Uma das missões mais difíceis hoje em dia é falar com autoridade sobre
qualquer assunto relacionado com a cultura africana. De algum modo, não se espera
que os africanos tenham uma compreensão profunda da própria cultura ou até de si
mesmos. Outras pessoas se tornaram autoridades a respeito de todos os aspectos da vida
africana ou, para ser mais preciso, da vida BANTU. Assim,temos os mais volumosos
trabalhos sobre os assuntos mais estranhos – até mesmo “Os hábitos alimentares dos
africanos urbanos”, uma publicação de um grupo bastante “liberal”, o Instituto de
Relações Raciais.
Sou contra a opinião de que a cultura africana está presa ao tempo, à noção de
que, com a conquista do africano, toda a sua cultura foi apagada. Também sou contra a
idéia de que, quando falamos de cultura africana, nos referimos necessariamente à
cultura pré-Van Riebeeck. Sem dúvida a cultura africana vem suportando golpes duros
e é possível que tenha sido tão espancada pelas culturas agressivas com as quais colidiu
que quase perdeu sua forma; entretanto, em sua essência, até hoje percebemos no
africano contemporâneo os aspectos fundamentais de sua cultura pura. Por isso, ao
examinar a cultura africana, estarei me referindo também àquilo que chamo de moderna
cultura africana.
Tais hábitos não se vêem na cultura do ocidental. Uma pessoa que faz uma
visita à casa de outra, a menos que se trate de um amigo, é sempre recebida com a
pergunta: “O que posso fazer por você?”. Essa atitude de considerar as pessoas não por
elas mesmas, mas como agentes com uma função específica, seja contra nós ou a nosso
favor, é estranha para nosso povo. Não somos uma raça desconfiada. Creditamos na
bondade inerente ao homem. Gostamos das pessoas por elas mesmas. Consideramos o
fato de vivermos juntos não como um acidente infeliz que justifica uma interminável
competição entre os indivíduos, mas como um ato deliberado de Deus para fazer de nós
uma comunidade de irmãos e irmãs, envolvidos juntos na busca de uma resposta
abragente para os vários problemas da vida. Portanto, em tudo aquilo que fazemos,
colocamos o homem em primeiro lugar e, por isso, nossa ação em geral é uma ação
comum, mais orientada para a comunidade solidária do que para o individualismo, que
é a marca registrada da abordagem capitalista. Sempre evitamos usar as pessoas como
degraus para subir. Em vez disso, estamos dispostos a um progresso muito lento, num
esforço de garantir que todos caminhemos no mesmo ritmo.
Não há nada que mostre de modo tão intenso o ânimo dos africanos em se
comunicar uns com os outros como o seu amor pela música e pelo ritmo. Na cultura
africana, a música se encontra presente em todos os estados emocionais. Quando vamos
trabalhar, partilhamos os encargos e as alegrias do trabalho que fazemos por intermédio
da música. É estranho notar que essa característica singular se filtrou através do tempo,
até hoje. Os turistas sempre assistem espantados à sincronia entre música e ação quando
os africanos que trabalham numa estrada usam suas pás e picaretas, acompanhando com
grande precisão um canto que marca o ritmo. Os cantos de luta eram uma característica
da longa marcha para a guerra, nos velhos tempos. Meninas e meninos, sempre que
brincavam, usavam música e ritmo como base da brincadeira. Em outras palavras, para
os africanos a música e ritmo não eram um luxo mas parte integrante de nosso modo de
nos comunicarmos. Qualquer sofrimento que suportássemos tornava-se muito mais real
por meio do canto e do ritmo. Não há dúvida de que os chamados spirituals (cantos
religiosos), cantados pelos escravos negros nos Estados Unidos enquanto labutavam
sob a opressão, indicavam a sua herança africana.
O aspecto mais importante a ser notado em nossos cantos é que nunca eram
feitos para ser cantados por uma única pessoa. Todos os cantos africanos são grupais. E,
embora muitos deles tenham palavras, elas não são o ponto mais importante. As
melodias eram adaptadas para se adequar à ocasião e tinham o efeito maravilhoso de
fazer com que todos entendessem as mesmas coisas a partir da experiência comum. Na
guerra, os cantos tranqüilizavam aqueles que tinham medo, acentuavam a determinação
do regimento de ganhar uma batalha e tornavam muito mais urgente a necessidade de
acertar as contas; no sofrimento, como no caso dos escravos negros, ajudavam a extrair
força do sentimento de união; no trabalho, o ritmo que une faz com que o fardo se torne
mais leve para todos, e assim os africanos podem continuar a trabalhar por horas a fio
graças a essa energia extra.
Outro aspecto importante da cultura africana é nossa atitude mental diante das
dificuldades apresentadas pela vida geral. Enquanto o ocidental está programado para
pensar sobre a solução dos problemas partindo de analises muito delimitadas, nossa
atitude é de experimentar situações. Cito um trecho escrito pelo Dr. Kaunda para
ilustrar esse ponto:
O ocidental tem uma mentalidade agressiva. Quando vê um
problema, não descansa enquanto não formular uma solução para ele.
Não consegue viver com idéias contraditórias na mente; precisa
concordar com uma ou com outra, ou então desenvolver em sua mente
uma terceira idéia que harmoniza ou reconcilia as outras duas. E ele é
rigorosamente científico ao rejeitar soluções para as quais não há
fundamento na lógica. Faz uma distinção clara entre o natural e o
sobrenatural, entre o racional e o não racional, e com muita freqüência
descarta o sobrenatural e o não racional como superstição...
Os africanos, sendo um povo pré-científico, não reconhecem
nenhuma separação conceitual entre o natural e o sobrenatural. Antes,
experimentam uma situação, mais que enfrentam um problema. Com
isso quero dizer que eles permitem que tanto os elementos racionais
como os não racionais provoquem um impacto sobre eles, e qualquer
ação que empreendem pode ser descrita mais como uma resposta da
totalidade de seu ser a uma situação específica que o resultado de algum
exercício mental.
Acredito que essa é uma análise muito apropriada da diferença essencial entre as
maneiras de cada um desses dois grupos encarar a vida. Como comunidade, estamos
preparados para aceitar que a natureza tenha seus enigmas, cuja solução está além de
nossa capacidade. Muitas pessoas interpretam essa atitude como falta de iniciativa e
energia; no entanto, apesar de entender que há uma grande necessidade de
experimentações científicas, não posso deixar de sentir que se deveria gastar mais
tempo ensinando a viver juntos e que a personalidade africana, com sua atitude de dar
menos ênfase ao poder e mais ênfase ao homem, vem fazendo grandes progressos no
sentido de solucionar nossos problemas de confrontação.
Outro aspecto de nossas práticas religiosas era as motivações para o culto. Mais
uma vez, não pensávamos que a religião pudesse ser retratada como parte separada de
nossa existência na terra. Ela se manifestava em nossa vida cotidiana. Agradecíamos a
Deus, por meio de nossos antepassados, antes de beber cerveja, antes de casar, de
trabalhar etc. Seria extremamente artificial criar ocasiões especiais para o culto.
Tampouco achávamos lógico ter um prédio especial no qual todos os cultos seriam
realizados. Acreditávamos que Deus estava sempre se comunicando conosco e,
portanto, merecia nossa atenção em todo e qualquer lugar em que estivéssemos.
Foram os missionários que confundiram nosso povo com sua nova religião. Por
alguma lógica estranha eles argumentavam que a religião deles era científica, e a nossa,
mera superstição, apesar das discrepâncias biológicas tão evidentes na base de sua
religião. Eles foram mais adiante, pregando a teologia da existência do inferno,
amedrontando nossos pais e nossas mães com histórias a respeito de chamas eternas
que queimavam, dentes que rangiam e ossos que eram triturados. Essa religião fria e
cruel era estranha para nós, mas nossos antepassados ficaram com tanto medo da ira
ameaçadora desconhecida que acreditaram que valia a pena tentar aceitá-la. E lá se
foram nossos valores culturais!
Ao rejeitar os valores ocidentais, portanto, rejeitamos tudo aquilo que para nós é
não apenas estrangeiro, mas também aquilo que procura destruir nossa crença mais
querida – a de que a pedra fundamental da sociedade é o próprio homem, e não apenas a
sua prosperidade, os eu bem-estar material; mas somente o homem, com todas as suas
ramificações. Não aceitamos a sociedade baseada no poder, a sociedade desse homem
ocidental que parece sempre preocupado em aperfeiçoar seu conhecimento tecnológico,
enquanto perde terreno em sua dimensão espiritual. Acreditamos que a longo prazo a
contribuição especial que a África dará ao mundo será no campo do relacionamento
humano. As grandes potências podem ter realizado maravilhas ao conferir ao planeta
um aspecto industrial e militar, mas o grande dom ainda virá da África – dar ao mundo
uma face mais humana.
“Alguns Conceitos Culturais Africanos", escrito por Bantu Steve Biko, em 1971.
Núcleo de Estudantes Negras “Ubuntu” / Universidade do Estado da Bahia – UNEB
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