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MANU – A menina que sabia ouvir


MICHAEL ENDE

PRIMEIRA PARTE
Manu e seus amigos

1. Uma cidade grande e uma menina pequena

Há muito, muito tempo, quando os homens ainda falavam línguas


muito diferentes das nossas, já existiam grandes e magníficas cidades
em países ensolarados. Ali se erguiam palácios reais e imperiais, abriam-
se largas avenidas, existiam suntuosos templos, com estátuas de ouro e
mármore, feiras nas quais se encontravam à venda mercadorias do
mundo todo, praças bonitas e espaçosos, onde o povo se reunia para
discutir as últimas notícias, ouvir ou fazer discursos.
Havia, sobretudo, amplos anfiteatros , parecidos com os nossos
circos de hoje, feitos de blocos de pedra. As fileiras de assentos para os
espectadores eram colocadas em degraus, às vezes formando um vasto
semicírculo.
Alguns eram grandes como um estádio de futebol, outros eram
menores, só podendo conter algumas centenas de espectadores. Alguns
eram luxuosos, ornamentados com estátuas e colunatas, outros eram
simples e modestos.
Esses anfiteatros não tinham teto, e tudo se passava ao ar livre.
Por isso, nos de luxo eram estendidas tapeçarias bordadas em ouro, de
modo a proteger o público contra o calor do sol ou as repentinas
tempestades. Nos modestos, esteiras de palha ou vime tinham a mesma
serventia. Em suma, os teatros estavam de acordo com os recursos do
povo da terra.
Acompanhando os conhecimentos emocionantes, ou cômicos,
representados no palco, o público tinha a impressão de que,
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misteriosamente, aquela vida fictícia era mais real do que a sua própria
vida cotidiana, e adorava mergulhar nessa outra realidade.
Desde então passaram-se milhares de anos. As nobres cidades
daquele tempo se desmoronaram, os templos e palácios ruíram, o vento
e a chuva, o calor e o frio desgastaram as pedras, e dos grandes
anfiteatros só restaram ruínas. Agora, entre as pedras caídas, os grilos
zunem sua canção monótona, que soa como o suave respirar da terra
adormecida.
Algumas dessas grandiosas cidades antigas, entretanto,
continuam a ser grandes cidades até os dias de hoje. A vida ali mudou,
claro! O povo anda de ônibus ou de automóvel, tem telefone e luz
elétrica. Mas aqui e ali, entre as casas modernas, algumas colunas, uma
arcada, um pedaço de muro, ou mesmo um anfiteatro, são recordações
daquele tempo antigo.
E foi numa dessas cidades que aconteceu a história de Manu.

Para lá do limite da grande cidade, ali onde as casas vão ficando


menores, mais pobres, e começam os campos, escondidas num bosque
de pinheiros existem as ruínas de um pequeno anfiteatro. Mesmo nos
tempos antigos, não fora mais importantes; mesmo naqueles tempos
chegara a ser, digamos, um teatro para o pessoal modesto. Em nossa
época, isto é, na época em se começa a história de Manu, as ruínas
estavam quase inteiramente esquecidas. Só alguns professores de
arqueologia as conheciam, porém não manifestavam maior interesse
porque nada mais havia ali por descobrir, também não era uma atração
comparável a outras da cidade, de modo que só uns poucos turistas
apareciam de vez em quando, subiam pelas meio recobertas pelo capim,
tiravam algumas fotos e iam embora. Voltava então a paz ao semicírculo
de pedras do anfiteatro, e os grilos retomavam o zunido de sua
interminável canção.
Somente o pessoal da terra conhecia aquele estranho edifício. Ali
deixavam pastar suas cabras, as crianças aproveitavam o espaço plano
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do centro para jogar bola, e, às vezes, namorados se encontravam à


noite.
Mas um dia começou a correr o boato de que alguém estava
morando nas ruínas. Era uma criança, provavelmente uma menina, mas
era difícil dizer com certeza porque sua maneira de vestir era meio
esquisita. Seu nome era alguma coisa parecida com Manu.
A aparência de Manu era, de fato, um tanto singular e poderia,
talvez, escandalizar alguém que fizesse muita questão de ordem e
limpeza. Ela era pequena, magrinha, de modo que seria impossível dizer
ao certo se teria apenas oito anos ou já estaria com doze. Seu cabelo
preto, abundante e crespo, parecia nunca ter sido cortado, nem mesmo
penteado. Seus olhos, muito grandes, eram pretos como azeviche, e os
pés eram quase da mesma cor, pois ela andava descalça. Às vezes, no
inverno, ela calçava sapatos, mas eram grandes demais, e um diferente
do outro. Isso acontecia porque Manu não tinha nada que fosse
comprado ou feito para ela: só tinha aquilo que encontrava, ou o que lhe
davam. Sua saia, comprida até o tornozelo, era mistura de remendos e
cerzidos de várias cores, e por cima ela usava um paletó de homem,
grande demais, com as mangas enroladas: Manu não quis cortá-las
porque pensou – com muito juízo – que ela ainda estava crescendo, e
não sabia se tornaria a encontrar outro paletó tão bonito e prático como
aquele, com tantos bolsos.
Por baixo da arena invadida pelo capim, no centro do anfiteatro em
ruínas, restavam umas galerias às quais se podia chegar por um vão
aberto no muro, e era ali que Manu se havia instalado. Uma bela manhã,
alguns homens e mulheres da vizinhança foram visitá-la, para tentar
descobrir alguma coisa a respeito dela. Manu ficou em pé diante deles,
olhando para todos com muito medo, receando que eles quisessem
expulsá-la dali, mas logo percebeu que eram simpáticos. Eles também
eram pobres, e sabiam como é a vida.
__ Muito bem – disse um dos homens –, então você gosta deste
lugar?
__ Gosto – respondeu Manu.
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__ E gostaria de ficar aqui?


__ Gostaria, sim.
__ Mas não tem alguém esperando por você em algum outro lugar?
__ Não.
__ O que eu queria dizer é que você devia voltar para casa . . .
__ Minha casa é aqui mesmo – respondeu ela prontamente.
__ Mas de onde é que você veio, menina?
Manu fez um gesto vago na direção do horizonte.
__ Então, quem são os seus pais? – insistiu o homem.
A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e encolheu
os ombros.
Todos se entreolharam, soltando suspiros.
__ Não precisa ficar com medo – continuou o homem – Nós não
vamos mandá-la embora. Nós queremos ajudá-la
Sem responder, Manu respondeu com a cabeça. Ainda não estava
inteiramente convencida.
__ Você disse que seu nome é Manu, não foi?
__ Disse.
__ É um nome bonito, mas de que eu nunca tinha ouvido falar.
Quem deu esse nome a você?
__ Eu mesma.
__ Você mesma? . . .
__ É.
__ Quando você nasceu?
Manu pensou um pouco, e afinal disse:
__ Acho que eu sempre estive aqui.
__ Mas você não tem um tio, ou uma tia, ou uma avó, ou qualquer
parente, com quem você pudesse morar?
Manu tornou a olhar para o homem, refletindo em silêncio. Afinal,
respondeu baixinho:
__ Eu moro aqui, nesta minha casa.
__ Ótimo – retrucou o homem – , mas você ainda é criança.
Quantos anos você tem?
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Manu hesitou, mas acabou respondendo:


__ Uns cem.
Todos riram, porque pensaram que ela estava brincando.
__ Falando sério, que idade você tem?
Ainda mais hesitante, Manu respondeu:
__ Cento e dois anos.
O pessoal demorou um pouco para receber que ela repetia, ao
acaso, números que tinha ouvido falar, sem ter noção do que
significavam, pois ninguém lhe havia ensinado a contar.
__ Escute – disse o homem, depois de ter consultado um outro. –
Você se incomodaria se nós avisássemos à polícia que você está aqui?
Você podia ser colocada num asilo infantil, onde teria boa comida, podia
aprender a ler, escrever, somar, e uma porção de outras coisas, que tal
a idéia?
Manu murmurou apavorada:
__ Não. Eu não quero ir para lá. Eu já estive lá. Tinhas outras
crianças também tinha grades nas janelas. E todos os dias um de nós
levava uma surra, sem razão nenhuma. Então, uma noite eu pulei o
muro e fugi. Não quero voltar para lá . . .
__ Compreendo muito bem – disse um velho, balançando a cabeça,
e todos o imitaram, declarando que compreendiam perfeitamente.
__ Muito bem – disse uma mulher – , mas você ainda é pequena.
Alguém tem que cuidar de você.
__ É. Eu vou cuidar de mim – respondeu Manu, aliviada.
__ Mas você é capaz? – perguntou a mulher
Manu ficou quieta, pensando, depois disse com voz suave:
__ Eu não preciso de muita coisa . . .
O pessoal tornou a suspirar e a se consultar com os olhos,
gesticulando com a cabeça.
__ Sabe, Manu – recomeçou o homem que tinha falado primeiro –,
nós achamos que se podia dar um jeito de você vir morar na casa de um
de nós. É verdade que ninguém tem muito espaço, e quase todos têm
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bandos de crianças que precisam comer, mas afinal . . . uma a mais ou a


menos não faz grande diferença. Que é que você diz disso?
__ Muito obrigada – respondeu Manu, sorrindo pela primeira vez. –
Muitíssimo obrigada. Mas vocês não podiam me deixar ficar morando
aqui?
O pessoal cochichou, discutiu, mas por fim todos concordaram.
Afinal de contas, a menina poderia tão bem morar ali como na casa de
algum deles, e assim todos poderiam cuidar de Manu. Seria mais fácil do
que se um só ficasse incumbido disso.
Começaram imediatamente a fazer uma limpeza a fundo na
galeria meio em ruínas onde Manu morava, e arrumar o melhor possível.
Um homem que era pedreiro fez para ela um fogãozinho de pedra, e de
um velho cano enferrujado fizeram uma chaminé. Aproveitando uns
caixotes, um velho carpinteiro construiu uma mesinha com duas
cadeiras. Por fim, as mulheres trouxeram uma cama enferrujada, um
colchão meio rasgado e umas cobertas. A galeria de pedra debaixo do
anfiteatro estava transformada numa residência bem jeitosa. O pedreiro,
que era dado a artista, pintou na parede um bonito quadro de flores.
Pintou até uma moldura em volta e o prego no qual o quadro ficaria
pendurado.
Depois chegaram os filhos daquela gente, cada um trazendo aquilo
que tinha poupado da sua comida: um trouxe um pedacinho de queijo,
outro um pãozinho, outro uma fruta, e assim por diante. E como eram
muitas crianças, vieram tantas, que por fim armaram uma festinha no
anfiteatro, para festejar a chegada de Manu. Foi aquele tipo de festa
alegre, que talvez só gente muito pobre sabe apreciar devidamente.
Assim começou a amizade entre Manu e seus vizinhos.

2. Um dom raro e uma briga comum


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Dali em diante tudo correu bem com Manu, pelo menos em sua
opinião. Ela sempre tinha alguma coisa para comer, às vezes mais,
outras vezes menos, dependendo do que o pessoal pudesse poupar.
Tinha um teto por cima da cabeça, uma cama, e se sentisse frio podia
acender um fogo. E o mais importante de tudo: tinha muitos bons
amigos.
Parecia que a sorte tinha sido de Manu, que encontrara gente tão
amiga, e era isso mesmo que ela pensava. Entretanto, os outros logo
perceberam que a sorte tinha sido dele também. Precisavam de Manu e
ficavam se perguntando como é que até então se tinham arrumado sem
ela. À medida que o tempo passava, a menina tornava-se mais
necessária, que eles chegavam a recear que um belo dia, quando
acordassem, não a encontrariam mais.
Foi por isso que constantemente Manu passou a ter visitas em
casa. Havia sempre alguém sentado perto dela, conversando com ar
muito interessado. Quem precisasse dela, mas não pudesse ir até lá,
mandava buscá-la. E, se alguém ainda não tivesse percebido que
precisava dela, ouvia logo o conselho:
__ Ora, por que não vai falar com Manu?
Na verdade, Manu não tinha bons conselhos para dar às pessoas, e
nem sempre encontrava palavras certas para dizer. Ela não era também
uma pessoa divertida que cantava ou dançava ou tocava algum
instrumento. Nem tinha poderes para ver o futuro.
O que Manu sabia fazer, melhor do que qualquer outra pessoas,
era ouvir. Seria um erro supor que isso é coisa que qualquer um pode
fazer. Ao contrário, muito poucas pessoas sabem ouvir de fato. E a
maneira como Manu ouvia era realmente fora do comum.
Manu ouvia de um jeito que fazia as pessoas pouco inteligentes
terem repentinamente idéias brilhantes. Ela não dizia, nem perguntava,
nada que pudesse pôr tais idéias na cabeça das pessoas; ela ficava
simplesmente ali sentada, ouvindo com atenção e toda simpatia. Ao
mesmo tempo costumava fitar a pessoas com seus grandes olhos
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negros, dando-lhe a impressão de que as idéias que surgiam haviam


nascido espontaneamente.
Ela ouvia de um jeito que fazia as pessoas preocupadas ou
hesitantes de repente saberem exatamente aquilo que queriam; os
tímidos, de repente, sentiam-se à vontade e confiantes, os desgraçados
e oprimidos de repente sentiam-se felizes e cheios de esperança.
Quando alguém percebia que até então sua vida era sem sentido e ele
próprio um fracasso total, e que era apenas um ser entre milhões, sem
importância alguma, e tão fácil de ser substituído quanto um prato
quebrado, ia procurar a menina e contar-lhe tudo isso. Então, à medida
que ele contava as suas desventuras, ia percebendo que, não importa o
que ele fosse, só havia uma pessoa assim no mundo inteiro, e por isso
mesmo ele era importante para o mundo naquele seu jeito próprio.
Era essa a maneira de ouvir de Manu.

Um dia, dois homens foram ao anfiteatro procurar Manu. Eram


inimigos jurados e, embora fossem vizinhos próximos, recusavam-se a
falar um com o outro. Outras pessoas tinham-lhes aconselhado procurar
Manu, pois não era possível viver brigados assim, e, embora, a princípio
ambos recusassem, acabaram por consentir, a contragosto.
Agora estavam ali sentados, em lados opostos da arena,
emburrados, calados, hostis. Um deles era o pedreiro que havia
construído o fogão para Manu e pintado o quadro de flor na parede do
“salão”. Chamava-se Nicolau, e era corpulento , com um bigode preto
revirado nas pontas. O outro, magro, com um aspecto sempre cansado,
era Nino, dono de um pequeno bar-restaurante no subúrbio, onde os
principais fregueses eram uns velhinhos que pediam um copo de vinho e
ficavam horas inteiras evocando os tempos antigos. Nino e sus mulher,
Liliane, também eram amigos de Manu, e costumavam levar-lhe coisas
gostosas para comer.
Quando Manu percebeu que os dois homens estavam brigados,
ficou um momento sem saber qual abordar primeiro. Afinal, para não
ofender nenhum, sentou-se numa pedra a igual distância de ambos,
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olhando para um e para outro, aguardando os acontecimentos. Muitas


coisas levam tempo, e tempo era a única riqueza que Manu possuía.
De repente Nicolau levantou-se e disse:
__ Vou-me embora. Vindo aqui mostrei minha boa vontade, mas
como você pode ver, Manu, o sujeito é teimoso. Não adianta esperar
mais.
E, de fato, virou-se para ir embora.
__ Adeus, e vá pela sombra . . . – gritou Nino – Para começar, você
não devia ter vindo: não pense que eu ia apertar a mão de um
trapaceiro.
Nicolau virou-se nos pés, vermelho de raiva feito um peru:
__ Quem é que é trapaceiro? – perguntou, avançando para Nino –
Só quero ouvir dizer isso outra vez . . .
__ Vou dizer quantas vezes quiser – berrou Nino – Acho que você
pensa que, sendo um brutamontes, ninguém tem coragem de dizer a
verdade na sua cara. Pois eu tenho, e digo para você e para quem quiser
ouvir. Tá bom, avance, avance e venha me matar, como você já tentou
uma vez.
__ Gostaria de ter conseguido – rosnou Nicolau, fechando os
punhos – Está vendo, Manu, está vendo como ele mente e calunia a
gente . . . O que fiz foi só agarrá-lo pelo colarinho e meter essa cara na
tina da lavagem de pratos, atrás daquele restaurante imundo dele.
Aquilo não dava nem para afogar um rato – E, virando-se para Nino,
gritou:
__ Infelizmente, está se vendo que você continua vivo . . .
As mais incríveis acusações continuaram a ser lançadas de um
lado para outro, embora Manu não conseguisse entender do que se
tratava e por que os dois estavam tão furiosos um com outro. Aos
poucos, entretanto, foi ficando evidente que Nicolau havia cometido
aquele ato terrível porque Nino tinha-lhe dado uns bofetões diante dos
fregueses, no bar, e isso porque Nicolau havia tentado quebrar toda a
louça de Nino.
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__ Isso é pura mentira! – exclamou Nicolau, zangado – Eu atirei na


parede um jarro só, e que já estava rachado.
__ Mas era meu jarro, não era? – disse Nino – e você não tinha o
direito de fazer uma coisa dessas.
Mas Nicolau estava convencido de que o direito estava de seu
lado, porque antes disso Nino havia lançado a dúvida sobre sua
competência profissional de pedreiro-construtor.
__ Sabe o que ele falou de mim? – gritou para Manu – Disse que eu
nunca consegui erguer uma parede reta porque estou bêbado vinte e
quatro horas por dia e que meu tataravô era igualzinho a mim e que foi
ele quem construiu a torre inclinada de Pisa!
__ Ora, Nicolau, isso era só brincadeira – atalhou Nino.
__ Que brincadeira! – rosnou Nicolau – não acho graça em
brincadeiras desse tipo . . .
Aí então descobriu-se que a “brincadeira” de Nino era para pagar
Nicolau na mesma moeda: uma bela manhã aparecera pintado em letras
vermelhas, na porta do bar, um trocadilho no qual Nino não achara
graça nenhuma.
Começaram então a discutir qual das duas “brincadeiras” era a
mais engraçada, e cada vez se enfureciam mais.
De repente os dois pararam. Manu estava olhando para eles, de
olhos arregalados, mas nenhum dos dois entendia bem o significado
daquele olhar. Será que ela estava rindo deles? Ou estava triste? A
expressão dela não deixava adivinhar, mas, de repente, pareceu aos
homens que se estavam vendo como que refletidos num espelho, e
começaram a ficar envergonhados.
__ Muito bem – disse Nicolau –, eu não devia ter pintado aquilo na
sua porta, Nino. Mas eu não teria feito isso se você não tivesse recusado
me servir. Isso é contra a lei, sabe, porque eu sempre paguei direito e
você não tinha nada que me tratar daquele jeito.
__ Ah, não tinha! – retrucou Nino – Não se lembra do caso do Santo
Antônio? Ah, está ficando encabulado . . . Me deu o golpe, e eu não me
conformei com isso.
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__ Dei, é? – gritou Nicolau, furioso outra vez – Quem deu foi você,
mas não conseguiu me tapear.
O fato é que na parede do barzinho do Nino havia uma imagem de
Santo Antônio, que ele tinha recortado de uma revista e emoldurado. Um
dia Nicolau quis comprar a imagem, dizendo que a achava linda; Nino foi
negociando até conseguir que Nicolau desse em troca o seu rádio, e
ficou rindo por dentro, convencido de que tinha levado a melhor.
Fechado o negócio, aconteceu que, entre a imagem e o papelão de
trás do quadro, apareceu uma nota de alto valor que Nino nunca tinha
visto. Então ele sentiu que, afinal de contas, tinha tomado prejuízo, e
ficou muito aborrecido. Quis exigir de Nicolau a devolução da nora
porque não fazia parte da venda. Nicolau recusou, e daí por diante Nino
não quis mais servi-lo.
Depois que remontaram à causa inicial da briga, os dois homens
ficaram em silêncio, até que Nino falou:
__ Diga com toda franqueza, Nicolau: antes de nós fazermos o
negócio você já sabia daquela nota, ou não?
__ Claro que sabia. Se não, não tinha feito o negócio, tinha?
__ Então você há de confessar que me tapeou.
__ Como? Você não sabia mesmo que a nota estava ali?
__ Não. Juro que não.
__ Está vendo só . . . Então é você que quis me dar o golpe,
recebendo o meu rádio em troca de um pedaço de jornal que não valia
nada.
__ Mas como é que você ficou sabendo da nota?
__ Eu tinha visto um freguês enfiar ali, em homenagem a Santo
Antônio.
Nino mordeu o beiço.
__ E valia muito?
__ Exatamente o valor do meu rádio.
Então os dois começaram a rir. Desceram os degraus de pedra,
encontraram-se no meio da arena, apertaram-se as mãos e trocaram
palmadas nas costas. Depois, ambos abraçaram Manu, dizendo:
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__ Muito, muito obrigado.


Quando afinal foram embora, Manu ficou acenando com a mão até
que desaparecessem, muito contente porque seus dois amigos tinham
feito as pazes.
Noutra ocasião um menino pequeno levou para Manu seu canário
porque este não queria cantar. Aí a tarefa foi dura. Manu teve de ouvir o
canário uma semana inteira antes que ele recomeçasse a chilrear e
cantar.
Manu ouvia tudo com atenção: gatos, cachorros, gafanhotos e
sapos, até a chuva e o vento nas árvores, e tudo isso tinha sua maneira
de lhe falar.
Algumas noites, quando todos os seus amigos já tinham ido
embora, ela ficava sentada, sozinha, no grande anfiteatro de pedra,
debaixo do céu estrelado, simplesmente ouvindo o grande silêncio.
Sentia-se colocada no centro de algum vasto ouvido que escutasse
a música das estrelas, e parecia-lhe estar envolvida por uma harmonia
suave mas poderosa que ia direto ao seu coração.
Em noites assim, ela sempre tinha sonhos lindos.

3. Uma tempestade imaginária e um temporal verdadeiro

Manu ouvia às crianças com tanta atenção quanto aos adultos,


mas havia outra razão para as crianças gostarem ainda mais de ir ao
anfiteatro. Elas nunca se tinham divertido tanto com os jogos e
brincadeiras como agora que Manu estava ali. Não havia um ó momento
de tédio.
Na verdade, Manu não tinha idéias fabulosas: ela simplesmente
estava ali e tomava parte das brincadeiras. Isso é que, não se sabe por
quê, motivava as próprias crianças a terem idéias formidáveis. Cada dia
inventavam brincadeiras novas, uma sempre melhor do que a outra.
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Certa vez, num dia quente e abafado, dez ou onze crianças


estavam sentadas nas pedras, esperando por Manu, que tinha ido dar
uma voltinha para explorar a região, como às vezes fazia. No horizonte
as nuvens eram escuras e baixas: parecia que dali a pouco ia desabar
um temporal.
__ Eu acho que vou pra casa – disse uma menina que levava a
irmãzinha – Tenho medo de relâmpago e trovão.
__ E quando você está em casa? – perguntou um garoto de óculos
– Quando está em casa não tem medo?
__ É. Também tenho . . .
__ Então fique aqui, que dá na mesma – disse o menino.
A menina fez que sim com a cabeça, mas dali a pouco disse:
__ Quem sabe Manu não vai mais voltar.
__ E daí? – falou o outro garoto, de aspecto meio relaxado e sem
trato – Nós podemos brincar sem ter que esperar a chegada de Manu.
__ Está certo. Mas vamos brincar de quê?
__ Ah, não sei. De qualquer coisa . . .
__ Qualquer coisa não quer dizer nada. Quem é que tem alguma
idéia?
__ Eu tenho – disse um menino gordo, de voz fina – Vamos fingir
que esta ruína é um navio de verdade, e nós estamos navegando por
mares desconhecidos, e tendo aventuras . . . Eu vou ser o capitão e você
aí pode ser o piloto, e você um naturalista – um professor –, porque vai
ser uma viagem de descobrimentos. E o resto pode ser a equipagem.
__ E nós, as meninas? Que é que nós vamos ser?
__ Marinheiras. Vai ser um navio do futuro.
A idéia parecia excelente. Começaram a brincar, mas não paravam
de discutir, e a brincadeira não ia adiante. Dali a pouco estavam todos
novamente sentados nas pedras, esperando.
Por fim Manu chegou.

A água assobiava ao longo da proa. O navio de pesquisa, Argo,


balançava suavemente à medida que atravessava as ondas, a todo o
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vapor em direção ao mar de Coral. Desde tempos imemoriais navio


nenhum se atrevera a atravessar aquelas águas perigosas, que
escondiam inúmeros bancos de areia, recifes de coral e estranhos
monstros marinhos. Pior de tudo era o chamado Ciclone Incessante, um
perpétuo furacão que varria as águas como se fosse uma fera cruel e
ardilosa em busca de sua presa. Seu rumo era caprichoso, mas aquilo
que ele apanhava ficava reduzido a palito de fósforo.
O navio de pesquisa Argo fora especialmente equipado para um
encontro com esse tufão erradio. Era todo construído de aço azul,
flexível e elástico feito uma lâmina de espada, e por um processo
especial fora fundido em uma só peça, sem emendas nem soldagem.
Assim mesmo, poucos comandantes teriam a coragem de
enfrentar perigos tão incríveis. O capitão Gordon tinha essa coragem. Do
alto da ponte de comando olhava com orgulho os homens e mulheres de
sua tripulação, todos especialistas experimentados em seus campos.
Ao lado do capitão estava o primeiro-oficial, Don Melu, típico lobo-
do-mar que já sobrevivera a cento e vinte e sete furacões.
Atrás deles, na casa de navegação, estava o Professor Eisenstein,
o chefe científico da expedição, com seus dois assistentes, Maurino e
Dara, cujas memórias prodigiosas valiam por uma biblioteca inteira. Os
três estavam debruçados sobre os instrumentos de precisão, trocando
idéias naquele seu complicado jargão científico.
Um pouco à parte sentava-se, á moda oriental, Mimosa, a bela
moça nativa daquela região. De vez em quando o professor fazia-lhe
perguntas sobre várias características daquelas águas, e ela respondia
no melodioso dialeto bulan, que só o professor entendia.
O objetivo da expedição era descobrir a causa do Ciclone
Incessante e, se possível, destruí-lo, de modo que aquelas águas
voltassem a ser navegáveis. Mas até então tudo era paz, e não havia
prenúncio de tempestade.
De repente um grito do vigia interrompeu as reflexões do
comandante.
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__ Capitão! – gritava ele, as mãos em torno da boca fazendo de


megafone – Ou estou maluco ou tem mesmo uma ilha feita de vidro na
nossa frente!
Imediatamente o capitão e Don Melu olharam pelo telescópio, e o
professor e seus dois assistentes mostraram-se interessados. Só a bela
moça nativa conservou-se calmamente sentada, pois as tradições de sua
tribo proibiam demonstrar curiosidade.
Chegaram logo à ilha de vidro. O professor desceu pela escada de
corda no costado do navio e pisou no chão de vidro. Era horrivelmente
escorregadio, e ele teve imensa dificuldade em manter-se de pé.
A pequena ilha era toda redonda, mais alta no centro, onde
formava como que uma cúpula. Quando o professor atingiu esse ponto
olhou para baixo e pôde ver distintamente alguma coisa brilhando e
vibrando bem no coração da ilha.
Comunicou o que tinha visto aos outros que, na proa, esperavam
ansiosamente.
__ Segundo a evidência obtida por ora – disse Maurino, um dos
assistentes do professor –, eu diria que se trata de um Oggelmump
bistrozinalis.
__ É possível – comentou Dara, outro assistente – , mas também
pode ser uma Shluckula tapetozifera.
O professor Eisenstein endireitou-se, ajustou os óculos e disse:
__ Na minha opinião temos aqui uma variedade do Strumpus
quietshinensus comum, porém não podemos ter certeza antes de
examinarmos por baixo essa criatura.
Imediatamente, três garotas da equipagem (todas elas
mundialmente famosas como nadadoras e mergulhadoras) se
adiantaram, em um momento vestiram seus equipamentos de mergulho,
desceram pelo flanco de navio e desapareceram nas profundezas do
mar azul.
Durante algum tempo só se viam algumas bolhas na superfície da
água, mas subitamente Sandra, uma das mergulhadoras, reapareceu e
disse com voz arquejante:
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__ É uma água-viva gigante! Minhas duas companheiras estão


presas nos seus tentáculos, e não conseguem se soltar. Temos que as
socorrer antes que seja tarde demais.
Dizendo isso, tornou a mergulhar.
Imediatamente cem homens-rãs, sob o comando de seu
experiente chefe, Comandante Franco – apelidado “O Golfinho” – ,
mergulharam na água. Uma tremenda batalha se desenrolava lá
embaixo, e a superfície cobria-se de espuma. Porém, era tal a força da
água-viva gigante, que nem mesmo os cem homens-rãs conseguiam
libertar as mergulhadoras.
O professor franziu a testa e disse aos seus assistentes:
__ Alguma coisa nestas águas parece estimular o crescimento.
Interessantíssimo.
Enquanto isso o Capitão Gordon e Don Melu, seu primeiro-oficial,
tinham examinado a fundo a situação, e agora chegavam a uma
decisão:
__ Voltem! – gritou Don Melu – Voltem todos imediatamente para o
navio. Vamos ter que cortar o monstro em dois pedaços. Não há outro
jeito de salvar as meninas.
O Golfinho e seus homens-rãs voltaram para bordo. O Argo deu
uma breve marcha à ré, e depois avançou, com toda velocidade, em
direção à água-viva. A proa do navio de aço era cortante como navalha.
Sem barulho, e sem qualquer impacto, dividiu em duas metades a
gigantesca criatura. A manobra era perigosa para as duas moças, ainda
enroscadas nos tentáculos, porém, Don Melu tinha traçado seu rumo
com a máxima precisão, e dirigiu o Argo exatamente pelo estreito
espaço entre as duas. No mesmo instante os enormes tentáculos, de
cada lado da água-viva, ficaram pendurados, flácidos, sem força, e as
cativas conseguiram se desvencilhar.
Foram alegremente recebidas a bordo. O Professor Eisenstein
disse-lhes:
__ Foi minha culpa. Eu nunca deveria tê-las mandado lá. Perdoem-
me por tê-las exposto a esse perigo.
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Com uma risada alegre, uma delas respondeu:


__ Não há nada que perdoar, professor. Afinal, foi pra isso mesmo
que nós viemos.
E a outra acrescentou:
__ Perigo . . . é conosco!
Não havia tempo para mais conversa. Ocupados com o trabalho de
resgate, o capitão e a tripulação haviam esquecido de manter o vigia
alerta, e foi assim que só no último momento perceberam que o Ciclone
Incessante tinha surgido no horizonte e estava agora avançando sobre o
Argo. O primeiro e violento assalto envolveu o navio de aço, que foi
atirado para o ar, virado de lado, depois aspirado para o fosso profundo
aberto pelas ondas. Marinheiros menos corajosos ou experimentados
que a tripulação do Argo teriam sidos lançados ao mar, ou desfalecido
de terror ante tal impacto, mas o Capitão Gordon continuava firme na
ponte de comando, como se nada houvesse acontecido, e seus homens
também tinham agüentado firme. Só Mimosa, a bela nativa, não estando
acostumada a essas viagens tempestuosas, tinha se metido em um
barco salva-vidas.
Em questão de segundos, o céu cinzento tornou-se absolutamente
negro. Rugindo e uivando, o ciclone envolveu o navio, jogando-o
alternadamente para o céu e para o fundo do abismo. A cada minuto
que passava sua fúria parecia crescer, enquanto golpeava inutilmente a
nave revestida de aço.
Calmamente o capitão deu suas ordens, e o primeiro-oficial
transmitiu-as à tripulação. Cada homem estava em seu lugar. O
Professor Eisenstein e seus assistentes não haviam abandonados seus
instrumentos científicos, e estavam calculando onde seria o olho do
ciclone, pois era aquele centro calmo que o navio devia ser orientado.
Em seu íntimo, o capitão admirava o sangue frio daqueles cientistas que
não estavam habituados ao mar como ele e sua tripulação.
O coruscar de uma raio ziguezagueou pelo céu abaixo e caiu sobre
o Argo, eletrizando da proa à popa o navio revestido de aço. Tudo o que
se tocasse lançava centelhas, mas o pessoal já vinha sendo treinado
18

durante meses para que pudessem enfrentar uma emergência dessas, e


ninguém ficou preocupado. A única dificuldade foram os cabos, que
começaram a ficar rubros e brilhantes como lâmpadas incandescentes,
mas a tripulação de preveniu contra isso calçando luvas de amianto.
Felizmente a incandescência não durou muito, pois caiu uma
chuva, mas uma chuva como ninguém ainda tinha visto – excetuando-se
talvez Don Melu. A água caía em lençóis compactos, sem espaço para o
ar entre os pingos, de modo que a tripulação foi obrigada a usar
capacetes de mergulho e aparelhos respiratórios. Clarão após clarão,
seguiam-se os relâmpagos; estrondo após estrondo, ribombava o trovão,
enquanto o vento gemia e urrava, as ondas subiam à altura dos mastros,
a espuma voava por toda a parte.
Com as máquinas em força total o Argo abriu seu caminho em
meio à violência primitiva do ciclone. Na casa de máquinas mecânicos e
foguistas faziam esforços sobre-humanos. Tinham se amarrado com
cabos fortes, para evitar que os violentos saltos do navio os lançassem
dentro das fornalhas.
Finalmente chegaram ao ponto central do ciclone, e aí de
depararam com um espetáculo magnífico!
Na superfície da água, que ali era lisa como um espelho porque a
força da tempestade aplainara as ondas, pairava um objeto gigantesco.
Parecia equilibrado numa perna, e seu contorno alargando-se da base
para o topo dava a impressão de um monstruoso pião; mas rodopiava a
tal velocidade que não era possível ver detalhe algum.
__ É um Shumshum gummilastikum! – gritou o professor,
encantado, agarrando os óculos que a chuva teimava em arrancar do
seu nariz.
__ Poderia nos explicar o que isso significa? – resmungou Don Melu
– Nós somos simples marinheiros e . . .
__ Não atrapalhe o professor agora – interrompeu Dara, um dos
assistentes.
__ Esta é a oportunidade única numa vida inteira. Essa criatura
rodopiante data, provavelmente, da aurora da criação. Deve ter mais de
19

um bilhão de anos. A única variedade que conhecemos só pode ser vista


ao microscópio, e só encontra – ocasionalmente – no molho de tomate
ou, ainda mais raramente, na tinta verde. Talvez seja o único espécime
deste tamanho que ainda sobrevive.
__ Mas nossa missão é descobrir a causa do Ciclone Incessante –
disse o capitão, gritando para se fazer ouvir em meio à tempestade – ,
de modo que é melhor o professor começar a ensinar a fazer essa coisa
infernal parar de rodopiar!
__ Isso eu sei tanto quanto você – disse o professor – Até agora a
ciência não teve oportunidade de estudar o assunto.
__ Muito bem – resolveu o capitão – Vamos começar por
bombardeá-lo, e ver o que acontece.
__ Que pena . . . – lastimou o professor – Imagine, bombardear o
único espécime vivo do Shumshum gummilastikum! – Mas o canhão
antimonstro já estava apontado para o vasto pião.
__ Fogo! – ordenou o capitão.
Uma longa língua de chama azul saltou do cano duplo, sem
barulho algum, é claro, pois, como todo mundo sabe, os canhões
antimonstros bombardeiam com proteínas.
O míssil brilhante partiu a toda velocidade em direção ao
Shumshum, porém o enorme objeto o fez desviar e, após ter rodopiado
várias vezes, mais e mais rápido, à volta do Shumshum, o míssil foi
aspirado para o alto e desapareceu atrás das nuvens negras.
__ Assim não vai! – gritou o Capitão Gordon – Temos que chegar
mais perto dessa coisa aí.
__ Não podemos chegar mais perto – retrucou, também gritando,
Don Melu – As máquinas já estão trabalhando a toda a velocidade, e isso
é apenas suficiente para impedir que a tempestade nos arraste para
trás.
__ Alguma sugestão, professor? – perguntou o capitão. Mas o
professor não fez mais que sacudir os ombros. Nem ele, nem seus
assistentes, tinham idéia alguma. Parecia que a expedição teria de ser
abandonada, havendo falhado em sua missão.
20

Nesse momento o professor sentiu um puxão na manga. Era


Mimosa, a bela nativa.
__ Malumba! – disse ela, com um gesto gracioso – Malumba oisitu
sono. Erwini samba insaltu lobindra. Kramuna heu heni sadogau.
__ Babalu ? – indagou o professor, assombrado – Didi maha feinosi
intu ge goinen malumba ?
A bela jovem nativa acenou alegremente com a cabeça, e
respondeu:
__ Dodo um aufu shulamat wawada
__ Oi, oi – disse o professor, esfregando o queixo com ar pensativo.
__ Que é que ela quer? – indagou o primeiro-oficial.
__ Ela disse que na tribo de seus pais há uma canção muito antiga,
que pode embalar o Ciclone Incessante até fazê-lo adormecer, se
alguém tiver a coragem de cantar para o Ciclone.
__ Não me faça rir . . . – resmungou Don Melu – Quem é que já
ouviu falar nisso, cantar uma canção de ninar para um ciclone?
__ Que acha, professor? – perguntou Dara – Será possível uma
coisa dessas?
__ Não devemos ter preconceitos – retrucou o professor – Nessas
tradições nativas existe, às vezes, um grão de verdade. Talvez haja
certas harmonias que produzam efeito sobre o Shumshum
gummilastikum. Nós não sabemos o suficiente quanto ao seu modo de
vida.
__ Mal não pode fazer – declarou o capitão em tom resoluto –,
então podemos pelo menos tentar. Diga a ela que cante.
O professor Eisenstein virou-se para a bela nativa e disse:
__ Malumba didi oisafal huna-huna wawadu?
Mimosa imediatamente começou a cantar a mais extraordinária
canção, formada apenas por algumas notas e o constante estribilho:

“ Eni meni allubeni


Wanna tai susura teni”
21

Enquanto cantava ia dançando com muita graça, batendo palmas


de acordo com o ritmo da música.
As palavras simples e a música eram fáceis de decorar. Aos poucos
os outros foram aderindo até que toda a tripulação cantava, dançava e
batia palmas no compasso. Era um espetáculo sensacional ver Don
Melu, velho lobo-do-mar como era, e até o professor, cantando e
batendo palmas como crianças no recreio.
E então . . . aconteceu aquilo que nenhum deles acreditara que
pudesse acontecer! O pião gigante começou a rodar mais e mais
devagar, até que parou de vez, e começou a afundar.
Com estrondo as águas se fecharam sobre ele. A tempestade
acabou, a chuva parou, o céu ficou limpo e azul, as ondas se acalmaram.
O Argo estava imóvel no mar transparente como se sempre houvessem
reinado a paz e a alegria.
__ Membros da tripulação – disse o Capitão Gordon, olhando-os,
um por um, com gratidão –, quem é que podia imaginar que nós iríamos
vencer?
Todos sabiam que ele era homem de poucas palavras, portanto
sentiram-se ainda mais gratificados quando ele acrescentou:
__ Tenho orgulho de vocês.

__ Eu acho que choveu de verdade – disse a menina que estava


acompanhada da irmãzinha.
__ Eu estou ensopada.
De fato, o temporal tinha passado, e todas as crianças,
especialmente a menina com a irmãzinha, estavam espantadas de ver
que tinham esquecido completamente do medo de trovão e de raios,
enquanto estava, no Argo.
Durante algum tempo comentaram as aventuras que haviam tido,
um contando ao outro sua experiência pessoal. Depois despediram-se e
foram para casa a fim de trocar aquela roupa molhada.
22

Só uma das crianças não estava plenamente satisfeita com o


desenrolar da brincadeira. Era o menino de óculos. Despedindo-se de
Manu, disse:
__ Assim mesmo, foi uma pena a gente afundar o Shumshum
gummilastikum. Afinal, ele era o único sobrevivente da sua espécie. Eu
gostaria tanto de descobrir mais coisas sobre ele.
Num ponto, entretanto, todos concordaram: não havia brincadeiras
tão boas quanto aquelas que faziam junto com Manu.

4. Um velho silencioso e um jovem tagarela

Mesmo quem tem muitos amigos tem sempre um ou dois que são
mais queridos, e era o que acontecia com Manu.
Ela tinha dois amigos muito especiais, que costumavam ir visitá-
las todos os dias, e com ele repartiam tudo o que tinham. Um era jovem,
o outro, velho, e Manu não saberia dizer de qual deles gostava mais.
O velho chamava-se Beppo Varredor. Na verdade, o seu
sobrenome era outro, mas como trabalhava varrendo as ruas e toda a
gente o chamava “Varredor”, ele também passou a usar esse nome.
Beppo Varredor morava perto do anfiteatro numa cabana que ele
mesmo havia construído com tijolos e folhas de zinco. Era um
homenzinho pequeno e, ainda por cima, corcunda, de modo que parecia
pouco mais alto do que Manu.
Muita gente achava que Beppo não estava muito bom da cabeça,
porque, quando lhe faziam alguma pergunta, ele apenas sorria sem dizer
nada. Isso acontecia porque ele costumava refletir muito sobre a
questão, e, quando achava que não merecia resposta, não respondia.
Quando resolvia que a questão merecia resposta, examinava-a
novamente, levando duas horas, ou até mesmo dois dias, para
responder. Enquanto isso, a pessoa que havia feito a pergunta já se
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tinha esquecido, naturalmente, e aquilo que Beppo lhe dizia depois


parecia fora de propósito.
Somente Manu dispunha de tempo para esperar horas ou dias por
uma resposta, e depois entender o que ele lhe dizia. Ela sabia que ele
demorava tanto porque Beppo fazia questão de nunca dizer alguma
coisa que não fosse verdade. Na opinião dele a infelicidade do mundo é
causada pelas mentiras, intencionais ou não, que as pessoas dizem
porque são desatentas ou porque estão com pressa.
Todas as manhãs, horas antes de o sol nascer, ele ia na sua velha
bicicleta até um grande almoxarifado. Ali esperava, no pátio, com os
companheiros de trabalho, até lhe darem uma vassoura, um carrinho de
mão, e indicarem as ruas que tinha que varrer.
Beppo adorava aquela hora matutina, quando a cidade ainda
estava adormecida, e fazia de boa vontade, e bem feito, o seu trabalho,
sabendo que era coisa muito necessária.
Varria as ruas devagar, mas com muita regularidade, tomando
uma respiração a cada passo e a cada movimento da vassoura: passo,
respiração, vassourada, respiração, passo, respiração, vassourada. De
vez em quando ficava parado, olhando para longe, com ar pensativo,
depois recomeçava seu ritmo.
Enquanto se deslocava assim, uma rua suja na sua frente, um
limpa atrás, acontecia virem à sua cabeça grandes idéias; mas eram
idéias sem palavras, pensamentos tão difíceis de comunicar quanto a
lembrança de um perfume, ou de uma cor vista em sonho. Depois do
trabalho, quando sentava perto de Manu, costumava contar-lhe os seus
altos pensamentos, e, enquanto ela ouvia daquela sua maneira especial,
a língua dele soltava-se e surgiam as palavras adequadas.
__ Sabe como é, Manu – disse ele uma vez –, é assim. Às vezes
você tem a sua frente uma estrada muito longa. Você acha que é
tremendamente longa, e que nunca será capaz de chegar até fim.
Ficou algum tempo olhando para longe, com ar distraído, depois
continuou:
24

__ Isso acontece quando você começa a se apressar e quer


trabalhar mais e mais rápido. Cada vez que você olha, a estrada parece
que não encurtou nada; então a gente se esforça ainda mais, e começa
a ficar aflito, de modo que no fim está exausto e não pode continuar,
enquanto a estrada à sua frente continua tão longa como sempre. Não é
esse o jeito de fazer as coisas.
Pensou um pouco, e continuou:
__ O que se deve fazer é nunca pensar na estrada inteira de uma
vez só. Está entendendo? Você tem que pensa somente no passo
seguinte, na respiração seguinte, na vassourada seguinte, e continuar
sempre pensando só naquilo que vem a seguir.
Houve outra pausa para meditação antes de prosseguir:
__ Fazendo assim dá prazer, o que é importante, e o trabalho sai
bem feito. E é como deve ser.
Após uma última pausa, concluiu:
__ De repente, você se dá conta de que, passo a passo, chegou ao
fim da longa estrada, sem ter percebido e sem ter perdido o fôlego.
Acenou com a cabeça e concluiu, devagar:
__ Isso é importante.
Certa vez, chegou, sentou-se perto de Manu e esta percebeu que
ele refletia profundamente, e tinha alguma coisa especial a dizer. Súbito,
Beppo olhou-a bem nos olhos e disse:
__ Eu nos reconheci
Passou-se muito tempo antes que ele continuasse, baixinho:
__ Acontece às vezes – ao meio dia – quando tudo está adormecido
ao sol. O mundo torna-se transparente – como água cristalina. E pode-se
enxergar até o fundo dele.
Em silêncio, balançou a cabeça e depois continuou, na mesma voz
suave:
__ Existem outras épocas lá embaixo, no fundo.
Calou-se novamente, refletindo, procurando palavras, mas não as
encontrou, pois de repente falou no seu tom habitual:
25

__ Hoje estive varrendo junto à antiga muralha da cidade. No muro


há cinco pedras de cores diferentes, colocadas assim, está vendo? – e
com o dedo riscou na areia um grande T. Com a cabeça de lado, olhou
um momento, e sussurrou:
__ Eu reconheci essas pedras.
Após uma pausa ainda mais longa, prosseguiu em tom hesitante:
__ Elas pertencem a outra época, ao tempo em que a muralha foi
erguida. Muita gente trabalhou nisso. Porém houve duas pessoas que
colocaram aquelas pedras na muralha. Era um sinal, sabe? Eu o
reconheci.
Beppo esfregou os olhos. O que ele tinha a dizer parecia exigir um
grande esforço, pois as palavras saíam com dificuldade:
__ Essas duas pessoas naquele tempo eram muito diferentes.
Afinal, num tom decidido e quase provocante, falou entre os
dentes:
__ Assim mesmo, eu nos reconheci, você e eu. Tornei a nos ver.
Não era à toa que muitas pessoas sorriam ao ouvir Beppo Varredor
dizer coisas desse tipo. Ou, quando ele virava as costas, faziam o gesto
significativo de tocar com o dedo na testa. Mas Manu gostava dele e
dava grande valor às suas palavras.

Outro grande amigo de Manu era jovem e exatamente o contrário


de Beppo Varredor. Era um rapaz bonito, com olhos sonhadores, e
incrivelmente bem-falante. Era sempre espirituoso e alegre, e dava uma
risadas tão gostosas que os outros tinham que rir junto, quisessem ou
não. Seu nome era Girolamo, mas ele era conhecido simplesmente como
Guido.
Guido, como Beppo, tinha o apelido tirado de seu emprego, só
que, na verdade, ele não tinha emprego algum. Mas uma das coisas que
ele fazia, quando aparecia ocasião, era acompanhar turistas, e por isso
ficou conhecido como Guido Guia, embora sua única credencial para
guia fosse um boné pontudo e que nem ao menos era do tipo oficial.
26

Assim que apareciam turistas na vizinhança, enfiava o boné e com


ar muito sério ia falar com eles, propondo mostrar-lhes as ruínas e
explicar tudo. Se os estrangeiros aceitassem, ele começava
imediatamente a discursar, contando as histórias mais fantásticas,
inventando nomes, datas e acontecimentos, deixando o pessoal
atordoado. Alguns visitantes não o tomavam a sério, e viravam as costas
com o ar zangado; porém a maioria tomava aquilo como um Evangelho,
e pagava um bom dinheiro quando Guido estendia o boné.
Os vizinhos se divertiam com os arroubos da fantasia de Guido,
mas de vez em quando tomavam um ar sério e diziam que não era
muito direito receber bom dinheiro por um monte de mentiras.
__ Todos os poetas inventam coisas – dizia então Guido – E, seja
como for, o pessoal recebe alguma coisa em troca do seu dinheiro, não
é? E vou-lhes dizer: recebem exatamente aquilo que querem receber! E
se aquilo que eu conto está ou não está num livro de guia, que diferença
faz? Quem sabe lá se as histórias no livro também não foram
inventadas, só que ninguém se lembra mais?
De outra vez ele disse:
__ Quem sabe o que é verdade e o que não é? Quem sabe o que
aconteceu aqui há mil ou dois mil anos? Você, por exemplo, sabe?
__ Não – confessaram os outros
__ Estão vendo . . . – exclamou Guido – Como é que vocês podem
declarar que minhas histórias são mentiras? As coisas podem ter
acontecido justamente do jeito que eu conto e, nesse caso, o que eu
conto é verdade.
Era difícil encontrar resposta para isso. Na verdade, era sempre
difícil levar vantagem sobre Guido em matéria de argumentação.
Infelizmente, poucos e raros turistas se interessavam em ver o
anfiteatro, de modo que Guido tinha que arranjar também uma porção
de outros empregos. Conforme a oportunidade, servia de guardador de
carros, testemunha de casamento, pajem de cachorros, portador de
cartas de amor, ajudante de enterro, vendedor de souvernirs, fornecedor
de carne para gatos, e muita coisa mais.
27

O sonho de Guido era tornar-se ricos e famoso. Ambicionava


morara num palácio de contos de fadas, rodeado de imenso parque,
comer em baixela de ouro e dormir em lençóis de seda; e já se
imaginava, no futuro, como uma espécie de sol rutilante, cujos raios
ajudavam a aquecê-lo em sua pobreza como se de longe lhe chegasse o
brilho.
__ E vou conseguir – retrucava quando os outros caçoavam de seus
sonhos –, e aí vocês vão se lembrar do que eu dizia . . .
De como fazer para conseguir, não tinha a menor idéia, mas
trabalho sério e perseverança não eram muito do seu agrado.
__ Assim não é vantagem – costumava dizer para Manu – Quem
quiser pode ficar rico desse jeito. Mas olhe só para as pessoas que
venderam corpo e alma, por um punhado de dinheiro – olhe só para ver
como é que ficaram! Eu não vou me deixar prender nessa corrida de
ratos, garanto que não. Ainda que eu às vezes só tenha dinheiro para
um cafezinho, serei sempre eu mesmo – Guido continuará a ser Guido.
Embora pareça impossível existir amizade entre duas pessoas tão
diferentes quanto Guido e Beppo, com pontos de vista tão diferentes
sobra a vida e o mundo em geral, o fato é que Guido e Beppo eram
amigos. O velho Beppo era a única pessoa que nunca criticava Guido por
sua leviandade, e o bem-falante Guido, a única pessoa que jamais
caçoava do velho Beppo. Isso talvez tivesse alguma relação com a
maneira de Manu ouvir os dois.
Nenhum dos três suspeitava que, em breve, uma sombra cairia
sobre sua amizade – não só sobre essa amizade, mas sobre toda a
vizinhança, uma sombra que vinha crescendo mais e mais, e já se
estendera, escura e fria, por sobre a grande cidade.

Era uma espécie de invasão silenciosa e imperceptível, adiantado-


se diariamente, e à qual ninguém se opunha porque ninguém tinha
tomado consciência do fato. Mas os invasores – quem eram eles? Até o
velho Beppo, que reparava em muita coisa que escapava aos outros,
não notou a presença dos homens cinzentos, que vinham ocupando a
28

cidade em número sempre crescente, incansáveis em sua atividade.


Entretanto, não eram invisíveis. As pessoas os viam, porém não
reparavam neles. Tinham o dom misterioso de parecerem tão
insignificantes que, ou as pessoas olhavam sem vê-los ou, se viam,
esqueciam imediatamente a sua aparência. Graças a isso eles
conseguiam trabalhar em segredo, ainda com mais facilidade porque
não precisavam se esconder. E, naturalmente, já que ninguém reparava
neles, não havia preocupação em saber de onde tinham vindo, e
continuavam a vir, pois cada dia surgiam mais.
Circulavam pelas ruas em elegantes automóveis cinzentos,
entravam em todas as casas, encontravam-se em todos os restaurantes.
De quando em quando anotavam alguma cisa em seus caderninhos.
Os homens vestiam-se de cinzento, cor de teia de aranha. Até seus
rostos eram cinza. Usavam chapéu-coco cinzento, fumavam pequenos
charutos cinzentos, e cada um levava uma pasta cinza-aço.
Nem Guido tinha reparado que alguns desses cavalheiros andavam
rondando pelo anfiteatro, escrevendo febrilmente em seus caderninhos.
Somente Manu os havia visto, quando, uma noite, suas silhuetas
escuras destacaram-se nos limites das ruínas. Estavam fazendo sinais,
uns para os outros, depois se juntaram, encostando as cabeças como se
estivessem conferenciando. Não podia ouvir uma palavra. Porém, desceu
pela espinha de Manu um arrepio de frio como nunca ela sentira igual.
Enrolou-se mais no seu paletó, mas não adiantou nada porque não era
um frio comum. Naquela noite, Manu não conseguiu captar a música
distante, que tantas vezes chegava aos seus ouvidos. Mas no dia
seguinte a vida continuou como sempre, e Manu não pensou mais nos
estranhos visitantes. Ela também os esqueceu.

5. Histórias para o público e histórias particulares

Pouco a pouco, Manu tinha se tornado absolutamente


indispensável para Guido. Ele sentia um grande amor (se é que se pode
29

usar tal expressão tratando-se de um rapaz superficial e inconstante)


por aquela menina esfarrapada, e gostaria, de fato, de levá-la consigo a
toda a parte.
Como já dissemos, sua grande paixão era inventar histórias, e era
especialmente nesse terreno que ele passara por uma transformação,
que se percebia nitidamente. Antes algumas de suas histórias não
tinham seqüência: ou ele ficava sem idéias, e continuava repetindo a
mesma história, ou copiava algo que tivesse visto no cinema ou lido no
jornal. Suas histórias se arrastavam, mas desde que conhecera Manu
elas haviam repentinamente criado asas.
Era principalmente quando Manu estava ouvindo que sua
imaginação funcionava.

Chegaram turistas que queriam ver o anfiteatro (Manu estava


sentada nas pedras, um pouco à parte), e Guido começou:

“Senhoras e senhores, como estou certo de que todos sabem, a


Imperatriz Strapazia Augustina viu-se forçada a empreender inúmeras
guerras a fim de defender seu reino contra os constantes ataques dos
Picks e dos Coks. Certa ocasião, após ter subjugado mais uma vez esses
povos, ameaçou exterminá-los se o seu rei, Xaxotraxolus, não lhe
entregasse como indenização o seu peixe dourado. Naquela época,
senhoras e senhores, o peixe dourado era desconhecido nesse país,
porém a Imperatriz Strapazia tinha ouvido contar por viajantes que o Rei
Xaxotraxolus tinha um peixinho que iria se transformar em ouro puro
assim que ficasse grande, e a imperatriz estava resolvida a possuir essa
raridade. Quando soube dessa exigência, o Rei Xaxotraxolus deu uma
risadinha marota, escondeu o verdadeiro peixinho dourado debaixo da
cama, e, em vez dele, mandou para a imperatriz um filhote de baleia
dentro de uma terrina de sopa guarnecida de pedras preciosas.
Devo dizer que a imperatriz ficou meio espantada com o tamanho
do peixe pois ela tinha imaginado o peixe dourado muito menor. ‘Mas’,
pensou, ‘quanto maior, melhor porque então o peixe vai render muito
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mais ouro’. É verdade que no momento o peixe não mostrava qualquer


sinal de ouro, o que a preocupou um pouco, mas o enviado do Rei
Xaxotraxolus explicou que o peixe só ia ficar dourado quando atingisse o
máximo de seu crescimento. Por isso era essencial que o seu
desenvolvimento não fosse prejudicado em nada. Então a Imperatriz
Strapazia teve de se contentar em esperar que o peixe crescesse.
O peixinho ia crescendo dia a dia, consumindo enormes
quantidades de alimento, mas a Imperatriz Strapazia, não sendo pobre,
dava ao peixe tudo que ele conseguisse comer. Foi ficando grande e
gordo. Logo a terrina de sopa ficou pequena demais para ele.
__ Quanto maior, melhor – disse a imperatriz, e instalou-se na sua
banheira. Mas em pouco tempo o peixe já estava grande demais para a
banheira. Foi preciso colocá-lo na piscina da imperatriz, o que foi uma
dificuldade, pois ele agora pesava tanto quanto um boi. Um dos
escravos que estava ajudando a carregá-lo escorregou, e imediatamente
a soberana ordenou que o infeliz fosse atirado aos leões, pois o peixe
era só o que lhe interessava.
Todos os dias ela ficava durante horas sentada à beira da piscina,
olhando o peixe crescer, só pensando no ouro que ia render, pois, como
vocês certamente sabem, ela levava uma vida altamente luxuosa e
nunca tinha tanto ouro quanto precisava.
Continuava murmurando para si própria: ‘Quanto maior, melhor’.
Essas palavras foram declaradas divisa nacional e colocadas em letras
de bronze na fachada de todos os edifícios públicos.
Afinal, até a piscina imperial se tornou muito pequena para o
peixe. Então a Imperatriz Strapazia mandou seu povo construir o edifício
cujas ruínas estamos vendo aqui, senhoras e senhores. Era um
gigantesco aquário redondo, cheio de água até a borda, e havia espaço
bastante para o peixe.
A imperatriz então passava dia e noite vigiando o peixe, para
verificar se já estava virando ouro. Não confiava em ninguém, nem nos
escravos nem nos parentes: tinha medo de que lhe roubassem o
precioso peixe, então ficava ali sentada, emagrecendo dia a dia devido
31

ao medo e à aflição. Nunca fechava os olhos: estava sempre de olhos


fitos no peixe, que espadanava alegremente na água, sem a mais ligeira
intenção de algum dia virar ouro. A imperatriz foi abandonando cada vez
mais os negócios de Estado, e era extamente isso que os Picks e Cocks
estavam esperando. Sob o comando do Rei Xaxotraxolus lançaram um
ataque, e dessa vez conquistaram o país inteiro num instante. Os
camponeses nunca tinham visto um soldado e pouco se incomodavam
de saber quem é que estava governando.
Quando, finalmente, a Imperatriz Strapazia recebeu essas notícias,
soltou aquele lamento tão conhecido: ‘Ah . . . se eu tivesse . . .’
Infelizmente o resto da frase não chegou até nós. O fato é que ela se
atirou dentro deste aquário aqui, e afogou-se junto ao peixe, que fora o
túmulo de todas as suas esperanças. Para comemorar a vitória, o Rei
Xaxotraxolus mandou matar a baleia, e durante uma semana inteira o
povo todo comeu filé frito de baleia.”

Com essas palavras Guido encerrou suas explicações, deixando o


público visivelmente impressionado e olhando respeitosamente para as
ruínas. Só um homem, meio acético, indagou:
__ Quando é que isso tudo se supõe ter acontecido?
Guido, que tinha respostas sempre prontas, não vacilou:
__ Como o senhor sabe, a Imperatriz Strapazia foi contemporânea
do famoso filósofo Noiosiu-o-Velho.
O que perguntara não podia, é claro, confessar que não tinha a
menor idéia de quando teria vivido o famoso filósofo Noiosiu, portanto
pôde apenas responder:
__ Ah . . . muito obrigado.
Todos os turistas estavam encantados. Declararam que a visita ao
anfiteatro tinha valido realmente a pena, e que ninguém nunca lhes
falara dos tempos antigos de maneira tão vívida e interessante.
Modestamente Guido estendeu o boné, e os turistas mostrara-se
mais do que generosos. Até mesmo o cético deixou cair uns níqueis no
32

boné. O fato é que, desde a chegada de Manu, Guido nunca havia


contado duas vezes a mesma história.
Quando Manu estava entre os ouvintes, ele tinha a impressão de
que dentro dele tinha se aberto uma comporta despejando torrentes de
idéias novas e invenções, sem precisar fazer grande esforço para pensar.
Ao contrário, muitas vezes tinha de tentar frear sua imaginação,
para não ir longe demais, como naquela vez em que duas senhoras
americanas tinham aceitado suas préstimos, e ele as deixara
apavoradas com a seguinte história:

“Todo o povo de seu belo e livre país sabe, minhas senhoras, que o
notoriamente cruel tirano Marxentius Communis, cognominado ‘O
Vermelho’, concebeu o plano de alterar o mundo inteiro para sua própria
conveniência. Entretanto, apesar de todos os seus esforços, descobriu
que os homens continuavam sempre os mesmos e se recusavam a
mudar. Então, na velhice, Marxentius ficou louco. Naquele tempo, como
as senhoras sabem, não existiam psiquiatras para ajudar curara essa
doença, então deixaram que ele continuasse com seu delírio, e foi
quando sua loucura chegou ao auge que ele concebeu a idéia de largar
o mundo como estava, enquanto ele próprio ia criar um outro mundo
novinho.
Para isso mandou construir um globo exatamente do tamanho do
antigo, contendo um cópia exata de tudo que existia nele: casa, árvore,
montanha, oceano. A humanidade toda foi forçada, sob pena de morte, a
trabalhar nessa empresa gigantesca.
Começaram por construir a base sobre a qual iria ser colocado o
novo globo. E os restos dessa base são o que as senhoras estão vendo
aqui.
Depois começaram a construir o próprio globo, o novo mundo,
vasto como a terra, e quando afinal ficou pronto tudo que havia no velho
mundo foi copiado, com imensa dificuldade.
Naturalmente, era preciso grande quantidade de material, e o
único lugar onde podia ser conseguido era na própria terra antiga. Então
33

a terra foi ficando cada vez menor, enquanto crescia o novo globo.
Afinal, para completar o novo mundo tiveram de usar até o último
restinho do velho mundo. Naturalmente, também, toda a humanidade
teve de se mudar para o mundo novo, já que o velho tinha sido todo
usado. Quando Marxentius Communis compreendeu que, apesar de
tudo, as coisas eram as mesmas que sempre tinham sido, enrolou-se em
seu manto e saiu em majestosa atitude. Para onde foi ninguém sabe.
Então as senhoras estão vendo que esta depressão em forma de
cratera, hoje em ruínas, outrora formava a base do globo de Marxentius
Communis, que repousava sobre o mundo anterior. Portanto, as
senhoras precisam visualizar tudo isso ao contrário”

As duas americanas empalideceram, e uma perguntou:


__ E que aconteceu com o mundo de Marxentius Communis?
__ A senhora está em pé nele. Este mundo é o novo globo.
Dessa vez não adiantou Guido estender o boné. As duas velhotas
gritaram de susto, e saíram correndo.
Aquilo de que o nosso Guido gostava mais do que tufo era contar
histórias só para a pequenina Manu, quando ninguém mais estava
ouvindo. Eram geralmente contos de fadas, pois era desses que Manu
mais gostava, e quase sempre as personagens eram Guido e Manu.
Inventadas especialmente para eles, eram completamente diferentes
das outras histórias que Guido contava, ainda mais românticas e
poéticas.

SEGUNDA PARTE
O tempo perdido

6. A soma está certa mas dá errado


34

Há na vida um grande mistério que é tomado como se nada fosse.


Todos têm parte nele, porém muito poucos são os que lhe dedicam um
pensamento sequer. A maioria simplesmente o aceita, e nunca se
preocupa com isso. Esse mistério é o tempo.
Existiam calendários e relógios que o medem, mas significam
pouco, ou mesmo nada, porque todos nós sabemos que às vezes uma
hora parece uma eternidade, ao passo que outras vezes passa como um
relâmpago, dependendo do que sucede nessa hora. O tempo é própria
vida; e a vida reside no coração.

Ninguém sabia disso melhor que os homens cinzentos. Ninguém


possuía com tanta intensidade a compreensão do valor da vida contida
em uma hora, um minuto ou até um segundo. Possuíam, naturalmente,
a seu modo, assim como a sanguessuga “possui” a vítima da qual chupa
o sangue; mas o fato é que tinham esse conceito, e manobravam seus
negócios de acordo.
Eles tinham planos para utilizar o tempo que os homens gastavam,
planos de longo alcance, cuidadosamente preparados, e era essencial
que ninguém percebesse suas atividades. Aos poucos, tinham
conseguido estabelecer-se na vida da grande cidade e na de seus
habitantes.
Passo a passo, sem que absolutamente ninguém notasse, eles
progrediam dia a dia e gradualmente iam dominando a humanidade.
Tinham uma lista de todos aqueles que poderiam ser úteis aos
seus planos, sem que as vítimas tivessem a mais leve suspeita; estavam
à espera do instante certo para jogar o laço, e sabiam fazer surgir o bom
momento. Um dos que se encontravam na lista, por exemplo, era o
barbeiro, Seu Fusi. Mesmo não sendo um cabeleireiro famoso, era
respeitado na sua profissão, e vivia bem, sem ser rico nem pobre. Sua
barbearia, que ficava no centro da cidade, era pequena e só tinha um
empregado.
35

Um dia Seu Fusi estava na porta da loja, esperando os fregueses.


Como era dia de folga do empregado, Seu Fusi estava sozinho, olhando
a chuva pingando na calçada. Era uma dia cinzento, triste, e no coração
de Seu Fusi a atmosfera também era cinza e melancólica.
“A vida vai passando”, pensava, “e para mim tem sido apenas o
clic-clic da tesoura, umas conversinhas com os clientes e muita espuma
de sabão. Afinal, que é que eu realmente consegui? Quando eu morrer,
será como se nunca tivesse existido.”
Na verdade, Seu Fusi não tinha nada contra as conversinhas: ele
até gostava de manifestar suas opiniões e ouvir as críticas dos clientes.
Também nada tinha contra o clic-clic das tesouras, ou contra a espuma
de sabão. Gostava muito do seu trabalho, e sabia que o executava bem.
Especialmente no barbear debaixo do queixo, ninguém manobrava a
navalha com tanta habilidade. Assim mesmo, havia momentos em que
nada disso parecia valer a pena. Toda gente tem momentos assim.
“Minha vida é um fracasso”, pensava Seu Fusi. “Afinal de contas,
quem sou? Dono de uma pequena barbearia, foi o máximo que
consegui. Se ao menos pudesse levar uma vida categorizada, eu seria
uma pessoa muito diferente”. Seu Fusi não sabia bem em que consistia
essa “vida categorizada”; imaginava algo de importante e luxuoso; coisa
assim como o que ele via nas revistas sofisticadas.
Aborrecido, continuou suas reflexões: “A questão é que meu
trabalho não me deixa tempo para essas coisas. Para viver uma vida
categorizada a gente tem que dispor de tempo, precisa de liberdade.
Mas eu vou passar minha vida inteira aprisionado entre o clic-clic das
tesouras, as conversinhas e a espuma de sabão”.
Exatamente nesse momento um elegante carro cinzento parou à
porta da barbearia. Um senhor de terno cinza desceu e entrou na loja.
Colocando sua pasta cinza-aço sobre a mesa em frente do espelho,
pendurou no cabide seu chapéu-coco cinza, sentou-se na cadeira de
barbear, tirou do bolso um caderninho que começou a folhear, sempre
tirando baforadas de um pequeno charuto cinzento.
36

Seu Fusi fechou a porta porque, de repente, começara a fazer um


frio esquisito na barbearia.
__ Que é que o senhor deseja? – perguntou – Fazer a barba ou
cortar o cabelo?
Mal acabara de falar xingou-se por sua falta de tato: reparara que
a cabeça do freguês era completamente calva e lustrosa.
__ Nem um nem outro – retrucou o senhor cinzento, sem um
sorriso, falando numa voz estranha, sem expressão – uma voz que
poderia ser qualificada como cor de cinza. – Eu venho da parte do Banco
Poupa-Tempo. Sou o agente XYQ/384/b. Nós sabemos que você tenciona
abrir uma conta conosco.
__ Isso é novidade para mim – declarou Seu Fusi. – Para ser
inteiramente franco, eu até agora nem sabia da existência desse tal
banco.
__ Mas agora você sabe – retrucou secamente o outro, consultou
seu caderninho e continuou:
__ Você é Seu Fusi, o barbeiro, não é?
__ Correto. Sou, sim.
__ Então eu estou certo: você está em nossa lista de espera. – E
fechou abruptamente o caderninho.
__ Lista de espera para que fim? – indagou Seu Fusi sem
compreender.
__ Ora, vejamos, meu caro senhor: o seu tempo está sendo
desperdiçado entre o clic-clic das tesouras, as conversinhas e a espuma
de sabão. Quando morrer, será como se nunca tivesse existido. Se
dispusesse de tempo para levar uma vida categorizada, você seria uma
pessoa muito diferente. Só que lhe falta é tempo. Estou certo?
__ É exatamente nisso que eu estava pensando agora mesmo –
murmurou Seu Fusi, tremendo porque, apesar de a porta estar fechada,
o frio aumentava na barbearia.
__ Está vendo? – disse o senhor cinzento, com ar muito seguro,
tirando baforadas do seu charutinho. – Mas como é que você há de
encontrar tempo? O único jeito é poupá-lo! Veja, Seu Fusi, você
37

desperdiça o seu tempo com a maior imprudência, conforme eu posso


lhe provar por meio de uma simples conta de somar. Um minuto tem
sessenta segundos. Uma hora tem sessenta minutos. Até aqui está
entendendo?
__ Claro que estou.
O agente XYQ/384/b tirou do bolso uns pedaços de giz cinzento, e
começou a escrever números no espelho da barbearia.
__ Sessenta vezes sessenta são três mil e seiscentos. Então, uma
hora tem três mil e seiscentos segundos. Um dia tem vinte e quatro
horas. Portanto, três mil e seiscentos vezes vinte e quatro são oitenta e
seis mil e quatrocentos segundos por dia. Como você sabe, um ano tem
trezentos e sessenta e cinco dias (excluindo o ano bissexto), o que dá
trinta e um milhões, quinhentos e trinta e seis mil segundos por ano. Ou
trezentos e quinze milhões trezentos e sessenta mil segundos em dez
anos. Até que idade você acha que vai viver, Seu Fusi?
__ B-bem . . . – gaguejou o barbeiro, assombrado. – Eus espero
viver até os setenta e oito, se Deus quiser.
__ Muito bem – prosseguiu o senhor cinzento – Vamos calcular por
baixo, supondo que sejam apenas setenta anos. Teríamos trezentos e
quinze milhões trezentos e sessenta mil vezes sete. Dá dois bilhões
duzentos e sete milhões quinhentos e vinte mil segundos – E escreveu
no seu espelho em números bem grandes: “2 207 520 000”. Sublinhou
várias vezes a cifra, e explicou: __ Está vendo, Seu Fusi? Essa é a fortuna
à sua disposição.
Seu Fusi engoliu em seco e enxugou a testa. A soma era de
atordoar. Ele nunca percebera que era tão rico.
__ É – continuou o agente, tirando outra baforada do charutinho
cinzento – é uma cifra impressionante, não é? Mas vamos examiná-la
melhor. Qual é sua idade?
__ Quarenta e dois – gaguejou novamente o barbeiro, de repente
sentindo-se culpado como se tivesse cometido alguma fraude.
__ E quantas horas, em média, dorme por noite?
__ Cerca de oito – confessou Seu Fusi.
38

O agente fez um cálculo-relâmpago. O giz rangia sobre o espelho


de um jeito que arrepiava Seu Fusi.
__ Quarenta e dois anos e oito horas por dia vêm a ser
quatrocentos e quarenta e um milhões quinhentos e quatro mil
segundos, e essa quantidade de tempo deve, sem dúvida alguma, ser
considerada perdida. Agora, quantas horas por dia o senhor dedica ao
trabalho?
__ Umas oito horas – respondeu Seu Fusi, já meio desanimado.
__ Então temos que repetir a mesma quantidade na coluna do
débito – continuou o agente, implacável. – E, se naturalmente, temos
também que deduzir outro período de tempo, pois você precisa comer.
Quanto tempo por dia o senhor gasta em comer, incluindo todas as
refeições?
__ Não sei exatamente – disse Seu Fusi, muito nervoso. – Creio que
umas duas horas.
__ Acho muito pouco – contestou o agente –, mas vá lá . . .
supondo que esteja certo, isso dá, em quarenta e dois anos, cento e dez
milhões trezentos e setenta e seis mil segundos. Continuando –
conforme nós sabemos, o senhor mora som sua velha mãe –, todos os
dias passa uma hora inteira com ela, isto é, senta-se junto dela e
conversa, embora ela seja surda e mal consiga ouvir uma palavra do que
o senhor diz. Isso também conta como tempo desperdiçado, que sobe a
cinqüenta e cinco milhões cento e oitenta e oito mil segundos. Outra
coisa: o senhor tem um periquito, inteiramente desnecessário, cujo trato
exige diariamente um quarto de hora do seu tempo, o que soma treze
milhões setecentos e noventa e sete mil segundos.
__ M-mas . . . – tentou argumentar Seu Fusi.
__ Não interrompa! – gritou o agente, multiplicando mais e mais
rápido. – Como sua mãe tem reumatismo, o senhor mesmo tem que
fazer parte do serviço da casa. Tem de fazer as compras, limpar os
sapatos, e várias outras tarefas ingratas. Quanto tempo diário isso lhe
custa?
__ Talvez uma hora, mas . . .
39

__ Resultado, cinqüenta e cinco milhões cento e oitenta e oito mil


segundos desperdiçados. Além disso, sabemos que você vai ao cinema
uma vez por semana, passa uma noite por semana com o grupo de
canto coral, vai ao bar duas noites por semana, e as restantes passa
com amigos, ou lendo um livro. Em suma, você desperdiça tempo em
ocupações inúteis durante cerca de três horas diariamente, o que soma
cento e sessenta e cinco milhões quinhentos e sessenta e quatro mil
segundos . . . O senhor não está se sentindo bem, Seu Fusi?
__ Não, não estou. Com licença . . .
__ Estamos quase acabando – prosseguiu o homem cinzento –,
mas existe em sua vida um capítulo especial a ser considerado. É aquele
seu segredinho, sabe . . .
Seu Fusi estava com tanto frio que seus dentes começaram a
bater. Sentindo-se fraco, apenas murmurou:
__ Sabem disso também? Eu pensei que fosse um segredo entre
mim e Dona Dária, e . . .
__ No mundo de hoje não existe segredo – interrompeu o agente
XYQ/384/b. – Considere o caso com bom senso e realismo, Seu Fusi.
Responda à minha pergunta: o senhor pretende se casar com Dona
Dária?
__ Não, de jeito nenhum . . .
__ Isso mesmo – continuou o homem cinza, – Dona Dária terá que
ficar a vida inteira numa cadeira de rodas, porque é paralítica das
pernas. Entretanto, o senhor vai visitá-la todos os dias durante meia
hora, e leva flores . . . Por quê?
__ Ela fica tão feliz . . . – respondeu Seu Fusi, quase chorando.
__ Mas encare o assunto racionalmente: para o senhor é tempo
desperdiçado, que soma vinte e sete milhões quinhentos e noventa e
quatro segundos. E se considerarmos que o senhor costuma todas as
noites passar um quarto de hora sentado junto da janela, pensando no
que aconteceu durante o dia, temos que debitar mais treze milhões
setecentos e noventa e sete mil segundos. Agora vamos ver quanto
tempo lhe resta, Seu Fusi.
40

A conta escrita no espelho era esta:


Sono .......................................................................... 441 504 000
segundos
Trabalho ................................................................... 441 504 000 ”
Refeições ................................................................. 110 376 000 ”
Mãe .......................................................................... 55 188 000 ”
Periquito ................................................................... 13 797 000 ”
Compras, etc. ......................................................... 55 188 000 ”
Amigos, grupo coral, etc. ...................................... 65 564 000 ”
“Segredo” ................................................................ 27 594 000 ”
Janela ...................................................................... 13 797 000 ”
TOTAL ....................................................................... 1 324 512 000 ”

__ Esta soma – declarou o senhor cinzento, batendo o giz contra o


espelho com tal força que o barulho era como se fosse um tiro de pistola
– esta soma representa o tempo que o senhor desperdiçou até agora.
Que tem a dizer?
Seu Fusi não tinha absolutamente nada a dizer. Sentou-se numa
cadeira, a um canto, e enxugou a testa, pois apesar do frio que sentia
estava suando. O homem cinza balançou a cabeça com ar pensativo:
__ É, é isso mesmo. O total já ultrapassa mais de metade do seu
capital inicial. Mas agora precisamos ver o que de fato lhe resta dos seus
quarenta e dois anos. Como já sabe, um ano tem trinta e um milhões
quinhentos e trinta e seis mil segundos, e isso, multiplicado por quarenta
e dois, vem a ser um bilhão trezentos e vinte e quatro milhões
quinhentos e doze mil segundos.
Abaixo da soma anterior, escreveu:

Tempo perdido até hoje ........................................ 1 324 512 000


segundos
Menos tempo disponível até agora ..................... 1 324 512 000
segundos
41

RESULTADO ............................................................... 0 000 000 000


segundo

Feito isso, guardou o giz no bolso e esperou que os zeros tivessem


tempo de fazer seu efeito sobre Seu Fusi.
E, de fato, produziram um efeito e tanto. Arrasado, Seu Fusi
pensou:
“Então é esse o balanço de minha vida até hoje . . .” Estava tão
impressionado com a conta, detalhada como era até o último segundo,
que sem duvidar a aceitou. E a adição estava mesmo perfeitamente
certa. Era um dos truques que os homens cinzentos utilizavam para
enganar as pessoas sempre que podiam.
__ Francamente, acho que o senhor não pode continuar assim –
recomeçou o agente XYQ/384/b com voz suave – Não gostaria de
começar a poupar um pouco do seu tempo, Seu Fusi?
Seu Fusi fez sinal que sim. Seus lábios estavam azuis de frio.
__ Por exemplo – continuou a voz cinzenta do agente –, se o senhor
tivesse começado, há vinte anos, a poupar uma hora por dia, agora,
teria um capital de vinte e seis milhões duzentos e oitenta mil segundos.
Se tivesse poupado duas horas diárias teria, é claro, o dobro dessa
soma, ou seja, cinqüenta e dois milhões quinhentos e sessenta mil
segundos. E eu lhe pergunto, Seu Fusi, que são duas miseráveis
horinhas, comparadas a esse total?
__ Nada! – gritou Seu Fusi – Uma coisa à toa . . .
__ Fico satisfeito vendo que o senhor compreende isso – continuou
o agente. – E, se agora calcularmos quanto o senhor teria economizado
em mais vinte anos assim, chegaremos à simpática soma de cento e
cinco milhões cento e vinte mil segundos. Todo esse capital estaria à sua
disposição quando chegasse aos sessenta e dois anos.
__ F-formidável! – gaguejou Seu Fusi, os olhos quase saindo fora da
órbita.
42

__ Espere um instante, ainda tem mais: o Banco Poupa-Tempo não


somente cuida do tempo que o senhor poupou, mas ainda lhe paga os
juros sobre isso. Quer dizer que, de fato, teria muito mais ainda.
__ Quanto mais? – indagou Seu Fusi, ofegante.
__ Isso dependeria do senhor – explicou o agente –, do quanto o
senhor poupasse e o tempo que deixasse suas economias frutificando
conosco.
__ Frutificando? Como assim? . . .
__ Muito simples – explicou o cavalheiro cinzento. – Se durante
cinco anos o senhor não retirar seu tempo poupado, nós depositamos o
equivalente em sua conta. Em outras palavras, suas economias dobram
a cada cinco anos. Em dez anos, já valem quatro vezes mais a quantia
original, em quinze anos, oito vezes, a assim por diante. Se há vinte
anos o senhor tivesse começado a poupar meramente duas horas por
dia, no aniversário dos seus sessenta e dois anos teria à sua disposição
duzentos e cinqüenta e seis vezes a soma que teria poupado até hoje.
Chegaria a vinte e seis bilhões novecentos e dez milhões setecentos e
vinte mil segundos. Tornou a puxar do bolso o giz cinzento. Escreveu no
espelho o número:
“26 910 720 000 segundos”
Pela primeira vez um ligeiro sorriso entreabriu os lábios do senhor
cinzento.
__ O senhor pode verificar que isso vem a ser dez vezes mais o
equivalente à duração de sua vida inteira. E pode ser conseguido
simplesmente pela economia de duas horas diárias. Diga-me se não
acha que é uma oferta interessante.
__ Claro que é! – respondeu o barbeiro, já quase desmaiando. –
Claro que é. Eu sou um cretino por não ter começado a poupar tempo há
muitos anos. Só agora estou percebendo isso, e confesso que fico
desesperado.
__ Não há motivo para isso – retrucou suavemente o homem
cinzento. – Nunca é tarde demais. Se quiser, podemos começar hoje
mesmo. Vai ver como vale a pena.
43

__ Eu gostaria muito . . . Que é que tenho que fazer?


__ Meu caro senhor – e o agente ergueu as sobrancelhas –, estou
certo de que sabe como poupar tempo! Só o que o senhor tem de fazer
é trabalhar mais rápido, e deixar de lado tudo que não é essencial. Em
vez de dedicar meia hora a cada freguês, dedique apenas um quarto de
hora. Poupe o tempo que tem desperdiçado em conversa com eles.
Reduza para a metade a hora que você passa com a sua mãe. Melhor
ainda, mande-a para um asilo de velhos, bom e barato, onde tomarão
conta dela, e você estará poupando uma hora inteira por dia. Largue
esse periquito, que não serve para nada. Visite Dona Dária a cada
quinze dias, se fizer questão. Acabe com o quarto de hora que você
gasta rememorando os acontecimentos diários. Acima de tudo,
desperdice menos tempo com o canto coral, leitura de livros e os seus
supostos amigos. A propósito, eu lhe aconselho a colocar um bom
relógio, bem grande, na sua barbearia, para poder controlar a atividade
de seu empregado.
__ Tudo isso está muito bem – disse Seu Fusi –, eu posso fazer tudo
isso, mas o que acontece com o tempo que eu economizo? Que é que eu
faço com ele? Tenho de entregar para guardar? A quem? Ou eu mesmo é
que guardo em algum lugar? Como é que funciona a coisa?
O agente tornou a mostrar aquele ligeiro sorriso.
__ Não se preocupe com nada disso. Deixe tudo por nossa conta.
Fique descansado, certo de que não deixaremos perder-se um só
momento do seu tempo poupado.
__ Ah, então está bem – respondeu o barbeiro, boquiaberto. –
Confiarei em vocês.
__ Pode ter absoluta confiança, meu caro senhor – disse o agente,
levantando-se da cadeira. – Tenho agora o agradável dever de saudá-lo
como novo membro da Sociedade de Poupança de Tempo. Seu Fusi, o
senhor agora é de fato um homem moderno e progressista. Meus
parabéns.
Dizendo isso, apanhou o chapéu e a pasta.
44

__ Um minuto! – gritou Seu Fusi. – Não devíamos fazer alguma


espécie de contrato? Eu não deveria assinar alguma coisa? Não recebo
documento nenhum?
O agente XYQ/384/b, já na porta, virou-se, lançando para Seu Fusi
um olhar ligeiramente contrariado.
__ Para que serviria? Não se pode comprar economia de tempo
com nenhum outro tipo de economia. É inteiramente uma questão de
confiança – de ambas as partes. Sua palavra basta para nós – o senhor
não pode voltar atrás –, e nós nos comprometemos a zelar pelas suas
economias. O quanto o senhor poupar é inteiramente problema seu. Nós
não fazemos pressão alguma. Adeus, Seu Fusi.
Com isso, o agente entrou no seu elegante carro cinza e partiu
rapidamente. Seu Fusi ficou acompanhando com o olhar, e enxugou a
testa. Pouco a pouco o frio foi passando, mas ele se sentia fraco e
indisposto. A fumaça cinza-azulada, deixada pelo charuto do agente,
flutuava ainda na sal em nuvens pesadas, sufocantes, lentas, a se
desfazerem.

Seu Fusi só se sentiu um pouco melhor quando a fumaça


desapareceu. Ao mesmo tempo foram também desbotando os números
no espelho, e quando tinham desaparecido completamente Seu Fusi já
não conseguia lembrar-se da visita do senhor cinzento, embora
lembrasse a decisão tomada no final, decisão que ele agora acreditava
ter sido inteiramente sua. A decisão de começar a poupar tempo, de
modo a começar vida nova numa data incerta do futuro, tinha se
incrustado em seu coração como uma farpa envenenada.
Nisso chegou o primeiro freguês do dia. Seu Fusi o recebeu
secamente, fez o estritamente necessário, e não conversou nada, de
modo que terminou em vinte minutos em vez de meia hora. Tratou
desse jeito todos os fregueses. Trabalhando dessa maneira, ele não
sentia nenhum prazer no que fazia, porém isso agora já não tinha
importância. Tomou mais dois ajudantes e ficou de olho neles,
fiscalizando para que não perdessem um minuto. Cada movimento era
45

calculado até a uma fração de segundo, e agora uma tabuleta


pendurada na barbearia de Seu Fusi dizia:

TEMPO POUPADO É TEMPO DOBRADO

Seu Fusi escreveu uma carta seca para Dona Dária, dizendo que
infelizmente, devido à falta de tempo, não poderia mais visitá-la. Vendeu
o periquito para uma loja de animais. Colocou a mãe num bom e barato
asilo de velhos, onde passou a visitá-la uma vez por mês. Nas outras
coisas também seguiu todos os conselhos dados pelo homem cinzento,
convencido de que eram todas idéias suas. Foi ficando cada vez mais
atormentado e irritável, pois achava estranho, apesar de todo o tempo
que economizava, nunca lhe sobrar tempo. O tempo desaparecia
misteriosamente, e nunca mais voltava. Os dias foram ficando mais e
mais curtos, a princípio sem que percebesse, depois ostensivamente.
Antes que o barbeiro desse por isso, mais uma semana tinha se
passado, e outro mês, e outro ano, e depois outro e outro. Já que ele não
se lembrava da visita do agente, deveria ter indagado seriamente de si
mesmo para onde tinha ido todo o seu tempo, porém, como todos os
outros poupadores de tempo, nunca formulou a pergunta. Era como se
uma paixão cega o arrastasse. E quando, por acaso, se deu conta de que
os dias estavam voando mais e mais depressa, só redobrou seus
esforços desesperados para poupar o tempo.

O que aconteceu com Seu Fusi já tinha acontecido com muita


gente da cidade grande. Cada dia maior número de pessoas começavam
aquilo a que chamavam “economizar tempo”, e quanto mais aumentava
o número das pessoas, maior era a quantidade daqueles que os
imitavam; mesmo aqueles que não queriam eram forçados a aderir
porque não tinham outra alternativa.
Todos os dias a televisão, o rádio, a imprensa anunciavam e
elogiavam os méritos de novos expedientes para poupar o tempo, de
maneira a deixar as pessoas livres para viver uma “vida categorizada”
num vago futuro. Muros e tapumes estavam cobertos de anúncios com
46

figuras descrevendo todas as formas possíveis de prosperidade, e por


baixo, em letras fluorescentes, brilhavam frases tais como:

A SORTE ESTÁ COM OS POUPADORES DE TEMPO!

ou O FUTURO PERTENCE A QUEM POUPA TEMPO!

ou APROVEITE SUA VIDA – POUPE TEMPO!

A realidade, entretanto, era muito diferente. De fato, os


poupadores de tempo vestiam-se melhor do que o pessoal que morava
perto do velho anfiteatro. Ganhavam mais dinheiro, e assim possuíam
mais para gastar, mas tinham um ar mal humorado, cansado ou cínico, e
o olhar hostil. Naturalmente nunca lhes havia chegado ao ouvido a
expressão: “Por que não vai falar com Manu?” Não tinham ninguém que
os ouvisse de modo a sentirem-se inteligentes, corteses, ou até felizes.
Mas ainda que tal pessoa existisse, era pouquíssimo razoável que
alguém fosse procurá-la, a não ser que o assunto pudesse ser resolvido
em menos de cinco minutos – senão, seria considerado desperdício de
tempo. Na opinião dos poupadores, até o seu lazer devia ser aproveitado
ao máximo, de maneira a fornecer, tão rápido quanto possível, tanto
divertimento quanto possível. Isso significava que para eles já não
existia a arte de comemorar adequadamente qualquer ocasião, alegre
ou solene. Sonhar era quase um crime. Mas o que menos toleravam era
o silêncio, pois quando estava tudo quieto ficavam apavorados,
temerosos acerca do rumo que a vida tinha tomado. Por esse motivo
faziam barulho assim que o silêncio ameaçava surgir. Não era um
barulho alegre, como se ouve num recreio de crianças; era um barulho
irritado, agressivo, que se tornava cada dia mais alto na grande cidade.
Já não se considerava importante gostar do seu trabalho, ou
orgulhar-se dele – ao contrário, isso faria com que ficasse perdido no
tempo. A única coisa importante era que trabalhasse cada um o mais
possível, no menor tempo possível.
Por isso, letreiros foram colocados nas fábricas e nos escritórios,
dizendo:
47

O TEMPO É VALIOSO – NÃO O PERCA!

ou TEMPO É DINHEIRO – ECONOMIZE!

Avisos semelhantes foram afixados nas paredes atrás das mesas


de gerentes e poltronas de executivos; apareceram nos consultórios
médicos, nas lojas, restaurantes, até nas escolas e creches. Ninguém foi
esquecido.
Por fim, a aparência da própria cidade foi mudando mais e mais.
Os antigos bairros foram demolidos, e ergueram-se novas construções,
omitindo tudo que pudesse ser considerado supérfluo. Já não se
preocupavam em projetar casas adequadas às pessoas que iriam
habitar, pois isso implicaria projetar um mundo de casas diferentes. Era
muito mais barato, e sobretudo mais rápido, construir todas as casas
iguais. No lado norte da cidade grande já haviam surgido novos
conjuntos residenciais. Em fileiras intermináveis alinhavam-se blocos de
apartamentos, cada um tão igual ao outro como dois feijões numa
vagem, e como todas as casas pareciam iguais todas as ruas também
pareciam iguais. Essas ruas idênticas cresciam mais e mais, estendendo-
se em linhas retas até o horizonte: um deserto simétrico. A vida para o
pessoal que morava ali decorria exatamente da mesma maneira –
bitolada a perder de vista –, pois ali tudo era medido e calculado com
precisão, chegando ao último centímetro e ao último segundo. Enquanto
todos estavam poupando tempo, ninguém queria confessar que sua vida
se tinha tornado cada dia mais infeliz, mais monótona, mais sem alma.
Quem mais sentia isso eram as crianças, pois ninguém mais tinha tempo
para elas. Mas tempo é vida. E a vida reside no coração. E quanto mais o
pessoal poupava, menos possuía.

7. Manu procura seus amigos e é procurada por um inimigo


48

__ Não sei por quê – disse Manu um dia –, mas me parece que
nossos velhos amigos vêm me visitar muito menos do que costumavam.
Há alguns que não vejo há um tempo enorme.
Guido Guia e Beppo Varredor estavam sentados junto dela nos
degraus do anfiteatro, onde crescia o capim, assistindo ao pôr-do-sol.
__ É – confirmou Guido –, é exatamente o que eu também acho.
Menos e menos pessoas querem ouvir minhas histórias. Não é mais
como antes. Alguma coisa está errada.
__ Mas o quê? – indagou Manu.
Guido sacudiu os ombros, e apagou as letras que tinha escrito
numa velha lousa. Algumas semanas antes Beppo Varredor havia trazido
para Manu a lousa que encontrara num monte de entulho. Embora não
fosse nova, é claro, e tivesse no meio uma larga rachadura, ainda podia
ser utilizada. Desde então Guido passava todos os dias algum tempo
ensinando o alfabeto a Manu, e, como esta tinha muito boa memória,
depois de pouco já podia ler direitinho, embora escrever fosse mais
difícil. Beppo Varredor, que ficara pensando na pergunta de Manu,
respondeu:
__ É verdade. Está chegando mais perto. Na cidade já está por
toda parte. Já faz algum tempo que reparei.
__ Reparou em quê? – perguntou Manu.
Beppo pensou um pouco antes de responder:
__ Nada de bom
Fez nova pausa antes de prosseguir:
__ Está esfriando
__ Tolice! – exclamou Guido, passando o braço em torno dos
ombros de Manu, num gesto de consolo. – Seja como for, mais e mais
crianças continuam a vir aqui.
__ É por isso – disse Beppo –, justamente por isso.
__ Que é que você quer dizer? – indagou Manu.
Beppo demorou muito para responder:
__ Elas não vêm para estar conosco. Vêm apenas à procura de um
refúgio.
49

Os três olharam para o centro da arena, onde algumas crianças


estavam se divertindo com um novo jogo de bola que haviam inventado
naquela tarde. Entre elas estavam alguns velhos amigos de Manu; Paulo,
o menino de óculos; Maria, com a irmãzinha Dedé; o garoto gordo de voz
esganiçada chamado Mássimo; e outro menino, Franco, sempre com
jeito desleixado. Mas, além destes, havia várias crianças que só tinham
começado a aparecer nos últimos dias, entre as quais um menino
pequeno, que naquela tarde vinha pela primeira vez. Parecia que Guido
tinha razão: cada dia vinham mais e mais crianças. Manu ficaria muito
feliz com a presença delas, mas quase todas as crianças novas não
tinham a mínima idéia de como brincar. Ficavam ali sentadas, amuadas
e aborrecidas, só olhando para Manu e seus amigos. De vez em quando
interrompiam de propósito a brincadeira dos outros e estragavam tudo;
no começo houve muita discussão e briga, mas não por muito tempo,
porque a presença de Manu afetava até as crianças novas, e logo
começaram a ter boas idéias, e juntar-se às outras com entusiasmo. Mas
quase todos os dias chegavam novas crianças, algumas vindas de longe,
do lado oposto da grande cidade, e então as outras tinham que começar
tudo de novo, pois bastava uma de má vontade para estragar o jogo.
Havia também outra coisa, que começava uns dias antes, e Manu não
entendia. Cada vez mais, as crianças traziam consigo brinquedos,
brinquedos caros que não eram muito divertidos, tais como tanques de
controle remoto, que andavam em círculo, porém não podiam fazer mais
nada, ou um foguete espacial, que zunia em torno do suporte, mas não
servia para nada mais, ou um robô de olhos acesos, que andava se
bamboleando e virando a cabeça e dele não se podia conseguir outra
coisa. Eram brinquedos caríssimos, naturalmente; os amigos de Manu
nunca haviam possuído um igual, e muito menos ela própria. O mais
curioso é que aqueles brinquedos eram completos até no menor detalhe,
de modo que absolutamente nada era deixado à imaginação. Muitas
vezes as crianças ficavam ali durante horas, de olhos fitos naqueles
brinquedos que rodopiavam, zuniam, bamboleavam, fascinadas mas
sem interesse, porque não sabiam o que fazer com aquilo. Acabavam
50

por voltar às antigas brincadeiras, em que umas caixas vazias, uma


velha toalha de mesa, um punhado de pedrinhas eram suficientes para
estimular a imaginação.
Naquela tarde parecia haver algo atrapalhado o jogo. Uma a uma,
as crianças foram desistindo, até que afinal todas estavam sentadas em
torno de Manu, Beppo e Guido. Queriam ouvir uma história de Guido,
mas não era possível, porque o garotinho, que naquela tarde aparecera
pela primeira vez, tinha levado um rádio transístor e, sentado sozinho,
ouvia um programa de anúncios, no volume máximo.
__ Você não pode abaixar este barulho estúpido? – perguntou, em
tom agressivo, Franco, o menino de aspecto relaxado.
__ Não posso ouvir – respondeu com um sorriso o garoto. – Meu
rádio está tão alto . . .
__ Abaixe isso já! – gritou Franco, levantando-se.
O garoto empalideceu ligeiramente, mas respondeu obstinado:
__ Não me importa que você ou qualquer outra pessoa reclame. Eu
posso tocar meu rádio tão alto quanto eu quiser.
__ Ele tem razão – disse o velho Beppo. – Nós não podemos proibi-
lo. O máximo que podemos é pedir que não faça isso.
Franco tornou a sentar, mal-humorado:
__ Então ele devia ir para algum outro lugar. A tarde inteira ele
atrapalhou tudo.
__ Com certeza ele tem suas razões – disse Beppo, olhando para o
garoto com expressão de simpatia. – Garanto que tem.
O garoto não disse nada, mas dali a pouco abaixou o volume do
rádio, olhando para o outro lado. Manu levantou e foi sentar-se perto
dele. Ele desligou o rádio, e durante alguns momentos fez-se silêncio.
__ Conte uma história, Guido – pediu uma das crianças que só
começara a aparecer havia algum tempo.
__ É, conte, por favor! – gritaram os outros. – Conte uma história
engraçada – não, uma de meter medo – não, uma de fada – não, uma
história de aventuras!.
51

Pela primeira vez na sua vida Guido estava disposto a contar


histórias. Por fim, pediu:
__ Eu gostaria muito mais que vocês me contassem alguma coisa –
alguma coisa sobre vocês e suas casas, o que é que vocês fazem o dia
todo, e por que estão aqui.
As crianças ficaram quietas. De repente as fisionomias tinham se
tornado tristes e fechadas. Afinal uma delas disse:
__ Nós agora temos um carro muito bonito. Nos sábados, quando
papai e mamãe têm tempo, eles lavam o carro, e se eu me comportei
bem tenho licença de ajudar. Quando eu for grande vou ter um assim.
Uma menininha disse:
__ Eu posso ir ao cinema todos os dias, se quiser, para que eu
possa ficar num lugar seguro, porque eles infelizmente não têm tempo
para mim. – Fez uma pausa e acrescentou: __ Mas eu não gosto de ficar
num lugar seguro, então eu venho aqui, escondido, e poupo o dinheiro
do cinema. Quando eu tiver juntado bastante, vou comprar um bilhete
de trem e vou ver os sete anõezinhos.
__ Não seja boba! – gritou outra criança. – Isso não existe!
__ Existe, sim – insistiu a menina. – Eu até vi o retrato deles num
anúncio de viagens.
__ Eu já tenho doze discos de contos de fadas – disse um menino
pequeno. – E posso tocar quando quiser. Primeiro, quando meu pai
voltava do trabalho sempre me contava histórias, e era ótimo. Mas agora
ele nunca está em casa, ou então está muito cansado e não tem
vontade de contar histórias.
__ E sua mãe? – perguntou Manu.
__ Ela também está fora de casa o dia inteiro, agora.
__ É – disse Maria –, na minha casa é a mesma coisa, mas por sorte
eu tenho Dedé.
Beijou a irmãzinha, que estava sentada no seu colo, e continuou:
__ Quando eu chego da escola esquento a comida, depois faço
meus deveres, e depois – sacudiu os ombros – depois nós ficamos
52

rodando por aí, até ficar escuro. Agora a gente quase sempre vem pra
cá.
Com movimentos de cabeça, as crianças concordavam com o que
ela dissera, pois era mais ou menos aquele o padrão de vida de todas.
__ Eu acho ótimo meus pais não terem tempo para cuidar de mim
– disse Franco (embora ele não parecesse nada contente) –, senão eles
começaram a discutir, e acabam me dando uma surra.
De repente o menino com o transístor virou-se para eles e disse:
__ Eu agora estou ganhando muito mais dinheiro pra gastar.
__ Claro – atalhou Franco. – Eles nos dão mais dinheiro para
ficarem livres de nós. Eles não gostam mais de nós, mas também não
gostam mais deles mesmos. Se vocês querem saber: eles não gostam
mais de nada.
__ É mentira! – gritou zangado o garotinho do rádio. – Meus pais
gostam muito de mim. Eles não têm culpa de não terem tempo. É o jeito
que as coisas são. Mas em troca eles me deram este transístor, que
custa muito caro. Isso prova que eles gostam de mim, não?
Ninguém respondeu. E de repente o menino começou a chorar.
Tentou segurar o choro, e esfregou os olhos com aquelas mãos sujas,
porém as lágrimas corriam deixando riscos mais claros nas bochechas
encardidas. As outras crianças olhavam com simpatia ou abaixavam os
olhos. Agora estavam entendendo o garoto. Na verdade, todas sentiam o
mesmo. Todas sentiam que haviam sido abandonadas.
__ É – falou o velho Beppo, após uma longa pausa –, está ficando
frio.
__ Eu acho que daqui a pouco não vou mais poder vir aqui – disse
Paulo, o menino de óculos.
__ Por que não? – indagou Manu, surpresa.
__ Por que meus pais dizem que vocês todos são uns boas-vidas
que não servem pra nada – explicou Paulo. __ Dizem que vocês estão
roubando o tempo que é de Deus, e é por isso que vocês têm tanto
tempo. Dizem que há gente demais como vocês, e é por isso que os
53

outros têm menos e menos tempo. E não querem que eu venha mais
aqui, para não ficar igualzinho a vocês.
Algumas crianças, que já tinham ouvido a mesma coisa,
concordaram com um movimento de cabeça.
Guido encarou cada uma das crianças por sua vez:
__ E é isso que vocês também acham de nós: por que continuam
vindo aqui apesar disso?
Seguiu-se um breve silêncio, que Franco rompeu:
__ Eu não ligo. De qualquer jeito, meu velho sempre diz que
quando crescer vou ser ladrão.
__ Ah, é? – perguntou Guido, erguendo as sobrancelhas. __ E você
também acha que nós somos ladrões?
As crianças olhavam para o chão, encabuladas. Por fim Paulo,
examinando com o olhar o velho Beppo, disse baixinho:
__ Meus pais não falam mentira – e ainda mais baixo perguntou: __
Então, você não é? . . .
Ouvindo isso, o velho varredor de ruas ergueu-se ao máximo de
sua altura (que não era muita), levantou solenemente a mão e declarou:
__ Eu nunca – nunca, na minha vida inteira –, nunca roubei o
menor tiquinho de tempo nem de Deus nem dos homens. Isso eu juro, e
Deus é testemunha!
__ Eu também – disse Manu.
__ Eu também – repetiu Guido, muito sério.
Impressionadas, as crianças estavam caladas. Nenhuma delas
duvidava da palavra dos três amigos.
__ E já que estamos nesse assunto, quero dizer mais uma coisa –
continuou Guido. – As pessoas costumavam vir procurar Manu para que
ela, ouvindo o que tinham a dizer, pudesse ajudá-las a conhecerem-se a
si mesmas. Mas agora nem pensam mais nisso. As pessoas gostavam de
vir escutar minhas histórias também, porque as histórias as distraíam
das preocupações. Mas nisso também nem pensam mais. Dizem que já
não têm tempo para essas coisas. Mas vocês já notaram uma coisa
estranha? É realmente muito estranho ver para que eles já não têm
54

tempo. Outro dia encontrei na cidade um velho amigo, o barbeiro Fusi.


Fazia algum tempo que eu não o via, e quase não o reconheci, tão
diferente que estava: aflito, cansado, irritado, em suma, infeliz. Ele era
um sujeito simpático, que cantava com boa voz, e propunha as idéias
mais originais. Agora, de repente, ele não tem tempo para mais nada
disso. Não é mais Seu Fusi, o barbeiro: virou um fantasma de sua antiga
pessoa. Estão entendendo o que eu quero dizer? Se esse fosse o único,
eu diria que ele focou meio ruim da cabeça, mas por todos os lados
encontra-se gente assim. E cada dia aparecem mais e mais. Agora até
alguns dos nossos velhos amigos estão começando a ficar assim, e eu às
vezes fico imaginando se não é algum tipo de loucura contagiosa.
O velho Beppo concordou:
__ Você tem razão, deve ser contagioso
__ Se for isso, temos que acudir os nossos amigos! – disse Manu,
apavorada.
Essa noite passaram muito tempo discutindo qual a melhor
maneira de agir; porém não suspeitavam da existência e constante
atividade dos homens cinzentos.

No decorrer dos dias seguintes Manu foi procurar os velhos


amigos, para perguntar o que tinha acontecido e por que não iam mais
visitá-la. O primeiro que procurou foi Nicolau, o pedreiro. Ela sabia onde
ele morava, um quartinho no sótão, logo abaixo do telhado. Mas Nicolau
não estava em casa. Os outros moradoresão estava em casa. Os outros
moradores só sabiam que ele agora estava trabalhando num grande
conjunto residencial, no lado oposto da cidade, e ganhando muito
dinheiro. Agora ele raramente voltava para casa, e quando voltava eram
já altas horas. Também agora quase sempre percebia-se que ele tinha
bebido, e era difícil manter a amizade.
Manu resolveu esperar por ele, sentou-se na escada, diante da
porta. Aos poucos foi ficando escuro, e ela adormeceu. Devia ser já ser
muito tarde quando acordou com o barulho de passos cambaleantes e
55

uma voz rouca cantando. Era Nicolau, aos tropeções. Quando viu a
menina parou, boquiaberto.
__ Oi, Manu! – resmungou, evidentemente encabulado de ser visto
naquelas condições. __ Então você continua viva, hein? E que é que está
fazendo aqui?
__ Procurando você – respondeu Manu timidamente.
__ Ora, mas que anjo . . . – disse Nicolau com um sorriso. __
Imagine só, vir aqui no meio da noite para visitar seu velho amigo
Nicolau! Sabe que há muito tempo estou querendo ir vê-la, mas hoje em
dia não tenho tempo para nada que seja . . .
Fez um gesto vago, e sentou-se pesadamente ao lado de Manu.
__ Vida particular. Você não adivinha o que eu estou fazendo
agora, menina. As coisas não são mais como eram. Os tempos
mudaram. Lá onde estou trabalhando agora eles fazem tudo no dobro da
velocidade. A gente trabalha que é um inferno. Cada dia aprontamos um
andar inteiro, ou mais. É. É muito diferente de antigamente. Eles já têm
tudo projetado, conhecem todos os macetes, e tudo está previsto até
nos menores detalhes . . .
Continuou falando, e Manu ouvindo com atenção. À medida que
ela ouvia, ele ia parecendo menos entusiasmado. De repente parou e
passou pela testa a mão cheia de calos.
__ Tudo isso que eu estive dizendo é um monte de bobagens –
falou de repente, com tristeza. __ Sabe, Manu, eu estou de novo
bebendo demais. Reconheço. Hoje em dia eu muitas vezes passo da
conta. Se não fosse assim eu não podia agüentar aquilo que estamos
fazendo lá. Quero dizer: vai contra a consciência de um operário
honesto. Areia demais no cimento, por exemplo. Vai durar uns quatro ou
cinco anos e aí basta soprar em cima pra cair tudo aos pedaços. Tudo
trabalho ordinário, malfeito! E isso ainda não é o pior. Pior é o tipo de
casas que estamos construindo. Não são casas, são . . . são gaiolas! É da
gente ficar doente . . . Mas, afinal, com que tenho eu de me preocupar?
Enquanto estiver recebendo o meu dinheiro está OK, não é? Mas o que
eu sentia antigamente era outra coisa: costumava ter orgulho do meu
56

trabalho quando construíamos alguma coisa que valesse a pena ver, e


agora . . . Um belo dia, quando eu tiver ganhando o bastante, largo tudo
isso e vou fazer coisa completamente diferente.
Ficou de cabeça baixa, os olhos perdidos no espaço, enquanto
Manu não dizia nada, apenas ouvia o que ele tinha a dizer. Dali a pouco
Nicolau continuou, baixinho:
__ Quem sabe eu devia recomeçar a ir visitá-la, e contar tudo isso.
É devia mesmo. Que tal amanhã? Ou então depois de amanhã? Tenho
que ver como é que encaixo isso. Mas vou sem falta. Então, está bem,
está combinado?
__ Combinado – respondeu Manu, alegre, e então se despediram
porque ambos estavam muito cansados.
Porém Nicolau não apareceu no dia seguinte, nem no outro dia.
Não apareceu nunca. Com certeza ele já não tinha mais tempo.

A seguir Manu foi procurar o dono do bar-restaurante, Nino, e sua


mulher Liliane. A casinha velha, meio descascada, com uma trepadeira
crescendo junto à porta, ficava num arrabalde da cidade.
Manu deu a volta por trás, como costumava fazer. A porta estava
aberta, e muito antes de chegar Manu já ouvia a briga violenta dos dois.
Liliane batia as panelas no fogão, seu rosto gorducho reluzindo de suor.
Nino gritava com ela e gesticulava. Deitado no berço, a um canto, o
bebê berrava. Sem barulho, Manu sentou-se, apanhou nos braços o
bebê, acalentando-o devagar, até que ele parou de gritar. Marido e
mulher interromperam o bate-boca e olharam naquela direção.
__ Ah, é você, Manu? – disse Nino, com um breve sorriso. __ Que
prazer, vê-la de novo.
__ Quer comer alguma coisa? – perguntou Liliane, meio brusca.
Manu balançou negativamente a cabeça.
__ Então o que é que você quer? – indagou Nino, irritado. __ Neste
momento não temos tempo para atendê-la.
57

__ Eu só vim perguntar por que é que há tanto tempo vocês não


me visitam.
__ Ora, não sei por quê – respondeu Nino ainda mais irritado. __
Agora nós temos outras coisas em que pensar, sabe?
__ É isso – gritou Liliane, sacudindo as panelas –, ele tem mesmo
outras coisas em que pensar . . . tais como livrar-se de nossos queridos
fregueses antigos -–agora é só no que ele pensa! Lembra-se, Manu,
daqueles velhos que costumavam se sentar à mesa do canto? Pois Nino
mandou eles embora – botou pra fora!
__ Não foi assim – protestou Nino. __ Eu só pedi, com bons modos,
que eles procurassem outro bar-restaurante. Como dono eu tenho o
direito de fazer isso.
__ Ora, o direito, o direito! – exclamou Liliane, exasperada. __ Você
simplesmente não pode fazer uma coisa dessas. É injusto e horrível.
Você sabe muito bem que eles não vão encontrar outro bar. E eles aqui
não incomodavam ninguém.
__ Claro que não incomodavam ninguém! – gritou Nino. __ Porque
os fregueses decentes, que pagam, não vinham aqui enquanto aqueles
velhos barbudos estivessem amontoados ali no canto. Você acha que as
pessoas apreciam esse espetáculo? E eles só podem gastar um copo de
vinho barato por noite, o que não dá lucro nenhum. Desse jeito nós
nunca vamos chegar a nada.
__ Até agora nos arrumamos muito bem – retrucou Liliane.
__ Até agora, sim! – continuou Nino com veemência. __ Mas você
sabe perfeitamente que isso não pode continuar assim. O aluguel subiu.
Tenho que pagar um terço mais do que costumava. Tudo está subindo.
Onde é que eu vou arranjar o dinheiro, se transformar meu bar-
restaurante num asilo de velhos? Por que é que eu tenho de cuidar dos
outros? Ninguém cuida de mim.
A gorda Liliane bateu com uma frigideira no fogão. Com as mãos
nas cadeiras gritou:
__ Deixe eu lhe dizer uma coisa: acontece que um desses velhos
sem vintém, como você diz, é meu tio Ettore, e eu não vou ficar quieta
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aqui ouvindo você xingar minha família. O tio é um homem bom e


honesto, mesmo que ele não tenha tanto dinheiro quanto esse seu
público pagante!
__ Mas Ettore pode continuar a vir – respondeu Nino com um gesto
magnânimo. __ Eu já disse a ele que pode vir se quiser, mas ele não
quer.
__ Claro que não quer, sem os velhos amigos! Que é que você
pensa? Imagina que ele vai ficar ali encolhido, sozinho, no canto?
__ Então não posso fazer mais nada! – berrou Nino. __ O fato é que
eu não quero passar o resto da minha vida com um bar-restaurante de
Segunda classe, só para benefício de seu tio Ettore. Eu quero fazer algo
da minha vida! Será um crime? Quero endireitar isso aqui, quero que
seja um lugar concorrido, e não estou fazendo isso só por minha causa,
é igualmente por você e por nossa filha. Será que você não entende,
Liliane?
__ Não, não entendo – retrucou Liliane secamente. __ Se a única
maneira de você melhorar de vida é sendo sem coração, então pode se
arrumar sem minha ajuda. Um belo dia eu me canso e vou embora. Por
isso pode ficar à vontade. – dizendo isso, ela tirou dos braços de Manu a
criança, que tinha recomeçado a chorar, e correu para fora da cozinha.
Durante algum tempo Nino não disse nada. Acendeu um cigarro,
que ficou rodando nos dedos. Manu olhava para ele. Por fim disse:
__ É. Eu sei que eles eram bons sujeitos. Eu até gostava deles.
Sabe, Manu, eu fico com pena de verdade – mas que é que eu podia
fazer? Os tempos mudaram.
Após outro silêncio, ele tornou a falar:
__ Afinal, quem sabe Liliane tenha razão. Desde que aqueles
velhos camaradas deixaram de aparecer, o bar me parece diferente: frio,
sabe como é? Eu mesmo já não me sinto bem ali. Honestamente, não sei
o que é mais certo fazer. Mas, se hoje em dia todos agem assim, por que
devo eu ser o único a fazer alguma coisa diferente? Ou você acha que
eu devia?
59

Com um movimento quase imperceptível, Manu acenou que sim.


Nino olhou para ela, e também acenou com a cabeça. Depois ambos
sorriram.
__ Foi bom você ter vindo – disse Nino. __ Eu tinha esquecido
completamente que nós costumávamos dizer: “Vá falar com Manu”,
quando havia alguma dificuldade. Mas agora eu vou recomeçar a visitá-
la, e vou levar Liliane. Depois de amanhã é nosso dia de folga e nós
vamos aparecer lá. De acordo?
__ De acordo – respondeu Manu.
Então Nino deu-lhe um saco cheio de laranjas e maçãs, e Manu
voltou para casa. No dia combinado Nino e sua mulher foram, de fato,
visitar Manu, levando o bebê e uma cesta cheia de coisas gostosas.
__ Imagine só, Manu – disse Liliane, radiante –, Nino foi procurar tio
Ettore e os outros velhos – cada um deles –, desculpou-se e pediu que
voltassem.
__ É – continuou Nino com um sorriso, coçando a orelha. __ Isso é o
fim da minha idéia de fazer do bar um local de mais classe, mas estou
de novo gastando de lá. – Ele riu, e a mulher disse:
__ Acho que vai dar tudo certo, Nino.
Foi uma tarde esplêndida, e quando eles partiram prometeram
voltar breve.
Manu foi procurar todos os seus velhos amigos, um por um.
Procurou o carpinteiro que tinha feito a mesinha e as cadeiras para ela.
Procurou a mulher que lhe dera a cama. Enfim, procurou todos aqueles
aos quais costumava ouvir, todos aqueles que, graças a ela, tinham se
tornado mais esclarecidos, mais resolutos, ou mais felizes. Todos eles
prometeram voltar de novo. Mas alguns não cumpriram a promessa, ou
não puderam cumprir porque não tinham tempo. Entretanto, muitos
voltaram, e tudo ficou sendo quase como era antes. Isso demonstrava
que Manu estava interferindo nos planos dos homens cinzentos, e eles
não iam permitir que ela fizesse isso.
60

Poucos dias depois, numa manhã muito quente, Manu encontrou


uma boneca nos degraus de pedra do antigo anfiteatro. Já havia
acontecido de as crianças esqueceram, ou simplesmente largarem ali,
um daqueles brinquedos caros com os quais eram impossíveis brincar,
porém Manu não se lembrava de ter visto alguma criança com uma
boneca assim; e ela teria forçosamente reparado, pois era uma boneca
muito fora do comum. Era quase do tamanho da própria Manu, e tão
bem-feita que quase poderia passar por um pequeno ser humano. Mas
não parecia uma criança ou um bebê; era como uma moça elegante, ou
um manequim de vitrina. Usava um vestido curto, vermelho, e sapatos
de salto alto.
Manu ficou olhando para ela, fascinada. Depois estendeu a mão e
pegou a boneca, que, imediatamente, piscou os olhos, moveu os lábios e
disse numa voz esganiçada:
__ Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita.
Manu recuou, assustada, porém respondeu automaticamente:
__ Bom dia. Meu nome é Manu.
A boneca moveu novamente os lábios, dizendo:
__ Eu sou sua. Toda gente tem inveja porque eu sou sua.
__ Acho que você não é minha, não – retrucou Manu. __ Creio que
alguém esqueceu e largou você aqui.
Pegou a boneca e levantou-a. Os lábios tornaram a mover-se e ela
disse:
__ Eu gostaria de ter algumas coisas mais.
__ Ah, é? – respondeu Manu, e refletiu um momento. __ Eu não sei
se você gostaria das coisas que eu tenho. Mas espere um instante: vou
mostrar, e você pode dizer se gosta de alguma delas.
Carregando a boneca, passou pelo buraco no muro que dava para
seu quarto. Puxou de sob a cama uma caixa cheia dos seus tesouros, e
abriu-a diante de Bibi.
__ Está aqui: isto é tudo o que eu tenho. Mas se você gostar de
alguma coisa, é só dizer.
61

E mostrou para a boneca uma pena de pássaro multicor, uma


pedrinha com bonitos veios, um botão de metal dourado e um
pedacinho de vidro colorido. Como a boneca não respondesse, Manu
deu-lhe um cutucão. A voz esganiçada recomeçou:
__ Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita.
__ Já sei – respondeu Manu. __ Mas, Bibi, você disse que gostaria
de ter algumas coisas mais. Olhe, eu tenho uma linda concha cor-de-
rosa – Você gostaria?
__ Eu sou sua. Toda gente tem inveja porque eu sou sua.
__ Sei, você já disse isso. Se você não gosta de nenhuma das
minhas coisas, quem sabe nós podíamos inventar um brinquedo?
Vamos?
__ Eu gostaria de ter algumas coisas mais – repetiu a boneca.
__ Eu não tenho nada mais – respondeu Manu. Carregou
novamente a boneca e escalou a abertura no muro. Uma vez fora,
colocou a boneca no chão e sentou-se em frente dela.
__ Vamos fingir que você veio me visitar – sugeriu Manu.
__ Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita.
__ Que prazer recebê-la em minha casa. De onde a senhora veio,
madame? – falou Manu.
__ Eu sou sua. Toda gente tem inveja porque sou sua.
__ Tá bem, mas escute: se você continuar repetindo as mesmas
coisas, nós não podemos brincar.
__ Eu gostaria de ter algumas coisas mais – continuou a boneca,
piscando os olhos.
Manu tentou outra brincadeira, e quando não deu certo
experimentou outra e mais outra e mais outra. Mas nenhuma dava
certo. Se a boneca não dissesse nada, Manu teria respondido por ela, e
poderiam ter uma esplêndida conversa. Porém o simples fato de que Bibi
podia falar estragava qualquer tentativa de conversar. Dali a pouco
Manu começou a sentir uma coisa que nunca na sua vida havia sentido,
e como era novidade levou algum tempo até identificar o que era –
tédio. Manu sentiu-se desamparada. O que ela gostaria de fazer seria
62

simplesmente largar ali a boneca perfeita e ir brincar de alguma outra


coisa. Mas havia algo que não lhe permitia afastar-se do lugar, então ela
ficou ali sentada, fitando a boneca que a olhava fixamente com seus
olhos de vidro azul. Era como se as duas se tivessem hipnotizado
mutuamente.
Por fim Manu conseguiu desviar da boneca seu olhar, e assim
fazendo teve um susto, pois ali pertinho estava um elegante automóvel
cinzento que ela não ouvira chegar. No carro estava um senhor, vestido
de um terno cor de teia de aranha e um chapéu-coco cinzento. Fumava
um charutinho cinzento, e seu rosto também era da cor das cinzas. O
homem já devia estar observando Manu há algum tempo, pois fez-lhe
um cumprimento de cabeça e sorriu; e embora o dia estivesse tão
quente que o calor reverberava no ar, de repente Manu sentiu um
calafrio. O homem abriu a porta do carro, desceu e foi ao encontro da
menina, carregando uma pasta cinza-aço.
__ Que linda boneca você tem! – disse numa voz esquisita, sem
entonação. __ Com certeza todas as suas amigas a invejam por isso.
Manu sacudiu os ombros sem responder.
__ Deve ter custado caro, não? – continuou o senhor cinzento.
__ Não sei – murmurou Manu, meio sem jeito. __ Eu encontrei ela
aqui.
__ Não diga! – exclamou o homem. __ Você é a Favorita da Sorte.
Manu não disse nada, apertando mais em torno do corpo seu largo
paletó, pois estava ficando mais frio.
Com um sorriso de seus lábios magros, o homem continuou:
__ Devo dizer que você não me parece feliz com isso, menina.
Manu sacudiu a cabeça. Subitamente parecia-lhe que toda
felicidade fugira do mundo para sempre, ou melhor, que nunca existira
felicidade e o que ela julgara ser felicidade fosse simplesmente
imaginação sua. Ao mesmo tempo sentia alguma coisa que era como um
alarme de perigo.
__ Eu já estive observando durante algum tempo – continuou o
senhor cinzento, – e parece-me que você não tem idéia de como brincar
63

com uma boneca tão maravilhosa. Quer que eu lhe mostre a maneira
certa?
Manu olhou para ele com uma expressão de surpresa, e fez um
sinal que sim.
__ Eu gostaria de ter algumas coisas mais – disse de repente a
boneca.
__ Está ouvindo? Menina – prosseguiu o homem –, ela mesma até
lhe ensina. É claro que você não pode brincar com uma boneca tão
maravilhosa do mesmo jeito que com outra qualquer. Ela não foi feita
para isso. Você tem sempre que ir lhe dando alguma coisa para poder
brincar. Olhe para isso, menina.
Abriu o porta-malas do carro:
__ Em primeiro lugar, ela precisa de boa quantidade de roupas.
Aqui, por exemplo, está um adorável vestido de noite para ela – pegou o
vestido e jogou para Manu. __ E aqui um casaco de peles feito de mink
verdadeiro, e aqui um pijama de seda, e uma roupa de tênis, e um
conjunto para esquiar, e um maiô de banho, e uma roupa de montaria, e
um penhoar, e outro vestido, e outro, e outro, e mais outro . . .
Ia jogando uma coisa atrás da outra, formando uma pilha cada vez
mais alta entre Manu e a boneca.
__ Então?! – e tornou a esboçar aquele sorriso superficial: __ Com
tudo isso você vai ser capaz de brincar durante muito tempo, não vai?
Ou acha que depois de alguns dias vai perder a graça? Muito bem, nesse
caso só o que você tem a fazer é arranjar mais algumas coisas para sua
boneca.
Tornou a se debruçar sobre o porta-malas do carro, e recomeçou a
jogar coisas para Manu.
__ Aqui, por exemplo, está uma bolsinha de pele de cobra
verdadeira, e dentro um batonzinho de verdade e caixinha de pó-de-
arroz. E aqui uma maquininha de tirar retrato, e uma raquete de tênis, e
isto aqui é uma televisão para boneca que funciona mesmo, e aqui uma
pulseira e um colar e uns brincos, e um revólver de boneca, e umas
meias de seda, e um chapéu com pluma, e um chapéu de palha, e um
64

conjunto para jogar golfe, e um livrinho de cheques, e um vidrinho de


perfume, e uns sais para banho, e loções para o corpo . . .
Fez uma pausa e com o olhar examinou a expressão de Manu, que
estava sentada no chão, no meio de todos aqueles objetos, como que
paralisada.
__ Está vendo? É muito simples. É só você ir arranjando sempre
mais coisas, e assim nunca sentirá tédio. Mas talvez você pense que um
dia Bibi, a boneca perfeita, terá tudo, e então virá o tédio. Não, menina,
não há perigo. Olhe só, nós temos o companheiro para Bibi.
Dizendo isso tirou do porta-malas um boneco. Era do mesmo
tamanho de Bibi, e, como ela, perfeito em todos os detalhes, porém era
uma rapaz. O homem cinzento colocou-o ao lado de Bibi, a boneca
perfeita, e explicou:
__ Este é Bubi. Também tem uma quantidade de coisas para ele. E,
quando até isso ficar sem graça, nós temos uma amiga para Bibi, com
roupas que só servem para ela. E Bubi também tem um amigo, e esse
amigo tem outros amigos, de modo que você nunca ficará entediada,
porque a coisa pode continuar indefinidamente, e restará sempre
alguma coisa para ser desejada.
Enquanto falava ia tirando do porta-malas – que parecia
inesgotável – boneca atrás de boneca, colocando-as em torno de Manu,
que continuava sentada, sem se mexer, olhando para ele com uma
expressão quase de pavor.
__ Então? – indagou o homem, soltando baforadas do charuto. __
Agora você compreende como é que se brinca com essas bonecas?
__ Compreendo – retrucou Manu, que estava tremendo de frio.
O senhor cinzento acenou, satisfeito, e soltou outra baforada.
__ Naturalmente, você gostaria de ter todas essas coisas lindas,
não é? Muito bem, eu vou lhe dar isso tudo – não tudo de uma vez, é
claro, mas aos poucos – e muito, muito mais ainda. E você não precisa
fazer nada em troca. A única coisa é brincar do jeito que eu ensinei. Que
tal?
65

O homem cinzento sorria para Manu, esperando a resposta. Como


ela continuasse em silêncio, só olhando para ele muito séria, ele
acrescentou às pressas:
__ E aí então você não vai mais precisar dos seus amigos, não é?
Quando todas essas coisas lindas forem suas, e você ainda puder ganhar
mais outras, vai ter muito com que se divertir, não é? E você ficará
satisfeita, não é? Você quer mesmo ter essa boneca maravilhosa, não é?
Manu sentia vagamente que tinha uma batalha pela frente, ou
melhor, que já estava em pleno combate, embora sem saber o motivo
da batalha nem contra quem estava combatendo. Mas, à medida que
ouvia o visitante, ia sentindo, reforçada, a mesma impressão que tivera
com a boneca. Ouvia a voz falando, ouvia as palavras ditas, mas não
conseguia perceber quem é que estava falando. Sacudiu a cabeça.
__ Como, como? – disse o senhor cinzento, erguendo as
sobrancelhas. __ Você ainda não está satisfeita? Vocês, crianças de hoje,
são mesmo difíceis . . . Poderia você me dizer que é que ainda está
faltando nesta boneca perfeita?
Manu olhou para o chão, refletindo. Depois disse baixinho:
__ Acho que ninguém pode ter amor por ela.
Durante algum tempo o homem não respondeu: fitava o espaço
como se seus olhos fosse de vidro, como os da boneca. Por fim disse
num tom mais do que frio, gelado:
__ Isso não tem importância.
Manu olhou-o bem de frente, encarando-o. O homem a assustava,
principalmente porque o seu olhar gélido parecia esfriar tudo em torno;
entretanto, ela sentia pena dele, embora não soubesse explicar por quê.
__ Mas eu tenho amor por meus amigos – retrucou.
O homem cinzento fez uma careta, como se tivesse um acesso de
dor de dente, mas logo se controlou e, com um sorriso cortante como
uma navalha, disse suavemente:
__ Menina, acho que um dia desses nós precisamos ter uma
conversa séria, para você aprender aquilo que é importante e aquilo que
não é.
66

Tirou do bolso um caderninho cinzento, e foi virando as páginas


até encontrar o que buscava:
__ Seu nome é Manu, não é?
Manu acenou com a cabeça.
O homem fechou com um estalo o caderninho, e foi se abaixando –
disfarçando um gemido – até sentar-se no chão, ao lado de Manu.
Durante algum tempo não disse nada, apenas soltou baforadas do
charutinho, com ar pensativo. Afinal começou:
__ Vamos conversar, Manu. Ouça com atenção o que eu vou dizer.
Era isso que Manu vinha tentando fazer, desde o começo, mas era
muito mais difícil ouvi-lo do que ouvir qualquer outra pessoa. Com
outras pessoas ela tinha a impressão de penetrar-lhes o espírito,
compreender o que elas estavam pensando, e sentir a maneira de ser
delas. Mas com este visitante, era impossível. Cada vez que ele tentava,
tinha a impressão de estar mergulhando de cabeça num vazio escuro,
como se ali não houvesse ninguém. Até então nunca havia encontrado
coisa assim.
O cavalheiro cinzento começou a lição:
__ A única coisa que importa na vida é o sucesso, é tornar-se
alguém, é ter posses. Se você é um sucesso, é alguém, tem posses, tudo
o mais vem automaticamente – amizade, amor, honras, e assim por
diante. Agora, você me diz que tem amor aos seus amigos. Vamos
examinar o caso com toda a imparcialidade.
Soprou no ar alguns anéis de fumaça, e Manu enfiou os pés por
baixo da saia, agasalhando-se o melhor possível dentro do paletó.
__ A primeira questão que surge é esta: que é que seus amigos
ganham, de fato, com a sua existência? Você é útil a eles? Não. Você os
ajuda a progredir na vida, a ganhar mais dinheiro ou conquistar
posições? Claro que não. Você os auxilia em seus esforços para poupar
tempo? Ao contrário. Você os prejudica em tudo, você é feito uma pedra
amarrada no pescoço, você impede o progresso deles na vida! Talvez
você até agora não tenha percebido isso, Manu, mas você está
prejudicando seus amigos pelo simples fato de existir. É, na verdade, e
67

sem que seja essa sua intenção, você é inimiga deles. É isso que você
chama ter amor?
Manu não sabia o que responder. Nunca tinha olhado as coisas sob
esse aspecto. Teve um momento de incerteza: quem sabe ele estava
com a razão.
__ Por isso – continuou o senhor cinzento – é que nós precisamos
proteger seus amigos contra você. Se você gostar realmente deles, vai
nos ajudar. Nós queremos que eles tenham sucesso. Nós somos os
verdadeiros amigos. Não podemos ficar quietos, olhando, enquanto você
os afasta de tudo aquilo que importa. Nós temos que agir para que você
não se meta com eles, e é por isso que estamos dando a você todas
essas coisas lindas.
__ Quem é nós? – perguntou Manu, com os lábios trêmulos.
__ Nós, do Banco Poupa-Tempo. Eu sou o agente BLW/553/c.
Pessoalmente, não desejo a você nada de mal, porém com o Banco
Poupa-Tempo não se brinca.
Nesse momento Manu lembrou-se do que Beppo e Nicolau haviam
dito a respeito de a poupança do tempo ser mania contagiosa, e teve a
horrível suspeita de que aquele senhor cinzento tinha algo a ver com
isso. Como gostaria que seus dois amigos estivessem ali a seu lado . . .
Nunca se sentira tão sozinha. Apesar disso, resolveu não se deixar
assustar, então apelou para toda a sua coragem, mergulhando de
cabeça para o fundo da escuridão vazia atrás da qual o homem cinzento
se tinha escondido.
O homem, com o canto do olho, não a perdia de vista. A mudança
de sua expressão não lhe escapou, e, sorrindo ironicamente, enquanto
acendia um novo charuto no toco do outro, disse:
__ Não adianta resistir. Você não é parada para nós.
Manu agüentou firme.
__ Não há ninguém que tenha amor por você? – sussurrou.
O homem cinzento contorceu-se dolorosamente, e de repente
pareceu encolher. Numa voz sem timbre, como feita de cinzas,
respondeu:
68

__ Devo dizer que nunca encontrei ninguém como você, palavra


que não, embora conheça muita gente. Se houvesse mais pessoas como
você, nós em breve teríamos de fechar o Banco Poupa-Tempo, e nos
desmancharíamos no nada – pois com o que iríamos nos sutentar?
Parou de repente. Fitava Manu, e parecia estar lutando contra
alguma coisa que não podia entender e com qual não sabia lidar. Seu
rosto tornou-se mais cinza.
Quando recomeçou a falar, foi como se o fizesse contra a sua
vontade, como se as palavras jorrassem espontaneamente, sem que
tivesse forças para impedir. Seus traços se tornavam cada vez mais
desfigurados pelo horror daquilo que lhe estava acontecendo.
E então, por fim, Manu pôde ouvir sua verdadeira voz, se a voz
viesse de muito longe. – Ninguém pode saber que nós existimos,
ninguém pode descobrir o que estamos fazendo. Tomamos o cuidado de
fazer com que ninguém nunca se lembre de nós . . . pois é só enquanto
somos desconhecidos que podemos fazer nosso negócio . . . É um
negócio melancólico, esse de roubar o tempo dos outros em horas, em
minutos, em segundos . . . pois todo o tempo que eles poupam está
perdido para eles... Nós nos apoderamos desse tempo . . . o
entesouramos . . . precisamos dele... nós o cobiçamos. Vocês, humanos,
não sabem o que o tempo vale! Mas nós sabemos, e estamos sugando
vocês . . . e precisamos mais . . . e mais . . . porque nós somos cada vez
mais numerosos . . . mais e mais . . . – As últimas palavras haviam
saltado da garganta do homem como um estertor sinistro. Ele apertou as
duas mãos sobre a boca, os olhos saltando fora das órbitas enquanto
encarava fixamente Manu.
Após um momento, pareceu emergir de uma espécie de transe.
Gaguejou:
__ Que que a-aconteceu? V-você a-aí escutando? Eu estou doente,
e você é que me fez ficar doente!
Depois mudou para um tom persuasivo:
__ Eu disse uma porção de asneiras. Esqueça, menina. Você
precisa também se esquecer de mim, como todo mundo se esquece.
69

Precisa! Precisa! – e agarrou Manu. Ela movia os lábios mas não


conseguia falar.
De repente, o homem se levantou de um salto, olhou para trás
como se estivesse sendo perseguido, agarrou sua pasta cinza e correu
para o carro. Aconteceu então algo muito estranho. Como uma explosão
às avessas, todas as bonecas e seus pertences, que estavam espalhadas
por ali, voaram para dentro do porta-malas do carro, cuja tampa bateu,
fechando-se, e o carro partiu roncando, erguendo pedregulhos pelo
caminho.
Manu continuou sentada no mesmo lugar durante muito tempo,
tentando compreender aquilo que acabara de ouvir. Pouco a pouco foi
passando aquele frio horrível que sentia, e tudo foi se tornando mais
claro. Ela não esqueceu nada, porque ouvira a verdadeira voz do homem
cinzento.
Uma leve espiral de fumaça subia da grama ressecada, a seus pés.
O toco do charuto do visitante, caído ali, ia se apagando, virando cinza.

8. Muitos sonhos e algumas dúvidas

Na tarde daquele dia Guido e Beppo apareceram. Encontraram


Manu sentada à sombra do muro, ainda meio pálida e aflita. Sentaram-
se então junto dela e, inquietos, indagaram do que se tratava.
Manu, num tom hesitante, começou a contar o que acontecera.
Acabou repetindo palavra por palavra a conversa que tivera com o
homem cinzento, e enquanto ouvia, o velho Beppo não despregava os
olhos de Manu, com ar muito sério, as rugas na sua testa tornando-se
mais profundas. Não disse nada, mesmo quando Manu acabou de contar.
Guido, ao contrário, escutara, mostrando-se mais animado. Seus
olhos começaram a brilhar, como acontecia quando ele se entusiasmava
com uma de suas histórias. Pôs a mão no ombro de Manu, dizendo:
__ Agora, Manu, chegou a hora da nossa vitória! Você descobriu
uma coisa que até agora ninguém sabia direito o que era. Assim vamos
70

poder salvar não só os nossos velhos amigos, mas a cidade inteira! Só


nós três, Beppo, eu e você.
Dizendo isso, ele se ergueu de um pulo, e estendeu os braços.
Estava imaginando uma vasta multidão à sua frente, todos o aclamando
como libertador.
__ Sim – respondeu Manu, ligeiramente perplexa, – mas como é
que vamos poder fazer isso?
__Que é que você quer dizer com esse como? – perguntou Guido,
meio irritado.
__ Quero saber como é que nós podemos derrotar os homens
cinzentos.
__ Ah, bom – retrucou Guido –, no momento é claro que eu
também não sei exatamente como. Vamos ter que estudar o assunto.
Mas uma coisa é evidente: agora que nós sabemos que eles existem e
como estão agindo, precisamos combatê-los – isto é, a não ser que você
tenha medo!
Manu acenou com a cabeça, timidamente:
__ Eu acho que eles não são gente como nós. O homem que veio
me ver tinha algo diferente. E o frio é terrível. E se existem muitos deles,
isso é mesmo um perigo. Tenho medo, sim.
__ Ora, bobagem! – gritou Guido, entusiasmado. __ A coisa é
perfeitamente simples. Esses senhores cinzentos só podem levar avante
seus negócios sinistros enquanto ninguém os identificar. Foi o seu
próprio visitante quem deixou escapar esse segredo. Então, aí está: só o
que temos a fazer é ter certeza de que as pessoas os reconhecerão, pois
quem os identificar uma vez poderá lembrar-se deles, e quem se
lembrar poderá reconhecê-los imediatamente. Assim eles não poderão
nos fazer mal algum. Estamos ao abrigo dos ataques.
__ Você acha? – perguntou Manu, meio duvidosa.
__ Claro que acho! – continuou Guido, os olhos brilhando. __ Se não
fosse assim, seu visitante não teria partido em tal disparada. Eles
tremem só de pensar em nós.
71

__ Mas pode ser que a gente não consiga encontrá-los. Talvez eles
se escondam de nós.
__ Isso pode muito bem acontecer – concordou Guido. __ Nesse
caso nós temos é que atraí-los para fora do seu esconderijo.
__ De que jeito? Acho que eles são muito espertos . . .
__ Nada mais simples! – E Guido estourou de tanto rir. __ Vamos
pegá-los com a isca adequada a eles. Se a gente apanha camundongo
com toucinho, é com tempo que temos de pegar os ladrões de tempo. E
isso temos muito. Por exemplo, você poderia ficar sentada aqui, fazendo-
se de isca para atraí-los, e então Beppo e eu saltaríamos de nosso
esconderijo e agarraríamos os tais homens.
__ Mas eles já me conhecem – objetou Manu.
__ Ora, não importa – continuou Guido, fervilhante de novas idéias.
__ Basta a gente fazer alguma coisa. O homem cinzento falou num
Banco Poupa-Tempo. Deve ser um prédio, e certamente deve ficar na
cidade, e só o que temos a fazer é encontrá-lo. E não será difícil, pois
garanto que é um edifício muito esquisito, como um cofre gigantesco
feito de concreto. Já estou até imaginando. Quando o encontrarmos,
vamos entrar, cada um de nós com uma pistola automática em cada
mão, e eu falo: “Entreguem já todo o tempo roubado!”
__ Mas nós não temos pistolas . . . – interrompeu Manu, aflita.
__ Então vamos sem pistolas – respondeu Guido, grandiloqüente.
__ Aí eles vão ficar ainda mais assustados. Nossa chegada já vai bastar
para espalhar o pânico . . .
__ Seria uma boa idéia ter mais gente, e não só nós três, para
encontrarmos mais depressa o Banco Poupa-Tempo.
__ A idéia é ótima – respondeu Guido. __ Nós devíamos mobilizar
todos os nosso velhos amigos, e todas as crianças que costumam vir
aqui. Proponho partirmos imediatamente, nós três, e cada um de nós
conte o caso a cada pessoa que encontrar, e que cada uma passe
adiante as notícias para outras. Vamos todos nos encontrar aqui
amanhã, às três horas, para um grande conselho.
72

Partiram imediatamente. Manu numa direção, Beppo e Guido em


outra. Depois de terem caminhado um pouco, Beppo – que até então
havia mantido o silêncio – de repente parou.
__ Escute, Guido. Estou preocupado.
__ E por quê?
Beppo fitou-o por alguns momentos antes de dizer:
__ Eu acredito em Manu.
__ E daí? – indagou Guido, surpreso.
__ Quero dizer, acredito que é verdade aquilo que ela nos contou.
__ É claro. Mas por que está preocupado?
__ Porque, se o que Manu contou é verdade, precisamos pensar
muito, e com cuidado, antes de fazer qualquer coisa. Se é realmente
questão de lidar com um bando secreto de criminosos, só podemos
enfrentá-los quando estivermos bem preparados. Se os desafiarmos
simplesmente, talvez estejamos colocando Manu numa situação muito
perigosa. Eu não estou preocupado com você, nem comigo, mas, se
envolvermos crianças no caso, elas estarão correndo perigo.
__ Ora, bobagens! – exclamou Guido rindo – Você está sempre
preocupado com alguma coisa. É claro que quanto mais gente tivermos
conosco, melhor.
__ Eu acho que você não acredita que é verdade o que Manu
contou – retrucou Beppo, muito sério.
__ Depende do que você entende por verdade. Beppo, você não
tem imaginação. O mundo todo não passa de uma grande história, e nós
todos somos parte dessa história. Seja como for, eu acredito realmente
em tudo o que Manu nos contou, creio tanto quanto você.
Beppo não teve nada para dizer, mas as palavras de Guido não
afastaram seus receios. Quando se separaram, partindo em direções
opostas para avisar todos os amigos e todas as crianças sobre a reunião
do dia seguinte, Guido ia de coração leve, Beppo sentia o seu muito
pesado.
Naquela noite Guido sonhou com sua futura fama como libertador
da cidade. No sonho viu-se elegantemente trajado, com Beppo de fraque
73

e Manu num vestido de seda branca. Uma comissão de cidadãos colocou


correntes de ouro no pescoço dos três, e foram coroados com folhas de
louro. Ouvia-se música triunfal, e a cidade organizou, em homenagem
aos seus salvadores, um desfile à luz de tochas, mais longo e magnífico
do que jamais tinham visto.
Enquanto Guido sonhava, o velho Beppo estava deitado na cama
sem conseguir dormir. Quanto mais refletia sobre o assunto, mais
claramente discernia o perigo. Naturalmente não podia deixar Manu e
Guido se arriscarem sozinhos – ele iria junto, fosse qual fosse o desfecho
–, mas devia ao menos tentar segurá-los.
No dia seguinte, às três horas da tarde, nas ruínas do antigo
anfiteatro ressoavam gritos entusiastas e o borburinho de muitas vozes.
Infelizmente, os amigos adultos de Manu não tinham comparecido
(exceto Guido e Beppo, é claro), mas ali estavam cinqüenta ou sessenta
crianças, vindas de perto e de longe, umas ricas, outras pobres, algumas
bem-falantes, outras encabuladas, algumas grandes e outras pequenas.
Algumas, como Maria, traziam pela mão, ou no colo, um irmão ou
irmãzinha, e os pequeninos com o dedo na boca, arregalavam os olhos
para aquela reunião extraordinária.
Naturalmente Gordon, Paulo e Mássimo ali se achavam, assim
como todas as crianças que tinham começado a freqüentar
recentemente o anfiteatro, e estavam especialmente interessados no
assunto em discussão. O meninozinho do rádio transístor também tinha
aparecido, embora desta vez sem o transístor. Sentou-se ao lado de
Manu; logo de saída disse-lhe que seu nome era Cláudio e que estava
alegre por ter vindo.
Quando se tornou evidente que não chegariam mais retardatários,
Guido Guia levantou-se e com gesto grandiloqüente pediu silêncio. A
tagarelice cessou e um silêncio cheio de expectativa caiu sobre o
anfiteatro.
__ Amigos – começou Guido em voz alta –, vocês todos sabem
mais ou menos do que se trata, conforme avisamos, quando foram
convidados para o nosso conselho secreto. Até agora, mais e mais
74

pessoas têm-se visto cada vez menos, apesar de tentarem poupar o


tempo de todo modo possível. Mas, como vocês verão, é justamente o
tempo que procuraram poupar que foi perdido. Como pôde acontecer tal
coisa? Manu descobriu isso.
“O tempo das pessoas tem sido positivamente roubado por um
bando de ladrões de tempo, e precisamos da ajuda de vocês para acabar
com essa quadrilha de criminosos de sangue-frio. Se vocês todos estão
dispostos a colaborar, a escura sombra que se estende pesadamente
sobre nossa gente poderá ser afastada de um golpe. Não acham que é
uma coisa pela qual vale a pena lutar?”
fez uma pausa e as crianças bateram palmas.
__ Mais adiante – continuou Guido – discutiremos o que
pretendemos fazer. Primeiro, porém, Manu vai contar o encontro que
teve com um desses bandidos e como ele próprio se denunciou.
__ Um momento – disse o velho Beppo, erguendo-se. __ Ouçam,
crianças! sou contra Manu falar. Ela não deve fazer isso, se ela falar, vai
arriscar-se – e também a vocês todos – ao maior perigo . . .
__ Oh! Deixe que ela fale! – gritaram várias crianças. __ Deixe
Manu falar!
Outras vozes juntaram-se a essas, e por fim bradavam todos em
coro:
__ Manu! Manu!
O velho Beppo sentou-se, tirou os óculos e esfregou os olhos.
Manu levantou-se, perplexa, sem saber a qual desejo satisfazer; de
Beppo ou das crianças. finalmente, começou sua narração, que os
pequenos ouviam encantados.
Quando terminou, seguiu-se pesado silêncio. Enquanto Manu
falava, um estranho constrangimento se apoderou deles. Não supunham
que aqueles ladrões de tempo fossem tão sinistros. Um pequenino
começou a soluçar alto e foi depressa acalmado.
__ Bem! – disse Guido, rompendo o silêncio – quem se arrisca a
unir-se a nós na luta contra os homens cinzentos?
75

__ Por que Beppo não queria que Manu contasse o que aconteceu
com ela? – perguntou Franco.
Guido sorriu, respondendo com segurança:
__ Beppo pensa que os homens cinzentos consideram inimigos
todos os que conhecem seu segredo e hão de persegui-los. Eu, porém,
estou certo de que o contrário é que é verdade: todo aquele que
conhece esse segredo se acautela e fica precavido contra eles, de modo
que os homens cinzentos não podem prejudicá-lo . . . isso é óbvio, não
é? Você tem de concordar, Beppo!
Mas Beppo apenas sacudiu vagarosamente a cabeça, e as crianças
ficaram silenciosas.
Guido tomou de novo a palavra:
__ De qualquer forma, uma coisa é certa: temos de ficar unidos
seja para o melhor ou para o pior, e sermos cautelosos, sem deixar que
nada nos assuste. É por isso que torno a perguntar: quem quer juntar-se
ao nosso grupo?
__ Eu! – disse Cláudio, levantando-se, um pouco pálido.
Outros seguiram seu exemplo, meio hesitantes a princípio, depois
com crescente entusiasmo. Afinal, todos os presentes aderiram.
__ E agora, Beppo – perguntou Guido apontando para as crianças
–, que diz você?
__ Muito bem! – respondeu Beppo, inclinando tristemente a
cabeça. __ Eu estou com vocês, é claro!
__ Certo! – e Guido voltou-se de novo para as crianças. __ Vamos
discutir nosso plano de ação. Quem sugere alguma coisa?
Todos puseram-se a refletir, e Paulo, o menino de óculos, falou:
__ Como é que eles fazem? Quero dizer, como é que se pode
realmente roubar o tempo? Como funciona isso?
__ Sim! – gritou Cláudio – afinal que é o tempo?
Ninguém soube responder.
__ De qualquer forma – disse Paulo, tirando os óculos – primeiro
que tudo, temos de encontrar um cientista para nos ajudar. De outro
modo não conseguiremos nada.
76

Do lado mais distante da arena, ergueu-se Maria com a irmãzinha


nos braços e disse:
__ O tempo talvez seja alguma coisa como os átomos. Afinal de
contas, existem hoje máquinas capazes de anotar fatos nos quais uma
pessoa tenha apenas pensado – vi isso na televisão. E agora há
especialistas em tudo.
__ Tenho uma idéia – gritou Mássimo, o menino gordo de voz
estridente. __ Quando se faz um filme, tudo se fixa na película. E quando
se usa um gravador, tudo se grava na fita. Talvez exista um aparelho
para registrar o tempo. Se soubermos onde encontrar um, bastará fazer
voltar atrás a fita e teremos de novo o tempo!
__ Qual, você com seus cientistas! – exclamou Franco. __ Não
poderíamos confiar neles! Supondo que achássemos um que conhecesse
tudo sobre o assunto, como havíamos de saber se ele não estaria
mancomunado com os ladrões de tempo! Aí sim é que ficaríamos numa
esrascada!
A objeção pareceu válida.
Nisso uma menina, visivelmente bem-educada, pôs-se de pé de
declarou:
__ Acho que a melhor coisa a fazer é ir à polícia e contar tudo!
__ Que pode fazer a polícia? – protestou Franco. __ Não de trata de
ladrões comuns. E de duas uma: ou a polícia os conhece há muito, e
nesse caso á óbvio ser incapaz de combatê-los, ou não sabe coisa
alguma dessa trapalhada, e não dará nenhuma solução. É o que eu
penso.
Seguiu-se um silêncio, misto de frustração e desânimo.
__ Mas temos de fazer alguma coisa! – disse afinal Paulo – e
devemos agir o mais depressa possível, antes que os ladrões fiquem
sabendo do nosso plano.
Novamente, Guido ergueu-se e começou a falar:
__ Meus queridos amigos, já examinei a questão a fundo. Já
formulei centenas de planos, rejeitando todos até encontrar um, capaz
de atingir o nosso alvo – desde que fiquemos unidos, é claro. Eu quis
77

apenas saber de algum de vocês teria uma idéia melhor. Pis bem, agora
vou dizer-lhe o que vamos fazer. – Calou-se por um momento e olhou
demoradamente para os ouvintes, ao redor da arena. Havia muito tempo
que não contava com tão numerosa assistência.
__ Como vocês sabem – continuou – a força dos homens cinzentos
está no fato de poderem agir em segredo, sem serem reconhecidos.
Portanto, o meio mais simples e eficiente para torná-los inofensivos é
cada um conhecer a verdade a respeito deles. Para conseguir isso,
faremos uma imensa demonstração pública, na qual todas as crianças
tomarão parte. Vamos pintar cartazes e faixas, desfilaremos pelas ruas e
convidaremos todo o povo da cidade a vir a este velho anfiteatro a fim
de lhe contarmos tudo. Isso despertará extraordinário entusiasmo;
milhares de pessoas virão aqui, e, quando a imensa multidão estiver
reunida, revelaremos o terrível segredo. Então, no mesmo instante, o
mundo se transformará! Ninguém mais poderá roubar tempo de outro.
Cada qual terá o quanto necessita, pois daí em diante haverá de novo
tempo suficiente para todos. Seremos capazes de realizar isso, meus
amigos, se ficarmos unidos e tivermos uma boa vontade firme. Será que
temos?
A resposta foi uma enorme aclamação de júbilo.
__ Concluindo, pois – terminou Guido –, declaro por unanimidade
que resolvemos convidar a cidade inteira para vir ao velho anfiteatro no
próximo Domingo à tarde. Até lá, temos de conservar o mais absoluto
segredo quanto ao nosso plano. Entendido? É agora, meus amigos, mãos
à obra!
Nos dias seguintes, reinou secreta mas febril atividade entre as
crianças. surgiram potes de tinta, pincéis, papel, pepelão, cola e tudo o
mais necessário, sendo mais prudente que ninguém perguntasse de
onde provinha aquele material.
Algumas crianças fizeram cartazes e faixas enquanto outras, que
tinham boa letra, imaginaram e escreveram frases bem atraentes como
estas, por exemplo:
78

POUPAR TEMPO PARA QUEM?


POR QUE VOCÊ NÃO TEM MAIS TEMPO?
NÓS, AS CRIANÇAS, LHE CONTAREMOS! VENHA
AO ANFITEATRO NO PRÓXIMO DOMINGO ÀS TRÊS HORAS
VENHA E SABERÁ POR QUE O TEMPO JÁ NÃO É MAIS SEU!
NÓS LHE DIREMOS PARA ONDE ELE FUGIU!
ÀS TRÊS DA TARDE, DOMINGO, NO ANFITEATRO

Cada cartaz anunciava a hora e o lugar do encontro.


Afinal, estando tudo pronto, as crianças se colocaram em linha no
anfiteatro, tendo à frente Guido, Beppo, Manu, e numa longa fila
dirigiram-se para a cidade, empunhando cartazes e faixas. Faziam ao
mesmo tempo um barulhão com apitos e tampas de panelas, gritavam
as frases atraentes e entoavam uma canção especialmente composta
por Guido para a oportunidade:

“Cuidado, minha gente,


ouça nosso aviso,
escute a verdade,
ladrões estão roubando
o seu precioso tempo!

Cuidado, minha gente,


ouça o nosso aviso:
domingo às três da tarde,
saberão como livrar-se
de ladrões bem-disfarçados!”

Na verdade, havia mais vinte e sete versos que não é preciso citar
aqui.
Uma ou duas vezes, a polícia interveio para dispensar os
manifestadores, quando a passeata interrompia o trânsito. Mas as
crianças não desanimavam: reuniam-se em outro lugar e começavam
tudo de novo. Fora isso, nada ocorreu de maior importância, e apesar da
79

mais aguda vigilância não conseguiram descobrir nenhuma pista dos


homens cinzentos.
Vendo o desfile, muitas outras crianças, que até então nada
sabiam a respeito, aderiram à marcha, crescendo seu número a
centenas ou até milhares. De toda a parte, na grande cidade, crianças
afluíam agora pelas ruas, numa interminável procissão, convidando os
adultos para a importante assembléia que deveria mudar a face do
mundo.

9. Uma boa assembléia que não acontece e outra má que se


realiza

A hora marcada chegara e tinha passado. Passou, sem que


nenhum dos convidados tivesse aparecido. De fato, os adultos,
especialmente visados, mal notaram a passarela das crianças.
Assim havia sido tudo em vão.
O sol vermelho e resplandecente, num mar de nuvens arroxeadas,
já começava a declinar no horizonte. Seus raios douravam agora apenas
os últimos degraus do anfiteatro, nos quais, durante horas, centenas de
crianças estiveram sentadas, numa longa espera. Não se ouvia mais
nenhum burburinho de vozes, nenhuma risada alegre. Ali estavam elas
agora, tristes e silenciosas.
As sombras alongavam-se rapidamente. Em breve seria noite e as
crianças começaram a tiritar, pois o tempo esfriara muito. O relógio de
uma igreja distante bateu oito pancadas.
Não haviam mais nenhuma dúvida – toda aquela iniciativa
resultara em completo fracasso.
Algumas crianças se levantaram e saíram silenciosamente, logo
acompanhadas por outras. Ninguém proferia uma palavra. O
desapontamento fora demasiado grande.
Afinal, Paulo chegou-se a Manu:
__ Não adianta esperar mais. Não vem ninguém mesmo!
80

Com essas palavras, foi-se embora.


Em seguida, Franco aproximou-se, declarando:
__ Não se pode fazer nada! É inútil contarmos com os adultos.
Tivemos a prova hoje. Aliás, eu já não confiava neles, e agora não quero
mais saber de gente grande.
Dizendo isso, saiu, seguido por muitos companheiros. Por fim,
quando escureceu de todo, as crianças que ainda ali se achavam
perderam toda a esperança e partiram também.
Manu ficou sozinha, com Beppo e Guido. Após alguns instantes, o
velho varredor de rua levantou-se.
__ Você já vai? – perguntou Manu.
__ Preciso ir – respondeu Beppo –, puseram-me em serviço extra.
__ Mas à noite?
__ É! Só por essa vez. Estão nos mandando descarregar caminhões
de entulho nos depósitos de lixo. Tenho de ir agora para lá.
__ Mas é Domingo! E você nunca teve de fazer isso antes.
__ Não; mas disseram que é só por essa vez, porque de outra
forma nunca conseguiram acabar o trabalho. Dizem que é por falta de
pessoal.
__ Que pena! – suspirou Manu. __ Gostaria que você ficasse aqui
hoje!
__ Eu também. Não tenho vontade nenhuma de ir trabalhar, mas
tenho de ir. Então, boa noite e até amanhã! – Montou na velha bicicleta e
pedalou, desaparecendo na escuridão.
Guido parecia distraído, assobiando uma toada melancólica.
Assobiava lindamente, e Manu o ouvia, quando ele parou de repente e
disse:
__ Também devo ir-me embora. Hoje é Domingo, e trabalho como
guarda-noturno. Não contei que é essa a minha profissão atual? Já ia
quase me esquecendo.
Manu olhou para ele com espanto e nada respondeu.
81

__ Não fique desanimada porque nosso plano não deu certo –


continuou Guido. __ Eu contava com resultado muito diferente! Mas não
importa, assim mesmo foi divertido, muito divertido!
E como Manu continuasse em silêncio, Guido acariciou-lhes os
cabelos, tentando consolá-la:
__ Não leve isso tão a sério, Manu! Amanhã as coisa podem
mudar! Vamos pensar em algo novo . . . numa nova história, não é?
__ Mas não se tratava apenas de uma história – respondeu Manu
baixinho.
Guido pôs-se de pé:
__ Sim, eu sei, mas falaremos disso amanhã, está bem? E está na
hora de você ir para a cama.
Sem mais, partiu assobiando sua melancólica toada. Manu
permaneceu sentada sozinha no grande anfiteatro de pedra. A noite não
tinha estrelas e o céu estava carregado de nuvens. Começou a soprar
uma brisa esquisita, não era um vento forte, mas soprava
constantemente, trazendo um frio estranho. Era, por assim dizer, uma
brisa cinzenta.

Em certo lugar, bem distante da grande cidade, havia um


gigantesco depósito de lixo. Verdadeiras montanhas de cinzas, vidros
quebrados, latas, invólucros de plástico, colchões velhos, caixas de
papelão, tudo quanto a grande cidade joga ali se achava, até que aos
poucos fosse levado aos colossais incineradores.
Até tarde, pela noite adentro, Beppo e seus companheiros de
trabalho com grandes pás tiravam o lixo dos caminhões, que de faróis
acesos esperavam em fila para serem descarregados. Logo que um se
esvaziava, outro o substituía imediatamente.
__ Depressa, depressa, pessoal! – era o grito que se ouvia sem
cessar. __ Vamos, andem com isso, ou não acabaremos nunca!
Beppo jogava pá sobre pá, sem descansar um instante, e sua
camisa já estava grudada ao corpo de tanto suor. Finalmente, lá pela
meia-noite, o serviço terminou.
82

Além de velho, Beppo não era muito forte e sentiu-se exausto.


Sentou-se num balde de plástico virado, procurando tomar fôlego.
__ Oi Beppo! – gritou um dos companheiros. __ Vamos pra casa!
Você não vem?
__ Daqui a pouco – respondeu Beppo, pondo a mão no coração,
que começava a doer.
__ Que é que há? Está sentindo alguma coisa, meu velho? –
perguntou outro.
__ Estou bem – disse Beppo. __ Podem ir! Só vou descansar aqui
mais um instante.
__ OK! – gritaram os homens. __ Boa noite! – E foram-se embora.
Estava tudo quieto. Apenas os ratos remexiam o lixo, guinchando
de vez em quando. Beppo deitou a cabeça nos braços e adormeceu.
Foi subitamente acordado por uma rajada de vento frio. Não sabia
quanto tempo teria dormido, mas olhou em torno e ficou logo
inteiramente desperto.
Em cada montanha de lixo, achavam-se os homens cinzentos, em
elegantes ternos, chapéu-coco na cabeça, pasta cinza-aço nas mãos e
pequenos charutos cinzentos entre os lábios. Estavam todos de pé,
silenciosos, com o olhar fixo no cimo do mais alto monte de lixo, onde
havia uma espécie de cátedra de juiz, à qual estavam sentados três
homens, que, aliás, em nada mais se distinguiam dos outros.
No primeiro momento, Beppo ficou assustado. Receava ser
descoberto e sabia, sem sombra de dúvida, que nada tinha a fazer ali.
Logo, porém, observou que os homens não desviavam os olhos do
tribunal, como se estivessem hipnotizados. Talvez nem pudessem ver
Beppo, ou pensassem que ele fossem apenas uma coisa jogada fora.
Decidiu pois ficar ali mesmo, absolutamente quieto.
A voz do homem dentro do tribunal quebrou o silêncio:
__ Que o agente BLW/553/c se apresente diante da Suprema Corte.
A ordem foi repetida mais abaixo e ressoou como um eco distante.
Abriu-se então caminho entre a multidão e um homem subiu lentamente
83

ao cimo do monte de lixo. Nada o diferenciava dos demais, a não ser


que seu rosto cinzento se tornara quase branco.
Chegou por fim à frente do tribunal.
__ O senhor é o agente BLW/553/c? – perguntou o homem do
centro.
__ Exato.
__ Desde quando está trabalhando para o Banco Poupa-Tempo?
__ Desde o meu princípio.
__ Isso é obvio. Poupe-nos essas observações desnecessárias.
Quando começou a existir?
__ Há onze anos, três meses, seis dias, oito horas, trinta e dois
minutos e – neste preciso momento – dezoito segundos.
Embora esse diálogo se realizasse baixinho e a grande distância, o
velho Beppo não perdia uma palavra.
O homem do centro continuou inquirindo:
__ O senhor está ciente de que considerável número de crianças
desta cidade desfilaram carregando faixas e cartazes por toda a parte, e
conceberam até o monstruoso plano de convidar todos os moradores
para uma assembléia na qual pretendiam esclarecer o auditório sobre
nossa atividades?
__ Estou ciente disso – respondeu o agente
__ Como justifica o fato de essas crianças saberem realmente tudo
a nosso respeito e nossas diligências? – prosseguiu o juiz, implacável.
__ Não posso absolutamente justificá-lo – disse o agente. __ Mas,
se me for permitida uma observação, lembro à Suprema Corte que
conseguimos com facilidade tornar a projetada assembléia nula e sem
efeito, simplesmente não deixando às pessoas tempo para dela
participar. E sugiro à Suprema Corte que não dê a esse caso mais
importância do que merece: trata-se apenas de uma brincadeira infantil.
Mesmo que a reunião tivesse se realizado ao auditório, exceto alguma
tola história inverossímil. Na minha opinião, deveríamos ter deixado a
assembléia se realizar, com o fim de . . .
84

__ Prisioneiro, cale-se! – interrompeu severamente o homem do


tribunal. __ O senhor sabe onde se encontra?
O agente esmoreceu e murmurou apenas:
__ O senhor não se acha diante de uma corte humana – prosseguiu
o juiz –, mas perante os seus pares. Sabe perfeitamente que é
impossível enganar-nos. Por que tenta fazê-lo?
__ É . . . é um vício da profissão – gaguejou o acusado.
__ Quanto à maior ou menor importância a ser dada ao plano das
crianças – continuou o juiz –, deixe isso à decisão dos chefes. O
prisioneiro sabe muito bem que nada, nem pessoa alguma, representa
maior perigo para a nossa obra do que a infância.
__ Sim, eu sei – confessou humildemente o réu.
__ As crianças são nossas inimigas naturais – declarou o juiz. __ Se
não fossem elas, há muito tempo que toda a humanidade estaria em
nosso poder. É muito difícil persuadir crianças a poupar tempo do que
adultos. Por isso temos uma lei rigorosa: Só tratar com criança em
última instância. O prisioneiro conhece essa lei?
__ Sim, sem dúvida, senhor – murmurou o acusado, afegante.
__ Não obstante, temos prova irrefutável de que um de nós –
repito, um de nós – não só falou com uma criança, como nos traiu
contando a verdade a nosso respeito – afirmou o juiz. __ O prisioneiro
saberá por acaso qual de nós fez isso?
__ Fui eu – replicou o agente BLW/553/c, inteiramente perturbado.
__ E qual o motivo para transgredir nossa rigorosa lei? – indagou o
juiz.
O réu tentou se defender:
__ Como essa criança tem notável influência sobre as pessoas,
dificultando muito o nosso trabalho, agi com a intenção de servir aos
interesses do Banco Poupa-Tempo.
__ Suas intenções não nos interessam – retrucou o juiz com gélida
indiferença. __ Só levamos em conta as conseqüências. E, no seu caso,
agente BLW/553/c, estas foram desastrosas: não só não ganhamos
tempo algum, como ainda por cima fomos traídos! Alguns de nossos
85

segredos vitais foram revelados a uma criança. O acusado reconhece


isso?
__ Reconheço – disse o agente baixando a cabeça.
__ Então, confessa-se culpado?
__ Sim, mas peço à Suprema Corte que leve em consideração as
circunstâncias atenuantes. Fiquei verdadeiramente como que sob a ação
de um feitiço: a maneira como aquela criança me ouviu, lisonjeou-me,
arrancando todos os meus segredos. Não posso explicar como isso
aconteceu, mas juro que foi assim.
__ Suas desculpas não apresentam o mínimo interesse:
circunstâncias atenuantes não têm para nós valor algum. Nossas leis são
invioláveis e não fazemos exceção. Contudo, vamos dirigir nossa
atenção para essa criança notável. Como é o nome dela?
__ Manu.
__ Quem é ela?
__ Uma menina.
__ Onde mora?
__ Nas ruínas de um velho anfiteatro.
__ Bem – disse o juiz, escrevendo tudo no seu caderninho de notas.
__ O réu pode ficar certo de uma coisa: essa criança não nos prejudicará
mais. Usaremos todos os recursos possíveis para essa finalidade. Que
isso lhe traga algum consolo, pois vamos prosseguir para chegarmos à
sentença que o espera.
O prisioneiro começou a tremer e murmurou a custo:
__ Qual é a sentença?
Os três homens do tribunal juntaram as cabeças, segredando algo
entre eles, fizeram menção de estar de acordo, e do centro voltou-se
para o réu declarando:
__ O veredicto unânime que recai sobre o agente BLW/553/c é o
seguinte: é acusado de crime de alta traição. Ele próprio admitiu a culpa.
A sentença determinada por nossa lei é que lhe seja imediatamente
retirado todo o tempo.
86

__ Piedade! Piedade! – clamou o réu. Mas dois homens, que se


achavam de pé ao seu lado, arrancaram a pasta cinza-aço de suas mãos
e o charuto de sua boca. No momento exato em que o criminoso perdeu
seu charutinho, começou a tornar-se cada vez mais transparente. Seus
gritos foram se enfraquecendo mais e mais, e ali estava ele com as
mãos cobrindo o rosto, dissolvendo-se literalmente em nada; por fim,
era apenas um punhado de cinzas redemoinhando ao vento. E também
essas logo sumiram.
Todos os homens cinzentos – juízes e testemunhas – partiram em
silêncio. Mergulharam na escuridão e somente uma brisa cinza ficou
flutuando sobre os lúgubres montes de lixo nos arrebaldes da cidade.
Beppo Varredor permaneceu sentado, imóvel, fitando o ponto no
qual o agente BLW/553/c havia sido transformado numa pedra de gelo e
agora estava degelando. Ficara sabendo por experiência própria que de
fato existiam coisas como os homens cinzentos.

Mais ou menos à mesma hora – o relógio da igreja distante bateu


meia-noite –, a pequena Manu achava-se ainda nos degraus de pedra do
anfiteatro. Estava à espera de algo – ela mesma não sabia o quê! – e não
se decidira ainda a ir para a cama.
De repente, sentiu uma coisa roçando levemente seus pés
descalços. Estava muito escuro, e a menina inclinou-se para ver o que
era: uma grande tartaruga de cabecinha erguida, olhando para ela, de
boca entreaberta como que num sorriso. Os olhinhos pretos e vivos
brilhavam do modo mais cordial e pareciam até querer falar.
Manu fez-lhe gentilmente cócegas sob o queixo: __ Ora, quem será
você? – perguntou baixinho. __ Seja como for, estou contente que tenha
vindo visitar-me, tartaruga!
Ela não sabia dizer se não o havia notado até aquele momento, ou
se foi justo naquele instante que se tornaram visíveis nas costas da
tartaruga letras luminosas, aparentemente formadas pelos desenhos de
sua carapaça.
__ VENHA COMIGO – soletrou Manu devagar.
87

Pasma de admiração, ela perguntou:


__ O recado é para mim?
Mas a tartaruga já se tinha posto a caminho. Parou pouco adiante,
virou a cabeça e voltou a olhar a menina.
“É comigo mesmo!”, pensou Manu, e levantou-se para seguir o
misterioso animal.
__ Vá andando, que eu a acompanho! – disse baixinho.
Passo a passo seguiu a tartaruga, que, lentamente, muito
lentamente, conduzia-a para fora do anfiteatro de pedra, tomando
depois a estrada, rumo à grande cidade.

10. Furiosa perseguição e calma fuga

Beppo montou na velha bicicleta e saiu pedalando pela noite


afora. As palavras do juiz cinzento ainda ressoavam em seus ouvidos:
“Vamos dirigir nossa atenção para essa criança notável . . .” “O réu pode
ficar certo de que ela não nos prejudicará mais . . .” “Usaremos para isso
todos os recurso . . .”
Não havia dúvida, Manu corria grande perigo. Ele tinha de ir ver
imediatamente a menina e preveni-la contra os homens cinzentos,
protegê-la, embora não tivesse a menor idéia de como o fazer. Contudo,
havia de encontrar um jeito. Pedalava a toda pressa, o cabelo branco
esvoaçando ao vento. A distância até o anfiteatro era grande.

As ruínas estavam brilhantemente iluminadas pelos faróis de uma


frota de elegantes carros cinzentos que as cercavam. Dezenas de
homens cinzentos percorriam de cima a baixo os degraus cobertos de
capim, procurando a criança por todos os cantos. Finalmente, alguns
descobriram no muro o buraco que levava aos aposentos de Manu a ali
penetraram, espiando embaixo da cama e até dentro do pequeno fogão
de pedra. Depois saíram, sacudindo a poeira de seus elegantes ternos
cinza.
88

__ O pássaro bateu asas! – disse um deles.


__ É incrível como as crianças ficam vagabundando à noite,
quando deveriam estar quietas, abrigadas em suas camas! – retrucou
outro.
__ Não estou gostando deste caso – declarou um terceiro. __ Até
parece que ela foi avisada a tempo por alguém!
__ Impossível! – disse o primeiro. __ Para que alguém lhe estivesse
dado o aviso, teria de conhecer nossa intenção antes mesmo que a
tivéssemos formulado.
Os homens cinzentos olharam-se alarmados.
__ Se tal pessoa a tiver realmente prevenido – observou,
preocupado, um deles –, ela decerto não se encontra mais aqui e
estamos perdendo tempo nesta busca.
__ Que sugere, então?
__ Acho que deveríamos informar imediatamente o alto comando
de modo a organizar-se uma operação em larga escala.
__ Mas a primeira coisa que os chefes vão indagar é se demos
busca por todos os arredores . . . e será uma pergunta razoável.
__ Muito bem! – declarou o primeiro homem cinzento. __ Antes de
tudo vamos pois procurar minuciosamente por todos os bairros.
Entretanto, se enquanto isso a menina tiver recebido a ajuda de alguém,
estaremos cometendo grave erro.
__ Besteira! – retrucou outro, zangado. __ Nada impede que o alto
comando organize depois a operação total, em que cada agente
disponível tome parte, a fim de perseguir a menina. Ela não terá a
mínima chance de nos escapar. E agora, ao trabalho! Sabemos o quanto
é grande o nosso risco . . .
Naquela noite, em todos os bairros, os moradores estranharam o
incessante barulho dos automóveis, correndo a toda a velocidade. Até a
madrugada, tudo foi esquadrinhado pelos agentes: desde as mais
estreitas ruelas até as primitivas trilhas de carroça, fazendo um rumor
somente ouvido nas estradas de intenso tráfego. Ninguém pôde pregar
olho!
89

Enquanto isso acontecia, a pequena Manu, guiada pela tartaruga,


atravessava a grande cidade, que não dorme mesmo nas horas mais
tardias. Uma multidão se movimentava apressadamente, empurrando
com impaciência quem se achasse à sua frente, acotovelando-se ou
entrando em longas filas. A estrada achava-se bloqueada pelos carros,
enquanto os enormes ônibus lotados ao máximo roncavam, procurando
arrancar para a frente, a fim de abrir caminho. Anúncios em neon
brilhavam em cada parede, jogando forte luz sobre o povo e apagando-
se subitamente para de novo se acenderam.
Manu, que jamais havia visto nada disso, caminhava como num
sonho, de olhos arregalados, sempre acompanhando a tartaruga.
Atravessaram grandes praças e ruas bem iluminadas. Viam passar a seu
lado carros velozes estavam cercadas de pedestres, mas ninguém
prestava atenção à menina e à tartaruga.
No meio daquele intenso movimento, nunca levaram encontrões
nem foram atropeladas. Era como se a tartaruga soubesse antecipada e
precisamente o momento exato em que não havia pedestres ou carros
para atrapalhá-las. Não precisavam apressar-se nem diminuir o passo ou
esperar, e Manu admirava-se de como era possível adiantarem-se tão
depressa, caminhando tão devagar!

Quando Beppo Varredor chegou ao anfiteatro, a tênue luz da


lanterna de sua bicicleta mostrou-lhes imediatamente os sinais dos
pneus à volta das ruínas. Alarmado, correu para o buraco no muro e pôs-
se a chamar:
__ Manu! – primeiro em voz baixa, depois mais alta: __ Manu!
Manu!
Nenhuma resposta.
Com a garganta seca, Beppo sentiu-se quase engasgado de
aflição. Entrou no quarto de Manu, escuro como breu, tropeçou e torceu
o tornozelo. Com dedos trêmulos, conseguiu riscar um fósforo e olhar em
torno de si.
90

A mesinha e as duas cadeiras feitas de caixotes estavam de


pernas para o ar; o colchão e as cobertas revirados. De Manu, nem sinal!
Beppo mordeu os lábios, sufocando um soluço rouco:
__ Meu Deus – murmurou – meu Deus! Lavaram minha menininha!
Raptaram a minha Manu! Cheguei tarde! Que devo fazer agora? Que
posso fazer?
Nesse momento o fósforo começou a queimar seus dedos e ele
jogou fora, ficando em completa escuridão. Depois, passou de novo pelo
buraco no muro de saiu, tão depressa quanto lhe permitia o tornozelo
machucado. Pegou a bicicleta e lá foi pedalando, à procura de Guido.
Beppo sabia que Guido ultimamente estava ganhando um dinheiro
extra, passando as noites de Domingo numa pequena oficina de
conserto de automóveis, que era também depósito de carros velhos. Sua
tarefa consistia em vigiar para que carros ainda em condições de prestar
serviço não desaparecessem inesperadamente como já acontecera mais
uma vez.
Quando Beppo chegou, deu fortes pancadas na porta. Guido
manteve-se primeiro em completo silêncio. Talvez fosse um ladrão em
busca de algum carro ainda usável. Depois, reconhecendo a voz de
Beppo, abriu, meio atordoado:
__ Que negócio é esse? Detesto que me acordem assim de
repente!
__ É por causa de Manu! – explicou Beppo ofegante. __ Uma coisa
terrível aconteceu à menina!
__ Que é que você está dizendo? – perguntou Guido, caindo na
cama de tão assustado. __ Manu, que é que houve com ela.
__ Eu mesmo não sei – arquejou Beppo. __ Mas só pode ser algum
mal!
E contou ao amigo tudo o que vira na Suprema Corte, no alto do
monte de lixo; as marcas dos pneus em volta do anfiteatro e o
desaparecimento de Manu. Levou algum tempo para contar tudo isso,
pois, apesar de sua inquietação pela menina, não sabia explicar as
coisas rapidamente.
91

__ Eu senti isso desde o começo – continuou. __ Sabia que nada de


bom ia sair daquela passeata . . . agora eles estão se vigiando: raptaram
Manu ! Oh! Guido, temos de socorrer a menina . . . mas como? Que
fazer?
À medida que Beppo falava, Guido ia se tornando cada vez mais
pálido. Até então, tinha considerado o caso como uma boa brincadeira,
dando-lhe apenas a importância que dava aos jogos e histórias que
inventava, sempre sem medir as conseqüências. Agora, pela primeira
vez na vida, via uma história tomar corpo independentemente dele, e
suas mais brilhantes idéias não poderiam mudar uma só palavra da
realidade. Parecia-lhe ter virado pedra.
__ Sabe, Beppo – disse depois de uma pausa –, pode ser que Manu
tenha saído só para dar uma volta. Ela às vezes faz isso. Certa ocasião,
ficou durante três dias e três noites passeando pelos campos. Quero
dizer que talvez não haja motivo para nos preocuparmos assim!
__ E as marcas dos pneus junto ao anfiteatro? – perguntou Beppo,
zangado. __ E o colchão e cobertas revirados?
__ Bem . . . – respondeu Guido evasivamente – vamos supor que
alguém tenha realmente estado lá, isso não prova que tenham
encontrado Manu! Ela já devia ter saído, do contrário não teriam dado
busca e remexido tudo.
__ Mas imagine se de fato a encontraram? – gritou Beppo,
agarrando o rapaz pela lapela do paletó e sacudindo-o: __ Guido, não
seja idiota, os homens cinzentos são uma realidade! Temos de agir
imediatamente!
__ Calma, Beppo! – murmurou Guido, meio desanimado. __ Decerto
que temos de agir . . . mas primeiro é preciso pensar cuidadosamente no
que podemos fazer. Afinal, nem sabemos por onde começar para
procurar Manu!
Beppo largou o paletó de Guido e declarou entre dentes:
__ Vou à polícia!
__ Pelo amor de Deus, homem, seja razoável – gritou Guido,
horrorizado. __ Não se pode fazer isso, de jeito nenhum. Imagine se a
92

polícia encontra nossa querida Manu . . . você sabe o que farão com ela,
não sabe? Sabe onde colocam órfãos perdidos? São levados para um
asilo com grades nas janelas. Você quer que isso aconteça a Manu?
__ Não – sussurrou Beppo, desalentado, o olhar perdido no espaço.
__ Não, não quero! Mas imagine se ela estiver de fato em perigo.
__ Bem – continuou Guido –, suponha no entanto que Manu esteja
apenas dando um giro por aí, e você alerte a polícia. Nesse caso, eu não
queria estar na sua pele, meu velho.
Beppo deixou-se cair numa cadeira junto à mesa, com a cabeça
entre as mãos, e suspirou:
__ Francamente, não sei o que será melhor fazer . . . não sei!
__ De qualquer forma – respondeu Guido –, acho que devemos
esperar até amanhã ou mesmo até depois de amanhã, antes de tomar
alguma iniciativa. Se então, até lá, Manu não tiver aparecido, iremos à
polícia. Mas provavelmente tudo estará resolvido da melhor maneira e
estaremos rindo dessa confusão!
__ Você acha mesmo? – murmurou Beppo, subitamente tomado
por extremo cansaço. Os acontecimentos do dia tinham sido quase
excessivos para um homem de sua idade.
__ Decerto – afirmou Guido. Tirou os sapatos de Beppo, ajudou-o a
atravessar a oficina, levou-o para sua cama, enrolando o tornozelo num
pano molhado, e repetiu baixinho:
__ Vai dar tudo certo! Tudo vai acabar bem!
Quando viu Beppo adormecido, suspirou fundo e deitou-se no
chão, enrolando o paletó para servir de travesseiro. Mas não conseguiu
dormir. Durante toda a noite ficou pensando nos homens cinzentos: pela
primeira vez em sua vida, até agora despreocupada, experimentou o
que fosse o medo.

O alto comando do Banco Poupa-Tempo organizou uma operação


em larga escala: cada agente de grande cidade foi notificado para
interromper o que estivesse fazendo a fim de se dedicar inteiramente à
procura de Manu.
93

Todas as ruas pululavam de homens cinzentos: alguns se


instalaram no alto dos edifícios, outros rastejavam pelos encanamentos
de esgoto, outros, ainda, vigiavam discretamente as estações
ferroviárias e os aeroportos, enquanto muitos fiscalizavam ônibus e
bondes; em resumo – estavam em toda parte.
Mas não encontraram Manu.
__ Oi, tartaruga, aonde está me levando? – perguntou Manu a certa
altura. Ambas atravessavam nesse momento um escuro pátio interno.
“NÃO TENHA MEDO”, foi a resposta que apareceu na carapaça da
tartaruga.
__ Não estou com medo – disse Manu após ter soletrado aquelas
palavras. Dizia-o porém mais para se tranqüilizar, pois sentia-se de fato
meio assustada. O caminho pelo qual a tartaruga a conduzia tornava-se
cada vez mais estranho e tortuoso. Já haviam atravessado parques,
pontes, metrôs, portões, grandes vestíbulos, e por vezes até passagens
subterrâneas.
Se Manu soubesse que um verdadeiro exército de homens
cinzentos estava no seu encalço, certamente ainda ficaria muito mais
atemorizada. Mas não tinha a menor idéia disso, assim acompanhava
pacientemente a tartaruga, passo a passo, naquele trajeto que se
parecia com um labirinto.
Tal como a tartaruga anteriormente abrira caminho através do
tráfego, também agora parecia saber exatamente o momento em que
iam surgir os inimigos. Às vezes, ao homens cinzentos chegavam a um
lugar onde ambas tinham estado havia um instante apenas; de modo
que perseguidores e perseguidos de fato nunca se encontravam.
__ É uma sorte eu já saber ler tão bem, não é? – perguntou a
menina, inocentemente.
Nas costas da tartaruga, como luminoso sinal de aviso, brilhou a
palavra: “SILÊNCIO”.
Embora ignorando o motivo da ordem, Manu obedeceu. Três vultos
escuros passaram bem perto delas.
94

Nesse lado da cidade que agora percorriam, as casa tornavam-se


cada vez mais feias e miseráveis. O reboco desprendia-se dos altos
edifícios de apartamentos e a rua apresentava enormes buracos, cheios
de água estagnada. Ali tudo era sombrio e deserto.

O alto comando do Banco Poupa-Tudo recebeu notícia de que Manu


tinha sido vista.
__ Bem! – veio a resposta. __ Já a capturaram?
__ Não. Foi como se a terra se abrisse subitamente e tivesse
engolida a criança. Assim perdemos de novo sua pista.
__ Como pôde isso acontecer?
__ É o que nós também nos perguntamos. Alguma coisa está
errada!
__ Onde se encontrava ela, a última vez que a viram?
__ Pois aí é que está o fato estranho: achava-se numa parte da
cidade inteiramente desconhecida para nós.
__ Semelhante distrito não existe – afirmou o alto comando.
__ Mas tem de existir. É – como se pode descrevê-lo? __ é como se
esse distrito estivesse situado na fronteira do tempo e a menina
caminhasse ao longo desse limite.
__ O quê? – berrou o alto comando. __ Descubram de novo a pista.
A menina tem de ser capturada a todo custo. Entenderam?
__ Entendemos – foi a resposta cinzenta à ordem ameaçadora.
A princípio, Manu pensou que fosse o sol nascendo . . . mas aquela
luz fora do comum apareceu de repente, no momento exato em que
virou a esquina daquela rua. Ali já não era noite e também ainda não era
dia: não era a aurora nem o crepúsculo. Era uma luz que tornava os
contornos extremamente agudos e claros; no entanto, não parecia vir de
parte alguma, ou melhor, de toda parte ao mesmo tempo, de modo que
as longas, escuras sombras projetadas na rua pelas menores pedras
tomavam todas as direções: uma árvore era iluminada pela esquerda,
uma escala pela direita e um monumento pela frente.
95

Por esse motivo, o próprio monumento tinha um aspecto muito


singular: era um bloco quadrado de pedra negra sobre o qual de
destacava um gigantesco ovo branco. Era só isso.
Também as casas era diferentes de quantas Manu até então vira.
Eram quase ofuscantes de tão brancas. Por trás das janelas, densas
sombras escuras tornavam-se impossível ver se realmente vivia gente
ali dentro. Mas, de certo modo, Manu tinha a impressão de que aquelas
casas não haviam sido construídas para pessoas ali morarem, e sim para
um misterioso desígnio. As ruas apresentavam-se completamente
desertas. Não só de gente, mas também de carros, cães ou pássaros.
Tudo era imóvel. Não soprava a mais leve aragem.
Manu se espantava por ver como se adiantavam rapidamente,
embora a tartaruga parecesse mover-se mais devagar do que nunca.

Longe desta estranha parte da cidade, ali onde reinava a noite,


três elegantes carros de faróis acesos corriam a toda a velocidade pelas
ruas esburacadas. Em cada carro achavam-se vários homens cinzentos.
No primeiro, um deles localizou Manu, justamente quando ela virava
para entrar na rua das casas brancas, onde começava aquela claridade
fora do comum.
Quando ela dobrou a esquina, aconteceu uma coisa incrível: os
carros pararam de repente. Os motoristas pisavam com força no
acelerador e a rodas giravam, mas os automóveis não saíam do lugar.
Era como se estivessem numa esteira rolante, movendo-se tão depressa
quanto eles, em direção oposta. Quanto mais aceleravam, menos iam
para frente. Ao perceberem isso, os homens cinzentos pularam de seus
carros, praguejando, e tentaram ir a pé no encalço de Manu, agora
apenas visível ao longe. De rostos contorcidos pela raiva, puseram-se a
persegui-la; quando, porém, tiveram de parar para tomar fôlego, viram
que estavam somente a poucos metros do ponto de partida. Manu
desaparecera na distância, entre as casas brancas como neve.
__ É isso, a coisa não está boa! – disse um dos homens. __ Agora
nunca poderemos apanhá-la.
96

__ Não compreendo por que nossos carros não foram para diante!
– disse outro.
__ Tampouco eu! – replicou o primeiro. __ O mais importante,
porém, é saber se isso contará como circunstância atenuante quando
tivermos de confessar nosso fracasso.
__ Acha que seremos julgados?
__ Ora, o alto comando por certo não vai ficar satisfeito!
Todos os homens cinzentos ali presentes estavam de cabeça baixa,
encostados ao capô de seus carros, pois agora não haviam mais razão
para que tivessem pressa.
Longe, bem longe, em meio ao labirinto das ruas e praças brancas
como neve, Manu ia seguindo a tartaruga. E, justamente porque iam tão
devagar, a rua parecia deslizar a seu lado, enquanto as casas passavam
voando.
A tartaruga virou de novo uma esquina. Manu acompanhou-a e
ficou imóvel, deslumbrada! Essa rua era inteiramente diversa de todas
as outras.
Era mais uma estreita alameda do que uma rua. De ambos os
lados, as casas muito juntas, com seus inúmeros torreões, balcões e
terraços, mais pareciam palácios de vidro em miniatura, que tivessem
passado séculos sob o mar para emergir agora, de repente, envoltos em
algas marinhas e incrustados de conchas e corais. Todos resplandeciam
suavemente em tonalidades cambiantes como da madrepérola.
A rua terminava diante de uma casa isolada, em cujo centro via-se
uma grande porta de bronze verde com esplêndidos ornamentos.
Manu olhou para a placa da rua, na parede, acima de sua cabeça.
Era de mármore branco e tinha em letras de ouro gravado este nome:
ALAMEDA DO NUNCA.
A menina levara apenas um instante para decifrar as letras, mas a
tartaruga já se achava lá adiante, quase no fim da rua, em frente à
última casa.
__ Espere por mim, tartaruga! – gritou Manu; porém, não pôde
ouvir sua própria voz.
97

A tartaruga, no entanto, pareceu tê-la ouvido: parou e olhou em


volta. Manu tentou segui-la, mas quando começou a caminhar pela
Alameda do Nunca teve a sensação de estar lutando contra poderosa
corrente ou forte ventania (embora não a percebesse!) que a impediam
de adiantar-se. Lutou contra a misteriosa força que a retinha, agarrando-
se à beirada da rua, e até andando de gatinhas. Tudo inutilmente!
__ Não consigo ir para a frente! – gritou à tartaruga, que
descansava na outra extremidade da rua. __ Por favor, me ajude!
O animal voltou lentamente e quando chegou perto da menina
apareceu em cima dela este aviso: “ANDE DE COSTAS!”
Docilmente, Manu experimentou. Virou-se nos pés, começou a
andar de costas e não encontrou mais nenhuma dificuldade em ir
adiante. O que lhe aconteceu, porém, enquanto andava assim de costas,
foi extremamente esquisito: ao mesmo tempo que caminhava voltada
para trás, também seus pensamentos, sua respiração, seus sentimentos,
tudo parecia regredir – de fato, estava vivendo para trás.
Por fim bateu com as costas numa coisa sólida. Virou-se e viu que
estava diante de uma casa construída em curva, fechando a rua. Teve
um ligeiro susto; vista de perto, a porta de bronze magnificamente
lavrado era enorme.
“Serei capaz de abrir esta porta?”, pensou Manu, duvidando.
Nesse mesmo instante, os dois colossais batentes se abriram de par em
par.
Manu deteve-se ainda um momento, pois notou palavras bem
acima da entrada. O letreiro, sustentado por um licorne branco, era o
seguinte: “MANSÃO DE LUGAR NENHUM”.
A menina lia devagar; assim, quando terminou a leitura, dois
colossais batentes já começavam a se fechar e ela esgueirou-se
depressa entre eles, ouvindo em seguida a monumental porta cerrar-se
com o ruído de um distante trovão.
Encontrava-se agora num corredor alto, muito longo. À direita e à
esquerda, em intervalos regulares, estátuas nuas de homens e mulheres
98

pareciam sustentar o teto. Aqui não havia mais vestígio daquela


misteriosa corrente contrária.
Manu seguia a tartaruga, que rastejava pela comprida galeria, ao
fim da qual parou, diante de uma pequenina porta, tão pequena, que
mal dava para a menina entrar.
Na carapaça da tartaruga apareceu esta palavra: “CHEGAMOS!”
Manu ajoelhou-se para ler, à altura de seus olhos, o pequeno
letreiro escrito na pequenina porta: “MESTRE DA HORA DO SEGUNDO
MINUTO”.
Respirou fundo e puxou resolutamente o pequeno ferrolho. Quando
a diminuta portinha se abriu, ouviu do interior harmoniosa melodia, feita
de vários sons: tique-taques, zunidos, carrilhões. Acompanhou a
tartaruga, e o ferrolho da pequena porta fechou-se atrás dela.

11. Os maus tiram o melhor partido de um caso grave

Na luz cinzenta de infindáveis corredores e galerias, agentes do


Banco Poupa-Tempo apressavam-se de um lado para outro, segredando
agitadamente entre si a última notícia: todos os membros da diretoria
haviam sido convocados para uma assembléia extraordinária!
Afirmavam uns que isso significava ameaça de grave perigo,
enquanto outros pensavam haver surgido nova oportunidade, até agora
insuspeita, de lucro para o banco.
Na enorme sala de conferências, os homens cinzentos membros do
executivo do banco estavam em sessão, sentados um ao lado do outro,
ao longo da mesa que parecia estender-se interminavelmente. Cada um
deles tinha como sempre sua pasta cinzenta e fumava seu charutinho
cinzento. Só faltavam os chapéus-coco, e todos apresentavam luzidias
carecas.
O sentimento dominante da assembléia – se é que se pode falar
em “sentimento” ao se referir aos homens cinzentos – era o de
melancolia.
99

O presidente levantou-se à cabeceira da longa mesa. Cessaram os


murmúrios e duas extensas filas de faces cinzentas voltaram-se para
ele:
__ Senhores, a situação é muito séria. Sinto-me no dever de pô-los
imediatamente a par de fatos muitos aborrecidos, mas inegáveis. Quase
todos os nossos agentes disponíveis foram empregados na procura da
menina Manu. Essa busca durou seis horas, treze minutos e oito
segundos. Os agentes nela empenhados foram forçados a negligenciar
seu próprio trabalho, que consiste em recolher tempo. A tal déficit temos
de acrescentar o tempo que também nossos homens perderam com
isso. Esses dois itens representam um prejuízo de tempo que, de acordo
com os mais exatos cálculos, soma um débito de três bilhões setecentos
e trinta e oito milhões duzentos e cinqüenta e nove mil cento e catorze
segundos. Ora, senhores, isso é mais do que o período de uma vida
humana. Não é necessário que lhes diga o que tal perda significa para
nós.
O presidente parou, apontando com gesto eloqüente para um
cofre de aço gigantesco, com várias combinações de números e
fechaduras de segurança, embutido na parede da sal, e prosseguiu:
__ Nossas reservas de tempo não são inesgotáveis, senhores. E se
ao menos essa perseguição tivesse dado resultado! Mas o tempo nela
gasto foi totalmente perdido. A menina escapuliu de nossas mãos.
Semelhante fato não pode ocorrer uma segunda vez. Para o futuro, hei
de opor-me categoricamente a qualquer empreendimento que exija tão
elevados gastos. Temos de poupar, e não desperdiçar! Peço-lhes pois
que tenham isso em mente com referência a quaisquer outros planos. É
só o que tenho a dizer. Obrigado!
Sentou-se e soprou grossas nuvens de fumaça do seu charuto. Os
outros começaram a sussurrar, inquietos.
Nisso, um outro orador, que se encontrava no lado oposto da longa
mesa, ergueu-se, e todos os rostos voltaram-se para ouvi-lo.
__ Senhores – começou ele –, a prosperidade do Banco Poupa-
Tempo nos toca a todos muito de perto. Parece-me, no entanto,
100

inteiramente desnecessário perturbarmo-nos com este caso, em muito


menos transformá-lo numa espécie de catástrofe. Nada está mais longe
da realidade. Sabemos que nosso estoque de tempo tem maciças
reservas, e prejuízos semelhantes não nos pões seriamente em perigo.
Que significa a duração de uma vida humana para nós? Uma simples
ninharia! Contudo, estou de acordo com nosso respeitável presidente:
fato semelhante nunca mais deve acontecer. Aliás, o caso da menina
Manu é único. Jamais ocorreu antes, e é absolutamente improvável que
possa ocorrer de novo. Concluindo, o nosso presidente nos acusa
justamente por termos deixado a pequena escapar. Mas qual era nosso
intuito? Tornar a menina inofensiva. Ora, esse alvo foi plenamente
alcançado: Manu desapareceu, fugiu para além do reino do tempo.
Estamos livres dela. Acho pois que temos motivo para estarmos
contentes com tal resultado.
O orador sentou-se com um sorriso satisfeito, e aplausos isolados
saudaram sua argumentação.
Um terceiro orador levantou-se:
__ Serei breve – disse, com expressão cruel no rosto. __ Considero
paliativas as palavras que acabamos de ouvir, inteiramente
irresponsáveis. Não se trata de uma criança comum. Sabemos que ela
possui certos dons, extremamente perigosos para nós e para nossos
negócios. O fato de tal incidente não ocorrer até agora não garante que
não possa acontecer de novo. Temos de permanecer vigilantes. Não
podemos descansar enquanto essa menina não estiver completamente
em nosso poder. É o único meio de termos a certeza de que ela não nos
prejudicará mais. Se foi capaz de passar além das fronteiras do tempo,
será igualmente capaz de voltar a qualquer momento. E voltará.
Sentou-se. Os demais membros do governo baixaram os olhos,
num silêncio submisso.
__ Senhores – declarou então um quarto orador –, perdoem-me
falar com franqueza: até agora nada fizemos senão procurar evasivas.
Temos de reconhecer o fato de que há um estranho poder envolvido
nesse caso. Examinei todos os aspectos, nos menores detalhes. As
101

probabilidades de uma criatura viva passar espontaneamente além do


domínio do tempo são exatamente de quarenta e dois milhões contra
uma. Em outras palavras: é virtualmente impossível.
Um murmúrio excitado fez-se ouvir entre os membros do governo.
__ Tudo indica que Manu tenha recebido ajuda de alguém para
escapar à nossa perseguição – continuou o orador, quando o murmúrio
cessou. __ Os senhores sabem a quem me refiro: trata-se do Senhor do
Tempo, a quem às vezes chamamos de “Mestre Hora”.
Ao ouvirem esse nome, alguns dos homens cinzentos se
encolheram como se tivessem levado uma pancada, enquanto outros
puseram-se de pé, gritando e gesticulando.
__ Senhores, por favor! – prosseguiu o orador, estendendo os
braços. __ Peço-lhes que se controlem! Bem sei que pronunciar tal nome
não é, vamos dizer, coisa de bom gosto, eu mesmo só o faço com
grande relutância. Mas temos de encarar os fatos objetivamente, tais
como eles são. Se aquela pessoa veio em auxílio de Manu, deve ter tido
razões para isso, e essas são certamente contra nós. Em resumo,
senhores, devemos considerar que aquela pessoa não só fará a criança
voltar, mas que lhe dará também armas para combater-nos. A menina
será então, para nós, um perigo mortal! Temos pois de estar preparados
para sacrificar não apenas a duração de uma vida humana, como de
outras mais. Sim, senhores, em último recurso temos de arriscar tudo.
Repito: tudo! Do contrário, nossa avareza pode nos sair infernalmente
cara. Penso que me entenderam.
A agitação cresceu entre os homens cinzentos, e começaram a
falar todos ao mesmo tempo. Um quinto orador pulou da cadeira e
agitou violentamente os braços:
__ Silêncio! Silêncio! – gritava ele. __ O nosso colega sugeriu toda
espécie de catástrofes possíveis, mas ele próprio não tem a menor idéia
de como resolvê-las. Diz que devemos estar preparados para qualquer
sacrifício – muito bem! Que devemos ficar firmes até o fim – muito bem!
Que não devemos restringir nossos recursos – muito bem! Mas tudo isso
não passa de palavras vazias. Deve nos dizer o que podemos realmente
102

fazer. Vamos enfrentar um perigo inteiramente desconhecido. Esse é o


problema a ser solucionado!
O barulho da sala transformou-se em tumulto. Alguns berravam,
outros davam socos na mesa, enquanto muitos cobriam o rosto com as
mãos, todos tomados de pânico.
Um sexto orador teve dificuldades para se fazer ouvir.
__ Senhores, por favor! – repetia ele, acalmando-os até conseguir
silêncio. __ Peço-lhes que se mantenham tranqüilos e razoáveis; no
momento é isso o mais importante. Mas, admitindo que a menina Manu
volte – de certo modo armada por aquela pessoa – não há
absolutamente necessidade que nenhum de nós tome pessoalmente
parte na luta. Não estamos aptos para tal encontro, como ficou
demonstrado pelo infeliz caso do nosso desventurado agente BLW/553/c,
há pouco liquidado. Nada disso é preciso. Afinal, temos suficiente
número de cúmplices entre os seres humanos. Se soubermos usar as
pessoas com inteligência e discrição, poderemos dominar a menina e os
perigos que ela causar, sem nunca aparecermos abertamente. Essa
tática será econômica, sem riscos e altamente eficaz.
Houve um suspiro de alívio na assembléia reunida. A sugestão
agradou a todos e teria sido sem dúvida aceita imediatamente, se um
sétimo orador não tivesse pedido a palavra:
__ Senhores, continuamos a discutir como nos livrar da menina
Manu, e, encarando francamente esse fato, o que nos leva a isso é o
medo. Mas o medo, meus senhores, é mau conselheiro. Parece-me que
estamos perdendo uma oportunidade realmente única; diz um provérbio:
“Se não puder vencê-los, alie-se a eles”. Por que não procuramos
conquistar a menina para o nosso lado?
__ Adiante! Continue! Escutem! – gritaram várias vozes ao mesmo
tempo.
__ É obvio – prosseguiu o orador – que essa criança achou o
caminho para encontrar aquela pessoa – caminho esse que temos em
vão, desde o princípio. Ora, a menina provavelmente achará de novo
esse caminho e poderá nos guiar até lá. Negociaremos então com
103

aquela pessoa, segundo nossos próprios métodos. Estou certo de que


rapidamente ficaremos donos da situação, não tendo mais de suar e
esforçar-nos para ganharmos algumas horas, minutos ou segundos. De
um só golpe, seremos possuidores do tempo pertencente à humanidade;
e possuir todo o tempo dos homens é ter ilimitado poder! Imaginem,
senhores, se alcançarmos nosso alvo! No entanto, Manu, – de quem
desejam livrar-se – é a única capaz de ajudar-nos a atingi-lo!
Um silêncio de morte reinou na sala.
Depois, um dos presentes exclamou:
__ Mas todos sabem que é impossível contar mentiras a essa
menina! Lembrem-se do agente BLW/553/c; qualquer um de nós sofreria
o mesmo destino.
__ Ora, quem falou em mentir? – perguntou o orador. __ Nós lhe
contaremos com inteira franqueza os nossos planos.
__ Nesse caso, ela não nos ajudará! – gritou um outro. __ Essa idéia
é simplesmente absurda!
Um nono manifestante juntou-se à discussão:
__ Não concordo, meu amigo. Teríamos sem dúvida de oferecer-
lhes alguma coisa que a atraísse. Prometendo, por exemplo, tanto tempo
quanto quisesse para o seu próprio uso . . .
__ Promessa que jamais cumpriríamos – interrompeu um
participante da assembléia.
__ Promessa que teríamos de cumprir – replicou o outro, com
gélido sorriso. __ Ela saberia imediatamente se não tencionássemos
cumprir o que tivéssemos prometido.
__ Não, não! – declarou o presidente, batendo com o punho
fechado na mesa. __ Não posso de modo algum consentir em tal coisa!
Se tivermos de dar-lhe tanto tempo quanto desejar, isso nos custará
uma fortuna!
__ Nem tanto! – retrucou o orador, acalmando-o. __ Quanto tempo
gasta realmente uma criança? Admitindo que seja uma despesa
pequena mas constante, o que significa isso em relação ao que
ganharíamos em troca? O tempo total de toda a humanidade! A quantia
104

gasta por Manu seria simplesmente registrada na coluna de débito de


nossa conta, e pensem nas vantagens que teríamos!
O orador sentou-se e todos puseram-se a refletir nos lucros em
vista!
Levantou-se então o sexto manifestante:
__ De qualquer modo, isso não daria certo!
__ Por que não?
__ Pelo simples motivo que essa criança infelizmente dispõe de
todo o tempo de que necessita. Não adianta procurar suborná-la com
uma coisa que ela já tem de sobra!
__ Teremos então de retirar-lhe o tempo – concluiu o nono orador.
__ Meus senhores – disse o presidente, aborrecido –, notem que
estamos sempre na mesma! É um círculo vicioso, pois não conseguimos
apoderar-nos da menina, esse é o problema.
Nas longas fileiras dos membros da diretoria, houve agora um
suspiro de desânimo.
__ Tenho uma sugestão – anunciou um décimo orador. __ Posso
comunicá-la?
__ Estamos todos atentos! – respondeu o presidente.
Após inclinar-se diante do presidente, o homem começou a falar:
__ Essa criança só vive para seus amigos. Sua alegria é dar o seu
tempo aos outros. Vamos imaginar o que aconteceria se não lhe restasse
ninguém com quem partilhar o tempo! Se a menina não quiser cooperar
conosco voluntariamente, teremos de apoderar-nos de seus amigos.
Tirou da pasta um fichário e abriu-o:
__ As principais pessoas a considerarmos são um certo Beppo
Varredor e Guido Guia. Tenho também uma longa lista das crianças eu
costumam visitá-la freqüentemente. Como vêem, senhores, o caso não é
difícil. Bastará atrairmos todos eles, de modo a afastá-los
completamente de Manu, que ficará inteiramente só. Que valor então
terá o seu tempo? Transformar-se-á num fardo ou até em maldição. Mais
cedo ou mais tarde, será incapaz de suportá-lo e aí estaremos prontos
para impor nossas condições. Aposto dez mil anos contra um décimo de
105

segundo que ela nos mostrará o caminho desejado para em troca ter de
volta seus amigos.
Os homens cinzentos, momentos antes mergulhados em tristeza,
levantaram a cabeça: havia em cada face um sorriso de triunfo nos
lábios magros. Aplaudiram, e os aplausos ressoaram pelos infindáveis
corredores e galerias como o barulho de pedras rolando num
desmoronamento.

12. Manu chega ao lugar de onde vem o tempo

Manu achava-se agora numa sala tão grande como jamais vira:
mais vasta do que qualquer imensa igreja ou do que a mais enorme das
estações de estrada de ferro. Possantes pilares sustentavam o teto alto.
Não havia janelas. A claridade dourada e tênue que cintilava na
extraordinária sala provinha de inúmeras velas, dispostas por toda a
parte, cujas chamas ardiam constante e firmemente como se estivessem
pintadas em cores luminosas e não precisassem de cera para luzir.
Os milhares de sons – zunidos, tique-taques, carrilhões – que Manu
ouvira ao entrar resultavam de inúmeros relógios de todo tamanho e
feitio, colocados em intermináveis prateleiras, ou sobre longas mesas,
consolos revestidos de ouro, e também sob redomas de vidro.
Havia minúsculos relógios de bolso ornados como jóias,
despertadores comuns de metal, ampulhetas, relógios que tocavam
música acompanhada por bonequinhas que dançavam, relógios de sol,
relógios de madeira, de mármore, de vidro, e outros, movidos por um
jato d’água. Nas paredes, estavam pendurados vários tipos de relógios-
cuco, relógios com grandes pesos, relógios com pêndulos que oscilavam
lenta e seguramente, enquanto outros apresentavam pequeninos e
delicados pêndulos que se moviam muito depressa de um lado para
outro. À altura de um primeiro andar, havia um balcão ao redor de toda
106

a sala, ao qual se chegava por uma escada de caracol. Mais acima,


destacava-se um segundo balcão; e depois outro e mais outro. Viam-se
também relógios do feitio do globo terrestre, mostrando as horas em
todas as partes do mundo, e grandes planetários com o Sol, a Lua, as
estrelas. No centro da sala, erguia-se como que uma floresta de relógios
antigos, desde os de pêndulo de tamanho habitual até verdadeiros
relógios de torre de igreja.
Não havia um só momento em que um desses relógios não
estivesse dando horas ou tocando carrilhões, pois cada um indicava uma
hora diversa.
O ruído resultante não era porém desagradável; era um constante
murmúrio, que lembrava um bosque num dia de verão.
Manu passeava pela sala, de olhos arregalados diante de tantas
curiosidades. Achava-se parada diante de um relógio musical, ricamente
trabalhando, no qual duas delicadas figurinhas – um rapaz e uma moça –
estavam de mãos dadas, como se fosse dançar. A menina pensava até
em dar-lhes um empurrãozinho para ver se começavam a dançar,
quando escutou de repente, atrás de si, uma voz agradável dizer:
__ Ah! Então está de volta, Cassiopéia! E trouxe a pequena Manu?
Voltou-se e viu, num dos atalhos da floresta de relógios antigos,
um elegante senhor de cabelos prateados, curvando-se a fim de
conversar com a tartaruga, que se encontrava no chão a seus pés. O
senhor usava longa jaqueta apareciam no pescoço e nos punhos folhos
de preciosa renda. O cabelo prateado terminava num pequeno rabinho,
partindo da nuca. Manu tinha visto semelhante vestuário, mas alguém
menos ignorante reconheceria imediatamente a moda de duzentos anos
atrás.
__ Que é que você disse? – continuou o velho cavalheiro,
debruçado sobre a tartaruga. __ Então ela já chegou? Onde está a
menina? – e pôs uns óculos pequeninos, com aros de ouro.
__ Estou aqui! – gritou Manu.
107

Com um sorriso encantador e de mãos estendidas, os dono da


casa dirigiu-se para ela. À medida que se aproximava, parecia a Manu
que ele ia se tornando mais jovem.
Quando afinal se encontraram, ele segurou-lhe as mãos
carinhosamente, parecendo então apenas pouco mais velho do que a
própria Manu.
__ Bem-vinda! – exclamou alegremente. __ Afetuosas boas-vindas à
Mansão de Lugar Nenhum. Deixe que me apresente: sou Mestre da
Honra do Segundo Minuto.
__ Estava mesmo me esperando? – perguntou Manu, admirada.
__ Decerto, pois até mandei minha tartaruga Cassiopéia
especialmente para buscar você!
Do bolsinho do colete tirou um pequeno relógio cravejado de
brilhantes, abriu-o e disse:
__ De fato, chegaram com extraordinária pontualidade.
Sorrindo, mostrou o relógio à menina
Manu notou que não havia ponteiros nem números; apenas duas
espirais, finamente desenhadas, postas uma sobre a outra, movendo-se
em direção contrária, muito devagar. Na interseção das linhas apareciam
de quando em quando minúsculos pontos luminosos.
__ Este é o relógio do destino, cujas horas marca fielmente: uma
delas está agora se iniciando.
__ O que é um relógio do destino? – perguntou Manu.
__ Bem – explicou Mestre Hora –, no curso da existência ocorrem
às vezes momentos especiais em que cada ser e cada coisa no universo,
até mesmo as estrelas mais distantes, tudo coincide de maneira única e
perfeita, permitindo acontecimentos que seriam impossíveis antes ou
depois daquele momento. Infelizmente, a maioria das pessoas não sabe
como aproveitar tais instantes e assim as horas astrais passam sem
serem percebidas. Mas quando alguém as reconhece, grandes coisas
acontecem então no mundo.
__ Talvez seja preciso ter um relógio como o seu para reconhecê-
las – observou Manu.
108

Mestre Hora sacudiu a cabeça negativamente e sorriu:


__ O relógio por si mesmo não adiantaria a ninguém. É preciso
saber lê-lo.
Com um rápido estalo fechou de novo o reloginho e colocou-o no
bolso do colete. Depois, notando o olhar de espanto de Manu diante de
seu vestuário, considerou cuidadosamente sua roupa, franziu a testa e
disse:
__ Oh! Mas creio que estou muito atrasado na moda! Que
descuido, o meu! Vou já consertar isso!
Estalou os dedos e imediatamente apareceu de sobrecasaca e
colarinho duro.
__ Estou melhor assim? – perguntou, na dúvida. Vendo porém a
expressão perplexa da menina, acrescentou rapidamente:
__ Não, decerto que não! Onde estou com a cabeça?
Estalou de novo os dedos e surgiu com um vestuário estranho, que
nem Manu nem ninguém poderia ter visto antes, pois seria usado cem
anos mais tarde.
Pela terceira vez deu outro estalo e apareceu, por fim, com uma
roupa de acordo com a moda atual:
__ Assim está bem, não é? – perguntou a Manu, piscando um olho.
__ Espero não ter assustado você. Eu estava apenas brincando. E agora,
minha querida menina, é tempo de convidá-la para uma refeição. Venha,
está tudo pronto. Você fez uma longa viagem e há de apreciar o que lhe
vou oferecer.
Tomou-a pela mão, guiando-a através da floresta de relógios. A
tartaruga os acompanhava de perto. O atalho pelo qual seguiam fazia
voltas e mais voltas, como um labirinto, levando-os por fim a uma
saleta, cujas paredes eram formadas pela parte de trás das inúmeras e
gigantescas caixas de relógios. A um canto, viam-se uma mesinha de
pernas recurvadas e um elegante sofá com poltronas combinando.
Também ali tudo era iluminado pelas velas com chamas que não
tremeluziam.
109

Sobre a mesa, estavam uma grande chocolateira e duas pequenas


xícaras juntamente com pratinhos, garfos e facas, tufo de ouro puro.
Numa cestinha havia pãezinhos tostados, torradinhos; e, num pratinho,
manteiga de um amarelo dourado; outro continha mel que parecia ouro
líquido.
Mestre Hora serviu o chocolate quente nas duas xícaras e disse
com um gesto cheio de carinho:
__ Agora, minha cara hóspede, sirva-se à vontade!
Manu não o deixou repetir o conselho. Até naquele momento, nem
sabia que se tomava chocolate, e pãezinhos com manteiga e mel eram
algo muito raro em sua vida. Jamais tinha provado coisa tão deliciosa!
Assim, no começo ficou inteiramente entretida com a maravilhosa
refeição, saboreando-a de boca cheia, e não pensando em nada. O
alimento fez com que se sentisse revigorada e repousada,
desaparecendo todo o cansaço, embora não tivesse dormindo um
instante sequer durante toda a noite. Quanto mais comia, maior sabor
encontrava seu paladar! Parecia-lhe que poderia ficar comendo assim
para sempre.
Mestre Hora olhava-a com benevolência, tendo a delicadeza de, a
princípio, não a importunar com conversa. Sabia que sua pequena
hóspede tinha de satisfazer a fome de muitos anos. Talvez fosse o
motivo por que, ao observá-la, ficou parecendo aos poucos outra vez
mais velho, e seus cabelos embranqueceram de novo. Ao perceber que
Manu não sabia usar bem a faca, abriu os pãezinhos, cobriu-os de
manteiga e mel e colocou-os diante da menina. Ele próprio não comia
quase nada, só o suficiente para lhe fazer companhia.
Afinal Manu ficou realmente satisfeita e, sorvendo o chocolate,
lançou – por cima da xícara dourada – um olhar curioso para seu
anfitrião: quem seria ele? Compreendia que não se tratava de uma
pessoa comum, mas nada sabia a seu respeito, a não ser o nome.
Colocou então a xícara no pires e perguntou:
__ Por que mandou a tartaruga me buscar?
110

__ Para protegê-la dos homens cinzentos – respondeu Mestre Hora


com toda a seriedade. __ Estão todos à sua procura, por toda a parte, e o
único lugar onde você está segura é aqui comigo.
__ Eles me fariam algum mal? – perguntou espantada a menina.
__ Sim, decerto! – suspirou Mestre Hora. __ Fariam mesmo!
__ Mas por quê?
__ Porque têm medo de você – explicou Mestre Hora à criança
surpresa –, pois você causou-lhes um dano mortal.
__ Como? Não fiz nada contra eles! – retrucou Manu.
__ Oh! Fez, sim! Por sua causa, um deles se traiu, você contou o
segredo a seus amigos e em seguida vocês contariam a todo o mundo a
verdade acerca dos homens cinzentos. Não acha que é o bastante para
torná-los seus inimigos mortais?
__ Mas a tartaruga e eu atravessamos todo o centro da grande
cidade – respondeu Manu. __ Se estivessem à minha procura teriam me
encontrado facilmente, pois andávamos muito devagar.
Mestre Hora apanhou a tartaruga, que se acomodara a seus pés,
pôs o animal no colo, coçou-lhe gentilmente o pescoço e perguntou
sorrindo:
__ Que acha, Cassiopéia, poderiam ter capturado vocês?
Na carapaça da tartaruga apareceu a palavra “NUNCA”, e as letras
brilhavam tão alegremente que se poderia jurar ter-se ouvido também
um riso disfarçado.
__ Cassiopéia pode enxergar um pouco do futuro – explicou Mestre
Hora. __ Não muito, ainda assim, com antecipação de mais ou menos
meia hora.
“EXATAMENTE”, viu-se escrito nas suas costas.
__ Desculpe – apressou-se em corrigir –, o que eu queria dizer era
exatamente meia hora. Ela sabe com certeza o que vai acontecer nesse
espaço de tempo, sabia portanto se ia encontrar os homens cinzentos ou
não. Mas voltando a você e seus amigos – prosseguiu Mestre Hora –,
quero felicitá-los. Seus cartazes e faixas me impressionaram muito bem.
__ O Senhor leu o que escrevemos? – perguntou Manu, encantada.
111

__ Li tudo, palavra por palavra!


__ Foi uma pena! Acho que ninguém mais leu – disse a menina.
Mestre Hora acenou afirmativamente com a cabeça:
__ Sim, foi uma pena! E os responsáveis por isso foram os homens
cinzentos.
__ O senhor os conhece bem? – indagou Manu.
Mestre Hora acenou de novo com a cabeça suspirou:
__ Sim, eu os conheço e eles me conhecem.
__ O senhor costuma estar com eles? – continuou a criança a
indagar.
__ Não, eu nunca saio da Mansão de Lugar Nenhum.
__ Então, os homens cinzentos às vezes vê aqui para ver o senhor?
Mestre Hora sorriu:
__ Não se aflija, Manu! Ainda que eles conhecessem o caminho
para a Alameda do Nunca, não poderiam entrar aqui. Mas, de qualquer
modo, não sabem o caminho.
Manu ficou um momento pensativa. A explicação tranqüilizou-a;
porém, tinha vontade de saber mais a respeito de Mestre Hora; assim
continuou a perguntar:
__ E como é que o senhor sabe de tudo isso? Quero dizer, de
nossos cartazes e dos homens cinzentos?
__ Estou sempre de olho neles e em tudo quanto a eles se
relaciona – declarou Mestre Hora. __ Por isso, estive também vigiando
você e seus amigos.
__ Mas o senhor disse que nunca sai desta casa!
__ Nem é preciso! – E Mestre Hora foi se tornando visivelmente
mais jovem à medida que falava. __ Afinal de contas, tenho os meus
óculos universais. – Tirou seus pequenos óculos de aro de ouro e
entregou-os a Manu:
__ Você não quer olhar através deles?
A menina pôs os óculos, piscou, envesgou os olhos e disse:
__ Não vejo nada!
112

De fato, só via uma confusão de cores brilhantes, luzes e sombras


que a deixavam completamente tonta.
__ É assim mesmo – explicou Mestre Hora –, sempre acontece isso
no começo. Não é fácil ver através dos óculos universais. Mas você vai
se acostumar!
Levantou-se, ficou por trás da cadeira de Manu, pôs delicadamente
suas mãos nas hastes dos óculos e moveu-os devagar. Imediatamente,
focalizou-se a imagem.
Ela viu primeiro o grupo dos homens cinzentos nos três carros,
perto da rua onde começava aquela estranha claridade, no momento em
que os carros iam em marcha à ré em vez de seguir para a frente.
Olhando mais para longe, viu a distância outros grupos nas ruas da
cidade, gesticulando e falando agitadamente uns com os outros, como
que pedindo a últimas informações.
__ É de você que estão falando – explicou Mestre Hora. __ Não
compreendem como você conseguiu escapar-lhes.
__ Por que eles têm o rosto tão cinzento? – perguntou Manu,
observando-os.
__ Porque se conservam vivos alimentando-se de matéria morta –
respondeu Mestre Hora. __Você sabe que eles vivem do tempo que
realmente pertence à humanidade. E, positivamente, o tempo morro
quando é arrancado daquele a quem cabe por direito. Cada um tem o
seu tempo próprio, que só é vivo enquanto lhe pertence.
__ Então os homens cinzentos não são gente?
__ Não: tomam apenas a forma humana.
__ O que são eles, então?
__ Na realidade, não são nada.
__ E de onde é que eles surgem?
__ Eles surgem porque as pessoas lhes dão oportunidade para que
possam existir – isso é o bastante para produzi-los. E agora que as
pessoas lhes estão dando oportunidades para dominá-las, será também
o bastante para criá-los.
113

__ Mas supondo que não possam mais roubar tempo de ninguém,


que acontecerá?
__ Voltarão ao nada de onde vieram.
Mestre Hora tomou os óculos de Manu e guardou-os no bolso.
__ Infelizmente – continuou depois de uma pausa –, eles têm agora
muitos cúmplices entre a humanidade. Isso é o pior de tudo.
__ Eu não deixarei ninguém roubar o meu tempo! – afirmou Manu
decididamente.
__ Espero que não – disse Mestre Hora. __ Mas venha comigo,
quero mostrar a você a minha coleção.
Então parecia de novo um velho.
Tomou Manu pela mão e levou-a de volta à enorme sala, onde lhe
mostrou toda a espécie de relógios: pôs em andamento alguns que
começaram a tocar a música, explicou-lhe o planetário, e a alegria que
essas coisas maravilhosas causavam à sua pequena visitante fez com
que tomasse novamente o aspecto jovem.
Enquanto passeavam, perguntou à menina:
__ Você gosta de charadas?
__ Gosto muito! O senhor sabe alguma?
__ Sei – disse ele sorrindo. __ Sei até uma que é muito difícil de se
decifrar. Pouca gente consegue resolvê-la.
__ Que bom! Quero aprender essa charada para depois ensinar a
meus amigos.
__ Estou curioso por ver se você será capaz de decifrá-la. Preste
muita atenção – recomendou Mestre Hora.

“Numa grande e misteriosa casa vivem três irmãos.


Cada uma é diferente do outro.
No entanto, se você procurar distinguir irmão de irmão,
Descobrirá que os três se parecem muito entre si.
O primeiro não está em casa – ainda não chegou.
O segundo estava, mas foi-se.
O terceiro, o menor do três, está em casa, pois se não estivesse.
114

Seus dois irmãos não poderiam existir.


Contudo, a existência do terceiro só pode ser avaliada
Porque o primeiro se transformou no segundo.
E, se você olhar bem para o terceiro.
O primeiro e o segundo é que virão à sua lembrança.
Decifre a charada: são os três realmente um só?
São apenas dois? Ou talvez nenhum?
E se, cara menina, seus nomes você descobrir
Saberá que são três poderosos reis
Governando juntos um grande reino,
E são eles próprios esse reino,
Que dominam em pé de igualdade.”

Mestre Hora olhou para Manu, acenando com a cabeça para


animá-la. Ela ouvira atentamente, e, como tinha excelente memória,
repetiu vagarosamente a charada palavra por palavra. Depois, suspirou:
__ Santo Deus! Esta é mesmo difícil! Não tenho a menor idéia da
resposta e nem sei por onde começar.
__ Experimente! – disse Mestre Hora, estimulando-a.
Manu repetiu de novo a adivinhação, procurando o sentido; em
seguida, sacudiu a cabeça e confessou:
__ Não sei mesmo!
Enquanto isso, Cassiopéia, que os tinha acompanhado, estava
junto de Mestre Hora e observava Manu cuidadosamente.
__ Bem, Cassiopéia, você que sabe tudo com meia hora de
antecedência, responda: Manu resolverá a charada? – perguntou Mestre
Hora.
A resposta apareceu nas costas da tartaruga: “RESOLVERÁ”.
__ Está vendo? – disse ele à menina. __Você vai acertar, Cassiopéia
nunca se engana!
Manu franziu a testa, esforçando-se para adivinhar. O que podiam
ser os três irmãos morando na mesma casa? Evidentemente não se
115

tratava de seres humanos – em charadas, irmãos eram em geral


sementes de maçã, os dentes, ou coisa parecida.
Aqui, porém, eram três irmãos que de certo modo se
transformavam um no outro. Manu olhou em volta . . . Seriam as velas
com suas chamas que não vacilavam? Sim, talvez pudessem ser . . . a
cera se transformava em luz, pelas chamas. Mas não dava certo, pois na
charada “dois irmãos” estavam ausentes. Seria alguma coisa como flor e
fruto, semente? Talvez fosse isso: a semente era o menor dos três
“irmãos”, e sem a semente a flor e o fruto não existiram. Mas na
charada, olhando-se para o “terceiro irmão”, eram o primeiro e os
segundo que se viam . . . Não dava certo também!
Os pensamentos da menina percorriam todos os campos: por mais
que se esforçasse, não conseguia encontrar uma pista. Mas Cassiopéia
afirmara que ela acharia a resposta . . . Começou então a repetir
lentamente a charada. Quando pronunciou as palavras: “O primeiro não
está em casa, ainda não chegou”, viu a tartaruga piscando para ela e na
sua carapaça apareceram estes dizeres: “AQUILO QUE EU SEI”, e
imediatamente se desfizeram.
Embora não estivesse olhando para a tartaruga, Mestre Hora sorriu
e disse:
__ Fique quieta, Cassiopéia, não precisa dar palpites. Manu vai
encontrar sozinha a resposta.
Naturalmente, a menina leu o que aparecera nas costas da
tartaruga e começou a imaginar o que significaria aquilo. Que é que
Cassiopéia sabia? Que ela ia decifrar a charada? Mas isso não adiantava
muito! Que mais podia ser? Ah! Cassiopéia tinha conhecimentos das
coisas antes de acontecerem . . . então conhecia . . .
__ O futuro! – exclamou Manu. __ “O primeiro não está em casa –
ainda não chegou” quer dizer o futuro. “O segundo estava, mas foi-se”
significa o passado.
Mestre Hora acenou afirmativamente, sorrindo satisfeito.
116

__ Mas – continuou a menina pensativa – agora está mais difícil: o


que será o terceiro? É o menor dos três, sem ele os dois outros não
podem existir . . . e é o único que está em casa . . .
Refletiu um pouco e gritou de repente:
__ É o presente! É este momento! O passado é formado pelos
momentos que se foram; o futuro pelos que ainda vão chegar e nenhum
dos dois pode existir sem o presente. Acho que acertei!
As faces de Manu estavam coradas de entusismo:
__ Mas o que quer dizer o seguinte: “A existência do terceiro só
pode ser avaliada porque o primeiro se transformou no segundo?”
__ Ah! Já sei, deve significar que o presente só existe porque o
futuro já virou passado.
Olhou para Mestre Hora, cheia de espanto:
__ É verdade, e eu nunca tinha pensado nisso, antes. Mas então
existe realmente o presente, ou só o passado e o futuro? Agora, por
exemplo, quando falo no presente, ele já se tornou passado . . . assim,
compreendo também que olhando para o terceiro irmão, é o primeiro e o
segundo que nos vêm à mente. Afinal, poderíamos dizer que só existe
um único irmão – o presente; como poderíamos dizer que só existem, na
realidade, o passado e o futuro. Ou talvez nenhum deles, pois cada qual
só tem existência em relação aos outros dois. Puxa! Fiquei de cabeça
quente!
__ Mas a charada ainda não acabou – disse Mestre Hora. __ Qual é
o grande reino que os três governam juntos, e que eles próprios
constituem?
Manu voltou-se para ele, perplexa. Que seria isso? Onde é que o
presente, o passado e o futuro se encontram juntos?
Seu olhar percorreu a sala imensa, fixando-se nos milhares de
relógios. Com expressão subitamente iluminada, exclamou então:
__ É o tempo! Isso significa o tempo!
E pulava de alegria.
__ Diga-me agora qual é a casa em que moram os três irmãos –
acrescentou Mestre Hora.
117

__ Deve ser o mundo – respondeu a menina.


Desta vez foi Mestre Hora quem bateu palmas de contentamento:
__ Bravo! Parabéns, Manu! Você é boa nas charadas! Isso muito
me alegra.
__ Também a mim! – disse a criança, que secretamente perguntava
a si mesma por que Mestre Hora ficara tão satisfeito que ela tivesse
acertado a charada.
Continuaram passeando pela sala cheia de relógios, o dono da
casa mostrando coisas cada vez mais interessantes, mas Manu estava
ainda com o pensamento naquela adivinhação e fez-lhe de repente esta
pergunta:
__ Diga-me, que é afinal o tempo?
__ Você já o descobriu sozinha! – respondeu Mestre Hora.
__ Mas eu quero saber o que ele é em si mesmo. Se existe, deve
ser alguma coisa! O que é realmente o tempo?
__ Seria bom que você própria também encontrasse essa resposta
– disse Mestre Hora.
Manu ficou longo tempo pensativa.
Depois, murmurou absorta:
__ Ele existe, isso é certo. Mas não pode agarrar o tempo, nem o
conservar. Será como uma espécie de perfume? Mas se é uma coisa que
está sempre passando, deve vir de algum lugar. Será como o vento?
Não; já sei: talvez seja como uma espécie de música, que não se ouve
porque está sempre tocando . . . mas penso que eu já a escutei, muito
baixinho.
__ Sei disso – confirmou Mestre Hora –, e foi por esse motivo que
pude mandar buscar você.
__ Deve porém haver mis alguma coisa – continuou Manu, sempre
meditando. __ A música vinha de muito longe, e no entanto parecia
ressoar no mais profundo de mim mesma. Talvez também seja assim,
não?
Parou, confusa, e acrescentou meio desnorteada:
118

__ Quero dizer, talvez seja como as ondas que aparecem na água


por causa do vento. Oh! Creio que estou dizendo uma porção de tolices!
__ Pois eu acho que você descreveu tudo muito bem! – exclamou
Mestre Hora. __ E por isso vou contar um segredo: todo o tempo dos
homens provém da Mansão de Lugar Nenhum, no fim da Alameda do
Nunca.
Manu olhou-o cheia de admiração e disse baixinho:
__ É o senhor mesmo quem faz o tempo?
Mestre Hora sorriu novamente:
__ Não, menina, eu sou apenas o distribuidor; meu dever é dar a
cada ser humano o tempo que lhe é consignado.
__ E o senhor não pode arranjar facilmente um jeito para que esses
ladrões não possam mais roubar o tempo das pessoas? – perguntou
Manu.
__ Não; não posso – respondeu Mestre Hora –, pois as pessoas têm
de decidir elas mesmas quanto ao uso que fazem do seu tempo. E
devem também ter cuidado com ele. Só o que me cabe fazer é reparti-
lo.
Manu lançou um olhar à sua volta e perguntou:
__ É por isso que o senhor tem tantos relógios? Um para cada
pessoa?
__ Não, Manu. Esses relógios são apenas meu prazer – minha
distração predileta –, são simplesmente uma cópia muito imperfeita de
algo que cada um tem no seu próprio coração. Assim como você tem
olhos para ver a luz, ouvidos para escutar os sons, tem também um
coração para entender o tempo. E todo o tempo que não é apreendido
pelo coração é tão desperdiçado como o seriam as cores do arco-íris
para um cego ou o canto ca cotovia para um surdo. Infelizmente, porém,
existem alguns corações cegos e surdos, que nada entendem, mesmo
quando batem como os demais.
__ Que acontecerá quando meu coração parar de bater? –
perguntou Manu.
119

__ Então, o tempo terá terminado para você. Ou pode-se também


dizer que você mesma é que voltará através do tempo, através de todos
os seus dias e noites, meses e anos: voltará através de toda a sua vida,
até chegar à grande porta semicircular de prata, por onde no princípio
você entrou e pela qual sairá de novo.
__ Que é que tem do outro lado?
__ Ah! Lá você estará no lugar de onde vem a música que tem por
vezes ouvido, muito, muito longe. E então você mesma já fará parte
dessa música: será uma nota na grande harmonia.
Mestre Hora considerou a criança com olhar atento:
__ Mas não creio que você agora possa compreender isso.
__ Acho que posso – murmurou Manu. Lembrou-se da caminhada
que fizera na Alameda do Nunca, quando teve de andar de costas e
pareceu-lhe regredir através de toda a sua vida. Perguntou então: __ O
senhor é a morte?
Mestre Hora sorriu e ficou silencioso por alguns momentos, antes
de responder.
__ Se as pessoas soubessem como é a morte, não teriam meda
dela e assim já não seria possível roubar o tempo de ninguém.
__ Então, o que temos de fazer é avisá-las – sugeriu Manu.
__ Você acha? Pois é o que eu lhes digo em cada hora que lhes
dou, mas não querem ouvir. Preferem acreditar naqueles que as
assustam. Isso também é um mistério.
__ Eu não tenho medo – afirmou Manu.
Mestre Hora sacudiu devagar a cabeça, olhou em seguida para a
menina e perguntou:
__ Você gostaria de ver de onde vem o tempo?
__ Muito! – sussurrou ela.
__ Pois vou levar você lá – disse Mestre Hora. __ Mas você terá de
ficar inteiramente silenciosa, sem perguntar nem dizer nada. Promete?
Manu acenou afirmativamente, sem uma palavra.
Mestre Hora curvou-se então e carregou-a, segurando-a
firmemente nos braços. Parecia de repente ter-se tornado muito grande
120

e incrivelmente velho – não como um velho comum, e sim qual árvore


muito antiga, ou montanha primitiva. Pôs as mãos sobre os olhos da
menina, e foi como se frios e leves flocos de neve caíssem sobre seu
rosto.
Manu tinha a impressão de que ele a levava por um longo e escuro
corredor, mas se sentia segura e não tinha medo algum. No começo,
pensou estar ouvindo as batidas de seu próprio coração, logo, porém,
pareceu-lhe, cada vez mais, que elas eram o eco dos passos de Mestre
Hora.
O percurso foi longo, mas por fim ele a colocou de pé, e com o
rosto ainda bem junto ao seu, olhando-a fixamente, pôs um dedo nos
lábios. Depois, endireitou-se e deu um passo atrás. Um crepúsculo
dourado envolveu a menina.
Aos poucos, Manu viu que estava sob uma cúpula imensa, tão alta
como a abóbada celeste, toda em ouro.
No cimo, bem no centro, havia uma abertura circular pela qual
uma verdadeira coluna de luz se irradiava sobre um lago, também
redondo, do mesmo tamanho da abertura do alto, cuja superfície negra
era tão lisa e imóvel como a de um escuro espelho.
Pouco acima da água, algo parecendo uma brilhante estrela
resplandecia na coluna luminosa, movendo-se com majestosa lentidão.
Observando melhor, Manu viu que era um enorme pêndulo, oscilando de
um lado para outro sobre o espelho negro do lago. Não estava suspenso
de nenhum ponto, e pairava no ar como se fosse imponderável.
Quando o pêndulo estelar se aproximou da margem do lago, um
grande botão de flor surgiu sobre a água escura. Quanto mais perto
chegava o pêndulo, mais desabrochava o botão, até abrir-se
completamente sobre a superfície lisa.
Era a flor mais maravilhosa que Manu jamais havia visto: parecia
feita apenas de uma quantidade de cores brilhantes, tão belas como a
menina nunca imaginara que existissem.
O pêndulo estelar se deteve um instante sobre a flor e Manu,
completamente absorta nessa visão, estava inconsciente de tudo o mais
121

a seu lado. O perfume da flor parecia-lhe uma coisa que sempre havia
desejado, sem saber o que fosse.
Aos poucos, porém, devagar, muito devagar, o pêndulo começou a
se afastar e, enquanto se distanciava, Manu viu com assombro que a flor
maravilhosa começava a murchar. As pétalas caíam, uma após outra,
mergulhando na escura profundeza. Quando o pêndulo chegou ao
centro, nada restava daquela extraordinária beleza. Naquele exato
instante, porém, outro botão começou a surgir da água, desta vez do
lado oposto, e foi se abrindo à medida que pêndulo se aproximava. Manu
viu que a outra flor maravilhosa ali desabrochava, ainda mais bela do
que a anterior, e deu a volta ao lago para apreciá-la mais de perto.
Era inteiramente diversa da flor antecedente: suas cores pareciam
à menina ainda mais ricas e suntuosas; seu perfume também era outro,
ainda mais delicioso. E quanto mais Manu a contemplava, mais lindos
detalhes nela cobria.
De novo, porém, o pêndulo oscilou para longe e todo aquele
esplendor se desvaneceu, caindo, pétala por pétala, na insondável
profundeza do lago.
Lenta, lentamente, o pêndulo moveu-se para a outra margem, e
desta vez aproximou-se de outro ponto, ligeiramente distante do
anterior, onde começou a surgir novo botão, que foi gradualmente
desabrochando. Extasiada, Manu admirava essa flor – verdadeiro milagre
de beleza –, que superava todas as outras.
Manu quase chorou ao ver também essa perfeição murchar e
desaparecer no lago sombrio. Mas lembrou-se da promessa que fizera a
Mestre Hora e ficou muda.
Então, na outra margem, no lugar onde se achava o pêndulo,
surgia da água outro botão prestes a se abrir.
Aos poucos, a menina foi compreendendo que cada nova flor era
sempre diferente da anterior e que aquela que floria agora lhe parecia a
mais bela de todas.
122

Não se cansava de apreciar aquela cena, quando tomou


consciência de que mais alguma coisa ali ocorria constantemente sem
que o tivesse notado.
A coluna de luz irradiando do alto da cúpula não era apenas visível
– Manu começou também a ouvi-la.
No princípio era apenas um leve sussurro como o som distante do
vento soprando no cimo das árvores. Logo, porém, o som aumentou,
fazendo-a imaginar uma cascata despencando das alturas, ou em
grandes ondas rebentando contra os rochedos. Foi percebendo, cada vez
mais distintamente, que aquele impressionante ruído era composto de
inúmeras melodias separadas, que modulavam e se uniam para formar
harmonias sempre novas. Era música e, ao mesmo tempo, coisa
inteiramente diversa.
De repente, Manu descobriu: era música que ela ouvia por vezes,
longe, muito ao longe, quando se punha a escutar o silêncio sob o céu
estrelado.
O som se tornara mais nítido e irradiante. A menina começou
então a suspeitar ser essa luz sonora que fazia surgir as flores das
profundezas do sombrio lago, dando a cada uma sua beleza própria,
única.
Quanto mais atentamente ouvia, com maior clareza podia
distinguir as vozes individuais, que aliás não eram vozes humanas:
pareciam vibrações de ouro, prata e outros metais preciosos. Além disso,
no fundo, como cortina sonora, ressoavam vozes de outra espécie, de
indescritível esplendor, vindas de incomensurável distância. Tornavam-
se cada vez mais claras e Manu pôde aos poucos ouvir as palavras que
elas cantavam. Palavras numa língua que jamais ouvira, e que no
entanto compreendia: o Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas lhe
revelavam seus nomes reais e verdadeiros. Esses nomes é que
determinavam aquela maravilhosa força pela qual, todos unidos,
suscitavam a floração das horas, que continuamente floriam e se
desvaneciam.
123

Subitamente Manu compreendeu que aquelas palavras se dirigiam


a ela! Todo o universo – desde a mais longínqua estrela – voltava-se para
ela como se uma única face, inconcebivelmente vasta, a contemplasse e
lhe falasse.
Sentiu-se invadida por um sentimento maior do que o temor.
Nesse instante, viu Mestre Hora, que silenciosamente lhe acenava.
Correu para ele, refugiou-se nos seus braços e escondeu o rosto no seu
peito.
De novo ele colocou as mãos sobre os olhos da menina, tão
suavemente como flocos de neve; tudo se tornou escuro, silencioso, e
Manu sentiu-se segura enquanto era carregada de volta pelo sombrio
corredor.
Quando chegaram novamente à saleta entre os relógios, ele
deitou-a no sofá.
__ Mestre Hora – murmurou a criança –, nunca pensei que o tempo
dos homens fosse tão . . . – procurava a palavra capaz de exprimir seu
pensamento, e, não a encontrando, disse por fim: __ tão imenso!
__ O que você viu e ouviu, Manu, não foi o tempo de todos os
homens, foi apenas o seu tempo – replicou Mestre Hora. __ Em todas as
pessoas existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas
só podem chegar lá as que consentem em que eu as leve. E também
não se pode vê-lo com os olhos comuns.
__ Mas onde é que eu estive?
__ No seu próprio coração – respondeu ele, acariciando
suavemente o cabelo da menina.
__ Mestre Hora – disse ela baixinho –, posso trazer aqui meus
amigos para conhecerem o senhor?
__ Não; por enquanto não é possível.
__ E quanto tempo possa ainda ficar aqui?
__ Até você sentir que deve voltar para junto de seus amigos.
__ Posso contar a eles o que as estrelas disseram?
__ Pode, mas você não será capaz disso.
__ Por que não?
124

__ Porque, para conseguir tal coisa, primeiro as palavras têm de


crescer dentro de você.
__ Mas eu queria contar a eles – a todos eles – tudo quanto vi e
ouvi! E também cantar o que as vozes contavam . . . assim, acho que
tudo endireitava outra vez!
__ Se você o quer realmente, Manu, tem de preparar-se para uma
longa espera.
__ Não me importo de esperar.
__ Você terá d esperar, tal como a semente precisa dormir dentro
da terra, talvez durante todo um ciclo solar, para que brote. Está
disposta a isso?
__ Sim, estou! – disse ela num murmúrio.
__ Então durma!
E Mestre Hora pôs as mãos leves sobre seus olhos:
__ Durma!
Tranqüila, Manu respirou fundo e adormeceu.

TERCEIRA PARTE
A floração das horas

13. Um dia lá mas um ano aqui!

Manu acordou e abriu os olhos. Levou algum tempo até perceber


onde se achava. Quando percebeu, ficou muito admirada ao ver-se nos
degraus cobertos de capim do velho anfiteatro. Não tinha estado na
Mansão de Lugar Nenhum com Mestre Hora, havia apenas alguns
instantes? Como voltara tão depressa?
Estava escuro e frio. No leste brilhava o primeiro clarão da
alvorada. Lembrava-se perfeitamente bem de tudo quanto lhe
acontecera: a fuga noturna acompanhando a tartaruga através da
grande cidade, as ruas com aquela estranha luz e as casas ofuscantes
125

de tão brancas, a Alameda do Nunca, a sala cheia de relógios, os


pãezinhos com mel e o delicioso chocolate, bem como cada palavra de
sua conversa com Mestre Hora e a charada que ele propôs. Acima de
tudo, porém, recordava o que se passara sob a cúpula de ouro. Bastava-
lhe fechar os olhos para rever as maravilhosas cores – jamais sonhadas!
– das flores e ouvir de novo as vozes do Sol, da Lua, das estrelas, tão
nitidamente que podia até cantarolar a melodia para acompanhá-las. Ao
fazer isso, palavras começaram a tomar forma em seu coração: palavras
que realmente exprimiam o perfume das flores e a beleza das cores,
inexistentes na terra ou no mar. Eram as vozes que, na memória de
Manu, falavam as palavras e sucedeu então algo de extraordinário; não
só se lembrava de tudo o que vira e ouvira, mas havia ainda muito,
muito mais! Milhares de imagens da floração das horas brotavam da sua
mente como se jorrassem de uma fonte mágica, inextinguível,
suscitando sempre palavras novas. Bastava ouvir atentamente seu
coração para ser capaz de repeti-las ou de acompanhar as vozes, que
cantavam coisas lindas e maravilhosa. Ao pronunciá-las, Manu percebeu
que agora entendia seu verdadeiro sentido.
Era sem dúvida o que o Senhor do Tempo dissera por intermédio
de Mestre Hora, ao avisá-la de que as palavras tinham de nascer dentro
dela mesma! Ou teria sido tudo apenas um sonho? Acontecera
realmente tudo aquilo?
Manu estava ainda absorta naquelas reflexões, quando viu alguma
coisa rastejando no meio da arena. Era uma tartaruga à procura de uma
planta saborosa para comer.
A toda a pressa, a menina desceu e ajoelhou-se perto do animal,
que mal ergueu a cabeça, continuando a mordiscar aqui e ali.
__ Bom dia, tartaruga! – disse Manu.
Nenhuma resposta apareceu na carapaça.
__ Foi você que me levou à mansão de Mestre Hora, a noite
passada? – perguntou
Também não houve resposta.
Manu deu um suspiro de desapontamento e murmurou:
126

__ Que pena, então você é uma tartaruga comum, e não – Oh!


Esqueci-me do nome da outra . . . era um nome bonito, comprido, difícil,
que eu nunca tinha ouvido antes.
“CASSIOPÉIA”, apareceu subitamente em letras fracamente
luminosas na carapaça.
__ É isso! Era esse o nome! Então é você mesma! Você é a
tartaruga de Mestre Hora, não é?
“DE QUEM MAIS?”
__ Por que, no começo, não me respondeu?
“PORQUE ESTOU COMENDO.”
__ Oh! Desculpe – disse Manu. __ Não queria interromper seu
almoço, mas desejava saber como é que eu voltei para cá.
“ POR SUA VONTADE ”, apareceu nas costas do bichinho.
__ É engraçado – observou Manu –, não consigo me lembrar disso.
E você, Cassiopéia, por que não ficou com Mestre Hora em vez de voltar
para perto de mim?
“ MINHA VONTADE ”, foi a resposta em letras luminosas.
__ Oh! Como você é boazinha! Muito obrigada!
“ NÃO TEM DE QUÊ! ”, e com isso terminou a conversa, pois a
tartaruga estava interessada em continuar sua refeição.
Sentada nos degraus de pedra, Manu pensava com alegria em
Beppo, Guido e nas crianças. A música ressoava continuamente em seu
coração, e embora estivesse inteiramente só, sem ninguém para ouvi-la,
pôs-se a acompanhar a música e as palavras, cantando cada vez mais
alto e com maior segurança, ao sol da manhã. Parecia-lhe agora que os
pássaros, os grilos e até as velhas pedras estavam ouvindo.
Não podia saber que, por muito tempo, seriam esses seus únicos
ouvintes. Não sabia que esperava em vão por seus amigos, nem que sua
ausência fora muito longa e que, enquanto isso, as coisas tinham
mudado.

Guido foi uma presa relativamente fácil para os homens cinzentos.


Tudo começara um ano atrás, logo depois que Manu desapareceu, sem
127

deixar nenhuma pista. Um longo artigo a respeito de Guido saíra então


no jornal no jornal com o título “O último verdadeiro contador de
histórias”, indicando onde e quando podia ser encontrado, e dizendo ser
ele uma atração que não se podia perder.
A notícia atraiu cada vez mais gente ao velho anfiteatro para ouvir
Guido, que, é claro, não se opunha a tal sucesso. Contava histórias como
de costume, aproveitando qualquer coisa que lhe vinha à cabeça; no
fim, passava o boné de guia, e o público enchia-o de moedas e notas.
Em breve foi contratado por uma agência de viagens, que lhe pagava
uma comissão para inclui-lo em seus programas. Os turistas chegavam
em grande ônibus, e Guido viu-se obrigado a horários determinados a
fim de que o público pagante tivesse realmente oportunidade de ouvi-lo.
No começo, sentiu muito a ausência de Manu, pois de certo modo
faltavam agora asas às suas histórias, e ele recusava terminantemente
contar duas vezes a mesma história, ainda que lhe oferecessem salário
dobrado.
Depois de alguns meses, já não precisava mais ir ao velho
anfiteatro: foi descoberto pelo rádio e logo em seguida pela televisão.
Aparecia na TV três vezes por semana, contando histórias a milhares de
telespectadores e ganhando bastante dinheiro.
Abandonou então sua antiga e pobre morada perto do anfiteatro,
passando a viver no mais rico e elegante bairro da cidade, onde alugou
uma bela e moderna casa, situada em meio de vasto jardim. Deixou
também de chamar-se Guido e voltou a ter o pomposo nome de
Girolamo.
Naturalmente, há muito que já não inventava histórias novas,
como fazia a princípio: não tinha tempo para isso, e era obrigado a
poupar seus recursos, esticando por vezes a mesma idéia para encher
cinco histórias diferentes.
Certo dia, quando apesar dessas medidas, não teve meios de
satisfazer à crescente procura que o assediava, fez uma coisa que
jamais deveria ter feito: contou uma das histórias que inventara
unicamente para Manu.
128

História devorada e logo esquecida pelo público com a rapidez


habitual. Continuavam porém a exigir dele sempre mais e mais fábulas,
e Guido, atordoado pela velocidade com que os compromissos se
sucediam, sem tempo para refletir, foi tornando públicas – uma por uma
– todas as histórias que inventara só para Manu . . . Mas, depois de ter
contado a última, sentiu-se de repente completamente vazio – oco. E
sentiu-se que jamais teria novas idéias.
Com medo de que o sucesso pudesse fugir começou então a
repetir todas as suas velhas histórias, modificando-as ligeiramente e
dando-lhes outros nomes. O mais extraordinário é que ninguém parecia
saber isso, e ele era mais requisitado do que nunca.
Agarrava-se a esse fato como um afogado a uma tábua de
salvação. Afinal, estava agora rico, famoso, e não era o que sempre
sonhara? No entanto, às vezes, à noite, deitado na cama sob o edredom
de cetim, tinha saudades dos dias de antigamente, quando vivia perto
de Manu, do velho Beppo, das crianças, e era realmente capaz de contar
histórias.
Porém, era impossível voltar atrás, mesmo porque Manu
desaparecera sem deixar vestígio. A princípio, Guido fizera vários e
sérios esforços para encontrá-la; agora já não tinha mais tempo para
isso. Dispunha de três eficientes secretárias, que redigiam seus
contratos, taquigrafavam as histórias que ele ditava, encarregavam-se
de toda a publicidade, anotavam seus compromissos e nunca havia data
em que se pudesse encaixar a busca de Manu.
Quase nada ficara do antigo Guido . . . Um dia, porém, ele
procurou juntar o pouco de tempo que ainda restava e decidiu pensar
seriamente na sua vida. Era agora um homem cujas palavras valiam
muito e eram ouvidas por milhões de pessoas. Quem mais indicado para
dizer-lhes a verdade? Contaria tudo acerca dos homens cinzentos,
dizendo que não se tratava mais de uma história inventada por ele, e
pediria até o auxílio de seus ouvintes para ajudá-lo a encontrar Manu.
Tomou tal resolução uma noite em que sentiu saudades dos velhos
amigos, e pela manhã estava sentado à sua bela escrivaninha, disposto
129

a fazer um rascunho de seu projeto. Não tinha ainda escrito uma só


palavra, quando o telefone tocou. Guido atendeu e ficou duro de pavor.
Uma voz estranha, átona, cinzenta, começou a falar-lhe; e,
enquanto ele ouvia, um frio interior o penetrava, parecendo vir da
medula dos ossos.
__ No seu próprio interesse, nós o aconselhamos a desistir de seus
planos – disse a voz.
__ Quem fala? – perguntou Guido
__ Você sabe perfeitamente quem é. Nós não precisamos de
apresentação. É verdade que até agora você não teve o prazer de nos
encontrar; mas há muito que é nosso de corpo e alma. Não me diga que
você o ignora!
__ Que querem comigo?
__ O que você está projetando não nos convém. Seja bom sujeito e
desista!
Guido apelou para toda a seu coragem:
__ Não, não vou desistir de coisa nenhuma. Não sou mais o
insignificante Guido de antigamente. Agora sou um grande homem.
Veremos se vocês podem me impedir de fazer alguma coisa.
A voz deu uma risada sem expressão e, subitamente, Guido
começou a bater os dentes.
__ Você não é ninguém – continuou a voz. __ Nós é que fizemos o
que você é hoje: um simples boneco de borracha que enchemos de gás.
Mas, se nos trair, nós o esvaziaremos. Ou você pensa que deve tudo
quanto é atualmente a seu medíocre talento e a si próprio?
__ Sim! É isso mesmo que eu penso – respondeu Guido
roucamente.
__ Coitado! Você é e sempre foi um romântico sonhador:
costumava ser o Príncipe Girolamo disfarçado num pobre-diabo chamado
Guido; hoje você é esse pobre-diabo fantasiado de Príncipe Girolamo.
Contudo, deve ser-nos grato, pois nós fizemos com que seu sonho se
realizasse.
__ Iss . . . Isso não . . . não é verdade! É mentira! – gaguejou Guido.
130

__ Vejam só! – exclamou a voz com outro riso inexpressivo. __ Essa


agora, você é a última das criaturas que nos pode falar a verdade. Não,
meu pobre rapaz, isso está completamente fora de sua linha. Graças à
nossa ajuda, você é hoje famoso pelas histórias que inventa, mas
realmente não está qualificado para discorrer sobre a verdade.
__ Que é que fizeram com Manu? – perguntou Guido num sussurro.
__ Ora, não canse sua cabeça-de-vento quanto a isso. Você não
pode socorrê-la, muito menos se quiser contar histórias a nosso respeito.
Se o fizer, o único resultado será ver sua fama desaparecer tão depressa
quanto surgiu. Evidentemente, quem decide é você! Não queremos
impedi-lo de bancar o herói a arruinar-se, já que se sente inclinado a tal
atitude. Não pode no entanto esperar que continuemos a promovê-lo,
uma vez que se mostra tão ingrato. Não acha mais agradável ser rico e
famoso?
__ Acho . . . – disse Guido quase sufocando.
__ Agora, sim! Acertou! Então deixe-nos de fora, ouviu? Continue
contando ao povo o que ele quer ouvir.
__ Mas como poderei continuar, agora que sei como as coisas
realmente são? – respondeu Guido com esforço.
__ Deixe-me dar um bom conselho: não se leve tão a sério, rapaz!
Não há nada que você possa fazer. Convença-se disso, e poderá
prosseguir como até hoje.
__ É – murmurou Guido, os olhos fitos no espaço –, se eu pensar
assim...
Nesse instante, escutou que desligavam e ele também colocou o
fone no gancho. Caiu de bruços sobre sua imponente escrivaninha,
sacudido por soluços silenciosos.
Dali por diante, Guido perdeu toda a dignidade. Abandonou o
projeto que formulara e continuou como até então, mas se sentia
intimamente frustrado. No princípio sua imaginação conduzira-o por um
atalho florido, que ele seguia alegremente; agora, no entanto, só
contava mentiras. Tornara-se um fantoche, um palhaço para divertir o
público. Sabia-o, e começou a odiar sua profissão. Suas histórias iam
131

ficando cada vez mais ridículas ou sentimentais, embora isso não


prejudicasse seu sucesso.
Pelo contrário, consideravam ser esse seu novo estilo, que logo se
tornou moda, e muitos começaram a copiar. Guido, porém, não tinha
mais o menor prazer no seu trabalho. Sabia agora a quem devia tudo
aquilo: não ganhara nada; perdera tudo.
Mas seu veloz automóvel continuava levando-o a toda parte, de
programa em programa; voava nos mais rápidos aviões e, onde quer
que se encontrasse, estava sempre ditando a suas secretárias as
mesmas velhas histórias com alguma roupagem diferente. Todos os
jornais comentavam sua extraordinária “fecundidade literária”.

Beppo Varredor foi para os homens cinzentos um problema bem


mais árduo. Desde a noite em que Manu desaparecera, ele sentava-se
no anfiteatro, sempre que seu trabalho o permitia, e lá ficava à espera
dela. Sua inquietude e aflição aumentavam cada vez mais e por fim, não
suportando o peso daquela ansiedade, apesar de todas as justas
objeções de Guido, resolveu dar parte à polícia.
“Afinal”, pensava ele, “é preferível que Manu seja levada a um
orfanato, mesmo com grades nas janelas, a ficar prisioneira dos homens
cinzentos. Se ela já uma vez fugiu do asilo, talvez possa escapar de
novo... e quem sabe até eu consiga dar um jeito de não ser preciso
interná-la . . . Mas a primeira coisa a fazer é encontrar a menina.”
Dirigiu-se pois ao distrito policial mais próximo, no subúrbio da
cidade. Ficou por algum tempo parado diante da porta, girando o boné
entre os dedos e recorrendo a toda a sua valentia para entrar.
__ Que deseja? – perguntou o policial, ocupado em preencher um
longo e complicado formulário.
Beppo demorou um pouco até poder pronunciar estas palavras:
__ Aconteceu uma coisa terrível.
__ Ah! – disse o policial, sempre escrevendo. __De que se trata?
__ De nossa pequena Manu – respondeu Beppo.
__ É uma criança?
132

__ Sim, uma menina.


__ É sua filha?
__ Não – replicou Beppo, confuso –, ou melhor, é; mas não sou seu
pai.
__ Que história é essa? – perguntou o policial, aborrecido. __ Então
ela é filha de quem? Onde estão seus pais?
__ Ninguém sabe – murmurou o varredor.
__ Onde é que foi registrada?
__ Registrada? Acho que conosco mesmo, todos nós conhecemos a
menina.
__ Não foi registrada! – disse o policial, suspirando: __ Não sabe
que isso é contra a lei? Com quem mora essa criança?
__ Sozinha, no velho anfiteatro; isto é, morava, mas agora não está
mais lá.
__ Um momento – pediu o policial –, se entendi bem, trata-se de
uma menina errante que vivia naquelas ruínas, e agora desapareceu.
Como é mesmo o nome dela?
__ Manu – disse Beppo, enquanto o policial tomava notas.
__ Manu de quê? Dê o nome completo, por favor!
__ Mas é só Manu!
O policial coçou o queixo, contrariado.
__ Assim não é possível! Quero ajudar o senhor, mas não posso
redigir um relatório desse jeito. Primeiro, diga-me seu próprio nome.
__ Beppo.
__ Beppo . . . que mais?
__ Beppo Varredor.
__ Não perguntei qual seu emprego, quero o seu nome todo!
__ Mas é esse mesmo – respondeu Beppo humildemente.
O policial escondeu o rosto entre as mãos e murmurou,
desesperado:
__ Deus me dê paciência! Por que estou de serviço justamente
agora?
133

Em seguida, endireitou-se, jogou os ombros para trás, sorriu


animadoramente para o velho e falou-lhe de mansinho, como quem fala
a um doido com quem é preciso concordar:
__ Os detalhes particulares ficam para depois. Agora conte-me a
história toda do começo ao fim – o que realmente aconteceu, como
aconteceu.
__ Toda a história? – indagou Beppo, na dúvida.
__ Tudo de importante. Só Deus sabe como é que estou ocupado,
não tenho um momento a perder! Preciso terminar esta pilha de
formulários até a hora do almoço, mas não se afobe, conte-me tudo que
tem na cabeça.
Recostou-se e fechou os olhos com cara de mártir, enquanto
Beppo, no seu modo original e minucioso, narrava o caso todo, desde o
imprevisto aparecimento de Manu e seu extraordinário dom de saber
ouvir até acena dos homens cinzentos, reunidos no depósito de lixo, que
ele tinha presenciado.
__ Nessa mesma noite a menina desapareceu – concluiu afinal.
O policial lançou-lhe um demorado olhar de pena e declarou:
__ Em outras palavras: era uma vez uma menina de cuja existência
não temos provas, que foi raptada por uma espécie de espíritos (que
todo mundo sabe não existirem) e levada Deus sabe para onde. E
mesmo disso, não há certeza. Ora, o senhor espera que a polícia vá se
incomodar com semelhante história?
__ Sim, por favor! – disse Beppo.
A essa altura, o policial debruçou-se por cima da mesa e gritou
furioso:
__ Deixe-me cheirar o seu bafo.
Beppo não compreendeu o alcance da ordem, mas encolheu os
ombros e soprou docilmente sobre o rosto do policial, que sacudiu a
cabeça negativamente, dizendo:
__ Não, aparentemente não está bêbado.
Vermelho diante do vexame, Beppo afirmou:
__ Nunca estive bêbado!
134

__ Então por que me conta todas essas tolices? Acha que a polícia
é tão idiota que vai acreditar nessas asneiras?
__ Acho que sim! – respondeu Beppo inocentemente. Exasperado,
fora de si, pulou da cadeira, deu um murro na mesa e berrou:
__ Chega! Saia já daqui! Senão mando prender você por
desrespeito à autoridade.
__ Desculpe – murmurou Beppo –, não tive essa intenção, o que eu
queria . . .
__ Fora! – rugiu o agente.
Beppo virou-se nos pés e saiu.
Nos dias seguintes procurou vários outros distritos, mas a cena era
sempre a mesma. Os policiais mandavam-no embora ou diziam-lhe
gentilmente que fosse para casa, enquanto outros tentavam consolá-lo
com promessas para se livrar dele mais depressa.
Certa vez, no entanto, Beppo entrou em contato com um agente
mais velho e com menos senso de humor que seus colegas. Este ouviu
toda a história com fisionomia impassível e declarou friamente:
__ Este homem é maluco. Temos de saber se ele é um perigo para
a segurança pública ou não. Prendam-no numa cela.
Assim, Beppo passou metade do dia na cadeia, até que dois
policiais o levaram de automóvel através da cidade a um grande edifício
branco com grades nas janelas. Não era uma prisão, como a princípio
pensou, e sim um hospital para doentes mentais.
Ali passou por um exame completo. Os médicos especialistas e as
enfermeiras eram gentis com ele; não gritavam nem zombavam,
pareciam até muito interessados na sua história, pois tinha sempre de
repeti-la. Não descobriam doença alguma; contudo, não o deixavam ir
embora. Cada vez que ele perguntava quando poderia sair, diziam-lhe:
__ Logo; mas precisa ficar aqui mais um pouco; nossas pesquisas
não estão completas, porém estão bem adiantadas.
E Beppo, pensando que estavam investigando acerca de Manu,
enchia-se de paciência.
135

Deram-lhe uma cama num grande dormitório, onde havia com


número de doentes. Uma noite, acordou e na débil luz noturna percebeu
alguém de pé a seu lado. Primeiro distinguiu apenas a ponta de um
charuto aceso; depois reconheceu o chapéu-coco e a pasta cinzenta que
um vulto escuro trazia. Quando compreendeu tratar-se sem dúvida de
um dos homens cinzentos, sentiu frio até a medula dos ossos e já ia
gritar por socorro.
__ Quieto! – ordenou uma voz cinzenta, saída da escuridão. __ Fui
autorizado a fazer-lhe uma proposta. Escute e não fale até que eu lhe
diga. Você já teve provas da extensão do nosso poder. As histórias que
conta a nosso respeito absolutamente não nos prejudicam, mas nós não
as apreciamos. Por acaso, a suposição de que sua amiguinha Manu é
nossa prisioneira está certíssima. No entanto, pode perder a esperança
de encontrá-la: isso jamais acontecerá. E seus esforços para libertar a
menina não a ajudam em nada: pelo contrário, ela terá de pagar por
todas as tentativas que você fizer. Daqui por diante, tenha pois cuidado
com seus atos e palavras.
O homem cinzento soprou uma série de anéis de fumaça e
observou, satisfeito, a impressão causada por seu discurso no velho
Beppo, que acreditou em tudo.
__ Serei o mais breve possível, porque o meu tempo também é
valioso – continuou ele. __ A proposta que lhe fazemos é a seguinte:
Manu voltará, desde que você nunca mais fale em nós e nas nossas
atividades. Além disso, a título de perdas e danos, terá de nos dar cem
mil horas de tempo poupado. Não se preocupe com o modo pelo qual
entraremos de posse desse tempo – isso é problema nosso. A você cabe
poupar o tempo. Se estiver de acordo, faremos com que dentro de
poucos dias você seja mandado para casa; se não, ficará aqui para
sempre e Manu continuará conosco. Pense bem! Esta generosa oferta
não se repetirá!
Beppo engoliu em seco algumas vezes e por fim resmungou:
__ Concordo!
136

__ Ainda bem que você é sensato! – disse o homem cinzento. __


Mas não se esqueça: silêncio absoluto e cem mil horas! Logo que as
tivermos, soltaremos Manu. Comece pois quanto antes seu trabalho.
Com isso, o homem cinzento saiu, deixando atrás o toco do
charuto que ficou luzindo fracamente no escuro como um fogo-fátuo.
Daí em diante, Beppo nunca mais contou a sua história. Quando
lhe perguntavam porque tinha inventado tudo aquilo, encolhia
tristemente os ombros, em silêncio. Após alguns dias mandaram-no para
casa.
Ele, porém, não foi para casa. Dirigiu-se para o grande edifício,
onde, com seus companheiros, costumava apanhar a vassoura e o
carrinho de mão. Pegou a vassoura, foi para a grande cidade e começou
a varrer. Agora, não mais no seu antigo ritmo, mas premido por terrível
pressa, sem a menor satisfação no seu serviço, aflito somente por
poupar tempo. Tinha dolorosa consciência de que estava agindo contra
suas mais profundas convicções, traindo os hábitos adquiridos durante
toda a sua vida. Sentiu-se desgostoso e, se não fosse por Manu, teria
preferido morrer de fome a ser infiel a si mesmo. Era preciso no entanto
resgatar a manina, e o único jeito que conhecia de poupar tempo era
aquele.
Varria dia e noite sem parar. Quando se sentiu muito exausto,
sentava-se no banco de um parque ou mesmo no meio-fio e tirava um
cochilo. De vez em quando, sempre varrendo, comia qualquer coisa. À
sua cabana, junto ao anfiteatro, nunca mais voltou.
Veio o outono, depois o inverno; em seguida a primavera e o
verão, mas Beppo quase não percebia mais as estações, varrendo,
varrendo, varrendo, a fim de poupar as cem mil horas exigidas.
A gente da grande cidade não tinha tempo para reparar no velho
varredor. Os poucos que o notavam batiam na testa significativamente
ao vê-lo, sem fôlego, empurrando a vassoura como se disso dependesse
a sua vida. Para Beppo não era novidade que o considerassem maluco e
não se importava com isso. Agora, porém, quando lhe perguntavam o
137

motivo de tanta pressa, olhava assustado e ansiosamente para o


interlocutor e punha o dedo nos lábios.
A tarefa mais difícil para os homens cinzentos era pôr nos seus
moldes as crianças que haviam sido amigas de Manu. Mesmo depois do
desaparecimento da menina elas continuavam a se reunir no anfiteatro
sempre que podiam, e inventavam novas brincadeiras. Algumas caixas e
cestos vazios eram o bastante para embarcarem em longas e arriscadas
viagens ao redor do mundo ou construírem castelos e altas montanhas.
Além disso, faziam planos para o futuro, contando histórias umas às
outras, procedendo enfim como se Manu ali estivesse. Agindo assim
parecia-lhes que, na verdade, também Manu estava ali. Nunca
duvidaram de que ela voltaria; não falavam nisso, mas estavam unidas
numa silenciosa certeza; Manu lhes pertencia e era o secreto laço de
união entre elas. Os homens cinzentos foram impotentes contra essa
força, e não conseguindo um assalto direto aos pequenos, a fim de fazê-
los esquecer a menina, resolveram usar de outro método e contornar o
caso.
Dirigiram-se então aos adultos, encarregados de cuidar da
infância. Não a todos, é claro, mas àqueles que se mostravam um
instrumento dócil a seus planos . . . e esses, infelizmente, não eram
poucos. Serviram-se das próprias armas das crianças, usando-as contra
elas: algumas pessoas recordaram-se daquela passeata infantil com
cartazes e faixas, manifestando agora sua desaprovação:
__ Não é possível que as crianças continuem entregues a si
mesmas, desse modo! Não se pode culpar os pais, pois o ritmo da vida
moderna não lhes deixa tempo para cuidar dos filhos. O Estado é que
deve fazer alguma coisa!
__ Está tudo errado! – diziam outras. __ Crianças sem supervisão
corrompem-se e tornam-se criminosas. Devem ser recolhidas pelas
autoridades públicas em estabelecimentos adequados, a fim de que
sejam mais tarde membros úteis e eficientes da sociedade.
__ Elas são a matéria-prima do futuro – argumentavam ainda. __
Esta será a época da propulsão a jato e dos cérebros eletrônicos;
138

especialistas e técnicos serão necessários para servir tais máquinas e,


em vez de prepararmos nossas crianças para o mundo de amanhã,
deixamos que desperdicem anos de seu precioso tempo e, tolas
brincadeiras. Isso é uma desgraça para a civilização e um crime contra a
humanidade futura!
Tais comentários estavam bem de acordo com as idéias dos
poupadores de tempo e, como eram numerosos na grande cidade,
conseguiram relativamente depressa convencer as autoridades a tomar
a iniciativa apropriada.
Instalaram-se então os chamados “depósitos de crianças” em
todos os bairros: grandes casas, às quais levavam crianças que não
tinham quem tomasse conta delas. Era rigorosamente proibido aos
pequenos brincar na rua, nos parques ou em qualquer outra parte. Se
uma criança era vista brincando num lugar público, conduziam-na logo
ao depósito mais próximo e os pais pagavam a multa estabelecida.
Os amigos de Manu não escaparam desse regulamento. Foram
separados uns dos outros, conforme distrito a que pertenciam, e
colocados em diversos depósitos. Naturalmente, não lhes era permitido
inventar brincadeiras a seu gosto. Um supervisor determinava os
brinquedos, com os quais as crianças deviam sempre aprender algo de
útil para o futuro. Admitindo que aprendessem coisas interessantes, é
preciso reconhecer que, ao mesmo tempo, esqueciam outras – como ser
feliz, gostar de tudo, sonhar.
Pouco a pouco, tornaram-se miniaturas dos poupadores de tempo:
mal-humoradas, aborrecidas, hostis, e, mesmo quando deixadas a si
próprias, já não sabiam brincar.
A única coisa que lhes restava era fazer barulho. Não um barulho
alegre, sadio, mas uma algazarra frenética, agressiva.
Os homens cinzentos, porém, nunca se aproximaram das crianças.
bastou-lhes tecer em volta da grande cidade uma forte e espessa rede,
de forma que nem a mais engenhosa criança pudesse escapar por entre
suas malhas. O plano obteve completo sucesso. Tudo estava pronto para
139

quando Manu voltasse: o velho anfiteatro fora inteiramente esquecido e


abandonado.

Manu continuava sentada nos degraus de pedra, esperando por


seus amigos. Esperou o dia todo, mas não apareceu ninguém. Ninguém!
O sol baixava no horizonte. As sombras alongavam-se e o frio vinha
chegando.
Afinal, a menina levantou-se. Sentia fome, o que jamais
acontecera ante, pois sempre vinha alguém trazer-lhe alguma coisa para
comer. Hoje, até Guido e Beppo pareciam ter-se esquecido dela. Tinha
sido sem dúvida um pequeno descuido, pensava Manu, decerto amanhã
eles viriam.
Desceu para junto de Cassiopéia, que já se tinha recolhido na sua
carapaça para dormir. Manu aproximou-se e bateu timidamente nas suas
costas; a tartaruga pôs a cabeça para fora e olhou para a criança.
__ Desculpe, por favor! – disse Manu –, sinto tê-la acordado, mas
queria saber por que nenhum de meus amigos veio me ver hoje.
Na carapaça da tartaruga apareceu a resposta: “NÃO FICOU
NENHUM”.
Manu leu as palavras sem compreender o sentido.
__ Bem – disse então, cheia de confiança –, amanhã eu saberei,
pois meus amigos virão certamente amanhã.
“NUNCA MAIS”, foi a resposta de Cassiopéia.
A menina fixou por algum tempo as letras fracamente iluminadas e
depois perguntou assustada:
__ Que quer dizer isso? O que aconteceu com meus amigos?
“FORAM TODOS EMBORA”
Manu sacudiu a cabeça e disse baixinho:
__ Não, não pode ser verdade. Você deve estar enganada,
Cassiopéia. Ontem, eles estavam todos aqui para o comício que falhou.
“VOCÊ DORMIU MUITO TEMPO”
Manu lembrou-se então do que lhe dissera Mestre Hora: ela teria
de dormir durante todo um ciclo solar, como a semente dorme na terra.
140

Quando concordara, não se dera conta do que isso representava . . . só


agora começava a compreender.
__ Quanto tempo eu dormi?
“UMA ANO E UM DIA”
Demorou a assimilar a resposta. Por fim, gaguejou:
__ Mas . . . mas Beppo e Guido, tenho certeza de que estão à
minha espera!
“NÃO FICOU NENHUM”, apareceu na carapaça da tartaruga.
Com os lábios trêmulos, Manu sussurrou:
__ Como é possível? Não pode ter desaparecido tudo, tudo
quanto...
Uma única palavra brilhou lentamente na carapaça do animal:
“PASSADO”.
Pela primeira vez, a menina sentiu a força dessa palavra, e o
coração pesado.
__ Mas . . . – murmurou, desamparada – eu ainda estou aqui . . .
Teve vontade de chorar; as lágrimas, porém, não vieram. Após
alguns instantes, percebeu que a tartaruga se esfregava nos seus pés
descalços, e na carapaça leu este consolo:
“EU ESTOU COM VOCÊ”.
__ Sim – respondeu, tentando gentilmente um sorriso –, você está
comigo, Cassiopéia, e fico muito contente. Agora, vamos para a cama.
Apanhou a tartaruga, e, através do buraco de entrada na parede,
carregou-a para seu quarto. À luz do sol poente, Manu verificou que ali
estava tal como tinha deixado (Beppo arrumara a desordem feita pelos
homens cinzentos), só que teias de aranha pendiam de todo lado e uma
grossa camada de poeira cobria o chão e os móveis.
Sobre a mesa feita de caixotes, estava uma carta, bem visível,
apoiada numa lata, tudo envolvido em teias de aranha.
“Para Manu”, dizia o envelope.
O coração da menina começou a bater mais depressa, pois até
aquele dia nunca recebera uma carta. Abriu-a e leu o seguinte bilhete:
141

“Querida Manu, eu me mudei. Se você voltar, me procure logo.


Estou muito preocupado por sua causa, e sentindo muita falta de você.
Espero que nada de ruim tenha acontecido. Se você tiver fome, vá ter
com Nino. Ele me mandará a conta e eu pagarei tudo; como, pois à
vontade, sim? Nino contará o resto a você. Continue me querendo bem;
eu continuo gostando muito de você.
Seu amigo – Guido”.

Apesar de Guido ter escrito em letra muito clara e legível, Manu


demorou a soletrar a carta. Quando terminou, desapareceu o último
clarão do crepúsculo. Sentia-se, porém, confortada.
Carregou a tartaruga, colocou-a a seu lado na cama, e, enrolando-
se no cobertor empoeirado, murmurou baixinho:
__ Está vendo, Cassiopéia? Afinal eu não estou sozinha.
Mas a tartaruga parecia já ter adormecido.
Enquanto lia a carta, Manu via nitidamente Guido na sua
lembrança; nunca lhe ocorreu no entanto que o bilhete estava à sua
espera há quase um ano.
Encostou o rosto na folha de papel e não sentiu mais frio.

14. Refeições demais, informações de menos

No dia seguinte Manu tomou a tartaruga debaixo do braço e saiu a


caminho do restaurante de Nino.
__ Você vai ver, Cassiopéia – dizia ela –, como agora as coisas vão
mudar! Nino sabe onde estão Guido e Beppo e poderemos também
chamar as crianças. assim estaremos de novo todos juntos. Hoje de
noite poderemos até dar uma festinha: falarei a eles das flores, da
música, de Mestre Hora, de tudo. Estou louca para ver meus amigos!
Mas, antes de mais nada, o que desejo mesmo é um bom almoço, pois a
fome é muita, sabe?
142

A menina tagarelava alegremente, apalpando a carta de Guido, no


bolso do casaco. A tartaruga olhava-a apenas com seus velhos e sábios
olhos, sem nada replicar.
Manu começou a cantarolar enquanto caminhava e depois pôs-se
a cantar: a melodia e as palavras das vozes ecoavam em sua memória
tão claramente quanto na véspera. Sabia agora que jamais as
esqueceria.
Parou de repente, diante do restaurante de Nino, e no começo
pensou ter-se enganado. Em vez da velha casa com a pintura
descascada, via um longo caixote de concreto com enormes janelas de
vidro em todo o comprimento. A rua em frente fora asfaltada e estava
cheia de carros. Além disso, grande número de automóveis estavam
estacionados do outro lado, e à entrada do novo estabelecimento um
anúncio luminoso dizia:

LANCHONETE RÁPIDA DE NINO

Manu entrou e foi aos poucos distinguindo o que havia no interior,


pois o local estava apinhado de gente. Ao longo da parede envidraçada
das janelas, estavam mesinhas altas, que mais pareciam cogumelos.
Não havia cadeiras. Do lado oposto, via-se extensa barreira de brilhantes
varas de metal formando como que um gradil, por trás do qual – a
intervalos regulares – destacavam-se as vitrinas contendo sanduíches de
queijo, presunto, salsichas, saladas variadas, pudins, bolos e toda
espécie de comidas inteiramente desconhecidas da menina.
Manu era empurrada de um lado para outro, ou para a frente, pois
todos se movimentavam, carregando bandejas com pratos, talheres,
garrafa, à procura de uma mesinha onde comer. Os que já tinham
começado a refeição comiam-na apressadamente, enquanto outros
esperavam que aqueles acabassem para tomar o lugar. Vez por outra, os
que comiam e os que esperavam trocavam palavras agressivas. De fato,
todos pareciam descontentes, insatisfeitos.
Entre o gradil e as vitrinas de comida, imensa fila movimentava-se
vagarosamente, cada qual se servindo. Manu estava perplexa: então
143

cada um tirava o que queria, sem ter de pagar nada? Talvez fosse tudo
de graça. Isso explicaria aquela multidão!
Afinal, depois de algum tempo, conseguiu enxergar Nino!
Escondido por trás daquela gente toda, achava-se ao fim do gradil de
metal, diante de uma máquina registradora, e ninguém podia sair sem
passar por ele: era o homem a quem se pagava.
__ Nino! – gritou Manu, acenando com a carta de Guido e tentando
se esgueirar por entre o povo.
Mas Nino não podia vê-la nem ouvi-la. A máquina registradora na
qual batia incessantemente fazia muito barulho e exigia toda a sua
atenção para receber dinheiro e dar troco.
Manu tomou coragem, trepou no gradil e conseguiu furar a fila,
aproximando-se do caixa, o que suscitou reclamação dos fregueses. Ao
ouvir aquele burburinho, Nino levantou os olhos e vendo a menina teve
uma alegre exclamação:
__ Manu! Que surpresa! Enfim você voltou!
Sua fisionomia aborrecida iluminou-se, mas teve de atender à
clientela indignada:
__ Diga a essa garota malcriada que fique na fila como todos nós!
Desaforo! Isso não se faz!
O caixa levantou as mãos, pedindo calma e dirigiu-se à menina
dizendo-lhe:
__ Guido pagará tudo, você come o que quiser, mas, por favor,
agora entre na fila e espere sua vez.
Empurrada para trás, Manu teve de fazer como os outros: apanhou
uma bandeja e, tendo de segurá-la com as duas mãos, sobre ela colocou
Cassiopéia, para escândalo dos que a cercavam.
Passou em seguida pelas vitrinas, escolheu o que queria, e, vendo-
se afinal de novo diante de Nino, perguntou-lhe acerca de Guido.
__ Guido é hoje famoso – respondeu o dono da lanchonete. __
Aparece sempre na TV e fala também no rádio. Nós nos orgulhamos
dele, pois é um dos nossos!
__ Mas por que não procura mais os amigos? – indagou Manu.
144

__ Não tem mais tempo para isso, e ninguém mais vai ao velho
anfiteatro – explicou Nino, já meio nervoso com os fregueses que
reclamavam:
__ A fila não pode parar! Que conversa mole é essa aí na frente?
Toca pra diante!
__ Onde é que Guido mora? – insistiu a menina.
__ Dizem que ele tem uma bela casa no meio de um parque, no
Green Hill. Mas agora, Manu, por favor, vá andando!
Embora desejasse ficar ali e saber mais coisas, Manu foi levada
pela onda de gente até uma mesinha, onde colocou a bandeja para
comer. A mesa era muito alta e ela mal enxergava o prato; mesmo
assim, faminta como estava, comeu até o último bocado. Ficou farta,
mas precisava ainda falar com Nino, e o único jeito era entrar de novo
na fila, apanhar outra bandeja e escolher outros pratos.
Quando finalmente chegou ao caixa, pediu notícias de Beppo. Nino
contou-lhe que Beppo ficara muito inquieto por causa dela e que fora à
polícia, pedindo auxílio para procurá-la.
__ Vivia falando em homens cinzentos, ou coisa parecida, e foi
então internado num hospital – disse Nino –, depois não soube mais
nada dele.
Os clientes se impacientavam com a conversa que fazia parar a
fila:
__ Isto aqui é lanchonete rápida ou sal de espera? – perguntou
alguém. E novamente Nino pediu à menina que fosse andando.
Manu não teve outra coisa a fazer senão acompanhar o
movimento, encontrar a custo uma vaga e comer outro almoço, que
desta vez não teve o sabor do primeiro . . . não lhe ocorria, porém, a
possibilidade de deixar restos no prato.
Queria ainda descobrir o que acontecera com as crianças que
costumavam visitá-la, e a única maneira de se aproximar de Nino para
obter informação era sempre o mesmo caminho; outra fila, outra
bandeja, outro almoço, para evitar que o pessoal se zangasse com ela.
145

Quando chegou diante do caixa, este começou a suar ao vê-la


outra vez, mas Manu não desistiu:
__ Onde estão as crianças que vinham brincar no anfiteatro?
__ Agora tudo mudou. Os garotos que não têm quem cuide deles
são levados para um depósito de crianças, onde estão protegidos e
aprendem alguma coisa.
__ Meus amigos? – perguntou a menina surpresa. __ Mas é isso que
eles queriam?
__ Crianças não podem resolver sobre sua vida e não têm de dar
opinião. Assim, pelo menos, não ficam pelas ruas, isso é o principal –
respondeu Nino, impaciente, batendo ao acaso na máquina registradora.
E, como os fregueses já começassem a reclamar da conversa,
acrescentou:
__ Manu, sempre que quiser, venha aqui para comer, mas seja
boazinha porque não posso ficar de prosa com você. Aliás, você também
devia ir para um depósito de crianças e ficar vagando sozinha por aí! E é
o que vai acontecer, se a pegarem!
A menina nada respondeu. Empurrada pela fila, viu-se diante de
uma mesinha, sobre a qual colocou a bandeja e teve de comer o terceiro
almoço, que tinha gosto de papelão. Ao terminá-lo, sentiu-se enjoada.
Carregou Cassiopéia e foi saindo sem olhar para trás. No momento
em que deixava a lanchonete, Nino viu-a e ainda gritou:
__ Oi, Manu, espere um pouco! Você não disse onde esteve
escondida todo este tempo!
Os clientes, porém, amontoavam-se à sua frente, e ele pôs-se a
bater nervosamente na máquina, recebendo dinheiro, dando troco. O
sorriso que tivera ao ver Manu há muito fugira de seu rosto.
Chegando ao velho anfiteatro, Manu disse à tartaruga:
__ Comi demais, demais mesmo! Apesar disso não me sinto
satisfeita!
E depois de algum tempo continuou, pensativa:
__ Eu não podia falar com Nino nem das flores nem da música . . .
Mais tarde, afirmou com segurança:
146

__ Amanhã, vamos procurar Guido e tenho certeza de que você vai


gostar muito dele, Cassiopéia!
Nas costas da tartaruga apareceu apenas um grande ponto de
interrogação.

15. Achado e novamente perdido

No dia seguinte, Manu levantou cedo e saiu com a tartaruga


debaixo do braço para procurar a casa de Guido.
Sabia onde era Green Hill, bairro residencial, bem distante do
velho anfiteatro, próximo das monótonas casas novas e edifícios de
apartamentos construídos do outro lado da grande cidade.
Era uma caminhada longa e Manu, embora estivesse habituada a
andar descalça, estava com os pés doloridos quando lá chegou.
Sentou-se no meio-fio para descansar um pouco. Era realmente
um bairro elegante: ruas largas, muito limpas, quase vazias. Nos jardins,
por trás dos grandes muros ou de altas grades, erguiam-se as copas de
velhas árvores. No meio dos parques, as casas eram principalmente
construções baixas e compridas, em concreto e vidro, com telhados
planos. Os verdes e macios gramados que se estendiam à sua frente
ofereciam tentador convite para virar cambalhotas, mas não se via
ninguém passeando ou brincando na relva. Os proprietários talvez nunca
tivesse tempo para isso.
__ Queria muito saber se vou descobrir onde mora Guido – disse
Manu a Cassiopéia.
“VAI SABER DAQUI A UM INSTANTE”, foi a resposta na carapaça da
tartaruga.
__ Você acha? – perguntou a menina, esperançosa.
Nisso, ouviu atrás de si uma voz que gritava:
__ Que está fazendo aqui, garota maltrapilha?
147

Voltou-se e viu um homem vestindo um colete de listras, que lhe


apareceu estranho. Ignorava que empregados de gente rica usavam
uniforme assim.
Manu levantou-se e disse:
__ Bom dia! Estou procurando a casa de Guido. Nino me disse que
ele mora por aqui.
O homem de colete listrado olhou com certa desconfiança para a
menina. Por trás dele, o portão ficara entreaberto e Manu pôde ver um
casal de galgos saltando pelo gramado, onde jorrava um repuxo de
água. Sob uma árvore toda florida, descansavam dois pavões.
__ Oh! Que lindos pássaros! – exclamou Manu. Já se aprontava
para entrar e vê-los mais de perto, quando o homem a agarrou pela gola
do casaco.
__ Fique aí! Que audácia, menina! – E largando Manu apressou-se
em limpar as mãos no lenço, como se tivesse tocado em algo
repugnante.
__ Tudo isso é seu? – perguntou ainda Manu, apontando para o
parque atrás das grades.
__ Não! – respondeu o sujeito num tom mais indignado do que
nunca. __ E agora, vá andando! Você não tem nada que fazer aqui!
__ Tenho, sim! – disse a criança num tom muito sério. __ Estou à
procura de Guido Guia, ele está à minha espera. O senhor não conhece
esse nome?
__ Por aqui não tem guia nenhum – replicou o homem, voltando-lhe
as costas. Entrou no jardim e já ia fechando o portão, quando lhe veio
subitamente uma idéia:
__ Será do célebre narrador de histórias, Girolamo, que você está
falando?
__ É ele mesmo! É esse seu verdadeiro nome – exclamou Manu,
radiante. __ O senhor sabe onde ele mora?
__ Mas ele está mesmo à sua espera? – indagou o empregado.
__ Claro que está! Guido é meu amigo e paga tudo quanto eu
como na lanchonete de Nino.
148

O homem de colete listrado ergueu as sobrancelhas e sacudiu os


ombros, resmungando:
__ Esses artista! Quanta maluquice têm na cabeça! Enfim, se você
acha mesmo que ele dá importância à sua visita, a casa é a última, bem
no fim da rua.
Dizendo isso, bateu violentamente as grades.
“PRETENSIOSO”, apareceu na carapaça de Cassiopéia.
A última casa na extremidade da rua era cercada por um alto
muro, e o portão da entrada feito de sólido metal, todo fechado, não
permitia espiar lá dentro.
Não havia placa com indicação de nome, nem campainha.
__ Será realmente esta a casa de Guido? – perguntou Manu. __ Não
parece . . .
“ MAS É ”, foi a resposta da tartaruga.
__ Por que está tudo trancado desse jeito? – indagou a pequena. __
Assim, eu não vou poder entrar!
“ ESPERE ”
__ Está bem – suspirou Manu. __ Mas talvez demore muito tempo .
. . __ Ainda que Guido esteja em casa, como vai saber que estou aqui
fora esperando?
“ ELE VEM LOGO ”, brilhou nas costas do bichinho.
A menina sentou-se diante das grades e ficou pacientemente à
espera de Guido. Ninguém aparecia; começou a imaginar se Cassiopéia
não estaria enganada e perguntou-lhe casualmente:
__ Você tem certeza?
Mas em lugar da esperada resposta, a palavra que surgiu na
carapaça foi esta:
“ ADEUS ”.
Manu deu um pulo.
__ Cassiopéia, que quer dizer isso? Aonde vai?
“ ESTAREI À SUA PROCURA ”, foi a réplica ainda mais misteriosa da
tartaruga.
149

Exatamente nesse momento, escancararam as grades e um belo


carro saiu a toda a velocidade. Manu teve tempo de saltar para o lado a
fim de não ser atropelada, mas caiu.
O automóvel passou voando e logo adiante parou com uma freada
tão forte que os pneus rangeram. A porta abriu-se e Guido saltou,
dirigindo-se rapidamente, de braços estendidos, ao encontro da menina.
__ Manu, minha Manuelinha! É você mesma?
A pequena já estava de pé e correu para Guido, que a carregou
nos braços, dando-lhe mil beijos, e dançando com ele pela rua.
__ Você não se machucou? – perguntou, quase sem fôlego. Em vez
de esperar a resposta, falava, muito excitado: __ Desculpe-me ter
assustado você, mas é que estou numa pressa louca. Estou de novo
atrasado! Onde é que você ficou escondida? Vai me contar tudo
direitinho. Já tinha desistido de esperá-la! Recebeu minha carta? Ainda
estava lá? Bem! E tem ido comer na lanchonete de Nino? Oh! Manu,
temos tanto de conversar! Tanta coisa aconteceu durante esse tempo. E
o velho Beppo, onde anda? Há séculos que não o vejo. Mas como é que
você está? Agora é sua vez de falar. E as crianças? Ah! Manu, penso
tanto naquele tempo, quando estávamos todos juntos e eu costumava
contar histórias para você. Aquilo é que era bom tempo! Hoje é tudo
diferente, completamente diferente.
Manu tentara várias vezes responder às perguntas do amigo, mas,
como ele não parava de falar, ficou apenas ouvindo e olhando para
Guido. Este mudara bastante: estava muito bem vestido e perfumado,
mas de certo modo parecia inteiramente diferente do antigo Guido.
Enquanto isso, quatro pessoas tinham descido do carro e
juntaram-se a eles: um motorista com uniforme de couro e três moças
de fisionomias duras e maquiagem carregada.
__ A menina se machucou? – perguntou uma delas, em tom mais
de censura que de preocupação.
__ Não, nada! – afirmou Guido. __ Foi só o susto.
__ Que tinha ela de estar pendurada no portão? – disse a segunda.
150

__ Mas é Manu! – explicou Guido, rindo. __ É minha querida


amiguinha Manu!
__ Ah! Então essa garota existe mesmo? – indagou com surpresa a
terceira moça. __ Sempre pensei que fosse invenção sua. Temos de dar
logo a notícia para a imprensa: “Reunido afinal com a princesa
encantada”, ou qualquer coisa assim. O público vai vibrar! Será o furo do
ano!
__ Não – declarou Guido –, prefiro que não façam isso.
__ Mas você vai gostar de sair nos jornais, não é? – disse a moça a
Manu, com um sorriso.
__ Não se metam com essa criança – interveio Guido, zangado.
__ Se não andarmos depressa, perderemos o avião – avisou uma
das secretárias, consultando seu relógio. __ E o senhor sabe o que isso
significa!
__ Céus! – gritou Guido, exasperado. __ Não posso nem trocar
algumas palavras com esta menina, depois de tão longa separação? Mas
você está vendo por você mesma, Manu, que estou na mão de feitores
de escravos, que nunca me deixam só – nunca!
__ Muito bem – falou a outra secretária, aborrecida –, a nós, isso
pouco importa. Estamos fazendo nosso serviço, e somos pagas para
organizar seus programas e compromissos, meu caro senhor!
__ Sim, sim, eu sei . . . – concordou Guido. __ Então vamos embora!
Manu vai conosco até o aeroporto; conversaremos no caminho e depois
meu motorista a levará de volta para casa. OK?
Não esperou que Manu respondesse; agarrou-a pela mão e puxou-
a até o carro. As três secretárias sentaram-se no banco de trás; Guido ia
na frente, ao lado do chofer, levando a pequena no colo.
__ Bem , Manu, agora você vai contar tudo que aconteceu a você,
direitinho, do princípio ao fim. Como é que você desapareceu tão de
repente?
Quando Manu se dispunha a falar de Mestre Hora e das
maravilhosas flores, uma das moças debruçou-se para a frente:
151

__ Com licença, tenho uma idéia maravilhosa: vamos apresentar a


menina à Companhia de Filmes para o Público. Ela será a estrela perfeita
para a menina de sua história de aventuras, que vai ser filmada agora.
Imagine o sucesso: o papel de Manu representado pela própria Manu!
__ Não ouviu o que eu disse? – respondeu Guido violentamente. __
Não quero esta criança metida nisso, de leito nenhum! – E voltando-se
para Manu: __ Desculpe, Manu, você talvez não compreenda, mas não
posso deixar esse bando de hienas meter os dentes em você também!
As três secretárias ficaram ofendidas. Guido gemeu, enxugou a
testa e tirou do bolso uma caixinha de prata, da qual tirou uma pílula,
que engoliu.
Durante alguns momentos, reinou o silêncio.
Depois, Guido voltou-se para o banco de trás:
__ Não me levem a mal, não quis ofendê-las, mas meus nervos
estão no fim.
__ Não se preocupe, já estamos acostumadas com suas explosões
– respondeu uma das moças. __ Dentro de cinco minutos estaremos no
aeroporto; antes, não seria possível fazermos uma rápida entrevista com
Manu?
__ Chega! – berrou Guido com paciência esgotada. __ Serei eu o
único a falar com Manu. E ainda mais: vou conversar com ela em
particular, o que significa muito para mim. Quantas vezes tenho de
repetir isso?
__ Perdão – replicou a moça sarcasticamente –, afinal a publicidade
é sua e não minha. Pense bem, se o momento atual permite que
despreze uma oportunidade dessas!
__ Não! – exclamou Guido, desesperado. __ Não consinto que Manu
seja envolvida nesse negócio. E agora deixem-nos em paz.
As secretárias se calaram. Guido, exausto, esfregava os olhos, e
com um riso amargo confessou à menina:
__ Veja, Manu, aonde eu cheguei! E, ainda que quisesse, não podia
mais voltar atrás. Você se lembra que eu dizia: Guido será sempre
Guido. Pois bem, Guido deixou de ser Guido. A coisa mais perigosa do
152

mundo é a realização de todos os sonhos da gente . . . pelo menos, foi o


que aconteceu comigo. Não restou mais nada para eu sonhar! Mesmo
que eu estivesse agora com você e seus amigos, não aprenderia a
sonhar de novo. Oh! Estou mortalmente farto disso tudo!
Olhou melancolicamente pela janela do carro e concluiu:
__ A única coisa que eu devia fazer agora seria calar a boca, não
contar mais histórias, talvez até o fim de minha vida. Ou pelo menos até
que todos me tivessem esquecido e eu voltasse a ser um pobre-diabo
desconhecido. Mas ser pobre e apesar disse ser capaz de sonhar . . . isso
seria o inferno, Manu. Por isso é que fico onde estou; aqui é também um
inferno, mas pelo menos um inferno confortável. O que adianta no
entanto dizer tais coisas? Você não consegue entender isso!
Manu apenas olhava para o amigo; compreendia que ele estava
doente, terrivelmente doente, e suspeitava que os homens cinzentos
tivessem sua parte no caso. Mas como poderia ajudar Guido, se ele não
queria auxílio?
Nesse instante, o carro parou no aeroporto. Todos desceram e as
recepcionistas precipitaram-se para o artista da TV, pedindo que se
apressasse, pois o avião já ia levantar vôo. Repórteres ainda tiraram
algumas fotos; não havia porém tempo para entrevistas.
Guido curvou-se para Manu, contemplou-a longamente e com
lágrimas nos olhos falou-lhe tão baixinho que ninguém mais ouviu:
__ Escute, Manu, fique comigo! Levarei você nesta viagem e em
todas que fizer; você ficará morando na minha bela casa, vestindo
roupas de seda e cetim como uma princesinha de verdade. Não terá
nada a fazer senão ficar junto de mim e ouvir-me. Talvez então eu volte
a ser capaz de inventar de novo histórias como aquelas que eu lhe
contava, lembra? Basta você dizer sim, Manu, e tudo dará certo outra
vez! Ajude-me!
A menina desejava socorrer o amigo e sentia dor no coração de
tanta pena dele, ma sabia que não era essa a maneira certa de auxiliá-
lo. Primeiro, ele teria de voltar a ser o verdadeiro Guido, e ela não o
ajudaria em nada se deixasse de ser a verdadeira Manu. Seus olhos
153

encheram-se também de lágrimas, mas sacudiu a cabeça


negativamente.
Guido compreendeu. Despediu-se com ar triste e foi
imediatamente arrastado pelas secretárias. De longe, acenou para
Manu, e esta respondeu ao adeus dele. Depois, desapareceu no avião.
Durante todo o seu encontro com Guido, Manu não conseguiu dizer
uma só palavra, e tinha tanto que contar a ele! Parecia-lhe agora que
justamente por tê-lo encontrado é que o havia verdadeiramente perdido.
Dirigiu-se devagar para a saída do aeroporto, e de repente um choque a
abalou: perdera também Cassiopéia!

16. Pobreza em meio à fartura

__ Para onde? – perguntou o motorista a Manu, quando esta se


sentou ao seu lado, no elegante carro de Guido.
A menina ficou olhando ao longe com ar embaraçado. Que poderia
dizer? Aonde desejava de fato ir? Tinha de procurar Cassiopéia . . . mas
onde? Quando, em que lugar a perdera? Estava certa de que ela não
estivera presente durante o encontro com Guido. Então talvez fosse bom
procurar diante da casa dele. Lembrou-se das palavras que lera na
carapaça da tartaruga: “ADEUS” e “ESTAREI À SUA PROCURA”. É claro
que Cassiopéia sabia com antecedência que ficaria perdida e por isso
sairia a procura de Manu. Mas onde é que Manu devia procurá-la?
__ Então? Que é que resolve? – disse o chofer, tamborilando no
volante. __ Tenho mais o que fazer do que levar você passear.
__ Para a casa de Guido, faça o favor – pediu Manu.
O motorista olhou surpreendido:
__ Pensei que devia levar você para casa . . . ou agora você vai
ficar morando com a gente?
__ Não – respondeu a menina –, mas perdi uma coisa na rua e
preciso encontrá-la.
154

Isso convinha bem ao chofer, pois de qualquer modo tinha de


regressar à mansão de Guido. Quando lá chegaram, Manu saltou logo do
carro e começou sua busca por toda parte, chamando baixinho: __
Cassiopéia! Cassiopéia!
__ Afinal, que é que você está procurando? – perguntou o
motorista, da janela do carro.
__ É a tartaruga de Mestre Hora, ela chama-se Cassiopéia, sabe o
futuro com meia hora de antecedência, e faz aparecer letras luminosas
na sua carapaça. Preciso encontrar a tartaruga, o senhor não quer me
ajudar?
__ Não tenho tempo para brincadeiras idiotas! – resmungou o
chofer, entrando com o carro pelo imponente portão, que se fechou logo
em seguida.
Manu continuou a procurar sozinha, olhando para todos os lados e
cantos da rua, mas em vão.
“Talvez Cassiopéia esteja voltando para o anfiteatro”, pensou a
menina.
Ela própria tomou esse rumo, olhando cuidadosamente para todos
os recantos, sem encontrar vestígio da tartaruga. Quando por fim
chegou ao velho anfiteatro, era tarde da noite. Apesar da escuridão,
investigou todos os escaninhos, sem resultado. Deitou-se na cama e,
pela primeira vez, achou-se inteiramente só.

Manu passou os dias seguintes vagando pela cidade, na esperança


de encontrar Beppo Varredor. Já que ninguém sabia indicar seu
paradeiro, confiava na sorte para dar com ele por simples acaso. Acaso
tão remoto, numa grande cidade, quanto o de uma carta dentro de uma
garrafa que, jogada no mar por um náufrago, seja pescada por um barco
de arrastão numa costa distante.
No entanto, a menina pensava às vezes: “Quem sabe não estamos
muito perto um do outro”.
Quem sabe se por vezes ela não chegava a um lugar onde Beppo
havia justamente estado uma hora, um minuto, um momento antes.
155

Assim, Manu ficava horas seguidas, parada num ponto, para afinal
continuar andando. Oh! Como Cassiopéia fazia falta! A tartaruga lhe
faria ver com segurança: “ ESPERE ” ou “ VÁ ADIANTE ”. Sozinha porém
receava perder Beppo tanto esperando quanto caminhando . . . e não
sabia o que fazer.
Procurava também encontrar seus pequenos amigos, mas não via
crianças em parte alguma, e lembrou-se do que Nino lhe contara sobre
os depósitos de crianças. o fato de a própria Manu nunca ter sido levada
para lá, pela polícia ou por algum adulto, devia-se à constante vigilância
das homens cinzentos, aos quais isso não convinha.
Uma vez por dia, costumava comer alguma coisa na lanchonete de
Nino, sempre muito ocupado, com muita pressa, como da primeira vez,
e com quem não conseguia conversar.
As semanas transformaram-se em meses, e Manu continuava só.
Certa tarde, ao crepúsculo, encostara-se à balaustrada de uma ponte,
quando viu a distância, em outra ponte, um vulto magro e curvado,
varrendo, varrendo sem parar, que lhe pareceu ser Beppo. Gritou por
ele, acenou com as mãos e pôs-se a correr para encontrá-lo; mas
quando chegou ao local, o homem tinha desaparecido.
“Não devia ser Beppo”, pensou a menina. Não era desse jeito que
ele varria!”
Às vezes ficava em casa, sem sair do anfiteatro, numa súbita
esperança de que Beppo pudesse de repente passar por lá para saber se
ela tinha voltado. E, com medo de um desencontro, escreveu em letras
bem grandes nas paredes do seu quarto: “JÁ VOLTEI”. Palavras que
ninguém, senão ela mesma, jamais leria.
Uma coisa, no entanto, nunca a abandonou – a lembrança viva,
sempre presente, da flores, da música, de tudo quanto acontecera com
Mestre Hora. Bastava-lhe fechar os olhos e escutar seu coração para
rever as brilhantes, magníficas cores, e ouvir a música das esferas. Tão
facilmente quanto no primeiro dia, era capaz de dizer as palavras e
entoar as melodias, embora estas variassem constantemente e nunca se
156

repetissem. Passava horas e horas recitando e cantando para si própria:


apenas as árvores, os pássaros, as velhas pedras a escutavam.
Há várias formas de solidão, Manu sofria de uma, que poucas
pessoas têm experimentado, e pouquíssimas com tal intensidade.
Sentia-se como que aprisionada numa gruta cheia de tesouros de
inestimável valor, que cresciam continuamente a ponto de sufocá-la.
Não havia escapatória. Ninguém podia abrir caminho para alcançá-la e
ela não conseguia fazer-se ouvir, profundamente soterrada sob
montanhas de tempo.
Havia momentos em que desejava nunca ter ouvido aquela música
e visto aquelas cores. No entanto, se lhe oferecessem a escolha, nada no
mundo a faria desistir de suas recordações. Nem mesmo o risco de
morte, pois descobriria que existem riquezas portadoras de sementes de
destruição quando não podem ser compartilhadas com outros.
De vez em quando, ia até a casa de Guido e esperava longamente
diante da entrada, na esperança de vê-lo de novo. Estava resolvida a
concordar com tudo: a morar com Guido, ouvi-lo e conversar com ele,
quer as coisas voltassem a ser como antigamente quer não. Mas as
grades nunca mais se abriram.
Apenas alguns meses decorreram dessa forma; a Manu, porém,
parecia ser esse o tempo mais longo de sua vida, pois o tempo
verdadeiro não se calcula por relógios ou calendários. Nem é possível
explicar a solidão que experimentava. A única coisa que se pode dizer é
que, se encontrasse o caminho para ir ter com Mestre Hora, e ela o
tentara muitas vezes, pediria a ele que lhe retirasse o tempo, ou que lhe
permitisse ficar para sempre na Mansão de Lugar Nenhum. Mas sem
Cassiopéia não conseguia descobrir o caminho para a mansão, e
Cassiopéia estava mesmo desaparecida.
Certo dia, no entanto, aconteceu algo inesperado: Manu
encontrou-se de repente com três crianças que costumavam brincar no
anfiteatro. Eram Paulo, Franco e Maria, a menina que levava sempre
consigo a irmãzinha Dedé. Todos tinham mudado muito. Vestiam uma
espécie de uniforme cinzento e seus rostos tinham uma expressão
157

estranhamente vazia e inexpressiva. Mesmo diante da alegria com que


Manu lhes falou, mal sorriam.
__ Há tanto tempo que estou à procura de vocês! – exclamou ela,
quase sem fôlego. __ Querem vir agora ao anfiteatro?
Os três trocaram olhares desconfiados e sacudiram a cabeça
negativamente.
__ Bem, então irão amanhã? Ou depois de amanhã? – insistiu
Manu.
De novo, os três sacudiram a cabeça.
__ Oh! Voltem outra vez! – suplicou a menina. __ Vocês antes iam
sempre lá!
__ Antes, sim – respondeu Paulo –, mas agora tudo mudou. Não
temos mais licença de gastar tempo inutilmente.
__ Mas não era inutilmente! – disse Manu.
__ Bem, era divertido, mas não é isso o que importa – acrescentou
Maria.
As três crianças puseram-se a andar depressa e Manu correu atrás
delas:
__ Aonde é que vocês vão?
__ À aula de brincar – respondeu Franco. __ Lá aprendemos como
brincar.
__ Brincar de quê? – indagou ainda Manu.
__ Vamos brincar de fichas – disse Paulo. __ É muito útil, mas a
gente tem de se concentrar terrivelmente.
__ Como é o jogo?
__ Faz de conta que cada um de nós é uma ficha, na qual estão
escritos vários dados diferentes, como nosso peso, altura, idade e assim
por diante; nunca, porém, correspondendo ao que somos realmente,
pois seria muito fácil. Às vezes, também, dão-nos apenas um longo
número como por exemplo: MUX/763/y. Somos então embaralhados e
postos num arquivo; aí um de nós deve tirar determinada ficha e fazer
perguntas de modo a eliminar todas as outras e só ficar a ficha exata.
Quem o conseguir mais depressa ganha.
158

__ E isso é divertido? – perguntou Manu, duvidando.


__ Não é isso o importante – disse de novo Maria, meio nervosa. __
Você não deve falar assim.
__ Então o que é importante?
__ Importante é aquilo que será útil para o nosso futuro – explicou
Paulo.
Enquanto isso tinham chegado aos portões de uma grande casa
cinzenta, à cuja entrada estava escrito: “Depósito de Crianças”.
__ Tenho tanta coisa pra contar a vocês – disse Manu.
__ Talvez a gente se encontre um outro dia – respondeu Maria
tristemente.
De todo lado, à volta deles, vinham crianças que entravam, firmes,
pelas grades abertas. Em todas, a expressão da fisionomia era idêntica à
dos três amigos de Manu.
__ Era muito mais alegre com você! – disse Franco de repente. __
Tínhamos sempre um mundo de idéias novas para inventar nossas
brincadeiras; mas dizem que assim não aprendemos nada.
__ Vocês não podem fugir? – perguntou Manu.
Os três sacudiram a cabeça, olhando em torno para ver se
ninguém tinha escutado.
__ No começo, experimentei algumas vezes – murmurou Franco. __
Mas não adianta; sempre pegam a gente de volta.
__ Não diga isso – aconselhou Maria –, afinal agora estão cuidando
de nós.
Ficaram todos silenciosos, o olhar vago e sombrio. Por fim, Manu
tomou coragem e pediu:
__ Não podem levar-me com vocês? Estou sempre tão sozinha!
Aconteceu então uma coisa muito estranha: antes que uma das
crianças pudesse responder, foram todas tragadas para dentro da casa,
como se um gigantesco aspirador de pó as tivesse engolido, e as grades
fecharam-se violentamente atrás delas.
Manu viu a cena, horrorizada. No entanto, após um momento,
aproximou-se do portão para tocar a campainha ou bater, a fim de pedir
159

novamente para brincar com os seus amigos, porém, ficou gelada de


medo: entre ela e o portão estava um dos homens cinzentos.
__ É inútil – disse ele com charuto no canto da boca. __ Não
adianta experimentar, não é de nosso interesse que você entre aqui.
__ Por que não? – perguntou a menina, sentindo de novo um
arrepio gélido.
__ Porque temos outros planos para você – explicou o homem,
soprando a fumaça, que cingiu o pescoço de Manu como um espesso
laço, e só aos poucos foi se diluindo.
Em volta, muita gente ia e vinha, mas todas com muita pressa.
A menina apontou para o homem cinzento e tentou gritar por
socorro, mas de sua garganta não saiu nenhum som.
__ Desista! – disse ele com um riso opaco, cinzento, sem alegria –
Você ainda não nos conhece? Não sabe o quanto somos poderosos?
Afastamos de você todos os seus amigos. Não tem mais ninguém capaz
de ajudá-la, e podemos fazer com você o que quisermos. Mas até agora,
como vê, você foi poupada.
__ Por quê? – conseguiu a menina articular com dificuldade.
__ Porque queremos que nos preste um servicinho – respondeu o
homem. __ Se você tiver juízo, poderá beneficiar-se e também a seus
amigos. Não quer?
Manu acenou em silêncio e o homem lhe disse:
__ À meia-noite nos encontraremos para discutir o assunto.
Com essas palavras desapareceu. Apenas volutas de fumaça
ficaram pairando no ar.
O homem cinzento não mencionara onde seria o encontro.

17. Grande medo e maior coragem

Manu estava com medo de voltar ao velho anfiteatro. Tinha


certeza de que o homem cinzento iria encontrá-la naquele lugar, à meia-
noite, e à idéia de se ver lá sozinha com ela a enchia de terror.
160

Não, não queria mais vê-lo, nem ali nem em local algum. Qualquer
que fosse sua proposta, não beneficiaria realmente nem a ela nem a
seus amigos. Mas onde poderia esconder-se dele?
O lugar mais seguro parecia-lhe ser no meio da multidão. Já tinha
verificado que a gente passando nas ruas não dava atenção nem a ela
nem ao homem cinzento. Mas caso ele quisesse agredi-la, ela gritaria e
certamente o povo viria em seu socorro. Além disso, dizia consigo
mesma, seria mais difícil encontrá-la no meio de muita gente.
Durante o resto da tarde e pela noite adentro, Manu juntou-se pois
à turba de pedestres nas ruas e praças mais movimentadas. Verificou
então que tinha feito um grande círculo: voltara ao ponto de partida.
Uma Segunda e uma terceira vez retomou o mesmo caminho, deixando-
se simplesmente arrastar pela onda do povo apressado.
Andara o dia inteiro, e seus pés estavam doendo de cansaço.
Fazia-se cada vez mais tarde, e a menina, já quase dormindo, continuava
a andar, andar, andar.
“Só um momento de repouso”, pensou ela, afinal, “um
momentinho apenas, e ficarei mais alerta!”
A certa altura, viu junto ao meio-fio uma camioneta para entrega
de encomendas, sobre a qual se empilhavam caixas e sacos vazios.
Manu instalou-se nela, recostando-se num saco, que lhe pareceu muito
fofo. Ergueu os pés doloridos, escondeu-os debaixo da saia e sentiu-se
bem! Suspirou de alívio, acomodou-se e antes que o percebesse,
exausta, caiu num profundo sono.
Foi, porém, perseguida por sonhos aflitivos. Viu o velho Beppo
usando sua vassoura como uma longa vara de equilibrista, enquanto
andava numa corda que oscilava sobre um abismo sombrio, e cujas
extremidades perdiam-se na escuridão. “Onde está a outra ponta? Não
consigo encontrar a outra ponta!”, gritava ele. Manu queria ajudá-lo,
mas ele não a ouvia: estava muito longe e muito alto.
Depois, viu Guido puxando de sua boca uma infindável tira de
papel. Por mais que ele puxasse, a tira não tinha fim e também não se
rasgava. Guido já se achava cercado por montanhas de papel e olhava
161

para Manu com cara de súplica, como se fosse sufocar-se, caso ela não o
salvasse. A menina procurou correr em auxílio, mas ficou com os pés
enredados nas fitas de papel e quanto mais se esforçava por libertar-se
mais se emaranhava.
Viu em seguida as crianças. Estavam achatadas como cartas de
baralho e cada carta apresentava um padrão de pequenas perfurações.
As cartas eram embaralhadas e depois tinham de se ordenar sozinhas
para serem outra vez perfuradas com novos orifícios. As crianças-
baralhos choravam silenciosamente. Foram porém logo embaralhadas
de novo, ciando uma sobre a outra com um ruído de matraca.
Manu tentava gritar: “Parem, parem!” Mas o barulho sufocava sua
voz débil e tornava-se cada vez mais forte, mais forte, a ponto de
acordá-la.
No começo, não sabia onde se encontrava, era noite escura:
lembrou-se em seguida de que tinha subido na camioneta. Esta se
pusera em movimento e o motor é que fazia aquele barulho. Manu
enxugou as faces molhadas de lágrimas. Onde estaria?
Talvez a camioneta já estivesse em movimento há algum tempo,
sem que ela o percebesse. Atravessaram uma parte da cidade
inteiramente deserta, àquela hora tardia. Não se via vivalma pelas ruas
e os edifícios estavam mergulhados na escuridão.
O carro não ia em grande velocidade e, sem refletir, Manu pulou
no solo. Queria voltar para as ruas movimentadas, onde se sentiria mais
segura contra os homens cinzentos. Mas lembrou-se de seus sonhos, e
ficou parada.
Recordando-se de tudo que sonhara, renunciou a fugir: até o
momento, só havia pensado em si mesma, na sua solidão, nos seus
temores, no meio de se salvar. Na realidade, porém, eram seus amigos
que precisavam de ajuda e era ela quem os podia auxiliar. Por mais
remota que fosse a possibilidade de os homens cinzentos os libertarem,
ela devia pelo menos tentar.
Quando chegou a essa conclusão, sentiu misteriosa mudança
dentro de si. Seu medo, seu desamparo tinham atingido o máximo, e
162

agora, numa súbita reviravolta, foi capaz de superá-los: sentiu-se


corajosa, confiante como se nenhum poder da terra fosse capaz de feri-
la. Ou melhor, cessou inteiramente de preocupar-se com o que lhe
pudesse acontecer.
Daí em diante, queria encontrar os homens cinzentos; queria a
todo custo. “Preciso voltar imediatamente para o anfiteatro”, pensou
Manu, “talvez não seja tarde demais e ele tenha esperado por mim.”
A coisa era mais fácil de dizer do que de fazer: a menina ignorava
onde estava e não sabia que direção tomar. Apesar disso, pôs-se a
caminho, ao acaso.
Percorreu ruas e ruas, sempre desertas e escuras, num silêncio
absoluto, pois estando descalça nem o ruído de seus passos ouvia.
Chegou por fim a uma vasta praça. Não era uma daquelas praças
bonitas dos bairros elegantes com jardins, fontes, árvores, mas apenas
um imenso espaço vazio, margeado por casas cujos contornos sombrios
se destacavam contra o céu.
Quando Manu alcançou o centro da praça, o relógio de alguma
igreja na vizinhança bateu horas . . . muitas batidas . . . talvez fosse
meia-noite.
O som ainda ecoava no silêncio noturno, quando a menina viu
surgirem simultaneamente, da extremidade de cada rua que convergia
para a praça, luzes que se iam tornando cada vez mais fortes, à medida
que se aproximavam. Compreendeu que eram os holofotes de inúmeros
carros dirigindo-se lentamente para o centro do grande largo, onde ela
se achava. Para qualquer lado que se voltasse, luzes ofuscantes a
envolviam, obrigando-a a proteger os olhos com a mão. Eles tinham
vindo! A menina não contava com tão grande número de adversários e,
por um instante, toda a sua coragem desapareceu: estava
completamente cercada, não tinha jeito de fugir e encolheu-se o mais
que pôde dentro de seu velho casaco.
Lembrou-se então das flores, das horas, das vozes na grande
sinfonia e sentiu-se revigorada, com novo ânimo.
163

Diminuindo a velocidade, os carros vieram se aproximando,


sempre mais, até encostarem os pára-choques um no outro, formando
um círculo fechado, em cujo centro estava Manu. Ela não distinguia
quantos eram os homens cinzentos, pois tinham descido dos carros mas
ficavam no escuro, por trás dos holofotes. Percebia no entanto que eram
muitos. E sentiu frio.
Durante algum tempo, ninguém, falou; finalmente, uma voz
cinzenta disse:
__ Então, esta é a menina Manu, que certa vez julgou poder
desafiar-nos! Vejam agora seu fracasso: não passa de uma coisinha
miserável.
Um barulho metálico seguiu-se a essas palavras. Dir-se-ia, a
distância, o riso de escárnio de muitas vozes.
__ Cuidado! – disse em tom mais baixo um dos homens. __
Sabemos o perigo que essa criança pode ser para nós. Não há jeito de
enganá-la.
Manu ouvia em silêncio.
__ Pois bem – disse a primeira voz saindo da escuridão. __ Vamos
tentá-la com a verdade.
De novo reinou prolongado silêncio. A menina sentiu que os
homens cinzentos tinham medo de falar a verdade. Isso parecia custar-
lhes imenso esforço, e ela escutou um ruído como que de uma
respiração ofegante e sufocada saindo de inúmeras gargantas.
Afinal um deles começou de novo a falar.
A voz vinha de uma nova direção mas tinha o mesmo tom cinza:
__ Vamos ser francos um com o outro. Você está sozinha, pobre
criança, e seus amigos fora de seu alcance. Não ficou nenhum com
quem possa partilhar seu tempo. Esse foi exatamente o nosso plano,
veja como somos poderosos. Não adianta querer opor-se à nossa força.
Que significam agora para você suas horas solitárias? Uma desgraça que
a arruína, um fardo que a esmaga, um oceano que a submerge, uma
tortura que a aflige. Você está isolada de todo o resto da humanidade.
Manu ouviu e continuou silenciosa.
164

__ Mais cedo ou mais tarde – prosseguiu a voz –, chegará um


momento em que você não poderá mais suportar isso; talvez amanhã,
daqui a uma semana ou um ano. Não nos importa saber exatamente
quando, pois estaremos à espera, certos de que você acabará
recorrendo a nós, de joelhos e implorando: “Farei o que quiserem se me
livrarem deste fardo”. Ou será que você já chegou a esse ponto? Basta
dizer uma palavra.
Manu sacudiu a cabeça negativamente.
__ Você não quer nossa ajuda? – perguntou a voz num tom gélido.
Uma onda de intenso frio, vinda de todos os lados, envolveu a
menina. Ela, porém, cerrou os dentes e de novo sacudiu a cabeça.
__ Essa criança sabe o que é realmente o tempo – sibilou outra
voz.
__ Isso prova que ela esteve de fato com . . . aquela pessoa –
silvou em resposta a primeira voz. E, mais alto, dirigindo-se a Manu: __
Você conhece Mestre Hora?
Desta vez a menina acenou afirmativamente.
__ E você esteve mesmo com ele?
De novo, Manu fez sinal que sim.
__ Então você deve conhecer a floração das horas, não?
Pela terceira vez foi afirmativa a resposta. Oh! Como conhecia
aquela maravilha!
Seguiu-se novamente uma longa pausa. A voz que recomeçou a
falar vinha agora de outra direção:
__ Você tem amor a seus amigos, não tem?
Manu acenou outra vez afirmativamente.
__ Pois você pode fazer isso, se quiser.
Tremendo dos pés à cabeça, Manu aconchegou o casaco bem junto
ao corpo.
__ Na realidade, custaria apenas uma ninharia para você libertar
seus amigos. Nós ajudamos você, e você nos ajuda. É justo, não é?
Manu ficou atenta à direção de onde vinha a voz.
165

__ Nós também desejamos um encontro com esse Mestre Hora,


mas não sabemos onde ele está. Queremos que você nos guie até lá, só
isso. Sim, escute atentamente, de modo a ter certeza de que estamos
sendo absolutamente francos e que pretendemos fazer o que propomos.
Em troca desse servicinho, você terá seus amigos livres, e poderá levar
com eles a mesma vida de antigamente, alegre e contente. Não é uma
proposta que vale a pena?
Pela primeira vez, Manu abriu a boca; falar custou-lhe imenso
esforço, tão gelados estavam seus lábios.
__ Que desejam com Mestre Hora? – perguntou lentamente.
__ Desejamos conhecê-lo – respondeu asperamente a voz. __ Basta
isso para você.
O frio aumentava sempre mais. Manu ficou silenciosa e atenta.
Notou certo movimento entre os homens cinzentos, que pareciam
tornar-se inquietos.
__ Não compreendo! – disse a voz. __ Pense em você mesma e em
seus amigos! Por que preocupar-se com Mestre Hora? Ele tem idade
suficiente para cuidar de si. Aliás, se ele for razoável e cooperar conosco
amigavelmente, não tocaremos num só cabelo de sua cabeça. Se não,
temos meios de forçá-lo.
__ Forçá-lo a quê? – indagou a menina, com os lábios roxos.
Subitamente a voz soou estridente e cansada ao declarar:
__ Estamos fartos de juntar aos poucos horas, minutos e segundos
das pessoas. Queremos de uma vez todo o tempo pertencente à
humanidade e é isso que Mestre Hora tem de nos entregar.
Horrorizada, Manu fitava a escuridão de onde provinha a voz.
__ E que acontecerá então com as pessoas? – perguntou.
__ As pessoas? – ganiu a voz. __ Há muito que são supérfluas no
mundo. Elas próprias o levaram a um ponto em que não há mais lugar
para criaturas de sua espécie. Nós governaremos o mundo!
O frio era agora tão terrível que Manu, embora pudesse ainda abrir
os lábios, não conseguia emitir som algum.
166

__ Mas não se preocupe, Manu – continuou a voz, repentinamente


mansa e quase agradável –, você e seus amigos serão uma exceção:
serão os únicos remanescentes capazes de brincar e de contar histórias.
Não se metam mais em nossos negócios, e nós os deixaremos em paz.
Outra voz levantou-se, vinda de outro lado:
__ Você sabe que dissemos a verdade. Cumpriremos o prometido;
agora leve-nos à morada de Mestre Hora.
Manu experimentou falar e a muito custo pôde pronunciar estas
palavras:
__ Mesmo que eu pudesse, não faria isso!
Várias vozes ergueram-se ameaçadoras:
__ Como? Que quer dizer você? Claro que pode nos levar lá! Você
esteve com Mestre Hora, tem de saber o caminho!
__ Não consigo mais achá-lo – murmurou Manu. __ Já tentei . . . só
Cassiopéia é que sabe!
__ Quem é Cassiopéia?
__ É a tartaruga de Mestre Hora.
__ Onde está ela?
Quase inconsciente de frio, Manu gaguejou:
__ Ela . . . voltou comigo . . . mas . . . mas depois se perdeu!
Houve um terrível alvoroço de vozes confusas, e a menina escutou
esta ordem:
__ Declarem caso de emergência extrema! A tartaruga tem de ser
encontrada. Toda tartaruga tem de ser examinada. A tal Cassiopéia
precisa ser encontrada. A todo custo!
Aos poucos, cessaram as vozes. Fez-se completo silêncio e Manu
foi voltando a si daquela semi-inconsciência. Estava inteiramente só na
enorme praça, sobre a qual soprava agora uma rajada de vento. Um
vento cinza, que parecia vir da imensidão do vácuo.

18. Olhando para a frente sem olhar para trás


167

Manu não tinha idéia do tempo que passara. O relógio da igreja


próxima batia de vez em quando, mas ela mal o ouvia. Só muito devagar
o calor voltou a seus membros gelados. Sentia-se paralisada e incapaz
de tomar qualquer decisão.
Devia voltar para o velho anfiteatro e meter-se na cama, quando
toda esperança para si mesma e para os amigos estava para sempre
perdida? Agora sabia de fato que as coisas nunca mais seriam como
antes, nunca mais . . .
Inquietava-se também por Cassiopéia. Imaginem se os homens
cinzentos a encontrassem! A menina começou a censurar-se
amargamente por ter mencionada a tartaruga, mas tinha ficado tão
atordoada, que nem avaliara a conseqüência do que poderia dizer.
“E talvez”, pensou Manu para se consolar, “Cassiopéia já tenha
voltado para junto de Mestre Hora! Espero que não esteja mais à minha
procura. Seria melhor para ela e para mim se . . .”
Nesse instante, enquanto se atormentava com repressões pelo
que dissera, sentiu alguma coisa roçando de leve seus pés descalços.
Abaixou-se, viu diante de si a tartaruga, e, aos poucos, começaram
a brilhar no escuro estas palavras: “AQUI ESTOU DE NOVO”.
Sem refletir, Manu agarrou-a e enfiou-a dentro do seu casaco.
Depois, endireitou-se e ficou à escura, espiando no escuro, com medo
que os homens cinzentos pudessem ainda estar pela redondeza.
Mas tudo permaneceu em silêncio.
Cassiopéia debatia-se furiosamente dentro do casaco tentando
libertar-se. Apertando-a fortemente de encontro ao peito, Manu espiou
para dentro do casaco e sussurrou:
__ Fique quieta, por favor.
“POR QUE TODO ESSE ALVOROÇO?”
__ Você não pode ser vista – murmurou a menina.
Agora, na carapaça do bichinho, apareceu esta pergunta:
“VOCÊ NÃO ESTÁ CONTENTE?”
__ Oh! Muito, muito! – murmurou Manu, quase soluçando. __ Você
nem imagina o quanto eu estou alegre!
168

Beijava e tornava a beijar o nariz de Cassiopéia.


__ Você esteve realmente à minha procura durante todo esse
tempo?
“DECERTO”, foi a resposta luminosa.
__ E como me encontrou exatamente neste lugar e neste
momento?
“SABIA COM ANTECEDÊNCIA”
Teria a tartaruga estado realmente em busca de Manu, sabendo
quando e onde a acharia? Então não havia necessidade de procurá-la?
Esse era um dos enigmas que Cassiopéia apresentava . . . mas a hora
não era oportuna para resolver tal problema.
Manu contou-lhe baixinho tudo o que acontecera, perguntando
finalmente:
__ Que devemos fazer agora?
Cassiopéia escutara com atenção e nas suas costas veio a
resposta:
“VAMOS TER COM MESTRE HORA”
__ Neste momento? – gritou Manu, horrorizada. __ Mas os homens
cinzentos estão à sua procura por toda a parte! Este é o único lugar
onde não há nenhum deles. Não seria mais razoável ficarmos aqui?
As letras luminosas insistiram na idéia:
“VAMOS, EU SEI”
__ Então iremos direto ao encontro deles! – declarou Manu.
“NÃO ENCONTRAREMOS NENHUM”, foi a réplica da tartaruga.
Bem, se ela estava tão certa disso, podia-se ter confiança, e Manu
colocou-a no chão. Depois, pensando na longa e fatigante jornada que
teriam de fazer, sentiu que suas forças não agüentariam até o fim, e
disse muito pesarosa:
__ Vá sozinha Cassiopéia, eu não posso continuar. Vá sozinha e
leve minhas saudades a Mestre Hora.
“ESTAMOS PERTINHO”
Ao ler essas palavras na carapaça de sua protetora, Manu olhou
em volta, cheia de espanto. Pouco a pouco, porém, reconheceu ser
169

aquela parte deserta e pobre da cidade o lugar de onde tinham passado


para o outro bairro, todo de casas brancas, iluminado por aquela
estranha luz. Sendo assim, ela talvez pudesse ir até a Alameda do Nunca
e chegar à Mansão de Lugar Nenhum.
__ Nesse caso, vou também! Mas não posso levar você nos braços
para não demorarmos tanto?
“INFELIZMENTE, NÃO”.
__ Por que você tem de rastejar sempre sozinha? – perguntou
ainda a menina, e recebeu da tartaruga esta resposta:
“PORQUE O CAMINHO ESTÁ EM MIM!”
E com isso, Cassiopéia começou a andar, seguida por Manu, passo
a passo.

Mal a tartaruga e a menina tinham dobrado uma das estreitas ruas


que partiam da praça, vultos escuros começaram a movimentar-se ao
longo das casas do largo, e um ruído metálico ressoou, como um gélido
e abafado riso de escárnio. Eram homens cinzentos, que ali tinham
ficado para espionar a cena e agora vigiavam secretamente o par que se
pusera a caminho. A espera tinha sido longa, mas não imaginavam que
o resultado fosse tão promissor.
__ Lá vão elas! – sussurrou uma voz cinzenta. __ Vamos agarrá-las?
__ Claro que não! – murmurou outra. __ Vamos deixar que
continuem.
__ Por quê? Não tivemos ordem de agarrar a tartaruga a qualquer
custo?
__ Sim. Mas com que finalidade?
__ Para que nos leve à morada de Mestre Hora.
__ Exatamente. E é o que ela está fazendo agora, sem que
tenhamos de usar a força. A tartaruga nos indica o caminho por sua
própria e livre vontade, ainda que não intencionalmente.
De novo um gélido riso de zombaria ecoou por entre as escuras
sombras ao redor da praça.
170

__ Avisem todos os agentes da cidade que a busca está suspensa.


Todos os agentes devem vir aqui juntar-se a nós, observando porém o
maior cuidado: ninguém deve impedi-las, e o caminho deve estar
sempre livre diante delas. E agora vamos tranqüilamente seguir nossos
dois guias involuntários.

Assim, Manu e Cassiopéia não encontraram de fato um único de


seus perseguidores. Quando isso ia acontecer estes de desviavam e
sumiam a tempo para em seguida juntarem-se a seus companheiros.
Formavam-se fileiras cada vez maiores, sempre escondidas pelas altas
paredes ou pelas esquinas das ruas, acompanhando sem barulho as
duas fugitivas.
Manu nunca estivera tão cansada em sua vida. Parecia-lhe às
vezes que ia cair no chão e dormir ali mesmo. Forçava-se porém a mais
um passo, depois a mais outro, e ao fim de um ou dois minutos a
caminhada tornava-se mais fácil. Se ao menos a tartaruga pudesse
rastejar um pouco mais depressa! Mas não havia nada a fazer. Manu não
olhava mais para os lados, tinha os olhos fixos nos seus pés e em
Cassiopéia.
Após um tempo que lhe pareceu uma eternidade, percebeu que o
chão sobre o qual pisava estava ficando mais claro. Sentia as pálpebras
pesadas como chumbo, mas forçou-as a abrirem-se e, lançando um
olhar para os lados, viu que tinham finalmente chegado àquela parte da
cidade iluminada por estranha luz – nem aurora nem crepúsculo –, onde
todas as sombras caíam em direções diferentes. Ali estavam as casas
inacessíveis, com suas janelas escuras, mas ofuscantes de tão brancas.
E também o misterioso monumento: um ovo gigantesco sobre um
grande bloco de pedra negra.
Manu retomou coragem, pois já não podiam estar muito longe de
Mestre Hora.
__ Por favor, não podemos andar um pouco mais depressa? –
perguntou a Cassiopéia.
171

“QUANTO MAIOR A PRESSA, MENOR A VELOCIDADE!”, foi a


resposta que leu nas costa da tartaruga.
E, de fato, como da vez anterior, a menina observou que, andando
devagar, adiantavam-se mais. Era como se a rua deslizasse sob seus
pés, tanto mais rapidamente quanto mais lentamente caminhavam.
Esse era o mistério daquele lugar. Da outra vez, os homens
cinzentos o ignoravam, quando em seus velozes carros tentaram,
perseguir Manu, ela assim lhes escapou.
Agora, porém, o caso era outro: não tencionavam apanhar as
fugitivas e para acompanhá-las puseram-se em idêntico ritmo,
descobrindo o segredo. Aos poucos, as alvas ruas foram se enchendo do
batalhão de perseguidores que, diminuindo o passo, mais e mais perto
chegavam das duas. Era uma extraordinária corrida às avessas: quanto
mais devagar, mais rápido!
O caminho através daquelas ruas de sonho dava voltas e mais
voltas, até chegar a esquina da Alameda do Nunca.
Cassiopéia já entrara na alameda em direção à Mansão de Lugar
Nenhum, e Manu, lembrando-se de que só de costas pudera se adiantar
naquela estranha rua, virou-se nos pés para agora fazer o mesmo.
Qual não foi seu pavor ao ver então, avançando ombro a ombro,
em cerradas fileiras, a perder de vista, o exército dos homens cinzentos.
De olhos arregalados de medo e fixos nos ladrões do tempo, Manu
deu um grito, mas ouviu sua própria voz, e correu para a Alameda do
Nunca.
Aconteceu nesse momento um fato incrível:
Quando a primeira fileira dos perseguidores tentou penetrar na
Alameda do Nunca, diante do olhar atônito de Manu, eles se dissolveram
em nada. Primeiro, seus braços estendidos se desfizeram, depois seus
corpos e pernas se desvaneceram e por último suas faces com um
expressão de assombro e terror.
Não só a menina presenciara o que tinha acontecido; também os
homens que estavam mais próximos o tinham visto. Estacaram
imediatamente, firmando-se nos calcanhares para resistir à pressão dos
172

que vinham atrás, e houve por momentos verdadeiros choques. Manu


pôde ainda ver suas caras furiosas ao erguerem contra ela o punho
ameaçador. Não ousaram, porém, persegui-la adiante.
Afinal, a menina chegou à Mansão de Lugar Nenhum. As grandes
portas de bronze se abriram, Manu entrou, percorreu a galeria com as
estátuas de pedra, abriu a pequena porta, esgueirou-se através dela e
correu pela grande sala cheia de relógios até a saleta, onde se atirou no
sofá, escondendo o rosto nas almofadas, de modo a não ver nem ouvir
mais nada.

19. Os sitiados fazem um pacto

Finalmente, Manu emergiu das profundezas de um sono sem


sonhos. Sentia-se maravilhosamente revigorada.
Ouviu então uma voz suave que dizia:
__ Não foi culpa da menina, mas você, Cassiopéia, por que agiu
desse jeito?
Abriu os olhos e viu Mestre Hora sentado à mesinha em frente ao
sofá, olhando pesaroso para a tartaruga a seus pés, com quem
conversava.
__ Como não lhe ocorreu que os homens cinzentos a seguiriam?
“SEI COM MEIA HORA DE ANTECEDÊNCIA”, apareceu escrito na
carapaça da tartaruga, “MAS NÃO PENSO COM ANTECEDÊNCIA”.
Mestre Hora sacudiu a cabeça e suspirou:
__ Oh! Cassiopéia, Cassiopéia, você às vezes é um mistério até
para mim!
Manu sentou-se.
__ Ah! Nossa amiguinha acordou – disse gentilmente Mestre Hora.
__ Espero que você esteja bem!
173

__ Muito bem, obrigada – respondeu a menina. __ Desculpe eu ter


caído direto no sono!
__ Ora, não se incomode com isso – replicou Mestre Hora –, foi
natural, não precisa me explicar nada. Cassiopéia já me contou tudo o
que eu não pude ver com os meus óculos universais.
__ E os homens cinzentos? – perguntou Manu.
Mestre Hora tirou do bolso um grande lenço, assoou o nariz e
declarou:
__ Eles nos sitiaram. Cercaram a Mansão de Lugar Nenhum por
todos os lados, isto é, chegaram tão perto quanto puderam.
__ Mas não podem vir aqui dentro, não é?
__ Não; você mesma viu: ao chegarem à Alameda do Nunca eles
se dissolvem em nada.
__ Qual a causa disso? – indagou ela.
__ É a ressaca do tempo – explicou Mestre Hora. __ Você sabe que
na Alameda do Nunca tudo é feito ao reverso. Ora, ao redor desta
mansão o tempo tem seu movimento invertido: normalmente o tempo
flui para dentro das pessoas, que envelhecem à medida do tempo que
absorvem. Na Alameda do Nunca, porém, o tempo flui para fora delas e
você pode dizer que rejuvenesce ao percorrer essa alameda. Não
rejuvenesce muito, é claro, mas exatamente o tempo gasto até alcançar
o fim dessa rua.
__ Não reparei nisso – disse Manu, surpresa.
__ Bem – explicou Mestre Hora –, isso não importa tanto para os
seres humanos, pois eles usufruem de muito mais tempo do que apenas
aquele que possuem dentro de si. Com os homens cinzentos, o caso é
diferente: é o tempo roubado que os sustenta, e, quando enfrentam a
ressaca do tempo, tudo quanto roubaram flui para fora deles, como o ar
foge de uma bola de borracha que estoura. Na bola esvaziada,
permanece porém o exterior – o invólucro fica –, enquanto dos homens
cinzentos não resta absolutamente nada.
Manu pôs-se a refletir e após um momento perguntou:
174

__ Não seria possível fazer todo o tempo correr ao contrário? Só


por uns instantes? Toda gente ficaria um pouquinho mais jovem, o que
não teria importância, mas os homens cinzentos se dissolveriam em
nada.
__ Seria certamente boa idéia, mas receio que não se possa
executar. As duas correntes se equilibram; se cancelarmos uma, a outra
também vai parar. E então cessaria o tempo . . .
Mestre Hora ficou silencioso, empurrou os óculos universais para a
testa e, muito pensativo, começou a andar de um lado para outro,
murmurando:
__ Isto é . . . quem sabe . . .
Manu o acompanhava ansiosamente com o olhar, e também
Cassiopéia estava atenta.
Afinal, sentou-se e disse para Manu:
__ Você deu-me um idéia, mas não depende só de mim que seja
praticável. Cassiopéia, minha cara, diga-me: na sua opinião, qual a
melhor coisa a fazer para quem está sitiado?
“ALMOÇAR”, apareceu em letras luminosas na carapaça.
__ Realmente! – concordou Mestre Hora. __ É uma boa coisa.
Imediatamente, a mesinha estava posta para a refeição. Ou já
estaria ali preparada, sem que Manu o tivesse notado? De qualquer
forma, ali se achavam as xicrinhas de ouro, com as demais peças do
aparelho, a chocolateira fumegante, o mel, a manteiga, os dourados
pãezinhos.
Desde sua primeira visita, Manu pensava muitas vezes com
saudade naquelas coisas deliciosas, e sentou-se à mesa com grande
apetite. Desta vez tudo lhe pareceu ainda mais saboroso e também
Mestre Hora comeu com satisfação.
Após alguns momentos, Manu, ainda com a boca cheia, perguntou:
__ Os homens cinzentos querem que o senhor lhes entregue todo o
tempo pertencente à humanidade, mas o senhor não fará tal coisa, não
é?
175

__ Não, minha menina, nunca o farei – respondeu Mestre Hora. __


O tempo começou certo dia e certo dia acabará, porém só quando a
humanidade não tiver mais necessidade dele. Os homens cinzentos não
obterão de mim a menor parcela de tempo.
__ Eles dizem no entanto que poderão forçá-lo a isso – insistiu
Manu.
__ Antes de discutirmos mais, eu gostaria que você mesma os
observasse – e, tirando seus pequenos óculos de aro de ouro, Mestre
Hora os entregou à menina.
Como da primeira vez, no começo ela só viu uma confusão de
cores e formas que a deixavam tonta; mas agora pôde focalizar a
imagem mais depressa e viu o imenso exército de sitiantes.
Ombro a ombro, ali estavam os homens cinzentos, em
intermináveis fileiras. Não se alinhavam apenas à entrada da Alameda
do Nunca, mas espalhavam-se ao longe, formando um grande círculo
que se estendia por toda aquela parte da cidade de casa brancas, tendo
Mansão de Lugar Nenhum como centro. Não havia uma brecha no cerco.
Manu notou então um fato esquisito. A princípio julgou que os
vidros dos óculos universais estivessem embaçados, ou que ela não
enxergasse com nitidez, pois uma estranha névoa tornara indistintos e
nublados os contornos dos homens cinzentos. Verificou depois que a
névoa nada tinha a ver com os vidros dos óculos ou com os seus olhos,
mas erguia-se das ruas onde eles se encontravam. Em alguns lugares, já
havia uma espessa e opaca neblina; em outros, estava apenas
começando.
Os homens cinzentos permaneciam imóveis. Como de costume,
cada um tinha o chapéu-coco na cabeça, a pasta cinzenta na mão e o
charuto aceso na boca. As nuvens de fumaça que estes produziam não
de dispersavam, porém, como habitualmente: no ar parado, sem a
menor brisa, a fumaça flutuava sem se desfazer, formando cortinas
viscosas e densas como teias de aranha, depositando-se ao longo das
ruas e sobre a fachada das casas brancas como neve, em longos
festões.
176

Condensaram-se depois numa parede glauca e asquerosa que


subia, lenta mas incessantemente, cercando a Mansão de Lugar
Nenhum.
Manu viu também que de momento a momento maior número de
homens chegavam para tomar o posto dos que vinham revezar. Que
significava aquilo? Qual seria o plano de ação dos ladrões do tempo?
Tirou os óculos e olhou interrogativamente para Mestre Hora, que
lhe disse:
__ Você já viu bastante? Então dê-me os óculos.
Enquanto os colava, continuou:
__ Você perguntou se eles poderiam forçar-me a alguma coisa. A
mim mesmo, como você sabe, não podem atingir. Poderão, no entanto,
infligir à humanidade uma chaga pior do que tudo quanto até agora têm
feito. É com tal ameaça que tentarão me coagir.
__ Ainda pior? – disse Manu, indignada.
Mestre Hora acenou com a cabeça:
__ Eu distribuo a cada criatura humana sua porção de tempo e os
homens cinzentos não podem impedi-lo nem interceptar o tempo que eu
concebo. Mas podem envenená-lo.
__ Envenenar o tempo? – perguntou ela, assombrada.
__ Sim, com a fumaça de seus charutos – explicou Mestre Hora. __
Repare que eles não largam o charuto cinzento, pois sem ele deixarão
de existir.
__ De que espécie são esses charutos? – indagou Manu.
__ Você se lembra da floração das horas, não é? – perguntou
Mestre Hora. __ Eu disse então que toda criatura humana tem em si um
templo de ouro do tempo como aquele – é o seu coração. Quando uma
pessoa admite a entrada dos homens cinzentos no seu templo, estes
podem arrebatar-lhe mais e mais dessas flores. As flores das horas assim
roubadas não podem morrer pois não foram vividas; e também não
podem viver, pois foram arrancadas a seus verdadeiros proprietários.
Anseiam constantemente, com cada fibra de seu ser, por voltar a quem
de direito pertencem.
177

Manu ouvia, quase sem fôlego.


__ Você precisa saber, Manu, que o mal tem seus mistérios – como
o bem. Ignoro onde os homens cinzentos guardam as flores das horas
roubadas. Só sei que por sua própria frieza eles as congelam, tonando-as
sólidas como pequenas taças de cristal, impedindo assim que elas
voltem a seus legítimos donos. Em algum ponto, profundamente
escondidos sob a terra, deve haver gigantescos depósitos, onde jaz todo
tempo congelado. Ainda assim, a floração das horas não morre.
As faces de Manu ardiam de indignação.
__ Os homens cinzentos vão continuamente abastecer-se nesses
depósitos: arrancam as pétalas das flores, deixam-nas murchar até que
fiquem completamente secas e cinzentas e com elas enrolam seus
charutinhos. Até esse momento, ainda existe um resto de vida nas
pétalas e, como os ladrões para fumá-los. É somente nessa fumaça que
o tempo morre realmente e é esse tempo dos homens – agora morto –
que conserva vivos os homens cinzentos.
Manu tinha se levantado e exclamou:
__ Oh! Pensar em todo esse tempo morto . . .
__ De fato, é impressionante. Aquele muro de fumaça lá fora,
cercando a Mansão de Lugar Nenhum, é todo feito de tempo morto.
Ainda disponho de bastante céu aberto para enviar aos homens o tempo
intato; mas, quando essas densas nuvens de fumaça tiverem formado
uma completa abóbada em redor e acima de nós, então uma certa
quantidade do tempo espectral dos homens cinzentos vai misturar-se
com cada hora que eu mandar à humanidade. E quando as pessoas
absorverem esse tempo poluído ficarão doentes – mortalmente
enfermas.
Cheia de espanto, Manu fitava Mestre Hora sem compreender:
__ Que espécie de doença é essa? – perguntou baixinho.
__ No começo, mal se percebe. Mas, um dia, o homem não tem
disposição para coisa alguma; nada o interessa, ele está profundamente
aborrecido. Essa apatia não passa; perdura e cresce sempre mais,
tornando-se pior de dia para dia, de semana para semana. Sente-se
178

continuamente insatisfeito, interiormente vazio, descontente com tudo.


Depois, aos poucos, até esse sentimento desaparece: o homem fica
inteiramente insensível, indiferente – como que cinzento –, alienado do
mundo, que já não lhe diz nada. Não tem mais cólera nem entusiasmo, é
incapaz de regozijar-se ou de lastimar-se: esqueceu o rios e as lágrimas.
Torna-se intimamente gélido, e não pode amar a ninguém e a coisa
alguma. Quando a doença atinge esse grau é incurável, não há
recuperação possível. O homem se agita de um lado para outro, com o
rosto inexpressivo, cinzento como o dos homens cinzentos, e na verdade
torna-se então um deles. Essa doença chama-se “tédio mortal”.
Manu estremeceu:
__ Se o senhor recusar entregar-lhes todo o tempo da humanidade,
eles vão fazer todas as pessoas ficarem iguais a eles?
__ Sim – respondeu Mestre Hora –, e é por isso que tentam me
coagir.
Levantou-se e continuou:
__ Aguardei até agora, na esperança de que os homens se
libertassem dessas pestes por seus próprios esforços. Poderiam fazê-lo,
pois afinal a humanidade é que os trouxe à existência. Já não posso
esperar mais. Tenho de fazer alguma coisa, mas não posso realizá-la
sozinho!
E olhando para Manu:
__ Você quer ajudar-me?
__ Quero – sussurrou a menina.
__ Terei de expô-la a nem sei que perigos – disse Mestre Hora –,
dependerá de você que o mundo pare para sempre ou que recomece a
viver de novo. Sente-se bastante corajosa para enfrentar tal risco?
__ Sim! – e dessa vez a voz de Manu tinha um tom decidido.
__ Muito bem! – declarou Mestre Hora. __ É preciso prestar muita
atenção ao que vou explicar, pois terá de resolver tudo sozinha e eu não
poderei mais ajudá-la. Nem eu, nem ninguém!
Manu acenou com a cabeça, os olhos fitos em Mestre Hora, com
atenção concentrada.
179

__ Você precisa saber – disse ele – que eu jamais durmo. Se


acontecesse eu cair no sono, nesse instante exato, o tempo pararia, e o
mundo inteiro ficaria completamente imobilizado. Ora, tendo cessado o
tempo, os homens cinzentos não poderiam mais roubá-lo. É verdade que
ainda poderiam existir por alguns momentos, pois possuem grandes
reservas de tempo; quando essas esgotassem, porém, eles se
dissolveriam em nada.
__ Então é fácil – declarou a menina.
__ Infelizmente, não é absolutamente fácil; se fosse, eu não
precisaria de seu auxílio. Quando o tempo cessar, não poderei acordar
novamente, e o mundo ficará absolutamente imóvel para toda a
eternidade. Mas tenho o poder de dar a você – exclusivamente a você –
uma flor das horas. Uma única, é claro, pois só uma floresce de cada
vez. Desse modo, mesmo que o tempo pare, você ainda será dona de
uma hora.
__ Assim, poderei acordá-lo! – exclamou Manu.
__ Se fosse só isso . . . – continuou ele – mas numa hora apenas,
nada ganharíamos, as reservas de tempo dos homens cinzentos são
grandes, não se esgotariam tão depressa, e depois eles continuariam a
existir. Não; os problemas que você terá de resolver são bem mais
difíceis! Logo que nossos adversários perceberem que o tempo cessou –
e eles perceberão muito depressa, porque não terão meios de renovar
seu estoque de charutos –, suspenderão o cerco, a fim de se dirigirem a
seus depósitos. Aí, é preciso que você os siga, Manu, e descubra esse
lugar secreto, pois terá de impedir que alcancem as suas reservas: no
momento em que não tiverem mais charutos, perderão a existência. Em
seguida, há ainda outra coisa a fazer e talvez seja a mais difícil: logo que
o último homem cinzento se extinguir, você terá de libertar todo tempo
roubado; somente quando ele voltar a seus legítimos donos é que o
mundo sairá da imobilidade e acordará de novo. E, para executar tudo
isso, você terá apenas uma única hora.
Manu olhou com ar desanimado; não calculara que as dificuldades
e perigos fossem tantos.
180

__ Quer tentar assim mesmo? – perguntou Mestre Hora. __ É a


única chance!
Manu ficou silenciosa. Duvidava que fosse capaz de realizar tudo
aquilo. De repente, leu nas costas de Cassiopéia:
“VOU COM VOCÊ”.
Que ajuda poderia lhe dar a tartaruga? Sentiu no entanto um raio
de esperança a confortá-la. A idéia de não empreender sozinha a difícil
missão dava-lhe coragem. Era naturalmente uma coragem sem
fundamento razoável, mas que lhe permitiu tomar uma decisão firme:
__ Vou tentar – disse resolutamente.
Mestre Hora lançou-lhe demorado olhar acompanhado de um
sorriso:
__ Muita coisa será mais fácil do que parece no momento. Você
ouviu a música das esferas; não deve ter medo.
Voltando-se para a tartaruga, perguntou:
__ E você, Cassiopéia, quer ir também?
“NATURALMENTE”, apareceu na sua carapaça. E logo essas letras
de dissiparam, e surgiram outras: “ALGUÉM TEM DE OLHAR POR ELA”.
Mestre Hora e Manu sorriram um para o outro.
__ O senhor vai lhe dar também uma flor das horas? – perguntou
Manu.
__ Não – explicou ele, coçando carinhosamente o pescoço da
tartaruga. __ Cassiopéia não precisa; é uma criatura fora do tempo. Ela
carrega em si o seu próprio tempo e continuaria rastejando pelo mundo
inteiro, ainda que tudo o mais tivesse parado para sempre.
__ Bem – disse Manu tomada por súbito desejo de ação –, qual a
primeira coisa a fazer agora?
__ É nos despedirmos! – respondeu Mestre Hora.
Manu engoliu em seco e murmurou baixinho:
__ Será que nunca mais os veremos?
__ Sim, havemos de nos encontrar de novo; mas antes disso, cada
hora de vida levará a você lembranças minhas, pois continuaremos
amigos, não é?
181

__ Decerto! – afirmou Manu.


__ Agora preciso ir-me; você não deve acompanhar-me nem
perguntar para onde vou. Meu sono não é um sono comum e é melhor
que você não o presencie. Mais uma recomendação: logo que eu partir
daqui, abra imediatamente as duas portas, a pequenina com meu nome
e a grande porta de bronze que dá para a Alameda do Nunca, pois,
assim que o tempo cessar, tudo ficará completamente imóvel e
nenhuma força do mundo poderá abrir essas portas. Você compreendeu
bem tudo e será capaz de executar a tarefa?
__ Compreendi – respondeu Manu –, mas como saberei o momento
em que o tempo parar?
__ Não se preocupe, você saberá logo.
Mestre Hora levantou-se, acariciou o cabelo despenteado da
menina e disse:
__ Adeus, Manu, tive muita alegria que você me ouvisse também!
__ Mais tarde, hei de falar do senhor a toda gente – replicou ela.
Subitamente, Mestre Hora pareceu incrivelmente velho, tal como
quando a carregara nos braços para o templo de ouro: velho como as
mais antigas árvores ou as rochas primitivas.
Saiu rapidamente da saleta, cujas paredes eram formadas pelos
grandes relógios, e Manu ouviu seus passos sumindo na distância,
tonando-se cada vez mais fracos até confundirem-se com os inúmeros
tique-taques que ressoavam no ambiente.
Manu apanhou Cassiopéia e abraçou-a. Estava agora
irrevogavelmente engajada na maior aventura de sua vida.

20. Os perseguidores perseguidos

A primeira coisa que Manu fez foi abrir a portinha interna com o
nome de Mestre Hora. Correu em seguida pela galeria, onde estavam
grandes estátuas de pedra, e abriu a enorme porta de bronze; teve de
182

empregar toda a sua força, pois os gigantescos batentes eram


pesadíssimos.
Feito isso, voltou correndo para a grande sala dos relógios e com
Cassiopéia debaixo do braço ficou à espera do que pudesse acontecer.
De fato, aconteceu algo extraordinário.
Subitamente houve uma espécie de terremoto, mas em vez de a
terra tremer, foi um tremor do tempo. Não há palavras capazes de
descrevê-lo. Um som jamais escutado por nenhum ouvido humano
acompanhou esse fenômeno: era como se um imenso gemido subisse
das profundezas dos séculos.
Depois tudo terminou. No mesmo instante, as inúmeras vozes dos
carrilhões, os zunidos e tique-taques na sala dos relógios cessaram
repentinamente. Os pêndulos oscilantes pararam no ponto em que se
encontravam: nada, absolutamente nada mais tinha movimento. O
silêncio estendeu-se por toda a parte: uma quietude completa, total,
como nunca acontecera desde o princípio do mundo. O tempo tinha
cassado.
Manu percebeu que, inesperadamente, segurava uma grande flor
das horas, de maravilhosa beleza. Não sabia como a flor viera ter à sua
mão, parecia que sempre estivera ali.
A menina deu cautelosamente um passo à frente, e verificou que
podia andar com a facilidade habitual. Na mesinha tinham ficado as
sobras da refeição, e Manu sentou-se numa das pequenas poltronas;
agora, porém, as almofadas estavam duras como mármore e muito
desconfortáveis. Na sua xícara restava ainda um gole de chocolate, mas
não conseguiu levantar a xícara do pires. Experimentou mergulhar o
dedo no líquido e viu que se tornara sólido como vidro. Com o mel
acontecera o mesmo, e tampouco conseguia apanhar as migalhas de
pão. Cessando o tempo, tudo se tornara imóvel e inalterável.
Cassiopéia começou a agitar-se e Manu, olhando para ela, leu este
aviso:
“VOCÊ ESTÁ PERDENDO TEMPO”
183

Céus! Era verdade. Correu então pela grande sala, esgueirou-se


pela portinha e continuou correndo pela longa galeria. Quando chegou à
porta de bronze, espiou para fora e recuou precipitadamente. Seu
coração batia descompassado: os homens cinzentos não estavam
levantando o cerco! Pelo contrário, avançavam pela Alameda do Nunca,
onde o tempo que costumava fluir para trás também havia parado, e
dirigiam-se agora para a Mansão de Lugar Nenhum! Isso não fora
previsto no plano.
Manu voltou em disparada para a grande sala dos relógios e
escondeu-se atrás de um deles, sempre com Cassiopéia debaixo do
braço.
__ Não é um começo muito animador – murmurou assustada.
Ouviu em seguida os passos dos homens cinzentos que se
aproximavam: um por um, espremeram-se através da estreita portinha e
reuniram-se na sala dos relógios.
__ Então é esta nossa nova morada! É imponente! – disse um
deles.
__ Foi Manu quem nos abriu a porta, eu vi! – declarou outra voz
cinzenta.
__ É uma menina de juízo. Só queria saber como conseguiu
persuadir o velho.
Uma terceira voz respondeu:
__ Na minha opinião, aquela pessoa teve de desistir. O fato de a
ressaca do tempo ter cessado na Alameda do Nunca significa que foi ela
quem o determinou, pois certamente compreendeu que tinha de
submeter-se a nós. Agora vamos liquidá-la de uma vez. Mas onde terá se
metido?
Os homens cinzentos puseram-se a olhar em volta, quando um
deles exclamou, numa voz mais cinzenta do que nunca:
__ Alguma coisa está errada! Vejam! Vejam!, os relógios estão
todos parados. Todos! Até aquela ampulheta!
__ Bem, supondo que o próprio velho os tenha feito parar – disse
outra voz, sem muita segurança.
184

__ Ninguém pode fazer parar uma ampulheta – gritou o primeiro. __


Reparem, a areia parou a meio caminho: não se pode movê-la e a
ampulheta também ficou imóvel. Que significa isso?
Estava ainda falando, quando se ouviram passos apressados, e
outro homem cinzento se esgueirou pela porta. Entrou gesticulando e
disse aos gritos:
__ Acabamos de receber notícias de nossos agentes da cidade.
Seus carros não andam, tudo parou. O mundo está parado. É impossível
arrancarmos a menor parcela de tempo, seja de quem for. Todo o nosso
sistema de reservas faliu: não existe mais o tempo. Mestre Hora fez
cessar o tempo!
Reinou por um momento um silêncio de morte. Depois, um deles
perguntou:
__ Que é que disseram? Nosso sistema de reservas faliu? Então
que será de nós, quando tivermos esgotado os charutos que trouxemos
conosco?
__ Os senhores sabem perfeitamente o que sucederá – bradou
outro –, é uma pavorosa catástrofe!
Começaram a gritar todos juntos, num tremendo alvoroço:
__ Mestre Hora pretende nos destruir! Temos de levantar o cerco
imediatamente! Precisamos chegar ao nosso depósito de reservas de
tempo!
__ Sem carros? É impossível, meus charutos só vão durar mais
vinte e sete minutos.
__ Os meus, apenas quarenta e oito.
__ Dê-me alguns!
__ Está louco?
__ É cada qual por si!
O bando todo precipitou-se para a pequena porta, tentando sair.
De seu esconderijo, Manu observava como lutavam, em pânico,
empurrando, puxando uns aos outros, envolvidos em conflitos cada vez
mais violentos. Cada um queria passar à frente do companheiro, num
tremendo esforço para conservar sua vida cinzenta. Para isso, arrancava
185

o charuto da boca do que estava mais perto, e quando isso acontecia


este perdia instantaneamente toda a força: com as mãos estendidas, o
rosto cinzento contorcido pelo terror, ia se tornando mais e mais
transparente, até desaparecer por completo. Nada restava dele – nem
mesmo o chapéu-coco.
No final da batalha, só ficaram na sala três homens, que
conseguiram sair sem atropelo pela porta estreita.
Manu, sempre com a tartaruga debaixo do braço e a flor das horas
na outra mão, correu atrás deles. Agora tudo dependia de que não os
perdesse de vista.
Ao passar pela grande porta de bronze, viu que os ladrões do
tempo já tinham chegado ao fim da Alameda do Nunca. Ali se achavam
outros grupos, em meio às espirais paradas de fumaça, vociferando em
tumulto. Ao verem os três companheiros correndo, fizeram o mesmo.
Em breve, outros juntaram-se a eles e daí a pouco todo o imenso
exército dos homens cinzentos estava em plena fuga, em direção da
grande cidade, perseguido, a distância, por uma menina com uma
tartaruga debaixo do braço e uma flor na mão.
Mas como era agora estranho o aspecto da grande cidade! Nas
ruas e avenidas, viam-se filas e filas de carros com motoristas imóveis,
as mãos no volante ou na alavanca de mudanças de marcha; ciclistas
imobilizados com o braço estendido, indicando que iam virar a esquina;
nas calçadas, todos os pedestres, homens, mulheres e crianças, cães e
gatos, todos parados, rígidos. Até a fumaça dos cachimbos estava
suspensa no ar.
No cruzamento das ruas, guardas com a apito na boca
permaneciam inalteráveis na posição em que estavam dirigindo o
trânsito. Acima da praça, pairava um bando de pombos, imobilizados em
pleno vôo. E, lá no alto, um avião parecia pintado no céu.
A água do chafariz tornara-se sólida como gelo. Folhas que
estavam caindo das árvores ficaram suspensas no meio da queda. Um
cachorrinho de perna erguida, junto a um poste, parecia um bicho
empalhado.
186

Os homens cinzentos atravessaram correndo a cidade imóvel,


Manu sempre seguindo-os de longe para não ser vista. Aliás, eles não
reparavam em coisa alguma, na ânsia da corrida, muito difícil e
cansativa; estavam habituados a seus automóveis e não costumavam
andar de pé grandes distâncias. Ofegantes, sem fôlego, muitos
deixavam cair da boca o imprescindível charuto, desvanecendo-se
imediatamente. Além disso, os próprios companheiros eram uma
constante ameaça. Em seu desespero, alguns, cujo charuto estava no
fim, arrancavam simplesmente o de outro e desse modo diminuía
constantemente o número dos ladrões de tempo.
Aqueles, que levavam alguma reserva em suas pastas,
procuravam escondê-la, pois quando os outros a descobriam avançavam
sobre eles, formando-se verdadeiras batalhas, durante as quais muitos
charutos caíam ao chão, eram pisados no tumulto, e os homens
cinzentos desfaziam-se em nada.
Outra dificuldade que encontravam era a massa compacta de povo
que enchia as ruas do centro se atravessassem densa floresta. Flocos de
penugem pairando no ar estavam tão sólidos como pedras, e era preciso
muito cuidado para não quebrar a cabeça de encontro a tais obstáculos.
Para Manu, pequenina e magrinha, o trajeto era mais fácil; estava atenta
à flor das horas que levava na mão, e, vendo que esta começava apenas
a abrir-se, achou que não havia motivo para se preocupar: o tempo
devia chegar para realizar sua tarefa.
Aconteceu então algo que fez Manu esquecer-se de tudo o mais:
numa rua transversal viu de repente Beppo Varredor. Alucinada de
alegria, correu para ele gritando:
__ Beppo, tenho estado à sua procura por toda parte! Onde tem
andado? Oh! Meu querido Beppo!
E, sem pensar nas conseqüências, atirou-se ao pescoço do amigo,
ricocheteando com tal força que se machucou e as lágrimas lhe vieram
aos olhos.
Beppo pareceu-lhe mais curvado do que antigamente; seu rosto
envelhecido mais magro e muito pálido, abatido pelo trabalho
187

incessante. No queixo, crescera uma barbicha branca, pois ele nunca


mais tivera tempo para se barbear. Segurava uma vassoura já muito
usada de tanto varrer, e assim estava, imóvel, como que considerando
através dos óculos toda a sujeira da rua.
Manu o encontrara afinal, mas o encontro de nada adiantava pois
ele não podia vê-la, nem ouvi-la. E talvez fosse essa a última vez em que
estariam juntos . . . Se as coisas saíssem conforme os planos, o velho
Beppo ali ficaria para toda a eternidade.
A tartaruga começou a arrancar o braço da menina, e sua
carapaça apareceu este conselho:
“VÁ ADIANTE!”
Manu voltou depressa para a rua principal e levou um susto: não
havia nenhum homem cinzento à vista! Correu na direção em que
anteriormente se achavam, mas inutilmente. Perdera a pista dos ladrões
de tempo!
Parou, perplexa. Que fazer agora? Olhou interrogativamente para
Cassiopéia e leu esta resposta:
“CONTINUE, VOCÊ VAI ACHÁ-LOS!”
Ora, Cassiopéia sabia com antecedência que ela os encontraria,
não importava qual o rumo a tomar: qualquer caminho daria certo. Pôs-
se então a correr segundo seu capricho: às vezes virava à direita; outras,
à esquerda; ou ia simplesmente em frente.
Chegou por fim à parte norte da cidade, ao bairro recém-
construído, com casas todas idênticas e ruas retas que se estendiam a
perder de vista. Manu corria e corria, mas, como tudo era perfeitamente
igual, tinha a impressão de não sair do lugar. Era sem dúvida um
labirinto; porém um labirinto de paralelogramos e monotonia.
A menina já estava quase perdendo a coragem, quando avistou de
repente um homem cinzento virando uma esquina. Mancava, tinha as
calças rasgadas, perdera o chapéu e a pasta, mas entre os lábios
apertados ainda havia um toco de charuto aceso.
Manu seguiu-o ao longo das infindáveis fileiras de casas até o
ponto onde se abria uma brecha: em vez de uma casa, ali se erguia um
188

alto tapume de tábuas rústicas em volta de um grande espaço


quadrado. No tapume havia uma porta entreaberta, pela qual o homem
entrou precipitadamente.
Acima da porta destacava-se um aviso, que Manu soletrou até
conseguir ler o que dizia:
“CUIDADO!
ALTAMENTE PERIGOSO
EXPRESSAMENTE PROIBIDA A ENTRADA
DE PESSOAS NÃO AUTORIZADAS”

21. O fim que é um novo começo

Manu demorou a ler a tabuleta de aviso e quando penetrou no


interior do tapume não viu vestígio do homem cinzento.
Diante dela estendia-se uma imensa e profunda vala. Escavadeiras
e outras máquinas para construção ali se enfileiravam. Uma rampa
íngreme levava ao fundo da vala e vários caminhões se achavam
imobilizados a meio caminho.
Aqui e acolá, operários estavam rígidos, parados na posição em
que se encontravam no momento em que tempo cessou.
Para onde se dirigir agora? A menina não descobria nenhum meio
de acesso que o homem cinzento pudesse ter usado.
Olhou para Cassiopéia, mas tartaruga também parecia ignorá-lo.
Desceu então até o fundo da longa escavação e pôs-se a olhar em
volta. Inesperadamente, deu com um rosto conhecido: era Nicolau, o
pedreiro que certa vez pintara um bonito quadro de flores na parede de
seu quarto. Evidentemente, como todos os outros, ele estava imóvel,
porém numa atitude muito curiosa: tinha a mão em concha ao redor da
boca, como se estivesse gritando algo a um companheiro, e com a outra
mão apontava para a extremidade de um enorme tubo de canalização,
que emergia a seu lado, no fundo da vala. Parecia estar olhando para
189

Manu, e a menina não hesitou. Tomou aquilo como um sinal e meteu-se


dentro do tubo.
Mal penetrou nele, começou a escorregar, pois o tubo descia em
forte declive e tomava direções diferentes, de modo que Manu parecia
estar numa montanha-russa. A rampa era por vezes tão íngreme, que
ela era precipitada de cabeça para baixo, mas não largava a tartaruga
nem a flor das horas.
Quanto mais o tubo se aprofundava na terra, mais frio ia se
tornando o ambiente. Houve um momento em que chegou a duvidar se
sairia daquele escuro túnel! Contudo, não teve tempo para se preocupar
com essa idéia, pois o enorme tubo desembocou de repente numa
passagem subterrânea, onde reinava uma luz cinzenta, que parecia
emanar das próprias paredes.
Manu pôs-se de pé e como estava descalça pôde correr sem fazer
o menor barulho. À medida que avançava, começou a ouvir o ruído de
passos à sua frente e seguiu o som.
A passagem subterrânea ramificava-se em todas as direções,
formando como que uma verdadeira rede de artérias e veias sob todo o
novo bairro recém-construído.
A certa altura, ela escutou um burburinho de vozes; adiantou-se
cautelosamente e espiou às escondida.
Viu à sua frente uma gigantesca sala, em cujo centro havia uma
mesa de conferências extraordinariamente longa, à qual estavam
sentados, em duas fileiras, os homens cinzentos. Ou melhor, o pequeno
grupo a que estavam reduzidos. Seu aspecto era lamentável: as roupas
rasgadas, cortes e galos nas cabeças carecas, as fisionomias alteradas
pelo pavor.
Seus charutos, porém, continuavam acesos.
Manu observou que, na extremidade da sala, havia uma enorme
porta entreaberta, como de um cofre-forte. Soprava uma corrente de ar
gelado que a fez encolher-se toda e abaixar-se até esconder os pés nus
sob a saia. Escutou então um dos homens que se achavam sentados a
uma ponta da mesa, em frente à câmara frigorífica, dizer:
190

__ Temos de usar nossas reservas com muita economia, e


fazermos um racionamento, pois ignoramos o tempo que deverá durar.
__ Mas restaram tão poucos dos nossos! As reservas durarão anos!
– exclamou outro.
__ Quanto mais cedo começarmos a economizar, tanto melhor! –
continuou o primeiro. __ Se apenas alguns sobreviverem a tal desastre já
será o suficiente. Temos de considerar os fatos objetivamente: o número
dos sobreviventes ainda é muito grande. É preciso reduzi-lo. Para isso,
proponho numerar todos os que aqui se acham e tirar-se s sorte para ver
os que ficam. Essa é a voz da razão.
A cada um dos homens foi dado um número, e o que presidia a
sessão tirou do bolso uma moeda:
__ Vamos jogar cara ou coroa: cara, serão os números pares, que
vão permanecer; coroa, os ímpares, que serão extintos. __ Atirou a
moeda para o ar e apanhou-a: __ Cara: ficam os números pares, os
outros desaparecerão.
Um lamento lúgubre ergueu-se entre os perdedores, que se
submeteram, no entanto, sem protesto à ordem dada. Os felizardos
ganhadores arrancaram-lhes o charuto, e no mesmo instante eles
dissolveram-se em nada.
O silêncio que se segui foi interrompido pela voz do presidente:
__ Senhores, ainda somos muito numerosos, e vamos repetir esta
medida de emergência.
Por quatro vezes refez-se o cruel processo, até que em volta da
grande mesa de conferências não restassem mais do seis homens,
olhando um para o outro com olhar de aço.
Manu observava tudo, horrorizada. Notou que, diminuindo o
número dos ladrões do tempo, diminuía também o frio reinante na sal,
agora já quase suportável.
__ Seis é um mau número – disse um deles.
__ Chega! – protestou outro. __ Não há necessidade de se reduzir
mais o nosso grupo; se seis não conseguirem sobreviver à catástrofe,
três também não o conseguirão.
191

__ Não concordo – retrucou o primeiro –, mas enfim sempre haverá


tempo para se discutir esse ponto mais tarde.
Por um momento, reinou completo silêncio, até que um deles
comentou:
__ É uma sorte que a porta do frigorífico tenha ficado entreaberta,
senão nenhuma força deste mundo poderia abri-la, e estaríamos
perdidos.
__ A sorte não é tanta assim – replicou outro –, pois, enquanto a
porta ficar aberta, a temperatura vai subindo na câmara fria;
gradativamente, as flores das horas começarão a degelar e, como
sabem, não poderemos mais impedir que voltem a seus legítimos donos.
__ Não acha que o nosso próprio frio é suficiente para conservar
geladas as reservas?
__ Infelizmente somos apenas seis, e o senhor pode avaliar por si
mesmo a quantidade de frio que podemos produzir. Parece-me que
fomos precipitados, diminuindo nosso grupo de modo tão drástico. Isso
não nos trará vantagens.
__ Tínhamos de escolher entre uma e outra alternativa, e foi essa
que escolhemos – respondeu o primeiro homem cinzento.
Caiu novo silêncio.
__ Teremos de ficar aqui, talvez durante anos, simplesmente
encarando uns aos outros? – perguntou um deles. __ Confesso que a
perspectiva não me parece animadora.
Manu começou a refletir. Certamente não tinha cabimento
permanecer ali, quieta, à espera. Quando não houvesse mais homens
cinzentos, as flores das horas degelariam por si, mas no momento eles
ainda existiam e continuariam a existir, se ela não tomasse uma
iniciativa. Mas que era possível fazer, se os frigoríficos estavam abertos,
de modo que os ladrões podiam se abastecer à vontade?
Cassiopéia pôs-se a arranhá-la, e Manu leu na sua carapaça:
“FECHE A PORTA”.
__ É impossível – murmurou a menina – ninguém pode movê-la.
“TOQUE COM A FLOR”
192

__ Quer dizer que, se eu tocar a porta com a flor das horas, ela se
fechará? – sussurrou Manu.
“É O QUE VOCÊ VAI FAZER”, apareceu nas costas da tartaruga.
Como Cassiopéia afirmava antecipadamente que Manu o faria, ela
podia realmente fazê-lo. Colocou então cuidadosamente a tartaruga no
chão, depois enfiou dentro do casaco a flor, que já começava a murchar
e perdera várias pétalas.
Sem que os homens cinzentos a percebessem, pôs-se a rastejar
sob a mesa de conferência, e sempre de gatinhas chegou até sua
extremidade. Estava agora entre os pés dos ladrões de tempo, e o
coração batia-lhe como se fosse estourar. Delicadamente, tirou a flor do
casaco, prendeu a haste entre os dentes e continuou serpenteando
entra as cadeiras, até alcançar a porta aberta.
Tocou-a com a flor ao mesmo tempo que a empurrava. A porta
girou silenciosamente nas dobradiças e fechou-se em seguida com um
estrondo de trovão. O som repercutiu repetidamente na grande sala e
depois ecoou mil vezes nas passagens subterrâneas.
Os homens cinzentos, não supondo nem de longe que alguém
mais – fora eles próprios – tivesse escapado à imobilidade universal,
continuavam sentados, pasmos, olhando para a menina.
Sem perder tempo, Manu passou por eles, precipitando-se para a
saída da sala. Logo, porém, os ladrões, recuperados do choque da
surpresa, puseram-se a persegui-la aos gritos:
__ É aquela abominável menina! É Manu! Ela tem uma flor das
horas e temos de tomá-la; é o único meio de nos salvarmos, do contrário
será o nosso fim.
Enquanto isso, Manu já tinha desaparecido num dos corredores e
os homens iam no seu encalço, conhecendo muito melhor do que ela
todas as ramificações da grande rede sob a terra. A menina corria ao
acaso, e por vezes quase ia de encontro aos adversários, mas sempre
conseguia evitá-los no momento exato.
Cassiopéia também, a seu modo, tomava parte na batalha,
salvando mais de uma vez Manu de ser apanhada. Embora só pudesse
193

rastejar lentamente, como conhecia com antecedência o lugar em que


eles passariam, dava jeito de colocar-se a tempo no meio do caminho,
de maneira a fazer com que os homens cinzentos tropeçassem e
caíssem uns por cima dos outros. Naturalmente, ela própria levava
pontapés e era chutada de encontro à parede, mas isso não a impedia
de continuar a fazer o que sabia com antecedência que faria.
No ardor da perseguição, alguns deles, loucos de ganância pela
flor das horas, perderam seus charutos e se desfizeram em nada.
Finalmente, restaram apenas dois.
Manu fugiu de volta à sala de conferências e os dois últimos
perseguidores tentavam em vão apanhá-la, correndo ao redor da mesa.
Vendo que não o conseguiam, separaram-se e resolveram cercar a
menina. Já não havia possibilidade de fuga, e Manu parou, de costas
para a parede, num canto da sala, olhando aterrorizada para os dois
homens que se aproximavam. Segurava a flor das horas apertada contra
o peito; apenas três de sua brilhantes pétalas ainda subsistiam.
Um dos homens já esticava a mão para se apoderar da flor,
quando o outro o empurrou para trás:
__ Não! A flor é minha! É minha!
Na luta que começou entre ambos, um arrancou o charuto da boca
do outro, que com um gemido espectral foi se tornando transparente,
até se desfazer em nada.
O último dos homens cinzentos, com um toco de charuto nos
lábios, avançou para Manu e disse-lhe, ofegante:
__ Dê-me a flor!
Ao falar, no entanto, o charuto caiu de sua boca e rolou no chão. O
homem atirou-se ao solo, de braço estendido para apanhá-lo, mas não o
alcançou. Voltou seu rosto cinza para Manu, tentou com esforço
soerguer o corpo e, levantando a mão trêmula, murmurou suplicando:
__ Por favor, querida menina, dê-me a flor!
Manu continuava como que pregada naquele canto da sala.
Apertou a flor das horas contra o coração e sacudiu a cabeça
negativamente, incapaz de emitir um som.
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O último dos homens cinzentos acenou devagar e murmurou:


__ Está bem, agora tudo acabou, tudo acabou. __ E extinguiu-se.
Atordoada, imóvel, Manu tinha os olhos fixos no lugar em que eles
estivera deitado no solo. Mas Cassiopéia começou a arranhá-la e na sua
carapaça surgiram estas palavras:
“VÁ ABRIR A PORTA”
Manu tocou a porta com a flor, na qual ainda havia uma última
pétala, e abriu-a completamente.
Com o desaparecimento do último ladrão de tempo, o frio tinha
diminuído. De olhos arregalados de espanto, Manu entrou nos
gigantescos depósitos onde se enfileiravam as inúmeras flores das
horas, como pequeninas taças de vidro, cada uma mais linda do que a
outra – não havendo duas iguais –, que representavam centenas de
milhares – talvez milhões – de horas de vida. A atmosfera se tornou mais
quente, e agora parecia a de uma estufa.
Então, justo no momento em que a última pétala da flor de Manu
começou a cair, levantou-se de repente como que uma tempestade.
Nuvens de flores das horas rodopiavam em volta da menina e a
envolviam. Parecia uma cálida ventania de primavera. Era porém um
vendaval que vinha de nuvens de tempo liberado.
Como em sonho, Manu olhou em volta e viu Cassiopéia no chão,
diante de si. Na carapaça apareceram, luminosas, estas palavras:
“VOE PARA CASA, Manu, VOE PARA CASA!”
Foi a última vez que Manu viu Cassiopéia. Dali em diante, a
tempestade da floração das horas tornou-se indescritivelmente
possante, tão forte, que carregou Manu, levando-a para fora das galerias
subterrâneas, voando por cima dos telhados das casas, das torres das
igrejas, acima da grande cidade, num imenso turbilhão de flores que
crescia sempre mais. Era como se a menina fizesse parte de uma dança
triunfal acompanhando uma maravilhosa música, uma dança na qual
flutuava para o alto e para baixo, e era impelida numa roda-viva sem
fim.
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Depois, a nuvem da floração das horas baixou suavemente. As


flores caíram como flocos de neve sobre o mundo congelado e, como
flocos de neve, derretiam-se brandamente, tornando-se de novo
invisíveis ao voltarem para seu verdadeiro lugar – o coração dos
homens.
No mesmo instante, reiniciou-se o tempo: tudo despertou e
começou a se mover. Os carros iam para diante, o guarda de trânsito
apitou, os pombos voaram, o cachorrinho fez uma pequena poça junto
ao poste. Ninguém notou que durante a última hora o mundo tinha
parado; e, de fato, entre o momento em que cessou e aquele em que
recomeçou, não havia decorrido tempo algum. Tudo se passou num abrir
e fechar de olhos.
No entanto, algo havia mudado; a diferença é que, de repente,
agora, uma a uma, as pessoas possuíam todo o tempo do mundo.
Naturalmente, cada qual se sentia radiante, mas ninguém sabia que, na
realidade, era o próprio tempo poupado por um e por outro que de certa
forma milagrosa lhes era agora devolvido.
Quando Manu retomou a consciência, viu-se novamente na grande
cidade, naquela rua transversal onde encontrara o velho Beppo. Ali
estava ele ainda, exatamente como o tinha deixado, encostado à
vassoura, pensativo, o olhar perdido ao longe, segundo seu hábito. Sem
saber por quê, Beppo subitamente não tinha mais pressa e ignorava o
motivo que o fazia se sentir tão animado e alegre.
“Quem sabe se já poupei as cem mil horas para resgatar Manu?”,
pensou então.
Nesse mesmo instante, alguém o puxou pela manga. Voltou-se e
viu Manu a seu lado.
Não há palavras que possam descrever a alegria desse encontro!
Riam e choravam ao mesmo tempo; falavam juntos, diziam um mundo
de tolices, como a gente faz quando está inebriada de júbilo.
Abraçavam-se sem parar, e os transeuntes paravam para compartilhar
aquela alegria, rindo e chorando com eles, pois agora todos dispunham
de tempo suficiente.
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Afinal, Beppo pôs a vassoura no ombro, encerrando o trabalho


naquele dia, e saíram os dois de braço dado, passeando pela grande
cidade, a caminho de casa, isto é, do velho anfiteatro. Tinham tanto que
contar um ao outro! Seria uma prosa sem fim!
Na grande cidade, também, reinava um aspecto que não se via há
muito: crianças brincavam no meio da rua, enquanto os motoristas
obrigados a esperar as observavam sorrindo ou até desciam do carro
para juntar-se às brincadeiras. Em toda parte via-se gente parada,
conversando amavelmente, indagando com simpatia da saúde e bem-
estar uns dos outros. Pessoas que se dirigiam a seu trabalho agora
tinham tempo para admirar as flores nas jardineiras das janelas ou para
das migalhas aos passarinhos. Médicos agora tinham tempo para se
dedicar a seus doentes. Mecânicos e artesãos podiam trabalhar com
convicção e orgulho do seu ofício, pois já não se tratava de produzir o
máximo no mínimo de tempo possível.
Muita gente, porém, nunca descobriu a quem devia agradecer
aquela mudança, nem soube o que realmente sucedera durante o tempo
que pareceu ter passado num abrir e fechar de olhos.
E, mesmo que alguém contasse o que acontecera, a maioria não
haveria de acreditar.
Os únicos que sabiam e acreditavam eram os amigos de Manu;
assim, quando Beppo e a menina chegaram ao anfiteatro, ali estavam
todos à espera: Guido Guia, Paulo, Mássimo, Franco, Maria com sua
irmãzinha, Dedé, Cláudio e as outras crianças; Nino e Liliane, os donos
do bar, com seu bebê; Nicolau, o pedreiro, e as demais pessoas da
vizinhança, que costumavam visitar Manu e às quais ela gostava de
ouvir.
Houve uma alegre festa, que durou até o pôr-do-sol e o
aparecimento das primeiras estrelas, pois ninguém sabia festejar os
acontecimentos como os amigos de Manu.
Depois de muito regozijo, muitos abraços, apertos de mão, risadas,
burburinho de vozes, sentaram-se todos nos degraus cobertos de capim
e o silêncio se fez.
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Manu levantou-se então e foi para o centro da grande arena.


Lembrou-se da música das esferas, da maravilha da floração das horas,
e com voz clara começou a cantar.

Enquanto isso, na Mansão de Lugar Nenhum, o tempo recomeçado


acordou Mestre Hora de seu primeiro e único sono. Sentado numa
cadeira junto à mesinha, ele sorria agora ao observar Manu e seus
amigos, através de seus óculos universais. Estava ainda muito pálido e
parecia convalescer de uma doença grave. Mas seus olhos brilhavam.
Nisso, sentiu-se alguma coisa roçando seus pés. Tirou os óculos,
abaixou-se e viu a tartaruga a seu lado.
__ Cassiopéia – disse carinhosamente, coçando-lhe o pescoço –,
vocês duas se saíram muito bem! Vai ter de me contar tudo, pois desta
vez eu não pude observá-las.
“MAIS TARDE”, apareceu nas costas da tartaruga, que seu um
espirro.
__ Espero que você não se tenha resfriado – disse Mestre Hora,
inquieto.
“EXATAMENTE O QUE ACONTECEU!”
__ Foi sem dúvida por causa do frio da atmosfera criada pelos
homens cinzentos – concluiu Mestre Hora. __ Você deve estar exausta e
penso que, antes de mais nada, gostará de um bom repouso; recolha-se
pois à sua carapaça.
“OBRIGADA!”
Cassiopéia saiu rastejando, achou um canto escuro, sossegado, e
recolheu a cabeça e os quatro membros sob a carapaça. Nas suas
costas, apareceram então, aso poucos, estas letras, visíveis apenas aos
que leram esta história:
“FIM”
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