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ABORTO

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Se é verdade que Hipócrates jurou que a nenhuma mulher daria substância


abortiva, Aristóteles sugeria o aborto para manter o equilíbrio populacional. Já os romanos
consideravam o feto uma parte do corpo da mulher, que dele podia dispor, como lhe
aprouvesse. Com o tempo, entretanto, o aborto passou a ser incriminado, também em
Roma, principalmente depois da influência do cristianismo.

Ainda hoje a incriminação do aborto é discutida entre todos os povos, com algumas
sociedades nacionais considerando-o lícito, outras o tipificando, mas justificando sua
prática excepcionalmente.

O Código Penal brasileiro considera o aborto crime, porém admite sua prática lícita
em duas situações, mais adiante analisadas.

4.1 CONCEITO E OBJETIVIDADE JURÍDICA

Aborto é a interrupção da gravidez com a morte do ser humano em formação. A


gravidez, que começa com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, é o processo de
formação do ser humano, que termina com o início do parto. A gravidez pode ser
interrompida antes de chegar a termo naturalmente ou por provocação cirúrgica sem que
ocorra a morte do ser humano em formação – parto cesariano. Quando a gravidez é
interrompida, disso resultando a morte do feto, há aborto ou abortamento.

O aborto pode ser natural, acidental ou provocado por ação humana. O aborto
natural ou espontâneo é aquele ditado pelo próprio organismo da gestante, pelas mais
diversas causas. É a própria natureza atuando no sentido de não permitir a conclusão do
processo gravídico, o que às vezes acontece sem que a gestante o perceba, mormente nas
primeiras semanas.
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Aborto acidental ocorre em razão de uma causa externa, um traumatismo


decorrente de uma queda, a ingestão de uma substância inadequada, mas cujo poder
destrutivo era desconhecido, enfim, por qualquer ação externa não dominada pela vontade
de provocar o aborto.

Aborto provocado é aquele causado por condutas humanas dirigidas à interrupção


da gravidez, com o fim de impedir o desenvolvimento e nascimento do ser humano em
formação. Pode ser crime ou não.

As normas penais que incriminam o aborto, contidas nos arts. 124, 125, 126 e 127
do Código Penal, têm como finalidade proteger a vida humana intra-uterina, uma vez que a
vida extra-uterina é protegida pelas normas dos arts. 121, 122 e 123.

Quando do estudo do homicídio, falou-se acerca de quando começa a vida


independente – a partir do início do parto, que é, obviamente, o termo final da vida endo-
uterina. Assim, é necessária, nesta oportunidade, a determinação do momento em que se
inicia a vida intra-uterina. Ou seja, quando começa a vida humana protegida pelo Direito.

A lei não define quando começa a vida dependente. Cabe à doutrina fazê-lo. São
quatro as principais teorias que procuram explicar o começo da vida.

Uma teoria afirma que a vida começa no momento da fecundação, quando do óvulo
e do espermatozóide se forma o zigoto, que tem potencialidade própria e autonomia
genética.

Para outros é do momento da nidificação ou nidação do ovo ou zigoto na mucosa


uterina, que se completa no décimo-quarto dia após a fecundação, quando se pode
identificar a presença do ser vivo.

Uma terceira teoria afirma que só a partir do momento em que se pode detectar
atividade cerebral, com o surgimento de tecidos nervosos e com eletroencefalograma
positivo, é que há vida protegida constitucionalmente. Isso vai acontecer por volta de duas
ou três semanas após a nidificação.

Por fim, defendem outros que só se pode considerar o ser merecedor da tutela penal
quando ele demonstrar capacidade de viver fora do útero.

Qual teoria é a correta? ALBERTO SILVA FRANCO, citando JUAN RAMON


LACADENA, dá a resposta para tão intrincado problema:

“Apesar do amplo espectro de respostas, tudo parece indicar que a posição mais
Aborto - 3

aderente à realidade biológica é aquela em que se estabelece o conceito de vida


humana no momento exato em que o ser humano se individualiza. E quando isto
ocorre? ‘A individualização de um novo ser requer que se dêem duas propriedades: a
unicidade – qualidade de ser único – e a unidade – realidade positiva que se
distingue de toda outra; quer dizer ser um só’. A unicidade pode ser rompida pelos
gêmeos monozigóticos, que se formam pela divisão de um embrião e a unidade pode
ser contrariada biologicamente pela existência comprovada de quimeras humanas,
isto é, de ‘pessoas que realmente estão constituídas pela fusão de dois zigotos ou
embriões distintos’. ‘Ambas as situações, o gemelismo monozigótico e as quimeras
contradizem a necessária unidade e unicidade – e portanto a herança genética –
que são exigências para poder-se afirmar, sem fissuras, a individualidade do ser
humano. Mas, por assim dizer, por quanto tempo persiste esta incerteza genética? A
resposta parece encontrar-se no fato de que um embrião não pode deixar de ser o
que é a partir do décimo quarto dia da fecundação, quando aparece o primeiro
tecido nervoso com a crista neural e coincidindo com o final da implantação. Daí
resulta ser fundado admitir-se que durante os primeiros catorze dias de
desenvolvimento – fase pré-nidificatória ou pré-implantatória – o embrião não
está individualizado, pois segundo expressão de um biólogo, ‘não sabemos se será
um de dois ou dois de um’. ‘Pode acrescentar-se a isto que os embriões precoces não
adquiriram o que mais define biologicamente a personalidade do ser humano: as
propriedades imunológicas, que adquirirão em fase posterior.’ Destarte, é no
momento da nidificação, que o zigoto ‘estabelece uma relação de comunicação com
outro ser da mesma espécie: sua mãe. Com efeito, é a partir do início da nidificação,
que o organismo da mulher é informado da presença do embrião e, em
conseqüência, reage. É a presença do embrião implantando-se no endométrio que,
por assim dizer, desencadeia a desprogramação do ciclo menstrual e a
programação do ciclo gestacional’.”1

Concordando com essa tese, que dispensa maiores comentários, tal é a sua coerência
e harmonia, tamanha sua consistência lógica, entendo que somente a partir da nidificação
é que já existe o ser humano protegido, ainda no interior do útero materno.

Antes da nidificação, portanto, não há vida humana intra-uterina, porque ainda não

1Aborto por indicação eugênica. Estudos jurídicos em homenagem a Manuel Pedro Pimentel. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1992. p. 86-87.
4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

há um ser individualizado. Isso não significa, entretanto, que o material genético humano
ou suas células germinais sejam considerados uma coisa e fora do alcance da lei penal. O
que se disse é que o pré-embrião não é alcançado pelas figuras típicas de aborto.

É de observar que a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, que estabelece normas para
o uso de técnicas de engenharia genética, define como crime a manipulação genética de
células germinais humanas, bem assim a intervenção em material genético humano in
vivo, exceto para o tratamento de defeitos genéticos.

A interrupção de gravidez desenvolvida fora do útero, ovárica ou tubárica, quando o


óvulo se instala na parede das trompas, onde passa a desenvolver-se, e a da gravidez molar,
com a formação degenerativa do óvulo fecundado, não constitui aborto. A falta de espaço
impede que o feto cresça normalmente e a gravidez é interrompida. Quando o óvulo se
aloja em outros órgãos, como as trompas de Falópio, ovários e até no abdome, a gravidez é
caracterizada como ectópica. A gravidez ectópica é mais rara, representa um para cada 300
casos normais.

Nesses casos, não se trata de ser humano protegido pela norma penal, sendo um
indiferente penal sua destruição que decorre da interrupção desse tipo de gravidez
anormal.

Em conclusão, somente haverá aborto a partir da implantação do zigoto no


endométrio – que se conclui no décimo-quarto dia após a fecundação – e até o início do
parto.

Dessa forma, condutas que visam impedir a nidificação, como a introdução e a


utilização dos conhecidos dispositivos intra-uterinos, DIUs, não podem ser consideradas
condutas típicas de aborto.

Com muito mais razão, comportamentos que impedem a fecundação, como o uso de
pílulas anticoncepcionais ou preservativos e outros mecanismos, também não são típicos.

4.2 SUJEITOS DO CRIME

O Código Penal criou quatro figuras típicas, analisadas no item seguinte. São elas o
auto-aborto e o consentimento para o aborto (art. 124), o aborto sem o consentimento da
gestante (art. 125) e o aborto com o consentimento da gestante (art. 126).

Nas duas primeiras modalidades típicas, o sujeito ativo é a gestante. Somente ela pode
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realizar esses tipos. Nas outras figuras típicas, qualquer pessoa pode praticar o crime. No
aborto consentido, há dois sujeitos ativos, o terceiro que provoca o aborto e a gestante, que
dá seu consentimento.

Sujeito passivo, para uma parte da doutrina, é o ser vivo, seja o óvulo implantado, o
embrião ou o feto, em todos os tipos de aborto, e, no aborto dissentido, também a gestante.
MIRABETTE, em harmonia com a opinião de HELENO FRAGOSO, pensa diferente: “Não
é o feto, porém, titular de bem jurídico ofendido, apesar de ter seus direitos de natureza
civil resguardados. Sujeito passivo é o Estado ou a comunidade nacional. Vítima também
é a mulher quando o aborto é praticado sem o seu consentimento.” 2

Parece-me, também, mais adequada essa opinião. O ser em formação é protegido não
só pela lei civil, mas também pela lei penal, todavia, não tendo personalidade jurídica,
porque ainda não nasceu, não pode ser titular do direito à vida.

4.3 TIPICIDADE

4.3.1 Conduta

A interrupção da gravidez com a morte do ser humano em formação, por força de


conduta humana, pode-se dar através de vários meios, instrumentos ou mecanismos.
Havendo gravidez, pode ser interrompida através de métodos químicos ou mecânicos.

Pelo método químico, a substância pode ser aplicada no próprio colo do útero ou
dentro da cavidade amniótica, ingerida ou injetada. Ministrada por via oral ou parenteral,
a substância pode causar um estado de intoxicação exógena grave, podendo o aborto ser
um de seus efeitos colaterais.

Os métodos mecânicos são mais eficazes. A introdução de corpos estranhos no canal


cervical, tais como sondas, cateteres, laminarias e agulhas de tricô, pode desencadear o
trabalho de parto, perfurar o saco amniótico, conduzindo à expulsão do ser humano em
formação.

Também se utilizam manobras de aspiração e de curetagem com o fim de remover


todo o conteúdo do útero. Quando a gravidez está mais avançada, técnicas mais
sofisticadas podem ser utilizadas, como a histerotomia, conhecida como microcesária.

2 Manual... Op. cit. v. 2, p. 94.


6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A ação pode ser direta sobre o próprio ser em formação ou indireta, atuando sobre o
corpo da gestante, com o fim de causar-lhe traumatismos ou lesões dos quais venha
decorrer a interrupção do processo gravídico.

Também é possível a provocação do aborto por ação psicológica empregada contra a


gestante, infundindo-lhe terror e medo de modo a desencadear um estado psíquico que
interfira no processo gravídico, interrompendo-o.

Qualquer que seja o meio empregado, deve ter eficácia, o que se verá adiante, com
mais profundidade.

4.3.2 Formas típicas simples

4.3.2.1 Auto-aborto

No art. 124 está definido o auto-aborto – provocar aborto em si mesma –


sancionado com detenção de um a três anos. Crime de mão própria, só a gestante pode
cometê-lo.

Poderá cometê-lo pela ingestão de substância abortiva ou mesmo por meio


mecânico.

O terceiro que induzir ou instigar a gestante a provocar o auto-aborto ou ainda


quando colaborar de modo secundário sem interferir na execução do procedimento típico,
sem ter, portanto, poder de decisão, domínio do fato, será partícipe desse crime. Se,
entretanto, contribuir materialmente para sua realização, praticando atos ou tendo poder
de decidir sobre a consumação, responderá como autor do crime descrito no art. 126,
adiante comentado.

4.3.2.2 Consentimento para o aborto

No mesmo art. 124, na segunda parte, está descrito o crime de mera conduta:
consentir que outrem lhe provoque aborto, com a mesma pena de detenção de um a três
anos.

Nesse crime, a gestante simplesmente concorda, anui, autoriza, presta seu


consentimento para que outra pessoa realize, em si, algum método interruptivo da
gravidez, com o fim da morte do ser humano em formação. Essa conduta não é puramente
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omissiva, porque nela a gestante contribui, colabora, facilita as práticas abortivas. Ela não
é partícipe do crime do art. 126, que é o tipo que incide sobre o agente que realiza o
procedimento típico de provocar o aborto. É autora do crime de consentir na realização do
aborto em si mesma.

Claro que a gestante deve ter capacidade de consentir, isto é, se ela é menor de 14
anos ou alienada mental seu consentimento é inválido. Também não terá qualquer valor se
o consenso foi obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, como determina o
parágrafo único do art. 126. Nesse caso, o sujeito que tiver provocado o aborto responderá
pelo crime do art. 125 – aborto sem o consentimento da gestante.

4.3.2.3 Aborto dissentido

A forma típica simples mais grave é a do art. 125: provocar aborto, sem o
consentimento da gestante, com pena de reclusão de três a dez anos. Nela o agente realiza
a intervenção no corpo da gestante, contra ou sem sua vontade, provocando a interrupção
da gravidez e matando o ser humano em formação.

Poderá agir com violência física ou grave ameaça, contrariando assim a vontade da
gestante, que é a de não se submeter ao aborto.

Pode também o agente agir mediante simulação ou fraude. Quando a gestante não
tem conhecimento da gravidez ou de que está sendo submetida a um processo de sua
interrupção, não terá havido consentimento, logo o aborto é sem seu consentimento.

O agente pode induzir a mulher a submeter-se a uma curetagem, sem que ela saiba da
gravidez ou desconhecendo que tal intervenção constitui prática abortiva. Num e noutro
caso, não tendo ela consciência de que está submetendo-se a um aborto, o fato é de aborto
dissentido.

Presume-se o dissenso se a vítima não é maior de 14 anos, é alienada ou débil mental.


De qualquer modo, quando ela for incapaz de consentir e ainda que não tenha havido
violência real, moral ou física, haverá o dissenso. Nesse tipo, a ausência do consentimento
válido da gestante é elemento essencial.

4.3.2.4 Aborto consentido

Ocorre o crime do art. 126 quando o agente obtém o consentimento válido da gestante
e provoca a interrupção da gravidez, matando o ser humano em formação. Os dois
8 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

cometem crime, ela o do art. 124 e ele será punido mais severamente com a pena cominada
no art. 126.

4.3.3 Elemento subjetivo

Indispensável a presença do dolo na conduta do agente de qualquer dos tipos de


aborto. Não há modalidade culposa.

Assim, deve o agente estar consciente da existência da gravidez, fazer a previsão de


que com a conduta poderá interrompê-la, matando o ser humano em formação, e agir com
vontade livre de alcançar esse resultado.

Se não souber da gravidez, não poderá prever o resultado, nem tampouco desejá-lo.
Assim, o agente que desfere golpes contra o abdome de uma mulher cuja gravidez lhe é
desconhecida, causando lesões que provocam aborto, terá agido com outro dolo, o de ferir,
não o de aborto. Responderá por lesão corporal gravíssima, descrita no art. 129, § 2º, c, do
Código Penal, desde que previsível a gravidez e, de conseqüência, o aborto, ainda quando
não previstos.

Se a gravidez é, todavia, visível pelo volume acentuado do abdome e o agente desfere o


violento golpe no ventre da mulher, causando o aborto, é induvidoso que agiu com dolo, se
não direto, pelo menos eventual, de provocar o abortamento.

Perfeitamente admissível, portanto, a presença de dolo eventual, quando o agente,


sabendo da gravidez e prevendo sua interrupção, ainda assim age, realizando a conduta,
sem querer o resultado, mas nele consentindo, se acontecer.

Abortos provocados por negligência, imprudência ou imperícia são fatos atípicos,


porque o legislador não construiu, para qualquer de suas modalidades, o correspondente
tipo culposo. Se a gestante, por imprudência, ingere substância abortiva ou realiza
atividade física incompatível com o estado gravídico, disso resultando a morte do ser
humano em formação, o fato será absolutamente atípico. Se o sujeito, culposamente,
produz lesões corporais na gestante, dando causa ao aborto, seu crime será puramente o de
lesão corporal culposa.

4.3.4 Resultado e nexo causal


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Entre a conduta do agente e a interrupção da gravidez com a morte do feto deve


haver nexo de causalidade, sem o qual não se pode falar em qualquer das figuras típicas de
aborto.

Se o agente, a própria gestante ou o terceiro, realizar práticas abortivas, mas a


interrupção da gravidez e a morte do feto tiverem decorrido de outra causa, preexistente,
concomitante ou superveniente, absolutamente independente da conduta, o resultado não
poderá lhe ser imputado.

Até porque é sempre bom lembrar que há abortos espontâneos, naturais. Daí que é
indispensável a prova pericial de que a interrupção da gravidez e a morte do feto tenham,
efetivamente, sido causadas pela conduta do agente.

Causas supervenientes relativamente independentes que, por si sós, tiverem dado


causa ao aborto também excluirão a imputação do resultado, conforme determina o § 1º do
art. 13 do Código Penal.

Realizada a conduta que desencadeia o procedimento típico do aborto, e até mesmo


quando concluída sua execução completa, sem que a gravidez, entretanto, tenha se
interrompido, e sendo a gestante levada ao hospital, onde vem a morrer, e com ela o ser
humano em formação, em decorrência das queimaduras provocadas em seu corpo em
virtude de um incêndio que irrompe na enfermaria onde se encontrava, não responderá o
agente senão pela tentativa de aborto.

Também será causa de exclusão da imputação do resultado à conduta do agente a


intervenção médico-cirúrgica a que é submetida a gestante, após a completa execução do
procedimento típico de aborto, com vistas a salvar a vida do feto, mas implementada com
imperícia pelo médico que, longe de impedir o resultado, acaba por causá-lo de modo
diferente do que ocorreria normalmente. O agente responderá por tentativa de aborto.

Se a gestante, com dolo de auto-aborto, ingerir substância capaz de provocá-lo, mas


antes da produção de seu efeito, vem a sofrer violento golpe na região abdominal, deste
resultando o abortamento, responderá apenas por tentativa de aborto, atribuído este
exclusivamente ao agente da violência.

4.3.5 Formas qualificadas pelo resultado

O art. 127 do Código Penal apresenta quatro figuras típicas de aborto provocado
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por terceiro qualificado pelo resultado, se, em conseqüência do aborto ou dos meios
empregados para provocá-lo, resultar:

a) lesão corporal de natureza grave na gestante, no aborto consentido, a pena será


reclusão de um ano e quatro meses a quatro anos e quatro meses;

b) morte da gestante, no aborto consentido, a pena será reclusão de dois a oito anos;

c) lesão corporal grave na gestante, no aborto dissentido, a pena será reclusão de


quatro a treze anos e quatro meses;

d) morte da gestante, no aborto dissentido, a pena será de seis a vinte anos.

Não há forma qualificada pelo resultado derivada do auto-aborto ou do


consentimento para o aborto, crimes próprios da gestante. A uma porque seria impensável
puni-la pelo resultado da própria morte. Quanto à possibilidade de, do auto-aborto ou de
seu consentimento para o aborto, resultar lesão corporal grave, também não terá sua pena
aumentada, porque nosso Direito não pune a autolesão, a não ser quando motivada por um
fim de obtenção de vantagem patrimonial (art. 171, § 2º, V, do CP).

Essas formas típicas qualificadas pelo resultado são, todas, modalidades de crimes
preterdolosos, nos quais o agente age com dolo de provocar o aborto, tão-somente o
aborto, mas, por negligência, imprudência ou imperícia, acaba produzindo resultado mais
grave.

Se resultar lesão corporal grave, a pena será aumentada de um terço. Se acontecer a


morte, a pena será duplicada.

A conduta é dolosa – englobando apenas o aborto como resultado –, mas o


resultado que também acontece – lesão corporal ou morte da gestante – é culposo, indo
além do dolo do agente.

É de todo claro que o resultado mais grave não pode estar alcançado pelo dolo do
agente, nem mesmo eventualmente, pois se tal se der, isto é, se o agente, além do aborto,
previu a lesão grave ou a morte e a desejou, ou a aceitou, então haverá concurso formal de
dois crimes: aborto e lesão corporal de natureza grave, ou aborto e homicídio doloso.

Indispensável, por isso, que tenha havido exclusivamente conduta culposa na


produção do resultado.

Se o agente provoca o aborto na gestante, adotando todas as medidas exigidas pelo


dever geral de cautela para apenas interromper a gravidez e matar o ser humano em
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formação, procurando, por todos os meios, empregar métodos com vistas a evitar infecções
e outros efeitos colaterais e ainda assim, apesar da observância de todos os deveres de
cuidado objetivo, sobrevier morte ou lesão corporal grave, não responderá pelo resultado
mais gravoso. É que não se pode nunca olvidar a norma geral do art. 19 do Código Penal,
segundo a qual pelo resultado que agrava especialmente a pena só responderá o agente
que o houver causado ao menos culposamente.

Imprescindível também o nexo causal, entre o aborto ou os meios empregados para


provocá-lo e o resultado mais grave. Se este tiver decorrido de outra causa, ainda que
superveniente e relativamente independente da conduta do agente, não poderá ser
atribuído ao agente do aborto que, então, responderá pela forma típica simples.

O resultado mais grave deve decorrer necessariamente do próprio aborto, ou dos


meios empregados para sua provocação. O próprio aborto, em si, qualquer que seja sua
forma de execução, é um processo violento que acaba por provocar lesões em órgãos do
corpo da mulher. Muitas vezes, tais lesões são graves e só nessas hipóteses incidirá o
aumento de pena. Lesões normais, próprias da intervenção abortiva, integram os tipos
simples.

Meios mais traumáticos ou inadequadamente utilizados igualmente podem


produzir lesões extraordinárias, e até desencadear um processo que conduz à morte da
gestante.

4.3.6 Consumação e tentativa

Crime material, consuma-se o aborto com a morte do ser humano em formação.


Possível, pois, a tentativa, seja pela interrupção do processo executório, seja pela não-
ocorrência do resultado. Deve haver, necessariamente, início de execução. A mulher que se
encontra na clínica onde pretende submeter-se ao aborto que nem chega a ser iniciado,
pela intervenção da polícia, não comete crime algum ainda que esteja ali com consciência e
vontade de buscar a contribuição de outro para nela provocar o aborto. Sem início de
execução, não há tentativa.

Realizado o processo de execução, interrompida a gravidez, nascendo vivo,


entretanto, seu produto, haverá tentativa de aborto. Se o agente, então, mata o recém-
nascido, haverá homicídio ou infanticídio, se a própria mãe sob influência do estado
puerperal, durante ou logo após o parto, em concurso material com a tentativa de aborto.
12 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Ainda que a gravidez não se interrompa, ou, quando interrompida, mesmo assim o
ser nasce com vida, mas dos meios empregados para a provocação do aborto resultar lesão
corporal grave ou a morte da gestante, haverá tentativa de aborto qualificado pelo
resultado.

Admissíveis a desistência voluntária e o arrependimento eficaz quando, iniciada a


execução, o agente desiste de nela prosseguir, não se consumando o abortamento, ou,
concluído o processo executório, ele consegue impedir o resultado. Responderá apenas
pelas lesões corporais causadas na gestante.

Se o ser humano em formação também vier a ser lesionado, permanecendo vivo,


haverá concurso formal de dois crimes de lesões corporais, um contra a gestante e outro
contra o feto?

Se se considerar que o feto é o outrem de que trata o art. 129, do Código Penal, a
resposta deve ser positiva. Esse tema será abordado com profundidade quando da
abordagem do crime de lesões corporais.

Se a tentativa de aborto realizar-se com a utilização de meios absolutamente


ineficazes – por exemplo, ingestão de substância inócua – ou sobre gravidez inexistente,
apenas imaginada, será impunível, pois evidente que se trata de crime impossível.

4.3.7 Concurso de pessoas

Quando se tratar de aborto com o consentimento da gestante, o executor é autor do


crime do art. 126 e a gestante autora do crime do art. 124. Terceira pessoa que contribuir
materialmente para a execução será co-autor juntamente com o executor. Se apenas
induzi-lo, instigá-lo ou prestar colaboração não decisiva, será partícipe.

Se a terceira pessoa induzir, instigar ou colaborar, sem poder de decisão, para o


consentimento da gestante, será partícipe do crime desta.

Aquele que contrata os serviços do executor do aborto consentido ou conduz a


mulher ao local do crime é co-autor do crime do art. 126 e não simples partícipe, porque
teve o poder de decisão.

Em relação ao aborto sem o consentimento, valem as mesmas observações gerais já


externadas sobre o concurso de pessoas. Se o concorrente tem o poder de decisão, é co-
autor, se apenas contribui, sem poder decisório, é partícipe.
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4.4 ILICITUDE

O Código Penal, no art. 128, consagra apenas duas causas excludentes de ilicitude
que podem incidir sobre o tipo de aborto, o aborto necessário ou terapêutico e o aborto
ético ou sentimental.

4.4.1 Aborto necessário

Todos os bens colocados sob a proteção do Direito são valorados. A vida é o mais
importante de todos. Há, porém, duas espécies de vida humana, a endo-uterina e a extra-
uterina. A vida dependente, do ser em formação, e a vida do que já nasceu. Não podem ter,
para o Direito, igual valor, porque, em sua essência, são diferentes. Qual vale mais?

Há quem entenda que a vida do ser em formação deve merecer maior proteção,
exatamente porque, sendo dependente, não tem autonomia e força suficientes para
enfrentar e resistir a ataques. Frágil e dependente, deveria o Estado conferir-lhe tutela
mais efetiva. Estando ainda em seu início, com maior expectativa de existência, deveria
merecer mais atenção, porque assim poderia ter assegurada sua continuidade e
proporcionar, à sociedade, ao longo do tempo, maiores benefícios.

Outros pensam de modo diverso. O ser que ainda não nasceu, exatamente por isso,
ainda não adquiriu as condições indispensáveis à sobrevivência fora do útero materno e, só
por isso, é, ainda, uma tão só expectativa de existência. Pode nem nascer, por força de
causas puramente naturais. Não estando apto a viver no mundo externo, por não se ter
completado o ciclo gestacional natural, carece ainda da condição de ser humano e, de
conseqüência, pode significar apenas uma possibilidade, não uma realidade concreta. E
como tal deve ser tratado.

O Código Penal brasileiro, dando efetividade à proteção constitucional do direito à


vida, sancionou a morte do ser humano em formação com penas menos severas que as
cominadas para a morte do ser humano que já nasceu. O crime de aborto menos grave –
auto-aborto – tem pena menor do que o infanticídio. Optou, assim, o legislador penal por
considerar a vida extra-uterina mais importante que a vida intra-uterina.

Na realidade dura da vida, às vezes, instala-se uma situação concreta de choque


entre a vida da gestante e a vida do ser em formação. Por mais avançada que esteja a
medicina moderna, por mais evoluídas que estejam as técnicas de proteção à saúde, ainda
assim pode acontecer de, no curso da gravidez, entrar a vida da gestante em rota de colisão
14 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

com a vida do ser humano em formação, de tal modo que pode ser impossível salvar as
duas. Nesse caso, justifica-se o sacrifício do bem de menor valor.

Nesse novo milênio, ainda há vozes que se levantam contra o aborto necessário,
mormente de dirigentes da Igreja Católica, a quem se deve responder com as palavras
lúcidas de NELSON HUNGRIA, que já no século passado pontificava:

“Direito penal nada tem a ver com religião, a não ser para garantir a liberdade de
cultos. Que o obstetra, se católico, faça chegar ao feto, como aconselhava
MARCHAND, gotas de água benta e o batize, vá; mas terá faltado ao seu mais
elementar dever se, podendo poupar a vida preciosa de uma mãe de família, com o
sacrifício de um ser ainda não totalmente formado, deixar que ambos pereçam.”3

A ética do Direito é a de proteger bens jurídicos de lesões. Não sendo possível


proteger dois bens em perigo, um deles deve ser salvo com o sacrifício de outro, de menor
valor.

Nos tempos de hoje, com o progresso médico-científico, a hipótese é cada vez menor,
todavia, nesse país gigante também de miséria, não só nos grotões do Nordeste, mas nas
periferias dos grandes centros urbanos, não é rara a ocorrência de situações dessa
natureza, cabendo ao médico, com as condições que tiver a sua disposição, avaliar o
quadro da situação e decidir, ele, sobre a prática do aborto.

O Direito entrega ao médico o poder de decidir se a continuidade da gravidez


constitui perigo para a vida da gestante. Não pode escolher a quem salvar, pois a lei, nesse
caso, só justifica a morte do ser em formação. Claro que ele só deverá provocar o aborto “se
não há outro meio de salvar a vida da gestante”. Também ao médico cabe a decisão sobre
a inevitabilidade do aborto. A situação de perigo para a vida da gestante não precisa ser
atual, mas pode ser iminente e até mesmo futura, desde que, neste último caso, possa
concluir, com segurança e certeza, pela impossibilidade de sua reversão. É que o Direito
não pode exigir que se aguarde o perigo futuro, cuja probabilidade seja indiscutível, tornar-
se iminente ou atual, para, só então, autorizar a prática do aborto.

Não é necessário que o médico obtenha autorização judicial para interromper a


gravidez, porque não há norma legal nesse sentido. Se numa situação de perigo atual ou
iminente seria impossível e imprudente a busca da prestação jurisdicional, também na

3 Comentários... Op. cit. v. 5, p. 300.


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hipótese de um perigo futuro tal providência não se faz necessária, porque nenhum juiz
pode conceder o que o ordenamento jurídico não lhe faculta dar. Nesses casos, o médico é
o único juiz, não exigindo a norma a obtenção do consentimento da gestante ou de
qualquer outra pessoa.

Se, entretanto, o médico provocar o aborto sem que existisse o pressuposto fático da
causa de justificação, o perigo para a vida da gestante, ou, mesmo existindo o perigo, não
fosse inevitável o sacrifício do ser em formação, não incidirá a excludente de ilicitude.
Inexistindo perigo ou não sendo o aborto o único meio para salvar a vida da gestante, o
fato é ilícito.

Se o médico tiver agido com dolo, ainda que eventual, responderá pelo aborto sem o
consentimento da gestante, ainda quando esta tenha, por engano, anuído à interrupção da
gravidez, porque nesse caso seu consentimento terá sido obtido mediante fraude, engodo.

A lei só justifica o aborto necessário quando praticado por médico. Não sendo médico
o agente, mas estando presentes a situação de perigo para a vida da gestante e a
inevitabilidade da interrupção da gravidez, qualquer pessoa poderá provocar o aborto,
sendo sua conduta justificada pela norma do art. 23, I, do Código Penal: estado de
necessidade, desde que presentes os demais pressupostos desta excludente de ilicitude.

Nesse caso, o perigo deve ser atual. Diferentemente da excludente do art. 128, I, que
não exige a atualidade do perigo, o estado de necessidade a exige, porque, não sendo o
agente um médico, capaz de bem diagnosticar com precisão científica os riscos para a vida
da gestante, deverá, antes da atualização do perigo, aguardar ou procurar o socorro do
especialista. Somente na hipótese de não ter sido possível obter o socorro médico e depois
que o perigo tornar-se atual, poderá o não-médico intervir, sacrificando a vida do ser
humano em formação. Aí estará amparado pela justificante do inciso I do art. 23 do Código
Penal.

Situações extremas como essas são daquelas que convivem, dadas suas
circunstâncias, com falsa percepção da realidade, o erro, podendo ensejar uma excludente
de culpabilidade, que será analisada adiante.

4.4.2 Aborto ético

No inciso II do art. 128 o Código Penal justifica a prática de aborto quando a


gravidez decorrer de estupro, desde que haja prévio consentimento da gestante ou, sendo
16 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

ela incapaz de consentir, de seu representante legal. É o chamado aborto ético ou


sentimental.

O aborto ético tem fundamento diverso do aborto necessário.

Vítima de estupro – conjunção carnal obtida mediante violência ou grave ameaça –,


a mulher pode engravidar e ver-se diante de um dilema crucial: gerar em seu útero e
permitir o nascimento, assumindo, para o resto de sua vida, um dever moral e legal de
mãe, de um ser formado contra sua vontade, ou livrar-se de um ser inocente?

A mulher é livre. O ser humano é. Livre para ter relações sexuais com quem quer
que seja. Livre para não ter com determinada pessoa e para não ter senão quando o
desejar. Ainda que com o próprio marido ou companheiro. A mulher não é mero objeto do
desejo. É senhora de si e não poderá ser compelida à conjunção carnal. Em hipótese
alguma. Tanto que é crime o constrangimento ao ato sexual (art. 213, CP).

O estupro é uma violência inominável. Se dele resulta gravidez, não pode o Direito
obrigá-la a gerar e, depois, ser mãe de quem não queria.

A violência seria inominável e se perpetuaria, repetindo-se, no tempo. Uma vez no


ato sexual. Depois quando a mulher se descobre grávida. Durante toda a gestação estará
sendo submetida àquilo que não desejou. E depois ainda estaria obrigada a receber o filho
que não queria, pelo menos da forma como ele aconteceu. E ainda ter que ser mãe, por
todo o tempo de sua vida, de um filho que lhe foi imposto. Não, o Direito jamais poderia
exigir isso de uma mulher.

A vida decorre das vontades livres de um homem e de uma mulher. A liberdade é


a mais perfeita manifestação da vida. É poder escolher entre fazer ou não fazer.

Entre a vida que nasce de violação à liberdade e a liberdade de não gerar outra vida,
esta prevalece. O direito de liberdade da mulher violentada é mais importante que o direito
da sociedade de ver nascer mais um indivíduo.

Quando a vida é fruto de violação da liberdade, não é vida digna da proteção social. Só
a mãe que carrega em seu corpo a vida que não desejou poderá, por ato de plena liberdade,
permitir sua continuidade, atribuindo-lhe o que ela não teve em sua origem. Aí a vida
passará a ser da vontade de dois.

Por isso é lícito provocar o aborto quando a gravidez decorre de um estupro, desde
que assim seja a vontade da gestante.
Aborto - 17

Essa excludente de ilicitude vai incidir quando a gravidez for decorrência de estupro e
quando houver o consentimento da gestante. Não sendo esta capaz de consentir, por não
ser maior de 14 anos ou por outra causa, o consentimento deverá ser obtido de seu
representante legal, o pai, mãe ou outra pessoa. A lei exige que esse aborto lícito seja
praticado por médico. Não sendo médico, o aborto será ilícito, todavia, como se verá
adiante, a conduta poderá ser desculpada.

Será lícito o aborto ainda quando a gravidez tenha resultado de estupro com violência
presumida, por ser a vítima não maior de 14 anos, alienada ou débil mental ou não ter
capacidade de resistir. A norma do inciso II do art. 128 referiu-se ao delito de estupro, sem
excluir a hipótese de sua tipicidade ser verificada a partir da incidência da norma do art.
224 do Código Penal. Não tendo a norma permissiva restringido sua incidência, não pode o
intérprete fazê-lo. Assim, sua vontade é a de permitir o aborto em qualquer hipótese de
gravidez resultante de estupro, em qualquer de suas modalidades, com violência real ou
sem violência real.

A gravidez pode resultar de outra ação criminosa violenta, como na hipótese de


atentado violento ao pudor (art. 214, CP), em que, embora não havendo conjunção carnal,
pode, em tese, ocorrer fecundação e gravidez. Nesse caso, será lícito o aborto?

Doutrina tradicional e jurisprudência respondem afirmativamente. Sendo a gravidez


originada de ação violenta, moral ou fisicamente, equivalente à conduta do estupro, não há
razão para não se aplicar a analogia in bonnam partem. Não é comum que uma mulher
engravide sem conjunção carnal, mas é possível que a gravidez decorra de atos libidinosos
outros, a partir dos quais haja a fecundação. Situação rara, mas ocorrente.

Se a vontade da norma é permitir o aborto quando a gravidez resulta de uma ação


criminosa violenta, é indiferente que tenha havido ou não a conjunção carnal. O que
importa é o ato violento do homem contra a mulher, impondo-lhe uma gravidez
indesejada.

Correto o pensamento doutrinário e jurisprudencial.

Todavia, pergunto, e se a gravidez resulta de outra ação criminosa, não violenta, como
a posse sexual mediante fraude (art. 215, CP)? Ou quando a mulher é engravidada, contra
sua vontade, por violência ou tão-somente fraude, mediante a aplicação de técnicas de
reprodução assistida?

Poderá o juiz, também nessas hipóteses, aplicar a analogia, para considerar lícito o
18 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

aborto provocado pelo médico?

Usar a analogia é aplicar, a um caso concreto para o qual não haja norma legal
incidível, a lei aplicável ao caso análogo. A essência do aborto ético, permitido, é ter sido a
gravidez proveniente de um estupro. Este é um crime, não necessariamente cometido com
violência real, até porque pode ser, inclusive, presumida. De conseqüência, é lícito o aborto
quando a gravidez decorreu de uma violação à liberdade sexual da mulher, seja porque
com o uso de violência ou grave ameaça, seja porque sem o consentimento válido da
mulher.

A norma permissiva, portanto, admite o aborto quando a gravidez decorreu de uma


relação sexual não consentida ou com consentimento inválido.

Quando a gravidez resulta de posse sexual mediante fraude, a relação sexual é obtida
sem consentimento plenamente livre. A mulher é levada a erro e por isso consente. Não é,
portanto, de sua livre vontade a conjunção carnal.

Na sedução, ainda que a conjunção carnal se realize por vontade da mulher, não se
pode negar que sua vontade foi dirigida, manipulada, controlada, dominada pelo agente
que, com esperteza, convenceu-a a aceitar o ato sexual. Ainda que voluntária, sua
aquiescência não foi plenamente livre, porque viciada pela influência astuciosa do sedutor.

Nas duas situações, não se pode reconhecer a vontade livre de ter a conjunção carnal,
muito menos a de engravidar.

O mesmo se diga quando a mulher é enganada e levada a engravidar por meio de uma
das várias técnicas de reprodução assistida. Imaginando estar sendo submetida a
tratamento ginecológico ou a uma simples colheita de material para exame laboratorial,
pode a mulher receber, no útero, o sêmen de um homem ou até mesmo um óvulo
fecundado. Se de um desses procedimentos decorrer gravidez é de todo óbvio que não era
de sua vontade livre.

Em qualquer dessas hipóteses – posse sexual mediante fraude ou utilização de


técnicas de reprodução assistida não consentida–, a gravidez não decorre da vontade livre
da mulher. Em todas elas, uma ação externa atua sobre sua psique, influenciando sua
decisão que, por fim, acaba viciada. Em nenhuma dessas situações é possível afirmar que a
gravidez era desejada, que a mulher tivesse a vontade livre de ser mãe. E quando isso
ocorre, não pode o Direito exigir-lhe aceitar a maternidade.

A analogia, portanto, deve ser aplicada.


Aborto - 19

Penso que sempre que a gravidez resultar de uma ação delituosa, de um crime,
qualquer que seja sua natureza, ainda quando sem violência real, deve o aborto ser
permitido.

4.4.3 Anteprojeto de Código Penal

A realidade social reclama atitudes mais ousadas do legislador. Para que haja maior
proteção aos direitos individuais da mulher, não bastam as duas excludentes examinadas,
nem tampouco seu alargamento pelo uso da analogia ou da interpretação extensiva. O
aborto é uma das mais importantes causas da mortalidade materna. Milhares e milhares
de mulheres brasileiras morrem, anualmente, em decorrência de abortos praticados em
ambientes inadequados ou com o uso de técnicas ultrapassadas e por pessoas
despreparadas.

Por outro lado, o avanço da tecnologia médica tem proporcionado o conhecimento


prévio, de má formação fetal, algumas indicando sua própria inviabilidade ou o
comprometimento da saúde da gestante.

Pensa-se, assim, a criação de outras excludentes de ilicitude para o aborto


provocado por médico. No anteprojeto de 1997/1999 do Código Penal, propôs-se a
ampliação dos conceitos de aborto ético e do aborto necessário, e a inclusão de uma nova
excludente de ilicitude, que poderia ser denominada aborto por indicação embriopática
ou fetopática. É a seguinte a proposta do novo dispositivo contendo todas as excludentes,
as atuais ampliadas e a nova:

“Não constitui crime o aborto provocado por médico, se I – não há outro meio de
salvar a vida ou preservar de grave e irreversível dano a saúde da gestante; II – a
gravidez resulta da prática de crime contra a liberdade sexual; III – há fundada
probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e
irreversíveis anomalias que o tornem inviável. § 1º Nos casos dos incisos II e III e
da segunda parte do inciso I, o aborto deve ser precedido de consentimento da
gestante ou, se menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu
representante legal, do cônjuge ou companheiro.”

O aborto necessário seria permitido não só para salvar a vida da gestante, mas
também para preservar sua saúde de um dano grave e irreversível. Comprovada, pelo
médico, a probabilidade concreta de que a continuidade da gravidez acarretará um dano
20 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

grave e irreversível para a saúde da gestante, e não sendo possível evitá-lo, o aborto seria
lícito. Não será qualquer dano ou comprometimento da saúde da mulher, mas uma lesão
grave e irreversível, aí incluída, penso eu, a extirpação de qualquer dos órgãos de seu
aparelho reprodutor. A fórmula é genérica e depende de interpretação com o socorro ao
conhecimento médico-científico. Esse aborto, para preservar a saúde da gestante,
dependeria de seu consentimento ou de quem a represente.

A fórmula do aborto ético seria ampliada para alcançar não só o estupro, mas
também todos os crimes contra a liberdade sexual da mulher.

A inovação seria a permissão do aborto quando houver fundada probabilidade,


devidamente atestada, comprovada, por dois outros médicos, de que o ser em formação é
portador de graves e irreversíveis anomalias, que o tornem inviável. Exigiria o
consentimento da gestante ou de seu representante.

Necessário esclarecer que não se trata de buscar a formação de seres perfeitos, de


uma raça superior, mas tão-somente de facultar à mãe impedir o nascimento de um ser
malformado, que não terá vida digna e, em certos casos, nenhuma vida, por sua indiscutível
inviabilidade. Exames como a biópsia de corion, a amniocentese e a cordoncentese podem
permitir o diagnóstico de que o feto é portador de grave doença ou má-formação congênita
incurável. Exemplos conhecidos são a acrania e a anencefalia, em que o ser não tem crânio
ou cérebro.

As lesões devem ser graves e incuráveis, não se incluindo, portanto, as graves que
possam ser corrigidas cirurgicamente, nem as não graves incuráveis.

As resistências no meio social ainda são grandes, mas é preciso discutir essas
excludentes sem preconceitos, mas com vistas na busca da proteção dos bens jurídicos.
Impor a uma mulher a continuidade da gravidez da qual resultará um ser condenado à
morte logo após nascer ou a uma vida indigna e de muito sofrimento, sem qualquer
perspectiva de inclusão no meio social, é injusto e desumano. O Direito não pode conviver
com a idéia de autoflagelação ou de purificação espiritual pelo sofrimento.

4.5 CULPABILIDADE

Resta, por último, verificar as hipóteses em que o aborto ilícito pode ser
desculpado.
Aborto - 21

Só haverá reprovação da conduta do agente imputável quando ele tiver realizado o


aborto com potencial consciência da ilicitude e quando podia ter agido de outro modo.

Volte-se ao exame do caso do médico que erra no diagnóstico da situação de perigo


para a vida da gestante. Imagina, por falsa apreciação do quadro clínico, que a
continuidade da gravidez levará à morte da gestante e, por isso, intervém provocando sua
interrupção e matando o ser em formação. Seria um caso de aborto necessário putativo,
imaginário.

Segundo a norma do art. 20, § 1º, do Código Penal, tendo ele suposto, por erro
plenamente justificado pelas circunstâncias, situação de fato que, se existisse, tornaria a
ação legítima, ficará isento de pena. Se o erro, entretanto, tiver derivado de negligência,
imprudência ou imperícia, responderia pelo delito na forma culposa; todavia, não há
aborto culposo, daí que o médico, ainda que negligente, não seria apenado. Essa solução
não é correta, não só porque injusta, mas porque olvida um detalhe importante.

Para que seja reconhecido o aborto necessário, não é suficiente que haja a situação
de perigo para a vida da gestante, é preciso que a interrupção da gravidez seja o único meio
para salvá-la. Ou seja, o aborto tem que ser inevitável. E essa inevitabilidade não é
pressuposto de fato do aborto necessário, mas um elemento normativo da excludente.

Quando o médico erra sobre a situação de fato e provoca o aborto, acaba errando
também sobre a inevitabilidade da interrupção do processo gravídico. E às vezes, mesmo
diante de uma real situação de perigo, pode errar sobre a necessidade do aborto.

A solução, nesses casos, deve ser buscada através da norma do art. 21 do Código
Penal porque, em qualquer das situações, de erro sobre o perigo para a vida da gestante ou
de erro sobre a inevitabilidade do aborto, o médico atua sem a consciência da ilicitude. É,
pois, erro de proibição. Se se demonstrar que o erro era inevitável, sua culpabilidade estará
excluída. Se, entretanto, o erro podia ter sido evitado, por ter decorrido de negligência,
imprudência ou imperícia, haverá culpabilidade, todavia, diminuída.

O não-médico ou a própria gestante pode ter sua culpabilidade excluída ou


diminuída quando provocar aborto imaginando que esteja sob o amparo da excludente do
art. 128, II, por ser a gravidez decorrente de estupro ou outro crime contra a liberdade
sexual. Pode ter atuado sem a consciência da ilicitude por erro de proibição, inevitável ou
evitável.

Se o médico provocar aborto por ter sido induzido a erro sobre a existência de
22 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

estupro antecedente, sendo inevitável o erro, será desculpado; se evitável, terá a


culpabilidade diminuída.

A mãe de seis ou sete filhos menores, desempregada, cujo marido a abandonou ou é


recém-falecido, vivendo em péssimas condições de habitabilidade, em estado de
miserabilidade absoluta, tendo tomado precauções malsucedidas contra o
engravidamento, que se vê assim e abandonada, com a responsabilidade de, sozinha, criar
os filhos famintos, e que, no desespero, recorre ao aborto, deve ser condenada?

Pode o Direito, a sociedade, reprovar sua conduta?

Penso que não. Há situações como essa, não raras, infelizmente, em que não se
pode exigir da mãe de numerosa família de pobres conduta conforme o Direito. O Estado
que não lhe proporciona, nem a seus filhos, moradia, educação, saúde, alimentação,
trabalho, lazer, enfim, que lhe priva das mínimas condições de vida digna, não pode dela
exigir que produza mais um miserável.

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