Folha de S.

Paulo, 27/11//2012

O pensar como doena

por VLADIMIR SAFATLE

"O estado de reflexo contra a natureza. O homem que medita um animal depravado." Tais afirmaes de Rousseau parecem servir de guia involuntrio para setores hegemnicos da clnica do sofrimento psquico. H anos, a filsofa francesa Jolle Proust foi capaz de afirmar que o sofrimento psquico no teria relaes com a forma com que o paciente reflete sobre seus sintomas a partir de suas prprias convices e motivaes. Com isso, ela apenas dava forma a um princpio que parece guiar dimenses maiores da psiquiatria contempornea. Ou seja, tudo se passa como se no houvesse relaes entre a maneira com que sofremos e a maneira com que pensa-mos e procuramos justificar nossas vidas a partir de valores e normas. Essa uma boa maneira de evitar o trabalho mais doloroso exigido pelo tratamento de modalidades de sofrimento psquico, a saber, a crtica dos valores, normas e formas de pensar que constituem, tacitamente, nosso horizonte de uma vida bem-sucedida. A fim de evitar tal trabalho crtico, que certamente o que h de mais difcil, parece que nos tranquilizamos com ideias como as da professora Proust. Elas acabam por servir para fortalecer a crena de que s haveria cura l onde abandonssemos o esforo de pensar sobre ns mesmos. No fundo, talvez porque ainda estejamos presos a resqucios deste antigo paralelismo que associava, por exemplo, a melancolia ao ato de "pensar demais". Dcadas atrs, Franois Truffaut fez um belo filme sobre uma sociedade no fu-turo onde a polcia queimava livros porque eles trariam infelicidade. Melhor seria garantir a felicidade social por meio de uma poltica de uso exaustivo de medicamentos. Tal filme foi a metfora perfeita para um fenmeno que o socilogo Alain Ehrenberg chamou, dcadas depois, de "uso cosmtico" de antidepressivos e afins. Por "uso cosmtico" entendamos o uso de larga continuidade que acaba por visar conservar performan-ces sociais bem avaliadas, evitando ao mximo a experincia com transtornos de humor. Ele o resultado inevitvel do modelo de medicao que impera atualmente. Trata-se de uma distoro daquilo que deve-ria ser a regra, a saber, o uso focal ligado exclusivamente a situaes e momentos de crise aguda. Tal uso focal procura apenas garantir as condies de possibilidade para que o verdadeiro tratamento ocorra. Um tratamento que poder mostrar como, se a reflexo que nos adoece, ela tambm que nos cura.