Economia
03/09/2008
TENDÊNCIAS GLOBAIS
O princípio de uma crise devastadora
Desde 2000, temos assistido, nos EUA e no mundo capitalista desenvolvido, ao mais lento
crescimento econômico real desde a Segunda Guerra Mundial e à maior expansão da esfera
financeira da economia da história dos EUA. Não é preciso ser marxista para argumentar que esta
realidade não é sustentável. A análise é do historiador Robert Brenner, professor da Universidade
da Califórnia e um dos maiores estudiosos da economia global e suas bolhas.
Robert Brenner
Data: 10/07/2008
A atual crise pode tonar-se a mais devastadora desde a Grande Depressão dos anos trinta.
Ela exprime os profundos e não resolvidos problemas da economia real, escondidos pelo
recurso à dívida das últimas décadas, bem como um racionamento do crédito de curto prazo
cuja gravidade é inédita desde a Segunda Guerra Mundial. A combinação da fragilidade da
acumulação de capital com a crise do sistema bancário transformou o presente declínio
econômico numa crise de difícil resolução pelo poder político e que potencialmente se pode
tornar num desastre. A praga das falências domésticas e das casas agora abandonadas –
muitas vezes pilhadas de tudo o que nelas tem valor, como a cablagem de cobre – atinge
com particular intensidade Detroit e outras cidades do Meio Oeste norte americano.
O desastre humano que a crise representa para centenas de milhares de famílias e para as
suas comunidades pode, no entanto, ser só um primeiro sinal do impacto da atual crise. O
crescimento histórico dos mercados financeiros nos anos 80, 90 e 2000 – com a contínua
transferência de rendimento para os 1% mais ricos da população– desviou as atenções das
fragilidades de longo prazo das principais economias capitalistas. O desempenho econômico
nos EUA, Europa Ocidental e Japão deteriorou-se em todos os indicadores relevantes
(crescimento econômico, investimento, salários) década após década, ciclo econômico após
ciclo econômico, desde 1973.
Os anos correspondentes ao presente ciclo econômico, cujo início recua a 2001, foram os
piores. O crescimento do PIB (Produto Interior Bruto) nos EUA foi o mais lento, em
comparação com qualquer outro intervalo temporal desde o fim dos anos 40, com o
crescimento do investimento físico (fábricas e equipamento) e a criação de emprego a
corresponderem a um e dois terços, respectivamente, da média do pós guerra. Os salários
reais horários dos trabalhadores industriais e do pessoal que não exerce tarefas de
supervisão, 80% da força de trabalho, permaneceram estagnados em torno dos níveis
alcançados em 1979.
A expansão econômica também não foi particularmente mais robusta na Europa Ocidental e
no Japão. O declínio do dinamismo do mundo capitalista desenvolvido está enraizado numa
forte queda das taxas de lucro, causada sobretudo pela crônica tendência para a a criação de
sobrecapacidade no setor industrial mundial que recua ao período do final dos anos 60 e
início dos anos 70. Em 2000, nos EUA, Japão e Alemanha, as taxas de lucro na economia
privada ainda não tinham recuperado os níveis anteriores. O seu crescimento no ciclo
econômico dos anos 90 não chegou a ultrapassar os níveis dos anos 70.
Com sofríveis taxas de lucro, as empresas passaram a dispor de menos recursos que
pudessem investir nas suas fábricas e equipamento e menores incentivos para se
expandirem. A perpetuação de baixas taxas de lucro desde os anos 70 conduziu não só a
uma constante queda do investimento, medido enquanto percentagem do PIB, nas principais
economias capitalistas, como também a uma progressiva redução do crescimento
econômico, dos meios de produção e do emprego.
A longa desaceleração da acumulação de capital, somada à repressão salarial por parte das
empresas e aos cortes nas despesas sociais por parte dos governos (na tentativa de
restaurarem as taxas de lucro) resultou numa quebra do crescimento do investimento, da
procura dos consumidores e da despesa pública, e assim num decréscimo da procura como
um todo. A fragilidade da procura agregada, em última análise, causa da redução das taxas
de lucro, é o principal entrave ao crescimento das principais economias capitalistas.
Desde meados dos anos 90, os EUA foram assim forçados a recorrer a mais poderosas e
arriscadas formas de estímulo econômico para contrariar a tendência para a estagnação
econômica. Os tradicionais déficits públicos keynesianos foram substituídos pelo
endividamento privado e por uma inflação do preço de ativos ou o que podemos intitular de
“keynesianismo pelo preço de ativos”, ou, simplesmente, “bubblenomics”.
Na grande corrida aos mercados bolsistas dos anos 90, as empresas e famílias abastadas
assistiram a uma forte expansão da sua riqueza nominal. Foram, por isso, incentivadas a
embarcar em empréstimos de montantes nunca antes vistos, que sustentaram uma
poderosa expansão do investimento e do consumo. A chamada “nova economia” foi a
expressão direta da histórica bolha dos preços das ações dos anos 1995 2000. No entanto,
visto que os preços das ações cresceram paralelamente a uma quebra das taxas de lucro e
que os novos investimentos exacerbavam o problema de sobrecapacidade industrial, o
“crash” bolsista foi a consequência natural, com a correspondente recessão em 2001,
reduzindo os lucros dos sector não financeiro para os níveis mais baixos desde 1980.
No entanto, o Federal Reserve norte-americano, ajudado por outros grandes bancos centrais,
contrariou o novo declínio econômico com mais uma promoção da inflação de outros ativos
que, entretanto, nos conduziram à situação presente. Através de reduções das taxas de juro
de curto prazo até o 0% durante três anos, estas instituições facilitaram uma explosão, sem
precedentes históricos, dos empréstimos às famílias, o que contribuiu e alimentou o aumento
dos preços da habitação e o correspondente incremento da riqueza familiar.
De acordo com a The Economist, a bolha imobiliária mundial entre 2000 e 2005 foi a maior
da história, ultrapassando mesmo a de 1929. Ela tornou possível um crescimento constante
das despesas de consumo e do investimento residencial, os dois grandes motores da
expansão econômica. Entre 90 a 100% do crescimento econômico nos EUA durante os cinco
primeiros anos deste ciclo econômico, foi contabilizado como devendo-se ao consumo
doméstico e à construção residencial. Durante o mesmo período, o setor imobiliário, segundo
a Moody’s Economy.com, foi responsável por uma subida do crescimento econômico 50%
acima do que seria sem a sua contribuição – 2,3% em vez de 1,6%.
Se os consumidores fizeram a sua parte, o mesmo não pode ser dito do setor empresarial
privado, conquanto este tenha se beneficiado de um estímulo econômico sem precedentes.
Greenspan e o Federal Reserve insuflaram a bolha do setor imobiliário de forma a dar tempo
às empresas para lidarem com o seu excesso de capital e retomarem o investimento. No
entanto, em alternativa, as empresas organizaram uma ofensiva brutal contra os
trabalhadores para assim restaurarem suas taxas de lucro. As empresas aumentaram o
crescimento da produtividade, não tanto através de mais investimento em tecnologia e
equipamento, mas sobretudo cortando radicalmente o emprego e obrigando os trabalhadores
que permaneceram a redobrarem os seus esforços nas tarefas agora libertadas. Ao
reprimirem os salários, ao mesmo tempo que aumentavam a intensidade do trabalho, as
empresas apropriaram-se de uma proporção, sem precedentes históricos, do crescimento do
produto no setor não financeiro.
Arrebentando bolhas
A ideia central é a de que, desde 2000, temos assistido, nos EUA e no mundo capitalista
desenvolvido, ao mais lento crescimento econômico real desde a Segunda Guerra Mundial e
à maior expansão da esfera financeira da economia da história dos EUA. Não é preciso ser
marxista para argumentar que esta realidade não é sustentável.
Claro está que, tal como o bolha especulativa nos mercados accionistas dos anos 90
terminou, também a bolha no setor imobiliário acabou por arrebentar. Como conseqüência, o
filme da expansão econômica baseada no setor imobiliário, a que assistimos durante a fase
ascendente do ciclo econômico, está agora sendo exibido ao contrário. Hoje os preços da
habitação já caíram por volta de 5% em relação ao pico de 2005, mas este fenômeno só
agora começou. A Moody’s estima, que quando a bolha estiver totalmente deflacionada,
previsto para o início de 2009, os preços terão caído 20% em termos nominais (ainda mais
em termos reais), de longe a maior queda na história norte americana do pós-guerra.
Tal como o efeito de riqueza positivo, que conduziu a economia na sua expansão graças à
bolha especulativa imobiliária, também o correspondente efeito negativo está a atrofiando o
crescimento. Com o valor das suas habitações caindo, as familias já não podem tratar as
suas casas como caixas eletrônicos. Os empréstimos domésticos estão colapsando,
obrigando-as a consumir menos.
O perigo iminente está no fato de, ao não poderem “poupar” através do aumento do valor
dos seus imóveis, as famílias norte americanas estarem obrigadas a subitamente começar a
poupar realmente, conduzindo a um crescimento das taxas de poupança e ao
correspondente decréscimo do consumo. Ao anteciparem as implicações do fim da bolha
especulativa no comportamento dos consumidores, as empresas começam a contratar
menos, o que já resultou numa queda significativa do crescimento do emprego desde o início
de 2007.
(2) O texto foi originalmente publicado na revista Against The Current (Janeiro/Fevereiro
2008).