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Etnoecologia ou Etnoecologias?
Encarando a diversidade conceitual

Ângelo Giuseppe Chaves Alves1, Francisco José Bezerra Souto2


1 Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de
Biologia. Rua Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos. 52171-
900 Recife, Pernambuco, Brasil.
2 Universidade Estadual de Feira de Santana. Departamento de
Ciências Biológicas. Av. Transnordestina, s/n, Novo Horizonte.
44036-900 Feira de Santana, Bahia, Brasil.

Apresentação
A etnoecologia é um campo de conhecimentos que
foi designado formalmente no meio acadêmico há
pouco mais de meio século e tem gerado muitas
discussões, inclusive em seus aspectos teóricos e
conceituais. Ainda que a quantidade de publicações
e de autores tenha aumentando nos últimos anos,
são muitas ainda as dúvidas e imprecisões
encontradas. Muitas destas, certamente, têm sua
gênese no fato de a etnoecologia estar situada nas
interfaces entre conhecimentos distintos (porém
relacionáveis) como as ciências naturais, sociais e
humanas, em um sistema que inclui inter, multi e
transdisciplinaridades. Este capítulo, longe de
pretender resolver definitivamente essas questões,
retoma-as para lançar algumas luzes sobre a
diversidade conceitual existente no campo da
etnoecologia, visando contribuir para uma melhor
compreensão e valorização dos saberes locais
relacionados aos recursos naturais e seu manejo.

Publicado originalmente em: ALVES, A. G. C. ; SOUTO, F. J. B.; PERONI, N. (Org). Etnoecologia em


perspectiva: natureza, cultura e conservação. Recife: Nupeea, 2010. p. 17-39. ISBN: 978-85-63756-05-3
18 Alves & Souto (2010)

Introdução
E é possível fazer pontes que atravessem os rios
sem colunas ou qualquer outro meio de
sustentação (...). Mas não precisas ficar
preocupado se não existem ainda, porque não
quer dizer que não existirão. (ECO 1986)

O termo Etnoecologia foi apresentado pela primeira vez por Conklin


(1954 a;b) em seu clássico estudo dos Hanunoo, nas Filipinas e desde então
diversos significados têm sido dados ao termo. Ao invés de etnoecologia,
Frake (1962), que foi também um pioneiro deste enfoque, preferia o termo
ecologia etnográfica.
O fato de Conklin (1954 a;b) ter sido um dos pioneiros da etnoecologia e
da própria etnociência clássica 1, mostra que ambas têm aproximadamente a
mesma “idade” e compartilham, historicamente, métodos, objetivos e
pesquisadores (Fowler 1977), numa espécie de sobreposição epistemológica.
Se, em algumas etnotaxonomias, um organismo pode pertencer
simultaneamente a mais de um táxon, algo semelhante ocorre com o recorte
disciplinar no campo etnocientífico, pois as diversas abordagens como
etnobotânica, etnozoologia, etnoecologia e etnopedologia, entre outras, não são
necessariamente excludentes entre si.
A chamada “etnociência”, “nova etnografia”, “etnossemântica” ou ainda
“etnografia semântica” surgiu a partir de meados do século XX, propondo uma
nova abordagem antropológica, através da qual as culturas deixassem de ser
vistas como conjuntos de artefatos e comportamentos e passassem a ser
consideradas como sistemas de conhecimentos ou de aptidões mentais, tais
como revelados pelas estruturas lingüísticas. Os etnocientistas consideravam o
saber como um conjunto de aptidões possíveis de ser transmitidas entre
pessoas e pretendiam descobrir os princípios que organizavam as culturas e
determinar até que ponto eles seriam universais. Entre seus principais
expoentes destacam-se Conklin (1954 a;b), Frake (1962) e Sturtevant (1964).
Por ser um campo de conhecimento recente e híbrido, não há uma
definição unificada e consensual sobre o que é etnoecologia e talvez esse
consenso não seja ainda necessário. Ao invés de representar um problema, esta
falta de consenso pode ser também um desafio instigante. Pode-se considerar a

1
Usa-se “etnociência clássica”, neste contexto, para referir-se à etnociência praticada nos
EUA, a partir da segunda metade do século XX, diferenciando-a de outras abordagens
semelhantes (e aproximadamente simultâneas) desenvolvidas por europeus como Claude
Lévi-Strauss e André-Georges Haudricourt (Marques 2002; Campos 2002)
Etnoecologia ou Etnoecologias? 19

própria diversidade de concepções como um aspecto positivo. Tendo em vista


que um dos pressupostos da etnoecologia é a valorização da diversidade
cultural que se manifesta dentro de cada sociedade, isto talvez deva ser
aplicado também no interior do próprio meio acadêmico, através de uma maior
tolerância e da tentativa de estabelecer conexões entre concepções teóricas e
metodológicas aparentemente divergentes. Isto coincide, em parte, com a
sugestão de expandir a “porosidade” (Serres 1999) das fronteiras discursivas
entre as disciplinas acadêmicas (e delas com os saberes não-acadêmicos). Por
outro lado, o crescente interesse pela etnoecologia faz com que seja necessário
e útil sistematizar informações para compreender melhor a grande diversidade
de teorias, métodos e técnicas utilizáveis neste campo de conhecimento.
O objetivo deste capítulo é caracterizar a diversidade conceitual existente
no campo da etnoecologia, visando contribuir para uma melhor compreensão e
valorização dos saberes locais relacionados aos recursos naturais e seu manejo.
Será dada ênfase às possibilidades de estabelecer pontes, conexões ou
cruzamentos entre culturas e destas com a(s) natureza(s). Neste sentido, as
palavras destacadas na epígrafe deste capítulo retratam a importância das
pontes já construídas e das que estão ainda por construir. Foram extraídas de
um diálogo entre o personagem Guilherme de Baskerville e o seu aprendiz
Adso de Melk, no livro “O Nome da Rosa” (Eco 1986).

1. A diversidade de definições e abordagens na


etnoecologia
Algumas definições de etnoecologia propostas por diferentes autores
foram anteriormente compiladas por Toledo (2000), conforme se vê na Tabela
1. Adicionalmente, a Tabela 2 traz outras definições e comentários sobre
etnoecologia e etnobiologia, sem a pretensão de esgotar o tema.
20 Alves & Souto (2010)

Tabela 1. Etnoecologia definida por diversos autores (adaptado a partir de uma


compilação originalmente organizada por Toledo 1992).
AUTORES DEFINIÇÕES DE
ETNOECOLOGIA
Johnson (1974) “Um enfoque característico da
ecologia humana, que define seus
objetivos e métodos a partir da
etnociência”.
Hunn (1982) “Um novo campo que integra
teorias etnocientíficas e ecológicas”.
Brosius et al. (1986) “Estudo de como os grupos
tradicionais organizam e classificam
seu conhecimento do ambiente e
dos processos ambientais”.
Posey et al. (1986) “Percepção nativa das divisões do
universo biológico e das relações
planta-homem-animal em cada
divisão”.
Bellon (1990) “tentativas de entender as ligações
entre conhecimento e
comportamento, e a pertinência
dessas ligações para com as
relações homem-ambiente”.
Etnoecologia ou Etnoecologias? 21

Tabela 2. Definições e comentários de diversos autores sobre etnoecologia e


etnobiologia.
AUTORES E DEFINIÇÕES E COMENTÁRIOS
TEMAS
Etnoecologia “Um enfoque interdisciplinar que estuda as formas pelas
(Toledo 2000) quais os grupos humanos vêem a natureza, através de um
conjunto de conhecimentos e crenças; e como os
humanos, a partir de seu imaginário, usam e/ou manejam
os recursos naturais”.
Etnoecologia “disciplina encarregada de estudar as sabedorias
(Toledo camponesas e seus significados práticos”.
1991).
Etnobiologia “É essencialmente o estudo do conhecimento e das
(Posey 1986). conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a
respeito da biologia. Em outras palavras, é o estudo do
papel da natureza no sistema de crenças e de adaptação
do homem a determinados ambientes. Neste sentido, a
etnobiologia relaciona-se com a ecologia humana, mas
enfatiza as categorias e conceitos cognitivos utilizados
pelos povos em estudo. [...] Uma vez descobertas as
categorias indígenas definidoras dos fenômenos naturais,
os especialistas nos diversos campos científicos podem
dar início à coleta de dados referentes às suas
especialidades, tais como: à etnoentomologia,
etnobotânica, etnofarmacologia, etnopedologia,
etnogeologia, etnoapicultura, etc.”
Etnobiologia “Um campo interdisciplinar dedicado à interação entre os
(Toledo 1992) seres humanos e seu ambiente vegetal, animal e fúngico.
Embora os estudos etnobiológicos sejam supostamente
restritos ao conhecimento, classificação, uso e manejo
dos seres vivos (plantas, animais e fungos), isto não tem
impedido que muitos etnobiólogos transgridam seus
próprios limites, realizando pesquisas para além da
biologia. São notáveis, nesse aspecto, as mudanças de
enfoque de alguns etnobiólogos, que têm praticado uma
espécie de etnoecologia disfarçada ou secreta, dentro do
âmbito da etnobiologia, e a publicação de artigos no
‘Journal of Ethnobiology’ que não se limitam
precisamente ao universo biótico. Esse é o caso da
etnobotânica J. Alcorn e do etnozoólogo D. Posey.”
22 Alves & Souto (2010)

Tabela 2. (Continuação)
AUTORES E DEFINIÇÕES E COMENTÁRIOS
TEMAS
Etnoecologia “Percepções indígenas das divisões ‘naturais’ no mundo
(Frecchione et biológico e das relações solo-planta-animal-homem
al. 1989) dentro de cada divisão. Essas categorias ecológicas,
cognitivamente definidas, não existem isoladamente;
portanto a etnoecologia deve também lidar com as
percepções das inter-relações entre as divisões naturais”.
Etnoecologia “Um modo de abordagem da relação entre os seres
(Nazarea humanos e o ambiente natural, enfatizando o papel da
1999) cognição na organização do comportamento”.
Etnoecologia “... o estudo das interações entre a humanidade e o resto
(Marques da ecosfera, através da busca da compreensão dos
1995). sentimentos, comportamentos, conhecimentos e crenças
a respeito da natureza, característicos de uma espécie
biológica (Homo sapiens) altamente polimórfica,
fenotipicamente plástica e ontogeneticamente dinâmica,
cujas novas propriedades emergentes geram-lhe
múltiplas descontinuidades com o resto da natureza. Sua
ênfase, pois, deve ser na diversidade biocultural e o seu
objetivo principal, a integração entre o conhecimento
ecológico tradicional e o conhecimento ecológico
científico ”
Etnoecologia “...o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que
(Marques estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças),
2001). sentimentos e comportamentos que intermediam as
interações entre as populações humanas que os possuem
e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem,
bem como os impactos ambientais daí decorrentes”

Em seu conjunto, as definições e comentários das tabelas 1 e 2


revelam a importância das inter-relações ou interfaces no campo da
etnoecologia: entre natureza(s) e cultura(s); entre os saberes formais
(acadêmicos) e os não-formais; entre as ciências naturais, as ciências
sociais e as “humanidades”; entre conhecimento, comportamento e crenças.
Muitas pesquisas etnoecológicas (mas não todas) dedicam-se ao estudo dos
povos chamados “tradicionais”. Nota-se assim a influência de antropólogos
pioneiros, como Malinowski (1997), que costumavam trabalhar longe das
metrópoles européias, pesquisando povos que eram considerados
“primitivos”. Alguns estudos realizados em ambientes urbanos sobre
Etnoecologia ou Etnoecologias? 23

sociedades ditas “complexas” mostram que a etnoecologia não se restringe


a pesquisar os povos ditos “tradicionais” (Whiteford 1997; Alves et al.
2002). Também é muito comum (mas não obrigatório) que os etnoecólogos
enfatizem em seus trabalhos a dimensão cognitiva das relações entre as
sociedades e o ambiente que se considera “natural”. Isto parece estar
relacionado aos primórdios do desenvolvimento histórico da etnociência,
quando se valorizava o conhecimento como aspecto fundamental das
culturas (McCurdy et al. 2005).
Tomando como base as duas primeiras definições da tabela 1,
conclui-se que uma boa compreensão da Etnoecologia depende também de
um conhecimento de alguns aspectos conceituais e históricos da ecologia e
da etnociência. Recentemente, a ecologia tornou-se um campo difuso em
que se mesclam estudos acadêmicos, movimentos sociais conservacionistas
e ações políticas que visam a adoção de estilos de vida menos agressivos e
mais integrados com a ordem da natureza (Lago & Pádua 1991). Isto traz
dificuldades para que se tenha uma definição uniforme e consensual para a
palavra “ecologia”, já que esta representa questões e interesses que
ultrapassam as próprias fronteiras da biologia. Este pode também ser um
dos motivos para que não se possa ainda definir com precisão o significado
do termo “etnoecologia”. Sobre esta expansão do âmbito da ecologia,
Odum (1988) ressaltou que “antes dos anos setenta, a ecologia era vista, em
grande parte, como uma subdivisão da biologia; e que “embora a ecologia
permaneça firmemente radicada na biologia, ela já ganhou a maioridade
como uma disciplina integradora essencialmente nova, que une os
processos físicos e biológicos e serve de ponte entre as ciências naturais e
as ciências sociais”. Vista deste modo, a ecologia não é apenas biológica e
abre-se para conexões interdisciplinares, como a etnoecologia, a ecologia
cultural, a ecologia humana, a antropologia ecológica e o ecofeminismo,
entre outras.

2. Diferentes sentidos para o prefixo “etno” no


âmbito das etnociências
Conforme resumiu Sturtevant (1964), o prefixo “etno” adquiriu,
com a etnociência, um sentido diferente do que era anteriormente
empregado pelos cientistas sociais. Para demonstrar o modo com este
prefixo era usado por etnólogos antes da emergência da etnociência
clássica, pode-se tomar como exemplo o estudo publicado em 1897 pelo
pesquisador vitoriano Walter E. Roth, que deu o título de “etno-
pornografia” ao último capítulo de sua monografia sobre a cultura
aborígine de Queensland (Roth & Etheridge 2010). Conforme ressaltado
24 Alves & Souto (2010)

por Sturtevant (1964), Roth chegou a inserir no texto um aviso de que o


referido capítulo “não é digno de escrutínio ou leitura cuidadosa por parte
do leitor não especializado”, e descreveu sob esse rótulo
(“etnopornografia”) alguns itens como casamento, gravidez, parto,
menstruação, “linguagem obscena” e, especialmente, mutilações genitais e
seu significado cerimonial. Naquela situação, o prefixo “etno” indicava que
o tema estudado (a pornografia, no caso) estava sendo relatado com base na
visão que um observador externo (o pesquisador) tinha daquele tema. Por
sua vez, Sturtevant (1964), que pode ser considerado um “etnocientista
clássico” considerava mais correto adotar uma postura diametralmente
oposta: “etnopornografia” dos aborígines de Queensland deveria ser o que
eles mesmos considerassem pornografia – se de fato eles admitissem tal
categoria – em vez do que fosse considerado pornografia pelo etnólogo
ocidental. Assim, o prefixo “etno” passava a indicar (pouco depois da
metade do século XX) que o tema estudado (quer fosse a pornografia, a
ecologia, a botânica ou história) seria relatado com base na visão
compartilhada pelos membros de uma determinada cultura (os
informantes). O discurso de Sturtevant (1964) surgiu, portanto, como uma
proposta explícita de mudança, quando afirma, por exemplo, que “etno-
história é a concepção compartilhada por membros de uma dada cultura
sobre eventos passados”. Neste caso, etno-história aparece como “história
do outro”, porém agora contada segundo a visão de mundo vigente no
interior da própria cultura pesquisada. O próprio Sturtevant (1964) mostrou
ter consciência da ruptura que propunha, nos seguintes termos:

“É importante enfatizar que o enfoque [da etnociência] é etnográfico, em


termos gerais e de nenhum modo limita-se àquelas ramificações da
etnografia que são comumente designadas pelos nomes de determinadas
áreas do conhecimento [‘arts and sciences’] reconhecidas no meio
acadêmico, precedidas do prefixo ‘etno-’. Este prefixo deve ser entendido
aqui num sentido especial: ele se refere ao sistema de conhecimento e
cognição típico de uma dada cultura. […] Dito de outra forma, uma
cultura em si abrange a soma das classificações vernáculas ou locais
[‘folk classifications’] de uma determinada sociedade, toda a etnociência
daquela sociedade, seus modos particulares de classificar seu universo
material e social”.

Exemplificando a visão dos etnocientistas do terceiro quartel do


século XX, em contraste com a de seus antecessores, Sturtevant (1964)
considerou também que
Etnoecologia ou Etnoecologias? 25

“etno-história é a concepção compartilhada por membros de uma dada


cultura sobre eventos passados, ao invés (como seria mais comum) de ser
a historia (em nossos termos) de ‘grupos étnicos’; etnobotânica é uma
concepção cultural específica sobre o mundo vegetal, ao invés (como
também seria mais comum) de ser uma descrição e usos das plantas
organizada com base na nossa própria taxonomia binominal”.

Assim, quando se adota a visão defendida por Sturtevant (1964) e


pela maioria dos “etnocientistas clássicos”, a etnozoologia passa a ser o
próprio conhecimento local a respeito da categoria “animais”, em vez de
representar a visão dos pesquisadores (sejam eles antropólogos, sociólogos,
biólogos, agrônomos, geógrafos ou outros) que atuam neste campo e que
geralmente não pertencem à sociedade estudada. Caberia discutir, talvez, se
esse “outro saber sobre os animais” é ou não é científico, e quais as
implicações de ser ou não ser científico, em cada caso. Outra pergunta
pertinente é: se a categoria “animais” (ou equivalente) não for aceita na
cultura estudada, mesmo assim o estudo resultante deverá ser designado
como “etnozoológico”?
Após passar por um declínio (Murray 1982), a etnociência tomou
novo impulso a partir dos anos 1980, com vários autores propondo
adaptações, aplicações e implicações, tais como Williams & Ortiz-Solorio
(1981), Ribeiro (1986), Posey & Overall (1990), Toledo (1991; 1992),
Warren et al. (1995), Marques (1995; 2001), Nazarea (1999) e Berkes
(1999), entre outros. Embora a etnociência tenha perdido apoio enquanto
teoria da cultura e/ou do conhecimento, seus métodos clássicos (ou
adaptações deles) continuam fornecendo modelos e representações
formalmente testáveis de alguns domínios do conhecimento e do
comportamento humano. Assim, o arcabouço metodológico etnocientífico
continua inspirando pesquisas e intervenções relacionadas às interfaces da
antropologia com as ciências da natureza, bem como às ligações entre
biodiversidade e sociodiversidade.
O sentido do prefixo “etno” vem sendo retomado por autores
como Williams & Ortiz-Solorio (1981) pioneiros na publicação termo
“etnopedologia”. Esta tem para eles a seguinte abrangência:

“Percepção ‘folk’ de propriedades e processos do solo; classificação e


taxonomia ‘folk’ de solos; teorias e explicações ‘folk’ sobre propriedades e
dinâmica de solos; manejo ‘folk’ de solos; percepção ‘folk’ das relações
solo-planta; comparações entre os conhecimentos ‘folk’ e técnicos sobre
solos; e avaliação do papel da percepção ‘folk’ dos solos nas práticas
agrícolas e em outros campos do comportamento, tudo isso pode ser
contemplado sob a denominação ‘etnopedologia’. O termo é usado aqui
26 Alves & Souto (2010)

num sentido mais amplo do que usualmente se aplica em etnociência, ou


nas denominações etno + disciplina acadêmica (por exemplo:
etnoictiologia, etnoornitologia, etnobotânica)” (Grifo nosso).

Nota-se que estes autores também tinham consciência da mudança


que propunham, pois afirmaram que estavam usando o termo
etnopedologia “num sentido mais amplo”. Assim, para eles,
“etnopedologia” não era apenas a “pedologia do outro”, uma vez que se
propunham “comparações entre os saberes ‘folk’ e técnicos sobre solos”.
Seguindo este raciocínio, a etnobotânica não seria apenas “o saber do outro
sobre plantas”, pois englobaria também as comparações entre os
conhecimentos formais possuídos pelos pesquisadores e os conhecimentos
(geralmente informais) possuídos pelos informantes a respeito das plantas.
Enquanto Williams & Ortiz-Solorio (1981) citaram a
possibilidade de “comparações”, Barrera-Bassols (1988) considerou que
um etnocientista (etnoedafólogo, no caso) deveria analisar a percepção
camponesa das propriedades e processos no solo e “também a sua
correspondência com entre o com aquilo que se considera
‘verdadeiramente científico’ no mundo ocidental”. Já Marques (1995), em
sua “etnoecologia abrangente” (Tabela 2), defendeu a “integração entre o
conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento ecológico científico”
(grifos nossos). Winkler-Prins (1999), por sua vez, sugeriu “combinar” as
“diferentes formas de conhecimento” (do solo, no caso), de modo a
permitir uma “integração” e fazer surgir “uma terceira forma de
conhecimento”. Assim, “etno” não indica somente “do outro”, de modo
que “etnobiologia” não deveria ser vista apenas como “biologia do outro” e
sim “interface ou cruzamento entre saberes sobre os seres vivos”,
permitindo valorizar articulações (Alves et al. 2007), comparações
(Verlinden & Dayot 2005), pontes (Posey 2001), integrações (Naidoo &
Hill 2006) e diálogos (Vale Júnior et al. 2007; Baptista & El-Hani 2009).
Neste sentido, Marques (2002) manifestou a necessidade de
“reconhecimento da etnoecologia como um “campo de cruzamento de
saberes”. Posey (2001) chegou a considerar que “os diálogos travados entre
pesquisadores e informantes frequentemente obscurecem” a distinção entre
interpretações êmicas e éticas e adicionou: “para que interpretações mútuas
aconteçam, realidades precisam ser compartilhadas”. Por conseqüência, o
prefixo “etno”, quando associado ao nome de alguma disciplina acadêmica
pode indicar, quando se adota uma visão semelhante à de Williams &
Ortiz-Solorio (1981), algo como tentativas de comunicar-se com e sobre o
Etnoecologia ou Etnoecologias? 27

outro em relação a algum tema – geralmente trata-se de algum tema


anteriormente discutido no meio acadêmico2.
Apesar da visão de Williams & Ortiz-Solorio (1981) parecer
tentadora (por ser abrangente), há que ser cauteloso, levando em conta
também os perigos que envolvem as tentativas de comparação, articulação
e conexão, pois diferentes relações de poder se estabelecem nessas
interfaces, e o etnocentrismo às vezes se manifesta na forma de
cientificismo, mesmo entre pesquisadores “bem-intencionados”. Em outras
palavras: vai-se comparar, articular, conectar o quê? Com quê? E em que
termos? Se as chamadas “ciências naturais” forem mantidas sempre como
padrão para avaliação do saber local referente ao ambiente natural, então
pouco terá sido feito para chegar de fato ao “outro” antropológico. Em todo
caso, nesse contexto de mudanças frequentes e opiniões divergentes,
sugere-se que o uso de termos do tipo “etno + disciplina acadêmica” (e
outros como etnoespécie, etnogênero, etnohábitat, etnocalendário, por
exemplo) venha acompanhado de um posicionamento crítico e reflexão
explícita dos respectivos autores (Alves & Albuquerque 2010).

3. Denominações para o conhecimento sobre o


ambiente natural
Sendo a etnoecologia um campo epistemológico “híbrido”, é
previsível que haja dificuldades na definição e na comunicação de seus
conceitos e métodos. Assim usam-se diversas expressões do tipo
etno+ciência para denominar estudos que abordam, com maior ou menor
profundidade e abrangência, as relações da espécie humana com os
recursos naturais. As expressões do tipo etno+ciência são às vezes
substituídas ou acompanhadas, na literatura, por expressões que qualificam
os conhecimentos (entre outros aspectos) característicos das populações
pesquisadas, tais como: local, indígena3, tribal, popular, do povo, “folk”
(que também se usa sem tradução no Brasil), autóctone, tradicional,
vernáculo, prático, coletivo, situado, camponês, informal, nativo, rural,

2
Nos casos em que o saber local fornecer informações novas e inesperadas sobre algo que
ainda não tenha sido publicado formalmente no meio acadêmico a respeito de algum
organismo vivo ou de suas relações ecológicas, pode surgir a oportunidade de gerar novas
hipóteses a serem testadas formalmente, de modo a estabelecer uma “ponte metodológica e
teórica para interligar a pesquisa científica com o conhecimento tradicional” (Posey 2001).
3
A expressão inglesa “indigenous” (e.g. “indigenous knowledge”, “indigenous soil
knowledge”, “indigenous knowledge about soils”) é freqüente na literatura etnocientífica,
significando aproximadamente “autóctone”, não somente em referência a populações
“tribais”.
28 Alves & Souto (2010)

cotidiano, culturalmente específico, étnico, oral, comunitário, endógeno,


sustentável, comum, saber-fazer, entre outros.
Os termos “ciência” e “científico” podem não ser completamente
adequados para caracterizar o saber acadêmico e diferenciá-lo de outros
saberes. Diversos autores consideram que populações iletradas também
usam procedimentos científicos em sua experiência cotidiana com o meio
natural: Williams (1975) escreveu artigo intitulado “Ciência Asteca do
Solo” e explicou que “as populações pré-hispânicas no Vale do México
desenvolveram uma sofisticada tecnologia para explorar o seu ambiente
físico. As suas obras de engenharia e seus sistemas agrícolas sugerem uma
compreensão sistemática do ambiente natural, e as coleções de plantas e
animais que mantinham indicam uma curiosidade intelectual básica, que é
o fundamento da investigação científica”. Por sua vez, Baraona (1987)
considerou que “sem ciência, não é possível fazer a natureza produzir, seja
com a ciência dos camponeses ou a ciência que ensinam nas universidades,
ou ainda formas que mesclam ambas” e resumiu “as características mais
salientes da ciência camponesa: seu sistema mnemônico de registro, sua
dinâmica e seu caráter de aparato cognitivo voltado à sobrevivência”.
Ainda Hecht & Posey (1989) informaram: “pesquisas na última década têm
demonstrado a extraordinária complexidade da ciência Kayapó [...]. Essa
complexidade se reflete nas suas detalhadas taxonomias de insetos, peixes
e plantas, e na sua bem desenvolvida base agrícola”. Mais recentemente,
Winkler-Prins & Sandor (2003) consideram que “o saber pedológico local
é complexo, multifacetado e, freqüentemente, muito sutil em sua
expressão. Envolve muitas experiências de tentativa-e-erro, mas também
inclui processos científicos”. O próprio Lévi-Strauss (1989) referiu-se ao
saber ameríndio sobre a natureza como uma “ciência do concreto”.
Numa crítica severa, Agrawal (1995) afirmou que é difícil (e
talvez inútil) tentar estabelecer uma diferenciação nítida entre o
conhecimento “indígena ou tradicional” e o “científico ou ocidental”,
alegando que ambos os tipos compartilham características comuns, ao
mesmo tempo em que apresentam muitas diferenças internas. Adicionou
que faz mais sentido referir-se a múltiplos domínios e tipos de
conhecimento, com diferentes lógicas e epistemologias. Numa linha de
pensamento oposta, outros autores como Zimmerer (1994) preferem
enfatizar as diferenças entre o saber de pesquisadores e pesquisados. Este é
também o caso de Winkler-Prins (1999), para quem “o conhecimento local
se baseia e se reproduz pela experiência, diferentemente do científico, que
se desenvolve por experimentação controlada e se reproduz dentro de
instituições formais”.
Etnoecologia ou Etnoecologias? 29

Souto (2007), em trabalho realizado com pescadores em uma área


de manguezal da Bahia, registrou esta interessante frase de um pescador
que remete a esta interseção de saberes e entendimentos sobre pesquisa:

“Nós pescador também a gente tem que reparar as coisas. Tem que
pesquisar também porque a gente tem que saber como trabalha o marisco.
A gente tem que ter a curiosidade de procurar saber como tá trabalhando
o marisco. Eu não pesco à toa não! Porque a pesca é uma pesquisa na
natureza. Você tem que procurar pesquisar ela. Você tem que saber como
o marisco anda, como dorme, aonde ele vai dar. Você tem que pesquisar
isso tudo, tá entendendo?”

Neste capítulo, usa-se preferencialmente o termo “local” 4, em


referência às populações pesquisadas em estudos etnoecológicos, e
“formal” e “acadêmico” para referir-se aos pesquisadores treinados em
instituições formais de ensino e pesquisa, por considerar-se estes mais
adequados que outros como “indígena”, “tradicional”, “científico” e
“técnico”. Neste sentido, o termo “ecológico” (eg. “saber ecológico local”)
aplica-se aqui como “referente a ecologia” (e não apenas à ciência
ecológica acadêmica), pois o sufixo “-logo” vem do grego “lógos” (“que
5
trata”) .

4. Conhecimentos, crenças e práticas


Os aspectos enfatizados nos estudos etnoecológicos variam
consideravelmente, dependendo dos objetivos e da filiação epistemológica
dos autores. Comumente, tem-se dado mais ênfase às dimensões
comportamental (prática) e cognitiva (intelectual) do uso dos recursos
naturais, mas alguns autores têm sugerido possíveis variações em torno
desse binômio, com a exploração de aspectos cosmológicos (Berkes 1999;
Toledo 2000), emocionais (Marques 1995; 2001) e socioeconômicos
(Winkler-Prins 1999; 2001).
O primeiro obstáculo a ser ultrapassado na pesquisa etnoecológica
é a tendência de separar os fenômenos cognitivos e ideológicos dos seus

4
Considera-se aqui o termo “local” na mesma acepção sugerida por Winkler-Prins (1999)
para “local soil knowledge” (saber pedológico local): conhecimento de propriedades e manejo
do solo por pessoas vivendo num determinado ambiente por um determinado período de
tempo”.
5
No dicionário “Aurélio” (http://www1.uol.com.br/bibliot/), “-logo” consta como elemento de
composição que significa ‘palavra’, ‘tratado’, ‘estudo’, ‘ciência’; ‘que estuda’, ‘que trata’.
Capturado em junho de 2004.
30 Alves & Souto (2010)

objetivos práticos (Toledo 1992; 2000). De fato, os grupos humanos atuam


baseados em seus conhecimentos sobre a natureza e suas visões de mundo.
Neste sentido, este autor considerou que o ponto de partida de qualquer
trabalho etnoecológico deve ser a exploração das conexões entre o
“kosmos” (sistema de crenças, visão de mundo, cosmovisão), o “corpus”
(sistema cognitivo, repertório de conhecimentos através dos quais a espécie
humana apropria-se intelectualmente dos recursos naturais) e a “praxis”
(sistema de manejo, conjunto de práticas através das quais a espécie
humana apropria-se materialmente dos recursos naturais) no processo
concreto de produção. Para esclarecer as relações entre “corpus” e
“kosmos”, comentou que esses dois domínios estão intrinsecamente
ligados, de tal modo que, em muitos casos, é quase impossível dissecá-los
durante a análise de uma ação prática (Figura 1).

5. A etnoecologia e seus objetos de estudo


Uma análise geral das publicações em etnoecologia e abordagens
correlatas mostra que os estudos etnoecológicos enfocando organismos
vivos (principalmente etnobotânica e etnozoologia) são mais numerosos
que os que tratam de outros domínios como solos, artefatos, constelações e
climas. Porém, as primeiras obras que se referiram explicitamente a
‘etnoecologia’ (Conklin 1954 a;b) já continham também uma discussão
sobre animais e solos, embora se detivesse mais no campo da etnobotânica
e da agricultura local. Sobre solos, por exemplo, ele comentou: “Um estudo
sobre classificação do solo entre os Hanunóo e suas idéias sobre aptidão
dos solos para diversos cultivos – outras variáveis permanecendo
constantes – produziu boas correlações com os resultados de análises
químicas de amostras de solos” (Conklin 1954 a).
Etnoecologia ou Etnoecologias? 31

Figura 1. Uma etnoecóloga considera dois modelos diferentes de apropriação humana dos
ecossistemas: o seu (à direita) e o de uma informante camponesa (à esquerda). A camponesa
realiza suas práticas produtivas (C = praxis) a partir de suas próprias crenças (A = kosmos) e
conhecimentos (B = corpus). A etnoecóloga também se apropria simbolicamente (A’),
cognitivamente (B’) e materialmente (C’) do ecossistema. Adaptado de Toledo (1992) e
Barrera-Bassols & Toledo (2005). Foto: Ângelo G. C. Alves.

6. Etnoecologia no Brasil
Entre os primeiros autores que se basearam explicitamente em
teorias e métodos da etnociência clássica para estudar práticas e
conhecimentos locais de uma população brasileira a respeito do ambiente
natural, pode-se destacar Johnson (1971; 1972). A partir de um trabalho de
campo realizado em 1966-67 com “moradores” de uma fazenda no sertão
do Ceará, este autor detectou oito categorias locais de “terras”: “roçado
novo”, “capoeira”, “capoeira velha”, “campestre”, “coroa”, “rio”, “lagoa” e
“salgada”. Naquele contexto, dois critérios principais eram usados pelos
camponeses para estabelecer distinções: a fertilidade (“terras fracas” e
“terras fortes”) e a capacidade de retenção de umidade (“terras quentes” e
“terras frias”). Observou ainda uma “considerável” correspondência entre o
conhecimento (dados cognitivos) das “terras” e a sua utilização agrícola
(dados comportamentais) pelos camponeses. Etnoecologia foi por ele
32 Alves & Souto (2010)

definida como “um enfoque diferenciado dentro da ecologia humana, que


lida com objetivos e métodos derivados da etnociência” (Tabela 1).
O antropólogo e entomólogo Darrell Addison Posey foi um
pioneiro da etnobiologia e etnoecologia no Brasil, a partir de suas pesquisas
iniciadas em 1977 entre os índios Kayapó da aldeia Gorotire, no sul do
Pará. Após ter contribuído em estudos de etnoentomologia (etnobiologia),
Posey (1979) passou a atuar como um obstinado promotor do enfoque
etnoecológico e dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao
manejo de recursos por grupos indígenas e outras populações locais (Posey
1999). Sua trajetória foi analisada por Toledo (1992), demonstrando uma
mudança de enfoque ao longo do tempo (Tabela 2).
Do ponto de vista metodológico, cabe ressaltar a sua “metodologia
geradora de dados” (Posey 1986), cujo modelo proposto para o
questionamento inicial aos informantes era “fale-me sobre isso”. Para
muitos aprendizes brasileiros de etnoecologia, nas décadas de 1980 e 1990,
com acesso limitado à bibliografia sobre o tema, e sem educação formal em
ciências sociais, essas orientações básicas foram muito úteis. Sua proposta
de geração e teste de hipóteses científicas a partir de informações “êmicas”
(Posey 1987; 2001) representou uma forma bastante inspiradora de abordar
a sabedoria das populações indígenas e camponesas a respeito do ambiente
natural.
Do ponto de vista epistemológico, uma das características
marcantes de sua obra foi a abordagem integradora: “nenhum etnobiólogo
sério sugeriu que se deva abandonar os conceitos científicos ocidentais no
estudo de uma ciência não-ocidental. O que se exige é o abandono dos
conceitos etnocêntricos de superioridade frente ao saber indígena, a fim de
que se possa registrar, com acuidade, os conceitos biológicos de outras
culturas, e com isso desenvolver idéias e hipóteses que enriqueçam nosso
próprio conhecimento” (Posey 1986). Embora Darrell Posey defendesse, de
modo geral, um enfoque integrador, as suas definições para etnoecologia,
etnobiologia e campos afins dão ênfase maior ao conhecimento possuído
pelas populações locais (indígenas, caboclos, etc.). Isso pode ser
exemplificado em outra definição sua para etnopedologia: “conhecimento
das populações locais sobre solos e seu manejo” (Posey 2000).
Outro autor que realizou estudos de interesse etnoecológico na
Amazônia na década de 1970 foi Emilio Moran. Na região de Altamira
(Pará), Moran (1977) relatou as diferenças entre os antigos “caboclos” e os
novos “colonos” provenientes do sul, no que tange ao conhecimento de
solos, durante a implantação de assentamentos agrícolas, entre 1972 e
1974. Baseados no conhecimento da floresta que tinham adquirido em
atividades de caça e coleta de látex, os “caboclos” escolheram áreas de
onde predominavam árvores de diâmetro relativamente pequeno e áreas de
Etnoecologia ou Etnoecologias? 33

“cipoal” (lianas). Já os colonos sulistas, fazendo extrapolações a partir do


conhecimento que tinham de sua regiões de origem, preferiram áreas de
vegetação mais exuberante (com árvores de diâmetro maior). Análises
laboratoriais demonstraram que os solos das áreas escolhidas por
“caboclos” tinham maiores níveis de matéria orgânica, potássio e fósforo,
baixos níveis de alumínio trocável e maior pH (mais próximo da
neutralidade), em comparação às áreas escolhidas por novos “colonos”,
indicando assim a maior adequação dos “indicadores agronômicos
populares” usados pelos “caboclos”. Essa experiência foi posteriormente
discutida por Moran (1981) sob a denominação de “Etnoagronomia:
seleção de solos num ambiente florestal”. Ainda comentando a mesma
situação, Moran (1990) sugeriu que “para facilitar a ligação entre as
relações homem-ambiente, o ideal é testar uma etnoecologia da categoria
‘solos’ por meio de amostras de solos”.
Marques (1995; 2001) foi o primeiro autor brasileiro a elaborar
um arcabouço teórico geral e original no campo da etnoecologia. Na sua
“etnoecologia abrangente”, destaca-se o estudo das “conexões básicas”
através das quais se daria a inserção humana nos ecossistemas: Homem-
mineral, Homem-vegetal, Homem-animal, Homem-homem e Homem-
sobrenatural. A etnoecologia foi por ele definida de diferentes maneiras ao
longo do tempo (Tabela 2). É característica da etnoecologia abrangente de
Marques (1995; 2001) a busca de uma articulação entre as abordagens
êmica e ética 6, diferindo assim de outros autores (Posey 1986; Hecht &
Posey 1989) em que predomina a visão êmica.

7. Algumas tendências gerais na literatura


etnoecológica
Os diversos exemplos de estudos etnoecológicos realizados no
Brasil e em outros países mostram algumas tendências em comum:

6
Comparando as abordagens êmica e ética (também chamadas, respectivamente, “emicista e
“eticista”), Harris (2000) salientou que a primeira constitui-se de descrições e interpretações
que enfatizam o ponto de vista dos participantes, enquanto nesta última enfatiza-se o ponto de
vista dos observadores. Assim, os enunciados êmicos descrevem os sistemas sociais de
pensamento e comportamento cujas distinções, entidades ou fatos se constituem de contrastes
e discriminações percebidos pelos próprios participantes como similares ou diferentes, reais,
representativos, significativos ou apropriados. Os enunciados éticos, por sua parte, dependem
de distinções consideradas apropriadas por uma comunidade de observadores com instrução
científica formal. Em estudos etnoecológicos, os participantes podem ser camponeses,
indígenas, ou mesmo populações urbanas, e os observadores podem ser pessoas com formação
acadêmica relacionada ao tema da pesquisa.
34 Alves & Souto (2010)

i) Há uma grande escassez de trabalhos etnoecológicos relativos aos


recursos do meio físico, comparativamente ao que se tem publicado a
respeito dos componentes bióticos dos ecossistemas (principalmente sobre
plantas e animais). Resulta que a etnoastronomia e a etnopedologia, por
exemplo, ainda são menos desenvolvidas que outros campos associáveis à
etnoecologia, tais como etnobotânica e etnozoologia (Pawluk et al, 1992).
ii) Tem-se dado maior ênfase nas questões práticas e cognitivas e pouca
atenção às dimensões cosmológica (Barrera-Bassols & Zinck 2000),
político-social (Winkler-Prins 1999) e emocional (Marques 2001; 2002).
iii) Considerando a variedade de abordagens, objetivos e métodos
observados nos estudos etnoecológicos, bem como a perspectiva de
articulação do conhecimento local com o acadêmico, e ainda das ciências
naturais com as ciências sociais e humanidades, parece mais adequado
considerar a etnoecologia como “campo de cruzamento de saberes”
(Marques 2001) do que como “uma disciplina” (Toledo 1992).

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