PRIMEIRA PARTE
Manu e seus amigos
misteriosamente, aquela vida fictícia era mais real do que a sua própria
vida cotidiana, e adorava mergulhar nessa outra realidade.
Desde então passaram-se milhares de anos. As nobres cidades
daquele tempo se desmoronaram, os templos e palácios ruíram, o vento
e a chuva, o calor e o frio desgastaram as pedras, e dos grandes
anfiteatros só restaram ruínas. Agora, entre as pedras caídas, os grilos
zunem sua canção monótona, que soa como o suave respirar da terra
adormecida.
Algumas dessas grandiosas cidades antigas, entretanto,
continuam a ser grandes cidades até os dias de hoje. A vida ali mudou,
claro! O povo anda de ônibus ou de automóvel, tem telefone e luz
elétrica. Mas aqui e ali, entre as casas modernas, algumas colunas, uma
arcada, um pedaço de muro, ou mesmo um anfiteatro, são recordações
daquele tempo antigo.
E foi numa dessas cidades que aconteceu a história de Manu.
Dali em diante tudo correu bem com Manu, pelo menos em sua
opinião. Ela sempre tinha alguma coisa para comer, às vezes mais,
outras vezes menos, dependendo do que o pessoal pudesse poupar.
Tinha um teto por cima da cabeça, uma cama, e se sentisse frio podia
acender um fogo. E o mais importante de tudo: tinha muitos bons
amigos.
Parecia que a sorte tinha sido de Manu, que encontrara gente tão
amiga, e era isso mesmo que ela pensava. Entretanto, os outros logo
perceberam que a sorte tinha sido dele também. Precisavam de Manu e
ficavam se perguntando como é que até então se tinham arrumado sem
ela. À medida que o tempo passava, a menina tornava-se mais
necessária, que eles chegavam a recear que um belo dia, quando
acordassem, não a encontrariam mais.
Foi por isso que constantemente Manu passou a ter visitas em
casa. Havia sempre alguém sentado perto dela, conversando com ar
muito interessado. Quem precisasse dela, mas não pudesse ir até lá,
mandava buscá-la. E, se alguém ainda não tivesse percebido que
precisava dela, ouvia logo o conselho:
__ Ora, por que não vai falar com Manu?
Na verdade, Manu não tinha bons conselhos para dar às pessoas, e
nem sempre encontrava palavras certas para dizer. Ela não era também
uma pessoa divertida que cantava ou dançava ou tocava algum
instrumento. Nem tinha poderes para ver o futuro.
O que Manu sabia fazer, melhor do que qualquer outra pessoas,
era ouvir. Seria um erro supor que isso é coisa que qualquer um pode
fazer. Ao contrário, muito poucas pessoas sabem ouvir de fato. E a
maneira como Manu ouvia era realmente fora do comum.
Manu ouvia de um jeito que fazia as pessoas pouco inteligentes
terem repentinamente idéias brilhantes. Ela não dizia, nem perguntava,
nada que pudesse pôr tais idéias na cabeça das pessoas; ela ficava
simplesmente ali sentada, ouvindo com atenção e toda simpatia. Ao
mesmo tempo costumava fitar a pessoas com seus grandes olhos
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__ Dei, é? – gritou Nicolau, furioso outra vez – Quem deu foi você,
mas não conseguiu me tapear.
O fato é que na parede do barzinho do Nino havia uma imagem de
Santo Antônio, que ele tinha recortado de uma revista e emoldurado. Um
dia Nicolau quis comprar a imagem, dizendo que a achava linda; Nino foi
negociando até conseguir que Nicolau desse em troca o seu rádio, e
ficou rindo por dentro, convencido de que tinha levado a melhor.
Fechado o negócio, aconteceu que, entre a imagem e o papelão de
trás do quadro, apareceu uma nota de alto valor que Nino nunca tinha
visto. Então ele sentiu que, afinal de contas, tinha tomado prejuízo, e
ficou muito aborrecido. Quis exigir de Nicolau a devolução da nora
porque não fazia parte da venda. Nicolau recusou, e daí por diante Nino
não quis mais servi-lo.
Depois que remontaram à causa inicial da briga, os dois homens
ficaram em silêncio, até que Nino falou:
__ Diga com toda franqueza, Nicolau: antes de nós fazermos o
negócio você já sabia daquela nota, ou não?
__ Claro que sabia. Se não, não tinha feito o negócio, tinha?
__ Então você há de confessar que me tapeou.
__ Como? Você não sabia mesmo que a nota estava ali?
__ Não. Juro que não.
__ Está vendo só . . . Então é você que quis me dar o golpe,
recebendo o meu rádio em troca de um pedaço de jornal que não valia
nada.
__ Mas como é que você ficou sabendo da nota?
__ Eu tinha visto um freguês enfiar ali, em homenagem a Santo
Antônio.
Nino mordeu o beiço.
__ E valia muito?
__ Exatamente o valor do meu rádio.
Então os dois começaram a rir. Desceram os degraus de pedra,
encontraram-se no meio da arena, apertaram-se as mãos e trocaram
palmadas nas costas. Depois, ambos abraçaram Manu, dizendo:
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Mesmo quem tem muitos amigos tem sempre um ou dois que são
mais queridos, e era o que acontecia com Manu.
Ela tinha dois amigos muito especiais, que costumavam ir visitá-
las todos os dias, e com ele repartiam tudo o que tinham. Um era jovem,
o outro, velho, e Manu não saberia dizer de qual deles gostava mais.
O velho chamava-se Beppo Varredor. Na verdade, o seu
sobrenome era outro, mas como trabalhava varrendo as ruas e toda a
gente o chamava “Varredor”, ele também passou a usar esse nome.
Beppo Varredor morava perto do anfiteatro numa cabana que ele
mesmo havia construído com tijolos e folhas de zinco. Era um
homenzinho pequeno e, ainda por cima, corcunda, de modo que parecia
pouco mais alto do que Manu.
Muita gente achava que Beppo não estava muito bom da cabeça,
porque, quando lhe faziam alguma pergunta, ele apenas sorria sem dizer
nada. Isso acontecia porque ele costumava refletir muito sobre a
questão, e, quando achava que não merecia resposta, não respondia.
Quando resolvia que a questão merecia resposta, examinava-a
novamente, levando duas horas, ou até mesmo dois dias, para
responder. Enquanto isso, a pessoa que havia feito a pergunta já se
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“Todo o povo de seu belo e livre país sabe, minhas senhoras, que o
notoriamente cruel tirano Marxentius Communis, cognominado ‘O
Vermelho’, concebeu o plano de alterar o mundo inteiro para sua própria
conveniência. Entretanto, apesar de todos os seus esforços, descobriu
que os homens continuavam sempre os mesmos e se recusavam a
mudar. Então, na velhice, Marxentius ficou louco. Naquele tempo, como
as senhoras sabem, não existiam psiquiatras para ajudar curara essa
doença, então deixaram que ele continuasse com seu delírio, e foi
quando sua loucura chegou ao auge que ele concebeu a idéia de largar
o mundo como estava, enquanto ele próprio ia criar um outro mundo
novinho.
Para isso mandou construir um globo exatamente do tamanho do
antigo, contendo um cópia exata de tudo que existia nele: casa, árvore,
montanha, oceano. A humanidade toda foi forçada, sob pena de morte, a
trabalhar nessa empresa gigantesca.
Começaram por construir a base sobre a qual iria ser colocado o
novo globo. E os restos dessa base são o que as senhoras estão vendo
aqui.
Depois começaram a construir o próprio globo, o novo mundo,
vasto como a terra, e quando afinal ficou pronto tudo que havia no velho
mundo foi copiado, com imensa dificuldade.
Naturalmente, era preciso grande quantidade de material, e o
único lugar onde podia ser conseguido era na própria terra antiga. Então
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a terra foi ficando cada vez menor, enquanto crescia o novo globo.
Afinal, para completar o novo mundo tiveram de usar até o último
restinho do velho mundo. Naturalmente, também, toda a humanidade
teve de se mudar para o mundo novo, já que o velho tinha sido todo
usado. Quando Marxentius Communis compreendeu que, apesar de
tudo, as coisas eram as mesmas que sempre tinham sido, enrolou-se em
seu manto e saiu em majestosa atitude. Para onde foi ninguém sabe.
Então as senhoras estão vendo que esta depressão em forma de
cratera, hoje em ruínas, outrora formava a base do globo de Marxentius
Communis, que repousava sobre o mundo anterior. Portanto, as
senhoras precisam visualizar tudo isso ao contrário”
SEGUNDA PARTE
O tempo perdido
Seu Fusi escreveu uma carta seca para Dona Dária, dizendo que
infelizmente, devido à falta de tempo, não poderia mais visitá-la. Vendeu
o periquito para uma loja de animais. Colocou a mãe num bom e barato
asilo de velhos, onde passou a visitá-la uma vez por mês. Nas outras
coisas também seguiu todos os conselhos dados pelo homem cinzento,
convencido de que eram todas idéias suas. Foi ficando cada vez mais
atormentado e irritável, pois achava estranho, apesar de todo o tempo
que economizava, nunca lhe sobrar tempo. O tempo desaparecia
misteriosamente, e nunca mais voltava. Os dias foram ficando mais e
mais curtos, a princípio sem que percebesse, depois ostensivamente.
Antes que o barbeiro desse por isso, mais uma semana tinha se
passado, e outro mês, e outro ano, e depois outro e outro. Já que ele não
se lembrava da visita do agente, deveria ter indagado seriamente de si
mesmo para onde tinha ido todo o seu tempo, porém, como todos os
outros poupadores de tempo, nunca formulou a pergunta. Era como se
uma paixão cega o arrastasse. E quando, por acaso, se deu conta de que
os dias estavam voando mais e mais depressa, só redobrou seus
esforços desesperados para poupar o tempo.
__ Não sei por quê – disse Manu um dia –, mas me parece que
nossos velhos amigos vêm me visitar muito menos do que costumavam.
Há alguns que não vejo há um tempo enorme.
Guido Guia e Beppo Varredor estavam sentados junto dela nos
degraus do anfiteatro, onde crescia o capim, assistindo ao pôr-do-sol.
__ É – confirmou Guido –, é exatamente o que eu também acho.
Menos e menos pessoas querem ouvir minhas histórias. Não é mais
como antes. Alguma coisa está errada.
__ Mas o quê? – indagou Manu.
Guido sacudiu os ombros, e apagou as letras que tinha escrito
numa velha lousa. Algumas semanas antes Beppo Varredor havia trazido
para Manu a lousa que encontrara num monte de entulho. Embora não
fosse nova, é claro, e tivesse no meio uma larga rachadura, ainda podia
ser utilizada. Desde então Guido passava todos os dias algum tempo
ensinando o alfabeto a Manu, e, como esta tinha muito boa memória,
depois de pouco já podia ler direitinho, embora escrever fosse mais
difícil. Beppo Varredor, que ficara pensando na pergunta de Manu,
respondeu:
__ É verdade. Está chegando mais perto. Na cidade já está por
toda parte. Já faz algum tempo que reparei.
__ Reparou em quê? – perguntou Manu.
Beppo pensou um pouco antes de responder:
__ Nada de bom
Fez nova pausa antes de prosseguir:
__ Está esfriando
__ Tolice! – exclamou Guido, passando o braço em torno dos
ombros de Manu, num gesto de consolo. – Seja como for, mais e mais
crianças continuam a vir aqui.
__ É por isso – disse Beppo –, justamente por isso.
__ Que é que você quer dizer? – indagou Manu.
Beppo demorou muito para responder:
__ Elas não vêm para estar conosco. Vêm apenas à procura de um
refúgio.
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rodando por aí, até ficar escuro. Agora a gente quase sempre vem pra
cá.
Com movimentos de cabeça, as crianças concordavam com o que
ela dissera, pois era mais ou menos aquele o padrão de vida de todas.
__ Eu acho ótimo meus pais não terem tempo para cuidar de mim
– disse Franco (embora ele não parecesse nada contente) –, senão eles
começaram a discutir, e acabam me dando uma surra.
De repente o menino com o transístor virou-se para eles e disse:
__ Eu agora estou ganhando muito mais dinheiro pra gastar.
__ Claro – atalhou Franco. – Eles nos dão mais dinheiro para
ficarem livres de nós. Eles não gostam mais de nós, mas também não
gostam mais deles mesmos. Se vocês querem saber: eles não gostam
mais de nada.
__ É mentira! – gritou zangado o garotinho do rádio. – Meus pais
gostam muito de mim. Eles não têm culpa de não terem tempo. É o jeito
que as coisas são. Mas em troca eles me deram este transístor, que
custa muito caro. Isso prova que eles gostam de mim, não?
Ninguém respondeu. E de repente o menino começou a chorar.
Tentou segurar o choro, e esfregou os olhos com aquelas mãos sujas,
porém as lágrimas corriam deixando riscos mais claros nas bochechas
encardidas. As outras crianças olhavam com simpatia ou abaixavam os
olhos. Agora estavam entendendo o garoto. Na verdade, todas sentiam o
mesmo. Todas sentiam que haviam sido abandonadas.
__ É – falou o velho Beppo, após uma longa pausa –, está ficando
frio.
__ Eu acho que daqui a pouco não vou mais poder vir aqui – disse
Paulo, o menino de óculos.
__ Por que não? – indagou Manu, surpresa.
__ Por que meus pais dizem que vocês todos são uns boas-vidas
que não servem pra nada – explicou Paulo. __ Dizem que vocês estão
roubando o tempo que é de Deus, e é por isso que vocês têm tanto
tempo. Dizem que há gente demais como vocês, e é por isso que os
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outros têm menos e menos tempo. E não querem que eu venha mais
aqui, para não ficar igualzinho a vocês.
Algumas crianças, que já tinham ouvido a mesma coisa,
concordaram com um movimento de cabeça.
Guido encarou cada uma das crianças por sua vez:
__ E é isso que vocês também acham de nós: por que continuam
vindo aqui apesar disso?
Seguiu-se um breve silêncio, que Franco rompeu:
__ Eu não ligo. De qualquer jeito, meu velho sempre diz que
quando crescer vou ser ladrão.
__ Ah, é? – perguntou Guido, erguendo as sobrancelhas. __ E você
também acha que nós somos ladrões?
As crianças olhavam para o chão, encabuladas. Por fim Paulo,
examinando com o olhar o velho Beppo, disse baixinho:
__ Meus pais não falam mentira – e ainda mais baixo perguntou: __
Então, você não é? . . .
Ouvindo isso, o velho varredor de ruas ergueu-se ao máximo de
sua altura (que não era muita), levantou solenemente a mão e declarou:
__ Eu nunca – nunca, na minha vida inteira –, nunca roubei o
menor tiquinho de tempo nem de Deus nem dos homens. Isso eu juro, e
Deus é testemunha!
__ Eu também – disse Manu.
__ Eu também – repetiu Guido, muito sério.
Impressionadas, as crianças estavam caladas. Nenhuma delas
duvidava da palavra dos três amigos.
__ E já que estamos nesse assunto, quero dizer mais uma coisa –
continuou Guido. – As pessoas costumavam vir procurar Manu para que
ela, ouvindo o que tinham a dizer, pudesse ajudá-las a conhecerem-se a
si mesmas. Mas agora nem pensam mais nisso. As pessoas gostavam de
vir escutar minhas histórias também, porque as histórias as distraíam
das preocupações. Mas nisso também nem pensam mais. Dizem que já
não têm tempo para essas coisas. Mas vocês já notaram uma coisa
estranha? É realmente muito estranho ver para que eles já não têm
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uma voz rouca cantando. Era Nicolau, aos tropeções. Quando viu a
menina parou, boquiaberto.
__ Oi, Manu! – resmungou, evidentemente encabulado de ser visto
naquelas condições. __ Então você continua viva, hein? E que é que está
fazendo aqui?
__ Procurando você – respondeu Manu timidamente.
__ Ora, mas que anjo . . . – disse Nicolau com um sorriso. __
Imagine só, vir aqui no meio da noite para visitar seu velho amigo
Nicolau! Sabe que há muito tempo estou querendo ir vê-la, mas hoje em
dia não tenho tempo para nada que seja . . .
Fez um gesto vago, e sentou-se pesadamente ao lado de Manu.
__ Vida particular. Você não adivinha o que eu estou fazendo
agora, menina. As coisas não são mais como eram. Os tempos
mudaram. Lá onde estou trabalhando agora eles fazem tudo no dobro da
velocidade. A gente trabalha que é um inferno. Cada dia aprontamos um
andar inteiro, ou mais. É. É muito diferente de antigamente. Eles já têm
tudo projetado, conhecem todos os macetes, e tudo está previsto até
nos menores detalhes . . .
Continuou falando, e Manu ouvindo com atenção. À medida que
ela ouvia, ele ia parecendo menos entusiasmado. De repente parou e
passou pela testa a mão cheia de calos.
__ Tudo isso que eu estive dizendo é um monte de bobagens –
falou de repente, com tristeza. __ Sabe, Manu, eu estou de novo
bebendo demais. Reconheço. Hoje em dia eu muitas vezes passo da
conta. Se não fosse assim eu não podia agüentar aquilo que estamos
fazendo lá. Quero dizer: vai contra a consciência de um operário
honesto. Areia demais no cimento, por exemplo. Vai durar uns quatro ou
cinco anos e aí basta soprar em cima pra cair tudo aos pedaços. Tudo
trabalho ordinário, malfeito! E isso ainda não é o pior. Pior é o tipo de
casas que estamos construindo. Não são casas, são . . . são gaiolas! É da
gente ficar doente . . . Mas, afinal, com que tenho eu de me preocupar?
Enquanto estiver recebendo o meu dinheiro está OK, não é? Mas o que
eu sentia antigamente era outra coisa: costumava ter orgulho do meu
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com uma boneca tão maravilhosa. Quer que eu lhe mostre a maneira
certa?
Manu olhou para ele com uma expressão de surpresa, e fez um
sinal que sim.
__ Eu gostaria de ter algumas coisas mais – disse de repente a
boneca.
__ Está ouvindo? Menina – prosseguiu o homem –, ela mesma até
lhe ensina. É claro que você não pode brincar com uma boneca tão
maravilhosa do mesmo jeito que com outra qualquer. Ela não foi feita
para isso. Você tem sempre que ir lhe dando alguma coisa para poder
brincar. Olhe para isso, menina.
Abriu o porta-malas do carro:
__ Em primeiro lugar, ela precisa de boa quantidade de roupas.
Aqui, por exemplo, está um adorável vestido de noite para ela – pegou o
vestido e jogou para Manu. __ E aqui um casaco de peles feito de mink
verdadeiro, e aqui um pijama de seda, e uma roupa de tênis, e um
conjunto para esquiar, e um maiô de banho, e uma roupa de montaria, e
um penhoar, e outro vestido, e outro, e outro, e mais outro . . .
Ia jogando uma coisa atrás da outra, formando uma pilha cada vez
mais alta entre Manu e a boneca.
__ Então?! – e tornou a esboçar aquele sorriso superficial: __ Com
tudo isso você vai ser capaz de brincar durante muito tempo, não vai?
Ou acha que depois de alguns dias vai perder a graça? Muito bem, nesse
caso só o que você tem a fazer é arranjar mais algumas coisas para sua
boneca.
Tornou a se debruçar sobre o porta-malas do carro, e recomeçou a
jogar coisas para Manu.
__ Aqui, por exemplo, está uma bolsinha de pele de cobra
verdadeira, e dentro um batonzinho de verdade e caixinha de pó-de-
arroz. E aqui uma maquininha de tirar retrato, e uma raquete de tênis, e
isto aqui é uma televisão para boneca que funciona mesmo, e aqui uma
pulseira e um colar e uns brincos, e um revólver de boneca, e umas
meias de seda, e um chapéu com pluma, e um chapéu de palha, e um
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sem que seja essa sua intenção, você é inimiga deles. É isso que você
chama ter amor?
Manu não sabia o que responder. Nunca tinha olhado as coisas sob
esse aspecto. Teve um momento de incerteza: quem sabe ele estava
com a razão.
__ Por isso – continuou o senhor cinzento – é que nós precisamos
proteger seus amigos contra você. Se você gostar realmente deles, vai
nos ajudar. Nós queremos que eles tenham sucesso. Nós somos os
verdadeiros amigos. Não podemos ficar quietos, olhando, enquanto você
os afasta de tudo aquilo que importa. Nós temos que agir para que você
não se meta com eles, e é por isso que estamos dando a você todas
essas coisas lindas.
__ Quem é nós? – perguntou Manu, com os lábios trêmulos.
__ Nós, do Banco Poupa-Tempo. Eu sou o agente BLW/553/c.
Pessoalmente, não desejo a você nada de mal, porém com o Banco
Poupa-Tempo não se brinca.
Nesse momento Manu lembrou-se do que Beppo e Nicolau haviam
dito a respeito de a poupança do tempo ser mania contagiosa, e teve a
horrível suspeita de que aquele senhor cinzento tinha algo a ver com
isso. Como gostaria que seus dois amigos estivessem ali a seu lado . . .
Nunca se sentira tão sozinha. Apesar disso, resolveu não se deixar
assustar, então apelou para toda a sua coragem, mergulhando de
cabeça para o fundo da escuridão vazia atrás da qual o homem cinzento
se tinha escondido.
O homem, com o canto do olho, não a perdia de vista. A mudança
de sua expressão não lhe escapou, e, sorrindo ironicamente, enquanto
acendia um novo charuto no toco do outro, disse:
__ Não adianta resistir. Você não é parada para nós.
Manu agüentou firme.
__ Não há ninguém que tenha amor por você? – sussurrou.
O homem cinzento contorceu-se dolorosamente, e de repente
pareceu encolher. Numa voz sem timbre, como feita de cinzas,
respondeu:
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__ Mas pode ser que a gente não consiga encontrá-los. Talvez eles
se escondam de nós.
__ Isso pode muito bem acontecer – concordou Guido. __ Nesse
caso nós temos é que atraí-los para fora do seu esconderijo.
__ De que jeito? Acho que eles são muito espertos . . .
__ Nada mais simples! – E Guido estourou de tanto rir. __ Vamos
pegá-los com a isca adequada a eles. Se a gente apanha camundongo
com toucinho, é com tempo que temos de pegar os ladrões de tempo. E
isso temos muito. Por exemplo, você poderia ficar sentada aqui, fazendo-
se de isca para atraí-los, e então Beppo e eu saltaríamos de nosso
esconderijo e agarraríamos os tais homens.
__ Mas eles já me conhecem – objetou Manu.
__ Ora, não importa – continuou Guido, fervilhante de novas idéias.
__ Basta a gente fazer alguma coisa. O homem cinzento falou num
Banco Poupa-Tempo. Deve ser um prédio, e certamente deve ficar na
cidade, e só o que temos a fazer é encontrá-lo. E não será difícil, pois
garanto que é um edifício muito esquisito, como um cofre gigantesco
feito de concreto. Já estou até imaginando. Quando o encontrarmos,
vamos entrar, cada um de nós com uma pistola automática em cada
mão, e eu falo: “Entreguem já todo o tempo roubado!”
__ Mas nós não temos pistolas . . . – interrompeu Manu, aflita.
__ Então vamos sem pistolas – respondeu Guido, grandiloqüente.
__ Aí eles vão ficar ainda mais assustados. Nossa chegada já vai bastar
para espalhar o pânico . . .
__ Seria uma boa idéia ter mais gente, e não só nós três, para
encontrarmos mais depressa o Banco Poupa-Tempo.
__ A idéia é ótima – respondeu Guido. __ Nós devíamos mobilizar
todos os nosso velhos amigos, e todas as crianças que costumam vir
aqui. Proponho partirmos imediatamente, nós três, e cada um de nós
conte o caso a cada pessoa que encontrar, e que cada uma passe
adiante as notícias para outras. Vamos todos nos encontrar aqui
amanhã, às três horas, para um grande conselho.
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__ Por que Beppo não queria que Manu contasse o que aconteceu
com ela? – perguntou Franco.
Guido sorriu, respondendo com segurança:
__ Beppo pensa que os homens cinzentos consideram inimigos
todos os que conhecem seu segredo e hão de persegui-los. Eu, porém,
estou certo de que o contrário é que é verdade: todo aquele que
conhece esse segredo se acautela e fica precavido contra eles, de modo
que os homens cinzentos não podem prejudicá-lo . . . isso é óbvio, não
é? Você tem de concordar, Beppo!
Mas Beppo apenas sacudiu vagarosamente a cabeça, e as crianças
ficaram silenciosas.
Guido tomou de novo a palavra:
__ De qualquer forma, uma coisa é certa: temos de ficar unidos
seja para o melhor ou para o pior, e sermos cautelosos, sem deixar que
nada nos assuste. É por isso que torno a perguntar: quem quer juntar-se
ao nosso grupo?
__ Eu! – disse Cláudio, levantando-se, um pouco pálido.
Outros seguiram seu exemplo, meio hesitantes a princípio, depois
com crescente entusiasmo. Afinal, todos os presentes aderiram.
__ E agora, Beppo – perguntou Guido apontando para as crianças
–, que diz você?
__ Muito bem! – respondeu Beppo, inclinando tristemente a
cabeça. __ Eu estou com vocês, é claro!
__ Certo! – e Guido voltou-se de novo para as crianças. __ Vamos
discutir nosso plano de ação. Quem sugere alguma coisa?
Todos puseram-se a refletir, e Paulo, o menino de óculos, falou:
__ Como é que eles fazem? Quero dizer, como é que se pode
realmente roubar o tempo? Como funciona isso?
__ Sim! – gritou Cláudio – afinal que é o tempo?
Ninguém soube responder.
__ De qualquer forma – disse Paulo, tirando os óculos – primeiro
que tudo, temos de encontrar um cientista para nos ajudar. De outro
modo não conseguiremos nada.
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apenas saber de algum de vocês teria uma idéia melhor. Pis bem, agora
vou dizer-lhe o que vamos fazer. – Calou-se por um momento e olhou
demoradamente para os ouvintes, ao redor da arena. Havia muito tempo
que não contava com tão numerosa assistência.
__ Como vocês sabem – continuou – a força dos homens cinzentos
está no fato de poderem agir em segredo, sem serem reconhecidos.
Portanto, o meio mais simples e eficiente para torná-los inofensivos é
cada um conhecer a verdade a respeito deles. Para conseguir isso,
faremos uma imensa demonstração pública, na qual todas as crianças
tomarão parte. Vamos pintar cartazes e faixas, desfilaremos pelas ruas e
convidaremos todo o povo da cidade a vir a este velho anfiteatro a fim
de lhe contarmos tudo. Isso despertará extraordinário entusiasmo;
milhares de pessoas virão aqui, e, quando a imensa multidão estiver
reunida, revelaremos o terrível segredo. Então, no mesmo instante, o
mundo se transformará! Ninguém mais poderá roubar tempo de outro.
Cada qual terá o quanto necessita, pois daí em diante haverá de novo
tempo suficiente para todos. Seremos capazes de realizar isso, meus
amigos, se ficarmos unidos e tivermos uma boa vontade firme. Será que
temos?
A resposta foi uma enorme aclamação de júbilo.
__ Concluindo, pois – terminou Guido –, declaro por unanimidade
que resolvemos convidar a cidade inteira para vir ao velho anfiteatro no
próximo Domingo à tarde. Até lá, temos de conservar o mais absoluto
segredo quanto ao nosso plano. Entendido? É agora, meus amigos, mãos
à obra!
Nos dias seguintes, reinou secreta mas febril atividade entre as
crianças. surgiram potes de tinta, pincéis, papel, pepelão, cola e tudo o
mais necessário, sendo mais prudente que ninguém perguntasse de
onde provinha aquele material.
Algumas crianças fizeram cartazes e faixas enquanto outras, que
tinham boa letra, imaginaram e escreveram frases bem atraentes como
estas, por exemplo:
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Na verdade, havia mais vinte e sete versos que não é preciso citar
aqui.
Uma ou duas vezes, a polícia interveio para dispensar os
manifestadores, quando a passeata interrompia o trânsito. Mas as
crianças não desanimavam: reuniam-se em outro lugar e começavam
tudo de novo. Fora isso, nada ocorreu de maior importância, e apesar da
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polícia encontra nossa querida Manu . . . você sabe o que farão com ela,
não sabe? Sabe onde colocam órfãos perdidos? São levados para um
asilo com grades nas janelas. Você quer que isso aconteça a Manu?
__ Não – sussurrou Beppo, desalentado, o olhar perdido no espaço.
__ Não, não quero! Mas imagine se ela estiver de fato em perigo.
__ Bem – continuou Guido –, suponha no entanto que Manu esteja
apenas dando um giro por aí, e você alerte a polícia. Nesse caso, eu não
queria estar na sua pele, meu velho.
Beppo deixou-se cair numa cadeira junto à mesa, com a cabeça
entre as mãos, e suspirou:
__ Francamente, não sei o que será melhor fazer . . . não sei!
__ De qualquer forma – respondeu Guido –, acho que devemos
esperar até amanhã ou mesmo até depois de amanhã, antes de tomar
alguma iniciativa. Se então, até lá, Manu não tiver aparecido, iremos à
polícia. Mas provavelmente tudo estará resolvido da melhor maneira e
estaremos rindo dessa confusão!
__ Você acha mesmo? – murmurou Beppo, subitamente tomado
por extremo cansaço. Os acontecimentos do dia tinham sido quase
excessivos para um homem de sua idade.
__ Decerto – afirmou Guido. Tirou os sapatos de Beppo, ajudou-o a
atravessar a oficina, levou-o para sua cama, enrolando o tornozelo num
pano molhado, e repetiu baixinho:
__ Vai dar tudo certo! Tudo vai acabar bem!
Quando viu Beppo adormecido, suspirou fundo e deitou-se no
chão, enrolando o paletó para servir de travesseiro. Mas não conseguiu
dormir. Durante toda a noite ficou pensando nos homens cinzentos: pela
primeira vez em sua vida, até agora despreocupada, experimentou o
que fosse o medo.
__ Não compreendo por que nossos carros não foram para diante!
– disse outro.
__ Tampouco eu! – replicou o primeiro. __ O mais importante,
porém, é saber se isso contará como circunstância atenuante quando
tivermos de confessar nosso fracasso.
__ Acha que seremos julgados?
__ Ora, o alto comando por certo não vai ficar satisfeito!
Todos os homens cinzentos ali presentes estavam de cabeça baixa,
encostados ao capô de seus carros, pois agora não haviam mais razão
para que tivessem pressa.
Longe, bem longe, em meio ao labirinto das ruas e praças brancas
como neve, Manu ia seguindo a tartaruga. E, justamente porque iam tão
devagar, a rua parecia deslizar a seu lado, enquanto as casas passavam
voando.
A tartaruga virou de novo uma esquina. Manu acompanhou-a e
ficou imóvel, deslumbrada! Essa rua era inteiramente diversa de todas
as outras.
Era mais uma estreita alameda do que uma rua. De ambos os
lados, as casas muito juntas, com seus inúmeros torreões, balcões e
terraços, mais pareciam palácios de vidro em miniatura, que tivessem
passado séculos sob o mar para emergir agora, de repente, envoltos em
algas marinhas e incrustados de conchas e corais. Todos resplandeciam
suavemente em tonalidades cambiantes como da madrepérola.
A rua terminava diante de uma casa isolada, em cujo centro via-se
uma grande porta de bronze verde com esplêndidos ornamentos.
Manu olhou para a placa da rua, na parede, acima de sua cabeça.
Era de mármore branco e tinha em letras de ouro gravado este nome:
ALAMEDA DO NUNCA.
A menina levara apenas um instante para decifrar as letras, mas a
tartaruga já se achava lá adiante, quase no fim da rua, em frente à
última casa.
__ Espere por mim, tartaruga! – gritou Manu; porém, não pôde
ouvir sua própria voz.
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segundo que ela nos mostrará o caminho desejado para em troca ter de
volta seus amigos.
Os homens cinzentos, momentos antes mergulhados em tristeza,
levantaram a cabeça: havia em cada face um sorriso de triunfo nos
lábios magros. Aplaudiram, e os aplausos ressoaram pelos infindáveis
corredores e galerias como o barulho de pedras rolando num
desmoronamento.
Manu achava-se agora numa sala tão grande como jamais vira:
mais vasta do que qualquer imensa igreja ou do que a mais enorme das
estações de estrada de ferro. Possantes pilares sustentavam o teto alto.
Não havia janelas. A claridade dourada e tênue que cintilava na
extraordinária sala provinha de inúmeras velas, dispostas por toda a
parte, cujas chamas ardiam constante e firmemente como se estivessem
pintadas em cores luminosas e não precisassem de cera para luzir.
Os milhares de sons – zunidos, tique-taques, carrilhões – que Manu
ouvira ao entrar resultavam de inúmeros relógios de todo tamanho e
feitio, colocados em intermináveis prateleiras, ou sobre longas mesas,
consolos revestidos de ouro, e também sob redomas de vidro.
Havia minúsculos relógios de bolso ornados como jóias,
despertadores comuns de metal, ampulhetas, relógios que tocavam
música acompanhada por bonequinhas que dançavam, relógios de sol,
relógios de madeira, de mármore, de vidro, e outros, movidos por um
jato d’água. Nas paredes, estavam pendurados vários tipos de relógios-
cuco, relógios com grandes pesos, relógios com pêndulos que oscilavam
lenta e seguramente, enquanto outros apresentavam pequeninos e
delicados pêndulos que se moviam muito depressa de um lado para
outro. À altura de um primeiro andar, havia um balcão ao redor de toda
106
a seu lado. O perfume da flor parecia-lhe uma coisa que sempre havia
desejado, sem saber o que fosse.
Aos poucos, porém, devagar, muito devagar, o pêndulo começou a
se afastar e, enquanto se distanciava, Manu viu com assombro que a flor
maravilhosa começava a murchar. As pétalas caíam, uma após outra,
mergulhando na escura profundeza. Quando o pêndulo chegou ao
centro, nada restava daquela extraordinária beleza. Naquele exato
instante, porém, outro botão começou a surgir da água, desta vez do
lado oposto, e foi se abrindo à medida que pêndulo se aproximava. Manu
viu que a outra flor maravilhosa ali desabrochava, ainda mais bela do
que a anterior, e deu a volta ao lago para apreciá-la mais de perto.
Era inteiramente diversa da flor antecedente: suas cores pareciam
à menina ainda mais ricas e suntuosas; seu perfume também era outro,
ainda mais delicioso. E quanto mais Manu a contemplava, mais lindos
detalhes nela cobria.
De novo, porém, o pêndulo oscilou para longe e todo aquele
esplendor se desvaneceu, caindo, pétala por pétala, na insondável
profundeza do lago.
Lenta, lentamente, o pêndulo moveu-se para a outra margem, e
desta vez aproximou-se de outro ponto, ligeiramente distante do
anterior, onde começou a surgir novo botão, que foi gradualmente
desabrochando. Extasiada, Manu admirava essa flor – verdadeiro milagre
de beleza –, que superava todas as outras.
Manu quase chorou ao ver também essa perfeição murchar e
desaparecer no lago sombrio. Mas lembrou-se da promessa que fizera a
Mestre Hora e ficou muda.
Então, na outra margem, no lugar onde se achava o pêndulo,
surgia da água outro botão prestes a se abrir.
Aos poucos, a menina foi compreendendo que cada nova flor era
sempre diferente da anterior e que aquela que floria agora lhe parecia a
mais bela de todas.
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TERCEIRA PARTE
A floração das horas
__ Então por que me conta todas essas tolices? Acha que a polícia
é tão idiota que vai acreditar nessas asneiras?
__ Acho que sim! – respondeu Beppo inocentemente. Exasperado,
fora de si, pulou da cadeira, deu um murro na mesa e berrou:
__ Chega! Saia já daqui! Senão mando prender você por
desrespeito à autoridade.
__ Desculpe – murmurou Beppo –, não tive essa intenção, o que eu
queria . . .
__ Fora! – rugiu o agente.
Beppo virou-se nos pés e saiu.
Nos dias seguintes procurou vários outros distritos, mas a cena era
sempre a mesma. Os policiais mandavam-no embora ou diziam-lhe
gentilmente que fosse para casa, enquanto outros tentavam consolá-lo
com promessas para se livrar dele mais depressa.
Certa vez, no entanto, Beppo entrou em contato com um agente
mais velho e com menos senso de humor que seus colegas. Este ouviu
toda a história com fisionomia impassível e declarou friamente:
__ Este homem é maluco. Temos de saber se ele é um perigo para
a segurança pública ou não. Prendam-no numa cela.
Assim, Beppo passou metade do dia na cadeia, até que dois
policiais o levaram de automóvel através da cidade a um grande edifício
branco com grades nas janelas. Não era uma prisão, como a princípio
pensou, e sim um hospital para doentes mentais.
Ali passou por um exame completo. Os médicos especialistas e as
enfermeiras eram gentis com ele; não gritavam nem zombavam,
pareciam até muito interessados na sua história, pois tinha sempre de
repeti-la. Não descobriam doença alguma; contudo, não o deixavam ir
embora. Cada vez que ele perguntava quando poderia sair, diziam-lhe:
__ Logo; mas precisa ficar aqui mais um pouco; nossas pesquisas
não estão completas, porém estão bem adiantadas.
E Beppo, pensando que estavam investigando acerca de Manu,
enchia-se de paciência.
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cada um tirava o que queria, sem ter de pagar nada? Talvez fosse tudo
de graça. Isso explicaria aquela multidão!
Afinal, depois de algum tempo, conseguiu enxergar Nino!
Escondido por trás daquela gente toda, achava-se ao fim do gradil de
metal, diante de uma máquina registradora, e ninguém podia sair sem
passar por ele: era o homem a quem se pagava.
__ Nino! – gritou Manu, acenando com a carta de Guido e tentando
se esgueirar por entre o povo.
Mas Nino não podia vê-la nem ouvi-la. A máquina registradora na
qual batia incessantemente fazia muito barulho e exigia toda a sua
atenção para receber dinheiro e dar troco.
Manu tomou coragem, trepou no gradil e conseguiu furar a fila,
aproximando-se do caixa, o que suscitou reclamação dos fregueses. Ao
ouvir aquele burburinho, Nino levantou os olhos e vendo a menina teve
uma alegre exclamação:
__ Manu! Que surpresa! Enfim você voltou!
Sua fisionomia aborrecida iluminou-se, mas teve de atender à
clientela indignada:
__ Diga a essa garota malcriada que fique na fila como todos nós!
Desaforo! Isso não se faz!
O caixa levantou as mãos, pedindo calma e dirigiu-se à menina
dizendo-lhe:
__ Guido pagará tudo, você come o que quiser, mas, por favor,
agora entre na fila e espere sua vez.
Empurrada para trás, Manu teve de fazer como os outros: apanhou
uma bandeja e, tendo de segurá-la com as duas mãos, sobre ela colocou
Cassiopéia, para escândalo dos que a cercavam.
Passou em seguida pelas vitrinas, escolheu o que queria, e, vendo-
se afinal de novo diante de Nino, perguntou-lhe acerca de Guido.
__ Guido é hoje famoso – respondeu o dono da lanchonete. __
Aparece sempre na TV e fala também no rádio. Nós nos orgulhamos
dele, pois é um dos nossos!
__ Mas por que não procura mais os amigos? – indagou Manu.
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__ Não tem mais tempo para isso, e ninguém mais vai ao velho
anfiteatro – explicou Nino, já meio nervoso com os fregueses que
reclamavam:
__ A fila não pode parar! Que conversa mole é essa aí na frente?
Toca pra diante!
__ Onde é que Guido mora? – insistiu a menina.
__ Dizem que ele tem uma bela casa no meio de um parque, no
Green Hill. Mas agora, Manu, por favor, vá andando!
Embora desejasse ficar ali e saber mais coisas, Manu foi levada
pela onda de gente até uma mesinha, onde colocou a bandeja para
comer. A mesa era muito alta e ela mal enxergava o prato; mesmo
assim, faminta como estava, comeu até o último bocado. Ficou farta,
mas precisava ainda falar com Nino, e o único jeito era entrar de novo
na fila, apanhar outra bandeja e escolher outros pratos.
Quando finalmente chegou ao caixa, pediu notícias de Beppo. Nino
contou-lhe que Beppo ficara muito inquieto por causa dela e que fora à
polícia, pedindo auxílio para procurá-la.
__ Vivia falando em homens cinzentos, ou coisa parecida, e foi
então internado num hospital – disse Nino –, depois não soube mais
nada dele.
Os clientes se impacientavam com a conversa que fazia parar a
fila:
__ Isto aqui é lanchonete rápida ou sal de espera? – perguntou
alguém. E novamente Nino pediu à menina que fosse andando.
Manu não teve outra coisa a fazer senão acompanhar o
movimento, encontrar a custo uma vaga e comer outro almoço, que
desta vez não teve o sabor do primeiro . . . não lhe ocorria, porém, a
possibilidade de deixar restos no prato.
Queria ainda descobrir o que acontecera com as crianças que
costumavam visitá-la, e a única maneira de se aproximar de Nino para
obter informação era sempre o mesmo caminho; outra fila, outra
bandeja, outro almoço, para evitar que o pessoal se zangasse com ela.
145
Assim, Manu ficava horas seguidas, parada num ponto, para afinal
continuar andando. Oh! Como Cassiopéia fazia falta! A tartaruga lhe
faria ver com segurança: “ ESPERE ” ou “ VÁ ADIANTE ”. Sozinha porém
receava perder Beppo tanto esperando quanto caminhando . . . e não
sabia o que fazer.
Procurava também encontrar seus pequenos amigos, mas não via
crianças em parte alguma, e lembrou-se do que Nino lhe contara sobre
os depósitos de crianças. o fato de a própria Manu nunca ter sido levada
para lá, pela polícia ou por algum adulto, devia-se à constante vigilância
das homens cinzentos, aos quais isso não convinha.
Uma vez por dia, costumava comer alguma coisa na lanchonete de
Nino, sempre muito ocupado, com muita pressa, como da primeira vez,
e com quem não conseguia conversar.
As semanas transformaram-se em meses, e Manu continuava só.
Certa tarde, ao crepúsculo, encostara-se à balaustrada de uma ponte,
quando viu a distância, em outra ponte, um vulto magro e curvado,
varrendo, varrendo sem parar, que lhe pareceu ser Beppo. Gritou por
ele, acenou com as mãos e pôs-se a correr para encontrá-lo; mas
quando chegou ao local, o homem tinha desaparecido.
“Não devia ser Beppo”, pensou a menina. Não era desse jeito que
ele varria!”
Às vezes ficava em casa, sem sair do anfiteatro, numa súbita
esperança de que Beppo pudesse de repente passar por lá para saber se
ela tinha voltado. E, com medo de um desencontro, escreveu em letras
bem grandes nas paredes do seu quarto: “JÁ VOLTEI”. Palavras que
ninguém, senão ela mesma, jamais leria.
Uma coisa, no entanto, nunca a abandonou – a lembrança viva,
sempre presente, da flores, da música, de tudo quanto acontecera com
Mestre Hora. Bastava-lhe fechar os olhos e escutar seu coração para
rever as brilhantes, magníficas cores, e ouvir a música das esferas. Tão
facilmente quanto no primeiro dia, era capaz de dizer as palavras e
entoar as melodias, embora estas variassem constantemente e nunca se
156
Não, não queria mais vê-lo, nem ali nem em local algum. Qualquer
que fosse sua proposta, não beneficiaria realmente nem a ela nem a
seus amigos. Mas onde poderia esconder-se dele?
O lugar mais seguro parecia-lhe ser no meio da multidão. Já tinha
verificado que a gente passando nas ruas não dava atenção nem a ela
nem ao homem cinzento. Mas caso ele quisesse agredi-la, ela gritaria e
certamente o povo viria em seu socorro. Além disso, dizia consigo
mesma, seria mais difícil encontrá-la no meio de muita gente.
Durante o resto da tarde e pela noite adentro, Manu juntou-se pois
à turba de pedestres nas ruas e praças mais movimentadas. Verificou
então que tinha feito um grande círculo: voltara ao ponto de partida.
Uma Segunda e uma terceira vez retomou o mesmo caminho, deixando-
se simplesmente arrastar pela onda do povo apressado.
Andara o dia inteiro, e seus pés estavam doendo de cansaço.
Fazia-se cada vez mais tarde, e a menina, já quase dormindo, continuava
a andar, andar, andar.
“Só um momento de repouso”, pensou ela, afinal, “um
momentinho apenas, e ficarei mais alerta!”
A certa altura, viu junto ao meio-fio uma camioneta para entrega
de encomendas, sobre a qual se empilhavam caixas e sacos vazios.
Manu instalou-se nela, recostando-se num saco, que lhe pareceu muito
fofo. Ergueu os pés doloridos, escondeu-os debaixo da saia e sentiu-se
bem! Suspirou de alívio, acomodou-se e antes que o percebesse,
exausta, caiu num profundo sono.
Foi, porém, perseguida por sonhos aflitivos. Viu o velho Beppo
usando sua vassoura como uma longa vara de equilibrista, enquanto
andava numa corda que oscilava sobre um abismo sombrio, e cujas
extremidades perdiam-se na escuridão. “Onde está a outra ponta? Não
consigo encontrar a outra ponta!”, gritava ele. Manu queria ajudá-lo,
mas ele não a ouvia: estava muito longe e muito alto.
Depois, viu Guido puxando de sua boca uma infindável tira de
papel. Por mais que ele puxasse, a tira não tinha fim e também não se
rasgava. Guido já se achava cercado por montanhas de papel e olhava
161
para Manu com cara de súplica, como se fosse sufocar-se, caso ela não o
salvasse. A menina procurou correr em auxílio, mas ficou com os pés
enredados nas fitas de papel e quanto mais se esforçava por libertar-se
mais se emaranhava.
Viu em seguida as crianças. Estavam achatadas como cartas de
baralho e cada carta apresentava um padrão de pequenas perfurações.
As cartas eram embaralhadas e depois tinham de se ordenar sozinhas
para serem outra vez perfuradas com novos orifícios. As crianças-
baralhos choravam silenciosamente. Foram porém logo embaralhadas
de novo, ciando uma sobre a outra com um ruído de matraca.
Manu tentava gritar: “Parem, parem!” Mas o barulho sufocava sua
voz débil e tornava-se cada vez mais forte, mais forte, a ponto de
acordá-la.
No começo, não sabia onde se encontrava, era noite escura:
lembrou-se em seguida de que tinha subido na camioneta. Esta se
pusera em movimento e o motor é que fazia aquele barulho. Manu
enxugou as faces molhadas de lágrimas. Onde estaria?
Talvez a camioneta já estivesse em movimento há algum tempo,
sem que ela o percebesse. Atravessaram uma parte da cidade
inteiramente deserta, àquela hora tardia. Não se via vivalma pelas ruas
e os edifícios estavam mergulhados na escuridão.
O carro não ia em grande velocidade e, sem refletir, Manu pulou
no solo. Queria voltar para as ruas movimentadas, onde se sentiria mais
segura contra os homens cinzentos. Mas lembrou-se de seus sonhos, e
ficou parada.
Recordando-se de tudo que sonhara, renunciou a fugir: até o
momento, só havia pensado em si mesma, na sua solidão, nos seus
temores, no meio de se salvar. Na realidade, porém, eram seus amigos
que precisavam de ajuda e era ela quem os podia auxiliar. Por mais
remota que fosse a possibilidade de os homens cinzentos os libertarem,
ela devia pelo menos tentar.
Quando chegou a essa conclusão, sentiu misteriosa mudança
dentro de si. Seu medo, seu desamparo tinham atingido o máximo, e
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A primeira coisa que Manu fez foi abrir a portinha interna com o
nome de Mestre Hora. Correu em seguida pela galeria, onde estavam
grandes estátuas de pedra, e abriu a enorme porta de bronze; teve de
182
__ Quer dizer que, se eu tocar a porta com a flor das horas, ela se
fechará? – sussurrou Manu.
“É O QUE VOCÊ VAI FAZER”, apareceu nas costas da tartaruga.
Como Cassiopéia afirmava antecipadamente que Manu o faria, ela
podia realmente fazê-lo. Colocou então cuidadosamente a tartaruga no
chão, depois enfiou dentro do casaco a flor, que já começava a murchar
e perdera várias pétalas.
Sem que os homens cinzentos a percebessem, pôs-se a rastejar
sob a mesa de conferência, e sempre de gatinhas chegou até sua
extremidade. Estava agora entre os pés dos ladrões de tempo, e o
coração batia-lhe como se fosse estourar. Delicadamente, tirou a flor do
casaco, prendeu a haste entre os dentes e continuou serpenteando
entra as cadeiras, até alcançar a porta aberta.
Tocou-a com a flor ao mesmo tempo que a empurrava. A porta
girou silenciosamente nas dobradiças e fechou-se em seguida com um
estrondo de trovão. O som repercutiu repetidamente na grande sala e
depois ecoou mil vezes nas passagens subterrâneas.
Os homens cinzentos, não supondo nem de longe que alguém
mais – fora eles próprios – tivesse escapado à imobilidade universal,
continuavam sentados, pasmos, olhando para a menina.
Sem perder tempo, Manu passou por eles, precipitando-se para a
saída da sala. Logo, porém, os ladrões, recuperados do choque da
surpresa, puseram-se a persegui-la aos gritos:
__ É aquela abominável menina! É Manu! Ela tem uma flor das
horas e temos de tomá-la; é o único meio de nos salvarmos, do contrário
será o nosso fim.
Enquanto isso, Manu já tinha desaparecido num dos corredores e
os homens iam no seu encalço, conhecendo muito melhor do que ela
todas as ramificações da grande rede sob a terra. A menina corria ao
acaso, e por vezes quase ia de encontro aos adversários, mas sempre
conseguia evitá-los no momento exato.
Cassiopéia também, a seu modo, tomava parte na batalha,
salvando mais de uma vez Manu de ser apanhada. Embora só pudesse
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