Sumário
1. Introdução. 2. O direito do pós-guerra e a
internacionalização dos direitos humanos. 3. O
velho conceito de soberania e a restrição atual
de sua abrangência. 4. A soberania e a negação
de sua existência no âmbito internacional. 5. So-
berania e direitos humanos: dois fundamentos
irreconciliáveis. 6. Por um novo conceito de so-
berania: flexibilização e delimitação das linhas
divisórias. 7. Conclusão. 8. Bibliografia.
1. Introdução
O aumento gradativo da participação
dos Estados no sistema internacional de
proteção dos direitos humanos, bem como o
reconhecimento, por vários deles, da juris-
dição dos órgãos de monitoramento perti-
nentes, tem levado alguns internacionalis-
tas a um reestudo da questão atinente ao
dogma da soberania estatal absoluta, rede-
finindo o seu papel para a satisfação da jus-
tiça globalizada em sede de proteção inter-
nacional dos direitos humanos.
Este estudo, da mesma forma, buscará
desvendar a possibilidade de existência de
Valerio de Oliveira Mazzuoli é Professor um novo conceito de soberania, moldado às
de Direito Internacional Público e Direitos Hu- exigências da nova ordem internacional e da
manos na Faculdade de Direito de Presidente proteção internacional dos direitos humanos.
Prudente – SP (Associação Educacional Tole- Para tanto, num primeiro momento será
do) e de Direito Constitucional e Direito Inter-
feito um breve histórico do processo de in-
nacional Público na Universidade do Oeste
Paulista – UNOESTE. Mestrando em Direito In-
ternacionalização dos direitos humanos,
ternacional na Faculdade de Direito da Uni- para, posteriormente, estudar-se o papel (ne-
versidade Estadual Paulista (UNESP) – Cam- gativo) do conceito de soberania no sistema
pus de Franca. internacional de proteção de direitos.
Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 169
2. O direito do pós-guerra e a na comunidade mundial. Um deles foi o de
internacionalização dos direitos colocar os indivíduos na posição central –
humanos há muito merecida – de sujeitos de direito in-
ternacional, dotando-os de mecanismos pro-
O Direito Internacional dos Direitos cessuais eficazes para a salvaguarda dos
Humanos, pode-se dizer, é o direito do pós- seus direitos internacionalmente consagra-
guerra. É dizer, aquele direito gerado com o dos. Por outro lado, pretendeu-se afastar de
propósito de romper de vez com a lógica vez o velho e arraigado conceito de sobera-
nazista da destruição e da barbárie, que nia estatal absoluta – que considerava os
condicionava a titularidade de direitos a de- Estados os únicos sujeitos de direito interna-
terminada raça (a raça pura ariana). A cons- cional público –, para proteger e amparar
trução de um cenário internacional de prote- os direitos fundamentais de todos os seres
ção de direitos foi conseqüência direta do sal- humanos, tanto no plano interno como no
do de 11 milhões de pessoas mortas durante plano internacional.
o Holocausto. Decorreu da vontade da comu- A doutrina da soberania estatal absolu-
nidade internacional em dar ensejo à cons- ta, assim, com o fim da Segunda Guerra,
trução de uma estrutura internacional de pro- passa a sofrer um abalo dramático com a
teção de direitos eficaz, baseada no respeito crescente preocupação em se efetivar os di-
aos direitos humanos e na sua efetiva prote- reitos humanos no plano internacional, pas-
ção. E a partir daí, o tema “direitos huma- sando a sujeitar-se às limitações decorren-
nos” tornou-se preocupação de interesse co- tes da proteção desses mesmos direitos.
mum dos Estados, bem como um dos princi-
pais objetivos da comunidade internacional1.
Como bem explica a Professora Flávia 3. O velho conceito de soberania e a
Piovesan, diante da ruptura “do paradig- restrição atual de sua abrangência
ma dos direitos humanos, pela negação do
valor da pessoa humana como valor fonte Em decorrência do processo de inter-
do Direito”, passou a emergir “a necessida- nacionalização dos direitos humanos, ad-
de de reconstrução dos direitos humanos, vindo do pós-Segunda Guerra, o conceito
como referencial e paradigma ético que apro- tradicional de soberania, que entende ser ela
xime o direito da moral” (2000, p. 129). E um poder ilimitado do Estado em relação
como resposta às barbáries cometidas no ao qual nenhum outro tem existência, quer
Holocausto, em que imperava a lógica do interna quer internacionalmente, passa a en-
terror e do medo, e a vida humana nada mais fraquecer-se sobremaneira.
era do que simplesmente descartável, a co- À medida que os Estados assumem com-
munidade internacional começou a esboçar promissos mútuos em convenções interna-
um novo – e até então inédito – cenário cionais, que diminuem a competência dis-
mundial de proteção de direitos, que pu- cricionária de cada contratante, eles restrin-
desse servir, na busca da reconstrução gem sua soberania e isso constitui uma ten-
dos direitos humanos, como paradigma e dência do constitucionalismo contemporâ-
referencial ético a orientar a nova ordem neo, que aponta a prevalência da perspecti-
mundial (PIOVESAN, 1998, p. 49). va monista internacionalista para a regên-
Se a Segunda Guerra representou a “rup- cia das relações entre o direito interno e o
tura” para com os direitos humanos, o pós- direito internacional2. E tal restrição encon-
Segunda Guerra deveria representar a sua tra seus limites, internamente, na persona-
“reconstrução”. lidade reconhecida do indivíduo e, externa-
O processo de internacionalização dos mente, no direito internacional pelos pró-
direitos humanos causou alguns impactos prios Estados reconhecido. Os Estados, por
BODIN, Jean. De la république: extraits. Paris: Li- ______. Direitos humanos e cidadania à luz do novo
brairie de Médicis, 1949. direito internacional. Campinas: Minelli, 2002.