T E S E D E D. E. A.
A GUERRILHA
DO
ARAGUAIA
Outubro 1993
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) II
A defesa desta tese de D.E.A. aconteceu no dia 15 de outubro de 1993, tendo a mesma obtido a
nota 36/40, o que equivaleria no Brasil à nota 9/10. A banca examinadora foi composta pelos professores
do Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine (I.H.E.A.L.) em Paris, Guy MARTINIÈRE
AGRADECIMENTOS.............................................
DEDICATÓRIA................................................
IN MEMORIAN................................................
INTRODUÇÃO.................................................
I . 1 . Da Fundação ao Cisma...............................
I . 2 . 1 - Os primeiros passos............................
I . 2 . 2 - A 'construção' da linha militar do PC do Brasil
(1966 - 1969)..............................................
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) IV
I . 3 - O documento Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil
I . 3 . 1 - Da sua importância.............................
I . 3 . 2 - Da conjuntura em que surgiu....................
I . 3 . 3 - O conteúdo do 'GPOP'...........................
II . 1 - A Inação Aparente.................................
BIBLIOGRAFIA...............................................................
ANEXOS ( I a IX ).............................................................
AGRADECIMENTOS
Agradecimentos VII
Mais que a qualquer outra pessoa, gostaria de agradecer ao meu querido amigo e professor,
Ruy Rodrigues da Silva que, por seu exemplo de vida consagrada à ciência e à educação, à humanidade
enfim, e pelo apoio moral, intelectual e material a mim dedicado, teve papel decisivo na transformação do
Aos meus pais, Bárbara Lôbo Felipe e Antônio Bento Felipe, que, da mesma forma concorreram
para a materialização deste trabalho, sobretudo à minha mãe que não poupou esforços para viabilizar esta
pós-graduação.
Professor-Doutor Guy Martinière que teve grande participação na obtenção deste resultado. Ainda no
I.H.E.A.L., à Roberto Vega, funcionário eficaz, atencioso e gentil e à Sra. Paradis, professora de
Às professoras Janaína Amado e Raquel Figueiredo que me ajudaram a dar forma ao projeto de
pesquisa que desembocou na presente dissertação, assim como ao meu mestre e amigo, Professor Juarez
Aos muito queridos amigos, Romualdo Pessoa Campos Filho, a quem devo a publicação inédita
de um dos documentos secretos - o pertecente à Polícia Militar do Estado de Goiás - que tanto
enriqueceram esta dissertação, e Luciana Sousa Bento, com cuja dedicação sempre pude contar.
ao diretor da Alliance Française de Goiânia, Alain Royant, que souberam me apoiar quando me esbarrei
Aos dirigentes do PC do B, José Reinaldo de Carvalho e José Renato Rabelo, que tudo fizeram
para me franquear o acesso aos documentos e publicações partidárias concernentes à Guerrilha, assim
Agradecimentos IX
como tudo fizeram para mitigar a distância do meu País, me enviando sempre, periódica e
Ao meu professor de Francês e revisor deste trabalho e do projeto de pesquisa que o deu origem,
Christian Gouraud.
À Sra. Cirille, Zélia, Gabriela, Adeane, Elyeser, François, Lucivânia, Cyro, Juarez, Benaias,
André, Nancy, Tércia, Morad, Eugênio, Itamar, Doracy, Élvio, Alan, Farias, Sayonara, Fabrice,
Alexandre, Kênia, Laida, Jean Yves, Oscar, Valérie, Nica, Laisy, Luca, Hamazan, Maristela, Vincent e a
tantos outros que, de uma maneira ou de outra, às vezes sem nem mesmo o saberem, me ajudaram a
realizar esta travessia seja através de atos concretos, seja pelo fato de terem acreditado na minha
Por fim, e de modo muito especial, à minha amada companheira, que sempre apoiou minha
decisão de levar até o fim este trabalho, até mesmo quando isso signficou o nosso distanciamento,
DEDICATÓRIA
X Dedicatória
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) XI
IN MEMORIAN
XI In Memorian
INTRODUÇÃO
Introdução 13
No ano de 1972, eu tinha apenas 9 anos de idade. Começara a cursar em março a 4ª série do
curso primário. Passados mais de vinte anos, não consigo me lembrar de muitas coisas. Além de alguns
nomes de colegas de sala de aula, uma das únicas reminiscências desse tempo que retive na memória foi a
de um forte boato que corria, o qual dava conta de que uma guerra de verdade estaria a acontecer não
muito longe de nossas casas, no norte de Goiás. Dizia-se que muitos conscritos de nossa cidade, recrutas
de 18 anos que então cumpriam o seu serviço militar obrigatório, tinham sido levados para a floresta
amazônica onde travavam violentos combates contra um bando de "terroristas", "um exército invasor
vindo de Cuba", "um grupo de fanáticos adeptos do diabo", etc.... as versões pululavam.
Era uma época de forte repressão policial-militar, de cerrada censura à imprensa. Tais
comentários não apareciam nas páginas dos cotidianos, nos boletins difundidos pelo rádio ou nos tele-
jornais. No entanto, à boca pequena, em conversas mais reservadas, o assunto vinha à tona com muita
freqüência.
Minha escola ficava ao lado do Colégio Prof. Pedro Gomes, também conhecido como 'Liceu de
Campinas'. Ali, naquele enorme prédio branco, nos tinham contado, houvera, há não muito tempo,
grandes enfrentamentos entre estudantes e policiais. Ponto de tradicional força do movimento estudantil
secundarista, durante muitos anos o nome Pedro Gomes significou subversão, luta estudantil, violência
policial. Não obstante a notoriedade, este também era um assunto proibido, dele só se tomava
conhecimento através de relatos proferidos em voz baixa. Falava-se de estudantes que tinham sido
abatidos ao tentar saltar o muro da escola para fugir a uma invasão da PM. Contava-se também de
estudantes que haviam alvejado alguns soldados com pedras. As estórias eram várias, às vezes
descambavam para o terreno do lendário, do fantástico, mas nós, pequenos estudantes, achávamos aquilo
força dos boatos aumentasse, assim como o 'zêlo' governamental com o lugar e redondezas. Assim, neste
período passamos a ter um novo professor, um senhor que se dizia oficial do Exército, se não me engano
um coronel. Semanalmente, nós, pequeninos 'projetos de gente', tinhamos então aulas de uma nova
disciplina que se chamava Educação Moral e Cívica1, ocasião em que recebíamos uma dose de anti-
À época não nos dávamos conta do que se passava. Hoje, depois de saber da existência da
Guerrilha do Araguaia e após ter estudado as teorias militares de guerra de guerrilhas e aquelas de
combates contra guerrilhas, consigo enxergar tal fato como sendo parte de uma operação preventiva de
combate à guerrilha então em curso na região do Araguaia. Medida que suponho tenha sido levada a
movimento guerrilheiro.
Foi assim o meu encontro com o tema que agora me proponho a historiar - a Guerrilha do
Araguaia. Desde essa época e até hoje sou um apaixonado por todas as notícias que lhe digam respeito.
Coleciono recortes de jornais, revistas, livros que tratam do tema há já bastante tempo.
ao Regime Militar concebido, organizado e dirigido pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), entre
os anos de 1966 e 1975, na floresta amazônica, às margens do Rio Araguaia, na região norte do Brasil,
mais precisamente no sul do Estado do Pará e norte do Estado de Goiás (hoje, Tocantins). A
denominação se justifica pela utilização de formas de organização e de táticas militares próprias de uma
guerra de guerrilhas pelos militantes comunistas para se contrapor às ofensivas militares das Forças
1
Nas Universidades, a disciplina equivalente chamava-se Estudos dos Problemas Brasileiros (sic!) - EPB. Na segunda fase
do 1º grau assim como no 2º grau, seu nome era Organização Social e Política Brasileira ou simplesmente OSPB.
Introdução 15
Em 1980 ingressei na Universidade Federal de Goiás (UFG) para fazer o curso de História. O
meu interesse pela Guerrilha do Araguaia longe de diminuir, cresceu à medida em que verificava a não
existência de nenhum estudo aprofundado a nível da UFG sobre aquele evento ocorrido bem ali, no norte
do Estado. Fiz parte de duas diretorias do Centro Acadêmico (C.A. de História) - orgão de
representação dos estudantes de História, a primeira como diretor de imprensa e divulgação e a última
como presidente. Nas duas oportunidades, em conjunto com outros colegas também interessados, tudo
fiz para que o tema fosse debatido. Convidamos ex-guerrilheiros, dirigentes do partido que tinha
Revista do C.A. de História e, não por acaso, em ambos constavam matérias sobre a Guerrilha.
Confeccionamos uma camiseta com uma gravura e um trecho de um poema que homenageava a
Guerrilha. A camisa era vendida e servia para arrecadar fundos para o nosso movimento ao mesmo
tempo em que divulgava o acontecimento dos anos setenta. O barulho que fizemos, embora grande, não
foi suficiente para suscitar o interesse do Departamento de História da Universidade. Nenhum trabalho
Quando me graduava, em 1991, pude notar que o tema continuava como antes: virgem, do ponto
de vista historiográfico. Algumas novidades, é certo, tinham vindo à tona, algumas publicações,
notadamente do lado dos guerrilheiros, tinham enriquecido o magro acervo documental do evento. O PC
do Brasil tinha publicado diversos materiais, dentre os quais se destacava a revista Guerrilha do Araguaia
em 1982, por ocasião do décimo aniversário do início dos combates entre militares e guerrilheiros. Um
prefaciado pelo historiador Clóvis Moura. Alguns livros de memórias e entrevistas de pessoas que
tomaram parte dos combates foram publicados. Tudo assim, disperso. Sem nenhum esforço da
inteligência historiográfica brasileira no sentido de desvendar esse importante episódio da nossa história
recente.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 16
Não bastasse isso para justificar o despertar de um maior interesse pelo ocorrido, acresça-se o
fato de a região onde se desenvolveram os combates e redondezas - sul do Pará e 'bico do papagaio' - se
constituir até hoje em ponto dos mais tensos do País, onde a luta pela posse da terra opõe violentamente
'posseiros' de um lado, contra fazendeiros e 'grileiros' e 'jagunços', de outro, o que, não raro, acaba em
enfrentamentos armados e, conseqüentemente, em mortos de lado a lado. Nada disso pareceu capaz de
A essa época, já havia me decidido a me dedicar à realização de uma tese de doutorado numa
universidade francesa. O tema da pesquisa ainda não tinha sido escolhido. Oscilei entre pesquisar o papel
dos religiosos dominicanos franceses na ocupação do norte de Goiás e a história do movimento estudantil
universitário em Goiás após o Congresso de Reconstrução da UNE em Salvador em 1979. Por fim, tratei
de organizar cuidadosamente um arquivo dos documentos e publicações guardados por longo tempo em
minha casa e, eu mesmo, me surpreendi com a riqueza do material acumulado sobre a Guerrilha. Era,
sem sombra de dúvida, um bom ponto de partida. Resolvi então me consagrar à pesquisa do tema que me
Em suma, minhas lembranças de infância, a 'virginidade' do tema, a sua originalidade, assim como
a realidade ainda explosiva da região que sediou a conflagração, tudo isso, de maneira conjugada,
Olhando em retrospectiva, penso que não poderia ter feito melhor escolha para tentar começar
uma carreira profissional no campo da História. Conciliei trabalho e prazer, o que nem sempre é fácil, e
Uma coisa é certa: há uma enorme diferença entre gostar de um determinado tema, colecionar
gratuitamente tudo que se lhe refira, quase como um 'hobby', e se dedicar a uma pesquisa histórica, com
todos os quesitos necessários para o seu sucesso, com todo o cuidado e rigor científicos. As dificuldades
começam quando começamos a nos dar conta de que o material que julgávamos suficiente é bastante
Introdução 17
limitado. Sobretudo no tocante a documentos primários, traços documentais da Guerrilha, relatórios
oficiais, etc.
De fato, apesar de contar com um acervo que inclui, se não tudo, pelo menos quase a totalidade
do que foi publicado a respeito - o que não é sinônimo de grande quantidade, pelo contrário, sobre o
evento há uma muito restrita bibliografia - um dado perturba mais que os demais o bom caminhar do
trabalho de pesquisa: o insistente silêncio por parte das Forças Armadas (FF.AA.) no tocante ao
episódio.
Das autoridades militares não se obteve até hoje nem sequer o reconhecimento verbal oficial da
ocorrência da Guerrilha, que dirá documentos oficiais a respeito. Sobre o fato vive-se uma tragicomédia
em que, não obstante todos os testemunhos, todos os relatos, todos os documentos surgidos, nega-se
peremptoriamente o óbvio.
A conseqüência trágica desta postura é a inquietude dos familiares dos guerrilheiros que
enfrentaram os contigentes militares oficiais nas matas do sul do Pará. Eles vivem desde então um
verdadeiro pesadelo, qual seja o de não saberem do destino de seus entes queridos. Essas pessoas vivem
num estado de terrível esperança, espera de notícias, espera de um retorno cada vez mais improvável,
sem saber se devem chorar as suas mortes ou se devem esperar ainda mais. Todos eles sabem que os seus
parentes foram para o Araguaia, supõem que estejam mortos, mas resta sempre uma ponta de dúvida, um
fio de esperança.
Uma conseqüência, não menos prejudicial, dessa posição assumida pelas FF.AA. diz respeito à
ausência da versão oficial governamental do ocorrido, o que, sem embargo, obstaculiza uma maior
proximidade do historiador da realidade do fato histórico, da verdade, haja vista que a quase totalidade
da documentação até hoje obtida ser devido a revelações da outra parte do confronto, do PC do Brasil,
Se bem que tenhamos hoje a posse de documentos secretos das FF.AA., obtidos por vias outras
que as normais, ao ser o historiador da Guerrilha do Araguaia obrigado a lançar mão desse material, e
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 18
somente dele, corre o risco de trazer à luz unicamente parte da realidade vivida o que, sem dúvida, já é
Aqui o historiador se vê obrigado então a inventar caminhos para atingir a sua meta: a verdade
histórica. É onde a tarefa do historiador se aproxima daquela de um detetive policial que meticulosa e
escrupulosamente (supõe-se!) tenta descobrir a verdade a partir de alguns indícios, montando então um
grande quebra-cabeças.
Ao que tudo indica, teremos que enveredar por esse caminho sinuoso se realmente quisermos
retirar pelo menos parcialmente os véus que encobrem os fatos do "mais importante movimento armado
já ocorrido no Brasil rural"2, nas palavras do General Hugo de Abreu; dessa "guerra suja dos dois
lados"3, segundo o hoje senador e oficial da reserva do Exército, Jarbas Passarinho, ministro da educação
do governo do presidente-general Emílio Garrastazu Médici, à época do início dos combates; ou, ainda,
Ao que tudo indica. Dizemos isso no condicional pois, muito embora não seja esta a nossa
opinião, a evolução dos acontecimentos pode nos conduzir a maiores revelações e, quem sabe, até
mesmo a um reconhecimento oficial da Guerrilha. Tal pode vir a acontecer. Exemplo desta hipótese é o
estardalhaço que tem feito nesse sentido a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos 'mortos e
desaparecidos políticos durante o regime militar' da Câmara dos Deputados, em franca atividade de busca
de elementos que possam contribuir para a elucidação de vários fatos ocorridos na nossa história recente,
O assunto é, em si, polêmico, e explosivo, alguns dizem mesmo que é perigoso. Delicado talvez
seja a expressão mais feliz para qualificá-lo. Não sabemos o que realmente move as FF.AA. na sua
2
Citado por: Palmério Dória et alii. A Guerrilha do Araguaia. Col. História Imediata, n° 1. SP, Alfa-Õmega, 1978, p. 5.
3
Idem op. cit., p. 23.
4
Idem, p. 5.
Introdução 19
obstinação a esconder sob sete chaves os fatos da Guerrilha da Araguaia. Seja o que for, trata-se de tema
frágil posto que envolve a vida (e a morte) de, segundo se estima, mais de uma centena de brasileiros, de
ambos os lados. Além disso, põe em xeque o papel jogado pelas FF.AA. durante os chamados 'anos de
chumbo'.
Tais questões, longe de nos afastar do nosso desígnio, nos liga mais ainda à solução desse enígma
exaustão a reduzida bibliografia existente, ainda teremos que nos valer de recursos metodológicos mais
recentes que poderão nos ajudar a abrir trilhas rumo à verdade, como por exemplo da utilização de
fontes orais, método outrora chamado 'história oral', terminologia abandonada por imprópria. Desta
forma, estamos convencidos de que conseguiremos nos apropriar de um conjunto de técnicas que
poderão nos aproximar bastante do ocorrido às margens do Rio Araguaia na primeira metade dos anos
setenta.
Essa certeza de que fazemos uma opção não apenas necessária mas também correta, não nos ilude
quanto à dimensão do desafio que se nos apresenta. Optar pela utilização de fontes orais num estudo da
Guerrilha do Araguaia implica em optar por um grande trabalho 'de campo' que, em se tratando da região
em questão, anuncia-se bastante duro, haja vista que as condições geográficas não amenizam em nada a
tarefa, ao contrário, dificultam sobremaneira um trabalho dessa envergadura. Isso para não citar a
dificuldade já provada por jornalistas de conseguir revelações e entrevistas junto à população que a tudo
assistiu ou até mesmo tomou parte do conflito. É o medo que a lembrança dos tempos da guerra traz
àqueles que o viveram, é o trauma de uma população que de repente se viu no centro de uma
movimentação de tropas nunca vista e que sofreu muito pelo fato de ser julgada e tratada pelos soldados
participaram das operações de combate à Guerrilha. Não obstante, tem havido na sociedade brasileira
uma tendência a aparecerem cada vez mais pessoas dispostas a revelar o que sabem sobre os sombrios
anos do regime militar e isso nos abre uma perspectiva menos negativa. Mesmo no tocante a documentos
secretos das FF.AA., temos grande esperança de que consigamos obtê-los em boa quantidade, campo em
que já obtivemos consideráveis avanços. A impressão que temos é de que há um potencial a ser
explorado entre os militares e estamos dispostos a ir até o fim e recolher o que for possível.
Uma outra dificuldade no presente trabalho de pesquisa que já podemos prever é a que se
relaciona aos meios materiais para concretizá-la. Ao que tudo indica, receberemos a partir do próximo
ano letivo uma bolsa de estudos da agência governamental brasileira, CAPES. Tal notícia, a se confirmar,
já trará em si motivo de regozijo e alegria, vez que nos proporcionará meios de continuar nossos estudos
na França. Contudo, uma questão ainda ficará à espera de solução, qual seja a de recursos suficientes
para se fazer uma grande enquete com atores diretos e indiretos do conflito, uma pesquisa que alcance
uma porção representativa da região onde ocorreu a Guerrilha, que tente retraçar os caminhos
percorridos pelo fato histórico, assim como as repercussões daquele evento na realidade político-social
da área. Mas que não se detenha aí. Uma pesquisa séria terá também que procurar encontrar alguns
atores daquelas escaramuças militares que se encontram hoje espalhados pelo território nacional e que o
pesquisador terá que alcançar. São guerrilheiros, dirigentes comunistas, oficiais das FF.AA., religiosos,
ativistas sindicais, historiadores, jornalistas, auto-didatas da Guerrilha e antigos habitantes da região que
terão absolutamente que ser ouvidos posto que foram de uma forma ou de outra atores do conflito.
Para solucionarmos este problema que se anuncia grandioso, temos em vista realizarmos gestões
das citadas incursões na região afetada e alhures, onde se fizer necessário, para o pleno sucesso da futura
tese de doutorado.
Introdução 21
Uma outra fonte, igualmente reduzida mas de forma alguma negligenciável, será a utilização de
matérias publicadas em periódicos nacionais e estrangeiros. Em território brasileiro, salvo raras exceções,
teremos que nos contentar com artigos, na sua maior parte, aparecidos a partir de 1978, quando a
censura oficial abrandou-se. Da imprensa estrangeira, por enquanto, conseguimos rastrear o que foi
publicado no diário francês Le Monde, o que segue publicado na última parte do presente mémoire,
como anexo.
No trabalho de pesquisa que ora começamos, as hipóteses que buscaremos verificar são os
seguintes:
política contra o regime ditatorial estabelecido em abril de 1964; a resistência armada mais eficaz
levada a cabo pela esquerda revolucionária no período em questão; aquela que exigiu, malgrado
sua derrota, o maior esforço dos militares para esmagá-la; e que é por este mesmo motivo que até
hoje, mais de vinte anos depois, ela continua sendo o único movimento de oposição armada ao
razão fundamental de sua longa duração e de sua imensa capacidade de sobrevivência diante dos
sucessivos e poderosos golpes do inimigo, não obstante a sua inegável superioridade tanto em
Guerrilha foram fortemente marcados por seu advento. Sobretudo as suas formas coletivas de luta
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 22
assumidas desde então, sofreram grande influência da Guerrilha dos anos setenta - mesmo que tal
não seja evidente numa primeira abordagem e mesmo que este fato seja enfáticamente negado
pelos atores atuais das lutas sociais que por lá se passam -, tornaram-se mais organizadas e mais
radicais, não raramente respondendo com a mesma moeda à violência armada de fazendeiros e de
Para a tese, nossa intenção é de desenvolver, ao lado da problemática principal acima enunciada,
alguns temas específicos relacionados com a Guerrilha que poderão tomar a forma de capítulos ou de
8 - a incansável busca dos corpos dos guerrilheiros por seus familiares e amigos;
Por fim, a intenção do pesquisador na presente pesquisa é a de contribuir para bem responder à
necessidade da sociedade brasileira de conhecer sua própria trajetória histórica, mesmo aqueles episódios
mais obscuros.
Tal se faz tanto mais necessário hoje quando já podemos assistir a um processo de
de tentar recuperar o tempo perdido e resgatar este episódio antes que a sua memória seja corrompida e
5
Angela Klinke e Luciana de Francesco. "Guerrilha e Paz". In: Revista Isto É, n° 1243, SP, Ed. Três, 28/07/1993, pp. 48-
51.
CAPÍTULO
I
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 25
BREVE HISTÓRICO
DO
PARTIDO COMUNISTA
DO BRASIL
- PC do B -
( 1922 - 1969 )
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 26
I . 1 . Da Fundação ao Cisma
O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi fundado em 25 de março de 1922. Uma de suas
Em 1928, o PCB participa das eleições legislativas através do Bloco Operário-Camponês (BOC),
Mas será em 1935 o apogeu da influência comunista nessa sua primeira fase. Em novembro,
através de uma organização política de massas - a Aliança Nacional Libertadora (ANL) - sob sua direção,
o PCB lança uma insurreição nacional. A revolta se restringe a algumas unidades militares e fracassa.
Apesar da derrota, o ato lhe valeu o título de primeira organização comunista latino-americana a dirigir
um levante armado no continente. O episódio será chamado doravante pelos comunistas de 'insurreição
nacional libertadora', enquanto que os militares, assim como os sucessivos governos posteriores -
castrenses ou não - o batizarão de 'intentona comunista'. Nas casernas, a memória de 1935 é celebrada
todos os anos. É, por excelência, a oportunidade anual de o alto oficialato renovar a sua profissão de fé
anticomunista e de lançar advertência aos que, por acaso, ainda alimentem sonhos semelhantes àqueles
dos insurretos de 35. Nos discursos proferidos em tais ocasiões se repete insistentemente a acusação de
que se tratou de 'covarde traição comunista realizada na calada da noite contra valorosos soldados
Tal lembrança é tão traumática para os militares brasileiros que até os nossos dias, segundo
relatos de ex-soldados, nos quartéis das FF.AA., quando da realização no período noturno de exercícios
militares de prontidão, o álibi usado é sempre o mesmo: 'De pé! De pé! Os comunistas estão atacando o
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 27
quartel!' Quando todos se levantam e se colocam em posição de combate, o comando anuncia que se
A derrota de novembro de 35 foi uma das razões, entre outras, evocadas pelo presidente da
República, Getúlio Vargas, para justificar o golpe de Estado de 1937, liderado por ele próprio, que
De 1935 a 1945, os comunistas são literalmente caçados pelo governo como inimigos públicos da
nação. Seus líderes são presos, torturados e assassinados nos cárceres. Entre eles, o mais conhecido de
todos e, por esse mesmo motivo, o mais procurado pelas autoridades policiais: Luíz Carlos Prestes, ou,
I . 1 . 2 - Legalidade e semi-clandestinidade8
do regime de Vargas com o 'Eixo nazi-fascista' e pelo envio de tropas brasileiras para combatê-lo, ao
lado das 'Forças Aliados'. Tal movimento coroa-se de êxito e o Brasil declara guerra ao bloco militar
Tal sucesso faz com que o PCB volte com força à cena política nacional. Em 1945, um amplo
movimento popular, com os comunistas, ainda que clandestinos, novamente à frente, põe termo ao
6
Ver: Marly de Almeida Gomes Vianna, Revolucionários de 35. SP: Cia. das Letras, 1992.
2
Tal alcunha se deve à biografia romanceada da trajetória de Luíz Carlos Prestes, publicada nos anos quarenta pelo famoso
escritor brasileiro, à época membro do PCB, Jorge Amado. O livro se chama 'O Cavaleiro da Esperança' e atualmente seus
direitos de publicação no Brasil pertencem à Editora Record.
8
Aqui segue-se a argumentação apresentada por Edgar Carone em: O PCB: 1943 à 1964 (2 vol.), SP, Difel, 1982, v. I,
passim.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 28
Estado Novo, conquista a anistia dos presos políticos, a convocação de uma Assembléia
candidato próprio à disputa presidencial. Obtendo significativa votação, elege expressiva bancada de
Em 1947, uma cilada jurídica dá fim à breve existência legal da agremiação. O PCB retorna à
ilegalidade, se bem que sem rigores que fizessem lembrar os negros tempos idos da ditadura
estadonovista.
Mesmo ilegal, o PCB continua a atuar em diversos setores da sociedade brasileira em condição de
A nível da política institucional tampouco o PCB deixa de participar. Embora ilegal, toma parte
nas eleições legislativas e presidenciais que se seguem, ora lançando candidatos comunistas por outra
sigla, ora apoiando candidatos de outros partidos considerados 'democratas e progressistas'. É expressivo
desse período o apoio praticamente explícito que o PCB presta ao então candidato presidencial da
Também em 56, no mês de fevereiro, tem lugar um outro acontecimento marcante na história dos
comunistas do Brasil, desta feita fora dos limites nacionais. Ocorre o XX Congresso do Partido
Comunista da União Soviética (PCUS) cujas decisões vêm a acender o rastilho de polvora que conduziria
à implosão da até então inquebrantável unidade do partido. O PCB, é certo, já havia enfrentado
problemas relativos à sua unidade interna, mas nenhum de grande envergadura, que chegasse a ameaçar a
existência mesma do 'velho' partido de 1922, como o que então terá início.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 29
E em torno do XX Congresso do PCUS e de suas resoluções que se produz o primeiro grave
aparição do célebre 'relatorio secreto', no qual Nikita Khruchov elencava denúncias do que teriam sido os
'crimes de Stálin', tiveram efeito similar ao de uma bomba de alto teor explosivo lançada no interior do
PCB. Dois polos então se formam em seu seio e, sobretudo, em sua direção central: um, adepto das
Três outros acontecimentos internacionais, ocorridos na seqüência, contribuem para jogar ainda
mais lenha na fogueira: primeiro, em 1957, o Partido Comunista Chinês (PCCh) e outros partidos
marxistas manifestam discordância da nova orientação seguida por Moscou10, sobretudo das teses da
'transição pacífica' e da 'coexistência pacífica'. Trata-se na verdade do primeiro passo do processo que
culminará na crise e ruptura sino-soviética nos anos sessenta11; segundo, o PTA, o partido dos
comunistas albaneses, segue o exemplo chinês e também se manifesta contra a orientação de Khruchov, à
frente da URSS e do PCUS12; e, por fim, em 1959, sagra-se vitoriosa a revolução cubana, a primeira de
caráter nitidamente popular e anti-imperialista, com fortes tendências socialistas, ocorrida em território
latino-americano. O seu advento radicaliza o já aguçado debate em torno da questão do caminho, da via
9
As mais polêmicas teses aprovadas pelas plenárias do XX Congresso do PCUS foram: a 'coexistência pacífica entre
socialismo e imperialismo'; a 'transição pacífica do capitalismo para o socialismo'; o 'partido de todo o povo'; e, o 'Estado de
todo o povo'.
10
A posição chinesa foi tornada pública no dia 10/11/1957 em Moscou, à ocasião da 'Conferência dos Doze Partidos
Comunistas' (Cf. "Les Thèses Chinoises Sur les Voies de Passage au Socialisme". In: Roger Garaudy, Le Problème Chinois,
Paris, Éd. Seghers, 1967, annexe II, pp. 277-80).
11
Para maiores informações, ler: F. Fejto, Chine/URSS: de l'Alliance au Conflit. Paris, Seuil, 1973.
12
O Partido do Trabalho da Albânia criticou o PCUS na 'Segunda Conferência dos Partidos Comunistas e Operários', mais
conhecida como 'Conferência dos 81 Partidos Comunistas' (Cf. Enver Hoxha, "Discours Prononcé à la Conférence des
Partis Communistes et Ouvriers à Moscou", novembre de 1960. In: Institut des Etudes Marxistes-Leninistes, Histoire du
Parti du Travail d'Albanie, Tirana, Ed. Naim Frashëri, 1971, pp. 488-504).
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 30
Segue-se, durante quatro anos - de 1956 até o V Congresso do PCB, em 1960 - uma
intensa luta interna opondo 'comunistas' a 'revisionistas'; ou, noutra classificação, 'revolucionários' a
jargão da época.
Mas o rótulo que se atribui a cada uma das partes em disputa pela hegemonia na direção do PCB
não é tão importante quanto a identificação da essência das divergências em curso. O elemento de
decantação é, sem sombra de duvida, a posição que cada grupo assume em relação às deliberações do
socialista, e do partido soviético, enquanto referência para todo o movimento comunista internacional.
Mas não é só isso. A adoção ou não das 'teses de 56' implicava em diferentes abordagens na
Assim, a partir de uma mesma matriz, externa, e da visão que cada agrupamento nutre a seu
respeito, surge e se desenvolve um grande desacordo no seio do PCB. Pouco a pouco, a norma leninista
do 'centralismo democrático', cujo pilar básico é o princípio da existência de um centro único de direção
partidária, vai se esvaindo e acaba por cair no vazio. A razão disso é que a premissa para que aquela
direção do PCB, dando lugar à uma, cada vez mais acirrada, disputa de correntes, cada qual com sua
rigidez normativa e disciplinar, não conta mais com os instrumentos que lhe possibilitariam, em condições
normais, assegurar a continuidade da sua unidade organizativa, posto que toda a estrutura concebida por
Lênin se baseia na disciplina como ato voluntário. Então, se não há mais a disciplina partidária, ou seja, a
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 31
'vontade' de se referênciar no 'centro único', na direção, na qual já não se confia mais, então o caminho
Essa rota autofágica, começada em 1956, e acentuada notadamente a partir de 58, o PCB a
percorrerá até que se consume, em 1962, a primeira grave divisão de sua história.
Em 1958, a direção do PCB, ja contando com uma maioria adepta das teses do PCUS, faz
publicar a "Declaração Politica de março de 1958"14, cujo conteúdo já era afinado com a política do
PCUS, modificando assim a linha política aprovada em seu IV Congresso. Tal documento fez se
ratificados, a opinião que defendia total aval às teses do PCUS alcança a maioria entre os delegados
presentes. Dá-se então o desfecho da controvérsia. Foram aprovadas todas as teses defendidas pelo
PCUS e também, ato contínuo, foram afastados das funções dirigentes todos aqueles que haviam
manifestado discordância com a nova linha. Desde então o cisma passou a ser questão de tempo e de
E ele não tarda a chegar: em 1961 a nova direção central, adepta da política da 'legalidade a
qualquer preço', para obtê-la, após haver negociado com o presidente da República, João Goulart, muda
o nome do partido, seus estatutos e programa. O partido passa então a se chamar Partido Comunista
13
As idéias de Lénine sobre o partido revolucionário e sua organização podem ser encontradas em quase toda a sua obra.
Mas quase todos os estudiosos de sua produção teórica são unânimes em afirmar que aquela em que elas aparecem mais
sistematizadas é a que ele escreveu em 1902, na qual me referenciei nessa passagem: V. I. Lênin, Que Fazer?, SP, Hucitec,
1979, passim. Ver também: V. I. Lênin, A Organização Comunista (coletânea de textos), Lisboa, Maria da Fonte, 1975.
14
"Declaração sobre a política do PCB". In: Edgar Carone. O PCB: 1943 à 1964. SP, Difel, 1982, v. 2, pp. 176-96.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 32
15
Brasileiro guardando, todavia, a sigla tradicional - PCB . Entretanto, a manobra fracassa pois
o Tribunal Superior Eleitoral não se comove com a mudança de nome do partido e arquiva o pedido de
registro16.
Se tais medidas não surtem os efeitos esperados, ou seja, a obtenção do registro legal. Elas serão,
contudo, bem eficazes ao propiciar uma ocasião ideal à consumação da cisão do 'antigo' PCB. A partir
deste momento, o movimento comunista no Brasil, até aqui unitário, se bifurca irremediavelmente.
descaracterizado o partido fundado em 1922, de ter dado um verdadeiro golpe na organização e de ter
'nova' organização. E conhecido o episódio em que a direção decide pela expulsão de um dos mais
antigos filiados ao 'velho' PCB, o operário ferroviário José Duarte, um dos dissidentes à época. Ao ser
comúnicado da punição, ele responde, sintetizando nesta resposta, de maneira simples, o pensamento de
toda a dissidência: "Eu não posso ser expulso de um partido ao qual eu não pertenço. Em 1922 me filiei
1962 quando decidem 'reorganizar o Partido Comunista do Brasil'18, retomando assim o nome com o
qual o partido fora fundado. No entanto, para se diferenciarem da outra agremiação, quase homônima,
15
O Partido Comunista Brasileiro - PCB - manterá essa denominação até 1991, quando, após o desmantelamento da URSS,
ele mudará outra vez seu nome. Desde então, ele se chama Partido Popular Socialista - PPS - e seu presidente, Deputado
Roberto Freire, é atualmente o líder do governo do presidente da República, Itamar Franco, na Câmara dos Deputados.
16
Tal iniciativa permanecerá arquivada até 1964, quando o governo militar se apossará dela para perseguir todos os
eleitores que a haviam subscrito.
17
Ver: José Duarte, Memórias, SP, Centro de Cultura Operária, 1981.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 33
18
Ver: "Manifesto-Programa do PC do Brasil", "Estatutos" e "Em Defesa do Partido". In: A Linha Politica
Revolucionária do Partido Comunista do Brasil (M-L). Lisboa, Maria da Fonte, 1974.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 34
I . 2 . 1 - Os primeiros passos
'velho' PCB e autêntico continuador de seus ideais, ao mesmo tempo em que acusa o 'novo' PCB de
"traição aos interesses da classe operária" e de ser um mero "apêndice da burguesia nacional"19.
A nova agremiação, nos seus primeiros passos, não contará que com uma flagrante minoria da
militância do 'antigo' PCB. Não obstante esta desvantagem inicial, o PC do B ou o 'do Brasil', ou
simplesmente o 'do B', como era conhecido, conseguirá reunir em torno da bandeira da "reorganização
importante, uma não menos significativa quantidade de dirigentes históricos do 'antigo' PCB20, o que lhe
conferirá o peso e a legitimidade necessárias para se apresentar como alternativa política à senda
19
Ibidem, passim.
20
Os mais conhecidos eram: João Amazonas, Pedro Pomar e Maurício Grabóis. Todos foram deputados constituintes em
1946, sendo que Grabóis, à ocasião, foi o líder da bancada. Grabóis também foi o comandante operacional da Guerrilha do
Araguaia e lá teria sido morto no natal de 1974 por tropas do Exército. Pomar foi assassinado em 1976, na 'Chacina da
Lapa', em São Paulo. Amazonas é o 'presidente' do PC do B, segundo hierarquia adotada para obtenção do registro legal em
85; ou 'secretário-geral', segundo a tradição leninista.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 35
A grande maioria seguirá o outro agrupamento, o Partido Comunista Brasileiro, liderado pelo
famoso líder comunista, Luiz Carlos Prestes. Tal fato, sem duvida, influiu bastante na opção feita pela
maior parte da base partidária, pois a figura de Prestes era cercada de lendas, ele era venerado como um
heroi, sendo bem provável que fosse mesmo mais conhecido pelo povo do que o nome ou a sigla do
Essa condição de herdeiro da maior parte do contingente de filiados fará com que o 'Brasileiro'
passe a ser conhecido também pelo apelido de 'Partidão', alcunha que continuará a vigorar até mesmo
quando a relação quantitativa entre os dois partidos se inverter, por volta da metade dos anos oitenta.
sinaliza claramente em favor do partido liderado por Prestes, dando publicamente a este o seu aval. Tal
fato faz com que o PC do Brasil aprofunde o processo de crítica às posições do PCUS e evolua para a
Estamos então na primeira metade da década de 60, tempo em que se dá o apogeu da crise sino-
soviética. Tal fato faz com que o PC do Brasil se aproxime das fileiras pró-chinesas, então em franca
beligerância com Moscou. Apesar disso, o partido nunca em seus escritos se declarará 'maoísta', como o
fizeram inúmeras outras organizações, também discordantes do PCUS, que consideravam Mao Tsé-tung,
o 'quinto clássico do marxismo'22. Tal singularidade de procedimento não impediu, entretanto, que os
documentos do PC do B datados dessa época rendam grandes homenagens à revolução chinesa e ao seu
21
"Resposta a Khruchov". In: Op. cit., pp. 115-40.
22
Os quatro primeiros clássicos do marxismo para muitas destas organizações eram K. Marx, F. Engels, V. I. Lênin e J.
Stalin.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 36
líder máximo, citando-o não poucas vezes como sendo "o maior marxista-leninista da época
presente"23, revelando encanto com a experiência em curso naquele gigantesco país asiático24.
Data desta época também o início da profíqua amizade do PC do Brasil com o Partido do
Trabalho da Albânia, PTA25. A essa época, ambos, guardadas as proporções, se encontravam então sob a
imperialismo ianque'.
Em relação à Cuba, o único Estado socialista da América Latina, o PC do Brasil, apesar de lhe
emprestar discreta 'solidariedade internacionalista', se mantem prudentemente afastado. As razões para tal
distanciamento podem ser encontradas também na conjuntura da época. Pressionada pelos Estados
Unidos, Cuba se ligava cada vez mais estreitamente ao bloco pró-soviético, fato que era visto com
bastante desconfiança pelo PC do B. Outro grupo de razões, que diziam respeito à compreensão que os
cubanos tinham do 'caminho revolucionário', também contribuía para reforçar a repulsa entre o PC do
23
"O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra o Ditadura Militar". In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no
Brasil. Lisboa, Maria da Fonte, 1974, p. 56; e "Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil". In: op. cit., p. 154.
24
A caracterização do PC do Brasil como partido 'maoísta' é repudiada por sua direção e seu presidente publicou um livro a
respeito (Ver: João Amazonas, O Revisionismo Chinês de Mao Tsé-tung, SP, Anita Garibaldi, 1981). O partido rompeu
com a China em 1978. Em todo caso, trata-se de grande controvérsia, impossível de ser esgotada aqui. Numa primeira
aproximação, pensamos que tal designação se deveu muito mais à divisão do campo socialista na década de 60 e à tendência
que se seguiu de proceder a uma classificação pétrea de todas as organizações comunistas entre 'pró-soviéticos' e 'maoístas',
conforme posição assumida em relação à 'crise sino-soviética'. Como veremos, na confecção da linha militar do PC do B, os
Escritos Militares de Mao tiveram peso decisivo. Mas, o PC do Vietnam também adotou e desenvolveu a teoria da 'guerra
popular' e, nem por isso, seria exato considerá-lo 'maoísta'. Para escapar à adjetivação fácil, seria necessário um estudo
sobre este ponto em particular.
25
As relações com o PTA só se fortalecerão. Sobretudo quando da ruptura com Pequim, iniciativa que o PTA também havia
tomado. Esta amizade durará até o início da década de 90, quando o sistema socialista albanês é derrubado e substituído por
uma 'economia de mercado', de tipo capitalista.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 37
Além da acerba crítica ao XX Congresso do PCUS, da ruptura com o raio de influência de
Moscou e da aproximação com a China, algumas outras características são perceptíveis desde logo na
nova agremiação.
Um dos traços mais luminosos trata-se da reverência com que o PC do Brasil se refere aos
teoria marxista é reafirmada incansavelmente, como um tipo de resposta à ação diametralmente oposta
levada a efeito pela organização concorrente, o 'Partidão', que continuava a perseverar nas mudanças
socialismo'. Mas, até aqui, nenhuma novidade em relação ao 'velho' PCB, que também sempre
reafirmara, até o seu V Congresso, em suas declarações programáticas, a crença na via revolucionária
O fator diferenciador que singularizará a trajetória histórica do PC do Brasil, neste particular, será
a vontade, a firme decisão de passar das propostas à ação, da palavra ao ato, do programa revolucionário
à preparação concreta da luta armada, à revolução. De fato, desde a sua Conferência Nacional
Extraordinária em 1962, pode-se notar a reafirmação deste intuito, e a história, como se verá, mostrará
Tão congênita e explicita era esta característica do PC do Brasil, que para ele parece tão somente
terem afluido adeptos da revolução e, dentre estes inclusive, alguns adeptos da 'revolução, já!' Tanto
parece ser verdade tal afirmação que se dissidências houve na sua primeira década de existência, elas se
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 38
deveram muito mais a críticas e discordâncias quanto ao cronograma da luta armada a ser
Tal foi o caso em duas dissidências verificadas em 1966. A primeira deu origem ao 'Partido
Comunista Revolucionário (PCR)'; e, a segunda, à 'Ala Vermelha do PC do B'. Ambas tiveram curta
existência. As duas se constituiram como organizações à parte e passaram a se dedicar ao que chamavam
'ação direta', ou 'ações terroristas', como preferem os militares. Presume-se que, por volta do final de
"O Partido ... vem sustentando uma luta constante, ... Logo após a sua reorganização,
teve de enfrentar o aventureirismo pequeno-burguês que tentava arrastá-lo à luta
armada, sem que existissem as condições necessárias e sem que houvesse uma
suficiente preparação. Mais tarde, despontou uma tendência de fundo anarquista que
advogava os métodos da «ação direta». Tanto uma como outra manifestação foram
derrotadas. Após o golpe de abril, apareceu, no [Estado do] Rio Grande do Sul, um
pequeno grupo que, sob o pretexto da existência de um «movimento incontrolável»
visando à luta armada, pretendia colocar o Partido a reboque da parte radical da
burguesia ... foi desmascarado e afastado ... O Comitê Regional do Rio Grande do Sul
assinalou, na época, que a formação do grupo resultou «da junção de dois fatôres: a
existência no Partido de alguns elementos imbuídos da doença infantil do
esquerdismo e a pressão exercida nas próprias fileiras pela burguesia radical»."27
Por outro lado, de questionamentos significativos quanto ao caminho armado em si, não se têm
noticia. Ao que parece, este era um ponto pacífico para o conjunto do efetivo partidário.
Com o golpe militar, o PC do Brasil, de 'grupelho estalinista sectário', como era considerado por
muitos, passou a ser visto como uma organização séria, uma das poucas que alertavam, ainda no período
26
Nesse particular, segue-se a argumentação apresentada por Jacob Gorender em Combate nas Trevas, SP, Atica, 1990, p.
109.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 39
anterior a abril de 1964, para o perigo de uma sublevação direitista dos quartéis contra a ordem
constitucional vigente.
Aqui, mais uma vez as duas organizações surgidas a partir do leito unitário do 'antigo' PCB, o
'Partidão' e o 'do B', revelaram que suas diferenças iam muito além de nomes e siglas. Enquanto o PC do
B já alertava, em documentos bem anteriores ao golpe de 1° de Abril de 1964, para o 'perigo militarista',
o 'Partidão', através de seu secretário-geral, Luíz Carlos Prestes, declarava a apenas quatro dias do golpe
de Estado, que "não havia condições favoráveis a um golpe reacionário, mas, se este viesse ... os
golpistas teriam as cabeças cortadas"28, demonstrando assim, de forma inequivoca, que a direção do PC
Brasileiro se fiava no então muito falado 'dispositivo militar' do presidente da república, João Goulart.
de esquerda em ação no País. Também o efetivo partidário cresce consideravelmente após o golpe de 64.
O PC do B começa então a ter condições de participar mais ativamente de eventos políticos de peso, tais
como o Congresso da UNE, e também de tomar parte nas composições de direções de entidades sindicais
e populares. Em suma, o partido se impõe como agremiação séria e passa a ser levado mais em
O PC do B demonstra ter consciência de que os ventos começam a soprar a seu favor, conforme
o demonstra o documento de agosto de 1964 da sua comissão executiva, "O Golpe de 1964 e Seus
27
"Desenvolver a Luta Ideológica e Fortalecer a Unidade do Partido". In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no
Brasil. Op. cit., pp. 10-1.
28
Luíz Carlos Prestes, "Discurso na Sede da ABI", 27/03/1964 (Citado por: Jacob Gorender, op. cit., p. 64).
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 40
Partido, sistematizaram-na. Negando os princípios do marxismo-leninismo,
afirmaram que o Estado brasileiro encontrava-se em processo de democratização
crescente, que o Exército era democrático... A acumulação de reformas conduziria à
libertação do País, à revolução pacífica...
Daí, a primeiro de abril, os dirigentes revisionistas sofreram uma decepção. Seus
planos e suas teses foram reduzidas a nada. O 'exército democrático' resolveu entrar
em ação."29
29
"O Golpe de 1964 e seus Ensinamentos". In: Wladimir Pomar. Araguaia: o Partido e a Guerrilha. SP, Brasil Debates,
1980, pp. 81-2.
30
In: Wladimir Pomar, op. cit., p. 84.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 41
Em que pese a brutalidade da reação, que também atingiu as suas fileiras... graças
à sua orientação, não ficou perplexo e pôde resguardar a maior parte de suas
forças."31
O documento conclui, anunciando em linhas gerais as pistas do roteiro que doravante o partido
deverá seguir:
Tal respeitabilidade adquirida, contudo, não isentava o PC do B de ser por vezes discriminado
quando da realização de algumas ações da esquerda revolucionária que o consideravam muito ponderado
e imobilista do ponto de vista da ação revolucionária, pois se negava terminantemente a tomar parte das
ações de guerrilha urbana. Emblemático do que se diz é o seguinte episódio, narrado por Jacob
Gorender:
"Um golpe decisivo [contra as esquerdas] veio a 12 de outubro [de 1968]... a prisão
de 739 [estudantes] universitários no 30° Congresso da UNE... os congressistas foram
fichados, liberados e recambiados aos Estados de origem, exceto pequeno grupo de
31
Idem. In: Op. cit., pp. 84-5.
32
Idem. In: Op. cit., p. 85.
33
Idem. In: Op. cit., p. 89.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 42
líderes. Entre estes, Luís Travassos, José Dirceu e Vladimir Palmeira
saíram do País em setembro do ano seguinte, banidos como integrantes da lista de
prisioneiros trocados pelo embaixador norte-americano seqüestrado. Sorte diferente
coube a Antônio Guilherme Ribas... também preso em Ibiúna. Por ser membro do PC
do B, que as organizações seqüestradoras desprezavam, Ribas não mereceu a
inclusão na lista de resgate. Ficou no Presídio Tiradentes"34.
Este tratamento diferenciado para com o PC do Brasil acabava por se constituir numa fonte de
pressão política importante sobre a sua base partidária. Esta pressão pode estar na origem das supra
urbana, as quais qualificava de puro 'aventureirismo', totalmente desvinculado das massas. Preferirá
Todavia, apesar de tudo parecer indicar que o PC do B repetia a velha mania de separar as
palavras das ações, na verdade, não era bem assim que se passavam as coisas.
Em realidade, o PC do Brasil, desde o golpe de 1964 passou a ter como uma de suas prioridades
táticas a preparação e o desencadeamento da luta armada revolucionária para derrubar o governo militar.
caminho da revolução brasileira seria o da luta armada, o que é reafirmado no documento supra citado O
Golpe de 1964 e Seus Ensinamentos, no entanto, só em 1966, em sua VI Conferência Nacional, realizada
de elaborar a linha militar do partido e definir os princípios que a governariam, ela funcionaria
subordinada ao Comitê Central. Estava também incumbida de estabelecer um plano de ação e, o que lhe
34
Jacob Gorender, op. cit., p. 149.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 43
No conjunto das Resoluções da VI Conferência Nacional também se pode constatar que o PC do
B avançara bastante na confecção de sua linha de atuação no campo militar. Nelas, já se encontram
massa principal de combatentes; assim como, sobre o caráter da luta armada a ser empreendida, que ela
se daria sob a forma da guerra popular e que lançaria mão de táticas de guerra de guerrilhas.
maio de 1967, embora o tema em pauta sejam problemas ideológicos surgidos no seio do partido e
questões relativas à sua unidade interna, afirma-se, en passant, a respeito do caráter da revolução a que o
PC do Brasil aspira:
35
São eles: "Desenvolver a Luta Ideológica e Fortalecer a Unidade do Partido", "O Partido Comunista do Brasil na Luta
Contra Ditadura Militar" e "Preparar o Partido para Grandes Lutas", assim como o artigo aparecido no jornal A Classe
Operária, "Alguns Problemas Ideológicos da Revolução na América Latina". In: Guerra Popular - Caminho da Luta
Armada no Brasil. Op. cit., pp. 9-114.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 44
entre uma e outra etapa, não ver o nexo que as une, representa uma atitude
oportunista de direita."36
No documento "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar", datado de
novembro de 1967, feito com o intuito de analisar "êxitos e falhas" da atuação política da militância,
"esclarecer e aprofundar alguns pontos da linha política" aprovada na VI Conferência, como consta de
sua introdução, encontramos, em breve exposição, a tática definida naquele fórum deliberativo do PC do
Brasil:
Mas o documento vai mais longe ainda no traçar mais preciso da fisionomia que a linha política
do PC do Brasil para a questão da luta armada vai assumindo, como pode se notar no seguinte trecho:
36
In: Op. cit., pp. 15-6.
37
In: Op. cit., pp. 36-7.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 45
militarista... nem mesmo as reivindicações limitadas de uma política de liberdade,
progresso e independência... podem ser alcançadas pacificamente."38
Em outro trecho, faz-se uma crítica mordaz ao 'fidelismo', ou seja, ao conjunto de concepções
abertamente defendidas pelo líder cubano, Fidel Castro e pelo Partido Comunista Cubano, que abrange as
Aqui, o documento assume grande importância pois estabelece um divisor de águas com as
fileiras cubanas e com a sua concepção político-militar, tão em voga à época nos meios políticos e
Nas suas relações com Cuba, até então, o PC do Brasil se portara sempre de maneira cuidadosa,
como é o caso da referência contida no documento de agosto de 196441, onde se demonstra o destaque
que ainda se dá à 'questão cubana': "Parte integrante da luta dos brasileiros pela paz e a independência
38
Idem. In: Op. cit., pp. 38-9.
39
Idem. In: Op. cit., p. 44.
40
A teoria do 'foco' ou o 'foquismo' foi fundada pelos comunistas cubanos, notadamente Che Guevara e Fidel Castro, que
diziam ser uma sistematização da experiência da revolução cubana de 1959. Trata-se de uma teoria político-militar que
substitui o papel desempenhado pela população e pelo partido num dado processo revolucionário, através da constituição de
um foco guerrilheiro composto de um punhado de homens corajosos, decididos e bem treinados, isolados do povo e das suas
organizações, que declarando guerra ao Poder estabelecido, arrastariam atrás de si as multidões.
41
"O Golpe de 1964 e Seus Ensinamentos". In: Wladimir Pomar, op. cit., pp. 65-90.
42
Idem. In: Op. cit., p. 88.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 46
Todavia, deixando de lado o tom diplomático com que desde 62 se referira à pequena
ilha caribenha, o PC do Brasil critica aberta e duramente o PC Cubano e Fidel Castro, qualificando-os,
Nesta crítica, reprova primeiramente a política, dita "intermediária", adotada por Fidel, para, em
seguida, enfatizar a ação que considera negativa dos 'cubanos' em suas relações com os movimentos
43
"O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar". In: op. cit., p. 50.
44
Francisco Julião foi o principal líder do movimento das 'Ligas Camponesas'. Surgido inicialmente na região nordeste do
País, se espalhou por várias outras regiões brasileiras. Julião foi eleito deputado federal. Em 1964, as 'Ligas' foram
proscritas e seus líderes foram perseguidos. Julião foi cassado e seguiu para o exílio. As 'Ligas' estão na origem, juntamente
com outras iniciativas do gênero, do atual movimento sindical rural. Para maiores informações, ver: Elide Rugai Bastos, As
Ligas Camponesas, Petrópolis, Vozes, 1984.
45
Ibidem.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 47
"... é estranha ao marxismo-leninismo... Marx e Engels afirmavam que «a luta do
proletariado contra a burguesia, embora não seja na esência uma luta nacional,
reveste-se primeiramente dessa forma. É natural que o proletariado de cada país,
antes de tudo, deva liquidar a sua própria burguesia» . A revolução será feita em
cada país pelo seu próprio povo... Todo país tem suas peculiaridades, sua formação
histórica e suas tradições, sua cultura e composição étnica, seus hábitos e costumes.
Todo povo terá de encontrar as formas específicas de abordar a revolução... É um
absurdo varrer de uma só penada as diferenças nacionais entre os países latino-
americanos para justificar uma revolução continental única, com uma só tática, com
exército e direção comuns."46
Na tecla da primazia do fator político sobre o militar, o PC do B bate forte. Partindo de uma
citação de Regis Débray, um dos principais expoentes teóricos e práticos do 'foquismo' e/ou do
'fidelismo', que dizia em seu livro Revolução na Revolução que "o exército popular será o nucleo do
O documento do Comitê Central também polemiza fundo com a teoria do 'foco'. Segundo o PC
do Brasil,
"tal teoria subestima os papeis desempenhados pelo partido e pelas massas. Situa-se
no plano puramente militar. Segundo esta idéia, é suficiente um punhado de
46
Idem, p. 51.
47
Idem, p. 53.
48
Idem, pp. 53-4.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 48
elementos corajosos e bem armados, em lugares inacessíveis, para levar
adiante a revolução. Em essência, é a falsa teoria dos heróis ativos que arrastam
atrás de si as multidões. Indubitávelmente, a luta armada se inicia, em geral, a partir
de pequenos grupos de combatentes, de homens decididos e convencidos até a morte
da justeza da causa que defendem... Mas estes grupos devem estar profundamente
identificados com as aspirações populares, em particular da região onde operam,
necessitam atuar em função dos interêsses das massas, contribuir para despertar sua
consciência política e ajudar sua organização. A ação militar destes grupos não é
algo isolado. É parte da atuação geral do Partido em todo o País. Ao mesmo tempo
que eles desenvolvem sua atividade, o Partido realiza intenso trabalho político e de
organização entre as massas, sustenta por todos os meios os combatentes armados e
trabalha permanentemente pelo surgimento de novos e novos grupos. Pouco a pouco,
a luta armada adquire prestígio e vai-se estendendo entre as massas até se
transformar, num processo mais ou menos longo, em guerra de todo o povo."49
Numa comparação entre a teoria do 'foco' e a da 'guerra popular', o documento estabelece que
"Tanto a teoria do «foco» como a da guerra popular têm como premissa o amplo
emprego da tática de guerrilhas. Mas, enquanto na primeira os grupos se bastam a si
mesmos e com suas ações esperam que as massas os sigam, na segunda teoria, os
grupos guerrilheiros se apoiam nas massas e no Partido, esforçam-se para
estabelecer bases de apoio no campo e sua atuação está fundamentalmente voltada
para ajudar as próprias massas a se levantar e a fazer a sua guerra."50
49
Idem, pp. 54-5.
50
Idem, p. 55.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 49
revisionismo... [como o PCUS] também revisa o marxismo, mas parte de posições de
«esquerda»."51
esquerda brasileira no final da década de sessenta52. O partido também se diferenciará delas ao não
participar do amplo engajamento destas em ações de guerrilha urbana, ou, como preferem os militares, de
'terrorismo'53.
policiais mais severas, como as que ocorriam com as organizações nela engajadas. Ao que tudo indica, as
forças de repressão política priorizavam naquele momento o combate à guerrilha urbana e aos
agrupamentos que a promoviam, deixando um pouco mais à vontade, naquele lapso de tempo, aqueles
Um argumento que pesa em favor de tal atitude do partido é o de que ela lhe permitiu a
preservação de forças. De fato, a sábia discrição com que o PC do Brasil desenvolverá a sua atividade lhe
51
Idem, ibidem.
52
As principais eram: ALN, FALN, MR-8, PCBR, Dissidência Leninista, Dissidência Universitária, Dissidência
Estudantil, MOLIPO, Tendência Leninista, Corrente Revolucionária, PRT, FBT, OC-1º de Maio, POLOP, POC, MAR,
MNR, FLN, Ala Vermelha do PC do B, MEP, MRT, PCR, VPR, REDE, VAR-PALMARES, e COLINA. Quase todas, de
maneira direta ou indireta, são dissidências do 'Partidão', ou dissidências de organizações dissidentes deste. Da mesma
forma quase todas se orientam pela teoria do 'foco' e se consagrarão à guerrilha urbana. Duas entre elas, a ALN e o
COLINA, se auto-proclamam 'terroristas', apesar desse adjetivo ser utilizado fartamente pelo regime militar para designar
todos os movimentos de contestação política de caráter mais radical.
53
Somente o PC Brasileiro, o PC do Brasil, o Partido Operário Revolucionário - Trotsquista (POR-T) e a Ação Popular
(AP) fugirão à regra do total engajamento na guerrilha urbana. O primeiro, por que perseverou na linha pacifista adotada
ainda no período pré-1964; os demais, por seguirem diferentes concepções da luta armada revolucionária.
54
Muito embora esta 'trégua' não declarada possa ser deduzida, ela deve ser, contudo, bem relativizada, pois durante todo o
período em questão, o PC do B, embora não fosse o alvo prioritário, nem por isso deixou de ser perseguido e teve que se
impor a mais severa clandestinidade para que conseguisse sobreviver. Feitas estas ressalvas, segue-se, nessa passagem, a
hipótese defendida originariamente pelo historiador Jacob Gorender, op. cit., p. 207.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 50
possibilitará colocar em funcionamento a mais importante tentativa de derrubada violenta do
Em maio de 1968, surge outro importante documento do Comitê Central, Preparar o Partido
para Grandes Lutas55. Mais uma vez a questão da luta armada é abordada. A diferença é que este é mais
enfático.
trata-se de um alerta geral ao efetivo partidário. A linguagem utilizada tem um 'quê' de véspera de grande
acontecimento, um tom solene e impaciente de quem parece estar prestes a realizar um objetivo há muito
desejado. É como que um prenúncio de que o partido a qualquer momento poderá se entregar, enfim, à
Nele, há fartura de explicitações que já permitem uma maior aproximação da fisionomia final do
quinto item do plano tático do PC do Brasil - a luta armada. Trata-se, verdadeiramente, do último passo
55
In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil. Op. cit., pp. 71-92.
56
Idem, pp. 85-87.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 51
Nesse mesmo período também são publicados diversos artigos no jornal do partido, A Classe
Operária. Em todos, o tom é o mesmo: os militantes devem estar prontos pois o momento do
desencadeamento da guerra popular se aproxima. Da mesma forma que nos documentos emitidos pelo
Comitê Central, pode-se perceber, pelo exame do conjunto dos artigos aparecidos no jornal, que uma
compreensão político-militar está a se cristalizar, se desenhando cada vez com linhas mais perceptíveis.
Mas ainda faltava o documento definitivo sobre a questão da violência revolucionária e seu
caminho no Brasil. Contudo, terá que se esperar ainda o início de 1969 para que, finalmente, se possa ver
I . 3 . 1 - Da sua importância
Em janeiro de 1969, o Comitê Central do PC do Brasil aprova e faz publicar o documento Guerra
Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil que, no jargão cifrado dos porões da rigorosa
clandestinidade vivida pelo partido, logo ganha o apelido diminuitivo de 'GPop', senha que será utilizada
em todas as anotações e documentos secretos relativos à luta armada. A sua primeira redação correu por
conta da 'comissão militar', eleita na VI Conferência. O documento foi então levado à apreciação do
Comitê Central que o aprovou. Estava, pois, definida, e formalizada, a linha militar do Partido Comunista
do Brasil.
Esta condição faz do 'GPop' um incontornável instrumento de estudo para quem quer que queira
Trata-se de documento de valor histórico inestimável, posto que representa a síntese da evolução
documento-base que subsidiará a ação armada revolucionária do PC do Brasil levada a termo às margens
do Araguaia.
E é por este grupo de razões que nos dedicaremos a um exame mais detalhado de seu conteúdo.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 53
quando da aparição do 'GPop'. Cerca de um mês antes, mais exatamente a 13 de dezembro de 1968, a
ditadura militar editava o Ato Institucional n° 5 (AI-5), o que fazia recrudescer ainda mais a já brutal
repressão política. Era o endurecimento do regime militar, o que alguns historiadores chamam de o 'golpe
dentro do golpe'.
policiais e militares. Põe-se em funcionamento um enorme aparelho repressivo que inclui não só os
chamados orgãos de informação e segurança interna, como as próprias FF.AA., que criam os seus
próprios mecanismos de combate à 'subversão'. Começava então o período mais selvagem do regime
militar, a época que ficou conhecida como sendo a do 'terrorismo de Estado', onde nem os mais
Em agosto de 1969, para evitar a posse do vice-presidente da república, Pedro Aleixo - um 'reles'
Costa e Silva, afastado por motivo de doença. Os militares desobedeciam assim, mais uma vez, aos
Tal operação guindou a 'linha dura' militar à chefia do governo. Em realidade, a sua influência há
muito vinha crescendo, podendo mesmo a ela ser atribuida a idéia da decretação do AI-5, assim como
dos demais atos institucionais e decretos de igual teor discricionário que a ele se seguiram.
Em outubro do mesmo ano, este trio fardado passa o cetro para o General Emílio Garrastazu
Médici, que durante o seu mandato consolida a hegemonia política da tendência de extrema-direita
militar.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 54
Se antes do AI-5 a esquerda, na sua maior parte, já estava convencida da necessidade
do emprego da violência revolucionária para destronar os militares do Poder, a partir do final de 68, tal
via parecia cada vez mais incontornável, e se tornou praticamente impensável outra solução. O clima de
guerrilhas conduzida pelo Viet-Cong (e FLN) contra as poderosas tropas norte-americanas obtinha
no continente africano; os jovens se revoltavam pelo mundo afora, tanto no mundo capitalista como no
bloco soviético; movimentos de guerrilhas surgiam como cogumelos após a chuva na Asia e América
Latina; conflitos raciais sacudiam os EUA; a China realizava a sua polêmica 'revolução cultural'. Em
suma, havia um clima de radicalização no 'ar', que vinha do mundo inteiro e que se chocava com as
nuvens negras da repressão militar no Brasil. Assim, a opção pelas armas não era nada de 'exotico' ou 'de
outro mundo', ao contrário, parecia haver uma certa complascência generalizada para com a luta armada.
As guerrilhas e seus líderes tinham uma aura de romantismo, sendo alguns de seus mártires rapidamente
transformados em ídolos da juventude, como foi o caso do 'Che'. A vitória dos guerrilheiros era tida
como apenas uma questão de tempo, posto que, conforme se pensava então, este método de luta era
imbatível57. Tudo parecia confirmar as palavras de Mao Tsé-tung de que "... não é possível transformar o
57
Para citar somente um exemplo, ver a obra de Robert Taber, Teoria e Prática de Guerrilha, Lisboa, Iniciativas Editoriais,
1976 (1ª ed. 1965).
58
Mao Tsé-tung, Escritos Militares, Goiânia, Libertação, 1981, p. 389, v. II.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 55
Assim, até mesmo personalidades independentes, isto é, sem filiação partidária, passam a
endurecer o tom de seus discursos, tais como o famoso sociólogo brasileiro de expressão internacional,
Josué de Castro59, que à essa mesma época declarou a um orgão da imprensa espanhola:
"Eu, que recebi um Prêmio Internacional da Paz, penso que, infelizmente, não há
outra solução que a violência para a América Latina. Só vejo uma resposta para os
problemas da América Latina: a revolução... a luta"60.
É nesse quadro de exaltação extrema dos ânimos políticos de governo e oposições que vê a luz
59
"O professor Josué de Castro, ganhador de numerosos prêmios internacionais, é autor entre outras das célebres obras
"A Geografia da Fome" e "A Geopolítica da Fome". Foi presidente da Organização de Alimentação e Agricultura das
Nações Unidas (FAO). Antes do golpe de 1964, era o representante do Brasil na Conferência de Desarmamento de
Genebra, quando teve seus direitos políticos cassados." [Extrato dos comentários da Editora Brasiliense no livro de Josué
de Castro, Sete Palmos de Terra e um Caixão, 2ª ed., 1967]. Citado em nota de rodapé por João Batista Berardo, Guerrilhas
e Guerrilheiros no Drama da América Latina, SP, Ed. Populares, 1981, pp. 281-2.
60
Cf. Josué de Castro (entrevista). In: Jornal Arriba, 14/12/68. (Citado por João Batista Berardo, op. cit., p. 280).
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 56
I . 3 . 3 - O conteúdo do 'GPOP'
"o povo, mais dia menos dia, terá que recorrer à luta armada. Não por amor à
violência ou pelo absurdo de derramar sangue. Mas sim como resposta à política
terrorista da reação interna e do imperialismo norte-americano. Onde há opressão,
torna-se inevitável a luta revolucionária."61
Nessas linhas introdutórias, o documento também cuida de revelar as referências teóricas levadas
A primeira subdivisão do documento cuida dos "fatores que influem na definição do caminho
61
"Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil". In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil, op.
cit., p. 116 (Ver este documento na íntegra em Anexos).
62
Idem, p. 117.
63
Idem, p. 119.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 57
Entre os primeiros, ou seja, os aspectos que favoreceriam a eclosão e o desenvolvimento da
revolucionário:
"[1] as Forças Armadas... em certa medida são fortes. O Exército brasileiro é o mais
numeroso e bem equipado da América Latina... [2] o povo brasileiro não possui ainda
64
Ibidem.
65
Idem, pp. 119-20.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 58
suas forças armadas e sua experiência de luta armada, nas últimas décadas,
é muito limitada. [3] Não há tradição de grandes lutas no campo. O movimento
revolucionário no interior desenvolve-se lentamente, está atrasado em relação ao que
se processa nas cidades... [4] ao contrário do que acontecia antes de 1930, quando
eram acentuadas as contradições inter-imperialistas no Brasil e, em conseqüência, as
classes dominantes se dividiam... presentemente predomina de forma quase total a
influência norte-americana... A divisão entre as classes dominantes se dá,
fundamentalmente, entre os que são ligados a certos interêsses nacionais e os que se
encontram mais diretamente unidos aos monopólios ianques... A possibilidade de um
conflito armado entre as classes dominantes... é pouco provável."66
Concluindo a primeira seção, o documento procede a um balanço entre os fatores pró e contra o
empreendimento da luta armada. Diz que os aspectos supra citados são "fatores desfavoráveis e indicam
que a luta será dura e prolongada"67. Contudo, demonstrando que tal balanço pendia, na opinião do PC
do Brasil, para o lado dos revolucionários, o documento avalia que "estes fatores são transitórios"68,
66
Idem, p. 121.
67
Ibidem.
68
Ibidem.
69
Idem, p. 122.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 59
Com uma avaliação político-militar tão otimista das possibilidades militar-revolucionárias que
ofereceria a realidade nacional; avaliação esta, sem embargo, marcada por um certo triunfalismo que,
mesmo anotadas as ressalvas, praticamente proclama de antemão a vitória das forças revolucionárias e o
total esmagamento das fileiras inimigas, o documento 'GPop', na sua seção II, repertoriando quais seriam
"1) A luta armada... terá um profundo caráter popular... O fato de ser o Brasil um
país dependente e de a terra estar monopolizada... imprime à revolução um caráter
nacional e democrático, o que permite a mobilização de imensas forças sociais para
derrubar o atual regime reacionário.
2) As grandes cidades não podem ser o cenário principal... Nelas estão
concentrados os contingentes mais numerosos e mais fortes... do inimigo...
Isto não significa que... não terão papel a desempenhar... A correta e estreita
coordenação das atividades revolucionárias, armadas e não-armadas, no campo e nas
cidades é o caminho para tornar vitoriosas as forças do povo...
O interior é o campo propício... Aí existe uma população que vive no abandono... as
tropas reacionárias atuarão em ambiente adverso...
3) Os brasileiros não podem esperar uma vitória rápida... [Será] necessário destruir
as forças armadas dos reacionários... Será preciso derrotar também numerosas tropas
norte-americanas... Tal a importância do Brasil... será prolongada a guerra de
libertação...
4) A guerra popular exigirá grandes recursos humanos e materiais... Não se deve
alimentar ilusões no apoio logístico do exterior... o povo fará a sua guerra apoiado
principalmente nas próprias forças.
5) ... a guerra de guerrilhas é o instrumento adequado para iniciar a luta armada e
o ponto de partida para construir o exército regular...
6) ... [para] travar combates decisivos pela tomada do Poder... será indispensável
construir o exército popular.
7) ... é vital a construção de bases de apoio no campo... sem elas é impossível
desenvolver a guerra de guerrilhas e construir um poderoso exército popular...
70
Idem, p. 123.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 60
... é a garantia fundamental para a preservação e o desenvolvimento das
forças revolucionárias, a base de sustentação das guerrilhas e do exército popular
para uma guerra prolongada...
...[Estas bases] não poderão surgir de uma hora para outra. Já na preparação... é
imprescindível ter em vista zonas propícias... e nelas trabalhar com esta perspectiva...
Os guerrilheiros operarão em áreas determinadas... terão grande mobilidade, não se
apegando à defesa de territórios, mas não serão jamais grupos errantes [referência
crítica indireta ao 'foquismo']. Tendo como função precípua ganhar as massas para a
revolução, tratam de lançar raízes profundas entre os habitantes da área... os
defendem das violências de 'jagunços' e soldados... procuram despertar sua
consciência política e estimulam sua organização...
8) ... para acumular forças e adquirir poderio, os combatentes do povo, na
primeira fase da guerra popular, terão que desenvolver sua luta no quadro da
defensiva estratégica.
9) Sem uma política justa... não poderá alcançar êxito. Sendo uma guerra das
massas, ela deverá expressar as aspirações mais sentidas do povo... Se a luta armada
apresentar um programa político que não corresponda à realidade estará
condenada de antemão ao fracasso.
... deverá desfraldar bandeiras políticas bem amplas...
... nas áreas onde obtiver a vitória, criará o poder popular e executará seu
programa" [todos os grifos são nossos].71.
documento retoma e sistematiza as críticas que vinha fazendo desde o golpe militar de 1964 às diferentes
Também procede a um breve exame crítico e autocrítico das várias tentativas de luta armada
levadas a cabo em território nacional nos últimos cinquenta anos. A análise revisita as principais, desde
aquelas promovidas pelos levantes 'tenentistas', passando com destaque pela 'Coluna Prestes' e pela
71
Idem, pp. 123-32.
72
Idem, pp. 135-9.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 61
73
Insurreição de 1935 até chegar ao fracassado 'levante dos sargentos' , já durante o governo do
Presidente João Goulart. Nestas, e em outras duas ocorridas após o golpe militar74, o PC do Brasil
enxerga a influência, e até mesmo a preponderância, de uma concepção que privilegiava o método de
'levantes de quartel' e/ou 'militaristas', 'foquistas' ou não. A opinião expressa é a de que nenhuma destas
propostas são capazes de levar a bom termo a guerra revolucionária em solo brasileiro.
Mas, sobretudo, o que esforça-se por demonstrar, em alto e em bom som, é a distância entre as
idéias expostas no 'GPop' daquelas outras defendidas pelos adeptos do 'foquismo'. Neste particular, o
Em sua seção IV, o documento põe-se a discutir questões de ordem mais prática, tais como o
Quanto ao início, diz-se que não se trata de questão de somenor importância. Segundo o
documento, nesse momento o 'voluntarismo', que despreza as condições concretas para se deflagrar a
"O início da guerra popular não pode ser um ato voluntarista desta ou daquela
corrente política. ... surge numa determinada situação em que se torna necessária a
73
Revolta dos sargentos da Aeronáutica e Marinha, motivada pela cassação do mandato de deputado estadual pelo Rio
Grande do Sul, sargento Aimoré Cavaleiro, pelo Supremo Tribunal Federal. O teor da sentença argumentava com a
inelegibilidade de subalternos das FF.AA. e se constituia também numa ameaça ao mandato do único sargento que se
elegera deputado federal, Antônio Garcia Filho. Liderada pelo sargento Antônio Prestes de Paula, a rebelião estourou em
12/09/63 e foi derrotada por forte repressão promovida por tropas do exército. Ver: Jacob Gorender, op. cit., pp. 56-7.
74
Tratam-se das tentativas de militares nacionalistas de criação de 'focos' revolucionários para derrubar a ditadura militar:
a do Coronel Jefferson Cardim, no sul do País, em março de 1965; e, a outra, em abril de 1967, de um grupo de ex-militares
e civís ligado ao ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, agrupados no Movimento Nacional Revolucionário
(MNR). Teve lugar na divisa dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo e ficou conhecida como a 'Guerrilha de
Caparaó', se bem que chamá-la de 'guerrilha' talvez não seja apropriado, pois ela foi desmantelada antes mesmo de realizar
qualquer operação. Para saber mais, consultar: Jacob Gorender, op. cit., pp. 123-6; e, João Batista Berardo, op. cit., pp. 252-
5.
75
Ver notadamente: "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar", In: Guerra Popular - Caminho
da Luta Armada no Brasil, op. cit., pp. 23-70.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 62
passagem da fase da luta de massas não-armada para a fase da luta
armada de massas"76.
Em seguida, alerta para outro perigo - o 'espontaneísmo' - que seria o reverso da medalha, ou
(ESG)78, segundo as quais a guerra revolucionária seria uma criação artificial e alimentada do exterior, o
internos, obedece a leis objetivas... ... é produto do agravamento das contradições de classe"79.
Para o 'GPOP',
E adverte:
"Mesmo que a situação esteja madura, impõe-se que os combatentes tenham forjado
solidos vinculos com as massas... e saibam formular as suas reivindicações, conheçam
76
"Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil". In: Op. cit., p. 141.
77
Ibidem.
78
Escola de formação do alto oficialato das FF.AA. brasileiras.
79
Idem, p. 142.
80
Ibidem.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 63
perfeitamente o terreno... e que este, por suas condições geográficas, seja favorável
às forças revolucionárias e desfavorável ao inimigo... [e] que se tenham preparado
física e moralmente"81.
Apesar de o problema do início da luta armada ser considerado muito relevante e ser
cuidadosamente tratado nas páginas do 'GPop', ele não é visto como "algo que apresente obstáculos
intransponíveis"82. Pelo contrário, para o PC do Brasil são múltiplas as motivações que dariam ensejo ao
Entretanto, muito embora o interior seja sem duvida alguma considerado o cenário fundamental
para o início e a realização dos movimentos da guerra popular, o documento abre a hipótese, embora
considerando-a muito pouco provável, de que tal possa se dar num cenário urbano. Mesmo
Retornando ao terreno das probabilidades que considera mais realistas, o documento retorna ao
'locus' onde o PC do B crê que quase fatalmente se dará o começo das operações armadas: o interior.
81
Ibidem.
82
Ibidem.
83
Idem, pp. 142 e 144.
84
Idem, p. 145.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 64
Afirma que, não importando qual seja o motivo detonador da guerra popular, "a luta armada
A importância conferida ao início da guerra popular é atestada pelas longas linhas dispensadas ao
problema. De fato, ele é visto como o período fundamental, onde a sorte do movimento armado é
definida. Assim, o documento estabelece desde então alguns pontos a serem estritamente observados
"A fase inicial será a mais difícil... O inimigo tem condições de concentrar grandes
E conclui:
"... A guerrilha sobreviverá se tiver apoio das massas e grande mobilidade para
impedir o cerco. Deve saber ocultar-se, cortar contacto com o inimigo e romper o
cerco quando isto acontecer. Terá que contar com refugios seguros.
No início a preocupação... será menos a de travar combates... e mais a de fazer
propaganda revolucionária entre as massas"87.
Na quinta seção, o documento trata de estabelecer claramente quem são os seus inimigos e de
avaliar a sua força. Para o PC do Brasil, os principais inimigos a serem batidos através da guerra popular
são"... as forças reacionárias internas... as atuais Forças Armadas e, posteriormente, com tropas norte-
Ressalta o documento que as FF.AA., desde o golpe de 64, estão em intensa preparação material
e treinamento de seu pessoal para enfrentar movimentos populares de contestação de maior monta e
85
Idem, p. 146.
86
Idem, p. 147.
87
Ibidem.
88
Idem, p. 149.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 65
89
mesmo aquilo que "mais temem... o surgimento da guerra popular" . Para o PC do Brasil, a verdade é
Contudo, na análise do PC do Brasil, isso não a salvará de uma derrota acachapante. É o que se
"As Forças Armadas... não são tão fortes como procuram aparentar. Ao contrário,
são bastantes vulneráveis. A causa que defendem é repudiada... Seu moral é
alicerçado em princípios antidemocráticos e antinacionais. Não resistirá aos embates
de uma guerra popular. Os soldados são oriundos do povo e não pensam... [como] os
generais fascistas... Também sargentos e alguns oficiais são sensíveis à luta
patriotica... Numa luta encarniçada... tendem à desagregação e não terão grande
combatividade. Sua tradição militar é quase nula. Empenharam-se pouquissimas
vezes em renhidos combates. Nos últimos anos, dedicaram-se especialmente a
prender, espancar e torturar presos, manifestação evidente de extrema covardia...
O inimigo acabará afogado no oceano da guerra popular."91
sobretudo, com as ações de guerrilha urbana promovidas por certos grupos então em plena atividade nas
89
Idem, p. 151.
90
Ibidem.
91
Idem, p. 153.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 66
cidades, às vezes inclusive descambando para o puro 'terrorismo', afirma numa referência
pretensamente indireta, mas, em realidade, com endereço bem preciso e conhecido, que as ações destes
'grupos urbanos de auto-defesa' "... em nada serão semelhantes aos actos terroristas actualmente
Aliás, sobre os assaltos a bancos, seqüestros, etc., ou seja, sobre as ações das chamadas guerrilhas
urbanas, há uma frase muito emblemática do pensamento do PC do Brasil a este respeito, de um dos
principais líderes do partido que dizia sempre a seus amigos: "Isso pode levar ao banditismo"95.
No seu epílogo, o 'GPop' se ocupa de historiar todo o processo de discussão que levou à sua
elaboração, assumindo então, de forma sintética, o papel de documento definitivo sobre o programa
militar do partido.
Interessante é perceber que o PC do B não omite, pelo contrário, reafirma a fonte onde foi beber
para erigir o documento em questão. Afirma claramente que depois de percorrer, desde 1962, um longo
percurso de estudo e reflexão sobre a complexa realidade brasileira, o "estudo das obras de Mao Tsé-
Enrigecendo ainda mais o discurso de que todo o trabalho partidário deverá estar subordinado à
92
Idem, pp. 153-4.
93
Ibidem.
94
Idem, ibidem.
95
Frase atribuída a Pedro Pomar por Arnaldo Mendez, "Depoimento de um Amigo". In: Luís Maklouf e alii, Pedro Pomar.
SP, Brasil Debates, 1980, p. 77.
96
In: Op. cit., p. 156.
Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil 67
"A essência estratégica do Partido, definida em seu Manifesto-Programa, é a
conquista de um governo popular revolucionário através da luta armada, da guerra
popular. A [ela] subordina-se a táctica do Partido... Toda a actividade
partidária...Tudo quanto realizarem os militantes precisa-se ligar... a esta
finalidade... Qualquer que seja o tipo de trabalho... ou o lugar em que se realize, seu
conteúdo fundamental será sempre a preparação e o desencadeamento da guerra
popular... [todos os comunistas] precisam dominar e aplicar a linha política e estudar
a arte militar"97.
visando a que os comunistas estejam prontos para colocarem em prática as linhas do documento 'GPop'.
Desta forma, pode-se notar nas seguintes palavras, que em muito se assemelham às de um edital de
convocação militar, em tempo de guerra, colocando a tropa em 'estado de prontidão'. Tal tom grave, hoje
é testemunho da seriedade com que o partido se propunha então a tornar realidade o que estava
propondo:
Se é verdade que desde 1962 o PC do Brasil rufava os seus 'tambores de guerra', fustigando e
hostilizando violentamente a ditadura militar no Poder, ao mesmo tempo em que anunciava sua
convicção e firme intenção de liderar um movimento popular armado contra ela, sem duvida, é a partir de
1969, com a publicação do documento Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil, que se
97
Idem, pp. 156-8.
98
Idem, pp. 158-60.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 68
pôde verificar que uma declaração aberta de guerra acabara de ser decretada. Não tardaria a
climax da repressão policial-militar. A alegria e a irreverência, traços tão peculiares à juventude brasileira,
mesmo àquela mais engajada políticamente, dava lugar a uma vida repleta de coragem e ousadia, mas
também de medo e incerteza, traição e alienação. Ao mesmo tempo, aquela parcela socialmente mais
combativa, iniciava-se na dureza da clandestinidade. Esta nova vida, plena de disciplina e privações,
impunha comportamentos e atitudes rigorosas, muito díspares daquela experimentada até então. Tais
mudanças, bruscas, colocavam-se com força de obrigação, a qual não se podia simplesmente ignorar. Era
uma nova existência, cheia de perigos que traziam consigo um sem número de precauções que, uma vez
não odedecidas à risca, significavam - não raro - a perda da própria vida e, até mesmo, a de várias outras
pessoas.
Era tempo de deixar de lado o velho modo de viver e atuar. Para muitos, era chegado o tempo de
CAPÍTULO
I I
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 69
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 70
( 1966 - 1975 )
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 71
II . 1 - A Inação Aparente
Como vimos, a linha político-militar do PC do Brasil foi elaborada entre os anos de 1966 e 1969,
tendo como marcos, inicial e final, as Resoluções da VI Conferencia Nacional e o documento Guerra
Constitui, pois, grande surpresa quando nos deparamos com o fato de que o PC do B não
esperou a definição formal desta linha, ou pelo menos a sua publicação, para se consagrar à preparação
De fato, a chamada Comissão Militar ou Especial, adjunta ao Comitê Central, composta por
naquele evento, ao que tudo indica, trabalhou incessantemente desde então e, como se poderá verificar,
Donde a conclusão de que a chamada 'inação' de que o partido era acusado, notadamente por
movimentos de dissenção interna, não existiu. Na verdade, o PC do B praticou o que dizia, ou seja,
pregou que a luta armada era o meio de se contrapor à ditadura militar no Poder e tratou de prepará-la e
executá-la.
Ao mesmo tempo, tal procedimento nos indica que o fato de o partido só vir a publicar o 'GPop'
em princípios de 1969, não significava que inexistisse uma linha militar partidária. Pelo que podemos
inferir, o que acontecia era antes uma medida diversionista, que visava a não atrair a atenção da repressão
foram os cuidados tomados pela Comissão Militar, no tocante à preservação da segurança, que nem
mesmo o conjunto da direção central do partido tomara conhecimento de que a execução do 'ponto
Tal procedimento valerá ao PC do Brasil críticas acerbas como as que lhe foram feitas pelo seu
ex-militante, Wladimir Pomar, de que "não foi possível nem mesmo ao conjunto da direção do PC do B
Por outro lado, lhe valerá também elogios insuspeitos de Jacob Gorender, historiador, membro do
PC Brasileiro e aliado de Prestes à época da cisão do 'velho' PCB, posteriormente um dos fundadores do
PCBR101. Não obstante ser confessadamente um adversário histórico do PC do Brasil, ele afirmará
deste para a luta armada, a sua conduta tinha sido dígna de nota, como pode-se ler no seguinte trecho:
99
Ou 'quinta tarefa', era uma referência ao quinto ítem da tática traçada na VI Conferência Nacional, assim resumido no
documento "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar", de novembro de 1967: "5 - Utilização de
todas as formas de luta, tanto abertas como clandestinas, preparação e desencadeamento da luta armada, com o propósito
de desenvolver a guerra popular." (In: Guerra Popular..., op. cit., p. 37).
100
Wladimir Pomar, op. cit., 17.
101
O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, PCBR, surgiu de dissidência do 'Partidão' em 1967/68. Reunia alguns
líderes históricos do 'antigo' PCB, tais como Mário Alves, Apolônio Carvalho, além do próprio Gorender. Sobre a trajetória
do PCBR, ver: Antônio Caso, A Esquerda Armada no Brasil - 1967/1971 (ed. portuguesa), Lisboa, Moraes Editores, 1976,
p. 29; e, Jacob Gorender, op. cit., pp.101-6 e 179-83.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 74
cabe concluir que se tratou de notável façanha. A própria guerrilha esteve ativa
durante cerca de dois anos [sic!], o que representou façanha ainda mais notável.
Mas, deixando de lado as opiniões emitidas a este respeito, o que importa mesmo é verificar que a
forma com a qual o PC do Brasil levou a efeito a preparação - discreta e silenciosa - foi um dos pontos
altos na avaliação que se pode fazer de suas ações militares no período e, sem embargo, uma das razões
que, juntamente com o não envolvimento nas ações de guerrilha urbana, lhe permitiram a paciente e
meticulosa preparação do movimento guerrilheiro de maior fôlego que este período conheceu, a
Guerrilha do Araguaia.
Pensamos sinceramente que, agindo de outra forma, fazendo 'amplas discussões', como pretende
W. Pomar, fatalmente todos os anos de preparação militar do PC do Brasil teriam sido descobertos,
abortando desta forma todo o processo. É claro que se poderia argüir, como o faz o autor citado, da
decisivo para o partido. Contudo, tal argüição teria que nos levar, sob pena de cometermos uma
abstração total da conjuntura política que então se vivia, a uma discussão mais ampla, sobre a
Tal ponto de vista nos parece tanto mais plausível quando tomamos consciência de que a
vastíssima rede de informações com que contava os órgãos repressivos incluía, como se verificará mais
tarde, até mesmo um membro da alta direção do partido, que tanto prejuízo causará à organização,
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 75
inclusive o assassinato em 1976 de importantes dirigentes do PC do Brasil e mesmo de um de
II . 1 . 1 . a - A opção teórica
As opções pela teoria da 'guerra popular'; pela utilização das táticas de guerrilhas no seu
princípio; pelo interior do País, como cenário fundamental da luta armada; e, da importância fundamental
do campesinato, como força combatente fundamental, entre outras, não couberam à Comissão Militar,
Coube à Comissão Militar, então, a tarefa de estudar de maneira mais profunda os textos
como, verificar em que condições aqueles preceitos gerais poderiam ser aplicados concretamente,
Sobretudo foram estudados à exaustão as obras de Mao Tsé-tung, de onde os artífices da linha
102
Jacob Gorender, op. cit., p. 207.
103
O conjunto de obras de referência incluía desde obras de autores considerados clássicos na questão da guerra, tais como
Sun Tzu, Clausewitz e Maquiavel, até teóricos mais recentes da guerra de guerrilhas, com destaque para os Escritos
Militares de Mao Tsé-tung, mas também para textos de autores vietnamitas como os de Giap ou aqueles de Van Thieu.
Além destes, os membros da Comissão Militar também estudaram as obras de Fidel, Guevara e Débray, contudo, como
pôde-se ver no capítulo anterior, as teses destes últimos serão desprezadas e criticadas.
104
Ver supra, ítem II. 3. 3, pp. - .
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 76
II . 1 . 1 . b - A escolha de 'áreas propícias'
Lugar de destaque ocupa nas idéias militares do líder chinês, o primado da construção do que ele
chamava "bases de apoio"105, que se constituiriam na retaguarda da guerrilha. Segundo Mao, sem elas
um comando guerrilheiro não seria mais que um "bando rebelde errante"106, sem nenhuma possibilidade
de êxito.
A este ítem a Comissão Militar também dispensará a maior atenção, pois, na sua concepção, sem
que os guerrilheiros estabelecessem profundas ligações com as massas da região onde operam, a guerra
popular não obteria sucesso. Condição sine qua non para que se conseguisse isso era que os guerrilheiros
agissem em "áreas determinadas"107, embora ressalte-se que eles não se apegariam "à defesa de
territórios"108, para que com o tempo, aquelas áreas se transformassem em "sólidos pontos de apoio"109.
Note-se, de passagem, que este é um dos pontos principais de diferenciação entre as teorias de guerra de
Ajuntava-se a tal imperativo um outro, de igual peso, a procura de cenários onde as condições
dificultassem a ação das forças repressoras inimigas. A indicativa mais geral já havia sido dada por
diversas vezes desde 1966: tal cenário seria no interior, "o elo mais débil da dominação das forças
reacionárias no País"110, contudo cabia à Comissão Militar determinar onde exatamente, na imensidão
105
Mao Tsé-tung, "Criação de Bases de Apoio". In: Escritos Militares, op. cit., cap. VI, pp. 290-306.
106
Idem. In: Op. cit., p. 291.
107
"Guerra Popular...". In: Op. cit. p. 130.
108
Ibidem.
109
Ibidem.
110
Idem. In: Op. cit., p. 125.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 77
Muito embora não contemos com nenhum dado que possa lançar luz sobre como
procedeu-se para efetivarem-se as ditas escolhas, pode-se facilmente supor, pelas dimensões continentais
do País, que tal tarefa não deve ter sido de forma alguma fácil; que deve ter implicado em inúmeras
viagens, coletas de informações geográficas, etc., antes de que se pudesse chegar a alguma proposta
conclusiva.
Uma vez definida a linha política geral que seguiria a ação armada do PC do Brasil e eleitos os
cenários onde estas se efetivariam, faltava somente a escolha dos militantes para executarem a tarefa
Embora não tenha vindo à tona nenhum documento partidário que informe os critérios usados
para que um militante viesse a ser incluído na relação dos escolhidos, nas entrelinhas dos documentos
Assim, por exemplo, podemos ler que o partido deveria destinar ao trabalho no campo "o maior
número de militantes, que sejam combativos, abnegados e com capacidade de ligar-se às massas,
pessoas que se disponham a viver de fato no interior, a integrar-se com a população rural"111.
Humildade e modéstia são outras das qualidades exigidas e constantemente reafirmadas, segundo
o partido, elas seriam necessárias pois implicavam em reconhecer o óbvio, ou seja, que
"Os comunistas têm ainda pouca experiência de trabalho no campo. Por isso,
modestamente, devem aprender com as massas do interior... Não podem... querer
111
Idem, p. 157.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 78
impor seus costumes e as regras de comportamento próprios dos grandes centros
urbanos"112.
Outros atributos citados que comporiam o perfil ideal do combatente da guerra popular, para o
"Os membros do PC do Brasil têm obrigação de aparecer diante das massas como os
elementos mais destemidos, abnegados e capazes de indicar proposições justas... O
Partido necessita de homens e mulheres capazes de assimilar o estilo bolchevique de
Lênin e Stálin, a tenacidade e a firmeza revolucionária dos comunistas chineses e
albaneses, o espírito de decisão e a fibra dos combatentes... do Vietnam... [que]
saibam se orientar nas condições mais difíceis e considerem que o êxito da linha do
Partido está em suas mãos"114.
Outro fator que definiu o destacamento de militantes para a tarefa 'especial' foi o fato de estarem
'queimados', o que queria dizer no jargão da clandestinidade, estar sob suspeição dos órgãos de
Pelo menos três pessoas que estiveram na Guerrilha do Araguaia e que sobreviveram, Dower
Cavalcante, José Genoíno Neto e Criméia Alice Schmidt de Almeida, à época conhecidos líderes
estudantís, afirmaram que foram designados para a luta armada, primeiro por que assim o quiseram e,
segundo, por que suas vidas corriam perigo nas cidades, mesmo estando usando nomes falsos115. É
provável que muitos outros também tenham sido transferidos pela mesma razão.
112
Idem, ibidem.
113
Idem, p. 158.
114
"Preparar o Partido para Grandes Lutas". In: Op. cit., p. 92.
115
Cf. Nonato Albuquerque. "Em busca da guerrilha perdida, entrevista com Dower Cavalcante". In: Jornal Vida & Arte,
Fortaleza, 18/05/1991, caderno B; Cf. "Carta de José Genoíno Neto à Justiça Militar" (SP, 02/1975). In: Fernando Portela,
Guerra de Guerrilhas no Brasil, 5ª ed., Global, 1981, p. 202; e, Cf. "Entrevista com Guerrilheiros Hoje - Elza Monnerat e
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 79
Ao que tudo indica, a estes dois fatores se somava um terceiro, o da disposição pessoal
do militante de se deslocar para regiões inóspitas e de aceitar que tal deslocamento era irreversível, ou
seja, que, por motivos de segurança, não haveria a possibilidade de volta, conforme narrou Dower
Cavalcante116, muito embora, como se verá, exceções houve e alguns dos que para a área escolhida se
Outro critério que podemos inferir é o de dominar técnicas úteis à atividade a que o partido iria se
entregar. Neste sentido, pensamos não ser mera coincidência o grande número de geólogos ou de
Disposição para se integrar à 'quinta tarefa' parece não ter faltado à época no conjunto do coletivo
partidário. Antes, pelo contrário, pela leitura dos relatos de sobreviventes, pode-se mesmo perceber uma
grande expectativa de 'merecer' ser escolhido e se verificaram mesmo solicitações de vários militantes
para que fossem transferidos para tal 'frente'. Tal foi o caso, por exemplo, de Glênio Sá, que assim conta
"... «Guerra Popular, Caminho para a Luta Armada no Brasil» incentivou-me a sair à
procura do que existia de concreto sobre a preparação dos comunistas para a luta
armada. Solicitei o meu deslocamento para o campo, usando como argumento a
minha origem sertaneja117 [grifo nosso]."118
Por características de personalidade, por aptidão e conhecimento das questões relativas à 'arte da
guerra' ou subjacentes, por pura falta de condições de sobrevivência e atuação nas grandes cidades, por
pouco importa a causa imediata da escolha, o essencial nesse processo é que ela foi acolhida com
Criméia A. S. Almeida". In: João Amazonas et alii, Guerrilha do Araguaia: 1972-1982, 2a. ed., SP, Anita Garibaldi, 1982,
pp. 40-1.
116
Idem, ibidem.
117
Natural do campo, de origem rural.
118
Glênio Sá, Araguaia: Relato de um Guerrilheiro, SP, Anita Garibaldi, 1990, p. 5.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 80
entusiasmo por todos os 'eleitos'. Isso porque em seus corações e mentes pulsavam forte um incontido
ímpeto revolucionário e a firme certeza de que somente pela via armada poderiam o Brasil e seu povo
A existência de tais sentimentos podem ser conferidos através da leitura da carta que um destes
'escolhidos' e futuro guerrilheiro, Guilherme Lund - 'Luís', escreveu a seus pais, quando já estava
residindo no Araguaia:
119
Guilherme Lund, "Carta a Seus Pais", São Paulo (?), fevereiro de 1970). In: João Amazonas et alii, op. cit., p. 47. Ver a
íntegra nos Anexos.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 81
Convencido da justeza de sua linha militar que estabelecia o interior como cenário da guerra
popular, o PC do Brasil trata então de transferir importante contingente de militantes para as regiões que
a Comissão Militar considerou preencherem os requisitos estabelecidos, ou seja, regiões onde as tropas
"suficientes efetivos militares para ocupar vastas áreas rurais... [onde] atuarão em
ambiente adverso: situação geográfica que dificulta as [suas] ações... meios de
transporte difíceis ou inexistentes, ausência de fontes de abastecimento para forças
regulares numerosas, condições sociais desfavoráveis"120
"O interior é o campo propício... aí existe uma população que vive no abandono, na
ignorância e na miséria. Nos mais diversos níveis, os camponeses empenham-se na
luta pelos seus direitos. Devido à repressão brutal dos latifundiários e da polícia, as
ações no campo assumem logo caráter radical. Sobretudo nas regiões de posseiros
são freqüentes os choques armados com grileiros [grifo nosso]."121
120
"Guerra Popular...". In: Op. cit., p. 125.
121
Idem, ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 82
Assim, a Comissão Militar procurou também localizar aqueles que deveriam ser os embriões das
propriedade e usufruto da terra, sempre presentes em função da incorporação de novas áreas à esfera da
radicalização política.
Mas não só isso. A linha estabelecida pregava também que "Quanto mais regiões sejam
obrigadas a ocupar, as tropas da reação mais dispersarão as suas forças e com isto se enfraquecerão
porque serão forçadas a se subdividir, ficando expostas aos golpes dos revolucionários."122
Tanto neste trecho como em outros em que aborda-se a questão da construção de bases de apoio,
o plural é sempre utilizado. Assim, sempre se diz 'regiões', 'bases de apoio', etc., explicitando a intenção
de criar não só uma área de operações de guerra revolucionária, mas mais, quem sabe, muitas.
Dessa forma, o PC do Brasil empenhar-se-á inicialmente em implantar pelo menos três 'frentes
guerrilheiras'. Um dos membros da Comissão Militar, Angelo Arroyo, assim narrou o esforço
Sobre as razões do fracasso nas tentativas de construção de bases de atuação guerrilheiras nos
Estados de Goiás e Maranhão, não se diz quase nada além do que o trecho acima citado, sinteticamente,
expõe. Não é necessário ser um gênio militar ou advinho para entrever como poderia ter sido diferente o
122
Idem, ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 83
desfecho da iniciativa militar do PC do Brasil se estas outras 'frentes' tivessem sido colocadas a
ponto de funcionamento.
Ao que tudo indica, desvendar estas razões poderá nos ajudar a enxergar de maneira mais realista
quais as dificuldades enfrentadas para efetivar-se um tal empreendimento, assim como esclarecerá o
porquê de, no fim das contas, somente terem restado as 'frentes' do Araguaia. Mas, tais perguntas só
poderão ser respondidas satisfatoriamente depois de realizar-se todo um programa de entrevistas com
pessoas que tomaram parte, de uma forma ou de outra, naqueles projetos, o que extrapola os limites do
123
Angelo Arroyo, "Um Grande Acontecimento na Vida do País e do Partido". In: João Amazonas et alii, op. cit., p. 30.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 84
De concreto mesmo, só restou o trabalho na região do baixo Araguaia, uma grande extensão de
terra em forma de um quadrilátero que perfazia "um total de cerca de 6.500Km²"124, no sul do Estado do
Pará. Mas que inicialmente também se estendia a "zonas próximas ... norte de Goiás e oeste do
limites geográficos a cidadezinha de Xambioá, no Estado de Goiás e Marabá, no Estado do Pará. À leste,
o limite acabou sendo o Rio Araguaia, o que não impediu algumas incursões dos guerrilheiros além do
rio; e, à oeste, segundo relatos, a localidade limítrofe se localizaria nas profundezas da floresta, num
seja do ponto de vista geográfico, seja do ponto de vista de ser uma região onde explodiam conflitos
sociais, no caso concreto em torno da propriedade da terra, muito embora praticamente inexistissem
a - A região do Araguaia
A região onde o PC do Brasil havia definido como prioritária e que, ao final, acabara por se
124
Cf. Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia" (1975). In: Op. cit., p. 17.
125
Idem. In: Op. cit. p. 18.
126
A Amazônia 'legal', assim definida por lei, nesta época compreendia integralmente os Estados do Pará, Acre e
Amazonas e dos Territórios Federais de Rondônia, Roraima e Amapá. Mas incluía igualmente parte de três outros Estados:
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 85
Área de condições de vida muito severas em razão do clima quente e chuvoso, das
tais como a malária e a leishmaniose, continha contudo uma população habituada ao lugar. Na sua ampla
maioria era composta de caboclos127 e de migrantes, vindos de outras regiões do País, sobretudo do
nordeste.
Tomando como referência a história de uma das principais cidades da região em questão,
Conceição do Araguaia, no sul do Pará, sobre a qual existe uma excelente obra histórico-sociológica128,
tentaremos traçar, em linhas gerais, o retrato da situação da área eleita pelo PC do Brasil para se
Mesmo que seja um tanto quanto restritivo nos deter apenas à observação dos aspectos da
resto muito significativa, poder-se-á ter mais claro a conjuntura regional que os militantes do PC do B
Tudo começa em 1897 com a fundação do povoado de Conceição do Araguaia que, segundo
Octávio Ianni,
Mato Grosso (em sua quase totalidade); Maranhão (quatro quintos do Estado); e, Goiás (sua parte norte, acima do paralelo
13, hoje Estado do Tocantins).
127
Habitantes da floresta amazônica, frutos da mestiçagem de índios e migrantes que para lá se dirigiram ao longo da
história da região. São, na sua maioria, posseiros e vivem de uma agricultura bastante rudimentar, da caça, pesca e coleta.
128
Nesta parte, no que se refere à descrição e periodização histórica e conjuntural de Conceição do Araguaia e região
próxima, nos baseamos fundamentalmente na obra de Octávio Ianni, A Luta pela Terra - História Social de Conceição do
Araguaia, Coleção Sociologia Brasileira, nº 8, (2ª ed.), Petrópolis, Vozes, 1979 (1ª ed. 1978).
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 86
índios eram principalmente os Karajá e Kayapó... Todos sob a direção espiritual dos
religiosos dominicanos"129.
considerar que os "cristãos, por seu lado, estavam menos interessados na alma do que na força de
trabalho indígena."130
Traço congênito do povoado foi a violência que "permeou tudo... seja nas relações dos homens
entre si, principalmente cristãos e índios, seja nas relações dos homens com a natureza."131
Apesar da suposta 'boa intenção' dos dominicanos, seu trabalho de catequese ajudava
objetivamente, mesmo que tal não fosse seu desejo expresso, a desarmar o espírito de resistência
indígena, deixando-os à mercê das vontades e ao sabor dos interesses dos "cristãos, interessados nas
condição de 'freguesia', transforma-se em 'município', o que significava mais uma elevação, desta feita, a
mais importante, de seu estatuto político-administrativo "em decorrência da expansão das atividades
econômicas e do crescimento populacional. Nessa época, a vida econômica do lugar começava a ser
De fato, desde os últimos anos do século dezenove crescia a exploração das árvores amazônicas
produtoras da goma elástica que, após processada industrialmente, seria transformada em borracha,
129
Op. cit., p. 9.
130
Idem, p. 16.
131
Idem, p. 9.
132
Idem, p. 28.
133
Idem, ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 87
Nesta primeira fase da história de Conceição, de 1897 a 1912, a sociedade local se
transforma profundamente. Surge uma maior diferenciação social em seu interior, mercantilizam-se as
relações dos homens entre si e com a natureza. Tudo girava então em torno da extração e comércio da
borracha.
Neste período, "... em cada passagem de ribeirão, em cada cabeceira, em cada campestre
fixavam-se moradores, animados pelos fartos lucros provenientes do trânsito ininterrúpto de comboios
de seringueiros."134
O chamado 'ciclo da borracha' durará até 1910-12, quando a produção da borracha brasileira é
desalojada pela borracha produzida na Malásia e no Ceilão, que a fornecia a preços muito mais
"Foi em 1899 que a produção do Pará atingiu o seu máximo. Em seguida, decresceu
continuadamente...
Em 1910, a borracha amazônica representava um pouco mais de 88 por cento do
total da produção mundial. Apenas quatro anos depois, em 1914, ela estava reduzida
a cerca de 43 por cento"135.
Durante toda esta primeira fase, marcada pelo 'boom' da borracha amazônica, dá-se a largada ao
processo de ocupação da região amazônica, até então, refúgio de uns poucos aventureiros, ou de
descendentes de escravos que sonhavam ter uma terra para trabalhar, longe da opressão social contra
aqueles que eram provenientes da raça negra, ou ainda, esconderijo de quem tinha cometido alguma falta
grave nas regiões mais urbanizadas e que, por isso, para fugir às perseguições policiais, para aquele 'fim
134
Idem, p. 36.
135
Idem, p. 57.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 88
136
de mundo' se dirigiam, procurando assim na floresta amazônica, outrora chamada de 'inferno verde' , o
Quando predominavam a extração e produção da rica 'goma elástica', a relação que os homens
estabeleceram com a terra foi de simples 'ocupação', ou seja, na apropriação de fato. Não existiam títulos
A razão parece estar no fato de a terra 'livre', isto é, sem ocupante, nesse período existir em
grande quantidade.
"A terra, sem qualificativos, era abundante, não era escassa... Mas outra coisa era a
terra onde pudessem encontrar-se árvores de látex; ou que fossem propícias à
agricultura e à criação...
Tanto o extrativismo, como a agricultura e a pecuária implicavam na ocupação da
terra. E a ocupação da terra implicava na apropriação. A apropriação de fato foi a
principal regra naquele então"138.
136
Não nos foi possível apurar quem primeiro assim adjetivou a selva amazônica, mas um viajante francês, que assim a ela
se referiu no livro em que relata viagem que fizera pela região, foi a referência mais antiga que encontramos. Cf.
COUDON, Paul. Le Pays de Grands Fleuves: du Paradis Paraguayen à l'Enfer Amazonien. Paris, J. Peyronnet & Cie.
Editeurs, 1945.
137
'Seringalista' era o patrão de uma empresa de extração de goma de seringueira ou de caucho, eram dele os instrumentos
de trabalho, cabia a ele negociar a goma recolhida. O trabalhador que, a serviço daquele, entrava na floresta em busca da
goma, onde ficava por até dois meses, era o 'Seringueiro'. O montante do que receberia como pagamento era definido pela
quantidade de goma recolhida. O material e a alimentação de que necessitava para sobreviver neste período deveriam ser
comprados obrigatoriamente do patrão, que lhe cobrava preços extorsivos. O resultado era que no final do mês, feitas as
contas, era freqüente que o 'seringueiro' estivesse em débito, ficando pois impedido de sair do emprego enquanto não o
quitasse. Tal sistema, chamado de 'aviamento', na verdade se constituía em uma forma de trabalho semi-escravo e tinha
como objetivo, além de maximizar os lucros da empresa de exploração gomífera, impedir que os 'seringueiros'
acumulassem reservas que lhes permitissem se transformar em sitiantes autônomos, em camponeses. Ver: Op. cit., cap. V -
"O Sistema de Aviamento".
138
Idem, pp. 36-9.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 89
Durante todo este lapso de tempo, não se cuidou da legalização das ocupações de terra.
Nessa ampla ocupação o meio privilegiado para assegurá-la foi a violência privada.
Importante notar que é ainda nesta primeira fase que pode-se considerar como o período de
Mas com as transformações verificadas no mercado internacional da borracha, o Brasil perde para
sempre a hegemonia. O resultado é o desabamento total da economia da região amazônica que passa a
experimentar uma regressão econômica.. Diversas unidades de produção são simplesmente abandonadas
em pleno meio da floresta. Para toda a área significa o fim da monocultura extrativista da goma elástica
Começava então a segunda fase da história da região de Conceição do Araguaia. Ela durará de
Após esta crise fulminante, seguida de ruína econômica, toda a região parece ter reencontrado a
paz. A terra é abundante e pertence a quem primeiro a ocupar. Os antigos territórios de extração de látex
Uma economia de tipo camponêsa se organiza, onde o predominante é produção voltada para o
auto-consumo e para a produção de pequenos excedentes a serem trocados com outros pequenos
produtores. O comércio é bastante reduzido e é feito sem a mediação do dinheiro. Há grandes e pequenas
Salvo algumas esparsas oscilações, notadamente no chamado 'ciclo do cristal' nos anos quarenta e
no efêmero ciclo chamado de 'segunda borracha', que só vigorou durante os últimos anos da II Guerra
139
Idem, p. 86.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 90
Mundial, quando os mercados produtores asiáticos encontravam-se inacessíveis aos aliados, a "cidade...
entrou numa longa e duradoura fase de regressão, a maior até agora em sua história... [até mesmo] a
camponesas, onde predomina a produção de subsistência. A coleta, a caça e a pesca se combinam com
uma pobre agricultura. Reduzido era o excedente de produção que era então 'comercializado' nos
aglomerados urbanos. Os pequenos posseiros ou caboclos "vivem dispersos, às vezes várias léguas de
distância uns dos outros, em terras ocupadas. Para eles, nessa época, a terra era farta, dada, de
Até os anos quarenta, ainda se pôde notar importantes conflitos entre 'cristãos' e índios, malgrado
140
Idem, p. 62.
141
Idem, p. 65.
142
Idem, pp. 66-9.?????
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 91
de sítios e fazendas, ou pequenas posses e latifúndios de estreita ou larga
extensão... Mas o que passou a predominar, por sua força econômica e política na
sociedade local, foi o latifúndio, a larga extensão de terra, pouco ou escassamente
trabalhada"143.
Tal situação durará até os anos sessenta, quando a política 'desenvolvimentista' implementada
pelo governo do presidente Juscelino Kubitcheck (1956-60) alcança a região com a construção de
Brasília e, sobretudo, com a da rodovia BR-14, que a ligaria com a capital paraense, Belém. Iniciava-se
Quase como mágica, as terras que, até então, eram 'abundantes e sem fim', começam a ser objeto
de ambição de grandes investidores nacionais e estrangeiros. Os posseiros são cada vez mais ameaçados
pelos grileiros que lhes expulsam da terra que ocupam, muitos entre eles, depois de mais de uma
geração. Uma vez a terra 'livre', grandes empresas agrárias de criação de gado bovino, originárias da
E não era só isso, no mesmo período "fortes contingentes de trabalhadores do nordeste, Goiás,
A criação da SUDAM145 em 1965, já sob o regime militar, dá um novo impulso a este processo de
não são levadas a cabo sem o emprego da violência, agora não somente privada, mas também oficial,
porque a resistência que os posseiros opõem é bastante firme, a terra para eles sendo tudo, significa toda
a sua possibilidade de sobreviver. No entanto, tal resistência tem sempre um caráter individual, isolado
143
Idem, pp. 86-90.
144
Idem, p.93.????
145
"Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia". Agencia governamental encarregada de coordenar e
favorecer os investimentos da região amazônica através de incentivos fiscais e de empréstimos a juros subsidiados.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 92
O lançamento estrondoso, feito em 1970 pelo general-presidente Médici, da construção da
"... o próprio Estado, com o peso de sua força, econômica e militar, abriu espaços
novos, geográficos e econômicos, para o capital. De um lado, transferindo largas
parcelas de recursos públicos para mãos privadas... dinheiro que deixa de ser
aplicado em serviços essenciais e obras públicas úteis e necessárias ao povo para se
transformar em capital privado...
Um país inteiro é expropriado e lesado... Jamais se deu sequer um centavo de
incentivo fiscal a um posseiro, a um pequeno lavrador.
De outro lado o peso do Estado se faz sentir num dos mais radicais e amplos
processos de expropriação de que se tem notícia na história contemporânea"146.
Amazônia se justificava na assertiva de que eram 'terras sem homens para homens sem terra' ou, numa
outra vertente de argumentação, de que era uma razão de segurança nacional a ocupação da Amazônia, o
Contudo, tais argumentos contrastavam com dois aspectos da realidade: primeiro, grande parte
dos recursos da SUDAM se destinaram a empresas estrangeiras, o que não seria aconselhável caso
houvesse sinceridade no propósito de preservar a soberania nacional; e, segundo, não era verdade que a
"As terras novas, abertas aos «pioneiros», isto é, aos capitalistas, não eram
indevassadas. Muito ao contrário. Além das terras indígenas, secular e legitimamente
possuídas por esses brasileiros, amplas faixas devolutas147 já estavam ocupadas por
milhares de posseiros.
146
José de Souza Martins, "Apresentação". In: Palmério Dória et alii. A Guerrilha do Araguaia, Col. História Imediata, nº
1. SP, Alfa-Omega, 1978, p. 8.
147
Terras desocupadas pertencentes ao Estado.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 93
Quando o presidente... afirmou, em depoimento dramático, que era
preciso ocupar as terras da Amazônia sem homens com os homens sem terra do
Nordeste, não disse nenhuma novidade para o lavrador nordestino. Largas correntes
de retirantes148 já estavam há muito se estabelecendo nas terras amazônicas. Esses
brasileiros não foram assistidos durante os muitos anos do seu êxodo... Migraram
com sua miséria e nessas condições podem ser encontrados aos milhares no Centro-
Norte"149.
amazônica em área de predominância de empresas agrícolas de caráter capitalista. Este processo provoca
toda uma tensão social onde o centro nervoso do problema se localiza na propriedade da terra.
A situação se agrava ainda mais para os posseiros pelo fato de eles não terem em mãos
documentos que legalizassem as suas posses, coisa com a qual nunca se preocuparam.
Quem trará títulos de propriedade - falsos ou legalmente obtidos - serão os grileiros, que atuam
quase sempre em sintonia com as grandes empresas agrícolas que estão a chegar na região.
Essa nova configuração social e econômica criará conflitos sociais de graves proporções em toda
terra desde o começo do século, se revolta para defender seus direitos contra os grileiros e os jagunços,
ambos a serviço de grandes empresários capitalistas que para lá migravam, eles também, vindos de outras
"Até há pouco eram os nordestinos sem terra que se dirigiam para o sul e sudeste do
país, buscando trabalho... Hoje é o capitalista dessas mesmas regiões que desaba
sobre o Norte com o peso do «seu» dinheiro, dos seus títulos e de suas desmedidas
ambições...
148
Habitantes oriundos da região nordeste que migram para outras regiões do Brasil.
149
Idem, pp. 8-9.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 94
Procura-se levar os homens e as idéias do Sul para a Amazônia, mas nada de levar
a Amazônia para os homens que já estão na Amazônia"150.
Este processo de expropriação dos posseiros vai criando entre estes uma revolta crescente contra
a violência com a qual os grileiros tiram-lhes a sua única fonte de sobrevivência, a terra. Sobretudo entre
os
C'est bien au moment où tout ce processus était en train de débuter, c'est à dire en 1966, que le
PC du Brésil inicie le transfert de militants vers l'Amazonie. Les futurs guérilleros y commencent alors à
arriver venus, eux aussi, de différentes régions du pays, mas com propósitos totalmente diferentes,
quando não opostos àqueles que motivavam os outros personagens que à mesma época chegavam - os
Muitas são as narrativas dos sobreviventes sobre o momento do primeiro contato com a floresta
amazônica.
É verdade que os chegantes não possuíam nenhum traço de fisionomia que aparentasse serem
originários da região e a maioria não chegava mesmo a demonstrar a mínima intimidade com o trabalho
rural. Tais 'detalhes' poderiam dar indicativos à população de que algo de estranho estava a acontecer,
150
Idem, p. 10.
151
Octávio Ianni, op. cit., p. 192.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 95
despertar suspeitas. Porém, isso não se passou. Não aconteceu porque, sendo a região uma
área em expansão, que atraía cada vez mais pessoas, as populações locais já haviam se habituado a ver
chegar e partir pessoas de todos os pesos e tamanhos, de todas as cores e sotaques, vindos e levados
pelos motivos os mais variados. A eles o povo chamará em geral de 'paulistas', ou de 'mineiros'152, no
caso do grupo que vai morar junto com 'Osvaldão', que lá morava desde 66 e de quem se sabia ser
Sobre o não estranhamento da população local em relação aos 'paulistas' que chegavam cada vez
"O Araguaia, até 72, era uma região onde entrava muita gente, de todos os
lugares... E havia muitas pessoas perseguidas... Vou citar um caso concreto: um dia...
passa um rapazinho de uns 20 anos, filho de uma família de Goiás. Estava fugindo
para o Pará porque tinha-se envolvido num conflito de terras... entrou em choque com
um grileiro, matou o homem, foi perseguido pela polícia e aí fugiu. Alguns meses
depois, passa um grupo da polícia militar procurando informações sobre o rapaz.
Então... era uma região de pessoas estranhas, e não apenas nós. Ninguém reparou na
nossa chegada."153
A naturalidade com que os habitantes locais receberam e trataram os militantes que chegavam não
amenizou a dificuldade de adaptação a um meio tão díspare daquele onde até então viviam aqueles
recém-chegados citadinos.
A orientação que recebiam do partido era de estabelecerem laços de amizade com todos, respeitar
prestatividade, qualidades com as quais a Comissão Militar contava precisar bastante nas horas em que
152
'Paulista' é aquele (a) natural do Estado de São Paulo. 'Mineiro' designa os naturais do Estado de Minas Gerais.
153
"Fala o Guerrilheiro" (entrevista com José Genoíno Neto). In: Fernando Portela, Guerra de Guerrilhas no Brasil, 5ª ed.,
SP, Global, 1981, p. 152.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 96
Sobretudo, manter o máximo segredo em relação ao objetivo que os havia levado até aquelas
De 1966 até 1972 são destinados à região do Araguaia um total de 69 militantes. Eles não
chegam todos de uma só vez, nem todos a um mesmo lugar. Chegam progressivamente e distribuem-se
por toda a área que margeia do lado esquerdo o Rio Araguaia, entre Marabá e São Geraldo.
Cada qual tem o seu álibi. Uns, como 'Glênio' e 'Geraldo' eram pretensos sobrinhos do 'Tio Cid'
que teriam vindo para ajudá-lo a cuidar da posse154 e irão viver junto com ele e Osvaldo. Outros, vinham
para estabelecer um pequeno negócio, ou mesmo para ser um posseiro como tantos outros.
Assim, 'Osvaldão', ao que tudo indica o primeiro a chegar, fará o estilo 'mil e uma utilidades', ou
seja, se apossará de um pedaço de terra, será caçador, lavrador, castanheiro, etc., atividades que lhe
permitirão se tornar aquele, dentre todos os guerrilheiros, que mais conhecia os segredos da floresta e,
por isso mesmo, será um dos últimos guerrilheiros a serem mortos pelas FF.AA.
'José Carlos', 'Alice', 'Beto' e 'Luís' organizam um pequeno comércio numa localidade chamada de
Faveira, em que compram a produção dos moradores e vendem aquilo de que necessitam. No mesmo
local, montam um pequeno serviço de socorro médico, pois Alice havia feito um curso de enfermagem,
embora nunca viesse a revelar tal fato aos 'pacientes' de quem cuidara.
'Paulo' e 'Doca' vão residir próximo à cidade de São Geraldo e se consagrarão a uma atividade
que em muito lhes servirá para bem conhecer a região, serão vendedores ambulantes de pequenas
bugigangas domésticas, roupas e artigos de pesca. Utilizarão para isso um barco que batizarão de
Carajá, onde passavam grande parte de seu tempo a subir e descer o rio e a conhecer todas as suas
barrancas.
154
'Tio Cid' era o codinome usado pelo dirigente João Amazonas; 'Geraldo', José Genoíno Neto; e, 'Glênio' era Glênio Sá,
seu nome não havia sido mudado pois o PC do B o julgava não tão conhecido pela repressão, dispensando-se assim a
necessidade de usar um nome 'frio'. Ver lista completa dos guerrilheiros, nomes e respectivos codinomes, nos Anexos.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 97
Todos enfim se dedicarão a uma atividade que lhes permita ao mesmo tempo aprender
com a gente simples do interior a viver na floresta e com eles também travar relações de amizade. Assim
o "Diário da Guerrilha do Araguaia", redigido pela Comissão Militar instalada na região, relata os
progressos atingidos pelos 'novos' habitantes: "Vivem como vive o povo. Aprendem dia a dia. Com a
c - As dificuldades de adaptação
Entretanto, todos, sem distinção da função que tenham assumido perante a população do lugar,
aprenderão a cultivar o solo, a fazê-lo produzir, pois considerava-se tal aprendizado como parte
sua posição sobre a vinculação das duas esferas de atividades na parte em que avaliava que o processo da
execução o 'ponto cinco', se dedicarão basicamente à três tarefas: (1) estabelecer relações profundas de
amizade com a população sertaneja, visando conquistar a sua confiança; (2) aprender a sobreviver na
155
Clóvis Moura (Org.), Diário da Guerrilha do Araguaia, 2a. ed., SP, Alfa-Omega, 1979, p. 23.
156
"Guerra Popular...". In: Op. cit., p. 127.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 98
região, ou seja, aprender a lavrar a terra, a caçar, a pescar, a se orientar na mata, a saber reconhecer e
coletar os frutos e líquidos que a floresta pode oferecer; e, (3) preparar-se do ponto de vista militar,
Assim, à luz do dia, eles se dedicarão às atividades produtivas 'legais' e, na surdina, bem longe dos
olhos e ouvidos de seus vizinhos, se consagrarão a exercícios que visavam a sua preparação militar.
O trato com a terra, isto é, conseguir fazê-la produzir, exige por si só uma infinidade de
conhecimentos, cujos detentores constituem uma categoria bem específica - o campesinato - coisa que
São necessárias muitas informações, além de muito esforço físico, para levar a cabo tal tarefa.
Antes de tudo, é preciso saber distinguir uma terra apta ao cultivo de uma outra menos favorável, em
seguida é mister saber prepará-la, semeá-la, zelar para que ela sobreviva às ervas daninhas e aos animais,
todas as etapas, observando-se criteriosamente o tempo indicado para a realização de cada uma delas.
Tudo isso não se aprende da noite para o dia. Todo esse conjunto de regras, aparentemente muito
complicadas, e realmente o são para os não iniciados, são executadas quase que mecanicamente por
milhões de lavradores todos os anos, que não fazem que aplicar o que aprenderam com seus pais ou com
Jacques Chonchol, se bem que em outro contexto, discutindo uma questão bem diversa da que aqui
tratamos, assim se referiu, en passant, a importantes quesítos para se 'trabalhar' com o camponês, no caso
concreto, para envolvê-lo como sujeito ativo num projeto de desenvolvimento rural:
"Il faut apprendre à connaître la «rationalité» paysanne qui est liée à son expérience
historique, à sa dépendance de facteurs naturels et à sa tradition de longue
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 99
oppression sociale, au besoin de chercher avant tout la sécurité, de
respecter l'équilibre de son environnement, etc."157
Estes mesmos 'conselhos', se bem que expostos de maneira genérica, seriam também indicados
para quem quer que queira ganhar o campesinato para um projeto maior de transformação social, mesmo
O partido parece não ter ignorado estas especificidades dos camponeses. Pelo menos é o que nos
faz pensar certos trechos de seus documentos que precederam a guerrilha e mesmo de entrevistas mais
157
Jacques Chonchol, Paysans à Venir, Paris, La Découverte, 1986, p. 288.
158
"Guerra Popular...". In: Op. cit., pp. 157-8.
159
"Entrevista com João Amazonas". In: João Amazonas et alii, op. cit., pp. 9-10.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 100
"Tinha uma espécie de lei geral: 'ouvir muito e falar pouco'. Não havia mesmo
condições de discutir sobre o que não se sabia. O nosso professor era exatamente o
pessoal da região"160.
pelos cerca de setenta ativistas políticos que para lá se deslocaram, em sua maioria oriundos de grandes
centros urbanos, alguns deles, inclusive, tendo constando no espaço de seus currículos reservado à
profissão simplesmente a palavra 'estudante', o que queria dizer que ainda não tinham uma atividade
profissional definida, em outras palavras que sequer haviam se dedicado ao labor cotidiano e regular.
"Nos primeiros dias de trabalho... cortando o mato, apareceram bolhas nas palmas
das minhas mãos... Usei as meias como luvas, para amenizar a dor e diminuir o atrito
do cabo do facão com a pele fina. Nessa nova tarefa, era necessário engrossar a pele
das mãos."162
A fase de adaptação ao novo 'métier' de agricultor e também de 'coletor' de frutos naturais foi
"... Darci, um deles, me ensinou como encontrar inhame163... Num domingo de folga,
fui a outras capoeiras mais distantes. Encontrei tanta batata que não dava pra
carregar sozinho. O jeito foi voltar à casa e pedir ajuda aos camaradas... O
deslumbramento foi geral, principalmente porque estávamos com pouco mantimento
naquele dia...
160
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 29.
161
Glênio Sá, op. cit., p. 7.
162
Ibidem.
163
"inhame sm. Bras. Nome comum a certas ervas que produzem tubérculos nutritivos e saborosos, do mesmo nome." (Cf.
Aurélio Buarque de Holanda, Minidicionário AURÉLIO, RJ, Nova Fronteira, 1977, p. 268).
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 101
Com a chegada do inverno, a nova casa estava pronta. O terreno em
frente... estava plantado de milho e banana. Tinha também fruteiras ao redor"164.
"Comecei a sair com os vizinhos para caçar, convencido de que eles eram meus
mestres em tudo que dizia respeito à vida local... Os caboclos ficavam impressionados
com a nossa disposição de aprender e de superar nossas dificuldades.
Com a pesca, era a mesma coisa"165.
Um grande obstáculo a ser ultrapassado pelos futuros guerrilheiros foi o das doenças próprias
daquela região.
"A malária é também inimiga dos habitantes do sul do Pará. Há muitas outras
doenças - a leishmaniose, os vermes, a frieira, os males venéreos. Mas o paludismo
ataca a todos. E às vezes sob a pior forma - a terçã malígna... É comum encontrar
lavradores, castanheiros e madeireiros trabalhando dias seguidos com febre.
As febres atacaram também os chegantes... Todos foram se acostumando, ou melhor,
aceitando o inevitável"166.
Todos os relatos dos remanescentes da guerrilha poem em relevo esta dura prova pela qual
praticamente todos tiveram que passar. A situação foi mais grave no princípio, com os primeiros
militantes, depois a Comissão Militar organizou um serviço de socorro, baseado em militantes que tinham
formação na área de saúde, sob a direção do médico gaúcho, João Carlos Haas Sobrinho. Mas, até que
tal serviço fosse colocado em funcionamento, a única forma de não sucumbir às doenças foi ouvir os
"...Nessa fase se vai sofrer muito por causa de doenças. Não sabíamos como conviver
com a doença. Pegamos malária - geralmente a primeira é a mais violenta. A gente
164
Idem , pp. 7-8.
165
Idem, p. 8.
166
Clóvis Moura, op. cit., p. 26.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 102
tinha um caderninho escrito com as doenças e a receita. Quando pegava malária
ficava bem baqueado até descobrir o que era. Depois se consultava o caderninho e ia
tomando os comprimidos recomendados.
Não tinha médico e nada organizado em termos de saúde - resolviam-se os
problemas baseados em como a população fazia. Quase que eu ia pro beléléu167 por
causa de malária, por falta de conhecimento que a gente não tinha, que vem mais
tarde quando se organiza todo um serviço de saúde"168.
"Em menos de um mês de chegada tive minha primeira crise de malária... Depois
dessa, perdi até a conta dos acessos de malária que viria a sofrer...
Na nova leva de gente que chegava, veio a Tuca, uma enfermeira experiente do
Hospital das Clínicas de São Paulo. Logo ela começou a nos dar aulas de primeiros
socorros e montou um esquema preventivo contra a malária, que daria bons
resultados... Tuca era até dentista, quando precisava...
Um dia... senti que entrou alguma coisa no meu ouvido. Inicialmente não me
perturbou, mas com o passar das horas aquilo foi me deixando inquieto e começou a
doer até a loucura... tinha sido uma mosca varejeira169 [grifo nosso]. Alguém sugeriu
que se pusesse creolina170 [grifo nosso]. Eu, louco de dor, pedi para que pusessem
logo e Tuca, nossa enfermeira ainda quis resistir. Depois o médico falou que a
creolina foi a minha salvação. Mais algumas horas e eu poderia ter morrido...
... Outra vez, reclamei de uma ferida no meu nariz e Tuca acabou concluindo que se
tratava de Leishmaniose... consegui curá-la, mas ficou a cicatriz"171.
Mesmo o gigante Osvaldo, antes da organização do serviço de socorro, sofreu uma terrível crise
de malária que quase o nocauteou: "No segundo semestre de 70... o Osvaldo teve uma malária que
quase morria. Mesmo sem conhecimento, tivemos que aplicar soro na veia dele."172
167
'Ir para o beléléu' quer dizer, na linguagem popular, morrer.
168
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: op. cit., pp. 31-2.
169
Inseto típico da região amazônica, transmissor da doença chamada de 'bicheira'.
170
Medicamento veterinário, usado para curar doença chamada 'bicheira' em animais.
171
Glênio Sá, op. cit., pp. 7-13.
172
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 39.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 103
Apesar de todas estas dificuldades relativas à saúde, que, de resto, perdurarão até o
final da guerrilha, não há nenhum caso de morte de guerrilheiro por causa das doenças tropicais. No
entanto, alguns terão que retirar-se da região para receber tratamento especializado em hospitais
localizados em grandes cidades, o que não deixará de ser um fator negativo para os planos do PC do B.
Como se verá, foi através de um caso desse tipo que o governo militar tomará conhecimento da
d - O trabalho de massas
encarregado de se ocupar da execução da 'quinta tarefa'. Não seria apenas o primeiro na ordem
cronológica de chegada, seria também o mais conhecido e, segundo afirma a própria direção do partido,
"o maior conhecedor de toda área, tanto da guerrilha como das áreas circunvizinhas"173. Além de ser
considerado o 'primeiro' em mais de uma coisa, ele será senão o último, um dos últimos guerrilheiros a
Chamava-se Osvaldo Orlando da Costa, conhecidíssimo por toda a região não só por causa de
"sua bondade, sua força, sua coragem e pontaria"174, mas também, e talvez principalmente, em razão de
"O Osvaldo era uma pessoa muito respeitada... Todo mundo confiava nele, um cara
sério... Camponês que ia lá resolvia até problema de casamento com ele, era padrinho
de todo mundo, toda a população conhecia muito ele.
O tipo dele também ajudava muito, um cara assim muito forte, de quase dois metros
de altura. Por exemplo, a população via que ele atirava muito bem porque ele caçava
173
In: Amazonas et alii, op. cit., p. 50.
174
João Amazonas e alii, op. cit., p. 50.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 104
junto com a população. Era um cara que botava um saco de 60 quilos num ombro e
um saco de 60 quilos no outro e carregava. Não encontrava camisa ou sapato -
calçava 48 - que servisse nele."175
Era um gigante, forte como um touro, que fôra campeão carioca de box pelo Botafogo Clube e
Regatas. Tinha feito um curso na Escola Técnica Nacional e fizera também um outro no CPOR (Centro
de Preparação de Oficiais da Reserva), sendo, portanto, oficial da reserva do exército brasileiro. Após
1964, obrigado a viver na clandestinidade, partira para o exílio no exterior, para a Tchecoslováquia, onde
próximo à cidade goiana de Araguatins e depois se transferiu para uma posse perto do Rio Gameleira,
um afluente do Araguaia. Ele não era apenas o mais conhecido dos comunistas que para lá se
transferiram, era também o mais querido e mesmo objeto de lendas que percorrem até hoje aquela região.
"Mais acima... vive um negro simpático, alto... conhecido por Osvaldo... Todos
gostam dele. É simples, comunicativo, sempre pronto a ajudar... Certa vez - contam as
pessoas do lugar -, passava por um barraco pobre, num 'centro' distante. Parou para
beber água. A dona do casebre lhe falou agoniada sobre a filha pequena que estava
morrendo. Ela não tinha recursos. Se tivesse um dinheirinho salvaria a criança.
«A única coisa que tenho é esse cachorro. Não quer comprar?»
Osvaldo meteu a mão no bolso. Todo o dinheiro que possuía entregou à mulher.
«Bem, o cachorro é meu, mas a senhora fica tomando conta dele..»."176
Uma professora da Universidade de São Paulo, num estudo original sobre a memória dos tempos
da guerrilha entre os habitantes da região, ao promover diversas entrevistas na área, ouviu muitas
'estórias' sobre 'Osvaldão', e pôde mesmo registrar algumas delas tais como as que se seguem:
175
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 31.
176
Clóvis Moura, op. cit., pp. 19-20.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 105
"... «o Osvaldo era encantado. Por isso foi o último a morrer». Ele tinha o
dom de se transformar no animal que quisesse. «Um dia, os federais177tocaiaram ele
na mata. Ia passando um bando de macacos e ele se transformou num deles e
conseguiu fugir pulando por cima da cabeça dos federais que nem desconfiaram. Mas
no que ele se transformava mesmo era em cachorro». A mãe de M. um dia encontrou
Osvaldão. Ela tinha ido dar comida aos porcos... e apareceu um cachorro preto,
enorme, e começou a comer junto com os porcos, não sem antes lançar um olhar
muito triste à mãe de M., que apavorada correu para dentro de casa, chamou os
filhos e o marido, «fecha tudo e avisa que vai haver problemas», pois os federais
deveriam estar por perto. De fato, pouco depois chegaram os federais"178.
Mesmo à sua morte, a população local deu uma versão toda especial para justificá-la: "Quando o
mataram, Osvaldão estava com malária e faminto. Não teve tempo de se encantar. Foi morto pelas
costas. "179.
Tanto era verdade o fato de Osvaldo ser querido na região e de sua fama de 'imortal' correr de
boca em boca, que as próprias FF.AA. quando, em meados de 1974, conseguiram localizá-lo e matá-lo:
"... sobrevoaram toda a área com o cadáver amarrado numa corda, pendendo de um
helicóptero e, com um alto-falante, reuniam os habitantes do povoado «e falavam que
era pra todos verem que até [grifo nosso] o Osvaldão tinha sido morto». Não era
invencível como diziam."180
As FF.AA. tinham razões de sobra, militarmente falando, para assim proceder em relação ao
mineiro Osvaldo Orlando da Costa. Consta que, já nas primeiras investidas contra os 'subversivos', entre
abril e julho de 1972, os soldados tiveram problemas com a população local, pois divulgavam a versão de
177
Uma das formas pelas quais os habitantes da áreas denominam os soldados das tropas federais empregados na repressão
aos guerrilheiros.
178
Regina Sader, "Lutas e Imaginário Camponês". In: Tempo Social; Rev. Sociologia USP, SP, 2(1), 1º sem. 1990, pp. 119-
20.
179
Idem, p. 120.
180
Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 106
que os guerrilheiros eram bandidos, malfeitores, assassinos, ladrões, etc., ao que eram por vezes
O motivo de começarmos esta sub-seção por esta breve narrativa da auréola que havia em torno
Como já foi dito, o centro da atividade política de massas do PC do Brasil na região era o de
estabelecer relações as mais próximas com a população local, sem, entretanto, revelar a ninguém os
primeiro trabalho de fôlego de pesquisa jornalística sobre a Guerrilha do Araguaia, diz que eles
"... conseguiram, por força de suas convicções, levar uma vida dupla de guerreiros em
preparação e posseiros pacíficos, ou comerciantes, ou profissionais liberais. Uma
vida que desgastaria fisicamente a maioria das pessoas. Ao mesmo tempo em que
preparavam a guerra, eles se misturavam ao povo, cada vez mais cativado"183.
Além de pescar, caçar, plantar como os camponeses, e junto com eles, os 'rapazes e moças' do PC
do Brasil, ateus convíctos, chegavam até mesmo a freqüentar as celebrações religiosas da população
181
A época, município do Estado de Goiás. Desde 1988 pertence ao Estado do Tocantins.
182
Clóvis Moura, op. cit., p. 36.
183
Fernando Portela, op. cit., p. 36.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 107
"Respeitávamos completamente as crenças dos caboclos e participávamos
de tudo o que ocorria nas redondezas: de novenas184a rituais de terecô185... Tínhamos
inúmeros afilhados de fogueiras juninas...
Um certo dia... nosso vizinho, perguntou-me qual era a nossa religião. Eu, sem
responder, perguntei-lhe por que. E tive a seguinte resposta:
- Acho vocês tão bons e diferentes!"186
sob a forma de trabalhos agrícolas coletivos, conhecidos na região pelo nome de 'mutirão'ou 'adjunto',
que consistia em reunir todo o povo de uma mesma área para realizar trabalhos na posse de alguém que
estivesse em dificuldade. Por vezes, tal se realizava sem o prévio conhecimento do posseiro que ia
receber a ajuda dos outros, quando assim se procedia era chamado de 'traição'.
Os 'mutirões' também eram utilizados para se realizar trabalhos de interesse coletivo tais como
uma pequena ponte, uma limpeza de uma determinada área, etc. Normalmente tais eventos se passavam
O entrosamento com a população avança, consolida-se a ligação dos futuros guerrilheiros com a
população pela via da amizade, considerada um ponto de partida para a realização de um trabalho
político de nível superior. Este processo é assim avaliado pela Comissão Militar no seu Diário da
Guerrilha do Araguaia:
"Passam-se muitos meses, dois anos talvez. Os novos moradores estreitam suas
relações com o povo, identificam-se com ele. São estimados e estimam sinceramente
os que conhecem. Amizade não se consegue da noite para o dia. Vai-se forjando com
184
Cerimônia religiosa católica, existente dentro e fora da estrutura oficial da Igreja, que consiste em realizar orações
durante um período de nove dias, em homenagem a um santo, a uma data, em gratidão a uma graça pedida e alcançada, etc.
185
Ritual religioso que expressa o sincretismo havido entre o candomblé, de origem africana, com as crenças dos índios
amazônicos.
186
Glênio Sá, op. cit., p. 10.
187
Festa popular onde se dança ao som de músicas de ritmo nordestino.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 108
o tempo. Uma ajuda aqui, outra acolá, o respeito às pessoas, a atenção que se lhes
presta na conversa, o interesse pela sua vida, o conselho que se ouve dos que habitam
o lugar, o desejo de aprender com a massa - tudo isto vai tecendo os fios invisíveis da
amizade."188
Outra coisa que os caboclos admiravam nos seus 'novos' vizinhos era a coragem. Coragem no
"... o povo começava a acreditar, porque os 'paulistas' diziam, que era possível
enfrentar de igual para igual seus inimigos. Uma prova: «cadê que ninguém mexia
com os paulistas? Gente esclarecida, letrada».. Um grileiro foi ameaçar tirar a terra
de 'Osvaldão' e acordou, na sua casa, com um cano de um 38 cutucando o seu rosto e
a ordem dita por «um negrão de quase dois metros de altura e com dois braços que
pareciam duas pernas», segundo descrição dos que o conheceram: «ô grileiro, vamos
fazer outro negócio: em vez de você ficar com minha terra, você dá a sua a uma
família muito necessitada. A família já tá aí, esperando. Vou lhe levar até a
rodoviária e você não aparece mais aqui, senão morre. E se achar ruim morre agora
que fica mais fácil...»
188
Clóvis Moura, op. cit., p. 26.
189
Fernando Portela, op. cit., p. 39.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 109
O grileiro saiu com a surpresa de encontrar os novos proprietários e mais
de 30 pessoas das redondezas que aplaudiam a atitude de seu 'Osvaldão', homem
justo."190
De uma maneira geral se espalha a fama da valentia dos 'paulistas' ou 'mineiros'. Fernando Portela
ainda destaca o que contavam a respeito de uma outra militante comunista instalada na região,
"Osvaldão não era o único a distribuir heroísmo: Dina Monteiro, a Dina baiana, a
Dona Dina, geóloga, uns 30 anos, professora primária numa escola que ela mesma
construiu; parteira que salvou muitas vidas, num lugar onde o índice de mortalidade
infantil ainda hoje é assustador... e uma lavradora exemplar, obviamente. Difícil é
saber se Dina marcou mais como assistente social ou como guerrilheira. Sua
personalidade era tão forte que, num lugar onde o patriarcado é a lei máxima, o seu
marido, também guerrilheiro, ganhou o apelido de Antônio da Dina"192
O trabalho de massas dos militantes do PC do B, pelo menos nesse primeira fase, se restringiu ao
entrosamento com a população sertaneja, à conquista da sua plena confiança com vistas aos
enfrentamentos que, eles o sabiam, viriam inexoravelmente, mais cêdo ou mais tarde.
Este será o caráter do trabalho político de massas até meados de 1971, quando "a fase de
pequenas conversas vai dar lugar a um relacionamento muito mais direto e integrado com a
190
Idem, pp. 38.
191
Glênio Sá, op. cit., p. 13.
192
Fernando Portela, op. cit., p. 38-9.
193
Idem, p. 87.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 110
O início da década de setenta verá a intensificação da corrida em direção às terras amazônicas,
sobretudo rumo àquelas localizadas próximas à nova rodovia, a Transamazônica. Tal construção fez
aumentar o povoamento da região e com ele, o aumento da grilagem, o que tornou maior a tensão social
já vivida na área em torno da posse da terra. Era o processo de expropriação dos posseiros que ganhava
"... começam nessa época os grandes conflitos pela posse da terra com os grandes
grileiros, grandes fazendeiros da Amazônia. Vamos fazer um trabalho mais avançado
com a população, se integrar mais naquela luta com os posseiros...
Nossa área era muito cobiçada... Terras férteis e boas para criação de gado. Nosso
destacamento começa a sofrer ameaça de expulsão. Então, a gente vai conversar com
todo mundo"195.
"...O assunto era um só: a grilagem que aumentara na região e o que iríamos fazer.
Falávamos para todos que se os nossos vizinhos e amigos ficassem unidos os grileiros
não iam mexer com ninguém."196
sócio-política, os militantes comunistas sentem-se mais seguros para elevar o grau de politização das
194
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 35.
195
Idem, p. 40.
196
Glênio Sá, op. cit., p. 13.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 111
nele foi organizado o movimento ULDP (União pela Liberdade e pelos
Direitos do Povo)."197
José Genoíno e Glênio narram que os avanços obtidos pelo seu destacamento, o B, foram
inúmeros neste período que vai de meados de 1971 até o início de 1972, o que mereceu até mesmo uma
grande comemoração:
"... foi uma fase de grandes êxitos para nós. Estávamos com grandes roças plantadas
e abertas, o castanhal cultivado... Aí juntamos todo o destacamento na casa principal,
na noite de 31 [de dezembro]... às 9 da noite vinha chegando gente do mato - num
ambiente de alegria.
Iamos comemorar uma passagem do ano diferente da de 70 para 71...
Essa agora era uma passagem vitoriosa: havia três grupos... Uma alegria geral.
Teve muita cantoria..."198
Para os militantes do PC do Brasil, o ano novo se iniciava com um saldo muito positivo: avanços
no campo da preparação militar; entrosamento cada dia mais forte com a população local; adaptação do
pessoal à selva com progressos notáveis; êxitos também no aprendizado da agricultura, caça e pesca.
Também tinha-se concluído um mapeamento completo da região, assim como tinha-se estabelecido todo
197
Idem, p. 39. Ver o 'programa dos 27 pontos' em 'Proclamação da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo', nos
Anexos.
198
Idem, ibidem.
199
Glênio Sá, op. cit., p. 12.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 112
"Começávamos o ano de 1972 com nova disposição. Nossa vida estava mais
organizada e disciplinada"200
"De março para abril de 72 começamos a colher o arroz plantado em dezembro, uma
grande quantidade, uma admiração. Estávamos sentindo na prática que éramos de fato
lavradores e pessoas naturalizadas na região."201
e - A preparação militar
Mas nem só de convivência com a população local viviam os 'paulistas', numa intensa atividade
A preparação propriamente militar dos militantes que chegavam consistia em aulas teóricas e em
"aprendíamos tudo sobre guerra regular e irregular, a relação entre os dois tipos, a
guerra de guerrilhas, algumas experiências internacionais e nacionais, as
contradições da tática anti-guerrilha, a moral dos combatentes, como criar um
exército popular, guerra justa e guerra injusta... Algumas orientações deviam ser
assimiladas por nós. Lembro-me de dez delas:
1 . O homem é o principal numa guerra...
2 . O aspecto político é o dirigente de qualquer luta;
3 . A moral depende da causa que se defende;
4 . Priorizar a guerra de guerrilhas como o método ideal de luta para nós (luta do
fraco contra o forte);
200
Ibidem.
201
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 40.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 113
5 . Ser ao mesmo tempo político, trabalhador e militar;
6 . Lealdade à causa, espírito coletivo, solidariedade, coragem e respeito aos bens,
às mulheres e aos costumes do povo;
7 . Domínio do cenário onde se desenvolve a luta;
8 . A adaptação à vida local já é uma preparação;
9 . Disciplina;
10. Indispensável apoio popular."202
José Genoíno Neto, que pertencia ao mesmo grupo de Glênio, sobre a preparação teórica,
Quanto à preparação prática para os enfrentamentos militares que viriam, segundo os relatos até
hoje publicados, eram realizados de manhãzinha, entre 6h30 e 7h30, pois "era um horário em que nunca
apareciam visitas"204 nas matas ou em suas casas. Já os treinamentos mais longos e exigentes eram feitos
"durante o inverno, principalmente, porque aí os rios enchem e há menos gente na mata"205 e seguia o
seguinte roteiro:
202
Glênio Sá, op. cit., p. 11.
203
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 37.
204
Glênio Sá, ibidem.
205
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 38.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 114
"A gente acordava às 6 em ponto. Fazia ginástica de características militares... para
enrijecer os músculos... no terreno de casa. Uma corrida um pique, camuflagem,
rastejamento; carregar peso, ficar com o braço estirado... carregar um companheiro
imobilizado. Uma hora e meia de ginástica pesada...
Tínhamos uma norma geral: ficar correndo durante uma hora sem parar dentro do
mato... tinha quase meia hora de natação"206.
No campo da preparação prática para a guerra de guerrilha, também constavam outros ítens, tais
acampamento e depois como camuflá-lo de modo a não deixar indícios nem rastros da presença dos
guerrilheiros, etc.
militante deveria então embrenhar-se na mata por trilhas previamente estabelecidos e construídas com
este fim, levando somente o conteúdo da mochila que, por sua vez, deveria estar sempre pronta para tal
eventualidade. Em seguida, deveriam se encontrar em pontos também já pré-fixados, isso tudo sem
Um ponto que merecia grande atenção era o relativo à sobrevivência durante longo período na
mata:
206
Idem, pp. 36-7.
207
Glênio Sá, ibidem.
208
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 37.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 115
Outro ítem que merecia igual tratamento prioritário era o de saber orientar-se na selva,
pois
"... uma guerrilha sem domínio do terreno é uma guerrilha cega. Nos orientávamos
pela bússola, a Lua, o Sol, as estrelas...
Tinha a orientação pelo sistema de drenagem, porque uma grota vai dar na outra
até dar no Araguaia e do Araguaia, o mar... O Cruzeiro do Sul também servia.
Tínhamos os mapas do IBGE209, mas... não eram suficientes, não davam grota, tipo
de selva, o rio. Era preciso um conhecimento detalhado"210.
fato de que entre os futuros guerrilheiros havia quem tivesse conhecimentos de geologia, procedeu-se
Havia ainda uma outra etapa dos treinamentos físico-militares, a preparação de caráter individual,
209
Sigla do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
210
Idem, ibidem.
211
Idem, pp. 37-8.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 116
... O importante era se movimentar, parar mas ao mesmo tempo não deixar rastro,
aprender a despistar e cortar rapidamende o contato com o inimigo.
... Esses treinamentos vão nos aproximar da realidade da guerra, porque eram
duros. Se alguém tinha malária, ele participava para ver a sua resistência marchando
assim. Era preciso ver o nosso ritmo na mata com os 20 quilos na mochila."212
"Essa era uma das tarefas mais sigilosas... ninguém conhecia tudo... Chegamos a
enterrar armas, colocar dentro de troncos de árvores... Cada um tinha uma técnica e
um local desconhecidos pelos outros."213
avanços e debilidades. Mas o comandante do destacamento, no caso presente, Osvaldo, observava todas
f - A organização militar
212
Idem, p. 38.
213
Idem, p. 39.
214
Idem, p. 40.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 117
A organização propriamente militar dos militantes do PC do Brasil se deu com sua distribuição
em três destacamentos guerrilheiros. Havia o Destacamento A, liderado por André Grabóis, localizado na
região chamada de Faveira; o Destacamento B, chefiado por 'Osvaldão', com base na área do Rio
Gameleira; e, o C, comandado por Paulo, estruturado também próximo a um afluente do Rio Araguaia,
chamado Caiano.
também chamado 'comissário político', e mais vinte e um membros, divididos em três grupos de sete
guerrilheiros, cada qual com seu líder, totalizando assim vinte e três componentes215.
Havia ainda a Comissão Militar, liderada por 'Mário', 'Tio Cid', 'Joaquim' e 'Pedro', mas também
composta pelos comandantes dos três destacamentos mais o responsável pelo serviço médico, 'Juca'.
Embora tenha mudado muito de localização durante o período de enfrentamentos com as tropas
governistas, sua base durante a fase de instalação das 'frentes' na região do Araguaia teria se localizado
As normas que regiam toda a organização político-militar foram publicadas sob o nome de
'Regulamento das Forças Guerrilheiras do Araguaia' - FORGA, datado de "meados do ano de 1973"217.
No entanto, é de se duvidar que tal regulamento só tenha entrado em vigor na data de sua publicação,
pois desde a chegada os militantes tinham que se submeter a uma disciplina férrea e com peculiaridades
que não constam dos estatutos do partido. Logo, pensamos, tal 'regulamento', na prática foi o corpo
normativo que estabeleceu os direitos e deveres dos militantes destacados para o tarefa 'especial' no
215
Este era o número considerado ideal de componentes para um destacamento, o que não significa que os três já o
tivessem atingido. Glênio Sá, do B, diz que em 1972 "precisávamos... de mais quatro... para completar" (Op. cit., p. 12) e
Angelo Arroyo diz que "Para completar os efetivos, faltavam 13 elementos" ("Relatório Sobre a Luta no Araguaia". In: João
Amazonas e alii, op. cit., p. 17).
216
Cf.: mapa do "palco de operações". In: Fernando Portela, op. cit., p. 24.
217
"Regulamento de 32 Artigos das Forças Guerrilheiras do Araguaia". In: Clóvis Moura, op. cit., pp. 67-74.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 118
Araguaia, assim como as sanções a que estariam virtualmente sujeitos em caso de falta para com a
organização, definia também a estrutura organizativa da base guerrilheira, assim como, regulamentava a
estava, expressamente, submetida ao "Comitê Político da região guerrilheira", o qual, aliás, tinha como
prerrogativa designar a própria Comissão Militar. Em outras palavras, o texto em exame obedecia ao
preceito fixado há muito pelo PC do B de que 'o político dirige o militar e não o contrário' (Ver supra,
p.).
Outro detalhe importante de toda a organização militar levada à prática na região do Araguaia era
o isolamento de um destacamento em relação aos demais. Ou seja, só mesmo a Comissão Militar tinha o
conhecimento da localização exata das três frentes de trabalho político na área, assim como do número
Tal estrutura seguia de perto as idéias de Lênin sobre o trabalho conspirativo do partido
sobretudo, através de uma estrutura rigidamente vertical, onde é impossível o contato 'horizontal' direto,
no caso em questão, de um destacamento com outro, proteger o conjunto da organização que não seria
conhecida por completo que por seus dirigentes máximos. Tal expediente era como que uma válvula de
segurança, para a eventualidade de algum ou alguns de seus militantes serem presos, não poderem,
mesmo se assim o desejarem (ou forem forçados), denunciar à repressão todo o conjunto do partido.
Para que o conjunto do trabalho não se efetue de uma maneira anárquica, Lênin preconizava uma direção
218
Cf.: V.I.Lênin, Organização Comunista, Lisboa, Maria da Fonte, 1975, passim.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 119
O ano de 1972 começa com o PC do Brasil endurecendo o seu discurso oposicionista e, nas
entrelinhas, pode-se entrever que a longa preparação guerrilheira em curso na região do Araguaia, era
PC do Brasil:
219
"1972 - Maior Impulso à Luta Contra a Ditadura". Jornal A Classe Operária, s.l., nº 61, janeiro de 1972. In: Wladimir
Pomar, op. cit., p. 220.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 120
que apregoa. Se o povo se levantar verá que ele é o forte e o opressor o fraco. Pode,
portanto, atrever-se a lutar, desafiar a reação interna e o imperialismo norte-
americano. As condições lhe são favoráveis. Ousando combater e persistindo no
combate será vitorioso."220
fundação do partido, e mostrava o otimismo que se pôde atestar nas linhas supra citadas, o clima entre os
Como já foi dito, havia um novo ânimo para os 'paulistas' ao despontar o ano de 1972. Eles
contabilizavam diversos avanços em variados aspectos da tarefa à qual se consagravam há quase seis
anos.
Juntamente com este certo clima de euforia pelos obstáculos superados, crescia também entre os
'paulistas' a tensão pois os problemas em torno da posse da terra aumentaram vertiginosamente em toda a
região, multiplicando os conflitos entre posseiros e grileiros, o que fazia supor que tal fato acabaria por
"A inquietação vai tomando conta dos pacatos moradores do sul do Pará. Dezenas
de lavradores... procuram Paulo Rodrigues para discutir a situação... No Gameleira,
muitos buscam contato com Osvaldo para pedir-lhe conselhos. Zécarlos também é
ouvido. A massa fala em... volta ao cativeiro"222.
220
"PC do Brasil - Vanguarda Combativa do Proletariado e do Povo Brasileiro". Jornal A Classe Operária, nº 63 (edição
especial), março de 1972. In: Op. cit., pp. 226-7.
221
"Diário da Guerrilha do Araguaia". In: Op. cit., p. 32.
222
Idem, p. 34.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 121
Mesmo entre os outros moradores é grande a expectativa de um ataque violento dos
grileiros à região:
"O ambiente torna-se tenso, todos esperam a qualquer momento o emprego da força
pelos grileiros, com o apoio do governo. Algumas pessoas ainda pensam que o
Exército poderá defendê-las, outras dizem que fardas só trazem desgraças. Os
fatalistas afirmam que pobre nasceu para ser enxotado. Há também os que guardam
silêncio, um silêncio feito de ódio"223.
Como que presentindo o que iria se passar na seqüência, os 'paulistas' tomam medidas de
precaução:
Em março, o primeiro indício de que o Exército suspeitava de que alguma coisa estava a ocorrer
"Em março de 72 eu fui pra Xambioá... fazer compras... No dia anterior os caras de
Brasília tinham passado, à paisana. Vou prum [sic] hotel, e, como a mulher me
conhecia bem, falou:
- Olha, passaram os federais aqui, procurando 'terroristas'...
O pessoal me falou mas eu tinha elementos pra saber que não era a gente que
estavam procurando."225
"... Uma vez, cheguei a Xambioá à noite e estava havendo uma batida da Polícia
Federal por causa de algumas mortes ocorridas em Paraíso do Norte com o pessoal
do MOLIPO... e a mulher do hotel falou para mim que não fosse para a rua de
revólver pois poderiam me prender. Eu fiquei muito preocupado, pois estava sozinho
223
Idem, ibidem.
224
Glênio Sá, op. cit., p. 14.
225
"Entrevista com José Genoíno Neto" (1979). In: Op. cit., p. 41.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 122
naquele hotelzinho, e ela deve ter notado. Fui ao armazém comprar farinha, sal,
armas e munição e confirmei a presença dos federais. Resolvi, então, viajar de noite.
Quando fui pegar o barco para voltar para o mato, ela olhou para mim e perguntou:
«Por que você está saindo agora?» Mais tarde, quando fui preso e levado para a
pracinha do hotel, lá em Xambioá, a velhinha botava a cabeça na porta, me olhava
rapidamente todo amarrado e só de calção, e se escondia de novo. Parecia que ela
estava recompondo aquela história."226
Não se levaria em devida conta as informações obtidas em Xambioá, por que os 'paulistas'
estavam informados de que a repressão estava procurando na área dois 'terroristas' de uma outra
organização de esquerda no norte de Goiás, o que, ao que tudo indica, era inexato pois hoje supõe-se
que já se tratavam então de 'especialistas' das FF.AA., verificando informações recebidas. Mesmo assim,
a Comissão Militar emite orientações no sentido de se reforçarem medidas de segurança e de que todos
Mas, mesmo os militantes do PC do B estando em 'estado de alerta', não deram muita atenção à
dos 27 pontos' e tentam criar um clima favorável a uma resistência dos moradores caso se concretizasse
226
Roberto Benevides, "Playboy entrevista José Genoíno", Revista Playboy, SP, maio de 1993, p. 38.
"Senhores, peço licença Garimpeiro, seringueiro
Me ouçam com atenção Madeireiro, lavrador
Vou falar sobre o Brasil Seja qual a profissão
Da atual situação É um povo sofredor
Do camponês cá do Norte O vaqueiro, nem se fala
Que sendo valente e forte O barqueiro, êsse não cala
Ainda passa aflição Vão lutar pra ter valor...
'Vão lutar pra ter valor'. Nos versos de cordel, que eles mesmos inventavam, as
novas idéias começavam a tomar conta das populações dos lugarejos do Araguaia"227.
organização da população para este efeito, realizam neste momento também algumas ações contra
rincão longínqüo. A continuidade deste segredo, nao os impede contudo de avançar um pouco mais no
"... Osvaldo mobiliza seus amigos. Zécarlos, idem. Outro tanto, Paulo Rodrigues. São
os elementos mais considerados na região. Fazem-se preparativos. Se o inimigo
atacar, como proceder? Todos recebem instruções"228.
O 'estado de alerta' fôra ordenado pela Comissão Militar e os 'paulistas' passam a estar bem
atentos a quaisquer movimentos suspeitos em toda a região. Pressente-se que o momento do confronto
se aproxima:
"A gente estava mais ou menos no geral preparado para, a qualquer momento, ser
forçado a resistir...
A frase que a gente mais ouvia era:
- Chegou a hora!"229
227
Fernando Portela, op. cit., p. 37.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 124
Constitui grande problema para um historiador da Guerrilha do Araguaia, afirmar com segurança
Araguaia.
Angelo Arroyo, um dos membros da Comissão Militar, dirá em relatório feito ao Comitê Central
Contudo, em 1982, quando o PC do Brasil publica o referido relatório, após realizar maiores
investigações a respeito, acrescenta-se, sob a forma de uma nota de rodapé, que "... verificou-se que o
denunciante dos companheiros que se encontravam no Araguaia foi Lúcia Regina Martins de Souza e
Wladimir Pomar, à época membro da direção do partido, detalharia um pouco mais essa
retificação feita pelo PC do Brasil, observando que o próprio Arroyo havia participado das investigações
"No 'Relatório'... afirma [-se] que a área fôra descoberta por denúncia de Pedro
Albuquerque... Comprovou-se posteriormente, com o auxílio do próprio Arroyo, que
essa informação era inexata"232.
228
Clóvis Moura, op. cit., p. 34.
229
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 41.
230
Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia". In: João Amazonas e alii, op. cit., p. 17.
231
Idem, ibidem (nota de rodapé).
232
Wladimir Pomar, op. cit., p. 37 (nota de rodapé nº 61).
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 125
"... Regina, uma das militantes selecionadas para o trabalho na área,
ficou doente e teve que ser enviada para o sul em meados de 1971 para tratamento,
apesar das normas em contrário estabelecidas pela Comissão Militar. Acabou
desertando e, sob pressão da própria família, denunciou o trabalho de preparação"233.
sustentara outra versão do fato, uma outra hipótese de como as FF.AA. chegaram ao Araguaia:
Baseando-se nesta avaliação dos 'especialistas' enviados à região, ele prossegue afirmando que
"Foi um erro de avaliação. Sabe-se, de fontes militares [grifo nosso], que, nessa
fase de investigações, o próprio governo federal não deu muita atenção ao caso, que
ficou basicamente a cargo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e órgãos
paralelos, como o DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações - Centro
de Operações de Defesa Interna) e outros. Algumas reuniões dos chefes militares,
233
Idem, p. 38.
234
Fernando Portela, op. cit., p. 28.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 126
onde se sobrepunha o Comando Militar do Planalto, em Brasília, e a ordem foi a de
prender todos os subversivos amazônicos"235.
A versão sustentada pelo PC do Brasil é digna de credibilidade, pois é fruto de uma longa
investigação promovida pelo próprio partido. Entretanto, a versão apresentada por Portela não tem
menos credibilidade e cumpre ao menos o papel de lançar a dúvida no ar, pois sabe-se que, para escrever
o seu livro sobre a Guerrilha, ele contou com fontes de informação no alto escalão das FF.AA236.
Em todo caso e, por via das dúvidas, não se pode afirmar com absoluta certeza como se deu a
descoberta dos preparativos do PC do Brasil na área do Araguaia sem que as FF.AA. permitam o acesso
aos seus arquivos. Só assim será possível desvendar mais este mistério, entre tantos outros que ainda
existem.
uma invasão e ocupação de toda a região do sul do Pará. Começava, então, verdadeiramente, a Guerrilha
do Araguaia.
No dia 12 de abril de 1972, ocorreu o ataque das FF.AA. à região do baixo Araguaia. Apesar de
W. Pomar escrever que tal acontecimento se deu de forma inesperada, que teria pego o partido na região
desprevenido:
235
Ibidem.
236
É visível a colaboração de militares em seu livro. Em primeiro lugar, ele publica uma entrevista com um oficial do
Exército sobre o tema - fato inédito. Em segundo lugar, a partir da terceira edição, o livro passa a incluir carta ao autor, do
General Hugo de Abreu, um dos principais comandantes das FF.AA. no combate à Guerrilha, na qual elogia o trabalho de
Portela. (Ver: Fernando Portela, op. cit., p. 1).
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 127
"O ataque das Forças Armadas foi uma surpresa tanto para a direção do
partido na área, quanto para a parcela da direção que ficou responsável pelo resto do
trabalho partidário."237
Pelo menos no que diz respeito ao partido na área, não é isso o que se depreende do relato de
Angelo Arroyo, membro da Comissão Militar, presente na região naquele momento. Em seu
'Relatório...', ele nos conta que após tomar conhecimento da prisão de Pedro Albuquerque, em março de
1972,
Arroyo continua, narrando o começo das operações das FF.AA. na área, assim como a primeira
Fernando Portela narra assim o começo das operações no mesmo dia 12 de abril:
237
Op. cit., p. 37.
238
Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia". In: Op. cit., p. 17.
239
Idem, ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 128
"... cerca de 2 mil homens das Brigadas de Infantaria da Selva (BIS) e outras
unidades da área, mais pessoal de Brasília e Rio, inclusive pessoal à paisana do
Comando Militar do Planalto, tomam de assalto a região do baixo Araguaia, fazendo
de Marabá e Xambioá suas cidades-quartéis"240.
do Brasil, embrenham-se na mata, frustrando assim as expectativas de uma mera e simples missão de
"Dia 12, as tropas iniciam o ataque aos habitantes da zona da Faveira e de São
Domingos das Latas. Prendem diversas pessoas. Aí pelas doze horas... chegam ao
barraco denominado PEAZÃO... Não encontram ninguém porque todos se internam
na mata...
Dia 14, o Exército ataca o pessoal da área do Caiano e de São Geraldo... Mas não
conseguem prender os que aí vivem. Empregam a violência indiscriminada contra a
população...
Uns dez dias depois, o Exército assalta também os moradores do Gameleira.
Osvaldo e seus companheiros já haviam se retirado para a mata."242
"No dia 13 de abril, à noite, veio ao castanhal um camarada nos avisar de que um
estafeta nosso da região de Apinagés chegara com a notícia de que o Exército tinha
invadido aquela área... a decisão era uma só: resistir...
Começamos a arrumar as nossas coisas e a levá-las para o mato... Eram os
preparativos para a resistência necessária.
As quatro casa foram evacuadas às pressas. Partimos em marcha para a floresta,
cuidando para não deixar rastros...
240
Op. cit., p. 28.
241
Idem, p. 44.
242
"Diário da Guerrilha do Araguaia". In: Op. cit., pp. 35-6.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 129
243
... Começava uma nova vida para todos nós. A vida de guerrilheiros."
Fernando Portela diz, partindo da sua hipótese de que as FF.AA. para lá se dirigiram para prender
alguns estudantes, diz, mas que, no entanto, logo mudaram de opinião acerca das dimensões do núcleo
Enquanto as FF.AA., por sua parte, se davam conta de que o que se passava no Araguaia era algo
de muito mais grave do que imaginaram, os 'paulistas', por sua vez, tomavam todas as providências para
organizar a resistência armada e já falavam aos seus vizinhos com maior desenvoltura sobre seus planos
"... dia 16 à tarde alguns lavradores estiveram lá em casa. Viram que estávamos
num clima de tensão. Falamos:
- Os grileiros estão querendo perseguir a gente. Não vamos querer ser presos, não
vamos ficar em casa, vamos nos defender!
Todo mundo dizia:
- Podem contar conosco! Como é que é? Vocês vão pro mato?
A gente ia falar pro povo agora abertamente, falar o que estava existindo, o que é
que era mesmo."245
243
Glênio Sá, op. cit., pp. 14-5.
244
Op. cit., p. 28.
245
"Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 42.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 130
"... Nós decidimos, junto com o povo, não nos entregarmos ao Exército quando ele
atacou. Decidimos não depor as armas, não ser pego vivo, não ser preso de jeito
nenhum. Resolvemos, junto à população, resistir."246
Quando as FF.AA. atacam a 'base' do Araguaia, a Comissão Militar considerava que "ainda não
A direção do PC do Brasil declara que não considerava o momento propício para o início da luta
armada, mas que não lhe havia restado outra alternativa senão resistir:
"A fase da luta surgiu num momento em que as massas populares estavam
estranguladas, a imprensa censurada, tudo contido pelo fascismo ao lado da euforia
do 'milagre brasileiro'. Na verdade, não esperávamos que a hora chegasse em 1972.
Isso não foi bom, mas nos descobriram, nos atacaram, então não tinha jeito."248
Em entrevista recente, José Genoíno Neto também disse que a Guerrilha só foi desencadeada
naquele instante por causa da ofensiva das tropas governamentais: "Se dependesse dela, a guerrilha
começaria de outra maneira. Agente certamente faria alguma ação fora e se refugiaria na região"249.
Mesmo assim a orientação dada foi a de resistir, muito embora se ajuntasse que todos os
Arroyo faz um balanço quantitativo e qualitativo dos efetivos do PC do Brasil presentes na região
246
"Fala o Guerrilheiro" (Entrevista com José Genoíno Neto). In: Fernando Portela, op. cit., pp. 154-5.
247
Angelo Arroyo, "Relatório...". In: Op. cit., p. 17.
248
"Fala o Líder Comunista" (Entrevista com Haroldo Lima). In: Fernando Portela, op. cit., p. 172.
249
Roberto Benevides, "Playboy entrevista José Genoíno", op. cit., p. 38.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 131
grandes. Muitos companheiros tinham ainda dificuldades em se orientar na
mata e caçavam mal."250
Também procede a um inventário da situação material das três frentes do Araguaia, destacando a
"... Não existia também uma rede de informações e de comunicações. Não existiam
organizações do Partido nas áreas periféricas, nem mesmo nos Estados vizinhos. A
CM e os Destacamentos A e B dispunham de pouco dinheiro."252
Mesmo que o balanço final não fosse dos mais animadores, principalmente do ponto de vista
material, os 'paulistas' decidiram resistir e refugiam-se na selva amazônica, procurando de toda forma
pescadores, enfim, camponeses da região do baixo Araguaia. Doravante serão guerrilheiros, dispostos a
250
Idem, ibidem.
251
Idem, ibidem.
252
Idem, ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 132
entregar suas próprias vidas pelo ideal que abraçavam. Não serão mais chamados pelos habitantes da área
de 'paulistas' ou de 'mineiros'. Não. Do momento em que internam-se na mata e fazem dela o seu 'habitat',
para os caboclos e posseiros, os seus 'simpáticos' vizinhos passarão a ser designados como o 'povo da
mata'.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 133
Guerrilha
As FF.AA. lançaram contra os guerrilheiros do Araguaia três ofensivas, três campanhas de 'cerco
se mesmo dizer que, nas duas ocasiões, os guerrilheiros levaram a melhor. Não por que tenham vencido
batalhas, mesmo porque esta não é uma característica própria da guerra de guerrilhas, nem um dos seus
objetivos sobretudo na fase inicial, mas pelo simples fato de terem conseguido sobreviver, de não terem
"O tempo corre a favor da guerrilha, tanto no campo de batalha, onde o inimigo
dispende diariamente uma fortuna para a perseguir, como na cena político-
econômica...
... a missão das guerrilhas... é destruir a imagem de um governo estável... pôr em
causa a sua eficiência...
O primeiro passo será o começo... golpe em cheio que traz sempre sério desprestígio
ao regime. A sobrevivência da guerrilha durante largo tempo, demonstrando a
incapacidade do exército, faz continuar o processo já iniciado... aumenta o apoio à
guerrilha... à medida que se vai revelando a fraqueza do governo [grifo nosso]"253.
253
Cf. Robert Taber, Teoria e Prática de Guerrilha, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1976, pp. 36-7.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 134
Já a terceira campanha, que se diferenciou bastante das duas outras que a precederam, obteve o
Passaremos agora a tentar desenhar um quadro dos enfrentamentos militares ocorridos no sul do
Pará entre os anos de 1972 e 1975, que se assemelhe ao máximo àquele que se configurou em realidade,
buscando verificar quais os principais eixos táticos e estratégicos utilizados pelos dois lados em cada uma
Todos os que até hoje se debruçaram sobre os fatos ocorridos naqueles anos às margens do Rio
Neste trabalho, não encontramos nenhuma razão plausível para não adotá-la, pois parece ser
aquela que mais luz lança sobre os eventos que lá ocorreram, possibilitando a sua mais inteligível
compreensão.
tendo assim, sistematicamente, três fases de combates cerrados e um interrégno, de 'trégua', entre a
A primeira campanha de 'cerco e aniquilamento' realizada pelas FF.AA. começou com a chegada
das tropas oficiais à área no dia 12 de abril de 1972 e terminou com a retirada das mesmas em julho do
Apesar de incluírmos estes quatros meses todos numa só fase, não queremos com isso dizer que
as tropas do governo foram obrigadas a realizarem uma inflexão tática quando se deram conta, logo no
início de suas incursões na região, de que, diferentemente do que lhes haviam informado os 'especialistas',
o que estava a ocorrer às margens do Araguaia era muito mais amplo que se pensava quando para lá se
dirigiram os primeiros soldados. Tal tomada de consciência no entanto não alteraria o essencial da tática
empregada desde o início da primeira campanha. As mudanças que se efetuariam se dariam mais no
Arroyo, ainda em seu 'Relatório...' comenta os principais eixos de atuação das tropas governistas:
Em relação à população local, segundo Arroyo, o procedimento das FF.AA. foi o seguinte:
254
Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia".In: op. cit., p. 18.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 136
Também algumas roças e casa da massa foram queimadas. As perseguições
estenderam-se aos padres. Alguns foram presos e depois soltos."255
Ainda sobre a tática usada pelas FF.AA., todas as evidências apontam para o fato de que, no
início, talvez por conta da pouca importância que se tinha dado aos 'subversivos' estabelecidos na região
amazônica, foram utilizados soldados não-profissionais, ou seja, recrutas ou conscritos, jovens de 18/19
anos que cumpriam o serviço militar obrigatório. Sobre o tema, F. Portela narra um episódio que diz ser
"um exemplo do primeiro erro das forças do governo... jogar recrutas de seis meses
de quartel dentro da selva inóspita, habitada por um contingente de 63 guerrilheiros,
treinados dentro da própria selva, alguns com seis anos de preparação militar rígida,
espartana, e um espírito de decisão surpreendente. Além disso, muito bem orientados
por militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), homens com formação
militar no exterior, teoricamente comparáveis a brilhantes oficiais brasileiros"256.
O jornalista dizendo que os recrutas foram verdadeiros 'bois de piranha'257 utilizados pelo
Exército, reconta uma história que se sucedeu com um jagunço, o 'China', que habitava na região quando
" - A culpa foi minha, diz ele [o China]. Quando o Exército entrou... procurando
terroristas, eu sabia que só podia ser os 'paulistas' como 'seu' Paulo... que eu
conhecia muito de vista, eu caçava por ali... Esse 'seu' Paulo e os amigos e amigas
dele... a gente via que era de fora... Aí eu caí na besteira de contar que conhecia... e o
sargento me disse: «Olha 'seu' China, quem conhece terrorista é terrorista também, e
só tem um jeito de provar que não é terrorista». Aí eu senti a perdição. . «E como é
que é que eu provo, 'seu' sargento?». Ele disse: «Me leva até lá que eu vou prender
esses caras». Eu fiquei até com dó do homem, coitado... porque aquele pessoal do
255
Idem, ibidem.
256
Op. cit., p. 25.
257
Expressão popular que significa usar algo ou alguém como ísca, como chamariz. No caso concreto, significa usar de má
fé soldados mal treinados e despreparados para operações violentas e em ambiente totalmente adverso para, através deles,
sentir a dimensão real do que as FF.AA. teriam que enfrentar.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 137
mato... não era brincadeira não, eles treinavam muito tiro, caçavam melhor
do que eu, essa Dina aí era a que atirava melhor de todos eles, bonitona, e foi ela
mesmo que quase matou nós todos, aí eu disse: «Sargento, não dá pra prender os
homens, não». Ele: «Deixa comigo e me leva lá, que esses terroristas só são bons em
São Paulo, aqui a gente torce o pescoço deles». Eu não tinha jeito, né? Fui guiar os
homens... mas quando eu vi o soldado cair duro, sabe, eu pensei foi só em mim mesmo
e resolvi cair fora daquela guerra, porque se eu não morresse naquele dia, morria no
dia seguinte, aquilo ia durar muito tempo, os soldados não entendiam nadinha de
mato..."258
Apesar de nos fazer rir, esta história contada pelo jagunço 'China' atesta a irresponsabilidade do
comando das FF.AA. ao envolver soldados 'involuntários' numa tarefa de combate em selva. Mas,
profissionais, tinham que se envolver no combate ao 'terrorismo', na luta para 'salvar o Brasil da ameaça
do comunismo internacional'. Então, tudo se justificava em nome do 'Brasil grande', slogan daqueles
tempos. E quem se negasse, fosse pelo pretexto que fosse, passava a ser suspeito de 'atitude negativa' em
relação às FF.AA.
Não se têm até hoje as estatísticas de quantos recrutas teriam morrido nessa primeira ofensiva das
" - Quando o Exército entrou na mata foi mal sucedido. Fiquei com pena dos
rapazes do Exército. Foram mortos muitos. Caminhões saíram cheios de soldados
mortos"260.
258
Op. cit., pp. 25-6.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 138
"... o número exato das baixas do Exército permanece em repouso nos arquivos
secretos das Forças Armadas. Segundo E. (Por motivos de segurança... VEJA se vê
obrigada a omitir... nomes), um técnico maranhense que chegou a Xambioá... quartel-
general das tropas que operaram na zona da guerrilha em princípios de 1972, essas
baixas não foram poucas... «No começo os soldados apanharam muito», lembrou E. a
VEJA na semana passada. «Os corpos vinham nos helicópteros que desciam na base
aérea e eram colocados em carros frigoríficos». Cerca de um mês depois da chegada
das tropas, E. ouviria um comentário de um soldado: «Com esse, são onze». Mais
tarde, a contagem subiria para 32."261
"Os primeiros meses foram difíceis para o Exército. «As tropas entraram na mata
pensando que não haveria problemas, mas só num dia, perto do Brejo Grande,
morreram dezesseis soldados», disse a VEJA um integrante do 51º Batalhão de
Infantaria de Selva (BIS)".262
Além dos problemas de ordem técnica, isto é, relativos à preparação, ou à falta dela, um oficial
" - Você pensa que o problema dos recrutas era somente o da inexperiência, de não
conhecer a mata, essas coisas? Ou do medo dos guerrilheiros? Que nada: além de ter
medo dos guerrilheiros, eles, coitados, que vinham de famílias humildes dali do Norte
mesmo, tinham medo de Saci, Mãe de Fogo, Lobisomem263 [grifos nossos]..."264
As FF.AA. cometiam erros e mais erros, também em outros domínios, sendo que o fundamental
de todos eles parece ter sido o de subestimar os guerrilheiros do Araguaia e de cometer abusos e
259
Op. cit., p. 52.
260
Frei Gil Vila Nova, "Entrevista com Frei Gil". In: João Amazonas e alii, op. cit., p. 14.
261
VVAA, "As Guerras Secretas", Revista VEJA, SP, Ed. Abril, 06/09/1978, p. 54.
262
Idem, p. 56.
263
Entidades fantásticas que, segundo as crenças populares, habitariam as florestas, protegendo alguns e atacando outros.
264
Op. cit., p. 58.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 139
violências contra a população local, de quem se suspeitava fortemente simpatizar e ajudar o
'povo da mata'.
Nem mesmo o prefeito de Xambioá, segundo nos conta o seguinte relato aparecido num
insuspeito periódico de circulação nacional, teria escapado do tratamento bestial das FF.AA.:
"Era natural, assim, que Xambioá acabasse rapidamente transformada num Forte
Militar. Certa feita, um oficial do Exército solicitou ao prefeito João Saraiva, do
MDB265, que providenciasse um trator para melhorar as condições da pista de
aviação. Ao retrucar que qualquer trator atolaria no terreno, lamacento com as
chuvas de inverno, Saraiva ouviu a ameaça: «Se não arranjar o trator, vou fazer um
avião bater na sua bunda». Depois de alguns incidentes desse gênero, Saraiva foi
preso e encaminhado a Araguaína, de onde só voltaria graças à mediação de um
deputado - e já filiado à ARENA."266
A guerrilha, por outro lado, acumulava capital político e militar, que se traduzia na admiração que
todo o povo daquelas paragens àqueles que tinham a coragem, ou melhor, a audácia de enfrentar de,
igual para igual, as todo-poderosas FF.AA. muito melhor equipadas e em incomparável maior número.
Assistiam e ouviam histórias e 'estórias' sobre a valentia e ousadia dos seus ex-vizinhos e já nesta época
começam a circular as primeiras lendas acerca de alguns guerrilheiros, notadamente Dina e Osvaldo, que
seriam, segundo revelações dos espíritos nas sessões de 'Terêcô', imortais, teriam o corpo fechado267.
Não era para menos, enquanto o Exército, que se auto-proclamava o salvador daquelas
populações da influência malsã dos 'terroristas', maltratava e humilhava diariamente pais de família,
265
Sigla do Movimento Democrático Brasileiro, então o único partido legalmente autorizado a existir, além do partido
situacionista, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Muito embora, no princípio, tenha sido um partido extremamente
moderado, era assim mesmo objeto de perseguições. Mais tarde, se transformará no principal partido de oposição e elegerá
em 1985, com apoio da maior parte do movimento popular organizado e de partidos políticos de oposição, clandestinos ou
não, Tancredo Neves, presidente da República, marcando, assim, o fim de mais de 20 anos de regime militar.
266
"As Guerras Secretas", op. cit., pp. 55-6.
267
Expressão de uso corrente nos rituais de origem africana. Significa ter o corpo invulnerável, inatingível por qualquer
objeto material (balas, por exemplo) ou pensamento maldoso, venha de onde vier.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 140
suspeitos de serem colaboradores da guerrilha, os guerrilheiros, quando apareciam, explicavam porque
lutavam, pediam ajuda, quase sempre gêneros alimentícios, não tomavam nada da população. Além disso,
aqueles que agora se acusava de serem terroristas haviam convivido com aquele povo pobre durante
cerca de seis anos, em tudo lhe servindo, fazendo-lhes prova de amizade e respeito.
A Igreja Católica também foi vítima das agressões indiscriminadas praticadas por agentes das
FF.AA. Frei Gil Vila Nova, um dos pioneiros no trabalhos de catequese junto aos índios Suruí, ganhou a
antipatia das tropas do Exército porque se opôs enquanto pôde à utilização dos indígenas como guias
para caçar os guerrilheiros. Fernando Portela diz que certa feita ele foi obrigado a fugir de uma área em
Em outro incidente, o desfecho não foi tão favorável aos membros do clero católico. No dia 30
de maio de 1972, a população de um povoado chamado Palestina assiste, impotente e revoltada, à prisão
de um padre e uma freira, tudo porque um tenente, chamado Alfredo, convenceu-se de que se tratavam
de dois líderes da guerrilha. A irmã Maria das Graças seria uma das guerrilheiras. O padre francês,
Roberto Valicourt é preso pois os soldados procuravam um padre que seria o comandante guerrilheiro,
Paulo Rodrigues. Ocorre que o padre que eles procuravam era igualmente francês, mas outro, o padre
268
Fernando Portela, op. cit., pp. 47-8.
269
Op. cit., p. 53.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 141
Humberto Rialland. Mesmo quando ele se identificou, o tenente não se importou e o levou
assim mesmo. Ambos são presos e conduzidos a um lugar ermo, uma casa vazia onde se segue o seguinte
interrogatório:
270
Sigla do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
271
Idem, pp. 53-4.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 142
Assim que soube do que estava a ocorrer com os religiosos, a mais alta autoridade eclesiástica da
região, o bispo de Marabá, imediatamente dirigiu-se até onde eles estavam presos, mas mesmo ele, foi
"O bispo Estevão Cardoso Avelar chegou a ser detido na estrada, por uma barreira
militar, por cinco horas. Eletentava chegar aos dois religiosos de qualquer maneira...
Num outro município... chegou até um major, chamado de major Otto [que]
amabilíssimo, pediu desculpas... Mas o bispo, ele sim, estava com os nervos abalados.
Sobretudo porque, antes, ouvira a acusação de que o padre francês Roberto de
Valicourt lia o «jornal comunista Le Monde» e também ouvira do próprio tenente
Alfredo, que cepois de muita relutância o enviara ao major Otto:
- O senhor vai ser acompanhado por um pelotão.
E dirigindo-se ao sargento chefe do pelotão:
- Leve esses camaradas (o bispo estava acompanhado) para Araguatins e, se eles
criarem caso na estrada, passe fogo!"272.
Até mesmo em São Felix do Araguaia, pequeno povoado do Estado do Mato Grosso, muito
distante do 'teatro de operações' da guerrilha do Araguaia, e, ao que consta, jamais freqüentado pelos
'paulistas', as FF.AA. atacaram membros da Igraja Católica. O bispo Dom Pedro Casaldáliga,
considerado um 'progressista' dentro da Igreja, e, portanto, suspeito em potencial, teve toda sua área de
atuação vasculhada pelas tropas federais, a população local foi igualmente intimidada, ele é quem se
recorda da época:
272
Idem, p. 54.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 143
outro tipo de comentário: «Então, se os terroristas são isso que eles dizem,
se comunista é isso que eles dizem, só pode ser gente boa»"273.
Desta forma, a primeira campanha das FF.AA. de 'cerco e aniquilamento' se esvaía. É ainda o
jornalista Fernando Portela quem diz que data desta época, fins de julho de 1972, um início de divisão no
seio do seu Alto Comando. Uma divisão a respeito de como deveria ser levada a luta anti-guerrilheira no
sul do Pará:
Durante esses quase quatro meses, o comando geral dos guerrilheiros, a Comissão Militar (CM),
orienta os destacamentos a "1) recuar para as áreas de refúgio; 2) buscar contato com as massas; e, 3)
tentar realizar ações de fustigamento e emboscada do inimigo"276. A CM também faz publicar e circular
entre a população o 'Comunicado nº 1', no qual se explica o porquê da resistência armada em curso,
proclama-se a fundação das Forças Guerrilheiras do Araguaia (FORGA), conclama o povo a apoiar os
guerrilheiros e a resistir aos ataques das FF.AA. Redige-se também a 'Carta a um Deputado Federal',
que é enviada ao sul para divulgação nos grandes centros urbanos pelos organismos do partido. O
273
"História da Guerrilha do Araguaia", jornal Movimento, SP, nº 159, 17/07/1978, p. 10.
274
Tropas federais que não se identificam, que não portam uniformes, não cortam os cabelos ou fazem a barba como é a
regra nas casernas, nem carregam consigo quaisquer objetos que as identifiquem como tal. Normalmente, são componentes
das forças de elite das FF.AA.
275
Op. cit., p. 57.
276
Angelo Arroyo, op. cit., p. 18.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 144
Destacamento A (Faveira) envia uma carta a Dom Estevam Cardoso de Avelar, intitulada 'Carta de
Quatro Guerrilheiros ao Bispo de Marabá', na qual expõe os motivos da guerrilha e se solidariza com os
religiosos agredidos covardemente pelos soldados do Exército (Ver íntegra destes documentos nos
Anexos).
"... apesar de ter participado apenas da 1ª campanha, deu pra sentir que não seria
fácil. O inimigo, forte e bem armado, impôs-nos um violento cerco. Passamos fome,
frio, vivemos ao relento, encharcados até os ossos, muitas vezes tivemos que comer
277
Idem, ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 145
carne crua porque o inimigo presente não nos permitia acender o fogo...
meu destacamento, o A, não teve confrontos durante a 1ª campanha. Mas, junto com
um grupo guerrilheiro, fomos cercados... Isto durou uns 15 dias. Neste período,
evitamos contato com a população para impedir que pudesse haver alguma delação
ou informação a nosso respeito. Foram dias muito difíceis. O moral porém manteve-
se bem elevado"278.
Glênio também narra o que se passou com o seu destacamento, o B, durante o mesmo período:
"Mais de uma semana depois da nossa retirada para a mata, chegou uma tropa do
Exército à nossa morada principal. Observamos a sua aproximação. Eram cerca de
30 soldados. Queimaram as duas casas... Mas não chegaram a penetrar na floresta.
Os nossos dirigentes decidiram que iríamos para uma área de refúgio mais distante,
dentro da selva... Tínhamos todo o cuidado com a fumaça e o fogo para não serem
vistos por aviões e helicópteros. A ordem era evitar o contato com o inimigo. Nesse
local, passamos uns dois meses. Tivemos problemas com alimentação... de saúde...
diarréia e malária...
... A nossa moral, apesar das dificuldades, era muito elevada"279.
Enquanto tudo isso se passava nas matas amazônicas, a direção central do PC do Brasil, tentava
de todas as maneiras restabelecer contatos com os guerrilheiros. Tal ligação, até então bem estreita,
O dirigente comunista João Amazonas, então encarregado de cumprir o papel de elo de ligação
entre as frentes guerrilheiras e o partido, havia ido a uma reunião do Comitê Central, comemorativa do
cinquentenário de existência do partido, no dia 25 de março e, quando voltava, uma outra dirigente do
partido, Elza Monnerat, lhe advertira, através de sinais, que fosse embora, pois o Exército havia cercado
todas as proximidades do baixo Araguaia. Ambos, por um golpe de sorte, sobreviveriam, impedidos que
278
Criméia Alice Schmidt de Almeida, "Entrevista com Guerrilheiros Hoje". In: Op. cit., p. 44.
279
Op. cit., pp. 15-6.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 146
"No final de fevereiro de 1972, saímos... João Amazonas e eu, com destino a São
Paulo a fim de participar da reunião do Comitê Central...
Após a reunião... no dia 11 de abril... tomei o ônibus para Marabá. Esse ônibus...
foi dando defeito... de modo que chegamos a Tocantinópolis, onde pernoitamos. No
dia seguinte, continuamos...
Logo depois de atravessarmos o rio Araguaia, dois soldados do Exército... entraram
no ônibus, examinaram os documentos do motorista, olharam atentamente para todos
os passageiros... retiraram um rapaz e deram ordem para que o coletivo prosseguisse.
Pouco depois... justamente... onde eu ia descer, deparei com uma barreira... na
Transamazônica... Entrou um homem vestido como camponês e disse que havia na
região um grupo de terroristas... Os passageiros tiveram de apresentar documentos...
Nada encontrando de suspeito o tal 'camponês' determinou que o coletivo seguisse...
chegando a Marabá... [Elza faz algumas viagens de ônibus com o intuito de não voltar
pelo mesmo caminho e retornar a Anápolis para avisar Amazonas]
Se, em vez de sair... no dia 11... eu o tivesse feito três dias antes, teria... participado
da guerrilha"280.
"... eu, Grabois e Arroyo nos revezávamos... Em fins de novembro... Grabois tinha
feito essa viagem, retornando em principios de janeiro... Havíamos elaborado na
selva o documento 'Cinqüenta Anos de Luta"... Cabia a mim tomar parte na reunião
do Comitê Central... Deixei assim o Araguaia... Devíamos voltar precisamente no dia
14 de abril. A Elza viajou antes... e comunicaria o meu regresso para uns 8 dias
depois, devido a... grave infecção bucal. Saí de São Paulo na data combinada. Ao
chegar a Anápolis, comprei imediatamente passagem para o ônibus que sairia às
19:30h... Já tinha deixado a rodoviária quando me lembrei de comprar uns folhetos...
Com surpresa vi, casualmente, que a Elza ali se encontrava... se o ataque tivesse sido
em princípios de janeiro, quem ficaria de fora seria o Grabois"281.
280
Elza Monnerat, "Entrevista com Guerrilheiros, Hoje". In: Op. cit., pp. 43-4.
281
João Amazonas, "Entrevista com João Amazonas". In: Op. cit., p. 10.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 147
O Comitê Central perderia o contato com a CM. Durante este período, reinou a
expectativa na direção do partido em torno da decisão que seria tomada pelos militantes estabelecidos na
região do Araguaia.
Ponto ainda não esclarecido é quando o contato da CM com o Comitê Central do PC do Brasil se
restabeleceu. Sabe-se que 'Alice', grávida de três meses, deixara a região no final da primeira campanha,
com destino a São Paulo. Esta pode ter sido a via do reencontro. Outra possibilidade é a de que o CC
tenha sabido da decisão de resistir através de um emissário da CM. Outra hipótese ainda, embora pouco
provável, é a de que a direção central do PC do B tenha sabido através das páginas do conservador jornal
O Estado de São Paulo que em setembro de 1972, inusitada e inesperadamente, furando o forte bloqueio
imposto pela censura, publicou grande matéria sobre a guerrilha, a única de que se terá notícia até o fim
O fato é que a partir do momento em que o CC soube da decisão de deflagrar a guerrilha, tratou-
se de, nas grandes cidades, tentar dar publicidade ao que acontecia no sul do Pará. Divulgou-se então o
expectativa do reencontro com a população local era grande como nos conta Criméia:
"... A minha maior alegria na guerrilha foi... a primeira visita aos moradores...
Constituíamos grupos armados de propaganda. Iamos esclarecer a população sobre o
ocorrido. Esperávamos encontrar uma população desconfiada e arredia. Mesmo
tendo sido nossos amigos antes... poderiam estar culpando-nos pela presença das
Forças Armadas... pela repressão e violência... Por erro... chegamos a uma casa de
moradores desconhecidos. E foi com surpresa que fomos recebidos como velhos
amigos. Deram-nos o pouco do que tinham... A princípio, desconfiamos que a
acolhida amistosa fosse movida pelo medo, já que estávamos armados. No entanto...
uma jovem com um bebê, chamou-me... perguntou-me: - Eu posso entrar para a
guerrilha?... Nas outras casas... foi sempre igual. Éramos recebidos com muito
282
"Em Xambioá, a Luta é Contra Guerrilheiros e Atraso". In: Jornal O Estado de São Paulo, 24/09/1972.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 148
carinho e vários pediam-nos para entrar [para a guerrilha]... particularmente os mais
jovens."283
foram assim considerados pelo povo - como os grandes vitoriosos do confronto. As baixas entre os
combatentes da FORGA teriam sido nove, entre presos e mortos em combates284. Os guerrilheiros
estavam mais experientes do ponto de vista militar, tinham passado pelo batismo de fogo da guerra. O
governo tinha perdido credibilidade, era o 'vilão' da história, o agressor, tinha perdido não só
"Todo o mês de agosto foi um mês de festas nos povoados... apesar da permanência
de uns 500 militares em bolsões espalhados na selva e nas bases... E esses militares
ficavam sempre à distância dos lugarejos onde os guerrilheiros festejavam a 'vitória',
a 'expulsão dos tiranos do povo'... Afinal, não só os 'paulistas', mas todos haviam sido
atacados... dizia [-se] que Deus estava do lado dos... 'homens da mata'. Os soldados
até bateram nos padres e nas freiras...
283
Op. cit., pp. 44-5.
284
"Transcrição Parcial das Anotações de Aldo Arantes na Reunião do Comitê Central de Dezembro de 1976". In: Pedro
Estevam da Rocha Pomar, São Paulo, 1976: Massacre na Lapa, SP, Busca Vida, 1987, pp. 165-9. Citamos este documento,
muito embora, ao que se saiba, sua autenticidade não tenha sido confirmada nem negada pelo seu suposto autor, Aldo
Arantes. Arroyo teria, à oportunidade, feito o seguinte balanço dos efetivos das FORGA ao fim da primeira campanha: "-
mortes 4, prisões 5" (Op. cit., p. 166).
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 149
Os padres, assim como os soldados e a PM (ficou assustadíssima com a
retirada das tropas), evitavam qualquer encontro... com os guerrilheiros"285.
Embora essa retirada das tropas governistas não tenha durado mais que um mês, o de agosto, as
FORGA bem souberam aproveitar este curto período para realizarem ampla divulgação dos seus
propósitos e dos motivos de estarem combatendo os soldados das FF.AA. A politização, que não pudera
reportagem do jornal O Estado de São Paulo, um grande contingente estava mobilizado, e o jornal ainda
listava as unidades militares que estariam engajadas nessa segunda campanha de cerco e aniquilamento.
285
Fernando Portela, op. cit., p. 58.
286
Idem, pp. 58-9.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 150
unidades da 1ª Zona Aérea de Belém; da 6ª Zona Aérea de Brasília; e da 3ª Zona
Aérea do Rio de Janeiro. Da Marinha, segundo ainda O Estado de São Paulo, toma
parte uma tropa do grupamento de fuzileiros navais de Brasília. Agora - diziam os
generais - seria para valer; as Forças Armadas não admitiriam desafios"287.
Tal publicação geraria ódio dos agentes das FF.AA. contra o tradicionalíssimo jornal da família
Mesquita, um dos mais reacionários e direitistas do País, um dos apoiadores de primeira hora do golpe
A razão disso parece se localizar na inquietude com a persistência da guerrilha que, apesar do
emprego de incontáveis contingentes militares e do mais moderno material bélico, não se extinguia. Tal
fato começava a impacientar importantes figuras das FF.AA. e mesmo a arranhar a imagem de
'estabilidade total e milagre econômico' que o governo do general-presidente Médici zelosamente vendia
no exterior. Embaixadas estrangeiras começavam a enviar relatórios a seus respectivos governos nos
287
Op. cit., p. 44.
288
Op. cit., p. 68.
289
Cf. Fernando Portela, op. cit., p. 70.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 151
Um oficial, entrevistado por F. Portela, reconheceria que "se na época houvesse um
surto guerrilheiro, uma guerrilha espalhada pelo território nacional, o governo não teria condições de
Arroyo soube resumir bem a tática das FF.AA. empregadas nesta segunda campanha, salvo aquilo
que nem ele nem a CM observara, ou aquilo a que não deram a devida atenção, à penetração de espiões
das FF.AA. na área, que mais tarde tantos prejuízos causariam à organização guerrilheira, como por
exemplo
"... a vinda, para o lugarejo de São Domingos, do feliz Nonato, sempre brincalhão,
boêmio, amigado com uma das prostitutas da região, muito querido naquele
submundo."292
290
Idem, p. 116.
291
Angelo Arroyo, op. cit., p. 20.
292
Fernando Portela, op. cit., p. 59.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 152
Prova de que o Exército adotara a medida de infiltrar na região conflagrada uma quantidade não
"Ruimar Vieira, soldado que servia na 3ª Brigada de Brasília no ano de 1973 e que
foi motorista do General Antônio Bandeira... em Xambioá... conta que... aos soldados
que serviam em Brasília, geralmente os que não tinham família, eram oferecidos pelo
Exército terras, caminhões e implementos agrícolas para se instalarem naquela
região como lavradores e colaborar com as Forças Armadas."293
As FF.AA. começavam a colocar em funcionamento uma rede de espiões, muito bem treinados.
Eles entravam na região, pouco a pouco, como lavradores, fazendeiros, etc. Era uma manobra que se
pelas FF.AA. de sua ofensiva final, a terceira e última campanha em outubro de 1973.
A operação citada por Arroyo, ACISO, sigla de Ação Cívico-Social, era uma tática anti-guerrilha
que as forças armadas nacionais 'exportaram' (sic) de exércitos de países que haviam enfrentado guerra
de guerrilhas. Semelhantes operações foram utilizadas amplamente depois do início dos anos sessenta,
elas mesmas, promoverem ações de assistência social e operações de guerra psicológica, com o objetivo
nítido de ganhar ou pelo menos neutralizar a população em relação ao confronto militar que ocorria,
Por toda a região, pela primeira vez, se organizou campanhas governamentais de distribuição
para atendimento em hospitais militares nos grandes centros, etc. As cidades e povoados esquecidos
daquela região receberam então uma atenção nunca antes a eles dispensada. A reportagem do jornal O
Estado de São Paulo, hoje fato marcante na história do jornalismo brasileiro, citava a reação de um
293
"História da Guerrilha do Araguaia", op. cit., p. 6.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 153
vereador da cidade de Araguaína, município do Estado de Goiás, diante de tantas 'novidades'
" - Deus me perdoe, mas a presença de terroristas por aqui até que foi uma benção,
porque chamou a atenção do Exército e dos governos estadual e federal para essa
região..."294
Houve o início também da operação INCRA, que consistia em colocar em ação na área,
funcionários daquele órgão governamental, pretensamente para solucionar, sur place, todos os problemas
e desacordos em torno da questão da posse da terra. Era uma tentativa de amenizar a revolta existente
entre os posseiros daquela região contra a ação conjugada de grileiros, fazendeiros e policiais a seu
soldo. Desta forma, o Exército tentava evitar que tal conflito levasse 'água para o moinho' da guerrilha,
Tal medida, contudo, não solucionaria o problema, pois havia diretrizes maiores, no domínio da
política agrária para a Amazônia, que incluiam verbas, incentivos fiscais, etc., todo um arcabouço
empresa agrícola, das grandes fazendas capitalistas. Inseridas dentro deste contexto maior, estas
iniciativas das FF.AA. na verdade não passarão de uma grande encenação, um engodo que visava a fazer
crer aos posseiros que todos os conflitos agrários seriam resolvidos pelo governo federal em favor dos
despossuídos e pobres, acalmando-lhes , desta forma, os ânimos. Em realidade, não será nada além de
mais uma manobra tática de 'guerra psicológica' que as FF.AA. estavam colocando em movimento. Após
a derrota da guerrilha, tais promessas só serão cumpridas como recompensa àqueles que lhes serviram
fielmente de bate-paus, durante os anos de guerra. No que diz respeito à grande maioria, esta ficará como
sempre esteve: esquecida e abandonada pelas autoridades governamentais. A única diferença será que
doravante ela seria muito mais vigiada, muito mais policiada e, por conseguinte, muito mais reprimida.
294
Citado por Fernando Portela, op. cit., p. 68.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 154
Quanto ao processo de expropriação então em curso, sofrerá um hiato durante os anos da guerrilha para
Até mesmo, algumas operações que, vistas de retrospecto, chegam a provocar risos, como por
exemplo um 'teatro' que as FF.AA. realizaram na cidade de Marabá, o que viria a ser motivo de mais um
incidente entre a Igreja Católica. O episódio envolveu o bispo de então, Dom Estevão Cardoso Avelar, e
as tropas federais, fato que é lembrado pelo seu sucessor à frente da Diocese de Marabá, Dom Alano
Maria Pena:
"... Distribuíram revólveres de brinquedo aos jovens da região, que fariam o papel de
tropas legais, e as tropas descaracterizadas fariam o papel de terroristas...
- Foi uma coisa gozadíssima. eles fizeram um bombardeio da ilha aqui na frente,
batalha simulada, jogaram napalm na ilha, fogo de morteiro, e depois uma
programação da vitória. Houve festas na cidade e o baile da vitória à noite, e esse
negócio todo veio organizado de Brasília. E havia uma missa. E foi aí que começou o
enguiço, porque Dom Estevão recusou-se a rezar a missa. Isso foi em setembro. Aí o
prefeito veio aqui pedir, até o governador procurou Dom Estevão para demovê-lo, até
o arcebispo se prestou a esse papel de insistir com Dom Estevão, que continuou a
rejeitar energicamente. Aí eles troxeram um capelão militar do Nordeste e decretaram
aqui uma praça militar, e o capelão celebrou a missa. Uma palhaçada verdadeira."295
Já no campo de batalha, ou seja, na mata, as coisas endureceram um pouco para o lado dos
guerrilheiros. Apesar de Arroyo afirmar que quase não havia tropa especializada e que a maioria seria
ainda constituída de recrutas, o fato é que todos os personagens entrevistados até hoje por jornalistas são
unânimes em dizer que já nessa segunda ofensiva, utilizou-se soldados profissionais em maior número,
por causa do fiasco que tinha sido durante a primeira campanha a participação majoritária, ou mesmo
295
Fernando Portela, op. cit., p. 68.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 155
Apesar de utilizar uma tropa formada por militares profissionais e, dentre estes,
batalhões especializados em luta anti-guerrilha, o que se pode perceber é que os frutos foram não muito
diferentes daqueles colhidos na primeira campanha. O mesmo oficial, incógnito, opinou que:
"... os conscritos que entram de cara na guerrilha não ganhavam para aquilo, só para
fazer o serviço militar. Esse pessoal sofreu muito... perderam feio. Isso desmoralizou
mais ainda a tropa...
... Mas, com o fracasso... passou a usar tropa especializada, profissional... tropa de
elite, que sabe sobreviver na selva, tem curso prático e teórico de guerra
antiguerrilha... Mas as tropas profissionais... também andaram apanhando
bastante"296.
A segunda campanha das FF.AA. não pode ser qualificada simplesmente como sendo uma mera
repetição da primeira, embora guarde com esta muitos pontos em comum. De diferença mesmo, pelo
menos que fossem visíveis, somente a ação das operações ACISO e INCRA e um aumento em termos
absolutos dos efetivos empregados, assim como do número de soldados profissionais em relação aos
recrutas que, contudo, ainda na segunda ofensiva perecem terem sido utilizados, apesar da desastrada
Uma questão bastante controversa que diz respeito à ação das FF.AA. a partir dessa segunda
luta anti-guerrilheira. Apesar de que mesmo aqueles oficiais que aceitaram dar entrevistas anônimas
neguem terminantemente tal ocorrência, a revista Veja, por exemplo, afirma categoricamente que houve
esse tipo de 'ajuda' e cita nominalmente um oficial estrangeiro que nela teria tomado parte:
296
Op. cit., p. 114.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 156
tropas contariam nos meses posteriores com a assessoria do coronel Hermes de
Oliveira, do Exército português, um veterano das guerras coloniais na Africa."297
outras, que davam conta igualmente da participação de militares americanos, que haviam combatido no
Vietnã, na repressão à guerrilha do Araguaia. Talvez, a partir de 1997, quando os arquivos diplomáticos
norte-americanos se abram aos historiadores, se possa finalmente confirmar tanto esta como tantas outras
Desde os primeiros meses de presença das tropas federais na região, foram feitas centenas de
prisões. Todos eram conduzidos à cadeia pública de Xambioá, um dos quartéis-generais das FF.AA. em
suas operações. Como a capacidade desta cadeia fosse bem pequena, pois a população da cidade não
ultrapassava à época a cifra de cinco mil habitantes, ordenou-se que se constríssem buracos bem fundos,
próximos ao aeroporto militar e convenientemente longe dos olhos dos habitantes. Tais buracos eram
depois cobertos com arame farpado e serviam de cela para os detidos que, além disso, ficavam o tempo
Pois bem, apesar de algumas pesquisas jornalísticas afirmarem que na segunda campanha se
atenuou a repressão aos prováveis colaboradores da guerrilha, durante os curtos dois meses que durou,
eles não foram de todo desativados, apesar do fato de que alguns presos foram transferidos para Brasília,
onde sofreriam novos suplícios. Pelo contrário, continuaram a ser enchidos de presos que eram mantidos
Ali, sem exceção, todos eram torturados, espancados pelos agentes das FF.AA. encarregados dos
interrogatórios. Dali, muitos presos puderam assistir a cenas que certamente nunca mais esqueceriam,
297
Op. cit, p. 56.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 157
berros de dor foram ouvidos por toda a base... Minutos depois chegava o
corpo do guerrilheiro Bergson Gurjão de Farias, cearense, 25 anos... Toda a tensão
que se acumulara... por causa dos gritos do tenente ferido vai ser descarregada no
cadáver já deformado de Bergson, que é chutado e pisado"298.
Do lado das FORGA, a tática empregada foi exatamente a mesma da primeira campanha, ou seja:
evitar o confronto com as tropas federais, refugiar-se na mata, realizar operações de fustigamento contra
Arroyo, num balanço da atuação dos combatentes das FORGA neste segundo enfrentamento,
Outro problema que afligia a CM era a continuidade da falta de contato com o Destacamento C.
Neste sentido, toma a iniciativa de enviar a sua procura, um grupo de guerrilheiros afim de reatar
contato. O grupo partira antes do início da segunda ofensiva, estava a caminho quando isso ocorreu,
houve choques com tropas das FF.AA., dos cinco que compunham originalmente o grupo, três foram
abatidos, entre eles 'Juca', membro do Comando das FORGA e médico gaúcho, conhecidíssimo em toda
298
Op. cit., p. 51.
299
Op. cit., p. 20.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 158
houve um choque... Helenira Resende... Foi presa e torturada até a morte... [o que]
causou muita indignação300...
No Destacamento B... O comando resolveu retirar o grosso dos combatentes e
mudar de área... Dividiu-se... em dois grupos e seguiu-se para a nova área. Aí
resolveu-se fazer trabalho de massa, apesar do inimigo estar desenvolvendo sua
campanha... Surgiu um sério atrito entre o vice-comandante, Zeca, e os demais...
irritado insultou muitos companheiros e acabou dizendo que ia se demitir do cargo...
Ele não tinha nenhuma razão e, com isso, perdeu a autoridade...
A CM decidiu retirá-lo do cargo e incorporá-lo à guarda da CM...
No Destacamento C... Depois desses fatos [quatro baixas], o comando do C decidiu
recuar e procurar por todos os meios o contato com a CM"301.
No final de outubro, as FF.AA. retiram-se novamente do 'teatro de operações', numa decisão até
hoje meio inexplicada. Fernando Portela opina que tal medida talvez tenha se dado em virtude do fato de
que nem mesmo as tropas descaracterizadas, e bem treinadas para combates na selva, estavam a obter os
resultados almejados. A esta hipótese, ajuntaríamos uma outra: o baixo rendimento das tropas nesta
segunda campanha corria o risco de se transformar em tragédia com a chegada da estação das chuvas na
virada do mês de outubro para novembro, e a conseqüente piora das condições de trasitabilidade na
mata. A campanha de 'cerco e aniquilamento' poderia com a elevação do nível das águas acabar por
afogar o esforço governista e expor os soldados a ataques mais ousados por parte dos guerrilheiros, o
Além disso, pelo que se pode supor hoje, olhando em retrospectiva, as FF.AA. optavam então por
uma tática menos policial e mais 'política' para combater uma guerra essencialmente política, como é o
300
Helenira Resende de Souza Nazareth, codinome 'Fátima', participara entre os anos de 1969 e 70 da diretoria da UNE.
Fora então presa e torturada. Quando conseguiu sair da prisão, passou a viver na região do Araguaia. Era muito querida em
seu destacamento que, em sua homenagem, daí em diante, se auto-denominará 'Destacamento Helenira Resende'.
301
Op. cit., p. 20-2.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 159
Terminava, assim, mais uma campanha de 'cerco e aniquilamento' das tropas federais
das três Armas e contingentes das PM's dos Estados de Goiás e do Pará, lideradas pelo Exército. Apesar
de todo o aparato bélico, da enorme vantagem numérica, não se conseguia apagar a chama que inflamava
Nas FORGA, as baixas atingiram o número total de nove, sendo seis mortos em combate
('Flávio', 'Cazuza', 'Vítor', 'Juca' e 'Zé Francisco'302), dois presos e mortos sob tortura (Helenira e
'Antônio') e dois desaparecidos (Glênio e 'Gil'303). Arroyo procede, então, ao primeiro balanço parcial dos
efetivos guerrilheiros:
"Desde que começou a luta... até o final de outubro as baixas foram 18 (entre mortos
e aprisionados). O total de combatentes era então de 50 (com a saída da companheira
para o Sul304). O Destacamento A estava com 19 elementos; o B, com 14; o C, com 9;
a CM, com 8."305
O que sobreviria seria um grande período de 'trégua', que duraria quase um ano. Este será,
contudo, um período muito ativo para as Forças Guerrilheiras do Araguaia. E, embora o PC do Brasil e o
Comando das FORGA estivessem bastante convencidos do inevitável retorno das tropas do governo, não
perceberam em profundidade as mudanças que sofriam a linha estratégico-militar das FF.AA. Nesse
302
'Zé Francisco' era o negro Francisco Chaves. Integrou-se na Marinha de Guerra, nesta instituição sofreu discriminação
racial. Membro do partido desde 1935, Graciliano Ramos, grande nome da literatura brasileira, que com ele conviveu na
prisão após a Insurreição de 35, na qual os dois tomaram parte, cita-o em seu famoso livro 'Memórias do Cárcere'. Contava
à época com mais de sessenta anos.
303
O guerrilheiro 'Gil', na verdade o operário Manoel José Nurchis, Arroyo considerou que deveria ter morrido. Mas, aqui,
para efeito de contagem, o incluímos entre os desaparecidos, pois ele pode ter sido preso com vida. Quanto a Glênio, se
perdera na mata onde ficou vagando por quase dois meses, sendo depois preso (Cf. Glênio Sá, op. cit., pp. 19-28).
304
Trata-se de 'Alice', ou Criméia A. Schimidt, que com problemas na gravidez teve que ser levada para São Paulo, onde
será presa e, nesta condição, conceberia.
305
Op. cit., p. 22.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 160
ínterim, elas também estiveram em franca atividade, desenvolviam enormes esforços de preparação para
um retorno, que desta vez se pretendia triunfal, ao 'teatro de operações' no sul do Pará.
adotada, na língua portuguesa falada no Brasil. Tal definição, assim colocada, em termos genéricos, não
traduz bem o que ocorreu entre as partes beligerantes na guerrilha do Araguaia. Talvez se ajuntássemos a
ela a palavra 'militares', ou se a substituíssemos pela expressão 'cessar-fogo', apesar de não corresponder
ainda totalmente à realidade, pelo menos nos aproximaríamos mais do sentido real que tal termo adquiriu
neste período. Pois durante todo esse ano, não se assistiu a enfrentamentos significativos nas matas, mas
Uma cópia de um documento oficial, estampando no alto de todas as suas páginas um enorme
carimbo onde se lê a palavra 'secreto', escrita em letras maiúsculas, nos chegou há não muito tempo às
mãos. As fontes através das quais o obtivemos, por razões não difíceis de serem compreendidas,
infelizmente não podem ser reveladas, sem colocar em risco a vida de quem o deu para ser divulgado.
Trata-se de mais um documento que comprova, apesar das já patéticas negativas das FF.AA., que a
1972 e à folha de nº 5, de 22 do mesmo mês, o que deve ter se devido a um simples erro de datilografia.
Este engano, contudo, não chega a comprometer qualquer avaliação do mesmo, pois, seja dia 28, seja dia
22, o importante é que ele é redigido quando as tropas das FF.AA. tinham interrompido as operações
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 161
armadas contra os guerrilheiros pela segunda vez e se retirado da zona conflagrada, iniciando a
chamada trégua.
Plano de Operações 'Araguaia', Ação Preventiva Meios Urbanos e Rural" e composto de cinco páginas
que, ao final são assinadas pelo Cmt. Geral da PM-GO, Coronel Israel Cópio Filho, e pelo Chefe do
Estado Maior da PM-GO, Coronel Geraldo Antônio de Freitas, o documento trata do envio de efetivos
daquela instituição, a 1ª Companhia da PM, para a área do baixo Araguaia, margem direita, norte de
de um "Adendo ao Plano OP 03/72", totalizando dezessete preciosas folhas, nas quais podemos
encontrar algumas informações inéditas sobre a guerrilha do sul do Pará, assim como, e nisso reside a sua
maior importância, pistas valiosíssimas que, uma vez seguidas cautelosamente, podem conduzir a fontes
306
Aurélio Buarque de Holanda, op. cit., p. 478.
307
"POP nº 003/72 - Plano de Operações 'Araguaia'", Polícia Militar do Estado de Goiás, Goiânia, 28 (?) de novembro de
1972, fl. 1. Ver íntegra (salvo o Adendo, pois nele constam nomes que preferimos manter em sigilo) nos Anexos, infra, pp.
x-x².
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 162
Como missões a serem cumpridas na 'área problema', o documento diz que trata-se de:
efetivos que estava enviando à região. O primeiro grupo de ações, chamada de 'operações tipo campanha'
visaria:
Já o segundo grupo de ações seria classificado de 'ações e medidas psicológicas' que visariam a:
308
PA é a sigla correspondente ao Estado do Pará. Note-se como neste trecho, o conceito de federação, consagrado pela
constituição em vigor, é simplesmente anulado, sinal evidente da gravidade da situação.
309
Idem, fl. 2.
310
Ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 163
Conquistar e reconquistar os tendentes à esquerda com a melhoria do
ambiente, através de aviso [?]."311
O corpo principal do documento termina com prescrições sobre as relações entre a PM-GO e as
'forças amigas' - PM-PA e tropas das FF.AA., estabelece que o posto de comando da operação seriam o
Quartel General da PM-GO, localizado em Goiânia, assim como a 1ª Companhia deslocada e acantonada
em Xambioá.
informações da Polícia Militar, faz um relatório interessante sobre o que seria a situação dos guerrilheiros
311
Idem, fl. 3.
312
Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 164
imediatamente reprimidas pela ocupação da área por Tropas das FF.AA. Consta que
pequeno grupo de subversivos ainda atuam [sic] na região, protegidos pelo aspecto
fisiográfico da área, muito favorável ao inimigo. Atualmente as Tropas Federais
estão deixando a região, para dar lugar à PM GO e PM PA... que se encarregarão
de dar continuidade ao combate sistemático ao subversivo [todos os grifos são
nossos]."313
Difícil aqui é saber se trata-se de pura falta de informação do oficial da PM de Goiás que redigiu
o presente relatório; se as FF.AA. em seus comunicados à PM-GO sonegou informações, para que a real
situação não 'vazasse', já que, à época, preocupava o alto escalão das FF.AA. o fato de que a guerrilha
começava a ter repercussão no exterior, na imprensa estrangeira314 e em certos meios diplomáticos; ou,
ainda, se assim ele foi instruído para proceder pelos seus superiores de modo a não despertar o pânico
Esta duas últimas alternativas, combinadas talvez, parecem encaixar-se melhor numa
compreensão mais global do problema, senão vejamos. Em primeiro lugar, convenhamos que as FF.AA.
não poderiam, sob pena de fazer propaganda involuntária da guerrilha em suas próprias fileiras, relatar os
revéses que sofreram nas suas duas primeiras ofensivas. Tal iniciativa teria como único efeito um
comprometimento ainda maior da moral das suas tropas, já um tanto quanto abaladas.
Por outro lado, o jornalista Fernando Portela fala de um forte clima de pânico que passou a reinar
entre as polícias militares dos dois estados envolvidos, assim como das tropas das FF.AA. que
"As polícias militares da área, desde que sentiram que até os melhores homens do
Exército não conseguiam pegar os 'terroristas', passaram a viver em pânico. Cenas de
covardia cômica eram registradas, como o fato de que qualquer oficial-policial, desde
313
Idem, "Anexo A (INFORMAÇÕES)", p. 6.
314
Exemplo disso é a aparição do tema no cotidiano francês Le Monde, por três vezes (edições de 04/11/1972, p. 6;
12/01/1973, p. 3; e, 12-3/08/1973, p. 2). Ver cópias nos Anexos, pp. x-x².
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 165
que sentisse necessidades fisiológicas e fosse obrigado a se afastar para
satisfazê-las, levava uma escolta de quatro homens consigo"315.
O clima de medo de 'ir para Xambioá', como se dizia à época não atingiu somente os efetivos das
polícias estaduais, penetrou também nas FF.AA. Ser destacado para lá equivalia para muitos a ser
"... Adhemar Santillo, que foi prefeito de Anápolis até o início de 1973, conta um
episódio interessante: o então sargento Sebastião Maués dos Santos, logo que soube
que havia sido destacado para engrossar as fileiras do Exército em Xambioá,
requereu sua inscrição numa chapa de candidatos do MDB a vereador, como forma
de se livrar da missão... a inscrição do sargento ficou pronta antes que as dos outros
candidatos, provocando, então, o desengajamento do sargento... [Antes,] Maués dos
Santos chegou a integrar durante dois meses, de maio a junho de 1972, as forças do
Exército acantonadas em Xambioá"316.
Desta forma, como atestam as narrativas acima, não interessava de forma alguma ao alto
comando das FF.AA. assustar ainda mais os policiais que para lá estavam se destinando. Só desta
maneira pode-se compreender tanta desinformação no relatório da PM-GO que ora analisamos. A única
dúvida que persiste é se os comandantes das respectivas forças políciais estavam informados, ou se
Neste mesmo "Anexo A", a PM-2 ainda fornece algumas orientações para o trabalho de
informação que a tropa deveria desenvolver, recomendando que "... Deverá ser feito relatório diário de
Quando nos deparamos com uma orientação deste tipo, transmitida de maneira tão precisa, ou
melhor, com uma ordem, pois trata-se de uma corporação militar, onde o respeito à hierarquia é uma das
315
Op. cit., p. 71.
316
"História da Guerrilha do Araguaia", op. cit., p. 6.
317
"Anexo A (INFORMAÇÕES)", Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 166
pré-condições de sua existência, o senso do historiador se sente ultrajado, agredido mesmo. Isso porque
se se confronta tal documento à insistência das autoridades policiais e militares em dizer que não há
nenhum registro da guerrilha do Araguaia, com alguns chegando mesmo ao cinismo, de causar inveja a
Goebbels, de afirmar que tal evento só aconteceu na cabeça de alguns lunáticos, que ele nunca se passou,
o contraste é gritante e revoltante. Parecem seguir obstinada e fielmente um dos preceitos que dirigiam o
trabalho daquele genocida nazista de que deve-se mentir, mentir, repetir insistentemente a mesma mentira
O 'Anexo A' encerra-se com algumas outras determinações práticas, tais como, o procedimento
que se deveria ter em relação aos prisioneiros: "As pessoas civís presas, envolvidas em subversão,
deverão ser exploradas ao máximo [grifo nosso] como fontes de informes", o limite deste 'ao máximo'
corria por conta do humor e do sadismo dos oficiais de plantão, mas, pelo que relatam a maioria absoluta
daqueles que passaram por prisões na área durante os anos da guerrilha, a tortura e, no limite, o
assassinato de suspeitos era um expediente normal. Convem lembrar que em todo o território nacional o
mesmo se passava com os inimigos do regime, e atingia até mesmo pacifistas confessos, religiosos,
parlamentares, jornalistas, etc., ninguém escapava à selvageria da repressão política naqueles anos, então,
pode-se fazer uma idéia do que acontecia com quem fosse aprisionado numa região conflagrada, onde
a assuntos administrativos. Nele encontra-se listado todo o material que seria levado com a tropa:
O "Anexo D", elaborado sob a responsabilidade do chefe PM-3, Major Waldir Martins de Moraes,
estabelece que "as ligações e comunicações entre o Comando Geral e a área problema serão feitas
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 167
318
através de... mensagens cifradas" . Em seguida, lista os códigos a serem utilizados. Assim,
por exemplo, quando uma patrulha quisesse pedir 'reforços' deveria dizer a senha 'chuva', e assim por
diante.
que especifica quais viaturas seriam enviadas junto com a 1ª Companhia para Xambioá e termina
Alvaro Alves Júnior, fornece ao historiador da guerrilha do Araguaia um grande instrumento de pesquisa.
Nele, estão listados todos os que seriam deslocados para a 'área problema', com a respectiva cidade para
onde se dirigiriam e ficariam acantonados - Xambioá e Araguatins. Nesta lista cita-se o nome completo
do policial, o grau hierárquico que ocupa na corporação, o seu número de registro na PM e a função a
ser desempenhada na operação. Somente nesse 'Adendo' conta-se quarenta e três nomes de policiais dos
mais variados degraus da hierarquia da PM de Goiás que, comprovadamente, tomaram parte, direta ou
indiretamente, de operações contra os guerrilheiros na região do Araguaia e que serão procurados por
nós, visando a obtenção de testemunhos pessoais sobre o que presenciaram durante sua permanência
naquela zona conflagrada e, quem sabe, mais documentos oficiais venham à tona.
De seu lado, o Exército durante este período se consagrou à execução minuciosa de um amplo
plano que visava a combater a guerrilha em todas as frentes em que ela atuava. Entre a população, ele se
fará presente oficialmente através da incrementação ainda maior da Operação ACISO e também da
Operação INCRA, visando a conquista da simpatia das populações da região. Oficiosamente, marcará
sua presença através de espiões que infiltrará e instalará por toda a área.
No campo militar, as FF.AA. reunem os melhores homens que possuem no seu quadro
profissional em todo o país e inicia com eles um treinamento intensivo de sobrevivência e luta anti-
guerrilha na selva. A frente destes 'boinas verdes' brasileiros está a Brigada de Paraquedistas do Rio de
318
Idem, "ANEXO D - LIGAÇÕES E COMUNICAÇÕES", p. 14.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 168
Janeiro, tropa de elite do Exército, muitíssimo bem treinada e liderada pelo General Hugo de Abreu.
Mas, isso não será tudo. O Exército faz construir cinco novos quartéis espalhados na área. Assim, as
cidades de Marabá, Imperatriz, Itaituba, Altamira e Humaitá, todas localizadas na Amazônia, receberão
sedes de unidades militares. Toma medidas para aumentar a transitabilidade da zona conflagrada,
edificando toda uma rede de estradas e melhorando as condições das já existentes, de maneira que
permitisse uma melhor movimentação de suas tropas quando de uma nova ofensiva. Arroyo cita cinco
PC do Brasil. Adota-se então a tática de esmagar a cabeça para atingir e destruir o braço armado da
organização. Entre dezembro de 1972 e março de 1973, quando o partido encontrava-se em plena
preparação para o envio de reforços, de mais combatentes para o Araguaia, eis que sofre grandes perdas,
A repressão consegue prender quatro membros do Comitê Central, três dos quais membros da
sua comissão executiva, elementos fundamentais que cumpriam a função de elo de ligação entre o
Comitê Central, o trabalho no Araguaia e as bases partidárias no sul do País. Carlos Nicolau Danielli,
Lincoln Cordeiro Oest, Luís Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque são presos, torturados e assassinados
nos porões dos órgãos de repressão da ditadura. Além desses 'peixes grandes', como diria o sertanejo, a
repressão se abateu também sobre diversos Comitês Regionais do partido, desarticulando boa parte da
organização a nível nacional. Não chega a liquidá-la mas aborta diversas tentativas de se fazer repercutir
mais fortemente pelo país afora a luta que se travava nas matas que margeiam o rio Araguaia. Era, na
319
Angelo Arroyo, op. cit., p. 22.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 169
verdade, a primeira expressiva vitória das forças da repressão na luta contra o levante
Desta forma, o Exército arma e põe em execução um plano que, em linhas gerais, bem que
poderia assim ser resumido: disputar com os guerrilheiros a influência política sobre a população local,
através das medidas assistencialistas já citadas; retirar as tropas da região, isto é, ceder terreno à
guerrilha, ao mesmo tempo em que patrocina ampla infiltração de espiões; deixar o campo aberto para
que os guerrilheiros se exponham ao fazer o seu necessário trabalho de massas e, para que, ao assim
procederem, exponham também aos olhos e ouvidos dos agentes infiltrados todos os seus colaboradores
e simpatizantes entre o povo; melhorar a presença das forças de repressão no conjunto da região com a
construção de quartéis, assim como das condições de acesso ao 'teatro de operações' através da
construção de estradas; treinar importante contingente militar profissional, especializando-o em luta anti-
guerrilheira rural; atacar a única fonte externa de onde os guerrilheiros internados na floresta amazônica
Segundo as FF.AA., uma vez cumpridas todas estas diretivas do plano, a nova ofensiva seria
vencida com maior facilidade, pois a essência de todo este conjunto de providências táticas era cortar as
relações dos guerrilheiros com o povo e com o partido que a organizou. O plano tinha como objetivo
final, estratégico, enfraquecer o núcleo guerrilheiro internado na mata, isolá-lo, para que, assim, asfixiado
pela ajuda cada vez mais arisca da população, neutralizada pela ação social do governo federal, e pela
Ao final de todo esse processo, entrariam em cena de novo as tropas federais, desta vez melhor
ou tão bem preparadas quanto os guerrilheiros, e os esmagariam, se é que eles ousariam ainda resistir.
Bom, este era o plano, pelo que se pode deduzir quando se observa o conjunto das ações desenvolvidas
pelo governo militar durante o período de trégua. Veremos mais à frente, como ele se realizará na
prática.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 170
Enquanto isso, do exterior, algumas organizações da esquerda brasileira manifestavam apoio e
solidariedade aos combatentes do Araguaia. Assim, o Jornal Ação, da Ação Libertadora Nacional (ALN)
"A las orillas del rio Araguaia, próximo a los poblados ribereños, un puñado de
hombres se rebeló y lucha a mano armada contra la explotation y la miseria a que
está sometido el campesinado braszileño. Cercados por tropas numéricamente
superiores ellos mantienen la lucha... Es preciso divulgar esa lucha, organizando
comités de solidaridad a las Fuerzas Combatientes del Araguaia... La ALN expressa
su solidaridad a los valerosos combatientes de las Fuerzas Guerrilleras del
Araguaia."320
Uma outra organização que manifestará também o seu apoio à guerrilha do Araguaia, será a Ação
Popular (AP). Da França, expressará no editorial de seu jornal, Libertação, do mês de outubro de 1972,
Entre os guerrilheiros, cuida-se da preparação para o enfrentamento de uma nova ofensiva militar
das FF.AA. Arroyo relata quais foram as diretivas emitidas então pela CM:
320
Citado por: Adamastor Terra, Brasil: La Guerrilla de Araguaia, Buenos Aires, Nativa, 1973, pp. 12-3.
321
Citado em: La Résistance Armée au Brésil, Textes de la Résistance Armée au Sud du Pará, Paris, CILA, 1972, p. 4.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 171
melhoramento dos croquis; intensificação do preparo militar; procurar
melhorar o armamento através das massas (compra, troca, etc.) e montar uma oficina
de consertos; organização de depósitos que garantissem alimentação para seis meses
(sobretudo farinha, milho, arroz). Os depósitos deveriam ser pequenos,
descentralizados, e a maior parte dos alimentos guardados deveria ir para as zonas
de refúgio... orientou também para que os destacamentos limpassem a área,
eliminando os bate-paus; para que mantivessem vigilância a respeito de todas as
pessoas estranhas que aparecessem... O princípio estratégico fundamental era o da
sobrevivência das forças guerrilheiras... preservar as forças, não fazer ações que
redundassem em baixas. A CM insistiu também na necessidade de sze criar núcleos da
ULDP."322
sofrera mais perdas até então. Inicialmente, ela opta pela fusão deste com o B, mas, logo em seguida
volta atrás e transfere elementos dos dois outros destacamentos para refoçá-lo. Paulo, até então
comandante do C, é transferido para a CM. 'Pedro' o substitui no comando do destacamento e 'Dina' fica
como vice-comandante. Ainda sobre o C, que, ao que parece, era o destacamento que mais preocupação
causava à CM, decide-se que ele passe a concentrar provisoriamente a sua atuação na área de São
Geraldo, ao invés de permanecer na área onde atuara até o momento, Caiano e Grota Vermelha323.
Publica-se nesse período diversos materiais, impressos em mimeógrafo ou mesmo escritos à mão,
"1) 'Carta ao Povo de Porto Franco e Tocantinópolis', assinada pelo médico João
Haas; 2) 'Carta de Osvaldão a Seus Amigos'; 3) 'Comunicado Sobre a Morte de
Helenira Resende'; 4) 'Comunicado Sobre a Morte do Juca'; 5) 'Manifesto do 1º Ano
de Luta'; 6) 'Manifesto ao Soldado'. Foram mimeografados mais de cem exemplares
do documento 'Em Defesa do Povo Pobre e Pelo Progresso do Interior' (programa da
322
Idem, ibidem.
323
Op. cit., p. 22-3.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 172
ULDP). Também foi mimeografado o 'Romance da Libertação' (de autoria do
Mundico, do C). Editou-se igualmente um manifesto contra o INCRA."324
A Comissão Militar (CM), como era conhecida internamente, entre os guerrilheiros e no partido,
ou o 'Comando das FORGA', como ela assinava seus documentos a serem divulgados amplamente,
elaborou também alguns manuais de orientação militar, contendo algumas orientações aos combatentes,
sobre como proceder em alguns domínios considerados por ela, CM, débeis. São eles:
A edição de todos estes materiais se justificava na medida em que, segundo Arroyo, a maioria dos
combatentes que haviam tombado, o foram por causa de erros de procedimento nesses pontos
considerados críticos.
Assim, nas visitas que fossem feitas às massas deveria-se tomar todas as medidas de segurança
possíveis, tratar tal ação como sendo uma ação militar. Também quanto aos acampamentos, estabelecia-
se condições de boa escolha de local para sua instalação e funcionamento do mesmo. Quanto à marcha,
ainda segundo Arroyo, dever-se-ia evitar explorar caminhos que não se conhecia, para assim evitar
"Exigia-se que antes de trazer qualquer elemento de massa para as fileiras... era
preciso conhecer bem a pessoa, saber a opinião das massas... se se trata de morador
antigo ou novo e se é estimado ou não. Antes do ingresso... era necessário
experimentar os elementos novos na realização de determinadas tarefas... ajudar... a
324
Op. cit., p. 23.
325
Idem, ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 173
elevar o seu nível político e ideológico e ensinar os analmfabetos a ler e
Sobre a criação dos núcleos da ULDP, igualmente passíveis de infiltração de agentes do inimigo,
Arroyo afirma que o maior avanço da guerrilha durante o período de trégua foi justamente o
"Estendeu-se nossa influência entre o povo. Ganhamos muitos amigos, e não era só
apoio moral. Amassa fornecia comida e mesmo redes [hamacs], calçados, roupas, etc.
E informação. Contávamos com o apoio de mais de 90% da população. Afraca
presença do inimigo na área e a nossa política correta no trabalho de massa
proporcionaram esses êxitos. Os guerrilheiros, todos eles, eram bastante estimados.
Os de maior prestígio eram: Osvaldo e Dina... Os guerrilheiros ajudavam as massas
no trabalho de roça. O 'Romance da Libertação' era recitado pela massa. Os hinos da
guerrilha, elaborados lá mesmo, eram cantados pela massa. Nas sessões de terêcô
(candomblé) se faziam cantorias de elogio à guerrilha... alcançou êxito também o
folheto 'A vida de um lavrador', literatura de cordel de autoria de Beto... Uma
composição musical em ritmo de toada local (lindô), da autoria de Osvaldo e Peri...
326
Ibidem.
327
Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 174
328
alcançou êxito. A Rádio Tirana era ouvida por muitos... e seus comentários eram
bem recebidos."329
Nesse tempo também se fez reuniões de massa para discutir problemas comuns como por
exemplo a questão do INCRA, tais reuniões chegaram a alcançar o número de cinquenta pessoas.
Quanto à organização dos núcleos da ULDP, segundo Arroyo, criaram-se treze, espalhados pela
região. Ampliou-se também o contato com o que ele chama de "outras forças", comerciantes, religiosos,
etc.
Todos os três realizaram ousadas ações militares que contribuíram para fazer crescer ainda mais a
conhecedor da região e que vinha guiando as tropas do Exército na caça aos guerrilheiros. Em março de
1973, realizou uma outra ação que colocará em pânico os grileiros da região. Foi feito o 'justiçamento'331
de um afamado grileiro, conhecido e odiado pela população pobre pela sua maldade. Trata-se de 'Pedro
Mineiro', o mesmo que Osvaldo expulsara da área antes do começo da luta armada. Após a primeira
328
Emissora de rádio da ex-República Popular Socialista da Albânia, que transmitia diariamente programas destinados ao
Brasil e que, não raro, emitia comunicados e apoios da guerrilha ou a ela destinados.
329
Op. cit., p. 24.
330
Ibidem.
331
Termo correntemente utilizado para designar o fuzilamento por um pelotão de execução guerrilheiro de inimigos
confessos da guerrilha ou traidores.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 175
ofensiva do Exército, o tal grileiro voltou a se estabelecer na região e, o que piorou a sua
situação, passou a colaborar com as tropas federais, denunciando os supostos colaboradores da guerrilha.
Já o Destacamento C realizou ação semelhante embora o desfecho não tenha se dado da mesma
forma. Em agosto, invadiu durante a noite a fazenda e casa de comércio de um certo Nemer Kouri.
332
"Diário da Guerrilha do Araguaia". In: Op. cit., pp. 55-6.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 176
Segundo testemunhas ele teria ajudado o Exército a prender 'Geraldo', José Genoíno Neto, e que teria
também se apossado de um burro que pertencia aos guerrilheiros. Assim Arroyo narra a operação:
Mas, a ação mais espetacular do período, será mesmo a realizada pelo Destacamento Helenira
Resende (A), em setembro de 1973, quase no final da trégua. Trata-se de um ataque a um posto da
Polícia Militar do Estado do Pará, com o qual, além de se fazer uma enorme propaganda da guerrilha,
Destacamento:
333
Op. cit., p. 79.
334
Angelo Arroyo, op. cit., p. 24.
335
"Comunicado do 3º Destacamento Sobre a Punição ao Grileiro Nemer Curi". In: João Amazonas e alii, op. cit., pp. 80-1.
Ver íntegra do documento em Anexos, pp. x-x².
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 177
As populações do Sul do Pará.
Um grupo de Combate... atacou, na segunda quinzena de setembro, o Posto da
Polícia Militar situado na Transamazônica...
Ao amanhecer, o Grupo... cercou... e intimou os soldados... a render-se. Não
atendendo à intimação, foi dada a ordem de atirar e, em seguida, ateou-se fogo no
Posto, o que obr'igou os seus ocupantes a se entregarem.
Foram apreendidos 6 fuzís, 1 revólver, munição... roupas e calçados. Os soldados,
depois de interrogados, sofreram severa advertência: se voltarem a cometer
violências contra o povo serão justiçados. Os atacantes os expulsaram do local.
A ação... contou com o apoio e a simpatia da população. Os soldados portavam-se
como desordeiros, cometiam constantes arbitrariedades contra o povo, faziam
extorsões e chantagens, desrespeitavam as famílias dos lavradores. Eram odiados por
todos...
José Carlos,
Comandante do Destacamento."336
A versão do jornalista F. Portela é um pouco mais jocosa e detalhada. Tais detalhes não se sabe se
são verdadeiros ou frutos da imaginação popular que já cuidava de tranformar o 'povo da mata' em seres
"Isso repercutia na população. E foi muito fácil aquele assalto. O grupo guerrilheiro,
já integrado por elementos locais, entrou no posto e, sem a menor reação, confiscou
todas as armas dos policiais, inclusive metralhadoras [sic]. Depois exigiu que os
trêmulos soldados tirassem a roupa. recolheu também as fardas e ordenou:
- Agora todo mundo vai correr até Marabá!
Debaixo das gargalhadas dos guerrilheiros e tiros para cima, os policiais entraram
em pique pela estrada. A notícia correu com a mesma velocidade. E a maioria dos
soldados da PM começou a sentir em cada homem pobre daqueles lugarejos, um
inimigo em potencial"337.
336
"Comunicado do Destacamento Helenira Rezende Sobre o Ataque a um Posto da Polícia Militar". In: Op. cit., p. 82.
337
Op. cit, p. 71.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 178
Em agosto de 1973, a CM realiza uma reunião com os comandos dos três destacamentos com o
intuito de realizar um balanço do trabalho até então realizado. Difícil era esconder a euforia que tomava
conta do conjunto dos combatentes haja vista os avanços obtidos em diferentes domínios de suas
atividades. Entre os maiores êxitos, cita-se o trabalho de massas, o maior conhecimento do terreno e o
informações. Orienta-se, ao final, que se estenda o trabalho de massas, ao mesmo tempo em que todos se
coloquem em estado de alerta pois as tropas federais poderiam voltar a qualquer momento.
Em seguida, a reunião se debruça sobre a avaliação das diferentes hipóteses de tática que deveria
ser utilizada pelas FF.AA. Neste momento, o comando guerrilheiro começa a cometer graves erros
A diretiva de agrupar todos os guerrilheiros, por si só contraria um dos princípios mais basicos da
guerra de guerrilhas, sobretudo em sua fase inicial. A força da guerrilha está justamente na dispersão
territorial de pequenos grupos que, embora atuando autonomamente, são dirigidos e coordenados por um
comando único. Então, a reafirmação aprovada em seguida na mesma reunião de que o importante era
Mas os erros de orientação militar não parariam por aí. Na mesma reunião, é feita uma série de
338
Angelo Arroyo, op. cit., pp. 24-5.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 179
"Predominava na CM a opinião de que, se o inimigo não entrasse até
outubro, possivelmente não entraria no período seguinte, devido às chuvas. E que ele
não poderia fazer uma campanha demorada, devido a problemas de logística.
Acreditava-se que não entraria na mata, pois não tinha bastante tropas especializadas
para isso. ficaria nas estradas e batendo as grotas. Achava-se improvável um cerco
total da área. Considerava-se que o inimigo atacaria mais seriamente as massas e por
isso se devia estudar a possibilidade de a massa se proteger. Havia condições para
recrutar muitos elementos de massa para a guerrilha. Era grande já o número dos
que se tinham comprometido a ingressar na luta caso o Exército ocupasse as
roças."339
O único ítem deste elenco de apreciações feitas na reunião da CM que corresponderá inteiramente
ao que de fato virá a ocorrer, é o último deles, o de que o Exército dessa vez atacaria mais violentamente
as massas. Mas, mesmo nessa avaliação, não se considerava a intensidade da violência que seria
empregada pelas tropas federais. Em verdade, ela será tão vigorosa que mesmo o contigente que segundo
Numa palavra, a reunião do comando guerrilheiro cometeu um erro que já fez sucumbir através
da história poderosíssimos exércitos. Desde Napoleão durante a invasão da Rússia Czarista, até Hitler,
igualmente na invasão nazista da União Soviética. Tal erro, de um primarismo que choca, pois ao se
estudar importantes guerras através da história, sempre se constata a sua ocorrência quando se avalia os
adversário com o qual se bate, o que, nas condições de uma guerra de guerrilhas significa, quase
fatalmente, a derrota militar completa e total, a aniquilação do movimento guerrilheiro. Esta fatídica
reunião e as decisões que dela emanaram terão, como veremos, papel preponderante na configuração
Juntamente com estes erros, outros foram cometidos. Desta feita, não por que a CM tivesse
orientado mal os destacamentos, e sim porque estes deixaram de aplicar firmemente as recomendações
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 180
por ela emitidas. tal se verifica na questão da eliminação dos bate-paus da região, o que Arroyo, em
essa ordem e 'justiçará' dois bate-paus (Pedro Mineiro e Osmar) que haviam ajudado o Exército a
eliminar vários guerrilheiros, guiando-o mata adentro. Os outros destacamentos simplesmente não
procederam desta forma, essa omissão custará muito caro aos guerrilheiros, pois um bate-pau,
conhecedor dos segredos da mata, de seus caminhos quase invisíveis, valia mais que um batalhão inteiro
a futura campanha de cerco e aniquilamento. Algumas vezes alguns desses bate-paus ou mateiros não
"... O nosso pessoal tinha uma enorme e justa preocupação para não cometer um
engano qualquer e ferir ou matar um homem do povo. Isso gerava hesitações. Havia
um jagunço na região conhecido por Pernambuco, que estava fazendo um estrago
com a gente. ele conhecia muito bem a mata e guiava o Exército aos lugares certos,
obrigando-nos a entrar em contato, em confronto direto, o que sempre era
desvantajoso. O nosso pessoal resolveu que tinha de dar um jeito no tal Pernambuco
ou ele causaria danos maiores na gente. o problema é que quase ninguém conhecia o
jagunço. E, certa vez, ficaram dois guerrilheiros tocaiados esperando o Pernambuco.
Depois de algum tempo surgiram dois sujeitos, com aquele jeito de gente da roça. Os
guerrilheiros pularam em cima deles, dominaram, e aí começou o erro. Um dos
guerrilheiros foi logo dizendo:
- Fiquem calmos que a gente não vai fazer nada com vocês. Quem são vocês?
Os dois negaram que conhecessem Pernambuco... e forma liberados. Pois um deles
era o próprio... Mas esse nosso pessoal nem pediu documentos. Inexperiência"340.
339
Idem, p. 25.
340
Idem, "Fala o Líder Comunista" (Entrevista com Haroldo Lima), pp. 169-70.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 181
Um oficial avaliou, numa entrevista anônima, a importância e utilidade dos mateiros ou
bate-paus para as forças do governo, por suas palavras pode-se perceber como o não cumprimento
" - Nós não víamos o que eles viam: folhas quebradas, galhos, coisas muito pequenas
que o sujeito vai deixando na hora em que se desloca. Um bom rastreador, um
jagunço, um mateiro desses, consegue localizar a mínima pisada que alguém dá na
lama, ou numa folha. E, através de um galho quebrado no chão, o mateiro tira a
direção da pessoa que persegue."341
Outro erro, igualmente grave, foi o de não ter tomado providências contra as pessoas estranhas
que nesse período começaram a se instalar na área, em sua maioria, informantes das FF.AA. que
desempenhariam um papel fundamental na terceira ofensiva das tropas governamentais. Nesse particular,
Arroyo dizia que havia uma infiltração muito grande de policiais disfarçados na região, ou seja,
demonstra que o comando sabia dessa manobra das FF.AA. Então se impõe a pergunta: Por que não se
tomou nenhuma providência a respeito? A resposta nos é fornecida nos seguintes trechos:
"... Os guerrilheiros cometeram erros primários para não desagradar o 'seu povo'"342.
341
Fernando Portela, op. cit., p. 69.
342
Idem, p. 39.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 182
lhes escondia, quando a coisa apertava dentro da floresta, e que agora até homens
oferecia."343
Internamente, na sua estrutura organizativa, houve alguma mudança como Arroyo explica:
Quanto aos efetivos mais antigos, foram registradas duas baixas, ambas em setembro. A primeira
foi a morte de 'Mundico', do C, através de um acidente com sua própria arma. A segunda foi a fuga de
'Paulo', do A.
Conseguimos obter dois outros documentos oficiais inéditos, ambos redigidos nesse mesmo
período de trégua e pertencentes ao Exército. Pelo valor que os dois apresentam, procederemos aqui à
O primeiro deles trata-se de um relatório, ao que tudo indica, produzido pelo serviço de
informações daquela instituição e é extremamente rico pois traz uma avaliação mais do que insuspeita
contudo, consiste em não estar datado precisamente. Entretanto, uma referência a um fato ocorrido em
abril de 1973, nos indica que ele deve ter sido produzido logicamente após aquela data e, por outras
indicações mais difusas, antes do início da terceira campanha. Logo, em nossa opinião, sua data
presumida de publicação se situa entre fins de abril e setembro de 1973, muito embora, supomos que ele
tenha começado a ser redigido ainda no ano de 1972, pois à primeira página escreve-se este ano. Para
ter-se uma idéia mais exata da data verdadeira de sua edição, precisaríamos de alguns dados que no
343
Idem, p. 70-2.
344
Op. cit., p. 25.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 183
momento ainda não possuímos. Por exemplo, em um dado trecho, periodiza-se a apreciação
em 'antes' e 'depois' da chegada das tropa de Pára-quedistas. Em seguida, tudo leva a crer que o
documento foi redigido logo depois deste evento. como não sabemos ao cero quando tal se deu,
Exercício de Operações Psicológicas". Não traz assinaturas, nem qualquer símbolo oficial, nem local de
publicação. Apesar destes incovenientes, o que, de resto, é assaz normal em se tratando de documentos
documento riquíssimo e traz importantes informações sobre a guerrilha no sul do Pará. Vamos ao seu
exame.
Feitas essas caracterizações físicas da região, num segundo momento, o documento passa a
relatar as suas condições econômicas: transportes, cidades principais e número de habitantes, recursos
econômicos e padrão de vida. Fechando este ítem, justamente, na parte que trata do 'padrão de vida',
pode-se ler interessantes comentários, sobretudo quando se considera que são oriundos do Exército. Diz
o documento:
345
"Relatório do Destacamento das Forças Especiais da Operação Andorinhas", s.l., s.d., fl. 4 (Ver íntegra nos Anexos, pp.
x-x²).
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 184
Feitas essas observações, abre-se um novo ítem, denominado 'Fatores Psicossociais', que merece
um pouco mais de atenção. Começa-se por avaliar o 'estado sanitário' da região. Em seguida, constata-se
"contribui enormemente para [que], como vinha sendo feito, nas áreas rurais e mais
afastadas das cidades tal assistência médica vir sendo dada por intermédio dos
subversivos que se encontravam na área. Este vínculo criado e fortificado, em uma
população abandonada, poderá criar sérios obstáculos à atuação da fôrça Federal
naquela área [grifos nossos]."346
"... mais de 75% da população não sabe ler e escrever... inexistência de escolas
primárias... Os subversivos haviam montado escolas primárias em áreas bastante
interiorizadas (ESPERANCINHA, PATRIMÔNIO, etc.)"348.
346
Ibidem.
347
Idem, fl. 5.
348
Ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 185
Até aqui, tudo o que é relatado poderia muito bem ter sido feito por um dos
guerrilheiros. Trata-se de um trabalho de observação da realidade nua e crua, tal e qual ela se lhes
apresentava. Poderiam muito bem constar num panfleto das FORGA, mas neste caso, seria considerado
subversivo. Os trechos acima citados nos demonstram claramente que as FF.AA. tinham muito claro a
situação de injustiça reinante na região e, mesmo sem o querer, acabavam por legitimar a luta levada a
O documento passa então a tecer comentários sobre a 'Atitude da População'. Constitui-se numa
importante avaliação feita pelas forças governistas, portanto altamente insuspeita, sobre como se
"A população... ao princípio das operações, sem que tivesse sido doutrinada pelos
subversivos para tal, manteve-se simplesmente apática à presença da tr'opa federal.
Tanto dava informações sobre os terroristas, como em nossa opinião fornecia
informações da tropa para os subversivos.
Este fato é digono de nota, pois seria mais grave se as ações de proselitismo
houvessem sido feitas.
O povo demonstra grande amor pela liberdade e ânsia de soberania, o que pode
facilmente deduzir-se pela enorme quantidade de denúncias e queixas realizadas
contra os grandes proprietários da área. Somente após duas a três semanas de intenso
trabalho psicológico, através da ACISO junto à população é que a mesma passou a
tender para o lado da força federal. Os subversivos, em nenhuma ocasião fizeram
pressão sobre a população. Mesmo durante as incursões para obtenção de alimentos,
portaram-se de maneira cavalheiresca"349.
guerrilha e população. Conclui, como se verá, dizendo que não existia uma "força de sustentação, como
a concebemos [grifo nosso]"350. Para saber o que vem a significar essa assertiva, assim como outras em
349
Idem, fl. 6.
350
Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 186
que se refere vagamente a um outro conceito, 'força subterrânea', necessário seria saber qual era essa
Mais à frente arremata sobre o trabalho político dos guerrilheiros com a população:
Num outro ítem, 'Apreciação sobre as Operações', o tom otimista do parágrafo anterior é
atenuado. Lista-se as dificuldades que a tropa federal tem enfrentado no combate à guerrilha:
351
Ibidem.
352
Idem, fl. 7.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 187
- É área insalubre, de difícil acesso em seu interior, com rede de circulação
reduzida, exigindo da tropa treinamento adequado e condições psicológicas para o
tipo de combate que nela se iria fazer.
- A falta de cartas, mapas, fotografias e informações exatas, dificultou sobremaneira
e retardou as operações na área. Obrigou ao uso de mateiros e guias locais, pela total
impossibilidade de identificação dos locais pelos meios próprios."353
Num ítem especial sobre a 'organização subversiva', após advertir-se que para tais considerações
seriam levados em conta as informações exitentes e os informes colhidos durante as operações anteriores,
353
Idem, fls. 7-8.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 188
se ao combate e evitando qualquer contato com a Fôrça Federal. Apareceram em
vários lugares por onde a tropa (cia (-) do 2ºBIS) já havia passado"354.
transparecer que, até o momento de sua redação, não se sabia da existência de um comando unificado
das atividades guerrilheiras, pelo menos é o que faz pensar o seguinte trecho:
As duas últimas folhas do documento, ambas manuscritas, são intituladas "Conclusões do Est. Sit.
Área", que pode-se muito bem considerar como sendo: 'Conclusões do Estudo da Situação da Area da
Operação'. Nelas, toma-se conhecimento, de maneira resumida, das opiniões finais do(s) autor(es) do
'Relatório'.
354
Idem, fl. 8.
355
Idem, fl. 9.
356
Idem, fl. 10.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 189
O segundo ítem das conclusões, é dividido em quatro sub-ítens. Façamos pois um
Ao finalizar o documento, faz-se uma afirmação muito importante para se avaliar a dimensão que
357
Idem, fls. 10-1.
358
Idem, fl. 11.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 190
Segundo Mao Tsé-tung, as colunas guerrilheiras seriam já um estágio superior da guerra de
guerrilhas, acima da organização por destacamentos e grupos, próprias da primeira fase da luta, e pouco
abaixo da organização do exército do povo ou exército popular. Passar de um estágio a outro depende
politização junto aos camponeses. Donde pode-se concluir que, na avaliação dos serviços de informações
das FF.AA., a guerrilha estava ganhando força e, se não fosse aniquilada, poderia vir a se constituir num
Como se vê, uma afirmação, proveniente dos serviços de informação das FF.AA., que chega a
registrar tal opinião, deveria fazer pelo menos alguns daqueles que insistem em negar a importância da
Guerrilha do Araguaia, a compará-la com outras tentativas isoladas da esquerda armada, sem nenhuma
base de apoio popular, enfim, sem maior conseqüência, a rever seus pontos de vista. Com uma tal
avaliação da situação do confronto no sul do Pará, pode-se facilmente entender muitas coisas em todo o
processo. Por exemplo, o porquê da censura cerrada. Ao contrário do procedimento que se adotava no
combate às chamadas guerrilhas urbanas, nem mesmo notícias falsas sobre o que ocorria nas selvas do
baixo Araguaia foram permitidas. Fez-se a opção pelo silêncio total e absoluto, e tudo nos leva a
acreditar que foi por puro medo de uma proliferação do fenômeno guerrilheiro, de um 'surto guerrilheiro',
Um outro documento secreto, intitulado "Norma Geral de Ação - NGA", originário do gabinete
do ministro do Exército em Brasília, redigido pelo Centro de Informações do Exército (CIEx) e datado
de cinco de setembro de 1973, foi um outro grande achado a que conseguimos recentemente ter acesso.
Ele, além de se constituir em mais uma prova material daquilo que as FF.AA. teimam em negar, ou seja,
a existência da Guerrilha do Araguaia, é um retrato, ainda que parcial, de como, no momento mesmo em
que se cuidava dos últimos preparativos para o início da terceira campanha de cerco e aniquilamento, o
comando das forças de repressão avaliavam e dimensionavam o movimento guerrilheiro, assim como,
quais orientações davam aos seus subordinados. Trata-se também, pela profundidade com que
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 191
fundamenta o tema, de um pequeno resumo teórico de um dos aspectos da guerra de
guerrilhas, no qual se chega até mesmo ao requinte, supremo e inimaginável num documento das FF.AA.,
É sinal que as FF.AA., desde o começo dos embates, amadureceram-se do ponto de vista militar-
estratégico, procuraram tirar lições das duas operações anteriores. Elas deixaram de considerar, pelo
menos ao nível de seu alto comando, o movimento que ocorria às margens do rio Araguaia como uma
mera ação de banditismo, isolado das massas, enfim, enxergaram o erro que tinham cometido ao
menosprezá-lo.
que a guerra estavam travando era uma guerra política, e que nunca a ganhariam se a tratassem como um
Pois bem, feitas estas considerações passemos a uma breve análise do documento. Todo ele é
consagrado à questão do 'trato com a população', ou seja, de como as FF.AA. deveriam se relacionar
com o povo da região conflagrada. Trata-se de um documento de instrução para a ação prática das
tropas mas com uma introdução que procura teorizar sobre que tipo de combate elas iriam travar.
E continua, desta feita procurando demontrar a relação fundamental numa guerra de guerrilhas,
qual seja, a dos combatentes em armas e o povo da região onde atuam. Reproduziremos o seguinte
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 192
trecho em sua íntegralidade, haja vista a sua impotância para se compreender os movimentos militares
que o Exército, à frente das demais forças de repressão nacionais, promoverá em seguida:
Como pode-se notar, o combate à guerrilha havia sido içado à categoria de luta a ser levada
'cientificamente', a ser ganha politicamente. Após a leitura destas linhas temos bastante dificuldade em
imaginar que elas foram redigidas pelas mesmas mãos latu sensu que redigiram os planos das duas
primeiras operações, pois delas se difere imensamente. Justiça seja feita: o Exército e as FF.AA.
demonstraram uma alta capacidade de avaliação de seus próprios erros e de correção de sua linha tático-
estratégica. O Exército que voltaria à área conflagrada, qualitativamente, do ponto de vista militar, não
era o mesmo que de lá tinha se retirado onze meses antes, sem atingir seus objetivos.
359
"Norma Geral de Ação", Brasília, Centro de Informações do Exército (CIEx), Ministério do Exército (Gabinete do
Ministro), 05/09/1973, fl. 1 (Ver íntegra nos Anexos, pp. x-x²).
360
Idem, pp. 1-2.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 193
Mas, o documento continua. Começa agora a enumerar aquilo que chama de 'Ações
Terroristas para Conquistar a População', onde repertoria as formas através das quais os guerrilheiros
documento, oriundo do gabinete do ministro do Exército, localizado em Brasília, assaz distante da zona
em questão, e aquele outro, anteriormente analisado, redigido igualmente por agentes do serviço de
informações, mas que se basearam em um trabalho de pesquisa de campo, sobre o terreno afetado. Aqui
se diz que os 'terroristas' utilizam a coação como método de trabalho 'psicológico' junto ao povo, lá
Talvez o presente documento esteja se refirindo tão somente aos casos de 'justiçamento' de dois
bate-paus, ao ataque ao posto policial e à ação contra o fazendeiro Nemer Kouri, realizados pelos
destacamentos guerrilheiros.
Se é esse o caso, então, o documento confunde, propositadamente, este terror, promovido contra
aqueles que estavam agindo concretamente contra a guerrilha, em outras palavras, que estavam, como as
FF.AA., em guerra contra os guerrilheiros, com o tratamento dispensado por estes à população local que,
aliás, apoiou e saudou entusiasticamente aqueles atos acima citados contra personagens extremamente
E mais outra coisa, ao que tudo indica, os únicos a se sentirem coagidos, aterrorizados por tais
ações político-militares dos guerrilheiros, pelo que pudemos apurar de todo o material a que tivemos
bate-pau como pretendiam, aquele que conseguiu escapar, como narrado linhas acima, o vulgo
Pernambuco, tudo nos leva a crer que tal ato seria igualmente acolhido pelos populares com simpatia, se
não o fosse com entusiásmo e júbilo, pois eram, todos eles, verdadeiros criminosos, de um sadismo
lendário e, apesar disso, protegidos pelos policiais e fazendeiros poderosos da área que os contratavam
quando tinham algum 'problema' com um trabalhador rural ou com algum posseiro mais renitente.
Pelo menos é o que nos conta o seguinte trecho de um relatório elaborado pelos estudantes que
faziam seu estágio no campus avançado da Universidade de São Paulo, na cidade de Marabá, no ano de
1974. Nele, os universitários paulistas relatam como o dito Pernambuco, à essa época já premiado com
361
Idem, pp. 2-3.
362
"Relatório do Destacamento das Forças Especiais da Operação Andorinhas", s.l., s.d., fl. 6.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 195
um emprego público no INCRA, como responsável pela distribuição de lotes a posseiros, era
Como pode-se ver por este relatório insuspeito, os personagens contra os quais os guerrilheiros
promoviam ações de coação, não eram somente inimigos da guerrilha, eram inimigos do povo pobre e
abandonado daquela região, eram aqueles que cometiam toda sorte de abusos contra o povo, coagindo-
os, eles sim, a abandonar as terras que cultivavam por meio de ação violenta, para que elas passassem a
ser sedes de grandes fazendas, isso tudo, não raro, contando com a complascência, quando não com o
A preocupação que o documento das FF.AA. expressa contra a coação exercida contra a
população da área não parece sincera quando vemos que um dos grileiros mais afamados da região será
nomeado funcionário do INCRA, órgão que, teoricamente, deveria promover a política de reforma
agrária e distribuição de terras a quem não a tem. Este absurdo, um grileiro ser funcionário do INCRA,
se parece mais com uma velha anedota que se refere ao ato insensato de se colocar a raposa para tomar
conta do galinheiro, do que com uma medida de uma força que se pretende séria e que se dizia salvadora
das populações pobres daquelas paragens, aliciadas, coagidas, enganadas por 'terríveis terroristas'.
Com ações semelhantes, o Exército demonstrava a favor de quem se postava nos conflitos que há
muito confrontavam posseiros de um lado, e fazendeiros e grileiros do outro. Caía de pouco a pouco a
363
"Relatório de Atuação na 45ª Equipe do Campus Avançado da Universidade de São Paulo (CAUSP)", Marabá,
11/10/1974. In: Fernando Portela, op. cit., p. 258-9.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 196
sua máscara de neutralidade. Não é pois de se estranhar que o movimento guerrilheiro do Araguaia tenha
parte seguinte, sugere-se as ações que as FF.AA. deveriam executar para 'neutralizar' as ações dos
É sobre esta última sugestão apresentada que trata a parte seguinte do documento, intitulada
"Prescrições Gerais para o Trato com a População". Nessa parte, lê-se entre outras recomendações, as
seguintes:
Deste trecho pode-se depreender algumas conclusões. Primeira, que o Exército, como já foi dito
antes, mostra-se disposto a travar luta cerrada contra os guerrilheiros em todos os campos, inclusive, e
364
"Norma Geral de Ação", Brasília, op. cit., fl. 3.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 197
Segundo, que às vésperas da terceira campanha de cerco e aniquilamento, as FF.AA. já tinham
a lista dos colaboradores da guerrilha, certamente, fruto do eficiente trabalho de seus espiões infiltrados.
Por último, podemos notar que para o Exército, no tocante à população, o jogo estava empatado,
conquistaria seu apoio o lado que melhor soubesse 'trabalhá-la' e, já que o documento anteriormente a
considerara como sendo o fator decisivo em tal tipo de guerra, nesse particular as FF.AA. deveriam tudo
fazer para ganhá-la, sob pena de, mais uma vez, não conseguir atingir o seu objetivo estratégico - destruir
o núcleo guerrilheiro.
Esta última avaliação pode dar ensejo a duas reflexões. Uma, que diz respeito ao reconhecimento
por parte das FF.AA. que o trabalho político dos guerrilheiros tinha alcançado certo êxito, pois
provocara pelo menos o estado de 'simpatia passiva' da população, apesar de todo o trabalho 'psicológico'
que as FF.AA. vinham realizando há cerca de um ano; outra, que se a soldadesca não fosse capaz de
realizar as determinações que se lhes dirigem no tocante ao tratamento a ser dispensado ao povo, ele
poderia tender para o lado adversário. Ou seja, as FF.AA. reconhecem que não há ainda uma definição na
disputa guerreira, o jogo não está ainda decidido, tudo dependeria da atuação das tropas federais. O que,
considerada a desproporção numérica e material das partes em confronto, não deixa de ser uma avaliação
um tanto quanto negativa para o lado oficial, embora tal não chegue a ser dita abertamente.
O 'NGA' termina com orientações expresas aos soldados, de como deveriam se relacionar com a
população:
365
Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 198
- Evitar a arrogância, o excesso e o abuso de autoridade, em situações normais [grifo
nosso]"366.
Tais foram as prescrições que as tropas receberam ao começarem a terceira campanha. Mas,
desde já, convém fazer uma distinção. Estas diretivas referiam-se tão somente ao procedimento que se
deveria ter em relação à população não suspeita de colaboração com os 'terroristas'. A estes e a como
tratá-los, o documento destina suas últimas linhas, tanto vagas como sugestivas, sobretudo se
" - Tratar com energia e discrição todo prisioneiro apanhado entre os componentes
da população, mesmo os infiltrados [sim, por que senão se revelaria para todos suas
verdadeiras identidades];
- Evitar cenas públicas que... possam chocar a população. [grifos nossos]"367
Tais enunciados, genéricos, ganham vida e conteúdo bem concretos quando observamos como se
realizou a terceira campanha das FF.AA. e como ela tratará os presos, suspeitos de serem simpatizantes
das FORGA.
O período de relativa trégua persistirá somente até o início do mês de outubro, completando
assim cerca de onze meses de cessar-fogo, onze longos meses de intensa preparação guerreira de ambos
os lados.
FF.AA. voltam ao 'teatro de operações', começava assim a terceira campanha de cerco e aniquilamento
366
Idem, fl. 4.
367
Ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 199
Até hoje, nenhuma introdução a uma exposição da terceira campanha de cerco e aniquilamento
foi tão bem escrita como o fez o jornalista Fernando Portela. Como forma de lhe render uma merecida
homenagem, abriremos a presente seção com a sua reprodução. Tal se justifica, mesmo que não
partilhemos de todas as suas conclusões, porque trata-se do primeiro intelectual a se debruçar seriamente
sobre os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia, numa época em que tal atitude representava não só
Por mais que estivessem advertidos pelos guerrilheiros de que as tropas federais voltariam e que
desconfiassem dos novos habitantes que para lá se mudavam, os simples moradores daqueles rincões
distantes não poderia imaginar que o retorno das FF.AA. seria tão violento.
O que se vê na seqüência é uma demonstração de sadismo para com aquelas populações sofridas.
As cifras sobre o número de detidos são bastante contraditórias, variam de cem a mil homens, jovens ou
não.
Depois de presos, foram amontoados nas cadeias das PM's locais, onde, ainda segundo Portela,
"... passaram pouco tempo... Pouco tempo: nem eles sabem se um dia, dois, cinco. Os
policiais, com a alegria da volta do Exército, encheram as pequenas celas... de tal
maneira que as pessoas só conseguiam ficar numa posição: em pé. E todos
completamente nus. As janelas das celas foram pregadas com tábuas.
- É para o ar não passar, explicava um policial.
E começou o suplício: primeiro cansaço, depois fome, e... uma sede insuportável. As
necessidades dos presos começaram a ser feitas ali mesmo, e eles em pé, um contra o
outro. Mariano, um dos presos em São Domingos, gemendo de sede, fez um pedido ao
homem mais próximo:
- Quando você quiser urinar me avise, me avise porque eu não agüento mais de
sede..."369
368
Op. cit., pp. 73-4.
369
Idem, p. 74.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 201
Lá, voltaram a se defrontar com o sistema de aprisionamento em 'buracos' fundos,
cavados no chão, já utilizado durante a primeira campanha de cerco e aniquilamento, mas desta vez mais
'aperfeiçoado':
Tudo nos leva a crer que o Exército agindo desta forma estava levando às últimas conseqüências
a máxima de Mao sobre a guerra de guerrilhas de que "a população é para o guerrilheiro o que a água é
para o peixe". Decidido a acabar de vez com os núcleos guerrilheiros, cumpriam então a diretiva de
impedir o contato da guerrilha com o povo. As pessoas que permaneceram nos povoados, em sua
maioria mulheres e crianças, viviam sob intensa vigilância, assim como as compras de mercadorias
realizadas pelos moradores eram criteriosamente controladas. Todo esse esforço para que toda
possibilidade de obtenção de ajuda por parte da guerrilha fosse inviabilizada. além das medidas já citadas,
houve outras como, por exemplo, a de que qualquer moradia que fosse encontrada sem os proprietários,
jovens, também foi tomada para evitar novas adesões ao movimento guerrilheiro. Logo, as previsões que
Arroyo narrara de que havia um grande número de pessoas dispostas a engrossar as fileiras dos
combatentes das FORGA em caso de novo ataque das FF.AA., não puderam se realizar pois todos,
Quando eles voltaram, muitos ficariam loucos, traumatizados para sempre, alguns se mudarão
para bem longe dali com o intuito de esquecer o que sofreram, outros tantos, aterrorizados, passariam a
servir de guia, bate-pau para o Exército. Vejamos o depoimento de um que serviu de bate-pau, Venâncio
"Antes do Exército chegar eles [o povo] tavam [sic] a favor, eram ligados. O Exército
tentou pegar o pessoal daqui mas tava [sic] muito difícil. Daí ele foi embora e voltou.
Voltou pra pôr pra quebrar, pegando todo mundo. Levou todo mundo pra Marabá,
pra Araguaína, pra todo canto. Depois voltou quase tudo, a maioria como guia. A
maioria mora aqui ainda"371.
Ao mesmo tempo em que realizavam essas operações de esvaziamento e cerco dos povoados,
cerca de seis mil soldados governistas, segundo estimativas, agora liderados pela Brigada de Pára-
quedistas do Rio de Janeiro, dirigida pelo General Hugo de Abreu, mais uma vez contrariando as
previsões da reunião da CM, entravam na mata, guiados por mateiros, voluntários ou forçados, e mesmo
sozinhos, o que leva a crer que também o Exército fizera minucioso mapeamento da área.
Outra novidade, é que nessa nova ofensiva não terão o menor pudor em utilizar os índio da tribo
Suruí. Para isso, obtiveram da Fundação Nacional do Indio, FUNAI, a autorização necessária, apesar da
declarada oposição dos religiosos católicos que atuavam junto à comunidade indígena. Assim, os índios,
vítimas de dizimação desde quando a primeira nave européia aportou na terra brasilis, e ainda nesta
370
Idem, p. 75.
371
Palmério Dória et alii, op. cit., p. 68.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 203
posição permaneciam naqueles anos setenta, ajudariam o governo, que deveria lhes defender,
impedindo a continuidade do genocídio iniciado em 1500, a 'caçar' os guerrilheiros da ULDP que no 25º
ítem de seu programa, trazia inscrito: "Defesa da terra dos índios, respeito aos seus hábitos e costumes e
Sem dúvida, não se pode deixar de reconhecer a sagacidade das FF.AA. ao se decidir por utilizar
indígenas em suas buscas aos guerrilheiros. Contudo, essa 'esperteza' dos militares brasileiros, esse
envolvimento involuntário dos indios, causou conseqüências psicológicas e culturais que ainda se fazem
sentir. Assim, jornalistas, que estiveram na aldeia da tribo dos Suruí para colher depoimentos sobre os
tempos da guerrilha, narram que: "Alguns se comportam como se tivessem traumas daqueles tempos. É o
Tal relato faz com que sejam muito verdadeiras as palavras que o Professor José de Souza
Desta vez, ao contrário das vezes precedentes, os soldados entravam em pequenos grupos, de três
a dez homens, realizando caminhadas em círculos e semi-círculos, esquadrinhando toda a selva. Usavam
armamento mais leve, fuzís e metralhadoras de última geração e, sabedores da debilidade e inferioridade
do armamento usado pelos guerrilheiros, souberam explorar ao máximo essa vantagem tática, assim, ao
372
"O Programa de 27 Pontos da ULDP - União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo". In: Clóvis Moura, op. cit., p. 79.
(Ver também em Anexos, pp. x-x²).
373
Palmério Dória, op. cit., p. 55.
374
In: Op. cit., p. 6.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 204
menor movimento, atiravam, não dando tempo para que os membros das FORGA operassem suas
davam apoio por cima. Nessa campanha, com a população impedida de favorecer o seu 'povo da mata', e
com as tropas estando bem melhor preparadas, os combates se davam de igual para igual, o que, no
contexto de uma guerra de guerrilhas, significa um grande revés para as forças rebeldes que, assim
perdem as vantagens que normalmente têm nesse tipo de confronto, ou seja, maior conhecimento do
Mas, o sucesso de tal movimento lançado pelo alto comando das FF.AA., não pode somente ser
creditado aos acertos que estes fizeram. Há que se considerar também o peso fundamental que tiveram
alguns graves erros de orientação militar que foram cometidos pelas forças guerrilheiras.
"o Destacamento A contava com 22 elementos; o B, com 12; o C, com 14; a CM, com 8. Ao todo: 56
muitas fontes anônimas insistirem na afirmação de que os 'terroristas' utilizavam armas russas, chinesas
ou cubanas.
meses, e havia remédios em bom número. Por outro lado, relata Arroyo,
"a maioria dos combatentes estava com pouca roupa e já não havia calçados. Uma
parte usava lambreta [sandália de dedo] de sola de pneu e alguns companheiros
andavam mesmo descalços. Eram insuficientes as quantidades de bússolas, isqueiros,
facas, querosene e pilhas. Muitos... não possuíam plásticos para abrigar-se da chuva.
375
Angelo Arroyo, op. cit., p. 25.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 205
Também faltavam sacos para guardar comidas e roupas. Todo dinheiro
existente era 400 cruzeiros"376.
Apesar de todas essas dificuldades e, em virtude dos grandiosos trabalhos político junto às
"A maioria dos companheiros, 80% orientava-se bastante bem na mata... toda área
era conhecida. O moral era muito bom. Todos mostravam-se confiantes e
entusiasmados."377
Quando ocorreu o volta das FF.AA., a estrutura organizativa estava assim configurada. Antes, em
agosto/setembro de 1973, a CM havia orientado que o destacamento B estendesse a sua atividade para
além dos limites onde até então atuara. Mas, para que esta não ficasse vazia, ela deveria ser então
destacamento a outro, os dois destacamentos deveriam conviver mais ou menos na mesma área. Quando
o destacamento C já estivesse em condições de seguir adiante o trabalho até aqui desenvolvido pelo B,
então este deveria se deslocar para a nova base, além da estrada de São Geraldo. O ataque das FF.AA.
Não demorou muito a haver encontros entre as tropas federais e os grupos guerrilheiros. Já no dia
12 de outubro, o Destacamento A (Helenira Resende), numa imprudente operação que visava a obtenção
de alimentos, perde quatro combatentes, entre eles seu comandante, 'Zécarlos' e um camponês recém-
ingresso na guerrilha e grande conhecedor da mata, além de ocasionar a perda de quatro dos seis fuzís
que haviam sido tomados no assalto ao posto da PM. 'Piauí' passa a substituir 'Zécarlos' no comando do
376
Ibidem.
377
Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 206
destacamento. No dia 24, morre 'Sônia', igualmente vítima de atitude de imprudência, uma das mais
disperso em três grupos a realizar diferentes ações, só vindo a se reagrupar no dia 2 de novembro,
quando decide-se embrenhar na área de refúgio. Antes desse reagrupamento, um dos três grupos,
"tentou realizar uma emboscada com nove elementos de massa, mas os soldados não
passaram. Depois, com os mesmos elementos, tentaram destruir uma ponte na
Transamazõnica. Também não conseguiram. Chegaram a tocar fogo na ponte, mas
esta não queimou. Os elementos de massa voltaram para suas casas... ficou apenas
um jovem... que pediu ingresso na guerrilha".378
Tratava-se de um fato inédito, pela primeira vez, desde o início da guerrilha, pessoas do povo
tomavam parte em ações armadas contra as tropas das FF.AA., mesmo que não tenham chegado a se
incorporar ao destacamento. Por outro lado, nesse mesmo campo, o ingresso de novos combatentes não
correspondeu à expectativa dos guerrilheiros. Primeiro, por que a ação fulminante de aprisionamento
preventivo e em massa de quase toda a população masculina não o permitiu, como o faz supor a
afirmação contida no relatório de Arroyo: "Chegou a informação, dia 22 [de outubro], de que os
elementos de massa que queriam entrar na guerrilha não haviam comparecido no ponto [de
encontro]."379
Em segundo lugar, porque dois novos componentes que já haviam se juntado ao Destacamento A,
sentindo muito medo, pediriam para sair e seriam liberados pelo comando.
Muito embora, tal participação de moradores em algumas atividades militares da guerrilha, sem
378
Idem, pp. 25-6.
379
Idem, p. 26.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 207
população no confronto, muito embora, deva se dizer, um salto qualitativo restrito à área de
atuação do A, tal não se repetirá, pois mesmo aqueles nove que tomaram parte nas tentativas de
emboscada e sabotagem, assim que voltaram para suas respectivas residências foram imediatamente
presos.
combates. Seu nome, 'Jonas'. Na segunda campanha havia sido preso e, na nova ofensiva, seu pai tinha
sido levado pelas tropas federais. Mais à frente, este novo integrante saberia que, por causa disso, seu pai
tinha sido espancado brutalmente, se encontrando hospitalizado. Na seqüência, quando ele, juntamente
com 'Ari' e 'Raul', voltavam de um contato com a massa, aconteceu a morte misteriosa de 'Ari'. 'Raul',
voltaram ao local onde 'Raul' havia ouvido os tiros e encontraram as mochilas dos três e, a aterradora
visão do corpo de 'Ari' sem a cabeça, haviam-na decepado. Jonas desapareceu e nunca mais dele se
ouviriam notícias. O Destacamento, avaliando o ocorrido, concluiu que talvez 'Ari' pudesse ter sido
assassinado por Jonas. E como ele, Jonas, conhecesse o local onde se localizava o BC, decidiu-se mudar
Aqui, pode-se fazer um parêntese. Jonas seria um espião das FF.AA. infiltrado nas FORGA?
Difícil de responder de maneira conclusiva. Ou, tomando conhecimento da situação que enfrentava seu
pai nas mãos das tropas do governo, resolveu trocar a cabeça de um guerrilheiro pela vida e liberdade do
seu progenitor? Mesmo que não consigamos resolver este enigma, pelo menos por enquanto, uma coisa é
certa: a pressão exercida sobre a população pela tática agressiva e intimidatória utilizada pelas forças de
massa, 'Toninho', e no dia 17 ou 18, a de 'Josias', ambos aterrorizados pela crueldade dos combates.
Como pode-se perceber, apesar da simpatia que nutriam pela causa das FORGA, os aderentes
originários da área, terão grandes dificuldades em se adaptar à vida guerrilheira, com todas os seus riscos
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 208
e dificuldades. O porquê desse fenômeno é uma boa pista de pesquisa a ser perseguida. Seria pela falta de
formação político-ideológica, deficiente preparação militar? São outras perguntas que continuam a ecoar
sem resposta.
Neste início da terceira campanha, alguns fatos ganham destaque e merecem ser narrados. O
primeiro trata-se de um episódio, chamado no jargão militar de 'fogo amigo', que opôs tropas federais e
efetivos da PM de Goiás. Os policiais, após haverem enfrentado, e sido derrotados, pelos guerrilheiros,
encontram-se casualmente em plena floresta com uma tropa descaracterizada do Exército. O resultado
foi que, pensando que se tratassem de guerrilheiros, ela abre fogo contra o grupo que chegava. O tiroteio
dura alguns minutos, até que se perceba que tratava-se de uma 'força amiga'. Balanço do engano: um
sargento das FF.AA. morto por balas governamentais, disparadas por um sargento da PM. Segundo uma
fonte militar: "Foi difícil evitar o massacre. Mas o Exército jamais esqueceu o caso e as PM não
voltariam a participar, como antes, do combate à guerrilha."380 Outro militar, mais complascente com o
Mas, não foi somente este, houve também dois outros episódios, igualmente ocorridos durante a
terceira campanha, seriam bastante comentados, causando forte rebuliço nas hostes militares
governamentais.
380
Fernando Portela, op. cit., p. 77.
381
Idem, p. 123.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 209
382
Um deles foi a morte da guerrilheira 'Chica' , que segundo testemunhas, teria sido
atingida por mais de cem tiros. O episódio teria se passado da seguinte forma: 'Chica' teria sido
surpreendida por uma patrulha de soldados da Brigada de Pára-quedistas, teria esboçado reação, mas,
antes disso seria alvejada, ficando gravemente ferida, estirada no chão. Um jovem oficial pára-quedista
teria então se aproximado dela, com a arma baixa. Segundo contaram fontes militares, ela teria enfiado a
mão em sua bota e sacado uma pequena pistola e disparado um tiro contra o rosto do oficial, já bem
próximo dela, sem contudo o matar. O restante da tropa, então, sob o impacto do momento,
enlouquecido, a teria metralhado de forma insana. Sobre ela, ou seja, sobre o seu cadáver teriam sido
"Tinha uma japonesa também que era bastante audaciosa. Teve uma morte muito
violenta, ela recebeu mais de 100 tiros... Eu vi quando ela chegou... estava uma
peneira, mas era uma peneira mesmo, coitada [sic]!"383
O outro fato que ganhou fama, nessa terceira campanha foi a atitude de um oficial, um major,
comandando uma patrulha que, num confronto, tinha acabado de abater um guerrilheiro, teria ordenado a
seus comandados que se perfilassem diante do cadáver e, irritado com o baixo rendimento de seus
" - Este homem aí no chão é um herói. É um soldado heróico lutando do lado errado.
E vocês, o que vocês são?
Nem cabisbaixos, os soldados puderam ficar. E ainda ouviram que era o país que
gastava dinheiro com a formação deles, a alimentação, as regalias.
382
Trata-se da estudante paulista, filha de imigrantes japoneses, Sueli Yumiko Kanayama que contava então com 25 anos
de idade. Mudou-se para a região do Araguaia em fins de 1971, portanto pouco tempo antes do início dos combates. Isso
não a impediu de se tornar uma das mais destacadas componentes das FORGA. Recentemente, um periódico brasileiro
divulgou a notícia que jornalistas japoneses estariam percorrendo a região onde ocorreu a guerrilha em busca de
testemunhos sobre a sua participação no confronto. O objetivo de tal enquete seria o de publicar um livro sobre essa
descendente de japoneses que transformou-se em guerrilheira no Brasil.
383
Idem, p. 126.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 210
Entre oficiais, o desabafo do colega irritado foi elogiado por uns, condenados por
outros."384
Quanto ao lado guerrilheiro, mais precisamente à CM, Arroyo narra que esta recebera a
informação inicial de que se tratava de uma ofensiva de pequeno porte, "de que o número de soldados
não passava de uns cinqüenta."385 Em meados de novembro, portanto quando a terceira campanha já
durava mais de um mês, reuniu-se a CM. Assim nos é relatada esta importante reunião que tanto peso
guerrilheiro. Além de avaliar incorretamente a força e a extensão da operação que as FF.AA. realizavam,
tomou decisões que só seriam concebíveis, do ponto de vista da experiência histórica acumulada em
matéria de guerra de guerrilhas, se as FORGA estivessem vivendo uma situação muito favorável, que já
384
Idem, p. 82.
385
Angelo Arroyo, p. 26.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 211
estivesse inclusive controlando 'zonas liberadas', e que então estivessem se transformando em
Na verdade, essa compreensão errônea do estágio que a luta no Araguaia atravessava, originária
talvez de uma certa euforia após terem suportado duas poderosas ofensivas inimigas, começara já na
reunião de agosto da CM, quando se decidiu que, em caso de ataque do Exército, todos os
destacamentos deveriam se concentrar. Tal acabou não acontecendo, pois a entrada abrupta das FF.AA.
não o permitiu, mas a simples tomada de uma semelhante decisão já demonstrava por si só que a CM
começava a orientar o movimento guerrilheiro por caminhos perigosos. Este seria um erro fatal, os
Após a reunião, J., ou Arroyo, se dirigiu rumo ao refúgio do A para desempenhar a função que
lhe haviam determinado e lá ficou até o dia em que deveria participar da outra reunião da CM. A CM,
por sua vez, depois das suspeitas surgidas sobre 'Jonas', alguns dias após a reunião da CM, como
estivesse localizada em uma área igualmente conhecida pelo suspeito de traição, decidiu juntar-se com o
Destacamento BC, formando uma força única, mudando-se para a área da Palestina. Ao todo somavam
trinta e dois combatentes. Lá chegando, dividiu-se em três grupos. Com a fuga de 'Toninho', no dia 13,
"Caminharam mais de dois dias e acamparam num local onde se pretendia fazer a
reunião da CM... tinham feito o deslocamento numa só coluna, tendo deixado fortes
rastros"387.
Quando um grupo cuidava de apagar os rastros deixados, deparara-se com o inimigo. Voltou
então ao acampamento e advertiu a todos, que, prontamente, partiram em direção ao refúgio do A, onde
sabiam não haver sinais de presença de tropas federais. Enviaram emissários para avisar J. do ocorrido,
mudando o local da reunião da CM, ao mesmo tempo em que a tranferia para o dia 25 de dezembro.
386
Idem, pp. 26-7.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 212
Enviava também a mensagem de que J. providenciasse comida para os combatentes que chegariam junto,
No dia 25, conforme ficou estabelecido, Arroyo (J.) se dirigiu acompanhado de mais três
membros do destacamento A rumo ao local de encontro acertado. Lá, encontraram dois enviados da CM
que os informaram de um novo local de encontro, por causa da fuga de 'Josias'. O novo 'ponto' ficava já
na área de refúgio do A, não muito longe dali, e que eles já estavam lá acampados, à sua espera. Todos
os seis então se puseram a caminho do acampamento da B-C-CM. O que se sucedeu, então, nos relata
Arroyo:
Neste local de referência encontraram-se com quatro componentes da força unificada. Um deles
era 'Osvaldo'. Ele e os outros três estavam apagando os vestígios da passagem da força unificada quando
escutaram o tiroteio. 'Osvaldo' disse que achava que os tiros tinham sido sobre o acampamento e que
Na verdade, o que acabara de ocorrer tinha sido a batalha decisiva da Guerrilha do Araguaia e, se
é que se pode dar um nome à ela, este seria a Batalha do Natal Sangrento. As forças da repressão, por
erros e mais erros que a direção da CM cometera, conseguira desfechar um golpe estratégico contra as
FORGA. Naquele trágico 25 de dezembro, sabe-se hoje, morreram muitos guerrilheiros, os números
variam, mas é certo que entre eles estava 'Mário', ou Maurício Grabois, o comandante das FORGA.
387
Idem, p. 28.
388
Ibidem.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 213
Mais uma vez, num grande 'furo' de reportagem, o jornal O Estado de São Paulo, em
1982, dez anos após a sua outra famosa e solitária reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia, estampou
uma foto inédita de quatro cadáveres que, segundo a fonte anônima que a forneceu, entre eles estaria o
corpo de Grabois. Na mesma edição, além da fotografia, concedeu também ao periódico paulista, uma
«Eles emboscaram uma patrulha do Exército, que era composta de cinco homens,
sendo três militares e dois 'mateiros'. Estavam armados de revólveres 38, espingardas
avisada pelos seus vigias. Embora a patrulha fosse constituída de pequeno número,
resolveram deslocar-se para o acampamento do A, em sua área de refúgio, lá chegando dia 28.
Era uma correção do rumo incorreto adotado pela CM em suas duas reuniões precedentes.
Embora válida, como demontração de capacidade de autocrítica, ainda que tardia, infelizmente, a sorte
da guerrilha tinha sido selada no enfrentamento havido no Natal Sangrento, era tarde demais.
No mesmo dia em que se reunira o comando do destacamento A, realiza-se uma reunião dos vinte
e cinco guerrilheiros que se encontravam então na área de refúgio do A. Assim, Arroyo nos narra esse
encontro:
"A noite do dia 29, fez-se uma reunião com todos os presentes. Mostrou-se a
gravidade da situação e destacou-se que este era o período mais crítico que
atravessara a guerrilha. Acentuou-se que outros povos também tinham passado por
momentos muito difíceis e venceram porque persistiram na luta, não se deixaram
abaterMantendo-se unidos e decididos, poder-se-iam superar as dificuldades. O
389
Ayrton Baffa, "A Prova da Morte de Grabois, em 73", jornal O Estado de São Paulo, SP, 10/10/1982, pp. 26-7.
390
Idem, p. 29.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 215
comando indagou se algum dos combatentes queria abandonar a luta. Caso
alguém se sentisse abalado e não mais quisesse continuar, poderia dizer. O comando
autorizaria a sair. Mas ninguém manifestou desejo de sair. Afirmou-se também que
não se conhecia a sorte dos demais membros da CM. Não se podia dizer que tivessem
sido mortos, apesar do que ocorrera. Que se ia tentar um contato e procurar agrupar
todos os elementos dispersos."391
No dia seguinte, os cinco grupos se constituíram e seguiram cada qual uma direção, conforme
No dia 19 de janeiro, Arroyo (J.), tentou uma reaproximação do local onde tinha havido o tiroteio
em 25 de dezembro, mas, percebendo ainda fortes movimentações de soldados na área, decidiu retirar-se.
"os líderes restantes... decidem que Arroyo deve bater em retirada, retornar ao sul do
país e informar o partido sobre a situação no Araguaia. Arroyo resiste, mas eles o
obrigam, em janeiro de 1974, a tentar a fuga ao lado de um companheiro. Consegue
furar o cerco do Exército e restabelecer o contato com a direção nacional do
PC do B."392
Arroyo encerra o seu Relatório Sobre a Luta no Araguaia, hoje uma peça já incorporada ao
patrimônio histórico do povo brasileiro, referindo-se ao que o Exército deve ter recolhido junto com
'Mário':
"Em poder do camarada Mário, responsável da CM, havia uma espécie de diário,
onde ele anotou os principais fatos e as medidas adotadas na guerrilha, desde o seu
início. Estas anotações são da maior importância, refletem as opiniões do comando
em diferentes ocasiões. Com Mário encontravam-se também cópias de todos os
materiais editados, assim como hinos, poesias, etc."393
391
Ibidem.
392
Pedro Estevam da Rocha Pomar, op. cit., pp. 155-6.
393
Ibidem.
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 216
Angelo Arroyo, viveria doravante constantemente amargurado e infeliz, segundo testemunha, que
com ele conviveu depois de sua saída do Araguaia, ele passou a viver atormentado pela idéia de que "o
correto teria sido morrer com os demais companheiros"394. Mas, esse seu sofrimento, que deve ter sido,
sobreviventes dos campos de concentração nazistas, não duraria mais do que dois anos, nem isso. Em 16
de dezembro de 1976, ele e outro comunista histórico, Pedro Pomar, seriam assassinados, fria e
covardemente, por agentes do Exército, enquanto ainda dormiam, numa alvorada, na cidade de São
Antes disso, contudo, num outro documento que redigiu sobre a experiência do Araguaia, desta
vez explicitando a sua avaliação política global de toda a guerrilha, Arroyo demonstra, então, que
compreendera quais eram os eixos da terceira campanha de cerco e aniquilamento das FF.AA.
Interessante é notar que só lhe foi possível chegar a uma visão mais ampla do conjunto das operações das
tropas do governo depois de sua saída do Araguaia. Ou seja, podemos mesmo arriscar uma opinião de
que a CM, se não tivesse suas ligações com o mundo exterior cortadas pela ação da repressão, talvez
viesse também a ter essa visão mais larga do confronto, de suas possibilidades, de seu significado. Nesse
394
Cf. Wladimir Pomar, op. cit., p. 46.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 217
prisioneiros... Em linhas gerais, este o plano que o inimigo pôs em ação. A
CM não soube captá-lo e adotar as contramedidas pertinentes"395.
O desastre ocorrido no episódio do Natal Sangrento, contudo, não fez deixar de existir, de todo,
a resistência armada iniciada em 1972. Durante todo o ano de 1974, ainda existem registros de
São Paulo, supra citadas, ou seja, de que somente quatro dos que estavam no acampamento sucumbiram
no Natal Sangrento, então concluiremos que dos quinze396 que lá se encontravam no momento da
chegada da patrulha do Exército, pelo menos onze conseguiram escapar e que, somados aos vinte e
seis397 outros que Arroyo relata ter visto vivos após aquele acontecimento fatídico, perfaz um total de
trinta e sete guerrilheiros ainda espalhados pela região e que, ou serão capturados pelas tropas do
governo, ou serão encontrados pelos seus camaradas de armas, agora divididos em cinco grupos de cinco
combatentes.
Sobre a sorte de cada um dos que sobreviveram ao Natal Sangrento, não se têm notícias
Em abril ou maio de 1974, segundo conta-se, durante a semana santa daquele ano, a guerrilha
sofreria um outro profundo golpe: a morte do comandante Osvaldo Orlando da Costa, o 'Osvaldão. Ele
teria sido morto à traição por um certo 'Piauí', perto de São Domingos, numa roça, enquanto comia uma
espiga de milho crua. Segundo testemunhas, ele estava magro e doente. Sua morte valeria ao jovem
'Piauí' uma gorda recompensa em dinheiro, prometida pelos soldados do governo a quem o matasse.
395
Angelo Arroyo, "Um Grande Acontecimento na Vida do País e do Partido". In: João Amazonas et alii, op. cit., p. 35.
396
Aqui, adotamos a cifra citada por Arroyo que, por sua vez, baseara-se no testemunho de Osvaldo, um dos que faziam
parte do acampamento e que, por sorte, estava fora no momento do ataque.
397
Nessas contas, estamos excluindo o próprio Arroyo, pois em seguida ele retirou-se da região, ao mesmo tempo em que
acrescentamos dois que ele enviara ao encontro com mais dois (ou mesmo quatro). Para maiores esclarecimentos, ver a
íntegra do documento em Anexos, pp. x-x².
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 218
Antes de recebê-la, contudo, terá que submeter-se a uma cena de humilhação realizada pelos soldados
que lhe dizem: "... Ele obedece, sabe o que quer. E com muito custo... apanha seu prêmio"398.
Era um golpe mortal nos guerrilheiros, já então bastante abalados, completamente internados nas
matas e impedidos de abastecerem-se nos povoados, todos eles sob forte vigilância militar.
Mas ainda não seria a extinção da guerrilha. Em meados de 1974, um grupo de quatro
guerrilheiros visita a casa de um velho habitante da região. Estavam em busca de comida, famintos e,
A guerrilheira 'Dina', uma das mais conhecidas e temidas das mulheres que integravam as
FORGA, teria sido morta, também por traição, somente no segundo semestre de 1974: "Foi chamada a
um casebre de pessoas amigas, abriu a porta e recebeu chumbo grosso no corpo todo"400.
Uma outra versão, que, contudo, não precisa a data, é fornecida pelos índios que serviram de guia
para as tropas do Exército: "A Dina - diz que ela era baiana -, foi pegada [sic] lá em Marabá: ia
Enquanto isso, nas cidades, o Comitê Central do PC do Brasil tomava conhecimento através do
relato, oral e escrito, de Angelo Arroyo. Desde o início da terceira ofensiva das FF.AA., as ligações
entre o partido e a guerrilha tinham sido cortadas pelo violento cerco que foi imposto a todas as
Não nos foi possível verificar a veracidade de uma informação que dava conta de que o Comitê
Central teria dado "a ordem de dispersão da guerrilha (maio de 1974)"402. Muito menos se sabe se tal
mensagem, admitindo-se que ela foi porferida, chegou a alcançar os guerrilheiros que ainda sobreviviam à
398
Cf. Fernando Portela, op. cit., p. 22.
399
Idem, p. 86.
400
Idem, p. 87.
401
Palmério Dória et alii, op. cit., p. 56.
402
Cf. Fernando Portela, op. cit., p. 85.
Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados 219
essa época, e se, em caso de terem-na ouvido, tentaram romper o cerco a eles imposto pelas
tropas militares e, nessa tentativa, foram abatidos pelas forças de repressão. Tais informações somente as
Do partido, tudo o que se pôde apurar, até o presente momento, é que o jornal 'Araguaia', editado
pelo Comitê Central e alguns Comitês Regionais, continuará circulando clandestinamente nas grandes
cidades até março de 1975, apesar de o CC não receber nenhuma informação da região desde o ano
anterior. O jornal A Classe Operária, órgão oficial do CC, expressando ainda a expectativa de que
houvesse sobreviventes, e mesmo remanescentes das FORGA, continuará a se referir à guerrilha como
ainda existente até abril de 1976403 e somente em setembro deste mesmo ano publica-se, em editorial, um
No exterior, o PC do Brasil edita alguns materiais nesse período. Na França, em abril de 1974, é
publicado, em francês, o jornal do CC, A Classe Operária. Nele, pode-se perceber que o CC tem
consciência de que os guerrilheiros do Araguaia atravessam um período muito difícil e chega a transmitir,
de maneira cifrada, algumas orientações aos combatentes, mas não se pode classificá-las como sendo de
dispersão, tratam-se, antes, de recomendações à guerrilha para que adote medidas no sentido de sua
"Face à une si féroce offensive les forces partisannes doivent préserver leurs rangs.
Elles ne défendent pas à tout prix des positions fixes. Elles appliquent la tactique du
retrait organisé des régions où se trouve l'ennemi. Elles dispersent en petits groupes
pour faciliter leur déplacement et ne pas laisser de trace. Elles redoublent de
vigilance et font tout pour empêcher que les ennemis ne les localisent. Si nécessaire,
elles abandonnent les endroits où elles opéraient auparavant, y compris les petites
plantations, les grottes et les endroits utilisés comme refuge. Dans ces circonstances,
le déplacement dévient un avantage [grifo nosso].
403
"Invencível Bandeira de Luta", A Classe Operária, nº 105, abril de 1976. In: Wladimir Pomar, op. cit., pp. 246-8.
404
"Gloriosa Jornada de Luta", A Classe Operária, nº 110, setembro de 1976. In: Op. cit., pp. 145-55. Corrigir!
A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 220
Il ne fait aucun doute que les partisans de l'Araguaia ont les conditions pour résister
et possèdent un grand champ de manoevre. Avec l'expérience acquise, ils peuvent se
mettre rapidement hors de la portée de l'ennemi, paraître et disparaître en differents
points de la région, et améliorer constamment leur capacité militaire et de combat"405.
Também na França, em 24 de maio de 1974, uma sexta-feira, tem lugar em Paris um "Meeting de
Solidarité aux Luttes du Peuple Brésilien". cujo móvel principal era a comemoração do aniversário de
Do lado das FF.AA., sabe-se tão somente, através de fontes militares - como sempre, anônimas -
que "as forças do governo encerraram sua terceira e última operação em janeiro de 1975"407, o que nos
leva a duas possibilidades: ou elas consideravam os guerrilheiros totalmente eliminados físicamente, ou,
então, que os remanescentes, que por acaso exitissem, não representavam mais nenhuma ameaça à
Encerrava-se, assim, de maneira trágica para aqueles que para a região do baixo Araguaia se
dirigiram desde 1966, com o objetivo de lançar-se junto com o povo pobre do interior, em uma luta
armada que, começando pela guerra de guerrilhas, iria crescendo, crescendo até que se transformasse
numa autêntica guerra popular, guerra de todo o povo. Este sonho, partilhado pelos cerca de setenta
revolucionários que para aquela região inóspita se mudaram, em sua grande maioria jovens, acabou
fracassando, mergulhado no sangue generoso daquela generosa geração, que se entregou a um projeto de
futuro para o país que não chegou a ter a chance de mostrar sua viabilidade ou não.
405
"Deux Ans de Lutte Glorieuse". Journal A Classe Operária, nº 84, RJ, avril 1974, p. 10.
406
"Brésil, Un Peuple en lutte" (panfleto-convite para uma manifestação contra a ditadura militar brasileira e em
comemoração de dois anos de luta guerrilheira no Araguaia), CILA/Frères du Monde/AGEG. Ver cópia nos Anexos, pp. x-
x².
407
Idem, p. 89.
CONCLUSÕES
Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 222
Antes de tentar repertoriar as conclusões a que pudemos chegar após a realização deste mémoire,
algumas advertências fazem-se necessárias, embora, no fundamental, elas já tenham sido feitas, de forma
Em primeiro lugar, nunca será demais relembrar que quaisquer conclusões que cheguemos a
formular aqui, serão sempre parciais, sem caráter definitivo. Isto por três razões: (a) a pequenez do
acervo documental primário existente (ou revelado até o momento) sobre o episódio e a parcialidade da
maioria da documentação à qual tivemos acesso, ou seja, basicamente oriunda de apenas um dos lados, o
que dificulta e debilita bastante a nossa pesquisa; (b) desta primeira advém imediatamente, como sua
conseqüência, uma outra, que é a incontornabilidade de se realizar um grande trabalho de pesquisa 'sur le
terrain', de campo, um amplo programa de coleta de testemunhos daqueles que, de alguma forma,
viveram aqueles acontecimentos, tal expediente seria uma forma complementar de tentar preencher
algumas lacunas existentes causadas pela sonegação de informações oficiais; e, (c) pela própria
Uma segunda observação diz respeito àquilo que consideramos a segunda parte dessa proposta de
pesquisa, tão importante quanto esta que tentamos desenvolver. Aquela que se refere à influência que
teve a Guerrilha do Araguaia sobre a evolução do movimento de resistência dos posseiros, trabalhadores
rurais e camponeses, de uma maneira geral, daquela região do país. Sem a realização do acima citado
Por último, esperamos ter atingido, pelo menos parcialmente, o objetivo rumo ao qual nos
dirigimos, nessa primeira etapa da pesquisa, durante a elaboração da presente monografia: o de tentar
sistematizar todas as informações existentes até hoje sobre a Guerrilha do Araguaia, tudo o que foi
publicado e dito a respeito, e tentar dar a esse conjunto, disforme e anárquico, de dados e opiniões um
Conclusões 223
pouco mais de inteligibilidade. Assim procedemos para que, num momento seguinte, pisando num chão
mais firme, possamos partir para um estágio mais avançado de aproximação histórica do sujeito, para
Neste segundo momento, que pretendemos se dê na preparação da tese de doutorado, além deste
ponto de partida, ainda que frágil, além de mais dados cavados através de pesquisa de campo, tentaremos
também avançar um pouco mais na reflexão sobre o papel da violência nas transformações sociais e numa
avaliação de maior fôlego das correntes teóricas que a preconizavam ou preconizam, notadamente
Araguaia.
Bem, feitas essas preliminares, as conclusões às quais pudemos chegar, foram que:
I - Com a divisão do 'antigo' PCB e a (re) organização do Partido Comunista do Brasil (PC do B),
em 1962, uma parcela daquela agremiação, que há muito encontrava-se insatisfeita com a inação do
partido no campo da elaboração de uma proposta de caminho para a revolução brasileira, ganhou enfim
condições de efetivar sua intenção de perseverar no rumo revolucionário. Assim, desde a sua
constituição, o PC do Brasil deu destaque especial à questão da violência revolucionária e passou a ser a
Até certo ponto, era natural que assim se sucedesse, pois uma das principais causas da cisão fora
a tese da 'transição pacífica', uma das resoluções do XX Congresso do PCUS em 1956, abraçada
fortemente pelo grupo liderado por Prestes. Era, pois, de se esperar que o PC do B forçasse a tinta neste
ítem, como forma de deixar bem demarcado a fronteira político-ideológica que o separava da outra
Além disso, concorreram para imprimir no novo partido, a marca indelével da opção
'transição pacífica' pelo PCCh, com a conseqüente divisão do campo socialista; a existência de um clima
Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 224
internacional assistia-se a explosões e revoltas armadas, muitas das quais, vitoriosas, alçando ao Poder
camadas antes marginalizadas. Esta situação dava a impressão de que, uma vez começado um processo
revolucionário, a obtenção da vitória só dependia das forças mudancistas, era uma mera questão de
tempo; por último, mas não menos importante, o golpe militar no Brasil, em abril de 1964, e a instalação
de uma ditadura militar, veio a desacreditar, de vez, a linha que apregoava a transformação pacifica das
sociedades.
revolução brasileira. A revolução saía das declarações programáticas e passava a contar com uma
II - O primeiro exemplo concreto dessa nova atitude frente à questão da revolução brasileira está
no esforço promovido pelo PC do Brasil desde 1962, com a publicação de seu 'Manifesto-Programa', que
'Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil', que apresentava a concepção do partido sobre o
caminho da luta revolucionária. Tal documento é pioneiro em termos de tentativa de, como ele mesmo
enuncia em sua introdução, "delinear num plano mais geral o curso provável da luta". Além disso, que,
por si só, já representaria uma novidade para o movimento comunista no Brasil, o documento ainda tem
o mérito de ter sido o guia, o plano que redundou na preparação e desencadeamento do mais significativo
Apesar de sua inegável importância, do documento saltam algumas questões ainda a espera de
maior estudo e reflexão. Para citar apenas duas: as suas afirmações taxativas, pétreas, definitivas acerca
do caminho da luta armada poderiam ser indícios de doutrinarismo, além de contradizer as palavras
introdutórias acima citadas; a outra, relacionada à primeira, é de se saber se essa rigidez esquemática,
Conclusões 225
esse detalhismo por vezes excessivo, não acabou por limitar bastante a capacidade de iniciativa e
flexibilidade tática da Comissão Militar, essênciais na direção de ações militares em geral, e ainda mais
em lutas guerrilheiras;
III - Pelos resultados obtidos, pela tranqüilidade com que pôde efetivar o seu trabalho de
preparação guerrilheira, pelas dificuldades com que as FF.AA. a combateram, numa primeira apreciação,
luta armada revolucionária era o campo, o interior, se demonstraram corretas. A sua decisão de não
tomar parte na guerrilha urbana foi outro ponto que contou em seu favor. No geral, sua afirmação de que
nas cidades a repressão estaria em vantagem, pois aí estava muito bem estruturada, mostrou-se
verdadeira, sobretudo pelo resultado político e militar que tais operações proporcionaram.
O PC do Brasil não acertou somente na sua opção pelo espaço rural, acertou também na escolha
De fato, a região sul do Pará, baixo Araguaia, oferecia condições geográficas excelentes para a
realização de operações de guerra de guerrilhas: vasto e inóspito, reduzindo em muito o poder de fogo
do inimigo e, por outro lado, permitindo ampla área de manobras para os destacamentos guerrilheiros;
além disso, o enorme potencial de tensão social lá existente, proveniente das disputas em torno da posse
Ressalvas devem ser feitas quanto à enorme distância que separavam a área conflagrada de
importantes centros urbanos, o que, juntamente com a violenta censura à imprensa, facilitou à ditadura a
populacional relativa existente na região, o que se constituía ora em uma vantagem, ora em desvantagem
diferenciou-se de todos os outros realizados nas diversas tentativas promovidas por outros agrupamentos
de esquerda revolucionária. Este trabalho destaca-se sobretudo pelo profissionalismo com que se fez a
tranferência de um contingente não negligenciável de militantes para a área escolhida, pela zelosa
organização e preparação deles para serem verdadeiros combatentes, pelo paciente trabalho de adaptação
às condições ambientais e, por fim, pela cerrada clandestinidade com que tudo isso foi feito durante cerca
de seis anos. Tal profissionalismo, apesar de todas as falhas que ainda assim se verificaram, está entre as
conflagrada. Tal fato é unanimemente confirmado por políticos, militares, religiosos, jornalistas e
habitantes da região, sendo este o principal fator de sobrevivência de sua sobrevivência por quase três
anos. Tal apoio se manifestou sob diversas formas : fornecimento de gêneros alimentícios e informações
VI - Contudo, apesar desse grande apoio da população, o que constitui, por si só, um grande
êxito, pois as outras tentativas de luta armada verificadas durante a vigência do regime militar não o
se poderia chamar de uma sólida base de massas, uma retaguarda firme. A prova material disso é o baixo
número de habitantes locais que chegaram a ingressar nas fileiras guerrilheiras. Quando, segundo relatou
Arroyo, tal poderia se passar, as FF.AA. se anteciparam aos acontecimentos e utilizaram uma tática que,
esforço no sentido de se incorporar elementos locais em operações militares episódicas, sem que isso
significasse a sua transformação em guerrilheiro em tempo integral. Tal experiência, aplicada com
Conclusões 227
sucesso na China e no Vietnã, não foi priorizada pelos destacamentos, o que os impediram de utilizar
essa força potencial que se apresentava disposta a atuar, de maneira pontual, sem se transformar em
combatente permanente.
No Araguaia houve apoio popular expressivo, o que lhe garantiu a sobrevivência, mas o
engajamento militar do povo acabou não ocorrendo na medida em que se necessitava, podendo esta ser
VII - Outro grande êxito da Guerrilha do Araguaia foi a elaboração e divulgação de um programa
amplo, de linguagem acessível, que calava fundo nas camadas sociais mais exploradas daquela região. Era
um programa de caráter democrático e popular, continha até mesmo um ítem consagrado à assegurar a
proteção da "propriedade privada que não ocasionasse prejuízos à coletividade". Não era, como se vê,
de forma alguma, um programa socialista, o que seria uma magnífica manifestação de sectarismo e
guerrilheiro. Tal a amplitude do programa que um líder religioso católico, atuante na área, declarou que
ele mantem a sua atualidade até os nossos dias e deveria ser aplicado pelos governantes.
Além disso, o 'Programa dos 27 pontos' procurou associar as reivindicações locais com aquelas
dos trabalhadores das cidades e com reivindicações políticas amplas, de caráter bem geral. O programa e
sua concretude, assim como a fundação de núcleos da ULDP, ainda que em número não muito elevado,
são a prova material da ligação que os longos anos de preparação proporcionaram entre guerrilheiros e
moradores da área, se não houvesse essa integração, provavelmente o programa não teria a repercussão
que teve, pois nele não estariam refletidas as reivindicações mais sentidas do povo pobre do Araguaia e
todo o país, posto que elas tinham sido fortemente reprimidas após o golpe militar de 1964, foi uma forte
Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 228
dificuldades de se obter uma ajuda mais organizada à guerrilha, assim como a combinação entre
movimento legal reivindicatório nas cidades, vilas e povoados com a luta armada;
IX - Por outro lado, a ocorrência da Guerrilha do Araguaia - esta é uma das hipóteses sobre a
qual trabalhamos - reforçou em muito o espírito de resistência entre os trabalhadores rurais, de uma
maneira geral, e entre os posseiros, em particular. Fez com que o sentimento de revolta, às vezes contido,
às vezes demonstrado de maneira atomizada, individualizada, passasse a ser canalizado para formas de
organização coletiva de resistência que adquiriram, e ainda adquirem freqüentemente contornos bastante
radicais, não raro, resultando em conflitos armados contra grileiros, fazendeiros e até mesmo contra
autoridades policiais. O que faz com que, até hoje, toda a região que sediou o movimento guerrilheiro
nos anos setenta seja uma das regiões mais tensas do país e onde os posseiros têm uma maior
combatividade. Tudo isso, pensamos, não é por acaso. Pesa forte sobre a região o exemplo dos tempos
da Guerrilha do Araguaia;
X - Do ponto de vista militar, a Guerrilha do Araguaia tem o mérito de ser a pioneira na aplicação
das técnicas de guerra de guerrilhas em larga escala nas selvas brasileiras. Obteve êxitos militares
consideráveis, sendo que o maior deles foi o fato de ter conseguido sobreviver a massivas investidas das
FF.AA., durante longo tempo. Como se sabe, em guerra de guerrilhas, o que importa não é o número de
batalhas vencidas. Ela é, por excelência, uma guerra defensiva, o que não exclui táticas ofensivas, uma
guerra capaz de opor o fraco ao forte e que tem por principal objetivo desorganizar e desmoralizar as
linhas inimigas, enquanto acumula e preserva as suas próprias fileiras, realizando intenso trabalho de
propaganda política entre as massas visando a obter seu apoio e adesão, com vistas à formação de
colunas guerrilheiras e do exército popular. O seu princípio fundamental é o de sobreviver, não se deixar
Nesse sentido, nas duas primeiras campanhas, enquanto orientou-se pelos princípios norteadores
Sobretudo se considerarmos o escabroso e chocante desequilíbrio de forças, tanto no que diz respeito ao
armamento e logística, como no que tange ao número de efetivos em combate de cada lado;
Foram negligenciados de maneira quase total os seguintes: (1) o da criação de várias frentes
guerrilheiras, para forçar o inimigo a se dispersar e com isso abrir possibilidades de impor-lhe perdas.
Mesmo que se saiba que essa era a intenção inicial e que a surpresa do ataque inimigo a tenha abortado,
pode-se elencá-la entre uma das mais importantes causas da derrota, pois objetivamente não foi realizada;
(2) o de estender-se continuamente e não restringir por muito tempo sua área de operações a um mesmo
território. Aqui, ao contrário do erro anterior, não há nenhuma justificativa para que as FORGA não
tenham assim procedido, principalmente durante o período de trégua. A não ampliação de sua área de
operações deu oportunidade ao inimigo de mapear toda a zona conflagrada, estabelecer o cerco e
desfechar golpes fatais, como o do natal sangrento. Tal erro, igualmente, figura entre os principais; (3) o
de armar-se às custas do inimigo, o que acabou por lhe manter com o armamento arcáico e obsoleto com
que começou a resistência. Tem-se notícia de poucas iniciativas neste sentido, o que se constituiu em
exceção, não invalidando, portanto, a contabilização deste fator como um erro de grande repercussão no
resultado final do conflito; (4) o de não ter procedido à eliminação sistemática dos jagunços, grileiros e
bate-pau, todos inimigos jurados da Guerrilha e que muito contribuíram para o sucesso das operações
das tropas oficiais; (5) o de não ter se preparado para a hipótese de uma retirada tática da região, para
um deslocamento para áreas bem distantes da zona conflagrada, em caso de grave ameaça ao princípio
guerrilheiro fundamental de manter-se, de sobreviver; (6) o de não ter montado na periferia da área um
dispositivo partidário de apoio logístico clandestino, que pudesse ajudar a guerrilha em diversos aspectos,
Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 230
tais como o abastecimento material, a possibilidade de esconder os combatentes numa grave emergência
ou, até mesmo, o reforço em termos de efetivos de combatentes, uma vez começada a luta; e, (7) o da
grande autonomia dos destacamentos e grupos guerrilheiros, o que não significa a total falta de
coordenação do conjunto da luta guerrilheira, a anarquia militar, mas o princípio de que é nas pequenas
unidades que deve se localizar o centro tático da guerrilha. Se assim não acontece, corre-se o risco de
cercear suas iniciativas. Sobre o tema discorrem longamente diversos teóricos da guerra dee guerrilhas.
Durante a experiência do Araguaia, verificou-se uma excessiva centralização pela CM, fato que inclusive
Outros princípios foram violados de maneira episódica, sobretudo - mas não exclusivamente -
durante a terceira e última campanha do inimigo. Foram eles: (1) o da realização de ações militares, de
fustigamento e emboscada, o que contribui para fazer cumprir o princípio da 'defensiva ativa', para
preparar os guerrilheiros para ações mais ousadas, para tomar armas ao inimigo, para causar-lhe perdas,
para abater-lhe o moral, para desorganizar suas fileiras. Foram, é verdade, realizadas, mas se se leva em
conta a duração do conflito, nota-se que o foram em pequeno número; (2) o da dispersão de forças,
sobretudo no período mais difícil da guerrilha, o do seu início, fase que a Guerrilha do Araguaia não
chegou a ultrapassar, apesar de seu tempo de duração. Mas também durante campanhas de grande
envergadura do inimigo; e, (3) o da não preparação de suficiente estoque alimentar de reserva para a
eventualidade de uma campanha de longa duração, o que incluía a realização de mais plantações,
dispersas pelo meio da floresta e em lugares mais distantes para o caso de emergência. Também a pouca
exploração, por falta de melhor preparação, da caça como fonte alimentar. Este erro também se liga com
a não preparação de pontos de apoio na periferia, o que poderia servir em casos extremos de alternativa.
Todo esse conjunto de regras elementares da técnica da guerra de guerrilhas foram escritos por
diversos teóricos aos quais os guerrilheiros tiveram acesso. Contudo, o que pesou muito para que tais
domínio teórico da arte da guerra de sua Comissão Militar. Tais debilidades conduziram as forças
Conclusões 231
guerrilheiras para o pior dos erros que pode cometer uma direção militar, a saber, a subestimação do
inimigo. Nele já tinham incorrido as FF.AA. em suas duas primeiras campanhas militares, o que foi um
dos fatores responsáveis pelo seu repetido fracasso. Mas, como forças regulares que eram, puderam se
recuperar e voltar à ação. No caso de um agrupamento guerrilheiro, por suas características peculiares,
nem sempre uma segunda chance lhe é dada, tal erro pode significar, como siginificou no caso do
XII - Um dos fatores que também contribuíram para a longa duração do movimento guerrilheiro,
além do que já se listou foi, inegavelmente, a inexperiência das FF.AA. brasileiras em combates do tipo
que se travaram no Araguaia. É verdade que já havia batalhões de infantaria de selva e de elite,
especialmente formados para a luta anti-guerrilheira, mas o fato é que eles nunca tinham sido colocados à
conjuntamente, contribuiu sobremaneira para o fracasso das duas primeiras investidas contra as FORGA.
Mas isso não explica tudo, pois a partir da segunda campanha elas já começaram a empregar
efetivos melhor treinados e não obtiveram os resultados esperados, apesar da grande vantagem técnica e
numérica da qual dispunham. No total, empregaram um efetivo que, segundo as mais diversas
estimativas, ficou entre quinze e vinte mil soldados, distribuídos nas três campanhas de cerco e
aniquilamento realizadas. Isso, sem contabilizar os aviões, lanchas, helicópteros e material bélico de
última geração. Além disso, tiveram que abrir estradas, construir quartéis, distribuir lotes de terra e
prestar amplos serviços assistênciais à população para tentar reverter o ânimo dos camponeses,
francamente pró-guerrilheiros. Tudo isso só faz aumentarem as dimensões de seu insucesso repetido por
duas vezes e, por outro lado, as razões para se louvar os êxitos militares dos guerrilheiros e o apoio que
XIII - Outra conclusão que podemos tirar, também negativa para as FF.AA., é o enorme desgaste
a que se expôs, seja pela sua demonstração de pouca eficiência militar, qualidade que seus porta-vozes
sempre propagandearam, seja pela sua ação repressiva ter atingido amplas faixas da população,
sobretudo a mais carente, de uma maneira selvagem e indiscriminada, seja ainda pelo conflito ter
desmentido a sua suposta neutralidade, imagem que sempre cultivou. Na caça àqueles que chamavam de
terroristas, sobre quem diziam as piores coisas, apoiaram-se no que havia de mais odiado na região:
jagunços, grileiros, policiais corruptos e poderosos fazendeiros. Ora, ao notarem que esses seus inimigos
do dia-a-dia eram as pessoas nas quais as FF.AA. confiavam, inclusive nomeando alguns para cargos
públicos e que, por outro lado, elas cometiam toda sorte de arbitrariedade e violência contra posseiros,
camponeses e trabalhadores rurais, todos suspeitos de colaborarem com a guerrilha, aquela sua imagem
neutra foi arranhada profundamente, as ilusões que as cercavam desapareceram, ou foram seriamente
prejudicadas. As FF.AA. passaram a figurar também na lista das instituições que o povo pobre daquele
rincão desconfia, teme e, ao mesmo tempo, odeia, por se colocarem ao lado dos poderosos. Elas
do Araguaia, as atitudes das FF.AA., levam-nos a conclusões bem diferentes daquelas que elas
pretendiam com tal atitude. Ao imporem uma cortina de silêncio sobre o assunto até os nossos dias não
fazem que nos levar a questionar o porquê de somente serem sonegadas informações sobre esta tentativa
de luta armada, em particular, dentre todas as outras ocorridas durante os anos em que dominou o
aparelho estatal. Semelhante atitude não assumiu em relação à guerrilha urbana, pelo contrário, a
população era informada diariamente sobre tais eventos, elas cuidavam tão somente de as maquiar, de
vender a versão de que eram simples atos de banditismo. Pois bem, por que um tratamento tão diferente
em relação à Guerrilha do Araguaia? Por que nem mesmo notícias 'fabricadas', em favor das FF.AA.,
foram permitidas? E, sobretudo, por que até hoje, mais de duas décadas depois, mantem-se esse silêncio
Conclusões 233
oficial? Numa opinião inicial, pensamos que alguns motivos concorreram para isso: o fato de,
via da luta armada, a Guerrilha do Araguaia obteve apoio da população da região onde atuava que, para
mudar de atitude, teve que ser selvagemente agredida, espancada, torturada e, por último, aquele
movimento guerrilheiro conseguiu resistir com sucesso durante quase três anos a ataques massivos das
tropas governistas. Então, o silêncio se justificaria na medida em que evitaria que o exemplo daquela luta
se propagasse, que não viessem a público as atrocidades lá cometidas e na medida em que também não
expunha à opinião pública que as FF.AA. brasileiras não eram tão eficientes quanto se imaginava, que
XV - Por outro lado, quando as FF.AA. se aperceberam a dimensão do trabalho feito pelo PC do
Brasil na região do Araguaia e o apoio e simpatia que lhe manifestavam a população, demonstraram alta
para esmagá-la. Colocaram em ação toda a engrenagem estatal, incluindo as estruturas municipais e
estaduais. Tentaram até mesmo envolver nesse esforço a Igreja Católica, que se negou e teve que pagar
Quando se retiraram pela segunda vez, as FF.AA. puseram-se a elaborar e executar um minucioso
plano político e militar de combate à guerrilha, que levava em conta todos os ensinamentos advindos das
Tal plano tinha duas linhas mestras que o regiam. Ambas partiam de um pressuposto, enunciado
num dos documentos que publicamos em primeira mão nesse trabalho: o fator fundamental, decisivo
numa guerra de guerrilha é a população. Os dois objetivos maiores a que se dedicaram as FF.AA. foram:
(1) isolar a guerrilha do partido que a concebera e construíra, destruindo-o; e, (2) afastar os guerrilheiros
O primeiro objetivo foi parcialmente atingido quando os órgãos de repressão política, em meados
de 1974, conseguem prender importantes membros do CC, assim como desbaratar diversas organizações
Quanto ao segundo objetivo, o caminho foi mais difícil. O trabalho realizado pelos guerrilheiros
tinha lançado raízes. Tentaram, num primeiro momento, reverter a tendência de apoio aos guerrilheiros
através de atividades assistencialistas e promessas de solução para os conflitos agrários. Mas, tais
medidas foram neutralizadas pelo amplo trabalho político realizado pelos guerrilheiros no mesmo
período.
eventualidade dele não funcionar, cuidaram de infiltrar toda a região com espiões, mapeando
especialmente para combate à guerrilhas rurais em florestas e cuidavam de mapear toda a área, como o
Em outubro de 1973, quando elas voltam, aplicam quase que integralmente o plano de combate à
guerrilha rural que a Grã-Bretanha havia aplicado, com êxito, no combate a um movimento de guerrilha
Fazem um forte cerco estratégico a toda a região da guerrilha. Prendem toda a população
masculina acima de quinze anos e assim a mantem por cerca de dois meses, impedindo desta forma
quaisquer adesões ou ajuda à guerrilha. Praticam o terror como forma de atemorizá-la: torturam,
Ao mesmo tempo, promovem incursões na mata de pequenos grupos especializados, guiados por
bons mateiros, que vão esquadrinhando a mata detalhadamente. Além de melhor preparados que os
soldados de antes, contam também com armamentos leves e de alta performance e, sabendo da pobreza
Conclusões 235
de armamentos da guerrilha, passam a explorar ao máximo esta vantagem tática. O resultado é que, como
foram numerosos os grupos a entrarem na floresta, começam a haver combates com maior freqüência e
Toda essa movimentação tática das FF.AA. poderia ser contraposta pelos guerrilheiros?
Teoricamente, sim. Uma vez cortadas as ligações da guerrilha com a população e com o partido e do
cerco da região, a derrota da guerrilha passava a ser matematicamente previsível se a situação militar não
fosse radicalmente alterada. Ela só poderia ser evitada se, numa decisão arrojada, se optasse por uma
retirada tática e, assim, fugir ao combate, desgastando as tropas do governo que nada encontrariam e
seriam obrigadas a retirar-se mais uma vez, desmoralizadas. Infelizmente, tal arrojo, tal desprendimento,
não existiu na direção da guerrilha que, pelo contrário, baseado numa subestimação da capacidade de
reformulação tática por parte do inimigo, numa incorreta avaliação da dimensão da ofensiva, deu
Dessa atitude desastrosa, resultou o 'natal sangrento', a batalha decisiva, onde sucumbiram quatro
membros da direção militar da guerrilha, além de dispersar pela imensidão da floresta cerca de uma
dezena de guerrilheiros, sem falar no abalo moral que provocara entre eles. Tal ação das FF.AA.
A partir deste momento, a guerrilha passou a existir não mais como movimento organizado,
apesar de ainda restarem uns trinta e cinco membros, mas como resquício, mera caricatura do que tinha
sido até então. Desde então, todas as mortes de guerrilheiros se deram quando buscavam alimentos.
Acontece que, seguindo de perto o exemplo do Exército britânico na Malásia, lá estavam patrulhas das
Em resumo, os acertos das FF.AA. combinados com os erros do comando guerrilheiro resultaram
A Guerrilha do Araguaia se inscreve no contexto mais geral das lutas das camadas populares
brasileiras que viram esmagadas todas as suas aspirações de liberdade, independência e bem estar para a
maioria da população pelas tropas militares em abril de 1964. Foi, talvez, a mais ousada e conseqüente
A maneira como o assunto é tratado pelas FF.AA. nos faz recordar uma passagem da grande obra
literária 'Cem Anos de Solidão' do latino-americano Gabriel Garcia Marquez. Trata-se do trecho em que
um de seus personagens, 'José Arcadio, le Second', que presencia um massacre de mais de três mil
grevistas, trabalhadores de uma companhia bananeira em greve, em plena praça pública da cidade de
Macondo, que foram na seqüência jogados ao mar e, sendo o único sobrevivente de tal horrendo evento,
põe-se a recontá-lo mas ninguém o crê, pensam que está louco, pois
"La version officielle, mille fois répétée et rabâchée dans tout le pays par tous les
moyens d'information dont avait pu disposer le gouvernement, finit par s'imposer: il
n'y avait pas eu de morts, les travailleurs satisfaits étaient rentrés avec leurs
familles... «Vous avez sûrement rêvé, disaient les officiers avec insistance. À
Macondo, il ne s'est rien passé, il ne se passe rien et il ne se passera jamais rien. Ce
village est un village heureux» "408.
Mas, não creio que se possa, pelo menos no tocante à Guerrilha do Araguaia, manter-se uma
versão oficial há muito desacreditada, de que nada se passou. Apesar do 'ruidoso silêncio' que pesa sobre
o episódio desde o seu início e que perdura até os nossos dias, a verdade dos fatos acabará por ser
revelada, por vir à luz do dia. E, quando isso acontecer, então, os brasileiros poderão enfim avaliar os
seus erros e êxitos, suas lições e ensinamentos e, ao final, pouco importando o juízo que venha a se
formar neste processo de reflexão coletiva, terminará por inscrevê-la, indelével e definitivamente, nas
408
Marquez, Gabriel Garcia. Cent Ans de Solitude, Paris, Editions du Seuil, 1968, pp. 325-6.
Conclusões 237
O historiador, enquanto esse dia não chega, deveria seguir o exemplo do personagem de Garcia
Marquez que, até o momento de sua morte, apesar de ninguém o acreditar, não se deixa vencer pela
" - Souviens-toi toujours qu'ils étaient plus de trois mille et qu'on les a précipités à la
mer. Puis il tomba... et mourut les yeux grands ouverts."409
Significativamente mesmo morto, manteve seus olhos abertos, como se quisesse dizer que muitos
daqueles que se diziam vivos insistiam em viver com os olhos fechados. Quem sabe a tarefa maior de um
historiador se resuma a isso, insistir em revelar o que teima em manter-se escondido? Em, mesmo
correndo o risco de parecer um louco, obstinar-se até o fim de suas forças em buscar a verdade, pouco
importando o poder que a mentira tenha de se impor? Quem sabe, agindo assim, os historiadores
cumpram a pequena, mas imprescindível função de tentar fazer com que pelo menos os vivos, ou alguns
deles, mantenham seus olhos abertos, para que, quando vierem a morrer, ao contrário do infeliz
personagem, possam fechar os seus, tranqüilos por terem convencido uns poucos, mas orgulhosos por tê-
lo feito. Modestamente, esperamos que essas páginas venham a contribuir para abrir alguns.
409
Idem, p. 372.
Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 238
Gilvane Felipe
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Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) 240
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* Obs.: Les documents du PC do B utilisés dans ce travail font partie des ouvrages cités ci-dessus. Ceux
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