USO DE SI E COMPETÊNCIA1
1
Tradução de Maria Elisa Borges e Paulo Cezar Zambroni-de-Souza. Revisão técnica de Ana Luiza
Telles, Jussara Brito e Milton Athayde.
muito sucinta daquilo que há para fazer naquele posto – uma herança do tempo
do taylorismo. A noção de “competências” nos sugere abrir amplamente a
investigação acerca do que é requerido no trabalho, para compreender o que
faz uma pessoa. Esta é a dimensão positiva.
Ao contrário, é claro, dentro do campo das relações profissionais, há
Difícil dizer alguma
toda uma série não de derivas, mas de práticas que
coisa das competências se desenvolvem há vários anos, onde se imagina ser
sem trair o que elas são : possível fechar uma lista de competências, enfim
antes de tudo um “ agir ” “traços de competências”, para saber se uma
aqui e agora.
pessoa as possui ou não.
Existem especialistas de grades de
competências, de avaliação de competências. Penso que existe aí um risco de
voltar a enclausurar a potencialidade aberta no primeiro ramo da bifurcação. O
manuseio desta noção de competência apresenta um poderoso desafio e é por
isso que é interessante precisar um pouco as coisas, se isso for possível.
Antes mesmo de seguir adiante, eu diria que nossa dificuldade para
definir a noção de competência – a noção de “competência no trabalho” – para
falar só disso – não é surpreendente. Tenta-se definir competências não para o
trabalho, mas para as situações de trabalho. Porém, o que é uma situação de
trabalho? Recai-se, um pouco, na armadilha de ficar “entre o mal e o pior”2, de
dificuldade em dificuldade. Será que alguém poderia definir uma situação de
trabalho, no espaço e no tempo, dizendo: “eis uma situação de trabalho, é isso;
ela se define por tal espaço e por tal e tal temporalidade”?
Na realidade, os limites de uma situação de trabalho não são jamais
descritíveis, eles são imprecisos. Aliás, eu penso que são horizontes que se
encaixam uns nos outros. Essa é uma primeira dificuldade. A conseqüência
direta é justamente que jamais se pode padronizar uma situação de trabalho,
devido à indefinição dos horizontes que a cercam.
Se admitimos esta dificuldade, o que poderia ser uma competência
ajustada a uma situação de trabalho, na medida em que esta última não pode
ter definição nem circunscrição clara?
Por outro lado, mas no fundo trata-se da mesma dificuldade, tenta-se
detectar competências numa situação de trabalho, considerando uma certa
atividade. Ora, vimos que a atividade tem algo de sempre indefinível na medida
em que ela é sempre micro “re-criadora”. Vimos que uma situação de trabalho é
2
Usamos esta expressão vulgar – “ir de mal a pior” – para substituir a que o autor utiliza – “de Charybde en
Scylla”. Trata-se de expressão idiomática que remete à mitologia grega (canto XII de Homero, na Odisséia,
acerca do périplo de Ulisses, retornando à terra natal, após a guerra de Tróia. A expressão evoca fugir de um
perigo (o monstro-turbilhão Charybde) para cair em outro pior (monstro Scilla) (NRT).
sempre – para a atividade – o que pudemos denominar “um encontro de
encontros”, um encontro de singularidades, de variabilidades a gerir. Numa
situação de trabalho, a atividade é sempre o centro desta espécie de dialética
entre o impossível e o invivível3.
Percebe-se, portanto, como é difícil delimitar exatamente o que podem
ser as competências da atividade em uma situação de trabalho, considerando
essas duas dificuldades. Vê-se como dificilmente se poderia delimitá-las,
definí-las, catalogá-las, avaliá-las. Pode-se, então, avaliar de imediato a
dificuldade que está em se apropriar de maneira realmente operacional do
conceito de competência, mesmo se, digo e repito: é legítimo examinar a
questão das competências, porque nenhuma atividade humana pode deixar de
lado a possibilidade de as pessoas engajadas numa operação responderem
positivamente e operarem com eficácia com vistas ao objetivo comum, em uma
situação mercantil ou não mercantil. Ninguém pode escapar a esta questão, mas
é preciso imediatamente avaliar a que ponto vai ser difícil dar um sentido
operacional à questão.
É justamente por essas razões que, em conversas anteriores, tive a
oportunidade de sugerir que existem três elementos presentes na noção de
competência e que não se articulam facilmente:
• existe algo que tem a ver com a apropriação de um certo número de
normas antecedentes, ou de elementos do “registro Um”. Dito de outra forma,
algo do âmbito do relativamente codificado, do relativamente transmissível, do
relativamente bem conceitualizado – e que evidentemente estrutura, enquadra
fortemente toda situação de trabalho;
• há um elemento diferente que é, ao contrário, o do domínio relativo
àquilo que uma situação pode ter de histórico e de incessantemente
(parcialmente, mas incessantemente) inédito – o que, evidentemente, é algo
inteiramente diferente;
• existe ainda um terceiro elemento, dado que nesta situação, justamente,
cada um é remetido a gerir o inédito: a pessoa é remetida a si própria, e
portanto remetida a escolhas. Uma dimensão de valores, incontornável, vem
cruzar ou se intercalar, ou se articular com as duas primeiras dimensões: este
terceiro elemento é, consequentemente, de uma natureza absolutamente
diferente.
3
Invivable, no original (N.T.).
que não são suscetíveis de serem colocadas, digamos, em uma mesma série, que
são “heterogêneas” e que são, de uma certa maneira “incomensuráveis”, isto é
que não podem ser comparadas.
Daí a idéia – mesmo se isso é forçosamente um pouco artificial – para avaliar
essa dificuldade, de mostrar que na noção de competências, elementos
heterogêneos que eu chamo de “ingredientes” se combinam: ingredientes, para
melhor mostrar que, como em uma boa mistura, é preciso um pouco de cada um
deles; mostrar que eles são diferentes uns dos outros, que a pimenta não é a
noz moscada, ou o gengibre, que é diferente; contudo, em uma boa culinária se
deve saber colocar uma pitada de cada um desses ingredientes.
Parece-me que um certo número de ingredientes devem então se articular
no agir em competência. Eu diria “agir em competência”, ao invés de na
competência, justamente porque competência não é uma noção simples e
homogênea.
Um certo número de ingredientes é necessário a todo agir em competência,
para cada pessoa, numa dada situação: é preciso insistir bem nisso. O que não
impede generalidades relativas no que vamos dizer, mas se queremos ser muito
precisos e não deixar escapar qualquer possibilidade de evoluções positivas, é
necessário considerar cada um em sua situação para “caracterizá-la” – em
tendência e com muitas reservas –por um certo perfil de ingredientes. É o que
eu gostaria de evocar agora. Como eventualmente poderíamos caracterizar
esses diversos ingredientes compondo o perfil de uma pessoa, o perfil de seu
tipo de “agir em competência” numa determinada situação?
4
Ver anexo ao capítulo 1 (NT).
5
Ver anexo ao capítulo 5 (NT).
6
Bobo, no original, enigmática forma de nomear um colega de trabalho, analisada no anexo ao capítulo 5.
Como em francês é uma expressão familiar como dodói, em português, optamos por ela (NRT).
7
Cidade francesa onde se localiza um grande centro de triagem ferroviário (NRT).
8
Ver capítulo 4 (NRT).
• por um lado, toda a importância do que chamei o “corpo-si”, porque a
presença no si9 do histórico da situação passa muito, nas relações humanas, por
todas as sensações, por tudo o que é registrado pelo corpo, pela memória, sem
que se pense realmente – o que, por isso mesmo, gera um problema muito
delicado, que é o do pôr em palavras esta segunda forma do agir em
competência, deste segundo ingrediente. Precisamente porque o “corpo-si” é aí
muito importante.
• vê-se também que é preciso um certo tempo, considerando que temos aí
o problema que chamei de temporalidade ergológica. Mas quanto tempo? Tudo
depende das situações e das pessoas. Para que este ingrediente se cristalize e
para que este “agir em competência” se constitua – esta forma que é
impregnação da história –, é necessário uma duração específica, tanto em
relação à pessoa quanto à situação.
O terceiro
9 ingrediente de
Soi, no original (NT). uma
competência: a capacidade
de articular a face
protocolar e a face
singular de cada situação
de trabalho.
É preciso tentar fazer circular permanentemente o caso típico e a pessoa –
ou o caso singular e a pessoa – ou o caso em sua singularidade. Mesmo que, para
tratar o caso, para tratar a situação, sejam utilizados recursos codificados,
aprovados, do lado do protocolo, estes devem ser ajustados permanentemente
ao que a situação tem de particular. Acho que se trata realmente de algo que
dá muito trabalho, pois este pôr em sinergia ou em dialética dos dois primeiros
ingredientes é um importante trabalho.
Já pudemos dar exemplos, principalmente no setor industrial. Mas isso é
muito característico de todos os tipos de situações de serviço ou de trabalho
social, por exemplo: seja nos guichês de banco ou no trabalho social, quando se
trata de orientar pessoas, seja no caso de jovens em uma Missão Local10, ou no
caso da Proteção Jurídica da Juventude, etc.
Vemos chegar até nós pessoas que se encaixam em determinados
quadros e é preciso conhecer esses quadros. “Quadros”, essa expressão
significa: o que é possível fazer para ajudar essas pessoas, que instituições são
pertinentes, em que quadro jurídico eles se encaixam, o que é possível ou
impossível fazer. São necessários conhecimentos para chegar a ser eficaz
(ingrediente 1). Mas isso deve ser colocado em dialética com o que se percebe
da pessoa, do jovem em questão. Ele mesmo pode corresponder a um perfil,
encaixar-se em certos quadros. Pode-se dizer: “é um jovem de tal grupo e que
vive em tal bairro, onde há um certo número de problemas que eu conheço”.
Poder dizer isto (ingrediente 2) é importante, mas não suficiente para lidar
com a pessoa singular, porque mesmo tais características não serão jamais
suficientes para ter um diálogo fecundo e real com a pessoa, com o jovem que
está face a você: um beneficiário de RMI11, uma pessoa em dificuldade.
Há um trabalho muito complicado que consiste em tentar resolver de
imediato, em estabelecer uma relação entre o tipo, definido abstratamente, e a
pessoa singular. Esta sinergia é uma verdadeira dificuldade, um importante
trabalho. É o ingrediente 3.
Vou tentar ilustrar isso com este esquema 5 abaixo, estas imagens um
pouco estranhas, dado que tais ingredientes não são de fácil expressão. Esse
esquema é a maneira como esses diferentes ingredientes foram representados
por Louis Durrive.
12
Baccalauréat, no original (NT).
a fazer e deve administrar a prescrição médica, é sem dúvida um pouco menos
implicada nesse encontro singular.
Quanto ao segundo ingrediente, coloquei ali o médico, embaixo, sob os
outros, porque seu trabalho não consiste em visitar o tempo todo as salas do
hospital. Consiste em prescrever e, em seguida, ver como a prescrição foi
recebida, acompanhar a evolução da doença, a terapêutica e o prognóstico, etc.,
mas ele tem uma relação com o paciente muito menos individualizada. Logo, ele
sabe muito menos sobre o paciente do que:
• a auxiliar de enfermagem, muito mais frequentemente confrontada com
o doente, por todos os serviços que ela presta, pela ajuda que ela dá à
enfermeira;
• e que a própria enfermeira, profissional que precisa ter um bom
conhecimento da pessoa que está de cama.
13
Milieu, no original (NT).
Logo, há uma dimensão de valores que chega aqui no agir em competência
– e que vai introduzir um espécie de lacuna, uma descontinuidade na
preocupação de avaliar as competências.
Como disse, esse pôr em sinergia não ocorre simplesmente, por conta
própria. É um trabalho que a pessoa deve demandar a ela mesma. É
verdadeiramente “um uso de si por si“, porque ninguém pode descrevê-lo nem
prescrevê-lo. É um importante trabalho.
E se é um trabalho essencial, a questão se coloca como para todo trabalho: o
que nos faz agir? Ora. o que nos leva a fazer este trabalho de pôr em sinergia,
ao menos em parte, está no que o meio de trabalho, portanto a organização do
meio de trabalho, pode eventualmente constituir para nós “nosso” meio –
parcialmente “nosso” meio.
O quinto ingrediente de
uma competência : a ativação
Se o meio de trabalho vale para nós, mais ou
ou a duplicação do potencial menos, como “nosso” meio de trabalho, vemos
da pessoa, com suas como isso favorece o pôr em sinergia, como a
incidências sobre cada pessoa, – na medida em que percebe que um
ingrediente.
pepino, uma complicação vai se constituindo –,
vemos como tal pessoa vai ao mesmo tempo
buscar:
• no saber – por exemplo, no saber sobre a instalação (se é uma instalação
industrial); ou no saber dos regulamentos ou dispositivos possíveis, para tentar
encaixar14 um jovem, segundo o exemplo precedente (ingrediente 1) ;
• na singularidade da situação (ingrediente 2): “é tal ou tal válvula que
causa problema”, ou: “é um jovem que tem essa ou aquela característica que
está presente aqui”. E ela faz o trabalho de colocar isso em relação para tentar
dar um encaminhamento positivo (ingrediente 3).
14
Caser, no original, no sentido de colocar, empregar (NT).
15
Coffreur, no original, operário armador, na construção civil (NT).
Vemos primeiramente que se trata “de “ajudar”, isto é de mobilizar um
valor, o que tem valor para ele: ele não é um intruso nesse canteiro, faz parte
dele, mesmo que não seja esse seu trabalho. Além disso, é preciso que seu
corpo e todos seus sentidos fiquem alertas, e que para ele isso leve a uma
síntese, para que ele se diga “sim”, para que, mesmo pensando em outra coisa,
aquele barulho tenha para ele um significado. É o que chamo um dos elementos
da reincidência do ingrediente 5 que foi representado no esquema 5 como um
triângulo contornando todos os outros, agindo justamente sobre todos os
outros.
Em outras palavras, a partir do momento em que um meio tem valor para
você, todos os ingredientes da competência podem ser potencializados e
desenvolvidos.
16
Ver anexo ao capítulo 5 (NRT).
17
Société Nationale des Chemins de Fer – Sociedade ferroviária nacional francesa (NT).
Consequentemente:
• devo aceitar minhas responsabilidades, porque sou eu quem devo assumir
as consequências se as coisas não funcionam, mas é por isso talvez que sou mais
bem remunerado que os outros;
• ao mesmo tempo, devo estimar em que, do ponto de vista da experiência,
do ponto de vista das relações com os colegas, os outros são talvez mais
evoluídos, enfim, mais “experts” que eu,
• e, permanentemente, ao mesmo tempo que assumo minha posição
hierárquica e minhas responsabilidades que criam desnivelamentos entre eu e
os outros, devo fazer um verdadeiro trabalho de contra-desnivelamentos, isto
é, restaurar igualdades ou superioridades parciais sobre tal ou tal campo,
sobre campos de competência que não são formalizados, que não são bem
conhecidos, que são as vezes invisíveis, mas que são absolutamente necessários
– e que podem, por exemplo, se referir ao ingrediente 2 ou ao ingrediente 3.