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ARTIGO / ARTICLE

Saúde Pública, Rede Básica e o Sistema de Saúde Brasileiro


Public Health, Local Health Units, and the Brazilian Health System
Emerson E. Merhy 1
Marcos S. Queiroz 2

MERHY, E. E. & QUEIROZ, M. S. Public Health, Local Health Units, and the Brazilian
Health System. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (2): 177-184, Apr/Jun, 1993.
This article focuses on the development of public health in Brazil, with the aim of analyzing the
present process of decentralization of health care. The authors argue that the neoliberal or
conservative position is unable to offer a reasonable solution to problems in the health care
system. On the other hand, the reformist position concentrates its attention on the health system
and its administration, taking as its model a positivistic approach to natural and administrative
sciences. The authors further argue that only a radical change in the prevailing medical
paradigm and a predominance of social over biological aspects would meet the health needs of
the population.
Key words: Public Health; Health Systems

INTRODUÇÃO mera reforma administrativa e, no interior de


uma concepção social de medicina, encontrar
Este artigo tem como objetivo principal tecnologias (o termo “tecnologia” é empregado
focalizar o desenvolvimento da saúde pública e no sentido usado por Gonçalves (1986), ou seja,
do sistema de saúde no Brasil, buscando contri- como um instrumental contido principalmente
buir para a compreensão dos principais proble- na formação do especialista, e não somente
mas que marcam o momento atual. Será argu- como um aparelho externo a ele) que, ao orga-
mentado que o processo de municipalização dos nizar o sistema de saúde, a tornem prática.
serviços de saúde, em grande medida estimula-
Embora os fatos históricos apresentados na
do por princípios contidos no paradigma (o
primeira parte deste artigo sejam de conheci-
termo “paradigma” é empregado de acordo com
mento comum e já tenham sido divulgados
o conceito de Kuhn (1975), ou seja, como um
(Merhy, 1991), sua apresentação justifica-se por
mapa que governa a percepção do cientista no
sentido de conformar a ele os fatos e as desco- fornecer uma visão resumida do processo e
bertas) social da medicina, encontra-se, presen- permitir focalizar o momento atual a partir de
temente, num estágio crucial do seu desenvolvi- uma dimensão histórica.
mento. Observa-se, neste sentido, que, sob uma
nova fachada de racionalidade administrativa, o
paradigma mecanicista se impõe sobre o para- O DESENVOLVIMENTO DA
digma social da medicina. Este artigo defende SAÚDE PÚBLICA
o ponto de que é necessário ir além de uma
A história da Saúde Pública brasileira inicia-
1
Departamento de Medicina Preventiva da Universidade
se no começo do século com Emílio Ribas, em
Estadual de Campinas (Unicamp). Caixa Postal 6166, São Paulo, e Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
Campinas, SP, 13081-970, Brasil. No interior da escola pasteuriana, estes cientis-
2
Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da
Universidade Estadual de Campinas (Reitoria). Caixa tas tinham como meta superar a teoria miasmá-
Postal 6166, Campinas, SP, 13081-970, Brasil. tica a partir da introdução da teoria bacterioló-

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gica, considerada mais adequada para organizar No decorrer da década de 20, a corrente
a intervenção no campo da saúde. Nesta pers- médico-sanitária tornou-se hegemônica, organi-
pectiva, tanto a saúde como a doença passaram zando-se principalmente nos grandes centros
a ser vistas como um processo coletivo, resul- urbanos, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo
tado da agressão externa que o corpo biológico Horizonte, Recife, entre outros. Dois núcleos
(fisiologicamente harmônico) sofria de um meio foram especialmente ativos: o paulista, influen-
social/natural insalubre. A descoberta e o isola- ciado por Paula Souza e Borges Vieira (médi-
mento dos indivíduos doentes contagiantes, o cos sanitaristas formados pela John Hopkins
saneamento do meio, a destruição dos vetores University, com bolsas da Fundação Rockfel-
biológicos e a proteção dos sadios consistiam ler), e o dos “jovens turcos”, sanitaristas vincu-
nos principais objetivos desta perspectiva. Para lados ao Departamento Nacional de Saúde
instrumentalizar as ações de saúde, adotava-se Pública, no Rio de Janeiro, que defendiam a
a bacteriologia e a engenharia sanitária. Secun- especialidade na carreira médica na área de
dariamente, utilizava-se a medicina, entendida saúde pública e o trabalho integral nas insti-
como muito limitada e pouco eficaz. tuições estatais. Estes núcleos chegaram a
O modelo assistencial público tinha na cam- organizar cinco congressos durante a década de
panha e na polícia sanitária seus meios princi- 20 (os Congressos Brasileiros de Higiene) e
pais de efetivação. Para pôr em prática esta tiveram tal influência no desenvolvimento da
política, foram organizadas leis, códigos e política de saúde no Brasil que sua presença se
decretos. Além disso, foram também organiza- fez marcante até a reforma administrativa da
dos institutos de pesquisa, laboratórios e servi- década de 60/70, no interior da Secretaria de
ços sanitários como braços auxiliares. Os prin- Saúde do Estado de São Paulo.
cipais aspectos administrativos e programáticos A base deste modelo pressupunha o processo
situavam-se no âmbito estadual, com alguns saúde-doença como um fenômeno coletivo,
resíduos no nível municipal. Via de regra, os porém determinado, em última instância, pelo
pensadores da política de saúde eram funcioná- nível individual. O conceito de “consciência
rios públicos e, como tal, compartilhavam das sanitária” permitia compreender como o meio
perspectivas que os grupos oligárquicos adota- insalubre atingia os indivíduos. Medicina e
vam para as questões sociais, tendo em vista saúde pública eram entendidas como campos
servir ao processo agroexportador e legitimar o distintos; a primeira para curar através da
Estado. clínica, patologia e terapêutica, e a segunda
A partir da teoria bacteriológica, novas idéias para prevenir doenças, prolongar e promover a
foram se organizando e desembocaram, na saúde através da higiene e da educação sani-
década de 10, na formação de um movimento tária. O setor privado, entendido sob o ângulo
em saúde pública que ficou conhecido como “caritativo”, deveria ser controlado pelo serviço
“médico-sanitário”. Esta perspectiva foi influen- público. Não havia qualquer conflito com a or-
ciada pela escola norte-americana de saúde ganização liberal, predominante no período. O
pública, que tinha em Baltimore seu núcleo modelo tecno-assistencial desta proposta cen-
mais ativo, através da associação entre a Fun- trou-se na construção de serviços regionais
dação Rockefeller e a John Hopkins University. permanentes de saúde pública (os centros e pos-
Nesta época, já se buscava no Brasil uma tos de saúde) comandados por especialistas —
ação social que saneasse a zona rural, a fim de os sanitaristas — em tempo integral.
constituir um povo saudável, racialmente forte, Durante a fase de transição 30/37, a saúde
permitindo, ao mesmo tempo, a ocupação do pública praticamente reduziu-se à atuação
interior do país, considerada vital para a inte- campanhista pelo conjunto do país. Sob a in-
gração nacional. A chamada Liga do Saneamen- fluência da Liga de Saneamento, foram favore-
to caracterizou-se, neste sentido, por criticar os cidas as ações verticais permanentes. Este foi
excessivos urbanismo e regionalismo da política um período que viabilizou a construção dos
de saúde então vigente. Este movimento tinha serviços médicos previdenciários, abrindo um
em Belisário Pena e Artur Neiva os seus mais outro setor socialmente significativo no conjun-
significativos representantes. to das ações de saúde.

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Sistema de Saúde Brasileiro

Os “jovens turcos” foram marcando passagem de saúde se tornassem parte de uma atividade
pelas instituições na luta por uma reforma que globalmente planejada.
levasse à criação de um ministério da saúde e Desde o final dos anos 40 já era evidente
de secretarias estaduais de saúde, experiência, uma inversão dos gastos públicos, favorecendo
aliás, já vivida pelo estado da Bahia em 1925. a assistência médica em relação à saúde públi-
Assim ocorreu com a Reforma Federal de 1937, ca. Nos anos 60, a dicotomia assistência médi-
que permitiu a criação dos departamentos na- ca-saúde pública radicaliza-se no interior de um
cionais de combate a problemas específicos, modelo institucional que mostrava ações pon-
como a malária, a febre amarela e a saúde das tuais e desordenadas, incapazes de conter a
crianças. Quando, na década de 40, tiveram a miséria e as péssimas condições de saúde da
oportunidade (diante dos problemas colocados população brasileira.
pela situação da Segunda Guerra Mundial e as Tomando como ponto de reflexão a falência
relações do governo brasileiro com o norte- das perspectivas “campanhistas” e “norte-ameri-
americano) de organizar um serviço que permi- canas”, Mario Magalhães introduziu, numa
tisse a ocupação de regiões importantes para a perspectiva desenvolvimentista, a integração e
produção de borracha e minérios, implementa- o planejamento das ações de saúde. Como
ram a Fundação Servico de Saúde Pública presidente da Sociedade Brasileira de Higiene,
(Sesp). O ideário original desta corrente foi em 1962, e como secretário-geral da III Confe-
mantido mesmo com a incorporação de novos rência Nacional de Saúde (cujo tema era a
recursos médicos, como, por exemplo, o anti- municipalização dos serviços de saúde), em
biótico, que foi “retraduzido” sob a mesma 1963, ele capitaneou um esforço no sentido de
ótica “tecnológica”. A esta experiência seguiu- reinterpretar a organização dos serviços de
se a criação, em 1953, do Ministério da Saúde saúde no interior do conjunto dos problemas
e, em 1956, do Departamento de Endemias brasileiros.
Rurais, que herdou um conjunto de projetos A idéia mais intensamente propagada neste
realizados nos departamentos verticalizados período é que a doença e a miséria só seriam
específicos, como o da malária, existente desde controladas com o desenvolvimento econômico.
1939. No campo da saúde propriamente dito, propu-
No estado de São Paulo, a exemplo do que nha-se um padrão tecnológico mais racional, de
ocorria em outros estados, a Fundação Sesp menor custo, integrado em seus vários campos
tentou influenciar a constituição da Secretaria de atuação e sem a influência das leis de mer-
Estadual de Saúde, em 1948. Neste processo, os cado. Esta perspectiva rompia com a dicotomia
vários grupos articulados a esta proposta saíram entre assistência médica e saúde pública, su-
frustrados, pois consideraram que seus objetivos bordinando aquela à lógica desta. Previa-se,
foram desvirtuados pela presença de interesses para isso, a implantação de serviços permanen-
políticos menores que se sobrepuseram aos tes (contendo ações médicas e sanitárias), mu-
técnicos. No entanto, com a reforma da organi- nicipalizados e controlados pelo Estado segundo
zação dos serviços de saúde no estado, em uma hierarquia de complexidade tecnológica. A
1968, consideraram atingidos seus objetivos. ação federal deveria ocorrer no sentido de
No pós-guerra, sem alterar as estratégias normatizar as ações, racionalizar as atividades
básicas da corrente “médico-sanitária”, novos e ajudar os municípios que ainda não tivessem
elementos foram sendo incorporados, como, por condições de organizar seus próprios serviços.
exemplo, o uso da medicina clínica pela saúde Pela primeira vez discutiu-se, no país, um
pública, que encontrava suporte teórico na modelo tecno-assistencial baseado na integração
concepção de Leavell & Clarck (1967), que das ações coletivas e individuais de saúde, cujo
preconizavam a união do conjunto das ações de ponto de apoio seria constituído a partir de
saúde num esforço comum de prevenção e cura. serviços básicos de saúde permanentes, ela-
Com isso, o modelo passou a introduzir a borados de acordo com um planejamento gover-
clínica nos programas de saúde, dentro de uma namental. Pela primeira vez, também, levantou-
perspectiva multicausal do processo saúde- -se a questão da organização dos serviços
doença. Esta concepção permitiu que as ações médicos privados.

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A derrota destas propostas, em 1964, abriu orçamentários no sistema previdenciário passa-


um outro capítulo que vingou na estruturação ram a ocorrer com maior freqüência, acentuan-
de um modelo centrado na assistência médica do a urgência de se imprimir uma maior racio-
comercializada, que passava pelo setor previ- nalidade ao sistema de saúde. Os planos de
denciário, sendo a saúde pública reduzida a um governo Programa Nacional de Serviços Bási-
braço auxiliar. Na realidade, promoveu-se uma cos de Saúde (Prev-Saúde) e Conselho Consul-
completa separação entre o campo da assistên- tivo de Administração da Saúde Previdenciária
cia médica e o da saúde pública, com maciços (Conasp) vieram como tentativas de imprimir
investimentos no primeiro e o sucateamento do uma maior racionalidade ao sistema de saúde.
segundo. Neste novo contexto, foi implementa- Este último, em particular, propunha a descen-
do um projeto privatizante e medicalizante. tralização do sistema de assistência médica
Somente em algumas regiões renasceram expe- através da criação de uma única “porta de
riências no campo da saúde pública que mere- entrada”, integrando, numa rede básica de
cem alguma atenção, como o “campanhismo”, serviços públicos de saúde, a capacidade insta-
a nível federal, e as ações médico-sanitárias, em lada já existente no Instituto Nacional de Assis-
alguns estados, principalmente o de São Paulo, tência Médica da Previdência Social (Inamps),
com o Secretário Walter Leser, em 1968 e nos estados e nos municípios, entrando a rede
1974. privada apenas onde não existissem unidades
Este modelo pós-64, sobejamente analisado estatais.
no que se refere às questões da assistência A municipalização dos serviços de saúde
médica previdenciária, foi exposto a um conjun- passou a ser entendida como o único meio que
to severo de críticas que permitiram um repen- permitiria, ao mesmo tempo, maior racionali-
sar de todo o sistema. O movimento sanitário, zação administrativa, controle financeiro e
constituindo um campo de saber, criando espa- participação democrática da comunidade no
ços para uma política alternativa e um trabalho gerenciamento do sistema, em oposição à
de difusão ideológica, teve um importante papel excessiva centralização do modelo anterior.
neste sentido. A criação dos departamentos de Esperava-se, também, que este novo sistema
medicina preventiva e do Centro de Estudos estimulasse o desenvolvimento de uma medici-
Brasileiros de Saúde foi o principal agente de na mais holística, gravitasse em torno dos
difusão desta nova consciência. Pretendia-se verdadeiros problemas de saúde da comunidade
uma reforma sanitária que, adequada aos limites e provesse uma melhor organização do sistema,
financeiros impostos pela crise econômica, tornando menos oneroso o serviço de saúde.
efetivamente pudesse oferecer melhores con- Este processo permitiu experimentar modelos
dições de saúde à maioria da população. tecnológicos e assistenciais alternativos, basea-
Em 1974, a reorganização da estrutura institu- dos na medicina comunitária, que, embora
cional do Ministério da Previdência e Assistên- marcados pelo baixo custo, mostraram algum
cia Social não se fez acompanhar de medidas sucesso no interior das instituições públicas
que alterassem o modelo privado prestador de (Somarriba, 1978).
serviços e que tocassem no chamado complexo O aprofundamento da crise econômico-finan-
médico-industrial. Pelo contrário, a busca de ceira da Previdência Social acelerou a reforma
extensão com baixo custo, através do projeto da no setor saúde, principalmente a partir das
Pronta Ação, ampliou a base financeira disponí- Ações Integradas de Saúde (AIS), em 1982. As
vel para o setor privado. No entanto, a insti- AIS efetivamente produziram um deslocamento
tuição do Sistema Nacional de Saúde, em 1975, relativo de recursos financeiros da Previdência
abriu efetivamente um novo espaço de atuação para o setor público prestador de serviços de
a partir da assistência médica individual e de saúde e promoveram uma integração das ações
medidas de alcance coletivo voltadas às popu- setoriais. Este processo acentuou-se com a es-
lações de baixa renda. truturação do Sistema Unificado Descentraliza-
A partir de 1977, quando se estendeu o do de Saúde (Suds) e com a formação do
atendimento de urgência a qualquer indivíduo, Sistema Único de Saúde (Sus). Com a imple-
previdenciário ou não, os chamados “estouros” mentação do primeiro, ocorreu um deslocamen-

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to das responsabilidades de gestão dos serviços a organização empresarial e/ou liberal quanto
de saúde para o nível estadual, permitindo uma alguns funcionários das instituições públicas de
efetiva descentralização administrativa. Com a serviços de saúde. Dentre estes últimos, são
implementação do segundo, através da nova ressaltados os ministros e suas equipes técnicas
Constituição Federal, ocorreu a descentrali- dos três primeiros governos militares, dentre os
zação, a nível municipal, da gestão dos serviços quais destaca-se Leonel Miranda, que, em 1968,
públicos de saúde. elaborou um plano nacional de saúde centrado
na privatização total da assistência à saúde
(Melo, 1977).
AS POSIÇÕES POLÍTICO-IDEOLÓGICAS Já a posição reformadora preconiza a consti-
E A REDE BÁSICA tuição de uma rede básica de serviços públicos
de saúde descentralizada e universalizada, ou
A partir dos anos 70, duas posições político- seja, que atenda à população coberta ou não
ideológicas organizaram-se em torno da disputa pela previdência social. Internacionalmente
por um novo modelo de política social de legitimada pela Conferência de Alma-Ata,
saúde: a conservadora e a reformadora. promovida pela Organização Mundial de
A posição conservadora pouco tinha a dizer Saúde (OMS), postula-se o combate à dicoto-
sobre a organização assistencial ou tecnológica mia das ações de saúde, técnica e institucio-
da rede básica, uma vez que defendia uma nalmente, através formação de serviços de
lógica de mercado para a organização dos servi- saúde regionalizados e hierarquizados de acordo
ços de saúde cujo eixo tecnológico principal era com sua complexidade tecnológica e da unifi-
a assistência médica baseada no produtor priva- cação das ações a nível ministerial.
do. Neste modelo, a intervenção estatal só se Torna-se estratégica, nesta concepção, uma
justificaria para cuidar ou dos que ficavam fora rede básica de saúde que funcione como porta
do sistema, por não terem “capacidade social” de entrada de um sistema mais amplo e que
de se integrarem ao mercado, ou das questões obedeça à hierarquia tecnológica da assistência
que não interessavam nem ao produtor privado à saúde, classificada em primária, secundária e
nem ao seu modelo tecno-assistencial. Assim, o terciária. Neste esquema, os insumos e equipa-
Estado atuaria de modo “caritativo”, dando mentos correspondem a padrões quantificáveis
assistência social aos mais necessitados e/ou de abrangência e resolutividade dos problemas
excluídos, ou interviria em questões coletivas de saúde. As instituições que detivessem maior
com os tradicionais instrumentos da saúde grau de complexidade tecnológica passariam,
pública, como a campanha e a educação sanitá- então, a constituir as retaguardas que comple-
ria em massa. tam a resolução dos problemas de saúde. Esta
Nesta vertente, o campo tecnológico funda- estratégia visa a organização de uma rede de
mental manifesta-se na área médica através da atenção primária pelos estados e municípios
incorporação dos mesmos padrões que se como um primeiro passo para o controle do
adaptam às medicinas dos países “mais cen- sistema de saúde como um todo.
trais”, nos quais vingaram os modelos baseados Nesta perspectiva, os problemas de saúde se-
na especialização médica e na intensa absorção riam passíveis de um enquadramento segundo
de insumos e equipamentos para a realização do o paradigma biologicista e naturalista, no qual
“ato médico” ordenado pela lógica comercial a doença começaria gradativamente e iria se
capitalista (Donnangelo, 1976). Para as ações tornando complexa, até constituir um quadro
coletivas, sobram as tecnologias tradicionais, biológico dramático, em termos de vida e morte
retiradas fragmentariamente da bacteriologia, orgânica. Ações médicas, específicas e inespecí-
como a campanha, e da perspectiva médico-so- ficas, interviriam antes do quadro patológico se
cial que preconiza a necessidade de educação desenvolver ou, gradualmente, a partir de seu
sanitária em alguns postos de serviços de saúde. desenvolvimento. Isto é, a intervenção ocorreria
Pode-se apontar como interessados neste do momento mais simples, em termos clínico-
modelo tanto os grupos médicos que defendem terapêuticos, para o mais complexo, quando,

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então, haveria a incorporação de uma grande é extremamente onerosa para o Estado e produz
quantidade de insumos e equipamentos. poucos resultados em termos de saúde. Assu-
Ainda que haja uma perspectiva epidemio- mindo, portanto, que não há possibilidade de
lógica e um sentido coletivo a partir de ações retorno nesta questão, pretende-se concentrar a
educativas e de higiene nesta postura, ela atenção na posição reformadora discutida acima
encontra-se mais próxima de um enfoque clí- e levantar alqumas questões sobre o seu modelo
nico do que de um enfoque populacional. tecnológico.
Centrada na ótica médica e na teoria dos sis- Ao se observar concretamente a rede básica
temas que se tomam como ciências exatas, esta de serviços de saúde presente no contexto atual
perspectiva pressupõe que o planejamento das da maioria dos municípios mais desenvolvidos,
ações baseado na relação custo/eficácia seria em termos sócio-econômicos, do país, os princi-
não só possível, mas fundamental. pais pontos que se destacam referem-se, de um
Desde a Reforma de 1968, a Secretaria Esta- lado, ao sucesso significativo no que diz respei-
dual de Saúde de São Paulo já tinha adotado to à implantação de uma rede de serviços
uma postura que trouxe avanços significativos municipalizada e universalizada e, de outro, à
às questões de planejamento das ações e dos extrema dificuldade de se libertar do predomí-
serviços de saúde, além da incorporação da nio da clínica individual, baseada no paradigma
assistência médica como instrumental de saúde biológico, em favor da lógica da saúde pública.
pública. Ela trouxe para o interior dos progra- Embora o discurso da Reforma Sanitária incor-
mas a serem executados pelos centros e postos porasse uma perspectiva mais holística da saúde
de saúde os parâmetros da epidemiologia (da e da medicina, na qual a dimensão clínica
multi-causalidade das doenças) e do planeja- deveria se submeter ao controle de critérios
mento das ações, tornando estratégico o equa- coletivos e sociais no âmbito da saúde, os fatos
cionamento da relação entre eficiência e eficá- acabaram por confirmar a dificuldade de se
cia das ações técnicas programadas, tendo em implementar tal proposta.
vista os recursos disponíveis e as necessidades O que se observa, neste sentido, é uma re-
“epidemiologicamente” detectadas. dução do problema saúde-doença a uma questão
A implantação deste modelo, no entanto, de organização racional (custo/eficácia) das
chocou-se com a contradição entre a extensão ações médicas, auxiliadas pelas ações coletivas,
de cobertura que ele implicava e o padrão de na qual a rede básica de serviços de saúde se
gasto maior do que historicamente vinha ocor- transforma numa verdadeira triagem dos proble-
rendo (Braga & Paula, 1981). Isto fez com que mas de saúde, a partir do eixo “queixa/procedi-
a proposta não se reproduzisse igualmente pelo mento”, descaracterizando a dimensão coletiva
território nacional e só vingasse, ainda que em do processo saúde-doença e realizando, em
termos relativos, em estados e regiões mais nome da unificação das ações de saúde, uma
ricos, que puderam equacionar melhor este obs- “deslavada” medicalização (Gonçalves, 1986).
táculo. A Reforma Sanitária posta em prática pode
até gerar, em alguns casos, uma rede que não
DISCUSSÃO caia na medicina aviltada própria do pronto
atendimento e que realize uma assistência mé-
O desenrolar dos acontecimentos na área da dica primária com um razoável grau de resoluti-
saúde, a partir da década de 70, mostra profun- vidade. Mesmo assim, porém, o eixo central
das reformas que, mais do que nunca, merecem desta rede/porta de entrada é baseado não na
ser dimensionalizadas e criticadas em função de unificação efetiva das ações, mas na redução
um melhor controle democrático de seu proces- medicalizante do conjunto destas ações.
so. O desenvolvimento da Reforma Sanitária Diante deste quadro, o grande desafio da
significou uma derrota definitiva da proposta medicina passou a ser a superação da forma
conservadora baseada no predomínio da medici- degradante do pronto atendimento, através da
na privada. Mesmo os países ricos e desenvol- reconciliação entre uma clínica que dimensione
vidos tiveram que rever em profundidade esta o caráter individual e subjetivo da doença e o
perspectiva, a partir da constatação de que ela saber contido na epidemiologia e na medicina

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social e coletiva. Neste novo modelo, as ações seu paradigma centrado na biologia e no hospi-
de saúde, embora incorporem a assistência tal, numa nova concepção de saúde e doença. É
médica, não podem mais estar centradas na evidente que uma rede básica com este perfil
medicina. Todo um leque de questões envolven- teria que incorporar alta tecnologia, enquanto
do o meio ambiente, a vigilância sanitária e saber que engendra instrumentos e formas
epidemiológica e uma perspectiva holística do organizacionais, para que atingisse uma capaci-
ser humano e da saúde deve estar acoplado or- dade efetiva de descoberta e solução dos casos
ganicamente na concepção de sistema de saúde. individuais/coletivos. Além disso, esta rede teria
O esforço para a integração entre clínica e que ser planejada e organizada levando-se em
saúde pública num mesmo programa de saúde conta um eficiente e eficaz sistema de retaguar-
envolvendo ações individuais e coletivas de da, sem o qual a base/origem não funcionaria a
prevenção e de cura concorre para melhorar a contento.
prática clínica e legitimar o programa de saúde Uma nova base tecnológica para a implemen-
pública. Neste esquema, o ensinamento ao tação desta proposta exigiria uma mudança
doente sobre sua doença é considerado um ato radical no paradigma dominante da medicina e
terapêutico tão importante quanto administrar da saúde, baseado nos princípios positivistas,
medicamentos. A integração da medicina coleti- envolvendo os aspectos clínicos e epidemiológi-
va com a clínica produz, inevitavelmente, a cos que tradicionalmente são vistos como
necessidade de interação de uma equipe multi- neutros e capazes de realizar um equacionamen-
disciplinar de trabalho envolvendo vários profis- to dos problemas de saúde a níveis individual e
sionais. O trabalho em equipe contribuiria para coletivo. Neste novo modelo de medicina e
uma melhor percepção da demanda e sua saúde, um pressuposto fundamental se destaca,
relação com os programas de saúde, adaptando qual seja, a consideração de que a dimensão so-
o sistema médico a novos problemas decorren- cial configura e dá sentido à dimensão biológi-
tes do modo de vida. ca. Trata-se de um paradigma científico cujos
Um outro ponto importante, amplamente contornos exigem uma dimensão tecnológica
expresso na VIII Conferência Nacional de que seja desenvolvida a partir de um novo
Saúde, diz respeito à dimensão que deverá enfoque nas causas (sociais) das doenças e nas
assumir a rede básica de serviços de saúde a condições (sócio-ambientais) que promovem a
partir do nível de complexidade tecnológica que saúde (Queiroz, 1987).
poderá absorver. É questionável, neste sentido, Se assumirmos que dimensões culturais e
a noção de que ela seria apenas a “porta de ideológicas encontram-se inevitavelmente
entrada” de um sistema de saúde, caso haja a presentes no ato médico, mesmo quando ele se
pretensão de transformá-la em um lugar essen- pretende positivo e neutro, uma questão impor-
cial para que se realize a integralidade das tante é considerá-lo como uma forma política
ações individuais e coletivas, numa abrangência de realizar certos objetivos sociais, numa postu-
que pressupõe o conjunto das práticas sociais ra epistemológica radicalmente diferente da que
que determinam a qualidade de vida. caracteriza o positivismo.
É evidente que a tecnologia adequada para a No interior deste modelo, o grande problema
implementação de tal proposta teria, em vários é a radicalidade democrática e a grande politi-
aspectos, que ser “inventada”, não bastando zação dos grupos sociais, uma vez que ele
incorporar o que já se acumulou em outras exige predominância dos interesses coletivos
experiências, em particular as que agregaram sobre os privados. Esta perspectiva pressupõe
simplesmente a assistência médica à saúde um processo social bem mais extensivo, de
pública no mesmo lugar institucional. transformação, ampliação e composição da
Um fator, no entanto, é fundamental para se arena política, do que os limites dados apenas
começar a pensar nas novas tecnologias neces- pelo setor saúde. Além disso, como muito bem
sárias para uma rede básica que supere as demonstra Sader (1988), os agentes sociais que
inconsistências encontradas no presente modelo: podem viabilizar este modelo extrapolam o
o predomínio dos aspectos coletivos e sociais nível exclusivo dos profissionais e técnicos de
da medicina em relação à clínica individual e saúde.

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Merthy, E. E. & Queiroz, M. S.

RESUMO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Pública, Rede Básica e o Sistema de Saúde Previdência Social. São Paulo: Cebes-Hucitec.
Brasileiro. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, DONNANGELO, M. C. F., 1976. Saúde e Socieda-
9 (2): 177-184, abr/jun, 1993. de. São Paulo: Duas Cidades.
Este artigo focaliza o desenvolvimento da GONÇALVES, R. B. M., 1986. Tecnologia e Orga-
saúde pública no Brasil com o intuito de nização Social das Práticas de Saúde. Tese de
analisar os problemas com os quais se depara Doutorado, São Paulo: Faculdade de Medicina,
o processo atual de municipalização dos Universidade de São Paulo.
serviços de saúde. Argumenta-se que a KUHN, T. S., 1975. A Estrutura das Revoluções
postura neoliberal ou conservadora tornou-se Científicas. São Paulo: Perspectiva.
incapaz de articular uma proposta viável para LEAVELL, H. R. & CLARCK, E. G., 1970. Medici-
o sistema de saúde. Por outro lado, a proposta na Preventiva. Rio de Janeiro: McGraw Hill.
reformista concentra sua atenção no sistema MELO, G., 1977. Saúde e Assistência Médica no
de saúde e sua administração, tendo como Brasil. São Paulo: Cebes-Hucitec.
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