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Realidade inominada: Ensaios e aproximações
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Realidade inominada: Ensaios e aproximações
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Realidade inominada: Ensaios e aproximações

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Nestes ensaios, o estilo é parte constitutiva de uma análise inteligente, sensível e erudita. A erudição generosa dá a mão ao leitor, levando-o ao cerne de questões e dúvidas. Lourival Holanda recorre à psicanálise, à filosofia, à estilística e ao contexto histórico, mas sempre para interpretar e tentar elucidar os textos, cuja autonomia estética é decisiva. Assim, ilumina-os com uma nova mirada, desvelando coisas difíceis, relações ocultadas nas entrelinhas e na dimensão simbólica, como lemos nos ensaios notáveis sobre Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Osman Lins e René Char, nos estudos sobre literatura e psicanálise, e nos comentários sobre alguns dos nossos maiores críticos e pensadores. Ou ainda no olhar penetrante sobre a literatura brasileira contemporânea.
LanguagePortuguês
PublisherCepe editora
Release dateApr 26, 2019
ISBN9788578587673
Realidade inominada: Ensaios e aproximações

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    Realidade inominada - Lourival Holanda

    Breve apresentação

    e nota do organizador

    eduardo cesar maia

    ¿Es que la verdad era otra? ¿Tocaba ya alguna verdad más allá de la filosofía, una verdad que solamente podía ser revelada por la belleza poética; una verdad que no puede ser demostrada, sino sólo sugerida por ese más que expande el misterio de la belleza sobre las razones?

    (maría zambrano, filosofía y poesia)

    Na ensaística de Lourival Holanda, como os leitores poderão conferir em Realidade inominada, os temas e perspectivas teóricas variam enormemente, mas as preocupações intelectuais se repetem como verdadeiras obsessões vitais: os limites da linguagem, o lugar desestabilizador do desejo, o discurso da ciência – sempre precário – sobre o que nos faz propriamente humanos, a importância organizadora da memória, a tensa e produtiva relação entre filosofia e poesia... Talvez todas essas recorrentes inquietações intelectuais pudessem ser reunidas num único Leitmotiv, que percorre todas as páginas deste livro: a ânsia de descobrir o que a linguagem revela, e o que ela esconde. Assim, a literatura e a crítica literária, compreendidas pelo ensaísta como um campo particular de observação e investigação do real, buscam o que está além das palavras, mas sempre através delas mesmas, sem nunca desprezá-las por suas limitações, numa operação árdua e conscientemente melancólica – por inesgotável e nunca definitiva.

    Lourival Holanda mais de uma vez estabelece uma analogia entre o trabalho do crítico literário e o processo psicanalítico: "A grande literatura condensa significações e sentidos no modo incomum – o poético. E o poético, como o simbólico, diz sempre uma palavra oblíqua. O analista buscará o saber desconhecido ali cifrado, a verdade do inconsciente que faz sua aparição através do significante. O crítico literário vai extasiar-se com essa feitiçaria evocatória do verbo, que alarga as possibilidades de dizer-se de uma cultura e desdobra as dimensões do homem. Nessa perspectiva, o discurso literário é compreendido não como um espelho plano que pode refletir a exatidão do real em seus precisos contornos, mas como um espelho curvo, que mostra sempre outra coisa, uma realidade deformada, mas nem por isso menos real ou menos sugestiva: O escritor, com antenas atentas, capta e cripta o encoberto e o esquecido. Que, no entanto, subjazem no impensado da língua".

    A relação analógica com a psicanálise permite outros insights bastante sugestivos, que apontam para uma interessante retomada, no âmbito da crítica literária, da velha disciplina humanística da Retórica: Há, portanto, na estruturação do discurso poético uma reversão da sintaxe lógico-discursiva que pede um outro modo de abordagem. A prática analítica ou a crítica literária trabalham, ambas, enquanto descodificadores semióticos. No que Benveniste tem toda razão: o ponto de partida da análise é o mesmo da literatura: as figuras retóricas, as figuras de linguagem. O inconsciente sutilmente converte metaforicamente os símbolos, tira partido deles. Aí pode estar seu sentido – e sua dificuldade. Lourival propõe em seus textos uma atenção redobrada às palavras, em suas possibilidades semânticas, evidentemente, mas também em suas dimensões formais, materiais – crítica estética e crítica de ideias convivendo no limite da harmonia e do conflito, como podemos ver nitidamente no excepcional ensaio sobre Euclides da Cunha ou nas referências ao Grande Sertão de Rosa, presentes em diversos momentos do livro.

    E como procede na prática, em seus ensaios, o crítico Lourival Holanda? José Ortega y Gasset dizia que uma grande obra de arte literária – e seu paradigma não era nada menos do que o Quixote – deveria ser tomada como a cidade de Jericó: não com uma abordagem direta, um ataque frontal e definitivo, mas com amplos giros, com digressões, com aproximações e circunvoluções: nossos pensamentos e nossas emoções devem ir estreitando-a lentamente, propôs em suas Meditaciones del Quijote. Assim é o trabalho crítico e a proposta hermenêutica do ensaísta – suas aproximações – diante dos textos e dos autores que interpela. Não se trata de explicar o sentido da obra, ou de catalogar um autor num determinado movimento artístico ou projeto estético, mas de estabelecer pontos entre o texto literário e o grande texto da cultura, que tudo absorve e transforma.

    No ensaísmo crítico de Lourival Holanda a análise literária nunca pode se confundir com aula de anatomia: pois a anatomia é feita em corpos rígidos, cadavéricos, mortos. O texto literário – os grandes textos da literatura – são corpos vivos: mais vivos, em todo caso, do que as premissas teóricas que tentam uma e outra vez enquadrá-los, explicá-los, analisá-los de forma unívoca e definitiva. As aproximações do ensaísta a autores e obras como Milton Hatoum, o Grande Sertão: veredas, Álvaro Lins, Avalovara, Luiz Ruffato, Fogo morto ou René Char, entre muitos outros que aqui aparecem, dão-se através desse prisma ético-estético em que as ideias e as formas são tomados como elementos inseparáveis na análise literária: O que um poema diz não pode ser, sem perda, dito de outro modo; e isso pode ser aplicado à toda – grande – arte literária.

    A crítica literária que o leitor encontrará neste livro se dá, invariavelmente, como um processo de abertura, de sugestão, de analogia – daí a escolha do gênero ensaístico como meio de reflexão e de comunicação, não havendo espaço para formulações dogmáticas ou para a aplicação de teorias totalizantes e monológicas. O literário aparece sempre como índice de uma limitação, de uma imperfeição, nossa e da realidade que podemos conhecer: Literatura talvez seja uma busca dessa impossível palavra plena; ou: forma de exorcizar sua falta. Por isso, as teorias literárias de pretensão cartesiana, que tomam como modelo a clareza e a exatidão, serão, para Lourival, sempre insuficientes diante do complexo e vivo fenômeno literário: "Pedir à literatura toda clareza é jogar xadrez com a regra do dominó".

    E a que tradição intelectual o autor se filia? Quem são os modelos do ensaísta? São todos nossos contemporâneos, diria eu – no sentido de que ninguém pode nos ser mais contemporâneo do que grandes pensadores humanistas como Baltasar Gracián, Montaigne ou Alfonso Reyes, que são tão atuais, sob um certo ponto de vista, quanto os bons exemplos do nosso tempo, como um George Steiner ou um Octavio Paz. É importante lembrar, por outro lado, que o crítico é professor universitário há décadas. Arrisco-me a dizer que o projeto crítico de Lourival Holanda assume um posicionamento de reação, em muitos casos, em relação às principais tendências acadêmicas e teóricas ainda em voga, mas sem desprezá-las. Trata-se, creio, de um projeto de redefinição e redimensionamento do velho ideal humanista, tão atacado pelas principais correntes teórico-filosóficas do século passado. Tal projeto se sustenta na consideração de que A escrita literária é um modo de busca, de exploração, de interrogação, ou seja, uma forma genuína de especulação e conhecimento do real.

    Ainda como elemento humanista da concepção de literatura que permeia os ensaios aqui coligidos, podemos falar da preocupação pedagógica (em sentido amplo, como paideia ou Bildung), que se traduz na pergunta Como ensinar alguém a ser capaz de autoalteração?, ou: como modificar lucidamente a própria vida? No fundo, Lourival acredita que a literatura pode transformar os indivíduos, ainda que não nos dê garantia alguma sobre se para pior ou para melhor.

    Outra advertência muito atual do crítico se relaciona ao que chamamos, talvez de maneira bastante imprecisa, de literatura engajada. Em certa medida, toda grande literatura supõe uma visão política, ainda que não seja esse seu principal objetivo enquanto forma artística. O problema, que inclusive parece ter voltado à ordem do dia, é a submissão da literatura às ideologias do momento ou aos projetos político-partidários. Diz-nos Lourival: Desde o realismo socialista – que tomava como realidade seu desejo –, que pretendeu submeter a literatura aos ditames do Estado; passando pela literatura engajada que não veio sem danos à literatura latino-americana; hoje a arte, dentro de seus limites e consciente de sua função, tenta evitar as coerções partidárias. Em resumo, assumir uma militância ou uma ideologia não pode ser uma forma de desistência de si mesmo.

    ***

    Segundo Lourival, nascido em Bodocó e vivido pelo mundo, sertanejo até quando viaja para longe do Sertão acaba indo – inescapavelmente – para outro Sertão. A viagem pelos livros também mostra destino, e perdição, semelhante.

    ***

    Estão aqui reunidos ensaios escritos em diversos momentos, abrangendo desde o início da década de 1990 até os dias hoje. A maior parte dos textos foi publicada originalmente em revistas acadêmicas; alguns foram redigidos para veículos jornalísticos, e outros, ainda, serviram como texto-base para palestras e conferências proferidas pelo autor nos últimos anos. Optamos por não mencionar essas origens em cada caso porque todos os ensaios passaram por um processo intenso de revisão e reformulação por parte do autor e do organizador.

    Citar de memória:

    a arte (sutil) de

    esquecimento (elegante):

    os ensaios de

    Lourival Holanda

    joão cezar de castro rocha

    baixo contínuo

    No ensaio Osman Lins: resistência e rigor, a leitora encontra uma passagem de Kafka que bem pode ser lida como uma síntese, ou melhor, um ponto de fuga dos exercícios de leitura de Lourival Holanda:

    É que sou literatura, só sei ser literatura e não quero ser nada mais do que isso.

    De fato, o olhar do crítico se importa muito pouco com o que não seja a busca da singularidade do texto analisado. Se tal busca demandar reconstruções históricas, o temido contexto é bem-vindo, embora nunca seja o protagonista da cena. As cenas de leitura em exposição neste livro são sobretudo instantes de intensificação da potência dos textos com os quais o crítico convive.

    (Convivência: palavra-chave no método de Lourival Holanda.)

    A citação de Kafka é concluída com uma nota bibliográfica que, em tempos da monomania Lattes, enfermidade inexplicavelmente negligenciada pelo ph.D. da Casa Verde, não pode senão causar perplexidade:

    (Cito de memória.)

    Assim mesmo: o elogio da memória incerta comparece orgulhosamente no corpo do texto, em lugar de aparecer disfarçada numa constrangida nota no final do artigo. Por quê? Uma possível resposta conduz a uma irreverente matemática: muito provavelmente, memória é a voz dominante no livro, isto é, a costura, vale dizer, o alinhavo de seus ensaios. Salvo engano, o autor não se esqueceu de empregá-la em 133 ocasiões.

    Autêntico baixo contínuo – pois.

    Metáfora que parece justa para um leitor-música-de-câmara muito mais do que um leitor-sinfonia.

    Você me acompanha: o leitor-sinfonia monta panoramas vastos, harmoniza repertórios variados e às vezes díspares, articula quadros teóricos ambiciosos e tanto ganha na ampliação de horizontes quanto compromete o estudo de filigranas textuais. Já o leitor-música-de-câmara dispensa com alegria o regente, senhor do tempo da performance, e se concentra na escuta do baixo contínuo, ritmo de uma performance tanto mais intensa quanto mais contida.

    (Acha que exagero? Pois então admire a capa fenomenológica deste livro! Retrato algum do autor – retrato figurativo, quero dizer – poderia ser tão sugestivo quanto o ostensivo branco – muito mais Armando Reverón que Kazimir Malevitch – contrastado pelo subtítulo meio rasurado, meio raspado, e intensificado pelo tamanho da fonte, progressiva e estrategicamente reduzida a fim de quase suspender o nome do autor.)

    Citar de memória, nesse concerto, supõe um gesto intelectual deliberadamente anacrônico que merece ser assinalado – Jorge Luis Borges à espreita. Leia-se a passagem iluminadora que se descobre no ensaio José Lins do Rego: a linguagem e as vertentes culturais:

    [...] a poética da memória remaneja raízes e dá, ao presente incerto, um certo chão.

    Um certo passado esclarece a oportunidade da poética definida na prosa cirúrgica do autor.

    Vejamos.

    convívio como hermenêutica

    Cometo uma pequena indiscrição: leio com você o Memorial do autor, apresentado em sua promoção a Professor Titular.

    O nome de Montaigne se destaca sobremaneira, iluminando a identidade intelectual de Lourival Holanda. Em suas palavras:

    Montaigne é para mim um mistério mais luminoso: fraternidade de espírito.

    Próximo à conclusão do Memorial a afinidade torna-se ainda mais decisiva, ou seja, trazida para a intimidade:

    Meu psicanalista de plantão, Montaigne, dispensa outros.

    Basta folhear os Ensaios para se dar conta do vínculo entre os dois ensaístas: Montaigne cita muito e – claro está – muito do que cita, ele o faz de memória.

    No fundo, como não fazê-lo se o modelo de leitura é o convívio, prolongado, com autores e textos de predileção? Nesse caso, a frequentação constante de um determinado repertório favorece a intimidade que desaconselha outra forma de trabalho que não seja o recurso à memória.

    Pelo contrário, o rigor acadêmico das referências bibliográficas detalhadíssimas revela, pelo avesso, um distanciamento, profissional, em relação ao texto. Trata-se de leitura reificada segundo as regras da ABNT – que sempre legislam sobre o que menos interessa. Esse modelo exige que se tenha o texto citado sob os olhos. Ora, quem cita de memória, necessariamente, se baseia numa imaginária biblioteca pessoal guardada a sete chaves na memória afetiva.

    (Não apenas a pintura, diria Leonardo evocado por Lourival, mas também a citação è cosa mentale.)

    O caráter íntimo desse convívio com autores e livros desfavorece a citação exata, apanágio do pedante, esse exibicionista do alheio que nunca se envergonha de estar certo a respeito de tudo todo o tempo: imagem acabada do tédio sem spleen algum.

    O universo descortinado pela escrita de Lourival Holanda convida a uma viagem no tempo – e no espaço de suas leituras.

    Aceitemos o convite.

    Afinal, se Riobaldo, esse Montaigne sertanejo, durante sua travessia tem o bom senso de evitar os extremos, o autor de Realidade inominada emula o jagunço e oferece ao leitor o raro equilíbrio entre paixão e medida, convívio e cerimônia, intensidade e leveza.

    O encoberto

    e o esquecido

    Ao crer, que soubesse mais do que eu mesmo o que eu produzia no coração, o encoberto e o esquecido.

    (guimarães rosa, grande sertão: veredas)

    o traço e o texto

    Talvez fosse mais prudente começar pelo fim: tendo todo um percurso em comum, psicanálise e literatura têm finalidades diversas: a operação analítica persegue um propósito fármaco, para dizer com Platão (terapêutico, diríamos), a que a literatura nem sempre sabe responder. A mais densa literatura, depurada de seu aspecto decorativo, redutor, da estética parnasiana, tenta, através do simbólico, uma apreensão concentrada – como ocorre com Clarice ou Guimarães Rosa, por exemplo – do que está para além da palavra: Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa (Grande Sertão: veredas). A grande literatura condensa significações e sentidos no modo incomum – o poético. E o poético, como o simbólico, diz sempre uma palavra oblíqua. O analista buscará o saber desconhecido ali cifrado, a verdade do inconsciente que faz sua aparição através do significante. O crítico literário vai extasiar-se com essa feitiçaria evocatória do verbo, que alarga as possibilidades de dizer-se de uma cultura e desdobra as dimensões do homem: o que talvez defina a literatura.

    Quando em 1907 Freud estuda a Gradiva, de Jensen, ele quer ter uma posição-chave sobre uma interpretação da cultura, de grande abrangência; escolhe então a literatura; na época, ainda, a literatura era enformadora – e formadora de opinião. (Papel passado à Igreja, depois à Universidade e, hoje, enfim entregue à Mídia. A literatura era ainda o espaço do diálogo de nosso tempo. Ali se viam as possibilidades e as razões que faziam agir ao homem). Freud intui, portanto, ali, o espaço onde se inscrevem o desejo latente e esse processo de dissimulação e revelação. A psicanálise ganhava um campo vasto; e a literatura, um modo precioso, hermenêutico, de leitura.

    Numa homenagem rendida pelos seus 70 anos, um orador louvou Freud enquanto descobridor do inconsciente. Honesto, Freud ratificou: Os poetas e os filósofos descobriram o inconsciente bem antes de mim; o que descobri foi um método científico que permite estudar o inconsciente (citado por Lionel Trilling, em Freud and literature, em The liberal imagination).

    A palavra é, portanto, o objeto de intercâmbio por onde nos reconhecemos. Rede de relações que nos subjetiva e transfigura nossas necessidades e afetos. Constituídos de uma dupla falta: já nascemos com uma carência cuja suplência confiamos à linguagem – que, já em si, é um sistema falho. Literatura talvez seja uma busca dessa impossível palavra plena; ou: forma de exorcizar sua falta. Face à rugosa realidade (Rimbaud), o escritor negocia com o Real, através das sérias astúcias da função simbólica. Nos dois casos, literatura e psicanálise, trata-se de detectar o móvel de ação – ou: a necessidade elementar – que os leva, além das falsas respostas de superfície. Em ação, os mestres da suspeição: Marx, Nietzsche, Freud – e os discursos. Trata-se de perseguir o percurso do desejo: "in eo movemur et sumus". Porque os poetas dão voz particularmente eloquente à aventura do desejo.

    Aqui, a forma literária, cujo alcance real é menos dizer que significar. É propósito do poético o dizer-se de modo oblíquo. (Pedir à literatura toda clareza é jogar xadrez com a regra do dominó.)

    O discurso literário tenta dizer um certo real, falha sempre ao dizê-lo, e finda dizendo outra coisa, mais funda, e impensada. As prisões que estão refincadas no vago, na gente. O escritor, com antenas atentas, capta e cripta o encoberto e o esquecido. Que, no entanto, subjazem no impensado da língua.

    No seu apego doentio ao passado, o neurótico cria um monumento – esse peso o prende, sempre: daí o sintoma. Para trás, não há paz. A escrita literária é um modo de busca, de exploração, de interrogação. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clarêia razão de paz. O trabalho poético também consiste em levantar um monumento à memória (re-cor/dar: dar de novo ao coração). No entanto, pela linguagem o poeta opera ali uma superação dos impasses do imaginário, através da forma – que, então, permite partir de uma experiência singular para uma abertura de sentidos, o que caracteriza a linguagem poética. Aqui o analista diria: o texto é materialização do corpo na linguagem. O poeta diz: aqui a carne se faz verbo.

    Há, portanto, na estruturação do discurso poético uma reversão da sintaxe lógico-discursiva que pede um outro modo de abordagem. A prática analítica ou a crítica literária trabalham, ambas, enquanto descodificadores semióticos. No que Benveniste tem toda razão: o ponto de partida da análise é o mesmo da literatura: as figuras retóricas, as figuras de linguagem. O inconsciente sutilmente converte metaforicamente os símbolos, tira partido deles. Aí pode estar seu sentido – e sua dificuldade.

    Ambos partem do signo como objeto e buscam o objeto de sua ocultação: o subdiscurso ativo. Aqui, creio, se inscreve o simbólico que tenta ajustar o real ao imaginário. É esse o espaço, suponho, de nosso encontro. Poetas e romancistas são para nós aliados preciosos, e seu testemunho deve ser altamente valorizado porque conhecem entre céu e terra muita coisa que nossa sabedoria escolar nem poderia sonhar – é Freud, falando da Gradiva, de Jensen.

    Guimarães Rosa é um paradigma do fazer literário: se ele possibilita uma percepção específica, é porque sua linguagem singulariza a forma, obscurece os objetos, e tudo resulta num efeito de estranhamento e imprevisibilidade que faz sua força. Assim, combate a tendência entrópica, de desgaste da palavra, reduz a redundância e desautomatiza a percepção. Como o inconsciente não se situa em lugar nenhum, pode aflorar aqui, em qualquer lugar, nos módulos de desordem organizada do texto rosiano, que permite combinações e associações imprevistas. Sabe-se que ele privilegia os significantes, porque o inconsciente quase sempre cifra-se aí, para deixar dizer o que não tem expressão – senão sendo aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que não se pode descer.

    língua e lógica

    A linguagem literária é só possível driblando-se a lei. É sabido: todo ser que fala, fá-lo sob a lei do falo – o simbólico social da fala comum. A lógica racional, querendo o domínio do todo em algum conceitual, pensa a realidade definível, hegeliana. Totalitária, ela se assemelha à síndrome da histeria. Literatura é essa perda de certeza, essa deriva. Não abarca as coisas, tangencia-as. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. Para dizer com Lacan, seu sentido fica às bordas ou transborda. Entre o literal e o litoral. A razão de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja. A linguagem simula a astúcia do desejo – e esse segue a curva assintótica, sem tocar diretamente seu objeto. A linguagem age no modo oblíquo. O poeta contrapõe, ao suposto saber, um saber insuspeitado: A gente só sabe bem aquilo que não entende. Trata-se aqui de um outro percurso, à cata do desejo, da falta, ocultados no entredito. Lacan alarga a leitura psicanalítica quando dá prioridade à cadeia de significantes, antes que a um suposto significado prévio. Grande Sertão: veredas, tendo embora todo um percurso épico, é, sobretudo, um grande texto lírico: uma metáfora continuada de um sentimento único. É o espaço de uma falta, a que a linguagem busca paliar, criando um gozo supletivo. "Multa petentibus, desunt multa", diz Ovídio: muito desejo é sinal de muita carência. Signo e sentimento, como diz o narrador.

    Feita essa ressalva, breve, já estamos em pleno território comum: a realidade processual do desejo está inscrita, inda que ocultada, nas palavras. Aqui, a atenção é a moral do analista, literário ou terapeuta. Aqui há um desejo tornado letra. O escritor, movido pela linguagem (Novalis), sabe mais porque é levado pela energia da linguagem, que, de fato, é a chave da compreensão (mais prudente: da percepção) do homem. Lacan: Os poetas, que não sabem o que dizem, como é do conhecimento de todos, entretanto dizem sempre as coisas antes dos outros. A linguagem é, portanto, o chão comum de nosso diálogo – o que permite permuta.

    Num estudo sobre Dostoiévski, Freud fala sobre o fascínio de investigar as leis do psiquismo em indivíduos excepcionais. Fascínio e risco: quando subdivide a personalidade do russo, poeta, moralista, neurótico, pecador, diz sobre o poeta: infelizmente diante do poeta o analista deve baixar as armas. Misto de homenagem e honestidade. Freud se distancia do literário porque, por propósito, quer um discurso científico – condição para ser ouvido por seus pares. Controle experimental, submetido à medida, e num discurso científico. Mas, como, se aqui se trata de uma linguagem não quantificável? Freud crê, em parte, brevemente poder suplantar, superar tal dificuldade criando uma linguagem quantificável, como a da química, por exemplo.

    Mas o desejo inscrito na letra é de outra ordem. É de natureza outra. Há ali uma dramaturgia do desejo em que o próprio modo é parte integrante. O que um poema diz não pode ser, sem perda, dito de outro modo.

    O processo de construção do texto – memória, movimento do desejo e o gozo da letra – é dado logo de entrada, em Grande Sertão: veredas. Um narrador reconstrói o labirinto das lembranças em busca de uma saída. Riobaldo conta, presta conta e dá-se conta de umas tantas coisas. Tal processo de rememorização que o poético efetiva, tem um chão comum: a linguagem. E seus embustes. E carece de um interlocutor, como em toda fala analítica. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. O que conta aqui não é redizer o fato, mas perseguir sua percussão, vida afora. Como o analista, Riobaldo quer decifrar. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Sabe que não deve esquecer: Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Em um outro momento, outro narrador rosiano havia dito: Mas há, vaga, na gente, vontade de não saber, de furtar-nos ao malesquecimento. O inferno é uma escondida recordação. Freud não teria dito melhor. E tanto mais que, em dado momento de Grande Sertão: veredas, o diabo é visto como o Ocultador. (Seguindo essa figuração, o analista seria seu oposto, angelical?)

    os labirintos da memória

    Arrancar da memória, dos hiatos nas recordações, a carga de acontecimentos semelhando ser insignificantes e contendo, no entanto, fortes afetos inexplicáveis. O tempo vai des-membrando a unidade que supúnhamos tivesse nossa vida. O processo poético quer re-membrar – apreender um sentido unificador que liberte, em nós, os nós de que somos constituídos. Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido (Guimarães Rosa, em "Nenhum, nenhuma, de Primeiras estórias). O processo analítico vai chamar neurose a essa repetição a-histórica; e cura, a essa educação progressiva para superar (ou substituir) a infância. Já aqui tocamos parte do mistério poético: importa saber, agora, não tanto o que se diz, mas por que se diz. De qual pressão interna é o texto ali ex-pressão? De onde vem a vontade de dizer, de palavrar que faz o escritor. O que ele carrega ou fabrica e, através da linguagem, dá à luz?

    Reconstruir os labirintos da memória porque só se perdendo aí é que ele se acha: o frágil fio do sentido com que atamos o absurdo do mundo. Porque o amor imanta, ordena, amansa o mau mistério do mundo. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Sem ele, o mundo queda um desconexo conjunto de coisas. Na expressão de Drummond: essa coleção de objetos de não amor, que é o mundo, em dado momento. A prática analítica, aqui ainda, vai de par com a literária: busca ver o que a plasmação semântica vela/desvela do sentido secreto, o real que a cada qual move e manda. Em todo texto há traço desse sentido. O que não tem sentido, num primeiro momento; mas que faz sentido, dado naquela forma.

    Re-memorar, co-memorar – re-cordar. Em inúmeros momentos o narrador diz estar recosturando as memórias, porque a vida é cheia de passagens emendadas. Em muito, lembra a anagnórisis de que fala Aristóteles: um reconhecimento que nasce do aclaramento, de uma repetição. E que origina a reconciliação, porque a culpa se vê absorvida/absolvida pelo andamento das circunstâncias – agora iluminadas. O projeto do narrador se assemelha aqui, em muito, com o proceder analítico em final de análise, suponho, em que não se sai feliz da vida, todos os problemas resolvidos, depois do analista pago; mas, feliz na vida, que é a real, cheia de insoluções. A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Porque é preciso, mesmo se a felicidade não estiver,

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