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VIEIRA, Alberto (1996), O Funchal no contexto das mudanças sócio-politicas do século XVIII. O corso
e a guerra de represália como arma, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital, disponível em:
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Funchal NO CONTEXTO DAS MUDANÇAS POLÍTICO-IDEOLÓGICAS DO SÉCULO
XVII. O CORSO E A GUERRA DE REPRESÁLIA COMO ARMA
Alberto Vieira
2 É necessário assinalar que a diferença entre pirata e corsário é a chave para a compreensão disto. Assim enquanto
o primeiro actuava por sua iniciativa sendo o seu objectivo apenas económico, o segundo via a sua acção legitimada
por uma carta e ordenança de corso. Veja-se L. Luis AZCARAGA DE BUSTAMANTE, El Corso Maritimo,
Madrid, 1950, 91, 131-132.
3 Georges RUDÉ, A Europa no século XVIII, a aristocracia e o desafio burgês, Lisboa, 1988, refere que "dois
em cada três anos foram de guerra"(pp.255-369).
geradas pela difusão de novas ideias e repercussão das suas
consequências. Na verdade, um porto não é apenas um receptáculo
de mercadorias, mas também um meio difusor de doenças e ideias4. E,
na segunda metade do século XVIII, foi evidente esta aportação5. Para isso contribuiu de forma evidente o
protagonismo do Funchal, através do comércio do vinho, no relacionamento comercial com os portos norte-
americanos, mas também com as metrópoles. Deste modo para situar a problemática em debate é necessário ter em
atenção, não só as actividades de corso, mas também, o activo relacionamento e interdependência da Madeira com
este mercado, que em termos políticos esteve, desde o último quartel do século XVIII, em permanente ebulição.
4 Sobre isto anote-se uma conferência do Prof. Russel-Wood proferida no Funchal em 15 de Junho de 1989 sobre
"As Cidades Portuárias do Brasil" e publicada sob título "Ports of colonial Brazil",in A.L.KANAS e J.R.
MCNEIL,Atlantic american societies. From Columbus through abolition 1492-1888, N. York, 1992, pp.174-
211; veja-se ainda Franklim W. KNIGHT e Peggy K. LISS, Port cities: economy, culture, and society in the
Atlantic World, Knosville, 1991.
6 Veja-se Public Record Office, FO 811/1, cartas dos privilégios da nação britânica com Portugal desde 1401 a
1805.
7 Confronte-se J. H. FISHER, The Methuen a Pombal. O Comércio anglo-português de 1700 a 1770, Lisboa,
1984, p. 29.
8 Em 1754 o Governador Manuel Saldanha Albuquerque lamenta o exclusivo do comércio inglês na ilha (AHU,
Madeira e Porto Santo, nº.48-49).
10 Veja-se AHU, Madeira e Porto Santo, nº 317, 30 de Abril de 1768. Sobre os ingleses na ilha veja-se Fernando
Augusto da SILVA, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal 1984, entradas "ingleses", Estrangeiros, conservados
dos ingleses, Cemitério Britânico, igrejas inglesas; A.A. SARMENTO, "A Feitoria Inglesa", in Fasquias da
Madeira, Funchal, 1951, pp. 99-103; Walter MINCHINTON, "British Residents and their problems in Madeira
before 1815", in Actas do II C.I.H.M., Funchal, 1990, pp. 477-492; Desmond GREGORY, ob. cit.; Graham
BLANDY (ed.) Copy of Record of the establishement of the chaplaincy and notes on the old factory at
Madeira, Funchal, 1959.
11 Veja-se Pe. Fernando Augusto da SILVA, ob. cit., vol. III, "Ocupação da Madeira por tropas inglesas", pp. 5-6;
A. A. SARMENTO, Ensaios Históricos, vol. III, Funchal, 1952, pp. 146-237; idem, Madeira 1801 a 1802, 1807 a
1814. Notas e Documentos, Funchal, 1930.
12 Em 27 de Fevereiro de 1808 o governador madeirense havia-lhe enviado uma carta relatando o sucedido.
Confronte-se: Arquivo dos Açores, vol.XI, 359-360, 373-379; Francisco d'Atayde de Faria e MAIA, Subsídios
para a História de S. Miguel e Terceira. Capitães-generais 1766-1831, 2ª edição Ponta Delgada, 1988.
14 Public Record Office, FO 63/7, sabe-se que por ordem de 14 de Junho de 1722 as embarcações com destino às
colónias permaneciam alguns dias no Funchal. A 20 de Janeiro de 1786 são 20 barcos em tal situação, coordenada
pelo consul.
15 AHU, Madeira e Porto Santo, nº.1125, 1620, 22 de Outubro de 1799 e 7 de Outubro de 1805
uma esquadra inglesa a patrulhar o mar madeirense, sendo a de 1780 comandada por Jonhstone16.
A procura do nosso vinho resulta também da feliz
circunstância de ser o único que não se deteriorava com as
constantes mudanças de clima, antes pelo contrário, adquiria
propriedades, mercê do balanço resultante da ondulação do mar e
do calor tórrido a que estava sujeito nos porões. Esta
constatação surge muito cedo, pois desde princípios do século
XVIII temos referências a isso que veio a dar origem ao vinho da
roda. Quem o confirma é o consul francês no Funchal, que
justifica a preferência dos ingleses pelo vinho Madeira em
detrimento do de Bordéus17. Daqui resultou a sua afirmação no mercado colonial europeu, com
especial relevo para o britânico. Neste contexto releva-se a posição do mercado americano, dominado pelas colónias
das Indias Ocidentais e portos norte-americanos.
O último destino sedimentou-se, a partir da segunda metade
do século XVII, mercê de um activo relacionamento. Desde então o
vinho da Madeira foi uma presença assídua nos portos atlânticos -
Boston, Charleston, N. York e Filadélfia, Baltimore, Virginia -
onde era trocado por farinhas18. Esta contrapartida reforçou o relacionamento comercial e
actuou como circunstancia favorecedora do progresso da economia viti-vinícola. Assim, se nos séculos XV e XVI a
afirmação da cultura dos canaviais foi conseguida com o suprimento frumentário dos Açores e Canárias, a partir de
finais do século XVII é na América do Norte que se situa o celeiro madeirense. Cedo a Madeira entrou na esfera dos
interesses norte-americanos, sendo o vinho o cartão de visita. Note-se que as ilhas atlânticas são conhecidas na
documentação oficial norteamericana como as ilhas do vinho19.
Acresce que algumas das ilustres personalidades que
estiveram na origem da independência e, depois foram estadistas,
não dispensaram a passagem pela Madeira para conhecer a terra
donde brotava o vinho de que eram grandes apreciadores. São eles
George Washington, Benjamin Franklin, John Adams e Thomas
Jefferson20. Também o nosso vinho esteve nas origens da convulsão que iniciou a luta pela independência
norte americana. Estávamos em 1764 e o vinho da Madeira havia já conquistado o mercado e a Inglaterra, através do
"sugar act" decidiu tributar as ligações directas com a ilha.
Esta medida, que obrigava os navios da colónia a uma
17 Cartas de 25 Fevereiro de 1741 e 27 de Maio 1771 referenciadas por Albert SILBERT, "Un Carrefour de
l'Atlantique: Madère (1640-1820)", in Economia e Finanças, vol. XXII, 1954, pp. 413-414.
18 Cf. Jorge Martins RIBEIRO, "Alguns aspectos do comércio da Madeira com a América na segunda metade
XVIII", in Actas III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1993, pp.389-401.
19 Veja-se A. GUIMERA RAVINA, "Las islas del vino (Madeira, Açores e Canarias) y la América inglesa durante
el siglo XVIII. Una aproximacón a su estudio", in II C.I.H.M. Actas, Funchal, 1990, pp. 900-934, confronte-se
Albert SILBERT, art. cit., pp. 420-428.
20 T. B. DUNCAN, Atlantic Islands. Madeira, the Azores and the Cape Verdes in Seventeenth Century.
Commerce and Navigation, Chicago, 1972, pp. 250-252; Cf, Jorge Martins RIBEIRO, art.cit., pp.391-392.
obrigatória ligação com a metrópole, não colheu adeptos e foi o
motivo que despoletou o ideário da independência. Assim em 1768
dá-se a primeira desobediência com o navio Liberty, recusando-se
John Hancock a pagar direitos pelas 100 pipas de vinho da Madeira
entradas em Boston21. A isto seguiu-se o confronto de 1770, conhecido como o "Boston Tea Party".
Certamente que este acontecimento e a ligação de alguns politicos norte-americanos não foram alheios ao facto de o
vinho da Madeira ser escolhido para o brinde da proclamação solene da independência.
Todavia, esta nova situação implicaria dificuldades
acrescidas para a Madeira, mercê do ancestral vínculo da ilha à
Metropole e a quase impossibilidade de definir uma política de
neutralidade. Por algum tempo a Madeira perdeu, não só um dos
melhores consumidores do seu vinho, mas também a contrapartida de
cereais22. O resultado disto foi a fome que atormentou os madeirenses23. Durante os oito anos do bloqueio
pararam as embarcações nesta rota e o ambiente na ilha era visto pelas autoridades como de total consternação24.
Perante a excessiva vinculação da Madeira ao mundo colonial britânico e em especial aos portos norte-americanos
era inevitável que a ilha fosse um dos primeiros alvos das convulsões políticas que envolveram a Europa e a
América na segunda metade do século XVIII, através da guerra de represália expressa no corso.
A partir da década de 70 e até aos princípios do século
seguinte os conflitos que têm como palco os continentes europeu e
americano alargam-se ao Atlântico. Aliás, neste momento o oceano
é um activo protagonista das disputas entre os três principais
beligerantes: Espanha, França e Inglaterra. Por isso Mario
Hernandez Sánchez-Barba25 define o século XVIII por três realidades: guerra, diplomacia e
comércio. Entre elas existe uma perfeita sintonia. A tudo isto junta-se a permanente preocupação com a organização
militar e a defesa da costa, porque o perigo espreita no mar a qualquer momento.
É dentro desta ambiência que deverá considerar-se a presença
dos corsários. Para isso poderão assinalar-se dois momentos: o
período que decorre entre 1744 a 1736 definido pelo afrontamento
de Inglaterra com a França e Espanha; a época das grandes
transformações do século, com a proclamação da independência das
colónias inglesas da América do Norte (e a consequente guerra de
independência até 1783), a Revolução Francesa (1779) e as
convulsões que lhe seguiram até 1815. Neste último intervalo de
21 Hiller B. ZOBEL, The Boston Massacre, N. York, 1978, p. 73; O. M. DICKERSON, The Navigation Acts and
the American Revolution, N. York, 1983, p. 177; John W. TYLER, Smugglers & Patriots Boston Merchants
and the Advent of the American Revolution, Boston, 1986, p. 115.
22 Cf.Jorge M. RIBEIRO,art.cit.,pp.391-392.
23 Alberto SILBERT, art. cit., p. 423; veja-se Aires dos Passos VIEIRA, Elementos para a História da Vida
Quotidiana da Madeira na governação de João Gonçalves da Câmara Coutinho (1777-1780), Lisboa, 1891;
Maria de Lurdes de Freitas FERRAZ, "A cidade do Funchal na 1ª metade do século XVIII. Freguesias Urbanas", in
II C.I.H.M.. Actas, pp. 281-281.
27 Em 1780 o Governador João Gonçalves da Câmara participa a Martinho de Mello e Castro a presença de uma
esquadra inglesa no Funchal, pedindo instruções para manter absoluta neutralidade Ibidem, nº.545, 22 de Janeiro).
29 A.N.T.T., P.J.R.F.F., nº 109, fls. 79, 82, 83vº; A.F., nº 970, fls. 16vº-17.
33 Ibidem, nº760-761.
34 A.H.U, Madeira e Porto Santo, nº 1019 e 1126; veja.se também A.H.U, Madeira e Porto Santo, nº 1476.
36José Calvet de MAgalhães, História das relações diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos de
América, Lisboa, 1991, p.92.
37 Arquivo dos Açores, vol. XII, pp. 58-75; Marcelino Lima, Anais do Município da Horta, Vila Nova de
Famalicão, 1943, pp. 665-682; João AFONSO, Açores em Novos Papéis Velhos, Angra, 1980, pp. 235-249; José
Calvet MAGALHÃES, ob.cit., pp.74, 145 segs.
380 A.H.U., Açores, Maço 61; veja-se Archivo dos Açores, XII, pp., 58-59.
41 Jaime CORTESÃO, Alexandre de Gusmão e o tratado de Madrid, 9 vols, Rio de Janeiro, 1952-1960; Luis
Ferrand de ALMEIDA, "O Problema de Fronteiras no Sul do Brasil: o caso da colónia de Sacramento", in Portugal
no Mundo, vol. VI, pp. 191-201; vejam-se ainda neste volume outros textos assinados por Alfredo Pinheiro
MARQUES e Max Justo GUEDES.
42 Manuel PAZ, "Corsários insurgentes en aguas de Canarias (1816-1828)", in VIII C.H.C.A (1988), vol. I, 1991,
pp. 679-693; Fernando CASTELO-BRANCO, "Pirataria nas águas das Canárias-Madeira nos inícios do século
XIX", in ibidem, t. II, pp. 83-95.
45 Em 1803 uma galera espanhola fundamenta o apresamento de um corsário inglês em Ponta Delgada com base
numa ordem que possuia, autorizando-a a tomar os navios franceses e holandeses (Veja-se A.H.U., Açores, maço
29, 8 de Agosto). Ainda neste ano um corsário inglês, que apreendera uma galera espanhola, foi admoestado pelo
governador para apresentar a declaração de guerra e a patente de corso, caso contrário seria considerado pirata
(Ibidem, maço 29, 23 de Agosto).
concreto não mereceu o empenho de muitos dos intervenientes. Note-se que americanos e ingleses são os que menos
acataram as recomendações sobre o direito dos mares, aceite por todos. Por exemplo, a violação das águas
territoriais, isto é o espaço marítimo ao alcance de uma bombarda e os portos costeiros, pelos ingleses no
afrontamento aos americanos e franceses, foi uma constante que provocou algumas dificuldades à diplomacia
portuguesêsa46.
Era a declaração de guerra entre as nações do réu e da vítima
que legalizava, em última instância, o acto47. Mas esta não foi a única condição
legitimadora da actividade, uma vez que o corso assentou quase sempre numa forma de enfrentamento pela posse
das rotas e mercados coloniais. Foi, por exemplo, a luta contra o mare clausum peninsular que
sedimentou a guerra de corso nos séculos XV e XVI. Aliás, nos
séculos XVIII e XIX, bastava o colaboracionismo de cidadãos e
autoridades com inimigo para que tal acto fosse encarado pelos
intervenientes como legal48. Também a autorização para entrada dos portos das embarcações de
corso e de venda das presas eram consideradas como meio de colaboração. Neste caso as recomendações das
autoridades portuguesas anotam a necessidade de respeito pela indispensável hospitalidade49.
Estes princípios, para além de seguirem de perto as
aportações resultantes do debate sobre a liberdade dos mares50, são
exarados nas diversas ordenanças de corso, de que se conhecem algumas51. Na espanhola de 1718 é definida a presa
ideal:
47 Em 1803 o consul espanhol apresentava um protesto pelo facto de um corsário inglês ter apresado a galera Nª Srª
das Mercês, uma vez que não estava declarada guerra entre os dois países (A.H.U., Açores, Maço 29).
48 Em 1811 um navio americano foi apresado por outro inglês em Angra sob o pretexto de levar a bordo
mercadorias pertencentes a vassalos de países com quem a Grã Bretanha estava em Guerra (A.H.U, Açores, maço
52, 31 de Agosto).
50 Tenha-se em consideração os comentários que os governadores açorianos tecem quando relatam o sucedido nos
mares açorianos. Veja-se o que diz o governador de S. Miguel aos acontecimentos de Horta em 1814 (A.H.U.,
Açores, maço 62, 24 de Novembro) ou do de Angra em 1811 (A.H.U., Açores, maço 52, 31 de Agosto).
52 Ibidem, p. 259.
Por aqui fica justificada a importância atribuída ao
passaporte passado às embarcações que sulcavam os mares. Num
deles, tirado ao acaso, vê-se que a justificação da concessão se
coaduna com o atrás referido:
53 A.R.M., Governo Civil, nº 523, 228vº-229, 8 de Julho de 1790, passaporte da galera portuguesa S. Francisco
Protector, mestre Guilherme José Nunes, com destino à Graciosa.
54 Confronte-se Manuel LUCENA SALMORAL, Piratas Filibusteros y Corsarios en América, Madrid, 1992.
58Ibidem, p. 733.
59 Veja-se Ed.FALGAIROLLE, Une expedition française a l'île de Madère en 1566, Paris, 1895; Rebelo da
SILVA, História de Portugal, vols. III e IV, Lisboa, 1971-71, pp.134-137, 589-590.
60 Eduardo PEREIRA, ob. cit.; Jorge Valdemar GUERRA, "O Saque dos argelinos à ilha do Porto Santo em 1617",
Islenha, nº 8, 1991, 57-78; Jacinto Monteiro, "Incursões de piratas argelinos em 1616 e 1675 nos mares açorianos",
in Ocidente, vol. 61, nº 283, 1961, pp. 197-203.
61 A.N.T.T., Registo da mesa de Consciência e ordens, nº 65, fls. 297, 27 de Junho de 1618, publicado in Arquivo
dos Açores, vol. VII, p. 335.
62. Idêntica é a situação nas ilhas de Lanzarote e Fuerteventura, veja-se Luis Alberto ANAYA HERNÁNDEZ,
"Repercusiones del corso berberisco en Canarias durante el siglo XVII cautivos y renegados canarios", in V
Coloquio de História Canario-americana(1982), t.II, pp.125-177.
Sem dúvida, foi a partir do último quartel do século XVIII,
com a declaração da independência da América do Norte e
conjuntura política consequente, que o corso foi uma arma ao
serviço da política. As transformações político-ideológicas
porque passaram os continentes americano e europeu fizeram do
Atlântico o espaço privilegiado de embate, sendo o corso o meio
usado. O oceano foi assim a via de mútua troca de ideias, mas
também o palco do seu debate e defesa. E, neste particular, as
ilhas jogaram um papel fundamental. Os três arquipélagos do
Mediterrâneo atlântico (Madeira, Açores e Canárias) foram, mais
uma vez, a área charneira para a expressão disso.
Os contactos preferenciais com o continente americano, a
assídua presença de gentes (mercadores ou corsários) destas
paragens, foram concerteza um poderoso veículo de expansão do
novo ideário político saído da declaração da independência dos
E.U.A. (1776). Este facto marca um novo momento da vida do até
então conhecido como Novo Mundo e do oceano que o separa do Velho
Mundo63, e também uma nova função para a guerra de corso. Por iniciativa dos norte-americanos o corso é
utilizado como arma de afrontamento à metrópole e de afirmação do ideário de independência das colónias. A ideia
contagiou também as colónias espanholas (Argentina, Bolívia, Colombia e Peru) e portuguesas (o Brasil)64. No caso
das Canárias eles chegaram mesmo a incitar os moradores de Tenerife a sublevarem-se contra a metrópole65.
Ambas as situações surgem como corolario da Revolução
liberal (em Espanha no ano de 1808 e em Portugal no de 1820). No
primeiro caso, de acordo com a aceitação ou reprovação da Junta
Central, tivemos as colónias leais e as insurgentes. É no seio
das últimas que surgirão, com o patrocínio dos norte-americanos
os corsários insurgentes. Note-se que estes arvoravam
habitualmente a bandeira dos E.U.A., sendo a tripulação das
embarcações composta por marinheiros de diversas proveniências,
onde pontuavam, mais uma vez, os norte-americanos66.
A ligação dos insurgentes aos E.U.A. é insistentemente
referenciada nos relatórios oficiais. Assim em 29 de Abril de
1817 refere-se: "Se espalharam vozes de que os corsários, ou
antes piratas, que causavam nos mares desta capitania e ora se
64 Para o período das hostilidades, que decorre de 1822 até à assinatura do tratado de 29 de Agosto de 1823
conhece-se apenas uma presa nos Açores em 1823(AHU, Açores, maço 83, 23 de Setembro).
66 A.H.U., Açores, maço 69, 24 e Dezembro 1816, 14 de Fevereiro, 27 Março, 29 de Abril, 27 de Maio, 20 de
Junho, e 12 de Dezembro de 1816.
diziam pertencentes aos insurgentes de Buenos Aires, ou ao
chamado governo republicano do México, haviam efectivamente saído
de Baltimor nos Estados Unidos d'America e não tripulados pela
maior parte por cidadãos dos mesmos estados..."67.
Um facto assinalável sucedeu em 30 de Abril de 181768, relatado
pelo capitão da galera Marquês de Pombal, apresada por um corsário patriota de Buenos Aires. Segundo ele o
corsário, quando o apresou arvorava a bandeira americana, sendo a tripulação também da mesma origem, todavia ao
ver o bergantim americano içou a bandeira do México.
A declaração da independência dos Estados Unidos e a guerra
subsequente ditaram uma nova ordem internacional e mais uma vez
geraram incómodos à posição portuguesa de neutralidade, tendo em
conta a aliança com Inglaterra69. A primeira reacção foi de encerramento de todos os portos
aos barcos das colónias revoltadas (decreto de 4 de Julho de 1776), numa medida sem precedentes do Marquês de
Pombal para agradar ao nosso aliado. A opção não foi nada benéfica para o país e principalmente para as ilhas da
Madeira e Açores70. E cedo o governo, reconhecendo o erro optou em 30 de Agosto de 1780 (ratificado a 13 de
Julho de 1782) por uma posição de neutralidade. Todavia só reconhecemos o novo estado após as pazes de 1783.
É de salientar que a França, molestada nos seus intentos de
ocupação deste continente, foi a primeira nação a reconhecer o
novo país, assinando em 1778 um tratado de comércio. Esta atitude
foi compensada mais tarde com a Revolução Francesa (1789)
surgindo os E.U.A. como o preferencial aliado dos franceses. O
novo estado de coisas não se apresentava favorável à Madeira,
sendo natural a apreensão do governador da ilha em 179371 quanto a um
possível ataque por "uns revoltozos francezes" a exemplo do que sucedeu em Nápoles. Entretanto João Marsden
Pintard72, consul americano no Funchal, não nega o seu apoio à República Francesa73.
Esta propaganda causou apreensão nas autoridades locais. Em
21 de Setembro refere-se que estes "trabalhão para propagarem
entre nós as suas perniciozas e abomináveis doutrinas com que nos
tem procurado fazer huma guerra mais funesta que a de nos
68 Ibidem.
70 Confronte-se Pedro Soares MARTÍNEZ, História Diplomática de Portugal, Lisboa, 1986, pp.198, 202(nota 72)
72 Teve carta de consul a 8 de Novembro de 1791, veja-se A.R.M., C.M.F., XIII, fls. 16-17. Mas já exercia o cargo
desde 1784, confronte-se João José Abreu de SOUSA, ob.cit., nota 67, p. 81; Jorge M. RIBEIRO, art.cit., nota 7,
p.400.
78 Confronte-se António Egídio Fernandes LOJA, A luta do poder contra a Maçonaria, Lisboa, 1986; A. H. de
Oliveira MARQUES, História da Maçonaria em Portugal, vol. I, Lisboa, 1990, pp. 45-49, 61-69, 130-143.
79 AHU, Madeira e Porto Santo, nº.7283, 9 de Dezembro de 1823, já referenciado por A.SARMENTO,Ensaios
Históricos da Minha Terra, vol.III, Funchal, 1952, pp121-122.
Na verdade, o principal perigo estava entre os franceses que
"trabalhão para propagarem entre nós as suas perniciozas e
abomináveis doutrinas com que nos tem procurado fazer huma guerra
mais funesta que a de nos atacarem com as armas na mão"80.
Tudo isto revela-nos que a actividade dos mercadores e
consules suplantava muitas vezes o seu âmbito, podendo ser
considerados também agentes políticos. Eles foram a peça chave de
toda a agitação política que alastrou às ilhas. O consul estava
em primeiro lugar, pois por seu intermédio divulgavam-se as
informações e solucionavam-se os problemas que estes conflitos
provocavam81. Além disso ele, a exemplo do que sucede com o americano, poderá ser um agitador político.
Também a sua função alarga-se à espionagem, fornecendo informações sobre o movimento comercial de amigos e
inimigos. Neste caso temos a actividade do consul castelhano Luis Agustín del Castillo, que teve um papel
primordial na defesa das presas castelhanas no período da guerra de sucessão de Espanha (1704-1713)82. É também,
de acordo com esta estratégia, que deverão considerar-se os informes do consul francês83.
Daqui se conclui que a Madeira, pelo facto de ter sido uma
base para o corso no Atlântico e mesmo no Pacífico84, de avanço em direcção
à América, foi também centro de observação e espionagem por parte de castelhanos85 e franceses86. É esta
actuação concertada que atribuiu aos arquipélagos da Madeira e Açores um papel fundamental na História do
Atlântico no decurso do século XVIII e as transformou num importante veiculo difusor do ideário político saído das
revoluções americana e francesa.
81 A documentação reunida no Foreign Office, referente à Madeira, testemunha de forma evidente esse
protagonismo do consul.
82 Demetrio RAMOS, "Madeira, como centro del espionaje español sobre las actividades britânicas, en el siglo
XVIII", in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal,1990, pp.191-199.
84 Em Outubro de 1740 o corsário George Anson aportou ao Funchal com oito navios, sendo o seu destino o
Pacífico. Veja-se George Anson A voyage round the world in the years MDCCXL,
London, 1748( com várias edições sendo a última de 1942).
DATA
LOCAL
CORSÁRIO
PRESA
1756
Madeira
navio castelhano
1762
Madeira
navio castelhano
1777.Out.
Açores
americano
1780
Madeira
navio castelhano
1781.Mai.17
Flores
inglês Herlekin
bergantim português Monte Carmo e S. Francisco
1782
Açores
francês
navio inglês
1793
Madeira
de Nantes
1793.Mai.21
Açores
inglês
navio sueco
1796
Madeira
francês
galera do Brasil
1797.Jun.10
Açores
inglês
navio francês
Madeira
francês
navio português
Madeira
francês
navio português
Madeira
francês
1798
Madeira
francês
navio português
1799
Madeira
navio castelhano
Madeira
inglês
.Abr.02
P. Delgada
armador Vitoria
bergantim hamburguês
1800.Nov.03
P. Delgada
inglês Herlekin
1800-1801
Madeira
John Smith
6 presas de Castela
1801
Madeira
francês
1 presa portuguesa
1803.Mar.29
P. Delgada
armador Victori
galera holandesa
1803.Ago.17
P.Delgada
1803.Set.15
P.Delgada
galera Amadora
1804
Madeira
português
1804.Mai.26
Madeira
1805
Madeira
inglês
5 presas de Castela
1805.Jan.
Madeira
inglês
3 presas de Castela
1805.Mar.17
Madeira
1805.Jul.
Madeira
1806.Jun
Madeira
fragata espanhola
1806.Out.03
Açores
Monsieur Ladduc
1806.Dez.
Madeira
1806.1807
Madeira
aargelinos
1807.Fev.
Madeira
brigue guerra
inglês
navio francês
1810
Madeira
1811.Ago.31
Açores
navio americano
1813
Madeira
inglês
bergantim americano
1814
Madeira
francês
1814.Nov.23
S. Miguel
americano
1816
Madeira
1816
Faial
1816
Stª Maria
1816.Dez.03
Açores
1816-Dez.12
Açores
lancha S. Miguel
1816.Dez.18
Açores
1816.Dez.24
Açores
hiate D. José
1817
?
1817
Stª Maria
1817.Abr.30
S. Miguel
Buenos Aires
1817.Abr.Mai
S. Miguel
1817.Mai.
Stª Maria
1817.Jun.20
S. Miguel
1817.Jun.28
S. Miguel
americano
português
1817.Jul.22
S. Miguel
escuna portuguesa
1817.Jul.24
Flores
2 barcos
1817.Jul.26
S. Miguel
1817.Dez.05
S. Miguel
bergantim espanhol
1817.Dez.17
S. Miguel
1818
Madeira
galeras Luisa e Ninja, escuna Maria, galera Rainha dos Mares, bergantim Restaurador
1818
Madeira
6 navios portugueses
1820
Madeira
navio português
1820
Madeira
1821
Açores
1822
Madeira
inglês
1823
Madeira
1823
Açores
corsario do Brasil
4 barcos portugueses
1826
Faial
escuna americana
1827.Fev.06
Faial
1827.Nov.12
Açores
2 navios do Brasil
BREVE CRONOLOGIA
DATA
ACONTECIMENTO
1756
1763.Fev.10
1773.Dez.10
1775
1776.Jul.04
1783.Set.03
1788.Jun.21
1789.Jul..14
Tomada da Bastilha
1804.Jan.01
Republica de Haiti
1808
1810.Mai-Setembro
1814.Jun.04
Abdicação de Napoleão
1815.Jan.25
1815.Out.11
Estado da Guatemala
1815.Dez.11
Estado de Honduras
1816.Jul.09
1816.Jul.28
1818
Independência do Chile
1819.Ago.07
1819.Dez-17
1820
1821.Jul.28
Independência de Guatemala
1821.Nov.
Independência da Colombia
1821.Dez.
1822.Out.12
1823.Jul.01
1825.Ago.06
Independência do Perú
1825.Ago.25
Independência do Uruguai
1825.Ago.29