Sendo este o contexto, este artigo propõe-se a fazer um exame do assunto de forma
detalhada, buscando compreender o pleno sentido das orientações de Ellen White sobre o
assunto.
Portanto, para caracterizar uma atividade como teatral é necessário que um indivíduo ou
grupo de indivíduos desempenhem o papel de personagens em uma história (real ou fictícia) com
a finalidade de impressionar um público expectante. Examinando a Bíblia, não é possível
encontrar nenhum relato que sequer se assemelhe ao que hoje conhecemos como teatro. No
entanto, a origem do teatro remonta a muitos séculos antes de Cristo e já fazia parte da cultura de
alguns povos antigos quando o Novo Testamento foi escrito.
O apóstolo Paulo, ao orientar as primeiras igrejas cristãs, apresenta alguns elementos que
deveriam fazer parte do culto a Deus:
“Falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração, ao Senhor com hinos e
cânticos espirituais”. Efésios 5:19
Para elucidar um pouco mais a origem do teatro e sua vinculação com o paganismo
reproduzimos o seguinte texto, também extraído da Wikipédia:
Vemos então que, na sua origem, o teatro funde-se com o culto idólatra e a todos os
outros males que homens sem o temor a Deus e entregues ao álcool poderiam inventar.
Com a difusão da cultura grega para outros povos, movimento denominado helenismo, o
teatro ganhou maior expressão, sendo inclusive adotado pelos romanos.
Apesar de ter sido totalmente baseado nos moldes gregos, o teatro romano criou suas
próprias inovações, com a pantomima, em que apenas um ator representava todos os
papéis, com a utilização de máscara para cada personagem interpretado, sendo o ator
acompanhado por músicos e por coro. Com o advento do Cristianismo, o teatro não
encontrou apoio de patrocinadores, sendo considerado pagão. Desta forma, as
representações teatrais foram totalmente extintas.3
Quando Paulo escreveu o seguinte texto aos romanos ele devia ter em mente os perigos
espirituais que assediavam os crentes em Roma, incluindo as práticas teatrais:
“E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa
mente, para que possam experimentar qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”
Rom 12:2
2
Wikipédia Enciclopédia Livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_teatro>.
Acesso em 14 de abril de 2009.
3
LOURO, Fabiana. A Origem e Evolução do Teatro. Disponível em :
<http://liriah.teatro.vilabol.uol.com.br/historia/aorigemeevolucaodoteatro.htm>. Acesso em 14 de abril de 2009.
3
A iniciativa da Igreja Católica no renascimento do teatro não pode ser entendida como
uma legitimação das encenações de caráter religioso. Muito pelo contrário, o “teatro religioso” é
apenas mais uma das muitas invenções da Igreja Católica em que o santo funde-se ao profano.
Outros exemplos são a guarda do domingo e a adoração de imagens.
Há um texto de Ellen White que demonstra a maneira deliberada com que Satanás usa o
teatro para alcançar os seus objetivos:
“Muitos dos divertimentos populares no mundo hoje, mesmo entre aqueles que
pretendem ser cristãos, propendem para os mesmos fins que os dos gentios de outrora. Poucos
há, na verdade entre eles, que Satanás não torne responsáveis pela destruição de almas. Por meio
do teatro ele tem operado durante séculos para excitar a paixão e glorificar o vício... Em todo o
ajuntamento onde é alimentado o orgulho e satisfeito o apetite, onde a pessoa é levada a
esquecer-se de Deus e perder de vista interesses eternos, está Satanás atando suas correntes em
redor da alma.”5
No entanto, este texto fala do teatro como forma de entretenimento e sem relação com o
seu uso em contextos religiosos, objeto do nosso estudo. Cabe então a pergunta: seria a prática
teatral um elemento em si mesmo neutro, podendo, apesar de sua origem pagã, ser usada
corretamente para pregar o evangelho?
4
Teatro, A Origem. Disponível em : http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/teatro/origem>.
Acesso em 27 de abril de 2009.
5
Patriarcas e Profetas, p. 459.
4
“A obra feita por Cristo em nosso mundo, eis o que deve constituir nosso exemplo, no
que respeita à exibição. Temos que nos manter tão afastados do que seja teatral e extraordinário,
como Cristo se manteve em Sua obra. Sensação não é religião...”6
“Não tenho conseguido encontrar nenhum caso em que Ele tenha ensinado os seus
discípulos a empenharem-se na diversão do futebol ou em jogos de competição, a fim de fazerem
exercício físico, ou em representações teatrais; e, no entanto, Cristo era nosso modelo em todas
as coisas.”7
Nota-se claramente que não havia nenhum aspecto teatral no ministério de Cristo.
Desta forma, o Pr. Timm pretende que cerimonias religiosas como o Batismo e Santa
Ceia são “dramatizações”. E, considerando que estas “dramatizações” foram instituídas na igreja
cristã pelo exemplo de Cristo, outras formas de expressão dramáticas poderiam ser permitidas
desde que atendidos alguns critérios.
Como vimos anteriormente, nos textos em que Ellen White se refere ao ministério de
Cristo, não é possível interpretar o Batismo e a Santa Ceia como uma dramatização (no sentido
teatral da palavra), pois não havia nada de teatral na obra de Jesus e de seus discípulos. Logo o
argumento não é válido para permitir o uso atual de encenações e a preocupação de que,
proibindo-se o uso de representações teatrais na igreja, deve-se eliminar o Batismo e a Santa
Ceia se esvanece.
6
Evangelismo, p. 396.
7
Fundamentos da Educação Cristã, p. 229.
8
TIMM, Alberto Ronald. O Uso de Dramatizações da Igreja. Revista Adventista, Tatuí, setembro de 1996.
5
Aliás, a abordagem adotada pelo Pr. Timm na análise do assunto, quando coloca sob a
expressão “dramatização” todos os rituais cerimoniais do Antigo e Novo Testamentos e também
as manifestações teatrais modernas, não contribui para o estudo do assunto dada a grande
variedade de significados atribuídos ao termo.
1. dar forma de drama 1.1 converter (romance, conto, poema etc.) em peça
teatral; adaptar para o palco e, p. ext., para o cinema e televisão 1.2 transportar
para a linguagem dramática por meio de diálogos e/ou ação cênica, com fins
didáticos ou buscando maior expressividade, um texto discursivo qualquer;
2. tornar (fato situação, estado, sofrimento etc.) interessante e comovente como
um drama, apresentando-o sob aspecto trágico ou dramático, ou evocando-o
com cores mais vivas do que as que tinha ou tem na realidade;
3. exagerar na representação ou evocação de fatos, situações, estados,
sofrimentos etc. ou conceder importância exagerada a algo;
4. atribuir-se modos dramáticos (ger. com fins determinados).
De uma leitura superficial destes conceitos depreende-se que nada ou muito pouco está
relacionado com as experiências bíblicas. E, se aprofundarmos o exame, perceberemos que o
propósito da dramatização é revestir uma situação com novas cores, não necessariamente as
reais, ou seja, uma falsidade.
O simples fato de um evento ser cheio de emoção e expressão (como a morte de Cristo na
cruz) não o transforma numa dramatização no sentido dicionarizado do termo, ao contrário do
que sugere o Pr. Timm em seu artigo. Por uma cerimônia como a Santa Ceia ser “dramática”, no
sentido de surpreendente, tocante ou notável, não podemos pensar nela como uma dramatização
no sentido de representação teatral.
Desta forma, os variados ritos celebrados pelo corpo de crentes em Cristo, como o
Batismo, a Santa Ceia e o Lava-Pés, não constituem-se numa autorização bíblica para o uso de
representações teatrais nas atividades da igreja, por constituírem-se manifestações bastante
distintas e com origens diametralmente opostas: as primeiras, no claro “assim diz o Senhor”, e as
últimas, no culto idolátrico ao deus do vinho.
apocalípticas. O próprio Jesus procurou transpor as profundas realidades eternas para situações
mais próximas dos seus ouvintes ao proferir suas parábolas, todas esplendidamente ricas em
ilustrações e comparações de todo o tipo.
Contudo, há uma grande distância entre o uso de recursos áudio visuais e a representação
teatral. A encenação até pode ser entendida como um recurso áudio visual, porém muito mais
elaborado do que o mero uso de figuras e símbolos. Ela envolve a participação de atores que se
fazem passar por aquilo que não são na realidade.
Este ponto pode ser bem esclarecido citando o que Ellen White escreve sobre o assunto:
O segundo mandamento proíbe o culto das imagens; Deus mesmo, porém, empregou
figuras e símbolos para apresentar aos Seus profetas lições que queria que eles
transmitissem ao povo, e que assim seriam compreendidas do que se fossem dadas de
outro modo. Ele apelou para o entendimento através do sentido da vista. A história
profética apresentada em Daniel e João em símbolos, e estes deviam ser representados
claramente em tábuas, para que os que lessem os compreendessem.9
Considerando atentamente estes textos é possível traçar uma linha bem clara do que Deus
permite e aprova no uso de recursos pictóricos. Ellen White aprova o uso de cartazes, símbolos,
ilustrações e figuras na pregação da mensagem. Neste sentido, está de acordo com a orientação
divina o uso de flanelógrafos em nossas Escolas Sabatinas infantis, de gravuras em nossos livros,
de desenhos da estátua do sonho de Nabucodonozor e muitos outros recursos com os quais
estamos bastante familiarizados. Tratam-se de recursos predominantemente estáticos em que a
participação humana limita-se a explicar uma história ou realidade conforme encontra-se na
Bíblia. Não há aqui nenhuma autorização para encenações onde há representação de papéis e
falas de personagens.
“Foi-me mostrado que nos defrontaremos com todas as espécies de experiências e que os
homens procurarão introduzir representações estranhas na obra de Deus. Já nos encontramos
com tais coisas em muitos lugares. No início de meu trabalho, foi-me dada a mensagem de que
todas as representações teatrais, em conexão com a pregação da verdade presente fossem
desaconselhadas e proibidas.”11
Quando Ellen White usa a expressão “foi-me dada a mensagem” o seu propósito é
enfatizar a origem divina daquela orientação. Portanto, aqui está o próprio Deus, por intermédio
do humano instrumento, ensinando sua igreja.
Neste ponto alguns argumentam que muitas das reprovações de Ellen White contra
práticas teatrais referem-se ao modo como alguns pregadores de sua época comportavam-se no
púlpito. Realmente esta é uma preocupação presente nos seus escritos como podemos ver no
seguinte texto:
Tenho uma mensagem para os que estão com a responsabilidade de nossa obra. Não
animeis homens que devem empenhar-se neste trabalho a pensar que devam proclamar a
solene e sagrada mensagem em estilo teatral. Nem um jota ou um til de qualquer
coisa teatral deve aparecer em nossa obra. A causa de Deus deve ter molde sagrado e
celestial. Fazei com que tudo quanto esteja em conexão com a apresentação da
mensagem para este tempo tenha o sinete divino. Não permitais qualquer coisa de
natureza teatral, pois prejudicaria a santidade da obra...13
10
Mensagens Escolhidas, vol. 2, p. 23-24.
11
Evangelismo, p. 137.
12
Obreiros Evangélicos, p. 172.
13
Evangelismo, p. 137 (grifo nosso).
8
e gentil dignidade, evitando tudo que seja de natureza teatral, sua obra fará duradoura
impressão para o bem.”14
“Homens e mulheres judiciosos podem ver que as representações teatrais não estão em
harmonia com a solene mensagem que tendes a apresentar.”15
“A obra nas grandes cidades deve ser feita segundo a ordem de cristo, não segundo os
métodos teatrais. Não é uma realização teatral que glorifica a Deus, mas a apresentação da
verdade no amor de Cristo.”16
“Nosso bom êxito dependerá de realizarmos a obra com a simplicidade com que Cristo a
realizou, sem nenhuma demonstração teatral.”17
Com base numa análise racional destes textos, concluímos que Ellen White condena todo
e qualquer tipo de manifestação teatral no âmbito da igreja. Nem seria necessário fazer esta
afirmação, não fosse a postura complacente de alguns, pois Ellen White é bastante clara em sua
posição.
O Pr. Timm estabelece alguns critérios para a prática de representações teatrais na igreja:
“As dramatizações devem: (1) evitar o elemento jocoso e vulgar; (2) evitar o uso de
fantoches (animais e árvores que falam, etc.); (3) ser bíblica e historicamente leais aos fatos,
como estes realmente ocorrem; e acima de tudo, (4) exaltar a Deus e a Sua palavra (e não os
apresentadores da programação).”18
14
Evangelismo, p. 66.
15
Evangelismo, p. 127.
16
Obreiros Evangélicos, p. 356.
17
Evangelismo, p. 140.
18
TIMM, Alberto Ronald. O Uso de Dramatizações da Igreja. Revista Adventista, Tatuí, setembro de 1996.
9
estabeleceu nenhum tipo de condicionante, nenhuma regra que, se observada, tornaria a prática
teatral aceitável na igreja. Neste ponto podemos afirmar seguramente que os seus escritos são
inflexíveis, de outro modo seriam contraditórios.
E se Ellen White desejasse preservar qualquer coisa de natureza teatral para ser usada na
pregação de nossas mensagens, ela mesma poderia ter feito ressalvas e estabelecido exceções. Se
esta fosse sua intenção, não lhe faltariam oportunidades para manifestar-se em seus mais de 70
anos de ministério público e dezenas de milhares de páginas de conselhos e instruções para a
igreja. Porém em nenhum momento isto ocorreu, o que mais uma vez testemunha da coerência e
integridade de seus escritos.
orientação de Ellen White sobre jogos com bola é mais dura: “Não penso, segundo a maneira em
que o caso me foi apresentado, que vossos jogos de bola sejam conduzidos de modo que o
registro dos estudantes, na estima dAquele que pesa as ações, seja da espécie que traga
recompensa aos participantes.”20
Assim, reunindo-se todos os textos que falam sobre jogos com bola é possível
compreender claramente que Ellen White não assume uma postura radical sobre o assunto, visto
que ela própria estabelece condições para o exercício da prática esportiva, como, por exemplo,
não cometer excessos no jogar bola. Ela afirma categoricamente que “não condena o simples
exercício de brincar com uma bola”. No entanto, não existe em seus escritos nada semelhante a
respeito das práticas teatrais. Não é possível encontrar uma afirmação de Ellen White parecida
com “não condeno a simples encenação de uma história bíblica por crianças da Escola Sabatina”.
E afirmações dessa natureza não podem ser encontradas porque nunca foram escritas.
Além disso, o tema das representações teatrais aparece nos textos de Ellen White numa
frequência muito maior do que o dos jogos com bola e sempre num tom negativo, que ora critica,
ora desaconselha e ora proíbe as atividades teatrais de qualquer natureza. Portanto, não há base
nos escritos de Ellen White para colocar no mesmo nível o conjunto de conselhos sobre
representações teatrais (composto por uma grande variedade de textos) e o conjunto de
instruções sobre práticas esportivas (poucos textos).
Um último argumento levantado em favor das manifestações teatrais precisa ser também
analisado. Arthur White, no mesmo artigo, afirma que
20
Mensagens Escolhidas, vol. 2, p. 323.
11
anjo. (...) É significativo que o conselho dado ao homem que organizou o programa
relaciona-se como as representações do programa poderiam ter exercido maior efeito,
mas não havia nenhuma condenação do programa por causa das cenas representadas.21
Posteriormente esse argumento foi reproduzido pelo Pr. Timm em seu artigo sobre o
assunto, já mencionado neste estudo.
Para compreendermos esse episódio faz-se necessário ler o inteiro teor da carta enviada
ao organizador do evento:
Prezado irmão;
Despertará a mente para buscar a Deus pelo grande amor com que nos amou?
Confiamos que, agora que o Natal está no passado, aqueles que dedicaram tanto esforço,
manifestarão profundo zelo e um ardente e desinteressado esforço pela salvação dos
professores da Escola Sabatina e que estes, por sua vez, trabalharão pela salvação de
seus alunos e lhes darão instrução pessoal para que saibam o que devem fazer para ser
21
WHITE, Arthur. Representações Dramáticas em Instituições Adventistas. Centro de Pesquisas Ellen G.
White. Disponível em: <http://www.centrowhite.org.br/diversos.htm>. Acesso em 14 de abril de 2009.
12
salvos. Confiamos que acharão tempo para trabalhar com simplicidade e sinceridade
pelas almas que estão sob seus cuidados e que orarão com eles e por eles para que
possam dar a Jesus a preciosa oferta de suas próprias almas, que tornarão literalmente
verdadeiro o símbolo do farol nos raios de luz que brilham de seus próprios e poderosos
esforços realizados em nome de Jesus e feitos com amor; que eles mesmos se apegarão
aos raios de luz para difundi-la a outros e que não se conformarão com trabalho
superficial. Mostrai tanta habilidade e aptidão para ganhas almas para Jesus, como
haveis demonstrado no esforço esmerado que fizestes nesta ocasião que acaba de
ocorrer.
Apontai em vossos esforços, com alma e coração, para a Estrela que brilha no
céu deste mundo moralmente obscurecido, a Luz do mundo. Que vossa luz brilhe para
que as almas sacudidas pela tempestade possam fixar seus olhos nela e escapar das
rochas que estão escondidas sob a superfície das águas. As tentações estão à espera para
enganá-los; há almas oprimidas pela culpa prontas a afundar no desespero. Trabalhai
para salvá-los; apontai-lhes Jesus que tanto as ama e que deu Sua vida por elas...
A luz do mundo está brilhando sobre nós para que possamos absorver os raios
divinos e permitir que essa luz brilhe sobre outros em boas obras, para que muitas almas
glorifiquem ao Pai que está no céu. “Ele é longânimo para convosco, não querendo que
nenhum pereça senão que todos cheguem ao arrependimento”. (II Pedro 3:9)
Esse episódio da experiência de Ellen White, dada a importância que lhe é atribuída no
contexto das representações teatrais, merece um exame mais cuidadoso.
Devemos reconhecer que não temos o relato preciso dos eventos que ocorreram naquela
noite. Além daquilo que podemos inferir da leitura direta da carta, não existe qualquer descrição
pormenorizada daquele programa, escrita por alguém presente ao evento. Na carta de Ellen
White existem menções vagas de elementos que compunham aquela celebração natalina.
Logicamente, como a carta foi escrita na madrugada imediata e dirigida ao elaborador do
programa, não havia necessidade de muitos detalhes. Portanto, os dados que chegaram até nós
permitem apenas compor um quadro fragmentado daquela apresentação. Sabemos que havia um
cenário composto de um farol, um barco e rochas, bem como uma simulação de tempestade.
Houve alguma espécie de leitura, declamação de poemas e cantos. Também sabemos que houve
a participação das crianças, não sendo possível precisar de que forma contribuíram para o
22
Carta 5, 1888.
13
programa. Afirmar que foi realizado algo além disso é ir além das palavras de Ellen White e um
exercício de imaginação.
Logo no início de sua carta, a Sra Ellen White deixa bem claro o tom de gravidade de
seus comentários a respeito do evento da noite anterior ao afirmar: “levantei-me às três horas da
manhã para escrever-lhe algumas linhas”. Neste e em outros textos semelhantes, o relato das
circunstâncias extraordinárias em que o texto foi escrito permite pressupor a importância do
assunto abordado logo em seguida. Continuando a carta, Ellen White elogia, de maneira bem
sucinta, três aspectos da programação. São eles:
1. O farol
3. A leitura
“A parte desempenhada pelas crianças foi boa”. Em nenhum outro lugar no texto
Ellen White explica no que consistiu essa participação das crianças. Se afirmarmos que elas
realizaram uma representação teatral, teremos que buscar apoio para isso em fontes não
inspiradas. Arthur White, ao abordar o assunto, afirma que naquela noite houve uma “simples
dramatização”23. Já demonstramos como o uso do termo “dramatização”, dado o amplo
significado que alguns lhe atribuem, traz mais dificuldades do que respostas para a questão do
uso de representação teatral na igreja. Contudo, se pensarmos em dramatização como a
representação de uma verdade espiritual através de figuras, objetos e símbolos devemos
concordar que houve realmente isto naquela noite, com base nas evidências textuais da carta de
23
No original inglês: “It was a simple dramatized program featuring a lighthouse, children wearing costumes, and
speeches, poems and songs.
14
Ellen White. Porém, não há sustentação alguma para afirmar que tenha havido qualquer
dramatização no sentido de representação teatral.
“A leitura foi apropriada”. Também não conhecemos a natureza do texto lido, nem a
relevância desta leitura no contexto geral do programa. É possível aceitar que falasse sobre o
menino Jesus, sobre a estrela que brilhou apontando o caminho para o Messias aos magos do
Oriente, ou outro assunto relacionado ao nascimento de Jesus, visto ser aquele um programa de
natal. Mas certamente Ellen White não se refere às “falas” de uma encenação, pois num teatro,
mesmo que infantil, os discursos não são lidos e sim recitados de memória.
É importante ressaltar que não há, em toda a carta, nenhum outro aspecto positivo além
destes três, abordados com a máxima brevidade. Estes pontos são apresentados logo no primeiro
parágrafo da carta. Depois disso, o tom é exclusivamente de repreensão. É natural que Ellen
White buscasse equilibrar o seu testemunho de reprovação com manifestações de apreço com o
propósito de suavizar a frustração daqueles que se envolveram de boa-fé na organização do
evento.
Contudo, ela é bastante incisiva ao fazer um balanço geral do programa: “eu teria me
sentido melhor se não tivesse estado presente”. Se o conselho de Ellen White pretendesse apenas
que as “representações do programa poderiam ter exercido maior efeito”, como afirma Arthur
White, ela não precisaria ter sido tão dura ao ponto de afirmar que preferiria não ter estado lá.
Como vimos, não há evidência alguma de que tenha havido uma encenação ou algo parecido. No
entanto, não podemos negar que tenha havido alguma coisa de natureza teatral. Mas é certo que,
independentemente do que realmente tenha acontecido naquela noite, isso desagradou muito
Ellen White.
Há uma frase que pode nos ajudar a compreender o motivo pelo qual Ellen White foi tão
firme em sua reprovação. Ela escreveu que “os cantos eram semelhantes aos que esperaríamos
ouvir em qualquer representação teatral, porém não se podia distinguir uma só palavra”24. Uma
leitura superficial deste texto pode dar a impressão de que Ellen White estava preocupada apenas
com que a letra das canções fosse compreensível. Porém, ao analisarmos detidamente alguns
aspectos do texto, vamos perceber que há muito mais além disso. No original inglês, a expressão
“representação teatral” é “theatrical performance”. Usando um mecanismo simples de pesquisa
nos escritos de Ellen White, tal como o White Estate disponibiliza em seu site 25, podemos
24
No original inglês: “The singing was after the order we would expect it to be in any theatrical performance, but
not one word to be distinguished”.
25
Excelente ferramenta de pesquisa nos textos de Ellen White em inglês está disponível no sítio eletrônico do
15
encontrar algumas dezenas de textos onde encontramos a mesma expressão. Contudo, não é
possível encontrar em seus escritos nenhuma menção de apoio a tal prática, dentro da igreja ou
fora dela. Muito pelo contrário, ela sempre reprova qualquer tipo de representação teatral26.
Inclusive afirma, sem qualquer tipo de atenuante, que as representações teatrais (theatrical
performance), juntamente com o jogo de cartas, apostas e corridas de cavalos, são uma invenção
de Satanás:
É interessante notar que todas as demais “invenções satânicas” (jogo de cartas, apostas,
jogos de azar e corridas de cavalos) são repudiadas pela Igreja, mas as encenações são permitidas
e incentivadas. Só podemos concluir que o uso de representações teatrais na igreja é tão seguro,
para nossa vida espiritual, quanto jogarmos cartas usando um baralho com personagens bíblicos.
O que Ellen White estava dizendo então? Não é preciso recorrer aos quase ilimitados
recursos da imaginação humana para encontrar uma resposta plausível. Ellen White afirmou que
os cantos daquele programa eram semelhantes aos cantos que se esperariam ouvir em uma
representação teatral comum. Aqui, em vez de aprovar o uso de representações teatrais, ela faz
uma severa crítica porque as músicas não foram mais elevadas e nobres do que as que são
White Estate: <http://www.egwtext.whiteestate.org>
26
Perceba a semelhança na construção gramatical no original inglês entre a frase da carta (“The singing was after
the order we would expect it to be in any theatrical performance, but not one word to be distinguished”) e um
texto onde Ellen White reprova as representações teatrais: “The work in the large cities is to be done after
Christ's order, not after the order of a theatrical performance. It is not a theatrical performance that glorifies
God, but the presentation of the truth in the love of Christ.” Testimonies, vol. 9, p. 142. (1909).
27
Conselhos Sobre Mordomia, p. 134-135 (grifo nosso).
16
apresentadas nas reprováveis representações teatrais. Este é o sentido mais coerente com a
totalidade dos escritos de Ellen White.
Notem que a motivação destas repreensões foi o fato de as canções apresentadas terem se
assemelhado às canções usadas em representações teatrais quaisquer. Ela está falando de uma
parte do programa: o canto, não de encenações propriamente ditas. Com base em todas as
passagens que estudamos até agora, qual teria sido a reação de Ellen White se tivesse assistido
uma representação teatral naquela noite? Certamente ela teria manifestado a sua reprovação com
ênfase ainda maior.
Esta passagem da carta deixa ainda mais evidente a sua reprovação ao estilo teatral com
que as canções foram apresentadas:
Se tivessem sido cantados os preciosos hinos “Rocha Eterna, lá na cruz, seu olhar ficou
sem luz”, e “Ó Jesus meu bom pastor, quero em Ti me refugiar, ondas mil da angústia e
dor, querem vir a me tragar!” Que almas foram inspiradas com novo e vigoroso zelo
pelo Mestre com aquelas canções, cuja virtude estava nas diferentes interpretações
do cantor? Enquanto se realizam esmerados esforços para preparar estas
representações, estavam sendo realizadas reuniões de interesse mais profundo que
requeriam a atenção e solicitavam a presença de todos para que não se perdesse nada da
mensagem que o Mestre lhes havia enviado. (grifo nosso)
grande veemência.
Aqui está claro que Ellen White se opunha ao uso de representações teatrais,
especialmente se relacionadas com a Escola Sabatina e apresentadas por crianças.
Mas, mesmo que os defensores do uso das representações teatrais na igreja não tenham a
disposição de aceitar o peso destes argumentos, de forma alguma poderiam apontar a
apresentação de natal de 1888 como evidência em favor de suas ideias, pois não há evidências
seguras da natureza exata do programa.
29
Fundamentos da Educação Cristã, p. 253.
18
Muitos outros texto sobre a separação do mundo poderiam ser aqui reproduzidos, mas
cremos que este é suficiente para os objetivos deste artigo.
Ellen White fala de “um muro de separação que o Senhor mesmo estabeleceu entre as
coisas do mundo e as coisas que Ele escolheu do mundo e santificou para Si”. Em todas as
referências de Ellen White a respeito de práticas teatrais, ela as condena. Então, de que lado do
muro se encontram as representações teatrais, no pensamento de Ellen White? Logicamente
junto com as demais coisas imundas como apostas e jogos de cartas. Se houvesse um único texto
onde Ellen White expressamente aconselhasse o uso de representações teatrais, mesmo que de
modo restrito, essa prática poderia ser considerada como “uma coisa que Deus escolheu do
mundo e santificou para Si”. Porém, esse texto não existe.
Então, surge a pergunta: como a Igreja pode transitar de um ao outro extremo? Como as
representações teatrais passaram a fazer parte de nossos programas e cultos? A resposta não é
simples e exige uma pesquisa acurada de nossa história denominal recente, o que foge ao escopo
do presente estudo.
Porém, sabemos que as práticas teatrais na igreja continuaram sendo rejeitadas mesmo
vários anos após a morte de Ellen White. O pastor Francis McLellan Wilcox (1865-1951),
renomado administrador e editor da Review and Herald por 33 anos, assim escreveu em 1945:
“Métodos mundanos, tais como exibições dramáticas, peças religiosas e espetáculos tem
sido empregados em algumas de nossas igrejas e instituições. Tudo isto está errado.”31
Estas palavras foram escritas mais de 30 anos após a morte de Ellen White como parte de
um editorial onde o Pr. Wilcox chama a igreja a um reavivamento e reforma. Ali também são
apontados outros desvios como a indiferença em relação à reforma de saúde. Note-se que o Pr.
Wilcox foi contemporâneo de Ellen White e desfrutava de sua confiança, tendo sido apontado
30
Testemunhos para a Igreja, vol. 1, p. 283.
31
WILCOX, F. M. Revival and Reformation – Part 1. Review and Herald, Takoma Park, v. 122, nº 42, 18 de
outubro de 1945.
19
em seu testamento como um dos depositários originais do Patrimônio Literário Ellen G. White.
Não se pode desprezar a influência que o artigo, publicado em 1963, de Arthur White,
neto da Sra Ellen White e então Secretário das Publicações Ellen White, teve na afirmação das
representações teatrais como prática aceitável no seio da igreja. No entanto, em razão disto e
outras coisas, a Igreja Adventista do Sétimo Dia cumpre seu papel profético de Laodiceia.
Ao falar sobre a condição da igreja nestes últimos dias Ellen White escreve:
Infelizmente, alguns pensarão que o uso de representações teatrais em nossos cultos não é
um assunto de grande importância. Porém essa postura já estava predita: não compreendemos
nossa condição espiritual. Achamos que estamos no favor de Deus, quando na realidade estamos
no Seu desagrado, quase a ponto de sermos vomitados de Sua boca.
precisam fundir-se.34
Se nossas “ideias e teorias, hábitos e práticas” fossem aceitáveis diante de Deus jamais
precisariam ser reformadas.
Cabe, então, aos adventistas modernos uma mudança de práticas e hábitos na forma como
apresentamos a mensagem do evangelho, especialmente naquilo que diz respeito às
apresentações teatrais.
34
Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 128 (grifo nosso).