UBI, 2008
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O jornalismo e a construção do real:
Elementos para uma abordagem sociofenomenológica da teoria da notícia
Introdução
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diversificada.
Começa-se, assim, por apresentar uma visão genérica das teorias jornalísticas que
reflectem em torno da noção de «construção da realidade». Segue-se uma panorâmica de
conceitos sociofenomenológicos, seguida da sua aplicação ao campo jornalístico.
Reconhece-se, deste modo, na Fenomenologia Social, tal como foi tratada e elaborada em
especial pelo pensador austríaco Alfred Schutz e, posteriormente, por Peter Berger e
Thomas Luckman, uma panóplia de conceitos que nos ajudam a analisar os processos de
construção social da realidade entre os quais se destacam os de “tipificação”, “atitude
natural”, “senso comum”, “enquadramento” e “conhecimento social”.2 Adicionalmente
dá-se relevo a alguns desenvolvimentos traçados pela Etnometodologia que se articulam
directamente com o conceito de «atitude natural», como sejam os de «reflexividade» e
«indexicalidade»
Simultaneamente, admite-se a hipótese de esta abordagem solicitar um
refinamento crítico que passa por um diálogo com as tradições da crítica ideológica que
explicitamente fizeram referência ao campo jornalístico, como sejam as desenvolvidas
por Stuart Hall (1982; 1993, 2004), Chibnall (2001), Steve Hackett (1993) e, de uma
forma generalizada, pelos chamados estudos culturais.
Neste plano. reconhece-se que existem algumas investigações directamente
inspiradas pela Fenomenologia Social que autorizam a realização de um diálogo
produtivo em torno do conceito de “ideologia”.
Finalmente, assinala-se ainda o modo como o relato jornalístico vive numa
espécie de filho da navalha, uma ambiguidade constitutiva entre o velho e o novo, entre a
regularidade e a diferença, entre o estabelecimento da ordem e eminência do
acontecimento.
I
A construção social da realidade: uma abordagem genérica
Nos estudos sobre jornalismo, tem sido referida a existência de uma visão da
notícia que enfatiza o seu papel na construção da realidade. Este tipo de abordagem
permite, nomeadamente, indicar como a actividade jornalística e os enunciados
produzidos na sua realização não se limitam a reproduzir a realidade mas intervêm na
2
Apesar da omissão frequente da tradição sociofenomenológica quando é referido o conceito de enquadramento,
existem textos de extrema pertinência para a genealogia do conceito que explicitamente recorrem ao trabalho de
Alfred Schutz e seus seguidores Peter Berger e Thomas Luckmann. É o caso de Frame Analysis (Goffman), e Making
News (Tuchmann).
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construção social da mesma.
Nesta perspectiva, mais do que simples espelhos de uma realidade pré-existente,
os jornalistas e, consequentemente, os enunciados por eles produzidos intervêm
activamente na construção das condições e do modo em que a realidade é percepcionada.
Assim, “é impossível estabelecer uma distinção radical entre a realidade e os media que
devem reflectir essa realidade, porque as notícias ajudam a construir a própria realidade”
(Traquina, 2001: 28). Para o paradigma construtivista, o mundo social e político não é
uma realidade pré-determinada e rígida que os jornalistas reflectem. Os jornalistas não
são observadores passivos mas participantes activos na construção da realidade (cf.
Traquina, 2001: 30).
A realidade não pode ser algo completamente autónomo e distinto do modo como
os actores a interpretam, a interiorizam, a reelaboram e redefinem histórica e
culturalmente (cf. Grossi citado por Rodrigo Alsina, 1996: 29). Assim, são inúmeras as
mediações que condicionam o modo como o jornalismo cria e processa a informação
sobre a realidade, desde o schemata profissional – o modo particular como os jornalistas
vêm o mundo – passando pelos objectivos, a estrutura e a rotina das organizações onde
trabalham, as condições técnicas e económicas para a realização das suas tarefas e,
finalmente, os jogos de poder e os conflitos de interesse que estão inextrincavelmente
implicados na circulação social dessa informação (cf. Meditsch, 2002: 19).
A afirmação das notícias como construção social aparece normalmente
evidenciada como contraposta a uma «teoria do espelho». Argumenta-se que é
impossível estabelecer uma distinção radical entre a realidade e os enunciados noticiosos
que os reflectem já que as notícias participam activamente na construção da própria
realidade, graças a elementos como sejam a intervenção de uma linguagem que nunca se
afigura como neutral ou inocente, os aspectos organizativos e orçamentais que intervêm
decisivamente na representação dos acontecimentos ou, ainda, ao modo como os
jornalistas dispõem uma rede noticiosa graças à qual procuram obstar à imprevisibilidade
dos acontecimentos (cf. Traquina, 2002: 95; 2001: 28).
Neste sentido, há uma construção da realidade que é inerente à própria
perspectiva noticiosa, na medida em que as características do próprio trabalho noticioso o
impõem (cf. Altheide, 1976: 24; cf. Cook; 1998: 71). A realidade oferecida pelas notícias
é envolta pelos modos de conhecer típicos dos jornalistas e pelos modos específicos que
estes possuem de estruturarem o conhecimento através da linguagem. O que é
apresentado como factos pelas notícias são interpretações enquadradas pelos dispositivos
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noticiosos (cf. Ericson, Baranek e Chan, 1997: 19). Os jornais e a televisão não se
limitam a monitorizar os acontecimentos do mundo real. Constroem representações e
relatos da realidade que são configurados pelos constrangimentos impostos sobre si:
constrangimentos que emanam das convenções, ideologias e organização típicas dos
jornalismo e das burocracias noticiosas (cf. Chibnall, 2001: ix).
Este tipo de abordagem mina de forma considerável a crença universalmente
partilhada segundo a qual os jornalistas representam e reflectem a realidade, obstando a
um dogma de fé ainda enraizado na comunidade profissional (cf. Rohe citado por
Traquina, 2002: 96). Ainda, contrapõe-se não apenas à abordagem empirista da notícia
como reflexo da realidade como também aquelas outras
que enunciam uma distorção intencional das notícias, indiciando uma visão conspiratória
da produção jornalística, expressa numa manipulação consciente e intencional dos factos
levadas a cabo de acordo com interesses dominantes: “Nos estudos da parcialidade das
notícias, a teoria das notícias como espelho não é posta em causa; nos estudos que
utilizam a perspectiva das notícias como construção, a teoria do espelho é claramente
rejeitada” (Traquina:2002: 94)
As teorias que abordam as notícias como construção constituem um paradigma
que pode ser partilhado por duas visão diversas – a visão interaccionista e a visão
estruturalista – as quais podem ser analisadas como teorias autónomas que comungam,
todavia, diversos pressupostos de um mesmo paradigma. Na verdade, “ambas
conceptualizam as notícias como uma construção” (Traquina, 2002: 105).
Assim, numa visão mais interaccionista, enfatiza-se a existência e partilha de
uma cultura comum que permite o desenvolvimento de um campo jornalístico autónomo
(cf. Traquina, 2002: 106).
Nesta perspectiva, a abordagem interaccionista, com origem na Escola de
Chicago, enfatiza a descrição dos mecanismos pelos quais essa cultura se desenvolve,
afirma, legitima e protege nos quais se destacam (além de uma autorização legal, da
determinação de certos saberes comuns, da existência de carreiras e de instituições de
protecção dos diplomas profissionais) a existência de espaços de socialização onde
partilham uma filosofia e uma visão do mundo (cf. Fidalgo, consultado em 18 de Junho
de 2009). Assim, seguindo Everett Hughes (citado por Traquina, 2004: 18), o processo de
profissionalização origina grupos organizados, “dependentes de uma solidariedade
cerrada e dependentes dos seus membros constituírem um grupo à parte com um ethos
próprio”. É graças ao processo de profissionalização das pessoas envolvidas na
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actividade jornalística que é possível a emergência de um campo jornalístico autónomo
dotado de autoridade e de legitimidade para decidir da noticiabilidade dos
acontecimentos e problemáticas (cf. Traquina, 2001: 60). Assim, “a ênfase numa lógica
interaccionista implica uma perspectiva processual e relacional, uma perspectiva
dinâmica bem própria do interaccionismo e que coloca o acento tónico já não na
estrutura, mas na acção, já não no facto de que as coisas acontecem mas as pessoas agem
(Mac Donald, 1999 citado por Fidalgo, 2008.22).
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noticiosa que cubra a imprevisibilidade dos acontecimentos como elementos que
contribuem para a inevitabilidade dos processos de construção da realidade) e, por outro
lado, uma visão estruturalista que, pese embora, reconheça a estes elementos certa
importância, atribui a determinação final a factores estruturais relacionados com a
estratificação dos mecanismos de poder e de influência numa sociedade de classes
marcada pela existência de relações de poder e de dominação.
Directamente ligada a estas duas concepções, pode-se plasmar a existência de
duas abordagens distintas:
a) A primeira área de pesquisa, mais facilmente articulável com uma visão
estruturalista, diz respeito aos domínios sistémicos que interferem na produção
jornalística. Esta área de pesquisa é mais influenciada por estudos críticos e diz,
nomeadamente, respeito a mecanismos económicos e de propriedade, a mecanismos
políticos e de controlo e a orientações culturais e ideológicas.
b) a segunda área de pesquisa, melhor adequada a uma visão interaccionista, diz
respeito ao mundo do comunicador. Trata-se de um domínio de pesquisa e de
investigação que nasceu num universo predominantemente americano e que muitas vezes
esteve ligado a uma análise da interferência dos gatekeepers na passagem das notícias
entre os jornalistas e as audiências. Esta análise do comunicador evoluiu claramente no
sentido do seu refinamento. Se queremos entender a selecção e construção dos
enunciados jornalísticos, terá que se ter em conta factores como os procedimentos que os
jornalistas adoptam para identificar as suas histórias e seleccionar as suas potenciais
fontes, as rotinas estabelecidas assim como os mecanismos de socialização, de partilha de
ideologias e acervos de conhecimentos que informam as suas decisões (cf. Schibnall,
2001: 7).
Verifica-se, hoje, um certo consenso científico na aceitação da ideia de que as
notícias não reflectem a realidade social, antes activamente a constroem. Saperas (1993:
139) defendeu o estudo da notícia como forma de construção da realidade social como
“uma clara e eficaz possibilidade para se introduzir uma nova perspectiva no estudo da
profissão jornalística.” Assim, elementos como sejam o reconhecimento da dimensão
cognitiva, o estudo da objectividade do real e a análise da selecção exercida pelo
profissional da informação constituem, no âmbito das organizações emissoras, as
temáticas centrais que, para este autor, motivaram o interesse pela aplicação da
sociofenomenologia ao estudo da actividade comunicativa (cf. Idem, Ibidem).
Altheide (1985: 10) identificou uma linha de investigação desenvolvida sob a
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influência do interaccionismo simbólico, da fenomenologia e da etnometodologia que
enfatiza como o mundo social é construído (e reificado)3 através da comunicação. Se em
séculos anteriores os media reflectiam a força das instituições dominantes, na era
moderna “são a força dominante à qual outras instituições se conformam” (Altheide e
Snow, 1979 citado em Hakett, 1993: 108).
Da mesma forma, Tuchman (1978: 184) acredita que as notícias não espelham a
sociedade mas, antes, “ajudam a defini-la como um fenómeno social partilhado, dado que
no processo de descrição de um acontecimento, definem e moldam esse acontecimento”.
Molotch e Lester (1993: 40) repudiam explicitamente a concepção dos jornalistas como
“repórteres-reflectores de uma realidade objectiva, de acontecimentos reconhecidamente
importantes no mundo” e consideram que “acontecimentos são aquilo a que prestamos
atenção”. Assim, afirmam explicitamente que “nosso conceito não é um número finito de
coisas que «realmente aconteceram lá fora» e da qual se faz a selecção” (Idem, p.35).
Assim, “nós vemos os media a reflectirem não um mundo exterior mas as práticas
daqueles que têm o poder de determinar a vivência dos outros”. Logo, na abordagem dos
meios de comunicação de massa não se procura a realidade “mas os propósitos que estão
subjacentes às estratégias de criação de uma realidade em vez de outra” (Idem, p. 50).
Do mesmo modo, Hall (1982, citado por Hackett, 1993: 109) considera que a
realidade não pode ser entendida como uma dada série de factos: “Os mass media
definiam, não se limitando a reproduzir, «a realidade». As definições de realidade eram
sustentadas e produzidas através de todas aquelas práticas linguísticas (em sentido lato)
por meio das quais as definições selectivas do «real» eram representadas. Isso implica o
trabalho activo de seleccionar, apresentar, de estruturar e dar forma: não apenas a
transmissão de um significado já existente, mas o trabalho mais activo de dar significado
3
Apesar da palavra reificatio não aparecer em qualquer dicionário latino, deriva da contracção dos termos res e
facere e pode ser definida pela transformação física ou mental de algo numa “coisa”, que originalmente não era, ou
seja, a tendência a objectificar o que é dinâmico. Em suma, pode referir-se a «um tornar-se coisa» de algo que não é,
por direito, uma coisa. Consiste, pois, em atribuir ilegitimamente uma facticidade, uma fixidez, uma externalidade,
uma objectividade, uma impersonalidade, uma naturalidade, em suma, uma «coisidade» ontológica julgada
inapropriada (Vanderberghe, vol. I, 1997: 25-28). Nesse sentido, a alusão à reificação do mundo social pela
comunicação significará que este é apresentado de um modo inquestionado e evidente, ignorando-se as dinâmicas
sociais e culturais bem como a participação dos agentes sociais que deram origem à sua constituição. O conceito de
reificação da realidade social também foi analisado por Berger e Luckmann. O mundo reificado, é por definição,
desumanizado e a reificação constitui o grau extremo do processo de objectivação pelo qual o mundo objectivo perde
a inteligibilidade que possui como empreendimento humano e se fixa com uma facticidade não humana, não
humanizável, inerte. Para Ponte, “ a reificação é um processo particularmente visível nalgum discurso jornalístico, em
particular em textos de fait divers ou de notícias de parágrafo único, que fragmentam e isolam ocorrências dos seus
contextos e das dinâmicas intersubjectivas que os organizam (cf. Ponte, 2004: 61). Apesar de se admitir que os
processos de reificação sejam mais visíveis nestes enunciados, acreditamos que os processos de tipificação e de rotina
que adiante descrevemos permitem que a reificação se faça sentir mesmo em enunciados mais complexos. No limite é
possível pensar como Schutz faz nos manuscritos bergsonianos (1982) que todo o processo simbólico comporta uma
certa dose de reificação.
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às coisas”. Finalmente, para Benett (citado por Hackett, 1993: 109-110) urge “eliminar
fundamentalmente a distinção entre o domínio da realidade social e o domínio das
representações, um ponto que se aplica não só aos media mas também à linguagem. A
significação é um processo que constrói activamente mundos cognitivos, não se
limitando a reflectir uma realidade pré-existente”.
No jornalismo, haverá, assim, que ter em conta que um acontecimento não é uma
realidade objectiva e exterior e alheia ao sujeito que o percebe. A realidade não pode ser
completamente desligada do modo como os actores a interpretam, interiorizam,
reelaboram e definem histórica e culturalmente. Mesmo que se dê a percepção directa do
facto por um jornalista, “este siempre está interpretando la realidad de acuerdo con su
enciclopedia” (Rodrigo Alsína, 1996: 17). O mesmo é dizer, de acordo, com o seu acervo
de conhecimentos socialmente adquiridos, isto é o corpo de conhecimento socialmente
partilhado que adquire no decurso da sua experiência quotidiana.4
Desta forma, “no ritual de passagem do facto à notícia engendra-se uma nova
realidade que, correspondendo a novas representações, serve para enfeitiçar a realidade
original” (Oliveira da Silva, 1998: 14). Na verdade, o mundo relatado na notícia é fruto
de actividades de categorização e não de um simples acto de nomeação da realidade
como se ela estivesse pronta para ser designada. O relato jornalístico não é um acto de
descrever ou dizer de forma directa, determinada e precisa um facto empírico acontecido
no mundo exterior, mas é um acto de apresentação de uma realidade que se constitui
inclusive com a participação activa do leitor (cf. Oliveira da Silva, 2006: 8).
É evidente, assim, que, a partir da selecção de aquilo que se considera como facto,
toda a organização discursiva da notícia implica um amplo manancial de estratégias
enunciativas que produzem o enunciado noticioso num contexto de manipulações,
limitações e constrangimentos cognitivos, ideológicos, organizacionais e outros,
incluindo a própria evidência da organização dos significados inerentes a qualquer acto
de enunciação: se aquilo que se designa por construção da realidade e por construção de
significado já começou antes, quando se destacou uma certa parte do mundo, as
diferentes tonalidades que o quadro simbólico (frame) aplicado ao evento pode adquirir
continuam a desenvolver-se ao longo da concepção do texto, das expectativas da sua
recepção, etc. Assim, toda a construção de um significado objectivo (tal como a produção
de uma notícia) é um processo histórico, social e cultural que resultou da intervenção de
4
Note-se que os termos “acervo de conhecimento socialmente adquiridos “ tal como aqui se utilizam devem
considerável influência à obra de Schutz. Refere-se a um reportório de conhecimentos disponíveis cuja origem é
fundamentalmente social
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protagonistas da realidade social que nele participaram e de processos cognitivos que
estão associados a dinâmicas sociais e culturais.
Algumas das questões que se evidenciam quando se aborda esta problemática são
as seguintes: quais são as dinâmicas e interacções que têm lugar no campo jornalístico
que originam uma certa relação com a realidade? Quais os esquemas cognitivos que são
postos em jogo para estabelecer uma certa regularidade na multiplicidade de
acontecimentos que se verificam na experiência de um mundo em mudança? Como é que
os jornalistas abordam a realidade, de forma a construírem um significado comum
partilhado por todos? Qual o impacto destes esquemas e destas dinâmicas no processo
que se designa genericamente como construção social da realidade? Para responder a
estas questões sugere-se desenvolver o seguinte percurso: a) aprofundar uma visão
construtivista da notícia, recorrendo a fundamentos sociofenomenológicos, seguindo um
caminho que tem a sua origem em Alfred Schutz, Peter Berger e Thomas Luckmann, mas
que prosseguiu contemporaneamente, ecoando de forma mais ou menos directa em
muitos trabalhos significativos para os estudos jornalísticos; b) identificar, recorrendo
prioritariamente a esta teoria, as práticas sociais, cognitivas e discursivas que, no
jornalismo, contribuem para a construção social da realidade e para a ordenação
significativa do mundo.
Neste percurso, recorre-se a alguns contributos teóricos para uma leitura
sociofenomenológica dos efeitos das notícias na construção social da realidade, usando,
no seguimento de alguns desenvolvimentos já previamente efectuados, os conceitos de
«mundo da vida», «reflexividade e indexicalidade», «atitude natural», «tipificação» e
«enquadramento», todos provenientes da sociofenomenologia ou de alguns
desenvolvimentos teóricos por ela fundados ou directamente influenciados. Fazem-se
algumas alusões aos conceitos de “ideologia” e de “hegemonia” aflorando eventuais
pontes entre uma perspectiva sociofenomenológica e uma leitura crítica da realidade
mediática. Julga-se possível com esta abordagem introduzir alguns elementos que
permitam superar, ao menos parcialmente, a dicotomia entre as visões que assumem uma
orientação mais influenciada pela sociofenomenologia e pelo interaccionismo e as visões
que assumem uma orientação de pendor mais estruturalista. Com efeito, a abordagem dos
estudos culturais, donde provêm alguns dos elementos teóricos que fundamentam a
segunda abordagem (mais estruturalista), dispõe de uma intencionalidade crítica que lhe
permite estar atenta aos fenómenos que se traduzem, no campo da notícia, na relação
entre os jornalistas e os agentes sociais titulares de poder, bem como ao papel que estes
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podem ter na sintonia entre os valores noticiosos e a consolidação dos valores
ideológicos dominantes. Por sua vez, uma abordagem de outro tipo, mais interaccionista,
atravessada pela influência teórica sociofenomenológica através das obras de Schutz,
Berger e de Luckmann, pode introduzir uma maior atenção a factores especificamente
relacionados com os processos de construção do conhecimento na vida quotidiana,
relacionando tais processos com as práticas de representação e categorização dos
acontecimentos pelos agentes sociais directamente envolvidos, isto é, no caso, os
jornalistas. Este percurso não impede aliás, a existência de matizes entre as duas
perspectivas teóricas que adiante aprofundaremos. Assim, Tuchman, influenciada pela
sociologia do conhecimento, pela perspectiva etnometodológica e sociofenomenológica,
não descura os elementos relacionados com a estratificação do acesso e do poder.
Paralelamente, Stuart Hall, não descura a importância da codificação levada a efeito
pelos profissionais de Comunicação, a qual implica a intervenção de competências
técnicas, ideologias profissionais, conhecimento institucional, assunções sobre a
audiência, etc. (cf. Stuart Hall, 2001, pp. 51-61).
II
11
Comunicação e Sociedade na Perspectiva sociofenomenológica
12
époché da atitude natural. “Pode-se arriscar a sugestão de que o homem no mundo da
atitude natural também usa uma époché, obviamente diferente da do fenomenólogo. Ele
não suspende a crença no mundo exterior e nos seus objectos, pelo contrário, suspende a
dúvida na sua existência. O que ele põe entre parênteses é a dúvida de que o mundo e os
seus objectos possam ser outra coisa diferente daquilo que lhe aparece” (Schutz, 1962:
229).
Um elemento fundamental da abordagem sociofenomenológica é a sua insistência
na comunicação enquanto elemento que constitui, estrutura e torna possível a própria
sociabilidade quotidiana. O mundo da vida é um mundo de evidências e de significados
comuns intersubjectivamente partilhados. É a comunicação que torna possível a
estruturação de contextos de significado objectivos e independentes da experiência
subjectiva dos vários agentes sociais. Alfred Schutz interroga-se, a propósito: “como é
que as múltiplas interpretações particulares que compõem a concepção natural do mundo,
em qualquer comunidade natural, convergem para uma visão comum?” (Schutz, 1975:
99).
Como se constrói uma realidade social coerente a partir de um universo plural,
onde convivem diversos sub-universos de significado e sujeitos que se relacionam com o
mundo a partir de experiências, situações biográficas e relações com a realidade
fundamentalmente diferentes? Globalmente, este é o problema maior que a constituição
de uma sociabilidade comum implica. Tal problema, no plano da investigação
empreendida por Schutz, integra o conceito de transcendência, a qual ganha um
significado particular: “Tudo o que se apresenta a uma pessoa como lhe sendo alheio,
como não sendo parte de si, deve ser visto como uma realidade que a transcende (cf.
Schutz & Luckmann: 1989: 103). Deste modo, “o conteúdo fundamental da
transcendência funda-se na distinção construída na experiência entre o que nos é próprio
e o que é Outro” (Schutz & Luckmann, 1989: 103). Schutz e Luckmann referem, a
propósito, a existência de pequenas, médias e grandes transcendências. As primeiras
dizem respeito à experiência das fronteiras de natureza espácio-temporal. As segundas
referem-se especialmente ao entendimento com Outrem: por muito que estejamos
próximos, o mundo de Outrem transcende o meu a não ser que nos transformássemos
numa e na mesma pessoa. As grandes transcendências designam especialmente
experiências cognitivas e sub-universos de significado exteriores à vida quotidiana: a
contemplação teorética, o sonho, o êxtase, a experiência mística, a experiência religiosa,
entre outras (cf. Schutz & Luckmann, 1989: 120-126). Em face de todas estas
13
experiências da transcendência que ultrapassam o meu posicionamento espácio-temporal
imediato, só nos podemos referir a um mundo como «nosso» porque existe comunicação.
É graças à comunicação que posso olhar para o mundo de um modo em que este se
apresenta a si próprio como completo, constituído e tido-por-adquirido (taken-for-
granted) (cf. Schutz, 1967: 3).
A ordem social, a construção de uma certa regularidade em torno de significados
tidos por adquiridos implica que exista um entendimento mínimo em que todos os
actores possam criar uma disposição comum para perceberem os significados de uma
maneira relativamente idêntica a fim de tornar possível a sua partilha. A comunicação
possibilita a constituição de universos de significado comuns onde é possível
compreender e ser compreendido graças a um processo de geração recíproca de
expectativas no decurso do qual se constrói uma ideia partilhada de realidade social. O
mundo da vida Schutziano é, assim, um mundo de significados intersubjectivamente
partilhados, na base dos quais se funda, através da comunicação, a sua objectividade.
A comunicação na vida quotidiana é assegurada, em larga medida, pela
linguagem: é através desta – enquanto elemento fundamental da socialização – que
apreendemos o mundo de forma pré-ordenada, partilhamos a nossa experiência de
relação com o mundo – e adquirimos capacidade própria de interferir no ordenamento de
sentido do mundo. A linguagem estabelece a experiência significante do “aqui e agora”
da realidade quotidiana mas permite aceder a outras transcendências, sejam elas a
subjectividade de Outrem, outros universos de representação simbólica como a arte, ou
ainda outras realidades múltiplas que ultrapassam a vida quotidiana como sejam, por
exemplo, as experiências filosóficas, científica, religiosa, entre outras. Desenvolve-se,
deste modo, uma possível abordagem presente sucessivamente em muitos dos trabalhos
por nós apresentados segundo a qual a “força dos media reside na sua capacidade de re-
territorializar as culturas e os consumos, as mensagens e as referências, conferindo-lhe
um cunho de quotidianeidade, e naturalidade. Sob o ponto de vista temático, os media
lidam com realidades múltiplas ao suscitarem a interacção entre o dia a dia e outros
campos de significado finitos. Na síntese do quotidiano, procede-se a uma
descontextualização de imagens que ajudam a formar e a transformar a percepção
quotidiana das sociedades. De um certo modo, reduz-se a possibilidade dos
acontecimentos mas simultaneamente abrem-se espaços que alargam os horizontes do
quotidiano” (ver Correia, 2006). No mesmo sentido, Eduardo Meditsch, escreve quando
procede à delimitação entre jornalismo e ciência: “É o facto de operar no campo lógico
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da realidade dominante que assegura ao modo de conhecimento do jornalismo tanto a sua
fragilidade quanto a sua força enquanto argumentação. É frágil enquanto método
analítico, uma vez que não se pode descolar de noções pré-teóricas para representar a
realidade. É forte na medida em que essas mesmas noções pré-teóricas orientam o
princípio da realidade do seu público, nele incluindo cientistas e filósofos quando
retomam à vida quotidiana vinda de seus campos finitos de significação. Em
consequência, o jornalismo será forçosamente menos rigoroso do que qualquer ciência
formal, mas em compensação também será menos formal e esotérico ” (Meditsch, 2002:
p. 15). O jornalismo surge, nesta reflexão, como um espaço de sintonia com a linguagem
quotidiana que permite relacionar o mundo da vida com múltiplas províncias de
significação. Ao fazê-lo contribui para superar a experiência de estranheza que
acompanha o contacto com as referidas transcendências. Simultaneamente, abre o espaço
da quotidianeidade a uma visão que vai além dela própria. 5
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natural supõe uma premissa de confiança na permanência das estruturas do mundo.
Confia-se em que o mundo tal como tem sido conhecido permanecerá e que o acervo de
conhecimentos obtidos formado pela experiência continuará a preservar a sua validade
fundamental (cf. Schutz e Luckmann, 1973:7). Tal implica um padrão organizado de
rotina apreendido a partir do conhecimento de “receitas” e comportamentos típicos
(Schutz, 1975 b: 94-95). Surge assim o conceito de “tipificação” como um modo de
classificação em que são tidas em conta certas características básicas para a solução das
tarefas práticas que se apresentam aos actores. Schutz refere-se, a propósito, a esquemas
interpretativos que são organizados de acordo com as experiências do nosso passado que
se apresentam em configurações de sentido do tipo “o que já se sabe”. (cf. Schutz, 1967:
84). Estas idealizações fornecem quadros típicos que estruturam uma familiaridade típica
geral. Na tipificação, “o contexto de significado subjectivo, como instrumento foi
abandonado. Foi substituído por uma série de contextos de significado objectivos,
altamente complexos e interrelacionados de modo sistemático. Como resultado disso, dá-
se o anonimato do contemporâneo, na proporção directa do número e da complexidade
desse contexto de significado (…) Tal síntese de reconhecimento não apreende a pessoa
única conforme ela existe dentro do seu presente vivo. Ao contrário, figura-a como
sempre a mesma e homogénea, sem levar em conta todas as mudanças e todos os
contornos definidos que fazem parte da individualidade.” (Schutz, 1967: 184).
Na relação com o mundo da vida social, usa-se a tipificação, entendida como uma
classificação em que são tidas em conta certas características básicas para a solução das
tarefas práticas que se apresentam aos actores. A percepção própria do senso comum é
efectuada com base em tipos. As tipificações fazem parte das antecipações e
planeamentos que se empreendem na vida quotidiana porque implicam um certo estilo
que Schutz classifica de “pensar como sempre.” São esquemas cognitivos que dependem
de dois tipos de idealizações: “a de que o que assim foi, assim será” e a de que “posso
fazer isso de novo.” Ou seja, em face de cada nova situação, o actor agirá do mesmo
modo partindo do princípio de que as coisas se apresentarão idênticas àquelas que se
apresentaram da última vez e que, do mesmo modo, os efeitos obtidos por acções
idênticas serão, também eles, idênticos
16
reportório de conhecimentos disponíveis cuja origem é fundamentalmente social.
Da tipificação ao frame
17
ordens da realidade, cada uma das quais com o seu estilo de existência pessoal e
separado, chamadas por James de sub-universos. Entre elas contam-se o mundo dos
sentidos ou das coisas físicas tal como são experimentadas pelo senso comum; o mundo
da ciência; o mundo das relações ideais, o mundo dos “ídolos da tribo”; os mundos
sobrenaturais como o céu e o inferno cristãos; os numerosos mundos da opinião
individual; e, finalmente, os mundos da alegre loucura, também infinitamente vários”
(Schutz, 1962: 204).
Esse esquema com que se delimita uma província de significado finito, este
conjunto de premissas assumidas que permitem constitui-la dizendo quais as regras que
funcionam para a sua delimitação e o que pode ou não fazer dela parte, viria a ser
detalhadamente analisado por Goffman.
18
noções afins que permitem esclarecer o conceito de frame. Na Teoria da Comunicação e
na Antropologia, surgiram abordagens sobre a ideia de frame, com Gregory Bateson e
Ervin Goffman (cf. Bateson, 2000; cf. Goffman, 1986)
Para Erving Goffman, os frames são construções mentais que permitem aos seus
utilizadores localizar, perceber, identificar e catalogar um número infinito de ocorrências
concretas (Goffman, 1986: 21). Assim, frames são, mais ou menos, elementos básicos
que governam os acontecimentos sociais e o nosso envolvimento subjectivo neles (cf.
Goffman, 1986: 10). O significado de muitas situações verificadas na actividade
quotidiana depende de um conjunto finito e fechado de regras que se designa por frame.
Tentamos perceber os eventos e situações com enquadramentos que nos permitam
responder à pergunta: “o que é que está a acontecer aqui?” (cf. Porto, 2004: 78). Assim
frames seriam os princípios básicos de organização que orientam os eventos (Goffman,
1986: 11). São afinal esquemas de interpretação graças aos quais determinados
acontecimentos aos quais prestamos atenção são tornados visíveis e organizados.
III
Jornalismo e objectivação do significado
19
Depois da reavaliação produzida ao longo dos anos 60 e 70 relativa à teoria dos
efeitos limitados e que percorre quer a pesquisa empírica americana quer a teoria crítica
europeia (cf. Saperas, 1993: 25), conclui-se que a suposta impotência dos meios de
comunicação se traduzia afinal num erro fundamental que consistia em ver estes efeitos
apenas sobre o ponto de vista da sua capacidade persuasiva a curto prazo. Observou-se a
existência de um conjunto de efeitos que não podiam ser avaliados enquanto integrados
nos processos de persuasão, mas que são decisivos ao nível da distribuição do
conhecimento e da construção social da realidade. Nessa medida, tomou-se por adquirido
que os media influem decisivamente nos “processos pelos quais qualquer corpo de
conhecimentos chega a ser estabelecido como realidade” (Berger e Luckmann, 1973: 13-
14). Desta forma, os media surgem inseridos numa rede complexa de relações
institucionais, actuando como construtores da realidade social, na medida em que tornam
visíveis e enquadram um conjunto de matérias que passam a ser socialmente partilhadas
(cf. Penedo, 2003: 28).
Se a comunicação é determinante para a percepção da intersubjectividade do
mundo da vida, então a construção social da realidade é um processo simbólico, o que,
num universo mediatizado, se torna ainda mais evidente. Os seres humanos agem cada
vez mais em relação à realidade com base no significado que lhe atribuem. A atribuição
pública de significado provém, hoje em dia, em grande parte, de processos levados a
efeito pelos media. Os processos de mediação permitem a ultrapassagem das diversas
subjectividades individuais e das diferentes formas de transcendência, orientando os
actores sociais na constituição da experiência comum e partilhada que temos do mundo.
Os acontecimentos são conhecidos graças aos mass media e constroem-se na prática
discursiva por eles desenvolvida. A constituição de significados objectivos
intersubjectivamente partilhados – um elemento central da análise sociofenomenológica
– só pode ser explicada cabalmente nas sociedades contemporâneas se tivermos em conta
os processos de mediação institucionalizada desempenhados pelo jornalismo enquanto
instituição social. Reconhecendo a natureza essencialmente fragmentada da experiência
quotidiana, o jornalismo desempenha um papel ainda mais importante: à medida que as
sociedades modernas ficam mais marcadas pelo pluralismo, mais os media têm que
atender a um domínio cada vez mais vasto de subsistemas. A organização noticiosa é uma
instituição que permite a obtenção, armazenamento e disseminação dos mais variados
tipos de informação de centenas, senão milhares de formações sociais e culturais (cf.
Ericson, Baranek e Chan, 1987: 15).
20
A intersubjectividade, na qual se encontra a génese do sentido comum dos actos
sociais exige, na sociedade contemporânea, o reconhecimento da acção dos media. Neste
sentido, o processo de construção da realidade passa, em larga medida, pela prática
produtiva desenvolvida pelo jornalismo (cf. Rodrigo Alsina, 1996: 30). A imagem que os
media constroem da realidade é resultado de uma actividade profissional de mediação
praticada por uma organização que se dedica basicamente a interpretar a realidade social.
21
experiência directa – ao mesmo tempo que fornece mapas de significado que permitem a
interpretação desses dados (cf. Penedo, 2003: 38).
22
temporais.
Esta concepção remete-nos para a distinção entre “Knowledge About” e
“Knowledge of”. Enquanto o primeiro se define como “formal e analítico, sistemático e
científico, cumulativo e exaustivo”, o segundo, de que faz parte a notícia, define-se como
“não sistemático, fragmentado e enraizado no senso comum partilhado por uma
comunidade”(Saperas, 1993: 23). O segundo parece, de certa forma, ligado ao instinto e à
intuição (Berganza, 2000: 360). O jornalista é, potencialmente caracterizado por um
interesse eminentemente prático, e pela suspensão da dúvida na realidade e na
permanência do mundo percepcionado (cf. Schutz, 1974: 73).
As notícias são um conhecimento em primeira-mão, mais instintivo e baseado na
familiaridade do que o conhecimento científico. Assim, enquanto a ciência pode ser
traduzida em linguagem comum, o jornalismo é conhecimento imediatamente formatado
como linguagem comum. Enquanto um cientista – mesmo aquele que trabalha com a
realidade social como o sociólogo – é um pensador que pode propor os problemas
epistemológicos do seu próprio trabalho, o jornalista “ é um homem de acção que deve
produzir um discurso com as limitações do sistema produtivo no qual está inserido.” (cf.
Rodrigo Alsina, 2006, p. 38). Como recorda Tuchman “ao contrário dos cientistas
sociais, os jornalistas têm um reportório limitado com o qual definem e defendem a sua
objectividade (...) o cientista social é um “pensador”; o jornalista, “um homem de
acção”(...) o cientista social tem que ocupar-se da análise epistemológica reflexiva(...); o
jornalista não (....). O processamento das notícias não deixa tempo disponível para uma
análise reflexiva” (Tuchman, 1993: 76).
Um dos elementos desta epistemologia do concreto é a sua focalização em
elementos isolados, por exemplo acontecimentos discretos, em detrimento de temas
marcados pela continuidade. Graças a este imperativo pragmático, os jornalistas
funcionam, pois, como “bricoleurs” que apreendem a realidade em pequenos mosaicos,
com recurso a saberes práticos, em contradição com os teóricos que se debruçam sobre as
grandes regularidades, procurando discernir causas e efeitos (cf. Phillips, 1993: 329). Tal
como quais quaisquer outros agentes sociais que, na sua relação com a vida de todos os
dias, recorrem a uma atitude pragmática e utilitária, o jornalista, desafiado pelo fluxo dos
acontecimentos aos quais é obrigado a conferir sentido, também é chamado a aplicar uma
lógica do concreto, a agir e a pensar de modo instintivo e decidido, descurando a reflexão
ou o recurso ao conceito em detrimento da atenção ao pormenor. A estrutura noticiosa é
relacionada com a apresentação de factos discretos e descontextualizados marginalizando
23
elementos da realidade social que não caibam num esquema linear de princípio, meio e
fim. Prefere-se um acontecimento cujo princípio, meio e fim sejam susceptíveis de ser
narrados do que um “assunto” que implica considerações de natureza analítica e
conceptual, eventualmente tidas por abstractas. “Isso é precisamente o métier do
jornalista – aprender a realidade em pequenos pedaços” (Phillips, 1993: 329). Assim, a
bem conhecida preferência por uma acção ou acontecimento simples de descrever ou de
visualizar significa que a cobertura de alguns fenómenos colectivos de natureza
disruptiva – um motim, por exemplo – se traduz muito provavelmente por enfatizar a sua
violência em detrimento das causas e de outras informações de natureza substantiva
relativas ao pano de fundo que o acontecimento se desenvolve (cf. Hartmann and
Husband 1973: 274).
Com efeito, as rotinas do trabalho jornalístico “estão mais orientadas para a
cobertura e tratamento do que é pontual e episódico, do que para o que se processa ao
longo do tempo” (Correia, 1997: 147). Deste modo, “as poucas tentativas para descrever
um tema com mais aprofundamento são geralmente desprovidas de sistematicidade e
pouco incisivas (...) Aquilo que geralmente é transmitido ao público é a localização dos
acontecimentos, os indivíduos que nele estão envolvidos e pormenores como as
designações geográficas, os nomes das personagens públicas, de indústrias, etc. Com
frequência, estes elementos ocupam, automaticamente, o primeiro lugar na memória dos
destinatários, enquanto as causas dos acontecimentos permanecem em fundo. O que daí
resulta é uma memória fragmentada, cheia de pormenores isolados e a que falta o
contexto” (Findhal e Hoijer cit. in Wolf, 1987: 171). As notícias são uma forma de
comunicação que encoraja o que Barthes classificou como a “miraculosa evaporação da
história” dos acontecimentos. Quando transmitidos como notícias os acontecimentos
tendem a ser despojados do contexto histórico que lhes dá significado. O tempo do
trabalho noticioso, incluindo cobrir uma história diferente cada dia, impõe uma ênfase
nos acontecimentos e não nos grandes temas. Os temas exigem explicações analíticas do
mundo quotidiano enquanto experiência socialmente estruturada. Temas como “o
racismo ou o “sexismo” implicam uma descrição de processos sociais que envolvem
relações entre instituições e problemas sociais enquanto o trabalho jornalístico enfatiza o
individual, o acontecimento discreto susceptível de ser descrito em termos de princípio,
meio e fim (cf. Tuchman, 1978: 134).
Um elemento típico da atitude natural é a simplificação: a notícia tem que ser
facilmente assimilada e facilmente compreendida por leitores com competências muito
24
diversificadas. A simplificação responde como uma adaptação às necessidades percebidas
da audiência que tendem a dicotomizar a realidade, facilitando a apresentação dos
acontecimentos de um modo dramático e personalizado. Graças à sua identificação com o
sentido popular, o jornalista esforça-se em localizar quais os temas, pessoas e interesses
que se revelam mais apelativos para os consumidores de informação (Dader, 1983: 154).
Simultaneamente, tenta descobrir as formas de tornar a sua mensagem mais acessível,
mais conforme às próprias competências linguísticas e culturais dos membros da
audiência, que funcionariam como menor denominador comum. Nesta perspectiva, vale a
pena recordar uma descrição (crítica) do «jornalês»: “o produtor de informação (...)
suprimirá todos os dados susceptíveis de desviar o futuro leitor dos elementos narrativos
«essenciais». Mas, melhor e mais importante, preferirá os sinónimos com menor número
de caracteres, reduzirá o seu vocabulário às significações de base da sua língua materna
(...), abolirá do seu texto toda a polissemia, preferirá o ponto final e a vírgula a formas
mais complexas de pontuação, produzirá – mesmo artificialmente – parágrafos
destinados a decompor em curtos «tempos» a sucessão de movimentos de leitura”
(Mendes, 1985:81). Algumas características da escrita noticiosa são óbvias: peças
escritas no pretérito perfeito, títulos no presente, parágrafos curtos, frases contendo não
mais de vinte palavras e o máximo uso possível de palavras curtas (cf. Tuchman, 1978:
106). Nesse sentido, se compreende esta observação de E. B. Phillips: “Na sua melhor
forma, o «jornalês» exprime-se de uma forma viva através da voz activa e caracteriza-se
pela concisão, pelo realismo gráfico e pela criação de ambientes. Os jornalistas utilizam
palavras concretas e a descrição detalhada para transmitir a sensação de que «se está ali»:
o realismo gráfico é a marca distinta do «jornalês». O realismo jornalístico baseia-se na
precisão dos pormenores e das particularidades concretas (…) Para atingir este objectivo,
o repórter interpreta a acção humana através da selecção de detalhes dela extraídos, em
vez de tecer comentários acerca da mesma” (Phillips, 1993:327).
A organização dos elementos da notícia, por uma ordem de importância
decrescente, elemento fundamental da identidade deste género, a introdução do parágrafo
universalmente conhecido por lead, o uso de uma espécie de escrita branca, minutada que
agradasse a todos os clientes, as exigências colocadas para assegurar a agradabilidade do
relato como a utilização da frase curta e concisa, a necessidade de evitar ou abusar dos
advérbios de modo, por dificultarem a leitura, o recurso aos verbos na voz activa que
conferem ao jornalismo uma "personalidade própria" são orientações na criação da
narrativa que se devem ter por culturais e não naturais (cf. Bird e Dardenne, 1993: 265).
25
A linguagem jornalística surge, de acordo com esta abordagem como uma
linguagem pouco consentânea com a sensibilidade periférica, estando mais sintonizada
com os padrões de socialização consensualmente aceites. Responde a uma necessidade
de colocar ordem que obedece a vários imperativos: a) por um lado, simplificar o
trabalho quotidiano do jornalista, o que é uma necessidade empresarial e burocrática; b)
originar um produto agradável e apelativo o que muitas vezes implica a redução da
complexidade e a necessidade de proporcionar uma explicação simples, consentânea com
a vida quotidiana das audiências; c) proporcionar coordenadas que permitam a
compreensão de um mundo crescentemente pluralista e fragmentado. Estes imperativos
podem constituir-se como um impedimento à compreensão de realidades mais dinâmicas,
instáveis e plurais que constituam um desafio aos esquemas de classificação dominantes.
Neste sentido, o discurso dos media constitui-se como uma fonte de conhecimento acerca
do que é consensualmente adquirido e do que se entende como um desvio (cf. Cohen and
Young, 1973: 342). Neste sentido, parece-me importar realçar a pesquisa sobre o
jornalismo televisivo como lugar de referência, um trabalho que colheu uma colaboração
muito interessante com a investigação brasileira: “o jornalismo, como uma forma de
conhecimento, tem necessidade de procurar o mundo menos hostil: é a função de
familiarização”(Vizeu e Correia, 2008: 22). Dentro de um contexto de dados iniciais e
ainda em análise, estas pesquisas efectuadas em colaboração, propõem-se apontar para o
jornalismo como um lugar de referência que tem como preocupação a redução da
complexidade em sociedades cada vez mais fragmentadas e plurais (cf. Vizeu, Correia,
2007).
26
circunstâncias históricas, sociais, existenciais e culturais que estiveram na sua origem. Os
enunciados portadores de significado apresentam-se despidos da sua historicidade, na sua
auto-evidência, como algo tido por adquirido, isto é esse significado não é objecto de
questionamento nomeadamente ao nível dos processos de numerosa ordem que o
originaram. Os enunciados são apresentados «em si», omitindo-se as circunstâncias de
enunciação que originaram uma determinada representação: constrangimentos e
limitações organizacionais, sociais, culturais e outros. Altheide (1976: 24) recorda que,
no processo de construção da notícia, os acontecimentos são retirados das circunstâncias
e significados circundantes e familiares para serem apresentados num contexto diferente
como um telejornal. Neste sentido, a produção de uma notícia, a transformação de um
acontecimento em notícia, implica a sua descontextualização e consequente
«transformação». As empresas jornalísticas são instituições que produzem diariamente
milhares de notícias que possibilitam às pessoas o acesso a um mundo que é cada vez
mais complexo. Dentro dessas organizações, a realidade é descontextualizada e
recontextualizada de acordo com as regras do campo jornalístico.
27
Desse modo, os significados sociais estão em constante construção e reconstrução, ao
mesmo tempo em que se reportam a regras tácitas de “comunidades de sentido” e a
“acordos compartilhados”. Garfinkel (1967) usa os termos indexicality e indexical
expression, retirados de Yehoshua Bar–Illel. Estes termos traduzidos em português como
indexicalidade ou indicialidade e, consequentemente, como expressão «indexical» ou
6
«indicial» referem-se ao facto de um sinal poder ter um significado diferente em
diferentes contextos.
6
Os tradutores de Gaye Tuchman optaram pela expressão “indexicalidade” enquanto os de Giddens pela expressão
indicialidade. Ver Tuchman, 2001; e Giddens, 1996.
28
facto sem explicar como aquele facto foi produzido isto é, como um pormenor
considerado não problemático A indexicalidade das notícias está presente,
simultaneamente, quer na a-- historicidade das notícias, quer na sua lógica do concreto, a
insistente recusa dos jornalistas em apresentarem as notícias no seu contexto situacional
– a recusa em analisarem a relação entre ontem, o hoje e o amanhã (cf. Tuchman, 1978:
192). As notícias são assimiladas como relatos a-históricos e a – teóricos de
acontecimentos da actualidade que ocorrem em instituições especificas, omitindo a
existência de circunstâncias históricas e institucionais que intervêm na sua configuração.
A objectividade reforça este dar-se da notícia como evidência: para além da marca da
subjectividade, a objectividade também elimina as marcas da história.
29
diferentes classes e grupos sociais utilizam para significar, definir e tornar inteligível o
modo como a sociedade funciona. Tais recursos são utilizados pelos diferentes grupos
sociais (na perspectiva marxista mais estrita, pelas classes; na perspectiva dos estudos
culturais, por diferentes grupos sociais identificados por critérios como o género, a etnia,
a orientação sexual, etc.) na luta pela obtenção da chamada hegemonia. O conceito de
hegemonia define a natureza complexa da ligação entre os diferentes grupos que
integram a sociedade, ligação esta que não é apenas política no sentido estrito do termo.
Este conceito traduz, na teoria gramsciana, os efeitos políticos que decorrem do
funcionamento da ideologia, isto é, o impacto que esta exerce sobre a sociedade ao nível
da integração dos vários grupos numa dada ordem social (cf. Santos, s/d, 107). O
conceito de hegemonia traduz, assim, uma certa autoridade cultural de uma classe ou
estrato social sobre outros que se lhe opõem. A hegemonia é obtida não pela coacção mas
pelo consentimento conferido à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à
vida social. A obtenção do poder hegemónico está pois ligada à produção ideológica e
cultural desenvolvida num contexto de conflito intelectual desenvolvido na sociedade
civil (cf. Correia, 2004).
Os relatos noticiosos podem, eles próprios, tornar-se uma peça essencial para o
funcionamento ideológico dos media na medida em que reflectem os grandes consensos
sociais, favorecendo a sua aceitação e a sua consagração. Verifica-se, nesta perspectiva,
uma marcada tendência dos media para reproduzirem definições da sociedade de acordo
com os valores hegemónicos e os prismas oficiais . Os media aparecem associados à
obtenção de um consenso orgânico relacionado com a hegemonia dos grupos
dominantes. Juntam-se a outras instituições culturais (como o Direito e a Ciência)
construindo uma ordem que é consonante com as necessidades e interesses do grupo
dominante. Predomina na operacionalidade dos mass media o seu poder de reprodução
da ideologia das elites, classes e grupos sociais mais poderosos.
Determinadas formulações discursivas são ideológicas não por causa das
distorções manifestas nos seus conteúdos superficiais, mas porque são originadas numa
matriz ideológica limitada (Hall, 1982:72). O profissionalismo jornalístico – destinado a
produzir um tipo de relato assente em pressupostos aceitáveis por todos – implica que os
media só podem sobreviver operando dentro das fronteiras do que é admitido
socialmente (Hall, 1982:87). A ideologia limita os termos da comunicação pública: os
jornalistas estabelecem as suas codificações em termos de “códigos preferenciais” de
modo a que os problemas sociais sejam abordados dentro do reportório de valores
30
ideológicos dominante, a que dá o nome de «consenso nacional» (Hall, Chritcher,
Jefferson, Clark e Roberts, 1973: 227). Assim, “os acontecimentos enquanto notícias são
regularmente interpretados dentro de enquadramentos que derivam, em parte, desta
noção de consenso enquanto característica básica da vida quotidiana” (Hall, Chritcher,
Jefferson, Clark e Roberts, 1993: 227). A codificação e a descodificação têm pois lugar
dentro de um reportório limitado que faz as notícias significarem dentro da esfera da
ideologia dominante (cf. Ericson, Baranek e Chen, 1987; 31). As opiniões e pontos de
vista que ocupam as margens do sistema recebem pouco espaço para se representarem.
Assim, os media orientam-se dentro de um “enquadramento de poder” para usar uma
expressão de Stuart Hall pela qual ele procura significar uma definição da realidade
derivada das elites (Chibnall, 2001: 2).
A produção de definições hegemónicas da realidade por parte dos jornalistas está
relacionada com o acesso privilegiado que alguns definidores primários particularmente
influentes manteriam na construção destas definições da realidade. Os media reproduzem
as definições dos poderosos sem estarem necessariamente ao seu serviço, num sentido
estrito e simplista. A pressão do tempo e a necessidade de depender de acontecimentos
«pré-agendados», normalmente por instituições legitimadas para fazer convocações
antecipadas, e a necessidade de fundar as afirmações dos media em instituições
«credíveis» e «autorizadas» implica o recurso constante a instituições sociais importantes
que forneçam informações igualmente «credíveis» e «autorizadas». A ligação
privilegiada a fontes oficiais e a própria estrutura burocrática dos media, onde se
enquadram imperativos institucionais como sejam rotinas, práticas e ideologias
privilegiadas fomentam uma sintonia entre os relatos e interpretações da realidade e os
valores dominantes. A maximização dos recursos da organização recorrendo a fontes
institucionais que se articulam de modo confortável com o ciclo diário da produção
noticiosa, a possibilidade de transferir facilmente a responsabilidade quanto ao rigor do
conteúdo substancial da notícia do jornal para a fonte e a busca da proximidade com os
protagonistas dos acontecimento podem induzir uma proximidade favorável aos poderes
estabelecidos (cf. Murdock, 1973; 168). Tal produz um acesso sistematicamente
desproporcionado aos media por parte dos que detêm posições institucionais
privilegiadas, gerando a dependência de uma espécie de “hierarquia de credibilidade”
segundo a qual os que ocupam posições poderosas ou de elevado status na sociedade são
considerados como detentores da informação mais precisa e especializada,
comparativamente à maioria da população. As entidades oficiais configuram-se como
31
fontes credenciadas pelo seu estatuto social e institucional de representação de grupos ou
de interesses ou pelo domínio de assuntos e de temas específicos cujo conhecimento mais
próximo e detalhado ajudam a conferir credibilidade à notícia (cf. Penedo, 2003: 38).
A necessidade de fundamentar as afirmações produzidas pelos media com o
recurso a fontes «dignas de crédito»7 conduz à dependência de instituições sociais
poderosas, nomeadamente parlamento, ministros, peritos, etc. Estas fontes poderosas têm
a possibilidade de se constituírem como definidores primários pois estruturaram a
definição primária do tópico em questão, a qual impõe os termos de referência em que o
debate sobre um assunto se processará. Ao invés, os media constituem-se como
definidores secundários reproduzindo as definições daqueles que têm acesso aos media
como fontes creditadas (cf. Hall, Chritcher, Jefferson, Clark e Roberts, 1993:228-229).
As exigências práticas do trabalho jornalístico – a necessidade de trabalhar com curtos
prazos de tempo e as exigências de imparcialidade e de objectividade – combinam-se
para produzirem um exagerado acesso sistematicamente estruturado aos media por parte
dos que detêm posições privilegiadas
Se a construção da realidade passa pela contextualização e identificação de
acontecimentos, a fim de que o mundo não seja apresentado como uma confusão de
acontecimentos desordenados e caóticos, então terão que existir mapas culturais do
mundo social que permitam «dar sentido» a acontecimentos imprevisíveis. Ao mesmo
tempo que filtram a realidade, as estruturas ideológicas permitem mapear os
acontecimentos, isto é, localizá-los dentro de contextos mais vastos. Logo, o processo de
significação implica o recurso a mapas que constituem a base do nosso conhecimento
cultural, no qual o mundo já está traçado. Partilhamos mapas de significação: interesses,
valores, conhecimentos e pressuposições sobre o mundo social comuns. Este ponto de
vista consensual acentua o que nos une, valoriza os interesses comuns e minimiza a
conflituosidade de interesses e classes ou grupos sociais. Os acontecimentos, enquanto
tais, são interpretados dentro de enquadramentos que derivam desta concepção de
consenso como característica base da vida quotidiana (cf. Hall, Chritcher, Jefferson,
Clark e Roberts, 1993: 225-227). As opiniões e os pontos de vista que ocupam as
margens do sistema são muito pouco representadas.
Segundo a análise clássica de Graham Murdock (1973, pp. 155-175), a imprensa
desempenha um papel fundamental no processo de gestão do conflito e da dissensão,
legitimando as relações de poder no interior do sistema capitalista, de acordo com
7
As aspas constam do texto de Stuart Hall, aqui citado.
32
definições partilhadas pela elite política. Não resulta daqui que se possa inferir a
existência de uma conspiração resultante de uma relação directa entre o enquadramento
geral fornecido pelas elites governantes e o processo diário de produção de material
noticioso. A ênfase dada aos media na reprodução do consenso e dos valores dominantes
não resulta de uma atitude conspiratória. Na verdade, a reprodução da ideologia
dominante é encarada como produto de uma imposição estrutural e não de um conluio
deliberado.
Com efeito, os jornalistas explicitamente se definem a si próprios em termos de
uma autonomia em face dos interesses políticos e económicos. Todavia, apesar deste
elemento (enfatização da sua autonomia) os enquadramentos e definições que
acompanham o relato jornalístico dos acontecimentos políticos coincidem em larga
medida com a definição fornecida pelos detentores de poder. Tais representações estão
longe de ser resultado de um processo aleatório, mas, antes, resultam de uma série de
rotinas de trabalho e de um conjunto partilhado de critérios acerca do que torna certos
acontecimentos noticiáveis (Murdock, 1973: 158: 163). Para a configuração destas
representações contribuem a atenção dirigida para o acontecimento, a referência a
acontecimentos anteriores e, sobretudo, a necessidade de agradar a segmentos variados
da população, a qual produz a necessidade de competir pelo “middle ground” de um
modo que tem várias consequências para o conteúdo e apresentação do material. O
“interesse nacional” público ou comunitário dita esta necessidade de auto-legitimação
assente numa fala consensual que enfatiza o interesse comum e disfarça os conflitos
sociais e as perspectivas parciais que lhe estão inerentes (cf. Murdoch, 1973: 167)
Assim, o problema mais significativo não é – ou, pelo menos, não é apenas –
saber se os media evidenciam uma distorção ou enviesamento favorável a este ou aquele
líder ou agrupamento mas antes que tipo de conceitos e assunções que a imprensa utiliza
emprega na identificação e na atribuição de significado aos acontecimentos políticos (cf.
Chibnall, 2001: 3-4). Colocando a questão seguindo uma linguagem similar à da
sociofenomenologia: Qual é a natureza da realidade padrão e como é construída e
apresentada às audiências dos media? A realidade padrão aparece-nos de uma forma
reificada – uma verdade auto-evidente, uma questão de senso comum, o que qualquer
homem razoável crê – mas, afinal, é uma criação humana. Importa aí identificar quem é
responsável por ela (Chibnall, 2001:5). Na fórmula do consenso nacional, o conflito
social pode ser vista como uma forma de minar esse consenso, criando uma política
contrária ao interesse do país. Qualquer desafio à hegemonia do interesse nacional pode
33
ser vista como uma subversão do consenso (cf. Chibnall, 2001: 17).
Como Gitlin (1980: 12; 260) sugere, os aparelhos culturais podem manter os seus
próprios procedimentos e padrões, garantindo uma certa autonomia em relação às elites
políticas e económicas. Tal autonomia favorece os interesses das elites desde que não
viole os valores hegemónicos centrais nem favoreça uma crítica radical. Através das
rotinas quotidianas do jornalismo, os conflitos sociais são admitidos nas instituições
noticiosas nos termos da ideologia dominante. Os valores jornalísticos estão ancorados
em rotinas suficientemente consistentes para susterem os princípios hegemónicos e
suficientemente flexíveis para absorver factos novos (cf. Gitlin, 1980: 270). A
transmissão ideológica não é necessariamente um processo consciente por parte dos
jornalistas mas pode, antes, resultar da absorção de pressuposições acerca do mundo
social na qual a notícia tem que ser integrada de modo a ser inteligível para o seu
público. Assim, não terá que existir a violação manifesta da autonomia dos jornalistas: os
relatos não carecem de uma parcialidade ou de uma distorção manifesta. Basta serem
produzidos dentro de uma matriz ideológica apertada, isto é dentro de um conceito de
regras e conceitos social e historicamente determinados que constituem uma estrutura
profunda que é activada inconscientemente na produção de notícias (cf. Hackett, 1993:
121).
Tal como as concepções de hegemonia e de ideologia utilizadas pelos cultural
studies, por Todd Gitlin, Murdock entre outros autores influenciados pelo marxismo
gramsciano são compatíveis com uma atenção crítica ao senso comum e vida quotidiana,
uma perspectiva sociofenomenológica não terá que ser imune à problemática do poder e
do controlo ideológico. As abordagens críticas que valorizam os conceitos de
«hegemonia» e de «ideologia» enquanto mecanismos de coerção simbólica associadas à
dominação por classes ou coligação de classes dominantes valorizam a estratificação
social, as relações de poder e de dominação, os mecanismos de controlo social e
ideológico e a obtenção de processos de hegemonia. Dentro de uma matriz
sociofenomenológica, as interacções entre os agentes sociais processam-se dentro de uma
lógica, na maior parte dos casos considerada menos determinista, aceitando-se a
pluralidade de visões do mundo diferenciadas entre agentes sociais investidos de funções
diversificadas. Porém, a enfatização de níveis de análise diversos não diminui a
possibilidade de úteis pontos de diálogo na compreensão do modo como os media
constroem o conhecimento.8
8
Moretzshon em trabalho recente destaca a importância da obra de Schutz para entender a objectivação e reificação da
34
Pode admitir-se que entre a atitude natural e os processos de construção e
reprodução da ideologia existam pontos de contacto que possam ser discutidos e
elaborados teoricamente, apontando para uma relativização da dualidade, no âmbito da
teoria da notícia, entre uma visão mais centrada nas questões do poder e outra mais
centrada nos processos de interacção que se verificam na vida quotidiana. Com efeito, a
análise da atitude natural detecta uma aceitação incondicional da evidência do mundo, o
que remete para uma certa postura cognitiva associada ao consenso produzido pelas
rotinas e convenções jornalísticas que é compatível com os pontos de vista mais dirigidos
para a crítica ideológica.
Rotinas e tipificações
sociedade, enfatizando alguns contributos do autor para o estudo do jornalismo nesta perspectiva..No seu trabalho
salienta como as descrições das características do quotidiano efectuado por Luckács possuem similitudes com Schutz:
ambos ressaltam o absoluto pragmatismo desta esfera resultante da necessidade de respostas funcionais às situações
rotineiras através de situações automáticas e espontâneas (Moretzsohn, 2007: 54). Não menos significativa é a
influência atribuída por Gramsci – nome maior entre as influências sentidas pelos estudos culturais – à importância das
dinâmicas quotidianas na construção da hegemonia (Idem, 60). Da mesma maneira, em domínios diversos da reflexão
crítica sobre o modo como se objectificam e criticam minorias sociais, nomeadamente por parte dos media as teses de
Alfred Schutz têm sido frequentemente citadas e percorridas (Tuchman, 1978; West, e Zimmerman, 1985).
35
aplica a todos os casos semelhantes.
No decurso da actividade quotidiana no seio da organização jornalística é
frequente, segundo Tuchman, os jornalistas recorrerem ao esquema cognitivo designado
por Schutz de tipificação. A tipificação é usada e entendida como uma forma de
classificação em que são tidas em conta certas características básicas para a solução das
tarefas práticas que se apresentam aos actores. Os objectos do mundo social são
constituídos dentro de um marco de familiaridade e de reconhecimento proporcionado
por um reportório de conhecimentos disponíveis cuja origem é fundamentalmente social.
As tipificações permitem agir tipicamente sobre situações similares, recorrendo a um
conhecimento socialmente partilhado – um acervo de conhecimentos disponíveis –
através da experiência quotidiana.
Uma tipificação refere-se a determinadas características relevantes para a solução
de problemas práticos encontrados na actividade quotidiana (cf. Tuchman, 1978:50). No
caso da comunicação, surge antes de mais como um esquema cognitivo que tem a ver
com o facto de os seres humanos só processarem uma escassa quantidade de informação
e, por isso, sob a pressão do tempo, necessitarem de recorrer a esquemas que lhes
permitam a produção de um significado objectivo e partilhado.
.
Estes esquemas cognitivos são parte de um acervo de conhecimento profissional,
pelo que ser um repórter é ser capaz de lidar com ocorrências idiossincráticas usando
tipificações adequadas. Gaye Tuchman mostrou como o trabalho quotidiano de recolha e
de produção de notícias pode ser entendido como uma questão de ‘‘routinizing the
unexpected’. No fundo, a actividade jornalística lida de perto com a proliferação de
acontecimentos e carece de uma estratégia de controlo da erupção generalizada do
“novo”. Como qualquer organização burocrática, um medium noticioso não pode
processar fenómenos idiossincráticos e precisa de subsumir os fenómenos em
classificações conhecidas (cf. Tuchman, 1978: 45). Sendo uma profissão associada ao
conceito comum de “novidade”, é também uma actividade que se serve de numerosas
estratégias para controlar e exorcizar a proliferação do que é “novo”, permitindo a sua
inserção num contexto significativo ordenado. Enquanto organização burocrática
especializada na formulação de significados partilhados pela sociedade, o medium tem
que instaurar rotinas, procedimentos burocráticos, mecanismos de tipificação e de
organização do “real”. Como parte do processo de criação de rotinas, os jornalistas usam
estes esquemas classificatórios de forma a reduzir a contingência intrínseca ao trabalho
36
noticioso, transformando ocorrências idiossincráticas verificadas no dia-a-dia em
materiais que podem ser processados e disseminados.
Assim, o conjunto de tipificações produzidas pelos jornalistas durante a sua
actividade profissional é que lhes permite «agir como sempre» em face de circunstâncias
idênticas. Há que recorrer ao saber de reconhecimento no qual convergem as tipificações
sedimentadas pelos produtores de notícias no seu quotidiano profissional. A construção
de tipificações é uma espécie de cristalização da experiência que permite conferir
estabilidade à vida social, bem como assegurar celeridade e eficácia ao desempenho
profissional. Analisando os precedentes enquanto modelos estabilizadores de todas as
formas de relato de acontecimentos idênticos ou semelhantes detecta-se um conjunto de
procedimentos, fórmulas discursivas, técnicas narrativas e descritivas que se repetem,
parecendo, de certo modo, ser os acontecimentos que aderem a fórmulas narrativas pré-
existentes e não o inverso.
Se as notícias são um método altamente institucionalizado de tornar a informação
disponível aos consumidores, praticado por profissionais que trabalham em organizações,
têm necessariamente de reflectir nas suas escolhas e na sua estrutura as práticas
institucionais da profissão. A organização narrativa acaba por reflectir uma espécie de
profissionalismo anónimo, onde se inscrevem a marca de procedimentos rotineiros, de
fórmulas consagradas, de lugares comuns facilmente reconhecíveis. As especializações
podem ser ignoradas se necessário. Todos devem ser capazes de fazer o trabalho de
qualquer um dos outros, independentemente do facto de cada um deles estar
prioritariamente indicado para proceder à cobertura de notícias destinadas a uma certa
secção (cf. Tuchman, 1978:67).
A prática procede ao estabelecimento de um conjunto de procedimentos e de
formatos tendentes a assegurar a cobertura de determinados assuntos e, em especial, de
determinados factos, que implicam o recurso à experiência acumulada para permitir a
estabilidade na sua abordagem. Este conjunto de procedimentos implica a aprendizagem
de uma experiência acumulada que permite uma certa estabilidade na abordagem de
assuntos que são encarados como possuindo uma certa familiaridade entre si: estabelece-
se deste modo uma regra de precedentes que permite agir de modo relativamente idêntico
em face de ocorrências consideradas típicas.
As tipificações, assentes nas rotinas jornalísticas, funcionam deste modo como
padrões estabilizados de comportamento e de modos de agir que asseguram, sem elevado
risco, que os jornalistas sob a pressão do tempo e das incertezas podem transformar um
37
acontecimento num relato noticioso. É a existência da tipificação que permite transcender
momentos particulares da acção para auxiliar o jornalista na construção de uma narrativa
estandardizada e padronizada pensada de modo a superar os constrangimentos espaciais e
temporais e conquistar o agrado por parte das audiências. É, pois, o conjunto de
tipificações a que se procede no decurso da actividade profissional que permite ao
jornalista agir “como sempre” em face de circunstâncias idênticas, tipificando a
ocorrência com o recurso a um conjunto de conhecimentos pré-adquiridos. Neste sentido,
as tipificações noticiosas fazem parte do acervo de conhecimentos adquiridos pelos
repórteres.
Como testemunhou um jornalista na sequência dos acontecimentos do 11 de
Setembro, os primeiros momentos depois da percepção da tragédia foram passados a
efectuar comparações: a morte de Kennedy, a crise dos reféns no Estádio Olímpico de
Munique em 1972, a explosão do Challenger, o tiroteio da na escola de Columbine e até a
morte da princesa Diana. Isto é, sentiu-se uma necessidade profunda de compreender o
papel dos jornalistas, ultrapassando a crise, garantindo a continuidade dos desempenhos
profissionais e assegurando a integração daqueles acontecimentos particularmente
disruptivos, perturbantes e traumáticos num universo ordenado de referências
reconhecíveis. Sob o efeito do trauma houve que reinventar a rotina: com esse fim as
prioridades das organizações mediáticas foram rapidamente reorganizadas de forma a
conseguir produzir “uma estória de convergência” (Zelizer e Allan, 2003: 3, 8). No caso
dos acontecimentos da Praia de Carcavelos em 10 de Junho de 2005 –
independentemente do que se tenha passado efectivamente – o “arrastão” das praias do
Rio de Janeiro foi o precedente usado para conferir aos jornalistas uma “história de
convergência”. As notícias correspondem desta forma à insistente tentativa de inscrição
dos acontecimentos numa certa ordem significativa pré-existente. Tuchman invoca
mesmo um estudo efectuado pelo Bureau of Applied Social Science Research na
Universidade de Columbia, no qual, durante entrevistas conduzidas a trabalhadores de
cadeias de televisão que participaram na cobertura do assassinato do Presidente Kennedy,
estes classificaram a cobertura efectuada como “business as usual”. Ou seja, os valores e
normas da profissão estiveram presentes da mesma forma que noutras alturas (cf.
Tuchman, 1978:64). É, pois, o conjunto de tipificações a que se procede no decurso da
actividade profissional que permite ao jornalista agir de forma relativamente idêntica em
face de circunstâncias idênticas, tipificando a ocorrência com o recurso a um conjunto de
conhecimentos pré-adquiridos. Há uma predisposição pragmática que acciona a
38
tipificação e o subsequente agir de modo típico com todas as consequências que daí
possam resultar numa certa dificuldade em representar a estranheza, privilegiando fontes,
ângulos e rotinas que sucessivamente se repetem ou assemelham entre si.
Estes esquemas colectivos são encarados como fazendo parte de um processo de
institucionalização resultante em larga medida do carácter organizacional da produção
noticiosa. Esta é olhada como um processo colectivo mais influenciado pelas rotinas de
trabalho do jornalismo acriticamente aceites do que pelas atitudes dos jornalistas (Coock,
1998: 73).
Assim, pode-se falar de um vocabulário de precedentes, uma espécie de acervo de
conhecimentos disponíveis adquiridos pela experiência e dirigidos para a prática diária da
profissão. Adquire-se deste modo, um saber de reconhecimento que permite identificar
um acontecimento em termos da sua potencial transformação em notícia; um saber de
procedimento que recorre à experiência para identificar os passos necessários para o
desenvolvimento da história ao nível de questões como sejam a selecção e contacto com
as fontes ou os modos de lidar com constrangimentos espaciais e temporais; e um saber
de narração, isto é como formular um acontecimento nos termos do discurso noticioso. A
base do “news judgment” é uma experiência comum e os exemplos resultantes dessa
experiência. O que os jornalistas observam é mediado pelo vocabulário de recursos
simbólicos e esquemas de classificação que eles desenvolvem na sua cultura profissional.
O jornalista competente é aquele que é capaz de reconhecer um acontecimento em termos
da sua significação como notícia, saber como agir ao seleccionar e entrevistar as fontes, e
produzir um relato considerado competente no âmbito do discurso noticioso. O
vocabulário de precedentes, aprendido pela socialização profissional junto de colegas,
editores e fontes é um depósito de conhecimentos que os jornalistas têm como disponível
para agirem e relatarem acontecimentos. O facto de apenas estar disponível através da
experiência e da transmissão oral, e não através de manuais, é a chave para percebermos
porque os jornalistas enfatizam a componente mais intuitiva e menos analítica e
sistemática do seu trabalho, algo que é notório no conceito de “faro para as notícias” (cf.
Ericson, Baranek e Chan, 1987: 133; 135).
Esta orientação para a acção pode funcionar como factor para uma excessiva
homogeneização dos relatos. Quer as organizações noticiosas quer os jornalistas se
39
esforçam activamente em desenvolver a competência para transformar qualquer
ocorrência em notícia. Porém, o esforço desenvolvido para minimizar a idiossincrasia das
ocorrências também funciona como um impedimento para verificar certas ocorrências
como notícias.
O funcionamento da rede noticiosa molda o acesso aos media como um recurso
social estratificado. Os media são mais acessíveis a determinados movimentos sociais,
grupos de interesse e actores políticos do que outros. Os detentores de poder legítimo têm
maior acesso do que outros. O repórter é uma pessoa integrada numa organização com
objectivos, estruturas e procedimentos estandardizados que muitas vezes limitam e
restringem a discricionariedade de que os repórteres dispõem enquanto profissionais
individuais (cf. Goldenberg citado por Tuchman, 1978: 134). Um dos problemas das
rotinas jornalísticas é o facto de induzirem os jornalistas a apenas se debruçarem sobre
ocorrências consideradas importantes pelas crenças e expectativas partilhadas na
estrutura de relevâncias dominante. Esta atitude pode originar fenómenos como sejam a
formulação de predições inexactas; a distorção ou simplificação arbitrária dos
acontecimentos com a generalização de estereótipos; o exercício de constrangimentos
sobre a criatividade individual e a capacidade de iniciativa dos jornalistas e a
burocratização da profissão. A burocratização passa por pormenores como o recurso a
fontes costumeiras, geralmente acessíveis; a dependência de canais de rotina que gera,
por sua vez, uma maior estratificação no acesso aos media e aumenta os riscos da
manipulação; a generalização do recurso à notícia de agência e, finalmente, a criação de
uma lógica de relacionamento preferencial com fontes institucionais a qual se reforça
pelo receio de interrupção das desejadas informações, aumentando a uniformidade dos
produtos informativos e contrariando a diversidade e o pluralismo.
Recorrendo a uma visão que tenha em conta, mais uma vez, as questões
associadas aos fenómenos sociais da construção de hegemonia e de reprodução da
ideologia, pode mais uma vez estabelecer-se a ponte com uma perspectiva de base
sociofenomenológica. As tipificações e a instauração de rotinas e de precedentes
articulam-se com a possibilidade de criação de horizontes de significação comuns,
construindo a sociedade como um consenso, um consenso que admite uma certa
conflitualidade desde que esta não ponha em causa o sistema central de valores. As vozes
dos media com maior capacidade de influência e de penetração instituem uma trama
narrativa que parece destinada a restringir o significado, unir os fios soltos da
interpretação, apresentar uma visão da sociedade na qual existem formas
40
institucionalizadas de conflito, mas sem contradições fundamentais. Pretende-se fazer
crer que um modo de ver historicamente determinado corresponde à representação
natural, «verdadeira» da sociedade, elevando essa representação a um plano de
universalidade que supera as dificuldades de percepção, as tensões sociais e as
particularidades fracturantes.
Da tipificação ao frame
A teoria do enquadramento tem sido incorporada pelos estudos dos media, onde
se considera que os textos jornalísticos, através de elementos como os títulos, o lead ou
as citações destacadas, apresentam estruturas que enquadram os eventos e lhes definem
sentidos. Os enquadramentos noticiosos são padrões de apresentação, selecção e ênfase
utilizados nos relatos jornalísticos (Porto, 2004: 91). Salientam a acção dos jornalistas
para organizar a realidade de forma compreensível para si próprios e para o público.
Assim, os enquadramentos noticiosos chamam a atenção para determinados
tópicos e excluem outros, sublinham os dados fornecidos por certas fontes sobre outras,
acentuam as acções de determinados agentes e minimizam outros, considerados
irrelevantes. A inclusão ou a exclusão de determinados detalhes das ocorrências, a
consideração do que é relevante ou não na descrição de um acontecimento depende da
classificação ou categorização: se uma marcha de protesto é enquadrada como uma
perturbação da ordem pública ou como um confronto entre os manifestantes e a polícia, o
próprio conteúdo do protesto e da crítica desenvolvida pelos participantes é
41
marginalizada ou excluída, por ser considerada irrelevante (cf. Reese, 2003: 13).
Dependendo da forma como se organiza a notícia sobre a realização de uma
demonstração pública contra o Governo, um grupo de pessoas que ergueram cartazes e
pronunciaram todas juntas um conjunto de frases ritmadas pode ser categorizado como
um levantamento, uma insurreição, uma manifestação, uma agitação ou protesto popular.
Entre os trabalhos que, de modo mais explícito, tentaram levar por diante o estudo
do frame no campo jornalístico contam-se as obras de Gaye Tuchman (1978) e de Todd
Gitlin (1980). Partindo de Goffman, Tuchman entende que as notícias impõem um
enquadramento que define e constrói a realidade. Por sua vez, Gitlin analisa as práticas
específicas usadas para enquadrar as posições, declarações e tipo de liderança
empreendido pelo movimento estudantil contra a Guerra do Vietname. Os
enquadramentos são assunções usadas para estruturar o discurso. A selecção de um
ângulo o que transforma um acontecimento num acontecimento noticiável e, por sua vez,
num relato jornalístico, é um enquadramento. Por exemplo, os jornalistas podem
apresentar uma campanha eleitoral como uma competição entre interesses e valores
diversificados, um diálogo entre cidadãos comprometidos com a deliberação colectiva
sobre o futuro, ou como um puro jogo em que intervém interesses pessoais e luta pelo
poder. Dependendo desta escolha, os jornalistas procuram diferentes aspectos da
campanha e estruturam-nos em conformidade. No caso já citado do arrastão da Praia de
Carcavelos em Lisboa, a expectativa da violência por gangs de origem africana
desencadeou a cobertura de um evento de grandes dimensões cuja existência foi
desmentida mais tarde pelo Comando Metropolitano da Polícia. As expectativas sobre o
acontecimento ditam uma orientação do olhar que se debruça sobre aquilo que considera
importante. A delimitação daquele conjunto de acontecimentos como “arrastão” – um
roubo colectivo praticado por gangs organizados – obrigou a incluir alguns elementos: a
existência de uma organização por detrás dos acontecimentos e a busca de uma
quantidade avultada de queixas por roubo, que nunca se verificou.. Por outro lado,
conduziu à audição como fontes de criminologistas e especialistas em fenómenos de
criminalidade organizada bem como ao recurso privilegiado aos relatos dos agentes
policiais que intervieram nos acontecimentos. Isto é, a classificação dos acontecimentos
orientou os trabalhos de investigação jornalística. Outro exemplo pode ser dado pela
manifestação promovidas por sindicatos, ONGs e grupos ambientalistas em Seattle
contra as políticas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Apesar de a
manifestação ter sido relativamente pacífica, e reunido cerca de 40 mil pessoas, a
42
cobertura mediática incidiu sobre um número reduzido de 150 manifestantes que
endureceram as suas formas de protesto, originando cenas de vandalismo e confrontos
com a polícia (cf. Martins, 2007: 32).
No âmbito de pesquisas de mais acentuado pendor crítico no âmbito das notícias,
o conceito de frame abre oportunidades para examinar mais explicitamente os efeitos dos
media de um modo que permite acrescentar mais precisão à tradicional análise da
hegemonia usada pelos estudos culturais: a luta pela obtenção da hegemonia ideológica é
uma luta por definições da realidade que se processa de modo conflitual em torno
nomeadamente da escolha dos enquadramentos utilizados pelos jornalistas. Neste
sentido, será interessante olhar mais criticamente certos traços da perspectiva
construtivista. Esta olha os frames como recursos relativamente neutros, uma espécie de
ferramentas que podem estar mais ou menos acessíveis aos agentes sociais, enquanto
uma perspectiva crítica olha para os frames como fazendo parte do processo de controlo
social e de luta pela hegemonia relacionados com estruturas de elite ou classe.
Efectuando uma tentativa de aproximação entre a análise dos enquadramentos e a crítica
ideológica, Reese (2003: 9) propõe que os estudos dos media se afastem de uma
preocupação estrita com o enviesamento mediático da realidade objectiva para acentuar
antes o carácter ideológico das notícias, considerando a dimensão das suas relações com
a sociedade. Segundo este ponto de vista, as estruturas sociais explicam as balizas
ideológicas que proporcionam o enquadramento através do qual os media confinam e
categorizam os acontecimentos ou temas em debate. Esta concepção está presente
nalgumas das orientações críticas sobre a notícia, nomeadamente em Gitlin, no Glasgow
Media Group ao identificarem uma imagem profunda da sociedade que enquadra as
notícias sobre as relações entre empresários e trabalhadores ou no estudo da cobertura
dos conflitos industriais pelos media britânicos efectuada por David Morley (1976 cit. in
Hackett, 1993: 121). Chibnall (2001: 10) parece seguir uma direcção semelhante quando
se refere à ideologia como um enquadramento integrado de categorias, conceitos e
relevâncias fundadas num particular modo de existência. Este enquadramento é, em larga
medida, uma construção inconsciente que estrutura a percepção e o pensamento,
excluindo certas realidades e promovendo e configurando outras. Há assim, dois
componentes básicos no sistema pelos quais a imprensa identifica e interpreta as notícias.
Em primeiro lugar, há um enquadramento conceptual e valorativo que a) permite a
classificação dos acontecimentos em tipo de histórias (política, interesse humano, etc.) b)
molda o significado do acontecimento, tornando-o compreensível em termos do sistema
43
ideológico e definindo-o implicitamente num conjunto de maneiras: legítimo, ou
ilegítimo, único ou semelhante a outros acontecimentos, etc. Este enquadramento
conceptual e valorativo funciona como uma componente política da ideologia da
imprensa porque reproduz o sistema dominante de significação da elite. Porém, haverá a
considerar uma segunda componente do enquadramento ideológico que é mais
tipicamente profissional: os códigos de utilização da ideologia são fornecidos pelos
imperativos profissionais do jornalismo. Morley refere que o trabalho sobre uma greve
pode apresentar-se equilibrado e objectivo, na medida em que são igualmente escutados
representantes sindicais e representantes patronais. Todavia, o enquadramento ideológico
pode verificar-se no facto de a notícia – e os depoimentos solicitados – incidir mais sobre
os efeitos da greve (o prejuízo que esta pode causar ou não) do que nas causas da mesma.
Autores vários dão como exemplo da relação entre enquadramento e ideologia o que se
verificou durante a Administração Reagan, quando os media norte-americanos aceitaram
a definição de El Salvador como um caso de segurança nacional, ou o que se passou
durante a Guerra do Golfo, no decurso da qual, a Administração Bush confinou o debate
político nos media à discussão sobre a opção apropriada para castigar o Iraque pela sua
agressão ao Kuwait. (Pan Kosicki, in Reese, 2001: 42; Hackett, 1993: 121)
Steve Hackett considera que é possível desviar a atenção da questão da
objectividade e da distorção, abordando a construção social da realidade com recurso à
análise da articulação entre enquadramento e ideologia. Nomeadamente, a análise dos
enquadramentos permite ir além da superfície das notícias, alcançando as premissas
ocultas na orientação assumida pelo enunciado jornalístico. Segundo este ponto de vista,
a ideologia transcende o simples enviesamento ou distorção. A ideologia, nesta
perspectiva, proporciona os enquadramentos através dos quais os acontecimentos são
apresentados (cf. Tankar Jr citado por Reese: 2001: 96).
McQuail (2003: 348) recorda como quase todas as notícias sobre União Soviética
e a Europa de Leste foram durante décadas enquadradas em termos de «Guerra-fria» ou
«Inimigo Soviético», do mesmo modo que, durante décadas, a situação na Irlanda do
Norte foi enquadrada como «Ameaça do IRA”. A questão que se levanta é a de saber,
porque é que certos enquadramentos são considerados preferenciais em vez de outros.
Para isso é necessário uma abordagem que tenha em conta, na análise da dimensão
simbólica da construção da realidade, os elementos que dizem respeito ao nível
macrossociológico, nomeadamente o poder, o controlo e a dominação exercido por elites
que têm um acesso privilegiado ao exercício de determinados recursos sociais e que, por
44
isso, se encontram numa posição privilegiada para exercerem a mediação simbólica. Os
exemplos parecem sugerir que “de uma forma geral, quanto mais poderosa for a fonte e
maior for o controlo do fluxo de informação, tanto maior será a influência externa no
processo de enquadramento” (McQuail, 2003: 348).
IV
45
Como insistem os investigadores provenientes da sociofenomenologia, enquanto
a humanidade continua em busca de um determinado sentido de ordem, este sentido é
continuamente ameaçado por situações marginais que são endémicas à própria existência
humana: sonhos, fantasias, emergências, incidentes revelam o carácter contingente da
vida quotidiana; todos se apresentam como uma ameaça de grau diverso para a realidade
padrão do mundo da vida (cf. Berger citado por Ericson, Baranek e Chan, 1987: 59). Em
face destas ameaças, os seres humanos procuram mecanismos que lhes transmitam ordem
e tranquilidade, uma «estrutura de plausibilidade», que assegura a ordem e a estabilidade.
O jornalismo pode ser visto, em larga medida, desempenhando um papel central na
instauração de uma ordem significativa, envolvendo-se activamente com a constituição
de pontos de vista sobre a estabilidade e a mudança, contribuindo para instaurar um
consenso de base comunitária. As notícias constituem um meio importante pelo qual a
nossa cultura constrói um sentido de ordem e de consensos (cf. Ericson, Baranek e Chan,
1987: 4; 5). Apesar da imprevisibilidade ser um dos mais poderosos valores notícia e um
requisito importante para um facto ser considerado digno de tratamento noticioso, o
discurso jornalístico esbate dúvidas, reduz incertezas, classifica e circunscreve, exorciza
a insegurança desencadeada pela natureza abrupta do acontecimento. Graças a este
discurso, o registo da notabilidade do facto é efectuado no registo de senso comum
partilhado por todos (cf. Penedo, 2003: 36).
46
Este tipo de conhecimento possui entre outras particularidades o ser natural (inerente e
intrínseco à realidade), possuir sentido prático, dirigido para cada situação específica e
acessível, podendo qualquer um aceder às respectivas conclusões. O trabalho criativo dos
media noticiosos é traduzir os pontos de vista de fontes especializadas, isto é dotadas de
conhecimentos específicos acerca de uma matéria determinada, no conhecimento próprio
do senso comum partilhado por todos (cf. Ericson, Baranek e Chan, 1997: 17). Assume,
assim, uma postura centrada na inteligibilidade e na comunicabilidade, que passa por
obter uma sintonia com a vida quotidiana dos seus receptores tornando o cidadão comum
como seu receptor privilegiado. Esta postura passa frequentemente por uma sintonia com
as regularidades sociais vigentes e pela adopção de enquadramentos e de formatos que
reproduzem, em larga medida, o que é consensualmente aceite como o corpo de valores
que integram a visão relativamente natural da comunidade em que se insere.
Apesar do que atrás fica dito, os media oscilam numa dialéctica entre a erupção
do que é novo e a integração do novo acontecimento numa ordem de significação com-
posta por um corpo social de conhecimentos previamente adquiridos. As notícias permi-
tem a partilha de consensos sociais que reproduzem mapas de significação nos quais os
acontecimentos adquirem um sentido dentro da ordem social dominante. Porém, os me-
dia noticiosos, apesar de reflectirem um certo olhar mediano, buscando uma elevada sin-
tonia com a vida quotidiana (cf. Altheide, 1985: 45), também são veículos privilegiados
de contacto com realidades que se distanciam do mundo da vida.
Apesar das enormes preocupações por parte de jornalistas, editores e proprietári-
os em fazerem um produto isento de complexidades, que confirme as tipificações social-
mente aceites no mundo da vida quotidiana, apesar da tendência imposta pelas necessida-
des organizacionais e institucionais para construir o mundo com base na experiência e em
rotinas quotidianamente adquiridas, os media de massa encontram-se numa posição am-
bígua e reflectem as profundas contradições no seio do campo: jogos de poder, imperati-
vos concorrenciais cada vez mais agressivos, desejo de responder às audiências, fragmen-
tação do mercado, imperativos deontológicos, segmentação de audiências, cultura profis-
sional, disputas simbólicas entre fontes dotadas de acesso desigual entram em jogo.
O enunciado jornalístico aproxima-se, é certo, do quotidiano. Porém, ao mesmo
tempo, também é o jornalismo que aproxima essa quotidianeidade dos espaços de dife-
rença e de estranheza. Encontra-se, assim, no jornalismo, os traços de um movimento de
47
oscilação: entre um mundo da vida marcado pela tipicidade e pela familiaridade e a apro-
ximação a outras realidades múltiplas.
Segundo esta hipótese, talvez a força do jornalismo, nas sociedades marcadas pela
contingência, diga respeito à sua capacidade de criar um espaço de diálogo comum – um
espaço de visibilidade mediática – que permita a transição entre realidades múltiplas,
estabelecendo pontes entre o cidadão vulgar e outras províncias de significado que
exigem um grau de perícia, de capacidade crítica ou esforço imaginativo que ultrapassam
o pragmatismo da atitude natural. Isto é válido para províncias de significado como
sejam a ciência, a cultura e a intervenção cívica, ou para a aproximação a identidades
diferenciadas. Assim, o jornalismo ficará ao nível de instauração de um espaço de
mediação entre o senso comum sintonizado com a realidade quotidiana e com o acesso a
saberes e posturas que implicam um deslocamento em relação a essa realidade–padrão.
Estabelece uma dialéctica entre a busca de uma ordem e a construção de mapas de
48
significação partilhados e o facto de investir preferencialmente na detecção do que é
estranho e inesperado. Esta dialéctica é sistematicamente permeada por um conjunto de
fenómenos associados à disputa do poder e à luta pela definição da realidade que se
verifica entre classes, grupos sociais e elites.
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