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HISTÓRIA, CULTURA E TRADIÇÃO

NO ARQUIPÉLAGO DA MADEIRA

© ALBERTO VIEIRA

Funchal.12 a 20 de Julho de 1999


PROGRAMAÇÃO DAS SESSÕES

12.13.14. JULHO

HISTÓRIA DA MADEIRA

- DESCOBRIMENTO, POVOAMENTO: ORIGEM E CULTURA,


- A MADEIRA E O ATLÂNTICO: CANÁRIAS, ÁFRICA, BRASIL, ESCRAVOS,
ESTRANGEIROS

15. JULHO

QUOTIDIANO COM E COMO HISTÓRIA

16. JULHO

TESTEMUNHOS E TÉCNICAS DE RECOLHA: fontes históricas, vestígios materiais,


bens móveis e imóveis

19. JULHO

HISTÓRIA E TRADIÇÃO: o conceito tradição, Folclore, Religiosidade, usos e


costumes

20. JULHO

HISTÓRIA ORAL: técnicas


12.13.14. JULHO

HISTÓRIA DA MADEIRA

Visão global sobre a História da Madeira em que se pretende


destacar os aspectos mais evidentes da sua relação directa e
indirecta com a cultura popular

DESCOBRIMENTO, POVOAMENTO: ORIGEM E CULTURA,

O processo de europeização do espaço insular é fundamental na definição


dos vínculos e matriz da cultura. O descobrimento do século XV revelou ao
europeu este novo espaço que se torno, de imediato, em motivo de atracção
de portugueses e demais europeus.
O povoamento conduziu a uma mistura de populações de diversas
origens. Os colonos europeus, ou os escravos africanos, trouxeram consigo,
as plantas, os animais, as técnicas, as tradições, os usos e os costumes.
Aquilo que nos espera é a descoberta desta "bagagem cultural e material" e
ver em que medida se pode assinalar uma evolução ou permanência.

1.O DESCOBRIMENTO

Em 8 de Setembro de 1460 o infante D. Henrique, na


qualidade de senhor das ilhas do arquipJlago da Madeira,
dava a entender o seu protagonismo no seu descobrimento com
a seguinte expressno: "...novamente achei". Novamente, J
interpretado por todos como pela primeira vez pelo que
antes nno haviam sido encontradas ou se o foram delas nno
ficara rastro na mem\ria escrita e colectiva. Nno sabemos
qual ter< sido o objectivo do Infante em proferir tal
expressno, uma vez que a tradiHno hist\rica, divulgada em
algumas cr\nicas coevas, testemunha o conhecimento destas
ilhas desde meados do sJculo XIV. Para alguns ela prende-se
com a disputa em torno das Can<rias e da necessidade de
preservar o seu domRnio quando aquelas estavam
irremediavelmente perdidas. O "praescritio longissimo
temporis" do direito romano, que fazia depender a posse de
uma terra encontrada do seu abandono e da anterioridade do
conhecimento, parece ser o argumento de peso.
A Historiografia, da Jpoca dos descobrimentos e do
momento da partilha do continente africano, est< impregnada
das opHtes que deram razno e legitimaram a posse dos novos
espaHos descobertos e ocupados. Esta questno J
habitualmente resolvida pela sua ligaHno B partilha do
mundo, estabelecida pelos tratados, sancionados pelas bulas
papais e raras vezes J equacionada B luz do direito da
Jpoca e da interpretaHno dos tratadistas. Em 1435 nas
alegaHtes apresentadas por D. Afonso de Cartagena, bispo de
Burgos, no concRlio de Basileia, justificando a posse e
conquista das Can<rias pelos Reis de Castela, sno
elucidativas. Portugal argumentava o seu direito B posse
destas ilhas na vizinhanHa, ocupaHno e necessidade de
cristianizaHno. A contra-argumentaHno do bispo de Burgos
nega os pressupostos portugueses e define as trLs formas
que legitimam a posse: nascimento, descoberta e ocupaHno.
A questno do descobrimento de Madeira entroca nesta
realidade. Francisco Alcoforado, o nosso primeiro cronista
do descobrimento, refere que Machim e companheiros ao
depararem-se com a Madeira entenderam "que era terra nova
puzerno em vontade pedirem aos reis de Espanha", talvez,
pensando na sua proximidade B Tingit>nia. Por outro lado,
Jer\nimo Dias Leite, outro cronista madeirense da segunda
metade do sJculo XVI, testemunha diferente opHno dos
portugueses: "E pelos padres mandou benzer agua que andarno
aspargindo pelo ar e pela terra, como quem desfazia
encantamento, ou tomava posse em nome de Deus daquela terra
brava, e nova nunca lavrada nem conhecida desde o principio
do mundo atJ aquela hora". O acto de posse em nome da coroa
portuguesa era justificada pelo facto de nunca ter sido
conhecida e ocupada.
ConcluRdos os grandes descobrimentos, os argumentos
que legitimarno a soberania estno assentes na posse a
partir da ocupaHno. Esta tese fez escola no sJculo XIX e
comandou o processo de partilha do continente Africano com
a conferLncia de Madrid. Descobridores e novos
colonizadores decidem que s\ a ocupaHno efectiva legitima o
direito de soberania. Correlacionada com a questno dos
fundamentos legitimadores da soberania est< a visno da
Historiografia da Jpoca dos descobrimentos e oitocentista.
O sJculo XIX foi o momento mais importante para a
Historiografia dos descobrimentos1. Em plena euforia
nacionalista e colonial nasce a Hist\ria e a visno que
ficou a marcar o nosso imagin<rio atJ ao presente: o hino
Nacional e o 10 de Junho sno exemplo disso. No momento da
partilha todos se arvoram em descobridores e os portugueses
sentem-se no direito de reclamar a anterioridade da sua
acHno, dos seus conhecimentos e direitos hist\ricos. Foi
esta a funHno do Visconde de SantarJm, Joaquim Bensadde.
I de acordo com esta realidade que deve ser enquadrada

1
. Pierre Chaunu, Expansno europeia do sJculo XIII a XV, S. Paulo, 1978, pp.179-195.
a discussno sobre a descoberta da Madeira. A prioridade
portuguesa do descobrimento da Madeira, surge tambJm em
1493, na voz de D. Jono II: "porquanto essa ilha nno foi de
nossos antepassados nem dela tiveram direito algum ou
domRnio antes de ser descoberta e ocupada pelo senhor rei
nosso bisav^...". O mesmo sucede nas cr\nicas oficiais,
conforme se poder< verificar pelos textos de Francisco
Alcoforado e Jer\nimo Dias Leite. Todavia, as fontes
narrativas do sJculo XVI nno sno un>nimes quanto a isto,
sendo possivel reunir uma diversidade de verstes, muitas
delas contr<rias da oficial, defendida pelo infante e a
coroa.
Hoje, parece ganhar consistLncia a ideia de que o
descobrimento das ilhas teve lugar em Jpoca anterior B
primeira presenHa dos portugueses, sendo sua a acHno no
sJculo XV entendida como reconhecimento, ou como o referem
alguns, descobrimento oficial. As duvidas surgem quando
procuramos resposta para os aspectos de pormenor. A eterna
questno de quem, como e quando foi descoberto o arquipJlago
nno parece de f<cil soluHno. Os indmeros estudos sobre o
tema lanHaram-nos para um mar de ddvidas e incertezas. As
datas exactas do encontro e de inRcio do povoamento,
situaHno que serve as efemJrides e o empenho da sociedade
polRtica, nno encontram fundamento hist\rico, porque algumas
das mais credRveis fontes coevas divergem neste particular.
A isto associa-se a dificuldade em identificar os
verdadeiros protagonistas: quem ordenou as expediHtes
quatrocentistas e quem as comandou? A tradiHno, que filia a
ideia do encontro quatrocentista, releva o protagonismo dos
homens da casa do infante D. Henrique -- isto J, de Jono
GonHalves Zarco com Tristno Vaz--, que J como quem diz do
pr\prio infante. De fora ficam Roberto Machim, os an\nimos
castelhanos e o inc\gnito navegador, Afonso Fernandes, este
dltimo referido apenas por Diogo Gomes.
Outra duvida de nno menor import>ncia prende-se com o
protagonismo da coroa e do infante no processo de
reconhecimento e ocupaHno da Madeira. A ela est< associada
outra, mais geral, sobre o protagonismo da coroa e da casa
do infante nos descobrimentos. O debate nno J novo e tno
pouco dever< considerar-se encerrado. Tudo isto foi
sustentado por Gomes Eanes de Zurara, com o texto que ficou
conhecido por Cr\nica de GuinJ, o seu panegRrico do infante.
O pr\prio Infante refere que, desde 1425, participou
activamente no arquipJlago madeirense mas a documentaHno
oficial s\ o menciona como tal a partir de 1433, data em
que recebeu do rei o direito de posse. Compiladas
informaHtes disponRveis, nomeadamente nos cronistas, J
evidente a dificuldade em diferenciar atJ onde chegou o
real protagonismo de ambos. A dnica certeza J de que a
partir de 1433 o infante D. Henrique actuou de pleno
direito no arquipJlago, sendo o seu senhor.
I, na verdade, a partir da dJcada de trinta que as
ilhas passaram a assumir import>ncia nos descobrimentos
portugueses. Elas afirmam-se com <reas de cultivo de
produtos com alto valor mercantil, caso dos cereais, vinho
e aHdcar, e como porta charneira para a expansno alJm-
atl>ntico, uma vez perdidas as esperanHas henriquinas na
posse e conquista das Can<rias.

2. A OCUPAGmO DAS ILHAS


O povoamento e o consequente processo de valorizaHno
econ\mica da Madeira surgem, no contexto da expansno
europeia dos sJculos XV e XVI, como o primeiro ensaio de
processos, tJcnicas e produtos que serviram de base B
afirmaHno dos Portugueses no espaHo atl>ntico, continental e
insular. Aqui foram lanHadas, na dJcada de 20, as bases
sociais e econ\micas daquilo que ser< definido como a
civilizaHno atl>ntica. Tudo isto resulta do facto de a
Madeira ter sido a primeira <rea atl>ntica a merecer o
impacto da humanizaHno peninsular. Enquanto nas Can<rias
tardava a pacificaHno dos aborRgenes, conhecidos como
guanches, e se esvaneciam as esperanHas da posse
henriquina, na Madeira os cabouqueiros europeus lanHavam-se
num plano de exploraHno intensiva do solo virgem. Ao
empenhamento dos tradicionais descobridores juntaram-se os
interesses da coroa, do infante D. Henrique e da comunidade
italiana residente em Portugal.
Os testemunhos dos cronistas sno evidentes quanto ao
facto da inexistLncia de uma populaHno sob o solo
madeirense. Assim, para alJm das referLncias B abordagem do
Porto Santo por castelhanos, vindos das Can<rias, e da
presenHa de Machim na baRa de Machico, nada mais indiciava
uma preocupaHno anterior de humanizaHno destas ilhas.
Cadamosto, afirma "que fora atJ entno desconhecida" e que
"nunca dantes fora habitada". IdLntica J a opinino de
Jer\nimo Dias Leite2, perempt\rio em afirmar, que perante
os navegadores se deparava uma "terra brava e nova, nunca
lavrada, nem conhecida desde principio do mundo atJ aquela
hora". Deste modo o empenho das gentes e autoridades
peninsulares, aliado ao investimento e experiLncia
italiana, contribuRram para que em pouco tempo na Madeira a
densa floresta fosse substituRda por extensas clareiras de
arroteamento.
A luz do acima enunciado, torna-se forHoso considerar
2
Descobrimento da Ilha da Madeira (...), Coimbra, 1957, p. 9.
que a acHno lusRada na dJcada de 20 deve ser entendida como
um processo de povoamento, e nunca de colonizaHno, pois
est<mos perante uma porHno de terra inabitada cuja paisagem
foi humanizada apenas com a entrada portuguesa3. Esta
situaHno favoreceu o processo de ocupaHno, permitindo o
ensaio de tJcnicas, produtos e formas de organizaHno do
espaHo, sem qualquer entrave humano. Os resultados disto
foram de tal modo profRcuos que o exemplo madeirense teve
um lugar relevante na expansno peninsular, sendo a
referLncia ou modelo para as experiLncias de povoamento que
se seguiram.
Um dos muitos aspectos polJmicos sobre os prim\rdios
da Hist\ria da Madeira J a data em que o solo virgem
comeHou a ser desbravado pelos primeiros colonos europeus.
Os cronistas sno un>nimes em definir o ano de 1420 como o
de comeHo. Todavia, surgem opinites diferentes, como a do
infante D. Henrique, que em 1460 declarava: "comeHei a
povoar a minha ilha da Madeira aver< ora XXXb anos...",
isto J, a partir de 1425 ele iniciara o povoamento da ilha.
Mas, na doaHno rJgia de 1433, o monarca afirmara "que agora
novamente o dito infante per nossa autoridade pobra".
Querer< isto dizer que s\ nesta data o infante assumiu o
comando do processo ? Nno. Pelo menos esta nno J a opinino
do infante, que nas cartas de doaHno das capitanias
apresenta Jono GonHalves Zarco, Tristno Vaz e Bartolomeu
Perestrelo, como os primeiros povoadores por seu mandado.
Ser< que s\ podemos falar de povoamento a partir de 1425 ou
1433, contrariando a opinino dos cronistas ? A resposta
parece ser tambJm negativa, B luz daquilo que nos dizem
dois documentos. Primeiro, uma sentenHa do Duque D. Diogo
de 6 de Fevereiro de 1483 refere que "podia haver cinquenta
e sete anos, pouco mais ou menos, que a essa ilha fora Jono
GonHalves Zargo, capitno que fora nessa ilha, levando
consigo sua mulher e filhos e outra gente...". Depois,
noutra sentenHa Diogo Pinheiro, vig<rio de Tomar em 1499,
afirma: "podera bem haver oitenta anos que a dita ilha era
achada pouco mais ou menos e se comeHara a povoar". Esta
versno J corroborada em 27 de Julho de 1519 por ac\rdno da
C>mara do Funchal em que se d< conta do inRcio do povoamento
h< cem anos atr<s. Ambos os documentos abonam verstes
diversas: enquanto o primeiro coincide com a data apontada
pelo infante, o segundo corrobora os cronistas. Por tudo
isto a dnica conclusno plausRvel J de que o povoamento
efectivo ter< comeHado a partir do fim do dltimo quartel do
sJculo XV. Os seis anos que medeiam entre esta data e o seu

3
Confronte-se o que diz a este prop\sito Carreiro da COSTA em EsboHo Hist\rico dos
AHores, Ponta Delgada, 1978, p.53
reconhecimento nno deverno ser encarados como de total
alheamento, pois nada nos leva a afirmar que o processo
tivesse parado.
De acordo com as cr\nicas quatrocentistas e
quinhentistas, o processo, que decorreu a partir de 1418,
foi faseado. Zurara refere quatro expediHtes B ilha antes
que o infante ordenasse o envio dos primeiros colonos e
clJrigos para o arranque da ocupaHno e aproveitamento
econ\mico. A mesma ideia surge na "RelaHno de Francisco
Alcoforado". Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira4 especifica
melhor as quatro viagens:
1.Dezembro 1418. primeira viagem de reconhecimento
do Porto Santo;
2.Principio de 1419.segunda viagem ao Porto Santo;
3.Junho de 1419. primeira viagem B Madeira
4. Maio de 1420. segunda viagem B Madeira.
A forma de ocupaHno e valorizaHno econ\mica da Madeira
foi ao encontro das solicitaHtes da conjuntura interna do
Reino e do espaHo oriental do Atl>ntico. No primeiro caso,
surge como resposta B disputa das Can<rias e B ingente
necessidade de encontrar um ponto de apoio para as
operaHtes ao longo da costa africana. Zurara faz disso eco
ao referir que as embarcaHtes portuguesas faziam escala
obrigat\ria na Madeira, onde se proviam de "vitualha as
ilhas da Madeira, porque havia aR j< abastanHa de
mantimentos"5. Para os cronistas tudo comeHou no Verno de
1420. Nesta data o monarca ordenou o envio de uma expediHno
comandada por Jono GonHalves Zarco para dar inRcio B
ocupaHno da ilha. Acompanhavam-no Tristno Vaz Teixeira,
Bartolomeu Perestrelo, alguns homiziados que @querino
buscar vida e ventura forno muitos, os mais delles do
Algarve".
De acordo com o capRtulo de uma carta rJgia6, Jono
GonHalves Zarco foi incumbido de proceder B distribuiHno de
terras, conforme o regulamento entregue. Estes capRtulos de
um pretenso regimento para a distribuiHno de terras sno
diferentes dos demais que se seguiram, pois para alJm da
demarcaHno social dos agraciados estabelecem um prazo
alargado de 10 anos:
1. os vizinhos de mais elevada condiHno social e
possuidores de proventos recebem-nas sem qualquer encargo;
2. os pobres e humildes que vivem do seu trabalho
apenas as conseguiram mediante condiHtes especiais, s\
adquirindo as terras que possam arrotear com a
obrigatoriedade de as tornar ar<veis num prazo de dez

4
Notas para a Hist\ria de Madeira. I. Descoberta e inRcio do povoamento, Funchal, 1957.
5
Cr\nica da GuinJ, cap. XXXII.
6
Esta carta foi pela primeira vez referenciada por ;lvaro Rodrigues de AZEVEDO sendo, todavia considerada ap\crifa por alguns
historiadores, como JosJ Hermano SARAIVA (Temas de Hist\ria de Portugal, vol. II, pp.109-112)
anos.
Estas cl<usulas, a serem verdadeiras, favorecem a
posiHno fundi<ria dos primeiros povoadores e contribuRram
para o aparecimento de grandes extenstes, mais tarde
vinculadas.
A partir de 1433, com a doaHno do senhorio das ilhas
ao infante D. Henrique, o poder de distribuir terras J uma
atribuiHno do senhorio, mas @sem prejuizo de forma do foro
per nos dado aas ditas ilhas em parte nem em todo nem em
alheamento do dito foro@. Isto prova, mais uma vez, que a
primeira iniciativa e regulamento de distribuiHno de terras
coube ao monarca. O infante, fazendo uso destas
prerrogativas, delegou nos capitnes parte dos seus poderes
de distribuiHno de terras. A isso junta-se um novo
regimento ou foral, que confirma as ordenaHtes rJgias,
estipulando que as terras deverino ser dadas apenas por um
prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de
posse e a possibilidade de nova concessno.
A primeira missno dos capitnes foi proceder B divisno
de terras, como testemunha Francisco Alcoforado, ao referir
que Jono GonHalves Zarco, ap\s a segunda viagem, empenhou-
se em tal tarefa. Uma das prerrogativas desta funHno era a
possibilidade de reservar para si e familiares algumas das
sesmarias. E foi isso que o mesmo fez. Ainda, segundo
Francisco Alcoforado, Jono GonHalves Zarco apropriou-se do
alto de Santa Catarina, no Funchal e as terras altas de
C>mara de Lobos. Mais alJm, na Calheta, tomou dois Lombas
para os seus filhos Jono GonHalves e Beatriz GonHalves.
Nas dJcadas seguintes, a concessno de terras de
sesmaria e a legitimaHno da sua posse geraram v<rios
conflitos, que implicaram a intervenHno do senhorio ou o
arbRtrio do seu ouvidor. Em 1461, os madeirenses reclamaram
contra a reduHno do prazo para aproveitamento das terras,
dizendo que estas eram @bravas e fragosas e de muitos
arvoredos@. Contudo, o infante D. Fernando nno abdicou do
preceituado no foral henriquino e apenas concedeu a
possibilidade de alargamento do prazo mediante an<lise
circunstanciada de cada caso pelo almoxarife7. Desde 1433 e
atJ 1495, a concessno de terras de sesmaria era feita pelo
capitno, em nome do donat<rio. A carta deveria ser lavrada
pelo escrivno do almoxarifado, na presenHa do capitno e do
almoxarife. No seu enunciado constavam obrigatoriamente as
condiHtes gerais que regulavam este tipo de concessno do
terreno, capacidade de produHno e a cultura adequada B sua
exploraHno, bem como o prazo de aproveitamento. O colono ou
sesmeiro estava obrigado a cumprir o clausulado e apenas

7
A.R.M., C.M.F., registo geral, T. 1, fls. 204-209, publ. in AHM, vol XV, pp.11-20.
findo o prazo estabelecido podia vender, doar, @escambar o
fazer dela e em ela como sua pr\pria coisa@.
De todas as cartas de doaHno de terras a mais
completa J a datada de 1457. AR surgem exaradas as condiHtes
em que foi estabelecida a posse das terras. Esta poder< ser
considerada uma carta modelo, pois aR estno todas as
recomendaHtes: limites da terra, as benfeitorias a
implantar e o tipo de culturas (vinhas, canaviais, horta).

OS LUGARES E FREGUESIAS
O povoamento da ilha, iniciado na dJcada de 20 a
partir dos ndcleos do Funchal e Machico, rapidamente
alastrou por toda a costa meridional, surgindo novos
ndcleos em Santa Cruz, C>mara de Lobos, Ribeira Brava,
Ponta do Sol e Calheta. As condiHtes orogr<ficas
condicionaram os rumos da ocupaHno do solo madeirense,
enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressno do
movimento demogr<fico implicaram o r<pido processo de
humanizaHno e valorizaHno s\cio-econ\mica da ilha. A costa
norte tardou em contar com a presenHa de colonos,
contribuindo para isso as dificuldades de contacto por via
marRtima e terrestre. Nno obstante, refere-se j< na dJcada
de 40 a presenHa de gentes em S. Vicente, uma das primeiras
localidades desta vertente a merecer uma ocupaHno efectiva.
O progresso do movimento demogr<fico foi de encontro
ao nRvel de desenvolvimento econ\mico da ilha e reflecte-se
na estrutura institucional. A criaHno de novos municRpios,
par\quias e a reforma do sistema administrativo e fiscal
foram resultado disso. Como corol<rio tivemos ao nRvel
religioso o desmembramento das iniciais par\quias e o
aparecimento de novas: Santo Ant\nio, C>mara de Lobos,
Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e Santa Cruz.
Isto reflecte-se ao nRvel administrativo com o aparecimento
dos primeiros juizes ped>neos de C>mara de Lobos e Ribeira
Brava e, depois, os municRpios da Ponta do Sol e Calheta,
respectivamente em 1501 e 1502.
Entretanto, na capitania de Machico o progresso nno
foi tno evidente porque o meio nno oferecia as mesmas
condiHtes em termos de contactos e da afirmaHno da economia
agrRcola. Deste modo, s\ a localidade de Santa Cruz foi uma
excepHno, disputando por vezes a primazia com Machico. DaR
resultou a criaHno da vila em 1515. Inserido no perRmetro
desta capitania estava toda a costa norte, que, pelas
dificuldades de acesso, foi alvo de um povoamento tardio e
lento. Isto contrastava com a do Funchal, onde o progresso
se deu a um ritmo galopante, o que motivou em 1508 a
elevaHno do principal ndcleo de povoamento a cidade. Esta
atitude da coroa J justificada pelo elevado ndmero de
fidalgos e cavaleiros que aR viviam e o importante
movimento comercial do porto.

OS POVOADORES
Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se
diversas levas de gente, entusiasmadas com o progresso
atingido pela ilha. Neste grupo surgem trinta e seis
apaniguados da casa do infante, na sua maioria escudeiros e
criados, que adquiriram uma posiHno proeminente ao nRvel
administrativo e fundi<rio. Mesmo assim Jono GonHalves
Zarco sentiu dificuldade em encontrar vartes de qualidade
para desposarem as suas filhas, tendo solicitado ao monarca
o seu envio do reino. Isto poder< ser o indicativo de que a
aristocracia reinol apostava mais nas faHanhas bJlicas em
Marrocos do que num projecto de povoamento. A enxada nno
lhes era familiar. Por outro lado confirma o fracasso de
Zarco no recrutamento de gente nobilitada, que teve de ser
suprida com aqueles que pretendiam "buscar vida e ventura".
O processo de povoamento foi faseado podendo-se
definir trLs momentos:
1.na dJcada de vinte tivemos os aventureiros e
companheiros de Zargo e Tristno,
2.em meados da centdria surge novo grupo, atraRdo pela
fama das riquezas da ilha, alguns deles filhos-segundos de
famRlias nobilitadas do norte,
3.a partir da dJcada de sessenta, ap\s a morte do
infante, J o entusiasmo contagiante de estrangeiros,
nomeadamente, oriundos das cidades italianas, a quem as
portas se abriram.
I comum afirmar-se que os primeiros povoadores da
Madeira sno oriundos do Algarve. Esta ideia filia-se na
tradiHno algarvia da gesta expansionista e na expressno de
Jer\nimo Dias Leite @muitos do Algarve"8. Todavia, a deduHno
parece-nos apressada, uma vez que faltam provas que a
corroborem. Senno, vejamos. Numa listagem dos primeiros
povoadores referidos nos documentos e cr\nicas, a presenHa
nortenha (64%) J superior B algarvia (25%). Por outro lado,
os registos paroquiais da freguesia da SJ (desde 1539), no
perRodo de 1539 a 1600, confirmam esta ideia, uma vez que
os nubentes oriundos de Braga, Viana e Porto representam
50% do total, enquanto os provenientes de Faro nno
ultrapassam os 3%9. Tudo isto contraria o estudo de Alberto
Iria que nno foi capaz de responder as ddvidas que o tema
suscitava e de dar credibilidade B sua opHno algarvia10.
Tendo em conta que o povoamento da Madeira J um
8
Ob. cit., 16; Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., 54.
9
LuRs Francisco de Sousa MELO, "A imigraHno da Madeira" in Hist\ria e Sociedade, nº 6, 1979, 39-57; Idem, "O Problema de
origem geogr<fica do povoamento" in Islenha, nº 3, 1988, 19-34.
10
O Algarve e a Madeira no SJculo XV, Lisboa, 1974, sep. de Ultramar; confronte-se com
a crRtica de Fernando J. PEREIRA em O Algarve e a Madeira, Braga, 1975.
processo faseado, com a participaHno de colonos oriundos
dos mais rec^nditos destinos, e que de todo o Reino surgem
gentes empenhadas nesta experiLncia tentadora. I de prever
a confluLncia de v<rias localidades, em especial as <reas
ribeirinhas - Lisboa, Lagos, Aveiro, Porto e Viana -,
adestradas no arroteamento de terras incultas. Se J certo
que do Algarve partiram muitos dos apaniguados da casa do
infante, com uma funHno importante no lanHamento das bases
institucionais do senhorio, nno J menos certo que do norte
de Portugal, nomeadamente da regino de Entre Douro e Minho,
tivemos os cabouqueiros necess<rios ao desbravamento da
densa floresta e preparar o solo para as culturas
mediterr>nicas - cereal, vinha, cana-de-aHdcar e pastel. O
Norte de Portugal, quer pelo facto de ser a regino do paRs
mais densamente povoada, quer pela sua permanente
vinculaHno B economia madeirense, exerceu por isso uma
decisiva influLncia na sociedade nascente.

OS ESCRAVOS. A Madeira, porque pr\xima do continente


africano e envolvida no seu processo de reconhecimento,
ocupaHno e defesa do controlo lusRada, tinha as portas
abertas a este vantajoso comJrcio. Deste modo a ilha e os
madeirenses demarcaram-se nas iniciais centdrias pelo
empenho na aquisiHno e comJrcio desta pujante e promissora
mercadoria do espaHo atl>ntico. A ilha chegaram os
primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que
contribuiram para o arranque econ\mico do arquipJlago.
O comJrcio entre a ilha e os principais mercados
fornecedores existiu, desde o comeHo da ocupaHno do
arquipJlago, e foi em alguns momentos fulgurante.
ImpossRvel J estabelecer com exactidno a quantidade de
escravos envolvida. A deficiente disponibilidade
documental, para os sJculos XV a XVII, nno o permite.
Carecemos dos registos de entrada da alf>ndega do Funchal e
dos contratos exarados nas actas notariais.
Os escravos que surgem no mercado madeirense sno na
quase totalidade de origem africana, sendo reduzida ou nula
a presenHa daqueles de outras proveniLncias, como o Brasil,
AmJrica Central e India. Isto pode ser resultado, por um
lado, da dist>ncia ou das dificuldades no trafico e, por
outro, das assRduas medidas limitativas ou de proibiHno,
como sucedeu no Brasil e India. Apenas o mercado africano,
dominado pela extensa costa ocidental em poder dos
portugueses, nno foi alvo de quaisquer proibiHtes. AR as
dnicas medidas foram no sentido de regular o tr<fico, como
sucedeu com os contratos e arrendamentos.
O litoral Atl>ntico do continente africano, definido,
primeiro, pelas Can<rias e Marrocos e, depois, pela Costa e
Golfo da GuinJ e Angola, era a principal fonte de escravos.
E aR Madeira foi buscar a mno-de-obra necess<ria para abrir
os poios e, depois, plantar os canaviais. Primeiro, tivemos
os escravos brancos das Can<rias e Marrocos e depois os
negros das partes da GuinJ e Angola.
As condiHtes particulares da presenHa portuguesa no
Norte de ;frica definiram aR uma forma peculiar de
aquisiHno. Os escravos eram sin\nimo de presas de guerra,
resultantes das mdltiplas pelejas, em que se envolviam
portugueses e mouros. Para os madeirenses, que defenderam
com valentia a soberania portuguesa nestas paragens, os
escravos mouros surgem ao mesmo tempo como prJmio e
testemunho dos seus feitos bJlicos. Mas, poucos podiam
ostentar os seus triunfos de guerra. Outra forma de
aquisiHno era o corso marRtimo e costeiros, pr<rica de
repres<lia comum a ambas as partes.
Na Costa Africana, alJm do Bojador, os meios de
abastecimento de escravos eram outros: primeiro tivemos os
assaltos e razias, depois o trato pacRfico com as populaHtes
indRgenas. Tudo isto implicava uma din>mica diferente para
os circuitos de comJrcio e transporte. Os cavaleiros e
cors<rios foram substituRdos pelos mercadores.
A presenHa na Madeira de um significativo ndmero de
escravos de Can<rias, Norte de ;frica e Costas da GuinJ
dever< ter propiciado, ao nRvel social e material, mdltiplas
aportaHtes ao quotidiano madeirense. I comum apontarem-se
indmeras influLncias do grupo nas tradiHtes, nomeadamente
no folclore e na alimentaHno madeirense. Esta ideia, ainda
que hoje se tenha generalizado, nno resulta de uma
investigaHno cientRfica mas sim de meras observaHtes
empRricas ou suposiHtes. A etnografia J prenhe em
observaHtes deste tipo: no campo do folclore regional, as
mdsicas e as danHas que nno se enquadram no filno portuguLs
sno, imediatamente, associadas a este grupo. Por isso
algumas danHas e cantares, tRpicas do folclore madeirense,
sno resultado da presenHa dos escravos: o charamba, o baile
pesado, a mourisca, a canHno de embalar e o baile da meia
volta sno universalmente aceites pelos folcloristas
madeirenses como resultado desta cultura legada pelos
escravos.
2. A MADEIRA E O ATLÂNTICO: CANÁRIAS, ÁFRICA, BRASIL, ESCRAVOS,
ESTRANGEIROS

A Madeira, desde o início, evidenciou-se como um espaço charneira do mundo atlântico mantendo
contactos com os espaços que também foram alvo de uma ocupação europeia ou que estavam já
povoados. Deste relacionamento, motivado por motivações comerciais resultou uma aportação
cultural que teve uma influência decisiva na sociedade insular.
No grupo de forasteiros que cá se fixam podemos destacar os escravos africanos, sejam oriundos
das Canárias, N. de África e Costa da Guiné, cuja presença cultural pode também ser valorada e
questionada.

As ilhas atl>nticas assumem uma situaHno particular no con-


texto das migraHtes portuguesas do sJculo XV. Perante os
portugueses deparam-se ilhas desertas, que pela sua riqueza
do solo ou pela posiHno geogr<fica tLm que ser ocupadas11.
Para isso h< necessidade de encontrar, nno s\ marinheiros,
mas tambJm, lavradores, disponRveis para esta tarefa.
Em todas as ilhas as dificuldades sentidas no momento da
ocupaHno foram indmeras, variando o grau B medida que se
avanHava para Ocidente ou Sul. Deste modo a coroa e o
senhorio sentiram-se na necessidade de atribuir incentivos
B fixaHno de colonos: a entrega de terras de sesmaria,
privilJgios e isenHtes fiscais variadas, a saRda forHada com
o degredo dos sentenciados. Tudo isto comeHou na Madeira,
alargando-se depois Bs restantes ilhas.
A concessno de terras foi, a par dos indmeros privilJgios
fiscais, um dos principais incentivos B fixaHno de colonos,
mesmo em <reas in\spitas como Cabo Verde e S. TomJ. A
avidez de terras e tRtulos por parte dos filhos-segundos e
da pequena aristocracia do reino contribuRram para
alimentar a di<spora.
Sabe-se, de acordo com um capRtulo de uma carta de D.
Jono I inserido noutra de 1493, que foi o rei quem
regulamentou a forma de entrega das terras na Madeira. Ela
deveria ser feita de acordo com o estatuto social do
colono. Assim os vizinhos de mais elevada condiHno e
possuidores de proventos, recebem-nas sem qualquer encargo.
Os pobres e humildes que viviam do seu trabalho s\ a elas
tinham direito mediante requisitos especiais, e apenas as
terras que pudessem arrotear e tornar ar<veis num prazo de
dez anos. Com estas cl<usulas restritivas favorecia-se a
concentraHno da propriedade num reduzido ndmero de
povoadores.
Para os AHores o processo evoluiu num segundo momento
mas mesmo assim nno foi atractivo para a fidalguia. Gaspar
Frutuoso testemunha v<rias levas. Ao lanHamento de gado por
GonHalo Velho associam-se gentes marroquinas, como foi o
11
LuRs de ALBUQUERQUE, "O avanHo no Atl>ntico. Necessidade estratJgica de ocupaHno das ilhas atl>nticas", in Portugal no
Mundo, vol. I, pp.201-211.
caso do sobrinho do rei de Fez12. Depois, foi o comeHo do
povoamento sob as ordens de GonHalo Vaz, da casa do
Infante, que trouxe consigo "homens principais e honrados.
alguns deles de casa do infante e outros naturais do
Algarve, que o dito infante mandaria para povoarem esta
ilha.(...)afora outros homens, tambJm fidalgos e honrados,
que depois doutras partes a ela vieram, uns solteiros e
outros casados, e com seus filhos e filhas"13.
Para as ilhas de Cabo Verde e S.TomJ o processo J muito
posterior e apresenta cambiantes diversas, o que levou a
uma maiorit<ria presenHa de negros. Todavia, a proximidade
destas ilhas da <rea do tr<fico dos escravos motivou a
presenHa de muitos europeus.
O primeiro sentenciado de degredo para a Madeira, de que
ficou notRcia, foi Jono Anes. Ele, entretanto, fugira para
Ceuta e em 1441, passados onze anos, veio a solicitar o
perdno rJgio. Para os AHores o encaminhamento dos
degredados passou a ser feito por pedido expresso do
infante D. Henrique no perRodo da regLncia de D. Pedro. Mas
as ilhas pouco cativavam a sua atenHno, como se depreende
do requerimento feito por Jono Vaz para que lhe fosse
comutada a pena para Ceuta, pois no seu entender "as dictas
ilhas nom eram taes pera em ellas homens poderem viver".
Gaspar Frutuoso14, no entanto, refere que o povoamento de
S. Miguel nno icluiu degredados, rematando:"nos tempos
passados, logo quando esta ilha se descobriu(...)
vieram(...), para a povoar, de muitas partes, homens nobres
e fidalgos de v<rias qualidades e cavaleiros de muita
conta, e nno degradados, como alguns, ou invejosos ou pouco
curiosos ou praguentos e maliciosos, querem dizer contra a
verdade sabida."
A partir da dJcada de setenta do sJculo XV o principal
destino dos degredados foi o arquipJlago de Cabo Verde, que
na centdria seguinte foi substituRdo por S. TomJ. Note-se
que em 1493 ;lvaro Caminha foi autorizado a conceder
cartas de seguranHa, por 4 meses, aos degredados para
poderem vir ao reino vender os seus bens e fixarem-se em
definitivo na ilha. Segundo o corregedor de S. TomJ em
151715 o ndmero de degredados na ilha representava um
quarto da populaHno, o que era motivo para sJrias
preocupaHtes, mercL do comportamento insubmisso. Aqui ou em
Cabo Verde muitos deles fugiam e faziam-se homizRados, o
que veio a determinar indmeros problemas, pelo que a coroa
estabeleceu alguma ponderaHno na polRtica de degredo com
destino Bs ilhas. Assim em 157516 o rei ordenou B Casa da
12
Saudades da Terra, livro IV, vol.I, p.17.
13
. Ibidem, p.17. Nos capRtulos IV a XXXVI o autor apresenta uma relaHno dessas famRlias.
14
Saudades da Terra, livro IV, Ponta Delgada, 1964, p.7
15
. Ant\nio CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 300-301.
16
. Monumenta Mission<ria Africana, I, 770.
SuplicaHno que no degredo para S. TomJ e Mina se tivesse em
conta aqueles que nno fossem acusados de crimes ruins, uma
vez que eram maus exemplos para os escravos. Em 1622 Manuel
Severim de Faria apontava-os como a principal causa das
dificuldades sentidas no ensino da doutrina os escravos
caboverdianos17. Mas, nem todos eram motivo de queixa, pois
em 149918 em carta de PLro de Caminha < referida a vida
exemplar de Jono Mendes, "bto homem e que est< o milhor
afazendado da ilha".
Para o perRodo de 1463 a 1500 Vitor Rodrigues19 reuniu 19
de cartas de perdno sobre sentenciados com a pena de
degredo, sendo 7 para Cabo Verde e os restantes para S.
TomJ. Um dos casos mais significativos J Diogo, escravo de
Diogo Leitno, degredado por agressno para Cabo Verde viu
comutada a pena a pedido do propriet<rio20.
O povoamento dos arquipJlagos atl>nticos faz-se em
conson>ncia com as condiHtes oferecidas pelo meio, o
satisfazer as necessidades cerealRferas ou v<lvula de
escape para os atritos sociais e polRticos da penRnsula. No
caso portuguLs, a inexistLncia de populaHno nas ilhas entre-
tanto ocupadas levou B canalizaHno dos excedentes
populacionais ou os disponRveis no reino.
O fen\meno de transmigraHno da Jpoca quatrocentista
apresenta, ao nRvel da mobilidade social, um aspecto
particular das sociedades insulares. Elas foram, primeiro,
p\los de atracHno e, depois, viveiros disseminadores de
gentes para a faina atl>ntica. No comeHo, a novidade aliada
aos indmeros incentivos de fixaHno definiram o primeiro
destino, mas, depois, as escassas e limitadas
possibilidades econ\micas das ilhas e o fascRnio pelas
riquezas das Qndias conduziram a novos rumos. No primeiro
caso a Madeira, porque foi r<pida a valorizaHno econ\mica,
galvanizou as atenHtes portuguesas e mediterr>neas. S\ de-
pois surgiram novos destinos insulares, como as Can<rias,
AHores, Cabo Verde e S. TomJ, onde os madeirenses jogaram
um importante papel. Desta forma a Madeira do sJculo XV
poder< ser definida como um p\lo de convergLncia e
redistribuiHno do movimento migrat\rio no mundo insular.
No sJculo XVI desvanece-se todo o interesse pelas ilhas,
estando todo o empenho virado no Ocidente, descoberto por
Crist\vno Colombo ou Pedro Alvares Cabral, e o Oriente a
que Vasco da Gama chegar< por via marRtima.
Os fermentos da geografia humana das ilhas foram
peninsulares, de origens diversas, cuja incidLncia as

17
. Ibidem, IV, 625.
18
. Ibidem.
19
"A GuinJ nas cartas de perdno(1463-1500), in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Jpoca. actas, vol. IV, Porto,
1989, pp.398-412.
20
. ANTT, Chanc. de D. Manuel, lº.46, fl.50, publ. Hist\ria Geral de Cabo Verde.corpo documental, Lisboa, 1988, p.129.
fontes hist\ricas nos impedem de afirmar com firmeza.
Insiste-se para a Madeira, AHores e Cabo Verde que as
primeiras levas de povoadores foram de proveniLncia
algarvia, mas nno h< dados suficientemente claros sobre a
sua domin>ncia. Esta deduHno resulta do facto de o infante
D. Henrique ter fixado morada no litoral algarvio e de l<
terem partido as primeiras caravelas de reconhecimento e
ocupaHno das ilhas. Mas como encontrar colonos disponRveis
gente numa <rea que carecia deles ? Os que partiam do
Algarve eram mesmo daR oriundos ou gentes que aR afluRam
atraRdas pela az<fama marRtima que l< se vivia ?21
Orlando Ribeiro22 afirma, a este prop\sito, que nas ilhas da
Madeira, Porto Santo, Santa Maria e S. Miguel, ao primeiro
impacto de gente do sul seguiu-se o nortenho. Numa listagem
sum<ria dos primeiros povoadores, onde foi possRvel reunir
179, a presenHa nortenha J maiorit<ria: a norte do Tejo
temos a maior incidLncia dos nacionais. AlJm disso os
registos paroquiais da freguesia da SJ para o perRodo de
1539 a 1600 corroboram a ideia, dando-nos um ndmero
maiorit<rio de nubentes das regites de Braga, Porto e Viana
do Castelo23. Esta mesma ideia J corroborada nas restantes
freguesias da ilha24. TambJm na listagem do grupo de
mercadores, nos primeiros anos J dominante a presenHa de
gentes de Entre-Douro-e-Minho, nomeadamente dos portos
costeiros de Ponte Lima, Vila Real e Vila do Conde25.
Para os AHores sno diversos os estudos sobre a
etnogenia da populaHno aHoriana. A ideia mais usual J de que
as ilhas de Santa Maria e S. Miguel foram povoadas por
gentes da Estremadura, Algarve e Alentejo, os da Terceira e
Graciosa sno do Norte, enquanto no Faial e S.Jorge tivemos
a domin>ncia dos flamengos26.
Em S. Miguel, a listagem dos primeiros povoadores
fornecida por Gaspar Frutuoso leva-nos a concluir por uma
idLntica afirmaHno das gentes do Norte de Portugal: em 177
famRlias aR referenciadas 59% eram do reino e 24% da
Madeira27. Das primeiras a maior percentagem situa-se na
regino de Entre-Douro-e-Minho. E podemos concluir com LuRs
da Silva Ribeiro: "A grande maioria dos povoadores foi
constituRda por portugueses e no povoamento colaboraram,

21
Vejam-se as aportaHtes de Alberto IRIA(O Algarve e a ilha da Madeira no sJculo XV(documentos inJditos), Lisboa, 1974) e a
crRtica de Fernando Jasmins PEREIRA ("O Algarve e a ilha da Madeira. CrRticas e aditamentos a Alberto Iria", in Estudos sobre
Hist\ria da Madeira, Funchal, 1991, pp. 283-296). O tema foi retomado por Artur Teodoro de MATOS("Do contributo algarvio no
povoamento da Madeira e dos AHores", in Actas das I Jornadas de Hist\ria medieval do Algarve e Andaluzia, LoulJ, 1987), que
releva a import>ncia das gentes algarvias no povoamento da Madeira e AHores.
22
. "Aspectos e problemas da expansno portuguesa", in Estudos de CiLncias PolRticas e Sociais, nº.59, Lisboa, 1962.
23
LuRs de Sousa MELO, "O problema da origem geogr<fica do povoamento", in Islenha, nº.3, 1988, 20-34.
24
Maria LuRs Rocha PINTO e Teresa Maria Ferreira RODRIGUES, "Aspectos do povoamento das ilhas da Madeira e Porto Santo
nos sJculos XV e XVI", in Actas do III Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, Funchal, 1993, 403-471.
25
Alberto VIEIRA, O ComJrcio inter-insular nos sJculos XV e XVI. Madeira, AHores e Can<rias, Funchal, 1987, pp.87-89.
26
Confronte-se Carreiro da COSTA, Etnologia dos AHores, vol.I, Lagoa, 1989, pp.355-395.
27
. Jono Marinho dos SANTOS, Os AHores nos sJcs. XV e XVI, vol.I, Ponta Delgada, 1989, pp.131-138.
mais ou menos, todas as provRncias de Portugal"28.
A inexistLncia de registos capazes de elucidar esta
realidade leva-nos a buscar outro tipo de testemunhos
capazes de denunciarem a origem destes primeiros colonos.
Os dados fornecidos pela Genealogia, AntroponRmia,
LinguRstica e Etnologia referem uma origem variada para os
primeiros colonos que actuaram como o fermento da nova
sociedade aHoriana: minhotos, alentejanos, algarvios,
madeirenses e flamengos corporizam o comeHo da sociedade29.
I compreensRvel que, a exemplo do que sucedeu na Madeira,
no grupo de povoadores das ilhas de Santa Maria e S. Miguel
surgisse um grupo de gentes algarvias ou aR residentes, que
corporizaram a oligarquia local. Mas depois a principal
forHa-motriz da sociedade e economia aHorianas deveria ser,
necessariamente, do norte de Portugal. E se no comeHo os
contactos eram, preferencialmente, com o Algarve
diversificaram-se depois a exemplo da Madeira manteve-se
uma forte vinculaHno Bs terras nortenhas.
Partindo do princRpio de que o povoamento das ilhas
foi um processo faseado, que atraiu a totalidade das
regites peninsulares e atJ mesmo mediterr>neas, J de prever
a confluLncia de gentes de v<rias proveniLncias, em
especial nos espaHos ribeirinhos de maior concentraHno dos
aglomerados populacionais. Se J certo que o litoral
algarvio exerceu uma posiHno de relevo nas primeiras
expediHtes henriquinas no Atl>ntico, tambJm nno J menos
certo que esta era uma <rea de recente ocupaHno e
carenciada de gentes. Assim o grosso dos cabouqueiros do
mundo insular portuguLs deveria ser de origem nortenha,
sendo em muitos casos os portos do litoral algarvio o local
de partida.
Do Algarve vieram, sem ddvida, os criados ou
servidores da Casa do Infante, cuja origem geogr<fica est<
ainda por esclarecer. Eles tiveram uma funHno de relevo no
lanHamento das bases institucionais do senhorio das ilhas.
TambJm em Cabo Verde J referenciado para as ilhas de
Santiago e Fogo, uma incidLncia inicial de algarvios na
criaHno da nova sociedade, a que depois se juntaram os
negros, como livres ou escravos. Mas ser< de manter esta
filiaHno dos primeiros povoadores com o litoral algarvio,
quando o processo teve lugar ap\s a morte do infante D.
Henrique?
De S.TomJ sabe-se apenas da presenHa de uma forte
comunidade judaica, resultado da segunda leva de povoadores
ordenada por ;lvaro Caminha, desconhecendo-se a origem dos
primeiros aR conduzidos por Jono de Paiva. Aqui conhecem-se

28
. "FormaHno hist\rica do povo aHoriano", in AHoreana, vol. II, 1941, 195.
29
Tenha-se em conta os coment<rios de Carreiro da COSTA, ob.cit., pp.365-369.
alguns algarvios, que acompanharam ;lvaro de Caminha em
149330.
Cedo foram reconhecidos os efeitos nefastos da
presenHa dos judeus nestas paragens, responsabilizados pela
quebra do comJrcio e das receitas do er<rio rJgio. Deste
modo em 1516 D. Manuel ordenou que eles s\ poderiam residir
em Cabo Verde mediante ordem rJgia, o mesmo sucedendo em
1569 para S. TomJ.
Nno dever< esquecer-se que o processo de formaHno das
sociedades insulares da GuinJ foi diferente do que sucedeu
na Madeira e AHores. Aqui, a dist>ncia do reino e as
dificuldades de recrutamento de colonos europeus devido B
insalubridade do clima condicionaram, de modo evidente, a
forma da sua expressno Jtnica. A par de um reduzido ndmero
de europeus, restrito em alguns casos aos familiares dos
capitnes e funcion<rios rJgios, vieram juntar-se os
africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade.
Mas a presenHa de negros, sob a condiHno de escravos,
incentivada no inRcio, foi depois alvo de restriHtes. O seu
espRrito insubmisso, de que resultaram algumas e sJrias
revoltas em S. TomJ, foi a principal razno destas medidas.
Confrontadas as Can<rias com as ilhas portuguesas
conclui-se que o processo de ocupaHno e agentes que o
corporizaram foram diversos, sendo tambJm diferente a
conjuntura em que tal se desenrolou. Nas Can<rias a
iniciativa da conquista partiu de um estrangeiro e o
processo de povoamento foi marcado pela presenHa genovesa,
enquanto nas ilhas portuguesas todo ele foi um fen\meno
nacional sob a orientaHno da coroa.
A presenHa estrangeira nas ilhas portuguesas J
evidente desde o inRcio do povoamento. Primeiro a
curiosidade de novas terras, depois a possibilidade de uma
troca comercial vantajosa: eis os principais m\beis para a
sua fixaHno nas ilhas. A sua permanLncia est< j< documentada
na Madeira a partir de meados do sJculo XV, integrados nas
segundas levas de povoadores. E mais nno entraram porque
estavam, atJ 1493, condicionados B concessno de carta de
vizinhanHa. Ali<s, foi a Madeira a primeira ilha a
despertar a atenHno dos mercadores estrangeiros, que
encontraram nela um bom mercado para as suas operaHtes
comerciais. Note-se que o rincno madeirense foi o primeiro
a merecer uma ocupaHno efectiva e imediata, apresentando um
conjunto variado de produtos com valor mercantil, o que
despertou a cobiHa dos mercadores nacionais e estrangeiros.
Nos demais arquipJlagos este processo foi moroso e tardou
em aparecer produtos capazes de gerarem as trocas externas.

30
Veja-se Maria Benedita ARAUJO, "Algarvios em S. TomJ no inRcio do sJculo XVI", in Cadernos Hist\ricos, IV, Lagos, 1993,
pp. 27-39.
No caso das Can<rias e dos AHores isso s\ foi conseguido em
pleno a partir de princRpios do sJculo XVI, com a oferta de
novos produtos, como o aHdcar, o pastel e cereais. Depois
no dltimo arquipJlago a sua afirmaHno como importante
entreposto do comJrcio oceano fez convergir para aR os
interesses de algumas casas comerciais empenhadas no
contrabando dos produtos de passagem.
Na Madeira, ultrapassadas a partir de 1489 todas as
barreiras B presenHa de estrangeiros, a comunidade
forasteira amplia-se e ganha uma nova dimensno na sociedade
e economia. A presenHa de agentes habilitados para a
dimensno assumida pelas transacHtes comerciais e a injecHno
de capital no sector produtivo e comercial favoreceram a
evoluHno do sistema de trocas. Neste contexto destaca-se a
comunidade italiana, que veio em busca do aHdcar. A
import>ncia assumida pela cultura na ilha e comJrcio do seu
produto no mercado europeu foi resultado da intervenHno
desta comunidade. Florentinos e genoveses foram os
principais obreiros. Os primeiros evidenciaram-se nas
transacHtes comerciais e financeiras do aHdcar madeirense
no mercado europeu. A partir de Lisboa controlam B
dist>ncia, por meio de uma rede de feitores, o comJrcio do
aHdcar madeirense. Para isso conseguiram da fazenda real o
quase exclusivo do comercio do aHdcar resultante dos
direitos cobrados pela coroa na ilha, bem como o monop\lio
dos contingentes de exportaHno estabelecidos pela coroa em
1498. Nomes como Benedito Morelli, Marchioni, Jono
Francisco Affaitati, Jer\nimo Sernigi, tLm interesses na
ilha onde actuam por iniciativa pr\pria ou por intermJdio
dos seus agentes, madeirenses e compatrRcios seus.
A penetraHno deste grupo de mercadores na sociedade
madeirense J por demais evidente. O usufruto de privilJgios
reais e o relacionamento matrimonial favoreceram a sua
integraHno na aristocracia madeirense. Eles sno
maioritariamente propriet<rios e mercadores de aHdcar. Sno
exemplo disso Rafael Cattano, LuRs Doria, Jono e Jorge
Lomelino, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, Simno Acciaiolli
e Benoco Amatori. ConvJm referenciar que os estrangeiros
tiveram aqui uma presenHa forte na agricultura, pois o
conjunto destes produtores de aHdcar alcanHou os 20% da
produHno no sJculo XVI.
TambJm os flamengos e franceses surgiram na ilha,
desde finais do sJculo XV, atraRdos pelo comJrcio do aHdcar.
Todavia destes sno poucos os que criam raRzes na sociedade
madeirense - Jono Esmeraldo J uma excepHno -, o seu dnico e
exclusivo interesse J o comJrcio do aHdcar.
Nos AHores a situaHno foi diferente. Os flamengos
surgem desde o comeHo como importantes povoadores. Foi por
isso que as ilhas aHorianas ficaram conhecidas como as
ilhas flamengas31. Eles foram imprescindRveis para o
povoamento das ilhas do Faial, Terceira, Pico e Flores32. O
primeiro a desembarcar nos AHores ter< sido J<come de
Bruges, apresentado em documento de 1450 como capitno da
ilha Terceira. Da sua acHno pouco se sabe e h< quem duvide
da autenticidade do tRtulo de posse da capitania da ilha33.
Mais importante foi, sem ddvida, a vinda de Josse Huerter
em 1468 como capitno das ilhas do Pico e Faial.
Acompanharam-no indmeros flamengos que contribuRram para o
arranque do povoamento das ilhas do grupo central e
ocidental. Martim Behaim34 refere para 1466 a presenHa de
dois mil flamengos no Faial, enquanto Jer\nimo Munzer35,
vinte e oito anos depois, diz serem apenas mil e quinhentos
os que residiam aqui e no Pico.
Na ilha de Sno Miguel fala-se da existLncia de uma
comunidade bretn no lugar da Bretanha36. Segundo alguns ela
deriva do inicial fluxo de povoadores mas para outros
dever< ser tardia, situada entre 1515 e 1527, pois s\ na
dltima data o local surge com tal nome. Todavia J de
estranhar que Gaspar Frutuoso nno faHa qualquer coment<rio
sobre ela e os registos paroquiais sejam omissos. Mas isto
nno invalida a presenHa desta comunidade, talvez em data
posterior, comprovada ali<s em alguns apelidos, top\nimos,
caracterRsticas fRsicas da populaHno, das casas e dos
moinhos de vento.
A esta primeira leva de estrangeiros como povoadores
sucederam-se outras com objectivos distintos. O progresso
econ\mico do arquipJlago despertara a atenHno da burguesia
europeia, que surge aR B procura dos seus produtos. O
pastel atraiu, primeiro os flamengos e, depois os ingleses.
Daqui resultou a importante col\nia na cidade de Ponta
Delgada.
Para os arquipJlagos de Cabo Verde e S. TomJ a
comunidade estrangeira assume menos import>ncia, sendo, em
certa medida, delimitada pela polRtica exclusivista da
coroa portuguesa, que criou sJrios entraves B sua presenHa.
Todavia o facto de S. TomJ ter merecido uma exploraHno
diversa com a cultura da cana sacarina levou a que aR
afluRssem tJcnicos e mercadores, ligados ao produto. Por

31
Confronte-se Jules MEES, "Hist\ria da descoberta das ilhas dos AHores e da origem da sua denominaHno de ilhas flamengas",
Revista Michaelense, fasc. 2 e 3, Ponta Delgada, 1919.
32
Ferreira SERPA, Os flamengos na ilha do Faial. A famRlia Utra(Hurtere), Lisboa, 1929; Marcelino LIMA, FamRlias faialenses,
Horta, 1933; M. Martim Cunha da SILVEIRA, "Do contributo flamengo nos AHores", in Boletim do Instituto Hist\rico da ilha
Terceira, n-.21-22, Angra do Heroismo, 1963-64.
33
Ferreira SERPA, "Um documento falso atribuRdo ao infante D. Henrique ou a carta de doaHno da ilha Terceira a J<come de
Bruges", in Revista de Arqueologia e Hist\ria, fasc. VII, IX.
34
. Archivo dos AHores, I, 442-443.
35
. O Itiner<rio do Dr. Jer\nimo Munzer, Coimbra, 1926, 65-66.
36
Herculano Augusto de MEDEIROS, "SubsRdios para a monografia da Bretanha", in Arquivo dos AHores, vol. XIII; EugJnio
PACHECO, "A Bretanha Micaelense", in ;lbum AHoriano, Lisboa, 1903.
outro lado, no entender de um piloto an\nimo no sJculo
dezasseis, havia a preocupaHno de cativar colonos de
diversas origens para o povoamento da ilha: "Habitam ali
muitos comerciantes portugueses, castelhanos, franceses e
genoveses e de qualquer outra naHno que aqui queiram viver
se aceitam todos de mui boa vontade..."37.
Numa listagem possRvel deste grupo J evidente o seu
reduzido ndmero e o facto de eles na sua maioria terem
adquirido a nacionalidade e aportuguesado os seus nomes.
Num e noutro arquipJlago encontr<mos alguns italianos e
flamengos. Ali<s B descoberta do arquipJlago de Cabo Verde
estno associados dois italianos - Cadamosto e Ant\nio da
Noli -, que se encontravam ao serviHo do infante D. Hen-
rique. A eles poderemos juntar, para Cabo Verde, Joham
Pessanha, Pero Sacco, Antonio EspRndola, Bastiam de Lila,
Rodrigo Vilharam, Fernam Fied de Lugo, para S. TomJ:
Crist\vno Doria de Sousa, Andre Lopes Biscainho, J<come
Leite, Pedro e LuRs de Roma, Francisco Corvynel, Antonio
Rey, Jorge Abote. Note-se que Crist\vno D\ria de Sousa era
em 1561 o capitno e governador da ilha de S. TomJ.
A existLncia da comunidade estrangeira,
maioritariamente composta por mercadores, est< em
conson>ncia com a conjuntura peninsular e europeia, por um
lado, e os atractivos de Rndole econ\mica que elas
ofereciam, por outro. Desta forma o lanHamento de culturas
com elevado valor comercial, como o pastel e o aHdcar, est<
associado a isso. Eles surgem nas ilhas como os principais
financiadores da referida actividade agrRcola e animadores
do comJrcio. Na Madeira e nos AHores a introduHno e
incentivos Bs culturas do pastel e cana-de-aHdcar,
encontram-se-lhes tambJm ligadas. Assim o pastel J apontado
pela historiografia aHoriana como um legado da col\nia
flamenga do Faial, enquanto o aHdcar madeirense J
considerado resultado da presenHa genovesa.
Em sRntese poder-se-< afirmar que as comunidades
italiana e flamenga deram um contributo relevante ao
povoamento e valorizaHno econ\mica das ilhas. Na Madeira e
nas Can<rias evidenciaram-se os genoveses como principais
arautos da economia aHucareira, enquanto nos AHores os
segundos afirmaram-se como povoadores de algumas ilhas e
principais promotores da cultura do pastel. A presenHa
flamenga na Madeira e Can<rias J tardia, o que nno
prejudicou a sua vinculaHno B cultura e comJrcio do aHdcar.
Entre eles merece especial referLncia os Weselers com
importantes interesses na Madeira e em La Palma.
Se tivermos em conta que a presenHa do grupo de
forasteiros na sociedade insular resulta fundamentalmente
37
. Viagem de Lisboa a S. TomJ, Lisboa, s.d., 51.
de interesses mercantis, compreenderemos a maior incidLncia
nas ilhas ou cidades onde a actividade foi mais relevante.
Deste modo as da Madeira, Gran Canaria e Tenerife
galvanizaram muito cedo o seu empenho e conduziram a que
eles estabelecessem uma importante rede de neg\cios a
partir de Lisboa ou Sevilha. S\ assim se pode explicar a
posiHno dominante aR assumida.
Nos AHores a comunidade estrangeira divide-se entre os
interesses fundi<rio e comercial, mas foi sem ddvida este
dltimo, derivado da import>ncia que aR assumiu a cultura do
pastel. Este produto chamaou B atenHno dos mercadores
flamengos, franceses e ingleses para os portos de Angra e
Ponta Delgada. Mais tarde, a import>ncia definida por esta
<rea nas rotas comerciais do atl>ntico atraiu a cobiHa dos
estrangeiros como cors<rios ou mercadores empenhados no
contrabando.
Em idLntica situaHno surgiram muitos dos forasteiros
nas ilhas de Cabo Verde e do Golfo da GuinJ, atraRdos pelo
rendoso comJrcio de escravos. Apenas as limitaHtes impostas
pela coroa B sua permanLncia levaram a que nno
estabelecessem um vRnculo seguro.
Registe-se, por fim, a presenHa dos ingleses, que
adquiriram um lugar relevante nos arquipJlagos da Madeira,
AHores e Can<rias a partir do sJculo XVII. O seu principal
interesse era o vinho de que se salientaram como os mais
importantes consumidores na terra de origem ou nas col\nias
orientais e ocidentais. Eles permaneceram atJ a
actualidade, deixando rastos evidentes no quotidiano das
ilhas.
O guanche, ou melhor os aborRgenes de Can<rias, uma
vez que a primeira designaHno cobre apenas os de Tenerife,
sno as primeiras vRtimas dos assaltos peninsulares. Eles
surgem com alguma frequLncia na Madeira e Algarve, sendo
raros nos AHores. Aqui contam a assiduidade dos contactos e
a vinculaHno destas gentes Bs diversas tentativas de
conquista henriquina de algumas ilhas do arquipJlago.
A sua presenHa na Madeira J um facto natural. Para
isso contribuRram a proximidade da Madeira e o total
comprometimento dos madeirenses na empresa henriquina.
Decorridos, apenas, 26 anos sob o inRcio do povoamento da
Madeira, os madeirenses embrenharam-se na complexa disputa
pela posse das Can<rias ao serviHo do senhor, o infante D.
Henrique. Tais condiHtes supracitadas definiram a
intervenHno madeirense neste mercado de escravos, surgindo,
na primeira metade do sJculo XV, algumas incurstes de que
resultou o aprisionamento de escravos. Destas referem-se
trLs (1425, 1427, 1434) que partiram da Madeira. Mais
tarde, com a expediHno B costa africana de 1445 o
madeirense ;lvaro de Ornelas fez um desvio B ilha de La
Palma onde tomou alguns indRgenas que conduziu B Madeira.
Ali<s, nas indmeras viagens organizadas por portugueses
entre 1424 e 1446, surgem escravos que, depois, sno
vendidos na Madeira ou em Lagos.
A partir de meados do sJculo XV, sno assRduas as
referLncias a escravos can<rios na ilha da Madeira como
pastores e mestres de engenho38. A sua presenHa na ilha
deveria ser importante nas dltimas dJcadas do sJculo XV. Os
documentos clamando por medidas para acalmar a sua rebeldia
sno indRcio disso. Muitos deles, fieis B tradiHno de
pastoreio, mantiveram-se na Madeira fieis a este ofRcio.
Estranhamente, nos testamentos do sJculo XV, nno
encontramos indicaHno de qualquer escravo guanche. Para
alJm dos dois escravos que possuRa o capitno Simno GonHalves
da C>mara, sabe-se que Jono Esmeraldo, na Lombada da Ponta
do Sol, era tambJm detentor de escravos desta origem, sem
ser referido o ndmero39. Cadamosto, na primeira passagem
pelo Funchal em 1455, refere ter visto um can<rio cristno
que se dedicava a fazer apostas sobre o arremesso de
pedras40. Ser< que o Pico Can<rio (Santana) e o lugar do
Can<rio (Ponta de Sol) referem-se ao escravo ou ao p<ssaro
tno comum nestes arquipJlagos ?
Nos anos de 1445 e 1446 estno documentadas diversas
expediHtes Bs Can<rias, que contribuRram para o aumento das
presas de escravos do arquipJlago na Madeira. Em 1445 ambos
os capitnes da ilha - Tristno Vaz e GonHalves Zarco -
enviaram caravelas de reconhecimento B costa africana, mas
o fracasso da viagem levou-os a garantirem a despesa com
uma presa em La Gomera. ;lvaro Fernandes fez dois assaltos
em La Gomera e em 1446 foi enviado por Jono GonHalves
Zarco, referindo Zurara a intenHno de realizar alguma
presa. A dltima expediHno, bem como as acima citadas,
revelam que os escravos can<rios adquiriram uma dimensno
importante na sociedade madeirense pela sua intervenHno na
pastorRcia e actividade dos engenhos. Aqui, a exemplo das
Can<rias, eles, nomeadamente, os fugitivos foram um quebra-
cabeHas para as autoridades. Foi como resultado desta
situaHno insubmissa, de livres e escravos, que o senhorio
da Madeira determinou em 148341 uma devassa, seguida de uma
ordem de expulsno em 149042. De acordo com este dltimo
38
. Lothar SIEMENS y Liliana BARRETO, "Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la
Madera (1455-1505)", in A. E. A., n 20, 1974, 111-143. Aqui utilizamos o termo can<rio
para designar os escravos oriundos do arquipJlago das Can<rias, nno obstante esse termo
querer significar os habitantes de Gran Can<ria. Mas segundo Gaspar FRUTUOSO (Ob. cit.,
livro primeiro, p. 73) "desta (Gran Canaria) tomaram o nome geral de can<rios os
habitadores das outras, ainda que tambJm seus particulares nomes".
39
. Gaspar FRUTUOSO, Livro primeiro das Saudades da Terra. P. Delgada, 1979, 124.
40
. JosJ Manuel GARCIA, Viagens dos descobrimentos, Lisboa, 1983, p. 86.
41
.A.H.M, vol.XV, pp.122-134.
42.Ibidem, vol. XVI, pp.240-244
documento todos os escravos canarios, oriundos de Tenerife,
La Palma, Gomera e Gran Canaria, exceptuando-se os mestres
de aHdcar as mulheres e as crianHas, deveriam ser expulsos
do arquipJlago. As reclamaHtes dos funchalenses, sintoma de
que se sentiam prejudicados e de que esta comunidade era
importante, levou o infante a considerar apenas os
forros43.
A 4 de Dezembro de 1491 houve reunino extraordin<ria
da c>mara para deliberar sobre o assunto. A ela assistiram
o capitno do Funchal, Simno GonHalves da C>mara, os oficiais
concelhios e homens bons. Ao todo eram vinte e cinco,
destes onze votaram a favor da saRda de todos, nove apenas
dos forros e quatro B sua continuidade na ilha. Dos
primeiros registe-se a opinino de Jono de Freitas e Martim
Lopes, que justificam a sua opHno, por todos os canrios,
livres ou escravos, serem ladrtes. Todavia para Mendo
Afonso nno J assim que se castigava tais atropelos, pois
existia a forca como soluHno. Se consideramos, por
hip\tese, que cada um dos presentes pretendia defender os
seus interesses, podemos concluir que catorze dos presentes
eram propriet<rios de escravos can<rios.
Em 150344 o problema ainda persistia, ordenando o rei
que todos eles fossem expulsos num prazo de dez meses. De
novo o rei retrocedeu abrindo uma excepHno para aqueles que
eram mestres de aHdcar e dois escravos do capitno- Bastiam
Rodrigues e Catarina-, por nunca terem sido pastores45.
Por tudo isto podemos concluir que as Can<rias
afirmaram-se no sJculo XV como o principal fornecedor de
escravos, complementando com as presas dos assaltos B costa
marroquina e viagens para sul. Os can<rios foram na ilha
pastores e mestres de engenho.
Os cronistas do sJculo XV e XVI relevam o activo
protagonismo dos madeirenses na manutenHno e defesa das
praHas de Marrocos. A principal aristocracia da ilha fez
delas o meio para o reforHo das tradiHtes da cavalaria
medieval, uma forma de serviHo ao senhor e fonte
granjeadora de tRtulos e honras. Esta acHno foi evidente, e
imprescindRvel B presenHa portuguesa, na primeira metade do
sJculo XVI, destacando-se diversas armadas de socorro a
Arzila, Azamor, Mazagno, Santa Cruz de Cabo GuJ, Safim. AR
os principais protagonistas foram os capitnes do Funchal e
Machico, bem como a aristocracia da Ribeira Brava e
Funchal.
A dupla intervenHno dos madeirenses na conquista e
manutenHno das praHas marroquinas e portos da costa alJm do
Bojador contribuiu para a abertura das rotas de comJrcio de

43.Ibidem, vol.XVI, pp.260-265.


44
.Ibidem, vol.XVII, pp.440441.
45
.Ibidem, vol.XVII, pp.450-451
escravos, daR oriundos. No caso de Marrocos a assRdua
participaHno deles na defesa trouxe-lhes algumas
contrapartidas favor<veis em termos das presas de guerra.
DaR terno resultado os escravos mouriscos que encontr<mos.
Gaspar Frutuoso refere, quanto B ilha de S. Miguel
(AHores), que em 1522, quando do sismo e derrocada de
terras que soterraram Vila Franca do Campo, era numeroso o
grupo de escravos mouros que o capitno Rui GonHalves da
C>mara e acompanhantes detinham, quando anos antes haviam
ido a socorrer a Tanger e Arzila46. IdLntico foi o
comportamento dos madeirenses que participaram com
assiduidade nestas campanhas. Talvez, por isso mesmo, os
mouriscos surgem com maior incidLncia no Funchal e Ribeira
Brava, <reas em que os principais vizinhos mais se
distinguiram nas guerras marroquinas. Eles situam-se, quase
que exclusivamente, no sJculo XVI, se exceptuarmos um caso
isolado do Funchal da dJcada de 1631 a 1640. Poder-se-<
entender a situaHno como corol<rio das medidas restritivas B
posse de escravos mouros, estabelecidas pela coroa a partir
1597 ?47.
TambJm os aHorianos estiveram empenhados na defesa das
praHas africanas, resultando disso algumas presas que
depois eram ostentadas no regresso como escravos48. Gaspar
Frutuoso49 testemunha-os relacionando-os com uma fome que
houve em 1521 na costa marroquina. E foram estes mesmos
mouros chefiados por BadaRl que protagonizaram uma
revolta50.
O comprometimento dos madeirenses com as viagens de
exploraHno e comJrcio ao longo da costa africana, e a
import>ncia do porto do Funchal no traHado das rotas,
definiram para a ilha uma posiHno preferencial no comJrcio
dos escravos negros da GuinJ. Deste modo nno seria difRcil
de afirmar, embora nos faltem dados, que os primeiros
negros da costa ocidental africana chegaram B Madeira muito
antes de serem alvo da curiosidade das gentes de Lagos e
Lisboa.
A situaHno da Madeira e dos madeirenses nas navegaHtes
supracitadas, a par da extrema carLncia de mno-de-obra para
o arroteamento das diversas clareiras abertas na ilha pelos
primeiros povoadores, geraram, inevitavelmente, o desvio da
rota do comJrcio de escravos, surgindo o Funchal, em meados
do sJculo XV, como um dos principais mercados receptores. E
nenhum outro local o escravo era tno importante como na
Madeira.
H< v<rios indRcios de que o comJrcio de escravos era
46
. Francisco de Athayde M. de Faria e MAIA, Capitnes dps Donat<rios (1439-1766), Lisboa, 1972, 60.
47
. V. M. GODINHO, ob. cit., IV, 191; Fortunato de Almeida, ob. cit., VOL. XI, 110.
48
Carreiro da COSTA, "ReminiscLncias mouriscas em terras aHorianas", in Etnologia dos AHores, vol. I, Lagoa, 1989, pp.364-368.
49
Saudades da Terra, livro IV, vol. II.
50
Sobre este epis\dio veja-se: Carreiro da COSTA, Memorial da vila da Lagoa e do seu concelho, P.Delgada, 1974.
activo e de que a Madeira era uma placa girat\ria para esse
neg\cio com a Europa. Em 149251 a coroa isentava os
madeirenses do pagamento da dizima dos escravos que
trouxessem a Lisboa. Esta situaHno, resultante da petiHno de
Fernando P\, revela que havia j< na ilha um grupo numeroso
de escravos e que muitos deles eram daR levados para o
reino.
I pouca a informaHno disponRvel mas o suficiente para
revelar a import>ncia que assumiu na Madeira o comJrcio com
o litoral africano, onde os escravos deveriam preencher uma
posiHno dominante. Todavia ela impede-nos de avaliar com
seguranHa o nRvel deste movimento e a import>ncia que os
mesmos escravos assumiram, no sJculo XV, na sociedade
madeirense. A insistente referLncia, na documentaHno da
Jpoca, aos negros, obviamente desta <rea, poder< ser o
testemunho da sua import>ncia. Em 146652 os moradores
representavam ao infante contra a redRzima lanHada sobre os
moHos de soldada que condicionava a presenHa em favor dos
negros escravos, situaHno em que temiam "vir algum perigo".
Passados vinte e trLs anos o capitno do Funchal
representara ao duque o perigo em que estava a ilha, por os
vizinhos saRrem para Lisboa ou para o litoral africano,
"por bem dos muytos negros que hai ha53". A par disso, j<
em 147454, a infanta D. Beatriz, em carta aos capitnes do
Funchal e Machico, estabelecera medidas limitativas dos
escravos e forros quanto B posse de casa, para impedir os
roubos que vinham sucedendo.
A primeira referLncia ao envio de um escravo de Cabo
Verde para a Madeira surge apenas em 155755 no testamento
de Isabel de Sousa, onde diz ter entregue dez cruzados e
sete ou oito bocetas de marmelada a Diogo Rodrigues para
lhe trazer um escravo de Cabo Verde. Em 1587 um Lorenzo
Pita de Gran Canaria surge em Cabo Verde a compra a troco
de vinho. Manuel Lobo Cabrera aponta, a este prop\sito, que
os portugueses tinham uma participaHno activa no trato das
Can<rias com a GuinJ56.
Certamente que o documento mais importante sobre a
intervenHno dos madeirenses no comJrcio de escravos da
Costa da GuinJ, J o testamento do madeirense Francisco
Dias, feito em 22 de Outubro de 159957 na Ribeira Grande
(ilha de Santiago-Cabo Verde).Os encargos e dRvidas

51
. A.R.M., C.M.F., tomo I, fls. 223 vo-225, sentenHa rJgia isentando os moradores da Madeira do pagamento de dRzima nos
escravos que levarem para Lisboa, para seus erviHo, publ. in A.H.M., Vol. XVI, 1973, nº 161, pp. 269-271.
52
. A.R.M., C.M.F., t. I, fls. 226.229vo., 7 de Novembro de 1466, "Apontamentos do infante D. Fernando, em resposta de outros", in
A.H.M., XV, 1972, doc. 13, 38.
53
. A.R.M., C.M.F., t. 1, fl.169, in A.H.M., vol. XV, 1973, doc. Nº 131, p. 226.
54
. Ibidem, tomo velho, fl. 11.
55
. A.R.M., Miseric\rdia do Funchal, nº 710, fls. 308-309, testamento de 3 de Fevereiro de 1557.
56
. A.H.P.L.P., Lorenzo de Palenzuela, no 844, fl. 109; Manuel LOBO CABRERA, "Los mercadores y la trata de esclavos en Gran
Canaria", in Homenaje a Alfonso Trujillo, II, Santa Cruz de Tenerife, 1982, 59 e 71.
57
. A.R.M., Miseric\rdia no Funchal, 684, fl. 785-90 vo.
testemunham que ele foi um importante interlocutor do
tr<fico negreiro na ilha. Ele mostra-se bem relacionado com
o comJrcio de escravos no interior dos Rios da GuinJ, com
mercadores de Sevilha e com o mercado negreiro das ilhas de
S. Domingos e Honduras. A sua morte veio quebrar esta
cadeia de neg\cio e ao mesmo tempo revelar-nos, atravJs do
testamento, que este era um neg\cio rent<vel. DaR se conclui
por uma importante fortuna, subdividida por encargos pios
aos sobrinhos e cunhados, aos trLs escravos58.
Francisco Dias, com morada fixa na Ribeira Grande,
intervinha no trato de escravos nos Rios da GuinJ por meio
do escravo Ant\nio: aR no Rio Grande mantinha contactos com
Diogo Fernandez. As referLncias a dRvidas de alguns
madeirenses poderno ser o indicativo do envio de escravos
para a Madeira, que poder< ter sido o comeHo do seu
neg\cio. No testamento anotam-se dRvidas a Jono GonHalves,
Jer\nimo Mendes, Francisco Afonso, Ant\nio GonHalves e
Francisco Fernandes, todos vizinhos da Madeira.
A prova da existLncia deste activo comJrcio de
escravos entre a Madeira e Cabo Verde temo-la em 156259 e
156760. Nesta dJcada as dificuldades sentidas na cultura do
aHdcar levaram os lavradores a solicitarem junto da coroa,
facilidades para o provimento de escravos na GuinJ, com o
envio de uma embarcaHno para tal efeito. O rei acedeu a
esta legRtima aspiraHno dos lavradores madeirenses e ordenou
que, ap\s o terminus do contrato de arrendamento com
Ant\nio GonHalves e Duarte Leno - , isto J, em 1562,
aqueles pudessem enviar anualmente uma embarcaHno a buscar
escravos. Em 1567 foi necess<rio regulamentar, de novo, o
privilJgio atribuRdo aos madeirenses, sendo-lhes concedido
o direito de importar anualmente, por um perRodo de cinco
anos, de Cabo Verde e dos Rios de GuinJ, cento e cinquenta
peHas de escravos, dos quais cem ficariam no Funchal e
cinquenta na Calheta.
Para os AHores a presenHa de negros J muito menor.
Mesmo assim os cronistas, como Gaspar Frutuoso, referem a
presenHa destes escravos nas diversas ilhas. Muitos
acompanharam os primeiros colonos, sendo trazidos do reino.
I o caso de Fernno Camelo Pereira, natural de Castelo
Branco, que nno hesitou em acompanhar Rui GonHalves da
C>mara no povoamento da ilha de S. Miguel, trazendo
"cavalos e escravos"61. Outros mais vieram directamente da
Costa da GuinJ, faltando um texto que testemunhe a
import>ncia que assumiram na sociedade aHoriana62.
58
. Os seus bens m\veis foram avaliados em 1.231.000rs a que se dever< somar as dRvidas no valor de 30.600 rs; desse elevado
pecdlio entregou 74.000 rs para encargos pios e 209.999rs pelos familiares, escravos e testamenteiro.
59
. A.R.M., Documentos Avulsos, cx. 2, nº 194.
60
. Idem, C.M.F., t. 3, fl. 137 vo-138.
61
Gaspar FRUTUOSO, Saudades da Terra, livro IV, vol.II, pp.101.
62
Ernesto REBELO, "Notas aHorianas", in Arquivo dos AHores, vol.VIII, Ponta Delgada, 1886; Carreiro da COSTA, "Pretos nos
A elevada mobilidade social J uma caracterRstica da
sociedade insular. O fen\meno da ocupaHno atl>ntica lanHou
as bases da sociedade e a emigraHno ramificou-a e
projectou-a alJm Atl>ntico. As ilhas foram assim, num
primeiro momento, p\los de atracHno, passando depois a
actuar como <reas centrRfugas. A novidade aliada B forma
como se processou o povoamento, activaram o primeiro
movimento. A desilusno, as escassas e limitadas
possibilidades econ\micas e a cobiHa por novas e
prometedoras terras, o segundo surto.
Primeiro foi a Madeira, depois as ilhas pr\ximas dos
AHores e das Can<rias e, finalmente, os novos continentes
ou ilhas. Desiludido com a ilha o madeirense procurou
melhor fortuna nos AHores ou nas Can<rias, e depositou,
depois, na costa africana as prometedoras esperanHas comer-
ciais. Neste grupo incluem-se principalmente os filhos-
segundos desapossados da terra pelo sistema sucess\rio. I
disso exemplo Rui GonHalves da C>mara, filho do capitno do
donat<rio no Funchal, que preferiu ser capitno da ilha
distante de S. Miguel a manter-se como mais um mero
propriet<rio na Ponta do Sol. Com ele surgiram outros que
deram o arranque decisivo ao povoamento desta ilha. Deste
modo a Madeira evidencia-se tambJm no sJculo quinze como um
centro de divergLncia de gentes no novo mundo.
A elevada mobilidade do ilhJu levou os monarcas a
definirem uma polRtica de restriHtes no movimento
emigrat\rio em favor da fixaHno do colono B terra, como
forma de se evitar o despovoamento das <reas j< ocupadas.
Mas o apelo das riquezas f<ceis, do resgate africano ou da
agricultura americana eram mais convincentes, tendo a seu
favor a disponibilidade dos veleiros que escalavam com
assiduidade os portos insulares. A emigraHno era
inevit<vel.
A Madeira desfrutava no sJculo XV, a exemplo das
Can<rias, de uma posiHno privilegiada perante a costa e
ilhas africanas. Deste modo ela afirmou-se por muito tempo
como um importante centro emigrat\rio para os arquipJlagos
vizinhos ou longRnquos continentes. Para isso contribuiu o
facto de estar associada ao madeirense uma cultura que foi
a principal aposta das arroteias do Atl>ntico, isto J, a
cana sacarina.
Os madeirenses aparecem nas Can<rias, AHores, S. TomJ
e Brasil a dar o seu contributo para que no solo virgem
brotem os canaviais, apareHam os canais de rega ou de
serviHo aos engenhos, a que tambJm foram seus obreiros nos
avanHos tecnol\gicos. A crise da produHno aHucareira madei-
rense, gerada pela concorrLncia do aHdcar das <reas que os

AHores", in Etnologia dos AHores, vol. IIIII, Lagoa, 1989, pp.374-377.


seus habitantes contribuRram para criar, empurrou-nos para
destinos distantes.
Nesta di<spora atl>ntica, iniciada na Madeira, J de
referenciar o caso da emigraHno inter-insular dos
arquipJlagos do Mediterr>neo Atl>ntico. As ilhas, pela
proximidade e forma similar de vida, aliadas Bs necessi-
dades crescentes de contactos comerciais, exerceram tambJm
uma forte atracHno entre si. Madeirenses, aHorianos e
can<rios nno ignoravam a condiHno de insulares e, por isso
mesmo, sentiram necessidade do estreitamento destes conta-
ctos.
A Madeira, mais uma vez, pela posiHno charneira entre
os AHores e as Can<rias e da anterioridade no povoamento,
foi, desde meados do sJculo XV, um importante viveiro
fornecedor de colonos para estes arquipJlagos e elo de
ligaHno entre eles. A ilha funcionou mais como p\lo de
emigraHno para as ilhas do que como <rea receptora de imi-
grantes. Se exceptuarmos o caso dos escravos guanches e a
inicial vinda de alguns dos conquistadores de Lanzarote,
podemos afirmar que o fen\meno J quase nulo, nno obstante
no sJculo dezasseis os aHorianos surgirem com alguma
evidLncia no Funchal. Note-se, ainda, a presenHa de uma
comunidade de aHorianos nas ilhas Can<rias, principalmente
nas ilhas de Gran Canaria, Tenerife e Lanzarote, dedicados
B cultura dos cereais, vinha, cana sacarina e pastel. Mas
aHorianos e canarianos, bem posicionados no traHado das
rotas oce>nicas, voltaram a sua atenHno para o promissor
novo mundo.
Um dos aspectos reveladores das conextes madeirenses e
aHorianas foi o relacionamento com as Can<rias. Para Perez
Vidal63 a presenHa portuguesa no arquipJlago resultou da sua
intervenHno em dois momentos decisivos: um primeiro,
demarcado pelas acHtes da coroa e do infante D. Henrique,
nos sJculos XIV e XV que ter< o seu epRlogo em 1497 com o
tratado de Alc<Hovas; o segundo, de iniciativa particular,
abrangendo os sJculos XVI e XVIII, em que os impulsos
individuais se sobrep`em B iniciativa oficial. Este dltimo
foi o momento de expressno plena da presenHa lusRada e do
seu paulatino definhar em face da RestauraHno da monarquia
portuguesa e da guerra de fronteiras mantida atJ 1665.
A questno ou disputa pela posse das ilhas Can<rias foi
o prelddio de novos confrontos com o objectivo de monop\lio
das navegaHtes atl>nticas. O inicial afrontamento foi entre
Portugal e Castela, tendo como palco as ilhas Can<rias.
Esta disputa comeHou em meados do sJculo catorze mas s\ na
centdria seguinte por iniciativa do infante D. Henrique

63
. "Aportaci\n portuguesa a la poblaci\n de canarias. Datos", in Anuario de Estudios Atl>nticos, nº 14, 1968. Este e outros estudos
foram reunidos em Los portugueses en Canarias. portuguesismos, Las Palmas, 1991.
teve a sua maior expressno.
A expediHno de Jean de Betencourt em 1402 marca o
inRcio da conquista das Can<rias enquanto a sua subordinaHno
B soberania da coroa castelhana e o reconhecimento em 1421
pelo papado desta nova situaHno fez reacender a polJmica do
sJculo XIV. Ao infante portuguLs restavam apenas duas
possibilidades: a soluHno diplom<tica, fazendo valer os
seus direitos junto do papado e o recurso a uma intervenHno
bJlica, legitimada pelo espRrito de cruzada que a ela se
pretendia associar. Desta dltima situaHno resultaram as
expediHtes de D. Fernando de Castro (1424 e 1440) e de
Ant\nio GonHalves da C>mara (1427). Mas em todas as frentes
as conquistas foram efJmeras e de pouco valeu, por exemplo,
a compra em 1446 da ilha de Lanzarote a Maciot de Betten-
court, por 20.000 reais brancos ao ano e regalias na ilha
da Madeira. Disso apenas resultou a ramificaHno desta
importante famRlia B Madeira e,depois, aos AHores. O litRgio
encerra-se em 1480 com a assinatura de um tratado em
Toledo. Desde entno a coroa portuguesa abandona a sua
reivindicaHno pela posse dessas ilhas com garantias de que
a burguesia andaluza nno se intrometer< no trato da GuinJ.
A conjuntura destas ilhas e do relacionamento das
coroas peninsulares acompanhou desde o inRcio as conextes
can<rio-madeirenses. No no sJculo XV a vinculaHno da Madeira
a Lanzarote filia-se na cJlebre na disputa das coroas
peninsulares pela posse das Can<rias. Em finais do sJculo
seguinte a sua reafirmaHno e alargamento a todo o arquipJ-
lago can<rio foram resultado da ocupaHno da ilha em 1582
por D. Agustin Herrera, acto que materializou na Madeira a
unino das duas coroas peninsulares64. Entretanto nos AHores
tivemos desde 1582 a presenHa de importantes contingentes
militares espanh\is, mas sendo reduzida a presenHa de
can<rios. Todavia o efeito social dos dois fen\menos em
ambos os arquipJlagos foi diverso. O primeiro permitiu a
afirmaHno madeirense em Lanzarote, enquanto o segundo, para
alJm do natural reforHo da realidade condicionou a presenHa
can<ria no Funchal, que nunca foi muito significativa.
Talvez o momento de maior intervenHno seja o do sJculo XV
com a presenHa dos aborRgenes can<rios, como escravos, ao
serviHo da pastorRcia e safra do aHdcar65.
Se B componente polRtica se dever< conceder o mJrito de
abertura e incentivo das conextes humanas, ao econ\mico
ficou a missno de reforHar e sedimentar este
relacionamento. Desta forma os contactos comerciais surgem
64
Lothar SIEMENS HERNANDEZ, "La expedici\n de la Madera del Conde de Lanzarote desde la perspectiva de las fuentes
madeirenses", in Anuario de Estudios Atl>nticos, nº.25, Las Palmas, 1979; A. RUMEU DE ARMAS, "El conde de Lanzarote,
capit<n general de la Madera", in ibidem, nº.30, 1984.
65
Lothar SIEMENS HERNANDEZ e Liliana BARRETO, "Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera(1455-1505)",
in Anuario de Estudios Atl>nticos, nº.20, 1974, 111-143.
em simult>neo como consequLncia e causa das migraHtes
humanas. Todavia tal interc>mbio s\ adquiriu a plenitude no
sJculo XVI, incidindo preferencialmente no comJrcio de
cereais dos mercados de Tenerife, Fuerteventura e
Lanzarote.
A proximidade da Madeira ao arquipJlago can<rio e o
r<pido surto do povoamento e valorizaHno s\cio-econ\mica do
solo orientaram as atenHtes do madeirense para esta
promissora terra. Assim, decorridos apenas vinte e seis
anos ap\s a ocupaHno do solo madeirense, embrenharam-se na
controversa disputa pela posse das Can<rias ao serviHo do
infante, em 1446 e 1451.
A presenHa madeirense na empresa can<ria conduziu a
uma maior aproximaHno dos dois arquipJlagos ao mesmo tempo
que influenciou o traHado de vias de contacto e comJrcio
entre os dois arquipJlagos. Pela Madeira tivemos, primeiro,
o saque f<cil de mno-de-obra escrava para a safra do aHdcar
e, depois, o recurso ao cereal e B carne, necess<rios B
dieta alimentar do madeirense. Pelas Can<rias foi o recurso
B Madeira com o porto de abrigo das gentes molestadas com a
conturbada situaHno que aR se viveu no sJculo XV. Em 1476
com a conquista levada a cabo por Diogo de Herrera, muitos
dos descontentes com a nova ordem emigraram para a Madeira
ou Castela. De entre eles podemos referenciar Pedro e Juam
Aday, Juan de Barros, Francisco Garcia, BartolomJ Heveto e
Juan Bernal.
Esta corrente migrat\ria resultante do
descontentamento gerado em face da conquista e ocupaHno do
arquipJlago can<rio iniciara-se j< por volta de meados do
sJculo XV, sendo seu arauto Maciot de Bettencourt. O
sobrinho do primeiro conquistador das Can<rias, amargurado
com o evoluir do processo e em litRgio com os interesses da
burguesia de Sevilha, cedeu o direito do senhorio de
Lanzarote ao infante D. Henrique mediante avultada soma de
dinheiro, de fazendas e regalias na Madeira. Iniciava-se
assim uma nova vida para esta famRlia de origem normanda
que das Can<rias passa B Madeira e aos AHores, relacio-
nando-se aR com a principal nobreza da terra, o que lhe
valeu uma lugar de relevo nas sociedades madeirense e
micaelense do sJculo XV.
Acompanharam o desterro de Maciot de Bettencourt a sua
filha Maria e os sobrinhos e netos Henrique e Gaspar. Todos
eles conseguiram uma posiHno de prestRgio e avultadas
fazendas mercL do relacionamento matrimonial com as
principais famRlias da Madeira. D. Maria Bettencourt, por
exemplo, casou com Rui GonHalves da C>mara, filho-segundo
do capitno do donat<rio do Funchal e futuro capitno do
donat<rio da ilha de S. Miguel.
A compra em 1474 por Rui GonHalves da C>mara da
capitania da ilha de S. Miguel implicou a ramificaHno da
famRlia aos AHores. Com D. Maria Bettencourt seguiu para
Vila Franca o seu sobrinho Gaspar, que mais tarde viria a
encabeHar o morgadio da tia em S. Miguel, avaliado em 2.000
cruzados. Os filhos, Henrique e Jono evidenciaram-se na
Jpoca pelos serviHos prestados B coroa, tendo recebido em
troca muitos benefRcios. Henrique de Bettencourt preferiu o
sossego das terras da Band'AlJm, na Ribeira Brava, onde
viveu em riquRssimos aposentos. AR instituiu um morgado e
participou activamente na vida municipal e nas campanhas
africanas. Os descendentes destacaram-se na vida local e
nas diversas campanhas militares em ;frica, Qndia e Brasil.
Se esta primeira vaga migrat\ria traHou o rumo e
destino madeirense, a expediHno pacificadora de D. Agustin
Herrera, conde de Lanzarote, em 1582, sedimentou e
estreitou os contactos entre a Madeira e Lanzarote66. O
pr\prio conde de Lanzarote, na curta estadia na ilha, foi
um dos arautos deste relacionamento, pois ligou-se aos
Acciaiolis, importante casa de mercadores e terratenentes
florentinos, fixada na ilha desde 1515. As suas hostes
seguiram-lhe o exemplo, tendo muitos dos trezentos homens
do presRdio criado famRlia na ilha. No perRodo de 1580 a
1600 os espanh\is surgem em primeiro lugar na imigraHno
madeirense67.
O descerco em 1640 trouxe consigo consequLncias
funestas para tal relacionamento. Assim os madeirenses
residentes em Lanzarote foram alvo de repres<lias, sendo de
referir o confisco dos bens do filho varno de Simno
Acciaioli que casara com a filha do Conde de Lanzarote.
O impacto lusRada nas Can<rias surgiu muito cedo tendo
a Madeira como um dos principais eixos do movimento. A
presenHa alargou-se Bs ilhas de La Palma, Lanzarote,
Tenerife e Gran Canaria. Os portugueses assumiram um lugar
de relevo, situando-se entre os principais obreiros da
valorizaHno econ\mica das ilhas. Eles foram exRmios
agricultores, pescadores, pedreiros, sapateiros, mareantes,
deixando marcas indelJveis da portugalidade na sociedade
can<ria68.
A tradiHno bJlica e aventureira de alguns madeirenses
levou-os a participar activamente nas campanhas de
conquista de Tenerife, recebendo por isso, como recompensa,
indmeras dadas de terra. DaR resultou a forte presenHa
lusRada nesta ilha, onde em algumas localidades, como Icode
e Daute, surgem como o grupo maiorit<rio. Ali<s Granadilla
66
. Lothar SIEMENS HERNANDEZ, "La expedicion a la Madera del Conde de Lanzarote desde la perspectiva de las fuentes
madeirenses", in Anuario de Estudios Atlanticos, n.25, 1979.
67
. Luis Francisco de Sousa Melo, "ImigraHno na Madeira. Par\quia da SJ 1539-1600, in Hist\ria e Sociedade, n 3, 1979, 52-53.
68
Cf J. Perez Vidal
foi fundada por Gonzalo Gonzalez Zarco filho de Jono
GonHalves Zarco, capitno do donat<rio do Funchal. A prova
mais evidente da import>ncia da comunidade lusRada na ilha
est< documentada nos "acuerdos del cabildo de Tenerife"
onde foram sempre referenciados em segundo lugar. O mesmo
se poder< dizer para a ilha de La Palma onde os portugueses
marcaram bem forte a sua presenHa, tendo a testemunha-lo a
existLncia de alguns registos paroquiais feitos em portu-
guLs. Entretanto em Lanzarote o forte impacto madeirense
est< comprovado pelas indmeras referLncias da documentaHno e
pelo testemunho de Vieira y Clavijo de que a Madeira era
familiar para os lanzarotenhos que era aR conhecida como a
"ilha".
A acentuada participaHno lusRada no arquipJlago foi
resultado das possibilidades econ\micas que o mesmo
oferecia e as necessidades em mno-de-obra e da
possibilidade de penetraHno no comJrcio com a costa
africana e depois com o novo continente americano. Assim,
num primeiro momento, fomos confrontados com um numeroso
grupo de aventureiros dos quais se recrutaram os oficiais
mec>nicos e agricultores e s\ depois surgiram os agentes de
comJrcio e transporte, todos eles com uma acHno decisiva na
economia do arquipJlago nos sJculos XV e XVII.
I f<cil testemunhar a assiduidade dos contactos mas
difRcil se torna avaliar a dimensno assumida pela presenHa
portuguesa neste arquipJlago, quanto B sua origem
geogr<fica. Nos diversos actos notariais, que compuls<mos,
ignora-se, muitas vezes, a origem geogr<fica dos
intervenientes portugueses. O facto de muitos surgirem em
diversos actos relacionados com outros da Madeira ou
outorgando poderes para a cobranHa de dRvidas e
administraHno das heranHas leva-nos a suspeitar a sua
origem madeirense.
Uma vez que os contactos entre a Madeira e as
Can<rias foram mais frequentes J natural a presenHa de uma
importante comunidade madeirense nesse arquipJlago, com
principal relevo para as ilhas de Lanzarote, Tenerife e
Gran Can<ria. AR foram agentes destacados co comJrcio e
transporte entre os dois arquipJlagos ou artRfices, nomea-
damente sapateiros. Os aHorianos, maioritariamente das
ilhas Terceira e S. Miguel, surgem em menor ndmero e
preferentemente ligados B faina agrRcola.
A classe mercantil de origem madeirense nas Can<rias
segue um rumo peculiar. Eles ao contr<rio dos flamengos e
italianos nno se avizinham de imediato, mantendo o estatuto
de estantes. A necessidade de fixaHno J quase sempre o
corol<rio do progresso das suas operaHtes comerciais e dos
investimentos fundi<rios.
As mudanHas operadas na conjuntura polRtica a partir
dos acontecimentos do ano de 1640 condicionaram a presenHa
do madeirense. Ele que atJ entno usufruRa de um estatuto
preferencial na sociedade e economia lanzarotenha, por
exemplo, desaparece paulatinamente do palco de acHno. E,
facto ins\lito, os poucos que conseguimos rastrear na
documentaHno procuram ignorar ou apagar a sua origem,
surgindo apenas como vizinhos sem outra referLncia.
Esta situaHno coincide com o fim do relacionamento
comercial incidindo sobre os cereais de Can<rias pois a
partir de 1641 deixou de aparecer no Funchal, sendo
substituRdo pelo aHoriano ou por novos mercados como a
Berberia e AmJrica do Norte. Ser< ela resultado da crise da
cultura cerealRfera can<ria ou fruto da ambiLncia de mdtua
repres<lia peninsular ? Note-se, ainda que a partir de
entno surgiram novos e mais promissores destinos para a
emigraHno, como o Brasil, que terno motivado esta mudanHa.
A comunidade portuguesa em Can<rias propiciou indmeras
influLncias, hoje ainda visRveis nas aportaHtes linguRsticas
e etnogr<ficas. Neste caso J evidente os portuguesismos na
nomenclatura dos ofRcios, utensRlios e produtos a que
estiveram ligados: aHdcar, vinho, pesca, construHno civil e
fabrico de calHado69. No inverso tambJm temos alguns
testemunhos da presenHa dos aborRgenes de Can<rias na
Madeira e AHores. A sua presenHa como escravos ou os
assRduos contactos entre as ilhas favoreceram estas
aportaHtes. Na ilha de S. Miguel, nno obstante estarem
testemunhados apenas dois guanches -- um pastor e outro
mestre de engenho-- a sua presenHa deixou rastro na
toponRmia com o pico e lagoa do can<rio. Na Madeira para
alJm disso persistem vestRgios da sua presenHa na construHno
de furnas para habitaHno (Ribeira Brava) e culto religioso
(S. Roque do Faial) e no Porto Santo o uso generalizado do
gofio.
O movimento emigrat\rio entre a Madeira e os AHores J
posterior e teve inRcio em 1474 com Rui GonHalves da C>mara,
que a partir desta data foi capitno da ilha de S. Miguel.
Nno obstante estar referenciada em Jpoca anterior a
est>ncia de Diogo de Teive70 na ilha Terceira como
companheiro de J<come de Bruges, que em 1452 teria
descoberto as ilhas das Flores e Corvo, o certo J que s\ a
partir da dJcada de setenta se generaliza esse movimento,

69
. Confronte-se J. PEREZ VIDAL, Los portugueses en Canarias. portuguesismos, Las Palmas, 1991; Marcial MORERA, Lengua y
col\nia en Canarias, La Laguna, 1990; IDEM, Las hablas de Canarias, Puerto del Rosario, 1991; La formaci\n del vocabulario
canario, La Laguna, 1993.
70
JosJ AGOSTINHO, "Diogo de Teive povoador da ilha Terceira, descobridor das ilhas das Flores e do Corvo, explorador dos
mares do ocidente, nno foi o respons<vel pelo desaparecimento de J<come de Bruges", in Boletim do Instituto Hist\rico da ilha
Terceira, n.1, Angra do Heroismo, 1943; Ernesto GONGALVES, "Diogo de Teive", in Portugal e a ilha, Funchal, 1992, pp. 85-
110; IDEM, "Para o conhecimento dum percursor de Colombo", ibidem, pp.111-118.
que conduziu Bs ilhas de S. Miguel, Terceira Santa Maria e
Pico muitos filhos segundos da aristocracia madeirense.
Ali<s, a carta da infanta D. Beatriz, autorizando a venda
da capitania refere que "a dita ilha des o comeHo da sua
povoaHno atJ o prezente he muy mall aproveitada e pouco
povoada"71.
Na Madeira havia-se esgotado a possibilidade de livre
aquisiHno de terras, coisa que nos AHores era facilitado.
Note-se, ainda ,que o incentivo de culturas, como a cana
sacarina e a vinha, estno tambJm ligados os madeirenses.
Daqui resulta uma forte presenHa madeirense nas ilhas de
Santa Maria, Sno Miguel, Terceira, S. Jorge, Graciosa,
Faial e Flores72.
O movimento inverso foi pouco frequente e s\ teve
lugar a partir de princRpios do sJculo XVI. Para isso dever<
ter contribuRdo a assiduidade dos contactos entre os dois
arquipJlagos provocada pelo comJrcio de cereais e, ainda, o
temor das crises sRsmicas que asilaram as ilhas aHorianas,
com especial relevo para as de 1522 e 156373.
As ligaHtes dos arquipJlagos da Madeira e AHores com
os dois da costa e golfo da GuinJ nno foram frequentes,
sendo a primeira motivaHno a busca de escravos negros.
Neste contexto a abordagem feita pelas gentes insulares J
quase sempre sazonal, o tempo suficiente para as operaHtes
comerciais. Todavia encontramos em S. TomJ e Santiago
referLncias B presenHa de madeirenses e aHorianos avizinha-
dos. Esta presenHa J resultado da ida de tJcnicos ligados B
cultura do aHdcar e, depois, de comerciantes interessados
no comJrcio de escravos para a Madeira ou para as Antilhas,
como sucedeu no sJculo XVII. Um caso exemplificativo disso
J Francisco Dias74. Ele fixou-se na Ribeira Grande, donde
coordenava uma rede de neg\cios que ligava os Rios da GuinJ
aos AHores, Madeira e Antilhas de Castela.
Em Cabo Verde e S. TomJ os movimentos migrat\rios
foram definidos por outros impulsos, estando-se perante uma
imposiHno das contingLncias da economia atl>ntica. A
necessidade de mno-de-obra escrava, do outro lado do
Atl>ntico, conduziu B saRda forHada dos africanos, tendo em
Cabo Verde e S. TomJ dois eixos importantes do movimento a
partir do sJculo dezasseis. Tal conjuntura levou B vinc-
ulaHno extrema das ilhas ao litoral africano com o reforHo
das conextes econ\micas e humanas.
No grupo, que divergia a partir de Santiago,

71
. Manuel Monteiro Velho ARRUDA, ColecHno de documentos relativos ao descobrimento e povoamento dos AHores, Ponta
Delgada, 1977, p.CXLV.
72
Esta situaHno J evidenciada por Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, livros terceiro, quarto e sexto.
73
.Confronte-se LuRs de Sousa MELO, "ContribuiHno aHoriana na formaHno da populaHno madeirense no sJculo XVI", in Girno, nº.7,
1991, pp.328-331.
74
.Arquivo Regional da Madeira, Miseric\rdia do Funchal, nº.684, fls.785-790v.
evidenciam-se os lanHados ou tangomaos, que foram um dos
suportes mais importantes do comJrcio ilegal de escravos.
Eles eram na sua maioria africanos "ladinizados" que aR se
aventuravam ao serviHo dos mercadores caboverdeanos.
Os fen\menos emigrat\rios aHoriano e madeirense
ultrapassaram as barreiras do mundo insular e projectaram-
se alJm fronteiras no Brasil e no Oriente. Num e noutro
espaHo os insulares foram importantes como povoadores,
guerreiros e descobridores. Para muitos filhos-segundos
esta foi a dnica alternativa que a sociedade lhes
possibilitava no acesso a comendas, tRtulos e cargos:
primeiro a defesa das praHas africanas a atrair a atenHno
dos bravos cavaleiros, depois as prometedoras terras
orientais e, finalmente, o Brasil.
No caso madeirense existiu uma relaHno permanente,
desde o sJculo quinze, com as praHas marroquinas, sendo
eles que acudiam com o cereal e mais mantimentos para as
guarniHtes das praHas, os homens para as defender, o
dinheiro e materiais de construHno para as fortalezas.
Muitos aR morreram na defesa das possesstes e outros que
adquiriram tRtulos e honras. As praHas eram um local de
"diversno" para a cavalaria madeirense, nomeadamente para
os filhos-segundos, sedentos de aventura e benefRcios75. Por
outro lado alguns madeirenses usufruRram de cargos
governativos, sendo exemplo disso o caso de Ant\nio de
Freitas, provido em 1508 no de comendador de Safim, Fernno
Gomes de Castro, em 1610 nomeado capitno de Tanger. Talvez,
por isso mesmo, foi com desagrado que os madeirense
encararam a polRtica de abandono de muitas das praHas por
D. Jono III e aderiram em forHa B campanha africana de
D.Sebastino.
Madeirenses e aHorianos tiveram um papel importante na
conquista e defesa das feitorias do oceano Indico. Pelo
lado madeirense evidenciaram-se Jono Rodrigues de Noronha
como comandante de Ormuz (1521), Jordno de Freitas, capitno
de Maluco (1533), Ant\nio de Abreu, capitno de Malaca
(1522) e Tristno Vaz da Veiga. Este dltimo embarcou em
1552, com apenas 16 anos, para a Qndia, onde ficou not<vel
pelos seus feitos76.

. Jono JosJ de SOUSA, "EmigraHno madeirense nos sJculos XV a XVII", in Atl>ntico,.1985, pp.46-52.
75
76
. Gaspar FRUTUOSO, Livro segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, caps.XXI-XXIX, pp.157-214; C. R. BOXER,
Fidalgos no extremo Oriente, Macau, 1990.
15. JULHO

QUOTIDIANO COM HISTÓRIA

É no domínio do quotidiano que a História nos revela a melhor relação com


a cultura popular. O passado deixou de ser algo estranho para se aproximar
da nossa realidade presente, ficando o dia à dia registado nos anais na
História e na preocupação dos Historiadores.

FOLCLORE NA HISTÓRIA E QUOTIDIANO

alberto vieira

O Folclore foi uma descoberta da sociedade oitocentista. Desde o primeiro estudo de


W. John Thomas (1846) que o estudo da sabedoria popular, transmitida de geração em
geração através da tradição oral, ganhou uma dimensão científica. Entre nós, foi Adolfo
Coelho (em 1875) quem primeiro utilizou o conceito mas já antes dele havia um
desusado interesse pelo estudo desta temática.
O positivismo português, a que esteve ligado Teófilo Braga, foi fértil para o medrar
da nova ciência. Foi no seu círculo de amigos que se desenvolveu o positivismo
português. O elo desta na Madeira era Alvaro Rodrigues de Azevedo, amigo de longa
data e seu discípulo. A correspondência trocada entre os dois revela isso mesmo, dando-
nos conta dessa influência na recolha do romanceiro madeirense publicado em 1880.
Todavia, o Folclore ficou conhecido quase sempre pela componente das danças e
cantares. Popularmente ele significa apenas isso. Esta é, mesmo assim, uma situação
recente surgindo, com grande evidência, nos princípios do nosso século. A necessidade
de valorização da vivência e cultura populares é cada vez mais premente. A exaltação
do "popular" expressa-se através do estudo e publicação, mas também da recriação das
vivências populares ou da institucionalização com os chamados grupos folclóricos.
As comemorações eram um momento ímpar dessa exaltação. São exemplo disso as
festas do Quinto Centenário do Descobrimento de Madeira (Dezembro 1922) e do
bicentenário de elevação do lugar de S. Vicente à categoria de Vila (1944).
É também nesta conjuntura que surgem os primeiros estudos sobre este aspecto do
Folclore, as danças e cantares. Merecem a nossa atenção os trabalhos do Visconde do
Porto da Cruz, Alberto Artur Sarmento e Carlos Maria dos Santos. Os dois primeiros
limitaram-se a recolher a tradição popular, salpicando-a com dados históricos e algumas
aventureiras afirmações. Com eles ganhou corpo uma tradição, que por ser escrita e
divulgada, ganhou foros de evidencia, da ligação íntima das tradições populares - ao
nível das danças e cantares - com os escravos africanos da costa de Guiné e Marroquina.
Mais séria e merecedora do nosso aplauso é a aportação de Carlos Maria dos Santos
que pode ser, com propriedade, considerado o patrono do nosso Folclore. Os livros que
publicou - Tocares e cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e
bailados da Ilha, Estudo do Folclore Musical de Madeira (1942), Traje regional da
Madeira, Estudo (1952) - contrariam algumas ideias feitas sobre o nosso folclore, mas
não foram suficientes para abalar a sua divulgação e continuidade. Elas ainda hoje
teimam em manter-se.
Até então era ponte assente que os instrumentos - rajão, machete, viola - eram
criação madeirense, enquanto as danças e cantares - charamba e mourisca.... - buscam as
suas origens remotas aos escravos negros da Costa da Guiné ou mouriscos, esquecendo-
se a ancestral ligação ao continente pelos primeiros colonos.
Opinião diferente é a de Carlos Maria Santos, após um estudo aturado sobre as
danças, cantares e instrumentos. Assim não hesita em afirmar que "o Povo madeirense
não soube criar as suas canções, mas adoptou as melodias que apareceram ou cairam em
moda, inovando outras sobe os negativos temas a que dar o interessante e inconfundível
sabor regional". E dá-nos uma lição de história: "Embora a tradição sirva, de certo
modo, de pilar ao edifício de História não satisfaz absolutamente ao investigador
honesto, sempre ávido de bases seguras assentas afirmações". É esta permanente
necessidade de duvidar de verdades feitas que leva o investigador àprocura das raízes
recônditas, através do recurso ao método comparativo.
Mais adiante, o mesmo a dificuldade em conhecer com profundidade as origens e
percurso histórico do folclore madeirense. A tarefa é espinhosa, uma vez que nas
crónicas não ficou nada: "foi preciso reconstruí-lo adentro das vagas alusões deixadas
por alguns escritores e depois de demorada e paciente investigação, em virtude de
estarem hoje tão misturados que é quasi impossível separa-los".
A mesma dificuldade nos deparámos nós quando pretendemos encontrar nos
acervos documentais a vivência do íncola através das suas danças e cantares. O raro
testemunho credível disso édado por Gaspar Frutuoso77 para a festa de Nossa Senhora
do Faial, considerada lugar de peregrinação. Do Monte e da Ponta Delgada nada se diz.
Mas tal silêncio não é sinónimo de inexistência.
Na verdade, nem sempre as exigências actuais do investigador coincidem com a
ideia que os nossos avoengos faziam daquilo que deveria constar na memória histórica.
O quotidiano não fazia parte disso. Os raros testemunhos são particulares e surgem-nos
através de cartas e diários. Mesmo assim é pouco e só ganha algum interesse nos
séculos XVIII e XIX com os testemunhos de autores estrangeiros, nomeadamente
ingleses.
O estudo que fizemos sobre os escravos na Madeira78permite-nos reforçar a ideia
lançada alguns anos atrás por Carlos M. Santos. Os dados avulsos sobre o quotidiano
dos escravos permitem-nos questionar algumas falsas visões que se filiam às
explicações dadas para a origem das danças e cantares. O escravo -- negro ou berbere --
era um filão a descobrir. O colono europeu parece ter esquecido as suas tradições
quando sulcou o Atlântico...!
Na Madeira, ao contrário do que sucedeu no Brasil, -- a nossa matriz de escravatura
-- não existe um quotidiano diferenciado para o escravo e livre. As sanzalas são apenas
uma realidade além Equador e do outro lado do Atlântico. Na Madeira o escravo vivia
com o senhor e, por isso, participava no quotidiano dele. Difíceis eram os momentos
para a separação dele, sendo qualquer fuga punida pelas posturas. Era o temor ao
ajuntamento de escravos. Por isso, a reunião dos escravos no terreiro, após a faina diária
é uma realidade difícil de se deslumbrar entre nós.
É certo que Gaspar Frutuoso fala dos negros (as) cantares e dançarinos, mas nunca
ninguém se lembrou de perguntar que danças e cantigas eram essas. Por isso, podemos
afirmar que as conclusões ditas científicas da ligação do escravo às tradições populares
não passam de meras observações empíricas sem qualquer suporte de análise

77. Livro segundo Saudades da Terra(1964), pp.129-130


78. Os escravos no arquipélago da Madeira, séculos XV a XVII, Funchal, 1991.
científica... Aqui estamos perante um campo ainda em aberto a aguardar um tratamento
cuidado pelos investigadores. A mesma preocupação ésentida nos trabalhos de Carlos
M. Santos publicados há mais de cinquenta anos. Isto quer dizer que muito pouco ainda
se evoluiu neste campo.
Por isso, podemos afirmar que o actual folclore madeirense é a manifestação
sincrética de múltiplas aportações e da evolução no tempo. Definir uma e outra situação
é tarefa do investigador a quem se depara um campo vasto a desbravar.
Na verdade, tudo se misturou, por uma poção mágica, dando origem às múltiplas
manifestações das danças e cantares que deram ritmo às tarefas agrícolas, e ficaram a
evidenciar a transbordante alegria nas festas populares e oragos, sempre na companhia
do vinho.

O FOLCLORE E A INVESTIGAGmO HIST[RICA


algumas notas soltas
Alberto Vieira
[As cantigas e bailados] Sno como que a presenHa do passado, atr<s da qual
J possRvel ver em espRrito o panorama comovente da terra virgem; J ouvir ainda
as enxadas moiras e algarvias a rasgar-lhe a carne atJ aR pura de contactos
humanos; J assistir ao poJtico ressurgimento das vilas e aldeias como fogachos
da vida, de cor e de movimento; J passar ao convRvio dos nossos av\s nas duras
az<famas de dar vida a coisas mortas, com todo o seu sabor medieval; J sentir
com eles a sensaHno do desconhecido.
I nosso dever defendL-los e honr<-los nno consentindo nem arremedos de
investigaHno nem que esfarrapem o que ainda possa meter de ancestral e muito
menos os amortalhem com excrescLncias, detest<veis e falsas; J nosso dever
fazer reintegrar os camponeses no que J verdadeiramente seu, tradicional e
hist\rico e despertar-lhes o j< muito abalado entusiasmo pelas suas cantigas e
bailados.
(Carlos M. Santos, Trovas e bailados da ilha. Estudo do folclore musical da
Madeira, Funchal, S.D., pp.XXIX-XXX)

0 TEMA: O DITO E O NmO DITO. Este testemunho de Carlos Santos,


um dos mais destacados estudiosos do nosso Folclore, surge
aqui, ao mesmo tempo, como uma homenagem e provocaHno.
Homenagem ao homem que procurou, com muito engenho e arte,
desvendar os seus segredos e desfazer alguns equRvocos.
ProvocaHno, porque o seu nome parece ter sido votado ao
esquecimento por alguns dos actuais estudiosos do Folclore
Madeirense79. Ignora-se o seu labor de recolha, nno
obstante ele ser quase sempre o nosso livro de cabeceira.
Note-se que esta atitude, que quase se tornou um lugar
comum no nosso quotidiano, nno abona em nada os seus
autores e tno pouco a produHno cultural.
No muito que para aR se diz, deparamo-nos com leituras
apressadas e deturpadas de alguns dos textos de Carlos
Santos, o que nos leva a apelar a uma nova, mas critica,

79
. Apraz-nos salientar aqui a sua evocaHno em Revista Xarabanda, nº. especial. 22 de
Julho de 1993. Carlos Santos(1893-1955) e o Folclore Madeirense.
pois estes nno podem nem devem ser encarados como a nossa
BRblia do Folclore madeirense. Eles sno um referencial
importante. Mais do que isso, o testemunho de uma Jpoca e
geraHno, empenhadas em recriar e perpetuar as suas
tradiHtes. Recorde-se que o autor fez as seus estudos e
observaHtes numa Jpoca peculiar da nossa Hist\ria
Contempor>nea, em que se procurava fundamentar a
80
lusitanidade na diversidade folcl\rica .
Isto foi apenas o mote para esta incursno pelo nosso
folclore e das suas possRveis e adequadas relaHtes com a
Hist\ria. E, mais uma vez, outra citaHno para dizer que o
apelo feito por Vladimir Propp81 continua actual: "O
folclore J um fen\meno de ordem hist\rica e os estudos
folcl\ricos sno uma disciplina hist\rica. O estudo
etnogr<fico seria o primeiro grau deste estudo hist\rico.
A tarefa do estudo hist\rico J a de mostrar, antes de
tudo, o que J que, nas novas condiHtes hist\ricas, acontece
com o velho folclore e, em segundo lugar, estudar o
aparecimento de novas formaHtes".
I esta atitude, tno necess<ria por parte dos nossos
estudiosos do Folclore, que, raras vezes, vemos nos seus
trabalhos. A Hist\ria J, para muitos, apenas um apLndice e
nno o fundamental para a compreensno e explicaHno da
singularidade da cultura. As nossas actuais tradiHtes, os
usos e os costumes sno o que sobra da evoluHno, do devir
hist\rico. A sua permanLncia ou desaparecimento explica-se
pelo isolamento mas, acima de tudo, plo discurso hist\rico.
I esta a opHno que falta e que pode ser conseguida atravJs
de uma metodologia interdisciplinar em que a Hist\ria
assume uma funHno aglutinadora.
O discurso hist\rico d< corpo ao esqueleto da nossa
Hist\ria, tradiHno e forma de ser e estar no mundo82. Ele
tem o condno de nos fazer compreender a evoluHno e
emergLncia da realidade actual, donde se inclui o legado
cultural. J< vimos este discurso noutras alturas e o texto
de Carlos M. Santos que encima este apontamento J um
desafio ao nosso imobilismo metodol\gico.
A primeira observaHno que nos ocorre J de que, entre
n\s, o folclore e a Hist\ria estno de costas voltadas. Nno
h< uma relaHno de mdtua confianHa. I por isso que a ideia
que fazemos do nosso folclore est< eivada de contrasensos.
80
. Confronte-se Jorge de Freitas Branco, "Entre a imagem e a realidade: reflexos sobre a
Madeira como experiLncia antropol\gica" in Actas ICIHM, Vol. I, 270-305.
. Idipo B luz do folclore, quatro estudos de etnografia Hist\rico- Cultural, Lisboa,
81

S.D., p. 195.
. Exemplo disso sno os estudos de Carreiro da Costa(Etnologia dos AHores, 2 vols,
82

Lagoa, 1989 e 1991), compilados por Rui de Sousa Martins, JosJ Perez Vidal(Estudios de
Etnografia y Folclore Canarios, Santa Cruz de Tenerife, 1985) e Julio Caro Baroja(por
exemplo o texto, Raza, Pueblos y linajes, Murcia, 1990).
Por um lado, insiste-se na vinculaHno a uns espaHos em
detrimento de outros. Por outro lado, o escravo, negro ou
mourisco, sno a origem de tudo. Parece haver qualquer
cumplicidade ou Rntima relaHno entre os nossos folcloristas
e os escravos. Uma cumplicidade que, a todos os nRveis, nos
escapa. Aqui, o pitoresco J sin\nimo de escravo e, mais
propriamente, do negro e mourisco.
Esta opHno nno J nada gratificante. Esquecemo-nos que,
antes do africano, chegou o europeu, arrastando consigo um
pesado fardo cultural. E a estes sucederam os canarianos
com uma cultura tambJm a merecer a nossa atenHno83. Por
outro lado esquecemo-nos dos contactos, pacRficos e
violentos, por parte dos madeirenses na Costa africana, que
poderno ter propiciado outras vias para a assimilaHno das
culturas africanas.
TambJm o historiador parece fazer orelhas moucas aos
apelos da Etnografia, esquecendo-se que Her\doto, o pai da
Hist\ria, foi, acima de tudo, um etn\logo84. Continuamos
presos ao discurso tradicional dos eventos e
personalidades, ignorando que aqueles que nos antecederam
tiveram o seu dia a dia como n\s85. O quotidiano, ainda, nno
faz parte do nosso discurso hist\rico e mantemo-nos
ap<ticos Bs aportaHtes da Nova Hist\ria. Isto levou a que
qualquer incursno pelo universo do discurso hist\rico B
procura de resposta, esbarra quase sempre com um conjunto
de ideias feitas ou numa p<gina em branco. I por isso que
Carlos M. Santos se viu na necessidade de alertar-nos para
"o fantasma da incerteza a barrar o caminho ao investigador
e a recambi<-lo automaticamente para o campo das hip\teses,
cerceando-lhe, deste modo, a faculdade de afirmar com
seguranHa"86. Deste modo, o autor, no estudo das trovas e
danHas ao ser confrontado com a ausLncia de descriHno
hist\rica, foi forHado a guiar-se pelo caminho da hip\tese,
"baseada apenas no nosso raciocRnio sobre observaHno
directa"87.
Por parte do historiador o chauvinismo tem<tico
impede-o muitas vezes de revelar algumas ddvidas, que a
todos nos assaltam. Certamente, que uma nova atitude
multidisciplinar e abertura a novos temas poderiam ser a
chave para as desfazer. I o caso da etnogenia da populaHno

83
. As aportaHtes guanches sno um filno a descobrir. A leitura de alguns textos que retratam o quotidiano dos nossos vizinhos
poder< propiciar a via para a descoberta das suas aportaHtes quatrocentistas. Veja-se: Gaspar Frutuoso, Livro primeiro das
Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1984; S. Berthelot, Etnografia y anales de la conquista de las islas Canarias, S. C.
Tenerife, 1977; Antonio Tejera Gaspar e Rafael Gonz<lez Ant\n, Las culturas aborRgenes Canarias, S. C. Tenerife, 1987;A.
Millares Torres, Hist\ria General de Canarias, 7 vols, Las Palmas, 1975(nomeadamente os textos de actualizaHno de Lothar
Siemens Hernandez e Dimas Martin Socaz).
84
. A Nova Hist\ria faz de novo o apelo B Etnografia, sendo de destacar o cJlebre trabalho de Emanuel Le Roy Ladurie, Montaillou.
C<taros e cat\licos numa aldeia francesa.1294 B 1324, Lisboa, s.d.(1a ediHno em francLs,1975).
85
. Recorde-se a ColecHno vida Quotidiana, publicada em FranHa, que veio revelar-nos esta faceta rec^ndita da Hist\ria.
86
. O traje regional da Madeira, p. 16.
87
. Trovas e Bailados da Ilha, p. 36.
madeirense. AliBs, o enigma que envolve a origem dos nossos
avoengos paira sobre todos n\s, historiadores e etn\logos.
Antes de avanHarmos algo mais convJm referir que me
considero um intruso perante esta plateia. As minhas
ligaHtes ao tema deste encontro sno puramente sentimentais.
Nno sou estudioso da matJria e tno pouco tenho por princRpio
me intrometer no terreno que desconheHo. Mesmo assim, nno
deixei de corresponder ao repto lanHado pelos organizadores
deste encontro para, na perspectiva do cidadno atento ao
debate, que nos dltimos anos se tem feito em torno do
Folclore, e do historiador que nno desdenha a necessidade e
valor do discurso multidisciplinar como forma de abertura a
novas realidades, dar a minha aportaHno.
I verdade, o nosso campo de trabalho nno tem
fronteiras e, por isso, sno possRveis pontos de contacto. I
esta predisposiHno que, por vezes, nos falta. Mas, nunca J
por demais fazer apelo, nestes momento em que nos sentamos
B mesma mesa com especialistas de diversos quadrantes, para
esta abertura de perspectivas. Em primeiro lugar queremos
deixar aqui este nosso apelo a uma investigaHno sem
fronteiras e B necess<ria conjugaHno de esforHos de todos os
interessados, que parecem estar de costas voltadas.
Posto isto adiante com aquilo que nos trouxe aqui. A
nossa intervenHno, aqui e agora, resumir-se-< apenas a trLs
aspectos que nos parecem essenciais na abordagem da
tem<tica: dos testemunhos e dos instrumentos de trabalho; a
ilha na contextualidade da cultura popular; o processo
hist\rico insular; o remate com o modelo de estudos das
comunidades migrantes, que poder< servir de referencia, uma
forma para suplantar o impasse metodol\gico que parece
existir.
Tal como afirma Eduardo Clemente Nunes, o Folclore
nasce de forma espont>nea "da alma popular, cria-se por
influLncia da natureza fRsica e psicol\gica do meio
ambiente, traduz a origem e indole at<vica das populaHtes,
repercute-se na sensibilidade colectiva e tem forHa de
continuidade por forHa da tradiHno"88. Esta deve ser a nossa
predisposiHno quando nops atrevemos a perscrutar os
murmdrios dos nossos avoengos atravJs da tradiHno.

A PROCURA DO NOSSO LEGADO CULTURAL. A principal


dificuldade com que se depara um investigador da cultura
popular, J a falta de testemunhos orais ou escritos que se
afirmem como adequados instrumentos de trabalho. Ela raras
vezes se serve da escrita. A oralidade J a sua forma de
expressno e de perpetuaHno. Por isso, esta mem\ria nno
encontra nas sociedades abertas grandes condiHtes de

88
. "Patrim\nio ArtRstico", in Das Artes e da Hist\ria da Madeira, 1948-49, p.249.
subsistLncia89. A oralidade parece ser aversa ao progresso
sistem<tico das vias de contacto e transmissno da cultura
tradicional. Assim, cada porta que se abre J uma mais via
para que esta mem\ria colectiva desapareHa90.
Na Madeira, a grande abertura comeHou com os vapores
costeiros e veio a concretizar-se em pleno, a partir da
dJcada de trinta do nosso sJculo, com o rasgar das
primeiras estradas. O progresso J aqui prejudicial B
tradiHno cultural que J assaltada pela inevit<vel
padronizaHno de comportamentos. Hoje a ilha est< aberta ao
mundo e sno raros os nichos dessa ancestral mem\ria
colectiva. Por isso, o mJtodo de observaHno directa J cada
vez mais uma tJcnica em vias de extinHno. Para alJm do
testemunho directo atravJs do rastreio da oralidade, h< que
buscar outras fontes de informaHno. E, aqui, todos os
recursos sno poucos.
Os depoimentos de estrangeiros, nomeadamente ingleses,
que nos visitaram, sempre sedentos de singularidades, sno
fundamentais. Eles surgem sob a forma de textos e gravuras.
Estas dltimas sno importantes, por exemplo, para o rastreio
do traje91. E parece que muito tLm sido aproveitadas a este
nRvel. O mesmo j< nno poder< ser dito dos textos92. Todavia,
as nossas provas ou instrumentos nno deverno resumir-se a
isto. H< que ir ao encontro da documentaHno hist\rica
(testamentos, posturas, registos alfandeg<rios, not<rios,
processos da inquisiHno, correspondLncia particular93, a
fotografia94...) e saber coalhar a informaHno adequada para
o nosso objectivo de reconstituiHno do trajo dos nossos
antepassados. Mas aqui todas as cautelas sno poucas. A
definiHno de um determinado perfil, situaHno, indument<ria,
89
. Tenha-se em atenHno que desde 1918, com a Escola de Chicago, a Hist\ria Oral passou a ser um domRnio importante da
investigaHno hist\ria, que, lamentavelmente, nunca chegou atJ n\s. Confronte-se Joseph Goy "Hist\ria Oral", in A Nova
Hist\ria, Coimbra, 1980, pp.506-508.
90
. Tenha-se em conta a abertura motivada pelos meios de comunicaHno nos dltimos vinte anos. Antes disso temos a apontar o
aparecimento da r<dio (em 1948 da r<dio privada e desde 1967 a Emissora Nacional) e da Televisno(1972). A este prop\sito J
de salientar o texto de Hor<cio Bento de Gouveia,"A telefonia matou o rajno", in Canhenhos da ilha, Funchal, s.d., pp.21-23.
91
. Cf. J. Cabral do Nascimento, "Estampas antigas com assuntos madeirenses", Arquivo Hist\rico da Madeira, vols. III e IV, 1933-
1935; idem, Estampas antigas da MAdeira. Paisagem, costumes, traje, edifRcios, marinhas, Funchal, 1935; Jono Pereira
Camacho, ColecHno de gravuras Portuguesa. V. sJrie. ilha da Madeira, Lisboa, 1948; Augusto Elmano Vieira, "A Madeira nas
estampas da 1a metade do sJculo XIX", in Das Artes e Da Hist\ria Madeira, I, n.2, 1950; Estampas, aguarelas e desenhos da
Madeira rom>ntica. ExposiHno-Casa Museu Frederico de Freitas, Funchal, 1988.
92
. Cf. J. Barrow, A voyage to cochinchina in the years 1792 and 1793..., London,1806; Thomas E.
Bodwich, Excursions in Madeira and Porto Santo..., London, 1825; Lady E. Stuart Wortley, A visit to
Portugal and Madeira, London, 1854; Isabella de FranHa, Jornal de uma visita B Madeira e Portugal 1853-1854, Funchal,
1970; Ellen M. Taylor, Madeira. Its scenery and how to see, London, 1882; Mariana Xavier da Silva, Na Madeira. Offerenda,
Lisboa, 1884; A. Brexel Biddle, The Madeira islands, London, 1900; J. E. Hutcheon, Things seen in Madeira, London, 1928.
Tenha-se em conta, ainda, os estudos de Maria dos RemJdios Castelo-Branco, "Testemunhos de viajantes ingleses sobre a
Madeira", in I CIHM, vol. I, Funchal, 1990, 198-245; idem, "Perspectivas americanas da Madeira", in II CIHM, Funchal, 1990,
453-478; Ant\nio Ribeiro Marques da Silva, "Notas sobre o quotidiano madeirense. sJcs. XVII e XXXIX", Di<rio de NotRcias,
Funchal, 1 de Julho a 21 de Setembro.
93
. Aqui J de salientar a de Diogo Fernandes Branco de 1640-1643(que estamos a preparar a ediHno) Francisco Bolton desde 1695 a
1714(Confronte-se A Madeira vista por estrangeiros, ed. Ant\nio Aragno, Funchal, 1981, pp. 229-393) e Duarte SodrJ Pereira
de 1710 a 1712(cf. Maria Jdlia de Oliveira e Silva, Fidalgos-Mercadores no sJculo XVIII. Duarte SodrJ Pereira, Lisboa,1992;
John Driver, Letters from Madeira in 1834, London, 1838.
94
. Luis de Sousa Melo, Vicentes Photographos, Funchal, 1978; Fotografia e fot\grafos insulares. AHores, Can<rias e Madeira,
Funchal, 1990.
ou seja o que for, nno se resume B mera quantificaHno. Por
vezes, a assiduidade das situaHtes nno J reveladora da
realidade que procuramos, mas tno somente dos fundos
documentais disponiveis95. H< que ter em conta que a
documentaHno J lacunar e a aferiHno dos dados deve ser feita
de acordo com isto. Mais, a EstatRstica em universos
pequenos nno merece crJdito na composiHno do discurso
hist\rico.

O TRAJE. O POMO DA DISC[RDIA. O traje J um dos temas que, nos


dltimos tempos, tem merecido um tratamento deste tipo96.
Rastreia-se testamentos e mais documentaHno. Compilam-se
apenas as peHas, retirando-as do seu contexto e esquecemo-
nos de perguntar: quem faz testamento? Quantos destes
chegaram atJ n\s? E, alJm disso, ignoramos que o traje,
mais do que uma necessidade, J uma forma de distinHno. Mas,
nem sempre J assim. Os senhores, por exemplo, evidenciam-se
pelo luxo exibido pelos seus criados nos desfiles e
festas97.
Tal como afirmou Carlos M. Santos "legitimo J duvidar
da generalizaHno do chamado traje regional da Madeira e
mesmo da sua ancestralidade, como testemunha a diversidade
verificada em diversas freguesias"98. Mesmo assim, o autor,
ainda que averso a imagem de um "traje regional"99, define
a saia riscada como a imagem de marca do trajo
madeirense100. Vivia-se uma Jpoca de regionalismo exacerbado
e era necess<rio criar uma imagem de marca, vend<vel a
turista. Estamos perante uma contingLncia da Jpoca e do
Estado Novo. Mesmo assim o autor parece nno estar
equivocado no seu modelo, pois esta era uma dominante desde
o sJculo XVIII101.
Aqui J de referir o que tem sido dito e escrito. O
Tema tem preocupado, historiadores e folcloristas em toda a
Europa e, ao contrario do que pensam muitos dos presentes,
nno J apenas uma questno nossa. Os especialistas da cultura

95
. Veja-se M. Maciaz Hernandez, "Fuentes y principales problemas metodologicos de Demografia Hist\rica de Canarias", Anuario
de Estudios Atl>nticos, n.34, 1988, 51-157.
96
.Confronte-se Jono Adriano Ribeiro, O Trajo na Madeira. Elementos para o seu estudo, Funchal, 1993; Danilo JosJ Fernandes, Os
Trajos de "resguardo" e de "cote" do sul da ilha no sJculo XVIII, Funchal, 1994. acrescente-se, ainda, o debate havido: NJlson
VerRssimo, "Traje Popular Madeirense", in Di<rio de NotRcias, de 15 de Janeiro de 1994;Augusta Correia N\brega, "Folclore.
Cores e modelos. Traje tRpico em debate", in Di<rio de NotRcias, 15 de Dezembro de 1993,; Teresa Brazno, "Sobre a Verdade
Etnogr<fica. O Vermelho das Floristas", in Jornal da Madeira, 16 de Abril de 1994.
97
.Livro segundo das Saudades da Terra, p.356. Em 1793 John Barrow refere que os pedintes madeirenses cuidavam da sua
aparLncia, usando o melhor fato, por vezes, com cabeleira e espadim. veja-se A. Sarmento, Ensaios Hist\ricos da Minha Terra,
Funchal, 1952, vol. III, p.133. Sobre o luxo veja-se: JosJ Ezequiel Veloza, "O luxo na Madeira foi de todos os tempos", in
DAHM, 1948-49, p.335;Visconde do Porto da Cruz, "DanHas madeirenses", in Arquivo Hist\rico da Madeira, vol. I, 1931,
p.160.
98
. O Traje Regional de Madeira, p. 22. Confronte-se o que diz Danilo Fernandes, "O traje tradicional da Madeira de Carlos Santos.
Uma avaliaHno crRtica", im Revista Xarabanda, n. especal, 1993, pp.5-6.
99
. Ibidem, p. 37.
100
. Ibidem, pp. 66-87.
101
. Cabral do Nascimento, "Trajo Popular da Madeira", in Arquivo Hist\rico da Madeira, vol. IV, 1934-35, pp.178-183; F. C.
Menezes Vaz,"A indumentaria Antiga", in DAHM, vol. III, nº.1952; F. A. Silva, "A indument<ria Madeirense", in DAHM, vols.
IIIV e VI, nos. 23 2 34, 1956.
material dizem-nos que este J um dos problemas mais
complexos que, segundo F. Braudel, deve ser encarado na sua
totalidade102. Certamente que o confronto das nossas
descobertas com aquilo que tem sido feito l< fora poder<
permitir que o debate ganhe novo folego103.
Apenas para despertar a atenHno dos interessados
ficamos com dois testemunhos. Primeiro, o pai da cultura
material, F. Braudel diz-nos que "A Hist\ria dos fatos J
menos aned\tica do que parece. Levanta todos os problemas,
os das matJrias-primas, dos processos de fabrico, dos
custos de produHno, da fixidez cultural, das modas, das
hierarquias sociais"104. Depois, o jovem Fernando Oliveira,
esclarece-nos de modo perspicaz: "O acto de vestir desde
cedo, ganhou c\digos e linguagens, numa verdadeira
necessidade de comunicaHno e ostentaHno, transformando-se,
assim numa atitude social. Ganhou expressno mental e
cultural. Reflecte o gosto de uma Jpoca, um modo de vida e
a personalidade de quem usa determinada veste. I o reflexo
de uma certa categoria social, de costume e tradiHno."105.
E, por fim, remata: "o vestunrio distinguia as classes
sociais. Nno se vestia determinada peHa por opHno, mas sim
pela condiHno social."106. Por isso, estamos com Fernand
Braudel, quando ele afirma que tudo isto s\ se torna
compreensRvel numa visno de conjunto107, caso contr<rio a
nossa leitura poder< rondar o mundo do aned\tico.
A esta diferente forma de ver a questno, que poder<
servir de guia para uma abordagem distinta, dever< juntar-
se um conjunto de situaHtes que nno podem ser ignoradas. A
Madeira, pela sua posiHno geogr<fica e protagonismo
hist\rico, nno esteve isolada no meio do oceano. Por isso,
ficou perme<vel Bs "modas" europeias.
As culturas da cana de aHdcar e da vinha permitiram B
ilha uma ligaHno com o mundo europeu e seus centros
produtores de tecidos: Inglaterra, Flandres e cidades-
102
. Confronte-se Jean Marie Perez, "A Hist\ria da Cultura Material", in A Nova Hist\ria,
Coimbra, 1990, pp.131-132.
103
. Entre n\s J pioneiro o estudo de Oliveira Marques, Sociedade Medieval Portuguesa,
Lisboa, 1974(com 1a ediHno em 1963), pp.23-62. A este dever< juntar-se o mais recente de
Fernando Oliveira, O Vestu<rio portuguLs ao tempo da expansno sJculos XV e XVI, Lisboa,
1993. Aqui uma referLncia especial para a Historiografia francesa, que a partir da
Escola dos Anales, dedicou a esta tem<tica poscrita grande atenHno. Aqui referLncia
especial para o texto de Fernand Braudel, CivilizaHno Material e Capitalismo, 3, vols,
Lisboa, 1992. Com tratamento especializado do traje temos: Roland Barthes, O sistema da
Moda, Lisboa,1981; Philippe Perrot, Les Dessus et les Dessous de la Bourgeoisie. Une
Histoire du vLtement au XIXe siPcle, Paris, 1981; Gilles Lipovetski, O impJrio do
EfJmero. A moda e o seu destino nas sociedades modernas, Lisboa, 1989; Daniel Roche, La
Culture des apparences. une histoire du vLtement. XVIIe- XVIIIe siLcle, Paris, 1989.
104
. ob.cit., vol.III, p.271.
105
.ob.cit., p.5.
106
.ibidem, p.46.
107
.ob.cit., vol. III, p.290.
estado italianas108. AliBs Bs ilhas est< ligada uma fase
importante na evoluHno da industria textil europeia, com a
expansno da <rea de cultivo do pastel e apanha da urzela,
plantas com grande import>ncia na tinturaria109. A Madeira
ficou conhecida pelos genoveses, no sJculo XV, como a ilha
do pastel.
Note-se, ainda, que o comJrcio do vinho em mnos dos
ingleses definiu uma polRtica peculiar: os adiantamentos. O
mercador inglLs adiantava ao lavrador os alimentos,
artefactos e tecidos a troco do vinho, na altura da
vindima. AliBs, fala-se de assRduas trocas, entre os
madeirenses e os marinheiros ingleses, de passagem, ou os
soldados do presRdio de 1801, de peHas de vestu<rio por
vinho110. Este era escasso, sendo poucas as oportunidades
para as classes populares arrumarem o seu enxoval.

A TRADIGmO E A CONJUNTURA POLQTICA. I de salientar que o


Folclore ficou conhecido quase sempre pela componente das
danHas e cantares. Popularmente ele significa apenas isso.
Esta J, mesmo assim, uma situaHno recente surgindo, com
grande evidLncia, nos princRpios do nosso sJculo. Hoje, a
necessidade de valorizaHno da vivLncia e cultura populares J
cada vez mais premente. A exaltaHno do "popular" expressa-
se atravJs do estudo e publicaHno, mas tambJm na recriaHno
destas vivLncias ou da sua institucionalizaHno com os
chamados grupos folcl\ricos111.
As comemoraHtes e o turismo sno um momento Rmpar desta
exaltaHno. Como exemplo disso, ao nRvel da ilha, temos as
festas do Quinto Centen<rio do Descobrimento de Madeira112
(Dezembro 1922) e do bicenten<rio de elevaHno do lugar de
S. Vicente B categoria de Vila (1944)113, a que deverno
juntar-se as festas centen<rias de 1940. TambJm, o turismo
e as festas de fim de ano que tiveram, a partir da dJcada
de trinta, um grande incremento, contribuRram para esta
valorizaHno na presente centdria114.
I, tambJm, nesta conjuntura que surgiram os primeiros

. Confronte-se Alberto Vieira, O comJrcio inter-insularnos sJculos XV e XVI, Funchal,


108

1986, pp.150-152;"Cartas de W. Bolton", in Ant\nio Aragno, A Madeira vista por


estrangeiros, Funchal, 1981.
109
. Cf. A. A. Sarmento, As pequenas industrias da Madeira, Funchal, 1941; Alberto
Vieira. O ComJrcio inter-insular(...), Funchal, 1986, pp.115-118
110
. An Historical sketch of the island of Madeira, London, 1819, pp.36-37; A. Sarmento,
Ensaios hist\ricos da Minha Terra, Funchal, 1952, pp.157.
111
.O primeiro habitulmente apontado é o Grupo Folcl\rico da Camacha constituRdo em 1948.
Veja-se o recente estudo de Danilo Fernandes
112. Fernando Augusto da Silva, Elucid<rio Madeirense, vol.III, 1966, pp. 154-159; Abel
Marques Caldeira, O Funchal no primeiro quartel sJculo XX, Funchal,1964, 88.
113. Di<rio de NotRcias, 25 Agosto, 1944.
114
.Francisco de Lacerda, Folclore da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1993, pp.14-17.
estudos sobre Folclore, apostados em afirmar a identidade
cultural madeirense. Aqui, merecem a nossa atenHno os
trabalhos de Fernando Augusto da Silva(1921-22), Jayme
Sanches de Camara(1931), Fernando Aguiar(1937-1951),
Visconde do Porto da Cruz(1924-1963), Alberto Artur
Sarmento(1940-1956), Carlos Maria dos Santos(1942-1953),
Jaime Vieira Santos(1948-1956) e Eduardo Antonino
Pestana(1957-1970). Com estes temos uma tradiHno, que por
ser escrita e divulgada, ganhou foros de evidencia, da
ligaHno Rntima das tradiHtes populares - ao nRvel das danHas
e cantares - com os escravos africanos da costa de GuinJ e
Marroquina115. Diferente J a aportaHno de Carlos Maria dos
Santos que pode ser, com propriedade, considerado o patrono
do nosso Folclore. Os livros que publicou - Tocares e
cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937),
Trovas e bailados da Ilha, Estudo do Folclore Musical de
Madeira (1942), Traje regional da Madeira, Estudo (1952) -
contrariam algumas ideias feitas sobre o nosso folclore,
mas nno foram suficientes para abalar a sua divulgaHno e
continuidade, pois, ainda hoje, elas teimam em manter-se.
Para muitos, J ponto assente que os instrumentos -
rajno, machete, viola - sno criaHno madeirense, enquanto as
danHas e cantares - charamba e mourisca.... - buscam as
suas origens remotas aos escravos negros da Costa da GuinJ
ou mouriscos. Com isto esquecemo-nos da ancestral ligaHno
ao continente pelos primeiros colonos. De opinino diferente
J Carlos Maria Santos que, ap\s um estudo aturado sobre as
danHas, cantares e instrumentos, nno hesita em afirmar que
"o Povo madeirense nno soube criar as suas canHtes, mas
adoptou as melodias que apareceram ou caRram em moda,
inovando outras sobre os respectivos temas a que deu o
interessante e inconfundRvel sabor regional"116. E d<-nos
uma liHno de hist\ria: "Embora a tradiHno sirva, de certo
modo, de pilar ao edifRcio de Hist\ria nno satisfaz
absolutamente ao investigador honesto, sempre <vido de
bases seguras assente em afirmaHtes"117. I esta permanente
necessidade de duvidar de verdades feitas que leva o
investigador B procura das raRzes rec^nditas, atravJs do
recurso ao mJtodo comparativo.
I, ainda, o mesmo autor que anota a dificuldade de
conhecer em profundidade as origens e percurso hist\rico do
folclore madeirense. A tarefa J espinhosa, uma vez que nas

. Neste caso J de destacar o enciclopJdico estudo do Pe. Fernando Augusto da Silva,


115

Elucid<rio Madeirense(publicado em 1921-22 para a comemoraHno do quinto centen<rio do


descobrimento da ilha e refundido na 2 ediHno em 1940-1946). Veja-se os temas:influLncias
Jtnicas, indument<ria, Folclore, crenHas populares, costumes antigos, Madeira(costumes da
gente do povo).
116. Tocares e Cantares da Ilha, p. 47.
117. Ibidem, 7.
cr\nicas nno ficou nada: "foi preciso reconstruR-lo adentro
das vagas alustes deixadas por alguns escritores e depois
de demorada e paciente investigaHno, em virtude de estarem
hoje tno misturados que J quasi impossRvel separa-los"118.
A mesma dificuldade se nos depara quando pretendemos
encontrar nos acervos documentais a vivLncia do Rncola
atravJs das suas danHas e cantares. O raro testemunho
credRvel disso J dado por Gaspar Frutuoso119 para a festa de
Nossa Senhora do Faial, considerada lugar de peregrinaHno.
Do Monte e da Ponta Delgada nada se diz. Mas tal silLncio
nno J sin\nimo de inexistLncia. Na verdade, nem sempre as
actuais exigLncias do investigador coincidem com a ideia
que os nossos avoengos faziam daquilo que deveria constar
na mem\ria hist\rica. O quotidiano nno fazia parte disso.
Os raros testemunhos sno particulares e surgem-nos atravJs
de cartas e di<rios. Mesmo assim estes sno poucos e s\
ganham algum interesse nos sJculos XVIII e XIX, com os de
autores estrangeiros, nomeadamente ingleses. A habilidade
do historiador, ou investigador, est< em descobrir essa
realidade implicita no acervo documental, tal como o
demonstra a experiLncia da historiografia francesa.

A ILHA.UM UNIVERSO A PARTE. A Ilha, pela sua geografia,


define-se como uma forma singular de mundividLncia. A
insularidade J a sua expressno, evidenciada na vida,
hist\ria e mentalidade islenha120. A ilha J, tambJm, um
cadinho da tradiHno e cultura. O isolamento, definido pela
linha de <gua do litoral, J o mecanismo que favorece a
tradiHno e d< forma a este cadinho que a preserva. Deste
modo, nno ser< por acaso que os primeiros passos da
investigaHno do Folclore tiveram as ilhas como palco.
Tenha-se em conta os estudos de Te\filo Braga121 e ;lvaro
Rodrigues de Azevedo122. Note-se que a funHno da ilha como
casulo de salvaguarda das ancestrais tradiHtes peninsulares
foi de novo evidenciada por Pero FerrJ123.
Nno ser< desprop\sito referir, aqui e agora, o debate
havido nos AHores sobre o problema da aHorianidade, isto J,
o modo de ser e estar no mundo do aHoriano124. A definiHno
118. Trovas e bailados da Ilha, p. 3.
119. Livro segundo Saudades da Terra(1964), pp.129-130.
120
. Confronte-se B. Escandell Bonet, Las Baleares encrucijada de culturas mediterraneas,
Madrid, 1989.
121
. Cantos populares do arquipJlago aHoriano, Porto, 1869.
. Romanceiro do ArquipJlago da Madeira, Funchal, 1980; Jorge de Freitas Branco, art.
122

cit, pp. 270-272.


123
. Romances Tradicionais, Funchal, 1982.
. Sobre este debate veja-se LuRs de Silva Ribeiro, SubsRdios para um estudo sobre a
124

aHorianidade, Angra do HeroRsmo, 1966, V. NemJsio, Sob os signos de Agora, Coimbra, 1962;
A. Vieira "A AHorianidade em questno" in A Mem\ria de Agua-Viva, nº 17, 1980, 17-
do insular mergulha as suas raRzes no devir do processo
hist\rico e meio geogr<fico. Ambos os factores
condicionaram o modo de ser e estar no mundo do colono que
aR assentou morada desde o sJculo XV, moldando-se e
demarcando-se do reino pela acumulaHno de factores de ordem
hist\rica125. E, se tivermos em conta que aquilo que sucedeu
nestas ilhas foi um processo de descobrimento e ocupaHno,
nno podemos alhear-nos da cultura do povoador que, depois,
se moldou Bs novas condiHtes.

A HIST[RIA DAS ILHAS. Uma das insoldveis questtes da Hist\ria


das ilhas prende-se com a origem geogr<fica dos primeiros
colonos que as povoaram. A etnogenia das gentes insulares J
ainda motivo de polJmica e nno se vislumbra qualquer
soluHno. Note-se que a revelaHno deste enigma J fundamental
para o tema que nos ocupa. Rastrear as origens das gentes J
ir ao encontro das suas ancestrais tradiHtes e definir o
mosaico das mdltiplas aportaHtes culturais, de que hoje
somos herdeiros.
E, mais uma vez, nunca J por demais referir o caso dos
AHores126 onde se da conta de uma cultura e tradiHno
nacional moldadas nas singularidades do arquipJlago127. O
mesmo sucedeu na Madeira. O colono que pela primeira vez
pisou o solo, nno sofria de amnJsia e na sua bagagem
constava, para alJm da utensilagem agrRcola, a tradiHno
cultural128. Mais, se tivermos em conta que as ilhas estavam
desabitadas, nno estaremos perante fen\menos de
assimilaHno, sendo a heranHa cultural fruto, em primeiro
lugar, desta aportaHno e da sua acomodaHno ecol\gica, que
define as suas especificidades. Ali<s, Eduardo Pereira, no
caso da mdsica popular madeirense, nno hesita em afirmar
que ela "J mais de adaptaHno que de criaHno regional"129.

19;Victor Pereira da Rosa e Salvato V. P. Trigo, "Da insularidade B aHorianidade: algumas


reflextes", in ArquipJlago(sJrie CiLncias Humanas), nº.2, 1987, pp. 187-201; OnJsimo
Teot\nio de Almeida, AHores, aHorianos e aHorianidade, Ponta Delgada, 1989. Para a
Madeira nno existe qualquer estudo a este nRvel. Mesmo assim a leitura do que se segue
poder< propiciarnos uma visno: JosJ Os\rio de Oliveira, "Originalidade do madeirense.
Tema para um estudo", in AHM, vol.VI, 1939, pp.49-51;Fernando Aguiar, "A alma da
Madeira. Apontamentos singelos para a sua interpretaHno", in Das Artes e Da Hist\ria Da
Madeira, vol.I, nº.2, 1950, pp.31-33, n .3, pp.26-27, n . 5(1951), pp.7-8; Santana
DionRsio, Ilha da Madeira e suas virtualidades esperituais, Lisboa, 1970; Vieira
Natividade, Madeira a epopeia rural,Funchal, 1953.
125
. J< o afirm<mos que "a aHorianidade surge como sRntese reflexiva do devir e meio hist\rico-geogr<fico aHoriano", art. cit., p. 19,
corroborado por JosJ de Almeida Pavno, Popular e popularizante, Ponta Delgada, 1981; idem, Aspectos do cancioneiro
popular aHoriano, Ponta Delgada, 1981.
126
. Carreiro da Costa, Etnologia dos AHores, 2 Vols. Lagoa, 1989, 1991; JosJ de Almeida Pavno, Aspectos do cancioneiro popular
aHoriano, Ponta Delgada, 1981.
127
. Confronte-se a apreciaHno recente sobre estas questtes, feita por Rui Sousa Martins, "Os processos criativos e as origens do
povoamento", in Oceanos, Lisboa, 1989, pp.65-67.
128
. Rui Sousa Martins(art.cit., p.66) diz-nos que "nos prim\rdios do povoamento nno se assiste a um mero processo de
transplantaHno de padrtes culturais mas a complexos fen\menos de difusno/inovaHno/adaptaHno".
129
. Ilhas de Zargo, Vol. II, p. 593. Platno Lvovitch Waksel("alguns traHos de Hist\ria da Musica na Madeira", Das Artes e Da
Hist\ria da Madeira, 1948-49, p.36, nota 4)refere que "o povo madeirense tem muita inclinaHno para adoptar melodias
estrangeiras, vulgarisadas entre elle pelas bandas militares ou de artistas e os musicos ambulantes...".
Sendo assim para quL esta incessante busca daquilo a
que consideramos genuRno e regional? I caso para perguntar:
o que entendemos por regional? TambJm, nno entendemos o
porquL da excessiva valorizaHno da componente escrava
(mourisca e negra) na definiHno da cultura e tradiHno
madeirenses130. H< uma desmesurada atenHno a este grupo, que
est< circunscrito a uma determinada Jpoca e nno adquiriu,
entre n\s, a dimensno social que insistentemente se
proclama.
A Hist\ria nno s\ nos abre os caminhos para a busca da
ancestralidade de nossa cultura, como nos propicia os meios
para desvendar certas opHtes do passado recente. J< o
referimos, que foi na primeira metade do nosso sJculo que
mais se avanHou no conhecimento e divulgaHno do nosso
folclore. Mas, tambJm, neste momento a cultura popular
ficou exposta aos maiores atentados que, ainda, hoje se
reflectem naquilo que se nos oferece.
Note-se que este foi um momento importante na Hist\ria
Contempor>nea das ilhas. O protagonismo da luta polRtica
pela autonomia gerou o discurso cultural da diferenHa, a
consciLncia insular ou arquipel<gica131. I de salientar que
este movimento J o inverso do oitocentista. Esta primeira
incursno e discurso da cultura popular pretendia definir as
suas especificidades132. A estas sucederam-se outras que
oscilam entre o discurso regionalista, uma componente
fundamental da autonomia, e a definiHno da ancestralidade
peninsular133. A Madeira nno J mais uma parte do todo, mas
sim uma regino com uma identidade s\cio-cultural diversa134.
A isto associa-se, depois, o discurso do Secretariado
Nacional de InformaHno com o Portugal tRpico, construRdo na
diversidade folcl\rica135. Neste contexto insere-se, por
exemplo, o estudo de Carlos M. Santos sobre o traje136 e a
decisno do Governador civil em 1933 ao estabelecer o traje
riscado como o tRpico a usar pelas floristas137.

O ESCRAVO COMO PONTENCIAL VEQCULO CULTURAL. A presenHa na


Madeira de um significativo ndmero de escravos de Can<rias,
Norte de ;frica e Costa da GuinJ dever< ter propiciado, ao

130
. Tenha-se atenHno coment<rios de Fernando A. Silva, Elucid<rio Madeirense, 3 Vols, Funchal, 1984. Artigos: influLncias
Jtnicas, indument<ria, Folclore, costumes antigos Madeira (costumes de gente do Povo); Eduardo Pereira, Ibidem, Vol. II, pp.
548-617; Carlos M. Santos, Trovas e Bailados, Funchal, 1942, idem, Tocares e cantares da Ilha, Funchal, 1937.
131
. Confronte-se Nelson VerRssimo, "Em 1917, a Madeira reclama autonomia", in Atl>ntico, n.3, 1985, pp.229-232; "A nossa
autonomia. um inquJrito de Armando Pinto Correia", in Atl>ntico, n.19, 1989; "O Alargamento da autonomia dos distritos
insulares. O debate na Madeira 1922-1923", in Actas do II Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, Funchal, 1989.
132
. Adolfo Coelho (ExposiHno Etnogr<fica. Portugal e as Ilhas Adjacentes, Porto, 1896) vL Portugal e as ilhas como um todo.
133
. Confronte-se Orlando Ribeiro, Aspectos e Problemas da Expansno Portuguesa, Lisboa, 1962; Carlos Alberto Medeiros, "Acerca
da ocupaHno das ilhas portuguesas do Atl>ntico", in Finisterra, IV, n.7, Lisboa, 1969, 109-121; Rui de Sousa Martins, art.cit..
134
. Fernando Augusto da Silva (Elucid<rio Madeirense, 1 ediHno, 1921-22) aparece com o discurso regionalista, a condizer com o
efervescente movimento polRtico regionalista.
135
. Confronte-se Jorge Freitas Branco, art. cit.
136
. Traje Regional da Madeira, Funchal, 1952.
137
.Arquivo Regional da Madeira, Governo Civil, nº.64, fol.44.
nRvel social e material, mdltiplas aportaHtes ao quotidiano
madeirense. I comum apontarem-se indmeras influLncias deste
grupo nas tradiHtes, nomeadamente no folclore e na
alimentaHno. Esta ideia, ainda que hoje se tenha
generalizado, nno resulta de uma investigaHno cientRfica mas
sim de meras observaHtes empRricas ou suposiHtes. Parece-nos
que ainda nno ultrapassamos a fase do lirismo
abolicionista, da segunda metade do sJculo XIX, que marcou
o pensamento e a investigaHno contempor>neos sobre o
escravo.
A Etnografia J prenhe neste tipo de observaHtes. No
campo do folclore regional, as mdsicas e as danHas que nno
se enquadram no filno portuguLs sno, imediatamente,
associadas a este grupo. Por isso, algumas, que definem a
tipicidade do folclore madeirense, sno apresentadas como
resultado da presenHa dos escravos: o charamba, o baile
pesado, a mourisca, a canHno de embalar e o baile da meia
volta, sno universalmente aceites pelos folcloristas
madeirenses como resultado desta hipotJtica aportaHno
cultural dos escravos. A maior parte dos autores que o
defendem tLm como mira a situaHno da escravatura do Brasil.
Todavia, aqui ela assumiu proporHtes muito diferentes das
que adquiriu no arquipJlago madeirense. A forma de
dominaHno e sociabilidade daR decorrentes favoreceram no
Brasil a manutenHno nas senzalas dos usos e costumes das
terras de origem.
O estudo que fizemos sobre os escravos na Madeira138
permite-nos reforHar a ideia lanHada alguns anos atr<s por
Carlos M. Santos. Os dados avulsos sobre o quotidiano dos
escravos permitem-nos questionar algumas falsas vistes em
que se filiam Bs explicaHtes dadas para a origem das danHas
e cantares. O escravo -- negro ou berbere -- era, entno, um
filno em permanente descoberta. O colono europeu parece,
por este modo, ter esquecido as suas tradiHtes quando
sulcou o Atl>ntico...!
Avaliar o contributo de uns e outros, eis a tarefa
espinhosa que nos espera, a historiadores e estudiosos do
Folclore. Uma primeira ideia se impte. Na Madeira a
escravatura foi algo diferente daquilo que sucedeu no
Brasil. A dispersno geogr<fica das <reas arroteadas, o
reduzido ndmero de escravos por propriet<rio e as
limitaHtes ao espaHo de convRvio social, nno favoreceram
este tipo de convivLncia. Ainda, na Madeira, tendo em conta
as limitaHtes impostas pelas posturas B circulaHno dos
escravos ap\s o sino de correr, parece-nos difRcil, senno
impossRvel, encontrar um momento para eles se divertirem em

60. Os escravos no arquipJlago da Madeira, sJculos XV a XVII, Funchal, 1991.


conjunto, com as suas danHas e cantares. Mais, ser< possRvel
encontrar entre o reduzido ndmero de escravos de cada
senhor um grupo da mesma etnia ou cultura, capaz de recriar
as suas danHas e cantares? Desta forma apenas lhes restavam
os momentos de folia estabelecidos para o propriet<rio, a
que certamente nno deviam ser alheios: com os jogos de
canas, as touradas e lutas.
O escravo J parte integrante da sociedade madeirense,
nno existindo para ele qualquer separaHno ou delimitaHno
esp<cio-social. O mundo do escravo entrecruzava-se com o do
livre. A dimensno reduzida do arquipJlago, associada B
forma de estruturaHno da sociedade e economia fizeram com
que esta simbiose se concretizasse em pleno. Os regimentos
rJgios, as posturas municipais, insistiam na necessidade de
controlo, no acanhado espaHo de convRvio, do escravo, no
sentido de evitar qualquer situaHno propiciadora da
revolta. Estamos perante um processo de assimilaHno
forHada, que deixa pouca margem de expressno B cultura
dominada. Perante isto, o escravo estava amarrado ao
quotidiano do senhor e s\ se poderia desprender-se dele em
condiHtes especiais e mediante o seu consentimento.
O escravo nesta sociedade s\ existe em relaHno ao
propriet<rio, pois era ele quem lhe atribuRa a sua posiHno
na estrutura social. Desde o nome, que o identifica, B
profissno, que ocupa, no dia a dia, e ao cumprimento dos
preceitos religiosos, a figura do propriet<rio J
omnipresente. No caso das escravas a ligaHno J mais
estreita, servindo elas muitas vezes de concubinas.
Em todo esta problem<tica h< uma questno fundamental
que tem sido preterida pelos estudiosos e defensores das
aportaHtes africanas B cultura madeirense. A Africa foi e
continua a ser um mosaico de culturas. Por isso, defender a
aportaHno africana implica a busca desta diversidade
cultural, que J como quem diz, da origem geogr<fica e
Jtnica dos escravos que vieram para a Madeira. A Costa da
GuinJ, um dos principais mercados fornecedor de escravos
para a Madeira, J, tambJm, como sabemos, um autLntico
mosaico de culturas e etnias139.
Note-se que esta ideia J tida em conta por todos os
estudiosos da aportaHno cultural negra Bs regites aonde
chegaram os africanos. Somente entre n\s este tipo de
comportamento J esquecido140. Por tudo isto, podemos afirmar

139
. Sno muitos os estudos feitos a v<rios nRveis. Confronte-se: Artur Ramos, As Culturas Negras no Mundo Novo, S. Paulo, 1979(1ª
ediHno em 1937); Philip Curtin, Atlantic Slave Trade, Madison, 1969; Basil Davidson, Revelando a velha Africa, Lisboa, 1977;
idem, A descoberta do passado de ;frica , Lisboa, 1981; idem, Os Africanos. Uma introduHno B sua Hist\ria, Lisboa, 1981.
140
. Tenha-se em conta o que foi dito e feito para outras <reas: Roger Bastide, African Civilisation in the New World, N. York,
1971; idem, Las Americas Negras, Madrid, 1969; Artur Ramos, O Folclore negro no Brasil, 1ª ediHno, 1935; Eugene D.
Genovese, Roll, Jordan roll. The World the slave made, N. York, 1974; Daniel C. Littlefield, Race and slaves, Baton Rouge,
1981; Sterling Stuckey, Slave Culture: nationalist theory & the foundations of black America, N. York, 1987; J. William Harris,
Society and Culture in the Slave South, N. York, 1992.
que estamos perante um campo ainda em aberto a aguardar um
tratamento cuidado pelos investigadores. Por exemplo, o
alargamento da investigaHno ao perRodo final da permanLncia
do fen\meno na ilha poder< propiciar-nos novos dados
capazes de justificarem o desenvolvimento dos rastos e que
poderno testemunhar, ainda hoje, a sua presenHa na
sociedade madeirense.
As possRveis reminescLncias da presenHa dos escravos
na ilha podemos ainda colocar outras questtes. A evoluHno
da escravatura desde o sJculo XV atJ B sua aboliHno nno foi
unilinear e nnO J entendida por muitos. Na Madeira J
evidente a sua incidLncia nos primeiros cem anos de
ocupaHno, atJ que foi chegado o momento da sua maior
procura pelo mercado americano. Para a maioria dos eruditos
esta realidade J ignorada, sendo a escravatura negra ou
mourisca uma constante da Hist\ria da ilha.
Por tudo isto podemos concluir que h<, ainda, muito a
fazer e a repensar sobre as aportaHtes culturais da
populaHno escrava B sociedade e cultura madeirenses. A sua
definiHno e permeabilidade Bs influLncias externas devem ser
feitas num correcto enquadramento hist\rico. S\ assim
estaremos em condiHtes de afirmar que o actual folclore
madeirense J a manifestaHno sincrJtica de mdltiplas
aportaHtes e da evoluHno no tempo. Definir uma e outra
situaHno J tarefa do investigador, a quem se depara um
vasto campo a desbravar.
Tudo se misturou, por uma poHno m<gica, dando origem Bs
mdltiplas manifestaHtes das danHas e cantares que ritmaram
as tarefas agrRcolas, e ficaram a evidenciar a
transbordante alegria do Rncola nas festas populares e de
homenagem aos oragos e santos da sua devoHno.

A COMUNIDADE EMIGRANTE- UM OLHAR AO PRESENTE NO RASTREIO DO PASSADO . A


concluir, resta-nos referir um dos possRveis caminhos para
a redescoberta da tradiHno e cultura madeirenses. A
reconstruHno desta pretensa identidade perdida entre
mdltiplas aportaHtes pode ser concretizada de diversas
formas. Mas, se tivermos em atenHno os estudos que os
cientistas sociais nos tem legado sobre as comunidades de
emigrantes, podemos estar por uma nova via a desbravar141.
O estudo destas comunidades, seja qual for a sua
proveniLncia, permite reconstruir a identidade portuguesa
numa dimensno transnacional. O folclore adquiriu aqui uma
dimensno fundamental, sendo um meio de definiHno e reforHo
da identidade da comunidade. Neste caso J de salientar a

141
. K. David Jakson, "O texto do folclore indo-portuguLs", in Revista CrRtica de CiLncias Sociais, nº 38, 1993, 169-191; Bela
Feldman-Bianco, "(Re-)construHno da classe etnicidade e Nacionalismo entre imigrantes portugueses" in Ibidem, 193-223; JosJ
Ant\nio Alpalhno e Victor Pereira da Rosa, Da emigraHno B aculturaHno, Angra do Heroismo, 1983.
L(USA)landia de OnJsimo Teot\nio de Almeida, isto J, "uma
porHno de Portugal rodeado pela AmJrica por todos os
lados..."142. Isto acontece porque "em qualquer parte do
mundo, imigrantes sno conhecidos por suas elaboraHtes de
imagens da terra natal que tornam-se sentimentalizadas em
canHtes, poesias e narrativas"143.
Mas, qual a relaHno disto com o que nos ocupa?
A emigraHno nno J um fen\meno novo no mundo peninsular,
mas sim uma das constantes da sua Hist\ria. A expansno
quatrocentista fez alargar horizontes e propiciou o
primeiro movimento transnacional. Os colonos
quatrocentistas sno emigrantes como aqueles que no presente
sJculo venceram o oceano rumo B AmJrica. Como eles foram
portadores de uma cultura. No destino recriaram o seu
torrno natal, moldando o seu lar, espaHo de convRvio de
acordo com as suas origens. Mas, nno ficaram alheios aquilo
que os rodeia, pelo que o produto final acaba por ter uma
manifestaHno de sincretismo que d< corpo B alteridade.
Sucede, assim, hoje mas nno ficou de fora no passado.
Na Madeira a alteridade expressa-se na imagem do
mourisco e negro, resultado da sua presenHa na ilha, como
escravo, ou dos mdltiplos e assRduos contactos na costa
Africana. Mesmo assim a cultura dominante J europeia porque
tambJm o europeu domina a sociedade. Deste modo, quando
pretendemos explicar as tradiHtes da comunidade emigrante,
ser< l\gico busc<-la nas aportaHtes resultantes do contacto
com outros povos e culturas, ou antes, naquilo que levaram
agarrado ao corpo e na sua "mala de cartno"?. I esta
abertura de perspectivas que deve fazer parte da nossa
pr<tica de investigador do social no passado e presente.
Posto isto, resta-nos lembrar aquilo que nos disse
Vieira Natividade144: "Para amar e para compreender a
Madeira, temos que nos debruHar sobre a ilha m<rtir, sobre
o que ela contJm de dramaticamente humano, de tenso e de
comovente; ver o homem humilde, rude e simples, nas suas
mudas angdstias, na sua persistLncia her\ica e na sua
imensa grandeza."

I este tipo de atitude que faz falta...!

142
. L(USA)landia: a dJcima ilha, Angra do HeroRsmo, 1988, p. 231.
143
. Bela Feldman-Branco, art. cit., p. 220.
144
. Madeira. A epopeia rural, Funchal, 1953, pp.41-42.
16. JULHO

TESTEMUNHOS E TÉCNICAS DE RECOLHA: fontes históricas, vestígios materiais,


bens móveis e imóveis

O conhecimento do passado obedece a regras científicas. Deste modo temos as técnicas


de investigação que tornam coerente o trabalho do investigador ou estudioso. O
resultado final de um qualquer estudo resulta do domínio dessas técnicas pelos seus
autores.

A História assinala um conjunto de fontes fundamentais para o seu conhecimento:

fontes narrativas e documentais: documentos, testemunhos escritos e livros


fontes materiais: vestigios materiais, monumentos
tradição oral.
19. JULHO

HISTÓRIA E TRADIÇÃO: o conceito tradição, Folclore, Religiosidade, usos e


costumes

FOLCLORE E RELIGIOSIDADE POPULAR

ALBERTO VIEIRA

“Todos os povos tLm, qualquer que seja a religino que reconheHam, um conjunto de
susperstiHões arcaicas: na Europa moderna essas superstiHtes, resRduo de mitos, j< remotos
durante a antiguidade, sno as do animismo, porque o cristianismo admitiu no seu seio,
mudando-lhes os nomes para mais tarde lhes mudar o significado, todos ou quase todos os
elementos mitol\gicos das religites que o precederam concorrendo para o constituir.(...). H<
uma grande religino s<bia que cobre o mundo como uma nuvem espessa de dogmas e c>nones;
mas o povo, nno os percebendo, nno sente nessas f\rmulas e nessas doutrinas o poema aJreo do
seu espRrito. Obedece e repete maquinalmente as oraHtes e credos que os padres ensinam, mas
os seus deuses Rntimos e verdadeiros sno, serno sempre, os gnomos da fantasia, as sombras dos
terrores rurais e nocturnos.” (Oliveira Martins, Sistema dos mitos religiosos, Lisboa, 1986,
pp.225 e 233)

Religiosidade popular J um dos campos a descobrir no nosso arquipJlago. A atenHno do


estudioso tem sido relativa e, tirando algumas iniciativas isoladas145, pode-se dizer que
estamos perante algo que teima em desaparecer sem que, se tenha lavrado o registo da
sua mem\ria. O grande interesse dos estudiosos tem estado dirigido para o Natal, a
chamada “festa” da tradiHno madeirense146.
Todavia, antes de avanHar para o terreno J necess<rio rodear-se da utensilagem b<sica
capaz de orientar esta pesquisa. Primeiro que tudo importa definir os conceitos, depois,
J necess<rio delimitar o nosso campo de acHno tendo em atenHno o trabalho j< feito,
dentro e fora da ilha147. S\ assim estaremos aptos para essa prospecHno de campo.
Depois de feitas as recolhas h< que sistematiz<-las e avanHar para uma obrigat\ria
comparaHno com a realidade peninsular, nomeadamente o norte de Portugal, local de
origem do grosso dos colonos e naturalmente dessas tradiHtes. Por outro lado J
imprescindRvel acompanhar a forma de evoluHno do ritual oficial, definido pela igreja,
que J o mesmo que quem diz seguir o percurso da Hist\ria da Igreja na ilha.

O LEGADO CULTURAL PENINSULAR .A principal dificuldade com que se


depara um investigador da cultura popular, J a falta de testemunhos orais ou
escritos que se afirmem como instrumentos de trabalho. Ela raras vezes se
serve da escrita. A oralidade J a sua forma de expressno e de perpetuaHno. Por
isso, esta mem\ria nno encontra nas sociedades abertas grandes condiHtes de
145
. Apenas merecem a nossa atenHno os textos de Eduardo Antonino Pestana, A ilha da Madeira. Folclore madeirense, Funchal,
1965; Visconde do Porto da Cruz, Crendices e superstiHtes do arquipJlago da Madeira, Funchal, 1954.
146
. Veja-se Manuel J. Pita Ferreira, O Natal na Madeira. Estudo folcl\rico, Funchal, 1956.
147
. Tenha-se em conta que os primeiros colonos j< portugueses, por isso dever< dar-se atenHno aos estudos de Leite de Vasconcelos
(1895), Consiglieri Pedroso(1988), Te\filo Braga (1986) e Adolfo Coelho (1993).
subsistLncia148. A oralidade parece ser aversa ao progresso sistem<tico das
vias de contacto e transmissno. Assim, cada porta que se abre J mais uma via
para que esta mem\ria colectiva desapareHa149.
Na Madeira, a grande abertura comeHou com os vapores costeiros e veio a concretizar-
se em pleno, a partir da dJcada de trinta do nosso sJculo, com o rasgar das primeiras
estradas. O progresso J aqui prejudicial B tradiHno cultural que J assaltada pela
inevit<vel padronizaHno de comportamentos. Hoje, a ilha est< aberta ao mundo e sno
raros os nichos dessa ancestral mem\ria colectiva. Por isso, o mJtodo de observaHno
directa J cada vez mais uma tJcnica em vias de extinHno. Para alJm do testemunho
directo atravJs do rastreio da oralidade, h< que buscar outras fontes de informaHno. E,
aqui, todos os recursos sno poucos.
Os depoimentos de estrangeiros, nomeadamente ingleses, que nos visitaram, sempre
sedentos de singularidades, sno fundamentais. Eles surgem sob a forma de textos e
gravuras150. Todavia, as nossas provas ou instrumentos nno deverno resumir-se a isto.

A TRADIGmO E A CONJUNTURA POLQTICA. Hoje, a necessidade de valorização da


vivência e cultura populares é cada vez mais premente. A exaltação do “popular”
expressa-se através do estudo e publicação, mas também na recriação destas vivências
ou da sua institucionalização com os chamados grupos folclóricos151.
As comemoraHtes e o turismo sno um momento Rmpar desta exaltaHno. Como exemplo
disso, ao nRvel da ilha, temos as festas do Quinto Centen<rio do Descobrimento de
Madeira152 (Dezembro 1922) e do bicenten<rio de elevaHno do lugar de S. Vicente B
categoria de Vila (1944)153, a que deverno juntar-se as festas centen<rias de 1940.
TambJm, o turismo e as festas de fim de ano que tiveram, a partir da dJcada de trinta,
um grande incremento, contribuRram para esta valorizaHno na presente centdria154.
I, tambJm, nesta conjuntura que surgiram os primeiros estudos sobre cultura popular,
apostados em afirmar a identidade cultural madeirense. Aqui, merecem a nossa atenHno
os trabalhos de Fernando Augusto da Silva(1921-22), Jayme Sanches de Camara(1931),
Fernando Aguiar(1937-1951), Visconde do Porto da Cruz(1924-1963), Alberto Artur
Sarmento(1940-1956), Carlos Maria dos Santos(1942-1953), Jaime Vieira Santos(1948-
1956) e Eduardo Antonino Pestana(1957-1970). Com estes temos uma tradiHno, que por
ser escrita e divulgada, ganhou foros de evidencia, da ligaHno Rntima das tradiHtes

148
. Tenha-se em atenHno que desde 1918, com a Escola de Chicago, a Hist\ria Oral passou a ser um domRnio importante da
investigaHno hist\ria, que, lamentavelmente, nunca chegou atJ n\s. Confronte-se Joseph Goy "Hist\ria Oral", in A Nova
Hist\ria, Coimbra, 1980, pp.506-508.
149
. Tenha-se em conta a abertura motivada pelos meios de comunicaHno nos dltimos vinte anos. Antes disso temos a apontar o
aparecimento da r<dio (em 1948 da r<dio privada e desde 1967 a Emissora Nacional) e da Televisno(1972). A este prop\sito J
de salientar o texto de Hor<cio Bento de Gouveia,"A telefonia matou o rajno", in Canhenhos da ilha, Funchal, s.d., pp.21-23.
150
. Cf. J. Barrow, A voyage to cochinchina in the years 1792 and 1793..., London,1806; Thomas E. Bodwich, Excursions in
Madeira and Porto Santo..., London, 1825; Lady E. Stuart Wortley, A visit to Portugal and Madeira, London, 1854; Isabella de
FranHa, Jornal de uma visita B Madeira e Portugal 1853-1854, Funchal, 1970; Ellen M. Taylor, Madeira. Its scenery and how
to see, London, 1882; Mariana Xavier da Silva, Na Madeira. Offerenda, Lisboa, 1884; A. Brexel Biddle, The Madeira islands,
London, 1900; J. E. Hutcheon, Things seen in Madeira, London, 1928. Tenha-se em conta, ainda, os estudos de Maria dos
RemJdios Castelo-Branco, "Testemunhos de viajantes ingleses sobre a Madeira", in I CIHM, vol. I, Funchal, 1990, 198-245;
idem, "Perspectivas americanas da Madeira", in II CIHM, Funchal, 1990, 453-478; Ant\nio Ribeiro Marques da Silva, "Notas
sobre o quotidiano madeirense. sJcs. XVII e XXXIX", Di<rio de NotRcias, Funchal, 1 de Julho a 21 de Setembro.
151
.O Grupo Folcl\rico da Camacha, constituRdo em 1948, é considerado o primeiro.
34. Fernando Augusto da Silva, Elucid<rio Madeirense, vol.III, 1966, pp. 154-159; Abel Marques Caldeira, O Funchal no primeiro
quartel sJculo XX, Funchal,1964, 88.
35. Di<rio de NotRcias, 25 Agosto, 1944.
154
.Francisco de Lacerda, Folclore da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1993, pp.14-17.
populares - ao nRvel das danHas e cantares - com os escravos africanos da costa de GuinJ
e Marroquina155.

A ILHA.UM UNIVERSO A PARTE. A ilha, pela sua geografia,


define-se como uma forma singular de mundividLncia. A
insularidade J a sua expressno, evidenciada na vida,
hist\ria e mentalidade156. Ela J, tambJm, um cadinho da
tradiHno e cultura. O isolamento, definido pela linha de
<gua do litoral, J o mecanismo que favorece a tradiHno e d<
forma a este cadinho que a preserva. Deste modo, nno ser<
por acaso que os primeiros passos da investigaHno do
Folclore tiveram as ilhas como palco. Tenha-se em conta os
estudos de Te\filo Braga157 e ;lvaro Rodrigues de Azevedo158.
Note-se que a funHno da ilha como casulo de salvaguarda das
ancestrais tradiHtes peninsulares foi de novo evidenciada
por Pero FerrJ159.

A HIST[RIA DAS ILHAS. Uma das insoldveis questtes da Hist\ria


das ilhas prende-se com a origem geogr<fica dos primeiros
colonos que as povoaram. A etnogenia das gentes insulares J
ainda motivo de polJmica e nno se vislumbra qualquer
soluHno. Note-se que a revelaHno deste enigma J fundamental
para o tema que nos ocupa. Rastrear as origens das gentes J
ir ao encontro das suas ancestrais tradiHtes e definir o
mosaico das mdltiplas aportaHtes culturais, de que hoje
somos herdeiros.
E, mais uma vez, nunca J por demais referir o caso dos AHores160 onde se da conta de
uma cultura e tradiHno nacional moldadas nas singularidades do arquipJlago161. O
mesmo sucedeu na Madeira. O colono que pela primeira vez pisou o solo, nno sofria de
amnJsia e na sua bagagem constava, para alJm da utensilagem agrRcola, a tradiHno
cultural162. Mais, se tivermos em conta que as ilhas estavam desabitadas, nno estaremos
perante fen\menos de assimilaHno, sendo a heranHa cultural fruto, em primeiro lugar,
desta aportaHno e da sua acomodaHno ecol\gica, que define as suas especificidades.
Ali<s, Eduardo Pereira, no caso da mdsica popular madeirense, nno hesita em afirmar

155
. Neste caso J de destacar o enciclopJdico estudo do Pe. Fernando Augusto da Silva, Elucid<rio Madeirense(publicado em 1921-
22 para a comemoraHno do quinto centen<rio do descobrimento da ilha e refundido na 20 ediHno em 1940-1946). Veja-se os
temas:influLncias Jtnicas, indument<ria, Folclore, crenHas populares, costumes antigos, Madeira(costumes da gente do povo).
156
. Confronte-se B. Escandell Bonet, Las Baleares encrucijada de culturas mediterraneas, Madrid, 1989.
157
. Cantos populares do arquipJlago aHoriano, Porto, 1869.
158
. Romanceiro do ArquipJlago da Madeira, Funchal, 1980; Jorge de Freitas Branco, art. cit, pp. 270-272.
159
. Romances Tradicionais, Funchal, 1982.
160
. Carreiro da Costa, Etnologia dos AHores, 2 Vols. Lagoa, 1989, 1991; JosJ de Almeida Pavno, Aspectos do cancioneiro popular
aHoriano, Ponta Delgada, 1981.
161
. Confronte-se a apreciaHno recente sobre estas questtes, feita por Rui Sousa Martins, "Os processos criativos e as origens do
povoamento", in Oceanos, Lisboa, 1989, pp.65-67.
162
. Rui Sousa Martins(art.cit., p.66) diz-nos que "nos prim\rdios do povoamento nno se assiste a um mero processo de
transplantaHno de padrtes culturais mas a complexos fen\menos de difusno/inovaHno/adaptaHno".
que ela “J mais de adaptaHno que de criaHno regional”163. Sendo assim para quL esta
incessante busca daquilo a que consideramos genuRno e regional? I caso para perguntar:
o que entendemos por regional? TambJm, nno entendemos o porquL da excessiva
valorizaHno da componente escrava (mourisca e negra) na definiHno da cultura e
tradiHno madeirenses164. H< uma desmesurada atenHno a este grupo, que est<
circunscrito a uma determinada Jpoca e nno adquiriu, entre n\s, a dimensno social que
insistentemente se proclama.
A Hist\ria nno s\ nos abre os caminhos para a busca da ancestralidade de nossa cultura,
como nos propicia os meios para desvendar certas opHtes do passado recente. J< o
referimos, que foi na primeira metade do nosso sJculo que mais se avanHou no
conhecimento e divulgaHno do nosso folclore. Mas, tambJm, neste momento a cultura
popular ficou exposta aos maiores atentados que, ainda, hoje se reflectem naquilo que se
nos oferece.
Cinco sJculos de Hist\ria da Igreja. A dois de Julho de 1420
desembarcou Jono GonHalves Zarco no vale de Machico e, de
imediato, procedu B posse da terra em nome do rei, B sua
sagraHno com a primeira missa pelos franciscanos que o
acompanhavam, tal como o testemunha Francisco Alcoforado165.
Tudo isto parece-nos indicar que o povoamento da Madeira e
a organizaHno da estrutura eclesi<stica, foram
concretizados de acordo com um plano definido, pois
Jer\nimo Dias Leite refere que o objectivo dos primeiros
madeirenses era “ptr em obra a edificaHno das igrejas e das
vilas e lugares e lavranHa de terras”. Tais princRpios
nortearam, nno s\, o caso da Madeira, mas tambJm, o de
outros arquipJlagos atl>nticos onde os portugueses
chegaram.
No perRodo de 1433 a 1514 a ilha estava a cargo do mestre da Ordem de Cristo que, no
caso da alHada religiosa, determinara a sua superintendLncia pelo vig<rio da vila de
Tomar. De acordo com a bula de 1456 as novas <reas atl>nticas eram consideradas
“nullius diocesis”, estando dependente daquele vig<rio. Era ele que determinava a
construHno das primeiras igrejas e nomeava os prelados para o serviHo religioso. A
alHada do vig<rio de Tomar sobre as ilhas continuou atJ 1514, altura em que foi criado o
bispado com sede no Funchal.

AS PAR[QUIAS. As sedes das capitanias, em data que deconhecemos, tiveram o


primeiro vig<rio que, depois, o progresso e a consequente pressno do movimento demo-
gr<fico conduziram ao aparecimento de novas igrejas e par\quias. O templo religioso J
o ponto de divergLncia do processo de povoamento e foi em torno dele que surgiram as
primeiras habitaHtes de madeira para dar abrigo aos colonos. Daqui resulta a
import>ncia da igreja em todo o processo.

163
. Ilhas de Zargo, Vol. II, p. 593. Platno Lvovitch Waksel("alguns traHos de Hist\ria da Musica na Madeira", Das Artes e Da
Hist\ria da Madeira, 1948-49, p.36, nota 4)refere que "o povo madeirense tem muita inclinaHno para adoptar melodias
estrangeiras, vulgarisadas entre elle pelas bandas militares ou de artistas e os musicos ambulantes...".
164
. Tenha-se atenHno coment<rios de Fernando A. Silva, Elucid<rio Madeirense, 3 Vols, Funchal, 1984. Artigos: influLncias
Jtnicas, indument<ria, Folclore, costumes antigos Madeira (costumes de gente do Povo); Eduardo Pereira, Ibidem, Vol. II, pp.
548-617; Carlos M. Santos, Trovas e Bailados, Funchal, 1942, idem, Tocares e cantares da Ilha, Funchal, 1937.
165
A RelaHno de Francisco Alcoforado, publ. por JosJ Manuel de CASTRO, Descobrimento de Ilha da Madeira ano 1420...,
Lisboa, SD, p. 90.
As primeiras par\quias surgem no sJculo XV a partir dos principais ndcleos de fixaHno
litoral B C>mara de Lobos, Calheta, Funchal, Machico, Ponta do Sol e Ribeira Brava. E
destas freguesias se retiraram outras na primeira metade da centdria - Campan<rio,
Estreito de C>mara de Lobos, Faial, Gaula, Ponta do Pargo, Santana e Santo Ant\nio-
secundado na dJcada de setenta por novas: Porto da Cruz, Canhas, Madalena do Mar, S.
Roque e S. Martinho.

OS CONVENTOS. A ordem ser<fica firmou-se na vida religiosa madeirense criando


conventos, cen\bios ou orat\rios no Funchal(1480), C>mara de Lobos(1450), Santa
Cruz(1527), Ribeira Brava(1724), Calheta(1670) e Machico166.
Neste contexto relevam-se os de S.Francisco do Funchal e o de Santa Clara167. O
primeiro foi construRdo a partir de 1474, enquanto o segundo, de freiras, foi erguido por
iniciativa de Jono GonHalves Camara, segundo capitno do Funchal, no espaHo onde o
seu pai havia edificado a capela da ConceiHno de Cima (em oposiHno B da ConceiHno de
Baixo, erguida junto ao mar) e teve o padroado do mesmo por bula (1476) de Sixto IV.
Por breve (1496) de Alexande VI ficou estabelecida a sua regular observ>ncia e o inRcio
da clausura, sendo abadessa D.Isabel de Noronha, filha do capitno, que se encontrava no
Convento da ConceiHno de Beja. Por fim, registe-se o Convento de Nossa Senhora da
Piedade, fundado por legado estabelecido no testamento (1518) de Urbano Lomelino
numa sua granja, situada no local onde hoje se encontra o actual aeroporto do
Funchal.IdLntico ideal moveu o c\nego Henrique CalaHa de Viveiros, que em 1650
ergueu um convento de Nossa Senhora da EncarnaHno em honra da restauraHno da
independLncia168. Este foi o segundo convento feminino da regra franciscana de Santa
Clara. Mais tarde, em 1654, Gaspar Berenguer de Andrade fundou o das MercLs.
Em 1485, retirou-se na ilha Frei Pedro da Guarda, criando o pequeno eremitJrio de Sno
Bernardino em Camara de Lobos. Este franciscano, conhecido como o santo servo de
Deus, ficou cJlebre na ilha pelas suas virtudes e milagres, o que motivou um culto
arreigado Bs populaHtes de Camara de Lobos, que se manteve atJ 1835, ano em que foi
proibido.

O BISPADO. O rei concedeu o direito de padroado B Ordem de Cristo. Primeiro em


1433 o arquipJlago da Madeira alargado, depois, em 1454, a todos os territ\rios
descobertos, situaHno confirmada por bula papal de 17 de MarHo de 1456. O governo
espiritual ficou entregue ao vig<rio de Tomar, sede da Ordem de Cristo e na condiHno de
nullius diocese, enquanto ao administrador da ordem competia a construHno dos
templos, a nomear os ministros e pagar o seu vencimento. SituaHno que nno agradou B
diocese de T>nger que queria alargar os seus domRnios Bs ilhas169. ; parte isso, em
todas as ilhas, estabeleceram-se ouvidorias com o objectivo de organizar e exercer o
governo eclesi<stico. A situaHno mudou em 1514 com a criaHno do bispado do Funchal
e, depois em 30 de Dezembro de 1551, com o regresso B coroa do padroado.

166
. Fernando Carlos Azevedo Vaz, "S. Francisco do Funchal. A ihgreja, o convento, os frades", in DAHM, 1948-49, IV, n1.23,
1956; Joaquim Pl<cido Pereira, "J\ias franciscanas outorgadas B ilha da Madeira", in DAHM, V, n1.30, 1960, VI, n1.31 e 34,
1961; Manuel Juvenal Pita Ferreira, "A ordem ser<fica na Madeira", in DAHM, VI, n1.32, 1962.
167
. Jono JosJ Abreu de SOUSA, O convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991.
168
. Eduarda Maria de Sousa GOMES, O convento da EncarnaHno do Funchal. SubsRdio para a sua Hist\ria. 1660-1777, Funchal,
1995.
169
. Confronte-se Ant\nio BR;SIO, "O padroado da Ordem de Cristo na Madeira", in Arquivo Hist\rico da Madeira, XII, 1960-61,
pp. 193-228.
Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo atravJs do vig<rio de Tomar continuou a
superintender o governo eclesi<stico das ilhas atJ que em 12 de Junho de 1514, pela
bula “Pro excellenti”, foi criado o bispado do Funchal com jurisdiHno sobre toda a <rea
ocupada pelos portugueses no Atl>ntico e Indico. AtJ este momento todo o serviHo
episcopal era feito por bispos titulares aR enviados pelo referido vig<rio,como sucedeu
em 1507 e 1508. Mas, o progresso econ\mico e social deste vasto espaHo levou B
criaHno em 1534 de novas dioceses, cujas <reas foram desanexadas do Funchal: as de
Goa, Angra, Santiago e S. TomJ.
Mais tarde a 31 de Janeiro de 1533 a diocese do Funchal foi elevada B categoria de
metropolitana e primaz, englobando “a Madeira e Porto Santo, as ilhas Desertas e
Selvagens, aquela parte continental de ;frica, que entesta com a diocese de Safi[m] e
bem assim as terras do Brasil, tanto as j< descobertas, como as que se vierem a
descobrir”.

A REFORMA E A CONTRA-REFORMA. O sJculo XVI J definido em termos de


estrutura religiosa da Cristandade ocidental como um momento de activo
protagonismo. Para isso contribuRram a tentativa de reforma levada a cabo por Lutero e
Calvino e a pronta resposta do papado por meio do ConcRlio de Trento. A Companhia
de Jesus emerge neste contexto como o bastino da resposta papal, cujo movimento ficou
conhecido como “contra reforma”. O estado da igreja exigia cuidados especiais. A vida
conventual estava em degradaHno, dominando a indisciplina e alguma imoralidade. O
clero secular alheara-se do serviHo nas par\quias apegando-se aos vRcios da sociedade.
O absentismo atingia tambJm a alta hierarquia da igreja cat\lica. Os bispos eleitos
recusavam-se a assumir o governo do episcopado, preferindo a vida mundana da corte.
Os primeiros nomeados para as dioceses insulares nunca pisaram o solo e daqueles que
se fixaram foram poucos os que procederam B indispens<vel visita Bs par\quias.
Note-se que o primeiro bispo a pisar o solo da diocese foi D. Ambr\sio Brandno, em
nome do arcebispo D. Martinho de Portugal170, que aR esteve em 1538 acompanhado de
dois visitadores (Jordno Jorge e ;lvaro Dias). Foi a partir daR que se reorganizaram as
par\quias, estabelecendo-se normas rigorosas para a sua fixaHno nas igrejas e
moralizaHno dos actos atravJs dos livros de registo. Depois da sua morte, em 1547, a SJ
permaneceu vaga atJ 1551. Neste perRodo esteve no Funchal o bispo D. Sarello, das
Can<rias, que deu “ordens a muitas pessoas e correu a ilha toda crismando comumente a
todos os que disso tinham necessidade”. E, em 1552, foi provido D. Frei Gaspar do
Casal, que nno residiu na ilha, sendo o facto mais saliente ter participado no ConcRlio de
Trento. O sucessor, D. Jorge de Lemos, nomeado em 1556 foi quem, na verdade, deu
forma B aplicaHno das ordens do concRlio, sendo seguido depois por D. Jer\nimo Barreto
(1574-85) e D. LuRs de Figueiredo de Lemos (1586-1608) considerados os verdadeiros
obreiros desta reforma na Madeira.
A reorganizaHno das instituiHtes religiosas e do ritual religioso, iniciados em 1578 por
D. Jer\nimo Barreto tiveram continuidade com D. LuRs Figueiredo de Lemos (1597,
1602171), Frei LourenHo de T<vora (1615), D. Fernando Jer\nimo (1622, 1629, 1634),
D. Frei Ant\nio da Silva Teles e D. Frei JosJ de Santa Maria (1610). Todos estes

170
. Confronte-se Gaspar FRUTUOSO, Saudades da Terra, 290-291; Paulo Drumond BRAGA, " A actividade diocesana de D.
Martinho de Portugal na arquidiocese funchalense", in Actas. III Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, Funchal,
1993, 557-562.
171
. Confronte-se Isabel R. Drumond BRAGA, "A acHno de D. LuRs Figueiredo de Lemos, bispo do Funchal.1585-1608", Actas. III
Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, Funchal, 1993, 563-583.
prelados realizaram um sRnodo onde foram aprovadas diversas constituiHtes, mas
apenas se publicaram as de 1578 e 1597 e conhecem-se as de outro manuscritas, tendo-
se perdido as restantes. Estas medidas corresponde ao apelo da pr\pria estrutura da
igreja e dos leigos que em 1546, atravJs da c>mara, fizeram ouvir a sua voz de
descontentamento junto da coroa172.

AS CONSTITUIGsES SINODAIS. O ConcRlio de Trento (1545-1563) definiu uma


nova realidade para a teologia e pr<tica institucional da hierarquia religiosa. Por meio de
um novo modelo de catecismo pretendia-se uniformizar do ritual religioso e combater o
absentismo do clero e leigos. Um dos meios mais adequados para a aplicaHno destas
ordens foi o dos concRlios diocesanos. De acordo com as normas estabelecidas nas
diversas sesstes do ConcRlio foram elaboradas as normas capazes de atender aos novos
desejos da pr<tica religiosa. A obrigatoriedade de reunino assRdua dos sRnodos
episcopais e o consequente estabelecimento de constituiHtes resultam da reforma
tridentina. AtJ entno estas normas estavam j< estabelecidas, mas nunca se cumpriam173.
Uma das mais relevantes recomendaHtes saRdas do concRlio tridentino foi a necessidade
das visitas pastorais, de dois em dois anos. Mas elas nem sempre se concretizaram com
o necess<rio rigor. Das actas disponRveis J possRvel avaliar o nRvel de religiosidade
popular e o maior ou menor impacto das ordens do papa e dos sRnodos diocesanos. Estes
livros de visitaHtes sno tambJm um testemunho da religiosidade popular174.

A INQUISIGmO E OS JUDEUS. Os aferidores mais importantes da religiosidade dos


madeirenses sno, sem ddvida, os testemunhos exarados, primeiro nos diversos livros das
visitaHtes e depois nos processos perante o Santo OfRcio. A inquisiHno exercia a
actividade atravJs do tribunal de Lisboa, a quem pertencia todo o espaHo atl>ntico. A
acHno do tribunal nestas paragens nno era permanente e fazia-se atravJs de visitadores aR
enviados. Na Madeira e nos AHores realizaram-se apenas duas visitas: em 1591-93 por
Jer\nimo Teixeira Cabral e em 1618-19 por Francisco Cardoso TornJo175. Entretanto,
no intervalo de tempo entre as visitas, o tribunal fazia-se representar pelo bispo, clero,
reitores do ColJgio dos JesuRtas, “familiares” e comiss<rios do Santo OfRcio.
Nas ilhas J manifesta a conivLncia das autoridades com a presenHa da comunidade
judaica, o que poder< resultar das facilidades iniciais B sua fixaHno. Deste modo o
tribunal interveio apenas nas primeiras ilhas levando a tribunal alguns judeus, mas
poucos, a avaliar pela comunidade aR existentes e insistente permanLncia. Em finais do
sJculo dezasseis foram arrolados 94 cristnos novos, todavia as pristes por judaismo
entre 1591 a 1601 foram apenas 37, e em 1618 o seu ndmero nno passou de 5, quando
sabemos que em 1620 eram 58 os judeus que pagava a taxa.

172
.ANTT, CC, parte I, maHo 78, doc. 58, 16 de Agosto.
173
. Confronte-se nosso estudo "As constituiHtes sinodais das dioceses de Angra, Funchal e Las Palmas nos sJculos XV e XVI", in
Congresso Internacional. MissionaHno Portuguesa e encontro de Culturas. Actas, Vol. I, Braga, 1993, pp.455-481.
174
. Maria Fernanda ENES, As visitas pastorais da matriz de Sno Sebastino de Ponta Delgada (1614-1739), Angra do heroRsmo,
1983; EugJnio dos SANTOS, "A sociedade madeirense na Jpoca moderna. Alguns "indicadores", in Actas do I Col\quio
Internacional de Hist\ria da Madeira, vol. II, Funchal, 1989, 1212-1225.
175
.Confronte-se Maria do Carmo Dias FARINHA, "A Madeira nos arquivos da inquisiHno", in Actas do I Col\quio Internacional
de Hist\ria da Madeira, vol.I, Funchal, 1990, pp.689-742. O seu estudo foi feito por Fernanda OLIVAL,"InquisiHno e a
Madeira. visita de 1618", in Actas do I Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, vol. II, Funchal, 1990, 764-818; "A
visita da InquisiHno B Madeira em 1591-1592", in Actas. III Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, Funchal, 1993,
493-520.
Analisadas as dendncias e confisstes de madeirenses e aHorianos perante os
inquisidores conclui-se por uma incapaz intervenHno do clero no ensino da doutrina aos
leigos. A maioria dos rJus J resultado da ignor>ncia dos c>nones cat\licos. A mesma
ideia J-nos transmitida atravJs das visitas paroquiais, disponRveis e j< divulgadas. Deste
modo poder-se-< afirmar que as orientaHtes tridentinas tardaram em chegar Bs ilhas e
que a inJrcia e o fraco nRvel cultural do clero terno sido os principais respons<veis disso.

O ENSINO. AtJ Bs reformas pombalinas o ensino manteve-se na alHada da igreja,


exercendo aqui a Companhia de Jesus uma acHno relevante. Deste modo onde estavam
os jesuRtas poderRamos contar com a presenHa de escolas organizadas e por um elevado
grau de alfabetizaHno de certos grupos, o que contribuRu para elevar o ambiente cultural,
propiciador do aparecimento de importantes vultos das letras. Os jesuRtas surgem
tambJm na Madeira e criaram na cidade um dos mais importantes colJgios, que abriu as
suas portas a 6 de Maio de 1570 176 e manteve-se atJ 1759.
Os colJgios dos jesuitas permitiram a continuidade dos estudos aqueles que haviam
dado os primeiros passos nas escolas de par\quia e tambJm lhes abriram a possibilidade
de cursarem nas universidades do reino e estrangeiras. As bases do ensino paroquial e as
condiHtes econ\micas da ilha foram respons<veis pela formaHno deste elite cultural,
inevitalvemente ligada Bs principais famRlias madeirenses177.
2. A DefiniHno do tema - religiosidade popular - formas e evoluHno. Habitualmente
a religiosidade popular afirma-se em oposiHno B oficial,
sendo entendida como uma forma hibrida, isto J formas
inadequadas de entender e praticar a religino oficial. Por
outro lado, se tivermos em conta que a Religino J um corpus
de crenHas e conjunto de praticas, podemos definir a
religiosidade popular como um conjunto de superstiHtes e
gestos m<gicos oriundos do paganismo.
Aqui, tenha-se em consideraHno a Hist\ria do Cristianismo. O sJculo VII momento de
queda dos impJrios romano e germ>nico, J definido pela afirmaHno do cristianismo que
sente necessidade, no inRcio, de tolerar os antigos ritos pagnos ou de dar-lhes novo
sentido de acordo com o dogme cristno. Foi essa a polRtica seguida por Greg\rio o
Grande.
Um dos aspectos de particular significado prende-se com a evoluHno do conceito de
superstiHno. Superstitio queria significar conhecimento verdadeiro, clarividLncia, mas
no sJculo II assume um significado negativo, para nos sJculos IV e V se afirmar como
sobrevivLncia de crenHas pagns. I neste contexto de assimilaHno das crenHas e antigos
ritos pagnos, que se perpetuaram ao longo dos sJculos na tradiHno oral, nno obstante a
oposiHno da igreja, que se deve buscar a origem da maior parte dos ritos e crenHas que
definem a religiosidade popular.

176
. Rui CARITA, O colJgio dos JesuRtas do Funchal- mem\ria hist\rica, 2 vols, Funchal, 1987
177
Nuno Vasconcelos PORTO, "Madeirenses na Universidade de Paris(1500-1550)", in DAHM, vol. III, n1.16, Funchal, 1953, pp.
15-19; Jono Cabral do NASCIMENTO, "Estudantes da ilha da Madeira na Universidade de Coimbra nos anos de 1573-1730",
AHM, vol. I e II, Funchal, 1931-32, pp. 145-150, 60-64, 168-172; JosJ Pereira da Costa, "O ambiente cultural da Madeira no
sJculo XVI", in Arquivo Hist\rico da Madeira, X, 150-161; Rui Carita, "Madeirenses na Universidade de Salamanca em
Espanha", in Islenha, vol. VI, pp.37-41; JosJ Manuel Azavedo e Silva, "Estudantes madeirenses na Universidade de Coimbra,
entre 1573- 1730", in Revista de Hist\ria das Ideias, vol. XII, Coimbra, 1990, pp.55-71.
A grande preocupaHno da igreja em travar esta forma de religiosidade. A contra-
reforma, a inquisiHno e, mais perto de n\s, o Vaticano II, tentaram apagar sem sucesso
estas crenHas populares. Por isso, a soluHno foi tentar imp^r critJrios e praticas de
acomodaHno. Esta realidade J muito evidente entre n\s, como se poder< verificar do
confronto da religiosidade popular da oficial. Neste contexto J de destacar as
constituiHtes sinodais funchalenses do sJculo XVI178 que consideram a superstiHno
como sin\nimo de feitiHaria, sortilJgios, agoiros, benzedura, idolatria e pacto com o
dem\nio.

Formas e Expressno da Religiosidade Popular. A linguagem poJtica J a natural


expressno da alma que se dirige a Deus; e a alma religiosa do povo sempre
escolheu o ritmo de verso e a mdsica da rima para invocar a graHa e a
protecHno do Senhor, da Virgem e dos Santos em todos os momentos da vida,
nas alegrias e nas dores, na paz e nos perigos, na imploraHno das graHas e nos
louvores desinteressados@179.

A religiosidade popular expressa-se de diversas formas, sendo de realHar as festas


populares, manifestaHtes colectivas e as crenHas e ritos de devoHno particular. No
primeiro caso J de temos as festividades populares, com ou sem relaHno com o ritual
oficial. Natal, Carnaval, S. Jono, S. Pedro. Note-se que estas festas populares tLm
origem em cultos naturalRsticos e que a quase todas estas manifestaHtes estno associadas
manifestaHtes particulares, por vezes, com car<cter m<gico.
I, todavia, dentro dos rituais ou superstiHtes individuais que encontramos uma maior
variedade de manifestaHtes:
1. OraHtes populares - ensalmos, coplas, conjuros, responsos, ladainhas - adequadas a
todos os momentos e circunst>ncias do nosso quotidiano.
2. Lendas e milagres - que depois se imptem como forma de religiosidade oficial.
Neste caso temos as lendas sobre as apariHtes - caso de N0 Sr0 do Monte - ou achado
de imagens - Bom Jesus, Senhor dos Milagres - que formalizam ou reforHam o culto
e devoHno a uma determinada imagem180. Este culto tanto pode ser expresso atravJs
de uma pdblica manifestaHno de autoflagelaHno ou atravJs dos ex-votos propriamente
ditos, isto J objectos pessoais, como fotos, imagens, pinturas ou ofertas em cera181.

A Igreja e a religiosidade popular .A atitude da igreja nno J igual em todas as


situaHtes, pois, ora aceita estas manifestaHtes assimilhando-as ao culto oficial,
ora as condena, perseguindo os seus autores. Nas constituiHtes sinodais dos
sJculos XVI e XVII J manifesta essa atitude de oposiHno, sendo condenadas
quaisquer manifestaHtes de sortilJgio, agoiro, benzedura. Note-se que em 1618
o inquisidor de visita B ilha viu-se confrontado com a generalizada pratica

178
. Alberto Vieira, "As constituiHtes sinodais das dioceses de Angra, Funchal e Las Palmas nos sJculos XV e XVI", Congresso
Internacional. MissionaHno Portuguesa e Encontro de Culturas, Actas, Vol. I, Braga, 1993, 455-481.
179
.AmJrico cortez Pinto, Ao folclore madeirense e o espRrito de Antonino Pestana@, in Ed. A. Pestana, Ilha da Madeira. I. folclore
madeirense, Funchal, 1965, p. XV.
180
. Existe uma estrutura comum B descriHno destas lendas: os protagonistas sno sempre pastores, sendo o local de culto o sRtio da
apariHno ou achado.
181
. Aqui tanto podem ser sRrios com partes do corpo moldadas em cera. Na Ilha Terceira usa-se o alfenim nas festas do EspRrito
Santo.
supersticiosa, tendo condenado 13 mulheres por feitiHaria. O facto mais
evidente J que todos tinham consciLncia que estas praticas eram proibidas182.
Para o conhecimento desta realidade, mais do que as constituiHtes sinodais, temos as
visitas paroquiais e as consequentes recomendaHtes dos prelados. Nestas pode-se
acompanhar, a par e passo, a forma de expressno da religiosidade popular e a
intervenHno do bispo no sentido da sua irradicaHno183.
Do que atrBs ficou expresso poder< afirmar-se que ainda hoje persiste na vivLncia
religiosa popular traHos evidentes dessa realidade desviante Bs normas da religino
oficial, por vezes, escondidas sob a expressno de devoHno particular. Descobri-la nno J
tarefa f<cil, pois passa por uma perspicaz e bem fundamentada destrinHa daquilo que J
oficial e pdblico.

Fontes e materiais de recolha

Para alJm da imprescindRvel recolha da tradiHno oral J necess<rio ter em atenHno os


trabalhos j< feitos e tambJm a sua expressno na tradiHno escrita. Esta poder< ser
denunciada atravJs das medidas proibitivas das constituiHtes sinodais e visitaHtes
paroquiais, como tambJm pela sua recriaHno na literatura184. Por outro lado sno de
assinalar algumas recolhas j< realizadas, publicadas em livro185 ou em artigos esparsos
em revistas186.

INSTRUMENTOS DE TRABALHO

AZEVEDO, Alvaro Rodrigues de, Romanceiro do Archipelago da Madeira, Funchal, 1980

BRAGA, Te\filo, Romaceiro geral portuguLs, 3 vols., Lisboa, 1982


O Povo portuguLs nos seus costumes crenHas e tradiHtes, Vol. II, Lisboa, 1986

FREITAS, Ant\nio Aragno de, Madeira InvestigaHno Bibliogr<fica,3


vols., Funchal, 1981-1984

GALHOZ, Maria Arlete Dores, Romanceiro popular portuguLs, I,


Romances Tradicionais, Lisboa, 1987

PEDROSO, Consiglieri, ContribuiHtes para uma mitologia popular


portuguesa e outros escritos etnogr<ficos,2 vols., Lisboa, 1988

TORRES, Jorge, Para uma bibliografia madeirense cultura


tradicional, Funchal, 1995

VASCONCELOS, J. Leite de, Etnografia Portuguesa, Vol. IX,


Lisboa, 1895
“Assuntos insulanos, II. Romanceiro da Madeira” in Opdsculo, Vol. VI, Lisboa, 1938

182
. CF. Fernanda Olival (1993)pp. 780-781.
183
. Cf. EugJnio dos Santos(1989); Manuel N\brega(1990-92).
184
. Entre n\s temos o caso de Jono FranHa(Ribeira Brava, Porto, 1952) e Hor<cio Bento de Gouveia.
185
. E. Antonino Pestana(1965), Visconde do Porto da Cruz(1953), Fernando Aguiar(1942).
186
.Revistas: Atl>ntico(1985-1989), Islenha(1988/-), Xarabanda(1992/-), Das Artes e da Hist\ria da Madeira(1948-71), Arquivo
Hist\rico da Madeira(1932-1990).
MADEIRA
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193+136, 59-95, 289/349
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OLIVAL, Fernanda, “A inquisiHno e a Madeira. A visita de 1618”,


I CIHM, Vol. 2, 1989, 764-815
AA visita da inquisiHno B Madeira em 1591.92”, III CIHM, Funchal, 1993, 420-493

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costumes antigos, mau olhado, Madeira- costumes de gentes do povo)

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Lisboa, 1930

ALVAREZ Santalo, G. e outros (coords.), La Religiosidad popular,


3 vols. Barcelona, 1989

BOSSY, John, A Cristandade no Ocidente, 1400-1700, Lisboa, 1985

LADDURIE, E. le Roy, Montaillon..., Lisboa, 1975

LEBRUN, FranHois, Les hommes et la mort en Anjon au XVIIe et


XVIIIe siPcles, Paris, 1975

OLIVEIRA, Pe. Miguel, Hist\ria eclesi<stica de Portugal, Lisboa,


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O Sagrado e o Profano@, Revista de Hist\rias das Ilhas, 8 (1986)

SANTO, MoisJs EspRrito, A religino popular portuguesa, Porto, s.


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VOVELLE, Michel, PiJtJ baroque et d’echristianisation en


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Provenceau XVIII siPcle, Paris, 1978

RECOLHAS

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milagres e outros sucedimentos, Guimarnes, 1942

ConstituiHtes Synodais do Bispado do Funchal. Feytas & ordenadas


por Dom Ieronimo Barreto Bispo do dito bispado, Lisboa, 1585

ConstituiHtes Synodais do bispado do Funchal com as


extravagantes novamente impressas por mandado de Dom Luis de
Figueiredo de Lemos, Bispo do dito bispado, Lisboa, 1610

ISABEL, Ana e outras, AContos, lendas, rezas e oraHtes@. in


Xarabanda, 6 (1984), 67-72

Mem\rias sobre a creaHno e augmento do estado eclesi<stico na


Ilha da Madeira@, in Heraldo da Madeira, n1s 564-648, 1906

N[BREGA, Manuel de, AAnais da Quinta Grande@, in Girno, n1 3-


8,(1890-1992)

NORONHA, Henrique Henriques de, Mem\rias seculares e


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Funchal, (Ilha da Madeira) ano 1722, ms. BMF

PEREIRA, Manuel Pl<cido, Nossa Senhora do Monte, padroeira da


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Porto da Cruz, Visconde, Crendices e superstiHtes do arquipJlago


da Madeira, Funchal, 1954

RIBEIRO, Ana Maria, ARezas tradicionais@, in Xarabanda, 1(1991),


2(1992), 3(1993), pp. 17-21, 43-45, 53-54

SILVA, Fernando Augusto da, Parochia de Santo Ant\nio do


Funchal, Funchal, 2 vols., 1915-1916
• A diocese do Funchal. Sinopse Cronol\gica, Funchal, 1945
• SubsRdios para a Hist\ria da Diocese do Funchal, 1425-1800, Funchal, 1946

Vida do Apost\lico varno Frei Pedro da Guarda popularmente chamado o sancto servo de Deus,
Funchal, 1867
20. JULHO

HISTÓRIA ORAL: origem, definição e técnicas

História oral
MÉTODOS E TÉCNICAS DO REGISTO AUDIO E VIDEO

DEFINIÇÃO

A História Oral surgiu na década de cinquenta como forma de valorização das


memórias e recordações do individuo. Com a criação em 1966 da Associação de
História Oral abriu-se caminho para a afirmação desta nova técnica de recolha da
informação oral.
A História Oral é entendida como um método de recolha e preservação da
informação histórica através do registo de vivências e acontecimentos vividos pelos
testemunhos ou entrevistados.
A sua realização obedece à técnica da entrevista, mas não pode ser considerada
como um acto jornalístico. Os seus métodos conferem a quem quer que seja a
possibilidade de acesso a esse registo. Esta última situação implica a existência de
um Laboratório e Arquivo de História Oral.

ENTREVISTA

PREPARAÇÃO
1. fase preliminar: recolha de informação bibliografíca sobre o tema, época ou
actividade
2. entrevista preliminar para recolha informação
3. autorização escrita do entrevista para uso e divulgação da informação
contida na entrevista
4. manuseio e funcionalidade do equipamento audio ou video

FICHA DO REGISTO
1. do entrevistado ou narrador:
1. nome :
2. data:
3. Lugar:
4. tempo de registo
5. nome do entrevistador

FICHA DO PROJECTO

Entrevistador
1. nome :
2. morada:
3. data da entrevista
4. local da entrevista

Entrevistado ou narrador:
1. nome:
2. morada: com numero telefone
3. data nascimento
4. local de nascimento

Aspectos da entrevista:
Parentesco, ocupação e família, Infância, Escola, Ocupações, religião, Política,
meios transporte, artesanato e tradições, guerra, memórias acidentais,
experiência familiar, vida social [: casamentos, funerais, festas…], passatempos,
viagens, tempestades, moda, alimentação.

MATERIAL DE APOIO: BIBLIOGRAFIA


Guias e Bibliografias
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Practices, London, Routledge, 1992.

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http://www.h-net.msu.edu/~oralhist/

ORAL HISTORY TECHNIQUES AND PROCEDURES by Stephen E. Everett


http://www.army.mil/cmh-pg/books/oral.htm

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http://www.ucc.uconn.edu/~cohadm01/neaoh.html

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http://www.columbia.edu/cu/libraries/indiv/oral/offsite.html

Laboratório De História Oral Do Cmu[Brasil]:


http://www.unicamp.br/suarq/cmu/cmu-laho.html

Center for Oral History .University of Connecticut:


http://www.ucc.uconn.edu/~cohadm01/

University Of California, Santa Barbara Oral History Program:


http://www.library.ucsb.edu/speccoll/oralhlec.html

Indiana University's Oral History Research Center:


http://www.indiana.edu/~ohrc/

Social Security Administration- Oral History Collection:


http://www.ssa.gov/history/orallist.html

Oral History Society Resources and Organisations in Britain and Abroad


http://www.essex.ac.uk/sociology/oralhi3.htm

Allan Nevins, founded the Columbia University Oral History Research Office in 1947
http://www.columbia.edu/cu/libraries/indiv/oral/index.html

Técnicas de referência de documentos da Internet:


Em anexo e o seguinte endereço na Internet:
http://WWW.madinfo.pt/organismos/ceha/revista/docs.html

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