Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

Sabores Urbanos: Alimentação, sociabilidade e consumo - São Paulo, 1828-1910
Sabores Urbanos: Alimentação, sociabilidade e consumo - São Paulo, 1828-1910
Sabores Urbanos: Alimentação, sociabilidade e consumo - São Paulo, 1828-1910
Ebook314 pages2 hours

Sabores Urbanos: Alimentação, sociabilidade e consumo - São Paulo, 1828-1910

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

O século XIX foi emblemático para a história da alimentação, com as mudanças decorrentes das transformações capitalistas, que incluíram não apenas a revolução tecnológica na preservação dos alimentos, mas também os deslocamentos de produtos, sabores e pessoas nunca antes vistos.

A história da gastronomia pode ser tratada de diferentes maneiras: a forma como se consumiam os alimentos, a história do abastecimento ou de determinados alimentos, como o pão ou o sorvete. Mas, no caso deste estudo, a ideia é combinar a história da alimentação à da urbanização e da economia de São Paulo no século xix. E, ao fazer isso, algumas questões colocam-se em primeiro plano. A mais evidente diz respeito às mudanças da cidade ao longo do século xix. Assim, buscou-se pensar uma história da alimentação que refletisse a economia da cidade, para englobar a economia da vida cotidiana, a economia dos alimentos e de seu consumo e as práticas sociais ligadas a esse consumo.

Para a história da gastronomia, as mudanças operadas pela industrialização dos alimentos foram de tal maneira radical que em seu lastro vieram também as transformações no comportamento e, sobretudo, nos hábitos do cotidiano. Mais pessoas passaram a comer diferentes alimentos, vindos de diversos lugares do globo. O comportamento social transformou-se com a introdução desses alimentos industrializados, como a cerveja ou e gelo. As transformações decorrentes do dinamismo das exportações de açúcar e, principalmente, mais tarde, de café – crescimento da população, ampliação da rede de serviços, estradas, chegada de imigrantes criaram condições para a adoção de novos costumes burgueses e, gradativamente, ajudaram a impulsionar o surgimento de negócios e empresas.
LanguagePortuguês
Release dateJul 26, 2021
ISBN9786559660483
Sabores Urbanos: Alimentação, sociabilidade e consumo - São Paulo, 1828-1910

Read more from Joana Monteleone

Related to Sabores Urbanos

Related ebooks

History For You

View More

Related articles

Reviews for Sabores Urbanos

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    Sabores Urbanos - Joana Monteleone

    fronts

    Conselho Editorial

    Andréa Sirihal Werkema

    Ana Paula Torres Megiani

    Eunice Ostrensky

    Haroldo Ceravolo Sereza

    Joana Monteleone

    Maria Luiza Ferreira de Oliveira

    Ruy Braga

    Alameda Casa Editorial

    Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista

    CEP 01327-000 – São Paulo, SP

    Tel. (11) 3012-2403

    www.alamedaeditorial.com.br

    Copyright © 2021 Joana Monteleone

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Edição: Haroldo Ceravolo Sereza

    Editora assistente: Danielly de Jesus Teles

    Projeto gráfico, capa e diagramação: Marília Reis

    Assistente Acadêmica: Tamara Santos

    Imagem da capa: Fotografia integrante da Revista Ilustrada, álbum elaborado por Jules Martin para representar o Estado de S. Paulo na Exposição Universal de 1900, em Paris. Acervo Museu Paulista. In: Heloísa Barbuy. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em S. Paulo 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006, p. 103.

    CIP-BRA­SIL. CA­TA­LO­GA­ÇÃO-NA-FON­TE

    SIN­DI­CA­TO NA­CI­O­NAL DOS EDI­TO­RES DE LI­VROS, RJ

    ___________________________________________________________________________

          M781s

          Monteleone, Joana   

        Sabores urbanos [recurso eletrônico] :  Alimentação, sociabilidade e consumo: São Paulo, 1828-1910 - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2021.

    recurso digital 

    For­ma­to: ebo­ok

    Re­qui­si­tos dos sis­te­ma:

    Modo de aces­so: world wide web

    In­clui bi­bli­o­gra­fia e ín­di­ce

    ISBN 978-65-5966-048-3 (re­cur­so ele­trô­ni­co)

            1. Hábitos alimentares. 2. História do Brasil. 3. Gastronomia. 4. Livros eletrônicos. I. Título.

    11-0314 CDD: 641.013098161

    CDU: 641.55(815.6)(091)

    ____________________________________________________________________________

    A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com garfo e faca não é a mesma fome que come a carne crua servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes. Por conseguinte, a produção determina não só o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, e não só de forma objetiva, mas também subjetiva. Logo, a produção cria o consumidor.¹


    1 Karl Marx. Introdução à contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1973, p. 220.

    Sumário

    Prefácio

    Introdução

    Capítulo I. Tavernas, estalagens e casas de pasto

    Caderno de imagens 1

    Capítulo II. Cafés, hotéis e restaurantes

    Caderno de imagens 2

    Capítulo III. Novos produtos, novos alimentos

    Caderno de imagens 3

    Considerações finais

    Bibliografia

    Agradecimentos

    Prefácio

    Vera Lucia Amaral Ferlini¹

    Acompanhar a criação de uma obra é uma aventura fascinante. Por mais de quatro anos tive esse privilégio, sabendo das descobertas, discutindo dúvidas, entusiasmando-me com os resultados que resultariam neste livro. Paixões da autora conduziram suas pesquisas: pela História Econômica, por São Paulo, pela gastronomia e pela escrita. Entendendo a economia em seu sentido amplo e histórico, palmilhando o percurso da cidade guiada pela sensibilidade, buscando seus sabores, Joana Monteleone oferece saborosa narrativa, que, através de dados, personagens, cardápios e receitas, vai além do cotidiano, apontando elementos profundos das mudanças.

    Sabores urbanos – o título antecipa o conteúdo: o processo de urbanização de São Paulo, entre 1828 e 1910, através das mudanças de padrões de alimentação. Em 1828 chegavam os primeiros estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a cidade era pouco mais que um pouso de tropeiros, uma cidade quase colonial: uns 20 mil habitantes, se tanto, abastecimento precário, cardápios rústicos. Em 1910, estima-se que 400.000 pessoas viviam na cidade e o crescimento populacional, a riqueza do café e da nascente indústria exigiram a modificação de seu traçado.

    O trabalho parte de sólidos marcos teóricos, como antecipa sua epígrafe. A fome (e sua saciedade, pelo alimento) é fato histórico cultural, marcada pelo tempo e pela inserção social: A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com garfo e faca, não é a mesma fome que come a carne crua servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes. Por conseguinte, a produção determina não só o objeto do consumo, mastambém o modo de consumo, e não só de forma objetiva, mas também subjetiva. Logo,a produção cria o consumidor.

    Ao estudar a trajetória da alimentação em São Paulo, ressalta como a adoção de novos alimentos e sua produção ligavam-se a uma nova sociedade, que buscava novos lugares de sociabilidade e de consumo. A difusão de cafés, padarias, bares, restaurantes e hotéis estimulou a importação de produtos, muitos deles depois gerando fábricas.

    Os estudos de Florestan Fernandes sobre a formação da burguesia e sua percepção de que, com a Independência, a acumulação escravista internalizou-se, fundamentando a formação de uma sociedade burguesa, perpassa a análise. É o surgimento dessa sociedade burguesa, alimentada principalmente pela produção cafeeira, que podemos acompanhar na leitura deste livro: novos espaços de sociabilidade, novos personagens, novos alimentos, trazidos pelos vapores e pela ferrovia, marcando o nexo cosmopolita da Revolução Industrial.

    Dentro da ótica do surgimento de uma sociedade burguesa e de suas marcas de sociabilidade, o livro não se limita a narrar a trajetória da alimentação em São Paulo. Em todos os capítulos, são apontadas as transformações que, à época, ocorriam na Europa e na América.

    A escrita fluente de Joana Monteleone conduz, com leveza, a reflexão erudita, ancorada em extensa bibliografia, que nos mostra os gostos e as sociabilidades da nascente burguesia, aqui e no exterior. Sua bibliografia inclui clássicos da cultura material, como Braudel, da alimentação e do gosto, como Flandrin e Gay, antropólogos e sociólogos, como Freyre, Levi-Strauss, Antonio Cândido. O pano de fundo, as transformações econômicas e sociais de São Paulo, no auge cafeeiro e o impacto da Revolução Industrial com máquinas, produtos, proletarização e diásporas, é cuidadosamente referenciada.

    A pesquisa exaustiva, apoiada em rigoroso enfoque teórico, expõe detalhes dessa mudança, que culminou com a reforma urbana de Antonio Prado no início do século XX. A autora leu inventários, almanaques, atas da Câmara, jornais, decretos e leis imperiais, buscando dados concretos. Para traçar as mudanças sociais, de sensibilidade e classe, visitou relatos de viajantes, crônicas, romances e peças de teatro, traçando uma delicada e convincente, história do gosto.

    O amplo quadro da sociedade e da economia de São Paulo permite-nos percorrer a cidade no início do século XIX, conhecendo seus poucos e precários estabelecimentos: tabernas, estalagens e casas de pastos. Conta-nos da alimentação rústica e limitada, em que dominava o feijão, o milho, os vegetais, ovos, porco, galinha e raramente carne bovina.

    A prosperidade da agricultura de exportação, primeiro do açúcar, mas principalmente do café, foi, a pouco e pouco, mudando a cidade e a partir de 1850 surgiram cafés, hotéis e restaurantes, que permitem nova sociabilidade. A ida e vinda de viajantes, comissários, estudantes, artistas tornou-se mais intensa pela chegada da ferrovia, nos anos 1860. O caminho de ferro, ligado ao porto de Santos, levava café, trazia imigrantes, novos costumes e novos alimentos. Novos gostos, sofisticados, para atrair a população endinheirada, como o curioso caso da sopa de tartaruga, anunciada nos jornais e servida em hotéis, em 1878.

    Mas não foi apenas no consumo dessa incipiente burguesia que se notaram as mudanças de alimentação. A imigração trouxe novo cardápio e novas necessidades e a produção de alimentos beneficiou-se do crescimento da mão-de-obra, dos novos gostos e de recursos industriais. Proliferaram cervejarias, fábricas de gelo, padarias e finalmente moinhos de trigo.

    A recriação desse processo de urbanização, de modificações de gostos, sabores e costumes é complementada por cadernos de ilustração, que tornam mais vívidas as informações e interpretações desse livro notável, que toma a história em sua plenitude, econômica, social, cultural, seguindo o ensinamento de Lucien Febvre: Não há história econômica ou social. Há história, simplesmente!


    1 Vera Lucia Amaral Ferlini, Professora Titular de História Ibérica da FFLCH/USP, orientou este trabalho, em nível de Mestrado, entre 2005 e 2009. Também orientou o doutorado da autora.

    Introdução

    Na virada do século xviii para o xix, um obscuro autor francês pensou sobre as mudanças sociais que estavam acontecendo em Paris e resolveu escrever um almanaque para gourmands. Alexandre Balthazar Grimond de la Reynière era um nobre francês que havia dilapidado a fortuna dos pais antes da Revolução. Com o sangue e as violentas transformações, as coisas em Paris tornaram-se difíceis para ele que, talvez por isso, a partir das faustosas festas que dava em sua mansão nos Campos Elísios, Grimond de la Reynière decidiu escrever um livro voltado para os prazeres sensoriais. Atento com o que ocorria à sua volta, o escritor fez uma preleção sobre os novos tempos que nos diz muito das transformações que viriam a acontecer na cozinha, em Paris e no resto do mundo, no século xix. Dizia ele:

    Na desordem em que ocorreu a redistribuição da riqueza, resultado natural da Revolução [Francesa], velhas fortunas transferiram-se para as novas mãos. Como a mentalidade desses milionários repentinos gira em torno de prazeres puramente carnais, acredita-se que talvez um serviço a ser-lhes prestado seria oferecer-lhes um guia confiável para a parte mais sólida de suas emoções. O coração da maioria dos parisienses ricos foi transformado de repente em goela.¹

    De certa maneira, esta pesquisa gira em torno das relações entre o dinheiro e a cozinha. Ou melhor: ainda que pensar as transformações ocorridas na alimentação em São Paulo ao longo do século xix seja muito diferente de estudar a comida em Paris ou Londres no mesmo período, os dizeres do decadente escritor francês também dizem respeito aos acontecimentos que tiveram lugar na cidade brasileira ao longo do mesmo período.

    O século xix foi emblemático para a história da alimentação, com as mudanças decorrentes das transformações capitalistas, que incluíram não apenas a revolução tecnológica na preservação dos alimentos, mas também os deslocamentos de alimentos, sabores e pessoas nunca antes vistos.

    A história da gastronomia pode ser tratada de diferentes maneiras: a forma como se consumiam os alimentos, a história do abastecimento ou de determinados alimentos, como o pão ou o sorvete. Mas, no caso deste estudo, a ideia é combinar a história da alimentação à da urbanização e da economia de São Paulo no século xix. E, ao fazer isso, algumas questões colocam-se em primeiro plano. A mais evidente diz respeito às mudanças da cidade ao longo do século xix. Assim, buscou-se pensar uma história da alimentação que refletisse a economia da cidade, para englobar a economia da vida cotidiana, a economia dos alimentos e de seu consumo e as práticas sociais ligadas a este consumo.

    Afinal, a produção é imediatamente consumo, o consumo é imediatamente produção.² A união das duas instâncias permite captar as sutilezas e os detalhes que tornam as mercadorias e suas relações com os homens coisas palpáveis. Como Daniel Roche, podemos afirmar que: A história das atitudes em relação ao objeto e à mercadoria em nossa sociedade é aqui capital; ela postula que uma história do consumo é uma maneira de reconciliar o sujeito com o objeto, a interioridade com a exterioridade. O principal argumento da história da civilização material seria a relação dos homens com as coisas e os objetos. Ele deveria levar em conta o processo de contestação nascido com a passagem de uma civilização da raridade e da economia estacionária à do desenvolvimento e da abundância.³

    Para a história da gastronomia, as mudanças operadas pela industrialização dos alimentos foi de tal maneira radical que em seu lastro vieram também as transformações no comportamento e, sobretudo, nos hábitos do cotidiano. Mais pessoas passaram a comer diferentes alimentos, vindos de diversos lugares ao redor do globo. O comportamento social transformou-se com a introdução desses alimentos industrializados, como a cerveja ou o gelo.

    As transformações decorrentes do dinamismo das exportações de açúcar, e principalmente, mais tarde, de café – crescimento da população, ampliação da rede de serviços, estradas, chegada de imigrantes – criaram condições para a adoção de novos costumes burgueses e, gradativamente, ajudaram a impulsionar o surgimento de negócios e empresas.

    Para Florestan Fernandes, o burguês teria surgido, no Brasil, como uma

    "entidade especializada, seja na figura do agente artesanal inserido na rede de mercantilização da produção interna, seja como negociante (não importando muito seu gênero de negócios: se vendia mercadorias importadas, especulava com valores ou com seu próprio dinheiro; as gradações possuíam significação apenas para o código de honra e para a etiqueta das relações sociais e nada impedia que o usurário, embora malquisto e tido como encarnação nefasta do burguês mesquinho, fosse um mal terrivelmente necessário)".

    A independência, afirmava o sociólogo, ao romper com o estatuto colonial, criou condições de expansão da burguesia e, em particular, de valorização social do que ele chama de alto comércio. Afinal, uma parte considerável das potencialidades capitalistas da grande lavoura foram canalizadas para o crescimento econômico interno, permitindo o esforço concentrado da fundação de um Estado nacional, a intensificação concomitante do desenvolvimento urbano e a expansão de novas formas de atividades econômicas, que os dois processos exigiam.⁵ Em São Paulo, com o dinheiro circulando por causa da venda de café, esse processo refletiu-se tanto nas necessidades de remodelação urbana como no estabelecimento de hábitos, costumes e produtos importados, burgueses, vindos da Europa.

    O consumo de alimentos importados foi, durante o século xix, um dos motores da transformação econômica, como ocorreu com a cerveja e o pão de trigo, que até por volta das décadas de 40 e 50 do século xix eram raridades, e a partir de 1870 foram produzidos sistematicamente. Por isso pode-se afirmar que, muitas vezes, em São Paulo, o gosto pelo produto precedeu sua produção. As mudanças nos hábitos abriram caminho para a mudança na vida econômica.

    Em São Paulo, a adoção desses costumes burgueses foi promovida pelos recursos provenientes do plantio e exportação do açúcar e do café, enquanto no Rio de Janeiro, as transformações de costumes vieram essencialmente do fato de a cidade ser a capital do Império e porto movimentado. No caso de São Paulo, pode-se afirmar, inclusive, que o comércio de supérfluos, ao longo do século xix, foi composto basicamente por alimentos e tecidos. O café fez com que o país se inserisse num novo ritmo do capitalismo mundial, em que as trocas comerciais passaram a ser mais intensas e os produtos circulavam com mais facilidade.

    A exportação de café não apenas trouxe bens e produtos importados para a cidade, mas também consolidou a troca de produtos agrícolas por bens manufaturados.⁷ Como a chamada revolução burguesa aconteceu primeiro em São Paulo, a cidade aparelhou-se de novos gostos para as novas necessidades e exigências da burguesia.⁸ A abertura desses novos negócios envolvendo a alimentação representava a cosmopolitização do gosto da nascente burguesia urbana paulistana, mas também evidenciava a necessidade dos novos tempos, ou seja, a inserção da cidade na produção capitalista.⁹

    Os negócios com as exportações de café pelo porto de Santos possibilitaram a permanência de parte dos ganhos em São Paulo. O café, por sua vez, também atraiu imigrantes com recursos suficientes para abrir pequenos negócios ou fábricas na cidade. A maioria dos estudos sobre industrialização destaca esse primeiro surto industrial como incipiente e localizado em ramos bem determinados. Para Warren Dean o café era a base industrial nacional, primeiro que tudo, porque proporcionava o pré-requisito mais elementar de um sistema industrial – a economia monetária.¹⁰

    Embora incipiente e fragmentário, esse surto econômico estimulou o nascimento de outros hábitos e outras maneiras, consolidando novas formas de viver e pavimentando o caminho para outras transformações econômicas e culturais. Com a vida na cidade, e o consumo de alimentos importados ou diferentes, veio um novo estilo de vida. Nas palavras de Richard Graham: Encanamentos e futebol, cerveja e pianos, guarda-chuvas e bondes eram as vestes rituais e os instrumentos sagrados nos ritos de passagem do tradicional para o moderno.¹¹

    Ao longo do século xix, a riqueza paulista migrou lentamente da posse de escravos para a posse de terras e imóveis, como mostram os trabalhos de Maria Luiza Ferreira de Oliveira¹² e Zélia Cardoso de Mello.¹³ Esse processo fez com que as formas de alimentação e consumo da população também se transformassem. Se ainda nas primeiras décadas do século xix, frutas, verduras e alguns legumes eram plantados em chácaras ou recolhidos em terrenos vazios pela cidade, com o passar dos anos, outros alimentos começaram a ser vendidos e mesmo anunciados nos jornais. Diversos lugares para comer foram criados, assim como novas maneiras de hospedar deram à cidade diferentes características e feições.

    Buscou-se, então, relacionar a história da alimentação aos padrões de sociabilidade e consumo entre 1828 e 1910, dentro do quadro de profundas transformações econômicas e urbanas da cidade. O trabalho procurou responder a algumas questões específicas: quais os espaços em que se passou a comer? Que tipo de sociabilidade estava envolvida ao se sair para comer fora? Quais os novos alimentos que chegaram com essas transformações e quais os alimentos que se popularizaram com a incipiente industrialização da cidade?

    A pesquisa privilegiou os relatos de viajantes, cronistas, romances e peças de teatro, peças de ficção, portanto, propositalmente. Para se fazer uma história da alimentação que é, muitas vezes, também uma história do gosto, essas são fontes privilegiadas de análise.¹⁴ Foram usados, também, almanaques do período, atas da câmara da cidade e decretos e leis imperiais que vão de 1867 a 1910. A pesquisa incluiu também jornais como A província de S. Paulo e o Correio Paulistano,¹⁵ bem como alguns poucos inventários de donos de armazéns¹⁶ e hotéis.

    O período enfocado na dissertação vai da chegada dos estudantes à cidade, em 1828 ao final do governo de Antônio Prado, em 1910. Ernani da Silva Bruno,¹⁷ bem como Richard Morse,¹⁸ foram os primeiros estudiosos a tratar a vinda dos estudantes como um fato importante e um marco cronológico para a história de São Paulo.

    O primeiro marco temporal, 1828, toma a cidade, sede da Província após a Independência e revela a crescente importância política de sua elite, principalmente em novos hábitos vindos da corte com os estudantes. Antigos usos conviviam com novos moradores e novos costumes: homens livres, escravos, libertos, ao lado de tavernas, bilhares, pequenos tumultos e arruaças.

    Com a chegada dos estudantes surgiram os primeiros bilhares, multiplicaram-se as tavernas e botequins e inauguraram-se inúmeras pensões. Na mesma época, também vieram à cidade os primeiros imigrantes, principalmente alemães e franceses, que inauguraram os mesmos bilhares, os cafés, os hotéis, mas também investiram na abertura das primeiras fábricas de alimentos, como as de gelo e de cerveja.

    Nesse período inicial, o abastecimento da cidade era provido por mulheres pobres, forras e escravas, com a venda miúda de alimentos preparados em casa, recolhidos nas ruas ou frutos de pequenas plantações em quintais ou áreas livres.¹⁹ Nos relatos dos viajantes, cronistas e memorialistas, as hospedarias ainda eram poucas e precárias. Para se comer fora, existiam algumas tavernas, armazéns de secos e molhados, minguados bilhares e poucas pensões recém abertas.

    Até 1867, a cidade possuía como grupos majoritários de moradores, os empobrecidos da área rural, escravos fugidos, sitiantes despojados. (...) Guardava aspectos pré-urbanos com chácaras ou quilombos se alternando na geografia íngreme de um processo urbanizador mais espontâneo do que organizado.²⁰ Com o caminho de ferro fez-se a ligação direta com Santos, escoando a produção de café, mas também trazendo produtos importados, como queijos, presuntos, manteiga, vinhos, além de imigrantes, com outras experiências e saberes culinários.²¹

    A ferrovia norteou a vida da cidade de muitas maneiras: criando bairros novos ao longo de suas linhas (Santana, Glória, São Caetano), trazendo viajantes, aquecendo ainda mais a economia que agora estava quase que totalmente voltada para o café. A estrada de ferro organizava também o abastecimento da cidade. O que até então se fizera sob o lombo dos burros ou dos carros de boi passou a ser transportado por trem. Na verdade, os dois tipos de transporte de carga vão conviver na cidade durante muito

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1