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3.

PELOS CAMINHOS DO SINTOMA

O que será que será


Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem juízo
(Chico Buarque)

O edifício teórico da psicanálise está alicerçado por um entrelaçamento de


conceitos fundamentais e pedras angulares. A complexidade de trabalhar certos
elementos se apresenta necessariamente pela implicação de diversos outros. É isso que
constitui a solidez de seu saber. Inútil é a tentativa de se tomar isoladamente cada
aspecto da teoria desvinculando-o dos restantes e das circunstâncias históricas em que
foram surgindo na teoria. Todo esse edifício foi construído por meio de dificuldades e
desafios que a prática clínica de Freud anunciava. Mesmo quando apareciam problemas
especialmente mais teóricos, era na clínica que o criador da psicanálise colhia suas
respostas. E como surge da prática clínica, a psicanálise também teve que
obrigatoriamente trabalhar com aquilo que denominamos sintoma. Contudo, nem
sempre esse conceito foi entendido por Freud tal como hoje podemos considerá-lo.
Houve um movimento especial na forma como Freud passou a entender essas
manifestações patológicas.
Para que possamos nos posicionar quanto às discussões relativas ao mundo
do trabalho e aos eventos provenientes da saúde ocupacional vamos fazer um percurso
pelo conceito de sintoma na obra freudiana tendo em vista alguns objetivos: lançar as
bases teóricas da doutrina psicanalítica reafirmando toda a relação existente entre o
sintoma e a sexualidade, de modo que, do ponto de vista psicanalítico, é a realidade
psíquica que entra em questão na formação do sintoma, ao invés da realidade exterior;
mostrar que o sintoma é fruto de uma trabalho psíquico e que também se constitui como
uma forma de articulação do sujeito com o outro, sendo assim um processo social. Esses
dois objetivos nos permitirão manter o rigor com o legado freudiano, revendo a base de
sua teoria, bem como trazer instrumentos para pensarmos, no capítulo seguinte, como os
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fatos referentes ao mundo do trabalho podem ser pensados com a psicanálise. Tal como
Freud nos ensinou, tentaremos, através da teoria ficcionada1 a partir da clínica, fazer
uma leitura que nos posicione nas questões problematizadas neste estudo.
A clínica inegavelmente constituiu para Freud a bússola de seu percurso
teórico e metodológico. Na medida que se tenta investigar mais a fundo certos conceitos
psicanalíticos, outros vão aparecendo e tornando obrigatória sua referência. Isso
também pode ser entendido pelo fato de que o mestre vienense foi reformulando seus
procedimentos e teorias na proporção em que as dificuldades da clínica se
apresentavam. Essa reavaliação conceitual e metodológica foi sendo muito útil e abriu
caminho para novas descobertas. Assim, à maneira como Freud ia reformulando sua
teoria sobre o sintoma, sua prática também sofria conseqüências.
O abandono da hipnose tal como era praticada, não pode ser considerada
como um evento histórico ao acaso. A mudança do método catártico para o uso da
pressão na testa do paciente induzindo-o a lembrar de experiências anteriores deve ser
atrelada aos primeiros indícios daquilo que se constituiu como o conceito de
transferência e permitiu o surgimento do método da associação livre. Ao mesmo tempo
que essa mudança abre as portas para novas descobertas, obedece às influências dos
fenômenos sexuais encontrados na clínica das neuroses (cf. Freud, 1925 [1924]). É
desta forma que Freud abandona o hipnotismo: tentando lidar também com os
fenômenos transferenciais e com os conflitos psíquicos que descobrira jacentes nos
sintomas de seus pacientes.
Cabe ainda notar que todo esse desenvolvimento relativo às neuroses faz
com que o caminho freudiano distancie-se das concepções que fundamentavam os
sintomas em algum tipo de deficiência ou “fraqueza de constituição” (Freud, 1925
[1924], p. 44). A hipótese de que os sintomas formavam-se devido a um mecanismo de
defesa primário pautado em um conflito ia também além da opinião de Breuer e seus
estados hipnóides. Vê-se, portanto, que o surgimento do que seria a teoria do recalque
arrasta consigo uma mudança significativa em relação à forma como eram entendidos os
sintomas neuróticos e a sua etiologia. Pois, desde então, os sintomas passam a

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A idéia de que a metapsicologia freudiana constitui-se como um ficcionamento teórico pode ser
encontrada no livro de Paul-Laurent Assoun (1996) intitulado Metapsicologia Freudiana: uma
introdução.
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representar o posicionamento do sujeito diante de forças conflituosas que atuam em seu


psiquismo e que mantém relação com um trauma de natureza puramente psicológica.
Pode-se datar de 1898 uma outra mudança importante no caminho do
criador da psicanálise. É justamente disso que se trata, da criação da psicanálise. É no
artigo intitulado A Sexualidade na Etiologia das Neuroses que Freud propõe chamar seu
método de ‘psicanalítico’. Ali se encontram novos distanciamentos com seus
predecessores e uma singularização de sua teoria e método terapêutico dos sintomas
neuróticos. Vale salientar que esse era um procedimento que ao mesmo tempo se fazia
terapêutico e investigativo. (Freud, 1925 [1924], p. 43).
Na mesma medida em que já havia diferenciado a neurastenia e neurose de
angústia das psiconeuroses de defesa, o autor formaliza que nestas últimas é também a
sexualidade que fundamenta os sintomas. Entretanto, as impressões e experiências
sexuais que jazem nas psiconeuroses não são experiências atuais. A ligação com a
sexualidade está em experiências imemoriais da infância. Estabelece-se a diferença
entre as neuroses atuais e as infantis. De acordo com o texto freudiano: “... em todo caso
de neurose há uma etiologia sexual; mas na neurastenia é uma etiologia do tipo
contemporâneo, enquanto nas psiconeuroses os fatores são de natureza infantil.” (Freud,
1898, p. 240).
Quando Freud discorre sobre a neurastenia, chama a atenção ainda para o
fato de que nesses quadros clínicos a influência da hereditariedade não deve tomar o
primeiro plano. Isso implica dizer que suas concepções sobre aqueles sintomas
apontavam muito mais para a importância das experiências vividas pelo paciente em
detrimento de deficiências ou “degenerações gerais”. (Id., ibid., p. 250).
O autor admite que ainda haja uma predisposição neuropática para as
neuroses e que ela não é suficiente para a causação desses males. Insiste que o
fundamento etiológico das psiconeuroses encontram-se nas impressões referentes à vida
sexual que surgiram na infância. Afasta-se, assim, dos argumentos relativos à
causalidade orgânica das psiconeuroses. É justamente ao salientar essa influência da
sexualidade na infância — período da vida que se constitui o aparelho psíquico — que
Freud (1898, p. 251) antecipa suas elaborações sobre os sonhos e os relaciona com a
psicopatologia.
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Num livro sobre a interpretação dos sonhos em que estou agora trabalhando,
terei a oportunidade de tocar nesses elementos fundamentais para uma
psicologia das neuroses, pois os sonhos pertencem ao mesmo conjunto de
estruturas psicopatológicas que as ideés fixes histéricas, as obsessões e os
delírios.

Anuncia-se aqui mais uma perspectiva de elaborações teóricas e que


entrelaçam-se com o conceito de sintoma e a vida normal e onírica dos indivíduos. Esse
caminho trilhado por Freud começa a sair da patologia para a vida cotidiana das
pessoas. A partir daí, sonhos, lapsos, esquecimentos e sintomas assumem o mesmo
caráter significativo para a teoria e para o tratamento.

3.1. Vias para o inconsciente

O início do século XX ficou marcado na história da psicanálise com a


publicação de importantes trabalhos que expandiram as teorizações freudianas para
além das simples patologias psíquicas. A conseqüência dessas descobertas psicanalíticas
estenderam-se para diversos campos do saber e modificaram radicalmente a divisão
existente entre aquilo que era chamado de loucura e a vida normal dos indivíduos.
Através do estudo sobre os sonhos, Freud formaliza as leis que regem o aparelho
anímico e anuncia que suas investigações sobre os sintomas neuróticos apontavam para
segredos ainda mais profundos da alma humana. A clínica o possibilitara pensar outros
eventos mentais, aparentemente insignificantes, e provar que eles mantinham uma
relação estreita com a normalidade. O sonhos foram essa via primeira que permitiu as
novas descobertas.
O material abundante que provinha da clínica freudiana e a busca de rigor
científico em sua articulação teórica possibilitaram Freud a perceber e a relacionar
cuidadosamente cada informação que lhe chegava. O cuidado epistemológico que se
pode verificar em toda a obra freudiana se apresenta desde muito cedo e se intensifica
na medida em que seu objeto de estudo vai se delineando como aquilo que aparece
como mais misterioso e desconhecido. Assim, o autor da Interpretação dos Sonhos,
nesta obra, aponta que o estudo isolado dos sonhos não garante a certeza de suas
hipóteses. Vejamos a seguinte citação de Freud (1900, p. 470):
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Nem mesmo partindo da mais minuciosa investigação dos sonhos ou de


qualquer outra função psíquica, tomada isoladamente, é possível chegar a
conclusões sobre a construção e os métodos de funcionamento do
instrumento anímico, ou, pelo menos, prová-las integralmente. Para chegar a
esse resultado, será necessário correlacionar todas as implicações já
estabelecidas, derivadas de um estudo comparativo de toda uma série dessas
funções. Portanto, as hipóteses psicológicas a que formos levados por uma
análise dos processos anímicos deverão ficar em suspenso, por assim dizer,
até que possam ser relacionadas com o resultado de outras investigações que
busquem chegar ao âmago do mesmo problema a partir de outro ângulo de
abordagem.

Essa longa citação permite claramente a percepção de que Freud não tinha
em mente apenas os sintomas e os sonhos como atividades psíquicas que permitiam o
acesso àquilo que ele chamou de inconsciente. A prova disso é que seu livro conhecido
como Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana é datado de 1901, ou seja, ano seguinte
ao livro sobre os sonhos, e naquele explicita que os atos falhos e atos casuais têm pontos
essenciais de conformidade com o mecanismo de formação onírica. (Freud, 1901, p.
239).
Um dos elementos principais a ser destacado como um fio condutor que liga
os sintomas, os sonhos, os atos falhos e os chistes é a crença de Freud na existência do
determinismo psíquico. Para ele não havia nada de arbitrário na vida psíquica dos
indivíduos. Nem nos sonhos, nem nas distorções envolvidas em seus relatos, como
também na forma como os sintomas e atos falhos surgem sem uma justificativa
plausível. Em 1909 (1910 [1909], p. 29), o autor testemunha sua opinião:

Eu tinha em alto conceito o rigor do determinismo dos processos mentais e


não podia crer que uma idéia concebida pelo doente com atenção concentrada
fosse inteiramente espontânea, sem nenhuma relação com a representação
mental esquecida e por nós procurada.

Embora essas três obras (A interpretação dos Sonhos (1900), Sobre a


psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os chistes e suas relações com o
inconsciente (1905b)) sejam riquíssimas em elementos e exemplos que servem como
prova da existência de sentido e de pensamentos latentes nesses fatos mais comuns da
vida normal, levando Freud a teorizar sobre as relações entre o inconsciente e o desejo,
é suficiente e justo para o objetivo deste trabalho que nos detenhamos com um pouco
mais de atenção sobre o capítulo sete do livro sobre os sonhos, pois nele encontramos a
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discussão e fundamentação teórica que perdurará durante anos na psicanálise. É nesta


obra que o inconsciente adquire o status de lugar psíquico de onde provém os desejos
recalcados que fundamentam a vida anímica. Além disso, se seguirmos a orientação
freudiana de que os sonhos não devem ser tomados isoladamente de outros eventos
psíquicos e que estes também têm a mesma estrutura e mecanismos de funcionamento,
seria redundante insistirmos em cada um deles e tornaria o trabalho por demais fatigante
para o leitor. Neste momento, o fundamental para nossa articulação teórica é
apresentado suficientemente neste texto sobre os sonhos.

***

Nem sempre a tarefa de escutar seus pacientes se mostrou tarefa fácil de ser
empreendida. As dificuldades encontradas no prosseguimento do trabalho analítico
foram denominadas por Freud de resistência e mereceram uma atenção especial (cf.
Freud, 1900, p. 475). Ao reconhecer a importância dessas resistências ao tratamento,
Freud dedica especial atenção ao esquecimento dos sonhos. Para ele, esses
esquecimentos servem aos propósitos da resistência e têm a mesma estrutura de outros
processos anímicos. Continua um alinhamento dos processos oníricos com outros
relativos às diversas manifestações humanas: “... os sonhos não são mais esquecidos do
que outros atos mentais e podem ser comparados, sem nenhuma desvantagem, com
outras funções mentais, no que concerne a sua retenção na memória”. (Id., ibid., p. 479).
Conceber que tanto os sintomas quanto os sonhos se estruturam de forma
análoga também leva o mestre vienense a reconhecer que sintomas atuais ou aqueles
que há muito já desapareceram podem ser tratados da mesma forma. O modo de abordá-
los, sendo sempre através do relato e da fala, atualiza sempre os conteúdos implicados
em cada uma dessas manifestações da vida anímica. Entretanto, considera ainda que
aqueles mais primitivos são ainda mais fáceis de se interpretar, visto que a resistência
psíquica em relação a eles diminuiu devido à distância do conflito jacente. Aqui,
inclusive podemos verificar a questão sobre o tempo e a temporalidade do inconsciente,
pois tanto os eventos antigos quanto os atuais são levados em consideração da mesma
forma, o que implica em dizer que, para a psicanálise, os elementos anímicos são
considerados atemporais.
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Como já se pode ter percebido, o desenvolvimento teórico freudiano, a todo


momento, apresenta coerência interna com seu método e respectiva abordagem dos
sintomas. Numa discussão em defesa do método da associação livre, tenta ainda
justificar o fato de que não há arbitrariedade nas associações de pensamentos que
acontecem subseqüentemente. O resultado dessas ligações de pensamentos, ao
contrário do que se poderia pensar, não é indeterminado. Esse aspecto mostra sua
relação com aquilo que já se relatou sobre o determinismo psíquico. Ademais, apoia
suas afirmações sobre o método de interpretação dos sonhos na experiência clínica. Sua
certeza da determinação das ligações de pensamento provém da coincidência com o
método de tratamento dos sintomas histéricos. Desta forma, a associação livre também é
o elemento comum que permite Freud aproximar a patologia da normalidade. Sigamos
suas palavras, que também podemos aplicá-las aos atos falhos e outras manifestações
psíquicas (Freud, 1900, p. 484):

Poderíamos assinalar, em nossa defesa, que nosso procedimento na


interpretação dos sonhos é idêntico ao procedimento pelo qual resolvemos os
sintomas histéricos; e nisso, a correção de nosso método é atestada pela
emergência e desaparecimento dos sintomas, ou, para usar um símile, as
afirmações feitas no texto são corroboradas pelas ilustrações que as
acompanham.

Esse caminho inevitável que Freud percorre da resistência psíquica à


interpretação dos sonhos é, sem dúvida, direta e literalmente relacionado com a técnica
psicanalítica. Neste texto, encontram-se pontos importantes que se solidificam junto
com a teoria. Por isso, o autor chama a atenção também para aquelas representações que
não são reconhecidas pelo paciente e que são dirigidas ao psicanalista. Faz-se presente o
que será chamado de transferência.
No processo de distorção e transformação dos pensamentos oníricos, a
transformação das representações em imagens sensoriais também é outro elemento
comum entre sonhos e sintomas. Segundo o pai da psicanálise, essas modificações
podem ser encontradas nas diversas alucinações e visões, comuns tanto na saúde quanto
na doença (Freud, 1900, p. 491). Não obstante, é necessário que se explique como
acontecem tais modificações. Neste momento, Freud adentra naquilo que, no futuro,
chamará de metapsicologia (1915a) e que constituirá o artefato teórico de sua prática
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psicanalítica, fundamentando racionalmente seu saber e afastando-o de uma mera


compreensão superficial da vida afetiva dos indivíduos.

Minha explicação para as alucinações da histeria e da paranóia e para as


visões nos sujeitos mentalmente normais é que elas de fato constituem
regressões — isto é, pensamentos transformados em imagens —, mas os
únicos pensamentos a sofrerem essa transformação são os que se ligam
intimamente a lembranças que foram suprimidas ou permaneceram
inconscientes. (FREUD, 1900, p. 498).

Hipotetizar a existência de um mecanismo regressivo na formação onírica e


sintomática leva o primeiro psicanalista da humanidade não só a montar o aparelho
psíquico como uma forma de ilustração tópica dos processos mentais. Ele teve que
explicar como as representações permaneciam ou eram jogadas para fora da consciência
e também articular esse modelo com sua tese sobre a realização dos desejos. A
regressão, por sua vez, permite a utilização do modelo da primeira tópica e leva-o até as
últimas conseqüências, tomando-o nos pontos de vista dinâmico, econômico e tópico.
A sucessão de instâncias psíquicas mantém uma relação espacial constante e
um sentido pelo qual segue a excitação. Essa sucessão estabelece um mapa da alma que
não pode ser localizado anatomicamente e serve como instrumento teórico para explicar
os processos anímicos. Este aparelho é constituído segundo o modelo dos processos
reflexos. (Id., ibid., p. 493).
Este aparelho anímico, dividido em diversas instâncias, ilustra o movimento
da excitação que percorre um caminho desde o polo perceptivo até um outro polo
responsável pela descarga motora. Neste caminho, encontram-se outras instâncias que
são responsáveis pela função da memória e organizam as representações provindas do
exterior segundo relações diversas como simultaneidade, similaridade, etc..
Entrementes, existe uma instância que está submetida à censura psíquica e que suas
representações ficam impedidas de ascender à consciência. Esta consciência, por suas
vez, é o último sistema e tem acesso direto ao pólo motor.
Freud (1900) batizou cada uma dessas instâncias: as relativas à função da
memória são chamadas mnêmicas; ficou conhecido como pré-consciente/consciente
(Pcs/Cs) aquele sistema responsável pelas idéias conscientes e que se podia ter livre
acesso a elas; e inconsciente (Ics) foi chamado aquele que ficou censurado quanto às
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suas representações. Esta censura, por sua vez, parte do sistema pré-consciente e é
responsável por aquilo que Freud chama de recalque.
A explicação para o fato de que certas representações apresentam-se nos
sonhos e nas alucinações como percepções é de que a energia que ia em direção à
descarga no polo motor sofre uma regressão para o polo perceptivo. “Falamos em
“regressão” quando, num sonho, uma representação é transformada na imagem
sensorial de que originalmente derivou.” (Id., ibid.,p. 497).
Embora seja em 1915 (1915a) que Freud formaliza a metapsicologia como
artefato teórico da psicanálise e que leva em consideração o aparelho anímico nos
pontos de vista econômico, tópico e dinâmico, é no livro de 1900 que percebemos com
clareza grande parte dessa teorização. Além desse mapa, anteriormente citado, as
relações entre as diversas representações no aparelho e a regressão demonstram a
dinâmica psíquica que, por sua vez, está em dependência dos investimentos (catexias) e
desinvestimentos de energia psíquica. A explicação da regressão e do recalque obriga
Freud a se utilizar desses três pontos de vista para que eles possam se tornar coerentes e
lógicos com a prática clínica.
A temática da regressão que acontece em diversas manifestações mentais —
principalmente nas oníricas — tem ainda implicações mais profundas. Leva Freud não
só aos caminhos da infância, mas também já o orienta para questões que dizem respeito
ao passado mesmo da humanidade. Quanto a esse argumento, voltaremos a aprofundá-
lo.
No que concerne à infância podemos citar:

Desse ponto de vista, o sonho poderia ser descrito como substituto de uma
cena infantil modificada por transferir-se para uma experiência recente. A
cena infantil é incapaz de promover sua própria revivescência e tem de se
contentar em retornar como sonho. (FREUD,1900, p. 500).

Cabe ainda a pergunta: por que a regressão acontece? O autor explica que
ela se produz devido à resistência psíquica a certos conteúdos que são impedidos de
chegarem à consciência pela via normal. Ademais, há uma atração exercida por outros
pensamentos que também foram afastados da consciência e mantém alguma ligação
associativa com os primeiros. Dito de outra forma, o impulso que se dirige à descarga
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encontra o obstáculo da censura e retorna ao polo da percepção, transformando aquela


representação mais antiga em sensação perceptiva.
O leitor que tenha alguma proximidade com a psicanálise deve estar se
perguntando sobre a importância do desejo na formação do sonho e seus correlativos na
teoria psicanalítica e por que ainda não se dedicou a ele a devida atenção.
Essa inquietação pode desde já ser abrandada pelo argumento de que esse é
o caminho argumentativo de Freud no texto da Interpretação dos Sonhos e que o desejo
aparece também em seu momento certo de articulação lógica com a teoria. Freud
preparou muito bem o terreno para que pudesse extrair suas conclusões mais
importantes sobre a vida psíquica das pessoas.
Se resumirmos alguns dos pontos elaborados até aqui, temos que existem na
alma conflitos de forças opostas que acabam por afastar certos pensamentos da
consciência e que estes pensamentos tendem a retornar, mesmo que disfarçados. Esses
pensamentos são rechaçados pela censura psíquica e podem assumir a forma de sonhos,
sintomas, atos falhos, esquecimentos, etc.. A pergunta que podemos fazer é: por que
esses pensamentos são alvo da censura psíquica? Por que eles são jogados para um
lugar situado fora da consciência?
A resposta é, Freud o diria, que esses pensamentos referem-se a situações
em que certos desejos, aspirações, votos, não foram possíveis de serem realizados por
motivos diversos. Houve algum impedimento na vida do indivíduo que não permitiu
que esses impulsos pudessem ser descarregados de forma adequada. Visto que o
aparelho psíquico obedece a um princípio que tende sempre a descarregar as excitações
que lhe acometem, esses impulsos sempre insistem em cumprir com o seu objetivo de
descarga, ou melhor, de satisfação.
Entretanto, muitas vezes a satisfação dessas necessidades psíquicas podem
trazer algum prejuízo para o sujeito. A satisfação de certos impulsos originados na alma
pode implicar em algum tipo de punição ou acúmulo de energia psíquica. Assim, o
primeiro impulso é barrado por um outro que visa à manutenção e auto-preservação do
indivíduo. Instala-se, então, o que podemos chamar de conflito psíquico. É de posse
dessa noção de conflito psíquico e de resistência que Freud consegue teorizar o
mecanismo do recalcamento.
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Outra forma de dizer esses fenômenos é que se põe de lado tudo aquilo que
possa trazer desprazer para o indivíduo. Façamos portanto algumas considerações ao
que se pode entender sobre prazer e desprazer para Freud.
Como foi dito anteriormente, o aparelho psíquico está construído sobre o
modelo do arco reflexo. Este aponta também para aquilo que Freud chamou de princípio
de constância. Tende-se a manter equilibrado todo o sistema anímico do indivíduo, ou
seja, toda estimulação tende a ser descarregada. Apoiando-se num postulado de natureza
biológica, para Freud (1915b, p. 140), “...o sistema nervoso é um aparelho que tem por
função livrar-se dos estímulos que lhe chegam, ou reduzi-los ao nível mais baixo
possível; ao que, caso isso fosse viável, se manteria numa condição inteiramente não-
estimulada.”
Seguindo esta linha de pensamento, é entendido como prazer todo tipo de
descarga da tensão existente no aparelho psíquico. Por sua vez, todo aumento dessa
tensão, seja provocada por fontes internas ou externas, é sentido como desprazer. Assim,
obedecendo a este princípio que aponta para a descarga das tensões e, portanto, para a
produção de prazer psíquico, o inconsciente e suas leis de funcionamento obedecem ao
que é conhecido na psicanálise como princípio de prazer (cf. Freud, 1900; 1911; 1915a).
Em contraposição a essa tendência constante que leva a alma a buscar sempre essas
satisfações, a realidade mostra a impossibilidade de tal tarefa. Esse fato é o que
possibilita ao sujeito introjetar outro princípio que o orienta para a auto-preservação: o
princípio de realidade. Este fica do lado da censura psíquica e é de onde provém os
impulsos contrários aos que se mostram mais antigos e arraigados. O conflito anímico
está também diretamente relacionado com a oposição entre o princípio de prazer e o
princípio de realidade.
Esta luta para manter afastados os impulsos que possam ferir o princípio de
realidade e, assim, provocar alguma experiência desagradável, que aumente ainda mais
o nível de tensão psíquica, é chamada de recalque ou recalcamento. Começamos a nos
aproximar também do conceito de pulsão, que para o edifício metapsicológico ocupa
um lugar estrutural. Em outros termos, podemos dizer que este processo pode ser
encarado como uma resistência que tenta deixar a pulsão inoperante (cf. Freud, 1915c).
Consoante com as palavras do mestre vienense (ibid., p. 170), podemos dizer que “a
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essência da repressão2 consiste simplesmente em afastar determinada coisa da


consciência, mantendo-a à distância”.
A definição citada nos leva a concluir que o processo de recalque é um
trabalho constante e que mantém relação direta com os impulsos provenientes do
inconsciente. Por outro lado, nem sempre obtém sucesso nesse esforço e então
encontramos aquilo que conhecemos por formações do inconsciente. Lapsos, sonhos,
chistes, sintomas são manifestações do fracasso do recalque e sinais de que os impulsos
mais profundos da psiquê conseguiram obter sucesso frente a essa resistência psíquica.
Mas esse tipo de satisfação não é tão simples como se poderia imaginar. Os conteúdos
anímicos proibidos sofrem diversas modificações e associações no sistema inconsciente.
É ao investigar como os conteúdos anímicos sofrem distorções, para que
possam driblar a censura psíquica e fazer com que seus derivados tenham acesso à
consciência, que Freud destaca o papel do processo primário e as operações de
condensação e deslocamento que lhes são características. A condensação diz respeito ao
fato de uma representação psíquica acumular a energia que anteriormente estava ligada
a outras representações e, assim, manter um elo associativo com elas assumindo para si
o valor psíquico que antes estava distribuído nestas últimas. Um exemplo é quando
sonhamos com certas figuras que, ao mesmo tempo, detêm características de diversas
outras e o sonho torna-se, portanto, de difícil compreensão. Já o deslocamento é o
mecanismo psíquico inconsciente, através do qual a energia que estava investida em
uma representação é transferida para uma outra que se liga a esta por algum tipo de
contigüidade e que, por sua vez, antes não tinha valor significativo e agora passa a
aparecer como figura principal, deixando aquela passar por despercebida. Em termos
mais rigorosos com a letra de Freud (1915c), podemos dizer que no deslocamento uma
idéia assume para si grande parte da catexia de outra, e na condensação uma idéia
assume a catexia de várias outras idéias. Vale repetir que essas são operações atemporais
e estão submetidas ao princípio de prazer, e distinguem o processo primário do
secundário. O processo primário, como se pode perceber, também é caracterizado pelo
livre escoamento de energia psíquica e, portanto, livre deslizamento de sentido, já que
diferentes idéias assumem para si a importância que outras anteriormente detinham.
2
Adotamos aqui a citação literal da tradução Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Com isso acabamos por reproduzir os termos discutíveis por sua tradução.
Assim, os termos lidos como instinto e repressão devem ser lidos como a maior parte da literatura
psicanalítica lacaniana os traduz: pulsão e recalque.
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Já o processo secundário é caracterizado pela ligação dessas representações


ao princípio de realidade e ao controle do pré-consciente. É nesse processo que é
exercido o controle sobre que conteúdos podem ascender à consciência. Nele há a
tradução das representações inconscientes para representações de palavra próprias ao
pensamento lógico da consciência. Portanto, para uma idéia que está no inconsciente
possa chegar à consciência é necessário que os traços mnêmicos possam se ligar às
palavras as quais são correspondentes. Quando há um desligamento da relação entre a
representação de coisa, que está impressa no aparelho psíquico como traço de memória,
e a representação da palavra que lhe dá significado, ocorre o recalque (cf. Freud,
1915a). Os sintomas, portanto, são formas através das quais as representações
recalcadas sofreram disfarce para driblar o recalque e que as palavras correspondentes a
essas representações assumiram formas diferentes de se manifestar. Ou seja, num
sintoma histérico a idéia que estaria ligada à palavra, que poderia corresponder à idéia
recalcada, é condensada para uma parte do corpo que lhe possa servir como substituta,
tanto é que Freud, como vimos, nos alerta inclusive que o uso lingüístico pode nos
fornecer uma ponte para essa compreensão. Numa fobia, o objeto de angústia é o
representante substitutivo da idéia que é proibida à consciência, bem como os atos e
idéias obsessivas. Seguindo as palavras freudianas (1915a., p. 177), “... a repressão
deixa sintomas em seu rastro.” Desta maneira, os sintomas se apresentam como o
retorno do recalcado e formações substitutivas para os impulsos provenientes do
inconsciente.
É importante também considerar como Freud chega a elaborar teoricamente
a origem desses impulsos psíquicos e qual a influência deles sobre os sintomas. Esse
percurso diz respeito às descobertas sobre a sexualidade infantil e suas incidências sobre
a vida adulta. Percebemos que, antes mesmo da publicação do texto sobre os sonhos, o
autor já antevia a importância do papel da sexualidade na etiologia dos sintomas
neuróticos. Era justamente por serem relativos à sexualidade que os sintomas se
produziam sobre idéias e lembranças recalcadas. Tal observação o levou
inevitavelmente a construir o conceito de pulsão que tornou-se outro dos pilares da
metapsicologia. É em um texto de 1905 (1905a, p. 153), que Freud nos dá uma
definição importante sobre os sintomas articulando-os com a sexualidade: “os sintomas
são a atividade sexual dos doentes.”
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A partir deste estudo, Freud atrela a noção de pulsão à de sexualidade,


realizando uma modificação na forma como esta última era compreendida. A
sexualidade, desde então, não fica mais restrita à função reprodutora, encontra suas
raízes na vida infantil e se organiza segundo fases relacionadas à primazia de zonas
erógenas diversas. O momento organizador da libido infantil é conhecido como
complexo de Édipo e encontra seu desfecho com a descoberta da diferença sexual. Esta
descoberta, por sua vez, marca uma separação definitiva entre a criança e a mãe e é
chamada de castração.
Essas descobertas relativas às atividades sexuais infantis extraídas da clínica
psicanalítica forneceu ao criador da psicanálise o material necessário e suficiente para a
sistematização dos conceitos de pulsão e fantasia, estabelecendo a relação entre os fatos
anímicos e suas fontes corporais.

3.2. Realidade do sintoma e a fantasia

O leitor pode indagar como esses elementos sexuais infantis podem se


articular com os sintomas que Freud analisou em seus pacientes. Tal questionamento é
justo e pertinente, pois diz respeito ao que é elementar na construção dos produtos da
atividade do inconsciente. Essa é uma questão considerável sobre quais os caminhos
que levam as formações sintomáticas a partir das vivências infantis.
Em sua conferência Os caminhos da formação dos sintomas, Freud nos
permite fazer essa articulação e também chamar a atenção para um conceito
fundamental na teoria psicanalítica: a fantasia. (Freud, 1917 [1916-1917], p 419-439).
Concebendo que os sintomas são formas substitutivas de satisfação libidinal
e que essa substituição é derivada de um conflito psíquico, Freud relata que esse novo
método de satisfação encontra reforço nas fixações em experiências infantis. Isto é, a
libido insatisfeita liga-se a lembranças de experiências abandonadas na infância nas
quais restos da energia libidinal ficaram fixadas desde então.
Sigamos a letra freudiana:

Onde, pois, encontra a libido as fixações necessárias para romper as


repressões? Nas atividades e experiências sexuais infantis, nas tendências
50

parciais abandonadas, nos objetos da infância que foram abandonados.


(FREUD, 1917 [1916-1917], p. 422).

Desse modo, Freud explica a causação da neurose a partir da associação


entre uma experiência casual (traumática) no adulto e sua disposição à neurose devido
à fixação em certas fases da organização libidinal. É importante notar, também, que a
libido adulta associa-se às fixações infantis de forma regressiva e que a significação
dessas experiências precoces adquirirem reforço justamente nesse momento posterior. A
significação da experiência abandonada na infância, segundo Freud (ibid., p.424), se
dá, portanto, retroativamente.
Essa retroação da significação das experiências infantis possibilitada pela
regressão da libido adulta não implica, entretanto, que esses eventos da infância não
tenham importância. Isso se justifica quando consideramos a existência de certas
neuroses infantis e que a regularidade com que acontece a regressão da libido só pode
ser explicada pela suposição de que estas experiências exerçam alguma força atrativa
sobre a libido. (Id., ibid., p. 424-425).
É, portanto, na infância, que o sintoma vai buscar a satisfação que a libido
necessita. Freud (1917 [1916-1917], p. 427) afirma:

De algum modo, o sintoma repete essa forma infantil de satisfação,


deformada pela censura que surge no conflito, via de regra transformada em
uma sensação de sofrimento e mesclada com elementos provenientes da
causa precipitante da doença.

Podemos perguntar ainda se todas essas experiências relatadas por Freud no


que se refere à infância realmente acontecem. Foi com surpresa que o mestre vienense
descobriu que nem sempre essas experiências se mostravam verídicas. Essas
lembranças relatadas por seus pacientes são compostas por elementos “de verdade e de
falsificação” (id., ibid., p. 429). Por vezes, esses sintomas dizem respeito a situações
realmente vividas e, outras, a fantasias do paciente.
A tarefa de investigar a veracidade desses fatos relatados como pertencentes
à infância e que fundamentam os sintomas implica numa série de dificuldades clínicas
que não contribuem para o sucesso do tratamento (id., ibid., p. 430). Contudo, o que
importa para o trabalho analítico é saber como essas representações — verídicas ou
51

fantasiosas — constituem esses eventos sintomáticos. Para a psicanálise, portanto, é da


realidade psíquica de que se trata e é por este prisma que devemos considerar esses
eventos. “As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade
material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a
realidade psíquica é a realidade decisiva.” (Id., ibid., p. 430).

A escuta da história relatada por seus pacientes possibilitou ao médico


vienense destacar a repetição de certos eventos atribuídos à infância desses indivíduos.
Esses eventos referem-se à observação do coito dos pais, sedução por parte de uma
pessoa adulta e ameaças de castração. Tais cenas, muitas vezes, constituem-se como
misturas entre situações reais, com elementos outros tirados da imaginação infantil, e
são consideradas por Freud como fantasias sexuais infantis. A diferença entre a verdade
dos fatos e a origem fantasiosa dessas representações não é perceptível e é de difícil
acesso pela escuta analítica. O que importa para Freud é que suas conseqüências têm o
mesmo efeito traumatizante.
A importância da fantasia é a de possibilitar à libido encontrar um caminho
que leva desde as fixações infantis até a formação sintomática. Nas fantasias, os objetos
e tendências infantis ainda guardam alguma intensidade e permitem o caminho da
libido regressiva em relação às fixações recalcadas. A quantidade de energia investida
nessas fantasias, se for aumentada de alguma forma, atualiza o conflito psíquico e
coloca em ação o mecanismo do recalque. Este por sua vez, faz com que essa energia
que estava investida nessa fantasia retroceda em direção aos pontos de fixação que as
originaram. (Freud, 1917 [1916-1917], p. 435-436).
Observamos, pois, que na fantasia temos uma forma de articulação entre
aquilo que é mais atual e os conteúdos mais arcaicos no sujeito. Lá, encontra-se uma
forma de remodelar as satisfações e experiências infantis com os conteúdos atuais na
vida do sujeito (cf. Chemama, 1995). É importante salientar que através dela o sujeito
se posiciona em relação ao seu desejo e à sua articulação com os outros. Com isso,
podemos adiantar que pela via das fantasias originárias os mecanismos estruturais
envolvidos nos sintomas também se articulam.
São as cenas do coito, cenas de sedução infantil e ameaças de castração os
elementos fundamentais que possibilitam que o mecanismo do recalque passe a atuar e
52

constitua aquilo que Lacan chamará de sujeito do inconsciente. Daí Freud denominá-las
como fantasias originárias, pois é seguindo esse modelo que as diversas manifestações
sintomáticas vão se estruturar. (Cf. Chemama, 1995).

3.3. Trauma e repetição: algo mais além do princípio de prazer

Os caminhos apontados pelos sofrimentos neuróticos, ao mesmo tempo que


levavam a territórios inexplorados, mostravam-se mais tortuosos e de difícil articulação
teórica, resistindo sempre aos mecanismos simbólicos próprios à atividade científica.
Essa dificuldade para colocar em palavras ordenadas, segundo a lógica da ciência,
forçou Freud a manter uma atitude de humildade frente às suas descobertas e o fez
rever seus posicionamentos anteriores. A década de 20 foi exemplar nesse sentido de
revisão da teoria e foi palco do surgimento de um dos quatro conceitos fundamentais da
psicanálise: a repetição3. (Cf. Lacan, 1964).
A primeira mudança considerável na teoria, que redundou naquilo que ficou
conhecido como a segunda tópica do aparelho psíquico, foi publicada em seu texto
intitulado Além do princípio de prazer, logo no ano de 1920. Obviamente, este
momento da elaboração psicanalítica é um resultado das descobertas anteriores, e suas
conseqüências marcam a entrada na última fase da teoria freudiana. Se, por um lado, foi
o conceito de repetição que deu acesso à nova teoria das pulsões de vida e de morte;
por outro, foi o conceito de narcisismo que possibilitou o surgimento da segunda tópica
em 1923 com o texto conhecido em português como O Ego e o id. (Freud, 1923).
Aquilo que foi chamado de compulsão à repetição encontra expressão em
momentos bem anteriores na obra freudiana. Ademais, podemos situar mais
pontualmente a preocupação de Freud que, no ano de 1914, publica um artigo sobre a
técnica psicanalítica intitulado Recordar, repetir e elaborar (1914b). Lá encontramos
uma apresentação dos limites encontrados na condução do tratamento e nos limites que
a escuta analítica encontrava para provocar no paciente a rememoração necessária para
se ter acesso ao material recalcado. Dito de outra maneira, Freud percebeu que os
pacientes manifestavam resistências à rememoração de certos conteúdos, mas
conseguiu perceber que esses mesmos conteúdos apareciam na forma de atos
3
Jacques Lacan (1964) dedicou um seminário inteiro aos conceitos de inconsciente, pulsão, repetição e
transferência, afirmando que eles co0nstituíam os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
53

inconscientes. O mestre vienense se deu conta de que, quando o analisando deveria


recordar, este repetia na forma de ações seus conteúdos recalcados.
Essa descoberta coloca para Freud uma outra dimensão técnica que não
mais se reduzia ao esforço de tornar consciente o material recalcado e fazer desaparecer
os sintomas, mas barrar a compulsão à repetição que atua no paciente, levando-o
inclusive a situações de sofrimento e fracasso (cf. Chemama, 1995). A tentativa de
tentar conter essa compulsão a repetir relacionava-se diretamente com a transferência.
Segundo o criador da psicanálise, o psicanalista deveria esforçar-se para fazer com que,
inicialmente, o paciente transpusesse essa repetição para dentro da situação analítica e,
só então, fazer intervir a interpretação. Assim, esse esforço tinha a intenção de manter
na esfera psíquica todos os impulsos que o paciente gostaria de dirigir para a esfera
motora. (Freud, 1914b). Podemos confirmar esse manejo técnico com o seguinte
trecho:

[...] o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à


repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da
transferência. Tornamos a compulsão inócua, e na verdade útil, concedendo-
lhe o direito a afirmar-se num campo definido. Admitimo-la à transferência
como a um playground no qual lhe é permitido expandir-se em liberdade
quase completa e no qual se espera que nos apresente tudo no tocante a
instintos4 patogênicos, que se acha oculto na mente do paciente. (Freud,
1914b, p. 201).

Até então essa repetição, tal como estava sendo considerada, não
apresentava dificuldades teóricas nem qualquer tipo de desconcerto em relação aos
demais elementos da doutrina psicanalítica. Concebida desta maneira, a repetição tinha
o caráter de atos sintomáticos, obedeciam ao princípio de prazer e denunciavam uma
satisfação pulsional substitutiva que poderia adquirir um sentido mediante o
procedimento analítico. Não obstante, a clínica levou Freud para uma caminho mais
desconsertante, impondo limites aos seus intentos terapêuticos e teóricos.
Foi deparando-se com o que era conhecido como neuroses traumáticas e
com brincadeiras infantis que o primeiro psicanalista da história teve que aprofundar a
discussão acerca dessa compulsão à repetição e rever sua teoria das pulsões que

4
Respeitamos aqui a tradução da Edição Standard brasileira das Obras completas de Sigmund Freud.
Devido aos erros de tradução do termo trieb, consideramos, aqui, a palavra instinto como o conceito de
pulsão.
54

afirmavam uma oposição entre as pulsões objetais e as pulsões do ego ou de


autopreservação. Essa reconsideração do conceito de repetição implica numa
aproximação deste conceito com o de pulsão — tal como insiste Lacan em seu
seminário de 1964 —, o surgimento da dualidade entre pulsão de vida (Eros) e pulsão
de morte, e uma certa revisão de suas considerações sobre o princípio de prazer. (Cf.
Freud, 1920).
As neuroses traumáticas impuseram uma dificuldade clínica para Freud que
contradizia suas teorizações sobre a obediência que a vida anímica presta em relação ao
princípio de prazer. Os sintomas e os sonhos desses pacientes revelaram a Freud que, ao
invés de manifestarem a repetição de um desejo inconsciente, eles repetiam
experiências desagradáveis e ligadas ao trauma. A questão que se colocava era: por que
essas experiências traumáticas se repetem tão compulsivamente à revelia do princípio
de prazer?
As brincadeiras infantis reproduziam o mesmo problema. Foi através da
brincadeira de seu neto, na época com 18 meses, que Freud mostrou o caráter
compulsivo da repetição de experiências desagradáveis na infância. Nesse exemplo,
Freud explica que a repetição do ato de jogar um carretel para longe e puxando-o de
volta, enunciando sons que remetiam à palavra fort5 quando o carretel era arremessado
e depois enunciando a palavra da quando reavia o objeto, significava uma tentativa de
seu netinho em lidar com as idas e vindas de sua mãe. Contudo, é mais curioso o que se
repetia com mais freqüência: o afastamento do objeto que representava as saídas de sua
mãe. Por que, então, o bebê repetia justamente o trecho da brincadeira que
supostamente deveria ser o mais desagradável?
É importante perceber que, tal como fez em diversas outras ocasiões, o
antigo aluno de Charcot recorre a exemplos extraídos da clínica e da observação da
vida infantil. O fator em comum nesses dois exemplos é o valor que Freud vai dar ao
trauma e à repetição como apresentando uma característica que vai além do princípio
de prazer. Essas duas situações mostram o caráter traumático no fundamento da
repetição. No caso da neurose traumática, é a situação vivida sem nenhum tipo de
preparação do sujeito em relação ao perigo que foi submetido que se repete. Já no caso
5
A palavra fort em alemão pode ser entendida como embora no sentido de ir embora, no português. Já a
palavra da significa ali. Portanto, podemos entender a brincadeira como uma oposição entre ir embora e
ali. Essa tradução pode ser verificada na nota do tradutor na página 26 do texto que ora consideramos.
(Freud, 1920, p. 26).
55

da brincadeira infantil, foi a separação da mãe em relação à criança que é entendida


como traumática.
Assim, Freud concebe o trauma como uma experiência desagradável que
coloca o sujeito em uma situação de desamparo psíquico frente a um aumento
considerável de estimulação sem que haja possibilidades de proteção contra essas
excitações, de maneira que o sujeito não possa se desvencilhar delas a contento.
Segundo o autor: “... o princípio de prazer é momentaneamente posto fora de ação. Não
há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes
quantidades de estímulos...”. (Freud, 1920, p. 45).
Essa quantidade de estímulos pode ser proveniente do mundo externo e,
assim, é possível que se tome mais facilmente medidas protetoras. Entrementes, quando
a estimulação provém de dentro do organismo essa tarefa fica muito mais difícil de ser
operada. Portanto, encontramos a necessidade de relacionar o trauma e a repetição com
as pulsões. Já que o trauma apresenta esse caráter compulsivo e repetitivo, deve manter
alguma relação com a vida pulsional, pois, como sabemos, a pulsão tem como
característica essa pressão constante e tem sua fonte no corpo do indivíduo. (Cf. Freud,
1915b).
Devemos perceber o afastamento da argumentação em relação ao que antes
foi concebido como repetição. Anteriormente, o que se repetia era sempre um mesmo
material que buscava satisfação na realidade. No momento, o que Freud argumenta é
que as manifestações da compulsão à repetição dão a impressão da existência da
alguma força demoníaca que ronda o sujeito, colocando-o sempre em situações
repetidas. Esse caráter demoníaco demonstra justamente a face pulsional da repetição.
Então, na tentativa de relacionar o conceito de pulsão com o de repetição, o autor
salienta:

Parece, então, que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a


restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi
obrigada a abandonar sobre a pressão de forças perturbadoras externas, ou
seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo,
a expressão da inércia inerente à vida orgânica. (FREUD, 1920, p. 53-54).

Essa nova concepção da pulsão salienta seu aspecto conservador e é o que


permite a elaboração da nova dualidade pulsional. A tendência a restaurar um estado
56

anterior de coisas aponta para o resultado final da vida, ou seja, após a instauração
desta, é só com a morte que voltamos ao estado inorgânico do qual saímos. Assim, essa
tendência em relação à morte foi nomeada de pulsão de morte e é ela responsável pela
compulsão à repetição. Essa compulsão nada mais é do que um movimento do aparelho
anímico na tentativa de restaurar a situação anterior ao trauma. O trauma age
psiquicamente como a força perturbadora que desestabilizou a inércia que antes existia.
Ora, como podemos pensar essa inércia psíquica anterior ao trauma? Numa
perspectiva lógica (e não cronológica), ela pode ser concebida a partir da satisfação
auto-erótica da pulsão em que, para a criança, não há diferença entre ela e o objeto de
satisfação. Esse objeto é tomado como parte do próprio corpo e promove uma
satisfação pulsional que, se não cessasse, levaria esse ser em direção à morte sem
nenhum impedimento natural. Mas, de fato, sabemos que isto não acontece dessa
maneira.
O bebê, para manter-se vivo, está em relação com o outro (a mãe) que, além
de investir libidinalmente a criança como seu objeto sexual, instaura a dimensão da
diferença ao separar-se dela. É essa separação que atua como trauma e encontra na
castração e na descoberta da diferença sexual — com a percepção da ausência do falo,
encontro com a falta — seu ponto culminante, sendo denominado de trauma
fundamental. O infante é forçado a buscar os objetos no mundo exterior visando à
satisfação perdida. Entendemos esse investimento libidinal por parte do outro como
aquilo que permite a sobrevivência do ser humano e impede seu caminho natural em
direção à morte, colocando em ação a pulsão de vida teorizada por Freud. O trauma
representa, portanto, uma entrada do sujeito no registro da falta, num registro que se
sustenta pela impossibilidade de satisfação absoluta.
Assim, tendo o trauma como aquele encontro com a dimensão da falta —
como encontro faltoso, nas palavras de Lacan em seu seminário de 1964 —, o princípio
de prazer entra em movimento tentando fazer suplência a essa satisfação para sempre
perdida. O sintoma passa a representar essa suplência de uma satisfação pulsional
abandonada, presentificando, ao mesmo tempo, uma solução de compromisso ao
conflito psíquico e representando, também, a falta de satisfação pela diferença em
relação àquela idealmente buscada.
57

Esta diferença entre o benefício obtido na repetição e a falta de satisfação


que jaz por trás dessa compulsão remete ao que Lacan (1964, p. 55-65) nomeou como
as duas modalidades de repetição. A primeira, autômaton, obedece ao princípio de
prazer e diz respeito a essa satisfação pulsional pela via da linguagem. A segunda
modalidade, a tiquê, reflete a insistência real do encontro faltoso e coloca em jogo essa
dimensão da falta e da não-complementaridade entre a coisa e a representação,
salientando o fundamento da repetição no real do trauma. É o que vige por trás do
autômaton, sendo a sua causa e o que interrompe seu funcionamento tranqüilo. (Fink,
1997, p. 241).
O exemplo da brincadeira infantil do neto de Freud, segundo o autor,
manifesta uma tentativa de dominar, com o uso da linguagem, a situação traumática das
saídas da mãe. Ilustra a modalidade repetição simbólica que Lacan chamou de
autômaton Podemos entendê-lo também, com algumas indicações de Lacan (1964), que
esta experiência representa a entrada do sujeito no registro da linguagem, através do
qual o humano passa a organizar sua realidade e seu desejo tentando dar conta do
irremediável do trauma.
Esta leitura lacaniana, que aponta essa modalidade de repetição pela via da
linguagem, fornece-nos elementos para entender o que Dejours (1992; 1999) chamou
de estratégias defensivas contra o sofrimento no trabalho. Estas últimas, então,
apresentam-se como formas simbólicas dos trabalhadores elaborarem psiquicamente a
realidade traumática atualizada na atividade laborativa. Diante da repetição do encontro
com a dimensão da falta — tiquê —, os trabalhadores colocam o princípio de prazer em
jogo através da elaboração de saídas simbólicas para este sofrimento diariamente
atualizado.
Não obstante, para explicar a relação do sujeito com a dimensão da
alteridade, Freud não utiliza os argumentos nesses termos. Em Além do princípio de
prazer (1920), recorre à biologia e ao modelo da substância viva em relação com as
forças da natureza para justificar sua nova dualidade pulsional. Faz eqüivaler as pulsões
sexuais e de auto-preservação a Eros, como uma tendência universal à união e à
perpetuação da espécie. No que concerne à pulsão de morte, relaciona todos os
impulsos agressivos como a expressão dessa tendência mortífera voltada para o mundo
externo na tentativa de seguir o caminho em direção à morte da maneira mais natural
58

possível. Dificilmente essa pulsão de morte pode ser percebida em seu estado puro.
Encontramos seus vestígios sempre em forma de fusão com as pulsões sexuais.
Seguindo essa recorrência à biologia, podemos citar Freud para ilustrar essa
dimensão do outro na sua relação com a dinâmica pulsional que está sendo teorizada:

[...] os processos vitais do indivíduo levam, por razões internas, a uma


abolição das tensões químicas, isto é, à morte, ao passo que a união com a
substância viva de um indivíduo diferente aumenta essas tensões,
introduzindo o que pode ser descrito como novas ‘diferenças vitais’, que
devem então ser vividas. Com referência a essa dessemelhança, naturalmente
tem de haver um ou mais pontos ótimos. A tendência dominante da vida
mental e, talvez, da vida nervosa em geral, é o esforço para reduzir, manter
constante ou para remover a tensão interna devido aos estímulos
(...),tendência que encontra expressão no princípio de prazer, e o
reconhecimento desse fato constitui uma de nossas mais fortes razões para
acreditar na existência dos instintos de morte. (FREUD, 1920, p. 76).

Se entendermos que é em função de Eros que ocorre a instauração de uma


tensão psíquica pela via da incorporação dos objetos, podemos então concluir que é
devido a essa pulsão que o princípio de prazer entra em ação com sua tendência a
descarregar todo tipo de tensão existente no aparelho, buscando afastar tudo aquilo que
possa levar ao acúmulo de tensão e a conseqüente produção de desprazer. Ora, percebe-
se também que se o princípio de prazer é concebido como essa tendência inerente ao
aparelho psíquico, ele também está a serviço da pulsão de morte que visa restaurar um
estado anterior das coisas. Conclui-se, portanto, que as pulsões de vida parecem atuar
através do aumento das tensões, rompendo com a paz que existia anteriormente no
aparelho, e as pulsões de morte atuam de forma silenciosa indo sempre em direção à
descarga submetendo o princípio de prazer aos seus propósitos. (Id., ibid., p. 84-85).
Como vimos alguns parágrafos acima, uma leitura mais atenta dos
argumentos freudianos nos leva a considerações importantes quanto à noção de falta e
de insatisfação pulsional. Essa luta entre as duas forças que atuam no aparelho anímico
torna-se mais evidente e justificada a partir do conceito de trauma. É na vivência de
desamparo que a falta do objeto pulsional proporciona que o jogo de tensões adquire
sua maior visibilidade, chegando a produzir, inclusive, manifestações patológicas. A
ausência desse objeto é fundamental para a ocasião do trauma e institui o
funcionamento do princípio de prazer. Contudo, as pulsões continuam a pressionar
59

constantemente e procuram a descarga mesmo que de forma substitutiva, como já foi


dito anteriormente.
Assim, é importante destacar o caráter de falta de satisfação que toma corpo
com a noção de trauma, e que coloca em jogo a compulsão à repetição como uma
maneira de restituir o estado anterior à vivência traumática. A repetição passa a estar
muito mais ligada ao conceito de pulsão que o de transferência, diferentemente de
como foi concebida no artigo de 1914 acima referido (cf. Lacan, 1964). Segundo Freud
(op. cit.), vai haver uma tentativa de suturar o furo proporcionado pela vivência
traumática através da repetição. Esse é um raciocínio fundamental de termos em mente
para entendermos o porquê dos sintomas atuarem como repetição do que é
desagradável, ao mesmo tempo que aparecem como satisfações substitutivas da pulsão.
Essa dupla vertente do sintoma demostra que, numa manifestação sintomática,
podemos encontrar atuando tanto Eros como a pulsão de morte em estado de fusão.

3.4. Os benefícios do sintoma e a segunda tópica

A nova forma de entender a dualidade pulsional, não descartando as


teorizações anteriores e sofrendo influência direta do conceito de narcisismo, constitui-
se como condição de possibilidade para a nova esquematização do aparelho psíquico. O
modelo biológico que ilustra a existência de uma instância no organismo vivo, que está
em contato com o mundo exterior e mantém a função de proteção contra as
estimulações, mostra-se de grande utilidade neste momento. O ego passa a ser
considerado essa parte do aparelho anímico que está situada em relação direta com o
exterior, está encarregado da proteção, percepção e da consciência. Contudo essa
instância psíquica não corresponde completamente ao que antes era chamados de
sistema Cs., pois está constituído por partes inconscientes. Tal fato coloca para Freud
(1923) a tarefa de retomar a discussão sobre a definição de inconsciente, visto que este
é o conceito principal de sua teoria.
Consoante com o médico vienense (ibid.), o termo inconsciente, que antes
era utilizado segundo as perspectivas descritiva, dinâmica e topográfica, agora só é
considerado nos dois primeiros sentidos. Descritivamente podemos considerar
inconsciente todo material que estiver em estado latente, fora da consciência. Assim,
60

por este ponto de vista, o material que antes fazia parte do sistema Pcs., e que
corresponde a representações verbais, também é inconsciente descritivamente. No
entanto, o material recalcado, que antes era considerado como pertencente ao sistema
Ics., também é adjetivado desta maneira. Quanto ao aspecto dinâmico, só existe uma
forma de considerar o termo inconsciente: tudo aquilo que foi recalcado e que não tem
livre acesso à consciência.
Essa distinção é importante porque podemos encontrar partes do ego que
são inconscientes e que constituem elementos significativos para a teorização freudiana
relativa aos mecanismos envolvidos nos sintomas.
Sendo o ego organizado a partir da projeção da superfície corporal,
constituindo-se como um ego corporal devido à sua posição intermediária entre o
mundo interno e externo, sofre exigências também dos impulsos que provêm de dentro
do aparelho, ou seja, das pulsões. Cabe a ele, por conseguinte, a função de negociar e
conciliar as imposições provocadas pelas pulsões e pela realidade exterior, controlando
o acesso à motilidade e à percepção. Desse modo, obedece também ao princípio de
realidade, estabelecendo limites à satisfação pulsional e funcionando segundo o
processo secundário. É, portanto, responsável pelo recalcamento e pelas resistências.
O lugar mais profundo do aparelho anímico e de onde provém as pulsões,
sendo considerado como o “grande reservatório da libido” (Freud, 1923) é denominado
de id. Esta instância, mais primitiva e selvagem, funciona segundo o processo primário,
onde a energia é móvel e livre podendo deslocar-se e condensar-se na busca de
satisfação. Lá reinam as representações de coisa derivadas de impressões visuais. O ego
se forma a partir da diferenciação desse id devido o contato com o mundo externo, por
isso “não se acha nitidamente separado do id; sua parte inferior funde-se com ele”. (Id.,
ibid., p. 38).
É essa proximidade com o id que impõe ao ego a percepção das forças
provenientes do aparelho. Tomando de empréstimo a energia proveniente do id, o ego
obtém a capacidade de promover a disjunção entre as representações de coisa e de
palavra, colocando em ação o recalque e a resistência. E é através da observação desta
última no trabalho analítico que Freud insiste em mostrar a importância de que existem
parcelas inconscientes do ego. Sigamos suas preciosas indicações (id., ibid., p. 30):
61

[...] visto não poder haver dúvida de que essa resistência emana do ego e a
este pertence, encontramo-nos numa situação imprevista. Deparamo-nos com
algo que no próprio ego que é também inconsciente, que se comporta
exatamente como o reprimido — isto é, que produz efeitos poderosos sem ele
próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser
tornado consciente.

Essa parcela inconsciente do ego funciona de forma independente e adquire


proeminência principalmente quando consideramos os efeitos daquilo que Freud
chamará de ‘superego’. Esses efeitos dizem respeito à descoberta de sentimentos de
culpa inconscientes, que estão ligados à internalização dos ideais provenientes das
identificações ocorridas no complexo de Édipo. Freud começa, então, a descrever o
superego como a parte diferenciada do ego, que é herdeira do complexo de Édipo e
carrega consigo as proibições decorrentes da castração.
A teorização dessa instância diferenciada do ego é tributária de seus estudos
relativos ao conceito de narcisismo e de identificação. Como vimos anteriormente, a
dinâmica edipiana envolve a identificação com os pais como condição para sua entrada
na cultura através do abandono da satisfação de seus impulsos sexuais mais primitivos.
Essa identificação ocorre na tentativa de manter uma integridade narcísica que é
ameaçada pela castração. O ego se identifica com os objetos na busca de satisfação
substitutiva desses impulsos proibidos. Esse tipo de identificação eleva o ego à
qualidade de objeto de investimento, constituindo o que chamamos de narcisismo
secundário.
O conceito de ideal do ego (cf. Freud, 1914a; 1921) aparece como o modelo
pelo qual o ego deve seguir para que então possa se apresentar como objeto de
investimento narcísico, e satisfazer às exigências pulsionais. Dito de outra maneira:
com a impossibilidade da satisfação pulsional almejada, o ego se identifica com os
ideais de cultura impostos pelos agentes paternos, para então poder ser apresentado ao
id como objeto de amor e, assim, adquirir forças para desviar os objetivos de satisfação
pulsional. Esses desvios da satisfação pulsional são entendidos como os diversos
destinos da pulsão6 (Freud, 1915b) e são tarefas atribuídas a essa instância mediadora
com o mundo externo. Embora em 1914 Freud ainda não tivesse teorizado a segunda
tópica, podemos recolher um fragmento desses argumentos que ora apresentamos:

6
Estes destinos são: recalque, sublimação, retorno ao próprio ego e reversão ao seu oposto. (Freud,
1915b).
62

Não nos surpreenderíamos se encontrássemos um agente psíquico especial


que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do
ideal do ego, e que, com essa finalidade em vista, observasse constantemente
o ego real, medindo-o por aquele ideal. (FREUD, 1914a, p. 112)

Não deve passar despercebido que essa identificação com os objetos,


permitindo ao ego sua constituição e apresentação como objeto de investimento
narcísico, transformando a libido objetal em libido do ego, detém semelhanças com o
que foi teorizado sobre o sintoma. Se considerarmos que o sintoma é uma forma de
satisfação substitutiva da pulsão, que obedece aos processos de deformação próprios ao
processo primário, o investimento da libido no ego e sua posterior reorientação para
outros objetos adquire um comportamento semelhante. Tal fato nos permite dizer,
então, que o ego também assume seu caráter e estrutura sintomática e está
comprometido diretamente com as exigências pulsionais provenientes do id, ao mesmo
tempo em que atende às condições impostas pela realidade exterior e pelas exigências
superegóiscas. Contudo, esse superinvestimento da libido no ego só adquire feições
patológicas em alguns casos específicos como na melancolia. (cf. Freud, 1923).
O ego, portanto, só adquire sua força através da identificação com os
objetos, o que também o condena a diferenciar-se na forma de superego que atua como
um vigilante cruel e impiedoso.
Essa nova forma de compreender o aparelho anímico traz muitos
esclarecimentos e modificações importantes na forma de compreender as formações
sintomáticas. Percebemos que, a partir desse momento, o ponto de vista econômico
relativo à concepção de sintoma passa a ocupar um espaço mais importante que o
dinâmico, diferentemente do que se compreendia anteriormente. Dito de outra forma, se
antes o sintoma era compreendido como resultado de um conflito entre as pulsões e o
recalque, podemos entender que agora esse conflito passa a fazer parte da própria
estrutura do ego. Vejamos a afirmação de Serge Cottet (1998, p. 48):

Com a segunda tópica, o ponto de vista econômico prevalece sobre o ponto


de vista conflituoso ou dinâmico. Enquanto o sintoma resultava de um
conflito da pulsão com o eu, agora trata-se de dar conta de um conflito
interno ao eu ou dos efeitos sintomáticos de um eu dividido entre várias
instâncias, ou ainda das satisfações narcísicas que o sujeito encontra no seu
sintoma.
63

Nessa perspectiva, o ego7 aparece não só como responsável pelas defesas,


mas como um agente comprometido com as diversas satisfações em jogo. Ele situa-se
como um gerente de forças que obtém ganhos com essas negociações com as diversas
instâncias, e o maior ganho é o que poderíamos chamar de narcísico. Essa satisfação
narcísica refere-se à quantidade de libido que deve ser investida no ego para que este
possa gerenciar as exigências que lhe são dirigidas. Podemos entender que essas
exigências produzem no ego uma espécie de divisão que, ao mesmo tempo que tenta
oferecer uma satisfação substitutiva para as pulsões que permaneceram insatisfeitas,
reafirma esse caráter de insatisfação.
Em Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]), Freud dedica maior
atenção às manifestações sintomáticas e promove uma reelaboração da sua teoria da
angústia e estabelece as relações desta com o ego e com os sintomas neuróticos.
Seguindo este caminho, o mestre vienense precisa melhor as relações e os benefícios
que o ego obtém na formação sintomática, bem como sua tentativa de proteção contra
as conseqüências da insatisfação pulsional.
As inibições, Freud as define como restrições às funções do ego que podem
adquirir caráter patológico ou não. Muitas vezes, essas inibições têm uma função de
proteção contra um perigo que possa vir a atingir o sujeito. Contudo, elas podem
apresentar um caráter patológico à proporção que representam impedimentos relativos à
vida prática e amorosa dos indivíduos. Sigamos o texto freudiano:

No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são


restrições da função do ego que foram impostas como medida de precaução
ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos
ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um sintoma,
porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que
ocorre dentro do ego ou atua sobre ele. (FREUD, 1926 [1925], p. 111).

Entender que o sintoma não corresponde mais a um processo que ocorre


dentro do ego ou que atua sobre ele, significa dizer que, agora, concebe-se o papel ativo
do ego na formação do sintoma. Inicialmente, era como se ele fosse vítima passiva de
um conflito entre forças opostas, todavia, neste momento, esta instância do aparelho
7
Deve-se perceber que na citação acima referida o autor utiliza o pronome pessoal “eu” em substituição
ao que aqui nos referimos como ego. Esta última refere-se à tradução utilizada Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud que adotamos como referência nesta pesquisa. No
entanto, podemos encontrar referências provenientes de outras traduções que utilizam o pronome pessoal
eu no lugar do termo latino. (Cf. Hans, 1996; Chemama,1995; Kaufmann, 1996).
64

passa a ter um papel ativo no gerenciamento das forças atuantes, intervindo diretamente
na economia libidinal. Podemos verificar este fato na esclarecedora definição de
sintoma sugerida pelo autor no seguinte trecho:

Um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que


permaneceu em estado jacente; é uma conseqüência do processo de
repressão. A repressão se processa a partir do ego quando este — pode ser
por ordem do superego — se recusa a associar-se com uma catexia instintual
que foi provocada no id. O ego é capaz, por meio da repressão, de conservar
a idéia que é veículo do impulso repreensível a partir do tornar-se consciente.
A análise revela que a idéia amiúde persiste como formação inconsciente.
(FREUD, 1926 [1925], p. 112).

Esta citação promove uma modificação na ênfase em torno da produção do


sintoma e na sua relação com a satisfação pulsional. Esse modo de compreender os
sintomas salienta seu caráter particular enquanto fruto do recalcamento pulsional e da
insatisfação destas pulsões. De acordo com o que já foi explicitamente comentado, a
dimensão da falta de satisfação aparece com maior vigor no texto freudiano (id., ibid.,
p. 112, grifo nosso):

Todo o assunto pode ser esclarecido, penso, se nos ativermos ao enunciado


definitivo de que, como resultado da repressão, o pretendido curso do
processo excitatório no id não ocorre de modo algum; o ego consegue inibi-
lo ou defleti-lo.

Podemos nos perguntar como o ego obtém sua força para inibir esses
processos excitatórios provenientes do id. Já falamos que sua força é decorrente das
identificações derivadas do complexo de Édipo e que permitiram a formação do
superego. Contudo, essa explicação não é suficiente, pois apenas indica que o ego
tomou partido das exigências proibitivas superegóicas, deixando de lado o aspecto
quantitativo fundamental dessa questão. Poderíamos reformular a pergunta e indagar:
por que o ego aceita essa proibição proveniente do superego e como consegue fazer
frente às forças pulsionais que o ameaçam de dentro?
A resposta para esse questionamento é o que nos permite adentrar na nova
teoria sobre a angústia. Sendo o superego aquela instância psíquica surgida como forma
de identificação com os antigos objetos de amor e, portanto, derivado diretamente de
redirecionamentos libidinais ao próprio ego, podemos concluir que ele mantém
65

proximidade com o id e dele obtém sua força (Freud, 1923). Podemos dizer, de outra
maneira, que os impulsos que antes encontraram censura no mundo exterior, devido à
internalização dos ideais do ego, agora encontram seu vigilante dentro do próprio
aparelho. Deste modo, na medida em que ocorre um aumento na catexia pulsional, o
superego imediatamente também enuncia sua proibição.
Sendo o superego herdeiro do complexo de Édipo, ele atualiza aquela
proibição que foi responsável pela castração. Assim, a proximidade do material
recalcado ativa a censura do superego e faz com que o ego pressinta a aproximação de
um perigo de castração.
Diferentemente de um perigo proveniente do exterior — do qual o ego pode
tomar medidas protetoras como a fuga —, no que se refere à castração, internalizada
pelo complexo de Édipo, não há fuga possível, pois a ameaça de perigo provém de
dentro do aparelho. A solução para esta situação é que o ego trata esse perigo interno —
representado pela a aproximação do material recalcado — como se fosse um perigo
externo e emite um sinal de angústia como uma forma de proteção contra esse perigo.
Esse sinal de angústia consiste no reinvestimento de lembranças
desagradáveis — que encontram seu modelo no nascimento, mas adquirem todo seu
significado com a angústia de castração —, permitindo ao ego defletir a libido, retirar
as quantidades de libido para outras representações e promover o recalque.
Conseqüentemente, o ego passa a ser a sede da angústia e o seu emissor.
Tratando, assim, uma representação recalcada como se fosse um perigo
proveniente do exterior, o ego deve oferecer à pulsão modos substitutos de satisfação,
embora não sejam exatos correspondentes ao objeto buscado. Ele, então, é responsável
pela nova escolha dos substitutos para a satisfação pulsional, que tenta suturar a falta
que a castração proporcionou ao sujeito quando impossibilitou a satisfação edípica.
Segundo Serge Cottet (1998, p. 50), o sintoma começa a aparecer como uma suplência
do ego à insatisfação pulsional. Sigamos suas palavras:

Certamente os sintomas são sempre criados para retirar o eu de uma situação


de perigo. No entanto, não é mais a libido recalcada que vai determinar o
sintoma. O perigo é relacionado à instância do real. O acento é colocado
sobre a falta ou o impossível da satisfação que é o último significante do
complexo de castração. A castração freudiana designa esse gozo impossível
que o sintoma assinala ao fingir substituí-lo. (COTTET, 1998, p. 50).
66

Insistimos que essa nova forma de conceber os sintomas, colocando o


acento sobre a falta, é fundamental para pensarmos a natureza insatisfeita da pulsão e
que justifica o caráter compulsivo dos sintomas e o apego que o ego mantém com essas
formações do inconsciente. Entendemos que essa tentativa egóica de fazer suplência à
insatisfação pulsional traz inúmeros desdobramentos teóricos importantes para o
trabalho que ora empreendemos e esclarece alguns fenômenos relativos à clínica
psicanalítica.
Um desses fenômenos foi considerado por Freud a partir da segunda tópica:
a inércia dos sintomas. Este é um elemento importante para considerarmos nesse
momento de nossa argumentação pois traz outros relativos aos ganhos provenientes das
formações sintomáticas. A inércia dos sintomas pode aparecer como uma reação
terapêutica negativa que se manifesta na forma de uma resistência, por parte do
paciente, em se ver livre dos sintomas e assim continuar infindavelmente seu processo
de análise. Esse desafio clínico possibilita o criador da psicanálise supor a existência de
um sentimento de culpa inconsciente que impede a solução analítica do sintoma.
(Freud, 1923).
Diante de tudo que já foi afirmado, podemos nos perguntar: por que o
neurótico manifesta tanto apego ao sintoma de forma a apresentar inúmeras resistências
à dissolução de seu sofrimento? Já que apresenta tantos obstáculos a essa dissolução,
devemos supor que existem ganhos de diversas naturezas nessa forma de retorno do
recalcado. Devemos, então, dirigir nossa atenção para aquilo que podemos chamar de
ganhos primários e secundários com o sintoma. (Cf. Indart, 1998).
Grosso modo, podemos entender o ganho primário com o sintoma esse
aspecto de satisfação pulsional substitutiva que o ego promove no aparelho anímico.
Esse é um benefício econômico, pois diz respeito a uma liberação de uma certa
quantidade de energia pela via sintomática e que é sentida pelo aparelho como prazer.
Contudo, apresenta o caráter paradoxal de que essa energia liberada na formação
sintomática empobrece o indivíduo de maneira que suas atividades da vida prática
ficam comprometidas. Sigamos a conceituação de Freud sobre os sintomas (1917
[1916-1917], p. 419):

O principal dano que causam reside no dispêndio mental que acarretam, e no


dispêndio adicional que se torna necessário para se lutar contra eles. Onde
67

existe extensa formação de sintomas, esses dois tipos de dispêndio podem


resultar extraordinário empobrecimento da pessoa no que se refere à energia
mental que lhe permanece disponível e, com isso, na paralisação da pessoa
para todas as tarefas importantes da vida.

Esse paradoxo da formação sintomática, no qual há a produção de prazer


por um lado e por outro um aumento da tensão numa defesa contra esses sintomas,
reflete também a situação ocorrida no complexo de Édipo quando o sujeito se deparou
com a exigência da satisfação pulsional e, ao mesmo tempo, uma ameaça de castração
concomitante àquela exigência inicial. À proporção que se aproxima da possibilidade
de satisfação, maior tensão vai surgir devido à angústia de castração. Mas é a formação
de um sintoma que se apresenta como a solução mais econômica para o conflito
pulsional:

Ademais, apaziguar um conflito construindo um sintoma é a solução mais


conveniente e mais agradável para o princípio de prazer:
inquestionavelmente, poupa o ego de uma grande quantidade de trabalho
interno que é sentido como penoso. (FREUD, 1917 [1916-1917], p. 445).

Considerar aquilo que Freud denominou de ganho secundário com o


sintoma abre a discussão para perspectivas muito interessantes, principalmente no que
se refere ao que podemos chamar de laços sociais. O ganho secundário se dá ao nível
desses laços (Indart, 1998, p. 62). A relação com os outros é um fator que nunca foi
negligenciado por Freud, permeia toda a sua obra e encontra um de seus pontos
culminantes no texto Mal-estar na civilização (1930 [1929]). Entretanto, podemos
encontrar indicações interessantes em outros momentos de sua obra.
O primeiro psicanalista da história concebia que a dimensão do
relacionamento com as outra pessoas era de extrema importância e que o adoecimento e
os conflitos neuróticos também tinham relação com a instância social. Compreendia
(Freud, 1917 [1916-1917]) que o neurótico empreende uma fuga para a doença sempre
que se encontra em conflito psíquico, e essa fuga parte de um sacrifício realizado em
prol da relação do sujeito com as outras pessoas. Vejamos suas palavras:

Na verdade, há casos em que até mesmo o médico deve admitir que um


conflito terminar em neurose constitui a solução mais inócua e socialmente
mais tolerável. ... Ele sabe que não há apenas miséria neurótica no mundo,
mas também sofrimento real, irremovível, que a necessidade pode mesmo
68

exigir que uma pessoa sacrifique sua saúde; e aprende que um sacrifício
dessa espécie, feito por uma única pessoa, pode evitar incomensurável
infelicidade para muitas outras. (Id., ibid., p. 446).

É no nível da relação com os outros que o neurótico encontra os “motivos


para a doença” (Freud, 1905 [1901]), que se somam aos elementos econômicos
primários promovendo uma resistência contra o prosseguimento da tentativa de curar o
paciente. Entrementes, com a elaboração da segunda tópica, Freud percebeu que por
trás desse ganho secundário havia também uma satisfação pulsional dirigida ao próprio
indivíduo. Descobriu que essa resistência à cura manifestava um sentimento de culpa
inconsciente, proveniente da censura exercida pelo superego quanto às satisfações
pulsionais envolvidas (Id., 1924a).

A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o mais poderoso


bastião do indivíduo no lucro (geralmente composto) que aufere da doença
— na soma de forças que lutam contra o restabelecimento e se recusam a
ceder seu estado de enfermidade. (Id., ibid.., p. 207).

Tomando os argumentos da nova divisão do aparelho psíquico, podemos


observar que o lucro secundário com o sintoma manifesta uma conciliação que o ego
proporcionou às exigências da realidade com as exigências do id e, ao mesmo tempo,
satisfaz o masoquismo moral imposto pelo superego. Este fato ilustra, portanto, os três
níveis de comprometimento que o ego pode apresentar numa formação sintomática.
É importante salientar que esses ganhos secundários com a doença
apresentam dificuldades consideráveis para o desenlace de um processo psicanalítico,
justamente por causa desse múltiplo comprometimento do ego com as diversas forças
que atuam sobre o aparelho anímico. Por outro lado, permite a Freud entender que estas
formações do inconsciente também trazem benefícios ao nível dos laços sociais
mantendo o sujeito em contato com a realidade, e que um esforço para curar pode,
muitas vezes, promover mais sofrimento do que deveria. Isto é o que faz o médico
vienense sugerir que o psicanalista deve colocar de lado o seu furor sanandi.
Temos ainda que a dimensão dos laços sociais é um dos fatores que mais se
destacam quando pensamos a realidade laborativa. O sintoma, como uma forma de
articulação do sujeito com o outro, insere-se também numa perspectiva histórica,
estando sujeito a determinações segundo sua inserção social. É na cultura que os
69

indivíduos colhem os elementos simbólicos que estruturam sua subjetividade. Essa


inserção na cultura, como vimos antes, se dá pela via das identificações que promovem
o surgimento do ego.
Com este conceito podemos responder à teoria de Dejours (2003) quanto à
necessidade de reconhecimento do trabalhador por parte dos outros, pois a identificação
permite aplacar o sofrimento causado pelas diferenças individuais que atualizam a
impossibilidade de satisfação absoluta. Essa lógica da identificação — que é a mesma
lógica da constituição do ego — pode promover o mesmo efeito narcísico de fazer
suplência à falta fundamental constituinte do desejo humano.
Por outro lado, ao buscar construir a identidade do trabalhador, essas
práticas relativas à psicopatologia do trabalho, se não ignoram, subestimam a dimensão
faltosa do desejo, promovendo alienação subjetiva. Dito de outra maneira, embora as
escolas de inspiração marxista e a escola dejouriana tentem promover o bem-estar
subjetivo apontando, inclusive, a alienação no trabalho e buscando a formação da
identidade do trabalhador, o que, na verdade, estão efetuando são suturas narcísicas,
análogas aos sintomas, estabelecendo um desconhecimento quanto à determinação do
desejo de cada trabalhador e, portanto, sua alienação.
Em contrapartida, na perspectiva da realidade de trabalho, da eficácia e da
adaptação (mesmo que parciais), sabemos e verificamos a utilidade destas práticas. Por
isso também o seu reconhecimento. Mas, do ponto de vista psicanalítico, podemos
dizer, apoiados na teoria de Lacan (1964), que essas psicologias do trabalho, que ora
comentamos, respondem à alienação no trabalho com uma outra forma de alienação.
Ao propor tal afirmação, não pretendemos desautorizar esses saberes já
instituídos em prol de uma promoção do ponto de vista psicanalítico. Este último, que
detém seus limites bem estabelecidos, não constitui uma visão de mundo, nem pretende
sê-lo. Ao contrário, essas observações permitem justamente o reconhecimento da
impossibilidade de se explicar a realidade humana de forma absoluta. O ponto de vista
psicanalítico se insere nessa discussão na medida em que traz à tona elementos que são
desconsiderados pelas teorias que apontamos nesse trabalho.
A psicanálise, frente a esses discursos pretensamente científicos, reconhece
o papel dos laços sociais como fundamental para a constituição subjetiva. Contudo, ao
salientar a dimensão da não-complementaridade, da não-identidade e da falta
70

fundamental, possibilita o sujeito ascender ao reconhecimento do seu desejo através de


uma operação de separação. Esta separação, segundo Lacan (1964), representa uma
segunda operação lógica de constituição subjetiva — alternativa à alienação — que
representa o reconhecimento da dimensão da falta e da impossibilidade de satisfação
absoluta. O jogo observável entre a alienação do desejo e a separação que, segundo
Pommier (1992, p. 21) pode ser entendida como o instante mesmo de reconhecimento
da alienação, é o que Lacan chama de dialética do sujeito. Contudo, permitir que o
sujeito reconheça seu desejo nem sempre se mostra condizente com a lógica utilitarista
do mercado.
Essa aproximação entre o individual e o social é mais um dos elementos
que nos instrumentalizam para levar adiante nossas intenções acerca do conceito de
sintoma, as questões sociais relativas ao mundo do trabalho e sua importância na obra
freudiana. Não é nossa intenção fazer uma genealogia dessas reflexões sobre o social,
mas apontar a importância de que os caminhos trilhados pela via do sintoma levam a
estes fenômenos culturais. Deste modo, partindo daquilo que aparentemente seria um
evento individual e “anti-social”, verificamos que a dimensão da relação com os outros
se mostra de importância fundamental e perpassa todo o sofrimento neurótico. Isso nos
autoriza a dizer que não é possível estabelecer um distanciamento entre a constituição
subjetiva e a dimensão do trabalho, pois esta última, como veremos mais adiante, não
só atualiza as diversas fontes de sofrimento para os sujeitos como também, segundo
Freud, apresenta sua dimensão salutar e sublimatória.
Tal como o fez o mestre vienense, mostrando que na sociedade se verificam
fenômenos estruturalmente semelhantes às formações do inconsciente verificados na
clínica, passamos do âmbito da patologia ao da normalidade e, por sua vez, desta última
para a vida social (cf. Coutinho Jorge, 2000). Cabe, agora, verificar se Freud
considerou o trabalho como um dos aspectos da vida em que toda essa concepção
psicanalítica do funcionamento psíquico encontra expressão. Ou então, se o mundo do
trabalho pode atualizar os questionamentos freudianos, reproduzindo estas mesmas
estruturas verificadas aqui neste capítulo, pois, deste modo, poderemos atestar se essa
teoria pode ou não dar contribuições acerca da psicopatologia do trabalho. Contudo,
uma outra questão importante deve ser abordada.
71

3.5. A normalidade e traços de caráter

Para prosseguirmos com outro aspecto importante para nosso estudo,


podemos, neste momento, dar uma definição mais precisa daquilo que Freud nos
ensinou com o conceito de sintoma.
Segundo o ponto de vista freudiano, o sintoma é uma forma de manifestação
do mal-estar do sujeito, na sua articulação com o outro, que envolve sofrimento e traz
prejuízos à sua vida prática, principalmente no que se refere às dimensões do amor e do
trabalho. Em decorrência de uma frustração provocada pela ausência do objeto de
satisfação, o sintoma neurótico é produzido como fruto de um conflito psíquico entre o
ego e o id, quando o primeiro tomou partido das exigências da realidade em detrimento
de uma satisfação pulsional direta proveniente do segundo. Essa frustração é sentida
como um golpe narcísico que parte do ego tenta corrigir através da construção
sintomática. Os elementos que permitem a construção do sintoma, através do
mecanismo da identificação, são extraídos da relação do sujeito com a cultura. Assim,
através de um processo de distorção e de manutenção do laço social, o sintoma aparece
como uma satisfação pulsional substituta, que tenta fazer suplência à satisfação que
permanecera em estado jacente, restaurando assim um certo equilíbrio narcísico. Deste
modo, podemos entendê-lo também como retorno do material recalcado e, portanto,
como representante de uma falha do recalque.
Como vimos, as condições necessárias para a construção de um sintoma são
relativas às experiências de vida do sujeito e às suas fantasias decorrente das
experiências infantis. Contrariamente às abordagens estudadas no capítulo anterior, que
versam sobre saúde mental do trabalhador, não é a realidade concreta que importa para
o ponto de vista psicanalítico. Enquanto as primeiras tomam partido de uma
intervenção direta na realidade material exterior ao sujeito, recorrendo a outras
ciências para sustentar suas ambições científicas e sua eficácia, para a psicanálise a
realidade psíquica que é levada em consideração como fator preponderante na
causalidade do sintoma.
Propomos uma pergunta, de certo modo, ingênua, cuja resposta acreditamos já
ter sido fornecida durante este capítulo, que pode servir como instrumento para
sustentar o ponto de vista freudiano e nos dar o mote para prosseguirmos com mais um
72

aprofundamento: numa certa realidade específica, em que todos estão submetidos às


mesmas exigências de trabalho e exploração, porque apenas alguns adoecem e outros
não? Grande parte da resposta, acreditamos já havê-la enunciado indiretamente quando
falamos sobre determinações dos sintomas, pois o fator desencadeante de uma neurose
só tem efeito se estiver relacionado com a economia libidinal do sujeito e com as
identificações que o constituem. Portanto, vale insistir que, do ponto de vista
psicanalítico, o fator etiológico dos sintomas é psíquico e sexual. Esta afirmação
permite ao psicanalista, durante seu trabalho clínico, prescindir da preocupação com
modificações no mundo objetivo de seus pacientes. Esse fato não desconsidera, em
absoluto, a importância das condições as quais o sujeito está inserido na realidade, mas
coloca em primeiro plano a posição do sujeito frente a esta realidade.
Seguindo o sentido da instigadora pergunta elaborada no parágrafo anterior,
pela via das investigações no campo da psicopatologia do trabalho, Dejours (1999, p.
17) se questionou porque os trabalhadores não adoeciam, apesar das condições de
trabalho tão deletérias à saúde mental. Este é um ponto fundamental para nossa
discussão, pois toca nas críticas feitas à psicanálise — que já se tornaram senso comum
— quanto a uma visão doentia do ser humano, restringindo a teoria freudiana apenas
aos eventos patológicos.
Embora, compreendamos que já respondemos a esta crítica ao apontar o
desenvolvimento da psicanálise quanto aos eventos da vida cotidiana e social, resta-nos
indagar ainda de que maneira podemos compreender a possibilidade de um sujeito não
cair enfermo. Indagação que foi alvo de uma preocupação explícita de Freud (1924
[1923]) no final do texto intitulado Neurose e psicose.
Vimos que o sintoma neurótico representa também a falha do ego em manter
afastada da consciência as exigências pulsionais provenientes do id. O sintoma prova
que o recalque falhou nos seus propósitos. Desta maneira, se pudéssemos imaginar
hipoteticamente um estado de saúde perfeito, teríamos uma situação em que ou o
recalque obteria sucesso absoluto sobre as moções pulsionais existentes no aparelho
psíquico, ou haveria uma sublimação absoluta de todos esses impulsos. Sabemos que
uma situação como esta só podemos concebê-la imaginariamente. Contudo, isso não
significa que em alguns casos o ego não possa obter sucesso sobre conflitos existentes
na vida anímica. Quanto a esta possibilidade, o pai da psicanálise mostrou-se curioso:
73

“Seria desejável saber em que circunstâncias e por que meios o ego pode ter êxito e
emergir de tais conflitos, que certamente estão sempre presentes, sem cair enfermo”.
(Freud, 1924 [1923], p. 193).
Segundo o autor, esta indagação aponta para um novo campo de pesquisa onde
muitos fatores podem ser examinados. Ademais, Freud acentua que estas circunstâncias
estão relacionadas fundamentalmente com as considerações econômicas relativas às
magnitudes das forças envolvidas nos conflitos e a uma divisão que ocorre na unidade
do ego, na tentativa de evitar uma ruptura das suas relações com as exigências do
mundo externo (ruptura característica da psicose) ou com as exigências do id (conflito
característico da neurose).
O que podemos destacar desta reflexão é que a questão da normalidade, para
Freud, está ligada a fatores econômicos e, por outro lado, permite-se ao ego um certo
limite de fuga quanto ao que se poderia ser concebido moralmente como
comportamento normal. Em outras palavras, a linha divisória entre a normalidade e a
anormalidade psíquica se apresenta de forma muito tênue de modo que ao ego é
permitido uma certa fuga da realidade que estaria relacionada às quantidades de libido
envolvidas nesse processo.
Em A perda da realidade na neurose e na psicose (1924b), ao proceder uma
diferenciação entre esses dois quadro clínicos, Freud afirma que a normalidade
combina reações características tanto de uma neurose quanto de uma psicose:

... se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se
esforça (sic), como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa
realidade. Naturalmente, esse comportamento conveniente e normal conduz à
realidade do trabalho no mundo externo; ele não se detém como na psicose,
em efetuar mudanças internas. Ele não é autoplástico, mas aloplástico. (Id.,
ibid., p. 231-232, grifo do autor).

Da mesma forma que verificamos a preocupação de Freud em se posicionar


acerca dessa discussão, também podemos localizar pontos em que o criador da
psicanálise concebe possibilidades alternativas ao fracasso do recalque. Duas se
destacam: a formação de traços de caráter e a sublimação. No que se refere a esta
última, que é conhecida como um dos destinos da pulsão, abordaremos no capítulo
seguinte devido à aproximação que o mestre vienense faz deste conceito com as
atividade laborativas.
74

Longe de constituir uma teoria da personalidade, a opinião freudiana acerca


dos traços de caráter indica antes sua função no desencadeamento da neurose por meio
da história das identificações do sujeito com os objetos abandonados, que permitiram a
formação do ego e, segundo Dunker (2002, p. 162), “se mostra útil para aprofundar a
investigação clínica sobre certos aspectos específicos da neurose”. Isto pode ser
verificado pelo fato mesmo de Freud abordar esse tema, na maior parte das vezes,
considerando aspectos fundamentais relativos às neuroses, inclusive as resistências
encontradas no tratamento. (Cf. Freud, 1908a; 1913a; 1916; 1931).
Um dos fatores distintivos entre a neurose e os traços de caráter é que nestes
últimos o fracasso do recalque e o retorno do recalcado acham-se ausentes (Freud,
1913a, p. 406). Na primeira, o ego percebe a falha ocorrida no processo de recalque e
luta contra o sintoma como se este ameaçasse a sua integridade, fato que implica em
conflito psíquico. Grosso modo, num sintoma neurótico, além de manifestar apego ao
sintoma, o ego luta contra esta formação respondendo com sinais de angústia. Embora
tanto nos traços de caráter quanto nos sintomas haja regressão da libido às catexias
objetais abandonadas, esta distinção justifica a diferença das manifestações clínicas.
Segundo Dunker (2002, p. 161): “... o ponto central dos sintomas de caráter é
sua assimilação ao eu, em particular a forma de identificação que o permite apreender-
se separado, independente e livre em relação à realidade com a qual se debate”. Essa
conformação do ego a esses traços leva o sujeito a não se queixar de seus sintomas e
admiti-los como seu “jeito de ser”, alienando-se nesse modo de significação e
mantendo-se dentro dos limites daquilo que se poderia chamar de normalidade, pois
esses traços não envolvem a mobilização de grandes parcelas da libido. Desta forma, o
sujeito não se considera doente, justifica satisfatoriamente seu mal-estar e não articula
nenhum pedido de mudança. (Id., Ibid., p. 160).
Sendo os traços de caráter formações narcísicas egossintônicas que promovem
uma certa estabilidade da libido, através do investimento nas reminiscências dos
objetos abandonados pelo ego, a ruptura das identificações envolvidas nessas
produções psíquicas promoveria, segundo Dunker (ibid., p. 169), a condição econômica
necessária para a transformação desses traços em sintomas, visto que, desta maneira,
haveria uma redistribuição da libido para novas manifestações do inconsciente.
75

No que se refere então à realidade laborativa, a noção de traços de caráter ou


neurose de caráter se mostra de muita utilidade para pensarmos sobre o adoecimento
psíquico ou não dos trabalhadores. Esta dita sanidade está fundamentada, portanto, nos
elementos estruturais e econômicos que permitem à libido uma certa estabilidade das
identificações promovidas no ego. Na verdade, mesmo que mudanças materiais
relativas às atividades laborativas possam ocorrer e estar concomitantes à produção de
sintomas, isso não implica que seja na realidade exterior que devemos procurar as
condições do adoecimento psíquico. Essas mudanças exteriores ocorridas no trabalho,
como quaisquer outras mudanças na realidade concreta dos indivíduos, só terão efeito
desencadeante de sintomas se alterarem a dinâmica libidinal do sujeito, mantendo
relação com sua história e seus objetos de amor abandonados durante sua vida,
principalmente na infância. Todavia, é no trabalho que os sujeitos encontram um palco
privilegiado que coloca em cena suas escolhas, seus investimentos libidinais e suas
significações.

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