Jorge Cruz
O cinema brasileiro, nos anos 1920, contava com excelentes
técnicos, a maioria estrangeiros, muitos cavadores1 e uma proposta de
profissionalização da indústria elaborada a partir da associação entre
Adhemar Gonzaga (Para Todos) e Pedro Lima (Selecta), que juntaram
forças para constituir a Cinearte e, a partir de 1926, também com o
diretor expoente do chamado Ciclo de Cataguazes, Humberto Mauro
(cf. Mello, 1996, p. 15-16). Segundo Mello, o cinema de então era pré-
griffithiano ou “primitivo”, porquanto não havíamos assimilado, até
aí, as propostas de D. W. Griffith (1996, p. 15) e, tampouco, nenhum
cineasta brasileiro (ou atuante no Brasil) havia proposto inovação
em qualquer sentido que fosse: nem pelos caminhos propostos pelos
realizadores soviéticos (como Eisenstein, Pudovkin, Kulechov, Vertov,
entre outros), nem alemães (Lang, Murnau, etc.) ou franceses (Dreyer,
Gremillier, etc.).
Neste contexto, Mário Peixoto (1908-1992) realizou apenas
um filme em toda a sua vida, Limite4, vindo a concluí-lo em 1931,
portanto ainda jovem, aos 23 anos de idade2 .
II
III
Voltamos então para Brutus saindo de casa e indo para oi cinema onde
toca piano durante a projeção dos filmes. O público se diverte.
Roteiro Mapa
99-following Tela branca 162 Tela de cinema: vazia.
to shot
100- Pianista fala com os companheiros
following to para os lados – embora invisíveis
shot à lente -
101- Tela branca – apaga-se a luz 163 Escuro [tela negra]
following to Tela ilumina-se: título do filme
shot Começa filme de Carlitos.
Corte no filme
Corte no filme.
CORTE
[p. 77]
164 [Visto de cima]
Brutus tocando.
CORTE
[p. 90]
165 Filme de
Carlitos
Continua.
Corte no filme.
Corte no filme.
Carlitos foge.
CORTE
102- Pianista que toca – máquina afasta 166 [Visto de cima]
following to deixando ver a primeira fila de Brutus tocando.
shot espectadores que ri CORTE
167 Mão de Brutus no teclado.
CORTE
168 Riso.
CORTE
169 Riso.
CORTE
170 Riso: homem
[p. 91]
170- Esfrega nariz
(cont.) CORTE
171 Riso (mulher)
CORTE
172 Riso (homem)
CORTE
173 Edgard Brasil dorme
CORTE
174 Riso (mulher vista de baixo)
CORTE
175 Brutus tocando [igual 166].
CORTE
103 fusão Bocas da fileira toda que riem 176 Platéia ri.
close-up tomadas de uma só vez em ângulo. CORTE
177 Riso (homem: igual 169)
CORTE
178 Edgard Brasil dorme [igual 173].
CORTE
179 Platéia ri [igual 176].
CORTE
[p. 92]
180 Brutus tocando [igual 166].
CORTE
181 Riso: mulher [igual 171]
Esfrega nariz.
CORTE
182 Riso [homem: igual 168].
CORTE
183 Platéia ri [igual 176].
CORTE
184 Edgard Brasil dorme [igual 173].
CORTE
185 Brutus tocando [igual 166].
CORTE
186 Riso [homem visto de baixo: igual
169].
CORTE
187 Riso [mulher vista de baixo: igual
174].
CORTE
188 Platéia rindo [igual 176].
CORTE
[p. 93]
189 Brutus tocando [igual 166].
CORTE
190 Riso [homem: igual 170].
CORTE
191 Platéia rindo [igual 176].
CORTE
192 Riso [homem: igual 168].
CORTE
193 Edgard Brasil dorme [igual 173].
CORTE
194 Riso [igual 172]
CORTE
195 Platéia ri [igual 176].
CORTE
196 Riso [mulher: igual 174].
CORTE
197 Brutus tocando [igual 166].
CORTE
198 Edgard Brasil dorme [igual 173].
CORTE
[p. 94]
199 Brutus tocando [igual 166].
CORTE
200 Riso [mulher: igual 171].
CORTE
201 Platéia ri [igual 176].
CORTE
202 Mãos de Brutus no teclado [igual
167].
CORTE
203 Riso [mulher: igual 172].
CORTE
204 Mãos de Brutus no teclado [igual
167].
CORTE
104- fusão Porta da casa da mulher 2 – não se vê 205 Porta da casa (LONGO)
shot luz pelas frestas – tempo – máquina Panorâmica para
gira para o lado e A janela
- tempo -
[p. 95]
105-shot Janela de venezianas – não se vê luz
pelas frestas – focaliza longo tempo
FIM DO FLASHBACK
106- fusão Ombro do homem na barca – ouvido 206- fusão Orelha e pescoço de Raul (LONGO)
close-up – e perfil – se percebe ainda que CORTE
embora ouça a história está atento a
outra coisa [...]
VI
Por fim, cabe comentar que dos três, Olga é a única cujo
crime que a levou àquela situação de desespero não é revelado.
Tanto Taciana, quanto Raul, cometeram crimes de adultério: ela,
casada, teve um amante; e ele foi o amante de uma mulher casada.
Olga, no entanto, fugiu da prisão e, diferentemente dos outros,
parece não ser levada à situação extrema no barco, por princípios
morais (ou de culpa).
A partir deste breve estudo das três história contadas em
flashback, podemos constatar que a maioria dos elementos presentes
no filme já estavam previstos no roteiro; e verificar que as opções
do diretor, durante as filmagens, de manter ou alterar os pontos
de vista previstos, por exemplo, no plano 33 (do roteiro), que, no
filme, mostra os pés de Olga deixando a prisão, como no roteiro, e a
sua fuga (plano 39 do mapa), denotam outra interpretação do texto;
algumas vezes do diretor ir muito além do roteiro, como ocorre
nos planos 40 a 45 do mapa, nos quais a fuga de Olga é acrescida
de diversos elementos. Na verdade, aqui, a “arrancada da mulher”
em fuga prevista no roteiro é enriquecida por diversos elementos
lineares que tendem ao infinito e outros que dramatizam a sua
solidão e o sucesso da empreitada, acentuada pela longa duração da
caminhada de Olga pela estrada, rumo ao infinito. Também no plano
35 do roteiro, onde lemos apenas “roda de trem”, no filme, temos
“roda [de trem] parada – começa a andar / Passa pela / Câmera /
Entra outra roda, / Passa. / Roda / Girando / Com / Velocidade”.
Assim, neste flashback, cabe comentar que a idéia de fuga
é mantida, mas no filme é acrescentada a idéia de infinito. A idéia
de distância presente na roda de trem é mantida, mas é acrescentado
o movimentos. A idéia de construção de uma outra vida é mantida,
mas é acrescentado o abatimento, e assim por diante . Vemos, então,
como, neste flashback, as idéias contidas no roteiro manuscrito de
Mário Peixoto estão presentes no filme, mas aqui, elas aparecem
mais detalhadas, mais ricas, foram transformadas, enfim, em
cinema.
Notas bibliográficas:
1- Cavadores são aqueles que arranjam colocações, negócios, etc., até
por meios ilícitos, ou que, mesmo sem aquela competência específica, se
aventuram a dadas realizações.
2- Sobre a idealização e realização de Limite, ver Mello, 1978, 1996a e b.
Cabe destacar que muito pouco se escreveu sobre Limite. Os principais textos
foram escritos por Mello (1978), o texto de introdução ao que ele chamou de
Mapa, e que é constituído pela reprodução dos fotogramas do filme, desde os
letreiros iniciais até o fade final; o seu pequeno livro em que pretende mostrar
ao mundo o valor do filme (Mello, 1996); e os textos de Farias, um que ele
apresentou o filme em 1931 e, praticamente o mesmo, em que ele prefacia o
Mapa de Limite (Mello, 1978).
3- Podemos constatar as preocupações de Eisenstein já no seu texto Palavra e
imagem (1990, p. 13-47).
4- No mapa e nos textos, Mello concebe a seguinte divisão do filme: prólogo,
oito partes da diegese e epílogo.
5- Todos os trechos grifados sem referência são tomados do Mapa, em Mello
(1978).
6- Neste quadro, mantivemos os cortes de linhas da publicação.
7- No mapa, estes comentário sobre a duração dos planos aparecem como
estão aqui, entre parênteses.
8- Os nossos comentários aparecem entre colchetes.
9- A seqüência 43 dp scenário, que diz: rua – movimento, foi deslocada para
este ponto, na montagem.
10- Mello, no mapa, anota que “Raul permanece ouvindo” (p. 66), o que parece-
nos uma inferência sem um motivo que a justifique.
11- Como não reproduzimos os quadros comparativos com os flaskbacks de
Taciana e de Raul, que são extensos, as referências se remetem diretamente ao
mapa (Mello, 1978).
12- Aqui temos um elemento diferente do roteiro manuscrito, uma página,
também manuscrita, intercalada, o que demonstra que Mário Peixoto reviu e
acrescentou elementos no seu texto.
13- Aqui surge, de novo, a sensação de infinito: com a câmera baixa, vemos
um poste que aponta para o infinito do céu, entre um homem e Taciana. Esta
seqüência, mesmo que sintética no scenário, está toda no filme.
14- Segundo nota de Mello, “não há 1º letreiro, provavelmente por esquecimento
de Mário Peixoto” (1996, p. 103).
8- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRUZ, Jorge. Roteiro: obra invisível. Concinnitas. Revista do Instituto de
Artes/Uerj, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 136-157, mar 2003.
EISENSTEIN, Serguei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
GRILO, João Mário Lourenço Bagão. A ordem no cinema: vozes e palavras
de ordem no estabelecimento do cinema em Hollywood. Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, Faculdade de ciências Sociais e Humanas, Departamento de
Comunicação Social, 1993. Tese de doutoramento. Mimeo.
MELLO, Saulo Pereira de. Introdução. In: PEIXOTO, Mário. Escritos sobre
cinema. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000a. p. 11-44.
------. Sobre os escritos. In: PEIXOTO, Mário. Escritos sobre cinema. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2000a. p. 95-206.
------. Limite. Rio de Janeiro: Rocco, 1996a.
------. Introdução. In: PEIXOTO, Mário. Limite: “scenario” original. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1996b. p. 11-16.
------. Sobre o “scenario” de Limite. In: PEIXOTO, Mário. Limite: “scenario”
original. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996c. p. 17-25.
------. Introdução. In: PEIXOTO, Mário. Limite (fotogramas do filme Limite).
Rio de Janeiro: Funarte, 1978.
PEIXOTO, Mário. Escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000a.
------. Limite (fotogramas do filme). Rio de Janeiro: Funarte, 1978.
------. Limite: “scenario” original. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.