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Cronópio Godot

Governador do Estado do Paraná

Cronópio Godot
Orlando Pessuti

Secretária de Estado da Cultura


Vera Maria Haj Mussi Augusto

Diretora-Geral
Jeane Hanauer
Sonia Hamamoto Shigueoka

Governo do Estado do Paraná


Coordenação de Editoração e Literatura
Secretaria de Estado da Cultura
Rosi Gloria Zandoná Lopes Salomão
Coordenação de Editoração

Curitiba Paraná 2010-30-09


Coordenação de Desenho Gráfico
Rita Soliéri Brandt

Projeto Gráfico e capa


Mariana Pavão

Revisão
Cíntia Maria Sant”Ana Braga Carneiro
Poesia de cheiro
Em minhas andanças, muito fazedor
de versos me procura, desalentado,
cansado de insistir, ansiando pela
orientação de um veterano que lhe
aponte algum caminho por onde seus
Conselho de Editoração versos possam penetrar a sensibilidade
do “outro”. Pobre guia dos turistas da
Presidente
alma sou eu, que jamais pude levar pela
Vera Maria Haj Mussi Augusto
mão um artista para fora do labirinto
Membros Efetivos: de seu isolamento! E eu perguntava
Alice Áurea Penteado Martha quantas vezes ele mesmo, o poeta
Carlos Augusto da Luz solitário, tinha entrado em uma livraria
Cláudio Fajardo em busca de livros de poetas novos?
Geraldo Mattos Ou até mesmo dos velhos? E quantas
Marise Manoel pessoas, que elegem Pessoa, Bandeira
ou Drummond à grandeza maior dessa
Membros Consultores Arte, efetivamente preenchem suas
Adélia Maria Woelner horas vazias lendo os versos destes
Dirceu Guimarães Britto mestres? Pobres mestres, condenados à
Flor de Maria Silva Duarte eternidade de uns poucos versos citados
José Carlos Veiga Lopes em discursos, ou como enfeite em
Marta Morais da Costa teses acadêmicas só lidas pela banca
Verônica Daniel Kobs examinadora!
Por que a Poesia é uma Arte tão
fechada? Por que a maioria de nós flor humana é de se cheirar. É sim, mas
mantemos olhos,ouvidos, paladar, seu perfume mostra-se muitas vezes
audição, tato e sensibilidade alheios à acre de suor, dos cheiros resultantes de
Arte que uma flor como Jeane Hanauer exposições às experiências, aos sonos
exala? e às insônias, às ilusões desfeitas no
Em busca de alguma resposta, deixei ar e às reconstruções dos castelos de
que “Cronópio Godot” me abraçasse nuvens. Mas, depois dos tombos, como
como me havia envolvido em versos uma astronauta das palavras é num ar
o inesquecível e tantas vezes relido renovado que Jeane Hanauer nos faz
“Flor e cimento”. Primeiramente, tentei respirar, enchendo-nos os pulmões do
sentir com os olhos, mas as palavras mais esperançoso oxigênio. “Cronópio
não se revelavam, elas escorregavam, Godot” é isso: oxigênio puro para nossas
abrindo-se em múltiplos sentidos, emoções. Não é um livro para se ler
jogando-me em labirintos de sensações com o sentimento. É para se sentir
e pensamentos que me levavam a com a Razão, porque não procura
chorar. Tentei ler com os ouvidos, mas iludir, não procura enganar, não tenta
as palavras não retumbavam, elas mais adoçar imagens nem fornecer falsos
se insidiavam, penetrando em meus ectoplasmas. E acabei descobrindo que
desvãos e ecoando tão lá dentro que a Poesia de Jeane Hanauer não é escrita;
me desnudavam sem nenhum pudor, é exalada.
às gargalhadas! Usei então o tato, para Assim é Jeane Hanauer: uma poeta sem
sentir as reentrâncias de cada ideia, de vergonha. Nenhuma! Em sua franqueza,
cada revelação, buscando a aspereza não se oculta, não tergiversa, não mente
dos verbos no infinitivo e a maciez das por pudor. Ela se revela e, exibindo-se,
algas que “bóiam desatentas no corpo nos obriga a também revelar-nos a
morto das águas”, mas elas às vezes nós mesmos, forçando-nos a descobrir
me espetavam os olhos, fazendo-me mantos que ocultam profundezas
recuar, envergonhado das sensações que jamais suspeitadas. Mas, afinal, não é
me provocavam, embora muitas vezes essa a função da Poesia?
me aquecessem como uma manta de Por isso eu peço que você faça como
plumas. Optei desta vez pelo paladar, eu e mergulhe nos abismos de Jeane
lambendo as imagens, mastigando Hanauer, até às profundezas onde
metáforas, deglutindo ilusões. magicamente a gravidade se inverte,
Empanturrei-me como um obeso, mas levando-nos para o alto, para as
não conseguia saciar-me, buscando dimensões onde realmente se escondem
sempre mais, mais, mais... nossas angústias, mas também nossas
Restava-me portanto somente o olfato e esperanças. Uma dimensão em que é
acabei descobrindo que a poesia dessa possível respirar.

Pedro Bandeira
- Então, devemos partir?
- Sim, vamos.
Eles não se movem.
(Samuel Becket, Esperando Godot)

En cuanto al cronopio mismo,


se consideraba ligeramente super-vida,
pero más por poesía que por verdad.
(Cortázar, Historias de Cronopios y de Famas)
Sumário
Exílio circense 17
Só o mistério é palpável 19
Herege 21
O bom combate 23
Salvação 25
Carvões 27
Braile 29
Elixir 31
Lógica 33
Em cores 35
Notas de fundo 37
Longevidade 39
Tarde Santa 41
Para Georgette Fadel 43
Carolina 45
Mate con Godot 47
Febres de Ana Terra 49
Insolução 51
Modus vivendi 53
Réquiem 55
Ombros 57
Antropofágica 59
As gentes 61
Paricá 63
Escavação noturna 65
Paisagismo 67
Circos 69
Argamassa 153
Isca 71 Miséria 155
Latitude Zero. 73 Chamamé saravá 157
Iguarias 75 Registre-se 159
Sangramentos 77 O gigante 161
Zona de perigo 79 Os pés e o sempre 163
Trégua 81 Alturas 165
Destino 83 Ligeiramente 167
Colheita 85 Casa no Sol 169
Purgatório 87 Tristeza triste 171
No hospital psiquiátrico 89 Tristeza triste 173
Certeza 91 Perdurar 175
Missões diplomáticas 93 Código genético 177
Em casa 95 Rio trinacional 179
Agosto 97 Carambolas 181
Resto 99 Fugas 183
Trincheira 101 Limiar 185
Modus Operandi 103 Marisete 187
Café pequeno 105 Sangue bom 189
Efeito Colateral 107 Luxo 191
Ouro 109 Estado de arte 193
Lide 111 Performática 195
Aleluia 113 Dotes 197
Nina 115 Talento 199
Arena 117 Enfado 201
Ex-vida 119 A César o que é de César 203
Órbita de amoras 121 Faz sentido 205
Libélula 123 Para Rudy 207
Aquisição 125 Íntimo 209
Plátanos 127 Chumbo 211
Âncora 129 Demasia 213
Pragmática 131 Sábado 215
Semi-quase 133 Cavalos on line 217
Morte laranja 135 Miséria 219
Perdição 137 Flores 221
Horizonte zero 139 Para Margueritte Duras 223
No colo do poema 141 Epahei! 225
Escape 143 Cerimônia 227
Jazigo 145 Vácuo 229
Ofício de ossos 147 Perguntas de praxe 231
Foice 148 Reza 232
Borboletíssima 149 Sweet 233
Quando escrevo sou existível.
17

Exílio circense
Como sou meio underground
tenho um circo no útero.
Meu circo intra-uterino
é holístico,
metafísico,
meio Godard.
Tem músculos,
pincéis,
partituras,
contorcionista
e bolandeira.
Ne me quittes pas,
Amores Perros,
fúrias de Frida,
meu caso com Almodóvar,
suores tântricos
e oferendas para Shiva.
Tem Cortázar saindo da cartola
e graças-a-Deus-Piazzolla.
No meu circo-exílio
(território bem demarcado)
ofereço guarida
ao que me mantém viva.
Acolho todos os que esperam Godot.
19

Só o mistério é palpável
Cada objeto desta casa tem um ar onírico,
impregnado de gigantesca sombra e rede posta,
onde se deitam sílfides e me deito eu.
E com olhos de paz espreguiçada,
com as piores vontades
e avançados treinamentos de gueixa
dedico-me
exclusivamente
ao mistério.
21

Herege
(...) que urnas tão antigas eram essas,
liberando as vozes protetoras que me
chamavam da varanda?
(Raduan Nassar, Lavoura Arcaica).

Como a Ana de Raduan,


aquele diabo travestido de mulher,
eu me encharcaria de todos os vinhos disponíveis
e anestesiaria meus desesperos sanguíneos
com o doce traiçoeiro dos vinhos.
Também me adornaria com quinquilharias
e com os pequenos pés descalços
eu demarcaria com dança herege
meu território de febres.
E quem julgasse apropriado
que se afundasse sob folhas úmidas
e que aplacasse suas próprias sangrias
(que cada um bem sabe como lhe convêm domar
- ou não -
a selvageria que lhe habita as carnes)
23

O bom combate
Se você viesse
eu diria coisas pertinentes em teus ouvidos,
examinaria tuas sagradas texturas,
o amplo território de tuas mãos,
tua boca entreaberta
de dentes famintos
e língua doce.
Os pêlos já os adivinho
e sei em que exata circunstância
os arrepios te deixariam pleno
e respirando mais que o previsto.
E só bem depois
eu te tocaria outras arquiteturas.
E então teu milagre anatômico
e todo teu poder entrariam em combate.
Se você viesse.
25

Salvação
Sob chuva total
lá vai ela
ensopada comemorando.
Contra o peito,
protege Cortázar.
27

Carvões
Botou até colcha na cama.
Ornou colcha e esperanças minguadas.
Na vida esturricada de sempre,
essa poeira na garganta
e teias antigas nos olhos.
Tenta-se de tudo,
quando pestes predestinadas
conduzem de fio a pavio
a peregrinação diária.
E até de carvões tenta-se extrair
sabe-se lá Deus o que.
29

Braile
Penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco.
Com licença – sim? Não demoro. Obrigada.
(Clarice Lispector, Água Viva).

Ele realmente tinha mãos,


é preciso deixar isso bem esclarecido.
Duas mãos.
Eu as olhei bem e posso dizer coisas sobre elas.
Posso dizer que eram mãos de um homem que respira.
Mãos silenciosas,
de conforto visível,
de finos convites subliminares.
As ardências ficam em meu encalço
e eu dedico todas as virtudes de minhas velozes retinas
nesta observação lânguida.
É uma calamidade o que me sucede, eu sei.
É um lodo de miséria.
Uma crueldade,
examinar mãos alheias em braile.
31

Elixir
A quase todos,
o mistério das expedições sensoriais
causa asperezas
ou assombros.
A mim, causa literatura.
33

Lógica
A casa de Clarice
foi incendiada uma vez.
É o que se espera
de pessoas inflamáveis.
35

Em cores
Domingo em outro país,
o arco-íris tinha as mesmas cores,
mas a cor da íris
era qualquer coisa sem precedentes.
37

Notas de fundo
Invejando essa atribuição exclusiva das especiarias,
néctares
e resinas aromáticas,
quer recender a canela,
anis estrelado,
lavandas de Tafí.
E, embora os poros só exalem
a ácida escrita,
os lábios e olhos
são sempre de exclusivo ópio.
39

Longevidade
Não pretendo estragar-me.
Conservo-me no barro de Rodin.
Em hálitos literários
que fornecem longevidade
aos instintos.
Conservo-me no fio de navalha da escrita.
Para não sangrar.
41

Tarde Santa
Fechou merecidamente os olhos
e entregou sua melhor encarnação
aos músculos suados do macho
que apenas nesta tarde era apenas dela.
No supra-sumo de sua pele e na boca
ele trazia um exclusivo veneno de homem.
Pois bem.
Tudo o que ela queria para todas as tardes
do resto de sua existência
eram essas mortes perfeitas
sob o santo macho.
43

Para Georgette Fadel


Quando atua,
Georgette põe as tripas no cenário
e a platéia também se sente
destripada.
Se eu ainda tivesse tripas
seriam iguais às de Georgette.
45

Carolina
Pequena Carol
de olhinhos de sol,
te afago e te prometo
que teus poemas de açúcar
serão sempre olho d’água
nos vários desertos meus.
47

Mate con Godot


Hoy, yo haría más o menos así:
invitaría a Chango Spasiuk
y algunos otros cronopios argentinos
para tomar mate
y esperar Godot.
Algunos chipás también, por supuesto,
que nadie es de hierro.
49

Febres de Ana Terra


Vejam os senhores o caso de Ana Terra
e seus célebres calores.
Ao fim e ao cabo aparece-lhe
(depois do touro)
o índio Pedro
e soluciona-lhe a vida.
E quanto a mim?
Meu sangue ferve
e onde estão os riachos
e as varejeiras
e o vento?
E os putos gravetos secos
que avisam
se algum Pedro Missioneiro
está por perto?
51

Insolução
No acaso da tarde
reencontrei o antigo sempre diabo:
os mesmos absurdos olhos
de veneno e caos.
53

Modus vivendi
Gente como eu
não devia andar solta por aí.
Quasímodo ao menos falava com sinos.
55

Réquiem
Tem dia que a gente acorda meio fúnebre.
O dia é um cortejo preto.
Nos ombros morcegos pousados
e os olhos de caveira carcomidos.
57

Ombros
Em qualquer ombro eu choraria hoje.
A qualquer um entregaria
minha nenhuma vontade de viver.
59

Antropofágica
Ela havia lido um trabalho
sobre propriedades organolépticas
dos alimentos.
Feliz coincidência,
no dia seguinte,
dada sua natureza
ligeiramente antropofágica,
degustou o cara.
61

As gentes
Todas as gentes
que aguardam sua condução,
pau-de-arara urbano,
compartilham a mesma secura,
o mesmo cansaço,
o mesmo susto.
E, por sorte, a mesma ternura guardada,
bem guardada,
atrás do couro de gado.
63

Paricá
Reinventa seu figurino
diariamente:
purpurina,
plumas,
tatuagens,
lança
e trapézio.
Movimento quântico perpétuo,
assina convênios com o pôr-do-sol,
árvores noturnas,
todas as alquimias e perigos possíveis.
No seu terreiro nouvelle vague,
produz seu próprio paricá.
65

Escavação noturna
Durante o sono,
faço escavações arqueológicas,
buscando algum indício ancestral
desta alma supersônica.
67

Paisagismo
Caminhavam todo dia no parque, lado a lado.
Suados músculos em oferenda recíproca.
Um dia deitaram-se, um sobre o outro,
na paisagem.
69

Circos
Quando eu era pequena
queria ir embora com os circos que passavam.
Hoje restam poucos circos.
E eu ainda aqui.
71

Isca
Dois passarinhos,
outro dia,
na sacada.
Agora, espalho sempre migalhas de pão
e aguardo.
Que a escrita pouse.
73

Latitude Zero

Para Toni Venturi, Débora Duboc e Cláudio Jaborandy

Prego pregado bem pregado


nas janelas-portas-lucidez.
Dois bichos na poeira.
Bestiais criaturas
no violento limite.
Garimpo seco.
Gente zero.
Primorosa arte viva:
viva o cinema nacional.
75

Iguarias
Na ante-sala,
homens de paramentos refinados
Na sala vip, o juiz:
o diabo em pessoa e mais um pouco.
Maravilha de tarde no corredor da morte.
77

Sangramentos
A cada ciclo menstrual,
bonito fenômeno sanguíneo
e bonito fluído lírico
também sanguíneo
(a palavra sangra).
79

Zona de perigo
Cai tão lenta e quieta
essa chuva que até dói.
Dói imaginar esta ínfima rota de fuga
pelas notas de saída do teu cheiro.
81

Trégua
Hoje olhei-me detidamente e com menos rigor
e então dei-me todas as chances.
Abri as portas do calabouço
onde tenho preso
meu demônio-sócio de longa data
e onde deixo pão e água todos os dias,
pelas dúvidas.
Hoje deixei-o sair.
Sugiro providenciarem escudos e armaduras.
83

Destino
A nós só resta mesmo escrever, Caio.
Do contrário, que outra garantia de oxigênio?
Só nos resta a puta palavra.
Porque sim.
Porque claro.
Porque a engrenagem é triste e feia e óbvia demais.
E escrever é coisa para bandidos profissionais.
85

Colheita
Esses pêssegos
te observam a respiração diariamente
e aguardam
que teu mistério de gosto e cor
esteja pronto
para a cerimônia da colheita.
87

Purgatório
Se existisse o tal procedimento burocrático
chamado purgatório
ela deveria ser mandada para lá.
Aplacaria as febres de gueixa
sem cerimônia
em qualquer miserável.
89

No hospital psiquiátrico
O interno ajudou a levantar o alcoólatra
recém chegado e recém caído.
Ambos compartilhariam o mesmo quarto.
E o mesmo médico,
com demência diplomada em Harward.
91

Certeza
Em dias nublados tudo é possível.
É provável que eu pegue aquele atalho,
que eu me experimente,
que eu invente uma estação logo ali
e tome um trem para o país mais exato.
Que eu vá me sentar no túmulo de Clarice.
Em dias de átomos enfeitiçados
este arrepio sem destinatário
e tudo cabe na minha certeza.
93

Missões diplomáticas
Ele vinha aleatoriamente
e proporcionava momentos
bastante anatômicos.
Nenhuma verborragia,
nem desvio de propósito,
nem amadorismo.
Negociações impecáveis.
95

Em casa
O país da gente
é a casa da gente.
A casa da gente
é o país da gente.
A gente é casa e país.
97

Agosto
Vidinha sem sal,
sem açúcar,
sem pimenta.
Vidinha sem gosto,
neste agosto
sem graça
e mofado.
Que outubro venha picante.
99

Resto
Eis que a pobre não quis mais tomar banho
Em dois vírgula três centímetros do ombro esquerdo
preservava o cheiro alheio recém-impregnado.
Aspirava-o narinas adentro feito um viciado terminal
cheirando a última cocaína.
101

Trincheira
Fui ouvir ontem
sapos e grilos noturnos.
Entre coqueiros e ventos
elaborei novo esquema tático
para enfrentar-me.
103

Modus Operandi
Para o poeta,
a palavra é via de acesso ao mundo.
Lupa.
Binóculo.
O mundo não lhe chega de forma direta.
A palavra é o tapete vermelho
sobre a poça de lama.
E vice-versa.
105

Café pequeno
Caras azedas
e outras misérias de gente menor
são café pequeno.
Meu tempo e excepcionalidade
estão para surrealismos,
vanguardas
e outros cafés bem mais fortes.
107

Efeito Colateral
Bebo este líquido alcóolico
em doses lentas e pervertidas
e resulto inofensiva
(para os mortos).
109

Ouro
Neste existir que se derrama agora
como uma catarata,
um furacão carnavalesco,
as instâncias são múltiplas e saborosas.
Instância da carne:
autônoma.
Instância do espírito:
conexão direta com todas as entidades.
Instância da escrita:
o precioso arremate
de puro ouro.
111

Lide
Na escolha pela profissão de poeta
(universo paralelo da criação)
já não tenho habilidade para ocupar-me
de coisas logísticas,
técnicas,
matemáticas.
Ofício dos ossos.
113

Aleluia
Tudo na minha vida
aconteceu mais tarde.
Bem depois.
Só agora me escolho.
Só agora me invento.
Descalça sobre gigantesco lótus,
só agora experimento a aleluia de Clarice.
115

Nina
Soturna e noturna Nina:
fantasmas demais
para tão pouco sono.
Frágil demônio Nina:
tem medo,
barriga vazia,
coração cheio.
Nua e crua Nina:
foge pra longe,
solta os punhos,
diminui o passo.
Vai leve,
vai mansa,
onírica Nina.
117

Arena
A palavra se converte
num signo desconhecido,
num código
que fura e fere.
O código me escapa
e não é mais palavra,
nem presságio,
nem surto.
São os golpes de Claudel no mármore,
o touro na arena,
minha familiaridade congênita com os manicômios,
minha anestesia tetraplégica
diante da dor e da festa.
119

Ex-vida
Ela fugiu a galope
montada na bravura.
Fugiu de casa por dois dias
e deixou putrefando lá
restos das últimas sobras
de uma existência morta e doída.
121

Órbita de amoras
Trata de atribuir
o maior maravilhamento
às coisas da existência.
À liberdade de gemidos clandestinos do homem dentro,
à contundência dos novos dizeres,
à nova amiga que transita no profundo
dos gestos doces,
à sintaxe de espinhos
de Carolina de Jesus.
Tudo compondo sublime órbita,
lugar de levezas e amoras maduras.
123

Libélula
Libélula entrou na casa:
contrabalançou
a dureza
com muita finura
(ipsis litteris).
125

Aquisição
Saiu para comprar precisamente
uma peça nova para a ocasião inaugural.
Terminou comprando a última versão
de seus instintos mais primitivos.
127

Plátanos
Plátanos felizes à beira do caminho
e eu,
no infeliz descaminho,
invejando plátanos.
129

Âncora
Em qual palavra impermeável
posso amarrar hoje
meu pescoço
pra não afundar neste charco?
131

Pragmática
Às vezes, puramente cosmética:
puro cheiro,
design,
matiz.
Outro dias, acrobática:
quadris,
velocidades,
músculos prontos.
Quase sempre e simultaneamente
pragmática:
define as regras do jogo,
testa resistências,
estuda reações de epidermes alheias.
(sim: a pessoa é para o que nasce)
133

Semi-quase
Resta-me essa minha cara de fantasma
assustando-me todo dia.
Esse espectro
estrambótico.
Esse semi-cadáver,
semi-quase,
semi-zero.
135

Morte laranja
Cálido e ensolarado asfalto,
pela luz mais puro laranja
do sol no horizonte.
Lástima, vejo, no retrovisor,
apenas asfáltica e laranja morte.
137

Perdição
Uma kundalini
baixou nela há cinco dias.
Desde então,
ela é fúria,
urgência
e doidice.
Perdeu o rumo de si
e não pretende encontrá-lo.
139

Horizonte zero
Meu olhar antes e lá
tinha caminho aberto,
desimpedido,
em linha reta como uma flecha.
Agora encontra curva,
beco,
grade.
E morre logo,
pequeno e mudo.
Morre de dar dó.
141

No colo do poema
Pensou num estratagema-rompante
que pusesse fim àquele desespero
mortífero-dominical.
Raspar os cabelos
(talvez houvesse um encosto
estagnado nos cabelos).
Estapear-se e sangrar-se
(diminuindo a implacável vontade não-realizada ,
de longa data,
de estapear várias pessoas).
Ou, última carta na manga,
deitar no colo de mais um poema-overdose.
143

Escape
Neste sábado tão convidativo
a passeios estratosféricos
em companhia de fadas
e duendes,
reviro, besta, o armário,
procurando salvação mínima.
Entre livros dormidos,
encontro escape na escrita viva
de amigos mortos.
145

Jazigo
As pessoas compram colchões de casal
e depositam ali seus planos e secreções.
Depois voltam a dormir sozinhas
e as secreções e planos
ficam enterrados
na metade sepultura
do colchão.
147

Ofício de ossos
Como um cachorro raivoso,
agarrado ao único e já desfigurado osso,
trago presa nos dentes
a palavra.
149

Foice
Muge uma vaca
na madrugada silenciosa.
Entre um latido e outro,
célebre mugido da solene vaca,
matéria líquida
desta maldita escrita de foice.
151

Borboletíssima
Às vezes me converto
num perigo ambulante,
um perigo para mim mesma,
uma auto-assombração.
Outros dias sou réptil,
me arrastando em câmera lenta.
Mas, hoje, acordei
em câmera rápida.
Borboletissimamente leve.
153

Argamassa
Quando minhas feições
se desfiguram
de tantos labirintos simultâneos:
é sobre esta argamassa
que o poema se levanta
imponente.
155

Miséria
Sob uma tonelada de aço
jazem minhas palavras.
Sem elas,
sou bicho miserável,
bicho insignificante,
bloco de cimento ambulante.
157

Chamamé saravá
Do outro lado da fronteira,
a boleadeira,
a gaita,
a chacareira:
meu esqueleto
teve seu dia de glória.
159

Registre-se
Decreto o fim
desta vida de fórceps.
161

O gigante
Tem os olhos ágeis
e, no semáforo da horrenda cidade,
pede moedas
de cidadãos nojentamente coniventes
com o cidadão que lhes rouba e ri.
Embora pequeno e frágil,
o menino do semáforo em preto e branco
é um gigante
no meio da pilantragem
daquele miserável faroeste.
163

Os pés e o sempre
Meus passos são largos:
grandes passadas
em direção ao campo de batalha,
em direção ao tempo,
em direção ao sempre.
165

Alturas
Lá no bem alto,
na melhor das alturas,
o olhar era alto,
o coração era alto
e o sangue corria com gosto nas veias.
Os passos,
os pulmões,
as costelas,
os pés 35:
todos sumamente satisfeitos.
Aqui não há montanha:
não há altura,
não há veias,
nem nada.
Há um resto de gente
com olhos de alto medo.
167

Ligeiramente
Como já era sabido e de praxe,
após o terceiro copo
ela era acometida
pelo lado, digamos,
ligeiramente politicamente incorreto.
Foi pra casa
tendo que aguentar o surto
até segunda ordem.
169

Casa no Sol
Quando eu for morar no sol
não vou mais precisar ser gente
nem carregar dores
nem carregar horrores
(bloco de choro compactado).
Quando eu for morar no sol.
171

Tristeza triste
Chorou tanto
que chorou demais:
os olhos se afogaram.
173

Tristeza triste
Chorou tanto
que chorou demais:
os olhos se afogaram.
175

Perdurar
Estendo nos varais
tudo o que podia ter sido,
o que nunca foi,
o que talvez seja,
o que ainda pode ser,
o que quem sabe,
o que tomara,
o que quem dera.
Penduro-me.
Perduro-me.
Nos varais,
nos ais.
Ai.
177

Código genético
Descobri hoje,
vendo aquela figura folclórica
(cabeleira em pé
e barba de duas cores)
que sou filha, por sorte,
de uma mescla de gênio
e último exemplar de homem das
cavernas.
179

Rio trinacional
O rio da fronteira
separa os meus pedaços:
do lado de cá uma metade,
do lado de lá outra metade.
Uma metade tristeza,
outra metade também.
181

Carambolas
Embora esta noite
tenha um cheiro adocicado
de carambola,
cheiro de verão,
colorido de azaléias pink
e ipês amarelos,
andando tão débil
e sozinhamente
me sinto um rascunho disforme
grotesco
pior que um diabo.
183

Fugas
Fujo pra lugar nenhum
todo dia.
Elaboro planos de fuga,
disfarces,
rotas,
esconderijos.
Cavo túneis subterrâneos
e nada:
volto, pródiga, ao poema.
185

Limiar
Este invólucro que me contém
já não é suficiente,
não suporta tanta sobrecarga.
Pernas e braços já não acompanham
este sempre-limiar.
187

Marisete
À minha esquerda,
neste esconderijo,
a obra de medo azul
da amiga artista
me olha boquiaberta
e vice-versa.
189

Sangue bom
Gente de riso solto,
ri de sua própria carcaça tragicômica.
Tem olhar microscópico,
jeito afiado,
fala mansa,
gesto amplo.
Gente sangue bom,
não guarda azedume na alma:
pulmões abertos ao fluir dos mistérios diários.
191

Luxo
Já estava mexendo o café na xícara
há duas horas,
abstraída e absorta que estava,
como sempre,
perscrutando a aventura infinitesimal
que é este luxo confortável
de ser cada vez mais literária.
193

Estado de arte
Até que tudo perca sua constituição original
seu formato,
sua composição.
Até que tudo se converta em palavra,
num fluxo ininterrupto,
sem fôlego.
Até que tudo seja um fluir de palavra
incessante e frenético
e tudo deixe de existir
e tudo passe então a existir
num ciclo perpétuo
de apenas literatura.
195

Performática
Por invocada intervenção dos deuses,
o vir-ao-mundo
já foi uma performance em si.
Tomou gosto pela coisa.
A pauta diária é
levantar acampamento
e estrear lonjuras.
197

Dotes
Naquela semana,
parou o trânsito do planeta todo.
199

Talento
Estou fadada
a meus atributos
afrodisíacos.
201

Enfado
Esse domingo,
de tão enfadonho
e arrastado,
já dura três dias.
Domingo demais
pra quem é tão volátil.
203

A César o que é de César


Na minha lógica de merecimentos,
a muitas pessoas
tiro o chapéu.
Um baita chapéu, inclusive
(um desses mexicanos).
A outras,
tenho um enorme e prazeroso cuspe
reservado
(também mexicano).
205

Faz sentido
Talvez ter vivido
no Parque Nacional do Iguaçu
explique essa vocação para árvore.
207

Para Rudy
Cuando la conocí,
en un día en que yo intentaba no morir
me dijo vos sos un sol.
Desde ese día, sí,
trato, realmente, de ser sol.
Por que lo que ella habla es para ser oído.
Hoy tengo la suerte de tenerla como abuela.
209

Íntimo
Só o poema acompanha meu ritmo.
Só ele tem cacife
pra tanto redemoinho,
tanto endiabramento.
Só o poema dorme comigo.
211

Chumbo
Hoje confesso a contra-gosto:
tudo é um fardo cruel,
tudo é estorvo,
nada é bem-vindo,
estar vivo é irritante.
Hoje não há remédio:
alguém me empreste um fuzil.
213

Demasia
Ruminando,
sozinha na cozinha,
escapando-me daquele mim
de inda pouco,
aquela demasia de gente.
As paredes não suportam minha presença
e trincam.
Só os trovões me acalmam
e me tornam gente existível.
215

Sábado
Em pleno sábado à tarde
pus uma água-de-cheiro
e saí para ver
se o que me esperava na esquina
era mesmo meu melhor alvo.
217

Cavalos on line
Cavalos modernos,
globalizados:
andam no asfalto,
páram no semáforo,
puxam carroças
com material reciclável.
219

Miséria
Escorria-lhe do rosto um suor fresco tipo orvalho
e do corpo quente emanava um incêndio
que resultava numa umidade morna e feliz.
Com reverência xamânica me era permitido tocar
o corpo morno-úmido-perfeito do homem de lentos feitiços
Aqui no meu deserto, coisas dele ainda recendem
mas minhas mãos são duas almas penadas.
Me retorço neste oratório de doídas mendicâncias
e me resigno à miséria da escrita.
221

Flores
Estamos no mês de agosto
e das árvores de flores amarelas
Eu, na espera de que colham ao menos uma destas
e deixem na minha porta,
com bilhetinho.
Em contrapartida,
algum erro de ortografia seria perdoado.
223

Para Margueritte Duras


Madame Margueritte
tem piedade desta que tem a mesma peste tua.
Manda-me aquele navio de travessia e ópio
e um chofer conduzindo o diabo.
225

Epahei!
São germânicas minhas cores:
olhos, cabelo e cútis.
Mas, com todo o gosto da escolha,
meu departamento é outro.
Como toda boa filha de Iansan.
227

Cerimônia
Todos os dias
afio minha espada
para decapitar-me.
229

Vácuo
Para uma alma penada como a minha
domingos são os piores dias.
A alma vaga entre ruínas
cheias de teias.
E não encontra um fiozinho sequer
de algum bordadinho colorido
no vácuo dominical.
231

Perguntas de praxe
Que condenação é esta que carrego?
Na distribuição das pestilências e maldições
que erro de cálculo na parte que me cabe?
Que superfaturamento é este
sobre os meus desastres existenciais?
233

Reza
Escreveram meu nome num papel
e levaram pra receber uma reza forte lá no pastor.
Na minha onírica e grandiloquente expectativa
preferiria um sioux
invocando espíritos da floresta a meu favor
235

Sweet
Dorme como um anjo.
Os anjos quando dormem exalam suavidades e encantos.
Uma atmosfera de outra ordem
e certa penumbra protegendo as emanações de luz violeta e aroma doce.
(Flautas ao fundo).
Para o ser de luz que repousa assim tão liricamente.
são necessários vários livros.
O livro da respiração,
com extenso índice versando sobre a solenidade do ar
depois de visitar os bosques que ele abriga nos pulmões.
O livro dos majestosos batimentos cardíacos.
O livro da mística voz.
Vários capítulos compondo o livro dos olhos.
Olhos adocicados, de aconchego e verdade.
Longo e minucioso tratado sobre a plenitude dos risos.
O livro da suavidade das linhas e texturas perfeitas.
Amplo volume sobre a refinada sabedoria e coerência dos gestos e palavras.
Sobre como o asteróide B-612 existe de fato
e o pequeno grande príncipe é mesmo especialista em rosas.
Que seu coração é puro.
Sua essência é de ouro.
E ele dorme como um anjo.
237

Sobre a Autora
jeanehanauer@hotmail.com
http://jeanehanauer.blogspot.com

Jeane Hanauer é mestre em Letras


(UFRGS) e professora da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. Sua
dissertação examina, sob a ótica da
Análise do Discurso, a reconfiguração
do cenário católico pela Teologia da
Libertação e a perseguição a Leonardo
Boff pelo então cardeal Ratzinger.
Entrincheirou-se na literatura e em 2002
publicou Lobos nos Telhados (edição
do autor) e em 2005 Flor e Cimento (Rio
de Janeiro, Editora Paricah). Procura
salvação em Cortázar, Clarice, Caio
Fernando Abreu, Raduan Nassar e
cronópios deste naipe. Quando escreve
torna-se pessoa existível. Acredita que
vale a pena esperar Godot.

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