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MEMÓRIAS E FRAGMENTOS

Cristina Pape
2005-2009
MEMÓRIAS

Memória 1: verdades?
Quão interessante pode ser uma criança depois que, já adulta,
escreve suas memórias! Todos acabamos por usar vozes de outros ao
falarmos de nós; mas não as percebemos com muita clareza. O tempo
pode inexistir nessa tarefa de ouvir.
Morávamos no bairro do Jardim Botânico. A cor do milho
amarelo, amarelo escuro, muito sedutor, faz do gosto a sedução de um
muito mais. Meu pai tinha um carro azul claro, marca Cônsul, e uma
de suas maiores alegrias era o passeio aos domingos de sol - numa
velocidade que, certamente, não ultrapassava os sessenta quilômetros
por hora (inútil informação).
Não foram poucos os domingos de sol naquela cidade do Rio
de Janeiro da década de cinqüenta, quando tudo era mais ameno e
provinciano. Cidade onde quase nada de extraordinário acontecia.
Será? Pacata vida de criança, com emoções contidas, recebe o impacto
dos domingos de sol, em longos passeios de carro pela orla. Do Leme
a São Conrado: expectativa de comer milho, churrasquinho em
novidades ternas.
O caminho pela Avenida Niemeyer, tortuoso, e o mar, lá
embaixo, um pouco de medo. Medo interessante, a vida infantil. Eu
sempre gosto das situações de perigo e, passear por ali, certamente o
era. O mar bate nas rochas.
A cor amarela chama a atenção e passear indicava o encontro
com o objeto amarelo. Verdadeiro desejo: a carrocinha amarela de
sorvetes Kibon, deliciosos K-Coisa. Que coisa, doce é a espécie de
mistério. Avistar aquela cor mágica era sempre, e certamente, um
momento de grande tensão dentro do carro. Forças disputavam algo, a
possibilidade de um desejo, do desejo. Pelo menos do meu.
Lá, do lado de fora do carro, sem saber do que acontecia,
o mundo continua a mover-se. Sua capacidade de identificar a
carrocinha era, provavelmente, maior do que a deles de distraí-la.
Lembra bem de ser chamada a olhar as coisas, onde nada existia. Era
como se o inexistente tivesse que ser muito chamado de interessante.
Olhar no vácuo afetivo só provoca frustrações harmônicas à
expectativa da descoberta de alguma coisa. Acontecimento forjado não
é acontecimento, nada é , sequer acaso da aventura.
Está claro? Creio que não. Sei das quantas carrocinhas que
passaram, desapercebidas por mim. Ponto amarelo longe, carrocinha
ou eficácia de alcatruz. O amarelo denuncia. Já não olha qualquer
oferecimento. A experiência, já maior, é tão grande quanto a certeza
de que ali, fora do monólogo interno, só há vazio, da cor de um nada
amarelo.
O que é o tempo? Tantos o pensaram, estando nele e por isso
difícil para o senso comum perceber que quem passa somos nós e não
ele. Onde está a verdade? Mesmo no campo da ciência falar em verdade
é abusar de problemas. Contudo, aqui não há arrogância em encontrá-
la, apenas se toma a especulação filosófica como caminho reflexivo.
André Comte-Sponville (2000), em Ser-Tempo – Algumas
reflexões sobre o tempo da consciência -, apresenta com tanta liberdade
maneiras de se pensá-lo que a opção foi adotá-lo como referência e
reproduzir, despudoradamente, as indagações e divagações do seu
trabalho. Comte-Sponville defende que o tempo deve ser analisado e
poetizado na consciência.

Memória 2: Morro Azul


Malas preparadas e longo período no Morro Azul. Mau humor
– mãe. Pequeno carro azul pelas estradas tortuosas e o barranco alto,
abismo abaixo. O sítio das abelhas – mel, alfaces, gavinhas desajeitadas
que cobrem o marrom de verde, quase tomate, folhas com cheiro de
vermelho fruto. Com os olhos fechados, cheiro-cor de memória. Há
paisagens de Paul Klee em casa.
Adeus – respiração. Ar nos pulmões. Morro Verde, Morro
Azul, Terra Amarela, Ela – ave no Paraíso. O ipê florido do caminho,
sempre florido. Seria o mesmo tempo? O mesmo ipê amarelo? O
mesmo espaço? Última floração: 1975. O passado no presente não está
maculado, refúgio é.
Como continua tão vivo em mim? O que são as minhas
lembranças, a não ser o fato de serem tuas? A curva do matadouro e o
odor de sangue. O ato, a morte, não se dá em ver. A visão é de pedaços
de animais. Esquartejados, pendurados, ainda quentes e, agora,
pinturas são: Rembrandt. Que vontade de pular do carro, saltar para
o chão de terra batida amarela, de barro lama. O caminho é marginal
nas rodas do carro: malas, sapatos, os pés amarelos.
O ipê, longe em nossas memórias e curvas, já não aconselha
do tronco e nem da raiz. Amarelos, pedaços de flores no chão, que a
chuva e o vento carregam. Com cores no ar o denso tapete colore o
verde e, ao chegar perto do chão, já havia espaço na passagem de
pétalas-cor.
Primeiras chuvas,
Águas de março,
No amarelo.

Tempo que se arrasta na ansiedade ou tédio e veloz quando


alegria se espalha. Diferentes nos parecem mas há temporalidade
sempre. Como seria se não existisse? Conhecimento vulgar que não
será o alvo das meditações do autor, mas que é absolutamente real.
“Nosso tempo – o tempo vivido, o da consciência ou do coração – é
múltiplo, heterogêneo, desigual”. (COMTE-SPONVILLE, 2000, p. 16)

Todos conhecem ou o reconhecem. Tomá-lo pelos nossos


sentidos, ninguém. Quem primeiro, portanto, pode falar, é santo
Agostinho, célebre pensador do tempo no espírito pergunta: “o que é
tempo, afinal? (Responde) se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se me
perguntam e eu quero explicar, já não sei” (SANTO AGOSTINHO,
1964. p 264). Mesmo ao refletir sobre o tempo de forma espiritual,
santo Agostinho nunca deixa de perguntar: o que ele é? Problematiza o
Bispo de Hipona:
o tempo, para a consciência, é primeiramente a sucessão do
passado, do presente e do futuro. Ora, o passado não existe,
uma vez que já não é. Nem o futuro, já que ainda não é; quanto
ao presente, ou ele se divide num passado e num futuro, que não
existem, ou não passa de “um ponto de tempo” sem nenhuma
“extensão de duração” e, portanto já não é tempo. (SANTO
AGOSTINHO, apud COMTE-SPONVILLE, 2000.p 18).

Memória 3: Kandinsky
Chegamos ao sítio num dia, certa tarde há muitos anos. Ano
que não se sabe qual. Pelas flores da estrada o espetáculo se torna
amarelo-azul-ensolarado. Visitar o pavão e esperar, talvez, a exibição
da raiva ou da alegria em plumagem tão deslumbrante - recurso último
a ser guardado.
A gaiola logo vira cadeia; perverso pavoneio. As aves
pequenas do galpão, jaula de todas as cores, nunca produzem rebento
sequer. Por revolta ou infelicidade cantavam todos os dias, os dias
todos, todos os dias, inteiros de chuva ou sol, cantavam nas gaiolas.
Distância cruel que os obriga a cantar. Um a ver o outro pela distância
da parede vazada, fosse de alumínio ou madeira. Ao grande caçador
negado será o direito de buscar cobras.
O cheiro se fazia por um misto de fezes, aves, piolhos, remédios,
alpiste, milho secando no sabugo, frutas colhidas amadurecendo,
envelhecendo, e café secando. Tudo isso confluía para um cheiro único,
inconfundível. Naquele espaço do meio, sempre do meio, nunca inteiro,
intermediário, havia um monturo no canto do salão a despertar a
curiosidade. Pássaros cantando – avisando? – cobra venenosa? Tantas
pelo sítio se arrastam, que o medo, medo é. O medo levanta pedaço
de pano e descobre, de surpresa intensa, um cacho de bananas ouro.
Bananas amarelo ouro. Depois desse dia, o cheiro é sempre amarelo.
Na gaiola um pássaro, que hoje ela sabe ser Kandinsky, que fala vovó.

Nada, pois, entre dois nadas: o tempo seria a perpétua ação do


nada sobre tudo.
Como então, esses dois tempos, o passado e o futuro, existem,
pois que o passado já não existe e o futuro não existe ainda?
Quanto ao presente, se ele fosse sempre presente, se não fosse
juntar-se ao passado, não seria tempo, seria a eternidade.
Logo, se o presente, para ser tempo, deve juntar-se ao passado,
como podemos declarar que ele existe, se ele só pode existir
deixando de ser? De modo que o que nos autoriza a afirmar
que o tempo existe é o fato de que ele tende a não mais existir.
(SANTO AGOSTINHO apud COMTE-SPONVILLE, 2000, p.
19)

Poeticamente a possibilidade do tempo se dá na eternidade


do presente, que acontece na experiência da imensidão interna, nem
relatada e nem transcrita. Permanece. Tudo passa e ele fica. Ele é. Ser
é ser no tempo. Teria mais amplitude que a noção de espaço? Muitos
acreditam que sim. A questão é de ordem afetiva, posto que tudo que
ocorre o faz no espaço, mas advém do tempo ou nele dura.
Para Kant (1993) “o tempo é a condição formal a priori de
todos os fenômenos em geral, enquanto o espaço é condição apenas
de fenômenos exteriores”1 mas para Comte-Sponville (2000, p.
23) “o espaço é a condição de todos os corpos; o tempo, de todos os
acontecimentos. Ora, todo corpo é sem dúvida um acontecimento, mas
nem todo acontecimento é um corpo”2 . Comte-Sponville (2000) diz ter
tomado a noção dos estóicos, porém não seria mais simples se ainda
pudesse aceitar a noção de Aristóteles como verdade? O tempo pode
ser mensurado, nós envelhecemos, nós passamos, mas ele, o tempo,
permanece. Nosso envelhecimento pode mensurar o tempo. Parece
simples: aparentemente a temporalidade infinita estaria no tempo, não
no homem. Mas, então, como falar da imensidão interna, da sensação
de infinito? Só mesmo como sensação. O que é o tempo para nós, na sua
infinitude senão uma sensação poética?

Memória 4: a casa, o museu e o botequim


Nas reuniões em casa: Franz Weissmann, Aluísio Carvão,
Décio Vieira. Um o silêncio a observar - taça de conhaque balançando
entre os dedos, girando, rodando o líquido, meditando ao som da
própria concentração. Outro, muito magro, esguio, delgado, quase
uma ave a ser levada pelo vento. O terceiro, bonito e forte, de olhos
claros e trabalhos coloridos.
Não que elas os visse só ali na própria casa, estavam no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Lugar obrigatório para
todos nós, onde se comia empadinhas e sanduíches de carne assada.
Um botequim de artistas, ali a segunda casa; os convivas donos de
museus, salões, jardins, pedras, sol, avião, espinhos, gramados, lagos
e Papirus.
Arquitetura, pensamentos e mais um pouco. Tudo familiar e
tão livre que as cores, formas e materiais podiam circular, cair, entrar
e sair das obras com total consciência da importância. Décio e o
vermelho com pedacinhos amarelos, e o Carvão, tão amigo que nem
se tem mais referências de como tudo começou. Carvão, curioso nome
para quem usa tanta cor. Tanta liberdade pede nome inventado.
A década é a de cinqüenta, tempo passado. A casa muda,
mudou, mudou, mudou. Sentada no último degrau de noite não dormia.
A mãe, o pai, Franz, Carvão, Hélio e Décio não sabem que ela os
observava do alto da escada. Sem ser vista, a tudo assistia e ouvia.
Assim foi o início de sua formação, lá onde se discutia muito sobre;
sobre o que mesmo? Aparentemente, sobre a liberdade. O que é isso?
Ah, ela não sabe, mas continua a seguir o seu caminho, escavado por
eles.
Havia um deles que pouco ia à sua casa, pois é a mãe quem o
visita. Ia junto, passando por cima do medo de dona Ângela e sua mão
repuxada – nunca perguntara o porquê. Grande fantasia no Jardim
Botânico, aquele lugar cheio de placas amarelas penduradas onde por
baixo se entra. Parecia um pequenino labirinto. Aquela cor a envolver-
lhe, deixando-a perdida, sem referências. Mas para que referências?
Na casa há vidros com águas ou pós-coloridos, pigmentos e
anilinas que o químico lhe comprava em uma fábrica. Verde, cor de
rosa, amarelo, vermelho. Ver, olhar, ver. Não tocar. Ver, tocar. Entrar.
Ver. Tocar. Olhar. Duas poltronas de plástico, uma branca com o
assento redondo e o encosto circular, sustentado por trás com ferros
pintados de preto. Outra cor de rosa com o encosto alto. Curiosas e
muito modernas, moderno o Brasil. Suas pernas, braços, costas, tudo
cola no verão. As goivas, os estiletes, as placas e os veios na madeira.
O papel japonês estilhaçado, cicatriz. A mãe diz: o mais bonito é o
vento, os trigais da Itália. Os mesmos. Uníssono. Quando foi isso?
Momentos de outono,
Difusos,
Todos mortos.
Então santo Agostinho vem a refinar a questão:
o que agora se mostra com a clareza da evidência é que nem o
futuro nem o passado existem. Não se usam termos adequados
quando se diz: Existem três tempos, o passado, o presente e o
futuro. Talvez fosse mais correto dizer: Existem três tempos:
o presente do passado, o presente do presente e o presente
do futuro. Porque esses três tipos de tempo existem em nosso
espírito, e não os vejo fora dele. O presente do passado é a
memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente
do futuro é a espera. (apud COMTE-SPONVILLE, 2000, p. 31)

Essa apreensão, contudo, não é o que se pode denominar


de tempo real. De fato, deve ser chamado de temporalidade, gravado
na existência, posto que nos lembramos do passado e antecipamos o
futuro. Dois tempos diferentes não podem conviver a não ser no espírito
– riqueza que deve se manter em aberto. O tempo no espírito e o tempo
real são distintos. Uma análise fenomenológica do tempo não permite
encontrar uma migalha sequer do tempo objetivo, pois só o tempo
subjetivo existe. A temporalidade só existe em nós e nós só existimos
no tempo.
Bergson (apud COMTE-SPONVILLE, 2000) aponta para um
dado importante do tempo. Quando se pensa o tempo em sua verdade,
a consciência só encontra o tempo, mas seria o presente sozinho,
tempo? Olhem o relógio. Vejam os ponteiros ocupando cada ponto em
cada instante, em cada presente. Não é tempo, é espaço. As posições
sucessivas do ponteiro só têm sentido para aquele que rememora
o passado e compara diferentes momentos. Suprimir a consciência
não deixa tempo ou sucessão: resta apenas a posição dos ponteiros –
exterioridade recíproca – nada mais que presente. Esta é uma questão
que afeta também aos fenomenologistas.
se separamos o mundo objetivo das perspectivas finitas que
sobre ele se abrem e se o colocarmos em si, só iremos encontrar
, em todas as partes, uma série de “agoras”. Ainda mais, esses
“agoras”, não estando presentes para ninguém, não tem
nenhuma característica temporal, e não poderiam se suceder.
(MERLEAU-PONTY, 1971, p 41)

Memória 5: hai-kai e o Japão.


Elas sempre iam juntas ao Japão. A cada esquina a aguardava
a possibilidade de um mundo distante, a começar pelos ideogramas,
que mais do que significados eram belas e intrigantes formas. Ali o
alimento vinha em forma de hai-kai, pequenos fragmentos de peixes
ornados com verdes e barrocas folhas - como pequenos bordados
franceses do século XVIII.
Elas sempre iam juntas, mas era de noite, deitada em sua cama,
de olhos fechados, que sentia saudades das flores dos pessegueiros
primaveris, das carpas coloridas dos lagos e da neve que caía dançando
delicadamente na brisa suave. Eu continuava sentada perto da janela
e quando a noite chegou encontrou-a fitando o chão, vendo a neve se
acumulando cada vez mais densa, recobrindo os galhos, os bancos da
rua e os telhados das casas. No silêncio externo do mundo só o barulho
íntimo. Perdida nesse branco imenso, levantou os olhos e notou a noite.
As janelas da aldeia estavam amarelas e o silêncio tomando conta do
mundo, no contraponto branco dos céus.
Silêncio
Amarelo
Rompeu a noite.
Como pensar o tempo se, ao final, dado que se constitui a
partir de uma nada (instante sem duração) entre dois nadas (o passado
já não existe e o futuro ainda não se apresentou)? O melhor a se dizer
sobre o tempo é que ele é sempre novo. Uma lembrança não pode ser
repetida, logo, só existe enquanto presente, mas lembranças não passam
de pedaços de presente – grande questão da memória.
O fato lembrado não é presente por ser lembrança, e sim
porque o tempo altera tudo e a consciência vive a experimentar os
‘agoras’ do presente. O tempo presente é o único efetivo. A memória
existe no presente, eis o fato; é nele que é reavivada e transformada,
guardando reminiscências alteradas em cada instante do que gostamos
de chamar de presente. Chama-se passado a tudo que está impedido de
retorno e de futuro só diz-se que é porvir, logo, expectativa presente.
O único lugar é o presente temporal ou a atemporalidade da eternidade
vivida na imensidão interna do sujeito em um fenômeno ao acaso.
O presente é a realidade do ser, a eternidade e a noção de
infinito de santo Agostinho. Experimentar essa noção é coisa do
espírito. É colocar-se sem passado e sem futuro, cuja fruição presente,
em determinada situação, tendo consciência plena a ponto de não haver
necessidade de pensamento, é estar no presente - vendo e vivendo o
fenômeno.
A teoria da relatividade afirma que o tempo pode ser diferente
para A, B e C, cada um pode experimentar o passado ou o futuro de
outrem, mas de fato o momento se dá quando estão todos em seu
próprio presente. Assim, poder-se-ia dizer que o espaço-tempo só
existe no presente, lugar quadridimensional da presença de tudo. Como
igualmente pode-se dizer que a memória vive de presente, insistência
do passado e perseguição do futuro; mas que, quando aflora, o faz com
os dados que lhe são trazidos no agora. Não se deve, porém, confundir
a ordem do discurso com a ordem do real.
Cada presente é único. Mesmo que se diga que a semente é o
devir da árvore, ou o contrário, sabe-se que elas não são a mesma coisa,
cada uma existe apenas em seu próprio presente. Enquanto semente,
é semente. A árvore é a antecipação futura do passado, que é, e nunca
deixou de ser, o seu presente.
“O tempo se vai, o tempo de vai, Senhora...
Ah! O tempo não, mas nós nos vamos”3 .

Na lápide, uma frase: “O tempo passa; a lembrança permanece”.


Não, a lembrança não permanece. Ao pensar o epitáfio a lembrança
não carregava qualquer resquício da realidade dos dias vividos. Menos
ainda anos depois, a lembrança é viva, presente já que não deixa de
insistir como tal.
Os dias e as pessoas se vão, passam pelo tempo e com o tempo,
mas ele não passa. É do presente esquecer a lápide. Por outro lado, o
esquecimento afirma a lembrança como aqui fico. Não nos damos conta
do que isso vem a ser, vivemos no presente e a consciência não pode
ficar alerta todo o tempo, ou não se faria outra coisa além de estar atento
às coincidências entre ontem e hoje.

Memória 6: Europa
As malas prontas para dois, enormes, dedicadas ao muito
tempo, mas sem ela. A viagem seria longa e o trajeto de navio, ancorado
no cais no Rio de Janeiro. Nossos pais e avós, bem trajados, subiram
com ela a bordo para conhecer a cidade flutuante, cuja murada recebia
as ondas do mar. A ponte é fina e alta, tudo curioso, mas não para
mim. Deslembra muito mais do que acontece; talvez maresia e enjôo.
Pela rampa até o cais vê o navio admirável se afastar, devagar. Sofria
a pequena distância que aumentava se tornando, aos poucos, quase
insuportável. O navio volta-lhe as costas e a água salgada, sem ter
quem a secasse, secou.
O tempo passa
No amarelo
O crepúsculo.
Ela continua, como sempre, a se sentar naquele banco alto.
Desenha, observando a mãe, e aos poucos um novo idioma nasce:
“os trigais, os mesmos”; “em quebra, revela”; “em verde, perdura”;
“cheio vagar”, “de vento e de tempo”; “em brado, campo, em claro”;
“no verde, no meio, nomeia”. “Luz”. O tempo, e esse tempo, longo
tempo que passou. Em uma volta do tempo estavam todos de novo no
cais. Os dias subseqüentes formam-se intensos. Tempo, és um e jamais
retornas em mim. Serás já outro?
O tempo passa
No vento
Amarelo.
Esse tempo que continua, independente de qualquer ação
humana, mas que as contém, essa sensação de infinito do qual tanto
falamos e procuramos entender, talvez seja a intensidade dos momentos,
sempre no presente, experimentada quando em contato direto com o
evento. Não há expectativa de futuro ou lembrança de passado. No
espírito não há dois ou mais tempos, apenas fruição. Exclusivamente, o
espírito está nesse tempo do real: presente. O tempo pode ser o infinito,
e ele se encontra na experiência cuja sensação leva o sujeito ao uno,
unidade que compõe o universo e da qual se faz parte - imensidão
interna de cada um.
Levi-Strauss (1979) em seu ensaio O encontro do mito e da
ciência, alerta para a distância que existe entre a ciência e o mundo dos
sentidos, das paixões e dos desejos, mundo percebido e vivido pelo ser
humano. O mundo sensório, ilusório, é contraposto por ele à ciência e à
crença no intelecto. Leibniz no século XVII, dentre outros pensadores,
também acreditava que o mundo dos sentidos é secundário por ser
mutável, inconstante, não sendo os sentidos passíveis de nortearem a
verdade. Como comprovar o sentimento, a sensação de prazer ao sentir
um aroma, ao se deixar embevecer por uma cor? Como comprovar a
imensidão que cada um carrega em si?

FRAGMENTOS

“Os sentidos, como as paixões, perturbam a alma, e, sem


temperança, conduzem ao vício e à loucura. O homem que contempla
é absorvido pelo que contempla”. (NOVAES, 1997, p. 10) O mundo
sensível é tido por muitos como vago, confuso e inadequado. Sua
transitoriedade, porém, é sua grandeza, magnitude. Espaço a ser
preenchido ao se pensar nele, ao se estará nele. É nesse mundo, porém,
vago, incerto, provisório e cheio de nuances que acontece o trabalho.
É quando, no momento de mais absoluta subjetividade, o espaço se
torna local porque atuam em conjunto três elementos: o fragmento é
amarelo, o tempo torna-se acronológico e o acaso forma a memória.
Absolutamente relacionado com o mundo subjetivo e sujeito às
variações internas de cada indivíduo.
O tempo é perdido e só resta a sensação de infinito, de que
não há mais nada além do fenômeno observado ao acaso. A imensidão
interna se torna de fato o que é: infinita, proveniente da sensação visual.
O olhar capta o fenômeno. Não há como descrever a sensação visual, a
não ser através de poesia, como destaca Bachelard (1965) ao falar sobre
miniaturas: cada uma contém inúmeras palavras. O importante não é o
tamanho do fenômeno e sim a entrega do sujeito a ele.
Giordano Bruno ao escrever Heróicos Furores, em breve
passagem, diz “mais o procuro, mais ele se esconde dos meus olhos”.
(apud NOVAES, 1997, p. 10) No caso da temporalidade como infinito
tudo há de dever ao olhar; e este ao ficar quieto, atento se entrega. No
seu silêncio demora a força de sua captação, como se fosse a ponte para
que a imensidão interna se apresente. Nesse sentido, o acaso, esse trama
íntimo da temporalidade, atira ao sujeito o objeto que lhe parece ser a
sua própria entrega, e com ele o sujeito haverá de se embaralhar.
Ao falar-se de infinito como perda da consciência do tempo,
do momento geralmente sentido como longo, fala-se de tempo a
se considerar infinito e imensurável. A sensação é imensa. O espaço
interno expande-se e parece não ter limites, de fato misturando o evento
à pessoa. O que se contempla confunde-se com o contemplado, aonde
infinito na alma acontece como sensação.

Fragmento amarelo 1: manchas


Ano: 1977, mês de março.
Local: Estrada Dona Castorina, Rio de Janeiro, RJ.
A manhã de sol suave indica o final do verão. São oito horas da
manhã e ela dirige o automóvel sozinha pela estrada Dona Castorina,
Horto, Rio de Janeiro. O caminho longo e sinuoso passa por dentro
da mata atlântica – nenhum outro a cruza. O sono é companheiro
de estrada; incontáveis curvas daquele trajeto diário. Todos os dias
o mesmo verde trajeto. A estrada fechada pelas copas das árvores
esconde mistérios; o olhar entorpece. A essa hora a luz já definira
as formas, mas ainda assim a sonolência não a permite se deter em
nenhum ponto do espaço que não seja estrada.
Repentinamente, surge uma clareira no caminho e o manto
verde das encostas dos morros se mostra em tecido irregular. Um susto:
mancha amarela, de amarelo tão forte que não se esconde no verde.
Logo outra e mais outra mancha de Cássias amarelas em flor. O brilho
do amarelo se destaca no sol matinal, delicado contra o verde escuro
da vegetação. O coração dispara e, num impulso não contido, ouve sua
voz alta. Tão alta a ressoar no silêncio barulhento da mata. Potência
da cor a destacar-se de outra. Brilhante, pulsante, celebra. Pára o
carro e salta. Não poderia simplesmente deixar para trás o espetáculo
que não se repetirá.
A vontade é de voar sobre aquele mundo. Voar, planar,
pairar até pousar nas copas amarelas. Misturar-se aos insetos que
desconhece, às flores que não sabe o nome e aos pássaros que voam
como ela gostaria de fazer. Voa cada vez mais rápido, o vento no rosto, o
olhar lá do alto, sente o aroma da mata subindo pelo ar, alcançando-a,
orientando-a em direção às manchas amarelas. Nada mais importa
além da transformação daquele espaço em algo tão particular. Distinto
local, a encosta de verdes e amarelos. O sol alto no horizonte toca seu
rosto, e ela, acordando em um só tempo, do vôo rasante, pousa na terra
com o coração acelerado. Que horas serão?
Para Bachelard (1965) a imensidão é um estado já plenamente
constituído desde seu início, inteiramente. Por que não seria a
imaginação acionada automaticamente diante da imensidão? Segundo
o autor o início da sensação de imensidão é imperceptível, porém deve
ser ativado sempre da mesma maneira. Um objeto agora próximo logo
se encontrará distante, mas na distância, a outra parte é a contemplação
primeira e imensa. Imensidão que está em cada um e aparece quando a
situação deflagra a imobilidade do homem.“A imensidão está em nós.
Está aderida a uma espécie de expansão de ser que a vida reprime, a
prudência detém, mas que continua na solidão. Enquanto estamos
imóveis, estamos em outra parte, sonhamos em um mundo imenso. A
imensidão é o movimento do homem imóvel”4 .
Entende-se por imobilidade o estado de suspensão, de não
reação, de não pensamento, de não racionalização. Estado de entrega
ao que se apresenta. Qualquer coisa pode ter a dimensão do infinito:
irreconhecível e sentida. Os poetas entendem o homem como infinito.
Pierre Albert-Birot, por exemplo, diz: “eu me sinto como um pedaço de
pluma/ dono do mundo/ homem ilimitado”5 .
Para discutir melhor a imensidão e a sensação de infinitude,
Bachelard faz uso da imagem do bosque infinito existente interiormente.
Fala do espaço do sonho e do devaneio quase como quando se perde
a noção do tempo cronológico e se deixa levar até outras dimensões.
“Apesar de parecer paradoxal, é essa imensidão interna que dá o
verdadeiro significado a certas expressões a respeito do mundo que se
oferece à nossa vista”. (BACHELARD, 1965, p. 237)6
Bosque que se perde de vista, infinito, imagem angustiante
posto que quando não se sabe onde está, não se sabe para onde ir.
O bosque, sobretudo, com o mistério de seu espaço
indefinidamente prolongado além da penugem de seus
troncos e de suas folhas, espaço escondido para os olhos, mas
transparente para a visão, é na verdade um transcendente
psicológico.7

Marcault e Thérèse Brosse dizem que à imagem do bosque,


enorme espaço que angustia, se pode contrapor a outra situação. Há
alguma coisa a se expressar aqui que excede a própria expressão. O que
deve ser expresso é a grandeza oculta que ultrapassa o cotidiano em sua
profundidade e transporta o sujeito para além de si mesmo. É preciso
viver o bosque, não somente estar nele. É preciso sentir-se bosque,
contato direto entre sujeito e objeto.

Fragmento amarelo 2: papéis amarelos


Ano: 1979, mês de abril.
Local: Rua Inglês de Souza, Rio de Janeiro.
A tarde é de calor e vento, final de verão cansativo. Sentada
no chão da varanda de azulejos pretos, desgastados pelo tempo. A
varanda-espaço, quase uma varanda que poderia ser qualquer uma.
Sua indiferença, beirando o absoluto, nascia de algumas coisas que
aconteciam lá, mas que, curiosamente, não tornavam o espaço especial
até aquele dia em abril de 1979. O espaço é singular.
O que viu foi um punhado de papéis amarelos, ordenados
na mesma direção, arrumados sobre o chão de concreto da rampa
da garagem, bem organizados, imóveis naquela ventania - adernados
como barcos à vela. Não podia se aproximar ou quebraria o encanto
daquela visão insólita. Uma organização sem forma, ou quase uma
forma determinada, como cardume de peixes que se volta e revolta ao
toque. Insólitos papéis amarelos quase desbotados.
Ela sempre pensou que o vento tinha por função tirar as coisas
do lugar, mas qual o que. Ele era forte o suficiente para movimentar os
pedacinhos. Mas não, insistiam em ficar agarrados ao chão indiferentes
aos acontecimentos, apenas adernando para lá e para cá. Como os
papéis poderiam se arrumar daquela maneira e ainda suportar o
vento? Continuavam ali no chão – pouco movimento. Geralmente são
leves os papéis! A lembrança de Lewis Carroll foi imediata. Aquela
não é brisa delicada, mas os papéis continuavam adernados, oscilam
pouco, sem sair do lugar. Grudados no chão. Grudados no chão.
De repente levantam vôo. Os papéis amarelos levantaram vôo.
Trôpegos e oscilantes todos igualmente voam, todos se movem, saem dos
lugares ao sabor sem dar confiança ao vento. Vontade própria, como
se quisessem ir para determinado lugar. Bater de asas, pedacinhos de
papel. Borboletas.
Longe de se entregar ao prolixo das impressões, longe de
perder-se em detalhes de luz e sombra, o indivíduo se sente uno ante
a impressão essencial que busca sua expressão. É o que, em resumo,
os autores chamam de transcendente psicológico. O evento como
infinitude interna procura em quem se apresentar. A solidão é marca de
infinitude apresentada sem julgamentos.
Acredita-se que estar no mundo entregue às condições
da imensidão interna é o que faz com que o bosque e seu mistério
sejam detonadores do estado uno proporcionado pela experiência:
espaço, tempo, infinito, imensidão e sujeito. Ao cabo da suspensão
dos julgamentos e do tempo, terá havido transformação de espaço em
local, terá havido transformação de qualidade do espaço vulgar em
alguma coisa especial, com características que lhe serão próprias pelo
tempo que durar a experiência, tendo a sensação de infinito participado
intimamente na transmutação perceptiva. Quando se diz que o local
se mostrou é porque, transitoriamente, também houve a identificação
de um site specific, que poderia ter ocorrido em qualquer lugar. Uma
vez, porém, que se deu em determinada hora, dia e local, torna-se ali
marcado, mesmo que temporariamente.

Fragmento amarelo 3: balão


Ano: 2003, mês de junho.
Local: Rua Smith de Vasconcelos, 63, Cosme Velho, Rio de Janeiro, RJ.
Sete horas da manhã de junho e uma suave e refrescante
bruma disfarçava as cores do mundo. A névoa esconde pedaços e os
espaços que desvela, ocultam-se. Entra no carro e respira aquele frio
delicado. Fora do carro, do lado esquerdo, um pequeno movimento.
Na brisa mansa que movimenta o mundo, a dança do leve balão de
borracha - amarelo intenso – que se destaca na paisagem e flutua pelo
espaço à sua própria revelia. Quem saberá da capacidade dos balões
de se deixarem levar ao vento, como pequenos e frágeis seres que não
desejam controle?
Dia cinza claro na rua. Só ela, ou havia mais alguém? Não se
sabe. O espaço, o tempo e o amarelo. O silêncio é veloz no mundo e o
balão sobe e desce, voa, encosta no muro de pedras, quase vai para a
rua, volta a ser levado para cima, cai no chão – não estoura – segue
seu caminho de vento e de amarelo, desenhando, e ela, ela, ela, como?
Ela inerte, não pensa, quase deixa de respirar. O tempo esquecido e o
vento a movimentar; o silêncio é mais forte que o mundo, lá.
O vento não pára, o tempo não lhe rouba nada. A cabeça
encostada no espaldar do banco do carro quer provar que vai acabar
no alcance do que finda. O evento, pequeno fragmento deflagrador,
já lembrança sua. Liga o motor do carro. Nas lembranças tão breves
segue o caminho, e o balão, venta.
Ao final do acontecimento o processo é guardado na memória,
podendo ser reativado junto a todas as possibilidades de transformação,
trazidas pelas lembranças no presente, também responsáveis pela
contínua renovação da vida. A experiência de infinito pode ser recriada,
relembrada sempre como nova através da lembrança, mas, no entanto,
a sensação de tempo afetivo, perdido, não cronológico, não se repete.
Cada vez que se apresenta no ser é única e irreproduzível, pois as mesmas
condições não se repetirão. O que garante, porém, às possibilidades de
repetição, a certeza da mesma sensação de amplidão interna?
Mas longe de se entregar as impressões fragmentadas, de
sombras e luzes, de detalhes, o indivíduo percebe uma impressão
essencial que o leva à experiência psicológica que ultrapassa ao próprio
sujeito. “Melhor dizendo, para se ‘viver o bosque’, nos encontramos ante
uma imensidão imóvel, ante a imensidão imóvel de sua profundidade.
O poeta sente essa imensidão imóvel do antigo bosque”8 . Só assim
se pode viver o bosque, se o objeto for o infinito interior. Apenas
entregando-se ao inevitável, ao acaso surpreendente, ao evento que tira
o ser da relação com o mundo e o foca para um determinado ponto
longe da racionalidade. É somente através dos sentidos que se pode
viver a imensidão, e falar dela é tocar no espaço interno de cada um,
passível de expansão e intocável pelo tempo.

Fragmento amarelo 4: ipês


Ano: 2003, mês de setembro.
Local: Praia de Grumari, Rio de Janeiro, RJ.
Domingo de sol no inverno de setembro, antes da primavera.
Foram até a praia de Grumari, no Rio de Janeiro, para os portugueses
descobrirem o Brasil. Descem a ladeira de acesso à praia; grande
surpresa: desfolhadas árvores amarelas, de grandes e altas copas,
lançam-se na paisagem envolta por verdes; abaixo do azul do céu. Ipês
amarelos. Olha a esquerda, amarelas ilhas em frente à praia - feitas de
mais um sem números de árvores floridas. O amarelo contra a pedra
cinza do verde mar.
Tudo gira da esquerda para a direita e da direita para a
esquerda. Incessante carrossel. Fragmentos, fragmentos, fragmentos.
Grita: amarelo, amarelo, amarelo. Grita. A voz deflagrada por tanta
cor, pára o carro e salta. Não ouve. Não sabe onde está. Não pensa.
Perde-se no susto do amarelo impetuoso – surpresa plena e grata.
Deixa de se mover, não há qualquer intenção a ser realizada, apenas
continuar amarelada naquela realidade amarela singular. Sem
intermediários. O verde denso em volta. A forma grandiosa se destaca
de todo o resto. Amarelo efêmero que ela sabe estar ali, na próxima
semana não, no próximo mês quem sabe - amarelo.
Bosque piedoso
Bosque esgarçado de onde não retiramos os mortos,
Infinitamente fechado, cheio de velhos caules rosas,
Infinitamente apertado no mais velho e cinza, pintado,
Sobre o leito de musgo enorme e profundo grito de veludo,
Bosque piedoso9

Pierre Gueguén (apud BACHELARD, 1965, p. 238) alerta


para uma dimensão, diferente da revelada pela imagem do bosque,
chamada por ele de tranqüilidade transcendente ao silêncio. O bosque
murmura, produz ruído, chove, venta, se movimenta em mil vidas, o que
não impede, entretanto, o pleno gozo da tranqüilidade transcendente.
Possibilidade de não ansiedade e entendimento pelo cognitivo.
O bosque torna-se um estado de alma e os poetas o sabem
- novo estado como infinitude transformadora do espaço em outra
coisa, em local. Agora a imensidão existiria no evento, na experiência
modificadora da realidade. O bosque é, então, estado de alma e não mais
espaços angustiantes, enormes e indefinidos, com ruídos ou movimentos
quaisquer. Todo entorno está se movimentando no tempo suspenso e
esse é o momento quando o sujeito experimenta o infinito. Nada pode
ser controlado e o sujeito está totalmente entregue à experiência, fora
do tempo e vivendo o bosque como se fosse de fato parte dele. Ele não
pede nada além da entrega à sensação que arremessa o sujeito ao estado
de percepção transmutada.

Fragmento amarelo 5: bruma


Ano: 2003.
Local: Pau Grande, Magé, RJ.
O almoço foi na casa de São Todos Jorge. Não havia
cor na paisagem. De tarde, na terra de Garrincha. Passa o dia em
busca de outras paisagens. A neblina vinha chegando. Com a noite
que acompanha o inverno, num lusco-fusco de mundo começando a
sumir, tudo a se esconder, devagar. De noite todos os gatos pardos são
amarelos. Caminhou pensativa.
A curva que levava à fonte de água mineral mostrou o
amarelo: enorme pedaço de tecido solto no chão, amorfo, em regime
de urgência. Lá está, sem ninguém, lá ficaria, esperando o dia seguinte.
A névoa mais uma vez a envolve, com vozes de quem fala ao lado.
Então, ali na curva, enorme, explodindo dentro do frio, a mancha
disforme caía sobre si mesma no dever de ser o próprio peso. Sem
limites geométricos, impõe-se no espaço escurecido daquele pedaço de
terra. A neblina e o amarelo entram nos poros, pelas aberturas do rosto
raiam-lhe a face, esfriando orelhas. Surpresa.
Falar sobre infinito fora do sujeito é discuti-lo em termos
científicos, mas vivenciar o tempo não cronológico pode levar a pessoa
à sensação de infinito metafísico. Há bosque dentro do poeta que, a
despeito de tudo a sua volta, fez o tempo ser o que é: imóvel. Ele não
percebe para além da percepção de ser bosque, de ser folha, árvore,
aroma.
No momento em que o espaço do poeta se transforma,
transforma também o bosque em local. Bosque que passará a existir
na memória, sendo evocado pela lembrança que recoloca textualmente
o local no mundo. Bosque já contado pelos avós, pais, aldeões, com
mais de cem anos ao surgir no poeta. “Aqui está meu bosque ancestral.
Todo resto é literatura” (ROUPNEL, s/d, p. 75). Recorre o assunto: o
presente determina o passado.
Bachelard (1965) afirma que a imensidão pode ser considerada
categoria filosófica do sonho e este se alimenta de diversos espetáculos,
mas por uma espécie de condição inata, contempla a grandeza interna.
A contemplação desse espaço determina uma atitude especial que
coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante, no entanto, do que
se poderia chamar de infinito. A imensidão está em cada um de nós e
quanto mais imóvel ficamos, maior é a possibilidade dela se mostrar.
Mas Bachelard (1965) está a falar de sonhos, mas por que não
falar dessa mesma sensação de infinito em que se perde a noção de
temporalidade e de espaço exterior e se entra em uma outra dimensão
perceptiva de tempo afetivo e de espaço interno? Então se fala da
imensidão interna e que ela se associa a cada momento da sensação
que transforma a realidade, a vida fora do tempo convencional, dentro
da impressão de que o resto do mundo continua em sua consciência
plena, mas que, para o sujeito, o que importa é o deleite de viver a
temporalidade como infinito. Sempre essa imensidão que se mostra fora
do cotidiano sendo por ele deflagrado.
Interessantes são as anotações de Taine sobre sua viagem aos
Pirineus, quando viu o mar pela primeira vez. Este lhe houvera sido
apresentado em densas pinturas, dramáticas, sublimes, enormes em sua
imaginação. Qual não foi sua decepção ao ver-se diante dele e não se
emocionar? A perspectiva das pinturas, o mar infinito, as cores pintadas,
velas, grandes ondas, sublimes paisagens è beira do mar não podiam
jamais ser substituídas pelo que viu. A visão do real oceano roubou-lhe
a dimensão infinita, fazendo lento o processo de aceitação do que via e a
restituição de sua verdadeira dimensão interna. A expectativa havia sido
maior do que a realidade oferecida e perdera com isso sua dimensão
do infinitamente grande. O acaso, quando ocorre e é acolhido como
a sensibilidade o faz, seja a priori ou hipoteticamente, abre as portas
para o infinito como temporalidade. Onde está o acaso? No mundo, em
qualquer lugar e em qualquer momento.

Notas Bibliogáficas:

1- KANT, 1993, p. 63-64.


2- COMTE-SPONVILLE, 2000, p. 23
3- RONSARD apud COMTE-SPONVILLE, 2000, p. 80
4- BACHELARD, 1965, p. 236. “La imensidad está en nosotros. Está adherida
a una especie de expansión de ser que la vida reprime, la prudencia detiene,
pero que continúa en la soledad. Em cuanto estamos inmóviles, estamos en otra
parte; somamos en un mundo inmenso. La inmesidade es el movimiento Del
hombre inmóvil”.
5- ALBERT-BIROT, apud BACHELARD, 1965, p. 237. “Y me hago de un
pluazo/ Dueño Del mundo/ Hombre ilimitado”.
6- BACHELARD, 1965, p. 237. Por muy paradójico que parezca, es a menudo
esta imensidad interiro la que da su verdadero significado a ciertas expresiones
respecto al mundo que se ofrece a nuestra vista.
7- MARCAULT; BROSSE apud BACHELARD, 1965, pp. 237-238. “El
bosque sobre todo, con el misterio de su espacio indefinidamente prolongado
más Allá Del velo de sus troncos y de sus hojas, espacio velado para los ojos,
pero transparente a la visión, es un verdadero transcendente psicológico”.
8- BACHELARD, 1965, p.238. “Cómo decir mejor, si se quiere “vivir el
bosque”, que nos encontramos ante una imensidad inmóvil, ante la inmensidad
inmóvil de su profundidad. El poeta siente esta inmensidad inmóvil del bosque
antiguo”. (tradução nossa)
9- JOUVE apud BACHELARD, 1965. p. 238. “Bosque piedoso, bosque roto
del que no quitamos a los muertos/ infinitamiente cerrado, tupido de viejos
tallos rosas/ infinitamiente apretado en más viejo y gris, pintado/ Sobre el lecho
de musgo enorme y profonfo en grito de terciopelo./ Bosque piedoso.”

Fontes Bibliográficas:
BACHELARD, G. La poetica del espacio. Mexico: Fondo de Cultura
Econômica, 1965.
KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime:
Ensaio sobre as doenças mentais. São Paulo: Papirus, 1993.
COMTE-SPONVILLE, A. O Ser-Tempo. Algumas reflexões sobre o tempo da
consciência. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1971.
NOVAES, Adauto. (Org.). De olhos vendados. In: O Olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
STRAUSS, Levi. Mito e significado. Lisboa: edições 70, 1979.

Cristina Pape

Professora Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,


Instituto de Artes. Possui doutorado em Artes Visuais pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro(2006), mestre em Educação pela Fundação
Getúlio Vargas-IESAE ( 1987) e Licenciada em Ciencias Biológicas
pela Universidade Santa Úrsula(1981). Desenvolveu pesquisas em
restauração de obras de arte contemporâneas em Düsseldorf(Alemanha)
Como artista plástica participou de várias exposições individuais e
coletivas no Brasil, Estados Unidos e Europa. Tem experiência nas
seguintes áreas: restauração de obras de arte( antigas e contemporâneas),
escultura, história da arte, instalações, performance, ensino de arte e
coordenação de projetos de arte.

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