Cristina Pape
2005-2009
MEMÓRIAS
Memória 1: verdades?
Quão interessante pode ser uma criança depois que, já adulta,
escreve suas memórias! Todos acabamos por usar vozes de outros ao
falarmos de nós; mas não as percebemos com muita clareza. O tempo
pode inexistir nessa tarefa de ouvir.
Morávamos no bairro do Jardim Botânico. A cor do milho
amarelo, amarelo escuro, muito sedutor, faz do gosto a sedução de um
muito mais. Meu pai tinha um carro azul claro, marca Cônsul, e uma
de suas maiores alegrias era o passeio aos domingos de sol - numa
velocidade que, certamente, não ultrapassava os sessenta quilômetros
por hora (inútil informação).
Não foram poucos os domingos de sol naquela cidade do Rio
de Janeiro da década de cinqüenta, quando tudo era mais ameno e
provinciano. Cidade onde quase nada de extraordinário acontecia.
Será? Pacata vida de criança, com emoções contidas, recebe o impacto
dos domingos de sol, em longos passeios de carro pela orla. Do Leme
a São Conrado: expectativa de comer milho, churrasquinho em
novidades ternas.
O caminho pela Avenida Niemeyer, tortuoso, e o mar, lá
embaixo, um pouco de medo. Medo interessante, a vida infantil. Eu
sempre gosto das situações de perigo e, passear por ali, certamente o
era. O mar bate nas rochas.
A cor amarela chama a atenção e passear indicava o encontro
com o objeto amarelo. Verdadeiro desejo: a carrocinha amarela de
sorvetes Kibon, deliciosos K-Coisa. Que coisa, doce é a espécie de
mistério. Avistar aquela cor mágica era sempre, e certamente, um
momento de grande tensão dentro do carro. Forças disputavam algo, a
possibilidade de um desejo, do desejo. Pelo menos do meu.
Lá, do lado de fora do carro, sem saber do que acontecia,
o mundo continua a mover-se. Sua capacidade de identificar a
carrocinha era, provavelmente, maior do que a deles de distraí-la.
Lembra bem de ser chamada a olhar as coisas, onde nada existia. Era
como se o inexistente tivesse que ser muito chamado de interessante.
Olhar no vácuo afetivo só provoca frustrações harmônicas à
expectativa da descoberta de alguma coisa. Acontecimento forjado não
é acontecimento, nada é , sequer acaso da aventura.
Está claro? Creio que não. Sei das quantas carrocinhas que
passaram, desapercebidas por mim. Ponto amarelo longe, carrocinha
ou eficácia de alcatruz. O amarelo denuncia. Já não olha qualquer
oferecimento. A experiência, já maior, é tão grande quanto a certeza
de que ali, fora do monólogo interno, só há vazio, da cor de um nada
amarelo.
O que é o tempo? Tantos o pensaram, estando nele e por isso
difícil para o senso comum perceber que quem passa somos nós e não
ele. Onde está a verdade? Mesmo no campo da ciência falar em verdade
é abusar de problemas. Contudo, aqui não há arrogância em encontrá-
la, apenas se toma a especulação filosófica como caminho reflexivo.
André Comte-Sponville (2000), em Ser-Tempo – Algumas
reflexões sobre o tempo da consciência -, apresenta com tanta liberdade
maneiras de se pensá-lo que a opção foi adotá-lo como referência e
reproduzir, despudoradamente, as indagações e divagações do seu
trabalho. Comte-Sponville defende que o tempo deve ser analisado e
poetizado na consciência.
Memória 3: Kandinsky
Chegamos ao sítio num dia, certa tarde há muitos anos. Ano
que não se sabe qual. Pelas flores da estrada o espetáculo se torna
amarelo-azul-ensolarado. Visitar o pavão e esperar, talvez, a exibição
da raiva ou da alegria em plumagem tão deslumbrante - recurso último
a ser guardado.
A gaiola logo vira cadeia; perverso pavoneio. As aves
pequenas do galpão, jaula de todas as cores, nunca produzem rebento
sequer. Por revolta ou infelicidade cantavam todos os dias, os dias
todos, todos os dias, inteiros de chuva ou sol, cantavam nas gaiolas.
Distância cruel que os obriga a cantar. Um a ver o outro pela distância
da parede vazada, fosse de alumínio ou madeira. Ao grande caçador
negado será o direito de buscar cobras.
O cheiro se fazia por um misto de fezes, aves, piolhos, remédios,
alpiste, milho secando no sabugo, frutas colhidas amadurecendo,
envelhecendo, e café secando. Tudo isso confluía para um cheiro único,
inconfundível. Naquele espaço do meio, sempre do meio, nunca inteiro,
intermediário, havia um monturo no canto do salão a despertar a
curiosidade. Pássaros cantando – avisando? – cobra venenosa? Tantas
pelo sítio se arrastam, que o medo, medo é. O medo levanta pedaço
de pano e descobre, de surpresa intensa, um cacho de bananas ouro.
Bananas amarelo ouro. Depois desse dia, o cheiro é sempre amarelo.
Na gaiola um pássaro, que hoje ela sabe ser Kandinsky, que fala vovó.
Memória 6: Europa
As malas prontas para dois, enormes, dedicadas ao muito
tempo, mas sem ela. A viagem seria longa e o trajeto de navio, ancorado
no cais no Rio de Janeiro. Nossos pais e avós, bem trajados, subiram
com ela a bordo para conhecer a cidade flutuante, cuja murada recebia
as ondas do mar. A ponte é fina e alta, tudo curioso, mas não para
mim. Deslembra muito mais do que acontece; talvez maresia e enjôo.
Pela rampa até o cais vê o navio admirável se afastar, devagar. Sofria
a pequena distância que aumentava se tornando, aos poucos, quase
insuportável. O navio volta-lhe as costas e a água salgada, sem ter
quem a secasse, secou.
O tempo passa
No amarelo
O crepúsculo.
Ela continua, como sempre, a se sentar naquele banco alto.
Desenha, observando a mãe, e aos poucos um novo idioma nasce:
“os trigais, os mesmos”; “em quebra, revela”; “em verde, perdura”;
“cheio vagar”, “de vento e de tempo”; “em brado, campo, em claro”;
“no verde, no meio, nomeia”. “Luz”. O tempo, e esse tempo, longo
tempo que passou. Em uma volta do tempo estavam todos de novo no
cais. Os dias subseqüentes formam-se intensos. Tempo, és um e jamais
retornas em mim. Serás já outro?
O tempo passa
No vento
Amarelo.
Esse tempo que continua, independente de qualquer ação
humana, mas que as contém, essa sensação de infinito do qual tanto
falamos e procuramos entender, talvez seja a intensidade dos momentos,
sempre no presente, experimentada quando em contato direto com o
evento. Não há expectativa de futuro ou lembrança de passado. No
espírito não há dois ou mais tempos, apenas fruição. Exclusivamente, o
espírito está nesse tempo do real: presente. O tempo pode ser o infinito,
e ele se encontra na experiência cuja sensação leva o sujeito ao uno,
unidade que compõe o universo e da qual se faz parte - imensidão
interna de cada um.
Levi-Strauss (1979) em seu ensaio O encontro do mito e da
ciência, alerta para a distância que existe entre a ciência e o mundo dos
sentidos, das paixões e dos desejos, mundo percebido e vivido pelo ser
humano. O mundo sensório, ilusório, é contraposto por ele à ciência e à
crença no intelecto. Leibniz no século XVII, dentre outros pensadores,
também acreditava que o mundo dos sentidos é secundário por ser
mutável, inconstante, não sendo os sentidos passíveis de nortearem a
verdade. Como comprovar o sentimento, a sensação de prazer ao sentir
um aroma, ao se deixar embevecer por uma cor? Como comprovar a
imensidão que cada um carrega em si?
FRAGMENTOS
Notas Bibliogáficas:
Fontes Bibliográficas:
BACHELARD, G. La poetica del espacio. Mexico: Fondo de Cultura
Econômica, 1965.
KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime:
Ensaio sobre as doenças mentais. São Paulo: Papirus, 1993.
COMTE-SPONVILLE, A. O Ser-Tempo. Algumas reflexões sobre o tempo da
consciência. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1971.
NOVAES, Adauto. (Org.). De olhos vendados. In: O Olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
STRAUSS, Levi. Mito e significado. Lisboa: edições 70, 1979.
Cristina Pape