"Sou eu, sou eu, sou eu
O mestre me afirmou
Olha o relho na minha mão
Onde está o chiqueirador".
(Hino 28/hinário de Sebastião Mota)
A diferença no conteúdo se refletia no astral dos trabalhos. Quando era cantado o hinário do
mestre Irineu, o trabalho, mesmo com alguma dificuldade, tinha algo de festivo, de integrador com
as forças da natureza, e o clima de harmonia se manifestava. Era sempre um prazer chegar ao
final no hino 127:
"Eu cheguei nesta casa
Eu entrei por esta porta
Eu venho dar os agradecimentos
A quem rogou por minha volta".
(Último hino do mestre Irineu)
Já os assuntos tratados pelo hinário do padrinho Sebastião davam ao trabalho uma conotação
de sofrimento e de punição, o que no meu entender aumentava os vômitos e as dificuldades na
corrente:
"O povo estão rebeldes
Que não querem me ouvir
O castigo do céu vem
Para quem não quiser seguir".
(Hino 19/hinário de Sebastião Mota)

"O mestre me chamou


Para um conselho ele me dar
Para não temer os castigos
Que Deus tem para nos dar".
(Hino 15/hinário de Sebastião Mota)
Estas diferenças aumentava meus questionamentos: se por um lado era evidente que o trabalho
com daime tratava-se de uma proposta evolutiva, meu passado de rebeldia, minha busca de
transcendência não me permitiam aceitar o relho ou a ameaça de castigos divinos. Estava, e ainda
estou, querendo me libertar da carga psicogenética de mais de cinco mil anos de culpa judaico-
cristã, e não queria me submeter a esses valores obsoletos, ainda por cima encharcada com
substâncias expansoras da consciência. Tinha que encontrar uma forma de administrar essa
contradição.
No final de 1985, começo de 1986, o padrinho Sebastião visitou a comunidade de Mauá.
Anteriormente tinham estado lá o Chico Corrente, seu pai, o velho Corrente, seu Wilson Carneiro,
entre outros. As pessoas da comunidade Céu da Montanha já apresentavam fortes sinais de culto
à personalidade desses caboclos, que pareciam não entender o porquê disso. Alguns elementos
do hinário fortaleciam essa atitude:
"Nosso mestre nos procura
Com amor e com carinho
A melhor coisa do mundo
É possuir um padrinho".
(Hino 14/hinário de Sebastião Mota)
Eu já tinha "assistido a esse filme", só que, em lugar de padrinhos da Amazônia, estavam Lenin,
Stalin, Castro — e o fenômeno me preocupava. Pensei que seria algo passageiro, que com o
tempo desapareceria.
Estando perto do padrinho Sebastião, seus encantos e carisma tornavam-se evidentes. Seu rosto
tinha algo de duende, com as orelhas pontiagudas e os olhos muito vivos, que sugeriam uma
mistura de doçura e astúcia. A simpatia era fora do comum. Brincalhão e espirituoso, procurava
estar a altura das expectativas que esses "urbanóides" alternativos tinham em relação a ele.
Falava sem parar, abordando qualquer assunto, mudando para outros, de forma caótica, porém
cativante. Alguma coisa, que eu não entendia, me deixava de orelha em pé. A imagem que eu
tinha de como deveriam ser os homens sábios era mais silenciosa. Imaginava que quem atingisse
determinado grau de conhecimento atingiria também equilíbrio interno. Várias vezes me
surpreendeu com afirmações a respeito da doutrina espírita que, na hora, criaram grande impacto
na minha consciência. Quando mais tarde fui conferir, veio a decepção: as afirmações do padrinho
não passavam de equívocos. Seu carisma e seu magnetismo eram tão intensos, que outorgavam
ao maior disparate uma aura de credibilidade.
Perguntava a mim mesma por que ele não ficava calado, quando não tinha certeza sobre o
assunto, em vez de jogar conversa fora. Já naquele tempo sabia que ele pitava —fumava maconha
—com muita freqüência, e até algumas vezes pitei com ele. Anos mais tarde soube que os pitos
que ele preferia eram os "incrementados", ou seja, misturados com pasta-base de cocaína.
Outra questão polemica era sua saúde: o padrinho vivia doente. No meu entendimento, a doença é
sinal de desequilíbrio. Os hinos sustentavam a mesma idéia. Acreditava que, tomando daime,
chagaria a um padrão de compreensão, onde transcenderia a doença.
O padrinho tomava daime há décadas! Era esse estágio que eu poderia almejar após anos de
daime, hinários, vômitos e sacrifícios?
E não era só ele: outras pessoas que chegavam da Amazônia apresentavam desequilíbrios
evidentes de personalidade. Não só falavam compulsoriamente, como também comiam de forma
caótica e davam palpites a respeito de tudo.
Eles pareciam intuir a falta que fazia para essa turma de alternativos a figura do contador de
histórias e tentavam ocupar esse espaço como quem tenta vestir um sapato três números a mais
do que calça.
Assim, de mansinho, os "padrinhos" começaram o exercício do "paternalismo benevolente", mais
pela carência de figuras carismáticas no universo dos adeptos do daime do que por mérito próprio.
O Alex, em seu hinário, tem um hino de louvação ao padrinho Sebastião, que diz:
"Padrinho é Bastião
Padrinho em todo lugar".
Achei "puxa-saquismo" institucionalizado. Culto à personalidade misturado a lavagem cerebral. Na
hora desse hino, eu não cantava.
Me perguntava até que ponto isso formava parte de um plano maior.
Os questionamentos me torturavam cada vez mais. Enquanto o daime como elemento
expansor da consciência mostrava cada vez mais que se tratava de um caminho válido, as
atitudes das pessoas indicavam perigo. Perigo de se perder a autonomia do pensamento, de se
robotizar, de virar embuche. As mulheres passaram a se vestir da mesma forma que as
mulheres acreanas, sem levar em consideração as diferenças climáticas. Assim, com o frio de
Mauá, que no inverno chega a zero grau, as mulheres do Céu da Montanha usavam saias
compridas feitas de panos leves, próprias para o calor amazônico. Com os homens acontecia o
mesmo fenômeno. Começaram a falar com sotaque acreano e a conjugar os verbos
propositalmente de forma errada: "nós vai", "nós planta".
Para poder administrar sentimentos tão opostos, como a vontade de tomar daime — o que
aumentava cada vez mais a expansão da consciência —e a rejeição que sentia pelas atitudes
de fanatismo e descontrole, tomei uma atitude que, na hora, parecia ser a mais correta do
ponto de vista ético: não teria nenhum tipo de envolvimento com as pessoas que freqüentavam
os trabalhos. E mais: seria a última a chegar e a primeira a sair.
Em 1989 a rede Manchete de televisão levou ao ar um documentário gravado na Amazônia
sobre o santo daime. A proposta dos realizadores do programa parecia sincera. Tentaram fazer um
trabalho de esclarecimento para a opinião pública sobre essa bebida que ganhava, a cada dia,
mais adeptos entre os artistas e pessoas famosas.
Um dos blocos do programa era sobre o padrinho Sebastião. Ele falava com jeito esquisito: me
pareceu drogado, estava por demais empolgado. De repente soltou a seguinte afirmação:
"Os médicos, se quiserem aprender a curar, vão ter que vir até aqui, cagar e comer o que
cagaram para depois começar seu aprendizado".
No bloco seguinte, dona Peregrina Gomes Serra, viúva do mestre Irineu e chefe da igreja que ele
fundou, afirmava de forma veemente:
"O padrinho Sebastião e seus seguidores são todos maconheiros".
Nesse momento resolvi parar de cantar o hinário do Sebastião e redobrar a atenção.
O que tinha começado como um pequeno grupo de bebedores de daime em Mauá, estava
virando uma organização de porte nacional.
O padrinho pregava a vida em comunidades e a necessidade de reavaliar os padrões de
consumo. Esse discurso já tinha encantado a geração anterior, nos tempos do movimento hippie.
Morar entre amigos, serem todos iguais é um sonho que a humanidade acalenta há milênios.
MasJohn Lennon já tinha avisado:
"O sonho acabou".
Beber a ayauhasca com freqüência leva a atenção para os mundos internos, desestimula a luta na
realidade externa. Assisti com preocupação à transformação do Céu do Mapiá (comunidade
daimista na floresta amazônica) numa espécie de Meca alucinógena. Muitos iam e não voltavam.
Os poucos que retomavam, às vezes traziam informações preocupantes.
Em janeiro de 1990 morre o padrinho Sebastião. Outro líder da mesma geração, Bagwam Shree
Rajneesh, que também trabalhou pela expansão da consciência, porém conseguida através das
práticas já citadas, como meditação, repetição de sons e movimentos ritmados, desencarnou no
mesmo dia. Para muitas pessoas a perda foi dupla. Ele também tinha pregado a vida em
comunidades e o abandono do mundo da ilusão. A principal diferença residia no fato de Rajneesh
ter acumulado uma enorme fortuna.
Em respeito à verdade, devo afirmar que, apesar de ter-se envolvido diversas vezes com a policia,
em questões que nunca foram devidamente esclarecidas, de ter contribuído e apoiado o trabalho
de lavagem cerebral que muitos adeptos sofreram e de ter incentivado o uso de outras substâncias
junto com a ayauhasca, Sebastião Mota manteve as rédeas da seita. Os piores exageros foram
cometidos pêlos seus seguidores, após sua morte.
Os "pastores alucinógenos" que o sucederam criaram também o mito do padrinho Sebastião,
atribuindo-lhe uma condição de messias.
Esse objetivo aparece bem evidente no livro de Alex Polari O Guia da Floresta.
A partir de 1992, observei nas igrejas daimistas das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo a
ascensão do Sebastião Mota à condição de "homem santo". Seu retraio, vendido aos fiéis, que o
colocam num ponto nobre da sua residência, faz lembrar a tradição do padrinho Cícero em
Juazeiro do Norte.
Na tradição xamânica não existe o conceito de padrinho. Existe o de mestre e o de aprendiz.
Quem quiser se tornar um xamã deverá aprender com alguém, e para isto é preciso, primeiro,
resolver sua própria história, trabalhar sua própria cura. Chegando lá, começa a andar sobre seus
próprios pés. O novo xamã tem por seu mestre respeito e consideração. A condição de padrinho
imposta no CEFLURIS é sinônimo de dependência psicológica. Os integrantes da seita pedem a
bênção, beijando a mão dos padrinhos.
Quem atinge o grau de padrinho fica acima do bem e do mal. Não pode ser questionado nem
criticado. Desta forma, cometem-se os mais variados tipos de abusos e atropelos para com os
apadrinhados, e estes, aceitando, demonstram assim sua submissão à doutrina.
O crescimento das seitas já cria preocupação em outros países. As lideranças sectárias são, sem
dúvida alguma, mais perigosas que as ideológicas ou políticas.
O padrinho Sebastião conheceu o daime através do mestre Irineu, na cidade de Rio Branco.
Após a morte do mestre, em 1971, houve diversas brigas entre os seguidores por causa da
liderança. A igreja naquela época funcionava com o nome de CEFLU (Centro Eclético Fluente da
Luz Universal). Como conseqüência das brigas do Mota —assim ele é chamado em Rio Branco
—com outras pessoas que disputavam a liderança, ele se retirou, seguido por um grupo, e
instalou-se num local próximo à cidade, cujos terrenos valiam cinco mil cruzeiros cada um. Daí a
origem do nome "Colônia 5000", primeira comunidade que sediou a igreja fundada por ele,
registrada com o nome de CEFLURIS (Centro Eclético Fluente da Luz Universal Raimundo Irineu
Serra).
De acordo com o que a viúva do mestre Irineu manifestou no programa levado ao ar pela rede
Manchete de televisão, assim como a versão dada por muitos outros daimistas, o que motivou o
racha propiciado pelo Mota foi a inclusão da maconha nos rituais, como planta sagrada, sob o
nome de santa maria e a pasta base de cocaína, denominada "mescla".
Em Rio Branco, conheci contemporâneos do mestre Irineu e, portanto, do Sebastião Mota.
Apesar de haver enormes desavenças entre todos eles, há um ponto em comum: todos têm
histórias a contar sobre as vezes que ele foi preso por causa de drogas e outras questões de
moral duvidosa.
Essas pessoas, em Rio Branco, me perguntavam se é verdade que no sul do país o Mota é
chamado de padrinho ou se era algo que acontecia só nos livros de Alex Polari. Ante a minha
confirmação, eles manifestavam espanto.
A Colônia 5000 é considerada, naquela cidade, como um "buraco negro", a vergonha da cultura
daimista.
Durante o tempo que fiquei em Rio Branco fui continuamente procurada por pessoas das mais
diversas origens, que por motivos também diversos fizeram questão de me relatar fatos
gravíssimos acontecidos no âmbito do CEFLURIS.
Embora não fosse minha intenção checar a veracidade desses depoimentos, todos eles
apresentavam coerência e semelhança com casos que eu já conhecia.
O Sebastião Mota morreu na véspera do dia de São Sebastião no ano de 1990, enquanto era
cantado o hinário dele na igreja de Pedra de Guaratiba, no Rio de Janeiro. Naquele tempo,
motivada por questões éticas, eu não participava dos trabalhos nos quais se cantava o hinário dele
ou o do Alex Polari, porque me recusava a aceitar os assuntos referidos a "se humilhar", "aceitar
os castigos de Deus" e outros semelhantes.
Na data mencionada —19 de janeiro de 1990 —o filho do Mota, Alfredo Gregório, encontrava-
se em Mauá para comandar uma série de trabalhos. Devido ao fato de ele ser uma pessoa
carismática, com talento musical e conhecimento de "comando" dos trabalhos, resolvi abrir uma
exceção. Compareci ao evento junto com minha filha.
Quando o trabalho estava no fim, exatamente no último hino, chegou um carro procedente do
Rio de Janeiro trazendo a noticia da morte do padrinho. A Verônica ouviu Alex dizer ao Alfredo: "O
velho fez a passagem". Segundo ela, Alfredo girou sobre si mesmo dizendo: "O Marcos Imperial
(chefe da igreja de Pedra de Guaratiba) vai ter que explicar essa história".
Nos dias seguintes, movida por curiosidade, perguntei a várias pessoas qual fora a causa
mortis do padrinho.
Dava para perceber certo mal-estar por causa da pergunta. A resposta foi infarto fulminante,
quando estava no banheiro, e, segundo as mesmas fontes, ele teria morrido se segurando no
porta-toalhas.
l Minha filha.
Quase cinco anos mais tarde, estando na cidade de Rio Branco, fui procurada por uma ex-
integrante do CEFLURIS para me dizer que o Sebastião Mota morrera de overdose. Seria essa a
história que o Alfredo dissera que o Marcos Imperial teria que explicar?
Até que ponto não seria essa informação fruto do imaginário coletivo? Até que ponto as
atitudes e a fama dele na cidade de Rio Branco, assim como as arbitrariedades que acontecem
dentro do CEFLURIS, não seriam um estimulo à imaginação popular?
Aqui cabe uma afirmação: embora possa dizer que foi ele quem deu o grande aval para minha
filha entrar nessa trilha que a está levando à autodestruição, o objetivo dele, quando a aconselhou
a tomar o daime, não era esse.
A impressão que me resta é a de ser o Sebatião Mota um remanescente amazônico da
filosofia do movimento hippie. Ele só queria contestar os padrões de consumo em que a sociedade
se apóia. Atitude que assumem muitas pessoas que utilizam as substâncias já mencionadas.
Acredito, também, que não concordaria com muita coisa que começou a acontecer no
CEFLURIS após sua morte. De concreto, pode-se afirmar: após a morte dele, o CEFLURIS
rompeu definitivamente com os princípios cantados nos hinos: Amor, Verdade e Justiça.

ACURA DA AIDS I

Neste capítulo, e nos dois seguintes, selecionei os casos de portadores do HIV que achei mais
significativos. Muito mais se poderia contar sobre fatos estarrecedores ocorridos no CEFLURIS
com portadores do vírus da AIDS que tentaram curar-se com a ayauhasca e foram lesados pela
seita.
Poucas doenças ao longo da história tiveram uma conotação moral tão culposa quanto a AIDS.
Nem a sífilis, antes dos antibióticos, gerava tanta culpa, pois no fundo tinha uma espécie de
glamour machista. Era "doença de homem".
Já a AIDS parece ter vindo para detonar tudo àquilo que ficava subentendido, que era para se
calar.
No ocidente, o elaborado sistema de culpa judaico-cristão desaba em cima do portador do vírus.
As religiões tradicionais têm dificuldade em lidar com a síndrome, em especial após o surgimento
de padres e pastores contaminados.
Logo no primeiro ano de existência da igreja daimista de Mauá houve a primeira morte. Um rapaz
fardado, que morava na comunidade, onde poucos sabiam que era portador do vírus, contraiu uma
pneumonia e teve um rápido fim.
Não demoraram a aparecer outros portadores do vírus. Além dos estragos que a doença causa
nas formas do pensamento, a certeza de uma morte sofrida torna a agonia ainda mais terrível. Em
geral, a atitude dos doentes era a de não tomar o AZT, tomar daime, fazer "trabalhos de cura" e se
deixar levar.
No carnaval de 1989 apareceu, na minha residência, um desconhecido:
Nome: Nestor Perlonguer
Nacionalidade: argentina
Profissão: antropólogo, poeta, professor da Unicamp e bolsista da Fundação Guggenheim.
Havia tomado daime em São Paulo, num grupo ainda pequeno comandado por Pedro Malheiros,
que fora incumbido pelo padrinho Sebastião (ainda vivo e liderando o CEFLURIS) de organizar a
igreja daquela cidade. Veio à minha procura, querendo tomar daime em Mauá.
Explicou que o que ele buscava na bebida era o êxtase, no sentido dionisíaco. Não acreditava em
religião e sim em expansão da consciência através do êxtase. Entendia que o daime associado
aos bailados o levariam a este estado. Abstraia-se do conteúdo religioso.
Subimos a serra. No carnaval são realizados trabalhos nos quais se canta o hinário de António
Gomes, contemporâneo do mestre Irineu. A igreja naquele tempo ainda era em cima do morro.
Após certa quantidade de hinos, vi que ele não conseguia mais bailar. Saímos e sentamos numa
pedra. Ele disse que nunca tinha visto "nada tão forte", e o trabalho estava leve. Trocamos idéias
sobre religião. Enquanto conversávamos, ainda sob os efeitos do daime, eu tinha a sensação de
ver a morte no rosto dele. Contou que era a primeira busca do êxtase através de um caminho
espiritual. Anteriormente tinha tentado atingir a consciência expandida através da prática da
homossexualidade e de todos os abusos possíveis dentro dela. Não tinha se furtado a nada. Na
Argentina, um dos países mais fechados à questão homossexual, tinha sido fundador do primeiro
grupo de militância pêlos direitos dos homossexuais. Era preso continuamente. Às vezes no
mesmo dia em que tinha sido solto o prendiam de novo.
"Me levavam puxado pêlos brincos", comentou. Vale esclarecer que no tempo em que ele usava
brincos na Argentina, só alguns audaciosos em São Francisco ousavam usá-los.
No Brasil, havia produzido um trabalho antropológico, pioneiro no gênero, que tinha se
transformado no livro O Negócio do Michê. O trabalho consistia numa pesquisa antropológica e
no respectivo mapeamento das áreas de prostituição masculina em São Paulo. Ele pensava
naquela época defender tese na Sorbonne, em Paris, sobre o mesmo tema.
A amizade com Nestor mostrou-me outro universo de daimistas.
Até então, as pessoas que formavam o grupo de Mauá eram na sua maioria cariocas, alternativos
que pretendiam formar parte da contracultura, mas que não tinham a cultura necessária prévia
para poder de fato fazê-lo. Muito menos uma formação esotérica que desse um suporte e/ou uma
meta ao trabalho com o daime.
Estas carências justificavam muitos deslumbramentos. Através de Nestor conheci um tipo de
vanguarda esotérico-universitária-nova era-paulista que, partindo de diversas origens, convergia no
daime. A mistura era, além de eclética, interessante. Tinha de tudo:
antropólogo pai-de-santo, sociólogo erudito em orixás, iogues, ex-saniases do Rajneesh, ex-padres
da teologia da libertação, anarquistas, astrólogos, terapeutas alternativos e tradicionais, músicos,
pessoas de teatro, donas-de-casa, além dos habituais curtidores de barato.
A mistura não era muito harmoniosa, porém achei-a divertida. Detesto caretice e pessoas
massificadas. Gosto de indivíduos que buscam, que procuram.
Na época, Nestor pretendia viajar a Paris para defender tese na Sorbonne sobre a evolução da
prostituição masculina.
Alguma coisa nesse trabalho em Mauá, durante nossa conversa naquela pedra, determinou uma
súbita mudança nos planos: resolveu que sua tese seria sobre o santo daime e a vida nas
comunidades daimistas.
Partiu numa viagem para o Céu do Mapiá e depois Paris. Na primeira escala, na floresta
amazônica, conviveu com Sebastião Mota durante algumas semanas, colhendo material para a
tese. Já em Paris, telefonou angustiado, era maio de 1989. Um dos motivos da sua angústia eram
manchas na pele e feridas na boca que não saravam. Sugeri o teste HIV. Aquele militante que
tinha encarado a polícia argentina, que tinha se aprofundado nos subterrâneos da prostituição e da
degradação em São Paulo, que tinha enfrentado a floresta amazônica para chegar aonde o
padrinho residia, morria de medo do teste. Foi difícil. Mais difícil ainda abrir o envelope com o
resultado: positivo.
O medo, a frustração e a tradicional rejeição com que os franceses recebem os estrangeiros
fizeram com que retomasse ao Brasil, sem chegar a defender a tese.
Antes de retomar foi visitado em Paris por dois daimistas franceses, residentes no Brasil, de férias
na França. Sophie, cuja chegada ao daime eu tinha presenciado em Mauá, dividia seu tempo entre
o Brasil, os Estados Unidos e a França, negociando cristais, e Antoine, que residia w comunidade
de Mauá.
Convidaram-no a tomar daime num parque, nas proximidades de Paris.
Antoine foi categórico: disse ao Nestor que não deveria tomar AZT nem fazer tratamento algum —
só uma colher de café de daime, todo dia de manhã, em jejum. Assim, ele "garantia" a cura.
Nestor me telefonou apavorado, a imposição de Antoine colocara-o em crise.
Perguntou minha opinião. Achei loucura. Então, ele me perguntou como eu tomava daime e
discordava dos dogmas. Os dogmas eram conseqüência de devaneios de daimistas, no meu
entender.
Retornou ao Brasil, doente, cheio de culpas por não ter completado sua missão. Além da AIDS
para atrapalhar, havia a rejeição dos acadêmicos franceses: o tema santo daime, cultura
alternativa, não interessava na França.
Uma vez em São Paulo, a doença tornou-se prioridade. O assédio dos daimistas deixava-o irritado.
O daime piorava as diarréias e irritava as mucosas do aparelho digestivo. Queixava-se de ser alvo
do fanatismo místico-religioso. Criticava asperamente, e com fundamento, a instituição que se tinha
formado a partir da bebida, a avidez por dinheiro da cúpula da seita e o novo chefe da igreja de
São Paulo, o antropólogo Walter Dias, até seus últimos dias de vida, em 1992.
Guardou, sim, uma especial consideração pelo amigo e antropólogo Edward McRae e por Ulysses
e João, segundo ele, as únicas pessoas que empregaram o amor e a solidariedade conforme se
expressa nos hinos.
Até as últimas vezes que o visitei no hospital, em São Paulo, não cansou de me advertir dos
perigos que a expansão do daime nas grandes cidades significava. Insistia na idéia de encontrar
uma forma de alertar a sociedade a respeito.
Foi enterrado em São Paulo, num dia chuvoso, ao som dos hinos do daime.

ACURA DA AIDS II

Em 1° de novembro de 1989, durante o trabalho de finados, conheci uma nova integrante da


comunidade de Mauá: Cecília Boriá. Também Argentina. Na época tinha trinta e seis anos e era
portadora do vírus HIV. Devido à óbvia empatia que acontece por falar a mesma língua, e por
alguma razão mais profunda, foi logo contando: tinha contraído o vírus usando drogas injetáveis.
Apresentava-se como ex-prostituta e ex-assaltante de hospitais para roubar morfina. Falava
desses assuntos com incrível naturalidade.
Chegara à comunidade em busca de apoio e redenção. Tinha freqüentado o ambulatório do
Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde recebia o AZT gratuitamente. Porém, a consciência da
doença a levara a uma busca espiritual.
Ao chegar à comunidade, recebeu a promessa da cura. Fiquei espantada. Na época eu estava em
contato com um médico de fama internacional, o doutor LUÍS Moura, residente na região, que
trabalha com sistemas alternativos de aumento da imunidade, por ele desenvolvidos, baseados na
bioenergética e na auto-hemoterapia. Tinha constatado resultados excelentes em outros casos de
deficiências imunológicas. Obviamente não faria mal algum a ela participar desse tratamento
paralelamente aos "tratamentos espirituais" prometidos pêlos "curadores" da comunidade.
Uma das condições que lhe tinham sido impostas como parte das regras que deveria cumprir para
morar na comunidade de Mauá, era evitar conversas comigo. Como era rebelde, descumpriu essa
condição e fomos ver o mencionado médico. Recebeu dele as instruções para realizar a auto-
hemoterapia. O carisma do doutor LUÍS Moura a tinha cativado.
Logo em seguida, constatou uma incrível melhora no seu estado geral. Cecília era uma pessoa
muito lúcida, percebia com clareza os processos de lavagem cerebral da doutrina daimista, porém,
por ser muito carente, submetia-se na aparência, atraída pela promessa da cura.
Eu argumentava com ela que a cura do vírus ainda não existia, nem mesmo na medicina oficial e
muito menos na alternativa. Existiam, sim, como acontece hoje, diversos métodos para melhorar
as condições de sobrevida. Ela se sentia entre a cruz e a espada. Resolvi não interferir. Tinha
mostrado a ela uma trilha, no mais, seu livre-arbítrio deveria conduzi-la. Fiz a ligação entre ela e o
Nestor, que na época estava na França e já sabia que era soropositivo.
Ela mesma constatou que, como conseqüência da melhora obtida pelo tratamento indicado pelo
doutor LUÍS, os ataques à minha pessoa e as exigências de se afastar de mim por parte das
lideranças da comunidade aumentaram.
Apareceu um dia na minha casa, voltando da cidade de Resende, onde tinha ido buscar o
resultado de um exame de sangue.
Perguntei que exame era esse, e ela me respondeu que se tratava do teste HIV, que estava
fazendo mensalmente, por indicação do pessoal da comunidade, para ver se "ainda" era
soropositiva. Manifestava a certeza de que em qualquer momento o teste passaria a dar resultado
negativo por obra e graça do daime.
Achei tudo uma loucura e disse a ela. Fui bem clara, pois compreendia que a vida dela estava em
jogo. Ela respondeu que a comunidade de Mauá estava empenhada na cura dela, que, uma vez
obtida, ela seria uma "amostra" dos poderes do daime para grupos de aidéticos que começariam a
vir dos EUA, trazidos pelo médico José Rosa, integrante da comunidade e dono de um consultório
em Boston.
Assim, ela retribuiria o empenho deles, mostrando sua "cura" e colaborando para aumentar
o faturamento da comunidade.
Estávamos nos primeiros meses de 1990. Comecei a distanciar-me da comunidade. Minha filha
freqüentava-a nos fins de semana, mais por causa dos grupos de jovens que pelo daime em si.
A Cecília me visitava esporadicamente, quando conseguia sair da comunidade com o pretexto
de fazer algum exame. Quando fazia calor, íamos tomar banho nas cachoeiras de Penedo e,
quando estava frio, passear na cidade de Resende. Alertei-a sobre os invernos de Mauá e o risco
das infecções oportunistas. Parecia não querer tocar no assunto, e fiquei quieta. Fizemos um trato:
qualquer coisa que acontecesse, poderia contar comigo, mandando recado através de alguém.
Em abril de 1990, com os primeiros sinais do frio, recebi um dramático pedido de socorro:
Cecília estava mal e queria me ver. Parti para Mauá. Cheguei à comunidade e encontrei-a
queimando de febre, chorando e em profundo desespero.
A pessoa da comunidade que lhe aplicava as injeções de auto-hemoterapia, que segundo ela
constatara faziam-lhe um bem enorme, recusava-se a continuar com o tratamento. A desculpa:
medo de se espetar com a seringa com o sangue contaminado. Ora, a assistente era^enfermeira
profissional, e a possibilidade de o contágio acontecer era muito improvável.
Cecília tinha piorado nos últimos dias e manifestado seus dois pontos fracos: asma e infecção
renal. A asma melhorara com a auto-hemoterapia, e quanto à infecção renal, ela tinha feito uma
cultura, com Bactrim. Os daimistas não a deixavam tomar o Bactrim e exigiam que ela tomasse
daime. A ayauhasca costuma produzir diarréia e a AIDS também.
Assim, fragilizada, recusava-se a tomar o daime e deixava de corresponder às expectativas dos
seus zeladores. Ante os apelos dela pelo Bactrim, a médica da comunidade tinha lhe fornecido
amostras grátis de um antibiótico específico para infecções respiratórias, o que em nada contribuía
para resolver a infecção renal e piorava o estado geral dela.
Cecilia queixava-se também da forma como era tratada —segundo ela, com agressividade. E,
além do mais, recebia pouca comida. Estava frágil e revoltada.
Fiquei atônita, voltei para Mauá, comprei algumas caixas de Bactrim e retornei à comunidade.
Não tinha condições materiais de assumir essa situação. Já mais calma, botei-a no carro e fomos
dar um passeio.
Os daimistas me olhavam com apreensão. Expliquei-lhe meu parecer: a vida dela estava em
jogo. No meu entender, tinha que voltar para São Paulo e se tratar no Hospital Emílio Ribas. Após
um tempo de tratamento lá, quando melhorasse, poderia ficar na minha casa.
Retornamos à comunidade, deixei-a lá e desci a serra preocupada. Uma semana depois, na
sexta-feira à noite, apareceu na minha casa um integrante da comunidade — Robertinho —,
nervoso mas querendo parecer calmo, perguntando se a Cecília (que aguardava no carro) poderia
passar a noite na minha casa. Acrescentou que ela estava muito mal, mas garantiu que ela não iria
fazer a "passagem" (morrer) nessa noite. Fiquei perplexa. E ainda mais: no dia seguinte, a atual
esposa do ex-marido dela viria buscá-la para levá-la a São Paulo. Obviamente concordei. Era uma
sexta-feira, véspera de um feriado prolongado. A Cecilia ardia em febre, mas estava exultante.
Com alguma dificuldade consegui entender a história. Após minha descida de Mauá na semana
anterior, preocupadas com o agravamento do estado dela, e sabendo que eu estava ciente do
caso, temerosas de serem responsabilizadas por algum eventual desfecho trágico, as lideranças
da comunidade daimista tinham resolvido agir.
Uma das características do fanatismo é a de fazer as coisas diferentes de como devem ser
feitas. Ela tinha sido cadastrada no Hospital Emílio Ribas, que já era, e continua sendo, o melhor
local para tratamento da AIDS em toda a América Latina. Pois bem, já que ela implorava ser
encaminhada para São Paulo, eles a tinham levado para o Rio de Janeiro. Naquela cidade, tinha
sido submetida a uma maratona tentando internar-se em hospitais, onde, após aguardar horas,
recebia sempre a mesma resposta: "Além de não termos vagas, não há razão alguma para ela
procurar hospital no Rio, quando tem a chance de ser tratada no melhor lugar possível, que é o
Emílio Ribas, em São Paulo".
Após uma semana de desgaste, no calor do Rio de janeiro, de filas em hospitais, encontrava-se
exausta e doente. Depois de alguns dias na minha casa descobri que ninguém tinha feito contato
com o ex-marido dela, como haviam me informado.
Assim mesmo, achei vantagem no fato de ela estar fora da comunidade. Levei dias até achar seus
familiares, em São Paulo, e demorou até que eles se dispusessem a vir buscá-la. Ela não perdia o
bom humor, e não parava de celebrar a façanha de ter-se livrado dos daimistas. A doença
avançava assustadoramente. Consegui uma vaga na Santa Casa de Resende, e após alguns dias
foi transferida para o mencionado hospital paulista, onde veio a falecer duas semanas depois.
Deixou comigo, na esperança de retornar, seus objetos pessoais e o diário da sua "cura" durante o
tempo que passou em Mauá.
No diário ela relata as sessões de "terapia", realizadas pela Patrícia, para o que não tem nenhuma
habilitação médica. Em várias dessas sessões também estava outra suposta doente: a francesa
Sophie — a mesma que visitou Nestor, em Paris, sugerindo que ele suspendesse o AZT e tomasse
apenas daime. Alguns meses depois de Cecília falecer em São Paulo, Sophie suicidou-se em
Paris.

A CURA DA AIDS III


O que Nestor me contou —que havia recebido de dois daimistas, em Paris, a orientação de não
tomar remédios, só uma colher de daime de manhã, em jejum —me deixara preocupada.
E a história de Cecília, que tinha a certeza de que o daime curaria a AIDS, segundo tinham lhe
garantido, me deixara estarrecida.
Dentro do que fora proposto, Cecília se curaria e passaria a ser uma espécie de "prova viva",
morando na comunidade, sendo inclusive sustentada financeiramente.
A proposta era miraculosa: não somente ficaria curada, como também se resolviam, desta forma,
todos os seus problemas, ou quase todos.
Ela ficava preocupada com as manifestações de fanatismo, não sabia se seria capaz de aturá-las
por muito tempo.
Eu lhe cobrava coerência. Sempre manifestei-lhe que não acreditava na cura, porém, já que ela
acreditava, não deveria então questionar os meios.
Transcorriam os primeiros meses do ano de 1990. A atriz Gilda Guilhom, que na época morava na
comunidade da Amazônia, encontrava-se em Mauá com o objetivo de vender uma casa que ela
mesma tinha construído anos antes na comunidade daimista.
Era uma casa grande, cara, difícil de vender. A Gilda me ofereceu a casa, dizendo que aceitaria
alguma proposta de financiamento a longo prazo, já que a partir disso ela assumiria um
compromisso no Céu do Mapiá, comunidade daimista localizada na Amazônia.
Argumentei que não fazia sentido para mim comprar uma casa dentro de uma comunidade na qual
não pretendia morar, embora a achasse confortável e gostasse da paisagem e do local.
Agoniada para resolver a situação, a Gilda insistira. Poucos dias depois da proposta, a Cecília veio
me visitar.
O motivo: a compra da casa. Segundo ela, pelas conversas que ouvia na comunidade, estava
havendo uma ampla divulgação nos EUA e na Europa, feita pêlos daimistas, sobre a cura da AIDS
pelo daime, e como retorno esperava-se a chegada de grandes grupos de aidéticos para tal fim.
A casa da Gilda era uma das mais confortáveis, e das poucas que tinham condição de hospedar os
"gringos".
O clima era de euforia, preparando a comunidade e a Cecília, como já foi dito, para mostrar sua
"cura".
Então, ela queria que eu comprasse a casa, pagando em prestações, já que a Gilda aceitava.
Desta forma, ela se mudaria para a casa, na qualidade de governanta, administraria o aluguel dos
quartos e, com a renda que obteria por isso, pagaria a prestação. Me garantia que em pouco
tempo a casa ficaria paga, e mais — eu poderia ter até uma fonte de lucro.
Expliquei-lhe que não estava nos meus planos de vida ter uma pensão alucinógena para aidéticos
estrangeiros em estágio terminal. E reafirmei minha preocupação sobre o fato de receber pessoas
doentes, que na maioria dos casos precisam de auxilio médico, como soro, inalações e outros
recursos que são fornecidos nas cidades. A comunidade fica afastada da civilização, sem telefone,
e os quarenta quilômetros de estrada de terra podem se transformar numa eternidade, quando se
trata de uma emergência.
Pouco tempo depois, a Cecília ficou doente e aconteceram os fatos já relatados, que fizeram com
que me afastasse ainda mais do Céu da Montanha, a comunidade daimista de Mauá.
Porém moro a trinta e cinco quilômetros dali, numa pequena vila. As notícias dos fatos que lá
acontecem circulam pela região, boca a boca.
De lá para cá, morreram diversas pessoas. Todas estrangeiras, todas com AIDS. Uma delas, num
hotel alugado pelo doutor José Rosa, atual líder da comunidade, quando ainda não estavam
prontas as duas hospedarias construídas para tal fim.
Segundo o relato do dono do hotel, o rapaz, um americano doente, morreu durante um desses
trabalhos de "cura". Relatou também detalhes das precauções que foram tomadas para a imprensa
não tomar conhecimento.
Quando escrevia estes textos, outra pessoa, também dona de hotel na região, veio relatar o medo
existente no lugar, já que as pessoas que sabem das mortes são ameaçadas pêlos integrantes da
comunidade, para não falar do assunto.
Esses casos constituem prática de curandeirismo, que é crime previsto em lei.
Compreendo que a promessa de cura da AIDS comporta vários crimes, tanto na lei dos homens
como na lei de Deus. Até onde será que o CEFLURIS pretende chegar?
E as autoridades, quando será que vão tomar conhecimento?
Conhecida sob a sigla UDV, a União do Vegetal tem hoje seu nome registrado como Centro
Espírita Beneficente União do Vegetal.
Essa organização teve sua origem no trabalho que José Gabriel da Costa, posteriormente
conhecido como mestre Gabriel, começou a realizar em Porto Velho (RO) a partir de 1961.
Tendo nascido em Feira de Santana (BA), José Gabriel, como tantos outros, emigrou para a
Amazônia com o objetivo de trabalhar como seringueiro. Fixou-se em Porto Velho, onde conheceu
a tradição vegetalista. Durante três anos tomou a ayauhasca com o nome de vegetal. Nesse
período teve revelações de vidas passadas, entrou em contato com "entidades" que lhe ensinaram
a trabalhar com a força da ayauhasca e lhe incumbiram da missão de distribuir a bebida e doutrinar
as pessoas.
A forma de doutrinar dentro da União do Vegetal não acontece através de hinos, como no daime, e
sim por "chamadas". Denominam-se desta forma os "cantos iniciáticos" recebidos de forma
semelhante àquela em que chegam os hinos do daime ou os "salmos" da Barquinha, outra seita
daimista.
O ritual da União, como é chamada a organização pêlos seus integrantes, é o mais próximo da
tradição vegetalista. Os homens e as mulheres ficam separados, tomam a bebida, ato que eles
denominam "comungar", e permanecem sentados durante todo o trabalho. Não há bailado.
Durante o trabalho, o mestre, a pessoa que conduz a cerimônia, faz as chamadas, em intervalos
de tempo. Entre esses intervalos, são colocadas fitas ou discos com músicas religiosas. Tais
chamadas cumprem o mesmo papel que os ícaros utilizados pêlos vegetalistas.
Teologicamente, os conteúdos das chamadas, assim como os hinos do mestre Irineu, ou os
salmos da Barquinha, sugerem um renascimento do cristianismo, despojado de todas as
deturpações sofridas pelo envolvimento da igreja católica com o poder político nos últimos dois mil
anos.
Seria um novo cristianismo, atuante na conduta do dia-a-dia. Para muitos espiritualistas, uma
das tantas manifestações que vêm surgindo nas últimas décadas que confirmam a segunda vinda
do Cristo, só que desta vez em "corpo glorioso".
O trabalho que o mestre Gabriel começou com humildade e devoção tem hoje seguidores por
todo o Brasil, nos EUA e em alguns países da Europa. Existem mais de quarenta centros da União
espalhados em diversas cidades, estando a sede geral em Brasília.
Após o falecimento do mestre Gabriel, em 1971, o mesmo ano em que o mestre Irineu faleceu,
seus seguidores conseguiram levar adiante o trabalho de caridade, assistência espiritual è
doutrinação, conforme os objetivos do mestre fundador da UDV.
Vale acrescentar que essa entidade jamais esteve envolvida em escândalos, evita sempre que
possível toda forma de publicidade e tem uma conduta rigorosa, no que diz respeito às exigências
éticas e morais dos seus membros.
Um ponto da estrutura da UDV que denota profundo zelo é a questão das lideranças. Os
mestres, as pessoas que têm a responsabilidade de conduzir os trabalhos, não são, como no caso
do CEFLURIS, vitalícios. Na organização daimista, o cargo de padrinho é obtido através de política
de bastidores. Uma vez adquirido esse status, que só se perde com a morte, a pessoa fica acima
do bem e do mal. Não precisa pôr em prática aquilo que apregoa. Vide o caso do padrinho Alfredo
que tem três esposas e lidera uma seita que apregoa a castidade, e jamais sua conduta é
questionada. Na maioria dos casos, os padrinhos não trabalham para sua subsistência. Os
negócios da seita, doações vultosas, venda da ayauhasca, e outros, outorgam-lhes um alto padrão
de vida.
Na UDV o assunto é bem diferente. Os dirigentes ou mestres são eleitos por um período de dois
anos, após os quais é realizada uma nova eleição. Durante o período em que uma pessoa ocupa o
cargo de dirigente, pode ser afastada das suas funções caso infrinja o rigoroso código de ética da
instituição.
Há um comandante geral, que é chamado de Mestre Geral Representante, uma Diretoria Geral,
um Departamento de Estudos Médicos, um Departamento Jurídico, um Conselho de Recordação,
integrado pêlos mestres mais antigos e pêlos que já foram mestres gerais.
Com uma estrutura como esta, casos como o do Jambo, da Verônica, do assassinato na
Colônia 5000, e tantos outros que integram a lista de aberrações pelas quais o CEFLURIS terá que
responder mais cedo ou mais tarde, não têm chance de acontecer.
Após o trabalho realizado pelo CONFEN, chegou-se a uma espécie de "acordo de cavalheiros"
entre todas as entidades que utilizam da mesma bebida. Por isso, há alguns anos, foi assinado um
documento denominado "Carta de Princípios". A UDV realiza um trabalho que visa a manter o
cumprimento desses princípios tanto pêlos seus membros como pelas outras entidades signatárias
da referida carta — entre elas o CEFLURIS.
Outra característica que denota o elevado teor moral deste grupo é a questão da cura.
Segundo os ensinamentos do mestre Gabriel, confirmados hoje por diversas correntes
terapêuticas, a doença é fruto de algum desequilíbrio e sua cura é a conseqüência da
conscientização dessa causa no seu ponto mais profundo, com a decorrente mudança de atitude
e/ou situação por parte do doente.
Portanto, a ayauhasca, quando utilizada dentro desse contexto e com orientação específica, vai
progressivamente gerando compreensão, corrigindo e modificando, desta forma, a causa que
levou o indivíduo à condição de doente.
Já no CEFLURIS, com o objetivo de enriquecimento dos seus integrantes, quem tiver
condições financeiras pode comprar trabalhos denominados "de cura".
Na mencionada carta de princípios, essa atitude é enquadrada como curandeirismo e obviamente
proibida.
A falta de fiscalização adequada deu lugar a muitos excessos. Como resposta, entidades sérias
e responsáveis, como a UDV ou a Barquinha, só têm conseguido reservar-se cada vez mais,
deixando, assim, o terreno disponível para os aproveitadores.

A BARQUINHA
A idéia da viagem é constante na vivência de expansão da consciência e em todas as outras
formas arquetípicas de saída do ego. A barca que leva as almas aparece também em diversos
mitos e culturas.
Nos primeiros anos das minhas vivências com o daime na comunidade de Mauá, como já foi
dito, tive uma constante luta interior entre a vontade de ir fundo na viagem e as discordâncias com
a ética vigente no grupo.
A igreja do Rio de Janeiro — Céu do Mar — crescia e se desenvolvia paralelamente. Sabia,
através de fardados cariocas, que lá a situação não era diferente.
Um dia, um casal de fardados do Rio de Janeiro veio fazer o trabalho no Céu da Montanha, em
Mauá. Fiquei impressionada com o carisma de ambos. Disseram-me ser psicólogos, já tomando
daime há algum tempo no CEFLURIS. Pediram minha ajuda para achar uma casa ou sítio para
alugar perto da comunidade, já que estavam dispostos a freqüentar mais assiduamente os
trabalhos em Visconde de Mauá e queriam ter seu canto. Não entraram em detalhes, porém deu
para perceber claramente que se encontravam no mesmo conflito que eu e procuravam em Mauá
uma forma de continuar sua caminhada. Não encontraram o sítio para alugar e foram embora. Isso
deve ter acontecido em 1988.
Em 1991, aconteceram os problemas com minha filha e o CEFLURIS. Continuar tomando
daime em Mauá, nem pensar! Porém precisava entender melhor toda a questão. Eu tinha
procurado essa bebida para conseguir a plenitude do meu ser e dos seres que amava.
Minha filha estava alienada pelo mau uso da experiência alucinógena, e não podia esperar
encontrar aliados fora do universo da ayauhasca.
Entendi que eu tinha que resgatá-la de dentro para fora. Tinha ouvido falar que, no Rio de Janeiro,
existia um ponto da Barquinha, outra seita do Acre que utilizava o daime. Esperava encontrar lá um
espaço neutro, limpo de cargas conflitantes e histórias pessoais, onde pudesse clarear minha
consciência. Não foi difícil achar, e mais uma vez, num dia de São José, começava eu a navegar
nas águas do daime, só que em outro rio, em outro barco.
Minha surpresa foi grande ao ser recebida por aquele mesmo casal de psicólogos que tinha
conhecido anos atrás em Mauá — Philipe Bandeira de Melo e sua esposa Marilia —, agora
conduzindo a Barquinha no Rio de Janeiro. O local do trabalho era a residência deles. A recepção
foi carinhosa e discreta. Havia outros ex-daimistas. Sentaram-me à mesa do ponto. O daime que
foi servido era o mais forte e apurado que eu tinha bebido até então.
Fiquei surpresa com o ritual. Um grupo, do qual eu fazia parte, sentou em torno da mesa, situada
numa espécie de tablado. Ao fundo, num altar, imagens católicas, orientais e africanas. No centro
do altar a figura em destaque: São Francisco das Chagas. A farda usada por homens e mulheres é
semelhante à roupa de marinheiros, só que cheia de enfeites. O Philipe vestia farda de
comandante. O tablado é separado da platéia por espesso cortinado que vai sendo aberto lenta e
parcimoniosamente ao som dos primeiros salmos que dão início ao ritual.
Os salmos são cânticos iniciáticos com uma temática semelhante aos hinos do mestre Irineu.
Desde os tempos em que eu havia tomado a ayauhasca na União do Vegetal, não tinha feito um
trabalho assim, passivo. Nos rituais do daime, as pessoas cantam, participam ativamente. Já na
UDV permanecem sentadas ouvindo as chamadas, as músicas ou fazendo perguntas ao mestre
da sessão.
Na Barquinha, uma pessoa (a puxadora) canta o salmo e as demais repetem só uma estrofe.
A força do daime me surpreendia. Num momento do trabalho olhei para o Philipe e pensei como
teria sido a jornada dele após nosso última encontro em Mauá.
Já foi dito várias vezes que a ayauhasca tem poder de tornar as mentes telepáticas. No final do
trabalho, acontece uma sessão de bailado opcional, da qual não é obrigatório participar.
Enquanto o bailado acontecia, o Philipe chamou-me para responder a pergunta que eu tinha
formulado telepaticamente. Desta forma, fiquei sabendo que, por discordar da maneira com que o
CEFLURIS agia, e devido à certeza de que a trilha aberta pelo mestre Irineu o levaria ao
conhecimento, tinha pedido ao mestre, em oração, que lhe mostrasse um caminho digno para
poder continuar tomando o daime e realizando o trabalho de curador, que sem dúvida alguma é
sua vocação.
Tinha embarcado para a cidade de Rio Branco com o intuito de encontrar a fonte onde o mestre
começara. Chegando lá, pediu a um motorista de táxi que o levasse "ao daime". Prontamente, o
táxi rumou para o bairro denominado Vila Ivonete e o deixou num local denominado "Centro
Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz" (a Barquinha).
Philipe é psicanalista de formação junguiana. Segundo Jung, o acaso não existe, tudo o que
acontece, inclusive o que se apresenta como erro, é parte de um plano que organiza a realidade.
Desta forma, Philipe tinha conhecido a Barquinha, comandada por seu Manoel de Araújo, e acabou
trazendo essa linha de trabalho para o Rio de Janeiro, constituindo assim o único ponto fora do
Acre.
Senti verdade, sinceridade e transparência nas colocações dele. Fui convidada a voltar e voltei
diversas vezes. Uma questão me intrigava: o daime era sempre de uma qualidade como eu nunca
tinha visto nas igrejas do CEFLURIS, forte e apurado. Os trabalhos, semelhantes a sessões de
mesa de centro espírita, impecáveis. Eu me sentia bem, mas não em casa. Freqüentei algumas
vezes com o intuito de conhecer mais e entender o processo no qual o poder da ayauhasca me
colocara.
Um dia, a casa estava diferente. O padrinho de Rio Branco tinha chegado e comandaria os
trabalhos. Tinha sido convidada a elite do Céu do Mar, a igreja do Rio de Janeiro da qual Philipe se
afastara. Não cabia um alfinete, as pessoas sentavam no chão, na escada, na varanda. Quando o
trabalho acabou, o clima era de festa.
A casa fica numa ladeira de Santa Teresa, num local belíssimo, e o clima do Rio de Janeiro,
sempre ameno, é um convite para festa. As conversas das pessoas eram as mesmas que em
qualquer outra festa.
Aproveitei para conhecer o padrinho, seu Manoel de Araújo. Conversamos a respeito da
existência do mal e do porquê do sofrimento como sistema de aprendizado. Senti nesse homem,
baixo de estatura, uma força, uma energia que o fazia parecer um gigante. A reunião continuava,
em clima de alegria comum a qualquer festa. Perguntava a mim mesma que impressão ele estaria
tendo. Dava para perceber que, enquanto conversava comigo, estava ligado em tudo o que
acontecia. Soube que nos dias seguintes haveria outros trabalhos e resolvi participar deles. Saí
desse primeiro encontro com seu Manoel com a sensação de que o daime estava virando uma
questão social. Já era possível o local, o tipo de festa e de daime que se pretendia tomar. Quase a
mesma coisa que qualquer outra festa mundana. Só que em vez das bebidas comuns, ayauhasca.
No trabalho seguinte, as mesmas pessoas, todo mundo muito elegante, animado e social. Os
comentários sobre a qualidade do daime me lembravam os tempos do LSD.
De repente, no meio do trabalho, parecia ter-se formado um furacão. Seu Manoel discursava.
Aquele homem, de fato, tinha se transformado num gigante. O discurso, na força do daime, era
uma manifestação xamânica. De forma brilhante, ele explicava o sentido e a razão de se tomar a
ayauhasca. Observava que a maioria estava ali "curtindo um barato" elegante e que não dava
cadeia. Segundo ele, o ato de tomar daime era um sacramento, algo assim como uma comunhão,
e, nessa casa, o objetivo era a caridade. Falava que nesse caminho não havia lugar para vícios,
uma referência óbvia à maconha usada no CEFLURIS com o nome de santa maria. Uma daimista
do Céu do Mar, sentada perto de mim, me fazia sinais indicando que então esse não era o lugar
dela. Seu Manoel também condenava o vicio do cigarro.
Quando voltei, no trabalho seguinte, não tinha ninguém do CEFLURIS. Só as mesmas pessoas
dos trabalhos iniciais, num clima de centro espírita.
Freqüentei mais algumas vezes e, por razões de ordem prática, não retornei.
Dois anos mais tarde, quando viajei a Rio Branco com o objetivo de resolver a situação da
minha filha e devido ao fato de que o CONFEN iria reabrir os estudos sobre o daime em função
dos processos que corriam na justiça, achei que era minha obrigação visitar as lideranças das
diversas seitas que utilizam a ayauhasca e me explicar, esclarecendo que a questão não era
contra a bebida e sim contra o mau uso que o CEFLURIS faz dela.
Encontrei seu Manoel saindo de uma grave doença. Muitos quilos mais magro, porém seus
olhos azuis estavam mais penetrantes e a mente ainda mais alerta. Lembrou-se do nosso encontro
no Rio de Janeiro de forma divertida: "A senhora esteve lá no dia em que eu desci o malho!"
Conversamos longamente e me convidou para um trabalho nos dias seguintes.
Compareci pontualmente, e seu Manoel me recebeu vestindo a farda de comandante. O local é
a residência dele; há uma casa de oração, um coreto, e diversas construções num grande terreno.
Na entrada, uma enorme cruz iluminada, como a utilizada no daime, com duas hastes horizontais,
o que significa a segunda vinda do Cristo. Sentei com ele na varanda, enquanto as pessoas iam
chegando, cumprimentando-o e lhe pedindo a bênção. Ele não é presunçoso, como outras
lideranças, não coloca dedo em riste, não supõe estar em cima de um pedestal, mas é respeitado
e tem autoridade, que exerce de forma simpática. Trocamos idéias sobre diversos assuntos. O
problema de minha filha o preocupava de forma sincera. Talvez o que mais me impressionou nele
é o fato de termos origens socioculturais tão diferentes e ao mesmo tempo conseguirmos um
entendimento conceituai muito mais profundo que com muitos eruditos da região sul do país cuja
vivência e cultura são semelhantes às minhas. A impressão que ele me passou é a de ser alguém
cuja consciência consegue se acoplar à consciência universal.
Os trabalhos da Barquinha acontecem num salão grande, onde há bancos semelhantes aos
das igrejas para os participantes permanecerem sentados.
Na frente, uma espécie de tablado, com um grande altar e uma mesa em torno da qual se
reúnem os músicos e os "médiuns de mesa" mais desenvolvidos. Esse tablado é separado do
salão por um espesso cortinado, como no Rio de Janeiro, que vai se abrindo devagar no início do
trabalho.
Os músicos executam as melodias dos salmos, o "puxador" canta e a assistência repete as
estrofes.
Seu Manoel me convidou a descer para conhecer o trabalho dos "guias".
Num espaço localizado num nível mais baixo daquele onde se realiza o culto, que sugere o porão
de um navio, cada médium incorporado tem seu espaço para trabalhar, ajudado e amparado por
outros dois médiuns que fazem o papel de assistentes.
Desta forma, essa população carente de todo e qualquer tipo de assistência social ou médica
recebe um atendimento xamânico que em muito se assemelha aos itens enumerados na lista feita
pelo aprendiz colombiano no capítulo sobre vegetalismo.
A Barquinha conseguiu, desta forma, transformar o que seria o trabalho individual do xamã em
algo que poderíamos denominar "xamanismo coletivo". Os médiuns tomam o daime para abrir suas
faculdades mediúnicas e os consultantes para se tornarem, através da expansão da consciência,
mais receptivos às forças xamânicas.
Assim, cada um, na medida de suas possibilidades, de forma ordeira e com respeito, vai
desvendando sua própria história.
Não há padrinhos, luta pelo poder, lavagem cerebral, e sim humildade e devoção.
Paralelamente, a Barquinha desenvolve um trabalho de distribuição de donativos e assistência
aos mais carentes, muito semelhante aos centros kardecistas.
A Barquinha e a UDV são uma prova de que a ayauhasca, quando utilizada com dignidade,
pode ser considerada um auxiliar precioso.
Para que essa dignidade não seja deturpada, como acontece no CEFLURIS, o zelo pela ética e
pela moral, tanto dos oficiantes como dos participantes, é questão primordial. Os postulados
básicos — Verdade, Amor, Harmonia e Justiça adquirem sob a luz da ayauhasca uma condição de
realidade, deixando de ser simples palavras.
O relato que se segue é absolutamente verídico, e minha intenção, ao escrevê-lo e publicá-lo,
é alertar, avisar a tantas pessoas que buscam encontrar, através da fé, a certeza de não estarem
sozinhas no mundo. Muita gente acredita que, por estar integrada a uma irmandade, estará livre
de traições, mentiras e decepções.
Muitos fatos escabrosos e escandalosos foram suprimidos, para evitar que o texto se tornasse
monótono e desagradável. A descrição de detalhes comportamentais serve para que o leitor possa
elaborar, por si próprio, uma versão objetiva desta lamentável situação.
Após ter percorrido as diversas trilhas que prometiam a expansão da consciência, como já foi
relatado, encontrei-me, aos quarenta anos, morando numa colônia finlandesa eqüidistante do Rio
de Janeiro e de São Paulo, e a meia hora de viagem de Mauá, onde estava começando um
trabalho com ayauhasca.
Na época eu era auto-suficiente financeiramente e criava minha filha, então com oito anos de
idade.
A primeira vez que tomei o daime —em março de 1984, no dia de São José — a Verônica
ficou em casa sob os cuidados da empregada. O sistema educativo que empreguei sempre com
ela fora baseado na amizade e na sinceridade. Como não era freqüente eu dormir fora de casa,
expliquei aonde iria, o que faria e prometi completar o relato na volta.
O trabalho durou a noite inteira, e quando descemos o morro, encontramos todos os carros
que estavam estacionados com todos os pneus furados. Talvez tenha sido um aviso do destino
que eu não soube compreender corretamente, o qual indicava que essa escolha era complicada.
Passamos o dia deslumbrados pelo que tínhamos visto no daime, lutando com o barro, com os
macacos e com o cansaço para poder deixar os carros em condições de descer a serra.
Cheguei em casa, na noite do dia seguinte ao trabalho, num estado psicológico difícil de
explicar.
Relatei a experiência para minha filha, que perguntou se havia crianças que tomavam o daime.
Respondi que sim, e ela pediu para tomar na próxima vez que eu fosse. Na hora, os
questionamentos me invadiram. Tinha visto a Patrícia, enquanto esperávamos os carros ficarem
prontos, abrir a boca da sua filha caçula, que estava encatarrada, e jogar daime dentro, como
quem coloca um aditivo na gasolina. Ela percebeu minha surpresa e esclareceu: "O daime é um
depurador, bota pra fora tudo aquilo que não precisamos..."
Será que eu não tinha fé o bastante? Se estava acreditando que havia encontrado um
caminho baseado na verdade, poderia negá-lo para minha filha? Será que a consciência de um
ser humano de oito anos de idade precisava de expansores? Achei que, se negasse, criaria atrito,
me parecia melhor "deixar acontecer". Assim, no próximo trabalho, fomos as duas juntas.
Uma das características do daime é seu desagradável sabor. Não se parece com nada, mas
seu gosto é uma das maiores dificuldades da beberagem.
Não lembro qual foi o hinário cantado no dia em que a Verônica experimentou o
daime. Porém, o que ficou gravado foi o comentário dela com referência às muitas
menções que os hinos fazem ao poder:
"Aqui dentro desta casa, dentro deste poder" ou "Este poder que é Pai" ou
"O poder que Deus me dá".
Ela disse: "O sabor não achei tão ruim assim, o que me preocupa é o que poderá
acontecer contigo no meio desses malucos que ficam a noite toda cantando ao poder.
Penso que eles serão capazes de qualquer coisa".
Foi este sem dúvida o mais claro aviso que eu não soube compreender. Se pudesse voltar atrás no
tempo, naquele instante eu abriria mão do daime, apesar das promessas de iluminação e de
conhecimento que a bebida prometia.
Hoje me arrependo profundamente por não ter feito isso, pois assim teria evitado muitos
sofrimentos.
A partir daí, a Verônica começou a questionar as atitudes das pessoas que tomavam o daime com
assustadora lucidez. Ela não tomou mais, e o contato com as pessoas que tomavam ficava cada
vez mais difícil devido às criticas que fazia, com muito fundamento.
Era fácil observar, nas pessoas, algumas atitudes preocupantes:
após tomar o daime, algumas vezes passavam a perder os bons modos, fazendo questão de
demonstrar que não se importavam com as regras, com o recato ou com a boa educação. Falavam
alto, andavam mal vestidas, enfiavam o dedo no nariz, não usavam talheres à mesa, pegavam a
comida com as mãos e por ai afora.
Enquanto eu tentava ter uma leitura do gênero "O daime está diluindo estruturas arcaicas e junto
vai-se a educação...", a Verônica insistia em condenar essas atitudes como sinal do perigo que
significava o uso excessivo e contínuo do daime.
Assim, com o intuito de respeitar a opinião dela e ao mesmo tempo manter o meu espaço interno
para continuar a exploração do caminho que tanto me interessava, aluguei em Maringá (distrito
próximo a Mauá) um chalé dentro do sitio de uma ex-diretora de escolas com quem a Verônica
ficava vendo televisão e comendo besteiras até a hora de dormir com toda a segurança. Isso me
permitia tomar o daime livre de culpas maternas.
Com o passar do tempo, as previsões feitas pela Verônica pareciam ir se cumprindo, no que dizia
respeito ao perigo de as pessoas se acharem poderosas. Isso valia para a maioria mas não para
todos. Paralelamente, ela começava a me dar trabalho com alguns problemas que eu não sabia
como resolver.
Por um lado, dificuldades nos relacionamentos. Em quase todos os lugares. Na escola, com os
vizinhos, comigo. A terapia com a psicóloga de nada adiantava. Sentia medos absurdos e
indiscriminados. Tratava dela com homeopatia e acupuntura. Pouco a pouco foram aparecendo
manifestações de paranormalidade. Ela via coisas, seres andando pela casa, e esses seres
derrubavam panelas, causavam uma desordem visível.
Comecei a me apavorar. Às vezes ela incorporava em casa, de repente. Como eu não possuo
nenhum tipo de paranormalidade, me era muito difícil entender essas experiências. A questão me
afligia muito. Ver uma menina linda, cheia de vida, aos dez anos, se debatendo com essas forças
me deixava agoniada, e me fazia sentir impotente.
Tentei rezas, benzeduras, centros kardecistas, tudo em vão. Tinha lido no livro que a Vera Froes
escreveu sobre o daime que o Sebastião Mota, quando criança, tinha problemas semelhantes.
Prometi a mim mesma que quando ele chegasse a Mauá o consultaria a respeito. A ocasião não
demorou.
Fui avisada num dia de meu aniversário que o padrinho tinha chegado e que, como estava doente,
faríamos um trabalho mentalizando sua cura, e que cantaríamos o hinário dele de farda branca,
apesar de não ser um trabalho oficial. Considerei esse encontro um presente. Ainda era na igreja
antiga, em cima do morro. O trabalho começou, e o padrinho Sebastião bailava no comando, sem
farda, com uma roupa de cor marrom. Ao ver esse homem cansado, adoentado, me perguntava se
eu também não estava entrando na viagem do culto à personalidade. Os pensamentos de que
aquilo era um "marketing esotérico" me assustavam. O daime estabelece contatos telepáticos entre
as pessoas. Parecia que ele me respondia, mostrando-me a simplicidade com que vivia, a
diferença entre ele e outros gurus, e como sabia dominar "as forças".
Pensei em conversar com o padrinho no intervalo que acontece, no seu hinário, no hino de
número cem. No hino de número vinte, ele se retirou do trabalho. Achei, então, que não era para
acontecer naquele dia.
Sempre na prática já mencionada, de ser a última a chegar e a primeira a sair, quando o trabalho
acabou, desci às pressas, rumo ao carro, que estava estacionado junto à casa onde funcionava a
sede da fazenda. Era um domingo, e eu estava com pressa, já que teria que cuidar de uma lojinha
que tinha aberto em Maringá.
Enquanto esquentava o motor do carro, fui surpreendida pela imagem do padrinho refletida no
espelho lateral, sorrindo e dizendo:
"A senhora desejava falar comigo?"
Então a telepatia que havia sentido com ele era verdadeira, pensei.
"Queria sim, —respondi —"mas o senhor não ficou no trabalho, e quando lhe procurei já não
estava."
"É que, como não estava com a farda, senti que não era correio ficar bailando no meio desse
povo todo, que estava aí, fardado, pedindo pela minha saúde. Quem sou eu, para não usar farda?
Porém percebi que a senhora tinha alguns assuntos para tratar comigo, e por isso aqui estou" —
disse ele.
Fiquei muito impressionada. Relatei-lhe os problemas pêlos quais a Verônica estava passando.
Ele parecia ter absoluto domínio do tema. E sentenciou:
"O que acontece com ela é que seu 'perispírito' percebeu a enorme responsabilidade que é
tomar daime e está com medo. Porque para vocês, mulheres, tomar daime é dar testemunho da
existência da Virgem Maria e para os homens tomar daime é testemunhar a existência do Cristo.
Essa responsabilidade só pode caber aos seres humanos, os animais não podem dar esses
testemunhos".
E mais ainda:
"A senhora me traga ela hoje até as cinco da tarde, que terei uma conversa para esclarecê-la".
No momento, deviam ser' aproximadamente oito horas da manhã e eu tinha o compromisso de
tomar conta da loja pelo resto do dia.
"Eu não posso voltar hoje" — respondi — "e ela não pode vir sozinha, porque onde estaremos
é longe."
"A senhora diz a ela que eu a esperarei até as cinco", completou ele, encerrando o assunto.
Divagamos um pouco sobre outras questões e parti. Quando cheguei ao chalé falei com a
Verônica sobre o encontro e ela ouviu, pensativa. Mais tarde foi brincar com uma colega do Rio de
Janeiro que tinha casa de campo em Maringá e nenhuma ligação com o daime.
Por volta das três horas da tarde, ela chegou à loja, junto com a família da menina,
perguntando se eu a deixaria ir com eles até a comunidade do daime, já que precisavam ir até lá
para entregar alguma coisa e não sabiam como chegar. Obviamente deixei e observei
deslumbrada que ela estaria chegando na hora em que o padrinho havia pedido.
Quando retomou. Verônica relatou o seguinte:
"Perguntei onde ele estava e me informaram que estaria no quarto dele, na 'casa do padrinho'.
Quando cheguei lá, ele estava deitado, com a cabeça na direção da porta. Aí eu falei:
Padrinho, eu sou... Ele não me deixou acabar a frase e completou:
A filha da mulher com quem eu falei hoje de manhã.
Nós conversamos e eu decidi que vou passar a tomar daime".
Nunca soube o que eles conversaram, mas o carisma do padrinho impressionou-a o bastante,
ou talvez ela tenha projetado nele sua carência de pai. O caso é que essa conversa foi de
influência marcante para Verônica.
Algum tempo depois, quando procurei saber com os espíritas kardecistas a respeito do
perispírito que o padrinho tinha mencionado, tive uma grande decepção ao constatar que ele
estava errado:
trata-se de uma camada energética existente entre o corpo físico e o astral que não tem
capacidade de conhecimento ou de compreensão, como o velho Mota tinha afirmado.
Uma gafe? Será que o velho blefava com a espiritualidade, e por carência de figuras fortes
estávamos caindo num engodo?
Resolvi aquietar minha mente, fortalecer a fé e observar atentamente, mais do que nunca. Me
parecia que o importante naquele momento era que ela se libertasse dos medos, das angústias, da
sensação de ser diferente.
Porém, isso não me parecia suficiente. Questionava, comigo mesma, o fato de permitir que minha
filha tomasse uma bebida catalogada como "alucinógeno". O relatório elaborado por uma comissão
multidisciplinar do CONFEN fez a balança pender definitivamente: segundo esse documento, não
havia perigo algum. Trechos desse relatório foram transcritos no capítulo sobre o CONFEN que
compõe este livro.
Desta forma, com aval espiritual do padrinho e federal dos conselheiros do CONFEN, Verônica
começou a freqüentar os trabalhos com certa regularidade. Parecia estar melhorando.
Na noite do dia 31 de dezembro de 1988, em que o Bateau Mouche afundou —fato de que só
viemos a saber após o trabalho —, tivemos uma das mais marcantes experiências desse período.
Cantávamos o hinário do Alex. A corrente se desfazia. Alex parecia não ter força de comando
suficiente para mantela. As pessoas se espalhavam dentro e fora da igreja, passando mal, urrando,
vomitando, gemendo. O trabalho aconteceu na igreja antiga, em cima do morro, e chovia
torrencialmente. Os banheiros ficavam a certa distância; eram fossas, e as paredes feitas de
esteiras.
Vi que a Verônica estava entrando na onda de sofrimento coletivo, a corrente não existia. Ela
disse que queria ir ao banheiro e precisava que eu fosse com ela. Peguei um guarda-chuva e
saímos. Quando chegamos, ela tentava entrar no banheiro através da parede de esteira, e não
pela porta. Custei a convencê-la. Diluviava. Quando tentamos voltar para a igreja, ela caiu numa
poça. Inerte, não respondia. Como era mais alta do que eu e mais pesada, não conseguia
carregála. Pedi ajuda aos curadores que tentavam dar assistência à enorme quantidade de
pessoas que passavam mal. Ninguém estava conseguindo ajudar ninguém. Entendi que estávamos
pondo em liberdade forças sobre as quais não tínhamos domínio algum, e que havia prioridade de
atendimento condizente com o padrão socioeconômico do sofredor.
A única pessoa que se habilitou para nos ajudar, embora só com apoio moral, foi a Noia, outra
das consideradas "rebeldes" e muito hostilizada. Ficamos, as duas, acompanhando no canto os
hinos que vinham da igreja, onde a corrente estava se refazendo, e tocando maracá junto da
Verônica, deitada na poça, sob uma chuva torrencial, sem que ninguém se dispusesse a carregá-la
para dentro. Nessa noite meus questionamentos chegaram a seu ponto mais exigente:
"Que estava fazendo eu, com minha filha deitada numa poça, sob a chuva, sacudindo perto do
ouvido dela uma latinha cheia de bilhas e achando que isso era um caminho espiritual?"
Finalmente, o Rodrigo nos ajudou e conseguimos levar a Verônica para dentro. Não foi fácil trazê-
la de volta. Quando abriu os olhos, como se nada tivesse acontecido, falou: "Vou me fardar".
Tentei saber o que tinha acontecido com ela durante aquela experiência e não consegui nada. Dois
anos mais tarde, assistimos juntas ao filme de Akira Kurosawa, Sonhos, no qual há uma cena que
mostra uma espécie de pedreira para onde vão as almas dos desencarnados que por alguma
razão continuam sofrendo depois de mortos.
Ela disse ter estado num lugar semelhante naquela noite e que tinha visto Jesus Cristo andando
entre os sofredores e dando-lhes alento e conforto.
O fardamento dela também aconteceu no dia de São José, em 1989, três meses após esse
trabalho de réveilon. Como São José é considerado o protetor da família, ingenuamente imaginei
que, assim, minha família —eu e Verônica —estaria protegida.
O que mais me chamava atenção era a forma como ela se integrava facilmente aos núcleos mais
recalcitrantes da comunidade. Como, até então, ela tinha tido problemas para ser aceita em
grupos, achei que o daime estava operando um processo de socialização e me mantive como
observadora, a distância.
A adolescência se aproximava, e as dificuldades se insinuavam cada vez com mais intensidade.
Sentia que ela procurava, como a maioria dos adolescentes, "a sua tribo", e que talvez os teens do
daime representassem esse papel.
Não demorou para aparecerem os problemas. Com constrangimento, as pessoas me procuravam
para fazer queixas quanto ao comportamento da Verônica. Segundo os relatos, ela teria
conseguido que duas famílias, numerosas e amigas entre si, moradoras na comunidade daimista,
brigassem por intrigas criadas por ela.
Os temas das intrigas eram semelhantes aos das peças de teatro de Nelson Rodrigues, e o fato de
minha filha demonstrar esse poder, com doze anos de idade, me deixava perplexa.
Resolvi apostar na fé. A proposta da doutrina daimista é Amor, Verdade e Justiça; portanto, no
meu entender, deveria ir fundo nessa viagem.
Quando ela fez catorze anos os conflitos na escola e no meio social eram cada dia mais graves. As
condições de sobrevivência numa sociedade em crise, num lugar sem recursos, como a cidade de
Resende (a mais próxima do local onde morávamos), não me davam chance de procurar ajuda
especializada. O Gilberto Gil apregoava naquela época: "A fé não costuma falhar". Decidi confiar
na fé.
Mas chegou um momento em que descobri que ela tinha armado tal rede de mentiras e intrigas,
que havia deixado a direção e administração da escola de cabelos em pé. E para evitar que eu a
desmascarasse, espalhava por todo canto que eu era louca e que, se soubesse das encrencas em
que ela estava metida, "eu a mataria". A diretoria da escola vivia o conflito de não me avisar ou
correr o risco de que eu "a matasse".
Tomar conhecimento desses fatos, quando se está envolvido num caminho de conhecimento que
apregoa amor, verdade e justiça, é muito mais difícil de engolir do que qualquer outro tipo de
"sapo".
A psicologia não se cansa de repetir que nós nos projetamos em nossos filhos. Até certo ponto,
sim, quando temos a esperança de que os valores em que acreditamos e a moral que professamos
serão absorvidos, como que por osmose, pêlos nossos filhos. Constatar que o(a) filho(a) transgride
a lei, seja espiritual ou material, é uma das dores com mais intenso sabor de fracasso que se
conhece.
Ante outras atitudes de descontrole, e por não saber o que fazer, achei que uma medida
importante seria afastá-la por um breve período de tempo — uma semana — do ambiente onde
aconteciam essas confusões todas. Nesse período, eu poderia procurar, com mais tranqüilidade,
uma ajuda, um caminho de cura.
Naquele tempo, próximo ao local da comunidade do daime, em Mauá, morava uma família de
gaúchos que tinham se comportado sempre de forma gentil e atenciosa, e na casa deles minha
filha gostava de ficar.
Levei-a para lá com a promessa de buscá-la após uma semana. Ficou combinado, inclusive, dia e
hora — na sexta-feira seguinte.
Cheguei pontualmente, levando a notícia de que tinha marcado um tratamento com um médico de
quem ela dizia gostar.
Chegou algumas horas mais tarde do combinado, vindo da comunidade do daime. O olhar,
estranho. A expressão do rosto, também. Parecia um robô.
Disse compulsoriamente: "Resolvi assumir a doutrina, vou morar por aqui".
Poucos dias antes, ela tinha se referido com desdém a respeito dos jovens que moravam em
comunidades daimistas, dizendo: "Eu jamais moraria numa comunidade, sem estudar, sem ver TV.
Vir visitar, tudo bem, ficar uns dias, também. Mas morar, jamais!"
Tentei lembrá-la dessa opinião tão recente, mas a coerência não interessava. A impressão que
tinha era a de não estar falando com minha filha, e sim com outra pessoa no corpo dela.
Compreendi que tinha havido manipulação na consciência dela. Tinham "feito sua cabeça". Achei
que não era grave, se a coisa parasse por aí. Procurei a direção da comunidade. Na época o líder
era o Alex que estava no Céu do Mapiá (AM), e tinha deixado o comando com um colegiado, do
qual faziam parte diversas mulheres.
Marquei uma reunião com elas na mesma noite. Defini a atitude delas como lavagem cerebral.
Tinham usado o daime para "lavar o cérebro" da minha filha, que vivia uma aguda crise existencial!
E para afastá-la de mim, não só física como psicologicamente.
Pelas regras do próprio CEFLURIS e do CONFEN, é proibido ministrar daime a menores sem a
presença dos pais. Falei que estavam desrespeitando a doutrina, fazendo jogo sujo, e que, caso
não desistissem, eu os processaria.
Admitiram a culpa. Prometeram, juraram não fazer mais. Convidaram-me para fazer um
trabalho de cura só de mulheres, na casa da estrela, para limpar o astral.
A casa da estrela é um local onde se realizam trabalhos fora do calendário oficial, que
poderiam ser denominados, mais genericamente, xamânicos. São os trabalhos de cura. O local é
chamado "casa da estrela", fica escondido na mata, longe da igreja, e para se chegar lá é preciso
encarar trilhas estreitas e complicadas.
Na estrela acontece também outro tipo de trabalho, denominado "jogo divino". Esse jogo tem
por finalidade resolver conflitos entre os membros da seita. Quando isto acontece, são convidados
os envolvidos e pessoas chegadas a eles. Todos se sentam numa roda, e em vez de tomar daime,
só pitam santa maria, ou seja, fumam maconha.
Resolvi aceitar o convite.
O trabalho foi marcado para a madrugada seguinte. Dormi no sitio dos gaúchos, perto da
comunidade. Deveria chegar à casa da estrela antes das quatro da manhã. O local onde a casa
fica é longe e ermo. Não tinha despertador, porém algumas pessoas prometeram me acordar.
Ninguém o fez. Acordei sozinha às três e meia. Vesti a farda azul às pressas e, sem lanterna, parti
no escuro. Tinha uma sensação desagradável de estar iniciando uma jornada rumo às trevas.
Tentava afastar esses pensamentos, sobrepondo a eles a fé no daime.
A dificuldade consistia em separar as coisas. Separar a ayauhasca das pessoas. Mas como?
Se acreditava que a bebida aumentava minha compreensão, deveria fazer o mesmo efeito nas
outras pessoas. E se elas também se beneficiavam desse efeito, não poderiam ser capazes de
fazer uma maldade tamanha com uma adolescente.
Andei aproximadamente dois quilômetros no escuro. Conhecia mais ou menos o local, e sempre
que havia passado por ali fora durante o dia, ou à noite com lanternas. Eram trilhas no mato com
algumas pontes semelhantes a pinguelas ou passarelas. Não havia a luz do luar. Um sentimento
muito forte de segurança me conduzia.
Quando cheguei à casa da estrela, só havia duas mulheres: a Cristina Mota e a Bei. As duas
com formação espírita. Era uma madrugada fria. '
A medicina tradicional admite que, em determinadas horas, a nossa capacidade de absorver
substâncias é maior do que em outras. Parece que uma das horas em que essa nossa capacidade
torna-se maior é por volta das quatro da madrugada.
Tomamos um daime muito apurado. Pitamos. O pito era de flor, onde tem maior concentração
de THC. Como já foi dito, na linguagem daimista, pitar significa fumar maconha, e pito de flor é o
cigarro preparado com a flor da cannabis onde há maior concentração do princípio ativo
denominado THC, abreviatura de alcalóide tetra hidro cannabiol.
Senti no ar uma intenção de me desestabilizar. Começaram a cantar hinos. Parecia não haver
uma forma preestabelecida no trabalho. Enquanto elas se perdiam em relação ao rumo a seguir,
eu sentia que devia segurar a integridade do meu ser com todas as minhas forças. Por outro lado,
queria acreditar em alguma boa intenção dessas mulheres, que tinham acordado de madrugada e
estavam ali, aparentemente, tentando me ajudar.
Olhavam-se entre si. Tomamos mais daime, pitamos outra vez. A força era muito grande,
amanhecia. A Bei "deu passagem", incorporou o que parecia ser uma entidade feminina sofrendo.
Alguma coisa me dizia que ela estava ali para me mostrar o que eu já tinha sofrido em outras
vidas junto a Verônica e o que me esperava de sofrimento nesta.
Quando o trabalho acabou e me dirigi à sede da comunidade, constatei, espantada, que na
escuridão tinha passado beirando formigueiros enormes de formigas vermelhas. Se tivesse pisado
em algum deles, teria sido atacada por elas. Isso me reforçou o sentimento de que alguém invisível
tinha me acompanhado na caminhada, impregnando-me com a sensação de segurança.
Quando acabou o trabalho, tivemos uma reunião de mulheres na sede da comunidade. Era sábado
de manhã. Admitiram que tinham manipulado a consciência da Verônica, movidas por sentimentos
de pena. Porém tinham compreendido o erro e não mais o cometeriam.
Sugeriram que voltasse para casa sozinha, para evitar discussões no carro, já que o clima ainda
era delicado e a estrada de Mauá é perigosa.
No dia seguinte, domingo, ela desceria para Penedo de ônibus. Resolvi acreditar. Sentia que
estava travando uma luta que poderia ser definida como o indivíduo contra o coletivo.
Desci a estrada Mauá — Penedo chorando. Tinha entrevisto durante o trabalho algo infernal que
não conseguia entender. Aguardei com impaciência o dia seguinte, o retomo da minha filha. Ela
chegou, como tinha sido combinado. Estava estranha, o olhar e a voz não eram dela. Começou a
ficar agressiva. Me peitava, desafiava, me ofendia, eu não entendia aonde ela queria chegar. Eu
tentava me segurar no amor. Eu a amava, como ainda a amo. Não sei como, de repente
estávamos brigando fisicamente. Utilizando ela uma força descomunal, jogou-me no chão e
chutava minha cabeça em nome de Jesus Cristo e do santo daime. Fugiu para Resende, onde
procurou pessoas desavisadas, que a acolheram e acobertaram seu retorno à comunidade do
daime, em Visconde de Mauá.
Naquele tempo eu tinha uma vaga noção das condições em que o CONFEN tinha liberado o uso
da ayauhasca. Porém, sabia com certeza que os menores de idade só poderiam tomar o daime na
presença dos responsáveis e que a permanência deles nas comunidades só era possível com uma
autorização específica, o que eu não estava disposta a dar. Era evidente uma confabulação entre
ela e as pessoas da comunidade. O chefe, Alex Polari, encontrava-se no Céu do Mapiá (AM), e no
seu lugar ficou um sujeito de nome Alfredo, famoso pela sua ambigüidade moral.
Assim, para evitar mais confrontos, resolvi consultar na justiça qual seria o caminho para retirar
minha filha do Céu da Montanha. Fui recebida por uma promotora da Vara de Família e Menores.
Tentei ser objetiva, sabendo que a história era difícil de explicar. Ela não me deixou acabar e
interrompeu-me, dizendo:
"Quer dizer que a senhora ia lá em cima tomar essa porra para ficar doidona, levou a filha para
endoidar junto e agora que não está conseguindo segurar o rojão vem aqui pedir ajuda?"
"A questão não é bem essa" —respondi. "Eu vim saber, além de como fazer para tirá-la, o que
fazer, já que ela está agressiva ao ponto de bater em mim." E mostrei-lhe as marcas da surra.
Ela respondeu:
"É bem simples: eu mando a polícia lá, arrebento, acabo com essa pouca-vergonha e coloco sua
filha numa casa para adolescentes prostitutas, usuárias de drogas, delinqüentes..."
"Obrigada "—respondi —, "procurarei outro caminho."
Bom, pensei, se é esta a forma em que se ministra a justiça, vou ter que contar só com a justiça
divina. A dor que eu sentia não me deixava raciocinar. Minha filha era toda a família que eu tinha, a
pessoa a quem eu mais tinha amado, porém sem esperar nada em troca. Seria esta uma lição do
carma? Para aprender o quê? Voltei para casa atordoada, me perguntando continuamente em que
ponto eu poderia ter errado tanto. Em confiar em Deus? No daime? Os hinos do mestre Irineu
surgiam em meio aos meus pensamentos:
"A minha Mãe que disse tudo eu tenho que vencer sigo neste
caminho nada eu tenho a temer".
A proposta da doutrina do daime é basicamente Amor, Verdade e Justiça. Sem estes valores, o
que sobra da nossa dignidade como seres humanos? Resolvi acreditar como forma de não
enlouquecer.
No dia seguinte, recebi um telefonema do fórum de Resende: a minha filha tinha se apresentado
ao juiz na companhia do chefe interino da comunidade do Céu da Montanha, o já mencionado
Alfredo. Este último tinha se oferecido gentilmente para acolhê-la, devido ao fato de "ela correr
risco de vida na minha companhia", e ele sentir-se com responsabilidade espiritual, e por ser pai de
outras adolescentes, solicitava a guarda.
O juiz, sem sequer ter me ouvido, havia entregue a guarda dela a um sujeito sem moral alguma.
Não acreditei no que ouvi. Fui pessoalmente falar com o juiz.
Perguntei-lhe se conhecia os predicados da pessoa a quem tinha entregue minha filha e sobre o
porquê de não ter sequer me ouvido a respeito. A resposta foi textualmente a seguinte: "Na minha
leitura, a senhora foi amante desse sujeito, ele não lhe quis mais, e a senhora está com dor-de-
cotovelo."
Isso aconteceu em junho de 1991. No momento em que escrevo este texto, esse juiz ocupa o
cargo de corregedor na cidade do Rio de janeiro. Vivemos um momento político com a promessa
de mudanças nas instituições. Me pergunto: que tipo de mudanças são possíveis numa sociedade
cujos magistrados agem dessa forma?
A partir daí, iniciei uma jornada dolorosa, com descidas aos infernos e travessias em mares de
lama. Transitei pelas trilhas das mentiras em nome de Deus, aprendi como se desfaz a identidade
dos seres humanos, como se roubam almas, como se deturpam as sagradas escrituras.
E, como muitas mulheres em todo o planeta, senti na pele o que as estruturas patriarcais são
capazes de fazer para impedir que a nova consciência feminina se manifeste. Houve muitos
momentos nos quais, me sentindo atropelada, ignorada, desrespeitada pêlos integrantes do
judiciário, tive vontade de parafrasear Federico Felhni, no seu filme Cidade das Mulheres,
dizendo: "Eu não nasci em Marte, não. Nasci e moro aqui na Terra e o meu único crime é o de ser
mulher e exercer o direito de ser mãe".
Não somente tentaram me destruir, como fizeram com que minha filha fosse privada do direito de
ter um lar, uma mãe provedora.
Assim, presenciei, estarrecida, a conivência do poder público com os estelionatários da fé, seu
cinismo, sua omissão.
Era um inverno muito frio. Sentia uma dor de aborto, de ter sido desgarrada nas entranhas. Sem o
apoio da justiça, só me restava a fé. Passei a manter contato com o Eduardo Mota, adepto da
comunidade daimista, em cuja casa minha filha estava morando. Ela tinha saído da casa do
Alfredo, por exigência minha. Sabia que lá ela seria obrigada a satisfazer as motivações escusas
do sujeito que tinha ido junto com ela ao fórum. Resolvi ceder temporariamente, enquanto
negociava a saída dela da comunidade, com a condição de que ela saísse da casa dele. Na época,
o argumento que usei para conseguir a transferência dela foi o de que eu denunciaria o
envolvimento da seita com o uso da maconha.
Ela saiu na hora em que recebeu o recado.
O Eduardo Mota era tido como pessoa conciliadora e gentil. Acreditei que se abria uma brecha. Ele
passou a visitar minha residência com um discurso espiritual e fraterno que não me convencia. Eu
retrucava que não concordava que minha filha ficasse lá. Num segundo momento, ele começou a
me pedir dinheiro porque, segundo seu raciocínio, estava sustentando minha filha, e aos poucos foi
ficando prepotente e grosseiro. Eu queria ver a Verônica e não me achava em condições de ir para
a comunidade. Implorava para que ela viesse me ver em casa, quando o Mota vinha. Tudo em vão.
Finalmente, em setembro, um mês antes de ela completar quinze anos, veio um dia para casa na
companhia do Mota. Ele assumia o ar de cavaleiro medieval ao qual foi confiada a guarda da
donzela. Tentei falar com ela no meu quarto, enquanto o supradito aguardava na sala. Ela se
recusava, simulava estar com medo de ficar sozinha comigo. Exigia a presença do guardião. Só
respondia às minhas indagações olhando para ele. Era evidente que a lavagem cerebral tinha sido
bem-feita. Expliquei para ambos que de maneira alguma ela ficaria na comunidade: ou eles
concordavam de forma amena em organizar a saída dela, ou eu utilizaria o poder público.
Não houve acordo. Recorri à promotoria. Consegui mostrar, embora sem muita credibilidade, que o
daime não era, como a promotora se referia, "uma porra que dava doideira", e sim uma substância
cujo uso tinha sido liberado e regulamentado por organismo federal, o CONFEN, e que as
condições em que minha filha se encontrava fugiam a essas determinações. A promotora chegou à
conclusão de que suas grosserias iniciais não me amedrontaram e marcou uma reunião com os
daimistas, com minha filha, com o juiz e comigo.
Faltaram à reunião e foi-se mais um mês para se marcar outra. Finalmente compareceram.
Enquanto aguardávamos ser recebidos pelo magistrado, minha filha me evitava e o Mota cantava
hinos do daime no hall do fórum.
Dessa vez o juiz foi categórico: explicou para Verônica que não havia possibilidade alguma de ela
permanecer lá. Ela esperneava, argumentava. O juiz retrucava. A situação era ridícula, pela falta
de senso, de compreensão. Assim mesmo, chegou-se a um acordo: ela ficaria na comunidade até
o dia 6 de novembro — estávamos em outubro de 1991 — data na qual um amigo meu, morador
das proximidades, pegaria meu carro e iria buscá-la para evitar os atritos que obviamente
aconteceriam caso eu fosse pessoalmente. Todos concordamos. Ao sair, o Mota, ainda
assoviando hinos afirmou: "O juiz não está com nada".
A empáfia dele me estremeceu. Não consegui compreender o que ele queria dizer.
No dia 5 de novembro, na véspera do dia de buscar Verônica, o Mota me telefonou dizendo para
não mandar o carro porque a minha filha não retornaria para casa, como tinha sido combinado,
Tentei argumentar a respeito do compromisso com a justiça. Em vão. Os cérebros que passam por
processos de lavagem ficam imunes à lógica e à coerência. Fiquei paralisada, estarrecida. Até o
momento, todas as situações difíceis que tinha encarado na vida sempre apresentavam alguma
coerência. A situação era irracional, absurda, e eu não tinha parâmetros para compreendê-la.
No dia seguinte, ainda chocada, recebi o telefonema da promotora, perguntando se tudo tinha
corrido como previsto. Relatei-lhe o telefonema do Mota: mais uma vez ela demonstrou seu pavio
curto: "A senhora venha aqui ao fórum amanhã, às cinco da tarde, buscar sua filha".
Tentei perguntar o que ela iria fazer. Presunção minha... "A senhora quer sua filha? Amanhã à
tarde!", foi a resposta.
Pontualmente, no dia 7 de novembro, compareci ao local onde a justiça é ministrada. O que lá
aconteceu mais parecia um filme de neo-realismo. De um lado, oficial de justiça, assistentes
sociais, funcionários do fórum. De outro, minha filha, na condição de vítima, e vários daimistas, no
papel de guardiões da donzela. O Mota era obviamente um deles. No meio, a promotora aos
berros.
Eu não conseguia chegar a menos de três metros de distância do ponto em que a Verônica se
encontrava, já que ela entrava em pânico, com gestos teatrais que impressionavam fortemente a
assistência. Ela se recusava a voltar para casa.
Enquanto eu aguardava, o oficial de justiça me relatou os acontecimentos na comunidade do
daime:
Tinham chegado à comunidade daimista por volta das onze horas da manhã. Ele num carro,
munido de um mandado de busca e apreensão, e uma Kombi lotada de policiais militares para
garantir o cumprimento do mandado. Nesse horário a maioria dos moradores da comunidade
encontrava-se no pátio, em frente à cozinha comunitária, onde era servido o almoço. Com a
chegada do aparato policial, o caos se manifestou. A Verônica, como não poderia deixar de ser,
bateu o pé dizendo que de lá não sairia. As mulheres, que não eram poucas, fizeram uma corrente
em torno dos policiais e começaram a rezar, enquanto a Sônia, esposa do Alex Polari,
argumentava aos berros com o oficial de justiça que não poderiam entregar minha filha àquela
mulher (eu), e as crianças choravam aos berros.
A queda-de-braço tinha durado mais de quatro horas. Finalmente, minha filha tinha sido colocada
no carro com o oficial de justiça, e uma comitiva de daimistas tinha vindo atrás, uns de carro, outros
de moto.
Achei estranha a presença de uma daimista chamada Carminha, de quem minha filha dizia, até
poucas semanas antes de ficar lá na comunidade, sentir "ódio" e "repulsa". Ela veio ao fórum e
estava sendo tratada como madrinha da Verônica.
A queda-de-braço continuava. Por um lado, a promotora argumentando que não existia outra
possibilidade: ela tinha que voltar para casa já que, por não termos parentes, era o único lugar
possível.
De outro lado, minha filha, simulando um sotaque caipira carregadíssimo, que insinuava
deboche, sustentando que para casa não voltava. Houve momentos terríveis, quando ela era
compelida a argumentar a respeito da sua recusa.
A promotora chamou-me para sua sala, para conversarmos a portas fechadas e determinar até
quanto ela poderia pressionar. Enquanto discorríamos, alguém bateu na porta e disse alguma
coisa ao ouvido dela que eu não consegui entender. A seguir, houve um escândalo: a promotora,
como que possuída, tomou das mãos da Carminha a mochila da Verônica e, aos gritos e
impropérios, ameaçava e dava ordens de bater na máquina alguns termos.
O que tinha acontecido era o seguinte: enquanto nós duas estávamos trancadas na sala, para
resolver como sair dessa situação, a esposa de um juiz, que se encontrava de passagem pelo
fórum, à espera do marido, tinha presenciado uma cena chocante:
A Verônica estava num canto com a Carminha — a atual "madrinha" — que apoiava uma mão
na testa da minha filha e com a outra segurava a mão dela, dizendo: "REPITA o QUE ESTOU
DIZENDO. REPITA O QUE ESTOU DIZENDO! VOCÊ NÃO É FELIZ COM SUA MÃE! VOCÊ SÓ É
FELIZ LÁ!" (na comunidade do daime). Esse episódio está registrado no processo de número
209/91, folha 7, no fórum do município de Resende (RJ).
Na hora, foi lavrado um documento e aberto um processo, onde consta, além dos fatos citados,
uma determinação do juiz e da promotora, pela qual todos os daimistas, em especial o Mota e a
Carminha, ficavam a partir daquele instante proibidos de se aproximar da Verônica, por todo e
qualquer meio, seja por telefone, carta, bilhete, presentes ou visitas.
Após os daimistas terem assinado o documento, foram literalmente expulsos do fórum, ao som
nada melodioso dos gritos e impropérios da promotora, que ameaçava acabar com "essa pouca-
vergonha de beber essa porra!".
Assim, já sem os guardiões, minha filha ainda resistia. Passava da meia-noite, e a promotora
apelou: "A única chance, não sendo a casa da tua mãe, é a casa do menor de rua".
Para minha consternação, ela aceitou. Foi levada para lá num carro da policia militar e passou a
conviver com menores delinqüentes, infratores, como forma de reafirmar sua fé no daime e provar
sua absoluta integração à seita.
Os dias passavam e eu oscilava entre a angústia e a depressão. Tentava visitá-la e, aos gritos, ela
me punha para fora. Soube, mais tarde, que os daimistas visitavam-na assiduamente.
Os absurdos se sucediam, criando um emaranhado de situações incompreensíveis. Ninguém
conseguia extrair dela o que eu poderia ter de tão perigoso assim. Porém, as pessoas que nada
tinham a ver com a história aproveitavam-se da situação para projetar nela seus recalques.
Desta forma, num dia, enquanto tentava falar com minha filha, fui agredida verbalmente por uma
vereadora que, a todo custo, argumentava que eu deveria fazer um exame de consciência para
avaliar meu comportamento como mãe. Cheguei em casa chorando, relembrando-me de todas as
situações de dificuldade que tinha vivido sozinha, sem ajuda alguma, para criar minha filha com (
dignidade. Lembrei-me das vezes em que tive que fazer opções duras, por falta de dinheiro, do
gênero: ambas precisávamos de dentista, o dinheiro só dava para pagar um tratamento, então eu
protelava o meu. Onde estaria essa vereadora naquele momento? Quantas vezes tinha virado
noites cuidando das febres, trabalhando para poder pagar escolas particulares, tentando ser pai e
mãe, já que o pai verdadeiro tinha se omitido?
É óbvio que quando se cria um filho não se medem esforços e não se espera recompensa. Da
mesma forma, não se espera tropeçar com uma seita ensandecida nem com desconhecidos, que
foram muitos e que me colocaram na situação de Judas, apedrejando-me e condenando-me.
A mesma vereadora, que acumulava a função de diretora da casa do menor, onde minha filha
permaneceu, expulsou-a, quando tomou conhecimento de que ela tinha feito ligações interurbanas
para os chefes da seita em outras cidades, deixando uma conta, que em muito excedia a receita
para cobrir todos os custos da casa.
O natal se aproximava. Nessa data, nos anos anteriores, tínhamos estado em Mauá, fazendo o
trabalho onde se canta o hinário de mestre Irineu. Nesse ano, obviamente, eu ficaria em casa. E a
minha filha?
Uma amiga minha do Rio de Janeiro prontificou-se a vir buscá-la, levá-la para a cidade
maravilhosa, onde o programa seria uma casa com piscina, outros adolescentes, festa, passeios e
tudo mais. Para isso ser possível seria preciso uma autorização da Vara de Menores. Essa amiga,
pessoa idônea, mãe de dois rapazes, conhecia a Verônica desde que ela tinha três anos. Soava
estranho precisar de um documento emitido pela Promotoria. De qualquer forma, conseguimos o
papel, com carimbos e assinaturas, e lá se foram. A Verônica parecia não concordar com a
viagem. Logo que chegaram ao Rio, minha amiga ligou desesperada: a Verônica fugira para a
casa de daimistas, prometendo voltar. A autorização da promotora era necessária justamente para
manter o controle, evitando contatos da Verônica com o daime. Como se verá mais adiante, a má
vontade em viajar e a insatisfação que ela demonstrava ante a disposição da minha amiga de vir
buscá-la estavam ligadas a uma confabulação comandada por Alex Polari e sua mulher Sônia
(nesse tempo em Mauá), na qual eles faziam até trabalhos, com o objetivo de "abrir o coração" da
promotora e "mudar minha cabeça", e assim a Verônica poderia estar presente no natal, junto com
eles. Segundo carta do Alex enviada a ela, contrariando a proibição judicial, "seria o maior
presente de natal que Deus poderia nos dar".
A casa de daimistas para onde ela tinha se dirigido era a do ator Carlos Augusto Strazzer, pai de
três adolescentes, todos daimistas, e que na época encontrava-se gravemente doente.
Pessoa de profunda sensibilidade, Carlos Augusto demonstrou compreender como ninguém o que
estava acontecendo e apontou um caminho para uma solução digna.
Após conversar com a Verônica e induzi-la a retornar para casa da minha amiga, me telefonou
dizendo: "O que se passa com a tua filha é conseqüência de uma desastrada intromissão das
pessoas da seita num relacionamento entre mãe e filha. A religião, que deveria ter funcionado para
unir, foi utilizada para separar. Você não deve se afastar, deve lutar dentro da doutrina, continuar
tomando daime. No dia dos Santos Reis — 6 de janeiro — o padrinho Alfredo (principal líder da
seita, normalmente na Amazônia) estará no Rio de Janeiro". (Nessa data acontece um trabalho de
daime que é um dos pontos alto» do calendário daimista.) "Eu falarei com ele — acrescentou —
para se reunir contigo, tomar conhecimento dessa história e encontrar uma solução."
O Carlos Augusto me emocionara, achei que, enquanto houvesse pessoas com essa clareza,
nem tudo estava perdido. Na data combinada, viajei ao Rio e antes de ir para a igreja passei na
casa dele.
Com enorme sabedoria, ele me explicou que em todo grupo humano o ponto mais delicado são
os adolescentes. De alguma forma, o caso da Verônica era um alerta. Segundo ele, eu deveria
conseguir que o Alfredo entendesse que a questão devia ser focalizada não como uma situação
conflitante entre mãe e filha, e sim como uma manifestação de que a organização não dispunha de
um fórum especial para tratar desses casos, e que, se continuassem sendo tratados no "grito" ou
no diz-que-diz, não demoraríamos em amargar terríveis tragédias.
Chegando à igreja, procurei o Alfredo. Eu o tinha conhecido anos atrás, quando viera da
Amazônia conhecer a comunidade e ajudar na sua estruturação. Nessa época ele era um caboclo
simples, humilde, usava chinelos de dedo e calça surrada. Era simpático e tímido. Não tinha o
hábito de tratar com urbanóides do sul do país.
Músico nato, cativava as pessoas com seus modos delicados. Mas com o tempo, e com o
poder, o padrinho Alfredo se modificou muito. Ao procurá-lo, não demorei para perceber que o
"circo estava armado". Com a desculpa de que estava doente, com úlcera no estômago, foi
adiando a nossa conversa até o final do trabalho. O Alfredo já não era mais o mesmo.
Elegantemente trajado, ficara inacessível, como todo líder de seita, cujos acólitos mais próximos
mantêm no alto de um pedestal.
A reunião aconteceu com o dia amanhecendo. Depois de uma noite inteira tomando daime, pitando
(fumando maconha) e bailando, o raciocínio é sinônimo de desafio. Da reunião participava o staff
do Céu do Mar e outras pessoas que, além de não conhecer o caso, nada tinham a ver.
As pessoas interferiam, chegavam a gritar colocando-se entre o Alfredo e mim, não me permitindo
falar quando eu tentava relatar os fatos que incriminavam os daimistas. Sentia-o dividido: se por
um lado entendia que tinham sido cometidos muitos erros, por alguma razão não lhe interessava
resolver a questão.
Fazendo uso de um raro talento político, ele concluiu: "O caso é complicado, não me cabe
encontrar a solução. Só posso lhe dizer que enquanto o problema não estiver resolvido, e a
senhora não estiver morando de forma harmoniosa com sua filha, ela está proibida de tomar
daime. Só não sei lhe dizer de que forma a senhora vai chegar a essa harmonia. Porém, reafirmo
aqui minha determinação de que enquanto a senhora não me comunicar que as coisas se
resolveram, a Verônica não fará trabalho de daime".
Compreendi que ele havia sido engolido pelo espírito de grupo. Aquele homem simples que eu
tinha conhecido anos atrás, estava inebriado pelo poder. Coloquei para ele a seguinte
comparação: "Há alguns séculos, o homem civilizado chegou à bacia amazônica, tomou o ouro e
as pedras preciosas dos índios, e em troca deu bolinhas de gude e espelhinhos. A ayauhasca
pode ser comparada ao ouro, pelo seu enorme valor para se atingir o conhecimento. E o senhor
como os índios está recebendo, em troca desse ouro, espelhinhos e bolinhas de gude".
Posteriormente, soube que na época ele se encontrava no Rio de janeiro devido a problemas que
tinham acontecido com uma jovem carioca, que como tantas outras tinha-se deslumbrado com o
universo descortinado pela bebida e seguido a trilha que leva para o Céu do Mapiá, na floresta
amazônica. Lá, fora seduzida pelo padrinho Alfredo, que já é casado com três mulheres, e a moça
tinha apresentado um surto esquizofrênico.
Além da poligamia em si, o caso é agravado pelo fato de que duas de suas mulheres são irmãs e
moram na mesma casa com aquele que hoje é o líder do CEFLURIS.
Me pergunto: Até que ponto essa transgressão às leis afeta os filhos do padrinho e os adeptos por
ele comandados? E, além disso tudo, seu envolvimento com a jovem — o que evidencia mais um
caso escandaloso com menores —me dava a impressão de que não havia comando maduro e
isento no CEFLURIS. Hoje tenho certeza absoluta de que não há.
Obviamente, a sugestão dada pelo Carlos Augusto Strazzer a respeito de se criarem normas
específicas para os adolescentes não tinha nem sido considerada, e seis meses depois, na
comunidade Céu do Mapiá, o adolescente Jambo tomava a trágica atitude de pôr fim à própria
vida. Confirmava-se, assim, a intuição e o profundo conhecimento da questão que o Strazzer
demonstrara ter. Seis meses após o suicídio do Jambo, Carlos Augusto também partiu, levado por
uma terrível doença.
Após a reunião, retornei para Penedo, decepcionada.
A partir de então, com quinze anos de idade, tendo casa para morar com dignidade, uma mãe
disposta a não poupar sacrifícios para fazer dela uma mulher resolvida, minha filha tornou-se uma
peregrina. Foi acolhida por diversas famílias de Resende, que se apiedavam dos seus relatos
patéticos e mentirosos. A maioria dessas famílias eu não conhecia. Em comum a todas as casas
por onde passou: foi expulsa por criar desavenças entre os membros da família. Os endereços
dessas residências me eram ocultados. Eu não parava de implorar às autoridades, ao Conselho do
Menor. A promotora me aconselhava esquecê-la porque, segundo ela, minha filha "não prestava".
Em vão, tentava explicar que ela tinha sido vítima de uma lavagem cerebral e que enquanto não
fosse feito um tratamento específico para resgatar sua identidade tudo seria em vão.
Eu suspeitava de que a lavagem cerebral continuava, que os daimistas persistiam no aliciamento
da Verônica. Porém, não tinha provas concretas. Ela rejeitava tudo o que poderia vir de mim.
Consegui uma psicóloga que se dispôs a tratá-la, omitindo o fato de ser eu quem pagava o
tratamento. Para que isso fosse possível, precisei de autorização da Promotoria da Infância. Para
concordai a promotora exigiu que eu fizesse um eletroencefalograma. Eu não podia acreditar em
tamanho absurdo. O exame seria feito por um neurologista a pedido e por conta da justiça. Eu
queria apenas que minha filha recebesse a ajuda de um tratamento psicológico.
Quando o médico solicitado para fazer o exame soube da motivação, recusou-se a fazê-lo. Teve
de ser intimado judicialmente, e eu fui acompanhada por uma assistente social ao consultório dele.
Os absurdos me esmagavam. O exame foi feito, o resultado: normal. Nesse absurdo passaram-se
vários meses. Finalmente o tratamento com Verônica começou.
Nesse período, ela morava numa casa relativamente próxima à minha residência, cujo endereço
me era cuidadosamente ocultado. Para vê-la, eu precisava deixar recado com uma assistente
social que realizava a função de mediadora.
Durante esse tempo todo, de absurdos e disparates, minha cabeça corria o risco de dar um nó. Era
muita coisa em jogo: em primeiro lugar, minha filha, com quinze anos de idade, peregrinando de
casa em casa, no meio de desconhecidos, sendo rejeitada, passando necessidade, quando tinha
um lar e uma mãe provedora.
Em segundo lugar, minha religiosidade estava em crise. Tudo isso estava acontecendo porque
tinha buscado um caminho que me aproximasse de Deus. Como entender? Como aceitar?
No meu desespero, achava que tinha que encontrar uma solução dentro do próprio daime. Passei
a freqüentar igrejas e grupos do Rio e São Paulo, tentando achar uma solução através da
expansão da consciência.
Um dia, antes de ir ao Rio para um trabalho de daime, na véspera do dia de São Pedro, 28 de
junho de 1992, sabendo que a Verônica estava precisando de roupas, mandei-lhe recado pela
assistente social para passar na minha casa, no dia seguinte, e irmos juntas a Resende comprar o
que ela estivesse precisando.
Fui para o Rio e, durante o trabalho no Céu do Mar, alguém me disse que o Jambo tinha feito a
"passagem" (expressão usada pêlos daimistas para se referir à morte). Com dificuldade consegui
extrair detalhes que os daimistas se recusavam a dar. O clima de terror pairava no ar.
Disseram-me que ele tinha se jogado numa fogueira no Mapiá.
O que esse menino, que eu tinha conhecido tempos atrás em Mauá, estaria fazendo no Mapiá? O
que o teria empurrado para o fogo?
Chegando a Penedo, a Verônica apareceu em casa logo em seguida, como tinha sido combinado.
Contei-lhe a tragédia. Ela começou a rodar sobre si mesma como um pião e dizia: "Ele não podia
ter feito isso! Nós tínhamos sido nomeados responsáveis por zelar pela 'bandeira da paz', no caso
eu deveria ter ido primeiro. Além do mais ele era do 'daime eterno' e, portanto, não poderia ter se
suicidado, porque a vida dele pertencia ao daime!"
O daime eterno é uma espécie de confraria dentro da seita, formada só por homens que, através
de algum ritual de passagem que desconheço, entregam a vida ao daime.
Eu não consegui acreditar no que ouvia. Esses símbolos e atitudes fascistas, "bandeira da paz",
seguem um modelo de criação corporativista do gênero juventude janista, juventude peronista,
juventude nazista, tudo o que eu tinha combatido durante a minha vida inteira. E esse par de
adolescentes inocentes tinham sido programados para serem utilizados com essa finalidade, em
nome de Deus! O Jambo tinha pago com a vida de uma vez só, e a Verônica pagava em pequenas
prestações, dia após dia. Ela chorava e eu morria de vontade de pegá-la no colo, de lhe explicar o
processo a que tinha sido submetida, mas ela não permitia sequer que me aproximasse.
Fora essa tragédia, o ano de 1992 transcorreu sem grandes novidades. Sabia que minha filha
estava morando num condomínio a menos de um quilolitro de distância da minha residência,
porém não tinha acesso a ela. Para entrar em contato com ela, precisava localizar a assistente
social e contar com a boa vontade dela. Sabia que freqüentava a escola e que a família com quem
morava era de um coronel do exército. Eu suspeitava de que os daimistas de Mauá continuavam
com o processo de sedução mas não podia provar.
No final do ano, o coronel exigiu a saída imediata dela. A Verônica tinha conseguido perturbar a
ordem familiar, desacatar sua autoridade e semear a discórdia.
Eu continuava tomando daime, pedindo às forças com que a ayauhasca nos põe em contato a
ajuda necessária para restaurar nosso vínculo, trazer minha filha para casa e reparar os efeitos de
tanto sofrimento. Só tinha a fé para me agarrar.
Quando saiu da casa do coronel, arrumou outra casa, outra família, não houve nenhuma ajuda
para trazê-la de volta.
Durante 1993 ela ficou com diversas famílias da cidade de Resende. Eu sempre sabendo de longe
os passos que ela dava.
Cidade pequena, as pessoas gostam de dar más notícias. Era normal ouvir: "Ontem vi sua filha
bêbada, em tal boate...". Sabia que ela trabalhava numa butique de Resende e mandava
interlocutores, sem apelar.
Nesse meio tempo a comunidade daimista do Céu da Montanha passava por uma profunda
reformulação. Alex Polari, seu fundador, morava na Amazônia. O médico José Rosa tinha
assumido a direção e estava "limpando a casa". Eu o conhecia dos tempos em que o grupo de
Mauá era pequeno. Demonstrávamos simpatia mútua. Presenciei um longo e doloroso processo
através do qual ele havia se curado de um câncer no pâncreas, que o tinha levado à beira da
morte.
Tudo indicava que a limpeza que ele estava realizando na comunidade não era só física — era
espiritual e moral. Seu intuito era resolver todas as travas que tinham se originado nesses últimos
anos — a minha história não era a única, havia outros casos bem escabrosos — para deixar o
lugar em condições de receber grupos de americanos que chegariam para fazer tratamento com
ayauhasca, orientado por ele. Anteriormente, José Rosa já tinha consultório em Boston.
No dia 3 de novembro de 1993, o Zé Rosa, como é chamado, apareceu de repente na minha casa.
Sentamos para conversar na frente de um pequeno altar com daime e fotos do mestre Irineu. Com
modos carinhosos e sinceros, passou a me relatar que no momento em que estava começando o
trabalho de finados, na noite do dia 1° de novembro, sem prévio aviso, a Verônica tinha se
apresentado a ele, vestindo a farda, dizendo que estava precisando tomar daime.
Ele disse ter conhecimento "por alto" que havia uma história complicada a respeito, porém no
momento sentira uma voz interior dizendo: "Deixa..." Assim ele concordara que ela fizesse o
trabalho, com a condição de bater um papo no final e ouvir dela o que estava acontecendo.
Quando o trabalho acabou ela já não estava mais no salão para bater o tal papo.
Seguindo sua consciência, tinha se prontificado a vir à minha casa saber por mim o que tinha
acontecido e em que pé estavam as coisas.
Relatei-lhe os fatos, e ele ficou tremendamente chocado. Expliquei também que, segundo a
Verônica havia dito às assistentes sociais e à psicóloga, ela não estaria mais interessada em tomar
daime. Eu sabia que havia na própria comunidade pessoas interessadas em sabotar a liderança
dele, pelo seu intuito de limpar a casa. Como existia uma proibição judicial, e do padrinho Alfredo,
de a Verônica freqüentar e tomar o daime, a questão me parecia uma cilada, armada pêlos
inimigos dele, com a colaboração dela.
Disse-lhe também que admirava sua determinação de enfrentar com coragem a tarefa de
transformar a comunidade num ponto de luz, pois até agora era a escuridão que tinha dominado, e
fui bem sincera: "Como é que você vai conseguir colocar em atuação forças curadoras num local
onde se cometeram tantas injustiças, onde se originou tanto sofrimento? Como você vai agir em
relação a uma história tão truculenta como a nossa? Nos varrendo para baixo do tapete, como uma
sujeira desagradável?"
Emocionado, ele me respondeu que tinha a firme determinação de limpar nossa história — minha
e da Verônica — e se colocava à disposição. Perguntou onde eu estava tomando daime.
Respondi que com diversos grupos alternativos em São Paulo e no Rio de Janeiro, e às vezes na
Barquinha, também no Rio.
Sempre com a voz embargada pela emoção, me disse: "De jeito nenhum! Não faz sentido você
viajar tantos quilômetros. Teu lugar é em Mauá! Volta! Vamos tomar daime juntos e começar a
resolver esse caso".
Foi embora, depois de me abraçar com carinho e reafirmar que, juntos e com fé, iríamos vencer.
Fiquei emocionada, mas desconfiada. No mesmo dia, perguntei para a assistente social que
história era essa de a Verônica ir a Mauá tomar daime. Não havia uma proibição judicial a
respeito? Não era função do Conselho Tutelar do Menor zelar por ela e fazer respeitar a lei?
Ela também ficou surpresa e visitou a Verônica para saber o que havia acontecido. Minha filha
negou os fatos de forma veemente.
"De jeito nenhum! Jamais voltei a tomar o daime. Isso só poderia ser produto da imaginação de
uma mente doentia!", respondeu a Verônica.
Percebi que havia mais podre no reino do daime que a minha imaginação era capaz de supor.
Três semanas depois da visita do Zé Rosa, no dia 28 de novembro, recebo o telefonema de uma
senhora que dizia ser proprietária da loja onde a Verônica estava trabalhando e que a minha filha
estava mal. Segundo ela, o que a Verônica tinha era falta de mãe. Respondi que mãe ela sempre
teve, que nunca tinha me furtado a exercer essa função.
Ela queria saber se eu estava disposta a receber minha filha. Nada neste mundo me faria mais
feliz!
A ligação caiu. Meia hora mais tarde a Verônica chegava em casa aos berros:
"Mãeeeeeeeeeeeeeeee!", chorava compulsivamente. Pela primeira vez em quase três anos pude
abraçar minha filha.
Ambas choramos. Não conseguíamos falar. Deitou-se na minha á cama e dormiu
imediatamente.
Eu não cabia dentro de mim. Era uma mistura muito grande de emoções com
surpresa. Agradeci às forças invisíveis, ao plano espiritual.
Quando acordou, pegamos o carro, fomos a Resende catar as coisas dela. Da mesma forma
que sua identidade estava aos pedaços, as suas coisas estavam espalhadas em diversas casas.
Ela estava estressada, esgotada, mal alimentada. Disse estar com úlcera por passar fome.
Acolhi-a com amor e coloquei uma única condição: fazermos uma terapia familiar. Ela aceitou.
Na convivência cotidiana percebi que tinha se tornado uma alcoólatra. Isto, somado às diversas
violências de que tinha sido vítima, sempre sendo tratada como intrusa nos locais onde morara, a
deixou, além de estressada, confusa. Se antes de sair de casa já tinha o hábito de mentir, esse
hábito havia se tornado uma arte.
Na butique onde trabalhava, por ser véspera de natal, o horário de trabalho acabava às dez da
noite. Estava de aviso prévio e trabalharia até o natal. Após essa data, estaria livre.
Como a maioria dos terapeutas tem férias em janeiro, a terapia familiar só começaria em fevereiro.
Na convivência com ela dava para perceber que a programação introjetada no seu inconsciente,
pela lavagem cerebral, de renegar a mãe, de faltar à verdade em nome do daime, de não ter o
direito de ser feliz e coisas semelhantes, fora um trabalho bem-feito. Quando ela se surpreendia a
si própria numa situação de prazer e descontração comigo ou consigo mesma, sua cabeça entrava
em pane.
A tensão interna que ela suportava, por um lado, me inspirava compaixão e, por outro, revolta.
Revolta contra o estelionato espiritual e contra a impunidade desse bando de delinqüentes que não
têm respeito por seus semelhantes, nem por Deus. Usam o sagrado para destruir.
Mais uma vez, a história da ayauhasca ligada ao terror, ao ódio, à submissão, ao atropelo.
Desta forma — pensava eu — só um terapeuta experiente e conhecedor do universo da
ayauhasca, como é o caso do Zé Rosa, poderia curar essas feridas. Começava o ano de 1994 e
acontecia mais um festival do daime, como acontece todos os anos nessa época.
Resolvi dar um voto de confiança ao doutor José Rosa e fiz o trabalho do dia dos Santos Reis
em Mauá, na noite de 5 de janeiro, dois anos depois daquela mesma data, quando tinha
acontecido a reunião com o padrinho Alfredo.
Diversas pessoas, que tinha conhecido em outras igrejas ou grupos de daimistas durante esses
dois anos, vieram para participar também, como forma de testemunhar a solução do caso. Foi um
voto coletivo de fé na ayauhasca e na proposta de Justiça, Paz e Harmonia.
Quando cheguei, o Zé Rosa me recebeu emocionado: "Obrigado por ter vindo", falou. O
trabalho foi bom. Pairava no ar um clima de restauração. No final conversei longamente com Zé
Rosa. Relatei-lhe que três semanas após sua visita a Verônica tinha retornado e expliquei que ela
apresentava sérios sinais de desestruturação psicológica e evidenciava dependência do álcool.
Ele me pediu um tempo até fins de janeiro, quando estaria mais desocupado, e nos convidou a
passar o último fim de semana do mês na casa dele, para juntos, os três, estabelecermos as bases
do que seria nossa terapia. Aceitei.
Na primeira semana de janeiro, a Verônica matriculou-se numa escola de Resende para
começar as aulas em fevereiro. Escolheu um curso de inglês, outro de violão. Prometi a ela e a
mim mesma que meus esforços teriam uma só meta: reestruturá-la.
Como as aulas começariam no mês de fevereiro, ela nada tinha a fazer no mês de janeiro.
Tinha conhecido, numa rápida passagem por nossa casa, um jovem casal de amigos meus de São
Paulo, e gostado deles. Achamos que seria bom para ela passar uns dias naquela cidade. Tinha
sido convidada por eles para assistir ao Holiywood Rock, e posteriormente aproveitar o feriado de
25 de janeiro numa ilha do litoral paulista. Adorou a idéia e preparou sua mala em clima de alegria.
Tinha uma evidente dificuldade em admitir que estava feliz.
Viajou no dia 15 de janeiro. Meus amigos a esperaram na rodoviária. Quando chegou lá. Verônica
disse a eles que essa viagem selava seu reencontro comigo.
Em São Paulo, foram a uma festa de aniversário na qual havia daimistas. A programação negativa
ativou-se como num programa de computador.
Mentiu, criou intrigas, falseou fatos, distorceu conceitos, e no fim de janeiro recebi uma carta do
casal de amigos na qual me informavam que ela tinha desaparecido, mas que os tranqüilizara,
porque estaria bem. Soube também que o senhor Wilson Carneiro, responsável pela Colônia 5000,
comunidade daimista da cidade de Rio Branco, estava em São Paulo com uma comitiva. Na hora
compreendi que minha filha estava sendo levada para lá.
Apelei ao doutor José Rosa, que tinha se prontificado a limpar a história. Após alguns telefonemas,
ele descobriu que a Verônica estava, junto com a mencionada comitiva, na casa dum tal de
Glauco, famoso defensor do daime, autor de uma tira de história em quadrinhos publicada em um
grande jornal, denominada Geraldo, e candidato a padrinho na máfia daimista, já que possui um
ponto de daime em São Paulo, onde se faz apologia do uso de drogas, em especial da maconha.
Após diversas tentativas frustradas de falar com o Glauco, percebi que o circo já estava montado e
que sozinha não tinha como enfrentar tamanho corporativismo.
Ela estava com dezessete anos e, devido ao processo que ainda corria na vara de menores de
Resende, sob a responsabilidade da justiça.
Comuniquei os fatos ao promotor e ainda acrescentei que, se não fosse tomada alguma medida
enquanto a Verônica ainda estava na casa do Glauco, ela seria levada para Amazônia, para o
quartel-general do daime, e dali seria difícil tirá-la.
Com a tradicional empáfia de que se revestem alguns cidadãos quando se tornam promotores e
juizes, o promotor me respondeu:
"A senhora não precisa se preocupar, faltam duas semanas para o carnaval, tenho certeza de que
sua filha volta logo que o carnaval acabar, só que talvez volte grávida".
Esta resposta, como a do outro juiz já mencionado no início deste relato, exprime a ética reinante
em certos membros do judiciário.
No dia 8 de março, recebi pela secretária eletrônica, um recado da Verônica, informando-me que
estava em Rio Branco e que eu não precisava me preocupar, já que "uma família" tinha a guarda
dela.
Comuniquei o fato ao juiz, que disse nada poder fazer, já que poderia ser uma mentira dela e
talvez ela estivesse em outro local.
Pedi auxilio a uma conselheira do CONFEN, profissional séria e consciente, psicóloga
especializada na questão do menor e em relações entre pais e filhos, que considerou o caso
gravíssimo. Segundo ela, a situação era tão grave, que cabia uma consulta ao jurista que tinha
presidido os trabalhos que culminaram com o relatório do CONFEN de 1992.
O doutor Domingos Bernardo G. de Sá, que presidiu os trabalhos do CONFEN, recebeu-me
polidamente, porém com o mesmo ar de nojo de quem é obrigado a se deparar com seus tapetes
persas sujos com esgoto. Soube, posteriormente, que dois de seus filhos são membros da
comunidade daimista do Rio de Janeiro, o Céu do Mar.
Manifestou muita preocupação de que o caso viesse a público e, assim, o trabalho por ele
presidido fosse "por água abaixo".
Aconselhou-me a procurar o psicólogo Paulo Roberto de Sousa e Silva, responsável pelo Céu do
Mar. Mais uma vez senti vontade de citar Federico Feilini, para explicar que não sou marciana e só
estava querendo que a lei fosse cumprida com o objetivo de preservar a dignidade da minha filha,
já que deve haver poucos lugares mais indignos do que a Colônia 5000.
Sabia que do Paulo Roberto não poderia esperar nada de bom. Ele mesmo já estava envolvido
com diversos problemas por causa
de menores, mulheres, daime misturado com anfetaminas, prática de curandeirismo, entre outros.
Uma liderança emergente nesse tempo no cartel daimista de São Paulo, Leo Artese, me procurou
oferecendo-se como mediador para resolver a questão. Fiz força para acreditar na sinceridade que
ele apregoava. Viajei para aquela cidade, onde tivemos uma reunião, na casa do Leo, com o
padrinho-mor de São Paulo, o antropólogo Walter Dias. Pude apreciar mais uma vez o perfeito
funcionamento da estrutura de cartel. O Nestor Perlonguer tinha me advertido diversas vezes da
periculosidade do citado padrinho, no tempo em que eu o visitava durante sua doença em São
Paulo.
A mentira, o atropelo dos sentimentos, da dignidade, são para o staff daimista uma tática
operacional. Ouvia o Walter me enrolando, como tinha ouvido, dois anos antes, o padrinho Alfredo,
os daimistas de Mauá e outros.
Quando vi que eu estava virando um "embrulho para presente", e que o Leo me segurava para o
Walter dar o laço na fita, aproveitei a oportunidade para mudar de assunto e perguntar ao
responsável pela seção de "embrulhos" o que ele achava a respeito dos casos de pessoas que
manifestavam surtos psicóticos e esquizofrênicos em decorrência de trabalhos com daime na
igreja sob seu comando. Obviamente, para trabalhar com a ayauhasca dessa forma é preciso
dominar com perfeição a arte do cinismo.
Voltei para casa com a certeza de que a vida da minha filha só seria salva com uma intervenção
direta e específica de Deus.
Somente um poder superior poderia desfazer a grande cilada que os daimistas nos arrumaram.
Tiraram-lhe o direito de ser, de ir e vir, de ter uma moradia digna, de estudar, de namorar, de se
divertir, de ser feliz.
Verônica é uma vítima. Um joguete nas mãos de criminosos. Fizeram de uma adolescente linda,
inteligente e cheia de vida um imbunche, em nome de Deus.
Cheguei em casa e resolvi arrumar os armários. Nunca tinha mexido nas coisas dela. De repente
achei um embrulho com cartas. Muitas cartas. Datavam do período em que fora retirada da
comunidade de Mauá até pouco tempo atrás. Dois anos de correspondência assídua. Os
remetentes, Alex Polari, sua mulher Sônia Falhares, o Mota e sua mulher Cristina, a Carminha,
que protagonizara a cena no fórum de Resende, flagrada pela promotora, e mais, muitos mais.
Vale lembrar que havia uma determinação judicial específica proibindo qualquer contato deles com
ela e que fora assinada pêlos daimistas.
O tema principal e constante na maioria das cartas era a necessidade de a Verônica assumir seu
papel de "mártir da doutrina".
Neste ponto é preciso explicar que o CEFLURIS vive um processo que poderia ser chamado de
"reedição do cristianismo". Segundo acreditam os daimistas, o mestre Irineu seria a reencarnação
de Jesus Cristo, o padrinho Sebastião seria São João Batista, o padrinho Alfredo seria o rei
Salomão, Alex Polari seria o rei Davi e a Verônica seria a reencarnação de Santa Bárbara.
Numa das cartas, ela é induzida a se comportar como a santa, que, não estando disposta a abrir
mão da sua fé, preferiu ser degolada pelo próprio pai.
Num desdobramento do mesmo conceito, para os integrantes da seita eu ocuparia o lugar de
satanás, seria sua versão feminina. Alex Polari e outros descrevem correntes de oração feitas para
mudar minha cabeça e meu coração. No meio daimista é proibido pronunciar meu nome. Quando
alguém porventura precisa se referir a mim, sou chamada de "aquela mulher".
Assim, confirmei as suspeitas que eu tinha, durante esse tempo todo, de que ela continuava sendo
aliciada pêlos daimistas. Aliciada é pouco. Durante o período em que ela esteve na casa do menor
de rua, na cidade de Resende, onde eu tentava visitá-la e era repelida aos gritos, os daimista
mesmo proibidos pela justiça de procurá-la, colocaram-na na situação de "santa viva".
Pelas cartas dá para deduzir o seguinte: um ou dois deles desciam a serra diariamente e vinham
visitá-la trazendo bilhetes, recados, cartas, presentes, etc. O teor das cartas é um só:
"Você nos ensina, com tua fé, com tua coragem!"
"Você é o exemplo vivo que nós temos para continuar
nossa caminhada!"
"Você nos pertence, na terra e no astral!"
"Você é o símbolo da luta do santo daime!"
"Um dia tudo isto fará sentido!"
"A batalha é pesada, mas com a graça de Deus e o poder
do daime venceremos!"
Ela recebeu cartazes com os dizeres: "Verônica, nossa fé, nossa esperança!"
A ladainha de baboseiras permitiria escrever várias páginas.
O importante neste ponto é salientar que uma adolescente, com quinze anos de idade, era desta
forma colocada numa situação que lhe exigia representar um papel de mártir, de modelo de
renúncia, e assim ficava impedida de desfrutar a vida à qual tinha direito. Podendo morar
confortavelmente, se divertir, sem precisar passar privações nem humilhações, servia como
espelho de um bando de recalcados.
Deixou também um diário no qual escreveu relatos estarrece-dores. A situação em que ficara,
morando em casas estranhas onde era tratada como intrusa, somada à imagem mentirosa que era
obrigada a manter, escondendo de todo mundo os contatos que mantinha às escondidas com os
daimistas, levou-a a um estado de tensão interna que, ao meu ver, a empurrou ao alcoolismo.
Chorei muito lendo as descrições das suas bebedeiras, sua solidão, suas carências. O pior de tudo
é que ela acreditava piamente que tudo isso acontecia em nome de Deus. E mais, eu sofria por
amá-la, por querer ajudá-la, por ter a disposição de fazer o que fosse preciso para ela sair desse
engodo, encontrar um caminho digno para ser feliz, mas nada podia fazer.
Ela estava em Rio Branco, na Colônia 5000. Os daimistas, no Acre, declararam à justiça que ela
tinha chegado àquela cidade sozinha, fugindo das surras que recebia em casa, e que o senhor
Wilson Carneiro a tinha acolhido por pena, quando, na verdade, viajara com ele, com sua
passagem paga pelo Glauco. Assim, conseguiram que a guarda da Verônica fosse outorgada ao
filho do Wilson, Raimundo Nonato, que assassinou um adepto da seita, cortando-lhe o pênis.
Escrevi algumas cartas para ela, enquanto a justiça se punha em andamento com toda a lentidão e
morosidade de que é capaz. Nunca obtive resposta.
Um dia recebi um telefonema dela, e com a voz visivelmente alterada, falando numa vez só, disse:
"As roupas e as coisas que deixei lá em Penedo, dá para alguém".
Tentei conversar, fazer perguntas. Tudo em vão — virara um imbunche.
Em setembro de 1994, cumpridos todos os ritos jurídicos, o juiz de Resende assinou um mandado
de busca que foi encaminhado à justiça do Acre como carta precatória.
Nele, o magistrado ressaltou que assinava a peça munido da certeza de que sua função era zelar
pelo bem-estar de uma menor. Que por ser a Colônia 5000 um lugar impróprio e desaconselhável
para a permanência dela, exigia sua imediata transferência para local idôneo, enquanto era
providenciado seu recambiamento a esta cidade e seu afastamento do mencionado Raimundo
Nonato.
Na época, fui entrevistada pelo jornalista Roni Lima, da Folha de S. Paulo, a quem relatei
sucintamente o caso e entreguei uma lista de casos escabrosos, como os já mencionados. Mostrei-
lhe também as cartas dos daimistas.
Como é da praxe jornalística, ele entrevistou a outra parte, o CEFLURIS. Ouviu do doutor José
Rosa a afirmação de que eu sou doente mental e que tinha inventado essas histórias. Alex Polari,
que estava presente na entrevista, admitiu só o suicídio do Jambo, negando o resto, assim como
as informações sobre a venda e exportação do daime para a Europa.
No mês seguinte, em outubro de 1994, a revista alemã Der Spiegel publicou uma matéria
ampliando e confirmando os fatos;
o relato descreve os trabalhos realizados pêlos daimistas na Europa, cobrando a quantia de
quinhentos marcos por pessoa, e a existência de anfetaminas misturadas ao daime.
O Alex Polari escreveu carta que foi publicada na seção dos leitores do referido jornal,
esclarecendo que o trabalho deles tem por objetivo a caridade.
A partir daí, a guerra ficou cada vez mais acirrada. Passei a receber ameaças. Um daimista de São
Paulo foi incumbido pelo Polari de "negociar" comigo.
Parecia que tínhamos voltado aos tempos do terrorismo. Minha impressão era a de que nunca
saímos deles. Me sentia como devem se sentir os parentes dos seqüestrados quando negociam o
valor do resgate. A mensagem era a seguinte: "O que você quer para parar de dar entrevistas a
jornalistas?"
Minha resposta era óbvia: "A Verônica, minha filha, sem daimista nenhum no caminho dela para
interferir na sua reestruturação".
Pois eu temia que ela saísse daquele antro, viesse para casa, e eles continuassem com as
atitudes que tiveram na época da saída dela de Mauá, três anos antes. Se fosse dessa forma, de
nada adiantaria.
Ela iria fugir para a casa de outro imbunche, crente que assim ganharia o reino dos céus.
A negociação transcorria da mesma forma que os familiares dos seqüestrados negociam com os
seqüestradores. Pedi ao negociador que transmitisse ao chefe Polari o seguinte recado: Já que ele
quer que a posteridade o reconheça como líder espiritual de uma doutrina que apregoa a Verdade,
a Harmonia e a Justiça, que tal desfazer as mentiras e retirar o processo mentiroso que tinham
acionado na justiça do Acre contra mim, me acusando de espancar minha filha?
Já que admitiam que foi um erro do seu Wilson Carneiro tê-la levado, por que não retirar o
processo em que afirmavam que ela tinha chegado lá sozinha?
Que tal admitir para minha filha que erraram ao ensiná-la a mentir em nome de Deus, a induzi-la a
renegar a mãe para provar fé na doutrina?
Obviamente, até hoje não recebi resposta.
O tempo transcorria e o mandado não estava sendo cumprido. O juiz de Resende nada mais podia
fazer.
No final de novembro recebi o telefonema de um daimista de São Paulo dizendo que tinha passado
dois meses no Céu do Mapiá e, estarrecido pêlos fatos que lá presenciara, havia retornado com o
objetivo de desmascarar essa farsa. Passara também pela Colônia 5000, em Rio Branco, e ficara
chocado com os maus-tratos que minha filha sofria.
A prefeitura de Itatiaia, município fluminense do qual Penedo faz parte, sensibilizada com a
divulgação do caso, arcou com as despesas da viagem, e assim, junto com um advogado, em
dezembro de 1994, parti para o Acre.
Dezembro é mês de festival daimista. Eu estaria chegando na véspera do aniversário do mestre
Irineu, ponto alto das celebrações na cidade de Rio Branco, para onde convergem os daimistas do
mundo inteiro.
O avião fez escala em São Paulo e lá apresentou um problema mecânico. Fomos obrigados a
permanecer várias horas num salão do aeroporto.
Ao meu lado estava um grupo numeroso de espanhóis, obviamente daimistas.
Uma das mulheres do grupo começou a puxar assunto. Enquanto conversávamos polidamente,-
um espanhol ensandecido atravessou o salão dirigindo-se na minha direção com dedo em riste e
aos gritos: "É ela, é ela". (Ele me reconhecera pela fotografia publicada na Folha de S. Paulo.) "A
louca! Está indo para Rio Branco chafurdar lama! Tem que ser internada! Se eu tivesse uma mãe
assim, não ia querer morar com ela!"
Na minha mente, passou, como num filme, a imagem de que situações como essa teriam levado
pessoas inocentes à fogueira da inquisição. Se há um povo no mundo com propensão ao
fanatismo, é sem dúvida alguma o espanhol. Ele continuava gritando feito um louco:

"Acredita em Deus?", perguntava, repetindo histericamente a pergunta.


Respondi rindo, pelo papel ridículo que ele estava representando:
"Não sinto nenhuma necessidade de te dizer no que acredito".
Ele bravejava:
"Além de louca, cínica!"
Seus próprios companheiros assumiram a função de acalmá-lo, mas ele, como imbunche
internacional, fazia questão de continuar:
"Vou te dar meu nome, para que você saiba quem eu sou, e que não tenho nada mais a fazer
na vida a não ser me dedicar a te perseguir", disse ele, enquanto tentava, de forma nervosa,
escrever, sem conseguir, seu nome num pedaço de papel.
De nada adiantava eu dizer que não me interessava saber o nome dele. Agredia o advogado
com palavrões e insultos. O escândalo já passava dos limites.
Lembrei-lhe que ele estava em trânsito, num pais estrangeiro, e que devido ao escândalo os
seguranças poderiam revistá-lo, e caso encontrassem maconha... Como por obra e graça de uma
força superior, calou-se e junto com o grupo retirou-se para um canto do salão.
O avião demorava para ser consertado, e foi preciso almoçar no aeroporto.
Quando nos dirigíamos para o restaurante, o espanhol se aproximou, só que muito manso, e
com ar de santidade, e disse:
"Quero pedir minhas sinceras desculpas pela forma errada com que procedi. Ouvi a voz do
daime me corrigindo e me pedindo que me desculpasse".
No avião, houve outra cena, só que mais polida, protagonizada por um chefe de família de Belo
Horizonte, integrante do CEFLURIS, que se dirigia à mesma cidade para participar dos festejos. Pai
de um casal de adolescentes, tinha opinião formada sobre o caso, segundo a versão oficial
montada pelo CEFLURIS. Também me reconhecera pelas fotografias do jornal. Homem rico e
crédulo, o modelo de imbunche preferido pela seita.
Pêlos acontecimentos no aeroporto e no avião, dava para ver que a viagem prometia.
Já em Rio Branco, ficamos todos no mesmo hotel: os espanhóis, a família mineira, um grupo de
japoneses que atravessara o planeta para participar do festival, parte da cúpula da igreja do Rio de
Janeiro, o advogado e eu.
Resolvi dividir o tempo da seguinte forma: por um lado, providenciar na justiça o cumprimento da
carta precatória, por outro, visitar as diversas lideranças das diferentes seitas daimistas, para
explicar que as minhas denúncias nada tinham contra elas nem contra a ayauhasca, e sim contra
o mau uso da bebida feito pelo CEFLURIS.
Fui muito bem recebida pelas lideranças daimistas. Um denominador comum: críticas ao
CEFLURIS. Participei do trabalho de aniversário do mestre Irineu numa das igrejas que se
apresentava como detentora da "pureza da linha do mestre". As pessoas me cumprimentavam e
parabenizavam. Finalmente alguém tinha a coragem de denunciar essa "pouca-vergonha". Cada
um que se apresentava trazia uma história sobre o CEFLURIS: mortes, abusos, estupros, uso de
drogas, desrespeito...
Os de mais idade, da mesma geração que o Sebastião Mota e o Wilson Carneiro, me
perguntavam se era verdade que eles eram chamados de padrinhos no sul do país. Ante a minha
confirmação, passavam a contar casos escabrosos da vida dos dois, envolvimento com
marginalidade, impunidade, escândalos por causa de mulheres, conluio com autoridades, entre
outros.
Havia também as provocações: integrantes do CEFLURIS me procuravam imbuídos da "missão
divina" de me intimidar. Aproximavam-se com o mesmo ar de satisfação que têm as hienas por
comer excrementos e diziam: "A senhora sabe que isto aqui é o Acre?"
Eu sabia —Chico Mendes mostrou ao mundo o que é o Acre.
Eu queria ver minha filha, pois não a via desde janeiro. O porta-voz e secretário da igreja
comandada pela viúva do mestre Irineu, António Alves, agiu como negociador com o CEFLURIS.
Pessoa culta e zelosa da seriedade do daime, teve uma atuação impecável.
Após negociações do mais baixo nível possível, que deixavam o Toinho (como ele é chamado)
visivelmente consternado, conseguimos que eles definissem local, data e hora, para o encontro
com a Verônica. O Toinho me transmitiu um recado do Polari: haveria o encontro, porém não
deveria esperar uma conversa. Ele mesmo disse não entender bem o que isso significava.
Compareci pontualmente no local indicado. Deve haver poucos lugares no mundo mais suspeitos.
Por precaução, fiquei do outro lado da rua — estávamos no Acre — aguardando a chegada da
Verônica. Após uma hora, nada.
Retornei à prefeitura, ao escritório do Toinho. Pouco depois chegou o imbunche responsável pela
vinda da Verônica, conhecido pelo codinome de "Ferrugem". Reclamei com ele que eu tinha
aguardado mais de uma hora naquele lugar. Usando termos ofensivos, disse que com ele "era
assim mesmo".
Me perguntou, com deboche, se eu queria mesmo vê-la e marcou outro lugar, um bar.
Finalmente chegaram, rodeando-a, protegendo-a. Não podia acreditar no que via — o que sobrara
da minha filha. Parecia um fantasma, o que sobrara daquela jovem bonita, cheia de vida, que onze
meses atrás caíra nessa cilada. Falei para os capangas se manterem a distância. Sentaram-se
espalhados pelas outras mesas do bar. Ela disse, com o olhar fixo no espaço: "Você fala, eu
escuto". Entendi o recado do Polari.
Passei quinze minutos observando, constatando o massacre, o crime que cometeram com ela. Não
consegui que ela dissesse mais uma palavra. A dor assemelhava-se à de um aborto. Me abortaram
a filha. Destruíram uma pessoa, para satisfazer suas ânsias escusas. O olhar de prazer dos
capangas era insuportável.
A Verônica e o Jambo são dois mártires desse bando de assassinos inescrupulosos. Mas há mais
vítimas. E enquanto a sociedade brasileira não acordar para o que está acontecendo, haverá
muitas outras.
Fui amparada e assistida pelo seu Manoel de Araújo, chefe da Barquinha, por quem guardo a
maior gratidão. Com enorme sabedoria, ele me explicou a forma como eles trabalham "no astral"
para deixar as pessoas no estado em que minha filha ficou. Segundo ele, pouco ou nada mais
pode ser feito. Da identidade não sobra nada, resta uma carcaça, um robô, que é manipulado por
controle remoto pelo resto da vida.
Como diz o dr. Carlos Renault, na carta dirigida ao padrinho Alfredo citada no capítulo sobre o
CONFEN: "O eu interno sumiu, eclipsou-se".
No dia seguinte, participei do trabalho na sede da Barquinha, que foi relatado em capítulo anterior.
Nessa fase da viagem, eu já tinha deixado o hotel e me hospedado na casa de uma psicóloga
carioca, integrante de uma das seitas seguidoras da linha do mestre Irineu. Ela havia conhecido o
daime no Rio de Janeiro e, saturada pêlos podres que tinha encontrado nos diversos grupos,
mudara-se para aquela cidade no intuito de encontrar um lugar onde pudesse seguir a trilha
espiritual aberta pelo mestre, coerente com a moral do seu hinário. Quando soube da razão pela
qual me encontrava lá, me acolheu solidariamente.
Logo começou a receber ameaças pelo telefone, na rua, no trabalho. Mulher corajosa, não se
deixou intimidar.
Voltando do trabalho da Barquinha, tivemos uma surpresa: a casa tinha sido assaltada. Minhas
coisas foram roubadas, e muitas dela, também.
O fato curioso era o que tinha sido roubado: não levaram os eletrodomésticos, mas seus talões de
cheques, cartões do banco. Procuraram suas jóias, mas não tinham achado. Levaram a carne
congelada que estava nofreezer, algumas barras de chocolate e, para minha surpresa, alguns litros
de daime produzidos na Barquinha, presente de seu Manoel de Araújo para a dona da casa.
Assim conheci mais um pouco dos subterrâneos do universo daimista: soube que a cidade de Rio
Branco é um centro de receptação e distribuição da pasta-base de cocaína produzida no Peru. O
daime da Barquinha, com sua excelente qualidade, tem boa cotação no mercado do tráfico. Cada
litro dele vale uma determinada quantia de cocaína pura.
Ainda mais forte do que o impacto produzido pelo roubo foi a descoberta de quem era o autor: o
filho da pessoa responsável pela igreja onde se preserva a "pureza" do mestre Irineu. A mesma
pessoa que havia roubado a casa participa regularmente dos trabalhos com daime, é um dos
puxadores da música, nasceu e foi criado dentro da doutrina daimista.
Foi nesse ponto que me dei conta de que tinha visto e conhecido o bastante, e dei
por encerrada minha visita à cidade de Rio Branco.
Como mencionei anteriormente, durante minha estada naquela cidade dividi o tempo
entre os contatos com o universo daimista e com o sistema judiciário.
Meu advogado despachou com o juiz, que se comprometeu a cumprir a carta precatória que
determinava o recambiamento da, minha filha para Resende. Fui recebida pelo desembargador,
que é também o juiz corregedor. Obtive dele a promessa de uma rápida solução do caso.
Uma das "pérolas" que trouxe da viagem, colhi-a numa conversação- informal com o promotor da
Vara de Família e Menores. Ele me disse ser pai de vários filhos e que não hesitava em "descer o
cacete", sempre que necessário. Comentando à respeito da minha condição social, — sou
professora, tenho um consultório, onde desenvolvo um trabalho digno e não tenho antecedentes
criminais — e o fato da guarda da minha filha ter sido entregue a um sujeito da laia do Raimundo
Nonato, autor de um crime hediondo, castração seguida de assassinato, ele disse: "Mas ele só
matou aquele camarada, cortando-lhe o pênis! Depois disso ele só teve problemas por plantação
de maconha, e mais nada!".
A carta precatória é um documento "não-cognitivo". A autoridade que a emite, o
deprecante, é soberano. Quem a recebe, o deprecado, não deve avaliá-la, tem a
obrigação de cumpri-la.
Caso o juiz deprecado não cumpra a medida, é obrigação do juiz corregedor
providenciar seu cumprimento.
Assim, enjoada por tudo o que tinha visto, participado e vivenciado na cidade de Rio Branco,
retornei com o coração apertado, temerosa pelo destino da minha filha.
O absurdo maior não demorou a acontecer: o juiz da Vara de Família de Rio Branco, dr. João Júlio
da Rocha, emitiu um documento insólito recusando-se a cumprir a precatória. E o que é mais
insólito: o juiz corregedor, dr. Jersey Nunes Pacheco, assinou embaixo, descumprido o rito
judiciário e faltando com a verdade.
Ainda mais absurdos foram os motivos alegados. Segundo o meritíssimo, cada vez que eu retirara
minha filha de alguma comunidade daimista — a única vez aconteceu em 1991 como já foi
relatado — eu a tinha internado em sanatórios e submetido a tratamentos psiquiátricos. Segundo o
respeitável magistrado, ela se encontrava saturada de tratamentos, motivo pelo qual ele faltou com
seu dever, recusando-se a cumprir a precatória.
A verdade é que Verônica jamais foi internada; só houve uma tentativa frustrada de atendimento
psicológico.
Foi por essas razões que a vida me levou a admirar ainda mais a coragem de Chico Mendes e a
compreender melhor seus últimos anos de vida, quando avisava às autoridades que estava
ameaçado de morte.
Quando este livro estava em fase de revisão final, ocorreram alguns fatos que merecem ser
acrescentados.
Como já foi dito, o fato de a justiça do Acre ter-se recusado a cumprir o mandado de busca e
apreensão baseando-se em alegações mentirosas constitui, antes de mais nada, um atropelo a si
própria e à integridade de um ser humano, minha filha.
Assim, entra um novo promotor público na comarca de Resende (RJ), onde corre o processo,
talvez o sétimo ou oitavo a trabalhar no caso.
Demonstrando absoluto desinteresse pelas condições psicológicas em que pode se encontrar
minha filha, hoje com dezoito anos ele assina um documento em 3 de julho de 1995 onde
expressa:
"Sem sombra de duvida o não cumprimento da carta precatória de busca e
apreensão pelo juízo de Rio Branco se apresenta como um ato descortês".
O ilustre promotor não parece levar em consideração o processo de aliciamento que, como foi
descrito neste livro, consta nos autos.
E acrescenta:
"Verônica já tem dezoito anos, possui discernimento, sabe o que quer".
Ora! No processo há determinações judiciais proibindo a Verônica de tomar o daime, já que fora
constatado o efeito nocivo no caso dela pelo envolvimento com a seita.
Será que uma adolescente que há quatro anos vem fazendo uso de alucinógenos e álcool, sob
intensa pressão psicológica, tem aos dezoito anos condições de escolher morar num local como a
Colônia 5000? Na companhia de um assassino?
No mesmo dia em que o promotor assinou os termos mencionados, chegou uma carta precatória
de Rio Branco, onde fomos comunicados que o senhor Raimundo Nonato, que quando
incomodado pelo Ceará, adapto assassinado, não hesitou em cortar-lhe o pênis, pedia a
revogação da guarda da Verônica, que conseguira com alegações mentirosas e de forma ilegal. O
argumento: "A Verônica não tem procurado cumprir as normas familiares de boa convivência".
A justiça de Rio Branco aceitou. Desta forma, após manipular minha filha por um período de quatro
anos, quando sua presença não mais interessou à seita, foi jogada fora.
E os capangas armados que me impediam de chegar perto dela, agora, a defenderão de quem?
Da mesma forma que o corpo do Jambo foi enterrado numa lixeira para não atrapalhar a festa, a
Verônica foi jogada fora como qualquer objeto descartável.
Durante o ano de 1990 minha filha freqüentava a comunidade de Mauá muito mais do que eu.
Como já foi explicado, ela estava entrando numa adolescência difícil, o local onde morávamos
oferecia poucas opções para essa idade complicada e no Céu da Montanha tinha um grupo
numeroso de jovens e algumas propostas interessantes de atividades para os finais de semana.
Desta forma, eu entendia que ela estava mais bem acompanhada que se estivesse freqüentando
barezinhos e points de Penedo ou de Resende.
Naquele ano apresentaram-me um novo morador da comunidade — gostei do nome: Jambo.
Pensei na mãe, no momento da escolha do nome. Eu nunca tinha comido essa fruta. Poucas
vezes falei com ele, e quando o fiz, nada de mais. Parecia sensível e requintado, discreto, não
dava alteração.
Em junho de 1992 chegou a notícia de que o Jambo se suicidara no Céu do Mapiá, ateando-se
fogo.
Não dava para entender. O que esse menino estaria fazendo lá?
Como se chega a uma decisão como essa sem ninguém por perto perceber?
Eu dei a notícia a minha filha. Como já foi dito, ela ficou perplexa e repetia: "Ele não poderia ter
feito isso; ele era do 'daime eterno'. A vida dele não lhe pertencia. Pertencia ao daime. Nós éramos
o casal de adolescentes responsáveis pela 'bandeira da paz', cabia a mim ter ido primeiro".
Como se coloca um adolescente num compromisso "eterno"?
E a bandeira da paz? que símbolo fascista é esse e qual sua finalidade?
Na época tentei esclarecimentos sobre a morte do Jambo, junto a algumas pessoas da seita, as
que ainda considerava sinceras. Fiquei espantada com o corporativismo.
Chegaram a dizer que o rapaz era viciado em cocaína.
Caso fosse o "vício da cocaína" que tivesse levado Jambo ao suicídio, será que ele desesperou-se
pela falta da droga, dois anos depois de ter parado de usá-la? Além disso, em comum a todos os
depoimentos existe o "detalhe" de que durante o longo período que morou em Mauá não fez uso
de cocaína.
A respeito da reação da família, os comentários dos daimistas foram igualmente imorais: falavam
da necessidade de se "promocionar" (síc), de achar "culpados" por terem negligenciado o filho... E
mais, que ao criticar a seita justificavam-se por tê-lo abandonado.
A morte de Jambo me remeteu a Sophie, a moça francesa citada nos capítulos sobre a cura da
AIDS, que se suicidou na noite de natal de 1990, na França, após tomar daime durante dois anos
em Mauá. Ela apresentava fortes sinais de desestruturação psicológica, que eram interpretados
orgulhosamente pêlos daimistas como atos de fé...
Conheci-a no dia em que tomou daime pela primeira vez. Entrou de cabeça. Após alguns meses
tomando daime com frequência, passou a apresentar sinais de pré-surto esquizofrênico, facilmente
reconhecíveis. Tentei chamar a atenção sobre o assunto e me acusaram de "falta de capacidade
de entrega".
Sei que houve outros suicídios. Com certeza, mais dois. Até agora o poder de manipulação da
seita conseguiu abafar as investigações a respeito.
No final de 1994, estando em Rio Branco, à procura de uma solução para o caso da minha filha, fui
procurada por uma pessoa, atualmente membro da igreja fundada pelo mestre Irineu, que na
época do suicídio do Jambo fazia parte do CEFLURIS, tinha casa no Céu do Mapiá e presenciou
alguns fatos.
Segundo essa senhora, que compreensivelmente me pediu para não divulgar seu nome, ela se
encontrava no Mapiá, onde sempre permanecia durante os festivais. Corria o festival de inverno de
1992.
No dia 21 de junho de 1992, ela chegara à sua casa na comunidade perto das onze da manhã,
junto com uma amiga, para preparar o almoço. Para tal fim, traziam uma galinha, e ambas estavam
bem-humoradas e famintas.
A casa mais próxima ficava a uma distância de trinta metros. Assim que começou a refogar a
galinha, sentiu uma intensa dor de cabeça. Não conseguia ficar em pé. Deitou-se, enquanto a
amiga continuava no preparo da galinha.
Uma fumaça desagradável tomou conta do lugar. Pensaram que alguém estaria queimando lixo e
estranharam a hora e o local.
A amiga, que tinha continuado com o preparo da galinha, foi acometida subitamente por uma
estranha dor de cabeça. No momento em que decidira abandonar a cozinha para deitar-se chegara
um garotinho de aproximadamente sete anos, gritando:
"O Jambo pegou fogo em frente à casa da Neide (a casa vizinha)!"
Ambas correram e, estarrecidas, conferiram que o garoto tinha falado a verdade. A fumaça
enjoativa não tinha sido produzida por queima de lixo: era o corpo do Jambo, que, empapado de
querosene, tinha virado cinzas.
Ao que me parece. Jambo havia saído de Mauá desiludido pelo estelionato espiritual, o que não
tinha sido fácil. Tentaram amarrá-lo porque era lúcido, questionava e não se dobrava, como a seita
exige. Forçara a barra com sua família para ir ao Mapiá, como os islamitas vão a Meca. Buscava a
Verdade, a Harmonia e a Justiça prometida nos hinos. Chegando lá, veio a decepção: o paraíso
prometido não passava de um feudo, onde reinam a injustiça, a bajulação, a mentira e onde as
diferenças socioeconômicas são muito maiores do que aqui fora.
Ele deveria estar sentindo uma enorme tensão interna entre o compromisso que tinha assumido de
pertencer ao "daime eterno" e o que estava vivenciando na realidade.
Eu acho que, para a seita, deixá-lo voltar era perigoso. Ele sabia demais. Nesses casos, o chá
de cala-boca chama-se trabalho de cura.
Eu mesma fui submetida a um deles, como foi relatado, quando manifestei minha determinação
de não permitir de forma alguma que a minha filha permanecesse sozinha na comunidade de
Mauá. É uma sessão intensa de lavagem cerebral. Na floresta, nas condições de desespero-às
quais eles conduziram o Jambo, com dezenove anos de idade na época, as estruturas da
consciência do rapaz não resistiram.
O mais grave é que os lavadores de cérebros sabiam muito bem o que estavam fazendo. Tanto é
que determinaram que após o trabalho de cura, feito para "curar" o Jambo, ele ficaria na casa da
Neide, que deveria tomar conta dele em tempo integral.
Me pergunto que tipo de cura é essa, pela qual a pessoa fica sem autonomia. A determinação era
para a Neide não se afastar dele. Ela foi passear, visitar uma amiga em outra "colocação" —
espécie de vila próxima ao local.
Foi nesse momento que o Jambo sentiu-se derrotado na sua jornada de herói. Tomou a decisão do
suicídio e a consumou. Não lhe restaram valores para continuar a caminhada, sua consciência
tinha sido pisoteada.
O cinismo, a frieza, a hipocrisia corporativa da seita são tamanhos, que levou seus integrantes a
cavar, às pressas, um buraco na terra, junto à lixeira onde o rapaz tinha se imolado, e enterrá-lo
sem sequer ser velado, porque a madrinha Rita, viúva do padrinho Sebastião, estava chegando de
helicóptero e as cinzas do Jambo atrapalhavam a recepção.
As pessoas que testemunharam tais fatos foram ameaçadas pêlos dirigentes para não divulgá-los.
Assim mesmo, me procuraram quando souberam da minha determinação de desmascarar o cartel.
Porém, temerosas de represálias, pediram-me para não publicar seus nomes.
Por enquanto o corpo de Jambo está desaparecido. A versão dada pela testemunha foi um
desabafo dela para mim. Até o momento passaram-se três anos, e a família do rapaz não tem nem
um atestado de óbito, nem sequer uma informação oficial sobre o local onde ele foi enterrado.
Legalmente a situação denomina-se "ocultamente de cadáver" e é crime previsto por lei.
É preciso lembrar que um dos chefes do CEFLURIS, Alex Polari, foi líder guerrilheiro nos anos 60.
Ficou preso quase dez anos. Junto com ele estava outro preso, o jovem Stuart Angel.
Para quem não se lembra, o caso desse rapaz repercutiu além das fronteiras do Brasil. Havia
testemunhas de que ele e sua esposa tinham sido presos pêlos órgãos de repressão.
A mãe dele, a famosa estilista Zuzu Angel, não conseguia saber o local onde seu filho e sua nora
eram mantidos presos, e as autoridades negavam a prisão.
Após dolorosa jornada, visitando locais de detenção, sendo ameaçada pelo sistema de repressão
vigente na época, Zuzu Angel tentara, através de sua influência, descobrir o paradeiro de seu filho.
Chegou até o presidente dos EUA, a quem pediu que intercedesse junto ao governo brasileiro.
Nada, mas ela não desistia. Botou a boca no mundo, e, ainda nos tempos da repressão, morreu
num acidente de carro no Rio de Janeiro, de forma suspeita. Tudo indica que foi assassinada.
Posteriormente, quando os tempos negros chegaram ao fim, e os presos políticos foram libertados,
veio à tona, através da imprensa e de outros meios, detalhes das barbáries cometidas na ditadura.
Assim, houve destaque em diversos jornais para declarações do Alex Polari, que fora a última
pessoa a ver Stuart com vida, quando ele era arrastado nu, numa noite fria, pelo chão de cimento
do pátio da prisão. Alex ouvira, também, os últimos gemidos de dor emitidos pelo rapaz antes de
morrer.
O corpo de Stuart está desaparecido até hoje, sem atestado de óbito, nem sepultura digna, como o
do Jambo.
No primeiro caso —a morte de Stuart —Alex Polari foi testemunha e acusou os algozes. Já no
caso do Jambo, ele foi cúmplice dos algozes, omitindo-se. Esta contradição mostra que nem
sempre a experiência vivida garante coerência, correção e dignidade. O mesmo guerrilheiro —
Polari —que denunciou a morte de Stuart tornou-se o padrinho daimista que se omitiu na morte do
Jambo.
A conduta do CEFLURIS em relação à família do Jambo é idêntica à dos órgãos de repressão da
ditadura em relação a família do Stuart. Com a agravante de que o sistema de repressão estava
cumprindo seu papel no contexto do golpe de 1964 e nunca se apresentou como religião
redentora.
A tragédia do Jambo, longe de ter sido em vão, faz com que seu espírito ocupe um lugar de mártir
para alertar nossa juventude sobre a alta periculosidade que se esconde por trás desse cartel da
fé.

CONFEN
O Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) é um órgão normativo e, como seu nome já o
diz, trata das questões relativas às substâncias entorpecentes. Embora a ayauhasca não seja
precisamente entorpecente — muito pelo contrário —Já que não existe um organismo para tratar
de substâncias alucinógenas, coube ao " CONFEN, pelo menos até agora, determinar as normas
para seu uso.
O primeiro trabalho sobre a ayauhasca elaborado pelo CONFEN foi realizado a partir da visita dos
drs. Isac Germano Karniol e Sérgio Seibel a três lugares da cidade de Rio Branco: a União do
Vegetal, a Colônia 5000 e a igreja do Alto Santo, no período de 23 a 26 de outubro de 1985.
Apenas três dias.
Houve, posteriormente, em 1987 e 1992, outras comisões que realizaram visitas a locais onde se
realizam cultos com a ayauhasca, :
inclusive no Céu da Montanha e no Céu do Mapiá.
Devo lembrar, com o intuito de esclarecer, que fiz parte do CEFLURIS a partir de 1984 e,
portanto, acompanhei o desenvolvimento do grupo e presenciei as visitas dos membros
do CONFEN ao Céu da Montanha.
Há coisas que a linguagem erudita não consegue expressar tão bem quanto a gíria ou a
linguagem popular. Neste caso, a expressão "foi para inglês ver" define com exatidão o
que acontecia.
Nos dias das visitas dos conselheiros "a casa era arrumada", as pessoas inconvenientes
eram propositalmente banidas e a proibição de usar a santa maria (maconha) vigorava
com rigor.
Os conselheiros limitaram-se a ouvir e apreciar o que lhes foi apresentado, sem questionar ou
verificar coisa alguma.
O último relatório foi assinado pelo dr. Domingos Bernardo Galiuci de Sá, citado anteriormente, e
elaborado por diversos conselheiros que formaram uma comisão multidisciplinar de estudos.
Comentarei alguns trechos desse relatório:
4) Padrões morais e éticos de comportamento em tudo semelhantes aos existentes e
recomendados na nossa sociedade, por vezes até de um modo bastante rígido, são observados
nas diversas seitas. Obediência à lei pareceu sempre ser ressaltada.
Na época, fatos como o assassinato de um adepto na Colônia 5000 já tinham acontecido. Os
detalhes desse crime, por si só, deveriam ter merecido alguma reflexão por parte dos conselheiros:
como já foi dito, Raimundo Nonato, responsável pela colônia, assassinou em 1983 um rapaz
conhecido pelo apelido de Ceará, decepando-lhe o pênis. Vale acrescentar que outros membros
da comunidade daimista seguraram o referido Ceará durante a operação e, após consumada,
esfaquearam-no até a morte. O caso foi noticiado na imprensa, foi aberto um processo na justiça
—que tive oportunidade de ver na minha visita a Rio Branco, em dezembro de 1994 —e
posteriormente foi arquivado, sem ter sido julgado.
No mesmo ano, pouco tempo após esse crime, um músico da cidade de São Paulo, na época com
23 anos, viajou para Rio Branco com o intuito de conhecer a fonte do daime, que ele já tomava na
localidade de Visconde de Mauá.
A freqüência com que é ingerida a bebida na Colônia 5000 — em alguns casos mais de uma vez
por semana, sempre associada à cannabis — o fato de se encontrar longe do grupo familiar, em
condições de vida e cotidiano bem diferentes do que estava habituado, tudo isso, somado a alguns
outros elementos que mereceriam um estudo psicológico mais profundo, fez com que
apresentasse um surto de psicose maníaco-depressiva. Segundo relato do próprio, ele
permanecia dias no pico maníaco, sem conseguir parar de falar, sem dormir por mais de uma
semana, e depois caía na fase depressiva, semelhante à descida aos infernos. Na época, o corpo
diretivo da Colônia 5000 estava com as barbas de molho, em função do assassinato já
mencionado e de diversas apreensões de maconha. Outro escândalo poderia ser fatal para a
seita. Assim, ele foi mantido amarrado a uma cama, com alimentação precária e sem nenhum tipo
de assistência médica ou psicológica. Após alguns meses, quando a poeira baixou, foi internado
no Hospital Psiquiátrico de Rio Branco, cujo diretor fazia parte da seita.
A família do rapaz não foi avisada do estado em que ele se encontrava, nem da sua internação.
Desesperados, os pais, partindo do último telefonema a cobrar que tinham recebido meses antes,
iniciaram um longo e doloroso percurso, que acabou quando encontraram o filho, no já
mencionado hospital, em condições precárias, desnutrido, doente e sem nenhum tipo de
assistência médica ou psiquiátrica.
A bem da verdade, deve ser dito que esse músico, depois do surto de Rio Branco, foi submetido a
diversos tratamentos dentro da medicina oficial e da alternativa, e ainda hoje, após doze anos,
precisa de auxilio terapêutico. Atualmente mora com os pais, trabalha, toma daime nas igrejas de
São Paulo. Um elemento da maior importância nesse caso foi a determinação dos pais de
percorrer o país em busca do filho, tê-lo achado e ter conseguido encaminhá-lo. Me pergunto: se
os pais não tivessem recursos ou condições, o filho estaria vivo?
Ainda sobre os padrões morais e éticos citados pelo documento, cabe ressaltar que o atual líder da
seita, Alfredo Gregório —na época da visita do CONFEN, seu pai, o padrinho Sebastião, liderava o
CEFLURIS — é casado e mora maritalmente com três mulheres na mesma casa, sendo duas
delas irmãs, e tem filhos com as três. É bom salientar que a doutrina pregada pêlos daimistas
exige, inclusive, castidade aos seus adeptos.
9) Findas as cerimônias, todos de uma maneira aparentemente normal e ordeira voltam aos seus
lares. Os seguidores das seitas parecem ser pessoas tranqüilas e felizes. Muitos atribuem
reorganizações familiares, retorno do interesse pelo trabalho, encontro consigo próprio e com
Deus, através da religião e do chá.
Em relação ao item 9 deve ser colocado que os seguidores da seita não são tão ordeiros nem tão
felizes. A ayauhasca traz para a consciência do indivíduo conteúdos das camadas mais obscuras
do inconsciente, que precisam ser elaborados cuidadosamente. Quando isto não acontece,
algumas pessoas tomam-se vulneráveis e, após os trabalhos, apresentam sintomas preocupantes.
Acompanhei casos de pessoas que abandonaram suas responsabilidades, deixaram de cumprir
suas obrigações familiares, saíram dos seus empregos, desestruturaram suas vidas, achando que
tudo isso fazia parte do "mundo da ilusão".
A respeito desse assunto, em carta enviada ao padrinho Alfredo Gregório em 5 de julho de 1992, o
psiquiatra Carlos Renault, membro da seita e responsável pela igreja "Virgem da Luz", no Rio de
Janeiro, afirma:
"Na Virgem da Luz, temos atendido a pessoas que se afastaram da igreja do Rio de Janeiro —
Céu do Mar, comandada pelo Paulo Roberto Sousa e Silva — porque não davam conta de
assimilar o processo de conhecimento da nossa santa doutrina e se beneficiar com o trabalho.
Ficavam confusas, nebulosas na mente, e suas experiências com o daime eram relatos de grande
devaneio e desvarios de pensamento. Saiam do daime e procuravam a mim e a Eliane (esposa do
autor da carta e também terapeuta) no consultório, com a seguinte queixa: Tenho medo de
enlouquecer, não estou entendendo mais nada!'
Os casos que hoje vemos de suicídios dentro de nossa irmandade e de desequilibrados crônicos
são de pessoas que não tiveram acesso à alternativa de um tratamento de apoio. Não podemos
deixá-las à mercê do seu próprio desequilíbrio, do seu caos interno, com as forças negativas
rondando, impelindo-as para o pior.
Algumas delas dizem: 'Quero seguir, tomar daime, morar na comunidade do Mapiá e não quero
fazer tratamento psicoterápico, pois não preciso'. Mas em muitos casos o eu interno sumiu,
eclipsou-se, está perdido, e a pessoa não se dá conta. Ela fala sem eixo, sem essência, sem
discernimento".
É bom relembrar que os argumentos acima são colocados por um psiquiatra daimista, membro
do CEFLURIS.
12) Entre as seitas só uma parece ter usado outra droga (Cannabis sativa, maconha) que não é o
chá dentro da procura religiosa. Por acordo de cavalheiros, na época, com autoridades multares e
policiais, que aparentemente está sendo seguido, esta prática foi abandonada.
Já em relação ao item 12 deve ser acrescentado que, além da maconha, que continua sendo
usada, segundo depoimento dado à tevê de Rio Branco, em novembro de 1994, por um integrante
da Colônia 5000, foi constatada a presença de anfetaminas no daime que é vendido na Europa.
Como na composição original da bebida tais substâncias não existem, fica evidente que o daime é
assim balizado, ou seja, misturado (revista Der Spiegel, outubro de 1994).
Outra prática empregada na referida colônia é a utilização da "mescla", cigarros feitos de
maconha e pasta-base de cocaína.
13) Antigamente o cipó e a chacrona só eram encontrados na mata virgem. Algumas seitas têm
procurado cultivar essas plantas com relativo sucesso. Ressalta-se no entanto que a preparação
do chá é bastante difícil e prolongada, envolvendo toda uma "tecnologia" que provém de datas
imemoriais, realizada dentro de um determinado ritual. Da forma como é preparado, nos parece
difícil que uma quantidade muito maior que a necessária nos cultos seja factível de preparo. Ou
seja, parece difícil a preparação do chá em quantidades a serem utilizadas com abuso, de uma
forma não-ritual, dentro da sociedade geral.
No que toca ao item 13 só posso definir este parecer como ingenuidade dos conselheiros.
Atualmente cada "feitio" de daime no Céu do Mapiá produz acima de mil litros. Acrescente-se que
há diversos "feitios" ao ano naquela localidade e que cada igreja faz seus próprios preparos. O
preço médio do litro de daime é de trinta a trinta e cinco dólares. A matéria-prima é fornecida de
graça pela floresta e os trabalhadores são os membros da seita, obviamente não remunerados.
Poucas atividades devem ser tão lucrativas quanto esta.
Em maio de 1995, o IBAMA apreendeu um caminhão com 1.200 litros de daime que
vinha de Rio Branco para abastecer as igrejas do sul do pais. Motivo da apreensão:
devido à falta do cipó na comunidade Céu do Mapiá, os daimistas invadiram uma
reserva indígena, atrás da matéria-prima para preparar o chá e, nesse intuito,
desmaiaram uma grande área de mata nativa. Os índios fizeram a denúncia e o Instituto
de Meio Ambiente a acolheu.
17) Em casos isolados encontramos adultos, jovens provenientes de cidades grandes de outros
estados do Brasil, que, à procura de um caminho de vida, parecem ter encontrado essas religiões.
Parecem, no entanto, estar bem integrados consigo próprios e com o trabalho que estão
realizando.
Item 17: Aqui a falha foi não ter entrevistado os familiares dessas pessoas nos seus locais de
origem. Assim, os conselheiros teriam encontrado famílias destruídas, crianças cujos pais as
abandonaram, casamentos desfeitos, pais inconformados... Teriam sido informados dos empregos
e dos estudos que essas pessoas largaram por considerá-los parte do mundo da ilusão. Também
saberiam que muitas dessas pessoas venderam seus bens e entregaram o dinheiro
obtido pela venda ao CEFLURIS.

35) Levantamento de atividades de órgãos públicos Há inúmeras ações desenvolvidas, deforma


dispersa, pela administração pública, em geral, no curso de décadas, relativas ao uso da
ayauhasca no Brasil, que jamais resultaram entretanto em efetivo esclarecimento da questão.
Foram ações isoladas, portanto sem maiores
encadeamentos entre os diversos órgãos públicos, e, normalmente, fruto da estranheza causada a
autoridades locais, quando estas tomavam conhecimento de que grupos de pessoas faziam uso de
bebida desconhecida, capaz de alterar o estado de consciência do indivíduo que a tomasse. Em
todas estas oportunidades, entretanto, ao que parece, os problemas/oram satisfatoriamente
esclarecidos e, assim, superados. O âmbito deste relatório não comporta exame mais profundo
destas ações espalhadas, o que constituiria matéria para um trabalho histórico.
No item 35 há outra grande falha: quando a justiça entrou no caso da minha filha, os juizes, os
promotores e os assistentes sociais não tinham a menor idéia do que era a bebida, da existência
do relatório do CONFEN, de que havia uma regulamentação a respeito. Fui chamada de "maluca"
por promotores de justiça, precisei providenciar material informativo para provar que não era delírio
meu.
E mais: quando o CONFEN se reuniu em maio de 1995 para estudar o caso da minha filha, tive
a oportunidade de conversar com diversos conselheiros. Eles, após terem dado seu parecer,
admitiram que não tiveram material para consultar, além daquele fornecido pela seita e obviamente
tendencioso.
O grande absurdo reside no fato de que "órgãos e autoridades competentes" liberaram a utilização
de uma substância muito poderosa e não programaram o que e como deveria ser feito, caso
houvesse vítimas ou prejudicados.
Numa comparação, pode-se-ia dizer que os órgãos que liberaram o uso de remédios contendo
talidomida tiveram também a responsabilidade de encaminhar para tratamento as pessoas
vitimadas pelo uso dessa substância.
No entanto, ouvi diversas vezes familiares de pessoas "engolidas" pelo CEFLURIS reclamando
por não terem sabido a quem ou onde recorrer.
O item 36 detalha a prisão em flagrante de um rapaz chamado Eder Cândido Silva em
setembro de 1981, na época com 22 anos de idade, que portava uma mochila cheia de maconha.
O referido rapaz morava na Colônia 5000, sede da seita CEFLURIS em Rio Branco. No dia
seguinte, a polícia dirigiu-se ao local, onde apreendeu pés, sementes e folhas de maconha.
37) O fato sob exame tem suma importância posto que não pôde o grupo de trabalho apurar,
ao menos até o momento, um único registro, objetivamente comprovado, que levasse à
demonstração inequívoca de prejuízos sociais causados, realmente, pelo uso que vem sendo feito,
ate esta parte, da ayauhasca. Reitere-se que o objeto do exame do Grupo do Trabalho (do
CONFEN) é a ayauhasca, não a maconha, a cocaína ou qualquer outra droga e somente
problemas causados especificamente pelo uso da beberagem ora objeto de análise é que,
evidentemente, poderão ser considerados.
Aqui caberia destacar a opinião do médico e professor de psiquiatria da UCLA School of
Medicine, dr. Charles Stephen Grob, a respeito da já mencionada matéria da revista Der Spiegel
denunciando a presença de anfetaminas no daime distribuído na Alemanha pelo CEFLURIS.
Disse o ilustre cientista: "Se a mistura de plantas amazônicas denominada ayauhasca for
adulterada com o acréscimo de substâncias como as anfetaminas, existe o perigo de uma
interação letal. A planta básica da ayauhasca, o Banisteriopsis caapi, contém alcalóides que,
combinados com anfetaminas, causam graves reações de hipertensão, que podem ameaçar a vida
de indivíduos vulneráveis".
40) Foi possível, num lapso de dois anos partir de 30 de julho de 1985, fazer uma avaliação
serena e mais segura das conseqüências do uso da ayauhasca (sic). Não há qualquer registro,
objetivamente comprovado, demonstrativo, inequivocamente, de prejuízos sociais causado pelo
uso que vem sendo feito da ayauhasca.
Os itens 37 a 40 tratam da inexistência de "prejuízos sociais". Caso os relatos contidos neste livro
não possam ser enquadrados como "prejuízos sociais", estão à disposição dos senhores
conselheiros os casos que não foram incluídos para evitar redundâncias e repetições cansativas.
O item 43 enfatiza os termos dos itens 4 e 9 a respeito dos padrões morais e éticos dos membros
das seitas e sua aparência de pessoas tranqüilas.
A ingenuidade dos membros do CONFEN confunde-se com um conto de fadas. Poder-se-ia dar o
desconto de que, na época, muitos desses fatos não eram evidentes. E após terem se tomado
públicos?
Eu mesma, quando soube que minha filha estava na Colônia 5000, nas mãos de assassinos e
pessoas sem escrúpulos, procurei o jurista Domingos Bernardo de Sá, que presidiu o trabalho do
CONFEN e assinou o relatório. Expus a ele o que a comissão não tinha visto. O jurista manifestou
preocupação pelo fato de que a divulgação desses escândalos poderia anular o trabalho por ele e
outros realizado. Mas não manifestou a mínima preocupação a respeito de casos como o do
Jambo ou o da Verônica. É importante acrescentar que dois filhos do dr. Domingos Bernardo
fazem parte do CEFLURIS.

CONCLUSÃO
Como foi colocado no prólogo, o objetivo deste, livro é a denúncia. Esta denúncia abrange
duas questões: uma, o uso de substâncias alucinógenas; a outra, o crescimento descontrolado das
seitas.
Ao longo do livro pretendi mostrar que os dois assuntos, embora no caso específico do
CEFLURIS funcionem juntos —o uso da bebida e a estrutura sectária —, em determinado
momento se bifurcam.
Houve duas denúncias: uma sobre o caso da minha filha, Verônica, e a outra sobre o caso do
Jambo. Foram encaminhadas ao CONFEN. Esse órgão estudou — essa é sua alçada — a questão
relativa à bebida. Não foram considerados os pontos que dizem respeito ao aliciamento sectário.
No mundo inteiro as sociedades criam mecanismos para se auto-administrar. O tema das
seitas e seu crescente poderio têm sido objeto de estudo e avaliação em muitos países. Hoje em
dia existem terapias específicas para reestruturar a consciência das pessoas que participaram de
seitas. As constantes matérias em jornais do mundo inteiro sobre abusos cometidos pelas seitas
(vide o caso recente da seita japonesa Verdade Suprema), por si só, já deveriam representar uma
tomada de consciência por parte da sociedade brasileira.
Na Inglaterra as pessoas que acompanham o fenômeno do crescimento das seitas se
denominam cult watchers, e algumas das organizações anti-sectárias mais conhecidas naquele
país são: Ca-talyst, Fair, Cristina Rescue, entre outras.
Essas organizações fornecem auxílio terapêutico tanto aos adeptos como aos seus familiares. Em
alguns casos vão mais longe:
dispõem de serviço de seqüestro da pessoa que se encontra dentro da seita, para sua posterior
reestruturação, processo que recebe também o nome de "assessoramento para o abandono".
Quando se colocam tais questões em debate, surge logo o argumento da liberdade de culto.
Mas antes da liberdade de culto existe o direito à vida e a garantia, na Constituição, de que é dever
do Estado zelar pela integridade dos cidadãos. No momento em que a policia no Japão encontra
gás venenoso na sede de uma seita, não se questiona a liberdade de culto.
Os casos expostos neste livro merecem uma avaliação especial porque junto à temática das seitas
temos a utilização imprópria de um potente alterador da mente, o que torna o perigo ainda maior.
Para compreender a problemática do CEFLURIS, torna-se fundamental uma reflexão profunda
sobre a necessidade das pessoas de transcender os limites dos seus egos e as fronteiras que
delimitam os caminhos pêlos quais se busca essa transcendência.
Durante estes últimos quatro anos nos quais tenho lutado para salvar a vida da minha filha,
tropecei com todo tipo de incoerência e erros conceituais. Foram esses erros que me impeliram a
escrever, entre eles: "A senhora ia beber essa porra para ficar doidona", "Não se pode cercear a
liberdade de culto garantida pela Constituição", "A atitude do juiz de Rio Branco em não cumprir a
carta precatória foi descortês" ...
Em relação à ayauhasca, ela não pode ser colocada como ré. Ela não é boa nem ruim. Há
milênios vem sendo utilizada Tanto para curar como para fazer o mal.
O fato de que existem terapeutas e grupos sérios utilizando-a para realizar curas e reestruturar
pessoas que se fragmentaram através do uso de tóxicos, ou como conseqüência de outros
sofrimentos, não devolve a vida àqueles que a perderam pelo mau uso da ayauhasca.
A inexistência de problemas na União do Vegetal ou na Barquinha demonstra que seu uso correio
é viável. O que aproxima essas duas organizações é, sem dúvida, a semelhança dos seus
princípios éticos. Nenhuma delas faz comércio da bebida, nem a mistura com outras substâncias.
Ambas exercem controle moral sobre seus integrantes e as duas evitam publicidade, escândalos e
atitudes fanáticas.
O desconhecimento da matéria demonstrado pelas autoridades e pêlos membros do Conselho
Federal designado para administrar a situação sugere que o uso da ayauhasca deveria ser
controlado por aqueles que provaram que sabem utilizá-la. Existe um órgão semelhante nos EUA
que controla o uso religioso do peyote.
Quando os organismos oficiais aprovam uma substância para ser utilizada como medicamento,
essa atitude sugere abranger também suas possíveis conseqüências negativas. No caso da
talidomida, as pessoas vitimadas por essa substância souberam a quem recorrer em busca de
auxílio e ressarcimento. O mesmo não acontece com a liberação da ayauhasca. Os familiares das
pessoas que se desintegraram pelo uso delituoso da bebida não souberam a quem recorrer, e
ainda mais: como eu, foram ameaçados pêlos integrantes do CEFLURIS.
As lideranças sectárias pseudo-religiosas constituem cada vez mais uma preocupação em muitos
países. Dia após dia surgem casos de desequilibrados que conseguem induzir, em nome de Deus
e das escrituras sagradas, pessoas a um fim trágico.
Tenho participado, nos últimos anos, de alguns debates sobre o assunto com autoridades,
formadores de opinião e pessoas interessadas nesta problemática. A questão é ambígua. Muitas
vezes, chegou-se à mesma conclusão: na atual conjuntura, o Brasil só tomará conhecimento
desse problema quando acontecer alguma grande tragédia, como a da Guiana ou, mais
recentemente, a do Japão.
Ao mesmo tempo, cada vez mais linhas terapêuticas no mundo inteiro pesquisam o fenômeno da
consciência expandida como caminho para a cura. Também foi dito que para expandir a
consciência não é necessário beber ayuahasca ou qualquer outra substância.
Muitos terapeutas —como Stanilav Groff, que começou utilizando o LSD com seus pacientes —
hoje trabalham com outros elemento, como técnicas de respiração, para conseguir os mesmos
resultados obtidos com as substâncias psicoativas.
Assim como a prática da hipnose foi regulamentada, acredito que não deve demorar a criação
de um código de ética que controle a beberagem da ayuahasca, que tanto pode levar as pessoas à
cura quanto à morte.

GLOSSÁRIO

Ácido Lisérgico: Substância descoberta em 1943 pelo dr. Albert Hofmann, cujo princípio ativo
assemelha-se à psilocibina.
Aldous Huxiey: Escritor e pesquisador inglês, autor de diversas pesquisas com mescalina e LSD.
Escreveu diversos livros sobre o tema: Moksha, A Ilha, As Portas da Percepção, entre outros.
Alma-grupo: Conceito espiritualista, segundo o qual grupos de seres humanos representam
falanges ou grupos do mundo espiritual.
Alto Santo: Localidade próxima à cidade de Rio Branco (AC), onde diversas seitas que utilizam o
daime nos seus rituais têm sede.
Alucinógeno: Substância extraída de plantas ou produzida artificialmente, cujo uso provoca
expansão da consciência.
Araucano: Referente às tribos de nativos araucanos, oriundos do sul do Chile e da Argentina.
Arquétipo: Segundo o psiquiatra suíço Cari Gustav Jung, padrão psíquico humano localizado no
inconsciente coletivo
Auto-hemoterapia: Tratamento que objetiva corrigir deficiências imunológicas a partir de injeções
do sangue do próprio paciente.
Ayauhasca: Bebida obtida a partir do cozimento do cipó jagube e da folha rainha, de efeito
alucinógeno, utilizada com fins religiosos por diversas seitas na região amazônica.
Bad trip: Expressão utilizada por usuários de substâncias alucinógenas quando a experiência — a
viagem — é difícil ou desagradável.
Bailar/bailado: Nome dado às danças e/ou movimentos ritmados no ritual do santo daime.
Barato: Termo utilizado por usuários de substâncias alteradoras da consciência para definir o
efeito conseguido.
Barquinha: Nome de uma das seitas da cidade de Rio Branco que utiliza o santo daime em seus
rituais.
Benzedura: Ação de benzer.
Caapi: Um dos muitos nomes do cipó (jagube) com que se prepara a bebida denominada
ayauhasca. Cabeça feita: Gíria utilizada para definir o estado mental da pessoa que utilizou uma
substância com o objetivo de expandir sua consciência.
Cannabis sativa: Nome científico que define a planta conhecida vulgarmente no Brasil como
maconha.
Canto iniciátíco: Cânticos utilizados pelas religiões nas cerimônias de iniciação e nos rituais.
Carma: Segundo as doutrinas espiritualistas e as religiões orientais, trata-se do ciclo das
reencarnações em função da lei de causa e,1, efeito.
Casa da estrela: Local nas comunidades daimistas onde se realizam os trabalhos de
cura.
CEFLURIS: Nome de uma das organizações religiosas que fazem uso do santo daime, denunciada
neste livro. A sigla é formada pelas palavras Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo
Irineu Serra.
Céu da Montanha: Nome da comunidade daimista localizada em Visconde de Mauá
(RJ).
Céu do Mapiá: Nome da comunidade daimista localizada no igarapé Mapiá (AM).
Céu do Mar: Nome da comunidade daimista localizada na estrada das Canoas, no Rio de Janeiro.
Chakra: Ponto do corpo — ao todo, são sete — onde se cruzam os canais por onde circula a
energia vital.
Chamada: Cânticos utilizados na União do Vegetal durante os trabalhos com ayauhasca.
Cimora: Um dos nomes como é conhecida no Equador a bebida alucinógena obtida a partir do
cozimento de um cacto denominado "huaichuma".
Cochinada: Sujeira feita por porcos. Nome utilizado pêlos xamãs peruanos para definir trabalhos
espirituais que objetivam o mal.
Colônia 5000: Nome da comunidade daimista situada a poucos quilômetros da cidade de Rio
Branco.
Comando: Nome genérico utilizado para definir o indivíduo ou o grupo de pessoas que têm a
responsabilidade de comandar os trabalhos no ritual do santo daime.
Comungar: Na União do Vegetal, nome dado ao ato de beber a ayauhasca.
Concentração: Ritual realizado nas igrejas daimistas, no qual as pessoas permanecem em
silêncio. Não há cantos nem bailados.
Curador: Pessoa que possui o dom de realizar curas espirituais.
Curandeiro: Alguém que realiza curas sem capacitação acadêmica.
Druidas: Sacerdotes com características xamânicas das antigas religiões da Irlanda e da Grã-
Bretanha.
Endorfïnas: Substâncias produzidas pelo nosso sistema endócrino cuja descarga na corrente
sanguínea produz uma expansão da consciência muito semelhante à que se obtém com o uso das
substâncias já mencionadas.
Essênios: Sociedade secreta anterior ao nascimento de Cristo que preservou o cristianismo
primitivo.
Fanerotimico: Termo utilizado pêlos pesquisadores de substâncias expansoras da consciência,
que depois cedeu lugar a "psicodélico".
Feitio: Cerimônia de preparo dá ayauhasca.
Ícaro: Cânticos iniciáticos utilizados pêlos xamãs peruanos durante os rituais.
Iniciação: Ritual religioso que marca um novo grau no processo de desenvolvimento espiritual.
LSD/LSD23: Nomes dados ao ácido lisérgico.
Mantra: Som ritualístico cuja enunciação põe em ação influências espirituais.
Maracá: Instrumento musical semelhante a um chocalho, utilizado por xamãs e também nos
rituais do santo daime...,
Mescalina: Principio ativo de algumas plantas alucinógenas.
Miração: Alucinação provocada pela ingestão da ayauhasca.
Passagem, fazer a: expressão utilizada para se referir à morte.
Point: Ponto de encontro.
Psicoativo: Substância com o poder de alterar a mente.
Psicodélico: Substância cuja ingestão provoca delírio ou alucinações.
Puxador(a): No ritual, pessoa que comanda e inicia o canto.
Quarto caminho, escola do: Nome da escola filosófica que segue os ensinamentos de G.I.
Gurdieff.
Saniase: Nas religiões orientais, discípulo adiantado.
Sanpedrito: Nome da bebida obtida pelo cozimento do cacto São Pedro.
Seitas: "Movimentos totalitários caraterizados pela adscrição de pessoas dependentes das ideias
de um líder, que podem se apresentar como entidade religiosa, cultural, cientifica ou grupo
terapêutico; que utilizam técnicas de controle mental e persuasão coercitiva com o objetivo de que
os adeptos dependam da dinâmica do grupo e percam sua estrutura de pensamento individual em
favor das formas de pensamento do grupo". Esta definição foi dada pela Jonhson Foundations
Winspread Conference Center, na conferência realizada em 1985 em Raci-ne, EUA.
Teologia da libertação: Conceitos filosóficos e religiosos elaborados por frei Leonardo Boff.
Yagê: nome utilizado por algumas comunidades indígenas para se referir ao cipó (jagube) com
que é preparada a ayauhasca.

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