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O mal de D.

Quixote
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Editores Assistentes
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Denise Katchuian Dognini
Dida Bessana
MARCIANO LOPES E SILVA

O Mal de D. Quixote
Romantismo
e Filosofia da História
na obra de
Raul Pompéia
© 2008 Editora UNESP
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

P927a
Pratta, Márcia Ap. Bertolucci (Márcia Aparecida Bertolucci)
Adolescentes e jovens... em ação!: aspectos psíquicos e
sociais na educação do adolescente hoje/Márcia Ap. Bertolucci
Pratta. -- São Paulo: Editora UNESP, 2008.
il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7139-872-6
1. Psiquiatria do adolescente. 2. Adolescentes - Condições
sociais. I. Título.

08-2423. CDD: 155.5


CDU: 159.922.8

Este livro é publicado pelo projeto Edição de Textos de Docentes e


Pós-Graduados da UNESP – Pró-Reitoria de Pós-Graduação
da UNESP (PROPG) / Fundação Editora da UNESP (FEU)

Editora afiliada:
Agradeço à Capes a bolsa concedida; aos colegas que
participaram das bancas de qualificação e defesa, es-
pecialmente ao professor Eduardo Faria Coutinho, que
gentilmente disponibilizou o décimo volume das Obras
de Raul Pompéia; a Evely Vânia Libanori e a Márcio
Renato Pinheiro da Silva, amigos nos momentos difíceis; a
Maria Lídia Maretti, a atenciosa orientação; e muito espe-
cialmente a Simone Tomiato Nunes, a quem dedico este livro.
“Quando Deus deixava lentamente o lugar de onde tinha
dirigido o universo e sua ordem de valores, separado o bem
do mal e dado um sentido a cada coisa, Dom Quixote saiu
de casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo.
Este, na ausência do Juiz supremo, surgiu subitamente numa
temível ambigüidade; a única Verdade divina se decompôs
em centenas de verdades relativas que os homens dividiram
entre si. Assim, o mundo dos Tempos Modernos nasceu e,
com ele, o romance, sua imagem e modelo.
Compreender com Descartes o ego pensante como fun-
dador de tudo, estar assim só em face do universo, é uma
atitude que Hegel, a justo título, julgou heróica.
Compreender com Cervantes o mundo como ambigüida-
de, ter que afrontar, ao invés de uma só verdade absoluta,
um monte de verdades relativas que se contradizem (verdades
incorporadas em egos imaginários chamados personagens),
possuir portanto como única certeza a sabedoria da incerteza
exige uma força não menos grande.”

(Milan Kundera, A arte do romance)


Sumário

Prefácio     11
Introdução     13

1 Cartografia da recepção crítica    23


2 A pandora de Raúl Pompéia    57
3 Os sentidos da história    121
4 Flores efêmeras e anjos prostituídos    163
5 O mal de D. Quixote e as doenças do romantismo    221
6 Um romantismo dilacerado    257

Referências bibliográficas    281


Prefácio

Movida pelo sucesso de O Ateneu, que teve grande repercussão


desde a época de sua publicação, passando a integrar de imediato o
cânone da literatura brasileira, a crítica dedicou-se desde então, com
afinco e entusiasmo, ao estudo dessa obra, deixando quase ao abandono
o restante da produção de Pompéia que, embora não menos valiosa,
manteve-se pouco conhecida do público e à margem do interesse de
editores. Com a publicação em 10 volumes entre 1981 e 1991 das Obras,
de Raul Pompéia, compiladas e organizadas por Afrânio Coutinho,
a situação de injustiça que cercava o trabalho do autor começou a ser
corrigida, tornando-se o conjunto de sua obra acessível ao público em
geral, e passando esta também a despertar o interesse da crítica. O
trabalho de Marciano Lopes e Silva constitui neste sentido um marco,
uma vez que tem por objetivo estudar a obra de Pompéia, buscando
compreendê-la em seu conjunto, e serve-se justamente como corpus
de contos, poemas em prosa (em especial as Canções sem metro) e al-
guns textos teórico-críticos do autor sobre literatura e artes. Partindo
de uma ampla pesquisa, a que não falta boa dose de erudição, o autor
constrói um diálogo extremamente rico e instigante com esses textos
menos explorados de Pompéia, buscando identificar, como ele mesmo
afirma, os valores cognitivos e éticos que orientam sua criação artís-
tica e lhe conferem organicidade. Além disso, procede a uma leitura
12  MARCIANO LOPES E SILVA

da fortuna crítica do autor, questionando alguns de seus postulados


básicos, como a classificação de sua obra no Real-Naturalismo ou no
Impressionismo, e desenvolve a hipótese, por ele mesmo lançada, de
que ela expressa uma visão de mundo romântica.
Do ponto de vista teórico, sente-se a presença de um sólido subs-
trato, composto por figuras como Bakhtin, Benjamin, Bourdieu, Cas-
sirer, Eagleton, Hauser, Löwy, Lukács, Praz, Todorov, Tomachevski,
Wilson, etc., sem falar nos filósofos Hegel, Kant e principalmente
Schopenhauer, que estão na base de sua argumentação; mas o autor não
se prende a nenhum deles especificamente, construindo, ao contrário,
uma linha de reflexão própria, que coloca num primeiro plano a obra
mesma de Pompéia e a tradição da literatura brasileira. Daí a presença,
também tão forte, dos principais críticos e historiadores da literatura
brasileira e da fortuna crítica de Raul Pompéia, que é amplamente
revisitada. Mas os pontos altos do seu trabalho são os momentos de
penetração no texto pompeiano, as exegeses textuais, que são marcadas
por arguta sensibilidade e dose inegável de criatividade. Também de
grande interesse, e na mesma esteira, são as comparações, aliás bastante
adequadas, com os textos de poetas franceses, especialmente Baude-
laire, cuja influência sobre Pompéia é apontada por diversos críticos
brasileiros e que figura em contraponto com este em toda uma seção
do trabalho, em exercício bem à maneira da Literatura Comparada.
No que concerne à linguagem, é uma tese muitíssimo bem escrita,
num estilo fluido e escorreito, de leitura densa, mas agradável, e que
reflete, como não poderia deixar de ser, a maturidade intelectual do
autor. Finalmente, a bibliografia é vasta e bem elaborada e as notas
corretas e adequadas, geralmente acrescidas da tradução bem feita de
textos em francês e espanhol.

Eduardo F. Coutinho
Introdução

“Como o próprio Lovejoy tinha previsto, a tentativa de curar


a febre romântica fazendo desaparecer pura e simplesmente a
palavra não foi adotada. A maioria dos pesquisadores parte
da hipótese mais razoável de que não há fumaça sem fogo:
se, há dois séculos, falamos de romantismo, se designamos
com esse nome uma variedade de fenômenos, isso deve
corresponder a determinada realidade. Uma vez que isso é
reconhecido, começam as verdadeiras questões: que fogo é
esse? O que é que o alimenta? E por que razão se propaga
em todas as direções?”
(Löwy & Sayre, Revolta e melancolia)

“A voz da crítica só tem sido alvo das atenções gerais quando,


no ato de manifestar-se sobre a literatura, emite uma mensa-
gem colateral sobre a forma e o destino de toda uma cultura.
[...] Atualmente, à parte sua função marginal de reproduzir
as relações sociais dominantes através das academias, ela se
acha quase inteiramente privada de tal raison d’être.”
(Eagleton, A função da crítica)

Talvez seja exagerado considerar Raul Pompéia um escritor maldito,


mas não é demasiado afirmar que ele se encontra entre os que têm sido
incompreendidos ou injustiçados. Apesar de sua obra ser relativamente
14  MARCIANO LOPES E SILVA

extensa, apresentando três romances, contos, crônicas, escritos políti-


cos, alguns textos de crítica e a obra Canções sem metro, composta por
poemas em prosa, ele é quase sempre lembrado apenas como o escri-
tor de O Ateneu. Fato que se reflete em sua recepção crítica, pois, se a
observarmos, veremos que preponderam largamente os estudos sobre
esse romance, muito pouco existindo sobre contos, Canções sem metro
e praticamente nada sobre o restante dela.
A concentração de estudos críticos sobre O Ateneu e a conseqüente
lacuna na recepção crítica do restante de sua obra parece ter duas expli-
cações. Primeiro, porque muitos críticos consideram O Ateneu a única
obra de maior valor produzida por Raul Pompéia, o que resulta em um
desestímulo ao estudo das demais. Segundo, porque a maioria de seus
textos permaneceu dispersa nos jornais da época por muito tempo, sen-
do reunida e publicada apenas no início da década de 1980, graças aos
esforços de Afrânio Coutinho e sua equipe. Entretanto, já se passaram
duas décadas e meia, tempo suficiente para críticos e pesquisadores terem
voltado a sua atenção para ela e, especialmente, para os textos desco-
nhecidos da maioria do público. Além disso, os estudos existentes são,
em geral, contraditórios em suas conclusões, apresentando uma grande
disparidade de opiniões e enquadramentos estilísticos sobre O Ateneu
– que já foi inscrito nos estilos de época do realismo, do naturalismo,
do impressionismo e do simbolismo, sendo também considerado como
inclassificável malha de diferentes estilos em que se observam elementos
românticos, parnasianos e, até mesmo, expressionistas.
Mesmo considerando que grande parte de sua obra permaneceu
esparsa, é especialmente injusto o esquecimento a que foi relegado o
livro Canções sem metro. Excetuando-se dispersas menções e pequenos
comentários críticos, os estudos dignos de nota que encontramos se
restringem aos trabalhos realizados por Venceslau de Queirós, Maria
Luiza Ramos, Lêdo Ivo e Sônia Brayner, de modo que Afrânio Cou-
tinho (1982a, p.22), no já distante ano de 1982, ainda reclamava do
esquecimento a que foi relegada a obra:

De qualquer modo, a produção é de grande mérito literário, e só se


explica a sua pouca repercussão pelo fato de que o êxito de O Ateneu a tenha
O MAL DE D. QUIXOTE  15

ofuscado, colocada à margem [sic]. Encarada, porém, de uma perspectiva


moderna, e relacionada ao contexto universal, ela deve ser considerada de
alto valor e importância, como legítima expressão brasileira de um gênero
original que merece reabilitação crítica, pois abriu caminho para uma re-
novação da literatura brasileira, tal como ocorreu na França, onde a poesia
recebeu do gênero um saudável e definitivo impulso modernizador.

A reduzida atenção dispensada à obra Canções sem metro não se


justifica por três motivos: primeiro, porque ela foi reunida em livro
e publicada em 1900, não se encontrando, portanto, dispersa; se-
gundo, porque foi o primeiro livro na literatura brasileira composto
por poemas em prosa; e, terceiro, porque era, para Raul Pompéia, a
obra da sua vida, trabalho a que se dedicou carinhosa e obsessiva-
mente dos vinte anos até a morte. Segundo Sônia Brayner (1979b,
p.233), ele publicava os poemas em prosa desde 1881 e reescrevia-os
continuamente,1 polindo-os em busca da síntese, do ritmo e do colo-
rido que plasmassem uma nova linguagem poética – o que fez que se
tornasse, no Brasil, o pioneiro no referido gênero. Tais fatos revelam
a importância dessa obra e dos demais poemas em prosa não reunidos
no livro e constituem motivo suficiente para despertar o interesse e o
esforço crítico em estudá-los detidamente.2
Além do desejo de resgatar as obras de Pompéia, a controvérsia exis-
tente também despertou meu interesse, pois era indicativa de uma com-
plexidade e uma riqueza dignas de atenção. Opiniões tão diversas sobre
O Ateneu e a obra de Raul Pompéia deveriam ser fruto de fortíssimas
tensões estético-ideológicas, sugerindo-me que ela se apresentava como
um excelente mosaico dos estilos existentes no fin de siècle brasileiro.
Por conseguinte, seu estudo poderia contribuir para uma reflexão sobre
os modos como diferentes e contraditórios estilos podem articular-se

1 É interessante observar que Afrânio Coutinho (1982a, p.15) aponta o ano de 1883
como marco inicial das publicações e não identifica a fonte para as duas canções
recolhidas com a data de 1881.
2 Quando utilizarmos “canções sem metro” sem grifo e com iniciais minúsculas,
estaremos nos referindo ao coletivo dos poemas em prosa de Raul Pompéia, in-
dependentemente do fato de terem sido publicados no livro Canções sem metro.
16  MARCIANO LOPES E SILVA

em uma única obra sem transformá-la em um monstro ou, no mínimo,


em uma colcha de retalhos mal costurados. Além disso, o estudo de tal
complexidade estilística também tornaria possível desenvolver uma re-
flexão crítica à respeito dos métodos adotados na historiografia literária,
de modo a demonstrar as limitações, os equívocos e o caráter ideológico
existentes na prática de organizar a história da literatura e o respectivo
cânone conforme os valores decorrentes de uma teleologia que afirma a
sucessão progressiva e positiva dos estilos literários e artísticos. Afinal,
sob tal perspectiva são condenadas e excluídas aquelas obras que não
sintonizam com o último estilo de época, ou seja, com aquele que é
considerado o mais atual e “moderno” no momento em que foi criada.
Dessa forma, consagra-se a ideologia do progresso, garantindo-se a
vitória inconteste do “mais novo”, da renovação técnica sempre voltada
à produção de novas e mais novas mercadorias que nada mais fazem
do que reeditar o vazio decorrente da paradoxal “tradição da ruptura”.
Falsa ruptura que somente oculta sob cosméticos e roupas com griffe a
caveira na qual nos tornamos.
Aliado ao estranhamento estilístico, também me surpreendia e me
intrigava a ausência de certos temas candentes na época e tão impor-
tantes para Raul Pompéia, como eram, por exemplo, o abolicionismo,
a luta pela República e, de modo geral, o nacionalismo – que, como
sabemos, desde o período romântico constitui uma das principais
preocupações de nossos artistas e literatos. Era estranho o fato de que
a maioria esmagadora de seus contos girasse em torno dos temas do
amor e do casamento, enquanto os poemas em prosa contemplavam
uma evidente preocupação histórico-filosófica, de tal modo que as
questões nacionalistas passassem ao largo deles. O realce conferido
às questões do amor e do casamento e a ausência dos temas nacionais
pareciam-me uma grande contradição, uma vez que Raul Pompéia fora
um exaltado jornalista e militante político que se identificava com o ra-
dicalismo nacionalista dos jacobinos (Queiroz, 1986). Perguntava-me
se a maior parte da sua obra ficcional realmente deixava tais questões
de lado e, por conseguinte, colocava-se à margem da “tradição afortu-
nada” (Coutinho, 1968) dominante na literatura brasileira, ou se elas
se faziam presentes de uma forma nova, capaz de superar os estreitos
O MAL DE D. QUIXOTE  17

nacionalismos comprometidos com a “cor local” ou com a denúncia


naturalista da miséria nacional.
Todos os aspectos apontados são bastante significativos e justi-
ficavam largamente o esforço de estudar o conjunto da obra de Raul
Pompéia, pois, no mínimo, o presente estudo estaria contribuindo
para o preenchimento das lacunas apontadas e para o resgate daque-
les textos negligenciados e/ou esquecidos, retirando-os do limbo e
possibilitando uma justa avaliação da sua importância. Entretanto, o
motivo mais forte que me levou a essa pesquisa foi, de certa maneira,
muito pessoal. À medida que fui me familiarizando com sua obra,
também fui me identificando com ela e seu autor, pois ali encontrava
questões que sempre me preocuparam e me foram cruciais. Entre
elas, as principais diziam respeito ao sentido da história e à função da
literatura. Todo o drama, extremamente atual, da crise das utopias, do
fim da história e do papel social do artista em um mundo marcado pelo
desencanto e pela barbárie encontrava-se nela. Os conflitos que davam
sentido à sua obra e que certamente o atormentavam também eram
meus, apesar da distância no tempo. Além do mais, as contradições
apontadas sugeriam a luta, por parte dele, pela realização de uma arte
autônoma e “pura”, contrária às aspirações estéticas dominantes no
cenário do campo literário brasileiro no século XIX, dominado pelos ar-
tistas comprometidos com o ideário estético do realismo-naturalismo.
E a possibilidade de ele ter conseguido realizar uma arte autônoma,
não subordinada, em última instância, às necessidades imediatas do
nacionalismo e da luta política, mas, ao mesmo tempo, universal e
comprometida com a reflexão sobre problemas de natureza histórica,
política e filosófica era – e é – uma questão extremamente instigante,
pois considero semelhante equilíbrio um ideal a ser perseguido.
Apesar dos diversos estranhamentos descritos, desde cedo se for-
mou uma certeza no meu julgamento crítico sobre o conjunto da obra de
Raul Pompéia: os valores cognitivos e éticos que orientaram sua elabo-
ração eram românticos, por mais que isso pudesse contrariar a opinião
geral. Parecia-me claro que muitas das contradições existentes deveriam
resultar de uma relação de amor e ódio com o romantismo, motivo pelo
qual também resolvi organizar a presente pesquisa tendo por hipótese
18  MARCIANO LOPES E SILVA

que o conjunto da obra de Raul Pompéia adquiria coerência quando


lido como expressão de uma visão de mundo romântica em crise.
Tanto assim que, inicialmente, o título da pesquisa era “Uma angústia
finissecular: a crise dos ideais românticos na obra de Raul Pompéia”.
Hoje, vejo a questão de um modo diverso, motivo pelo qual alterei o
título. Nem a angústia vivida por Pompéia é finissecular, muito menos
é resultante apenas da crise dos ideais românticos em confronto com
os valores positivistas e científicos dominantes na sociedade brasileira,
conforme eu acreditava. Hoje me parece que ela é própria da visão de
mundo romântica, especialmente do primeiro romantismo alemão.
Mas antes de levarmos adiante o esclarecimento da nossa hipótese e
a revisão da bibliografia crítica, convém apresentar o nosso plano de
navegação, ou seja, o modo como os resultados do estudo desenvolvido
foram organizado no presente livro.

Plano de navegação

Como o estudo da obra integral de Raul Pompéia constituísse uma


tarefa que ultrapassaria nossas forças, visto sua extensão, delimitamos
o corpus privilegiando, por um lado, seus contos e poemas em prosa
– especialmente Canções sem metro – e, por outro, os textos teóricos e
críticos sobre literatura e arte. Tal escolha não significa que excluímos
de nosso estudo O Ateneu, assim como as crônicas, mas que lhes demos
menor atenção. Analisá-los em profundidade tornaria nossa tarefa por
demais longa e árdua, extrapolando os limites de tempo impostos para
a realização da pesquisa. Tratando-se de O Ateneu, tal decisão também
se deve ao fato de que essa obra já foi bastante estudada, conforme já ob-
servamos. Quanto aos outros romances, deixamos de lado Uma tragédia
no Amazonas (1880) por ser uma obra de estréia, considerada imatura
pela crítica, e As jóias da coroa (1882) por ser um folhetim satírico à clef,
escrito para o jornal Gazeta de Notícias e tendo por motivo inspirador o
roubo das jóias da coroa na corte imperial de D. Pedro II (Meyer, 1996,
p.309) – contexto de produção que o torna bastante datado e subordi-
nado a interesses mais imediatos. No caso das crônicas, nossa decisão
O MAL DE D. QUIXOTE  19

deveu-se ao fato de elas apresentarem um maior interesse histórico


do que literário. Por fim, realizado o estudo do corpus, organizamos a
análise e a discussão conforme o plano que segue.
No primeiro capítulo, realizamos um estudo da recepção crítica
da obra de Raul Pompéia e com base neste trabalho desenvolvemos a
crítica da mesma e a formulação de nossa hipótese de pesquisa.
No segundo capítulo, apresentamos um perfil dos folhetins de Raul
Pompéia e analisamos seus textos de teoria literária, procurando definir
sua postura com respeito à natureza e à função da literatura. Feito isso,
passamos à análise dos textos de crítica literária, contos, crônicas e po-
emas em prosa publicados na seção “Pandora”, da Gazeta de Notícias,
durante o ano de 1888, com o objetivo de verificar a coerência entre a
sua produção teórica, crítica e literária. Tal procedimento justifica-se
por essa seção apresentar textos de todos esses gêneros, como também
por concentrar a maior parte de sua modesta produção teórico-crítica
– o que faz da seção um espaço único de reflexão e experimentação
literárias. Feito isso, encerramos o capítulo discutindo a relação que
se estabelece entre os três níveis de produção: o teórico, o crítico e o
literário. Ao confrontá-los, podemos observar que eles são orientados
por valores estéticos e ideológicos pertinentes tanto ao romantismo
quanto ao simbolismo, de tal forma que é possível constatarmos que
sua atividade é orientada por uma visão de mundo romântica.
No terceiro capítulo, concentramos nossa atenção em Canções sem
metro com o objetivo de determinar a filosofia da história nela existente.
A escolha desse livro como corpus central do capítulo justifica-se por
ele se apresentar como um romance romântico, conforme proposição
de Friedrich Schlegel. Ao reunir poesia, história e filosofia em uma nar-
rativa cosmogônica, Canções sem metro desenvolve de modo alegórico
uma concepção filosófica sobre a história da humanidade. Como corpus
auxiliar foram utilizados a primeira e a segunda conferências do pro-
fessor Cláudio em O Ateneu e a crônica-ensaio “Cavaleiros andantes”.
Com respeito aos resultados da análise, pudemos verificar que a filosofia
da história é ambígua, oscilando entre um romantismo da desilusão,
marcado pelo pessimismo de Schopenhaeur, e outro revolucionário,
marcado pela filosofia política de Proudhon. No primeiro caso, concebe-
20  MARCIANO LOPES E SILVA

se a história como circular e, no segundo, como evolutiva. Entretanto,


em nenhuma das duas estão ausentes as idéias de decadência e de luta
social. Também verificamos que a tensão resultante da coexistência
desses dois romantismos se faz presente no nível estilístico, o que
pode ser observado especialmente na coexistência contraditória, senão
paradoxal, do sublime e da ironia romântica – os quais estabelecem a
tensão característica da forma composicional do Witz.
No quarto capítulo, discutimos o tema das “ilusões perdidas” nos
contos e poemas em prosa de Raul Pompéia. Para tanto, inicialmente
analisamos várias alegorias presentes nos poemas em prosa, as quais
são utilizadas, na seqüência, como chaves de leitura dos contos. Tal
movimento analítico tem como contraponto os poemas em prosa de
Charles Baudelaire, visto que inúmeros críticos apontem a “influência”
do poeta francês na obra de Raul Pompéia. Baseados nessa análise
comparativa, constatamos a profunda afinidade entre as duas obras,
que se encontram impregnadas pelo “romantismo da desilusão” e pela
idéia de decadência. Essa visão de mundo em comum toma forma em
inúmeras alegorias, na constante ironia – mais cética em Baudelaire,
mais romântica em Raul Pompéia – e especialmente no movimento
estilístico de ascensão e queda existente nelas. Movimento que na
obra de Raul Pompéia é batizado por Clélia Jubran como “invariante
decepção”, e que na obra de Baudelaire é batizado por Max Milner
como “poétique de la chute”.
No quinto capítulo, analisamos e discutimos os significados da
alegoria de “O mal de D. Quixote” existente no texto homônimo, pois
a consideramos fundamental para a compreensão da obra de Raul
Pompéia, uma vez que serve como chave de leitura para inúmeros
contos analisados na seqüência. Baseados na idéia de que o romantis-
mo é uma doença, buscamos mapear as diversas manifestações do
“Mal de D. Quixote” de modo a compreendermos como se organiza a
variabilidade estilística e a tensão ideológica existente na sua obra. Para
encerrar, discutimos os valores e os significados do riso e da ironia, que,
de modo geral, apresentam uma função não somente crítica, ou atacan-
te, mas também protetora, servindo como máscara e vacina contra os
sentimentos e valores românticos considerados ingênuos e ilusórios.
O MAL DE D. QUIXOTE  21

Por fim, no sexto e último capítulo, procuramos equacionar todos


os resultados obtidos durante o desenvolvimento do trabalho. Para
tanto, discutimos a posição e o valor da obra de Raul Pompéia na
historiografia literária brasileira tendo em vista principalmente a visão
de mundo dominante no conjunto da obra. Embora estilisticamente
diversa e contraditória em vários pontos, acreditamos que ela deva
ser considerada fundamentalmente romântica. A oscilação entre o
romantismo revolucionário e o da desilusão, assim como a presença de
textos estilisticamente próximos ou identificados com o realismo não
contradizem ou anulam tal conclusão, mas revelam, antes de tudo, as
diversas forças e tensões sociais existentes no carrefour ideológico do
fim do século XIX.
1
Cartografia da recepção crítica

A recepção crítica de O Ateneu

A recepção crítica de O Ateneu, no que se refere às questões de estilo,


apresenta posicionamentos críticos que o colocam nos pólos do campo
literário vigente no final do século XIX. De um lado, é visto como ex-
pressão do realismo ou do naturalismo; de outro, como expressão do
simbolismo ou dos últimos lamentos do romantismo. Em meio, situa-
se sua inserção no impressionismo, estilo que oscila entre a objetividade
científica do realismo e a subjetividade individualista do romantismo.
Considerando tal situação, apresentamos, na seqüência, as diversas
opiniões críticas agrupadas conforme o estilo de época que os críticos
julgam ser dominante na obra. Tal procedimento metodológico, sabe-
mos, incorre no perigo de reeditar a rigidez das classificações de cunho
positivista que ainda persiste nos espaços da escola e da academia;
mesmo assim, optamos por ele por razões didáticas. Portanto, não se
conclua, de antemão, que a seguinte divisão dos campos de recepção
crítica de O Ateneu expresse uma concordância de nossa parte com
respeito à dita postura crítica cujo maior objetivo é classificar a obra
artística em algum estilo. Muito pelo contrário. Ao dividir as opiniões
críticas de modo rígido, queremos justamente realçar as contradições e
os equívocos resultantes dessa postura marcadamente positivista – que,
24  MARCIANO LOPES E SILVA

é bom avisar, não é compartilhada por todos os críticos que veremos.


Daí porque alguns se recusam a classificar a obra de Pompéia e até
mesmo apontam diversos estilos convivendo e concorrendo entre si,
seja no seu conjunto seja mesmo em uma única obra, como acontece
com relação a O Ateneu.

Em defesa do realismo-naturalismo

No pólo formado pelos críticos que inscrevem O Ateneu na tradição


do romance realista-naturalista, situam-se JoséVeríssimo, Mário de An-
drade, Flávio Loureiro Chaves, Alfredo Bosi, Massaud Moisés, Roberto
Schwarz, Fábio Lucas, João Alexandre Barbosa e João Pacheco.
José Veríssimo (1979, p.135), em artigo inicialmente publicado no
Jornal do Comércio, considera “evidente nele [O Ateneu] a influência do
naturalismo francês que os romances de Eça de Queiroz vulgarizaram
na nossa língua”, e conclui afirmando “a influência do evolucionismo
spenceriano, consciente ou não” (ibidem, p.139). No entanto, as
características estilísticas que observa são contraditórias em relação à
prática naturalista em sua luta pela cientificidade, visto que “o estilo
dominante, às vezes cansativo na sua rebusca e repetição de metáforas”
(ibidem, p.137), é “imaginoso, metafórico, pinturesco” (ibidem).
Mário de Andrade (s. d., p.173) realiza a crítica de O Ateneu sob
a perspectiva do biografismo, uma vez que, em sua opinião, a obra
constitui uma “vingança [do autor] contra o seu internamento no
colégio Abílio”. Fundamentado nessa idéia, julga que ela constitui
um singular “estudo de caso” (ibidem, p.181), visto que elabora a
observação de um ponto de vista extremamente individual. Com
relação ao estilo, considera que Raul Pompéia inaugura entre nós a
écriture artiste do naturalismo francês e, especialmente, dos irmãos
Goncourt. Por tais razões, é da opinião de que O Ateneu “representa
exatamente os princípios estético-ideológicos [...] do Naturalismo. É
sempre aquela concepção pessimista do homem-besta, dominado pelo
mal, incapaz de vencer os seus instintos baixos – reflexo dentro da arte
das doutrinas evolucionistas” (ibidem, p.184).
O MAL DE D. QUIXOTE  25

Massaud Moisés (1984, p.426-7), em sua História da literatura


brasileira, insere O Ateneu no realismo interior, ou psicológico, mas
contraditoriamente afirma que a obra “desenrola-se numa seqüência
de quadros simbólicos” e “hipertrofia a ‘escrita artística’ dos Irmãos
Goncourt, a ponto de saltar as raias do Impressionismo e penetrar a
zona em que bruxuleia a prosa expressionista”.
Alfredo Bosi (1974, p.203-4) aponta “o dom do memorialista e a
finura da observação moral” e inclui Raul Pompéia entre os escritores
realistas em sua História concisa da literatura brasileira. No entanto,
também afirma que “O Ateneu, mal se pode definir, em sentido estrito,
realista”, pela sua alta carga de passionalidade. Para tornar mais con-
traditória a classificação, aponta “traços expressionistas, como o gosto
do mórbido e do grotesco com que deformava sem piedade o mundo
do adolescente” (ibidem, p.204). Felizmente, essas contradições são
muito mais bem equacionadas no artigo “O Ateneu, opacidade e
destruição”, no qual Bosi (1988) desenvolveu mais detalhadamente
a análise da obra, assim realizando um dos melhores ensaios críticos
já escritos sobre O Ateneu. A idéia-chave que orienta sua reflexão e
consegue apontar um caminho para o entendimento das contradições
observadas é a de que a obra é fruto do enlaçamento de um indivi-
dualismo romântico e incendiário com o “fatum pesado” (ibidem,
p.34) do darwinismo e da ciência determinista. Baseado nessa tese, as
contradições que antes eram vistas como negativas passam a ter um
caráter positivo, pois obrigam Raul Pompéia a superar dialeticamente
as limitações do naturalismo vigente, em que a preocupação com a
objetividade científica resultava, com freqüência, em um empobre-
cimento da qualidade artística das obras. Tal superação se realiza por
meio do olhar introspectivo, do exercício de interpretação histórica
(pois o colégio constitui uma metonímia do Segundo Reinado) e da
“conversão” estilística do estilo naturalista – atitude que expressa a
“crença, arraigada a partir do Romantismo, nos poderes criadores do
sujeito” (ibidem, p.53).
Similar à posição de Alfredo Bosi é a opinião de Roberto Schwarz
(1981, p.25), pois considera que um difícil equilíbrio entre realismo e
subjetivismo leva o romance a “uma das dimensões mais modernas,
26  MARCIANO LOPES E SILVA

a superação do Realismo pela presença emotiva de um narrador”. Por


um lado, ele apresenta os relatos “em ordem perfeita, com critério
realista na seleção dos episódios”, de tal modo que o “objeto da nar-
ração não é dissolvido na consciência narradora” (ibidem, p.27); por
outro, também elabora a linguagem subjetivamente. Essa, sem a “sua
função de indicar os processos do real, é dramatizada a ponto de ser
pura expressão das ascensões e quedas da emoção” (ibidem, p.28). No
seu movimento constante de “ganhar altura para depois esborrachar”
(ibidem), a linguagem hiperbólica e metafórica revela a destruição das
ilusões, a lenta corrosão dos ideais ingênuos.
A mesma observação sobre a dramaticidade do estilo é feita an-
teriormente por Clélia Jubran (1980). Apesar de ela não entrar na
discussão sobre o estilo de época dominante em O Ateneu, é muito
importante lembrarmos seu trabalho neste momento porque, antes
de Roberto Schwarz, ela já designara o movimento apontado por ele
como “invariante decepção” – observação crítica que será muito im-
portante no transcorrer deste livro. Segundo a autora, as seqüências
narrativas, “através dos processos hiperbólico e contrastivo” (ibidem,
p.185), sempre têm início “com a formulação, por parte do personagem
Sérgio, de desejos e esperanças de atingir um objetivo satisfatório.
Mas, no interior de cada episódio, insere-se um obstáculo, que desvia
a progressão narrativa para o contrário do resultado esperado. O des-
fecho é, portanto, sempre uma desilusão” (ibidem, p.182-3). Baseada
nisso, a autora observa, ainda que timidamente, um caráter romântico
caracterizando a atitude e o estilo do narrador:

Observe-se, então, que a atitude do narrador de ressaltar o avesso


das coisas não cumpre apenas a finalidade de expor os enganos firmados
por um ambiente hipócrita. Essa atitude deixa entrever reflexões, talvez
até românticas, da corrupção exercida pela sociedade sobre o indivíduo.
(ibidem, p.196).

Silviano Santiago (1978) também aponta, em seu instigante ensaio


“O Ateneu: contradições e perquirições”, a contradição entre a objeti-
vidade e a subjetividade na forma narrativa; entretanto, assim como faz
Clélia Jubran, não se preocupa com a polêmica sobre o estilo de época
O MAL DE D. QUIXOTE  27

dominante na obra. Segundo ele, há um abismo entre o Sérgio-narrador


e o Sérgio-personagem, sendo o último uma invenção do primeiro para
“poder defender a si mesmo, isentar-se da idéia de que o Mal na sua
vivência seja uma culpa única e exclusiva sua” (ibidem, p.78). Além
dessa contradição, salienta o fato de Sérgio-narrador extrapolar os
limites da sua consciência e se apresentar onisciente, conhecendo as
motivações dos outros personagens. Fundamentado nessas conside-
rações, conclui: “o livro deixa de ser de memórias, introspectivo, para
se apresentar tecnicamente como um agressivo romance” (ibidem), que
representa o Brasil durante o Segundo Reinado e se vinga da Monar-
quia e da sociedade por meio da sátira.
Colocando de lado o biografismo e o motivo da vingança pessoal do
autor, Flávio Loureiro Chaves (1978) realiza uma leitura sociológica da
obra. Baseando-se em considerações teóricas de Zéraffa sobre o roman-
ce realista, argumenta que O Ateneu promove uma “traição ideológica”
ao revelar a existência das contradições sociais e, por conseguinte, da
ideologia. Em defesa de sua leitura, Chaves (1978, p.73) considera
que “o colégio é representação microcósmica da estrutura capitalista
em que está inserido”, assim possibilitando ao discurso nomear “a
corrupção da engrenagem social, uma vez que na trajetória da persona-
gem [Sérgio] os valores tomados por autênticos foram definitivamente
comprometidos” (ibidem). Além disso, Chaves também aponta como
importantes no estabelecimento da crítica social o privilégio dado ao
discurso psicológico, o típico presente nas caricaturas e a presença da
doutrina naturalista nas palavras de Sérgio e do Dr. Cláudio, que são
considerados alter egos do autor. Não é demais lembrar que, para ele,
todas essas características demonstram a identidade da obra com a
estética do realismo-naturalismo.
A leitura de João Alexandre Barbosa (2000), que também considera
O Ateneu um romance realista-naturalista, apresenta uma perspectiva
crítica semelhante à que observamos nos trabalhos de Alfredo Bosi,
Roberto Schwarz e Flávio Loureiro Chaves. A idéia central do seu
artigo encontra-se na afirmação de que há uma dualidade marcando
o romance: “Por um lado, é a violência da desforra pessoal na criação
de todo o mundo mesquinho e mau do Ateneu; por outro, é a trans-
28  MARCIANO LOPES E SILVA

cendência coletiva de erros institucionais” (Barbosa, 2000, p.16).


Transcendência que se manifesta no caráter subversivo e incendiário
da obra, tornando-a um “símbolo revolucionário” em tensão constante
com a presença de idéias naturalistas e o desejo pessoal de vingança –
que anima o estilo nervoso de sua écriture artiste. E, lembrando Mário
de Andrade, conclui que é “o jeito arrevesado de vencer os obstáculos
da análise psicológica e social, através de uma linguagem dura e so-
frida, que dá à obra a sua verdadeira dimensão dentro de nossa ficção
realista-naturalista” (ibidem, p.15).
João Pacheco [19--, p.144] insere O Ateneu em sua obra sobre o
realismo conferindo realce à análise psicológica. E em razão dessa
característica, considera que o autor “refoge à classificação naturalista,
o que denota a sua personalidade e mostra a sua independência” em re-
lação aos irmãos Goncourt e outros autores do naturalismo literário.
Por fim, Fábio Lucas (1995, p.29-30) considera O Ateneu um misto
de biografia e romance de formação (Bildungsroman) “crivado de sub-
jetividade”, “ressentimento e rancor”. Entretanto, mesmo apontando
tais características e afirmando tratar-se de uma “tapeçaria estilística”,
ele inscreve o romance em seu livro sobre o realismo, julgando-o pre-
dominantemente naturalista.

Em defesa do impressionismo

Seguindo outro caminho de reflexão, que realça a presença da técni-


ca impressionista e da écriture artiste dos irmãos Goncourt, encontram-
se os críticos que inscrevem O Ateneu em uma linha estilística bem
diversa daquela que caracteriza o realismo-naturalismo e que vai da
encruzilhada impressionista ao pólo oposto do simbolismo. Entre eles,
se encontram Afrânio Coutinho, Agripino Grieco, Andrade Muricy,
Eugênio Gomes, José Guilherme Merquior, Maria Luiza Ramos,
Sônia Brayner, Xavier Placer e Luciana Stegagno-Picchio.
Ao que parece, o primeiro crítico a considerar o impressionismo
na obra de Raul Pompéia e, em especial, em O Ateneu foi Eugênio
Gomes (1958c), que escreveu vários artigos posteriormente reunidos
em Visões e revisões. No entanto, é importante salientarmos que, em
O MAL DE D. QUIXOTE  29

nenhum momento, ele afirma que O Ateneu, assim como os contos e


as canções sem metro, seja impressionista na totalidade, pois considera
que Raul Pompéia nunca logrou “a compensação de forjar um estilo
íntegro, em definitivo” (ibidem, p.240).
Mesmo considerando O Ateneu inclassificável, Eugênio Gomes
elogia constantemente “o poder de expressão, pela finura do gosto,
pelo colorido e pela musicalidade [da] prosa vibrátil e melodiosa”
(ibidem, p.234). Entretanto, em suas observações – instigantes, mas
pouco criteriosas – não é possível distinguirmos a diferença, ou não,
entre o que ele considera ser pertinente a cada um dos estilos: impres-
sionista, simbolista, decadentista e a écriture artiste, que ele também
nomeia como “chinesismo” e “miniaturismo”. No artigo “Pompéia e
a eloqüência”, ele afirma a larga dívida do autor com “os filigranistas
do style artiste” (ibidem, p.240) e, na seqüência do mesmo parágrafo,
considera que o “impressionismo tornara-se de algum modo o seu
violino d’Ingres” (ibidem). Mais adiante, aproximará a eloquentia um-
bratica (expressão de Thomas de Quincey), cuja retórica corresponde
ao penumbrismo simbolista, da retórica impressionista, considerando
que Pompéia imprime a primeira na segunda “por meio de imagens,
símiles e metáforas” (ibidem, p.245). Em outro artigo (“Pompéia e a
natureza”), Eugênio Gomes faz as mesmas aproximações. Ao discorrer
sobre a caracterização de Ema, em O Ateneu, considera que “o olho im-
pressionista [...] consegue surpreender a realidade, como recomendava
Jules Laforgue, ‘na atmosfera viva das formas, decomposta, refractada,
refletida pelos seres e pelas coisas em incessantes variações’” (ibidem,
p.260-1) de luz e de cor. Esse “jogo amável de entretons” (ibidem,
p.261) é observado principalmente em descrições da natureza cujo
exemplo dado é a abertura do capítulo VII de O Ateneu. Ao comentá-la,
considera a proximidade com o simbolismo e conclui: “À influência
do impressionismo artístico é que é lícito atribuir sua tendência em O
Ateneu para fixar a realidade, a paisagem, as coisas, mediante certas
combinações plásticas em que o penumbrismo deveria ser necessaria-
mente a meta final” (ibidem, p.262).
A aproximação do impressionismo ao penumbrismo e ao simbo-
lismo pode ainda ser observada em outro comentário do crítico, na
30  MARCIANO LOPES E SILVA

seguinte passagem do artigo “Raul Pompéia, contista”: “o idealismo


artístico de Pompéia fê-lo procurar o círculo mágico do impressionis-
mo, nevoeiro rico de pitoresco e de sugestões onde o flagrante realístico
ia perder as suas arestas ou a precisão fotográfica, adquirindo contor-
nos, imagens e colorido imprevistos” (Gomes, 1958a, p.270).
Em seu estudo Psicologia e estética de Raul Pompéia, Maria Luiza
Ramos ([1957?], p.9) conclui que O Ateneu não é um romance de
tese, mas uma “catarse” do autor, de tal modo que não pode ser con-
siderado naturalista. Entretanto, furta-se de posicioná-lo em algum
estilo de época, considerando-o um “romance poético” cujo estilo da
prosa é impressionista e “grandemente influenciado por Baudelaire,
defensor da presença do artista na obra e criador do mito da analogia
universal” – o que, evidentemente, é um equívoco, posto que tal idéia
já se encontrava na obra de Emanuel Swedenborg (1688-1772), tendo
também “inspirado tanto a Dante quanto aos neoplatônicos renascen-
tistas” (Paz, 1984, p.89).
Em sua obra Adelino Magalhães e o impressionismo na ficção, Xa-
vier Placer (1962) também trata do referido estilo em O Ateneu e nos
romances Canaã e A viagem maravilhosa, ambos de Graça Aranha.
Para fundamentar o que considera ser o impressionismo, ele analisa a
técnica narrativa de Marcel Proust em À la recherche du temps perdu
[Em busca do tempo perdido] e recorre às observações de Otacílio Ale-
crim e especialmente às anotações de Andrade Muricy. Com base em
suas observações, podemos sistematizar as seguintes características e
procedimentos impressionistas:
• o impressionismo é inconciliável com o romantismo e o naturalis-
mo (opinião fundamentada em Muricy), embora sua ética e seus
motivos possam ser os mesmos de ambos, ou até do simbolismo;
• ocorre uma “representação indireta, intensiva, reduzida aos ele-
mentos primários” (ibidem, p.17);
• a ambientação é feita de modo a “completar, animar, dar vida ao
motivo” (ibidem, p.18);
• “as notações sentimentais ou pitorescas [são] analiticamente de-
compostas, justapostas em seguida, reduzidas cada uma delas à
sua simplicidade elementar” (ibidem);
O MAL DE D. QUIXOTE  31

• as impressões sensoriais suscitam emoções e lembranças, desper-


tando a memória.
Além das características apontadas, é muito importante observarmos
que Xavier Placer (1962, p.19) aponta duas fases no impressionismo:

Abandona-se o Símbolo e as maiúsculas, a teoria da correspondência


das cores e outras, para dar lugar à Impressão, mensagem pessoal da
realidade captada através dos sentidos e analiticamente decomposta em
seus elementos. É assim que, sem forçar interpretações, pode-se assinalar,
tanto no estrangeiro como aqui, um Impressionismo de primeira hora:
exterior, descritivo; um de segunda fase: psicológico, onde o monólogo
interior representa magna parte.

Baseado na divisão proposta, Placer (1962) considera O Ateneu


pertencente ao impressionismo da segunda fase, pois dá ênfase à cor e à
técnica de introspecção para pintar a vida do internato e a psicologia da
adolescência em uma obra “erguida sobre as evanescentes impressões
da infância” (ibidem, p.23). Em razão de tais características, considera
Raul Pompéia um precursor na utilização da técnica existente em À
la recherche du temps perdu de Proust, citando a seguinte passagem de
O Ateneu como prova de que Raul Pompéia identificava-se conscien-
temente com a teoria impressionista, posto que a “conferência do Dr.
Cláudio, [...] evidentemente fala pelo autor”:

O coração é o pêndulo universal dos ritmos. O movimento isócrono


do músculo é como o aferidor natural das vibrações harmônicas, nervosas,
luminosas, sonoras. Graduam-se pela mesma escala os sentimentos, e as
impressões do mundo. Há estados d’alma que correspondem à cor azul,
ou às notas graves da música; há sons brilhantes como a luz vermelha, que
se harmonizam no sentimento com a mais vívida animação.
A representação dos sentimentos efetua-se de acordo com estas re-
percussões. (Pompéia apud Placer, 1962, p.22)

Andrade Muricy (1973), na segunda edição do Panorama do


movimento simbolista brasileiro, parece reconhecer O Ateneu prefe-
rencialmente como impressionista, embora aponte afinidades com o
simbolismo e com o decadentismo – o que não considera contraditório,
32  MARCIANO LOPES E SILVA

posto que as duas tendências representavam “análogo sintoma de


inquietação expressional, de inconformidade diante do Naturalismo
e do didatismo descritivista do Parnasianismo” (ibidem, p.231).
Em Prosa de ficção, Lúcia Miguel-Pereira (1973, p.115) também
considera que o impressionismo literário se caracteriza por uma repre-
sentação subjetiva capaz de alterar a exatidão fotográfica em benefício
das impressões e sentimentos do observador.

Sérgio [...] aparece indiretamente, reconstituído pelas sensações que


cada episódio lhe desperta. De realistas, os quadros se fazem impressionis-
tas, já que seu verdadeiro sentido provém não de si mesmos, das minúcias
que os compõem, mas das reações que provocam no adolescente.

Afrânio Coutinho (1981a, p.17) também rejeita a interpretação que


inscreve O Ateneu no estilo de época do naturalismo, pois, segundo
ele, a obra apresenta “a escrita artística, a preocupação psicológica, a
análise interior, o uso da memória, a marca simbólica” – elementos
que caracterizam o estilo impressionista e que fazem que Pompéia seja
“considerado como o iniciador da ficção impressionista na literatura
brasileira” (ibidem). Fato que não foi percebido na época, em parte,
em razão da hegemonia da crítica naturalista:

Pelo fato de ter surgido numa época dominada pelo naturalismo,


era compreensível que a crítica fosse levada a classificar a obra-prima de
Pompéia como um romance naturalista. Foi-se a isso induzido pela sua
tendência a retratar a realidade e a usar a franqueza na descrição das cenas
e episódios, além do aspecto inconformista do livro, quase um romance de
tese. Essa interpretação aparecerá inteiramente errônea, se procurarmos
enxergar na obra sua substância ao mesmo tempo artística e simbólica,
justamente a qualidade, ao lado de outras, que a crítica atual aponta nas
obras definidas como impressionistas. Nessa linha estilística é que, ho-
diernamente, tem a crítica brasileira mais consciente enquadrado a obra
de Pompéia. (ibidem, p.15)

Assim como Lúcia Miguel-Pereira, Afrânio Coutinho (1981b,


p.10) considera que “tanto na pintura quanto na literatura, a transfi-
O MAL DE D. QUIXOTE  33

guração da atmosfera, antes que a realidade fotografada [...] é um dos


traços que distinguem o realismo do impressionismo”, estilo que, por
meio de uma metáfora biológica, ele caracteriza como “resultante do
enxerto do simbolismo sobre a técnica realista, que lhe retira o caráter
fotográfico, por esta almejada. Daí a impressão (impressionismo) de se
tratar de uma visão imprecisa, como se através de um vidro fosco”.
Em Labirinto do espaço romanesco, Sônia Brayner (1979a, p.133)
considera que a “observação pictural”, o “gosto pela miniatura” e a
correspondência entre a sonoridade e o significado voltam-se para uma
ambientação impressionista em O Ateneu, o que “se acentuará cada vez
mais, desembocando na narrativa simbolista” de Canções sem metro. E,
ao tratar delas, afirma que a base do impressionismo de Raul Pompéia
se encontra tanto na teoria mística das correspondências como na teoria
científica das vibrações. Além disso, também considera o miniaturismo,
que, segundo ela, apresenta “certos artifícios estruturais como a frag-
mentação formal, os ritmos internos da frase, o gosto pela justaposição,
quer frasal quer cênica, a preferência pelas pequenas unidades, a fuga
dos instantes de clímax na construção ficcional” (ibidem).
José Guilherme Merquior (1996, p.258) também ressalta a sub-
jetividade como traço do estilo impressionista, pois afirma que “O
Ateneu é uma sucessão de quadros mentais – uma série impressionista
de ‘páginas’ soltas na consciência do narrador” em razão da “perso-
nalidade fragmentária e camaleônica de Sérgio”, mas não desenvolve
nenhuma análise descritiva da obra.
A italiana Luciana Stegagno-Picchio (2004, p.425) também con-
sidera O Ateneu um romance psicológico vazado em prosa impres-
sionista, mas também aponta, assim como Leyla Perrone-Moisés,
elementos expressionistas, “cenas barrocas” e “rabelaiseanas”, além
de momentos marcados por uma écriture artiste à moda parnasiana.
Outro aspecto que ela ressalta é o caráter alegórico da obra, pois consi-
dera que o colégio “é o microcosmo, metáfora do mundo, da sociedade
hierarquizada, do privilégio institucionalizado” (ibidem).
Por fim, sem negar o impressionismo, encontramos pelo menos dois
críticos que vão mais além na rejeição ao naturalismo e aproximam,
ou identificam, O Ateneu ao simbolismo.
34  MARCIANO LOPES E SILVA

José Aderaldo Castello (apud Muricy, 1973, p.231), em Aspectos do


romance brasileiro, afirma: “Em verdade a obra de Raul Pompéia, nota-
damente as Canções sem metro e O Ateneu, está filiada no Simbolismo”.
Por sua vez, Lêdo Ivo (1963, p.40) observa em O Ateneu o amplo uso
da prosopopéia juntamente com as “correspondências, os símbolos, as
analogias, as comparações, recrutados para proclamar a harmonia uni-
versal das coisas e dos seres”. Partindo dessas considerações, conclui que
a “concepção simbólica do mundo não decorre apenas de Baudelaire.
O nosso clássico se abeberou, largamente, na imensa fonte hugoana”
(ibidem, p.38-9). Por tais motivos, insere Raul Pompéia numa “famí-
lia espiritual” que inclui românticos (Victor Hugo), simbolistas e/ou
decadentistas (Gaspar de la nuit, de Aloysius Bertrand; Spleen de Paris,
de Baudelaire; Mallarmé e, talvez, Rimbaud), porém nega a influência
dos irmãos Goncourt em favor de Madame Bovary, de Flaubert.
Ao final desse percurso, constatamos que somente Sônia Brayner
e Xavier Placer buscam esclarecer o que consideram o estilo impres-
sionista presente na obra de Raul Pompéia mediante uma análise mais
criteriosa. Mesmo assim, podemos considerar os seguintes pontos de
convergência entre eles e os demais críticos apontados:

• a representação da realidade é feita subjetivamente;


• a ambientação traduz as impressões sensoriais e emotivas do ob-
servador/narrador;
• o narrador utiliza tons e entretons das cores, adjetivos, metáforas,
analogias e sinestesias nas ambientações;
• os motivos e quadros são analiticamente decompostos e justapostos
entre si.

O realce da diversidade

Em meio às controvérsias e contradições que caracterizam a re-


cepção crítica de O Ateneu, também encontramos aqueles críticos
que preferem não identificar o romance a um único estilo, realçando o
caráter psicológico e subjetivista da obra e/ou sua diversidade estilís-
tica. Entre eles destacam-se Sílvio Romero, Araripe Júnior, Eugênio
O MAL DE D. QUIXOTE  35

Gomes, Lúcia Miguel-Pereira, José Lopes Heredia, e vários autores


que compõem a obra O Ateneu: retórica e paixão, organizada por Leyla
Perrone-Moisés (1988).
Sílvio Romero (apud Ivo, 1963, p.22) considera que o livro apresenta
um “psicologismo idealista com tendências simbólicas”, opinião que
é compartilhada pelo seu rival Araripe Júnior (1960a, p.144), que a vê
como um romance psicológico e subjetivista, sublinhando o teor poético
e simbólico da composição a ponto de concluir que “seu temperamento
literário resume-se na seguinte fórmula: um realista subjetivista”.
Eugênio Gomes (1958c) é um dos críticos que mais atenção dis-
pensaram à obra de Raul Pompéia. Encontramos seis artigos sobre
ela em Visões e revisões e, no terceiro volume de A literatura no Brasil
(Coutinho, 1986), coube-lhe o capítulo sobre o escritor. Após a leitura
desses textos, podemos traçar as seguintes considerações: em sua opi-
nião, apesar de inicialmente ter flertado com a prosa naturalista, Raul
Pompéia a supera graças à sua concepção teórica da arte como eloqüên-
cia – concepção formulada no segundo discurso do professor Cláudio,
em O Ateneu, e em algumas crônicas publicadas na Gazeta de Notícias
(Rio de Janeiro). A valorização do estilo colorido e vibrante leva-o, por
um lado, a apropriar-se da écriture artiste dos irmãos Goncourt e da
técnica impressionista, mas, por outro, leva-o à utilização de diversos
estilos, visto considerar que esse deve graduar-se proporcionalmente
ao tema, à idéia e à sensação. Por isso afirma que “O Ateneu refoge à
uniformidade estilística, sem que se perceba, salvo mediante obser-
vação proposital, que, em sua composição, entraram vários traços de
procedência diversa” (Gomes, 1986, p.177).
Lúcia Miguel-Pereira (1973), em Prosa de ficção, coloca Raul
Pompéia e O Ateneu ao lado de Machado de Assis na etiqueta do ro-
mance psicológico. Com respeito ao estilo, aponta a presença da técnica
impressionista e da écriture artiste, que prenunciavam o simbolismo,
e rejeita não somente a classificação no naturalismo, por não conce-
ber um naturalista ortodoxo partindo do próprio eu, como também
qualquer outra filiação.
A diversidade estilística também é ressaltada por José Lopez Here-
día (1979, p.20), que considera O Ateneu como inclassificável, pois nele
36  MARCIANO LOPES E SILVA

“confluem de maneira original as várias tendências que se cruzavam


no panorama literário da época”: o romantismo, o naturalismo e o
impressionismo. O primeiro presente na forma autobiográfica, na sub-
jetividade e no papel da natureza; o segundo, na morbidez patológica
dos personagens, na relação meio-caráter e na “exaltação dos baixos
instintos, notadamente os sexuais vistos como imorais” (ibidem); o
terceiro, presente “na estrutura orbital e não linear da narrativa que
segue um tempo psicológico e não cronológico; no relevo que as cores
têm ali acompanhando as sensações visuais exploradas pelo escritor;
na ‘escritura artística’ à irmãos Goncourt” (ibidem).
Em O Ateneu: retórica e paixão, os estudos reunidos por Leyla
Perrone-Moisés (1988) giram em torno das relações entre estilo e
retórica, conforme sugere o título. Seu texto, “Lautréamont e Raul
Pompéia”, assim como os dos colaboradores que se debruçaram
sobre O Ateneu, tem o grande mérito de demonstrar analiticamente a
variabilidade estilística apontada anteriormente por inúmeros críticos,
mas não comprovada por uma análise criteriosa.
Nesse texto, Leyla Perrone-Moisés aponta várias semelhanças
estilísticas e ideológicas entre O Ateneu e os Chants de Maldoror, em-
bora considere uma faceta realista no estilo do escritor carioca. Entre as
semelhanças apontadas, encontramos a crítica ao sistema educacional
e o estilo fantasioso, carregado de metáforas e de impressões subjetivas
que levam a um “delírio estilístico”. Mesmo ocorrendo uma separação
entre realidade e sonho, observa que as imagens dos pesadelos “já têm
traços expressionistas e surrealistas, traços mais modernos, que decor-
rem de uma liberação maior do inconsciente e, conseqüentemente, um
maior irrealismo” (ibidem, p.24).
Na parte nomeada como “A linguagem das paixões”, os textos
“Retórica da guerra” de Eunice Dutra Galéry (1988) e “O animal
cultural” de Juan Carlos Chacón (1988) são os mais contundentes em
demonstrar como o estilo varia conforme o tema, a idéia e a sensação,
assim confirmando a coerência entre os princípios teóricos de Raul
Pompéia e a sua prática artística. Ao tratar das metáforas de zoomor-
fização, que aparecem mais de 170 vezes, Chacón observa que elas
estão associadas a diferentes estilos e que seu uso depende dos efeitos
O MAL DE D. QUIXOTE  37

almejados. Para realçar o instinto de agressão, no episódio do assassí-


nio, e a sexualidade/sensualidade animal de Ângela, Raul Pompéia
utiliza imagens animais típicas do estilo naturalista; para descrever o
episódio da natação, utiliza imagens grotescas que deformam o corpo
humano e lembram o expressionismo; e para caracterizar a aparência
externa de Ângela, nomeada “canarina”, utiliza imagens típicas do
estilo romântico. Processo semelhante ocorre em relação ao uso das
metáforas da guerra. “A linguagem militar, refletindo a organização
do colégio e servindo como termo comparativo em grande número
de expressões é tomada ora a sério, ora parodisticamente, variando
de valor segundo o estatuto do narrador ou o do personagem que a
emprega” (Galéry, 1988, p.93).
Outro aspecto importante que os textos apontam é a subversão da
retórica. O exagero no uso de clichês e figuras de estilo, que instauram
a paródia aos modelos de eloqüência, assim como o desvio em relação
às imagens convencionais caracterizam uma estilização negativa que
leva à sátira e à carnavalização da linguagem bacharelesca dominante
na sociedade brasileira do século XIX.
Ao final da leitura de O Ateneu: retórica e paixão, resulta a imagem
de um romance extremamente inovador e moderno para sua época,
pois, ao se apropriar dos estilos vigentes, não somente os supera,
como também constrói um estilo próprio, atingindo outra dimensão
artística. Daí sua grandeza, segundo os autores.

Balanço das controvérsias

De modo geral, a defesa do realismo fundamenta-se na crítica


política ao Segundo Reinado, no caráter psicológico da narrativa
(considerada como expressão de um realismo interior), na caracteri-
zação dos personagens como “tipos” e nas teorias sociais e científicas,
que alguns críticos consideram presentes na segunda conferência do
professor Cláudio. Tais características também são apontadas em
defesa do naturalismo, acrescentando-se a elas a presença de temas
considerados oriundos do evolucionismo e do determinismo, tais
38  MARCIANO LOPES E SILVA

como a homossexualidade, a violência, a luta pela sobrevivência e


a perversidade dos instintos. É interessante observar que, mesmo
defendendo tal posição, vários críticos não deixam de apontar, com
perplexidade, a contradição entre essas características – e os valores
que lhe são inerentes – e a presença de um estilo bastante contrário
a elas. Isso os leva a fazer constantes ressalvas e, em alguns casos, a
emitir conclusões que, em última instância, negam o enquadramento
proposto – conforme acontece nos brilhantes ensaios de Alfredo Bosi
e Roberto Schwarz, pois, na tentativa de resolver o impasse, conside-
ram que a convivência entre a objetividade realista e a subjetividade
romântica levam à superação do realismo.
Diversamente dos críticos mencionados, que valorizam espe-
cialmente elementos temáticos e ideológicos para a identificação de
O Ateneu com o realismo-naturalismo, os que o identificam com o
impressionismo conferem maior valor e destaque à subjetividade
da narração em primeira pessoa e aos elementos formais do estilo,
considerando a écriture artiste e o uso das analogias – que muitos
julgam provenientes de Baudelaire – como elementos decisivos para
a fundamentação da sua escolha.
Apesar das diversas e contraditórias opiniões, entretanto, pode-
mos apontar alguns pontos de consenso entre os críticos em relação
a O Ateneu, uma vez que, salvo a diferença de grau no destaque
conferido às características que seguem, quase todos as observam
na obra em questão:
• a existência de uma diversidade estilística;
• a existência de uma tensão entre elementos estéticos e ideológicos
oriundos das teorias científicas que fundamentam a objetividade
realista e o estilo fortemente subjetivo, que valoriza a individua-
lidade do criador;
• a existência de uma écriture artiste (identificada aos irmãos Gon-
court) ou impressionista, caracterizada por um estilo colorido
recheado de metáforas, analogias, símbolos e sinestesias;
• a sátira ao Segundo Reinado, motivo pelo qual também se faz
presente, em nível estilístico, o uso da paródia, da caricatura e
do grotesco.
O MAL DE D. QUIXOTE  39

A recepção crítica de Canções sem metro

Conforme observamos no início desta introdução, são poucos os


críticos que se detiveram atentamente nas Canções sem metro. Tal fato
permite que vejamos suas opiniões com mais atenção, mas, antes de
passarmos à análise mais detalhada delas, convém considerarmos as
observações daqueles que discorreram sobre os poemas em prosa de
Raul Pompéia de modo mais ligeiro.
Afrânio Coutinho (1982a) e Xavier Placer (1963) consideram que
Raul Pompéia é, no Brasil, o pioneiro no gênero poema em prosa.
Entretanto, Xavier Placer não aprecia positivamente Canções sem
metro. Para ele, os poemas em prosa de Pompéia são “castigadíssimos”
e “mesquinhos” por terem sido polidos e repolidos por anos a fio. Da
mesma opinião parece ser Andrade Muricy, para quem eles são frios,
sem emoção. Aliás, Muricy inclui dois poemas em prosa somente na
segunda edição do seu Panorama do movimento simbolista brasileiro,
provavelmente, pelas reclamações de Lêdo Ivo (1963, p.34) e, mesmo
assim, não discorre sobre eles.
De modo semelhante a Xavier Placer, Eugênio Gomes também
considera que o trabalho meticuloso realizado nos poemas em prosa não
sintoniza com o temperamento do autor, que, sendo marcial, melhor se
expressa numa escrita impulsiva e vibrante como a que encontramos
em O Ateneu. Além disso, aponta a origem dos poemas em prosa nos
contos denominados “Microscópicos”, pois também observa neles
a extrema brevidade narrativa e a presença do impressionismo e da
écriture artiste, estilo que julga proveniente de François Coppée.
Na apresentação do volume IV das Obras reunidas de Pompéia,
Afrânio Coutinho (1982a, p.21) afirma que “andou bem Andrade
Muricy incluindo-o [Raul Pompéia] em seu monumental panorama
do simbolismo”. Apesar de o iniciador do gênero poema em prosa ter
sido Aloysius Bertrand (1807-1841), Afrânio Coutinho considera que
as obras que mais provavelmente influenciaram o autor de O Ateneu
foram os Petits poèmes em prose de Charles Baudelaire e os Chants de
Maldoror (1874) de Lautréamont, cognome do conde franco-uruguaio
Isidore Lucien Ducasse (1864-1870).
40  MARCIANO LOPES E SILVA

Diversamente da atenção que dispensa a O Ateneu, Alfredo


Bosi (1974, p.205) dedica poucas linhas à obra em questão em sua
História concisa da literatura brasileira, considerando-a um “ensaio
estetizante de prosa poética, que resultou menos rico do que a lin-
guagem do Ateneu, mas vale como prova de um extremo cuidado no
traço das formas”.
Massaud Moisés (1984, p.418) afirma que a obra Canções sem metro
foi escrita “sob o influxo de Aloysius Bertrand e seu Gaspar de la Nuit
(1842) e de Baudelaire e seus Petits poèmes en prose”, mas considera
que nem todos os poemas em prosa são poéticos. O malogro dessas
composições, que “se enquadram no perímetro da crônica, oscilando
entre a narrativa e o tom poético ou reflexivo” (ibidem), deve-se, em
sua opinião, à incompatibilidade entre o estilo almejado e a cosmovisão
do autor. Entretanto, nesse capítulo ele não esclarece qual cosmovisão
julga animar a obra, ficando mais ou menos subentendido que seja
romântico-simbolista, visto considerar o influxo de Aloysius Ber-
trand e Baudelaire. Para tanto, necessitamos ler sua apreciação sobre
o poema em prosa no volume sobre o simbolismo de sua História da
literatura brasileira. Nela, considera que “falar em poema em prosa, é
como falar em movimento simbolista, ou coisa que o valha” (Moisés,
[19--], p.218). Sobre Canções sem metro afirma: “De parco ou duvidoso
mérito, elas valem pela moda que inauguram em nosso meio, e por
anunciar o Simbolismo em progresso” (ibidem, p.221).
Por fim, José Guilherme Merquior (1996, p.258), sem entrar em
detalhes, considera que a prosa poética de Canções sem metro se apro-
xima do “decorativismo parnasiano”.

A crítica de Venceslau de Queirós

O artigo de Venceslau de Queirós (1982, p.30), publicado em 27 de


julho de 1901 no Diário popular, conjuga, de modo muito feliz, o caráter
informativo ao analítico, dividindo-se, grosso modo, em dois momentos.
No primeiro, filia Canções sem metro ao recente gênero dos poemas em
prosa e compara Raul Pompéia a Louis Bertrand, pois considera que,
O MAL DE D. QUIXOTE  41

além da afinidade literária, há também uma afinidade biográfica: ambos


morreram pobres, abandonados e com o “gênio abafado pela inveja e
pela indiferença”. Apesar da referida comparação, aponta Baudelaire
como a principal influência direta (especialmente no que toca à teoria
das correspondências, ao pessimismo e ao spleen) e reconhece seu pio-
neirismo no gênero, pois em sua opinião “nenhum escritor brasileiro
fez ainda trabalho igual, apesar de muitos o terem tentado” (ibidem):

Manuseando as primeiras páginas desta bela coleção de pequenos po-


emas, feitos à feição dos de Louis Bertrand e Charles Baudelaire, vejo logo
que o seu autor seguiu o mesmo processus [sic] artístico daqueles escritores
franceses, [...] a sobriedade, a precisão, o destaque, o vigor, o colorido, o
brilho, a nuança, no emprego dos vocábulos e no corte da frase, consoante
o assunto dado. E, além de seguir tais requisitos, é preciso que o escritor
conheça os segredos da musicalidade da frase, dessa espécie de contraponto
do estilismo, a fim de que uma tal prosa poética, sem ritmo regular e sem
rima, se adapte, como reclama Baudelaire, aos movimentos líricos da alma,
às ondulações da cisma, nos sobressaltos da consciência. (ibidem)

No segundo momento do artigo, Queirós apresenta um resumo


dos temas e das influências presentes em cada uma das partes que
compõem a obra. Realça o pessimismo e o nirvanismo das canções, a
influência indireta de Edgar Allan Poe por intermédio de Baudelaire
e, ao final, compara-as aos Petits poèmes en prose do último quanto à
organicidade do seu conjunto. Em suma, considerando a época e o
meio em que foi publicado, o artigo de Venceslau de Queirós equilibra
com sabedoria elementos do biografismo e da crítica temática, apre-
sentando o mérito de apreciar e valorizar alguns elementos intrínsecos
e estilísticos geralmente desconsiderados tanto pela crítica historicista
como pela impressionista.

A crítica de Maria Luiza Ramos

Diversamente do que faz com relação a O Ateneu, Maria Luiza


Ramos ([1957?]) restringe-se a uma análise em nível estilístico ao tratar
de Canções sem metro, não buscando interpretar os poemas à luz da
42  MARCIANO LOPES E SILVA

psicologia. Surpreende que, em nenhum momento, procure explicar


a influência de Baudelaire com base na identificação masoquista com
a melancolia, o spleen e o satanismo apontados em sua poesia; mas tal
interpretação, após todas as considerações anteriormente feitas com
relação ao referido romance, permanece inevitavelmente pulsando,
insinuando-se nos silêncios do discurso, pois, na introdução do seu
estudo, já considera como fato inconteste a obra ser expressão da
personalidade do autor.
Para ela, a influência de Baudelaire em Canções sem metro “é
patente não só quanto à intenção de interpretar a analogia universal,
mas também na técnica de concepção da imagem, quase sempre sob
a forma de comparação” (ibidem, p.81). Entretanto, considera que
Raul Pompéia se afasta do poeta francês na medida em que “fez dos
poemas um instrumento da eloqüência e da moral, em flagrante con-
tradição consigo mesmo” (ibidem, p.80), de tal modo que privilegiou
as idéias e a comparação dialética em detrimento das imagens, além
de resvalar, não raramente, na pieguice romântica ao tratar da simbo-
logia das cores. Considera também que a abundância da adjetivação,
não raro redundante, e o uso de “palavras e expressões antipoéticas”
são outros males do fanatismo pela eloqüência que contribuem para
o malogro da obra.
Por fim, é importante ressaltar que a autora considera os contos pu-
blicados na série “Microscópicos” como estilisticamente semelhantes
aos poemas em prosa, parecendo-lhe que “representam em sua obra um
exercício literário que se aprimoraria, no correr dos anos, até atingir a
forma caprichosamente trabalhada das Canções” (ibidem, p.56).

A crítica de Lêdo Ivo

Dos críticos em questão, Lêdo Ivo é o que apresenta mais entusiasmo


no trato da obra Canções sem metro e tem o mérito de ser o primeiro a con-
ferir relevo à análise do texto, privilegiando os elementos intrínsecos.
No capítulo “A cosmologia malograda”, do seu livro O universo
poético de Raul Pompéia, Lêdo Ivo (1963) discorda radicalmente
de Andrade Muricy e de outros que consideram Canções sem metro
O MAL DE D. QUIXOTE  43

uma obra menor e que não reconhecem seu caráter simbolista. Ao


desenvolver sua argumentação, considera-a uma obra-prima digna
de estar ao lado de Missal, de Cruz e Souza, e conclui o capítulo
comparando-a ao Livre de Mallarmé, pois teve, na vida de Pom-
péia, a mesma importância que aquele teve para o poeta francês,
constituindo-se em um testamento literário que documenta, “apesar
de seu malogro, uma das maiores aventuras em língua portuguesa:
o empenho obsessivo de criar uma obra que representasse uma
visão órfica do Universo, e fosse uma recriação verbal do cosmo”
(ibidem, p.91).
Em outro capítulo, “O edifício alegórico”, Lêdo Ivo (1963, p.39)
refere-se ao impacto baudelairiano nos poemas em prosa de Raul
Pompéia, mas não considera a sua influência como fonte das corres-
pondances, assim como faz Maria Luiza Ramos. Segundo ele, a pro-
vável origem dessa visão simbólica e mística do universo encontra-se
tanto na teoria de Swedenborg como “na imensa fonte hugoana, quer
em seus poemas, quer em seus romances”. Ao analisar o estilo da
sua escrita, considera que as metáforas, os símbolos, as alegorias,
as associações, as correspondências e as enumerações ordenadas ou
caóticas são procedimentos “recrutados para proclamar a harmonia
universal das coisas e dos seres” (ibidem, p.40), realçando, entre
eles, a prosopopéia e a reiteração verbal como rasgos característicos
do estilo de Victor Hugo.
Com relação aos aspectos temáticos, Lêdo Ivo aponta o pes-
simismo e o nirvanismo existentes em Canções sem metro, mas
diversamente de Sônia Brayner (conforme veremos adiante) não os
relaciona ao pessimismo de Schopenhauer. Detendo-se na terceira
parte da obra, fundamenta-se na leitura dos poemas “O ventre”,
“Indústria”, “Comércio”, “Os animais” e “Hoje” (da quinta e última
parte) para concluir que as “Canções sem metro são, em suma, uma
visão do universo, uma viagem imprecatória através do espaço e do
tempo, e marcadas por uma singular consciência histórica e social e
por um claro sentido evolucionista” (ibidem, p.83).
É curioso que o autor aponte a contradição entre a visão de mundo
materialista, marcada pela crença no progresso, e o profundo pessi-
44  MARCIANO LOPES E SILVA

mismo, mas não considere igualmente a tensão – muito mais profunda


– entre a concepção materialista e a concepção simbólica de mundo,
que afirma ser decorrente das teorias de Swedenborg e da literatura de
Victor Hugo. Afinidades que, em sua opinião, levam Raul Pompéia a
“conviver na família espiritual daqueles que, como Balzac, Rimbaud,
Gérard de Nerval e Baudelaire, foram verdadeiramente videntes”
(ibidem, p.67). Apesar da contradição existente no juízo crítico de
Lêdo Ivo, são indiscutíveis os méritos do seu estudo e a consciência
crítica que se revela em considerar a importância de Canções sem
metro para a compreensão holística da obra de Raul Pompéia, visto
possuir “o mérito fundamental de revelar mais devassadamente o lado
de Raul Pompéia que até agora não foi proclamado: o do visionário”
(ibidem, p.35).

A crítica de Sônia Brayner

No livro Labirinto do espaço romanesco, Sônia Brayner (1979b,


p.234) aponta o estilo marcado pelo impressionismo, a filiação ao
gênero inaugurado por François Coppée, Aloysius Bertrand, Baude-
laire e Rimbaud, “a confluência entre o conceito de ‘correspondência’
baudelaireano, a teoria científica das vibrações [...] e o conteúdo do
célebre soneto ‘Voyelle’ de Rimbaud”. Também considera que as
canções apresentam uma “tonalidade moralizante”, mas, diversamente
de Maria Luiza Ramos, não as vê como possuidoras de qualidade
inferior por causa desse aspecto e do excesso de eloqüência presente
na retórica. Mesmo admitindo que os textos apresentam um “valor
desigual em que à notação lírica profunda junta-se um tênue fio nar-
rativo que lhe serve de suporte imagístico-ficcional” (ibidem) e que o
rigor construtivo e o constante polimento “tolhem as potencialidades
de sua instância poética” (ibidem, p.237), afirma que as canções dosam
com cuidado a formulação imagística e retórica.
Para compreendermos melhor o que considera como estilo impres-
sionista, é necessário remontarmos à sua análise de O Ateneu e às suas
considerações sobre o miniaturismo, visto considerar que os poemas
em prosa têm início nos contos da série “Microscópicos”, publicados,
O MAL DE D. QUIXOTE  45

desde 1881, na revista A Comédia (São Paulo) e, durante as férias de


1882, no jornal carioca Gazeta de Notícias.
Em sua opinião, é fundamental para a compreensão do impres-
sionismo a maneira como é feita a ambientação, que passa a ser
considerada como uma realidade percebida, subjetiva, expressiva
das sensações e sentimentos do observador. Nela, os objetos “reais”
não perdem sua materialidade, mas deixem de ser determinantes da
representação. Por isso encontramos um alto valor conferido à imagem
e à sensação como formas de causar um estranhamento. Para tanto,
aponta os seguintes procedimentos nos textos de Raul Pompéia:
• relações novas e inesperadas entre os substantivos e os adjetivos
“para lhes ampliar o potencial de elos expressivos de significa-
do, de funções gramaticais e de mobilidade na frase” (ibidem,
p.135);
• uso do símile em abundância;
• concentração de adjetivos “na tentativa de amplificação até a
redundância da percepção concreta e associativa” (ibidem);
• uso de animizações e sinestesias.
Além dos procedimentos já apontados, Brayner (1979a, p.133)
também considera a utilização de “certos artifícios estruturais como
a fragmentação formal, os ritmos internos da frase, o gosto pela jus-
taposição, quer frasal quer cênica, a preferência pelas pequenas uni-
dades, [e] a fuga dos instantes de clímax na construção ficcional”.
Como vemos, a leitura de Sônia Brayner converge com as anterio-
res no que diz respeito ao estilo, mas essa harmonia não permanece
ao tratar dos temas e da concepção de mundo dominante na obra de
Raul Pompéia, pois, nesse aspecto, diverge radicalmente de Lêdo
Ivo. No lugar do entusiasmo e da crença materialista no progresso,
vê a presença de um profundo pessimismo, extremamente próximo
do pessimismo machadiano que encontramos na teoria do Humanitas
e no delírio de Brás Cubas. Ao analisar a estrutura dos poemas em
prosa que compõem a obra, Sônia Brayner observa “o caráter cíclico
das composições” (ibidem, p.235) e cita os poemas “O ventre” e “So-
lução” como alegorias de uma visão do mundo e da história marcada
pela repetição, pelo retorno cíclico da dor e da miséria, concluindo
46  MARCIANO LOPES E SILVA

que “a fonte filosófica dos dois autores é a mesma: o pensamento de


Schopenhauer” (ibidem, p.236).
Apesar das conclusões citadas, ela faz a ressalva de que a concep-
ção romântica do artista como um ser rebelde, marcado pelo gênio
criador, e a intensidade dos problemas sociais, que levaram os artistas
à luta política, atenuam o impacto do pessimismo schopenhaueriano
e abrem caminho para “contaminações tainianas”. Contaminações
que vê presentes na idéia da arte como resultante da educação dos
instintos sexuais e na busca de um “espírito de sistema”, atitudes
contrárias ao niilismo e ao “quietismo” filosófico do fin de siècle.
Entretanto, tais ressalvas são questionáveis, posto que a idéia do
artista como gênio também se encontra na obra do filósofo alemão
(cuja estética é marcadamente romântica), assim como a idéia (não
exclusiva do determinismo) de que a arte surge da sublimação dos
instintos sexuais que, para ele, são uma das mais fortes manifestações
da “Vontade”.

Balanço crítico

Enfim, fazendo um balanço dos diversos estudos e comentários


críticos a respeito de Canções sem metro, notamos que desta vez não
há maiores divergências, de tal modo que as opiniões convergem em
vários aspectos:
• Raul Pompéia é considerado o introdutor do gênero no Brasil;
• aponta-se a influência de Baudelaire; Aloysius Bertrand e Victor
Hugo;
• aponta-se a presença do estilo impressionista, que se confunde com
a écriture artiste e o miniaturismo;
• aponta-se uma forte presença da retórica e da eloqüência;
• aponta-se a proximidade estilística entre os poemas em prosa e os
contos publicados na série “Microscópicos”;
• aponta-se a presença das correspondências universais de Sweden-
borg;
• aponta-se o caráter cosmogônico da obra;
• aponta-se o pessimismo e o nirvanismo.
O MAL DE D. QUIXOTE  47

A recepção crítica dos contos

Com relação aos contos, somente temos de substancial a crítica de


Eugênio Gomes (1958c), reunida em Visões e revisões, e os já citados es-
tudos de Maria Luiza Ramos ([1957?]) e de Massaud Moisés (1984).
Eugênio Gomes (1958a), no artigo “Raul Pompéia, contista”, con-
sidera que os contos são marcados por uma atmosfera mórbida e por
um sentimento trágico. Com relação ao estilo, afirma que apresentam,
de maneira bem dosada, tanto o naturalismo quanto o impressionismo
e a écriture artiste, chinesice do estilo que julga proveniente de François
Coppée. Por essa característica, e por serem textos instantâneos e bre-
víssimos, Eugênio Gomes considera que os contos escritos a partir de
1881 e denominados “Microscópicos” aproximam-se estilisticamente
dos poemas em prosa.
Segundo Maria Luiza Ramos ([1957?], p.53), os contos podem
ser divididos em duas fases: “uma relativa aos Microscópicos, que se
desenvolveu por volta de 1881, outra bem posterior, que se refere
principalmente aos trabalhos divulgados em A Rua, pouco depois
do aparecimento de O Ateneu”. Com relação aos contos da primeira
fase, ela observa a preocupação com o estilo ornamental, com a síntese
narrativa e a economia verbal, características que os aproximam dos
poemas em prosa. Com relação aos contos da segunda fase, que con-
sidera melhores, aponta a presença concomitante do impressionismo e
do naturalismo, que podem ser percebidos pela “concepção naturalista
do homem como animal” (ibidem, p.59).
Não muito diferente é a opinião de Massaud Moisés (1984, p.418).
Segundo ele, os contos sob a rubrica “Microscópicos” estão no mesmo
diapasão dos poemas em prosa e há outros “que nem são contos, e raros
ultrapassam o improviso, a pressa, a indecisão entre o Naturalismo
mecânico e o Impressionismo mal assimilado”.
Resumindo as poucas e frágeis opiniões, podemos considerar as
seguintes considerações críticas sobre os contos:
• existência de duas fases;
• presença de uma escritura artística e impressionista nos contos da
primeira fase – denominados de “Microscópicos”;
48  MARCIANO LOPES E SILVA

• presença do naturalismo e do impressionismo nos contos da se-


gunda fase.

Nossa hipótese: romântico, mas sem (um) estilo

O panorama crítico apresentado revela que a maioria dos estudos


não busca determinar os valores cognitivos e éticos que orientam
a obra de Raul Pompéia em seu conjunto. No máximo, a crítica os
reconhece com relação a O Ateneu e Canções sem metro, mas não
consegue identificar de maneira satisfatória a concepção de mundo
dominante em cada uma. Como esse movimento exegético não é
realizado satisfatoriamente, os estudos críticos, de modo geral, não
conseguem ultrapassar o nível de compreensão da organização com-
posicional (Bakhtin, 1990b) das obras estudadas e muito menos tentam
compreender a intertextualidade existente entre elas. Essas limitações
intensificam as controvérsias e geram as inúmeras contradições vistas,
pois os diferentes estilos encontrados não são compreendidos em sua
relação entre si e nem com respeito à dominante ideológica.
A limitação crítica apontada antes também ocorre em razão do
comparatismo fundamentado na idéia de “influência”, que busca priori-
tariamente identificar a suposta origem externa de elementos temáticos e
composicionais em uma obra, sem dar a devida atenção à maneira como
esses elementos, uma vez apropriados da obra de um outro autor, são
reelaborados conforme as necessidades internas da nova composição. Ao
não considerar a relação entre, de um lado, as formas composicionais e
os temas e, de outro, os valores cognitivos e éticos dominantes na obra,
muitas vezes o olhar crítico conclui, de modo ingênuo e/ou precipitado,
que a presença de determinadas idéias ou características estilísticas são
prova da influência de um autor ou da filiação em alguma escola. É o
que podemos observar em análises superficiais e apressadas que, por
identificar a presença de temas como o do homossexualismo e o da vio-
lência, assim como o determinismo do meio, imediatamente concluem
que O Ateneu é um romance naturalista sem antes considerar como tais
elementos se subordinam à dominante ideológica do texto.
O MAL DE D. QUIXOTE  49

É claro que não devemos considerar a priori que o conjunto de tex-


tos que formam uma obra se apresente ideologicamente homogêneo,
visto que, em seu processo de maturação, o autor dialoga com diferentes
discursos, estilos e concepções de mundo e os vai digerindo e remo-
delando numa constante busca dos valores que considera autênticos.
Mas a controvérsia em torno de O Ateneu constitui um bom exemplo
de como a desconsideração do nível de organização arquitetônica e do
caráter plurilingüístico do romance (Bakhtin, 1990b) – e da narrativa
em geral – levam a uma incompreensão dos procedimentos de compo-
sição, que acabam sendo considerados numa autonomia inexistente.
A incapacidade de lidar com a pluralidade estilística encontrada é um
exemplo das conseqüências dessa postura, de tal modo que a crítica
feita por Bakhtin à estilística tradicional, que “desconhece este tipo
de combinação de linguagens e de estilos que formam uma unidade
superior” (ibidem, p.75) é válida para vários dos estudos menciona-
dos no panorama crítico. Nesses, a “análise estilística orienta-se não
para o conjunto do romance, mas tão somente para uma ou outra
unidade estilística subordinada” (ibidem), de tal modo que se conclui
pela inserção da obra em um determinado estilo de época baseado
parcialmente em alguns elementos temáticos ou composicionais, tais
como a presença do determinismo ou o estilo colorido e vibrante. Es-
quecem esses críticos que, assim como cada palavra pode apresentar
diferentes acentos de valor segundo o discurso e o contexto em que
se inscrevem (Bakhtin, 1990a), o mesmo pode acontecer com relação
aos estilos composicionais. Por tal motivo, o crítico deve permanecer
atento para o fato de que as funções artísticas das diversas linguagens
e estilos variam em um romance, de tal modo que “o problema está
em saber sob que ângulo dialógico eles se confrontam ou se opõem na
obra” (Bakhtin, 1981, p.158).
Um tema assim como um determinado estilo de composição não é
propriedade exclusiva de uma escola literária ou uma visão de mundo.
Tanto um quanto o outro devem, antes de tudo, ser compreendidos
em razão do narrador e/ou dos personagens aos quais estão associados,
assim como em razão do contexto que caracteriza a passagem literária
em que se encontram. O crítico jamais pode perder de vista a relação
50  MARCIANO LOPES E SILVA

dialógica que caracteriza a linguagem em ação, por isso deve identificar


os diferentes acentos valorativos que as palavras e os estilos composi-
cionais podem assumir conforme os valores que orientam a arquitetura
da obra. Exemplares sobre o modo mais adequado de se considerar
tais questões são os estudos, anteriormente citados, sobre a retórica
da guerra, de Eunice Galéry, e das metáforas animais, de Juan Carlos
Chacón, em O Ateneu. Com base nas análises desenvolvidas, ambos
constatam que um mesmo procedimento estilístico pode ter diferentes
funções e, por conseguinte, diferentes significações na economia da
obra. Sobre as abundantes metáforas animais, Chacón observa que
elas não estão presentes em razão do naturalismo, mas com o objetivo
de produzirem efeitos paródicos e/ou satíricos cujo alvo, muitas vezes,
é a própria retórica. Em seu conjunto, os estudos reunidos na obra
organizada por Perrone-Moisés demonstram que o delírio estilístico
implode e desestabiliza as significações cristalizadas em metáforas e
figuras gastas pela convenção retórica da época.
Perante o quadro crítico marcado por tantas controvérsias e contra-
dições, especialmente no que toca a O Ateneu, não nos parece aceitável
classificarmos no realismo ou no naturalismo uma obra marcada
por tão expressiva subjetividade, por um estilo colorido e musical,
carregado de metáforas e analogias que remetem o leitor à idéia das
correspondências universais presentes na filosofia de Swedenborg,
cujo caráter é reconhecidamente místico. A tentativa de recriar a
harmonia cósmica a partir das analogias universais não é observada
em O Ateneu, mas é apontada por Lêdo Ivo (1963), Sônia Brayner
(1979b) e Maria Luiza Ramos ([1957?]) como elemento constitutivo
dos poemas em prosa que compõem a obra Canções sem metro. E é
importante lembrarmos que os poemas em prosa – denominados
“canções sem metro” por Raul Pompéia – constituíram trabalho de
uma vida inteira, sendo iniciadas muito antes da publicação de O
Ateneu. Exemplo são os poemas “O ventre” e “A noite”, publicados
originalmente na Gazeta da Tarde em 28 e 31 de dezembro de 1885.
Ora, parece muito estranho que um escritor identificado com o natu-
ralismo aposte, assim como Mallarmé, na criação de uma obra capaz
de recriar o universo poeticamente.
O MAL DE D. QUIXOTE  51

É certo que não se pode negar a presença das idéias científicas


dominantes na sociedade brasileira da época, mas é questionável que
sejam hegemônicas, pois a hipótese de uma mundividência român-
tica ser a dominante ideológica encontra apoio em vários aspectos
apontados pela crítica: o estilo carregado de metáforas, subjetivo e
“incendiário”, o uso de sinestesias, as analogias, a aproximação com
o simbolismo, as “influências” de Victor Hugo e Baudelaire e, até
mesmo, a presença de traços expressionistas – entre outros aspectos
que trataremos adiante.
Embora entre em crise no final do século XIX, consideramos
que o romantismo “não morreu mas, como bom camaleão, mudou
de roupagem sem ter conseguido, aliás, realizar todo o programa a
que se propunha em seus manifestos” (Moretto, 1989, p.15), ainda
permanecendo vivo nos dias de hoje. O simbolismo, o decadentis-
mo, os movimentos de vanguarda do início do século XX, tais como
o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo, assim como diversos
movimentos sociais, lhe são devedores, conforme argumentam a citada
autora e inúmeros outros críticos e historiadores da literatura. Entre
aqueles que apontam a relação de continuidade entre romantismo e
simbolismo estão, por exemplo, Henri Peyre (1975), Bertrand Mar-
chal (1993) e Massaud Moisés ([19--]); entretanto, muitos vão além
e consideram a permanência da estética romântica até os nossos dias.
Isso é o que podemos ver, por exemplo, nas obras de Anatol Rosenfeld
(1976), Edmund Wilson (1993), Löwy & Sayre (1995), Marcel Ray-
mond (1997), Tzvetan Todorov (1996), Octavio Paz (1984) e Álvaro
Cardoso Gomes (1994). Entre os primeiros, Bertrand Marchal (1993)
considera que o Simbolismo constitui “un romantisme fin de siècle” e, de
modo semelhante, Massaud Moisés ([19--], p.20) afirma que “o movi-
mento simbolista mergulha raízes no Romantismo”. Marcel Raymond
(1997), em sua obra De Baudelaire ao surrealismo, rastreia um rio de
crenças, sonhos e aspirações insatisfeitas que o romantismo libertou e
que estão presentes no simbolismo e no surrealismo, demonstrando a
íntima ligação entre eles e a importância dos mesmos para a moderni-
dade. A mesma opinião possui Álvaro Cardoso Gomes (1994, p.15),
que considera os movimentos do romantismo e do simbolismo como
52  MARCIANO LOPES E SILVA

estreitamente ligados, afirmando que os precursores de Baudelaire,


Rimbaud e Mallarmé “encontram-se sem dúvida na literatura anglo-
germânica”, sendo o mais influente Edgar Allan Poe. Para ele, o que,
“no Simbolismo, se traduzia por novos temas e por uma subjetividade
que controlava as emoções, já era patente entre os românticos ingleses,
principalmente na musicalidade de um Wordsworth e no culto à ima-
ginação de um Coleridge, de um Shelley” (ibidem). Edmund Wilson
(1993, p.9) afirma que o simbolismo “não é mera degenerescência ou
prolongamento do Romantismo, mas, antes, sua contraparte, uma
segunda cheia da mesma maré”. Guy Michaud (1995, p.17) não pensa
muito diferente, pois afirma que o simbolismo realiza as promessas e
aspirações de plenitude contidas na poética do romantismo alemão,
assim como Octavio Paz (1982, 1984) e Tzvetan Todorov (1996), os
quais consideram que as vanguardas do século XX estão impregnadas
pela estética romântica. Octavio Paz chega mesmo a considerar que a
poesia francesa do final do século XIX é inseparável do romantismo,
constituindo outro momento romântico.

A poesia francesa da segunda metade do século passado – chamá-la de


simbólica seria mutilá-la – é inseparável do romantismo alemão e inglês:
é sua prolongação, mas também sua metáfora, é uma tradução, na qual o
romantismo volta-se sobre si mesmo, contempla-se e se transpassa, se in-
terroga e se transcende. É o outro romantismo europeu. (Paz, 1984, p.92)

Em suma, a valorização da subjetividade e da imaginação criadora, o


misticismo e a religiosidade, a crença nas analogias universais (que im-
plica um estilo pleno de musicalidade, sinestesias, metáforas e símbo-
los), o papel redentor atribuído à obra de arte, que apesar de autônoma,
tem a propriedade de promover o estranhamento e a transcendência, e
a crítica ou a rejeição à modernidade capitalista são aspectos comuns
entre o romantismo e a arte simbolista. Por tal motivo, consideramos
o simbolismo subordinado à visão de mundo romântica.
Poder-se-ia argumentar, contra a hipótese de uma mundividência
romântica ser hegemônica na obra de Raul Pompéia, com o fato de
muitos críticos apontarem o impressionismo como um traço comum
O MAL DE D. QUIXOTE  53

em sua obra, estando presente em O Ateneu, em Canções sem metro


e nos contos. No entanto, o conceito de impressionismo, quando
aplicado à literatura, é impreciso, e os limites entre uma ambientação
impressionista, romântica ou simbolista, são bastante tênues, pois o
desejo de registrar o colorido e a impressão visual de um espaço facil-
mente resvala para uma atitude subjetiva do narrador. Além disso, é
importante considerarmos que o impressionismo também não foi um
movimento homogêneo, dividindo-se, pelo menos, em duas vertentes:
uma realista e outra romântica (Silva, 2004b).
A grande preocupação dos primeiros impressionistas estava na
representação da luz e dos seus efeitos ópticos e expressava uma atitude
realista e científica em que “a neutralização e redução do motivo a seus
elementos materiais essenciais pode ser considerada uma expressão da
perspectiva anti-romântica da época” (Hauser, 1995, p.900). A busca
do registro da “impressão” não dizia respeito à impressão subjetiva e
emocional do artista, mas à impressão óptica resultante da ação da luz
sobre os objetos, de tal modo que os personagens, os temas e a intenção
literária (ou poética) eram descartados ou colocados em segundo plano:
“Monet, Renoir, Sisley, Pissarro realizam um estudo ao vivo, direto,
experimental; [...] propõem-se representar com uma técnica rápida e
sem retoques [...] Ocupando-se exclusivamente da sensação visual,
evitam a “poeticidade” do tema, a emoção e a comoção românticas”
(Argan, 1992, p.76).
A postura é bastante característica do trabalho de Monet, pois,
segundo Hautecoeur (1966, p.302), os “personajes ya no son en él más
que un pretexto para la pintura, [...] La intención literaria ha desapare-
cido totalmente”.1 Opinião semelhante tem Gombrich (1999, p.520),
pois considera que “os efeitos mágicos de luz e ar eram muito mais
importantes do que o tema de uma pintura”.
Conforme se vê, a busca da representação dos sentimentos por meio
das cores não era um propósito declarado entre os primeiros impres-
sionistas, visto sua orientação realista e a rejeição ao sentimentalismo

1 “personagens já não são nele mais do que um pretexto para a pintura, [...] A
intenção literária desapareceu totalmente” (tradução do autor).
54  MARCIANO LOPES E SILVA

e à presença do “literário” na pintura. Entretanto, a maior presença


da subjetividade e do simbólico começa a ocorrer à medida que alguns
artistas vão dissolvendo as fronteiras entre o impressionismo e o sim-
bolismo, conforme sugere Argan (1992, p.82) ao citar Mallarmé:

Todavia, não há, em princípio, antíteses radicais com o Impressio-


nismo. Mallarmé gostava de se definir como “poeta impressionista e
simbolista”, e assim os neo-impressionistas como Gauguin não excluem
uma síntese das duas tendências, pelo contrário, aspiram a ela.

Ao falar das duas tendências do neo-impressionismo, Argan refere-


se a um impressionismo científico, baseado nas pesquisas de Chevreul,
Road e Sutton sobre as leis ópticas, e a um impressionismo romântico,
que poderia ser identificado à arte de Paul Gauguin e Vincent van
Gogh. Embora a questão seja polêmica, ela revela, no mínimo, que o
movimento se desenvolveu em direções ideologicamente divergentes,
postura que é compartilhada por Arnold Hauser (1995, p.896). Segundo
ele, no seu desenvolvimento, “o impressionismo perde as ligações com
o naturalismo e transforma-se, especialmente na literatura, numa nova
forma de romantismo” pelo caráter subjetivo e egocêntrico presente
na atitude dos pintores, pois a “redução da representação artística ao
estado de espírito do momento é, ao mesmo tempo, a expressão de uma
concepção de vida fundamentalmente passiva” (ibidem, p.898).
Ora, o modo como os críticos brasileiros utilizaram o conceito
em questão no julgamento da obra de Raul Pompéia não condiz
com o primeiro impressionismo, mas com o segundo. Lembremos,
para ilustrar a afirmação, a maneira como Afrânio Coutinho e Lú-
cia Miguel-Pereira consideram a técnica impressionista. Segundo
Coutinho (1981b, p.10), “a transfiguração da atmosfera, antes que a
realidade fotografada [...] é um dos traços que distinguem o realismo
do impressionismo [...] resultante do enxerto do simbolismo sobre a
técnica realista”. De modo semelhante, Miguel-Pereira (1973, p.115)
afirma que, em O Ateneu:

Sérgio [...] aparece indiretamente, reconstituído pelas sensações que


cada episódio lhe desperta. De realistas, os quadros se fazem impressionis-
O MAL DE D. QUIXOTE  55

tas, já que seu verdadeiro sentido provém, não de si mesmos, das minúcias
que os compõem, mas das reações que provocam no adolescente.

Com base nessas considerações, a recorrente postura crítica de afir-


mação do estilo impressionista na obra de Raul Pompéia torna-se um
elemento favorável à nossa hipótese. As características que os críticos
apontaram para sustentar tal idéia não remetem à objetividade realista
e ao colorido de quem tenta registrar a impressão óptica do momento,
mas ao registro das impressões subjetivas e simbólicas do mesmo, o
que é bem diverso, correspondendo ao que podemos nomear como
impressionismo romântico.
A pluralidade estilística (ou o “delírio estilístico”) juntamente com
a “invariante decepção”, apontada por Clélia Jubran (1980) e Roberto
Schwarz (1981), são duas outras características que vão ao encontro
da nossa hipótese. A primeira pode ser vista do prisma romântico da
liberdade do artista em romper os limites de gênero e elaborar formal-
mente a obra segundo sua subjetividade e as necessidades internas
da composição. Quanto à segunda, revela a destruição das ilusões, a
corrosão dos ideais ingênuos e românticos (como o ideal de cavalaria,
por exemplo) ante os valores do positivismo e do liberalismo. Lem-
bremos que a idealização que Sérgio-personagem fazia a respeito da
infância, da família e da escola, é constantemente desfeita pela realidade
do colégio e que ambos, Sérgio-narrador e Sérgio-personagem, não se
comprazem nem um pouco com essa destruição. Em outras palavras:
a revolta resultante dos ideais corrompidos revela a crise da visão de
mundo que eles sustentam. Além do mais, tal movimento estilístico
de ascensão e queda era característico do estilo e da visão de mundo
românticos, conforme observa Benedito Antunes (1978, p.73):

A ascensão e a descensão, a subida e a queda vertiginosas, verdadeiros


padrões retóricos, que tipificam, na lírica e no romance, a conduta espiri-
tual dos românticos, acompanharam a “turbulência fáustica” em que se
forjou o “escudo de sublimação ou do ideal do eu”.

Esse sentimento contraditório em relação aos ideais, que se expressa


na “invariante decepção”, já havia sido observado anteriormente em
56  MARCIANO LOPES E SILVA

“A problematização do ideário romântico na obra de Raul Pompéia”.2


Na ocasião, verificamos “a existência de uma angústia frente aos novos
tempos, a angústia de quem crê nos ideais românticos, no idealismo
platônico, mas não encontra mais solo fértil para suas crenças e aspi-
rações” (Silva et al., 1996, p.318) dado o “confronto com a realidade
capitalista” (ibidem, p.317).
O mesmo sentimento de repulsa à indústria e ao progresso, visto
como uma sucessão de ruínas e de barbárie, também está presente em
Canções sem metro e no segundo discurso do professor Cláudio, em O
Ateneu, quando ele considera que a indústria, a política, o comércio e
o militarismo são filhos do “Ventre” e representam “a bandeira negra
do darwinismo espartano” (Pompéia, 1981b, p.158) – em oposição à
poesia, que é filha do “Amor”. Ora, embora o sentimento de decadência
seja muito forte no final do século XIX, a rejeição à indústria e a visão
negativa do progresso não são posturas comuns entre os escritores realis-
tas e naturalistas, mas entre simbolistas, decadentistas e românticos.
Cabe, por fim, lembrar, em favor de nossa hipótese, que o estilo
musical e imagético não é propriedade exclusiva do Simbolismo, e
nem a teoria das correspondências, pois “a influência de Swedenborg
sobre o Romantismo [...] resultou numa profunda marca no com-
promisso romântico ante a existência divina” (Balakian, 1985, p.27).
Compromisso que talvez esteja presente em Canções sem metro, visto
que Maria Luiza Ramos ([1957?]), Lêdo Ivo (1963) e Sônia Brayner
(1979c) apontam a presença da filosofia de Swedenborg lado a lado
com a melancolia e uma visão extremamente pessimista sobre o ho-
mem e a história – o que não condiz com a confiança na evolução da
humanidade presente no pensamento positivista que fundamenta, em
grande medida, a estética do realismo.

2 Comunicação apresentada durante o IX Seminário do Centro de Estudos Lingüís-


ticos e Literários do Paraná (Cellip).
2
A Pandora de Raul Pompéia

“O artista não pode senão gostar do que é bello, e o


bello tem as suas leis positivas, fixas, naturaes, deduzidas
da observação dos factos e não concebidas a priori por uma
philosophia transcendental. [...]
Querereis vir antes proceder scienti-ficamente na analyse
das producções do vosso espírito, abandonando toda a espécie
de platonismo nas idéas, por maneira a tornar a critica
consciente quanto possível, ou preferis reservar a gloria de
criticar-vos á turba inerte dos contemplativos? Decidi.”
(Silva Ramos. “A anarchia na
crítica da arte”. Gazeta de Notícias, 1884)

“Fallar das obras de um artista sem estudar a estructura


complexa de sua organização, e fallar dessa estructura sem
fallar do meio que a explica como adaptação, é o mesmo
que procurar representar mentalmente o vôo arrojado da
aguia sem conhecer a potencia muscular de que ella dispõe
nas azas e compreender a estructura desses órgãos sem co-
nhecer as propriedades do ar, o meio onde ellas funcionam.
Toda litteratura é um problema de mesologia e só depois um
problema de mechanica, como tudo quanto existe, porque
tudo se reduz a força e movimento.”
(Livio de Castro. “Questões e problemas –
Nosso meio literário”. Província de São Paulo, 1888)
58  MARCIANO LOPES E SILVA

Como era comum entre os homens de letras em nossa Belle Époque,


Raul Pompéia exerceu com assiduidade o ofício de cronista, escreven-
do para importantes jornais e revistas de Rio de Janeiro e São Paulo,
assim como para o Diário de Minas (Juiz de Fora, MG) nos anos de
1888 e 1889. Suas crônicas, de modo geral, correspondem ao padrão
da época, pois tratam das questões do dia – políticas, sociais, artísticas
e literárias – com um intuito bastante pragmático: formar e informar
as opiniões. Diversamente do estilo dominante a partir da década de
1930, a maioria das crônicas de Raul Pompéia é longa, privilegia o
comentário crítico sobre os fatos políticos e apresenta uma linguagem
bastante objetiva. Diversamente de outros cronistas da época, não
há, nelas, espaço para o fútil, para a “conversa fiada” que se joga fora,
despretensiosa e inutilmente. Cada nova crônica é uma nova arma
no combate nacionalista pela construção de um Brasil digno, que
faça justiça ao povo e à sua vocação regeneradora do velho mundo,
conforme o mito da América considerada como éden, paraíso onde
desenvolver-se-ia uma nova civilização.
No transcorrer das edições jornalísticas, podemos acompanhar,
como se fossem narrativas, o desenrolar de inúmeras questões de
grande interesse: a luta abolicionista e os problemas sociais resultantes
da abolição, o embate entre monarquistas e republicanos, questões
partidárias, o problema da imigração aliado ao da constituição de uma
indústria e uma identidade nacionais, questões econômicas (entre elas
o “Encilhamento”), a natureza e a função da grève (vista como instru-
mento de guerra), a questão do socialismo no Brasil (já considerado
como ideologia alienígena), o direito de voto das mulheres (contra o qual
argumentava), os problemas da urbanização (como o saneamento e a
organização do espaço de lazer e cultura) e variadas questões culturais.
No entanto, apesar de os informes culturais geralmente se situarem no
transcorrer ou no final das crônicas, após o comentário dos fatos políticos
e econômicos, em algumas seções Raul Pompéia deu maior vazão à sua
preocupação estética, colocando a arte em primeiro plano.
É o que acontece na seção “Aos domingos”, publicada entre 18 de
agosto de 1889 e 15 de junho de 1890, e na seção “Lembranças da se-
mana”, publicada entre 28 de julho de 1890 e 9 de maio de 1892, ambas
O MAL DE D. QUIXOTE  59

no Jornal do Comércio (Rio de Janeiro) e assinadas sob o pseudônimo


“Y”. Nelas, o olhar estritamente artístico volta-se especialmente para
as exposições de pintura e para os lançamentos literários, mas o teatro e
a música não lhe são estranhos. São inúmeras as notícias, especialmente
sobre as exposições na Academia de Belas-Artes, destacando-se os no-
mes dos irmãos Rodolfo e Rodrigo Bernardelli, Aurélio de Figueiredo,
Vasquez e Victor Meirelles, entre outros. É visível, nesse campo, seu
empenho em colaborar para a consolidação do que chama, em crônica
publicada em 14 de junho de 1888, na seção “Pandora”, de “escola
dos paisagistas nacionais”. Nela, lamenta que a pintura de Aurélio
de Figueiredo, tão representativa da nossa paisagem nacional, tenha
que emigrar para a América do Norte em busca de reconhecimento,
visto que, no Brasil, “vão os nossos artistas mendigar paisagem aos
panoramas da Itália” (Pompéia, 1983, p.99). Um ano depois, em
crônica publicada na seção “Aos domingos”, em 22 de setembro de
1889, comenta com mais entusiasmo:

Em uma sucessão de intervalos relativamente breves tem o Rio de


Janeiro festejado os triunfos de uma boa conta de paisagistas: Parreiras,
Aurélio de Figueiredo, Caron, agora Ribeiro, que já tem dado provas do
seu talento em outras exposições menos importantes.
Estimulem-se mutuamente esses ilustres artistas em um concurso de
atividade e de entusiasmo; animem-se, com o seu exemplo, aqueles que
aspirarem seguir-lhes os passos e realizem a escola brasileira de paisagem,
a escola americana de pintura, com o sol do nosso céu, com a pujança da
nossa floresta, apresentando ao velho mundo uma amostra de america-
nismo diferente do conhecido americanismo impassível da devastação
industrial. (ibidem, p.156)

Com respeito à literatura, além das notícias de lançamento das


obras, Raul Pompéia tecia geralmente considerações de valor, chegan-
do, às vezes, a realizar pequenos textos de crítica literária. Entre eles,
merecem destaque as crônicas publicadas na seção “Aos domingos”,
em que trata dos livros lançados por Valentim Magalhães, Pereira da
Silva e Medeiros e Albuquerque. Sobre Escritores e escritos, do primei-
ro, Raul Pompéia (1983, p.152-4) observa a falta de rigor científico.
60  MARCIANO LOPES E SILVA

Sobre o segundo, também observa a metodologia, mas, dessa vez, para


elogiá-la (embora não compartilhe do método determinista utilizado
pelo autor, conforme veremos mais adiante):

Tanto nos capítulos da poesia épica, como nos da poesia dramática,


o método do escritor consiste em analisar separadamente as condições
do meio em que se apresentam as obras de arte, a biografia dos autores, e
fazer depois a crítica das produções e o transunto descritivo das principais
delas. (ibidem, p.220)

Ao tratar das Canções da decadência de José Joaquim de Campos


de Medeiros e Albuquerque, observa sua inferioridade com relação à
obra de estréia – Pecados. Em razão do lirismo acentuado, considera a
primeira obra superior aos versos cientificistas e prosaicos do segundo
livro, “em que discute filosofia quase didaticamente” (ibidem, p.160).
Tal posição, pouco favorável ao “cientificismo” da literatura realista,
torna-se patente em outra crônica, publicada na seção “Lembranças da
semana”, onde elogia as narrativas de impressão e análise psicológica
que formam o livro Contos à meia tinta, de Domício da Gama: “A
distinção aristocrática do espírito de Domício fê-lo inclinado à análise
miúda dos fatos espirituais, esta espécie de amor ao bibelot aplicado às
miudezas curiosas do mundo moral” (Pompéia, 1982e, p.229).
Numa dimensão mais ampla e política das diversas questões que
envolvem a vida artística e cultural, destacam-se as preocupações de
Raul Pompéia com a consolidação das festas populares, da memória
coletiva e de um sistema de ensino e apoio à arte capaz de garantir a
formação e a permanência de uma cultura nacional. Nessa perspectiva,
inscrevem-se suas lutas pela organização dos artistas e dos escritores,
conforme vemos em duas crônicas da seção “Aos domingos”. Na
primeira, datada de 30 de março de 1890, defende, com ironia, a ati-
tude de os pintores avaliarem suas obras como mercadorias devido à
necessidade de sobrevivência e às exigências do mercado; na segunda,
de 18 de maio de 1890, defende a possibilidade de os escritores “se
unirem para mútuo auxílio e desenvolvimento da importância social
da sua classe” (Pompéia, 1983, p.341).
O MAL DE D. QUIXOTE  61

O carnaval e a necessidade de uma reforma da Academia de Belas-


Artes são dois outros temas recorrentes que expressam o desejo de
democratizar a arte e a cultura, de modo a torná-las populares. Com
relação ao carnaval, vemos um olhar capaz de considerá-lo em seu
potencial transgressor dos costumes, o que aproxima sua interpretação
da festa daquela feita por Mikhail Bakhtin (1987) e Roberto Da Matta
(1979). Seu entusiasmo é tanto que encontramos uma acirrada luta
pela criação do carnaval de inverno, em junho, por motivos de saúde
e higiene, e inúmeras considerações filosóficas, chegando mesmo a
intitular uma crônica nitidamente ensaística – publicada na Gazeta da
tarde, em 17 de fevereiro de 1882 – de Filosofia carnavalesca (Pompéia,
1982d, p.339-45). Aliás, são reveladoras de sua simpatia pelo carnaval,
como elemento da cultura popular nacional, as considerações que tece
com relação ao teatro de revista, considerado como “uma mistura em
partes iguais de carnaval e literatura” (Pompéia, 1982c, p.162). Por
tais motivos discordamos de Leonardo Affonso Pereira (2000, p.97)
quando afirma que Raul Pompéia possuía uma “visão míope” do car-
naval, sendo incapaz de “enxergar o sentido e a força das brincadeiras
carnavalescas que se faziam presentes pelas ruas”.
A defesa do carnaval de inverno devia-se, antes de tudo, às paupér-
rimas condições de higiene da cidade do Rio de Janeiro na época, que
era constantemente assolada por epidemias de febre e outras doenças
como a varíola (referida no conto “O modelo do anjo”, que trataremos
no quarto capítulo). Quanto ao entrudo, a posição de Raul Pompéia
é contraditória. É certo que argumenta contra a festa pelo seu caráter
violento, mas também é certo que encontra beleza nessa manifestação
popular, o que é perceptível na crônica poética “O carnaval no Recife”
(transcrita na íntegra no quarto capítulo deste estudo) e no próprio
conto “O último entrudo”, cuja ambigüidade com relação à festa não
é percebida por Leonardo Pereira. A morte do velho Borba – que
simboliza o fim do entrudo – não é vista com alegria pelo narrador.
Diversamente, ela se encontra envolta em melancolia, de tal modo que
a narrativa pode ser interpretada como representando a decadência
da cultura popular, que vai perdendo seu espaço na medida em que a
sociedade se moderniza.
62  MARCIANO LOPES E SILVA

Outra luta na qual Raul Pompéia se empenhava de modo vigoroso


e constante é a da reforma da Academia de Belas-Artes. Em crônica
publicada no Jornal do Comércio, em 20 de abril de 1890 (Pompéia,
1983, p.319-21), discorre sobre os efeitos da República na vida
artística. Observa que não se realizou a promessa da Academia de
Letras e que a Academia de Belas-Artes necessita de uma reforma
urgente – embora tenha sido fundado o Instituto de Música “para
substituir aquele indefinível apêndice da Academia de Belas-Artes
que era a chamada 5a Seção e Conservatório” (ibidem, p.320). Nessa
crônica, aponta vários problemas em seu funcionamento e a decisão
do governo de promover sua tão desejada reorganização. No entanto,
com lucidez diversa da que apresenta ao tratar do carnaval, se empe-
nha por uma organização competente do ensino das belas-artes que
não contempla sua democratização em amplo sentido, sendo contra a
proposta, defendida pelos positivistas (que considera radicais), de sua
extinção em favor da descentralização do ensino. Embora empenhado
na construção de um Estado e uma cultura nacional e popular, Raul
Pompéia distingue a grande arte como aristocrática. É digna de nota
sua percepção materialista e ilustrada do problema de se criar uma
arte brasileira, pois reconhece as condições materiais de existência e
produção no país como limitadoras de uma efetiva democratização
que saiba respeitar a sua autonomia e dignidade estéticas, conforme
vemos em crônica anterior, também publicada no Jornal do Comércio,
em 9 de fevereiro de 1890.

As artes podem ser democratizadas, quer dizer, vulgarizadas,


no sentido da contemplação, no sentido de arte considerada no
diletante. Pode-se desejar que todos admirem a produção e, conse-
guintemente [sic] e vantajosamente, sejam influenciados pelos seus
efeitos morais.
Quanto à produção e quanto ao seu custeio, as artes, principalmente
entre os povos sem grande desenvolvimento de gosto e de fortunas, têm
de ser aristocráticas. Ou são carregadas como uma realeza, ou sucumbem
de debilidade. O sapatão rude da democracia que tão bem calça o pé
grosso e lesto do princípio político, faz-lhes mal a elas, habituadas ao
coturno de ouro dos seus requintes. (ibidem, p.270)
O MAL DE D. QUIXOTE  63

Com respeito à consolidação de uma memória coletiva, é recorrente


a atitude de divulgar os eventos culturais, assim como as homenagens
públicas aos artistas e personagens históricos. Podemos ver tal preo-
cupação em uma crônica de 27 de abril de 1890, publicada na seção
“Aos domingos”, em que elogia a obra História do Brasil, de Sílvio
Romero, pela sua capacidade de revelar por meio de “uma série de
biografias a impressão palpitante de toda a existência de um povo”
(ibidem, p.325). Outro índice dessas preocupações encontra-se no
apoio às festas populares e às iniciativas públicas de preservação da
memória, tais como o lançamento das estátuas de João Caetano, feita
por Vasquez, e de José de Alencar, feita por Rodolfo Bernardelli. Ainda
podemos citar sua atenção para as obras de Victor Meirelles sobre a
Batalha do Riachuelo e a Primeira missa, ou a escultura de Rodolfo
Bernardelli sobre Deodoro no ato da Proclamação da República. Iro-
nicamente, a divulgação de tais obras, que deveriam expressar o poder
legitimador do Estado, termina por revelar sua incompetência ou seu
descaso com o que Pompéia considerava ser o correto e sério trabalho
de desenvolvimento de uma cultura e uma arte superiores.
Ao tratar do “caiporismo” de Victor Meirelles, em crônica de 8 de
setembro de 1890, publicada em “Lembranças da semana” (Pompéia,
1982e, p.113-4), discorre sobre o azar do pintor devido à perseguição
que o mofo e a umidade infringiram às suas obras, destruindo a Ba-
talha do Riachuelo e quase fazendo o mesmo com a Primeira missa.
Raul Pompéia insinua, de maneira pouco sutil, a péssima conservação
que a Alfândega conferiu à primeira tela e as péssimas condições de
conservação do prédio da Academia de Belas-Artes, visto que parte do
seu telhado desabou com um temporal e quase fez submergir a segunda
tela sob as águas que se despejaram do teto arrombado. Hilariante é
também o ritual de lançamento da pedra fundamental da estátua de
José de Alencar, mas são tantos os incidentes que o melhor é você,
leitor, se dirigir às crônicas publicadas na seção “Lembranças da se-
mana” (ibidem, p.455-6), de 14 de dezembro de 1891, e especialmente
na seção “Da capital”, do jornal O Farol (Juiz de Fora, MG), de 29 de
dezembro do mesmo ano (ibidem, p.152-4), e conferir pessoalmente
as gafes narradas por Raul Pompéia.
64  MARCIANO LOPES E SILVA

Os folhetins e a seção “Pandora”

Conforme apontamos inicialmente, as crônicas de Raul Pompéia


são predominantemente informativas e críticas, cabendo o informe
cultural para um segundo momento, após o “borboletear” sobre os
diversos fatos sociais e políticos. Mesmo assim, podemos observar
com freqüência uma preocupação em amarrar os diversos assuntos
tratados em torno de um tema comum, de tal maneira que a variedade
possa concorrer para melhor aprofundá-lo, permitindo sua abordagem
por diferentes prismas. Essa prática, que confere ao texto um caráter
ensaístico, conforme concebido e praticado originalmente pelos in-
gleses (Coutinho, 1986), atinge sua melhor forma em crônicas que
se apresentam como ensaios-poéticos, pois abordam com fôlego um
único tema e o tratam com uma eloqüência que busca atingir o leitor
mediante uma retórica bastante opulenta, pois carregada de imagens,
ritmo, enumerações e demais recursos literários capazes de imprimir
uma forte emotividade ao texto. Tais crônicas, pouco numerosas, foram
publicadas especialmente em “Uma Seção”, na Gazeta da Tarde (Rio
de Janeiro), durante o curto período compreendido entre 15 de dezem-
bro de 1885 e 3 de maio de 1886. Pelo fato de privilegiarem um único
tema, elas recebem títulos: “Imprensa e suicídios” (15 de dezembro
de 1885), “O espólio do finado” (4 de janeiro de 1886), “Epifania” (8
de janeiro de 1886), “Céu e inferno” (14 de janeiro de 1886), “O car-
naval no Recife” (10 de março de 1886), “Semana Santa” (14 de abril
de 1886) e “Bailados num coração” (3 de maio de 1886).
O fato de elas apresentarem essa forma distinta sugere sua intenção
de atribuir à seção um caráter especial, tornando-a um espaço de ex-
perimentação e renovação literárias capaz de conferir maior dignidade
ao ofício de cronista. Tal hipótese é bastante plausível, uma vez que a
crônica não apresentava o status de texto literário, sendo depreciada
pelos próprios folhetinistas. Esses, mesmo se exercitando no gênero,
a consideravam uma mercadoria descartável e fútil, encarando sua
prática como uma necessidade de sobrevivência imposta pela nas-
cente indústria cultural da época. Tal sentimento é visível no título
da seção que José de Alencar dividia, às vezes, com Manuel Antônio
O MAL DE D. QUIXOTE  65

de Almeida, no Correio Mercantil: “Páginas menores”. Em uma de


suas crônicas, hoje antológica, Alencar adverte que o folhetinista está
enganado quando pensa ser “uma borboleta que quebrou a crisálida
para ostentar o brilho fascinador de suas cores”, pois em verdade “é
apenas uma formiga que criou asas para perder-se” (Alencar apud
Faria, 1992, p.305). Posteriormente, Machado de Assis retomará
a metáfora do colibri, que Alencar utiliza na citada crônica, para
também designar o folhetinista. Entretanto, na crônica em que o faz,
hoje também antológica, ele ressalta o lado positivo da futilidade e da
variedade de assuntos que caracterizam o novo gênero:

O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal:


salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules
suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence;
até mesmo a política.
Assim aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais feliz neste
mundo, exceções feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o público
para lê-lo, os ociosos para admirá-lo, e a bas bleu para aplaudi-lo. (Assis
apud Meyer, 1992, p.95)

Raul Pompéia, que não possuía o bom humor machadiano, via


a atividade do cronista e sua relação com o público com uma ironia
bastante diversa, conforme lemos em importante crônica publicada
na seção “Notas fluminenses”, em 21 de agosto de 1894, em O Estado
de S. Paulo:

Não é inteiramente desagradável a leitura fácil e simples. Os porteiros


e as costureiras gostam disso em França. Entre nós, o gosto literário dos
taverneiros tão zelosamente observado e obedecido e adulado também
aprecia a espécie.
O alimento espiritual vem perfeitamente preparado. Vem temperado,
cozido, trinchado, picado, vem, ainda, mais remoído, mastigado, úmi-
do de saliva dos que mastigam assunto para tais paladares; vem quase
deglutido, espécie de cauin selvagem, feito de milho e cuspo. E o feliz
apreciador de tais manjares mal tem o trabalho de ingerir. (Pompéia,
1983, p.372)
66  MARCIANO LOPES E SILVA

Podemos observar, no trecho citado, que é bastante sensível a pre-


ocupação de Pompéia com a simplificação da linguagem operada pelos
cronistas (conforme ele mesmo designa aqueles que cultivam o gênero em
questão) com o intuito de se fazerem entendidos e aceitos pela maioria do
público. Mas tal fato não pode ser generalizado ao extremo. Se, por um
lado, a variedade de assuntos e a simplificação da linguagem concorrem
para a ausência de uma identidade de gênero e para a perda da literariedade
dos textos publicados nos folhetins, por outro, também possibilitam aos
cronistas da época uma liberdade de criação condizente com o princípio
estético, comum aos diversos romantismos que se espalharam pela Eu-
ropa e pela América, da mistura dos mais diversos estilos e gêneros em
busca da originalidade estilística inerente à organicidade da obra.
Conforme se vê, a crônica surge marcada pelo signo da contradição.
Se, por um lado, a falta de identidade e a necessidade de “borboletear”
pelos mais diversos assuntos e estilos constituem um problema, um mal
que obriga o escritor a rebaixar o seu estilo e a molhar a sua pena na tinta
das futilidades; por outro, também conferem, ao novo espaço de publi-
cação (o folhetim) e ao novo gênero que nele germina (a crônica), uma
liberdade total, abrindo ao escritor a possibilidade de fazer de ambos um
cadinho para a mistura e para a pesquisa de novas substâncias literárias.
Com isso, o espaço do folhetim se transforma em um laboratório de ex-
perimentação cujo potencial de renovação da linguagem dependerá não
apenas do público, mas também da habilidade e da audácia do escritor.
Graças a isso, ele abre caminho para a crônica (conforme a concebemos
hoje), que, por sua vez, abre caminho não somente para o romance
alencariano, conforme observa Afrânio Coutinho (1986, p.124), mas
também para o conto e para o romance machadiano, conforme análises
de Sônia Brayner (1979c) em sua tese O labirinto do espaço romanesco.1

1 Segundo Sônia Brayner (1979c), o exercício da crônica por Machado de Assis


lhe foi benéfico, pois o caráter dialógico dos contos e dos romances da segunda
fase, o distanciamento crítico do narrador e sua maior liberdade de elaboração
da narrativa – sem subordinar a seleção e a seqüência dos episódios à sucessão
cronológica ou à sua relação de causalidade – são resultados, em certa medida, do
tom coloquial estabelecido pelo diálogo do cronista com o leitor e da liberdade de
composição característicos do gênero.
O MAL DE D. QUIXOTE  67

Voltando ao folhetim de Raul Pompéia, merece um estudo de-


talhado a seção “Pandora”, publicada na Gazeta de Notícias sob o
pseudônimo “R”2 durante o período de 1º de junho a 18 de setembro de
1888, apresentando, por fim, um único texto em 1º de junho de 1889.
Nela, encontramos não somente crônicas e contos bastante híbridos
em sua forma, considerando-se os padrões dominantes na época, como
também textos de teorização e crítica de arte e literatura feitos de forma
inovadora. Entre aqueles que foram arrolados sobre o rótulo de “Crí-
tica literária” (no volume 10 das Obras de Raul Pompéia), vários são
oriundos dessa seção. Quanto aos demais, presentes no segundo livro
de crônicas (Pompéia, 1983), oscilam entre as fronteiras que separam
os gêneros da crônica poética, do poema em prosa e do conto. Além
disso, não devemos desconsiderar o fato de que essa seção foi escrita no
ano de 1888, quando Raul Pompéia se encontrava, conforme observa
Eloy Pontes (1935), no período mais criativo de sua carreira, já tendo
alcançado a maturidade intelectual – o que se revela na escritura de
O Ateneu, também publicado na Gazeta de Notícias no mesmo ano.
Considerando tais fatos, há fortes indícios de que essa seção foi con-
cebida por ele como um laboratório de experimentação literária ou,
numa perspectiva mais adequada aos seus valores, como uma “caixa
mágica” de onde devem saltar coisas surpreendentes e assustadoras,
mas que carregam consigo a esperança de uma nova arte. Por tudo isso,
acreditamos que o estudo dos textos pertencentes à seção “Pandora”
tornará possível não somente reconhecermos seus princípios estéticos
como também verificarmos o grau de coerência entre a teoria, a crítica
e a criação literária realizadas no período em questão.

“Pandora”: teoria e crítica

Em três artigos publicados na seção “Pandora” nos dias 7 e 21 de


junho e 13 de agosto de 1888 e intitulados “Crítica”, encontramos

2 No segundo volume das crônicas, nas Obras de Raul Pompéia, Afrânio Coutinho
informa equivocadamente que o pseudônimo utilizado é “?”. Conferindo os textos
na Gazeta de Notícias, pudemos constatar que o pseudônimo utilizado era “R”.
68  MARCIANO LOPES E SILVA

idéias que constituem “heresias” na época e que definem, juntamente


com a segunda conferência do professor Cláudio, em O Ateneu, a visão
que Raul Pompéia tinha sobre o papel do crítico e sobre a natureza e
a função da obra de arte.3
Contrariando a prática de avaliar as obras literárias em razão do
grau de representação da cor local e dos problemas nacionais, Raul
Pompéia ([198?]) volta seu olhar para os elementos especificamente
literários. Além disso, afirma que o crítico é um “diletante superior”,
cuja função é auxiliar o “diletantismo comum” (ibidem, p.47) por meio
da tradução, da explicação e da vulgarização da obra: “Crítica é a des-
crição inteligente dos efeitos de uma composição. Só” (ibidem, p.48).
Ao assumir tal postura, Raul Pompéia rejeita as práticas correntes e
hegemônicas em sua época, marcadas pelas narrativas historicistas,
biográficas e anedóticas, com pinceladas de psicologia. Proíbe ao crítico
“fundir na resenha do sucesso ou do desastre, o murmúrio dos corre-
dores onde dão trela os íntimos do autor” (ibidem, p.48). Condena,
em suma, a concepção da obra literária como documento cultural e
histórico – fonte de estudos da personalidade do autor e do caráter do
povo – e, por conseguinte, a investigação extrínseca ao literário. Não
rejeita a idéia de que o escritor possa fazer uso de modelos existentes na
realidade exterior ao texto, mas lembra o leitor: “Concluído o trabalho,
o modelo deixa de existir. A pessoa desaparece na universalidade es-
tética” (ibidem, p.48), o modelo “pode mesmo não ter existido nunca;
porque modelo é a organização ideal de elementos reais de que às vezes
nem o próprio organizador tem clara consciência” (ibidem). Realizada
a obra, “tudo desaparece, autor, modelo, processos, excitantes possíveis
de inspiração” (ibidem).
Ao defender a idéia de que a crítica deve deter-se exclusivamente na
descrição da obra de arte, privilegiando o texto como “o indispensável

3 É importante lembrar que O Ateneu foi inicialmente escrito em folhetim para a


Gazeta de Notícias durante o período de 8 de abril a 18 de maio de 1888, ano em que
ocorre a publicação da seção “Pandora”. Essa não ficava no rodapé do jornal, mas
em uma coluna que podia estar em uma das três primeiras páginas do periódico.
Também não é demais lembrar que há um consenso entre os críticos quanto ao
fato de considerarem o professor Cláudio como um alter ego de Raul Pompéia.
O MAL DE D. QUIXOTE  69

para a análise, para a comparação, para o estudo” (ibidem, p.48), Raul


Pompéia está propondo uma análise imanente da literatura centrada
no que lhe é específico: a linguagem. Ao fazê-lo, adianta-se aos new
critics e aos formalistas russos em sua busca por uma definição do
literário e por um método próprio para abordá-lo. Entretanto, mesmo
apresentando tais preocupações teóricas, sua concepção de arte é mar-
cada pelo viés do impressionismo crítico, posto que, para ele, a arte é,
antes de tudo, emoção: “Eloqüência é a definição sinonímica de arte.
É a emoção que se manifesta, é a emoção que se grava, é a emoção que
se transmite” (ibidem, p.49).
O conceito de eloqüência é fundamental para compreendermos
as suas idéias estéticas, pois ele a concebe como o elo comum entre
todas as artes: “no desenho, é o movimento; no colorido, é a harmo-
nia das tintas; na música, na poesia, na palavra, é o ritmo” (ibidem).
A eloqüência é, nas palavras do professor Cláudio, “a mais elevada
das artes. Daí a supremacia das artes literárias – eloqüência escrita”
(Pompéia, 1981b, p.162) que se realiza na maneira como o escritor
combina ritmo e imagem na composição do estilo. E esse não deve
ser único na obra de um escritor. Segundo Pompéia ([198?], p.49), o
estilo “é a justa proporção do sentimento com a prosódia da frase”,
pois não há obra de arte sem “o capricho do ritmo acomodado aos
períodos sentimentais da descrição” (ibidem), sem “os parênteses
da personalidade do escritor, manifestados pelo modo especial de
sentir e pelo processo original de dizer” (ibidem, p.56). Daí resulta
a rejeição à impessoalidade do estilo realista – e, por conseguinte,
do naturalista também. Para ele, a prosa de Stendhal nada mais faz
“do que acumular apontamentos psicológicos, sem forma literária”
(ibidem, p.49). “Os escritores de idéias são redatores de catálogo; não
são artistas” (ibidem, p.56). Em contrapartida, afirma: “O entusiasmo
do estilo atual, que o próprio estilista Zola diz crer que é um vício
hereditário das extravagâncias românticas, demonstra quanto foi um
progresso a vitória do romantismo sobre a contrafação convencional
dos clássicos” (ibidem, p.57).
Em conformidade com tais idéias, que vão de encontro ao ideário
realista, afirma o professor Cláudio, em O Ateneu:
70  MARCIANO LOPES E SILVA

Na arte da eloqüência da atualidade acentua-se uma reação poderosa


contra o metro clássico; a crítica espera que dentro de alguns anos o metro
convencional e postiço terá desaparecido das oficinas da literatura. O
sentimento encarna-se na eloqüência, livre como a nudez dos gladiadores
e poderoso. O estilo derribou o verso. As estrofes medem-se pelos fôlegos
do espírito, não com o polegar da gramática. (Pompéia, 1981b, p.162)

Para Raul Pompéia, a simplicidade propugnada pelos realistas e


pelos clássicos “vem do preconceito [...] de que a prosa literária está
excluída dos privilégios da metrificação dos versos” (Pompéia, [198?],
p.50), de que “fora da metrificação restritiva do verso, a palavra hu-
mana não é rigorosamente, como os sons da música, um veículo de
sensações artísticas” (ibidem, p.57). Assim como os românticos e os
simbolistas, ele busca uma nova linguagem poética capaz de abolir as
fronteiras entre a prosa e a poesia e de aproximar todas as artes entre
si. Para sustentar sua postura, cita, no “Prólogo” de Canções sem metro,
o seguinte trecho, cuja referência é atribuída à obra Métrique naturelle
du langage, de Paul Pierson:

Les paroles qui composent les vers, n’ont par elles-mêmes aucune mésure
déterminée [...]: ce qui est mésuré, ce n’est donc pas le vers, mais le temps,
et la science de la mésure, la Métrique, telle qui nous l’entendons dans son
sens vraiment général et scientifique, peut s’appliquer à toute mésure du
temps, quel qu’en soit l’agent rythmique, danse, chant ou parole.4 (Pompéia,
1982a, p.41)

Contrariamente aos realistas, parnasianos e naturalistas, Raul


Pompéia busca os fundamentos para sua estética na arte dos român-
ticos e dos simbolistas, especialmente do simbolismo francês que,
diversamente do inglês, foi muito marcado pela reflexão teórica, em
conformidade com o “o caráter da mente francesa – crítica, filosófica,

4 “As falas que compõem os versos não possuem, por si mesmas, nenhuma medida
determinada [...]: o que é medido não é o verso, mas o tempo, e a ciência da medida,
a Métrica, assim como nós a entendemos em seu significado verdadeiramente
geral e científico, pode se aplicar a toda a medida de tempo, qualquer que seja o
agente rítmico, dança, canto ou fala” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  71

muito preocupada com teoria estética” (Wilson, 1993, p.24). Recu-


sando a objetividade científica como princípio de sua teoria sobre
a arte, Raul Pompéia (1981b, p.161) fundamenta – por intermédio
do personagem do professor Cláudio – a sua origem e o seu valor no
sentimento, único “aferidor natural das vibrações harmônicas, nervo-
sas, luminosas, sonoras”. Para expressar da maneira mais completa e
fiel a sua emoção, buscando criar um conjunto harmonioso, o artista
deve valer-se de todas as correspondências entre “os sentimentos e as
impressões do mundo” (ibidem), cujas vibrações são percebidas pelos
sentidos. Daí a importância das imagens, das sinestesias, do ritmo e
da sonoridade.

Há estados de alma que correspondem à cor azul, ou às notas graves


da música, há sons brilhantes como a luz vermelha, que se harmonizam
no sentimento com a mais vívida animação.
A representação dos sentimentos efetua-se de acordo com estas
repercussões.
O estudo da linguagem demonstra.
A vogal, símbolo gráfico da interjeição primitiva, nascida espontanea-
mente e instintivamente do sentimento, sujeita-se à variedade cromática
do timbre como os sons dos instrumentos de música. (ibidem)

Raul Pompéia valoriza muito a musicalidade por considerar que


a eloqüência na literatura e na música possui uma origem comum
na sensação acústica. Mas essa valorização não é levada ao extremo
de negar a referencialidade – como ocorre nos derradeiros e mais
famosos poemas de Rimbaud e de Mallarmé, que procuram a
essência poética no silêncio da significação. Nas imagens, afirma
Pompéia ([198?], p.57), reside a força da linguagem literária, pois
o “seu papel no estilo é avigorar o enunciado, esclarecer como a
vinheta esclarece o texto”, visto que, em sua essência, a imagem é
“a analogia, a comparação, o puro pensamento antes de ser idéia”
(ibidem). Aliás, sobre a valorização da imagem por meio da alegoria,
é digno de nota o seguinte trecho, presente na já citada crônica-ensaio
publicada na seção “Notas fluminenses”, de O Estado de S. Paulo,
em 21 de agosto de 1894:
72  MARCIANO LOPES E SILVA

Com o sistema, portanto, da literatura alegórica, que corresponde à


segunda espécie de alimento, é desde logo bem servida a parte do público,
mais à altura de consideração e de estima, daqueles que à primeira vista
metem o dente em qualquer leitura. Depois desta camada, e acima dos
detestáveis idólatras da literatice mastigada, há outra porção de público que
só tem a ganhar com o regímen [sic] a que nos vamos referindo. São as que,
não conseguindo morder imediatamente o segredo de uma alegoria, ou de
uma alusão, conseguem-no entretanto com certo esforço de atenção.
Esta pesquisa entretém sem dúvida. Existe o prazer especial da deci-
fração, vulgarizado de uma maneira fenomenal entre os charadistas e amigos
da espécie, que aliás não brilham pela força de espírito. Existe uma inegável
delícia na circunstância de não se entender logo, de se sentir uma primeira
impressão de sombra antes de uma brusca surpresa de luz, antes de uma
risonha e súbita revelação de deslumbramento.
Além da vantagem do prazer, existe a vantagem do exercício.
Sucederá que em começo a decifração não ocorra tão depressa ou tão
completamente como se desejaria. Mas com o tempo, com a ginástica
mental, com a aplicação metódica dos músculos em um salto interior,
pode-se gradualmente conseguir mais e mais na linha da facilidade, e o
prazer mais rápido iria a ser melhor, para intenso, coincidindo com este
proveito pessoal de cada leitor, a vantagem coletiva de fortalecer-se, de
progredir, de se aperfeiçoar o vigor intelectual de todos.
Magnífica a moda, não há contestar.
E, se a observarmos, nos mestres insignes do processo, é que compre-
enderemos até que ponto sobe o seu valor.
Os mestres do apólogo, os catedráticos do símbolo, com os seus golpes
esquerdos de estilo, com as suas soberbas tintas de epigrama dão para nos
entreter séculos e séculos de leitura! É um encanto perseguir-lhes, [sic] as
linhas curvas da frase, as elipses hábeis e escarninhas, os paralelos de uma só
linha visível, as páginas inteiras muito mais escritas nas entrelinhas brancas
e aparentemente vazias do que na pauta comum das letras; e medir-lhes as
investidas encobertas e as esquivanças risonhas, e a interpretar às vezes,
não o sentido oculto que a alegoria encerra, mas o duplo sentido possível,
a dubiedade esperta, contida nas frases neutras, ao saber ao mesmo tempo
de Deus Nosso Senhor e de Satanás. No íntimo um esplêndido jogo de
psicologia recreativa; na aparência, uma obra de arte irrepreensível!
Salvo as intenções políticas, pode haver um sistema mais interessante
de escrever a história, ou pelo menos a crônica dos dias ásperos que cur-
timos? (Pompéia, 1983, p.372-3, grifos do autor)
O MAL DE D. QUIXOTE  73

Apesar de as considerações feitas se inscreverem em um contexto


específico, no qual Pompéia considera que o uso das alusões e das
alegorias constituem procedimentos apropriados a uma conjuntura
conturbada e perigosa, que por isso impede a clara expressão de cer-
tas idéias políticas, elas são bastante esclarecedoras dos seus gostos e
preferências estilísticas. É importante observarmos o alto valor que ele
confere à alusão, ao símbolo e, especialmente, à alegoria, pois, com esses
procedimentos, o cronista (e o escritor em geral) exige a participação
ativa do leitor na construção do texto, além de não encerrar o sentido
em uma única e fácil leitura, abrindo as portas para a imaginação e para
a reflexão crítica. Outro aspecto muito importante a ser observado é a
relação que se estabelece entre o símbolo e a alegoria, por um lado, e a
epifania, por outro. Conforme veremos no transcorrer deste estudo,
muitos dos contos de Raul Pompéia seguem o modelo de narrativa de
efeito final proposto por Edgar Allan Poe. Pelo uso de uma alegoria e/
ou de uma ironia romântica para a construção das imagens finais, Raul
Pompéia exige do leitor um esforço de decifração do efeito final que
pode lhe provocar um momento de epifania, ou seja, um momento de
revelação – bem conforme à idéia que destacamos em itálico no texto
citado. E tal prática não está presente somente nos contos, mas também
naqueles textos desprovidos de fábula e intriga e que, por isso, podem
ser considerados como poemas em prosa.
Estilo: ritmo e imagem que devem registrar e conservar “a vibração
intelectual, a vibração sentida, a eloqüência espontânea do momento
moral da concepção” (Pompéia, [198?], p.49). Aí reside, para Raul
Pompéia (1981b, p.158), o caráter específico da linguagem literária,
a sua essência, aquilo que, mais tarde, os formalistas denominaram
“literariedade”. Sem estilo eloqüente, não existe arte, pois, nas pa-
lavras do professor Cláudio, a arte é sonho, “sentimento artístico ou
contemplação, é o prazer atento da harmonia, da simetria, do ritmo,
do acordo das impressões, com a vibração da sensibilidade nervosa.
É a sensação transformada”.
Antecipando interpretações equivocadas de sua proposta, Raul
Pompéia alerta: a eloqüência não deve ser confundida com a oratória
grandiloqüente, com a arte retórica voltada para fins utilitaristas
74  MARCIANO LOPES E SILVA

(embora sua prática o contradiga, conforme veremos ao longo deste


estudo). Ela é mais do que “o ardor turbulento dos meridionais e ex-
pressão abundante e violenta, é também e mais dificilmente o que se
denomina particularmente poesia. Tanto a energia virulenta, verde de
ódios dos Châtiments, como a suavidade indolente de Musset” (Pom-
péia, [198?], p.50). Sobre tal questão, é interessante o comentário que
ele tece a respeito da definição que Molière dá à comédia: “Un poème
ingénieux qui, par des leçons agréables, reprend les défauts des hommes”.5
Contrariando a afirmação do dramaturgo francês, Pompéia considera
que a sátira não tem uma função educativa, pois o artista não “tem em
vista o ensinamento, nem a sociedade, mas a simetria e a animação do
seu objeto” (ibidem, p.48). Por conseguinte, o valor da obra de arte
se encontra nela mesma, na beleza de sua forma, devendo ser valori-
zada apenas na sua qualidade artística – opinião também presente na
segunda conferência do professor Cláudio:

A verdadeira arte, a arte natural, não conhece moralidade. Existe para


o indivíduo sem atender à existência de outro indivíduo. Pode ser obscena
na opinião da moralidade: Leda; pode ser cruel: Roma em chamas, que
espetáculo!
Basta que seja artística.

Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a


arte é a superioridade humana – acima dos preconceitos que se combatem,
acima das religiões que passam, acima da ciência que se corrige; embriaga
como a orgia e como o êxtase. (Pompéia, 1981b, p.163)

Quando nos defrontamos com seus poucos artigos de crítica, en-


contramos uma atitude coerente com as posições teóricas vistas.
Em “Pandora – Um drama errado”, publicado em 4 de agosto de
1888, Raul Pompéia ([198?], p.53) aponta falhas de composição em
uma peça dramática – tendo a delicadeza de não mencionar os nomes
da peça e do autor. Em tom irônico, afirma que esse “emaranhou de tal

5 “Um poema engenhoso que, por meio de agradáveis lições, repreende os erros
dos homens” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  75

modo as ficelles, combinou tão caprichosamente as surpresas de portas


falsas e a vivacidade das deixas, que é custoso encontrar o fio da ação”
(ibidem). E é importante notar que a observação dos aspectos formais
não exclui a crítica aos aspectos políticos do drama. Argutamente, não
deixa de apontar que a ficelle privilegia os motivos econômicos em
detrimento do motivo da honra, que deveria ser o central, de tal modo
que “Ninguém sabe mais onde param as atribulações do protagonista,
se nas dificuldades domésticas, se nos embaraços comerciais” (ibidem).
Ao questionar se o drama gira em torno da honra ou do ouro, afirmando
que, no final, resta a imagem de “um grande núcleo dourado, mil e
trezentos contos, como um sol sinistro, equilibrando a gravitação de
um mundo de misérias” (ibidem, p.54), Raul Pompéia alcança um
nível de leitura crítica que, partindo da forma, atinge o ideológico que
se esconde por detrás dela.
Em artigo de 28 de setembro de 1888, “Pandora – Leituras”, Raul
Pompéia divulga o livro Contes psychologiques, de André Mellerio, livro
cujos “seis pequenos estudos da vida espiritual [...] reúne exemplares
da mais elevada produção literária da França no ano corrente” (ibidem,
p.60). Percebemos, no elogio e na escolha da obra, o gosto de Raul
Pompéia pela nova literatura que se colocava, tanto lá quanto aqui,
no Brasil, na contracorrente do estilo dominante. Diversamente dos
naturalistas, que privilegiam a fisiologia, o livro de Mellerio destaca a
dimensão psicológica do ser.

O autor acompanha a propagação, em aumento, de um fato da alma,


desde a impressão do fato material que suscita e desenvolve a cisma, até
a mais alta gradação [...] os contos têm de original que lhes falta quase
inteiramente a representação material da vida. Não se descrevem fisio-
nomias, nem atos, nem panoramas. O espírito é todo o drama, cenário e
personagem. (ibidem, p.59)

Ao descrever o argumento e definir o tema de alguns contos (dois são


considerados indescritíveis), Raul Pompéia permite ao leitor perceber a
temática e o estilo característicos de uma poética romântico-simbolista
em pelo menos dois textos. A “repugnância da alma pelas misérias da
vida” é o tema do primeiro conto – “O sonho de Jacques”. Nele, encon-
76  MARCIANO LOPES E SILVA

tramos a revolta contra o materialismo vulgar e o motivo do sonho, da


alma que busca o ideal, a essência na Idéia. Aliás, a “Idéia” é tema e título
também do último, que apresenta “alegoricamente o seu personagem
diante do crepúsculo, meditando as incertezas da vida, aniquilado na
contemplação” (ibidem, p.60). Com relação aos contos que considera
impossível descrever abreviadamente, os títulos – “Os pensamentos
de uma virgem” e “Visão de amor” – aliados ao comentário feito, que
os designa como “dois admiráveis poemas de sensibilidade” (ibidem),
também são indicativos de uma prosa simbolista ou romântica.
Dos poucos textos de crítica presentes na seção, o mais interes-
sante e inovador é “Pandora – Poesias de Olavo Bilac”, publicado em
8 de outubro de 1888. Nesse texto, podemos ver mais claramente a
aplicação dos conceitos teóricos relativos ao estilo considerado como
resultante da combinação do ritmo com a imagem juntamente com a
preocupação em relacionar a forma com a sua função – o que constitui
uma atitude crítica inovadora para a época. Ao falar sobre Panóplias,
por exemplo, observa o uso de “alexandrinos épicos” com a função
de conferir energia e força aos versos. Quanto ao ritmo, afirma que
esse “é variado, sem abuso de onomatopéias” (ibidem, p.63). Ainda
valendo-se de conceitos musicais, relaciona os compassos observa-
dos com o sentimento expresso nos versos: a calma solene do poema
“Ronda noturna” é obtida com o compasso do adágio e a delicadeza do
poema “Marinha” é obtida com o scherzo. Em “Via-láctea”, além de
observar as imagens selecionadas, relaciona-as com o seu significado
na composição: “o sentimento expande-se num turbilhão de imagens
luminosas, estrelas em profusão, dando o motivo do subtítulo, formas
vagas e leves” (ibidem, p.62). A mesma atitude crítica encontra-se em
seus comentários a respeito de Sarças de fogo, que põem em destaque
a relação entre forma, conteúdo e função baseando-se na relação entre
o uso do ditirambo e a temática amorosa e carnal:

Na terceira parte modificam-se os hinos. O elevado platonismo brutaliza-


se numa reação carnal, agitada, cheia de gritos, como uma desforra da candura
anterior (poesias IV, VI, XII, XVI, XVII, XIX, XXI), afogando-se na orgia
ditirâmbica, aquele remorso enunciado na “Via-láctea”. (ibidem, p.62)
O MAL DE D. QUIXOTE  77

“Pandora”: criação literária

Além dos textos de teoria literária e crítica de arte, os demais que


encontramos na seção “Pandora” oscilam entre o conto, a crônica e o
poema em prosa, de tal modo que a atitude de romper com os gêneros
talvez seja a principal característica dos mesmos. Tal aspecto suscita,
logo de partida, um problema metodológico: a dificuldade em de-
monstrar a mistura de gêneros e estilos, uma vez que, do nosso ponto
de vista, consideramos extremamente frágeis e relativas tais fronteiras
– o que depende em muito da perspectiva teórica adotada pelo crítico.
Além disso, o fato de a crônica e o poema em prosa serem gêneros
historicamente novos e, portanto, abertos às mais diversas experi-
mentações, concorre ainda mais para o agravamento do problema. A
crônica moderna, conforme já dissemos, é filha da imprensa, surgindo
sem o status de texto literário e, por conseguinte, sem uma identidade
definida. Aliás, paradoxalmente, sua identidade se encontrava – e
ainda se encontra – justamente na possibilidade de livre escolha dos
temas e dos estilos na sua confecção, conforme o gosto do autor e,
principalmente, do público – o que significa, em outras palavras, uma
ausência de identidade.
Problema semelhante acontece com o poema em prosa. Para tanto,
basta lembrarmos as reflexões desenvolvidas por Todorov (1980a) no
brilhante artigo “Em torno da poesia” para sentirmos o quanto o ter-
reno é movediço. Por tais motivos, partindo do princípio de que todo
gênero é histórico e, por conseguinte, deve ser entendido e delimitado
com referência ao contexto histórico e literário no qual se inscreve,
tomamos como referência para o conto os padrões dominantes na
literatura brasileira do século XIX, visto que é nesse contexto social
que Raul Pompéia produziu sua obra. Por sua vez, com relação ao
poema em prosa, tomamos como referencial os Petits poèmes en prose
de Baudelaire, posto que foi ele o grande divulgador do gênero, além
de ser considerado, por diversos críticos, como uma das principais
“influências” sobre Raul Pompéia. De qualquer forma, é importante
realçar que nosso intuito não é delimitar as formas composicionais
praticadas, de modo a definir como se apresentou cada gênero em
78  MARCIANO LOPES E SILVA

sua prática artística, mas, antes de tudo, demonstrar que, segundo os


princípios da estética romântica, a preocupação com as fronteiras era-
lhe algo estranho, pois sua preocupação residia, antes de tudo, numa
realização poética orgânica.

A crônica

Conforme já observamos, as crônicas publicadas na seção “Pando-


ra” são sintéticas, tratam de um único assunto, possuem título e apre-
sentam um maior grau de elaboração da linguagem e de envolvimento
emocional do autor. No total, são as seguintes: “Aurélio de Figueiredo”
(14 de junho), “Leituras” (20 de junho), “A propósito de um projeto na
Câmara” (26 de junho), “Culto” (7 de julho), “Coroa de poeta” (8 de
julho), “Notas” (13 de julho e 9 de setembro), “Um dia de esperança”
(14 de julho) e “Um povo extinto” (19 de julho). Comparadas com
as crônicas de “Uma Seção”, que citamos antes, estas são muito mais
sintéticas, embora não deixem de apresentar as características do gênero
ensaístico, uma vez que não aspiram à certeza do tratado científico,
mas expressam o ponto de vista e os sentimentos do autor (cf. Berrio
& Fernádez, 1999, p.202) sobre o assunto em pauta sem descuidar da
forma. É interessante observar, quanto a esse aspecto, que o estilo oscila
entre o lírico e o dramático, dependendo do maior ou menor grau da
função emotiva e/ou apelativa no texto. Em outras palavras: tão ou mais
importante que o fato é a impressão do cronista sobre esse. Saímos do
campo da observação isenta e realista do jornalismo objetivo e passamos
para o campo do olhar afetivo, seja lírico ou dramático.
Em “Aurélio de Figueiredo” e “Coroa de poeta”, Raul Pompéia
expressa sua indignação com o tratamento conferido à arte e ao artista no
Brasil. Mas é interessante observar que o modo de expressar a indigna-
ção muda em muito de uma crônica para a outra. Na primeira, conforme
já comentamos anteriormente, Pompéia lamenta que o referido pintor
tenha de enviar suas paisagens para a América do Norte, posto que em
sua terra os pintores e o público ainda preferem as paisagens alienígenas
(européias e italianas). Nessa crônica de sete parágrafos, Raul Pompéia
descreve poeticamente, no espaço dos três maiores (que, aliás, perfazem
um pouco mais da metade do texto), as paisagens que encontra nas telas
de Aurélio de Figueiredo e de outros artistas que expuseram na Galeria
de Wilde. São dignos de nota o ritmo, a sonoridade e o colorido na su-
cessão de imagens que vão sendo enumeradas na tentativa de traduzir,
para a palavra, a arte das imagens e das cores:

Uma após outra desaparecem as telas, frondes suntuosas de bosque,


céus de azul vibrante, couraças de pedra, da velha pedra fluminense, sai-
brosa da elaboração do clima, cantos de arquitetura alvejando no cenário
verde com a infinita graça das surpresas de civilização deparadas no ermo
selvagem, uma paineira a projetar fora do painel, fora da perspectiva, em
pleno ar da realidade, pendões de flores róseas penetrados de viração e de
luz, perfis de mulher que passam, elegantes sombrinhas ao sol, mulheres
que lêem, mulheres meditativas, representando a humanidade no festival
da vida inconsciente.
É bem a floresta brasileira, a grande natureza, que, desde a mentira
teórica de Buckle, até a simples inspeção do touriste, parece oprimir-nos
com as proporções da exuberância, a mata solene, desafio ao gênio, vasta
como as ambições, com as academias de troncos, e as tintas indescritíveis,
flores de sangue, flores de neve, ou esmeralda transparente dos brotos e
o verde dos ramos antigos e o tenebroso verde das abertas de folhagem,
profundas, devorando a vista, e o episódio inesperado das borboletas,
flores errantes, flores libertadas. (Pompéia, 1983, p.99)

Note-se que as enumerações, que segmentam as longas frases em


unidades menores e muitas vezes paralelas, juntamente com as anáfo-
ras, os assíndetos e as figuras de sonorização (aliterações e assonâncias)
engendram um ritmo que vai crescendo de intensidade à medida que as
imagens vão se sucedendo umas após as outras. Essa gradação crescente
de vários elementos que se repetem produz um movimento circular que
envolve sensorialmente o leitor, devendo predispô-lo ao estranhamento
e à desautomatização, conforme é característico do gênero lírico – pois,
na opinião de Emil Staiger (1997), assim como na dos formalistas:

O valor de subjetividade sintomática da lírica está implicado em sua


representação peculiar nas estruturas do texto dos movimentos íntimos e
subconscientes da sensibilidade, transmitidos ao texto mediante impulsos e
80  MARCIANO LOPES E SILVA

codificados e comunicados por este como esquemas simbólicos, conceituais


e rítmico-acústicos. (Berrio & Fernádez, 1999, p.172)

Além dos recursos rítmico-acústicos que geram a repetição, tam-


bém encontramos um intenso uso da sinestesia visual das cores que
vão sendo enumeradas de modo exuberante, e suas variações são bem
demarcadas no primeiro parágrafo, mas apresentadas de modo grada-
tivo, mediante a sobreposição de tons e entretons, no segundo. Apesar
da presença do branco, do rosa e do vermelho, o que predomina, no
final, são os diversos sobretons de verde, que varia do esmeralda ao
musgo. Essa diferença na maneira como as cores são trabalhadas nos
dois parágrafos sugere diferentes estilos picturais, variando desde uma
representação romântica ainda clássica no trato da forma (no primeiro
parágrafo) até outra romântico-impressionista (no segundo parágrafo),
em que a gradação de tons e entretons de um verde mais claro ao mais
escuro pode ser considerado uma tradução do procedimento de mistu-
rar os tons e entretons das cores juntamente com o abandono da linha
(Richard, 1988). No primeiro caso, temos ainda a pintura romântica
acadêmica; no segundo, a renovação antiacadêmica do grupo Grimm
que, ao privilegiar o paisagismo levando a tela e os pincéis para o espaço
externo do atelier, teve que enfrentar o problema da representação dos
efeitos de luz sobre os objetos e a maneira como estes realmente são
percebidos pelos sentidos.6
Mas há também outra possível justificativa para a transição esti-
lística. No primeiro parágrafo, tanto a vivacidade quanto a variedade
das cores traduzem a alegria dos parques, espaço da civilização, local
onde a natureza se encontra subordinada ao planejamento do homem.
No segundo, trata-se de representar a exuberante natureza tropical, a
floresta brasileira que, segundo Buckle e outros naturalistas da época,
era considerada um espaço selvagem e insalubre – adverso, portanto,

6 O Grupo Grimm era formado por Castagneto, Caron, Garcia y Vasquez, Antônio
Parreiras, França Jr., Francisco Ribeiro, Thomas Driendl e pelo mestre alemão
Johann Georg Grimm (Alemanha 1846 - Palermo, Itália 1887). Para conhecer
mais sobre a relação entre Raul Pompéia e a pintura do grupo, leia-se o artigo “O
impressionismo romântico de Raul Pompéia” (Silva, 2004b).
O MAL DE D. QUIXOTE  81

aos planos civilizatórios. O contraste entre ambas as representações


pode, portanto, ser compreendido como uma resposta alegórica ao
que Raul Pompéia considera a “mentira teórica de Buckle”, uma vez
que, na natureza dos parques, trafegam “perfis de mulher que passam,
elegantes sombrinhas ao sol, mulheres que lêem, mulheres meditativas,
representando a humanidade no festival da vida inconsciente”.
Diversamente do que vimos na crônica “Aurélio de Figueiredo”,
em que predomina o lirismo, em “Coroa de poeta” encontramos a
argumentação e a ironia do polemista com alguns momentos de exal-
tação contra o pathos que marca a condição do artista moderno – o
que tempera o estilo argumentativo do texto com algumas “pitadas”
da retórica comum ao estilo dramático (Staiger, 1997). Nele, Raul
Pompéia revolta-se contra o desprezo conferido ao artista pelos homens
pragmáticos, contra a perda da sua auréola (e aqui é impossível não
lembrar o famoso poema em prosa “Perte d’auréole” de Baudelaire) em
um mundo dominado pelo academicismo, pela burocracia e pela me-
diocridade burguesa. Revolta-se, em suma, com o fato de que “Martins
Júnior, o bravo poeta das Visões de hoje, jornalista provado, o orador
dileto da multidão no Recife, o primeiro classificado na indicação dos
competentes, não será nomeado para o preenchimento do lugar vago
na Faculdade de Direito” (Pompéia, 1983, p.106) porque tem contra
si “o selo da condenação; é um artista, supremo defeito; é um poeta, a
desdenhada ironia” (ibidem, p.107). No fim, brada ironicamente: “Um
poeta... Abaixo as auréolas! Por terra as coroas!” (ibidem).
Em “Notas”, Raul Pompéia é sóbrio na descrição de diversas
obras expostas em galerias públicas, mas tal recurso provavelmente
é utilizado com o intuito de realçar, por contraste, os dois parágrafos
finais – que constituem metade da crônica. Neles, encontramos o
motivo central e deveras emotivo do texto: o falecimento de Firmino
Monteiro. Após a descrição – em que predomina o olhar crítico sobre
o impressionista – das obras de Décio Vilares, Castagneto, A. Duarte,
Augusto Petit, Estevão da Silva e Eduardo de Sá, o autor surpreende
o leitor ao abandonar as galerias e passar à desordem de um gabinete
particular. Desordem reinante no atelier de Firmino Monteiro que, ao
ser transferida para a linguagem por meio das enumerações caóticas dos
82  MARCIANO LOPES E SILVA

objetos, compõe provavelmente uma alegoria do tumulto presente no


coração de Raul Pompéia e, talvez, no da própria história ocidental.

De Firmino Monteiro. No gabinete da casa, em Niterói. Uma confusão


de armazenagem. Cavaletes fechados, encostados, telas em caixilho, telas
enroladas, armaduras metálicas para modelo, capacetes, guantes, de aço,
tubos esmagados pelo chão, espremidos da tinta; pelas paredes, como um
descalabro da imaginação, paisagens esboçadas, ensaios de semblantes,
de expressões, de colorido; de um lado, a cabeça de Vercingetorix, de um
estudo aproveitado, a cabeça de Galileu, também aproveitada, em frente,
a face enérgica, heróica do chefe dos Palmares, de carapuça vermelha,
reservado a figurar numa grande composição; ao centro, como um centro
de desespero, um manequim de pano, curvando-se, contorcido, movendo
a gesticulação feia de um empalado moribundo.
Guarda, ainda, no meio daquelas lembranças do pobre Firmino, pro-
jetos de futuro, estudos servidos, impressões das últimas vistas de campo,
a posição desolada em que o vi quando iam levar a enterro o malogrado
artista, então na sala sobre a eça, com uma caixa de seda preta a manter-
lhe o queixo, amordaçando naturalmente uma interrogação que podia
ferir o céu, fundo azul das religiões, das perspectivas, núcleo poético das
simetrias morais e pitorescas, donde, entretanto, emanam as iniqüidades
perturbadoras da morte. (ibidem, p.109)

Ao romper com as expectativas criadas inicialmente pelo texto,


introduzindo a desordem e o emocional onde antes predominava a
ordem e a razão crítica, Raul Pompéia transcende o caráter informativo
e/ou ensaístico da crônica oitocentista em direção ao poema em prosa
e transforma o texto numa belíssima e sentida elegia ao artista morto.
Aliás, é interessante observarmos com mais atenção o modo como Raul
Pompéia descreve as obras, variando o estilo da frase segundo o estilo
das mesmas. Vejamos, por exemplo, o estilo sóbrio e objetivo com que
ele descreve as obras acadêmicas de A. Duarte e Eduardo de Sá:

De A. Duarte. Um busto de garoto. Por chapéu a Gazeta de Notícias


dobrada em triângulo. Um garoto de verniz, com reflexos lustrosos no
nariz, na risada, no pano velho do paletó. Duro, lustroso, perfeitamente
ebúrneo, o interessante garoto.
O MAL DE D. QUIXOTE  83

[...]
De Eduardo de Sá, no Instituto Filotécnico. Exposição variada. Cabe-
ças, estudos de nu, paisagem, frutos. Espécie de inventário de atelier, do
pintor atualmente na Europa. Algumas telas concluídas e excelentes; por
exemplo, uma cabeça de negro com um gorro violeta, duas belas mestiças
de olhar calmo, um canto de mesa com uma porção de laranjas modeladas
em ouro. (ibidem, p.108)

Antes de “retratar” o atelier de Firmino Monteiro, Raul Pompéia


utiliza a metáfora e o estilo impressionista (marcado em itálico) somen-
te ao tratar dos painéis de Castagneto, que pertencia ao grupo Grimm,
e de algumas marinhas:

De Castagneto. Quatro painéis. Um estudo bem acabado de rochedos.


Bem se podia dizer natureza morta. Nenhum perfil humano, nenhuma
asa de pássaro animando a atmosfera. O sol cai sobre as pedras, branco,
como um bando de gaivotas cansadas. Ao redor, estende-se uma toalha de
mar manso.
Os outros quadros são pequenas marinhas. Um panorama de monta-
nhas elevando-se sobre as ondas, que desarmam cóleras de espuma contra as
praias do primeiro plano. (ibidem, p.108, grifos do autor)

As mudanças apontadas no estilo demonstram não somente uma


preocupação em construir um discurso crítico capaz de traduzir a
linguagem da pintura para a linguagem escrita, como também de-
monstram uma preocupação poética por parte de Raul Pompéia, de
tal modo que, em suas crônicas, a representação artística das obras não
se separava do registro da impressão pessoal do crítico.
Ainda mais distante da crônica informativa e/ou ensaística e mais
próximo do poema em prosa estão dois outros textos: “Um dia de espe-
rança” (14 de julho de 1888) e “Um povo extinto” (19 de julho de 1888).
Neles, é patente o sentimento de revolta e melancolia perante o desenrolar
do processo histórico, que promoveu o genocídio dos povos selvagens e
transformou em ruínas os sonhos românticos e revolucionários.
Em “Um povo extinto”, encontramos o lamento elegíaco pelos
povos indígenas que perderam sua cultura e sua liberdade e que “estão
agora marcados como um documento inerte para a etnografia, como
84  MARCIANO LOPES E SILVA

vítimas para a catequese e para a conquista” (Pompéia, 1983, p.115).


Percebemos claramente, nessa crônica, a melancolia romântica pela
ruptura com o estado natural do tempo e do espaço idílicos resultante
do choque com a “civilização que sabe polir a baioneta e fundir [...] a
ferocidade do progresso” (ibidem).
A postura romântica, presente na concepção do “bom selvagem”
em oposição ao homem civilizado, também é perceptível no tratamento
dado à linguagem. A eloqüência do estilo – conforme definida pelo
próprio Raul Pompéia – encontra-se no trabalho meticuloso com
o ritmo e as imagens. Ritmo obtido não apenas com o recurso das
figuras de sonorização, mas também com as de repetição (marcadas
em itálico) e com o paralelismo sintático, conforme podemos ver nos
dois recortes a seguir:
Tinham o drama primitivo dos bailados, mascarando-se como os
gregos, a caráter, com as rudes máscaras de córtex, barbadas de palha.
Tinham a arte ingênua dos desenhos improvisados nos troncos, a cerâmica
dos vasos pintados, que os dedos hábeis das esposas conformavam, a es-
cultura simbólica dos bancos, talhados em madeira, como pássaros, para
os humildes, para os melhores em forma de veados, para os supremos,
imitando o dorso do respeitado tigre americano.
[...]
Tinham a legenda do trabalho. Aponta o sol ao nascente, o Bacairi
corta; o sol remonta ao meio-dia dourado, o Bacairi corta; o sol decai para
o escuro ocaso, ouve-se ainda no bosque o machado de pedra que fere
eternamente o lenho. (ibidem, p.114, grifos do autor)

Em outro trecho, o paralelismo na enumeração dos objetos de


sedução do colonizador (lâminas afiadas, pano, espelho, cão, burro,
relógio e bússola) não somente imprime ritmo ao texto, como tam-
bém contribui para intensificar a carga emotiva presente na alegoria
da colonização, posto que esses objetos recebam qualificativos que os
transformam em símbolos da barbárie advinda com a colonização e o
progresso. Do conjunto deles, resulta uma alegoria do imperialismo
econômico e do homem moderno submetido ao controle das bússolas
e dos relógios, transformado por ambos em cão e burro, submisso e
dócil, narciso iludido pela falsa imagem do espelho.
O MAL DE D. QUIXOTE  85

Os brancos mostraram as lâminas afiadas e o pano; mostraram o es-


pelho, emblema da verdade, e que mente como um reflexo de miragem;
mostraram o cão desconhecido e o burro, animais escravos como os Bacai-
ris vencidos; mostraram o relógio e a bússola, mesquinho aviso das horas e
dos lugares, como os astros contra o esquecimento consolador, mas sem a
grandeza ao menos dos cenários do firmamento. (ibidem, p.115)

Outro aspecto muito importante na composição do trecho recorta-


do acima é o ritmo tenso resultante da alternância de metros longos e
curtos implícitos nas pausas da enunciação. As pausas e o paralelismo
sintático-semântico criam segmentos de enunciação que constituem
unidades rítmicas, podendo ser consideradas e lidas como versos.
Observemos, conforme já dito, a alternância de segmentos longos e
curtos: após um “verso bárbaro” (“Os brancos mostraram as lâminas
afiadas e o pano”) temos duas “redondilhas menores” seguidas de um
“alexandrino” e um “decassílabo sáfico”:

Mos/ tra/ ram / o es/ pe (lho) //


25
em/ ble/ ma / da / ver/ da (de) //
25
e / que/ men/ te/ co/ mo um/ re/ fle/xo/ de/ mi/ ra (gem)//
3 8 12
mos/ tra/ ram o / cão / des/ co/ nhe/ ci/ do e o / bu (rro) //
2 4 8 10

Mais adiante, o mesmo esquema se repete. Após outro “verso


bárbaro” (“animais escravos como os Bacairis vencidos”) seguem a
“redondilha maior” e outro “alexandrino”:

Mos/ tra/ ram o / re/ ló/ gio e a / bú/ (ssola)


257
mes/ qui/ nho a/ vi/ so / das/ ho/ ras / e / dos/ lu/ ga (res)
2 4 7 12

A revolta romântica e os procedimentos estilísticos observados


também são visíveis em “Um dia de esperança”, canto elegíaco ao ideal
revolucionário conspurcado no transcorrer do século XIX. Entre as
86  MARCIANO LOPES E SILVA

primeiras decepções românticas com os rumos tomados pela Revolução


Francesa, encontram-se os ideais de cavalaria e liberdade, inicialmente
materializados na figura de Napoleão Bonaparte. Esse encarnava, em
sua investida contra as diversas aristocracias estabelecidas na Europa, a
força dos ideais que haviam promovido a Queda da Bastilha em 1789.
Um exemplo disso encontra-se na boa recepção alemã dada às tropas
de Napoleão e na admiração dos intelectuais germânicos pelos ideais
de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que moveram a Revolução
Francesa. Sobre isso, são exemplares as atitudes de Fichte e Hegel.
O primeiro “anelava pelo triunfo da França revolucionária sobre as
tropas dos príncipes alemães” (Talmon, 1967, p.125), e o segundo via
na figura de Napoleão “o novo Alexandre”, “o Espírito do Mundo a
cavalo” (ibidem, p.126). No entanto, esse entusiasmo logo feneceu. As
atrocidades cometidas pelas tropas napoleônicas nos reinos ocupados,
em que a Espanha constitui um terrível exemplo,7 assim como sua pos-
tura imperialista, não condiziam com os ideais libertários e iluministas
que animaram a Revolução Francesa em 1789. Tal desencanto, que
marcou profundamente a literatura do século XIX – encontrando-se
em romances como O vermelho e o negro (1831) e A Cartuxa de Parma
(1839) de Stendhal, Ilusões perdidas (1835-1843)8 de Balzac e A educa-
ção sentimental (1869) de Flaubert – é deveras significativo em “Um dia

7 Inicia-se em 2 de maio de 1808 uma revolta popular na Espanha contra o coroa-


mento de José Bonaparte, irmão de Napoleão, no lugar de Fernando VII. Para
abafá-la, “o general Murat convocou uma corte marcial e ordenou o fuzilamento
sumário de qualquer cidadão que fosse encontrado [...] aparentando ‘um semblan-
te patriótico’. [...] Na Plaza del Sol os tiros ecoaram o dia todo e pela noite adentro”
(Ostrower, 1997, p.23). Mas tal procedimento só fez intensificar a revolta, que
resultou em dois anos de guerrilha e inúmeras “epidemias, fome e doenças, que
dizimaram a população. Após dois anos, havia 20.000 mortos de fome nas ruas de
Madri, 54.000 em Zaragoza” (ibidem, p.24). O dia do fuzilamento é retratado por
Goya em seu famoso quadro O fuzilamento de 3 de maio e as barbáries cometidas
pelas tropas francesas durante os anos de guerrilha são representadas na série de
82 gravuras em metal (água forte e tinta) intitulada Desastres da guerra.
8 Ilusões perdidas é “uma obra que saiu aos pedaços, publicados com intervalos
enormes, uns em folhetim, outros em volume, não somente sob títulos diversos,
sem nada para lhes indicar a ligação, como também sem que fosse observada a
ordem cronológica dos episódios” (Rónai, 1981, p.7).
O MAL DE D. QUIXOTE  87

de esperança”. Nele, a retórica, carregada de enumerações, hipérboles,


ritmo e musicalidade, acentua a grandeza do ideal e o eleva a uma altura
que contrasta radicalmente com o posterior movimento de queda. O
dia da derrubada da Bastilha, que foi o “maior dia de ventura da vida
da humanidade, [...] mais bela hora de esperança no quadrante lento
e melancólico dos nossos sentidos” (Pompéia, 1983, p.110), tornou-
se um ideal corrompido pela “comédia monstruosa e supérflua [d]o
reinado de Robespierre e da Deusa Razão” (ibidem) juntamente com
“o anúncio de sangue de Bonaparte através da Europa” (ibidem).
Como podemos observar, Raul Pompéia ([198?], p.49) aplica na
escritura das crônicas o princípio da “eloqüência do estilo”, uma vez
que, na sua concepção poética, a eloqüência reside no uso da ima-
gem e na sensibilidade com que o escritor consegue variar o ritmo,
manipulando-o na “justa proporção do sentimento com a prosódia
da frase”, pois não há obra de arte sem “o capricho do ritmo aco-
modado aos períodos sentimentais da descrição” (ibidem), sem “os
parênteses da personalidade do escritor, manifestados pelo modo
especial de sentir e pelo processo original de dizer” (ibidem, p.56).
O mesmo acontece com relação à escritura dos contos que, assim
como as crônicas, têm suas fronteiras de gênero diluídas, também se
aproximando de outros gêneros, como o ensaio-poético e o poema em
prosa. Mas antes de passarmos para o próximo assunto, é importante
frisarmos que, por todos os aspectos apontados e especialmente por
tentar conferir à crônica o status de texto literário, Raul Pompéia
imprime uma nova fisionomia e dignidade ao gênero, adiantando-se
à renovação que Afrânio Coutinho (1986, p.127) considera ter sido
feita por Olavo Bilac:

O certo é que, nessa altura, a crônica mostrava uma fisionomia diversa,


contando-se entre os seus renovadores o poeta Olavo Bilac (1865-1918),
com a circunstância bastante expressiva de que foi o substituto de Ma-
chado de Assis na sua coluna semanal da Gazeta de Notícias. A novidade
que Bilac introduziu foi concentrar os seus comentários em determinado
fato, acontecimento ou idéia, o que concorreu para dar a algumas de suas
crônicas a feição de ensaios.
88  MARCIANO LOPES E SILVA

Conforme vimos, a concentração temática apontada por Afrânio


Coutinho nas crônicas de Bilac, que contribuiu para lhes dar a fei-
ção de ensaios, já havia sido implementada por Raul Pompéia que,
segundo nossa análise, renovou o gênero por meio dos seguintes
procedimentos:
• redução temática (presença de um único tema);
• redução da extensão;
• uso da “eloqüência do estilo”, conforme definida por Raul Pompéia;
• uso de metáforas, símbolos e principalmente da alegoria;
• mistura de diversos gêneros tendo como base o ensaístico;
• privilégio dado à reflexão filosófica;
• recusa à “conversa” pueril.

O conto

Os contos da seção Pandora, assim como a maioria dos contos de


Raul Pompéia, são “sintéticos e monocrônicos”, conforme o modelo
esboçado por Araripe Jr. (1960b, p.158), e apresentam com freqüência
uma dimensão psicológica. Mas essa dimensão não é explorada segundo
os moldes do realismo, uma vez que o registro e a análise das impressões
e dos conflitos espirituais não são desenvolvidos com o objetivo de
delinear um caráter, sendo motivados, em última instância, pelo efeito
final revelador da incongruência entre os ideais e a realidade; efeito final
cujo caráter potencialmente epifânico revela uma arquitetura romântica
– conforme acontece nos contos “Crise de inverno” (3 de julho), “Mu-
tismo” (17 de julho) e “Impenitência” (10 de agosto). Diversamente dos
anteriores, “Comércio de flores” (2 de junho) e “Glória latente” (18 de
setembro) não primam pela análise psicológica, mas pela concentração
dos elementos simbólicos e alegóricos no primeiro, e pela total ausência
de fabulação no segundo cujo drama da escritura ganha uma dimensão
trágica mediante à contradição irreconciliável (Lesky, 1976) entre a Idéia
e sua representação. Mas, apesar das diferenças, permanece em comum
uma arquitetura orgânica voltada para a construção de um efeito de
totalidade, conforme propunha Edgar Allan Poe em seus escritos
teóricos sobre a poesia e o conto (Grojnowski, 1996).
O MAL DE D. QUIXOTE  89

Em “Crise de inverno”, o horror de uma página de anatomia, o


espocar festivo dos fogos de São João e a audição de um “descante
sertanejo de modinha e viola” produzem diferentes sentimentos do
sublime e proporcionam, ao protagonista Cláudio, pequenas epifanias
que, no final, intensificam ao máximo a implosão de dor e tristeza no
momento do clímax – quando ele, estudante de medicina, descobre
perdidas para sempre a pureza e a felicidade singelas da sua infância
vivida no Norte, longe ainda dos costumes urbanos. Cláudio, que
na infância conhecia a “riqueza compensadora da liberdade e do ar”
(Pompéia, 1983, p.104), que possuía uma sensibilidade capaz de sentir
a “melancolia feliz do amor” (ibidem), repentinamente se descobre
transformado pela cidade e pela ciência em um outro homem: um
homem degradado e infeliz tanto por causa da racionalidade quanto
pela insensibilidade necessárias à prática da medicina. Infelicidade
acentuada pelo caráter opressivo da sociedade, que lhe reserva “o
terror das posturas e da polícia, a domesticidade humilhada, o asilo, o
hospital, a papeleta, o anfiteatro...” (ibidem).

Cláudio, o analista do escalpelo, o cético, o futuro profissional da in-


sensibilidade, chorou como um parvo lágrimas nervosas, e ficou a ouvir,
comprazendo-se na tortura daquela saudade e do amargo estribilho: adeus!
adeus! adeus! Palavras de queixa que expiravam, mais doce a segunda
que a primeira, a última que a segunda, mais longe, como se a despedida
partisse, agitando-se ainda e ainda, na distância confusamente como um
lenço. (ibidem, p.105)

Seguindo o modelo da narrativa de efeito final proposto por Edgar


Allan Poe, Raul Pompéia elabora o texto de modo que as três epifanias
que ocorrem no transcorrer da narrativa concorram para produzir uma
crescente gradação emotiva e simbólica, que atinge seu clímax na ima-
gem final do lenço a agitar-se na distância, conforme podemos ler no
recorte citado. E é importante observarmos que, para cada seqüência
epifânica, o narrador varia o estilo de modo a produzir os três diferentes
sentimentos do sublime apontados por Emmanuel Kant (1993, p.21-2):
o do assombro, ou terror, o da calma admiração e o da melancolia.
90  MARCIANO LOPES E SILVA

Na primeira seqüência, cujo motivo é o horror produzido pelas


páginas de um livro de anatomia, a ambientação é elaborada, desde o
início, segundo um estilo gótico. Na segunda, a chuva de fogos na noite
de São João produz um relaxamento da tensão, ou seja, uma sensação
de deleite (Burke, 1993) que possibilita ao personagem contemplar
admirado, por alguns instantes, a sublime beleza do momento. Por
fim, na terceira seqüência, a voz feminina que, no frio e na solidão
noturna, entoa uma cantiga de amor ao som de uma viola, produz um
efeito de profunda e romântica melancolia que traduz o sentimento de
brasilidade presente nas modinhas e na música sertaneja. Vejamos a
seguir, para iniciar a análise, um recorte da primeira seqüência:

Frio cortante, frio acerrado de junho.


Não sei por que misteriosa correlação, sentia Cláudio o inverno no
espírito, como um aperto, como uma dificuldade, como um peso, como
se fosse o espírito um grande lago congelado, e hirtas, inertes, as idéias,
as sensações, a vontade, na frigidez glacial...
[...] foi-se-lhe relaxando a atenção. Subia do soalho frio, como de
uma superfície de umidade. Veio sobre o livro uma nuvem; perdeu-se em
sombras a nitidez da página impressa. Cláudio sentiu-se isolado em vaga
indecisão de dormência, onde havia o sentimento de existir, nada mais, e
a mancha expansiva da vela.
Entretanto uma folha do volume voltou-se por si e apareceu uma
estampa de anatomia, esquema tranqüilo, científico do horror. Cláudio
estremeceu; veio-lhe da gravura um choque desconhecido. Cobriam-se
de sangue as vísceras abertas, cresciam em relevo, na página branca, como
numa mesa de mármore. Cláudio estremeceu, possuído absurdamente de
uma reminiscência de náusea, incômoda como o efeito da primeira disse-
cação, do primeiro cadáver, da carniçaria pedante que o revoltara: contatos
pegajosos, emanações de açougue e ácido fênico, o fétido dos desmanchos
líquidos, que entra na roupa e na pele, que fica e persegue infinitamente,
o olhar oblíquo, nevoento na fenda da pálpebra, entreolhando os circuns-
tantes, o catedrático, a ciência, com o desdém supremo da morte.
O estudante desviou a vista. Espalhados na mesa, salpicados de tinta,
marcados a lápis, havia ossos humanos dispersos. A um lado, sobre uma
pilha de volumes, como a morder a encadernação, uma caveira encarava-o.
(Pompéia, 1983, p.103, grifos do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  91

Para materializar o tema e o sentimento da morte, o narrador repete,


de forma gradativa, diversos motivos do gênero gótico. No início, temos
diversas imagens e sinestesias relacionadas ao frio (destacados em itálico)
e à imobilidade (em negrito) de modo a simbolizar a rigidez gélida do
cadáver: “frio”, “inverno”, “congelado”, “rigidez”, “hirtas”, “inertes”,
“frigidez glacial”, “mármore”. Acompanham-nas outros motivos que
unem a sinestesia de frio à de umidade e fluidez, simbolizando a umidade
das tumbas e dos cemitérios assim como a fugacidade da vida: “ema-
nações”, “desmanchos líquidos”, “nevoentos”, “nuvens”, “sangue”.
Somam-se a esses motivos os do medo e, principalmente, os da carniça
e da náusea (sublinhados) o que resulta em um quadro de horror. É
importante observar que alguns motivos podem apresentar mais de um
tema (Bakhtin, 1990a) e que todos, no conjunto, significam a morte.
Evidentemente não poderia faltar, em uma ambientação típica
do gênero, o motivo da tempestade; expressão da ira de Deus ou da
presença do demoníaco. Na seqüência do motivo da caveira, temos a
iluminação súbita causada pelo “relâmpago” e a imagem da vidraça em
chamas (“inflamando a vidraça”) que confere um caráter demoníaco
à percepção do instante. Essa analogia do colorido da vidraça com o
fogo sugere uma leitura que interprete a ambientação gótica como uma
alegoria do inferno. Entretanto, na seqüência revela-se o engano: não
se trata de um relâmpago, mas de fogos de São João. Temos um alívio
da tensão, mas não sem ironia. Nos fogos que vê, não há a beleza das
festas de São João das cidades e vilas do sertão. É importante observar
ainda que, em correspondência com o sentimento dilacerado do per-
sonagem, a ambientação contrasta os motivos da luminosidade e do
movimento (destacados em itálico), presentes no estourar dos fogos
de São João, à escuridão e à imobilidade iniciais.
Um grande relâmpago ocorreu como uma distração oportuna. Logo
depois, outro, inflamando a vidraça. Lá fora, no frio, atacavam fogos.
Lembrou-se de que estava em junho e no tempo das festas.
Novo relâmpago. Entreteve-se a seguir a trajetória serena das lágrimas
elétricas. Vômito de estrelas, imaginou. E sorriu.
Noute de São João!... E pensou no destino das estrelas efêmeras, sor-
rindo ainda, da puerilidade imaginativa.
92  MARCIANO LOPES E SILVA

Para verificar donde partiam os tiros, ergueu a vidraça. Não viu


cousa alguma. A friagem exterior fez-lhe bem.
Do seu terceiro andar, avistava-se uma desordem tenebrosa de
telhados, perfis ondulantes de cimalha, arestas a prumo, poucas janelas
iluminadas. Em todo o quarteirão, silêncio completo, desanimado.
No céu, em frente, por entre os astros, desciam alguns balões sobre
o mar. Que diferença desta noute, na grande cidade, para as noutes
de São João, do norte, na sua província!... (Pompéia, 1983, p.103-4,
grifos do autor)

Os paradoxos “lágrimas elétricas” e “vômito de estrelas” são ima-


gens fortes que mantêm a tensão da narrativa e também dão continuida-
de à alegoria antes iniciada. E fazem isso mantendo a motivação em nível
sintagmático, ou seja, mantendo em nível horizontal as analogias com
o fluido, o viscoso e o nojento. O demoníaco é o moderno, é o mundo
da eletricidade, da ciência e da técnica. A majestosa beleza da luz e da
energia dos fogos, análogos aos raios e às estrelas, congregam em si os su-
blimes matemático e dinâmico. Entretanto, esse momento de elevação
não é de alegria, mas de dor e náusea. Após a epifania que lhe revelou o
horror da morte que estava sob a sua mesa, impregnando seu quarto, a
súbita luz que poderia lhe revelar alguma mensagem divina e redentora
nada mais é do que um engano, ou pior, uma revelação do oposto. Para
completar a ruptura com o sublime elevado, a beleza luminosa das estre-
las não somente é obscurecida, como também é poluída pela imundície
do “vômito”. Misturam-se hypsus e bathos, o grandioso ao horrível e ao
nauseante. Na seqüência, o “canto sertanejo de modinha e viola” é o
outro motivo que faz que o protagonista lembre-se com saudade de sua
vida anterior, vivida fora do meio urbano. Novamente temos a oposição
campo-cidade característica da visão de mundo romântica. Saímos de
uma ambientação gótica e, suavemente, sem que talvez o leitor perceba,
deslizamos para uma outra. Nesse jogo, encontram-se em tensão, pela
relação de antítese, a ambientação idílica, situada no passado perdido e
irrecuperável, e a ambientação da cidade como um espaço degradado,
opressivo e imundo. No passado, estão o amor, a beleza, a liberdade, a
amplidão; no presente, temos a ausência ou a negação deste mundo: o
feio, a opressão, a pobreza, o grotesco, enfim, a morte.
O MAL DE D. QUIXOTE  93

Como em resposta a esta lembrança [das noutes de São João no Norte],


ou mesmo pouco antes, sem que lhe parecesse, chegou-lhe aos ouvidos um
som de música, exatamente um descante sertanejo de modinha e viola.
Voz de mulher, longe, embaixo, numa carreira de rótulas. Canto
saudoso de amor e um estribilho de adeus.
Entristeceu-o profundamente a música.
A miséria das cidades!... Os pobres não vivem aqui. Eles querem a
riqueza compensadora da liberdade e do ar. Por isso cantam o sertão.
E lá é a alegria, e quando a voz adormece, mais sentida, é da melancolia
feliz do amor. Nunca esta angústia penetrante desta canção, que sofre de
vibrar na rua estreita, que morre nos bueiros. Falta-lhe tudo, a amplidão,
o descuido, a independência do deserto, tudo, à mísera expatriada, boêmia
dos grandes céus!
O campo é a terra, o rio, a légua do horizonte, a fé da superstição e dos
curandeiros para as dores, a viola para a festa. E a canção vai, um trapo
sobre a nudez, um diadema de luar, selvagem, apaixonada, lânguida,
livre. (ibidem, p.104)

No conjunto, todos os motivos apontados, assim como a variação


estilística concorrem, por um lado, para a representação alegórica
da alienação que gera a morte espiritual do protagonista, enterra-
do vivo em seu quarto; por outro, para o envolvimento do leitor,
predispondo-o a compartilhar os sentimentos de sublime tristeza e
solidão vividos por ele.
A força das imagens, que revela a atenção e o valor que Raul
Pompéia conferia à arte de Victor Hugo e dos pintores românticos e
impressionistas, novamente é de uma grande beleza em outra envol-
vente obra presente na seção em estudo: “Mutismo”. Nesse texto, é
surpreendente a maneira como Pompéia dialoga com as artes plásticas,
pois, em três seqüências da narrativa, a ambientação elaborada supera
o mimetismo da arte realista e anuncia, ao fazê-lo, as conquistas e
inovações posteriores do cubismo, do expressionismo e, até mesmo,
do surrealismo. A imagem cubista obtida com o jogo de reflexos resul-
tantes de dois espelhos postos frente a frente, a imagem expressionista
dos móveis deformados na escuridão e as imagens simbólicas, que
compõem o clímax narrativo, rompem com a estética realista vigente
94  MARCIANO LOPES E SILVA

no século XIX. A imagem das estrelas que saem da moldura da janela


e envolvem os amantes em uma metamorfose de luzes, formas e sons
não só está longe da representação realista da época como transcende o
simbolismo e “avança” no tempo em direção ao surrealismo do século
XX. Mas antes de passarmos à análise da mistura estilística apontada
no trato das imagens, é importante observarmos outra mistura perti-
nente ao gênero.
Assim como em vários contos de Edgar Allan Poe e em diversos
poemas em prosa de Charles Baudelaire, a narrativa apresenta-se quase
inteiramente como um monólogo. Nesse caso, temos uma narrativa
enquadrada em outra. A do narrador principal – se é que assim o po-
demos chamar – é mínima, pois, em apenas três parágrafos, se limita a
situar o leitor no espaço, revelando que ele e seu interlocutor estavam
em um quarto do Grande Hotel, provavelmente no Rio de Janeiro. Esse
interlocutor é o segundo e principal narrador do texto, sendo o protago-
nista da estória que conta. Essa diz respeito a uma incrível experiência
amorosa que teve no mesmo quarto, anos atrás. Mas o segundo narrador
não quer apenas relembrar a felicidade da inusitada experiência, visto
que pretende dela retirar um ensinamento, uma sabedoria que tenha
seu caráter filosófico. Isso é perceptível na maneira como ele conjuga o
estilo dissertativo-analítico com o narrativo, iniciando com uma con-
sideração sobre uma célebre frase pertencente à história da Revolução
Francesa. Situação paradoxal, senão irônica. Uma reflexão filosófica e
racional sobre a existência e a linguagem extraída de uma recordação
lírica, apresentada por meio de uma narrativa simbólica que tem por fato
exemplar um flerte e o posterior encontro amoroso ilícitos, contrários
às convenções sociais e à moralidade.

– A morte sem frase, dizem que foi o voto de Sieyès contra o rei de
França, na Convenção. Prova-se que é falso, e que o sans phrase foi um
simples acréscimo do estenógrafo, para exprimir exatamente o laconismo
do parecer: – La mort.
“A vida sem frase, continuou ele, tenho eu pensado muita vez. E
imagino que menos sofreríamos, sem a pretensão de corporizar, exage-
rando, as sutilezas indefinidas do sentimentalismo, sem a sílaba que fixa
e prolonga o relâmpago caprichoso das nossas fraquezas de ternura, sem
O MAL DE D. QUIXOTE  95

o vocábulo, cristalização grosseira da psique informe, quase inexistente,


que mais pela clivagem punge.
“Vida sem frase, ventura mesmo sem frase, amor sem frase.
“Olhe, foi aqui neste quarto, neste mesmo quarto.”
Estávamos no Grande Hotel, em um dos cômodos do andar superior,
aonde eu o fora visitar. (ibidem, p.111)

Conforme dissemos, a narrativa do segundo narrador apresenta três


momentos em que a representação concorre para desfazer a mímesis
realista, fatos que evidentemente não são coincidências – observemos,
para tanto, o caráter simbolista da concepção de linguagem esboçado
no recorte citado: o mesmo desejo de um impossível vocábulo puro
e a opção final pelo silêncio que veremos em “Glória latente”, um
pouco mais adiante. Mas voltemos aos três momentos e deixemos
essa questão para depois. No primeiro, a quebra da ilusão é obtida
por meio da imagem colocada em abismo, multiplicando-se infinita-
mente nos espelhos de modo a fragmentar o objeto pela representação
simultânea de suas partes vistas por diversos ângulos. Por meio desse
procedimento, já empregado no final do século XIX por escritores
como Wilde e Régnier (Peylet, 1994, p.101-2), o segundo narrador
ironiza a crença na representação objetiva dos espelhos. E, ao fazê-lo,
direciona a atenção do leitor para o nível metaliterário de significação
textual, predispondo-o a ver, nas duas próximas seqüências, outras
situações que novamente colocam em xeque a estética realista e a
confiança positivista no conhecimento objetivo.

Da mesa, que ocupava, dava-me as costas. Mas havia, além da mesa,


um grande espelho, fazia-se infinitamente a reprodução das imagens,
a multiplicação das presenças, na linha sem termo das nossas cabeças,
divertindo-se o malicioso acaso das projeções a colar-nos o rosto, lábio a
lábio, no encontro de uma união eterna.
Dupla mentira, aliás, do vidro irônico; porque entre nós, na repetição
dos espelhos, repetia-se igualmente à esquerda, ora a nuca de colarinho
pespontado, ora as barbas pretas lustrosas e a ponta do guardanapo ao colete,
de um cavalheiro corretíssimo, que almoçava com a gentil senhora. Pai, ma-
rido, amante? Não nos falamos, não sei. Não sei também que reticências de
azeitonas enfiei na distração ótica deste caso agradável de física recreativa...
96  MARCIANO LOPES E SILVA

Ao jantar, via-a pela segunda vez. Não nos falamos. Vi-a de longe,
ainda, eu em minha mesa, ela à outra.
Notei uma circunstância. Mudara de lado e evitava a indiscrição
catóptrica das projeções. Afundei tristemente o olhar no vazio do aço.
Reproduzia-se, apenas, a frente do cavalheiro, e a nuca, infinitamente, a
frente e a nuca. (Pompéia, 1983, p.112, o grifo é nosso)

No segundo momento de ruptura com a mímesis realista, a nar-


rativa ressalta a obscuridade e a fantasia na percepção do espaço em
razão dos efeitos produzidos pela luz das velas. Ao fazê-lo, registra a
visão disforme dos móveis cujas sombras projetadas nas paredes do
quarto escuro geram imagens fantásticas, compondo uma ambientação
que lembra o estilo expressionista e novamente desfaz a objetividade
fotográfica em detrimento da subjetividade do olhar e da fantasia do
momento. Todo o simbolismo da ambientação concorre para uma
atmosfera de delírio e agonia, em que a vida está por um suspiro. Ao
final, a representação simbólica da morte e do sepultamento encontra-
se na analogia do apagar das últimas e bruxuleantes luzes juntamente
com a ilusão visual do desabamento das paredes.

A vela expirava com pequeninos estertores de crepitação. Aniquilava-se


no bocal da palmatória exalando um lampejo azul, e renascia de improviso
como uma aspiração larga de suspiro. Os objetos, perdidos já no escuro,
saltavam das paredes, a madeira esculpida do guarda-roupa, a nesga do leito,
a pirâmide frouxa do cortinado. Perdia-se novamente a chama, tornavam a
deformar-se os objetos na obscuridade nevoenta. Até que cessou o anélito,
sucumbindo a luz, ampliada um momento no adeus à vida, abismando-se a
claridade toda do aposento no orifício de bronze, como se desabassem ao mes-
mo tempo as quatro paredes para a noite absoluta e vasta. (ibidem, p.113)

O motivo da morte, que vemos na ambientação citada, já era anteci-


pado na caracterização da mulher no momento em que chega ao quarto,
à noite, pois então ela é descrita como uma aparição fantástica por meio
de uma frase cuja musicalidade é suave, ondulante e melancólica: “Ela
entrou. / Vinha de branco, na cambraia flutuante das horas mortas
como os espectros e os esperados amores” (ibidem, p.112).
O MAL DE D. QUIXOTE  97

No momento do clímax, que antecede o efeito final, a imagem sim-


bólica das estrelas a invadirem em turbilhão a obscuridade do aposento
possui uma poesia cujo delírio não somente expressa o sentimento do
sublime dinâmico e nobre, como também beira a fantasia surrealista:

No retângulo da janela as estrelas brilharam mais.


E então, por maravilhosa intervenção de não sei que magia, baixaram
contra nós. Rápidas, vertiginosas, deslumbrando, envolveram-nos como
um dilúvio de gemas. Riam em silêncio o riso nervoso das cintilações e
rodavam o turbilhão dos espaços. Eram às vezes sobre nossas frontes como
auréolas girantes, às vezes como desfiladas de pirilampos, como explosões
pirotécnicas das fagulhas. (ibidem, p.113)

O personagem nada fala sobre o que aconteceu, mas isso não é


necessário. O êxtase amoroso, representado como renascimento após
a morte, é sugerido pela imagem extremamente luminosa das estrelas
a rodarem em um turbilhão de explosões. A imagem evidentemente
pode ser lida como uma representação simbólica da transcendência por
meio do amor, revelando, em um momento de epifania, a harmonia
universal somente possível na pureza do silêncio absoluto, “sem o
vocábulo, cristalização grosseira da psique informe, quase inexistente”,
incapaz de “corporizar [...] as sutilezas indefinidas do sentimentalis-
mo” (ibidem, p.111).
E para representar essa revelação, são articulados os diversos ní-
veis de linguagem do texto. Além do nível de significação simbólica
presente nas imagens luminosas (“estrelas”, “cintilações”, “auréolas”,
“pirilampos”, “explosões pirotécnicas de fagulhas”), sua enumeração
gradativa associada às figuras de sonorização (a assonância do [i] e a
aliteração do explosivo [p], que sinestesiam os sons da subida e do
estouro dos fogos, respectivamente) criam um ritmo e um movimento
doidamente embriagador. Movimento que pode ser comparado a um
rodopio de valsa em meio ao estouro de milhares de fogos, em meio
a infinitas estrelas explodindo como luzes pirotécnicas na escuridão.
Essa representação construída com base nas analogias que se projetam
nos eixo horizontal e vertical da linguagem, conforme descreve Jean-
Marie Schaeffer (1980) em seu artigo Romantisme et langage poétique,
98  MARCIANO LOPES E SILVA

também ocorre na ambientação anterior. Nessa, a sonoridade das


vogais fechadas e nasalizadas confere um tom melancólico em cor-
respondência com os motivos da agonia e da morte, da luz e da vida,
que mergulham no abismo da escuridão.
Novamente, assim como vimos no conto anterior, contrapõem-se
os sublimes elevado (hypsus) e baixo (bathos), o que leva a um movi-
mento de gangorra. Naquele, tínhamos a queda ao final; neste, temos a
ascensão, momento em que o segundo narrador conclui reafirmando a
idéia inicial da exposição sobre o fato da felicidade repousar no silêncio,
visto que a linguagem é impura e portanto incapaz de representar a
magia do Amor: “Não nos falamos; e lembra-me este dia de silêncio
como o mais feliz e completo dos meus vividos” (Pompéia, 1983,
p.113). Mas tomemos cuidado! Essa ascensão se encontra somente na
narrativa do segundo personagem, que apresenta, tanto no conteúdo
simbólico como na construção de sua narrativa um rigor na seleção
vocabular, nas imagens, no ritmo e na sonoridade, de modo que todos
os níveis de linguagem do texto estejam voltados como uma flecha para
a obtenção do efeito final. Efeito que permita ao leitor ser tomado de
uma iluminação, ou seja, de uma impressão de totalidade, conforme
propunha Edgar Allan Poe com respeito ao ideal do texto poético.
Considerando alguns enunciados feitos pelo narrador principal, no
início, podemos, entretanto, realizar uma leitura irônica da parábola
apresentada pelo seu possível amigo.

Diante de nós, à bandeja, na manhã fria, esfriava o resto do café, e eu


ouvia o improvisado filósofo, vendo ao mesmo tempo, na porcelana clara
de uma das xícaras, uma formiga hesitante e cobiçosa andar à roda, antes
de descer ao melado do fundo. (ibidem, p.112)

Além de observar que a filosofia do segundo narrador é improvisa-


da, o primeiro se detém a descrever a atitude de uma formiga que cobiça
o melado ao fundo da xícara. Consideremos os contrastes entre a formi-
ga, provavelmente preta, e a delicada e pura porcelana branca; entre a
espiritualidade presente na exemplar narrativa simbolista do encontro
e do êxtase inexprimíveis e o instinto que move a formiga em direção
ao melado que lhe saciará o ventre. Para completar, consideremos o
O MAL DE D. QUIXOTE  99

contraste brutal entre a narrativa e a afirmação quase religiosa sobre o


alto valor do silêncio e o estridente som que sobe da rua: “Da rua che-
gava cortando o nevoeiro o rincho torturado, estridente, de um carro de
bois” (ibidem, p.111). Difícil afirmar com certeza a presença ou não da
ironia, e, caso sim, identificar sua significação. Mas, de qualquer forma,
a semente da dúvida está aí plantada. Uma formiga cobiçosa e o ruído
irritante de um carro de bois. A espiritualidade e o instinto, o desejo
de elevação mística por meio do Amor e a matéria que nos prende à
natureza e à animalidade. Muito provavelmente encontramos, na voz
do primeiro e discreto narrador, temas dos discursos do positivismo e
do determinismo em contraposição ao discurso romântico-simbolista
que se encontra na voz de seu interlocutor.
Qual voz prevalece? Difícil dizer. Se a do primeiro narrador em
princípio é dominante pela sua posição de exterioridade com relação
ao segundo, a deste encontra um espaço e um tempo muito maiores
para se manifestar e, o que é mais importante, imprime um efeito
final não somente à sua narrativa, mas ao conto também. É muito
difícil imaginar que a sutil ironia que vemos na alegoria da formiga e
do melado sobre a porcelana seja percebida pela maioria dos leitores,
ou seja, é pouco provável que ela consiga imprimir no espírito desses
uma impressão mais forte do que a provocada pelo efeito de totalidade
da segunda narrativa. Mas deixemos tais conjecturas de lado, pois a
resposta a elas se encontra no terreno do improvável.
A terceira das narrativas psicológicas é o conto “Impenitência”.
Nele também são recorrentes o drama moral da personagem – em
detrimento da ação e do mundo material – e o uso da imagem, seja na
condição de símbolo, seja na de alegoria. Nesse caso, o conflito vivido
pelo protagonista – que novamente não é nomeado, permanecendo
anônimo – surge das lembranças suscitadas por um velho e corroído
confessionário, alegoria do pecado irremediável e inconfesso que o
acompanha desde a juventude, materialização da sua consciência
atormentada pela culpa de ter assassinado a amante.

O tempo despolira a madeira, e o diadema de talha, refolhado anti-


gamente de palmas e espigas eucarísticas sobre cachos de uvas, ao pé da
100  MARCIANO LOPES E SILVA

pequenina cruz preta, mal se deixava reconhecer por uma carreira irregular
de pontas partidas. O retábulo gradeado de confidências, corroído e sujo,
parecia gasto de peneirar um século de culpas. (ibidem, p.117).

O velho confessionário, que destoa da rica mobília, carrega con-


sigo a lembrança do pecado, da culpa nunca redimida. Para expiá-la,
o protagonista se torna pároco e segue a carreira religiosa, atingindo
a respeitável posição de bispo. No entanto, apesar de conferir respei-
tabilidade ao bispo perante o público, o confessionário também é a
lembrança material do crime e objeto revelador da contradição entre o
ser e a aparência, a Idéia e sua realização, os ideais e a realidade. Eis aqui
um tema fundamental na obra de Raul Pompéia – conforme veremos
no terceiro capítulo –, assim como para a ficção machadiana, para a de
Baudelaire e, muito provavelmente, para grande parte da literatura do
fin du siècle XIX. Literatura que se compraz em denunciar que  “Dans
ce monde hereux d’être factice, le décor étouffe la vie et l’être disparaît
derrière l’apparence”9 (Peylet, 1994, p.104). No conto em questão,
não foi outro o motivo do crime senão a não-coincidência entre o ser
e sua aparência. Apesar da superfície corroída do confessionário, que
parece indicar uma alma penitente por parte do bispo, o que a narrativa
revela é o contrário: a culpa pela própria “impenitência”, o que “só a
eternidade da dor, sabia ele, saciaria” (Pompéia, 1983, p.119).

Ela era frágil; mentia, então, como os pássaros voam: defesa da fuga.
Não por mal. Mentia também porque era a Forma, forma e aparência.
Poder-se-á dizer, em rigor, que as superfícies mentem? Aparência era a
formosura que ela dava, aparência, o louro esplendor sincero de cabelos
em que se vestiam ambos, ali, no enlace amoroso. (ibidem, p.118)

Antes de passarmos a tratar de “Glória latente”, é importante


analisarmos a construção do efeito final do texto, o qual reside na
simbologia dos lírios mortos: “Fora justo, justo como a paixão. Mas
só a eternidade da dor, sabia ele, saciaria o remorso dos lírios mortos”

9 “Neste mundo feliz de ser artificial, o decoro sufoca a vida e o ser desaparece por
detrás da aparência” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  101

(ibidem, p.119). Para compreendê-la, vejamos a passagem anterior


em que temos o motivo simbólico dos lírios: “Fora justo, justo como a
paixão; mas o belo corpo escapou-lhe para o canteiro embaixo, morto,
matando os lírios. E ele teve remorso pelas flores” (ibidem, p.118).
Como se sabe, os lírios simbolizam, no discurso cristão, a pureza
e o amor virginal, ou seja, a Idéia cristã e platônica do Amor. Contra-
ditoriamente, o protagonista não se arrepende do crime, acha-o justo
como a paixão – e a paixão não é racional... Paradoxalmente, consegue
racionalizar seu ato irracional, mas o inconsciente não se livra da culpa,
e essa é transferida para a imagem simbólica dos lírios. Consideremos
ainda o seguinte: “No simbolismo popular, o lírio não é apenas o
símbolo da pureza, [...], mas também da ‘pálida morte’. Nas lendas
populares, o misterioso aparecer de um lírio anuncia a morte de um
frade” (Biedermann, 1993, p.219). Ao final, a imagem simbólica dos
lírios completa a alegoria em que o confessionário é outro importante
elemento. Enquanto esse materializa a culpa não expiada, os lírios sim-
bolizam a morte espiritual do protagonista, que perdeu sua alma.
Diversamente dos contos anteriores, “Glória latente” pode ser lido
como uma fábula (não no sentido do conceito formalista, mas no de
narrativa alegórica com fundo moral). Uma fábula metaliterária cuja
moral expressa a impossibilidade de o poeta construir um poema puro
que “voltaria ao cristal como a gota escapada à pena” (Pompéia, 1983,
p.124), que retornaria “ao não-ser original” com a força e a pureza do
verbo divino, como o “espírito do Gênesis sobre as águas” (ibidem,
p.123). Ideal impossível posto que a palavra é impura, “veículo da
vaidade de que o escritor depende, [...] vil instrumento das permutas
do interesse e do apetite” (ibidem, p.122). Incapaz de atingir a essência
original, ela limita o Verbo, amesquinha-o. E por tais motivos, o prota-
gonista resolve renunciar ao seu projeto para proteger a pureza da sua
obra. Prefere calar-se, recusando a linguagem imperfeita dos homens
e se consolando com a idéia de que o diamante bruto é ignorado “na
obscuridade compacta das minas negras” (ibidem, p.124).
É importante observarmos que “Glória latente” pode ser consi-
derado um poema em prosa, pois contraria a ficção realista no que se
refere ao enredo e à concepção de arte e linguagem. Com respeito ao
102  MARCIANO LOPES E SILVA

primeiro aspecto, não apresenta fabulação e intriga, mas um conflito


interior vazado em estilo dissertativo. Com relação ao segundo aspec-
to, encontramos uma concepção simbolista da arte e da linguagem, o
que ainda mais reforça nossa interpretação do texto como poema em
prosa. Entretanto, deixaremos para tratar essas questões no próximo
capítulo, quando discutiremos o projeto que orientou a escritura de
Canções sem metro.
Para encerrar, vejamos “Comércio de flores”, texto que muito
se aproxima da forma composicional do poema em prosa pela sua
reduzida extensão e o intenso lirismo da linguagem, também apresen-
tando, assim como os outros contos, uma história bastante simples e
que pode ser resumida da seguinte forma: a protagonista, que de dia
trabalhava como costureira e à noite vendia flores à porta de um teatro
para sobreviver, é constantemente assediada por um jovem cavalheiro
que lhe prometia comprar todas se ela as fosse vender em sua casa.
Após resistir por algum tempo ao assédio, ela, por fim, rende-se aos
convites dele para obter dinheiro, pois tinha a mãe muito doente e
precisava socorrê-la.
Duas coisas chamam a atenção em “Comércio de flores”: a mu-
sicalidade e o simbolismo da linguagem, especialmente o das flores,
utilizado na caracterização da protagonista, que é formosa e “redonda
como as camélias dobradas” (Pompéia, 1981c, p.203) e tem, em seu
“tabuleiro verde de flandres” (ibidem), “violetas, perpetuamente mur-
chas como o sorriso dos pobres”, ou, “para os menos contemplativos,
as rubras rosas como gargalhadas presas, vivas, rorejadas da chuva”
(ibidem, p.202-3).
Simbolicamente, as violetas podem conotar a modéstia e sua cor
“a espiritualidade, ligada ao sangue do sacrifício” (Biedermann, 1993,
p.390), conferindo, portanto, as referidas significações à personagem ao
revesti-la de uma aura de pureza e sofrimento – além de sugerirem an-
tecipadamente o sacrifício da sua virgindade. Da mesma forma, o verde
pode ser lido como simbolizando a esperança; seja a esperança de cura da
sua mãe, seja a esperança de conquista de uma vida melhor, sem a miséria
que faz dela uma flor linda e frágil e, portanto, facilmente corruptível
em mercadoria – assim como as flores que vendia. Daí a possibilidade
O MAL DE D. QUIXOTE  103

de lermos a belíssima e musical imagem das “rubras rosas como garga-


lhadas presas” como alegoria do amor e da beleza, que, infelizmente,
não podem desabrochar de forma digna na vida da mercadora.
O simbolismo também é utilizado na representação das mulheres
da alta sociedade, mas, em oposição à representação da protagonista,
seu uso é ambivalente, e, por conseguinte, com um fim bem mais ale-
górico. Algumas são caracterizadas como devassas, mulheres prenhes
de sensualidade e lascívia, visto apresentarem “risos de bacante” e
“hálito de alcova”. Outras, diversamente, são caracterizadas como
possuindo graça, ingenuidade e leveza, interpretação possível para as
imagens dos “pés de corças” e dos “borzeguins feéricos”:

[...] senhoras sérias, coradas de sangue feliz e rico, as beldades desordeiras,


de uma em uma picando o passo com os finíssimos borzeguins feéricos,
deixando na areia do átrio vestígios mínimos como os pés das corças, outras
em atropelo, tossindo risos de bacante, permutando palavras confusas e de
estranhos idiomas, confusas e quentes como hálito de alcova, [...], felizes
e louras como a madureza dos trigos e a opulência das messes. (Pompéia,
1981c, p.202)

Mesmo dividindo o grupo em “umas” e “outras”, as imagens elabo-


radas pelo narrador não deixam de ter um caráter ambíguo. Por um lado,
elas servem para caracterizar as senhoras com a conotação de animais de
caça ou de plantas maduras, prontas para serem colhidas e devoradas –
o que se depreende da comparação com as “corças”, a “madureza dos
trigos” e a “opulência das messes”. Em decorrência dessa interpretação,
chega-se à conotação de que a natureza delas é destinada à conquista
e à posse sexual. Por outro lado, conforme observado antes, os pés de
corça podem simbolizar a leveza e a graça desses animais, ao passo que
a “madureza dos trigos” e a “opulência das messes” podem simbolizar
a vitalidade da mãe-natureza que fornece aos homens o pão de cada dia.
Para cada simbolismo as palavras apresentam diferentes e conflitantes
acentos de valor. No primeiro caso, tais palavras possuem um acento
de valor dado pela visão de mundo presente no discurso da literatura
naturalista; diversamente, no segundo caso, o acento de valor revela a
visão de mundo presente no discurso romântico-simbolista. Mas tal
104  MARCIANO LOPES E SILVA

ambigüidade, no caso, não constitui uma fraqueza, pois rompe com


o maniqueísmo da oposição protagonista-antagonista, de modo que o
registro impressionista varia entre um estilo romântico e outro decaden-
tista, degradante, que serve para a caracterização da alta sociedade.
Quanto à musicalidade, são muitos e constantes os recursos uti-
lizados. Para iniciar, observemos a frase proferida pela protagonista
que, ao ser reproduzida quatro vezes, não somente reitera a temática
da alienação, como também funciona como um tema musical a marcar
a sua presença na memória do leitor: “– Flores! Quem quer flores?”.
Além desse recurso, há inúmeros outros calcados na repetição de
modo a conferir um intenso ritmo à narrativa, tais como aliterações,
assonâncias, anáforas, paralelismos, ecos e dupla adjetivação. Somente
no trecho aqui recortado, há inúmeros exemplos. Observemos a as-
sonância das vogais abertas e agudas que sinestesiam a agitação ou,
como diríamos, o frisson do ambiente do teatro, povoado de elegantes
senhoras. Observemos também a aliteração das oclusivas [b] e [p]
no trecho “as beldades desordeiras, de uma em uma picando o passo
com os finíssimos borzeguins”. Essa aliteração serve para instaurar a
sinestesia auditiva que materializa o trote dos passos apressados. Temos
o mesmo procedimento na correspondência entre o fechamento e a
nasalização da sonoridade, no final da citação, e o motivo da “alcova”,
uma vez que os gemidos e sussurros de amor, assim como a escuridão
do quarto fechado, são mais bem sugeridos pela referida sonoridade.
Para finalizar, vejamos o trecho que segue, em que as aliterações e
assonâncias chegam ao extremo de ocorrer internamente às palavras
(gargalhadas, vivas, rorejadas, bebendo) de modo a tornar sensível o
movimento corporal no momento em que a gargalhada presa se liber-
ta; além de expressar a carga emocional do narrador, que se comove
profundamente com a miséria da protagonista:

[...] tinha, para os menos contemplativos, as rubras rosas como gargalha-


das presas, vivas, rorejadas da chuva, luzindo aos gás como um orvalho
de topázios, bebendo a frescura d’água, no tabuleiro verde de flandres,
vivas, à noite, como se guardassem nas pétalas todo o esplendor de um
dia. (Pompéia, 1981c, p.203)
O MAL DE D. QUIXOTE  105

Ao término desse percurso, pudemos ver que os contos de Raul


Pompéia se aproximam da literatura realista voltada para a análise
psicológica. Sobre isso, é significativo observarmos como foi a recep-
ção das idéias naturalistas vindas da Europa. Para tanto, é exemplar o
ensaio “O romance como psychologia” de Lívio de Castro, publicado
em várias partes no jornal Província de São Paulo em 1888.10 Na parte
do ensaio intitulada “A philosophia do naturalismo”, o crítico defende
o método científico baseado “no exame da acção accumulativa dos pe-
quenos valores” (Castro, 1888c) pela observação objetiva do tipo médio
como forma de desvendar a psicologia do homem e das massas. Tal
escolha se deve ao fato de que os tipos excepcionais – como os santos,
os facínoras e os gênios – constituem acidentes na história moral da
humanidade, enquanto o tipo médio representa a imagem da popula-
ção geral, ou seja, do homem comum. Entretanto, para a realização
do seu trabalho, dois grandes obstáculos se impõem ao “romancista
psicólogo”: a hipocrisia social e a hipocrisia individual, dois lados da
mesma moeda que dizem respeito à insinceridade de ordem cons-
ciente e inconsciente, embora tal divisão não seja bem esclarecida na
parte intitulada “O methodo II” do presente ensaio (Castro, 1888b).
Mas, apesar de a diferenciação dessas duas dimensões não ser feita de
modo suficientemente satisfatório, fica claro que o grande objetivo do
“romancista psicólogo” – e isso pode ser estendido ao contista, eviden-
temente – é “apanhar o segredo de um e de muitos homens que não se
confessam e procuram sepultar a espontaneidade de suas inclinações
sob as apparencias enganadoras” (Castro, 1888b).

Ha finalmente um ultimo obstáculo á analyze psychica, é a impene-


trabilidade individual, a hypocrisia individual.

10 O ensaio foi publicado no jornal Província de São Paulo em várias partes, con-
forme segue: “O romance como psychologia: as origens, parte I” em 20 de maio;
“O romance como psychologia: as origens, parte II” em 23 de maio; “O romance
como psychologia: o methodo” em 26 de maio; “O romance como psychologia: o
methodo, parte II” em 27 de maio; “O romance como psychologia: as escolas” em
14 de junho e “O romance como psychologia: a philosophia do naturalismo” em
29 de junho. Ao final deste último, há indicação de que o ensaio continuaria em
outras edições, mas, infelizmente, não conseguimos encontrar a continuação.
106  MARCIANO LOPES E SILVA

O homem sincero e franco tem apezar de tudo o seu mysterio, alguma


cousa não confiada jamais no confessionario, nem no gabinete do medico,
nem nas expansões da amisade, ou do amor. (ibidem)

Conforme vemos, os contos de Pompéia se aproximam dos contos


realistas e naturalistas de teor psicológico na medida em que procuram
desvendar a “hipocrisia social” por meio do desnudamento da psico-
logia e da alma dos seus personagens. Entretanto, eles se distanciam
dessa literatura em vários aspectos:
• o objetivo não é a representação do caráter do homem médio, mas
de um drama interior;
• o narrador, ao utilizar uma linguagem simbólica e carregada de
analogias, não cumpre com a objetividade necessária à represen-
tação realista;
• o estilo varia constantemente de acordo com o princípio da elo-
qüência – conforme delineado por Raul Pompéia;
• a técnica impressionista – conforme vimos – é utilizada para
expressar a subjetividade do narrador, cujo olhar revela as corres-
pondências entre as coisas;
• a presença do sublime kantiano demonstra um desejo de transcen-
dência inexistente na prosa realista;
• é constante a busca de um efeito de totalidade, o que revela uma con-
cepção orgânica e, por conseguinte, romântica da obra artística.
Considerando essas características, podemos afirmar que os contos
de Raul Pompéia renovam o gênero no contexto nacional. Apesar do
idealismo presente neles, passível de crítica segundo a perspectiva do
materialismo científico da época, eles não incorrem nos desgastados
modelos vigentes no romantismo brasileiro, que se pautavam, especial-
mente, pela temática regional, nacionalista ou fantástica. Além disso,
o privilégio dado a esse gênero também renova a tradição romântica
brasileira na medida em que ele não foi muito exercido ou apreciado
por nossos românticos, conforme sugere o fato de serem raríssimas as
suas publicações em livros (Volobuef, 1999, p.200). Essa renovação
se deve, acreditamos, ao desgaste dos citados modelos e às críticas
provenientes do campo literário dominante no final do século XIX,
O MAL DE D. QUIXOTE  107

composto por escritores e críticos de extração realista ou naturalista.


Entretanto, pelas características observadas, consideramos que a
renovação operada por Raul Pompéia busca sua força nos escritores
simbolistas e decadentes do fin de siècle, pois, segundo Peylet (1994,
p.101), uma das duas tendências da prosa dessa época encontrava-se na
valorização dos artifícios da forma, de tal modo que, muitas vezes, “le
sujet de l’oeuvre compte souvent moins que la construction”.11 Felizmente,
nos contos de Pompéia, o amor ao jogo não desloca para segundo plano
os motivos sociais e/ou psicológicos da narrativa.
Ainda pensando nas afinidades eletivas de Raul Pompéia, parece-nos
que seus contos dialogam especialmente com a literatura de Edgar Allan
Poe e de Charles Baudelaire, visto a preocupação com o rigor formal,
a economia e a organicidade da obra, de modo que todos os elementos
não somente sejam motivados, como também estejam voltados para a
elaboração de um efeito final, conforme o modelo narrativo proposto
pelo primeiro. Modelo que foi apropriado por Charles Baudelaire e
utilizado especialmente na elaboração dos seus poemas em prosa.
Conforme Todorov (1980b), em seu estudo “Os limites de Edgar
Poe”, os contos do escritor norte-americano são marcados por um
extremo rigor. A construção é mais valorizada do que a imitação, a
fabulação e a intriga praticamente desaparecem em detrimento do
monólogo e da descrição, o pormenor ganha status de alegoria e o fazer
literário torna-se um dos seus principais temas. Ainda em relação ao
estilo, Todorov (1980b, p.162) observa que este é marcado pelo super-
lativo, pela hipérbole e pela antítese, sendo que a gradação constitui
“a lei de numerosos contos”:

Poe capta inicialmente a atenção do leitor com um aviso geral dos


acontecimentos extraordinários que quer contar; em seguida, apresenta,
com muitos pormenores, todo o plano de fundo da ação; depois o ritmo se
acelera até culminar, freqüentemente, numa frase derradeira, carregada da
maior significação, que ao mesmo tempo esclarece sabiamente o mistério
mantido e anuncia um fato, em geral, horrível.

11 “o assunto da obra conta freqüentemente menos que a construção” (tradução


do autor).
108  MARCIANO LOPES E SILVA

De modo geral, todas as características apontadas foram observadas


nos contos da seção “Pandora” e também se espalham pelo restante
da produção de Raul Pompéia (conforme veremos adiante, nos quarto
e quinto capítulos). O aspecto que o afasta do modelo realizado por
Edgar Allan Poe está, a nosso ver, na escolha temática, em que o “hor-
rível” reside na condição alienada do homem e na impossibilidade de
união entre o ideal e o real. Não que tal questão estivesse ausente das
considerações teóricas de Poe; muito pelo contrário, conforme demons-
tra Grojnowski (1996) em seu artigo “De Baudelaire à Poe: l’effet de
totalité”. Seus escritos teóricos estão impregnados de religiosidade, do
desejo de transcendência, da busca de uma arte que eleve a alma por
meio da revelação, da epifania da totalidade, motivo pelo qual todos
os elementos devem estar voltados para um único efeito final.

La « Création rytmique de la Beauté » (B., p.1023), qui provoque le


« sentiment poétique », se manifeste aussi bien dans la peinture, la sculptu-
re, l’architecture, la danse que dans l’art des jardins. Si Poe s’attache plus
particulièrement à la trouver dans la poésie et dans la musique, c’est qu’il
s’y manifeste à l’art pur. Alors que les autres modes d’expression s’adressent
plus particulièrement au coeur ou à la raison, qu’ils visent à représenter les
passions ou la vérité, la sort, l’esthétique de l’Unité et de la Totalité procède
d’un principe spirituel, elle profère une théologie.12 (ibidem, p.105)

Em razão, porém, das pressões do mercado, visto que o público


preferia obras de imaginação fantástica e de intrigas que se estendessem
por várias edições jornalísticas, Edgar Allan Poe “se travestit en auteur
de ‘série B’. [...] il recourt aux effets faciles qui ont fait leurs preuves,
fussent-ils les plus absurdes, grotesques ou singuliers”13 – considera

12 “A ‘Criação rítmica da Beleza’, que provoca o ‘sentimento poético’, manifesta-se


tanto na pintura, na escultura, na arquitetura, na dança como na arte da jardina-
gem. Se Poe se dedica mais particularmente a encontrá-la na poesia e na música, é
porque ele se manifesta aí como arte pura. Enquanto os outros modos de expressão
falam mais particularmente ao coração ou à razão, enquanto visam representar as
paixões ou a verdade, a sorte, a estética da Unidade e da Totalidade procede de
um princípio espiritual, ela profere uma teologia” (tradução do autor).
13 “se traveste em autor de ‘série B’. [...] ele recorre aos efeitos fáceis que mostram seu
valor por mais absurdos, grotescos ou singulares que sejam” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  109

Grojnowski (1996, p.107). Ironicamente, será Charles Baudelaire que,


ao traduzir seus textos críticos e literários e ao se apropriar da sua pro-
posta, invertendo a relação eixo-periferia da época (quando a Europa
era centro e a América era periferia), dará estatuto de arte superior à
forma arquitetônica da narrativa de efeito de totalidade:

De son côté, Baudelaire invente en France une forme brève, le «poème en


prose», dont il publie le premier ensemble dans le journal La Presse: cela afin
que la prose reprenne à la poésie son bien ! De nombreux écrivains de la sécond
moitié s’efforcent de la même manière de détourner à des fins esthétiques la
littérature de masse, par le travail de l’«écriture artiste».14 (ibidem, p.107)

Todorov (1980a, p.115), em seu artigo “Em torno da poesia”,


considera que Baudelaire era atraído pelo poema em prosa “na medida
em que este lhe permitia encontrar uma forma adequada (uma ‘cor-
respondência’) para uma temática da dualidade do contraste”, visto
que as mais importantes características de estilo observadas por ele
são a inverossimilhança, ou bizarria (segundo o próprio Baudelaire),
a ambivalência – em que “dois termos contrários [...] caracterizam
um único e mesmo objeto” (ibidem) – e a antítese, que se realiza por
meio da “justaposição de dois seres, fatos, ações ou reações dotadas
de qualidades contrárias” (ibidem, p.116). Tais características são
incontestáveis e revelam, mais uma vez, a maestria de sua análise; no
entanto, por causa do seu olhar predominantemente formalista, To-
dorov não percebe o motivo profundo que leva Baudelaire a explorar
a temática da dualidade do contraste e que se encontra justamente na
problemática da transcendência – que constitui o grande drama da sua
obra. Lembremos, para tanto, do famoso fragmento 22 do Atheneum,
de Friedrich Schlegel (1994, p.93): “transcendental é justamente o que
se refere à união ou separação do ideal e do real, poder-se-ia dizer que

14 “Por sua vez, Baudelaire inventa na França uma forma breve, o ‘poema em pro-
sa’, cujo primeiro conjunto ele publica no jornal La Presse: isto para que a prosa
absorva da poesia as suas vantagens! Numerosos escritores da segunda metade se
esforçam da mesma maneira para desviar para fins estéticos a literatura de massa,
por meio do trabalho da ‘escritura artística’” (tradução do autor).
110  MARCIANO LOPES E SILVA

a tendência para fragmentos e projetos é a componente transcendental


do espírito histórico”.
Conforme dissemos, o drama da transcendência é, provavelmente,
o principal tema da obra de Baudelaire, posto que o movimento de
ascensão e queda presente em inúmeros textos seus – o que leva Max
Milner (1974) a caracterizar seu estilo como uma “poétique de la chute”
– constitui um dos principais traços estético-ideológicos de sua obra.
O tema da impossibilidade da união entre o ideal e o real, ou, em
outras palavras, da realização dos ideais neste mundo, encontra-se
claramente nos contos “Impenitência”, “Glória latente” e “Comércio
de flores” (em que o ideal feminino da beleza e do amor é prostituído
pelo poder do capital), assim como nas crônicas “Povo extinto”, “Um
dia de esperança” e “Coroa de poeta” (cuja menção às auréolas do
poeta é uma clara referência ao poema “Perte d’auréole”, de Charles
Baudelaire). E por estar em inúmeros textos, podemos considerar
esse tema fundamental para a compreensão da obra de Raul Pompéia.
Entretanto, para melhor desenvolvermos nossas abordagens, deixare-
mos para discutir essa questão mais adiante, especialmente no quarto
capítulo, em que confrontaremos seus contos e poemas em prosa com
os poemas em prosa de Baudelaire.

A surpresa romântico-simbolista

Conforme cremos demonstrar, Raul Pompéia expressou, especial-


mente no espaço da seção “Pandora”, uma concepção teórica da arte
e da função crítica inovadora para sua época, pois concebia e avaliava
a obra literária fundamentando-se em conceitos que lhe contemplam
aspectos intrínsecos, considerando-a em sua autonomia e imanên-
cia. Lembremos que, na época, faltava, para a maioria dos críticos,
brasileiros ou europeus, um instrumental teórico que reconhecesse a
especificidade do literário, conforme observam Salete Cara (1983) e
João Alexandre Barbosa (1974). Por parte dos românticos brasileiros,
o grande critério de avaliação se encontrava na representação da “cor
local” e, para os críticos orientados pelo positivismo e/ou pelo deter-
O MAL DE D. QUIXOTE  111

minismo, o critério residia especialmente na capacidade de represen-


tação objetiva que, de modo geral, se traduzia pelo apego às fórmulas
científicas dominantes no meio acadêmico de então.
À parte as diferenças e divergências, ambas as correntes tratavam
a literatura como documento e buscavam nela a representação mais
fiel e adequada do caráter nacional, subordinando a criação literária
às questões extrínsecas pertinentes ao debate da nacionalidade. Em
contrapartida, a valorização do sentimento, da musicalidade, da liber-
dade de criação e a defesa da autonomia da obra de arte demonstram
a opção de Raul Pompéia pela estética simbolista em voga no final do
século XIX, mas cujas raízes se encontram no romantismo inglês e,
especialmente, no alemão, que se destacou no cenário internacional
graças ao exercício teórico fundamentado na filosofia. Essa atitude
singularizou a produção intelectual da escola de Jena, diferenciando-
a dos vários romantismos posteriores e tornando-a responsável pelo
lançamento das bases teóricas, posteriormente retomada por outros
românticos – o que Poe faz na América, por exemplo – e pelos sim-
bolistas franceses, em defesa da autonomia e da imanência da obra de
arte (Benjamin, 1999, p.80).
Ao rejeitar a leitura da mímesis como imitação da natureza e dos
clássicos, os românticos passaram a privilegiar a imaginação criadora,
realizando o que Costa Lima (1980) nomeia mímesis da produção. Dessa
forma, eles privilegiam a autonomia do artista em criar a sua obra de
acordo com o seu ideal estético, sem compromisso com a moralidade ou
com a verdade. Fazendo eco ao pensamento de Kant, propõe Friedrich
Schlegel (apud Lobo, 1987, p.63), no fragmento 252 do Athenaeum:
“uma filosofia da poesia como tal começaria com a autonomia do belo,
com a proposição de que a beleza é e deveria ser distinta da verdade e da
moralidade”. E é dessa perspectiva teórica que devemos compreender a
crítica de Raul Pompéia à definição que Molière dá à comédia. A recusa
da moralidade não deve ser interpretada como opção pela imoralidade
ou como total desprendimento com relação aos problemas sociais,
mas como recusa ao aparelhamento ideológico da arte; uma recusa à
sua mercantilização, por um lado, e ao uso político-pedagógico, por
outro. No entanto, tal postura na visão de Raul Pompéia não é levada
112  MARCIANO LOPES E SILVA

ao extremo do sacrifício da sensualidade e da emoção, conforme alme-


javam e defendiam os artistas que, especialmente na França, lutavam
pela consagração de uma estética “pura” cujo “estetismo levado ao
seu limite tende para uma espécie de neutralismo moral, que não está
longe de um niilismo ético” (Bourdieu, 1996, p.130).
A rejeição da mímesis realista, que vemos em nível teórico, também
se encontra na prática artística de Raul Pompéia, posto que, nos con-
tos analisados, pudemos observar vários procedimentos contrários à
representação realista vigente no século XIX. Entre eles, destaca-se o
privilégio dado à ação interna, ou seja, aos conflitos interiores, ou da
alma, conforme vimos nos contos “Crise de inverno”, “Mutismo” e
“Impenitência”. Deles podemos dizer o mesmo que Pompéia afirmou
a respeito dos Contos à meia tinta, de Domício da Gama, e dos Contes
psychologiques, de André Mellerio: voltam-se para as “miudezas do
mundo moral” de tal forma que, neles, o “espírito é todo o drama,
cenário e personagem”. Tal privilégio, que deslocou a perspectiva cen-
trada no objeto para o sujeito, decorreu da valorização da subjetividade
promovida pelos românticos, decadentistas e simbolistas. Atitude cujas
raízes se encontram na filosofia de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814)
e, de modo geral, no idealismo alemão, posto que essa corrente filosófica
vê o mundo como representação concebida a partir do Eu.
Outro aspecto romântico-simbolista de sua concepção da arte
encontra-se na valorização da musicalidade e do ritmo em detrimento
do verso e da métrica, tão importantes na poética de tradição clássica.
Embora, no final do século XIX, a luta por uma linguagem musical, su-
gestiva e livre da métrica seja realizada especialmente pelos simbolistas
(visto considerarem a música como a arte mais pura e, por isso, capaz
de melhor sugerir os sentimentos mais íntimos e indescritíveis), suas
raízes também se encontram nas teorias românticas – historicamente
bem anteriores. Para exemplificar, em uma das conferências de Viena,
August W. Schlegel (apud Wellek, 1967, p.48) considera a lírica como
“expressão musical de emoção na linguagem”. Sua opinião de que
originalmente a poesia, a dança e a música se encontravam unidas pela
força do ritmo (ligado à batida do coração, ao trabalho e à respiração)
encontra eco nas formulações de Raul Pompéia ([198?], p.49) sobre
O MAL DE D. QUIXOTE  113

a eloqüência nas artes, uma vez que ele considera que a eloqüência é
“a emoção que se manifesta [e] que se transmite”, sendo constituída
na música, na poesia e na palavra, igualmente pelo ritmo. Além disso,
é sabido que o poema em prosa, cuja realização Pompéia buscou em
Canções sem metro, tem início entre os românticos com Gaspar de la
nuit (1842), de Aloysius Bertrand, e “la prose immatérielle et musicale
des Filles du Feu” (Echelard, 1984, p.98) de Gérard de Nerval.
Juntamente com o ritmo, na formulação da idéia de “eloqüência”,
a valorização das “imagens” é outro aspecto bastante romântico,
principalmente quando lembramos que Raul Pompéia ([198?], p.57)
apresenta, como modelo, seu uso por Victor Hugo: “O grande fator do
pitoresco, da prosa, como do verso, são imagens no ritmo. [...] e pode
mesmo desta sorte representar o gênio, como em Hugo tão freqüente-
mente”. A concepção de que a imagem é “a analogia, a comparação, o
puro pensamento antes de ser idéia” (ibidem) é platônica e romântica,
também lançando raízes no idealismo alemão. Para August Schlegel
(apud Wellek, 1967, p.38), por exemplo, a poesia “deve apresentar
‘Idéias’, isto é, pensamentos e sentimentos necessários e eternamente
verdadeiros, pairando sobre a existência terrena, em imagens”. Tais
idéias, adotadas por Pompéia e visíveis nos contos que analisamos,
afastam-no radicalmente da estética realista-naturalista, posto que ela
rejeita por princípio o símbolo e a alegoria em detrimento da exatidão
fotográfica e da objetividade científica. Todavia, sua postura não está
isenta de contradições quando considerada em relação aos ideários
estéticos do romantismo e do simbolismo.
Para a maioria dos românticos, assim como para os simbolistas, a
alegoria não era bem vista, sendo depreciada pelo seu caráter didático
e sua arbitrariedade em detrimento do caráter universal e místico do
símbolo, que é considerado uma totalidade luminosa cuja significação
é motivada, de tal maneira que nele a Idéia se revela num momento
de epifania. Tal atitude, que se encontra impregnada de misticismo
e religiosidade, encontra-se relacionada à crença nas analogias e ao
desejo religioso de transcendência. Entretanto, Raul Pompéia pro-
cura justificar a idéia de correspondência entre sons, cores, perfumes
e sentimentos, apoiando-se, assim como os pintores impressionistas,
114  MARCIANO LOPES E SILVA

na ciência da física – que então descobrira que as cores resultam da


incidência e da vibração das ondas luminosas sobre os objetos. Não há
indícios de fundamentos místicos ou religiosos em suas considerações
críticas e teóricas. Talvez por isso não faça distinção de valor entre
símbolo e alegoria, conforme sugere a crônica parcialmente transcrita
aqui, visto que, nela, Raul Pompéia se posiciona a favor das duas com
o intuito de aperfeiçoar o estilo, unindo poesia e filosofia de modo a
produzir um leitor ativo. Lembremos que, nessa crônica, ele justifica
o uso da alegoria pelo fato de tornar “sempre mais sedutor esse cultivo
estudioso da filosofia das cousas em vez da análise direta das mesmas
(Pompéia, 1983, p.371) – atitude que é típica do romantismo alemão,
conforme observa Karin Volobuef (1999, p.71) ao tratar da renovação
estética promovida pelo grupo de Jena:

Percebe-se que o romântico não intenta satisfazer o leitor comum,


disposto apenas a servir-se da literatura como passatempo ou entreteni-
mento. Ele deseja, ao contrário, produzir um leitor intelectualmente ativo
que se disponha a aceitar o desafio de abordar o texto de modo crítico e
independente. Essa noção de interação entre texto e público mantém-se
ao longo do romantismo.

A indistinção entre símbolo e alegoria novamente aproxima os


valores estéticos de Raul Pompéia das idéias de Friedrich Schlegel e
da poesia de Charles Baudelaire. Em uma das passagens do Diálogo
sobre a poesia, o primeiro afirma: “Toda a beleza é alegoria. As coisas
supremas, precisamente porque inexprimíveis, só se podem exprimir
alegoricamente” (apud D’Angelo, 1998, p.139). No que se refere à
poesia de Baudelaire, também não encontramos distinção de valor
entre ambas as formas (Peyre, 1983; Balakian, 1985), o que pode ser
explicado pela crise da transcendência em sua poesia ou, conforme
argumentam Anna Balakian e Luiz Costa Lima, pela sua negação.

No último verso [do poema “Correspondances”], Baudelaire revela


que o segredo para atingir a sinestesia não reside na visão interior e seu
contato com o divino, mas na conexão da mente (l’esprit) com os sentidos
(le sens) por meio de um estímulo natural, como o incenso ou o âmbar. A
O MAL DE D. QUIXOTE  115

sinestesia é estritamente terrestre [...]. Não há aqui espiritualidade, mes-


mo quando muitos tradutores do famoso soneto de Baudelaire usaram a
palavra inglesa spirit (espírito), convertendo assim este poema bastante
sensual em um poema metafísico. (Balakian, 1985, p.33)
[...] no interior da situação pré-capitalista, os valores de orientação
religiosa constituíam a cúpula das representações sociais, estabelecendo
a articulação entre o espaço celeste e o espaço terreno. Esse contato era
assegurado fosse pelas orações, fosse pelas essências aromáticas. Com
Baudelaire, formula-se a ruptura. [...] As essências aromáticas não so-
bem aos céus, como oferenda, provas de respeito e amor. Ou circulam
no horizonte do mundo – o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso de
“Correspondances” – misturados a perfumes frescos ou corrompidos,
numa vaga religiosidade panteísta, ou remetem a uma circulação que se
encerra na estrita materialidade. (Lima, 1980, p.119)

Se encararmos o uso dos símbolos e das alegorias assim como o


das sinestesias da óptica da ciência romântica e de uma religiosidade
panteísta, veremos que a contradição entre o desejo de transcendência
e a crença nas correspondências universais, por um lado, e a atitude
científica, por outro, não é tão estranha e muito menos incomum. Para
os românticos, em geral, a religião importa em um sentido amplo, ou,
conforme a etimologia da palavra, como “re-ligação”, significando
muito mais um estado de espírito que “abarca o amor, a união de
todos os seres, a confluência de tudo no todo, ou seja, no absoluto”
(Volobuef, 1999, p.139), do que a crença em algum Deus racional e
onipotente. Não há necessariamente uma contradição entre o amor
que Raul Pompéia tinha pela ciência (atitude que é observada por seu
amigo Araripe Jr.) e sua concordância com a idéia das correspondências
universais, posto que os românticos nunca a rejeitaram em detrimento
de uma postura irracionalista. Tal idéia, que se alastrou entre a crítica
e os historiadores da literatura, não somente é equivocada, como tam-
bém injusta, pois desconsidera ou não reconhece que os românticos
repudiaram a atitude positivista de conceber a ciência e o universo,
mas não a ciência em si e muito menos a razão.
O que os românticos não aceitavam era a maneira mecanicista como
os cientistas concebiam a natureza, pois, contrariamente à objetividade
116  MARCIANO LOPES E SILVA

propugnada por eles, apresentavam uma concepção organicista do uni-


verso que não excluía a subjetividade na sua representação. Conforme
observa Bornheim (1978, p.96-7), essa concepção organicista, que
considera que todos os elementos do universo se encontram interliga-
dos, não somente foi defendida por Goethe, como também orientou
dois cientistas e professores de Novalis: Ritter, que lhe introduziu no
estudo do galvanismo, e o mineralogista e geólogo Werner.
Outro aspecto essencialmente romântico é a valorização do sen-
timento e da subjetividade do autor, visto que, para Raul Pompéia
([198?], p.49), não há obra de arte sem “o capricho do ritmo acomo-
dado aos períodos sentimentais da descrição”, sem “os parênteses da
personalidade do escritor, manifestados pelo modo especial de sentir
e pelo processo original de dizer” (ibidem, p.56). A valorização da
subjetividade é tão grande que, mesmo buscando um método crítico,
Pompéia lamenta “a missão ingrata da análise, que estraga a primavera
com a anatomia das flores” (ibidem, p.61). Idéia que se repete no artigo
intitulado “Club Haydn”, publicado no Jornal do Comércio em 2 de
setembro de 1883:

A tecnologia é o escalpelo da linguagem, que macera as cousas delica-


das, estuprando com a análise a virgindade das corolas [...].
Os jardins para os botânicos não têm flores, têm objetos de estudo.
A análise mutila o conjunto e o dispersa. A impressão artística é uma
síntese simultânea e chocante, que morre, desde que se queira apreender
por partes. (ibidem, p.34)

Nada mais romântico do que essa oposição entre ciência/tecnologia


e sensibilidade/imaginação. Apesar do seu esforço em definir alguns
conceitos teóricos que sirvam como instrumental crítico para a aná-
lise literária, seu desejo é navegar pela crítica impressionista,15 o que
é claramente expresso nesses dois textos. No artigo sobre as poesias

15 Não se confunda aqui crítica impressionista com o estilo de época do impres-


sionismo. A primeira diz respeito a um posicionamento crítico feito em bases
meramente subjetivas, sem o uso de métodos e critérios críticos cientificamente
estabelecidos.
O MAL DE D. QUIXOTE  117

de Olavo Bilac, Pompéia ([198?], p.61) afirma: “O melhor sistema de


apreciar um livro é o do leitor comum, que o sente desprevenido de
teorias, aferindo imediatamente pelo gosto e não pelas regras”. No
outro (“Club Haydn”), considera que, para “saborear uma impressão
sintética do conjunto, a preocupação do estudo deve ser posta de ban-
da. Daí, a inconveniência analítica da tecnologia, que é a classificação,
irrompendo na arte” (ibidem, p.34). Talvez por esse motivo, Raul
Pompéia tenha escrito tão poucos textos críticos e teóricos, deixando
para realizar a reflexão sobre a literatura no interior dela mesma, o que
novamente nos remete ao ideário romântico alemão e, especialmente,
ao famoso fragmento 117 do Lyceum:

Poesia só pode ser criticada por poesia. Um juízo artístico que não é,
ele próprio, uma obra de arte, seja em seu tema, enquanto exposição da
impressão necessária em seu devir, seja por meio de uma bela forma e um
tom liberal no espírito das velhas sátiras romanas, não tem, em absoluto,
direito de cidadania no reino da arte. (Schlegel, 1984, p.91)

Mas há uma outra razão possível e bem mais provável para a atitude
de inserir a reflexão estética no interior da obra de arte em detrimento
do seu exercício realizado exclusivamente no espaço destinado à crítica.
Considerando o público leitor e a função pedagógica (Eagleton, 1991;
Lima, 1980) que se esperava dela, uma vez que estava comprometida
com a formação da nova esfera pública burguesa, a solução encontrada
para evitar sua banalização foi a mesma que os poetas do simbolismo
e do decadentismo encontraram para evitar que sua arte se tornasse
mais uma mercadoria entre tantas na sociedade capitalista: torná-la um
conhecimento acessível somente aos iniciados, somente àqueles que ti-
vessem dispostos a digerir a fina iguaria da arte simbólica. Com relação
ao público leitor de que dispunha Raul Pompéia, a análise que segue,
retirada de uma crônica de Lívio de Castro datada de 1888 e publicada
no jornal Província de São Paulo, é bastante esclarecedora:

Eis ahi a verdade. As considerações que este documento pede não


podem caber aqui. Em outro ponto procurei desenvolvel-as. Resta-me
agora chamar a attenção para esta sythese: um deserto (0,78 de hab. por
118  MARCIANO LOPES E SILVA

kilom. quadr.) onde existe disseminada uma raça estropiada (1 aleijado


por 242 hab.), ignorante (78% analphabetos), e sem tendencias a sahir da
ignorância (12,7% dos meninos recebe instrucção), raça sem costumes
regulares, porque reproduz-se sem constituir família (68,03% solteiros),
e vive sem trabalhar (42,07%), tal é o Brazil, tal é o povo brazileiro.
(Castro, 1888a, p.1)

Quanto ao segundo aspecto, a análise que Terry Eagleton faz da


crítica inglesa nos primórdios do século XVIII é válida para a cena
cultural brasileira no período final do Império. Nesse momento, não
somente temos o início da construção de uma nova ordem burguesa
na sociedade brasileira, como também se encontra em primeiro plano
a polêmica em torno da necessidade de se consolidar uma identidade
e um Estado nacionais.

A essa altura, a crítica literária vista como um todo não é ainda um


discurso especializado e autônomo, ainda que ela assuma formas mais
técnicas; é antes um setor de um humanismo ético genérico, indissociável
da reflexão moral, cultural e religiosa. O Tatler e o Spectator são projetos
de uma política cultural burguesa cuja linguagem abrangente e sutilmente
homogeneizadora é capaz de abarcar a arte, a ética, a religião, a filosofia
e a vida cotidiana: não se cogita, aqui, de uma resposta “crítico-literária”
que não seja inteiramente determinada por toda uma ideologia social e
cultural. (Eagleton, 1991, p.12)

Apesar das suas preocupações de ordem nacionalista, Raul Pompéia


(1983, p.270) se recusava a subordinar a arte às necessidades políticas
do momento histórico, pois, conforme vimos, julgava que o “sapatão
rude da democracia que tão bem calça o pé grosso e lesto do princípio
político” lhe faz mal, pois essa é “habituada ao coturno de ouro dos
seus requintes”. Com essa atitude, ele salva a crítica do servilismo e
da banalidade, mas não consegue evitar o vazio do “esteticismo” que
Luiz Costa Lima (1980, 1993) aponta na crítica de arte moderna que se
elabora com base nos princípios estéticos do romantismo alemão. Para
legitimar-se, a crítica, assim como a arte, deve fugir ao embate mundano
cujos interesses de classes e ideologias lhe retiram a autonomia. Em
contrapartida, à medida que se afasta das ruas, a arte torna-se uma reli-
O MAL DE D. QUIXOTE  119

gião sem Deus, fantasia compensatória que, embora negue a sociedade


capitalista, não lhe oferece perigo algum. E a crítica, acompanhando-a,
torna-se um discurso especializado, acessível aos iniciados dispostos a
mergulhar nos segredos do texto sagrado da arte moderna.

[...] observa-se o preenchimento, quer pelo fazer poético, quer pela consi-
deração crítica do poético, de um substrato religioso. [...] Restabelece-se a
comunicação com o alto, sem que a experiência “religiosa” seja socializada.
O criador aparece como um indivíduo exemplar, que nos ensina a prática
de um culto fundamental privado: o culto da estesia. A estética, campo
onde se sistematizam os princípios deste culto, consolida a restauração da
boa ordem, i.e., a negatividade, permanente em toda a modernidade, do
poético não incomoda à perpetuação do status quo, desde que é o alimento
de um culto, que se quer meramente privado. (Lima, 1980, p.223)
3
Os sentidos da História

“Mil siglos han rodado


en columnas de fuego sobre el mundo
y el mundo amedrentado
ha visto, presagiando su caída,
de la nada en el piélago profundo,
media creación hundida.”
(Jose de Espronceda, “Revoluciones del globo”)

“Ouragans inconnus des débâcles finales,


Accourez! déchaînez vos trombes de rafales!
Prenez ce globe immonde et poussif! balayez
Sa lèpre de cités et ses fils ennuyés!
Et jetez ses débris sans nom au noir immense!
Et qu’on ne sache rien dans la grande innocence
Des soleils éternels, des étoiles d’amour,
De ce Cerveau pourri qui fut la Terre, un jour! ”
(Jules Laforgue, “Couchant d’hiver”)

“Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é


divertida, mas digere-me. ”
(Machado de Assis, Memórias póstumas
de Brás Cubas, palavras de Brás Cubas)
122  MARCIANO LOPES E SILVA

“Dis-moi donc si tu es la demeure du prince des ténèbres. Dis-


le mois... dis-le moi... océan (à moi seul, pour ne pas attrister
ceux qui n’ont encore connu que les illusions), et si le souffle de
Satan crée les tempêtes qui soulèvent tes eaux salées jusqu’aux
nuages. Il faut que tu me dises, parce que je me réjouirais de
savoir l’enfer si près de l’homme. Je veux que celle-ci soit la
dernière strophe de mon invocation. Par conséquent, une seule
fois encore, je veux te saluer et te faire mes adieux! [...] Faisons
un grand effort, et acomplissons, avec le sentiment du devoir,
notre destinée sur cette terre. Je te salue, vieil océan!”
(Conde de Lautréamont, Chants de Maldoror)

“Falais na indústria, no progresso? As máquinas são muito


úteis, concordo. Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se
mais pinturas e mármores – mas a arte – degenerou em
ofício – e o gênio suicidou-se. ”
(Álvares de Azevedo, Noite na taverna,
palavras de Macário a Penseroso)

Neste capítulo, tomaremos como corpus a crônica-ensaio “Cava-


leiros andantes”, a segunda conferência do professor Cláudio em O
Ateneu, e especialmente o livro Canções sem metro, uma vez que todos
os textos citados não somente apresentam como tema central a reflexão
sobre o sentido da história, mas também desenvolvem de maneira
dissertativa uma concepção filosófica sobre a questão. Entretanto,
antes de passarmos à análise e à discussão propriamente ditas sobre
o problema proposto, é importante discorrermos sobre Canções sem
metro, posto tratar-se de uma obra ímpar na literatura brasileira, além
de pouco conhecida do público e da crítica.

Um romance romântico

A originalidade de Canções sem metro em relação à obra de Raul


Pompéia e à literatura brasileira se deve a dois aspectos: por se apre-
sentar como uma narrativa poética composta de poemas em prosa e por
sua ambição cosmogônica, o que faz que se torne uma obra que reúne
O MAL DE D. QUIXOTE  123

em si, por um lado, prosa e poesia, lirismo, tragédia e epopéia, e, por


outro, arte, história e filosofia. Além disso, desconhece as fronteiras
de gêneros e apresenta uma estrutura inovadora, pois fragmentária e
cíclica. Ao abandonar a linearidade discursiva, Raul Pompéia opta
pela repetição de determinados temas e imagens de modo a garantir a
unidade da narrativa, o que aproxima a estrutura da obra das formas
da sonata e do poema sinfônico – que dela é derivado (Rosen, 2000).
Tudo isso faz que a arquitetura de Canções sem metro represente uma
tentativa – consciente ou não – de execução do projeto de romance
romântico concebido como poesia total por Friedrich Schlegel em sua
“Carta sobre o romance”, inscrita na Conversa sobre poesia, e em seus
fragmentos, especialmente no de número 116 do Athenaeum:

A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua deter-


minação não é apenas reunificar todos os gêneros separados da poesia e
estabelecer um contato da poesia com a filosofia e a retórica. Ela também
quer, e deve, fundir às vezes, às vezes misturar, poesia e prosa, genialidade
e crítica, poesia artística e poesia natural, tornar a poesia sociável e viva,
fazer poéticas a vida e a sociedade [...]. O gênero da poesia romântica
ainda está em evolução – esta, aliás, é sua verdadeira essência, estar sem-
pre em eterno desenvolvimento, nunca acabado. [...] A poesia romântica
é o único gênero que é mais do que um gênero, como que a própria arte
poética: pois num certo sentido toda poesia é, ou deveria ser, romântica.
(Schlegel, 1994, p.99-101)

Embora a expressão “romance romântico” pareça uma “tautologia


que nada diz”, conforme as próprias palavras de Friedrich Schlegel
(1994, p.67), ela contém em si a importante idéia de que nem todo
romance é romântico, e de que toda obra legitimamente romântica é
um romance, não precisando, para isso, ser uma narrativa em prosa.
Demonstra isso a opinião – compartilhada por vários membros da
escola de Jena – de que as grandes obras que encarnam o ideal esté-
tico romântico são o Wilhelm Meister de Goethe, A divina comédia
de Dante, o Paraíso perdido de Milton, Dom Quixote de Cervantes
e os dramas e tragédias de Shakespeare. Conforme observa Paolo
d’Angelo (1998, p.146), entre “narrações ordenadas, destinadas a
124  MARCIANO LOPES E SILVA

espelhar a vida e os costumes de personagens da sociedade do tempo,


uma dona-de-casa virtuosa, um enjeitado educado na alta sociedade,
um padre de província”, por um lado, e “obras de forma caótica,
entremeadas de episódios, digressões, intervenções do autor que
interrompem continuamente as convenções da narrativa”, por outro,
as preferências de Friedrich Schlegel vão todas para o segundo grupo,
que é formado por obras construtivamente livres, com um caráter
enciclopédico e, ao mesmo tempo, profundamente impregnadas de
história e filosofia.
No conjunto, Canções sem metro apresenta-se dividida em um
“Prólogo” mais cinco partes: I (“Vibrações”); II (“Amar”); III (“O
ventre”); IV (“Vaidades”) e V (“Infinito”). O “Prólogo” é composto
por uma citação da obra Métrique naturelle du langage (já apresentada
no capítulo anterior) de Paul Pierson, que discorre sobre a abolição
do metro em detrimento do ritmo, considerando-o como a unidade
fundamental da dança, do canto e da fala. Posteriormente ao “Pró-
logo”, cada parte é composta por diversos poemas em prosa, e a
primeira também pode ser considerada um grande poema em prosa
subdividido em unidades menores, cada uma tratando de uma cor,
conforme o simbolismo dessas e a idéia das correspondências uni-
versais contida na epígrafe retirada do poema “Correspondances”
de Charles Baudelaire: “Verde, esperança”; “Amarelo, desespero”;
“Azul, ciúme”; “Roxo, tristeza”; “Vermelho, guerra”; “Branco, paz”;
“Negro, morte”; “Rosa, amor”. As demais partes são compostas
pelos seguintes poemas, conforme segue:
II. Amar: “Inverno”, “Primavera”, “Verão”, “O outono”; “Ilusão
renitente”.
III. O ventre: “O mar”, “A floresta”, “Os animais”, “Os minerais”,
“Indústria”, “Comércio”, “O ventre”, “A noute”.
IV. Vaidades: “Vozes da vida”, “A arte”, “Mefistófeles”, “História
de Amor”, “Revoluções”, “Esperança”, “Veritas”, “Deserto”,
“Hamlet”.
V. Infinito: “Rumor e silêncio”, “Ontem”, “Hoje”, “Vulcão extinto”,
“Os continentes”, “Os deuses”, “Transit”, “Solução”, “Tormenta
e bonança”, “Conclusão”.
O MAL DE D. QUIXOTE  125

Conforme se pode intuir pelos títulos, a seqüência das partes e


poemas não apresenta uma história desenvolvida de modo linear,
aparentando organizar-se de modo temático. Entretanto, embora seja
possível observarmos temas unificadores para cada parte do livro, nem
sempre isso é muito visível e, em alguns casos, alguns poemas não se
encaixam perfeitamente sob o paradigma temático sugerido pelo título
do segmento em que se encontram. Nas partes II e III, o tema do amor
e a alegoria (ou metáfora) do ventre – que materializa o conceito de Von-
tade cunhado por Schopenhauer – nos remetem aos instintos do amor e
da nutrição que promoveram a evolução humana, conforme disserta o
professor Cláudio em sua segunda conferência em O Ateneu. Na parte
IV, o título sugere que sejam vaidades as aspirações e os sonhos humanos,
tais como o amor, a utopia revolucionária, a busca da verdade, a arte,
o progresso e o poder. Na parte V, apesar do título diverso que aponta
para uma transcendência, a maioria dos poemas tem por tema o desejo
do rompimento revolucionário com a barbárie histórica. Felizmente,
para melhor compreendermos a maneira como Raul Pompéia organizou
Canções sem metro, contamos ainda com o texto “Glória latente”, publi-
cado na seção “Pandora”. Nele, o narrador discorre sobre um projeto
literário que apresenta inúmeras semelhanças com a obra em questão,
de tal maneira que podemos considerá-lo um metatexto que expõe e
problematiza o projeto que animou a escritura de Canções sem metro:

O primeiro canto celebraria a Vontade e o Amor, inteligência e instinto,


as feições primordiais da existência poeticamente delimitadas e o encontro
destas energias, distintas, confundindo-se como sexos, ou divergindo
violentamente para promover os dramas da natureza e da humanidade.
A Vontade agita o caos; o Amor encaminha a agitação; a Vontade cria o
mundo, o Amor perpetua.
Concluiria por um quadro de terror dos homens pré-históricos nas
vésperas de um grande cataclisma... (Pompéia, 1983, p.121-2)
[...]
O canto segundo resumiria a construção histórica da Vontade: socieda-
de, impérios, as corrupções, as guerras acabando pelo espetáculo de Roma
espavorida, estalando as calçadas de mármore das praças sob o galope da
cavalaria dos bárbaros. (ibidem, p.122).
126  MARCIANO LOPES E SILVA

[...]
O canto terceiro seria a notícia épica dos fatos do Amor, religiões,
com o argumento das filosofias, perseguições, martírios, num quadro da
Idade-Média. Serviria de remate a agonia do último Cruzado em São
João d’Acre, velho, esquecido desde muito da sua dama, negando Deus,
prevendo e lamentando um futuro a chegar em que a Vontade predo-
minaria inteiramente, vestida na frase de todos os disfarces, saudando
enfim a Morte, a terrível amiga e conselheira, que havia de sugerir um
dia a verdade da vida como sugeriu as crenças vácuas e as meditações
inanes... (ibidem, p.123).

O recorte revela que o projeto poético do protagonista de “Glória


latente” apresenta muitas semelhanças com relação à arquitetura
de Canções sem metro, pois encontramos afinidades com respeito à
estrutura, aos temas e ao princípio filosófico que as orienta – con-
forme veremos, ambas comungam do conceito de Vontade cunhado
por Schopenhauer. A imensa semelhança entre a estrutura sonhada
para o poema esboçado em “Glória latente” e a estrutura de Can-
ções sem metro é um aspecto decisivo que demonstra não somente
a intertextualidade entre os dois textos, como também o caráter de
ensaio literário do poema em prosa “Glória latente”. De modo geral,
o primeiro canto corresponde à parte II (“Amar”), o segundo à parte
III (“O ventre”) e o terceiro à parte IV (“Vaidades”). Na parte II,
temos os poemas que apresentam os ciclos da natureza, as estações
do ano, o amor, o cio e a vida que nasce, morre e renasce da verde
primavera, e que, ao final, em “Ilusão renitente”, ressurge com a
esperança do amor após o cataclismo final. Na parte III, temos “a
construção histórica da Vontade”, que se realiza por meio das nave-
gações (“O mar”), da mineração (“Os minerais”), das lutas de classe
(“A floresta”), da indústria (“Indústria”) e do comércio (“Comér-
cio”), Vontade cuja representação se encontra na alegoria do ventre
(“O ventre”). Na parte IV, temos o registro dos fatos do amor, das
religiões, das ciências e das filosofias, fatos que se traduzem na eter-
na busca da verdade (“Mefistófeles”) e da redenção, especialmente
por meio das revoluções (“Revoluções”, “Esperança”, “Veritas” e
“Hamlet”). Mas o que predomina é o sentimento de que, apesar de
O MAL DE D. QUIXOTE  127

todos os esforços, a humanidade caminha para a morte, “prevendo


e lamentando um futuro a chegar em que a Vontade predominaria
inteiramente”. Sentimento doloroso constantemente expresso no
riso amargo das ironias que encerram os poemas em prosa e que são
produzidas por algum dito espirituoso e sarcástico invariavelmente
localizado no(s) parágrafo(s) final(is).
Com respeito à concepção da linguagem, a proximidade entre
ambas as obras também ocorre, mas a relação contratual entre Can-
ções sem metro e a estética simbolista que permeia o projeto poético
esboçado em “Glória latente” é, neste ponto, bem mais complexa.
Conforme já comentamos no capítulo anterior, em “Glória latente”
o protagonista tem uma concepção simbolista da arte e da linguagem,
pois almeja a arte pura, livre de qualquer função e fins mercadológi-
cos. Para isso, busca uma linguagem em que os vocábulos estejam
livres das camadas de significados que os envolvem ideologicamente.
Busca a palavra original, o pensamento antes de ser idéia, o verbo em
sintonia com o cosmos, límpido como um diamante. Busca, portanto,
uma linguagem pura que, por ser assim, possibilite a união com o
cosmos por meio das correspondências universais, conforme pro-
punham os artistas simbolistas contemporâneos de Raul Pompéia.
Para tanto, compare-se o trecho a seguir, de “Glória latente”, com o
seguinte, retirado de Le Traité du Narcisse (1891) de André Gide:

[...] seria poeta como um forte na barbaria primeira, antes da lingua-


gem. Que sólido descanso repousar a mediocridade obscura sobre a
força que produziria um universo! Tranqüilizar a inércia sobre a glória
do poder!
O poema voltaria ao cristal como à gota escapada à pena. Não baixaria
à fórmula. Ignorá-lo-ia o mundo. (Pompéia, 1983, p.124)

Le Poète pieux contemple; il se penche sur les symboles, et silencieux


descend profondément au coeur des choses, – et quand il a perçu, visio-
nnnaire, l’Idée, l’intime Nombre harmonieux de son Être, qui soutient la
forme imparfaite, il la saisit, puis, insoucieux de cette forme transitoire qui
la revêtait dans le temps, il sait lui redonner une forme éternelle, sa Forme
véritable enfin, et fatale, – paradisiaque et cristalline.
128  MARCIANO LOPES E SILVA

Car l’oeuvre d’art est un cristal – [...] où les phrases rythmiques et sûres,
symboles encore, mais symboles purs, où les paroles se font transparentes et
révélatrices. (Gide, 1912, p.24)1

Apesar de a concepção de linguagem esboçada ser claramente


simbolista, “Glória latente” e Canções sem metro traem em grande
medida o desejo de realização de uma linguagem pura, marcada-
mente musical e sugestiva. Embora a forma cíclica e fragmentária
aliada à musicalidade da prosa poética esteja em conformidade com
os princípios estéticos do simbolismo, o abundante uso da retórica
vai de encontro a esses princípios. Contradição duramente criticada
por Maria Luiza Ramos [1957?] e Massaud Moisés (1984, [19--]),
que consideraram Canções sem metro uma obra malograda pelo fato
de não se realizar de acordo com os valores estéticos simbolistas que
julgam orientá-la. O mesmo acontece em relação ao uso da alegoria,
que contradiz a preferência dos simbolistas pelo símbolo, “d’où,
palpitante pour le rêve, en son intégrité nue se lévera l’Idée prime et
dernière, ou Vérité”,2 conforme propunha René Ghil em seu Traité
du Verbe (apud Michaud, 1995, p.406).
De nossa parte, não concordamos plenamente com tal juízo
crítico, pois não consideramos que Raul Pompéia tenha realizado
a referida obra identificando-se unicamente com a estética simbo-
lista. É claro que ele estava a par desses valores, absorvendo-os em
grande número. Entretanto, não devemos esquecer que eles já se
encontravam no romantismo e que a revolta romântica traduziu-se
em uma literatura muito mais comprometida com a reflexão, a crí-

1 “O poeta piedoso contempla, ele se dobra sobre os símbolos, e silencioso desce


profundamente ao coração das coisas, e no momento em que percebeu, visionário,
a Idéia, o íntimo Nome harmonioso do seu Ser, que sustenta a forma imperfeita,
ele a toma, pois, despreocupado desta forma transitória que a reveste no tempo,
ele sabe lhe devolver uma forma eterna, sua Forma verdadeira enfim, e fatal, –
paradisíaca e cristalina. / Porque a obra de arte é um cristal – [...] onde as frases
rítmicas e certas, símbolos ainda, mas símbolos puros, onde as falas se fazem
transparentes e reveladoras” (tradução do autor).
2 “de onde, palpitante pelo sonho, em sua integridade nua se elevará a Idéia primeira
e última, ou Verdade” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  129

tica e a ação política, diversamente da literatura simbolista. Nela, a


revolta contra o sistema capitalista se expressou em maior medida
por meio da evasão e da busca de uma arte pura, acentuando o mis-
ticismo, a religiosidade, a fantasia e a dimensão onírica já presentes
no romantismo (Tieghem, 1940, 1948; Béguin, 1946, 1973; Moreau,
1957; Peyre, 1975) – o que levou a um gradativo distanciamento das
questões sociais e à posterior recusa de representar o mundo e os
conflitos humanos. Em comparação com a poesia do simbolismo, “la
poésie romantique restait tout imprégnée d’éloquence, et les flots de son
lyrisme charriaient avec eux mille impuretés”3 (Michaud, 1995, p.391).
E isso é o que acontece em Canções sem metro. Ao mergulhar numa
visceral reflexão sobre a condição humana e os possíveis sentidos da
história, Raul Pompéia produz uma obra impregnada de revolta. E
para realizar essa reflexão, mescla inúmeros estilos, entre os quais se
encontram os da dissertação filosófica e da eloqüência política, por um
lado, e os do lirismo e do drama, por outro. E seja em um ou em outro
caso, o estilo é sempre caracterizado pela eloqüência retórica, pela
palavra que vibra, como se saísse de um cronista exaltado, dos lábios
de um orador político, ou de um ator que interpretasse algum dos
trágicos heróis de Shakespeare, senão o próprio personagem Fausto.
Essa maior proximidade com a estética romântica, que acreditamos
ocorrer, é mais visível quando consideramos a ironia romântica e o
fragmento que, aliados, conferem o caráter de Witz aos poemas em
prosa de Canções sem metro.
Conforme propõe Friedrich Schlegel (1994, p.103, Athenaeum,
fragmento 206) com respeito à estética do fragmento, cada um é
“como uma pequena obra de arte, inteiramente isolado do mundo
circundante e completo em si mesmo, como um ouriço”. Essas peque-
nas peças arquitetônicas e, portanto, autônomas sempre se encontram
carregadas de ironia romântica. Isso é perceptível no dito espirituoso
que encerra cada poema (normalmente destacado graficamente por
um espaçamento maior) e que invariavelmente reside na contradição

3 “a poesia romântica estava toda impregnada de eloqüência, e as ondas de seu


lirismo carregavam consigo milhares de impurezas” (tradução do autor).
130  MARCIANO LOPES E SILVA

entre os ideais, ou a Idéia, e a realidade, de modo que sua realização


nos remete a uma poética da transcendência, conforme anteriormente
observamos com respeito aos contos.
Podemos afirmar, em conformidade com as considerações de
Victor-Pierre Stirnimann (in Schelegel, 1994, p.23) e Javier Arnaldo
sobre o Witz, que cada poema em prosa encerra em si “uma síntese
original que revela um ângulo novo, denunciando a insuficiência do
verbo, da própria finitude, pelo acoplamento inesperado e sugestivo
de conceitos desarmônicos ou opostos”.

Otra de las nociones acuñadas por Schlegel es el Witz, que se corres-


ponde a la palabra española chiste, pero que aquí contiene el sentido doble
del término gracia. El Witz es para Schlegel la facultad de creación libre
del mundo que acaece a partir de la disposición irónica. Como fuerza de
vinculación, el Witz dota a este mundo de finalidad y universalidad, y
mantiene en él la referencia de totalidad “por la tenaz orientación hacia un
ponto”. Su definición más inmediata es “explosión de espíritu compacto”,
fuerza de la combinatoria que gana cohesión para los elementos disgregados
por el desplazamiento irónico.4 (Arnaldo, 1994, p.13)

O Witz e a ironia romântica alinham Canções sem metro com o


romantismo, especialmente o alemão, pois, em acordo com o ponto
de vista de Guy Michaud (1995, p.16-17), consideramos que o racio-
nalismo da escola alemã e sua ironia são atitudes que a singularizam
perante o simbolismo:
On voit jusqu’à quelles régions inexplorées se sont aventurés ces pioners
d’une poésie mystique et « transcendentale »: émotion spirituelle, poésie fan-
tastique, délire prophétique, symbole, poésie-musique: prémisses d’un siècle
d’efforts vers les symbolisme et la poésie pure.

4 “Outra das noções cunhadas por Schlegel é o Witz, que corresponde à palavra
espanhola chiste, que entretanto contém aqui o sentido duplo do termo graça.
O Witz é para Schlegel a faculdade de criação livre do mundo que se sucede a
partir da disposição irônica. Como força de vinculação, o Witz dota este mundo
de finalidade e universalidade, e mantém nele a referência de totalidade ‘através
da tenaz orientação para um ponto’. Sua definição mais imediata é ‘explosão de
espírito compacto’, força da combinatória que confere coesão aos elementos
desagregados pelo deslocamento irônico” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  131

Mais constamment, au cours de ces explorations audacieuses, et par


un besoin presque maladif de se juger sans cesse de peur d’être dupe, le
Romantisme allemand fait retour sur lui-même, pratiquant cette « ironie »
qui reste l’une de ses caractéristiques maîtresses. C’est peut-être à cause de
celle-ci qu’un tel mouvement n’a pas entièrement tenu ses promesses. En proie
au doute insensé de soi, dans un « incurable déchirement de l’être, partagé
entre le Rêve et la Réalité », il n’a pas su dépasser ce rêve. Rejoindre l’unité
de l’esprit et du réel extérieur ne fut pour lui qu’un espoir. [...] « Littérai-
rement », selon Nietzsche, le Romantisme allemand « est resté une grande
promesse », la promesse de ce qu’une autre poésie allait tenter à son tour
quelque soixante-quinze ans plus tard.5

As recorrentes alegorias em Canções sem metro constituem uma


maneira de instaurar o sublime natural, seja pelo processo metafórico,
seja pelo processo metonímico, pois, conforme Weiskel (1994, p. 50),
enquanto o sublime metafórico opera por meio da desordem da simi-
laridade, o sublime metonímico opera pela desordem da continuidade.
No primeiro caso, “o sujeito perde a capacidade de substituir termos
associados na cadeia contínua do discurso”. No segundo, “o discurso
do sujeito é descontínuo e as operações necessárias ao sintagma (gra-
mática, sintaxe, continuidade, contexto) são suprimidas” (ibidem,
p.50). Com a repetição das alegorias, desloca-se o “excesso de signi-
ficado para uma dimensão de continuidade que pode ser espacial ou

5 “Vê-se até quais regiões inexploradas se aventuraram estes pioneiros de uma


poesia mística e ‘transcendental’: emoção espiritual, poesia fantástica, delírio
profético, símbolo, poesia-música: premissas de um século de esforços em direção
ao simbolismo e à poesia pura. / Mas constantemente ao longo destas explorações
audaciosas, e por uma necessidade quase mórbida de se julgar sem cessar por medo
de estar enganado, o Romantismo alemão dobra-se sobre si mesmo, praticando
esta ‘ironia’, que é uma de suas grandes características. Este pode ser o motivo
pelo qual tal movimento não realizou plenamente suas promessas. Vitimado
pela dúvida insensata de si, em um ‘incurável dilaceramento do ser, dividido
entre o Sonho e a Realidade’, ele não pôde ultrapassar esse sonho. A reunião do
espírito e da unidade exterior não foi para ele mais do que uma esperança [...]
‘Literariamente’, segundo Nietzsche, o Romantismo alemão ‘permaneceu uma
grande promessa’, a promessa daquilo que uma outra poesia tentaria realizar ao
seu modo sessenta e cinco anos mais tarde” (tradução do autor).
132  MARCIANO LOPES E SILVA

temporal” (ibidem, p.49), produzindo-se o estranhamento necessário


à ruptura da segunda fase de organização do momento sublime (ibi-
dem, p.42-3). Entretanto, os momentos de integração com a totalidade
ou de dissolução da subjetividade e renúncia ao desejo são contraditos
pela ironia. Dessa forma, cada poema torna-se um Witz cuja tensão
resultante é similar àquela observada por Walter Benjamin, segundo
Gagnebin (1994, p.60) em Les fleurs du mal.

Benjamin descobre a arquitetura secreta das Flores do Mal na oposi-


ção central entre o tempo vazio e devorador da modernidade e o tempo
pleno e resplandecente de um lembrar imemorial, ou melhor, a própria
temporalidade moderna se define por este contraste, como se a fé perdida
num paraíso a vir tivesse se transformado na persistente nostalgia de um
paraíso de outrora. Benjamim lê esta tensão até no título do primeiro livro
das Flores do mal, Spleen e Ideal. O Ideal remete a uma harmonia perdida
que a palavra poética se esforça em evocar, harmonia entre a linguagem da
natureza e a linguagem do homem, dos sentidos entre eles, do espírito e da
sensibilidade, como proclama o soneto das “Correspondências”.

Por considerar a impossibilidade de realização do ideal simbolista,


a impossibilidade de cunhar a palavra pura que revele a Idéia, o prota-
gonista de “Glória latente” desiste da sua obra: “satisfeito de conservar
a psique no mistério da renúncia... / Renunciou” (Pompéia, 1983,
p.124). Entretanto, cônscio da impossibilidade do projeto, Raul Pom-
péia não renuncia à realização de Canções sem metro – embora tenha se
matado antes de publicá-la. Em contrapartida, adere à ironia român-
tica, capaz de revelar tanto a loucura de tal ideal estético-ideológico
como também o desejo de realizá-lo, deixando no lugar dele um vazio
a ser preenchido pelo leitor.

A infernal roda da história

A visão da história e do universo presente em Canções em metro é


profundamente marcada pela filosofia de Schopenhauer, o que pode
ser observado em diversos níveis de composição do texto, revelando-se
O MAL DE D. QUIXOTE  133

tanto em vários motivos temáticos como nas estruturas de repetição


que, segundo Sônia Brayner (1979c, p. 256), estão intimamente ligadas
ao princípio voraz da Vontade. Tal princípio, que é central na filosofia
dele, encontra, em Canções sem metro, um correlato objetivo no “caráter
cíclico das composições, em que são retomados os motivos iniciais
como chave final” (ibidem, p.235), e na alegoria do “Ventre”.

A atração sideral é uma forma do egoísmo. O equilíbrio dos egoísmos,


derivado em turbilhão, faz a ordem das cousas.
Passa-se assim em presença do homem: a fúria sedenta das raízes pe-
netra a terra buscando alimento; na espessura, o leão persegue o antílope;
nas frondes, vingam os pomos assassinando as flores. O egoísmo cobiça a
destruição. A sede inabrandável do mar tenta beber o rio, o rio pretende
dar vazão às nuvens, a nuvem ambiciona sorver o oceano. E vivem per-
petuamente as flores, e vivem os animais nas brenhas, e vive a floresta; o
rio corre sempre, a nuvem reaparece ainda. Esta luta de morte é o quadro
estupendo da vida na terra; como o equilíbrio das atrações ávidas dos
mundos, trégua forçada de ódios, apelida-se a paz dos céus.
A fome é a suprema doutrina. Consumir é a lei. (Pompéia, 1982a, p.71)

Considerando o poema em prosa citado, cujo título é “Ventre”, não


há como não relacionar a citada alegoria com a idéia de “Vontade” formu-
lada na filosofia de Schopenhauer. A metáfora da nutrição, presente aqui,
também se encontra na afirmação de que “a vontade deve alimentar-se
dela mesma, visto que, fora dela não existe nada, e ela é uma vontade
esfomeada” (Schopenhauer, [19--], p.201). Comparando o poema com
a seguinte passagem de O mundo como vontade e representação, podemos
ver a forte equivalência de idéias com relação à ordem do cosmos:

Assim, em toda a parte na natureza, nós vemos luta, combate, e al-


ternativa de vitória [...] Cada grau da objectivação da vontade disputa ao
outro a matéria, o espaço e o tempo. A matéria deve mudar constantemente
de forma, atendendo a que os fenômenos mecânicos, físicos, químicos e
orgânicos, segundo o fio condutor da causalidade, [...] disputam-na entre
si obstinadamente para manifestar cada um a sua idéia. [...] cada animal
deve abandonar a matéria pela qual se representava a sua idéia, para que
um outro se possa manifestar, visto que uma criatura viva só pode manter
134  MARCIANO LOPES E SILVA

a sua vida à custa duma outra, de modo que a vontade de viver se refaz
constantemente com a sua própria substância e, sob as diversas formas que
reveste, constitui o seu próprio alimento. (Schopenhauer, [19--], p.192)

Assim como a “Vontade”, o “Ventre” é apresentado como o prin-


cípio único que rege todo o movimento universal. E a idéia de um
tempo circular regido pela natureza é uma constante tanto na obra
de Schopenhauer como em Canções sem metro, apresentando-se, na
segunda, como motivo central na parte intitulada “Amar”, posto que
é significativamente composta por poemas em prosa cujos títulos –
excetuando o último – nos remetem aos ciclos das estações: “Inverno”,
“Primavera”, “Verão” e “Outono”. Como não poderia deixar de ser,
a moral dessas composições é que o nascimento e a morte se sucedem
infinitamente numa “maternidade sem ventura” (Pompéia, 1982a,
p.57). Por isso o destino da humanidade, assim como o do amor, é
“arder, arder e morrer, como o fogo que cresce, cresce e de si mesmo
morre” (ibidem, p.56), sem que o homem possa compreender por que
“renasce do triste inverno a verde primavera” (ibidem, p.57).

O esforço da matéria só pode ser contínuo, ele nunca pode ser realizado
nem satisfeito. É o que ele tem de comum com todas as forças que são
manifestações da vontade: a finalidade que ela atinge é sempre apenas o
ponto de partida de uma nova corrida, e isto até ao infinito. A planta, que
é uma destas manifestações, desenvolve-se e forma, do bolbo primitivo,
a haste, as folhas, as flores, os frutos: mas o fruto é ele próprio origem
dum novo bolbo, dum novo indivíduo, que recomeça a percorrer o velho
caminho, e isso eternamente. (Schopenhauer, [19--], p.214)

Segundo tal perspectiva, a história é naturalizada, posto que o devir


da humanidade não escapa às leis do movimento universal que esta-
belece as correspondências entre todos os elementos cósmicos. Daí o
significado da parte I de Canções sem metro, intitulada “Vibrações”, que
tem por epígrafe os versos do poema “Correspondances” de Charles
Baudelaire: “Comme de longs échos qui de loin se confondent / Dans une
ténébreuse et profonde unité, / Vaste comme la nuit et comme la clarté,/
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent”. Na parte I, assim como
O MAL DE D. QUIXOTE  135

na II, a obra apresenta ao leitor, antes mesmo de iniciar a narrativa do


“Gêneses” (que ocorre na parte III), os princípios do eterno retorno
e das analogias universais que regem o movimento do cosmos e, por
conseguinte, da espécie humana no transcorrer da história.
Essa concepção mítica e pagã do tempo – cujas raízes remontam ao
pensamento grego da Antiguidade (Löwith, 1991; Marramao, 1995;
Le Goff, 1996) – é constantemente reafirmada em Canções sem metro.
Do mesmo modo que o poema “Ilusão renitente” nos remete ao tempo
da origem e encerra o ciclo de poemas da parte II, também os poemas
finais do livro novamente nos levam ao início da narrativa e ao estado
edênico do mundo. Tempo em que o mar e a amplidão azul se encon-
travam desprovidos de máculas. Mas esse tempo originário possui uma
dimensão catastrófica, pois sempre aparece como a bonança que vem
após o caos original, ou seja, após o cataclismo resultante da revolta
da natureza ante a perversão da humanidade – conforme podemos ler
claramente em “O mar”, poema que abre a parte III:

Outrora, contra a maldade humana, indignou-se o mar. Ingênuo


moralista, educado na contemplação constante das serenas esferas, sentiu
que era muita a perversão dos homens.
E os homens com terror viram erguer-se contra eles a cólera das águas.
O mar cresceu, cresceu. (Pompéia, 1982a, p.63)

É deveras significativo que a epígrafe do poema “O mar” seja re-


tirada do capítulo 7, versículo 22, do “Gêneses”, pois essa passagem
bíblica narra o dilúvio enviado pelo Senhor com o objetivo de purificar
a sua criação. E conforme observamos antes, os motivos do cataclismo
e do eterno retorno associados à idéia de decadência das civilizações são
claramente legíveis especialmente nos poemas “Os continentes”, “Tor-
menta e bonança” e “Conclusão” – das duas últimas partes do livro.
No penúltimo poema, intitulado “Tormenta e bonança”, novamente
encontramos a alegoria do cataclismo resultante da revolta divina das
águas contra os “ignotos litorais” (Pompéia, 1982a, p.99) que o restrin-
gem. Após a tempestade, retorna “o firmamento à limpidez da bonança.
Ao mar, aos homens, reapareceu, sem mácula, a amplidão do azul”
(ibidem, p.100) – conforme lemos no último poema: “Conclusão”.
136  MARCIANO LOPES E SILVA

Serena o mar...
Torna o firmamento à limpidez da bonança. Ao mar, aos homens,
reapareceu, sem mácula, a amplidão do azul.
Sem mácula!
[...]
Estrela, nuvem – nuvem que passa, estrela que arde.
Sobre o céu eterno destaca-se bem a antítese destas criações diversa-
mente efêmeras do Mistério. Supremo ensino das cousas!
Em vivo contraste, sobre o fundo obscuro do tempo intérmino – a
nulidade real dos múltiplos aspectos cambiantes das existências.
O céu, como uma fábula, tem esta moralidade. (ibidem)

A circularidade do tempo físico da natureza, que se estende à


humanidade e às civilizações, resulta em uma concepção do tempo
histórico que prevê tanto o progresso quanto a decadência, uma vez
que a circularidade da vida pressupõe nascimento, desenvolvimento
até a maturidade, depois decadência e morte. Da mesma forma que se
extinguem “para sempre os castelos de chamas que se erguiam sobre
a cratera” (ibidem, p.92) do vulcão extinto, também se extinguem as
grandes civilizações, conforme é sugerido no poema “Os continentes”,
cujo tema é o desaparecimento de Atlântida:

Atlântida! Atlântida!
Onde estão agora as florestas, as torrentes caudais, as cidades, os
reinos? Onde os homens, os rebanhos, as feras? Monumentos, grandeza,
poderio, exércitos, ciências, e as gloriosas artes?... Onde jaz sepultado o
gênio humano, fertilizador das regiões desaparecidas? Que é feito das
próprias ruínas? [...] E as montanhas, que suspeitávamos eternas, na
audaciosa majestade da pedra, familiares entre a águia e o raio, como
Júpiter Deus?! (ibidem, p.93)

O tema da decadência das civilizações também se encontra no


poema “Deserto” (ibidem, p.84), que faz menção ao desaparecimento
do império egípcio. Nele, as pirâmides não são apenas ruínas que nos
lembram a fugacidade de todas as coisas, mas são também alegorias
da história em seu eterno movimento de ascensão e queda. Perante a
infinitude do cosmos, “onde os cometas cruzam-se como espadas fan-
O MAL DE D. QUIXOTE  137

tásticas de arcanjos em guerra” (ibidem, p.89), tudo na Terra é ínfimo e


perecível; tanto o tumulto dos cataclismos como o das revoluções e das
conquistas humanas. E tal moralidade, que é o tema central de “Rumor
e silêncio” (ibidem) e de toda a última parte da obra, cujo título, aliás, é
“Infinito”, permite compreendermos o título da penúltima parte, que é
“Vaidades”: a riqueza, a luxúria, o poder, o conhecimento, o amor e até
mesmo a arte são vaidades, pois o prazer deles decorrente é passageiro
como tudo no universo. Em suma, tudo nesta vida é ilusório, conclusão
que novamente faz eco à filosofia de Schopenhauer.
O desencanto com as revoluções é um tema importante da crônica-
ensaio “Cavaleiros andantes”. Nela, lemos que, apesar dos diversos ide-
ais pelos quais lutaram os homens, “o engano permanece”: “A história é
a mesma, desde a conquista de Roma, [...] até às loucuras cavalheirescas
dos cruzados, [...] até às revoluções modernas dos igualitarismos”
(Pompéia, 1981c, p.205). Esse desencanto também está presente na
segunda conferência do professor Cláudio. Segundo ele, entre os mais
altos ideais que guiaram a humanidade – e que são motivos de dor e
desespero – estão o amor e a busca da sabedoria, o desejo de desvendar
os mistérios do universo. Entretanto, o amor degrada-se na mesma pro-
porção em que a humanidade se desenvolve materialmente. O segundo
resulta no desenvolvimento das religiões, da indústria e do comércio,
todos responsáveis – juntamente com o tempo físico – pela corrupção e
decadência das sociedades. Isso acontece porque, segundo a teoria evo-
lucionista apresentada pelo personagem, a evolução da espécie decorre
da sua necessidade de adaptação ao meio, o que se realiza guiado pelos
instintos da “nutrição” e do “amor”. Regidos por esses dois instintos
fundamentais, os sentidos realizam a “seleção do agradável”, residindo
a diferença entre os homens e os animais no “misterioso fenômeno da
personalidade, capaz de fazer a crítica do instinto, como o instinto faz
a crítica da sensação” (Pompéia, 1981b, p.155-6):

A nutrição reclamou a caçada fácil – inventaram-se as armas; o amor


pediu um abrigo, – ergueram-se as cabanas. A digestão tranqüila e a perfi-
lhação sem sobressaltos precisaram de proteção contra os elementos, contra
os monstros, contra os malfeitores, – os homens tacitamente se contrataram
138  MARCIANO LOPES E SILVA

para o seguro mútuo, pela força maior da união: nasceu a sociedade, nasceu
a linguagem, nasceu a paz e a primeira contemplação. (ibidem, p.156)

A idéia de que o amor se degrada em volúpia e luxúria surge na


conferência quando o professor considera que o instinto sexual aliado
à ambição e à inteligência, resultantes do “misterioso fenômeno da
personalidade”, permitem ao homem “a crítica da sensação” e o levam
à busca incessante de novos prazeres. E dessa busca resulta a luta pelo
poder e, por conseguinte, a guerra e a cisma entre os homens:

Mas era preciso que fossem leitos de amor as crinas de ouro e fogo dos
leões, e que houvesse marfim, metais luzentes, pedraria sobre a alvura
Láctea da carne amada, que não bastavam beijos para vestir; era preciso
deliciar a gustação, com o requinte das estranhezas. [...]
Urgiu ainda a fome, urgiu mais o amor e veio a guerra, a violência, a
invasão. Curvaram-se os cativos ao látego vencedor e foram abatidas as
escravas sob a garra da lascívia sanguinária [...] Formaram-se os ódios
de raça, as opressões de classe, as corrupções vingadoras e demolidoras.
(ibidem, p.156-7)

Outra idéia muito presente em Canções sem metro é a de que o conhe-


cimento científico, assim como o metafísico, também é ilusório, pois todo
o esforço humano voltado para a compreensão do inefável, para a elevação
espiritual ou para o progresso resultante do domínio sobre a natureza é
constantemente representado como um sofrimento inútil e tolo. Essa
temática, tão cara ao romantismo e ao Fausto de Goethe, encontra-se nos
poemas “Transit” e “Solução”, da parte V (“Infinito”), e “Mefistófeles”,
da parte IV (“Vaidades”). Neste último, Mefistófeles questiona a ambição
de Fausto, colocando em xeque todo o seu esforço intelectual:

Em que deram tantas canseiras espirituais? A contemplação arrogante


da luz deixou-te cego! Anda, pois! Desiste do empenho... Sem asas de
águia, as águias rastejariam. Não te iluda o surto aparente da imaginação!
– em verdade, o espírito rasteja. A inteligência, queres saber! É o próprio
inferno. (Pompéia, 1982a, p.78)

No poema “Solução”, mais uma vez ocorre a intertextualidade com


o Fausto. Nele, novamente encontramos uma voz que, assim como o
O MAL DE D. QUIXOTE  139

protagonista da obra de Goethe, desabafa sua frustração na incessante


busca da verdade sobre o universo. No final, lhe responde o “gênio negro”:
“Nunca!” (ibidem, p.98). Assim como vimos no poema “Mefistófeles”,
a ambição humana de desvendar os segredos da criação e de dominar a
natureza é apresentada como uma ambição tola e inalcançável. E aí reside
a grande distância entre esses poemas e o Fausto de Goethe. O “Mefisto”
que encontramos em Canções sem metro não incentiva e muito menos
ajuda o homem empreendedor – ou fomentador, segundo Marshall
Berman (1995) – em sua empreitada de conquista e desenvolvimento das
forças produtivas de modo a criar o mundo moderno. Diversamente, ele
lhe recorda não somente a inutilidade da sua ação, como todo o mal que
lhe é inerente. Tal postura, repleta de sarcasmo, é evidente no poema “Os
minerais”, no qual o demônio alerta a terra sobre a cobiça humana que
transformará as suas riquezas em instrumentos de luxúria e opressão:

Satã (curvando-se para a terra)


Filhos do fogo! A cobiça dos mortais vai devassar o reino subterrâneo,
que é partilha vossa. Mão temerária violará as secretas jazidas, irá pertur-
bar o repouso e a paz, direito vosso, depois das fulgurantes batalhas dos
primeiros dias. Sereis extorquidos à tranqüilidade do natural destino,
prostituídos à vaidade humana insaciável. (Pompéia, 1982a, p.67)

A idéia de que a ciência sempre será incapaz de desvendar os


mistérios do universo também se encontra na obra de Schopenhauer,
posto que para ele o mundo é representação da nossa Vontade, e, por
conseguinte, todo conhecimento derivado da razão nunca revelará
a verdade das coisas em si. Por tal motivo, ele recusa o dogmatismo
realista que, “ao considerar a representação como um efeito do ob-
jecto, tem a pretensão de separar aquilo que constitui um só, isto é, a
representação e o objecto” (Schopenhauer, [19--], p.22). Além disso,
o filósofo também considera que todo “desejo nasce duma falta, dum
estado que não nos satisfaz, portanto é sofrimento” (ibidem, p.408).
E uma vez satisfeito, cessa o prazer e surge novamente a dor, pois
somente se pode desejar o que não se possui e sua satisfação engendra
bem depressa a saciedade. Em suma, “nenhuma satisfação dura; ela
é apenas o ponto de partida dum novo desejo” (ibidem) que “renasce
140  MARCIANO LOPES E SILVA

sob uma nova forma, e com ele a necessidade; senão é o fastio, o vazio,
o aborrecimento, inimigos mais violentos ainda do que a necessidade”
(ibidem, p.414). Por tais motivos, Schopenhauer considera que todo
esforço em busca da glória, da riqueza, do poder, da sabedoria e do
amor, em suma, toda busca de felicidade é vã e ilusória, conforme já
havíamos observado anteriormente.

A esperança reprimida

Salvo o progresso da indústria e do comércio, não se vê, tanto


em Canções sem metro como em “Cavaleiros andantes”, a crença na
continuidade do aperfeiçoamento humano rumo aos ideais durante o
transcorrer do tempo histórico. Após a passagem de cada era, restam
apenas ruínas, “tragédias do Ideal” (Pompéia, 1981c, p.207), conforme
podemos ler claramente na crônica-ensaio “Cavaleiros andantes”:

Aos grandes ciclos do Ideal correspondem paralelamente, nos domí-


nios do Fato, três espécies de atividade psicológica. Época das religiões;
época das filosofias; época das constituições e dos códigos. Delírios su-
cessivos da mesma febre.
Destas crises, a mais duradoura e a mais grave foi a primeira; período
agudo: as Cruzadas, os mais belos dias do desvario beato da humanidade;
personagem típica – S. Luís. A segunda complicou-se por muito tempo com
a primeira até acentuar-se; período agudo: reforma e guerras de religião;
tipo – Lutero. A terceira perdura em manifestações fugitivas até os nossos
dias: período agudo: Revolução Francesa; personificação – Danton.
Hoje, que o ideal expira, entramos por uma idade nova, rumo trágico
do futuro à luz de um astro misterioso, em noite de desolação. Os últimos
sonhadores, olhar fixo no relógio parado das ilusões, vão desesperando da
quarta hora de justiça de Proudhon. (ibidem, p.207)
É interessante observarmos que a filosofia da história esquema-
tizada em “Cavaleiros andantes” apresenta-se como uma paródia
daquela desenvolvida por Proudhon, que também considera três
grandes momentos na história da humanidade: a época das religiões,
a das filosofias e a dos códigos, conforme vemos a seguir:
O MAL DE D. QUIXOTE  141

La révolution d’il y a dix-huit siècles s’appelait l’Évangile... L’égalité


de tous les hommes devant Dieu... Le Christianisme créa le droit des gens, la
fraternité des nations... Tel fut le caratère de la première et de la plus grande
des révolutions... [...]
Mais... cette révolution... ne suffisait pas à l’émancipation de l’homme...
elle appelait une autre révolution...
Vers le XVe siècle, la révolution éclata. La révolution, à cette époque, sans se
renier elle-même, prit un autre nom... elle s’appela la philosophie. Elle eut pour
dogme la liberté de la raison, pour devise, l’égalité de tous devant la raison...
Voilà quelle fut la séconde révolution, la deuxième grande manifestation
de la justice. Elle aussi rajeunit le monde, elle le sauva...
Vers le milieu du siècle dernier commença... une nouvelle élaboration ; et
comme la première révolution avait été religieuse, et la seconde philosophique, la
troisième révolution fut politique. Elle s’appela le contrato social. Elle prit pour
dogme la souveraineté du peuple... Sa devise fut : l’égalité devant la loi...
Ainsi, à chaque révolution, la liberté nous apparaît toujours comme
l’instrument de la justice, et l’égalité comme son critérium...
La justice a sonné sa quatrième heure... sa divise: l’égalité devant la
fortune...
La révolution après avoir été tour à tour, religieuse, philosophique,
politique, est devenue économique.6 (Proudhon, [19--a], p.229-30)

6 “A revolução de há dezoito séculos se chamava o Evangelho... A igualdade de todos


os homens perante Deus... O cristianismo criou o direito das pessoas, a fraternidade
das nações... Este foi o caráter da primeira e maior das revoluções... [...].
Mas... esta revolução... não bastava para a emancipação do homem... ela reclamava
uma outra revolução...
Por volta do século XV, a revolução estourou. A revolução, nesta época, sem se
negar a si mesma, tomou outro nome... ela se chamou filosofia. Ela teve por dogma
a liberdade da razão, por divisa, a igualdade de todos diante da razão...
Eis qual foi a segunda revolução, a segunda grande manifestação da justiça. Ela
também rejuvenesceu o mundo, ela o salvou...
Por volta da metade do último século começou... uma nova revolução; e como a
primeira revolução tinha sido religiosa, a segunda filosófica, a terceira foi política.
Ela se chamou o contrato social. Ela tomou por dogma a soberania do povo... Sua
divisa foi: a igualdade de todos diante da lei...
Assim, a cada revolução, a liberdade nos aparece sempre como o instrumento da
justiça e a igualdade como seu critério...
Soou a quarta hora da justiça... sua divisa: a igualdade dos homens diante da
fortuna...
A revolução depois de ter sido, passo a passo, religiosa, filosófica, política, tornou-
se econômica” (tradução do autor).
142  MARCIANO LOPES E SILVA

Assim como o “Humanitismo” de Quincas Borba constitui uma


paródia ao positivismo e quaisquer outras crenças evolucionistas
que consideram o progresso humano como decorrente da luta e da
competição, a filosofia da história esboçada em “Cavaleiros andantes”
constitui uma paródia à filosofia política de Proudhon, tendo como alvo
o otimismo na evolução resultante das contínuas revoluções ao longo
da história. Diversamente do filósofo e político francês, que vê um
salto qualitativo a cada revolução, o locutor de “Cavaleiros” andantes
vê apenas a degradação dos ideais. Cada figura antropomórfica que
representa o ideal do Bem – Hércules, Cristo e D. Quixote – se torna,
a cada nova época, mais frágil e decadente:

Hércules é o ideal forte, animado pela exuberância audaz da adoles-


cência virgem, do espírito embriagado de sonho. Hércules vence sempre,
com a onipotência positiva do braço. Cristo é uma concepção hesitante já,
como salteada de suspeitas filosóficas. Cristo transige com a ordem das
cousas opressiva, e iníqua; fantasia de valor a fraqueza, denominando-a
paciência, a derrota faz vezes de triunfo com o rótulo de sacrifício, humi-
lhação chama-se humildade, impotência finge de superioridade [...] D.
Quixote significa, em derradeira apuração, a crítica da bondade cristã e
da bondade hercúlea. Cervantes faz obra de maldição, contando escrever
um livro desopilante de galhofa. (Pompéia, 1981c, p.210-11)

Embora o tempo predominante seja cíclico para cada período da


história, visto o movimento de ascensão e queda, no conjunto ele parece
ser descendente no plano ético, pois, a cada nova fase, os ideais de bon-
dade, beleza, amor, verdade e justiça tornam-se cada vez mais frágeis,
realizando um movimento inversamente proporcional ao progresso da
indústria e da ciência. Apesar de diversos, os três heróis representati-
vos de cada época pecam pelo mesmo erro: a ingenuidade que leva ao
engano, ao equívoco de tomar as aparências como verdades, ou seja,
como sendo as coisas em si. Movidos pelo coração, pela bondade que
os retira da “existência real”, tornando-os “desvairados até ao extremo
pelo idealismo da corrigenda e do aperfeiçoamento” (ibidem, p.211), os
três se tornam vítimas dos sonhos em conflito com a realidade. A cada
novo ciclo, os heróis enfraquecem e os ideais vão sendo abandonados,
O MAL DE D. QUIXOTE  143

passando-se da resignação cristã à ironia moderna representada pelo ca-


valeiro da Mancha: “D. Quixote é a decepção, é o retrospecto cômico da
cavalaria andante de todos os tempos. Diante do descalabro miserando da
angelitude prática, o livre exame fez a sátira do riso” (ibidem, p.210).
Conforme vemos, a história da humanidade e a condição humana
são marcadas por uma contradição irreconciliável (Lesky, 1976) entre os
ideais e a realidade, contradição geradora ‘ de um pólemos (Kothe, 1987)
no qual o declínio dos ideais ocorre em proporção inversa à ascensão da
indústria e da barbárie, “ao esforço dos tiranos e conquistadores, que
recortaram à ponta de espada as linhas geográficas do mapa-múndi”
(Pompéia, 1981c, p.207). Nessa visão trágica da história, o erro resulta
da hybris que caracteriza a natureza humana e cuja desmedida consiste
em possuir todas as qualidades, boas ou más, que se encontravam
espalhadas entre as diversas espécies animais. Ao apossar-se delas, o
homem transforma-se em um “monstro” – conforme lemos no poema
“Os animais”, conto de fadas às avessas sobre a criação humana:

Vosso rei! Proferiu Jeová, entregando o Homem à criação.


A imagem de argila acordou pouco a pouco num frêmito de vida que
lhe percorreu suavemente os membros. O olhar do homem abriu-se claro,
infantil e nobre. Era ainda a majestade cândida do olhar dos anjos. [...]
Chegaram os animais. Cada qual ofertou ao Homem, em tributo, o que
julgava melhor das dádivas do Criador. Veio a águia e ofereceu as asas
e os estímulos elevados; o leão ofereceu a juba arrogante e a majestade
selvagem; o tigre ofereceu as garras e a sede de sangue; o elefante, a força
colossal; o símio, a malícia; a raposa, a sagacidade; a serpente, o veneno e
as linhas curvas; o cão, a leal vileza; a hiena, os instintos da traição; o asno,
a perseverança; o cavalo, o dorso e a celeridade; o avestruz, o poderoso
estômago e a cobiça; o bode, a luxúria; o porco, o próprio ventre e a tor-
peza; o pombo, a alvura das penas; o cisne, o derradeiro canto; o pavão,
a vaidade; o rato, a rapacidade – perícia prática do instinto.
O rei apossou-se de tudo. Estava transformado o anjo de argila.
E a natureza unânime aclamou esse monstro. (Pompéia, 1982a, p.66)

Não é de espantar que Schopenhauer ([19--], p.334) considere


a tragédia a mais elevada das formas literárias, pois “tem por ob-
144  MARCIANO LOPES E SILVA

jecto mostrar-nos o lado terrível da vida, as dores indescritíveis,


as angústias da humanidade, o triunfo dos maus, o poder do acaso
que parece ridicularizar-nos, a derrota infalível do justo e do ino-
cente”. Ao fazê-lo, a tragédia constitui o gênero mais apropriado
para expressar a sua visão de mundo, pois, conforme vimos, essa
é marcada por uma contradição irreconciliável entre os ideais e a
natureza egoísta da Vontade.
O motivo do caráter de extrema perversidade que caracteriza a
natureza humana e é um dos meios pelos quais se cumpre o destino
trágico da humanidade é recorrente em vários poemas. Está em “Os
animais”, conforme visto há pouco, e em poemas como “Os mine-
rais”, “Indústria” e “Comércio”, nos quais se evidencia a “vaidade
humana insaciável” e o motivo do egoísmo presente na alegoria
do “Ventre”. Por ironia, além da perversidade, o erro de tomar as
aparências como verdade e, por conseguinte, de buscar a qualquer
preço a realização dos ideais também é outro motivo do sofrimento
humano, outra causa das inúmeras e terríveis guerras, genocídios
e revoluções. Daí o sentido das palavras de Mefisto, anteriormente
vistas: “Não te iluda o surto aparente da imaginação! – em verdade, o
espírito rasteja. A inteligência, queres saber! É o próprio inferno”!
Apesar do pessimismo e da paródia que observamos com respeito
ao otimismo revolucionário que impulsiona o progresso humano
segundo o pensamento de Proudhon, há, entretanto, em alguns
pontos, uma relação contratual com ele. Isso ocorre especialmente
com respeito à crítica da noção positivista de progresso.
É muito importante observarmos que, para Proudhon, o
progresso histórico da humanidade não deve ser avaliado uni-
camente em razão do progresso material e tecnológico, sendo
mais importante do que essas variáveis a realização do ideal de
justiça, cujos nomes variam segundo as faculdades humanas a
ele relacionadas:

Dans l’ordre de la conscience, le plus élevé de tous, elle est la Justice,


proprement dite, règle de nos droits et de nos devoirs  ; dans l’ordre de
l’intelligence, logique, mathématique, etc., elle est égalité ou équation ; dans
O MAL DE D. QUIXOTE  145

la sphère de l’imagination, elle a nom idéal ; dans la nature, c’est l’équilibre.7


(Proudhon, [19--a], p.216)

Conforme se depreende dessa citação, o ideal de “Justiça” engloba


o desenvolvimento de todas as faculdades e potencialidades humanas,
e, por isso, pode ser considerado resultado do livre desenvolvimento do
ser – o que consiste, para o filósofo francês, no verdadeiro progresso.
No entanto, apesar de sua filosofia da história fundamentar-se na idéia
de que esse avanço é possível e deve realizar-se por meio de inúmeras
revoluções, ela não determina que o desenvolvimento humano tenha
que se apresentar sempre de modo linear e positivo. Baseado nessa
premissa, Proudhon considera a existência de períodos de decadência
quando não ocorre o desenvolvimento harmonioso das faculdades
humanas e critica o otimismo simplista das concepções da história que
apenas vêem o movimento de marcha da humanidade, conforme faz
em relação a Hegel que, em sua opinião, “ne regardait que l’ensemble
et négligeait le détail, un détail qui affecte des milliers de générations, et
des milliers de milliards d’hommes !... ”8 (Proudhon, [19--a], p.301):
Ne confondons pas les oscillations de la vie, tant collective qu’individuelle,
avec le développement soutenu qu’implique l’idée de progrès : ce serait nous
faire de puériles illusions. Il y aurait progrès si, depuis qu’elle existe, la race
humaine avait augmenté continuellement en nombre, en taille, en force, en
santé, en longévité ; comme il y aurait décadence si le mouvement s’était pro-
duit en sens inverse, d’une manière continue, et abstraction faite des accidents
de force majeure, dont il convient de faire la part.9 (Proudhon, 1860, p.8)

7 “Na ordem da consciência, o mais elevado de todos [os ideais], é a Justiça, pro-
priamente dita, regra de nossos direitos e nossos deveres; na ordem da inteligência,
lógica, matemática, etc., ela é igualdade ou equação; na esfera da imaginação, ela
tem o nome de ideal; na natureza, é o equilíbrio” (tradução do autor).
8 “não olhava senão o conjunto e negligenciava o detalhe, um detalhe que afeta
milhares de gerações, e milhares de milhões de homens!...” (tradução do autor).
9 “Não se confundam as oscilações da vida, tanto coletiva quanto individual, com
o desenvolvimento sustentado que implica a idéia de progresso: isto seria fazer
pueris ilusões. Haveria progresso se, desde que ela existe, a raça humana tivesse
aumentado continuamente em número, em tamanho, em força, em saúde, em
longevidade; como haveria decadência se o movimento fosse produzido em sentido
inverso, de uma maneira contínua, feita a abstração dos acidentes de força maior,
os quais convém desprezar” (tradução do autor).
146  MARCIANO LOPES E SILVA

Dessa perspectiva, Proudhon (1860, p.14) não condena o desenvol-


vimento industrial, mas considera que ele não pode ser tomado isola-
damente como evidência do progresso: “Avec la féodalité industrielle,
ce progrès est mathématiquement impossible”.10 E é dessa perspectiva
que talvez possamos compreender a contraditória representação da
indústria na obra de Raul Pompéia. Por um lado, é graças a ela que a
humanidade supera os preconceitos existentes nas religiões e desen-
volve a tecnologia que permite o domínio sobre a natureza; mas, por
outro lado, ela se desenvolve em nome do “Ventre”, sendo responsável
pela destruição dos ideais e pela barbárie da sociedade moderna. A
contradição apontada encontra-se presente, nos seguintes recortes
retirados respectivamente da segunda conferência do professor Cláudio
e da crônica-ensaio “Cavaleiros andantes”:

Decaídas as fantasias sentimentais, reformou-se o aspecto do mundo.


Os deuses foram banidos como efeitos importunos do sonho. Depois da
ordem em nome do Alto proclamou-se a ordem em nome do Ventre. A
fatalidade nutrição foi erigida em princípio: chamou-se indústria, chamou-
se economia política, chamou-se militarismo. Morte aos fracos! Alçando
a bandeira negra do darwinismo espartano, a civilização marcha para o
futuro, impávida, temerária, calcando aos pés o preconceito artístico da
religião e da moralidade. (Pompéia, 1981b, p.158)

Desabam os santuários; a imaginação morre aos pés do industrialismo


ovante.
Indústria é a grande palavra – capital e servidão, tirania e esbulho. Só
a indústria marchou em progresso ao rodar do tempo, a indústria, que
é o egoísmo, o individualismo, contra a solidariedade, que é o poema; o
fatalismo da força maior triunfante, o fato positivo, indiferente à morali-
dade e à estética; a economia política da iniqüidade, avessa à pragmática
do belo e do justo, feições similares da mesma idéia inane. (Pompéia,
1981c, p.206)

10 “Com o feudalismo industrial, este progresso é matematicamente impossível”


(tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  147

A mesma exaltação irônica da indústria como fator de progresso


também se encontra em Canções sem metro, conforme podemos ler
no poema “Indústria” (a seguir, na íntegra), que tem por epígrafe os
seguintes versos do romântico A. Brizeux: “Que la fournaise flambe,
et que les lourds marteaux, / Nuit et jour et sans fin, tourmentent
les métaux !”.11

O homem bate-se contra o mundo. Cada força viva é um inimigo.


À parte a luta das paixões, trava-se na sociedade a batalha perene das
indústrias.
Combate-se contra o tempo que atrasa e contra a distância que
afasta.
A locomotiva atravessa as planícies como um turbilhão de ferro; a
rede nervosa da telegrafia cria a simultaneidade e a solidariedade na face
do globo; o steamer suprime o oceano; o milagre de Guttemberg precipita
em tempestade as idéias, reduzindo o esforço cerebral; exacerbam-se os
ímpetos produtores do solo, com a energia vertiginosa das máquinas.
Vibram as cidades ao rumor homérico das caldeiras. Cada dia, o combate
ganha uma nova feição e o ventre fecundo, o ventre inexaurível das forjas,
para as novas pugnas, produz novas armas.
Bendita febre industrial!
Bendito o operário, mártir das indústrias!
Estenda-se por todo o firmamento o fumo que paira sobre as cidades,
vele aos nossos olhos os abismos da amplidão e os signos impenetráveis
das esferas. (Pompéia, 1982a, p.69)

Apesar de ser responsável pela barbárie que assola a humanidade,


a indústria, diversamente do comércio, não tem uma significação
totalmente negativa. Se, por um lado, ela significa “servidão, tirania e
esbulho” (Pompéia, 1981c, p.206); por outro, é a força que transforma
e impulsiona o mundo, podendo também ser “o ventre inexaurível das
forjas, para as novas pugnas, [que] produz novas armas” (Pompéia,
1982a, p.69). A contradição atinge aqui seu grau máximo, porque

11 “Que a fornalha queime, e que os pesados martelos, / Noite e dia e sem fim,
atormentem os metais!” (tradução do autor).
148  MARCIANO LOPES E SILVA

tais armas, se, por um lado, servem à opressão e à tirania, por outro,
podem servir à libertação, conforme podemos ler na citação que
segue, recortada da crônica “Cavaleiros andantes” – onde se afirma,
em conformidade com o pensamento de Proudhon, “a justiça civil da
dinamite” e “o direito internacional dos canhões”:

Pode ser que o dia histórico de amanhã, desfeitas às brisas da madruga-


da a noite de tempestade que se anuncia no oriente do futuro, acamada em
firme cristalização de paz toda essa fervura vulcânica de aspirações infrenes
que estremecem no subsolo do edifício social do nosso tempo, destruída
a linha das fronteiras, após os desmembramentos dos impérios, como se
destruíram os castelos do feudalismo; reorganizando-se a humanidade
sobre uma topografia nova, graças à justiça civil da dinamite, graças ao
direito internacional dos canhões; pode ser que traga o dia de amanhã
da evolução o advento feliz das esperanças realizadas, dos que crêem na
Providência latente dos fatos. (Pompéia, 1981c, p.204)

Somente servindo à revolução poderá a indústria, que historica-


mente só tem acumulado ruínas, tornar-se uma força libertadora.
E tal possibilidade de redenção via revolução, presente na alegoria
da “aurora cruenta” com “fauces em sangue” (1982, p.91), faz do
progresso uma força potencialmente positiva na medida em que
poderá ajudar a humanidade a romper os ciclos de barbárie – idéia
que expressa uma relação contratual com a filosofia da história de
Proudhon. Para ele, as revoluções não somente são responsáveis
pela evolução da história como também “sont les manifestations
successives de la Justice dans l’humanité”12 (Proudhon, [19--a],
p.228). Assim como Marx, Proudhon defende a legitimidade da
força popular revolucionária:

Il existe un droit réel, positif, incontestable de la force, ce droit est le


plus ancien reconnu dans l’histoire, le plus vivement ressenti par les masses...
Sans le droit de la force, l’histoire tout entière est inexplicable, absurde,

12 “são as manifestações sucessivas da Justiça na humanidade” (tradução do au-


tor).
O MAL DE D. QUIXOTE  149

les traités, nuls, la civilisation, tragi-comédie... Droit et force ne sont pas


identiques... Mais la force fait partie de l’être humain, elle contribue à sa
dignité...13 (ibidem, p.230)

Como vemos, existe uma tensão muito grande em “Cavaleiros


andantes”. O idealismo é tratado como uma doença e as revoluções
são consideradas como “delírios sucessivos da mesma febre”, mas,
contraditoriamente, seu locutor (ou Raul Pompéia?) não deixa de estar
possuído desta febre, pois deseja e aposta na esperança revolucionária,
na quarta hora da justiça que, segundo Proudhon, trará a igualdade
perante a fortuna. E essa mesma tensão ocorre em Canções sem metro,
pois a esperança de redenção por meio da luta revolucionária surge aí
inúmeras vezes, tal como o desejo reprimido que busca explodir as
algemas da razão pessimista. Tal paradoxo encontra-se especialmente
nas inúmeras alegorias das revoluções, as quais estão associadas ao
sentimento estético do sublime.
Em todas as passagens de Canções sem metro em que se repete o
tema das revoluções, encontramos imagens do sublime, seja dinâmico,
seja matemático. Elas estão na luta do mar contra os rochedos, na luta
entre as árvores em busca de luz, na luta dos alicerces do edifício contra
a alta metopa (“Revoluções”, p.80), nos cataclismos, no vulcão extinto,
nas pirâmides do Egito, na Atlântida desaparecida sob a imensidão e
a força do mar... Tais imagens, embora revelem a grandiosidade do
espírito humano, que não se detém perante a imponência dos obstá-
culos, também sugerem a inutilidade de todo esforço e a insignificância
humana perante a infinita grandeza do universo. Daí conviverem lado a
lado, nessas alegorias, o caráter épico da trajetória humana ao longo da
história juntamente com toda a tragicidade que também a caracteriza,
conforme discorremos no item anterior deste capítulo.

13 “Existe um direito real, positivo, incontestável da força, este direito é o mais antigo
reconhecido na história, o mais vivamente sentido pelas massas... Sem o direito
da força, toda a história é inexplicável, absurda, os tratados, nulos, a civilização,
uma tragicomédia... Direito e força não são idênticos... Mas a força faz parte do
ser humano, ela contribui para sua dignidade...” (tradução do autor).
150  MARCIANO LOPES E SILVA

Em “A floresta” (Pompéia, 1982a, p.64), encontramos a clássica


alegoria, já utilizada por Kant, da luta entre as árvores da floresta em
busca da luz do sol. Porém, diversamente do significado existente na
obra dele, a luta das árvores expressa, no poema em questão, a miséria
humana, e a maior altura daquelas que oprimem as pequenas é, iro-
nicamente, a causa de sua morte durante a tempestade – que pode ser
lida como metáfora da revolução. Semelhante alegoria também ocorre
em “Vulcão extinto” (ibidem, p.92). Nesse poema, a inatividade do
vulcão pode tanto representar a inevitável decadência da natureza
e das civilizações, a revolta e a revolução fracassadas, assim como a
vitória dessas, visto que sua cratera é comparada à “boca retorcida na
expressão de atroz agonia – brado estrangulado pela morte” (ibidem)
que encerra em si a memória dos “castelos de chamas [...] as cenogra-
fias satânicas da conflagração” (ibidem). Mas de todas as imagens que
podem ser interpretadas como alegorias da revolta contra qualquer
forma de opressão, o sol em luta contra a noite e o mar em luta contra
os rochedos da costa, que o reprimem, são as mais significativas.
As alegorias do mar estão presentes em “Hamlet” (ibidem, p.85),
“Rumor e silêncio” (ibidem, p.89), “Hoje” (ibidem, p.91), “Os
continentes” (ibidem, p.93), “Tormenta e bonança” (ibidem, p.99) e
“Conclusão” (ibidem, p.100). Na versão original de “Hamlet”, cujo
título é “Rugidos do mar” (publicada em A Semana, Rio de Janeiro,
1885), escreve Pompéia (1982a, p.125): “Vocifera e brama o Oceano.
O seu destino é esse, o destino da rocha é resistir. Tanto vale, em suma,
a energia do granito, como a impotência do mar”. Posteriormente, na
versão definitiva que integra Canções sem metro, ele troca “resistir” por
“triunfar” – o que intensifica o pessimismo da sua visão, sugerindo no-
vamente a impotência da sua revolta ante a opressão da pedra, possível
metonímia dos continentes e das civilizações que o subjugaram com
as suas quilhas, conforme lemos no poema “O mar”:

Hoje o mar é outro. As quilhas rasgaram-lhe a virgindade indômita. O


divino justiceiro de outro tempo, experimentado e velho, fez-se cúmplice
dos homens. Anda agora a transportar, de terra em terra, sobre as abatidas
espáduas, o fardo das ambições e das tiranias. (ibidem, p.63)
O MAL DE D. QUIXOTE  151

Outra passagem que sugere a leitura alegórica dos continentes


como metáfora do progresso que subjugou a natureza encontra-se em
“Tormento e bonança”: “Oceano etéreo, onde os mundos nadam! Que
ignotos litorais restringem o teu âmbito incalculável?” (ibidem, p.99).
Avaliando essas alegorias segundo a perspectiva dada pela teoria do
sublime, parece triunfante apenas o conceito físico de revolução, que
se encontra associado ao movimento dos planetas e, por conseguinte,
aos ciclos da natureza (Marramao, 1995). Tal interpretação é sugerida
especialmente pelos poemas “Ilusão renitente”, “Tormenta e bonança”
e “Conclusão”, visto que as imagens dos cataclismos seguidos da bo-
nança e do surgimento do sol apontam para a vitória da natureza sobre
os homens ao mesmo tempo em que encerram um ciclo histórico. Ao
final, somos novamente remetidos ao tempo mítico da origem, da terra
e do oceano sem máculas. Entretanto, o fato de o tema das revoluções
repetir-se constantemente revela, por sua vez, um desejo latente e vital-
mente necessário, opondo-se ao pessimismo da razão impotente, quan-
do não opressora. Além disso, os dois últimos poemas que encerram a
obra, juntamente com “Os continentes” (1982, p.93), contradizem o
pessimismo existente na idéia do eterno fracasso do mar em sua luta,
pois eles o apresentam como agente principal do cataclismo que destrói
a civilização e promove o retorno ao tempo sem máculas da origem –
repetindo o mesmo motivo já visto em “Ilusão renitente”: “Serena o
mar... / Torna também o firmamento à limpidez da bonança. Ao mar,
aos homens, reapareceu, sem mácula, a amplidão do azul” (Pompéia,
1982a, p.100). Como se vê, a ambigüidade e a arbitrariedade pertinentes
à natureza da alegoria (Benjamin, 1984; Hansen, 1986; Kothe, 1978,
1986) permitem uma dupla e contraditória leitura do final da obra e,
por conseguinte, do sentido da história nela representado.
Os mesmos paradoxos que vimos também caracterizam a alegoria
da aurora em luta contra a noite. Por um lado, opondo-se à barbárie
simbolizada pela escuridão das trevas, o sol representa “o desespero da
contemplação: a cor dos ideais perdidos” (Pompéia, 1982a, p.46). Por
outro lado, é por ele, “desejada luz brilhante e pura” (ibidem, p.64),
“sol da justiça, ideal das revoluções” (ibidem, p.83), que lutam as ár-
vores da floresta e as pedras do alicerce da sociedade, conforme lemos,
152  MARCIANO LOPES E SILVA

respectivamente, nos poemas em prosa “A floresta” e “Revoluções”


(ibidem, p.80-1). E a aurora, sendo o momento do nascimento do sol,
representa, por extensão de significado, o despertar de um novo tempo
de justiça e de beleza, conforme podemos ver nos dois parágrafos finais
do poema “Esperança”.

Cantai, clarins das alvoradas! Vasta escuridão afronta ainda o oriente


das esperanças humanas.
Está por travar-se a batalha definitiva da grande aurora. Conclua-se
a tragédia secular da liberdade! (ibidem, p.82)

A mesma dilacerada esperança da revolução pode ainda ser encon-


trada nos poemas “Veritas” (ibidem, p.83), “Deserto” (ibidem, p.84),
“Ontem” (ibidem, p.90) e “Hoje” (ibidem, p.91). No primeiro, a
aurora, cuja luz simboliza o triunfo da liberdade, da justiça e da razão,
é contraposta à escuridão da noite, que simboliza os valores opostos.
Entretanto, a ironia que encerra o segundo poema, característica do
Witz, nos lembra que o fim da jornada leva ao encontro da morte,
representada pelas desejadas pirâmides para onde se dirigem os ho-
mens: “Grata consolação! Ver as pirâmides! / Está próximo o termo
da jornada. Animadores túmulos!” (ibidem, p.84). Esse dilaceramento
atinge seu ápice nos dois últimos poemas (“Ontem” e “Hoje”), que
respectivamente transcrevemos a seguir, na íntegra, pois são bastante
representativos do paradoxo e da ironia que caracterizam o Witz e que
dissolvem qualquer sentimento de paz e redenção possibilitados pelo
sublime, o que impossibilita uma leitura ingênua das alegorias, assim
como a crença não menos ingênua no caráter redentor das revoluções:

Uma pedra, um epitáfio, é cada página da história. Embaixo dessas


inscrições os séculos dormem. Poeira vil e saudades.
Todas as alegrias do dia de ontem e todas as lágrimas, conquistas e
decepções, louros e espinhos, apoteoses e martírios, misérias, grandezas,
fortunas, maldições, tudo reverteu em nosso proveito. Passou o tempo
sobre o mundo; para nós ficou o legado das cinzas escassas. Por nossa
vida, foram imoladas as gerações. Dos despojos dessas vítimas, herdeiros
ferozes, nós hoje nos alimentamos, como vegeta o renovo na podridão
O MAL DE D. QUIXOTE  153

que o gerou. Duro egoísmo viver das cinzas maternas! Mas está servido o
banquete. Os séculos foram sacrificados em holocausto aos vindouros.
Fostes!
Vindouros somos nós! (ibidem, p.90)

As lendas da navegação celebram o terror do Maelstrom: um abismo


cavado nas águas, através do qual, como por formidável trombeta, assopra
o gênio devastador dos cataclismos.
As ondas, tropa selvagem de leões, debatem-se doudamente, arqueiam
o felino dorso, sacodem como alvíssima juba a espumarada e rolam ru-
gindo no báratro, devoradas pela vertigem. Ousa a embarcação temerária
avizinhar-se do circo tremendo onde combatem os leões da tormenta; não
há mais fugir.
A vertigem prende; a fome do vórtice reclama a presa. O navegador
recolhe os remos.

À semelhança do barco na lendária voragem, nós vamos avante.


O futuro chama. Vingador escrupuloso do passado, vai viver de nós,
como nós vivemos do dia de ontem. Avante! Avante! Lá vejo a aurora,
a odiosa aurora, fauces em sangue da fera noturna que a escora. Ei-lo, o
futuro hospitaleiro que nos convida. (ibidem, p.91)

É muito clara a intertextualidade com a visão da história desenvol-


vida por Schopenhauer. Para ele, o universo é regido pelo egoísmo da
“Vontade” e, por conseguinte, cada “criatura viva só pode manter a
sua vida à custa duma outra, de modo que a vontade de viver se refaz
constantemente com a sua própria substância e, sob as diversas formas
que reveste, constitui o seu próprio alimento” (Schopenhauer, [19--],
p.192). Ora, é justamente essa idéia que encontramos nos dois poemas
citados, posto que as gerações se alimentam uma às outras em um eterno
movimento de fúria e vertigem. No seu conjunto, a história é infernal-
mente cíclica e trágica, posto que todo esforço humano sempre será, em
última instância, reduzido a cinzas. Mas seria um equívoco concluirmos
que ele é vão, pois esse esforço é necessário à reprodução da vida.
Além disso, constatamos, internamente ao movimento cíclico, uma
contínua marcha da humanidade que, de tempos em tempos, pode
resultar em um revolucionário salto de qualidade. Por isso, embora a
154  MARCIANO LOPES E SILVA

condição humana seja em si trágica, pois regida pelo infinito movimen-


to de autodestruição e renovação imposto pela Vontade, a ação humana
de conquista da natureza, cuja principal representação alegórica se
encontra na imagem das naus singrando e domando os mares, cons-
titui um movimento épico assim como os momentos revolucionários.
Essa duplicidade paradoxal de sentidos pode ser estranha e até mesmo
inaceitável à primeira vista, mas se nos lembrarmos que, segundo
Benjamin (1984, 1985), a alegoria cristaliza as tensões da história e
carrega consigo as vozes silenciadas pelos vencedores, poderemos
concluir que a leitura dialética dessa contradição é a melhor postura
interpretativa da obra, visto que possibilita o resgate das utopias não
realizadas. Decidir-se entre uma e outra leitura seria, talvez, um ato de
traição com respeito à obra, optando de modo maniqueísta e simplório
pela desilusão imobilizadora ou, em contrapartida, pela crença ingênua
e panfletária no poder redentor das revoluções.
Aliás, além de tal paradoxo resultante do conflito entre a épica es-
perança revolucionária e a trágica percepção da ínfima natureza do ser
humano constituir, no plano estético, o elemento patético que sustenta
a dramaticidade da obra e a ironia romântica, ele em si não é contra-
ditório com respeito à visão da história traçada por Schopenhauer.
Mesmo afirmando o caráter ilusório de todas as ambições humanas,
ele não deixa de reconhecer o direito de força inerente às revoluções
sociais e nem mesmo descarta a possibilidade de, em certos momentos
da história, os grandes projetos humanos fracassados tornarem-se
realidade, posto que, não sendo a história contínua, mas cíclica, esses
projetos não concluídos poderão realizar-se no futuro:

Suponhamos que nos seja permitido lançar um olhar claro sobre o domí-
nio do possível, para além da cadeia das causas e dos efeitos: o gênio da terra
surgiria e mostrar-nos-ia num quadro os indivíduos mais perfeitos, os inicia-
dores da humanidade, os heróis que o destino levou antes que a hora da ação
tivesse soado para eles. – Depois far-nos-ia ver os grandes acontecimentos
que teriam modificado a história do mundo, que teriam trazido épocas de luz
e de civilização supremas, se o acaso mais cego, o incidente mais insignificante
não as tivesse asfixiado à nascença. – Representar-nos-ia, enfim, as forças
imponentes das grandes individualidades que teriam sido suficientes para
O MAL DE D. QUIXOTE  155

fecundar toda uma série de séculos, mas que se perderam por erro ou por
paixão, ou ainda que, sob a pressão da necessidade, se empregaram inutil-
mente em indignos e estéreis causas, ou ainda que se dissiparam por puro
divertimento.Veríamos tudo isso e seria para nós um luto: choraríamos sobre
os tesouros que os séculos perderam. Mas o espírito da terra responder-nos-
ia com um sorriso: “A fonte donde emanam os indivíduos e as suas forças
é inesgostável e infinita, tanto como o tempo e o espaço, visto que, como o
tempo e o espaço, eles são apenas o fenômeno e a representação da vontade.
Nenhuma medida finita pode avaliar esta fonte infinita: do mesmo modo
cada acontecimento, cada obra asfixiada em germe tem ainda e sempre a
eternidade inteira para se reproduzir. Neste mundo dos fenómenos toda a
perda absoluta é impossível, assim como todo o ganho absoluto. Só a vontade
existe: ela é a coisa em si, ela é a fonte de todos estes fenómenos. A consciência
que ela toma de si mesma, a afirmação ou a negação que ela se decide a tirar
daí, tal é o único facto em si”. (Schopenhauer, [19--], p.239-40)

Se é certo que Schopenhauer apresenta a história como uma trágica


sucessão de lutas e fracassos, também é certo que o movimento cíclico
do tempo permite uma abertura para a esperança, pois torna possível
que “os grandes acontecimentos que teriam modificado a história do
mundo, que teriam trazido épocas de luz e de civilização supremas”
possam realizar-se algum dia. Disso resulta que a interpretação da visão
cíclica da história como inevitavelmente cruel e desmobilizadora deva
ser relativizada. Sem a certeza de um inevitável thelos redentor, cabe
aos homens se resignarem perante as injustiças ou então lutarem pela
realização de suas utopias no tempo presente, sem se preocupar com
o que advirá no futuro. Além do mais, mesmo afirmando que todo
desejo somente traz sofrimento, Schopenhauer não consegue entregar-
se plenamente à resignação e ao imobilismo propostos pelas filosofias
orientais em que se inspira. Tanto é assim que, além de reconhecer esse
princípio de esperança, também reconhece a legitimidade da força como
negação da injustiça:

Desde que uma acção não caia na falta analisada mais acima de invadir
o domínio onde se afirma a vontade do outro, tendo em vista negá-la, ela
não é injusta. [...].
156  MARCIANO LOPES E SILVA

Mas o caso em que a noção de direito, como negação da injustiça, se


aplica melhor, e aquele donde sem dúvida começou por nascer, é aquele
em que uma tentativa de injustiça é repelida pela força: essa defesa não
pode ser por sua vez uma injustiça, ela é, portanto, justiça [...] O que se
resume em dizer isto: tenho o direito de negar uma vontade estranha,
opondo-lhe a quantidade de força necessária para a afastar; este direito
pode ir, é evidente, até o aniquilamento do indivíduo em que reside essa
vontade estranha; [...] fazendo isto, não cometo nenhuma injustiça, estou
no meu direito. (ibidem, p.448-9)

Schopenhauer fala do direito do indivíduo, mas estender o racio-


cínio para uma coletividade, ou uma classe social, é muito simples e,
diríamos, uma conseqüência lógica.

O fanal da arte e a memória dos ideais

É importante, por fim, pensarmos no papel destinado à memória e


à arte nessa visão da história. O primeiro ponto se justifica pelo fato de
que toda historiografia implica uma memória, mesmo se tratando de
uma historiografia especulativa, que é o caso das diversas filosofias da
história, atualmente tão desconsideradas. Quanto ao segundo ponto,
sua importância salta aos olhos pelo fato de que a arte é considerada o
único ideal capaz de se colocar acima e além “dos séculos efêmeros”
(Pompéia, 1981b, p.163) – o que lhe concede uma grande importância
neste sistema filosófico. Tal destaque sugere ser ela capaz de atribuir
algum sentido – seja como direção, seja como significação – à existên-
cia ou, ao menos, sugere a possibilidade de ela tornar essa existência
mais digna, conforme lemos no poema “Les phares”, citado a seguir,
em que Baudelaire (1985, p.122) homenageia a arte dos pintores
Rubens, Da Vinci, Rembrandt, Miguel Ângelo, Watteau, Goya e
Delacroix, cujas blasfêmias e lamentos são como “un cri répété par
milles sentinelles, / [...] un phare allumé sur mille citadelles”.14

14 “um grito expresso por milhões de sentinelas, / [...] um farol a clarear milhões de
cidadelas” (tradução de Ivan Junqueira in Baudelaire, 1985, p.123).
O MAL DE D. QUIXOTE  157

Car c’est vraiment, Seigneur, le meilleur témoignage


Que nous puissions donner de notre dignité
Que cet ardent sanglot qui roule d’âge en âge
Et vien mourir au bord de votre éternité !15
(ibidem)

A afirmação de que a arte pode resistir aos “séculos efêmeros” se


encontra na segunda conferência do professor Cláudio e reaparece
no poema “A arte”, pertencente à parte intitulada “Vaidades”, de
Canções sem metro: “Farol de Leandro, imortal e culminante, domina
impávida o naufragar das eras. / Feliz quem pode abismar-se no tempo
ao clarão desse facho” (Pompéia, 1982a, p.77). Conforme lemos no
próprio poema, ela “é a grande embriaguez do belo consolador”, a
única alternativa que o espírito possui para evadir-se do “círculo de
trevas” da realidade.
Nesse importante aspecto, vemos que a filosofia de Schopenhauer
apresenta uma relação contratual com o romantismo, até mesmo com
aquele que se apresenta revolucionário: ambos coincidem na moderna
concepção da arte como a única instância capaz de redimir o homem,
reaproximando-o de uma possível unidade cósmica.
Para os românticos, assim como para os decadentes e os simbolistas,
a arte torna possível ao homem transcender a experiência terrena em
busca da plenitude, possibilitando-lhe uma união com Deus ou com
o cosmos – o que é possível graças às correspondências. Mas, pelo
desencanto com o mundo moderno e o descrédito em que caíram a
metafísica e as religiões, essa transcendência foi esvaziada. No lugar
de Deus, restou a arte; no lugar do culto às religiões, restou o culto ao
belo, embora esse belo não possa mais ser escrito com B maiúsculo,
perdendo seu caráter eterno e unívoco. Semelhante atitude de com-
pensação ante o esvaziamento da transcendência ocorre na obra de
Baudelaire e de Schopenhauer, pois encontramos nelas uma ruptura
com respeito à crença romântica numa transcendência religiosa. Ape-

15 “Sem dúvida, Senhor, jamais o homem vos dera / Testemunho melhor de sua
dignidade / Do que esse atroz soluço que erra de era em era / E vem morrer aos pés
de vossa eternidade!” (tradução de Ivan Junqueira in Baudelaire, 1985, p.123).
158  MARCIANO LOPES E SILVA

sar de todo o seu pessimismo, Schopenhauer considera que somente


na contemplação estética pode o homem suspender a Vontade e, por
conseguinte, todo desejo e toda dor. Baudelaire, conforme vimos no
poema “Les phares”, considera que somente a arte dá dignidade ao
homem, possibilitando-lhe a única forma de transcendência – embora
vazia, conforme diria Hugo Friedrich (1991) – neste mundo degradado.
Em suma, o grande artista continua sendo considerado o único gênio
capaz de iluminar a humanidade em sua trajetória de dor e sofrimento,
posto que a verdadeira arte é como um farol: ilumina a trajetória dos
navegantes em meio à tempestade, sobrevivendo impávida ao naufra-
gar das eras. Desse ponto de vista, podemos considerar que o poema
“A arte” constitui uma réplica ao pensamento de Proudhon (citado
em epígrafe) com respeito à função da arte no processo revolucionário.
Em outras palavras, podemos constatar novamente uma relação de
polêmica com o discurso do filósofo e político francês:

Qui travaille de ses mains, pense, parle et écrit tout à la fois; et si, dans
la république de l’esprit, il existe des places resérvées pour les intelligences
supérieures, l’homme de style doit céder la place à l’homme d’action.16
(Proudhon apud Pompéia, 1982, p.77)

Determinada a concepção de arte, completamos o trabalho de


visualização da forma arquitetônica de Canções sem metro, que é
orientada pela visão de mundo esboçada na filosofia de Schopenhauer.
Evidenciam isso vários elementos de composição dos poemas, assim
como a obra em sua totalidade orgânica. A concepção cíclica da história,
conforme concebida por ele, é perceptível não somente em inúmeros
motivos, como também na circularidade de sua forma arquitetônica,
visto que o fim da obra nos remete ao seu início. Além disso, a posição
final das ironias em cada poema, e o destaque gráfico que é dado a elas,
permite que as consideremos como expressivas da visão do autor. Riso
defensivo contra a angústia e a impotência de uma razão libertadora.

16 “Quem trabalha com suas mãos, pensa, fala e escreve, tudo ao mesmo tempo; e se,
na república do espírito, existem lugares reservados para as inteligências superiores,
o homem de espírito deve ceder o lugar ao homem de ação” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  159

Apesar da sua ausência de paixão, o estético pode ser melhor repre-


sentado pelo choro ou pelo riso. Ele significa um sentimento infinito
de companheirismo pelos outros, e é também a tagarelice incrédula
de alguém que se desembaraçou de todo esse ridículo melodrama e o
observa a partir de uma altura olímpica. Essas respostas antitéticas estão
profundamente inter-relacionadas na tragicomédia schopenhauereana:
eu sofro com você porque eu sei que a sua substância interior, a vontade
cruel, é a mesma que a minha; mas já que tudo é feito dessa substância
letal, eu desprezo sua futilidade numa explosão de riso blasfemo. (Ea-
gleton, 1993, p.128)

As ironias que encerram os poemas impossibilitam a sublimação,


puxando pelos pés o espírito que ascende rumo ao ideal e impedindo
o leitor de assumir uma postura ingênua perante a história e as pro-
messas de uma definitiva redenção revolucionária. Delas, resulta o riso
desesperado de quem vê a incongruência entre os ideais e a realidade,
entre a Idéia e a experiência, entre a Vontade e a representação.

Para agradar-nos, o sublime deve ser agora abreviado, reduzido e


parodiado como o grotesco, de algum modo contido pela ironia para
assegurar-nos de que não somos adolescentes fantasmas. [...] Como o
Troilus de Chaucer, que se debruça para olhar da oitava esfera, vemos
naquelas fotos tiradas a bordo da espaçonave Apolo “esse pequeno pe-
daço de terra, com que o mar se entrelaça”, e percebemos que o ethos da
expansão está condenado. (Weiskel, 1994, p.21)

Considerando, entretanto, que o ideal da expansão já não é mais


visto como algo sublime – mas como expressão do progresso devas-
tador –, cabe perguntar o que está sendo iluminado pelo facho desse
farol chamado arte. E tal resposta, que não é dada de modo claro em
Canções sem metro, encontra-se explícita em “Cavaleiros andantes”,
onde o papel proposto ao artista é similar ao do historiador, cabendo-
lhe o registro “das tragédias do Ideal”:

Mas ao artista deve ceder o historiador, para o estudo das tragédias


do Ideal no passado. É a missão contemplativa do moderno idealismo.
Deus, Verdade, Liberdade, são os três cantos da melancólica epopéia das
160  MARCIANO LOPES E SILVA

aspirações humanas, cujos versos de sangue vêm entrelinhando a história,


desde as obscuras tradições do Oriente. À luz da arte erige-se o severo
monumento das audácias, dos desesperos. (Pompéia, 1981c, p.207)

Assim como Walter Benjamin (1985, p.163) sugere que o historia-


dor penteie a história a contrapelo, buscando nas ruínas deixadas pelo
progresso “o signo de uma chance revolucionária”, Raul Pompéia,
de modo semelhante, propõe nessa crônica que o artista resgate as
“tragédias do Ideal no passado” (ibidem, p.207). Ao registrar em sua
pena a memória das audácias, dos momentos em que a humanidade
“entrelinhou” de sangue os versos da história em sua luta pelas mais
elevadas aspirações, o artista estará contribuindo para a escritura de
uma história a contrapelo. Mantendo-os vivos na memória, ele, assim
como o historiador que renega o historicismo, não permitirá à huma-
nidade esquecer “quantas dores suaram os séculos” (ibidem, p.213)
e, por conseguinte, estará contribuindo para o advento da libertação
existente na “Providência latente dos fatos” (ibidem, p.204).
E aqui é importante observar que tal proposta nos força a reler Can-
ções sem metro com outros olhos, problematizando as conclusões que
apresentamos antes. Essa perspectiva de leitura que resgata a esperança
épica não é descabível, mesmo porque a filosofia de Schopenhauer
também é contraditória. Conforme apontamos anteriormente, apesar
de todo pessimismo e renúncia que a permeiam, ele reconhece que a
circularidade do tempo histórico possibilita, ainda que não reconheça
a existência de um thelos redentor, a realização das promessas e planos
irrealizados no passado. Além disso, o próprio fato de realizar sua obra
buscando esclarecer os homens sobre a inutilidade de todo desejo e o
sofrimento decorrente desse já constitui em si uma tentativa racional
de negar a Vontade que julga estar acima da razão.

A razão é um mero instrumento do interesse e uma escrava do de-


sejo – interesses e desejos em torno dos quais pode haver luta, mas não
discussão argumentativa. No entanto, se o que Schopenhauer afirma a
esse respeito fosse verdadeiro, a sua própria filosofia seria, pensando de
forma estrita, impossível. Se realmente acreditasse nas suas próprias
doutrinas, Schopenhauer seria incapaz de escrever. Se a sua teoria é
O MAL DE D. QUIXOTE  161

capaz de dissecar o trabalho insidioso da vontade, então a razão deve


ser, nesta proporção, capaz de curvar-se sobre si mesma, de investigar
os impulsos aos quais ela se proclama uma serva obediente. Ou ele fugiu
da vontade, na sua teorização, ou esta teorização não passa de outra das
fúteis expressões da vontade, e, dessa forma, não tem nenhum valor.
(Eagleton, 1993, p.125)

Considerando então uma outra possibilidade de leitura da obra,


cabe repensarmos tanto a significação do sublime quanto a da ironia.
Além de servir como mecanismo de exaltação dos momentos de
grandeza revolucionária, conforme a consideramos anteriormente em
nossa análise das alegorias da revolução, o sublime também serve como
um mecanismo de transcendência religiosa, possibilitando ao homem
uma forma de contato com Deus por meio da natureza. Em outras
palavras: pela grandiosidade do momento sublime torna-se sensível
ao homem a natureza e a incomensurabilidade divinas. Assim sendo,
essa experiência também serve como evasão consoladora para todas
as misérias e catástrofes da história, posto que possibilita, conforme a
hipótese de Thomas Weiskel (1994), a sublimação do instinto de morte
exacerbado pela angústia resultante da crise religiosa e da insegurança
social que caracterizam a modernidade. Semelhante opinião é a de Ter-
ry Eagleton (1993, p.123), pois considera que o sublime constitui um
“impulso de morte em ação, embora esta morte seja, secretamente, uma
espécie de vida, Eros disfarçado em Thanatos”. Isso acontece porque a
contemplação desinteressada desses momentos grandiosos, nos quais o
homem reconhece sua insignificância, constitui um momento de negação
do desejo e de conseqüente dissolução da subjetividade. Ora, tal atitude
é radicalmente contrária a qualquer proposta estética que almeje a cria-
ção de um leitor não somente atento às vozes do passado, mas também
comprometido com o resgate das utopias que foram soterradas pela
tempestade do progresso. Dessa perspectiva, a ironia que desfaz o estado
sublime tem um potencial revolucionário, pois impede a atitude evasiva,
a dissolução do Eu e a conseqüente recusa de qualquer desejo.
Se o desencanto com respeito à transcendência é um fato consumado
para os espíritos críticos da modernidade e a ironia é, por conseguinte,
162  MARCIANO LOPES E SILVA

uma atitude inevitável, talvez a alternativa ao riso cético e ao niilismo


dos nossos dias esteja na ironia, conforme proposta pelos românticos
de Jena, visto que ela se encontra fundamentada na contradição entre
a Idéia e a sua impossível realização neste mundo, resultando “d’un
décalage entre le réel et l’imaginaire”17 (Bourgeois, 1974, p.31). Nesse
sentido, a colocação das ironias sempre ao final dos poemas em prosa
de modo a evitar o movimento de ascensão consoladora confere aos
fragmentos a força estética do Witz, cuja tensão resultante das signi-
ficações contraditórias volta-se para o rompimento da ingenuidade e
para a “explosão do espírito agrilhoado” (conforme Schlegel define
“espirituosidade”, no fragmento 90 do Lyceum), favorecendo “le
détachemant, la prise de conscience de l’absurdité du monde tel qu’il se
présente immédiatement à nous”18 (ibidem) e incitando o leitor a encarar
a necessidade de uma outra transcendência que não é religiosa, mas
secular e política. Ou o niilismo, ou a luta por um presente melhor,
sem garantias de irreversibilidade. Desprovidos de qualquer confiança
num paraíso, seja celestial ou terreno, resta a possibilidade de transcen-
dermos no tempo de modo a resgatarmos valores e projetos que dêem
um sentido imanente à vida e à história, que nos orientem em direção
ao futuro, um futuro cujo sentido pode estar no passado.

17 “de uma defasagem entre o real e o imaginário” (tradução do autor).


18 “o desprendimento, a tomada de consciência do absurdo do mundo tal como ele
se apresenta imediatamente a nós” (tradução do autor).
4
Flores efêmeras
e anjos prostituídos

“Où vont tous ces enfants dont pas un seul ne rit ?


Ces doux êtres pensifs, que la fièvre maigrit ?
Ces filles de huit ans qu’on voit cheminer seules ?
Ils s’en vont travailler quinze heures sous des meules ;
Ils vont, de l’aube au soir, faire éternellement
Dans la même prison le même mouvement.
[...]
Progrès dont on demande: “Où va-t-il ? que veut-il ?
Qui brise le jeunesse en fleur ! qui donne, en somme,
Une âme à la machine et la retire à l’homme !”
(Victor Hugo, “Melancholie”, Les contemplations)

“Pauvre enfant pâle, pourquoi crier à tue-tête dans la rue


ta chanson aigüe et insolente, qui se perd parmi les chats,
seigneurs des toits? […] As-tu jamais eu un père? Tu n’as
pas même une vielle qui te fasse oublier la faim en te battant,
quand tu rentres sans un sou.”
(S. Mallarmé, “Pauvre enfant pâle”)

“– Meu filho, ouvi perguntar um dia a uma creança de sete


para oito annos que chegára desse rude e corrupto mundo
europeu a tentar fortuna nestas novas terras azues, – meu
filho, você, com certeza, deixou lá fora família, sua mãe,
seu pae, não?!
164  MARCIANO LOPES E SILVA

– Deixei, respondeu elle.


– E não tem vontade de voltar, não tem saudade d’elles?
– Eu! Saudades, replicou a innocente creança de sete para
oito annos; eu não vim cá para ter saudades, vim para
ganhar dinheiro!”
(Cruz e Sousa, “Melancholia”)

Considerando o que discutimos no capítulo anterior, podemos


afirmar que o tema da destruição dos ideais é crucial na obra de Raul
Pompéia, uma vez que ele não pode ser dissociado de toda problemá-
tica da desilusão que contamina a filosofia da história existente em sua
obra e, por conseguinte, a visão de mundo nela dominante. Conforme
observado no artigo “As ilusões perdidas de Raul Pompéia: a pomba
e a estrumeira dourada” (Silva, 2003a), a representação literária da
destruição dos ideais é feita na obra de Raul Pompéia especialmente por
alegorias em que tudo aquilo que é bom, puro e belo é destruído; seja
pelos homens, pelo tempo, seja pela natureza. Fundamentados nessa
constatação, agrupamos, no artigo, os textos sob dois paradigmas: o da
corrupção e o da corrosão dos ideais. No primeiro, consideramos como
causa da destruição deles a ação corruptora dos homens, cuja origem
se encontra nas desigualdades sociais e na opressão de classes. No se-
gundo, consideramos que tais causas sociais não são perceptíveis, o que
sugere a naturalidade do movimento de degradação e decadência.
Determinada, então, essa tipologia e levando em conta o valor
que a alegoria assume na obra de Raul Pompéia, fizemos o percurso
analítico da representação literária do tema apontado levando em
conta o primeiro paradigma proposto. Acrescentamos, agora, a análise
pertinente a outros poemas em prosa e aos contos que se encontram
sob o segundo paradigma. Para tanto, procedemos da seguinte forma:
primeiramente, para cada conjunto de textos, analisamos as alegorias
que reputamos paradigmáticas para cada grupo e que se encontram
nos textos cujas características predominantes os aproximam do gênero
poema em prosa, conforme desenvolvido especialmente por Baudelaire
(Todorov, 1980a). Feito isso, passamos à análise e à discussão dos
contos orientados pelas alegorias analisadas, que, então, utilizamos
como chaves de leitura para os mesmos.
O MAL DE D. QUIXOTE  165

Por fim, outra novidade com relação às análises apresentadas no


referido artigo é o estudo comparativo entre, de um lado, os poemas
em prosa e alguns contos de Raul Pompéia e, de outro, os poemas em
prosa de Baudelaire – o que é desenvolvido paralelamente ao percurso
analítico descrito. Optamos por esse confronto primeiramente porque
vários críticos apontaram a “influência” do poeta francês sobre a obra
de Raul Pompéia e, posteriormente, em razão das afinidades consta-
tadas durante o estudo dos contos pertencentes à seção “Pandora”,
conforme visto no primeiro capítulo.
Observando as afinidades estilísticas e ideológicas e considerando
as observações dos críticos e analistas, pudemos verificar, em nível
estilístico, o uso comum das analogias e correspondências, assim como
da alegoria juntamente com o símbolo. Em nível temático, os críticos
apontam o pessimismo, o nirvanismo, a temática do contraste ou,
mais especialmente, da impossibilidade de realização dos ideais, que
resulta nos constantes paradoxos entre a Idéia e sua degradação. Entre
todos esses aspectos, consideramos decisivo para nossa escolha o fato
de o movimento de invariável decepção observado em O Ateneu por
Clélia Jubran (1980) e Roberto Schwarz (1981) ser muito semelhante ao
movimento de ascensão e queda que caracteriza o estilo de Baudelaire
e que Max Milner (1974) denominou poétique de la chute.
Levando em conta as semelhanças quanto às formas compo-
sicionais utilizadas e a idéia comum de decadência, assim como a
desilusão ante os ideais românticos, platônicos e cristãos, acreditamos
que ambos desenvolvem uma forma arquitetônica semelhante: a do
poema, ou conto, elaborado de forma orgânica e visando a um efeito
de totalidade, uma epifania reveladora de alguma verdade sobre a
condição alienada do homem e sobre a incongruência entre os ide-
ais apontados e a realidade degradada do mundo capitalista. Dessa
perspectiva, a identificação das formas arquitetônicas e a busca de
sua origem na concepção de história que lhes dá forma constituem
alternativas às pesquisas que buscam as origens nas fontes literárias ou
na estrutura social e econômica da sociedade em que foram geradas.
É indiscutível que essas dimensões têm sua importância, mas não
podem ser tomadas como determinantes, de maneira mecanicista,
166  MARCIANO LOPES E SILVA

como se a obra apenas se alimentasse do diálogo com as tradições


literárias e/ou apenas refletisse as condições materiais de existência
e organização da sociedade.
A compreensão profunda de uma obra literária está além da consi-
deração desses dois aspectos porque ela confere forma aos valores que
constituem as visões de mundo e da história, dialogando com inúmeros
discursos. E apesar de o conto e o poema em prosa apresentarem uma
menor diversidade de estilos e discursos do que o romance – gênero
“plurilingüístico” e “pluridiscursivo” por excelência, conforme advoga
Bakhtin – eles não deixam de estar constituídos segundo o mesmo
princípio, posto que a linguagem é dialógica por natureza. Além disso,
tanto a alegoria quanto a ironia constituem, assim como o Witz, formas
composicionais altamente dialógicas, já que congregam em sua tessi-
tura discursos diferentes e geralmente antagônicos que disputam entre
si a supremacia da verdade. Em ambas, as diferentes visões de mundo
com seus diferentes discursos disputam o espaço pelo estabelecimento
do sentido dominante, de tal forma que, se pensarmos segundo o ponto
de vista da Análise do Discurso de linha francesa, podemos afirmar que
nessas formas composicionais ocorre uma cristalização do interdiscurso
onde se confrontam diferentes formações discursivas; ou, segundo
o ponto de vista bakhtiniano, com o qual nos alinhamos, podemos
considerá-las como palco privilegiado da luta ideológica.
Nesse sentido, os vários aspectos apontados em comum entre as
obras de Charles Baudelaire e Raul Pompéia sugerem que ambos
desenvolvem uma forma arquitetônica romântica e expressiva do que
nomeei “estética da revelação” ao estudar os contos de Erico Veríssimo
(Silva, 1999, 2000). Em suma, acreditamos que a afinidade de Raul
Pompéia com Edgar Allan Poe e, especialmente, Charles Baudelaire
não expressa um modismo, uma atitude de cópia passiva de modelos
consagrados, mas, diversamente, estabelece um dialogismo produtivo
com a obra desses escritores cuja visão de mundo e da arte é semelhante
à sua. Por esses motivos, acreditamos que o confronto dos textos de
Pompéia com os de Baudelaire será extremamente útil. Tanto as seme-
lhanças como as diferenças servirão de balizas para nos posicionarmos
criticamente com relação à obra de Raul Pompéia no que diz respeito à
O MAL DE D. QUIXOTE  167

visão de mundo romântica, que, conforme é sabido, é bastante ampla


e contraditória, apresentando diversos matizes ideológicos. Em outras
palavras, não é nosso interesse realizarmos aqui uma crítica das fontes
que, como já vimos no primeiro capítulo, mais confundem do que
esclarecem a compreensão da obra de um autor. Além de seu ranço
etnocêntrico e colonialista, essa linha de pesquisa acaba levando a um
caminho sem fim que apenas empobrece a visão que se tem da obra de
partida, conforme argumenta Leyla Perrone-Moisés (1973).
Também não estamos interessados em adentrar no debate sobre
as questões que envolvem a dependência e/ou a originalidade de uma
literatura de periferia com respeito ao antigo centro de propagação do
colonialismo ocidental, a Europa. Não nos interessa aqui comparar
ambas as obras com o objetivo de julgar se o modelo foi superado ou
subvertido pela ruptura de gêneros ou pela antropofagia, como sugerem
Haroldo de Campos (1972, 1992) e Silviano Santiago (1978, 1982).
Embora tais questões sejam importantes, elas não se libertam da pers-
pectiva teleológica ou nacionalista, além de subordinarem a discussão
ao discutível conceito de dependência – muito atrelado à ideologia do
progresso, em que o desenvolvimento industrial e econômico é um fator
preponderante na análise da conjuntura e do julgamento da situação.
Consideramos, de acordo com Eduardo Coutinho (1995), que o ca-
minho mais produtivo hoje é o de pensarmos na possibilidade de uma
produção crítica que busque construir um novo olhar sobre a literatura
que supere a problemática centro-periferia juntamente com a angústia
da influência e o trauma da inferioridade que lhe acompanham.

As alegorias da queda

Como se sabe, a figura da virgem morta é extremamente recorrente


na poesia e na pintura românticas, e sua representação pode ser lida
como alegoria da impossibilidade do ideal no mundo terreno. Para
tanto, lembremos que Edgar Allan Poe (1985a) considerava a beleza
feminina a melhor representação do ideal, e a morte da mulher amada
o mais belo e triste de todos os temas. Entretanto, Raul Pompéia pa-
168  MARCIANO LOPES E SILVA

rece pensar um pouco diferente, pois escolhe a figura da criança para


representar o ideal em vários textos: “Gota d’orvalho”, “Risos mortos”,
“Lágrimas da terra”, “O perfume dos bolos”, “Milina e Turco”, “O
modelo do anjo”, “A Andorinha da Torre” e “Olhos”. Em todos eles,
encontramos meninas puras, belas e efêmeras como as gotas de orvalho,
como as flores e as folhas que o vento leva sem que se saiba a razão. E
tal escolha é extremamente significativa, pois a utilização dos mitos da
criança-anjo e da infância dourada revela o quanto sua visão de mundo
encontra-se impregnada dos valores e dos mitos românticos.1
A pequena Elisa, que vemos esboçada em “Gota d’orvalho”, an-
tecipa Berta, que posteriormente Raul Pompéia delineia com muito
mais riqueza de detalhes no poema em prosa intitulado “O perfume
dos bolos” – texto que consideramos muito mais bem realizado esteti-
camente e que, por esse motivo, elegemos para o estudo das alegorias
da infância morta. Nele, o perfume dos bolos que eram vendidos por
“um garotinho maltrapilho [...] com uns modos de cãozinho escorra-
çado” (Pompéia, 1981c, p.125) desperta no narrador as lembranças
de Berta, menina que, apesar de falecida, mantém-se viva e idealizada
em sua memória:

Que linda Berta! Chamavam-na, por graça, a menina azul. Dava


razão a isso o saiote azul, que ela trajava sempre, e o corpete de cabeção,
azul ainda como a saia, e os olhos cor de céu e os louros cabelos quase
brancos, com brilhos metálicos anilados, e, ainda mais, a coloração fina
que sombreava-lhe a alvura da face, reflexo não sei se do corpete azul, se
do azul luminoso dos olhos. (ibidem, p.124)

As correspondências que animam a memória do narrador são


estimuladas pelas percepções sensoriais, e a primeira e fundamental
sinestesia é a do perfume dos bolos, pois é ele que lhe traz à memória
a imagem da “menina azul” – assim chamada por causa das roupas
que sempre usava. Utilizando a técnica impressionista (Silva, 2004b),

1 Sobre a representação da infância na obra de Raul Pompéia, ver o artigo “Os pobres
infantes de Raul Pompéia e de Charles Baudelaire” (Silva, 2004a, p.49-59).
O MAL DE D. QUIXOTE  169

Pompéia espalha os sobretons do azul mesclados ao branco por todo


o corpo da personagem, envolvendo-a em uma aura de pureza e espi-
ritualidade. Além disso, na tentativa de realizar as correspondências,
ele também explora o ritmo interno das frases de modo a produzir
musicalidade. Isso é feito especialmente por meio do decassílabo “al-
tiva e tímida como uma antílope”, que é repetido duas vezes no texto
e constitui, a nosso ver, o tema musical da personagem.

A menina passava, caminhando rápido; altiva e tímida como uma an-


tílope. Os cabelos cortados rente, deixavam-lhe descoberta a nuca, móvel
e branca como um pescoço de cisne. Após ela, ia o apetitoso perfume da
massa tostada dos bolos, quentes e fumegantes ainda. (ibidem, p.124)

Aquele perfume de massa tostada e quente desperta-me ao vivo o


risonho quadro das boas manhãs doutro tempo.
Distingo o olhar e o sorriso de Berta, os seus movimentos tímidos e
altivos de antílope; vejo-a ainda pisando com o seu adorável desdém as
minhas pobres violetas... (ibidem, p.125)

Também é digna de nota a beleza plástica e a musicalidade dos


alexandrinos (“A menina passava, caminhando rápido”; “móvel e
branca como um pescoço de cisne”), assim como o trato conferido a
outros elementos da sonoridade. Entre eles, a assonância das vogais
nasalizadas transmite uma sensação de tristeza e melancolia e o eco
da sílaba /ti/, no decassílabo-tema de Berta, sinestesia sonoramente
o movimento de saltos do antílope – que, assim como as cores azul e
branca, é símbolo de pureza em várias culturas e épocas. Além desses
recursos, a dupla adjetivação dos substantivos também concorre para
estabelecer impressões sensoriais de gosto, tato e olfato (“massa tos-
tada e quente”, “bolos, quentes e fumegantes”), importantes para o
estabelecimento das correspondências entre as cores, os sentimentos
e os estados de alma reveladores da essência de Berta.
Observando a simbologia do cervo – que, por semelhança, vale para
o antílope –, constatamos que, tanto na Antiguidade quanto na icono-
grafia cristã, “o cervo era considerado inimigo das serpentes venenosas”
(Biedermann, 1993, p.84), sendo capaz de matá-las, pisoteando-as, o
170  MARCIANO LOPES E SILVA

que revela a dimensão simbólica de animal capaz de combater o pecado.


Segundo Unterkircher (apud Biedermann, 1993, p.85), o cervo também
significa pureza no bestiário medieval, porque, ao chegar em um lugar
sujo, salta para longe. O mesmo vale para o símbolo do “cisne”, que,
na Antiguidade, às vezes “é considerado adversário e inimigo da águia
e (como essa) da serpente” (ibidem, p.98). Além disso, sua imagem
alude ao “canto-de-cisne”, “símbolo do Redentor clamando por auxílio
na hora da morte na cruz” (ibidem, p.98-9), e à pureza simbólica da
virgem-cisne sobrenatural dos contos de fadas. Por fim, outra ima-
gem também bastante simbólica é a de Berta pisando as violetas que
o “narrador” lhe jogava no caminho, pois as violetas, enquanto flores,
podem significar a modéstia e, enquanto cor, “a espiritualidade, ligada
ao sangue do sacrifício” (Biedermann, 1993, p.390).
Conforme podemos notar, “O perfume dos bolos” apresenta to-
das as marcas estilísticas que Sônia Brayner considera características
do impressionismo: a ambientação traduz as impressões sensoriais e
emotivas do observador; ocorre a decomposição e a justaposição dos
motivos que compõem a figura de Berta; são utilizados diversos tons
e sobretons de cores na composição; é abundante o uso de adjetivos,
metáforas, analogias e sinestesias que buscam estabelecer a correspon-
dência entre os sentidos e a essência de Berta.
Todos os procedimentos vistos vão de encontro à orientação realista
e se apresentam análogos aos da pintura de paisagens inaugurada pelo
romantismo, que promoveu o apagamento das linhas por meio do jogo
de nuances de cor. Procedimentos que encontraram equivalência na
literatura em “un style qui privilégie l’association des mots par les biais des
images, des sonorités, des champs lexicaux, le déploiement des paradigmes
plutôt que l’association purement syntaxique, syntagmatique, visant une
écriture dénotative, un style analytique”2 (Richard, 1988, p.137). Entre-
tanto, o impressionismo que aqui vemos não corresponde à primeira

2 “um estilo que privilegia a associação de palavras pelo viés de imagens, sono-
ridades, campos lexicais, muito mais o ordenamento dos paradigmas do que a
associação puramente sintática, sintagmática, visando uma escritura denotativa,
um estilo analítico” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  171

fase do movimento – que tinha um caráter realista –, mas à segunda,


que se caracteriza por uma retomada do romantismo (Silva, 2004b).
Considerando, portanto, os valores éticos e estéticos dominantes
em “O perfume dos bolos”, observamos a presença de uma visão de
mundo romântica. Melancólico e saudosista, o narrador não aceita o
tempo presente, o que se expressa na rejeição ao “garotinho maltra-
pilho” (Pompéia, 1981c, p.125) cuja aparição próxima ao final rompe
com seu devaneio, provocando um efeito de ruptura com o sonho e o
conseqüente movimento de queda.
Além do mito da criança-anjo, a presença de um narrador lírico é
outro aspecto importante a determinar a atitude romântica. E assim
o consideramos porque, em vez de narrar a ação do homem sobre o
mundo, como faria o narrador segundo a tradição épica, ele expressa
seus sentimentos mais íntimos, extravasando-os por meio de uma
linguagem musical, rítmica, simbólica e imagética, linguagem mágica
que busca na correspondência de todos os níveis sensoriais (olfativo,
tátil, visual, auditivo e gustativo) atingir a plenitude da experiência
reconquistada e revivificada pela recordação, o que revela o modo
lírico de realização do texto (Staiger, 1997). Pela sugestão da lingua-
gem e da memória plena, pois também corporal, o narrador lírico faz
da narração uma forma de evasão e um ato ritual de reavivamento
do sonho e do ideal, possibilitando ao leitor reacendê-los no espírito
para depois ascender rumo ao infinito.
Quando confrontamos “O perfume dos bolos” com “Le gâteau”,
constatamos que são muitas as semelhanças. Além dos motivos
comuns da criança e do bolo, encontramos o tema em comum das
desilusões, o paradoxo entre a aparência e a interioridade e o movi-
mento de ascensão e queda.
No poema em prosa “Le gâteau”, o narrador reflete sobre um
incidente ocorrido durante uma viagem. Após subir uma montanha,
resolve descansar apreciando a paisagem. Ao retirar um pão do bolso,
observa a proximidade de um menino pobre e faminto que o confunde
com um bolo. Enternecido, dá-lhe um pedaço para comer. No entanto,
o ato de caridade se transforma em motivo para uma “luta fratricida”,
pois um outro menino surge de repente e tenta roubar o alimento dado
172  MARCIANO LOPES E SILVA

ao colega. No final, toda alegria e plenitude alcançadas na ascensão


da montanha são brutalmente desfeitas, provocando um movimento
de queda. Aliás, a ascensão espiritual do narrador não é representada
somente pela subida da montanha, mas também pela ambientação
romântica da paisagem e pela caracterização do seu estado anímico
em plena correspondência com a natureza.

Je voyageais. Le paysage au milieu duquel j’étais placé était d’une gran-


deur et d’une noblesse irrésistibles. Il en passa sans doute en ce moment quelque
chose dans mon âme. Mes pensées voltigeaint avec une légèreté égale à celle
de l’atmosphère; les passions vulgaires, telles que la haine et l’amour profane,
m’apparaissaient maintenant aussi éloignées que les nuées qui défilaient au
fond des âbimes sous mes pieds; mon âme me semblait aussi vaste et aussi pure
que la coupole du ciel dont j’étais enveloppé [...] (Baudelaire, 1996, p.80)3

A cena não poderia ser mais típica da arte romântica. É digna de


nota a semelhança entre ela e o famoso quadro O caminhante sobre o
mar de névoa (c. 1815) de Caspar David Friedrich, cujas obras tentam
“aproximar a natureza ao homem moderno [...] através da interiori-
zação ou subjetivação da paisagem”, conforme argumenta Eduardo
Subirats (1986, p.48). No entanto, a presença da bestialidade humana
destrói a harmonia universal – sendo anunciada antes mesmo da pre-
sença dos meninos, pois “le son de la clochette des bestiaux” (ibidem,
p.31) produz “le souvenir des choses terrestres” (ibidem, p.30). Na se-
qüência, a imagem da sombra de uma nuvem (“l’ombre d’un nuage”) a
cobrir o imóvel lago “noir de son immense profondeur [...] comme le reflet
du manteau d’un géant aérien volant à travers le ciel”4 (ibidem, p.31)

3 “Eu viajava. A paisagem em meio à qual eu me situava era de uma grandeza e de


uma nobreza irresistíveis. Algo delas passou decerto naquele momento para minha
alma. Meus pensamentos esvoaçavam com uma leveza igual à da atmosfera; as
paixões vulgares, como o ódio e o amor profano, me apareciam agora tão distantes
quanto as névoas que desfilavam no fundo dos abismos sob meus pés; minha alma
me parecia tão vasta e tão pura quanto a cúpula do céu de que eu estava envolvido
[...]” (Baudelaire, 1996, p.81, tradução de Dorothée de Brüchard).
4 “a lembrança das coisas terrestres”, “o som da sineta dos animais”, “a sombra
duma nuvem”, “negro de sua imensa profundeza [...] como o reflexo do manto
de um gigante aéreo voando através do céu” (traduções do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  173

reforça ainda mais o sentimento de melancolia que vai se formando no


espírito do solitário promeneur – e que é traduzido tanto pelas imagens
como pela sonoridade. Em outras palavras, as correspondências, que
vemos no plano semântico, também ocorrem no sonoro, pois a pas-
sagem inicial da alegria e do gozo para a dor, causada pela lembrança
das “choses terrestres”, é acompanhada, durante a descrição do lago e
da nuvem, por um abafamento da sonoridade das vogais, que passam
a ser predominantemente nasalizadas ou fechadas.
Conforme cremos demonstrar, os textos analisados apresentam
vários pontos em comum: a temática das ilusões perdidas, o movi-
mento de ascensão e queda, característico da “invariante decepção”,
segundo Jubran (1980), e de “la poétique de la chute”, segundo Max
Milner (1974), assim como a busca das correspondências entre os
diversos níveis estilísticos. Além disso, há neles o lamento em face
da decadência dos valores e dos ideais platônicos e românticos, assim
como a revolta contra a miséria que condena à morte e à selvageria.
Entretanto, o texto de Raul Pompéia é menos amargo e mais romântico
do que o de Baudelaire, que não apresenta a transcendência por meio
da memória e cuja ironia é extremamente ácida.

Atualmente, quem passa com os bolos, é um garotinho maltrapilho,


que anda de cabeça baixa, desconfiado, olhando de través, com uns modos
de cãozinho escorraçado...
Para mim, entretanto, apesar dos meus olhos, é Berta ainda quem os
leva. (Pompéia, 1981c, p.125)

Em “O perfume dos bolos”, o narrador prefere o sonho à dura


realidade e se recusa a aceitar o tempo presente, cuja degradação é
representada pelo substituto de Berta, declarando-se fiel à lembrança
dela. Em “Le gâteau”, o narrador também sofre a revolta pelos ideais
em ruínas, mas não deseja evadir-se do mundo e nem retornar ao pas-
sado já morto. Sua atitude é cínica, posto que marcada por um riso noir
não existente em “O perfume dos bolos”. Seu romantismo é, enfim,
desromantizado, conforme expressão de Hugo Friedrich (1991), pois
a despersonalização e o distanciamento do coração são mais fortes e
se traduzem numa amarga ironia final que destrói definitivamente
174  MARCIANO LOPES E SILVA

o momento sublime e, por conseguinte, qualquer possibilidade de


recuperação da harmonia de sua alma com a natureza:

Ce spetacle m’avait embrumé le paysage, et la joie calme où s’ébaudissait


mon âme avant d’avoir vu ces petits hommes avait totalement disparu; j’en
restai triste assez longtemps, me répétant sans cesse: « Il y a donc un pays
superbe où le pain s’appelle du gâteau, friandise si rare qu’elle suffit pour
engendrer une guerre parfaitement fratricide! » (Baudelaire, 1996, p.84)5

Outro importante símbolo que encontramos nas alegorias da


decadência é a figura da pomba, que na cultura ocidental e cristã ge-
ralmente simboliza o amor, a mansidão, a espiritualidade e a pureza
(Biedermann, 1993, p.306-7). Mas, diversamente do que ocorre com
as flores e as gotas de orvalho, sua degradação não se dá por motivos
naturais no poema em prosa “A pomba e a estrumeira” (Jornal do
Comércio, 20 e 21 de agosto de 1883, série “Contos Domingueiros”)
– apresentado a seguir, na íntegra. Nesse caso, a causa se encontra na
alienação promovida pelo capital.

Eu quero um noivo rico... Que não seja formoso!... Formosa já sou


eu... Quero um noivo de ouro, de ouro como o bezerro. Adoro tudo que é
de ouro: as jóias, as moedas e o bezerro mosaico. Quando durmo, sobre o
meu corpo os sonhos entornam douradas cascatas... As auroras são belas
para mim, porque têm diademas de ouro. Ama-se geralmente a montanha
pela verdura basta e frondosa, que a reveste; eu amo a montanha, porque
sinto lá dentro da crosta granítica, o espesso filão dourado. Há quem adore
o ciciar do córrego, cachoeirando-se pelas pedrinhas afora; eu acho apenas
adorável o ribeiro, quando rola palhetas de ouro nas areias do leito... Com
o ouro faz-se o domínio e funda-se o trono. Os imperadores romanos
faziam esculpir em ouro as próprias figuras...

5 “Este espetáculo me tinha enevoado a paisagem, e a alegria calma em que se re-


creava minha alma antes de ter visto estes homenzinhos desaparecera totalmente;
fiquei bastante tempo triste, me repetindo sem cessar: ‘Então existe uma terra
fantástica, onde o pão chama-se bolo, guloseima tão rara que é suficiente para
gerar uma guerra perfeitamente fratricida!’” (Baudelaire, 1996, p.85, tradução
de Dorothée de Brüchard).
O MAL DE D. QUIXOTE  175

Os raios do sol são de ouro.


Enfim, eu serei conquistada pelo ouro... A formosura tem a glória de
valer o grande metal e de poder trocar-se por ele.
A mulher que se deixa conquistar pelo ouro passa a ser conquistadora;
a fraqueza da formosura transfunde-se na onipotência do metal... De
que serviria a nós outras, mulheres, a beleza, se a beleza não fosse ouro
no mercado da vida e se o ouro não exigisse o formoso róseo da nossa
carne para o mais fino realce?!... Os homens dominam pela matéria, que
é o ouro, nós dominamos pelo ideal, que é a sedução. A aliança dos dous
domínios faz o domínio supremo... Esta é a verdade. Por isso, eu quero
um noivo rico. Um noivo de ouro; de ouro maciço como o bezerro do ve-
lho testamento... Pertenço a quem mais der!... O calão vulgar da canalha
chama isso vender-se...

Eu estava horrorizado. E ela dizia a brilhante catadupa de blasfêmias


com aqueles mimosos lábios, que eu supusera feitos para o murmúrio
doce das santas confidências da virtude e do amor...
Como era horrível a lagarta amarela do ouro, a sair por entre as rosas
daquela boca!
.....................................................
Diante de nós, lá embaixo, no jardim, haviam acumulado a um canto
uma grande porção de estrume.
Sobre o estrume, uma pomba branca, de lindos pés sanguíneos e
sanguíneo bico, revolvia com as unhas o monte infecto, procurando
alimento...
Fez-me estremecer o epigrama da casualidade. (Pompéia, 1981c,
p.120-1)

Para a personagem que cultua Mammon,6 também podendo ser


considerada uma alegoria da cidade do Rio de Janeiro,7 nada de belo

6 Mammon (do aramaico “ma’mon”, riqueza) “é a personificação do dinheiro,


principalmente daquele acumulado de modo impróprio”. Sua personificação
freqüentemente é feita como “um ídolo de ouro, e em forma de figura do diabo
que espalha moedas ao seu redor” (Biedermann, 1993, p.236).
7 Era comum em charges da época a cidade do Rio de Janeiro ser representada por
uma mulher. No apêndice de Os bestializados (Carvalho, 1987), há uma charge
em que o marechal Deodoro é cumprimentado por uma cortesã, seminua, que
representa a referida cidade.
176  MARCIANO LOPES E SILVA

tem valor em si, pois as coisas somente valem como mercadoria. Tudo
para ela deve ser revestido em ouro. Os sonhos, as cascatas, as auroras,
as montanhas, o ciciar dos córregos, os raios de sol e a formosura da
mulher. Tudo o que os românticos valorizam em seu próprio ser e que
deve ser objeto da mais pura contemplação só possui valor, para ela,
se passível de ser transformado em ouro, fonte de poder e de riqueza.
Entretanto, é importante observarmos que, após o seu monólogo, o
autor marca a sua posição ideologicamente contrária com a inserção
de uma voz masculina, que compara o discurso dela a uma horrível
“lagarta amarela do ouro, a sair por entre as rosas daquela boca!”
(ibidem, p.121). Com essa imagem, desvela-se o paradoxo entre a
beleza angelical exterior e a interioridade demoníaca da luxúria e da
ambição. Paradoxo que é materializado na alegoria da pomba sobre
a estrumeira. Aliás, a imagem citada inevitavelmente nos lembra
dois famosos textos: o conto “Boule de suif” de Guy de Maupassant
e o poema em prosa “Les yeux des pauvres” de Charles Baudelaire.
Com respeito ao conto de Maupassant, nos referimos especialmente
à seguinte passagem:

Le lendemain, un clair soleil d’hiver rendait la neige éblouissante. La


diligence, attelée enfin, attendait devant la porte, tandis qu’une armée de
pigeons blancs, rengorgés dans leurs plumes épaisses, avec un oeil rose, taché,
au milieu, d’un point noir, se promenaient gravement entre les jambes des six
cheveaux, et cherchaient leur vie dans le crottin fumant qu’ils éparpillaient.
(Maupassant, 1994, p.39)8

A ambientação citada vem logo após o clímax da narrativa, momen-


to em que Bola de Sebo se entrega ao comandante prussiano enquanto,
no andar de baixo, os “senhores e as senhoras respeitáveis” de Rouen
comemoram tal fato, embora a condenem moralmente. Consideran-

8 “No dia seguinte, um claro sol de inverno, tornava a neve reluzente. A diligência,
atrelada enfim, esperava diante da porta, ao passo que um exército de pombos
brancos, enfunados em suas penas espessas, com um olhar róseo manchado no meio
de um ponto preto, passeava gravemente entre as pernas dos seis cavalos, lutando
pela vida no esterco fumegante que eles espalhavam” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  177

do os motivos da hipocrisia e da prostituição que permeiam o conto


e caracterizam especialmente essa passagem, é inevitável lermos o
trecho citado como uma alegoria da degradação dos ideais de pureza
e bondade pelo poder do capital, que é simbolizado pelo esterco dos
cavalos. E considerando a incrível semelhança entre essa alegoria e a
que encontramos no texto de Raul Pompéia, assim como o fato de que
ele certamente deveria conhecer o conto de Maupassant, que é de 1880,
não há como se furtar à idéia de que Raul Pompéia tenha se apropriado
da imagem, de modo consciente ou inconsciente. A mesma reflexão é
válida para a intertextualidade entre “A pomba e a estrumeira” e “Les
yeux des pauvres” de Charles Baudelaire, que apresenta na seqüência
a seguir uma alegoria também muito semelhante àquela da “lagarta
de ouro” a sair dos mimosos lábios da bela mulher – e que revela a
contradição entre a sua beleza exterior e a alma degradada.

Les chansonniers disent que le plaisir rend l’âme bonne et amollit le coeur.
La chanson avait raison ce soir-là, relativement à moi. Non seulement j’étais
attendri par cette famille d’yeux, mais je me sentais un peu honteux de nos
verres et de nos carafes, plus grands que notre soif. Je tournais mes regards
vers les vôtres, cher amour, pour y lire ma pensée; je plongeais dans vos yeux
si beaux et si bizarrement doux, dans vos yeux verts, habités par le Caprice et
inspirés par la Lune, quand vous me dites: « Ces gens-là me sont insupportables
avec leurs yeux ouverts comme des portes cochères! Ne pourriez-vous pas prier
le maître du café de les éloigner d’ici? » (Baudelaire, 1996, p.136)9

No poema “Les yeux des pauvres”, o motivo central se encontra


no simbolismo dos olhos como espelho da alma. Enquanto o narrador
bebia um suco juntamente com seu amor, em um café novo, refinado

9 “Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não
somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto enver-
gonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os
seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão
belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e
inspirados pela Lua, quando você me disse: ‘Essa gente é insuportável, com seus
olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar
daqui?’” (Baudelaire, 1995, p.84-5, tradução de Leda Tenório da Motta).
178  MARCIANO LOPES E SILVA

e elegante, um senhor pobre e seus dois filhos, todos em andrajos, con-


templavam o estabelecimento com admiração. Comovido com a família
de olhos, onde lia o deslumbramento deles perante a beleza do local, o
narrador busca uma sintonia de sentimentos nos olhos da companheira.
Entretanto, apesar de toda a sua beleza, o que ela demonstra sentir é
uma profunda repulsa pelos três miseráveis. Se a conclusão explícita é
de que “Tant il est difficile de s’entendre, [...], et tant la pensée est incom-
municable, même entre gens qui s’aiment”10 (Baudelaire, 1996, p.136), a
conclusão implícita é a de que não há correspondência entre aparência
e essência – conforme sugere o duplo paradoxo entre os sentimentos
demonstrados e a aparência física dos pobres e da mulher. “Embora
ela possua olhos verdes tão doces e inspirados pela lua, o que sai de sua
boca [...]”, o que sai da sua boca são palavras terríveis, desprovidas de
qualquer amor, compaixão ou lirismo. Assim como no poema de Raul
Pompéia, encontramos a desilusão resultante do paradoxo entre o ideal
e a realidade, embora não exista nele o movimento de ascensão e queda
que encontramos no de Baudelaire.
Considerando ainda a intertextualidade entre “A pomba e a estru-
meira” e o poema em prosa “Coração” (A Rua, 26 de junho de 1889),
que transcrevemos a seguir, na íntegra, podemos verificar a semelhança
entre as duas personagens femininas, pois ambas se apresentam, em
sua alienação, como mulheres fatais, fêmeas devoradoras que obtêm
o poder mediante a venda de seus belos corpos prostituídos em nome
de Mammon. Aliás, neste segundo poema, a alienação encontra sua
representação alegórica na oferenda do coração, visto ele representar,
simbolicamente, os sentimentos e a alma do ser humano, assim como
o ideal romântico do amor e da pureza, posto que os corações ofertados
são de “virgens pálidas”.

Depois que – por amor – Regina perdeu a vergonha, rodou loucamente


de abismo em abismo. Uma queda, afinal de contas, que se poderia dizer
ascensão. Porventura não é o céu um abismo para cima?

10 “Tão difícil é entender-se, [...], e tão incomunicável é o pensamento, mesmo


entre pessoas que se amam!” (Baudelaire, 1996, p.137, tradução de Dorothée de
Bruchard).
O MAL DE D. QUIXOTE  179

Não se limitou a jogar a coifa sobre os moinhos. Arremessou a própria


cabeça, que lá se foi para a banda das demências, com uma gargalhada
satânica, no meio da fulguração meridiana dos cabelos louros.
Que desvarios então! Seu nome há de ficar legenda, nas memórias
da vida livre.
A endiabrada beleza dava-lhe de sobra para extenuar amantes, em
ouro e sangue.
Saltaram-lhe aos pés os tampos de ferro dos cofres milionários, e ela
subia numa explosão cintilante de libras esterlinas, como uma visão da
fortuna. Os prazeres vinham processionalmente ao trono do seu sucesso.
Visitavam-na todas as vaidades do luxo depondo-lhe aos pés tesouros
de valia infinita. A corte dos seus amantes cercava-lhe o banho, como a
ablução religiosa de uma divindade. Disputavam-na após, em desafios de
morte, à primazia no toast da sua lavagem perfumada. Um dos seus gran-
des prazeres era levar rosas ao cemitério, para os túmulos das suas vítimas,
amantes mortos em duelo, rivais suicidas. E sorria, então, perguntando
se efetivamente é do amor que a vida vem.
Atravessou a existência realizando a mitologia de Cítera, com a oni-
potência da sua nudez e do seu soberano descaro.
Hoje está velha. Quando se lhe fala em coração, ela ri muito e conta
um sonho que teve.
Mil virgens – ela sendo rainha – mil virgens pálidas que lhe vinham
oferecer o coração, sob uma folha de parreira. (Pompéia, 1981c, p.252-3)

Regina, assim como a personagem do poema anteriormente visto,


também apresenta a contradição entre sua bela aparência e a interiori-
dade corrompida, de tal modo que o paradoxo apontado rompe com
a representação alegórica do amor vigente nas artes ocidentais desde
a Antiguidade. Basta lembrarmos o mito de Vênus e a intensidade
como ele se perpetuou no transcorrer dos séculos, de tal forma que a
representação da Idéia do Amor pela beleza feminina não constitui
evidentemente uma exclusividade da arte romântica. Ela encontrar-
se-á ainda nas reflexões estéticas de Edmundo Burke (1993, p.51), para
quem o objeto da paixão que chamamos de amor é a beleza do sexo
feminino, nas de Kant, no eterno feminino de Goethe, ou mesmo nas
idéias estéticas de Proudhon.
180  MARCIANO LOPES E SILVA

A contradição que encontramos caracterizando Regina também


se encontra em “Le fou et la Vénus”, outro poema de Baudelaire que
apresenta o movimento de ascensão e queda característico de la poétique
de la chute. No início do texto, o narrador se encontra em estado de
êxtase, maravilhado com a sublime beleza do parque onde passeava,
mas, na seqüência, sua “jouissance universelle” é rompida pelo choque
de um evento que lhe revela a epifania da impossibilidade de realização
do ideal do Amor neste mundo, causando-lhe uma profunda e amarga
desilusão:

Aux pieds d’une colossale Vénus, un de ces fous artificiels, un de ces


bouffons volontaires chargés de faire rire les rois quand les Remords ou l’Ennui
les obsède, afflublé d’un costume éclatant et ridicule, coiffé de cornes et de
sonnettes, tout ramassé contre le piédestal, lève des yeux pleins de larmes
vers l’immortelle Déesse.
Et ses yeux disent : – « Je suis le dernier et le plus solitaire des humains,
privé d’amour et d’amitié, et bien inférieur en cela au plus imparfait des
animaux. Cependant je suis fait, moi aussi, pour comprendre et sentir l’im-
mortelle Beauté! Ah! Déesse! ayez pitié de ma tristesse et de mon délire! »
Mais l’implacable Vénus regarde au loin je ne sais quoi avec ses yeux de
marbre. (Baudelaire, 1996, p.44)11

Diz Kant (1993, p.51) que “a providência pôs em seu [da mulher]
peito sensações bondosas e benévolas”. Bondade que seria de esperar
da deusa do Amor – no entanto, não é o que se revela por parte das
mulheres tanto nesse poema como em “Les yeux des pauvres”. A
Vênus de Baudelaire, assim como a Regina de Raul Pompéia, é fria e

11 “Aos pés de uma Vênus colossal, um destes loucos artificiais, um destes bufões
voluntários encarregados do riso dos reis quando o Remorso ou o Tédio os obceca,
vestido com um traje vistoso e ridículo, a cabeça coberta de chifres e guizos, todo
amontoado junto ao pedestal, ergue os olhos cheios de lágrimas para a Deusa
imortal. / E seus olhos dizem: – ‘Sou o último e o mais solitário dos humanos,
privado do amor e da amizade, e nisto bem inferior ao mais imperfeito dos animais.
No entanto, fui feito, eu também, para entender e sentir a imortal Beleza! Tende
piedade da minha tristeza e do meu delírio!’ / Mas a implacável Vênus olha ao
longe, para não sei o quê, com os seus olhos de mármore” (Baudelaire, 1996, p.45,
tradução de Dorothée de Brüchard).
O MAL DE D. QUIXOTE  181

insensível como uma estátua de mármore. E a queda, após a elevação


do espírito, é evidente, especialmente quando consideramos a ironia
resultante do contraste entre a imagem final e a frase de abertura do
poema: “Quelle admirable journée ! Le vaste parc se pâme sous l’oeil
brûlant du soleil, comme la jeunesse sous la domination de l’Amour”12
(Baudelaire, 1996, p.44).

Do patético ao ridículo

Relembrando as considerações anteriormente feitas no artigo “As


ilusões perdidas de Raul Pompéia: a pomba e a estrumeira dourada”
(Silva, 2003a), é importante observarmos que os contos se apresentam
predominantemente ora românticos, ora realistas, de modo que resol-
vemos subdividi-los em dois outros grupos. O primeiro, de predomínio
romântico, formado por “Milina e Turco”, “O tapacurá de Cendi”,
“O modelo do anjo”, “A andorinha da torre”, “O fruto da formosura”,
“É morto Pulcinella!...”, “Olhos” e “Comércio de flores”. O segundo
grupo, de predomínio realista, formado por “A mona do sapateiro”,
“14 de julho na roça”, “O Natal”, “História cândida”, “No mar” e “A
Clarinha das pedreiras” (que não é um conto, mas um capítulo perdido
de um romance não encontrado). Entretanto, é importante ressaltar
que tal divisão é bastante relativa e somente se justifica por uma es-
tratégia metodológica, uma vez que a mistura estilística realizada por
Raul Pompéia torna tais classificações bastante frágeis. Além disso,
acreditamos ser mais apropriado nomearmos o segundo grupo como
satírico, em vez de realista, uma vez que a sátira observada não pode ser
vinculada unicamente ao estilo realista vigente no século XIX. Por fim,
antes de passarmos à análise, é importante observar que, diversamente
do que fizemos no artigo citado, deixamos de lado os contos “Olhos”,
“É morto Pulcinella!...” e “No mar” para análise posterior, de modo
a evitarmos repetições enfadonhas.

12 “Que admirável dia! O vasto parque se pasma sob o olho ardente do sol, como
a juventude sob a dominação do Amor” (Baudelaire, 1996, p.46, tradução de
Dorothée de Brüchard).
182  MARCIANO LOPES E SILVA

Frágeis heroínas

Nos contos de que agora tratamos, são constantes o uso de ima-


gens (tais como símiles, metáforas e símbolos), a preocupação com o
ritmo, as sinestesias e a musicalidade das palavras, além da simpatia
dos narradores com relação às protagonistas, todas frágeis heroínas
românticas corrompidas pelos homens ou pelo tempo. E considerando
que os contos podem ser subdivididos segundo os dois paradigmas
já apontados (o da corrosão e o da corrupção dos ideais), trataremos
inicialmente daqueles que apresentam as heroínas degradadas pela
natureza e pelo tempo, entre os quais se encontram “A Andorinha
da torre”, “Olhos”, “O modelo do anjo” e “O fruto da formosura”.
Comecemos, então, pelos dois primeiros, que têm como protagonistas
crianças, o que nos tornará possível retomarmos a reflexão sobre a
maneira como Raul Pompéia trabalha com os mitos da criança-anjo
e da infância dourada.
Em “A Andorinha da Torre” (Jornal do Comércio, São Paulo, 25 de
setembro de 1883), a protagonista é a pequena Rita, que é comparada a
uma andorinha, pois adorava ficar com seu avô Emílio no alto da torre
da igreja, especialmente quando ele batia os sinos. Em tal caracteri-
zação, é evidente a simbologia da ascensão e da ascese presentes nas
imagens da andorinha, da torre e dos sinos da igreja. Entretanto, é de
uma ironia observável (Muecke, 1995)13 o fato de que ela adoece no
início da Semana Santa, vindo a morrer no Sábado de Aleluia, bem no
momento em que o velho Emílio os agitava. Já no segundo, a pequena

13 Muecke (1995, p.77) denomina a ironia situacional de “Ironia Observável”,


opondo-a à “Ironia Instrumental” conforme segue: “na Ironia Instrumental o
ironista diz alguma coisa para vê-la rejeitada como falsa, mal à propos, unilateral
etc.; quando exibe uma Ironia Observável o ironista apresenta algo irônico – uma
situação, uma seqüência de eventos, uma personagem, uma crença etc. – que existe
ou pensa que existe independentemente da apresentação”. É importante observar
que essa distinção é de ordem prática, ou didática, posto que a ironia situacional,
referencial ou observável, “está apenas potencialmente no fenômeno e é efetivada
somente quando o observador irônico representa-a para si mesmo ou o autor
irônico apresenta-a aos outros. O termo ‘Ironia Observável’, portanto, carece de
rigor filosófico, como a maioria dos termos, aliás” (Muecke, 1995, p.61-2).
O MAL DE D. QUIXOTE  183

Ema, que é lembrada pelo narrador como sempre vestida de branco,


possuía nos olhos, segundo seu melancólico pai, toda a beleza idílica
da sua infância campestre e a magia celeste de um paraíso inefável
no qual ele se perdia extasiado e soltava o “espírito para uma região
alheia a este mundo, vasta, ilimitada, suavemente iluminada por um
clarão difuso de estrelas” (Pompéia, 1981c, p.178) – imagem sublime
e brilhante que imprime o efeito final.
É importante observarmos que, em ambos os textos, as meninas
não somente possuem em sua caracterização uma carga simbólica de
pureza muito grande, como também representam o resto de felicidade
que sobrevivia no espírito dos mais velhos. No primeiro, Rita era, para
o avô Emílio, “a recordação viva da filha e do genro que a fatalidade lhe
roubara” (ibidem, p.131) e a idéia de perdê-la o enlouquecia – tanto
assim que ele morre ao vê-la morta. No segundo, além de representar
a beleza e a felicidade idílicas, a presença de Ema também consolava
seu pai da dor e da tristeza pela perda da esposa e dos dias felizes da
família. Para ambos, os ideais do amor conjugal e paterno fracassam,
restando, ao segundo, a melancolia e o irônico consolo de que a morte
da filha foi um destino melhor para ela, uma vez que era feia e que
“ninguém havia de amá-la” (ibidem, p.177). Ironia observável caso o
leitor perceba não apenas a contradição entre sua bela alma e a aparência
feia, mas especialmente a contradição entre os valores espirituais de
uma sociedade que se nomeia cristã e seu materialismo, presente na
valorização da beleza física e do dinheiro como dotes indispensáveis
para se obter um bom casamento.
“O fruto da formosura” (Jornal do Comércio, 16 de setembro de
1883, da série “Contos Domingueiros”) é um conto que mistura as
narrativas biográfica, erótica e fabular. Seguindo o modelo do gênero
biográfico, ou mais especificamente do Bildungsroman, a narração
percorre as várias fases de formação da mulher desde o nascimento até
a maternidade. Para tanto, o narrador vale-se do recurso da sinédoque,
visto que o seio – e não a mulher – é o protagonista. Entretanto, o dito
procedimento e o fato de o seio quase sempre ser o objeto da ação –
posto que, gramaticalmente, é quase sempre objeto e nunca sujeito das
orações – produzem não somente o efeito necessário ao jogo erótico,
184  MARCIANO LOPES E SILVA

como também revela, ironicamente, a condição passiva e subjugada


da mulher na sociedade patriarcal. O seio somente é agente da oração
no período da infância, quando “andava tantas vezes nu, gozando o
contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme”, e mesmo
nessas ocasiões é reprimido, pois “o queriam esconder como uma cousa
indigna” (Pompéia, 1981c, p.126). Por fim, o efeito final da narrativa
é novamente obtido por meio de uma ironia observável que põe em
xeque o valor do sagrado, pois é no momento da santa maternidade
que tem início a decadência:

Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena matu-


ridade.
Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele
como a parasita que vive da vitalidade alheia...
...............................
Então começa a decadência.
O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às
emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza
escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...

Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos,


húmus fecundo da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das
novas primaveras, vorazes, egoístas...

É quase a história de todos os frutos. (ibidem, p.127-8)

Após serem comparados com “frutos”, os seios deixam de ser com-


preendidos apenas como sinédoque do corpo feminino e passam a ter
um significado metafórico – ou simbólico. Observe-se que a conclusão
da parábola que vinha sendo traçada desde o início do texto é demar-
cada graficamente pelas reticências e pelo maior espaçamento entre os
parágrafos – recursos gráficos que também demarcam a fronteira entre
o espaço da ascensão rumo ao ideal e o rompimento com a ilusão, o que
leva à inevitável queda. Entretanto, apesar de o narrador afirmar que o
seio “há de apodrecer no campo”, a moral implícita em tal observação
não é nem um pouco clara, ou seja, não é passível de uma interpretação
O MAL DE D. QUIXOTE  185

unívoca. Uma das conclusões, aparentemente indiscutível, diz respeito


ao velho tema da efemeridade de todas as coisas, da fugacidade da vida e
da beleza. Mas qual é o tom que devemos lhe emprestar? De melancolia
ou de cinismo? Ou os dois? Não esqueçamos que há, na contradição
antes apontada com respeito ao valor da maternidade, uma ironia la-
tente no clímax de modo a marcar o início da queda. Como é sabido,
para a sociedade ocidental no século XIX, o papel social da mulher
se encontra na maternidade e toda valorização erótica de sua beleza é
banida do comportamento social decente. Tanto é assim que a idéia de
os amantes se manterem distantes de qualquer gozo, mesmo quando
casados, encontra-se tanto no pensamento de Auguste Comte quanto
no de Proudhon, homens que, apesar de sua postura crítica com relação
à Igreja Católica, não ficaram imunes a muitos dos dogmas cristãos.
Considerando as possibilidades apontadas, ficam as dúvidas: a
moral do conto é a do romantismo que pregava a liberdade do amor,
contrapondo-se ao casamento e à visão cristã que tinha o sexo como
algo pecaminoso (conforme o ponto de vista dos românticos alemães
do grupo de Jena, por exemplo), ou é a moral do realismo naturalista,
que vê no amor apenas a manifestação dos instintos? Ou ainda: será
uma moral niilista que vê toda beleza e todo amor como vãos? Também
é inevitável pensarmos no princípio da Vontade proposto por Scho-
penhauer quando consideramos a ironia de que o início da decadência
coincide justamente com a nova vida que se elabora, na criança que
suga o leite, a vitalidade e a beleza da mãe. Entretanto, a defesa que o
narrador faz do seio, lamentando a prisão que lhe é imposta desde o
nascimento até o momento final de decadência, parece depor contraria-
mente a uma moral que condene a fruição da beleza e do gozo carnal.
Com isso, descartamos o positivismo e o cristianismo dominantes,
mas resta a dúvida entre um romantismo desiludido ou um realismo
cínico. Tais dúvidas repetir-se-ão em “O modelo do anjo” (Gazeta de
Notícias, Rio de Janeiro, 11 de março de 1882). Aliás, esse, assim como
o conto recém-analisado, também apresenta uma interdiscursividade
(Fiorin, 1999) com o gênero fabular, mas o que o torna diversamente
interessante é o fato de apresentar uma dimensão claramente metali-
terária e uma moral tão ou mais ambígua da que ora vemos.
186  MARCIANO LOPES E SILVA

Em sua narrativa, o conflito vivido pelo protagonista Carlo Gia-


cometo, que é um pintor, resulta da impossibilidade de encontrar um
modelo ideal para o anjo que pretende retratar. Significativamente, o
quadro que planeja é idealizado nos padrões românticos, conforme
podemos concluir com base na descrição que o personagem Víctor
Meireles faz da “Visão” que o protagonista tivera e sobre a qual lhe
havia falado:

– Então, caro mio, como vai a sua Visão?


– Apenas desenhada...
– Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime...
Já se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de rosas,
meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, [sic] vai dar
ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da me-
nina e a túnica abundante e leve do anjo que arrebata a criança através
da luz, prestam-se para um ensemble majestoso, não falando das lindas
combinações de reflexos que virão por aí... Oh! Eu imagino!... O seu
quadro vai fazer barulho... Vamos ver no Rio um painel religioso digno
da Renascença... (Pompéia, 1981c, p.86)

Apesar da referência à arte do Renascimento, pelo tema religio-


so, os motivos da criança morta e das flores que cobrem o túmulo,
assim como a tensão resultante dos contrastes entre luz e sombra
não são elementos característicos do estilo dominante nessa época.
Diversamente, são característicos das artes romântica e barroca, que
não primam pelo equilíbrio, pela luminosidade e pela harmonia co-
muns ao cânone neoclássico. Aliás, em conformidade com os clichês
românticos, Carlo desejava dar “à menina a expressão de felicidade
metafísica de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível
e doce das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos”
(ibidem, p.89). Além disso, sua caracterização também o revela como
um tipo romântico. Isso é perceptível tanto em seu processo criativo,
baseado na inspiração de origem divina (dada a “Visão” que o guia),
como na sua aparência física, em que se destacam os motivos dos
longos cabelos e da barba, assim como das roupas pretas, os quais
sugerem um caráter melancólico:
O MAL DE D. QUIXOTE  187

Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol
das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça
e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este
homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho.
Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros
em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisti-
camente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica,
e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de
prata. (ibidem, p.86)

Conforme já dissemos, o conflito surge quando Carlo Giacometo


começa a pintar o quadro e considera que lhe faltava um modelo para
o anjo. Depois de procurá-lo por toda a cidade do Rio de Janeiro,
ele o encontra na pintura de um amigo, em que reconhece, “na bela
rapariguinha de quatorze ou quinze anos [...] debruçada numa jane-
la” (ibidem, p.91), a mesma moça encantadora que um dia também
vira em uma janela durante sua incansável busca, mas à qual não se
apresentara por medo de decepcionar-se. Exultante de alegria, Carlo
corre à casa do amigo para lhe pedir emprestado o modelo, mas lá
descobre que a moça estava arruinada, “raquítica, sem sangue e sem
carne” e com “o rosto escalavrado” (ibidem, p.92) pelas bexigas.
Após essa decepção, que o faz chorar copiosamente, abandona a
encomenda do quadro. Fato que é informado no desfecho do conto,
o qual novamente se encontra destacado por um espaçamento maior
ao final da narrativa:

No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo a encomenda da


Visão recebeu uma cartinha:
“Meu caro Sr. Visconde. – Com profundo pesar declaro a V. Exa.
que não me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incum-
bência...
“Etc. – Carlo Giacometo.”
O visconde recorreu a outro. (ibidem, p.93)

O espaçamento maior entre os parágrafos finais confere destaque


à voz do narrador e à moral da fábula, que nos é dada por ele. Moral
188  MARCIANO LOPES E SILVA

que novamente aponta para a impossibilidade de realização dos ideais.


Mas, conforme já dissemos, ela não é clara, pois exige o esforço de in-
terpretação do leitor e, além disso, se apresenta com, no mínimo, dupla
significação. Essa multiplicidade contraditória de sentidos é decorrente
de outra e derradeira informação: “O visconde recorreu a outro”. Sua
ocorrência evidentemente não é gratuita e propõe, ao bom leitor, a
necessidade de também pensá-la, ou seja, de também interpretar a
moral implícita em tal fato. E essa, por ironia, é contraditória. Por um
lado, temos por hipótese que o objetivo do narrador é conduzir o leitor
à epifania da condição alienada do artista, desvelando aos seus olhos a
sua reificação e, por extensão, a de todo homem. Alienação que também
implica a mercantilização da arte que – para Giacometo – deveria ser
pura, tendo por único fim representar a Idéia. Mas, por outro lado,
temos a hipótese de que o narrador sutilmente ri do protagonista,
julgando-o tolo em seu idealismo. Um riso positivo, riso de homens
racionais e pragmáticos. Afinal de contas, para que deixar de realizar
o trabalho, não obtendo um capital financeiro e simbólico por ele, se o
drama que lhe aflige não tem nenhum significado para o visconde, se
qualquer outra cópia, qualquer outra sombra da Idéia, poderia valer
do mesmo modo? Por um lado, podemos ter uma moral romântica,
embora amarga e desiludida, talvez mesmo niilista; por outro, uma
moral que alguns diriam realista, outros, cínica.
É interessante observarmos que “O modelo do anjo” novamente
apresenta uma forte intertextualidade com outro poema em prosa
de Baudelaire: “La corde”. Nele, a irônica conclusão a respeito das
ilusões perdidas, que vimos no efeito final de “Les yeux des pauvres”,
já se encontra explícita logo na abertura do texto:

Les illusions, – me disait mon ami, – sont aussi innombrables peut-être


que les rapports des hommes entre eux, ou des hommes avec les choses. Et,
quand l’illusion disparaît, c’est-à-dire quand nous voyons l’être ou le fait tel
qu’il existe en dehors de nous, nous éprouvons un bizarre sentiment, complique
moitié de regret pour le fântome disparu, moitié de surprise agréable devant
la nouveauté, devant le fait réel. S’il existe un phénomène évident, trivial,
toujours semblable, et d’une nature à laquelle il soit impossible de se tromper,
c’est l’amour maternel. Il est aussi difficile de supposer une mère sans amour
O MAL DE D. QUIXOTE  189

maternel qu’une lumière sans chaleur […] Et cependant, écoutez cette petite
histoire, où j’ai été singulièrement mystifié par l’illusion la plus naturelle.
(Baudelaire, 1996, p.160)14

Em “La corde” temos uma narrativa enquadrada em outra. O


narrador baudelairiano passa a palavra para o protagonista narrar a
seguinte história: encantado com um menino pobre que morava no
bairro afastado em que também vivia, ele resolve usá-lo como modelo
para suas pinturas. Posteriormente, resolve também adotá-lo e pede
aos pais a sua guarda, prometendo em troca vesti-lo bem, dar-lhe
algum dinheiro e não pedir outro esforço além do trabalho de posar e
de limpar os seus pincéis. No entanto, após ameaçá-lo de devolvê-lo
aos pais, pelos constantes furtos de doces e licores, o garoto se enforca.
Com muito esforço, o pintor toma coragem e os avisa da tragédia. Ao
fazê-lo, a mãe permanece impassível, sem derramar uma única lágrima.
Depois ela o visita e lhe roga desesperadamente para que lhe dê a corda
com a qual o menino se enforcara. Mesmo achando o pedido estranho,
ele o atende, pensando que, em seu desespero, ela queria a corda como
relíquia, ou seja, como lembrança do seu filho. Somente mais tarde,
quando passa a receber inúmeras cartas de vizinhos (na maioria de
mulheres, mas de homens também) lhe pedindo “un morceau de la
funeste et béatifique corde”15 (Baudelaire, 1996, p.166), é que ele, num
momento de epifania, compreenderá a verdadeira motivação da mãe:
“Et alors, soudainement, une lueur se fit dans mon cerveau, et je compris

14 “As ilusões, – me dizia um amigo, – talvez sejam tantas quanto as relações dos
homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece,
ou seja, quando enxergamos o ser ou o fato tal como existe fora de nós, experi-
mentamos um sentimento estranho, complicado em parte pela falta do fantasma
desaparecido, em parte pela surpresa agradável diante da novidade, diante do fato
real. Se existe um fenômeno evidente, trivial, sempre igual, e de natureza tal que é
impossível se enganar, é o amor materno. É tão difícil supor uma mãe sem amor
materno quanto uma luz sem calor [...] E no entanto, ouça esta pequena história
em que fui singularmente mistificado pela ilusão mais natural” (Baudelaire, 1996,
p.161, tradução de Dorothée de Brüchard).
15 “um pedaço da funesta e beatífica corda” (Baudelaire, 1996, p.167, tradução de
Dorothée de Brüchard).
190  MARCIANO LOPES E SILVA

pourquoi la mère tenait tant à m’arracher la ficelle et par quel commerce


elle entendait se consoler”16 (ibidem, p.166).
Embora o motivo central se encontre associado à figura da mãe e
o tema principal seja a dessacralização do ideal materno, historica-
mente cristalizado na figura de Maria, nele também encontramos o
tema da representação da Idéia por meio da arte. Assim como Carlo
Giacometo, o protagonista do poema em prosa de Baudelaire também
descobre, dolorosamente, a imensa e intransponível distância entre a
Idéia e sua aparência. Apesar de servir magnificamente como modelo
para diversas alegorias do Amor e da Beleza, o garoto se apresenta
corrompido e, por fim, comete o suicídio. Nos dois textos a desilusão
é a mesma. Em ambos, a narrativa realiza o movimento de ascensão
rumo ao ideal para, depois, nos impor uma dura queda resultante da
contradição entre esse e a realidade.
Considerando, agora, o paradigma da corrupção dos ideais, pode-
mos constatar uma relação de similaridade entre a alegoria da pomba
e da estrumeira dourada e a maneira como se estruturam um elevado
número de contos que se espalham pela produção de Raul Pompéia.
No paradigma da figura da pomba – que simboliza os ideais de pu-
reza, amor, beleza e bondade – encontramos as diversas protagonistas
e/ou personagens femininas cujas figuras encarnam em si tais ideais.
Daí o fato de serem personagens-tipo tanto as protagonistas infantis
ou de quinze anos, frágeis e indefesas donzelas que nos lembram a
Cinderela, como as protagonistas já adultas, belas mulheres com apa-
rência de deusas, mas que, contraditoriamente, revelam-se, segundo
o mito da “Viúva Negra”, mulheres fatais, fêmeas devoradoras, ricas
bacantes que cultuam Mammon.
No paradigma da alegoria da estrumeira dourada e, por conse-
guinte, do símbolo do ouro, encontramos os diversos personagens
masculinos, todos pertencentes à elite, ricos, poderosos e lascivos,
invariavelmente responsáveis pela corrupção das mulheres. E é essa

16 “E então, de súbito, uma luz se fez em meu cérebro, e compreendi por que a mãe
fazia tanta questão de me arrancar o cordão e através de que comércio tencionava
consolar-se” (Baudelaire, 1996, p.167, tradução de Dorothée de Brüchard).
O MAL DE D. QUIXOTE  191

intertextualidade que nos permite ler os contos de modo alegórico, ou


seja, como parábolas da destruição dos ideais pelo poder corruptor do
capital e das elites.
Em “Milina e Turco” (A Comédia, São Paulo, 13 de maio de 1881,
série “Microscópica”), o caráter alegórico das personagens, assim como
a posição ideológica do narrador, é bastante evidente pela construção
maniqueísta que opõe os universos da menina e do menino – prota-
gonista e antagonista, respectivamente. De um lado, encontramos
a pobre Emília e sua boneca Milina; de outro, o filho do Visconde e
seu cão chamado Turco. Emília, cuja mãe é alcoólatra, mora em um
cortiço e é caracterizada como mimosa, meiga e carinhosa; o garoto,
“pequenote de calças curtas ainda, e já pelintra”, tinha “o pezinho
bem calçado na soleira de mármore do palacete da família” (Pompéia,
1981c, p.25). Milina é uma boneca de trapos que tem a graça e “a beleza
plástica forjada pela pobre imaginação de Emília” (ibidem, p.25-6);
Turco é um “belo cão negro enfeitado de bastos pêlos reluzentes, or-
gulhoso em extremo, espécie de cão fidalgo” (ibidem, p.25). A história
é simples, rápida e com efeito final, pois a narrativa formalmente se
apresenta fragmentada em minicapítulos que beiram o instantâneo
fotográfico, e o último deles apresenta um desenlace inesperado cuja
surpresa garante o dito efeito: Milina, que brincava no cortiço com a
boneca Emília, afasta-se dela para buscar um regador. Ao retornar,
depara com a boneca presa pelos dentes do cão. Desesperada, joga
o regador sobre ele e avança contra o menino, que lhe bate com seu
chicote, deixando-a cega.
A forte idealização da protagonista, que vimos antes, também
ocorre em “Comércio de flores”, embora, nesse caso, a protagonista
não seja uma criança, mas uma bela moça de quinze anos que, assim
como Milina, também se apresenta pobre, desamparada e boa. Por sua
vez, o antagonista é um jovem rico, elegante, lascivo e sem escrúpulos,
que lhe corrompe a pureza. Quanto à postura do narrador com relação
a ela, percebe-se uma profunda simpatia que se revela no lirismo da
linguagem (já analisado), na oposição maniqueísta entre ela e o antago-
nista e no discurso indireto livre utilizado para expressar os sentimentos
dela – conforme podemos observar nos recortes a seguir.
192  MARCIANO LOPES E SILVA

a pequenina mostrava, no tabuleiro de folha de dous fundos, que lindas


cousas! As violetas, perpetuamente murchas como o sorriso dos pobres,
mas que vão tão bem à mão das luvas claras, com o segredo artístico dos
contrastes... (ibidem, p.202)

Ninguém comprava. Apenas o tentador, o mau! aquele elegante dissi-


mulado, que olhava, falando, para outra banda, e torcia o bigode... [...]
Ah! O tentador, o mau! Voltava sempre, como um pêndulo que tonteia!
(ibidem, p.203)

O fato de que o discurso indireto livre (observável nos enunciados


exclamativos) possa ser considerado como expressão do ponto de vista
da protagonista não isenta o narrador de aderir a esse e, portanto, com-
pactuar com ela, visto que em nenhum momento ele utiliza esse recurso
para dar voz ao antagonista. A simpatia do narrador também se revela
no uso dos adjetivos que a qualificam (como é o caso de “pequenina”,
cujo sufixo expressa tanto a pequena estatura dela quanto seu carinho),
no colorido das imagens, na musicalidade e no ritmo das frases.
“O tapacurá de Cendi” (Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 1882),
por sua vez, é um conto singular, visto ser o único que foge à temática
urbana, apresentando-se marcado por um indianismo romântico já
decadente e por um tom dramático que, para a nossa atual sensibili-
dade, ultrapassa os limites da pieguice.
Cendi é uma donzela índia cujo guerreiro amado (Tagaíba) partiu
para a guerra. Crendo que seu noivo não retornará, ela deseja morrer
com seu tapacurá, que é o cinto que se prende aos joelhos das índias
virgens. No entanto, com o intuito de possuí-la, o pajé – que é carac-
terizado pelo narrador com os clichês mais repugnantes possíveis –
procura enganá-la, dizendo que não há motivo para se manter virgem,
posto que “os guerreiros juncaram o campo de batalha com os seus
corpos, e os inimigos se hão de banquetear com eles” (Pompéia, 1981c,
p.66). Mas Cendi resiste e foge, sendo perseguida pelo pajé, que usa
indevidamente sua autoridade, afirmando ser a vontade de Tupã que
o tapacurá lhe pertença. Após alcançá-la, ele a violenta. Depois, à
noite, Tagaíba retorna e os encontra. O pajé tenta convencê-lo de que
ela morreu por ter ofendido Tupã, mas o guerreiro não acredita e o
O MAL DE D. QUIXOTE  193

mata, partindo para o combate em busca da morte. Em suma, não é à


toa que o subtítulo do conto é “Fantasia trágica”, embora fosse mais
apropriado chamá-lo de “fantasia melodramática”.
É importante observarmos que, diversamente do modelo narra-
tivo e alegórico que estamos seguindo, a figura masculina não está
associada ao poder do capital. A índia virgem é prostituída pela
lascívia e pela crueldade de um pajé, que, como índio, vive em uma
sociedade que não é capitalista. É claro que esse pode ser considerado,
lato sensu, da “elite” por ser um líder da tribo, representando o poder
entre os índios; por conseguinte, poderia ser visto como um equiva-
lente dos personagens masculinos pertencentes à elite da sociedade
imperial brasileira. No entanto, considerando a ausência do capital e
a radical diferença entre as duas sociedades e culturas envolvidas – a
indígena e a branca –, não podemos considerar essa oposição como
possuindo o mesmo valor alegórico observado nos outros textos. Em
vez de representar o declínio da sociedade imperial brasileira ou da
cultura ocidental branca e capitalista, talvez represente a decadência
das sociedades indígenas pelas constantes guerras que travavam entre
si ou com o colonizador branco, que levou muitas delas à extinção
ou à perda da identidade.

Sob o alvo da sátira

Como nos contos do grupo anterior, novamente encontramos pro-


tagonistas que são corrompidas por antagonistas masculinos, detento-
res de capital financeiro ou simbólico, como é o caso dos estudantes dos
contos “A mona do sapateiro” e “História cândida”, cuja posição social
lhes confere status aos olhos dos pobres e proletários pais e suas filhas
donzelas. Entretanto, nesses textos, salvo em “14 de julho na roça”, as
protagonistas não são idealizadas, mas, diversamente, são satirizadas
pelos narradores – o que foi fundamental para a decisão de separar esse
conjunto de contos em um grupo considerado predominantemente
realista. Por serem caracterizadas como ambiciosas e capazes de utilizar
sua beleza em proveito da ascensão social, as protagonistas de “A mona
do sapateiro”, “A Clarinha das pedreiras” e “O Natal” se enquadram
194  MARCIANO LOPES E SILVA

perfeitamente no paradigma instaurado pelas personagens femininas


dos poemas em prosa “A pomba e a estrumeira” e “Coração”.
Em “A Clarinha das pedreiras” (Gazeta de Notícias, Rio de Janei-
ro, 21 de fevereiro de 1882), o narrador do capítulo disperso de que
ora tratamos (intitulado “A flor vermelha”) apresenta um triângulo
amoroso composto por Alexandre, Clarinha e um rico sedutor. O
primeiro é um jovem romântico que trabalha na pedreira. Clarinha
é uma menina abandonada pelos pais e adotada, quando criança, por
um casal de idosos muito pobres. O terceiro é um jovem elegante e
rico cuja descrição lembra a caracterização do filho do Visconde, no
conto “Milina e Turco”, pelo porte do chicotinho. A trama é simples:
o último, conforme sugere a narrativa, rapta a jovem, provavelmente
seduzida por seus galanteios e por uma possível promessa de casa-
mento – o que é pouco crível, caso consideremos os papéis e valores
sociais dominantes na alta sociedade do século XIX, pois a atitude de
se casar com uma moça pobre e órfã, ainda sem consentimento dos
seus tutores, seria inaceitável. Portanto, fica nas entrelinhas a hipó-
tese de que ele a teria enganado com uma falsa promessa no intuito
de prostituí-la – isso se não considerarmos a hipótese de a moça ter
aceitado um convite para tornar-se cortesã. Tal idéia é sugerida ainda
pelo comentário do narrador sobre o significado da camélia vermelha
que Clarinha recebe, um dia, do moço rico: “Pouco lido na filologia
das flores e em simbolismos de namoro o mancebo [Alexandre] não
adivinhou o sentido daquilo” (Pompéia, 1981c, p.76). De qualquer
forma, a idealização romântica que Alexandre fazia da jovem (que
ele nomeia “Estrela d’alva”, pela manhã, e “Vésper”, pela tarde) se
desfaz perante a atitude dela, que abandona os velhos que a criaram
sem lhes dar adeus para se casar com um jovem rico que, de modo
muito suspeito, nem sequer se apresenta aos seus tutores.
Na atitude de Clarinha, revela-se a alienação. O casamento, que
deveria ser feito em nome do ideal do amor, dever-se-á realizar (se
a promessa não for falsa) em nome de Mammon. E tal conclusão,
caso seja considerada pelo leitor, poderá lhe desvelar a reificação da
protagonista e sua prostituição – assim como a dos ideais românticos
que animam o ingênuo personagem Alexandre. E é provavelmente
O MAL DE D. QUIXOTE  195

ele, por essa romântica ingenuidade, o alvo da ironia observável


que o narrador constrói na descrição da lua justamente no último
parágrafo, quando a compara a “uma boa gargalhada” (ibidem, p.82)
– similar à gargalhada de Júlio, narrador-protagonista do conto “No
mar”, que analisaremos no próximo capítulo. Reforça a hipótese de
que o narrador esteja sendo irônico com relação ao personagem o
uso do substantivo “estrelinha”, visto que o diminutivo utilizado
por ele contrasta com a dimensão superlativa dos nomes “Vésper”
e “Estrela d’Alva”. A troca dos substantivos próprios pelo comum
no grau diminutivo rebaixa e contradiz a grandeza que Alexandre
atribuía à protagonista. E tal ironia resultante da contradição cômica
também ocorre no contraste que o narrador constrói ao contrapor a
“estrelinha” (que, por ser pequenina, devia brilhar pouco) ao intenso
brilho da lua, visto que seu tamanho era grande, possuindo “toda a
largura de uma boa gargalhada”.

Ele despediu-se da boa mulher, agradecendo o abrigo que lhe dera


contra as fúrias do temporal e as informações sobre a sua estrelinha, e
saiu para a estrada.
A lua, nascida durante a tormenta, estava a brilhar sobre o firma-
mento limpo. Espalmava-se em toda a largura de uma boa gargalhada.
(ibidem, p.82)

Nos contos “A mona do sapateiro” (O Binóculo, Rio de Janeiro, 26


de novembro de 1881 a 21 de janeiro de 1882) e “História cândida”
(A Rua, Rio de Janeiro, n.3, 27 de abril de 1889), o motivo gerador do
conflito é novamente o mesmo: rapazes fazem a corte a jovens pobres,
de quinze ou dezesseis anos, e, pelo prestígio conferido pela condição
de estudantes, conseguem que seus pais “relaxem” a guarda e que
as donzelas se entreguem confiantes na possibilidade de se casarem
com eles. Depois de realizada a posse sexual, eles fogem, mudando
de endereço.
Em “A mona do sapateiro”, a protagonista, que o narrador chama
de “Joaninha” (e nesse caso, o sufixo é depreciativo e irônico), “não
tinha gosto pelo trabalho” e “levava as horas num farniente lânguido,
196  MARCIANO LOPES E SILVA

aborrecida, dissolvendo-se em mórbida tristeza, ou erguendo caste-


los de ouro, sobre as suas ilusões de menina ambiciosa...” (Pompéia,
1981c, p.40), “confiando no futuro e adorando no fundo do peito ao
jovem vizinho, como o alicerce das suas esperanças” (ibidem, p.42).
Semelhante sátira ocorre em “História cândida”, embora, nesse conto,
o alvo seja muito mais a ingenuidade e o bovarismo da heroína que,
desprovida da malícia e da ambição que vimos em Joaninha, vive
mergulhada nas ilusões dos folhetins românticos.
Outro aspecto importante a ser observado é que a destruição do
ideal nesses três contos também implica a contradição entre a aparência
bela e romântica das personagens e o caráter que elas apresentam, o
que repete o motivo já visto em vários textos. Em “A Clarinha das
pedreiras”, a protagonista era ingenuamente comparada a “Vésper”
pelo personagem Alexandre, mas tratada ironicamente como simples
“estrelinha” pelo narrador. Em “A mona do sapateiro”, antes de sa-
tirizar a protagonista, revelando sua vaidade e ambição, o narrador a
caracteriza como uma donzela melancólica – pois assim se apresentava
aos olhares de Fernando e Emílio. Já no terceiro conto, embora seja
apresentada desde o início da narrativa como ingênua pelo narrador,
ela é inicialmente idealizada por seu pai: “O pai venerava-a, pobre
operário sórdido, com acanhamento, como confundido de ser pai da-
quele milagre” (ibidem, p.238). Aliás, tal contradição entre aparência
e interioridade também caracteriza os estudantes nos dois últimos con-
tos, pois eles se apresentam aos olhos das protagonistas como artistas
puros, vates imbuídos de altos valores e de um amor platônico pelas
mulheres. No primeiro, o conquistador, para comemorar, promete
escrever um conto de título “A mona do sapateiro” e seu amigo, em
homenagem ao feito de “plantar uma lança na África” (ibidem, p.48),
resolve dedicar-lhe um soneto com o título “A queda de um queru-
bim”, em que fará “o céu deplorando uma virgem” (ibidem, p.48).
No segundo (“A mona do sapateiro”), para convencer uma jovem a
render-se às investidas eróticas, o estudante Juvenal nomeia-se pintor:
“- Sim, sim... tudo!... Sou pintor, queridinha. Não sabes?... A pintura
é inocente. Nós, pintores, temos para as mulheres uma admiração
pura” (ibidem, p.241).
O MAL DE D. QUIXOTE  197

No conto “O Natal” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1º de


janeiro de 1886), que é provavelmente um dos mais ácidos de Raul
Pompéia, novamente encontramos o motivo da contradição entre o
ser e a aparência, assim como o uso da sátira, que nesse caso ataca a
mercantilização da fé cristã, cujos ideais são prostituídos pelos rituais
que deveriam cultuá-los. Com muita ironia, o narrador compara o
Natal brasileiro ao europeu. Segundo ele, enquanto no Velho Mundo
as crianças pobres morrem de frio, condenadas a olhar da rua o paraí-
so doméstico dos que têm casa e família, no Brasil o clima favorece
um paradoxo bastante diverso. No Nordeste, favorecido pelo clima
quente, o baile pastoril é marcado pela sensualidade, transformando-
se em um “festim diabólico” – especialmente no meio urbano, onde
é degradado pela lascívia e pela luxúria. Na capital de Pernambuco,
cidade de Recife, a festa é profanada ao se transformar em espetáculo
comercial pela Companhia dos Pastoris, o mesmo acontecendo com
as bailarinas, que dele participam vestidas como artistas do teatro de
revista: “saiotes curtos, espáduas nuas, meias cor de carne, que se
mostravam até as ligas” (ibidem, p.166). É bastante significativo o fato
de a principal bailarina, cuja função é ligar os movimentos de ambas
as alas (a do cordão azul e a do cordão encarnado), ser denominada
Diana, posto que, na mitologia latina, esse nome designa a deusa da
caça, o que lhe confere, por extensão, uma forte conotação erótica ao
mesmo tempo em que a idealiza. Porém, no final da narrativa, a gentil
e virgem Diana chamada Ritinha, donzela recém-chegada do interior
de Pernambuco, é levada pelo sr. Seixas, negociante rico do Rio de
Janeiro, em sua carruagem, o que desfaz a idealização construída.
Terminada a narrativa, novamente o texto é encerrado com uma ironia
que se apresenta graficamente destacada por um maior espaçamento
entre os parágrafos:

Levava [a carruagem] dentro o negociante da corte e a formosa Diana,


a virgem, vestida ainda como dançara, assim mesmo, saiotes curtos, espá-
duas nuas, meias cor de carne, que se mostravam até as ligas.

Não temos inverno para o Natal, nem as legendas infantis, é certo;


mas temos para compensar os fogos impetuosos do verão e os pastoris
198  MARCIANO LOPES E SILVA

do Norte. A poesia é outra; mas não menos bela e talvez melancólica, no


fundo, como a invernal poesia do dezembro europeu.
Cada terra com seu uso. (ibidem, p.166)

Para encerrar este segmento analítico, reservamos o conto “14 de


julho na roça” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1883)
por se tratar de uma narrativa um pouco diferenciada das demais.
Embora o motivo da contradição entre o ser e a aparência novamente
esteja presente, o significado político da alegoria é muito mais claro e
contundente.17
Durante uma festa oferecida por um fazendeiro republicano em
comemoração à Queda da Bastilha, o dr. Salustiano (também fazendei-
ro) resolve discursar e fazer um glorioso brinde à Liberdade. Mas, em
uma típica situação irônica, no momento em que vai tomar a palavra,
ele é informado, por um dos seus empregados, que seu escravo Emídio
“não resistiu ao viramundo” (Pompéia, 1981c, p.109) com que fora
castigado por uma tentativa de fuga. Na seqüência, ao brindar em nome
da Liberdade, ergue em demasia a taça, partindo-a nas faces da estátua.
Então, o vinho lhe cai “pelos seios abaixo, prostituindo a casta brancura
impoluta do gesso” (ibidem, p.110), conforme lemos no encerramento
do conto – também separado da narrativa por um espaçamento maior
com a função de fechá-la com a chave de ouro do efeito final, marcando,
por conseguinte, a postura ideológica do texto.
O segundo aspecto que singulariza o conto em questão é o estilo
em que se realiza a sátira, pois esse se aproxima da tradição da sátira
menipéia que, em si, é diversa daquela que encontramos na literatura
realista vigente no século XIX. No lugar do riso irônico, predominante
no realismo, encontramos, no conto em questão, o riso resultante do
exagero e do grotesco presentes na sátira menipéia e na cultura popular
carnavalesca (Bakhtin, 1987; Minois, 2003). Nele, o protagonista é
caracterizado como um D. Quixote às avessas, pois não é coerente com

17 O conto em questão foi posteriormente publicado em francês com o título “Cau-


serie. Le 14 juillet à la fazenda” em Le Messager du Brésil, datado de 12 de julho
de 1883, e se encontra nas Obras de Raul Pompéia (1982b, p.7-115).
O MAL DE D. QUIXOTE  199

os ideais que defende e nem vê monstros ou inimigos na natureza, mas


exércitos à disposição de seu poder e de sua glória:

Na qualidade de campineiro abastado e farto, tinha por si a força


do ouro: o elemento moderno do poderio. No século XIX, mais do que
nunca, o ouro é o metal dos cetros e das alavancas: só existe para o mando
e para a força...
Ia-lhe próspera a fazenda. As suas vastíssimas terras sumiam-se, sob
as ramas escuras dos cafezais, plantados em linha, através de infinitas
colinas.
As canas formavam-se por milheiros ao longo das várzeas, imitan-
do tudo respeitáveis fileiras de incógnita milícia. As folhas do canavial
refletiam o sol, como se fosse o aço de cem mil baionetas; as plantações
de milho sacudiam belicosamente os penachos roxos, como as insígnias
gloriosas de um imenso estado-maior...
[...]
O Dr. Salustiano, com as mãos nas cadeiras, por baixo do pala de
brim, contemplava, ufano, aquele exército fantástico que tinha sob o seu
comando absoluto e despótico. (ibidem, p.102-3)

A transfiguração da realidade que a imaginação do dr. Salustiano


realiza é quixotesca, pois transforma os sons da natureza em trechos
da Marselhesa. No canto do sabiá, ele ouve “o solo do Allons enfants”
e, no coro da passarinhada, ele ouve, “em tom de guerra: Aux armes
citoyens” (ibidem, p.104). Mais engraçada ainda e de um grotesco ra-
belaisiano é a passagem que narra o jantar realizado pelos fazendeiros
republicanos durante a festa de comemoração da Queda da Bastilha
e que nos lembra o antológico piquenique dos estudantes do colégio
Ateneu no Jardim Botânico do Rio de Janeiro:18

O assalto aos manjares foi medonho. Os trinchantes desapareciam


no bojo dos assados, como se fossem punhaladas raivosas. As garrafas
estouravam, como fogo nutrido de atiradores destros.

18 Sobre a carnavalização da linguagem e o riso de Rabelais na citada passagem de O


Ateneu, leia-se o estudo “Retórica do alimento”, de Tereza de Almeida, publicado
em O Ateneu: retórica e paixão (Perrone-Moisés, 1988).
200  MARCIANO LOPES E SILVA

Comia-se, como se ali só houvesse guisados bofes de monarcas; bebia-


se, como se houvesse engarrafado o sangue das dinastias.
Pantagruel e Gargantua esgaçavam os lábios, como sansculottes em-
briagados.
Os garfos eram chuços, as facas eram espadas. A demagogia do ventre
arremessava-se doudamente contra a imponência régia dos acepipes.
(ibidem, p.107)

A sátira, evidente no exagero da linguagem e no absurdo das


imagens vislumbradas pelo dr. Salustiano, as quais estão léguas de
distância da realidade que o cerca, contrapõe o ideal revolucionário
que o entusiasma à sua condição de abastado fazendeiro escravocrata,
cujas “vastíssimas terras sumiam-se, sob as ramas escuras dos cafezais”
(ibidem, p.103). Numa das possíveis leituras alegóricas, o efeito final
aponta para a hipocrisia de muitos republicanos brasileiros; em outra,
que não exclui a anterior, aponta para o que Roberto Schwarz (2000)
considera ser “as idéias fora do lugar”. Para ele, as idéias republicanas
e liberais importadas da Europa não eram adequadas à realidade bra-
sileira, uma vez que a infra-estrutura fundada no trabalho escravo, na
grande propriedade agropastoril e numa organização socioeconômica
regida pelo favor – e não pelo mérito profissional – não correspondiam
àquela existente nos países em industrialização no Velho Mundo. Em
outras palavras, Schwarz (2000) considera que tais idéias estão “fora
do lugar” porque correspondem a uma infra-estrutura inexistente
na sociedade brasileira, encontrando-se, portanto, em profundo
descompasso com as regras da economia e da socialização no Brasil
Imperial. De qualquer forma, considerando o tema em questão e as
citações da Marselhesa, não há como deixar de ver na imagem final a
representação alegórica da corrupção dos ideais republicanos oriundos
da Revolução Francesa.

Decadência e sociedade

Conforme demonstramos, a oposição entre o pólo feminino (onde


se encontram os símbolos das flores e das pombas) e o pólo masculino
O MAL DE D. QUIXOTE  201

(em que o ouro simboliza o capital e o poder) se encontra em inúmeros


contos que, à primeira vista, não poderiam ser considerados como
possuindo uma significação alegórica. Entretanto, a relação intertextual
desenvolvida entre os textos analisados permite vislumbrarmos essa
dimensão significativa nos diversos conflitos, de modo que podemos
considerar as personagens femininas como representações simbólicas
do ideal prostituído pelo capital e pela luxúria. É certo que a posição
do narrador não é sempre a mesma, pois varia da adesão à sátira com
relação às protagonistas, de modo que nos contos do primeiro grupo
predomina um sentimento de melancolia e no segundo predomina o
riso de quem desvela o caráter ilusório dos ideais e da tola convenção
romântica que qualifica as moças como donzelas ingênuas. Todavia,
tanto em um como em outro caso temos a representação dos ideais
como prostituídos pelo capital e pelas elites – o que revela a decadên-
cia moral da sociedade. Aliás, esses contos nos apresentam uma nova
dimensão do problema em relação ao que tínhamos visto no capítulo
anterior. Nele observamos que, em Canções sem metro, os motivos da
decadência eram, por um lado, de ordem natural ou cósmica, e, por
outro, de ordem político-econômica, mergulhando suas raízes, em
última instância, na ambição humana que move o progresso material
das civilizações. Agora veremos que os contos privilegiam a dimensão
moral da decadência, centrando sua atenção nos costumes, especial-
mente naqueles relacionados ao prazer e ao sexo.
A associação entre a decadência das sociedades e a dos costumes não
é nova. Também já se encontrava na Antiguidade, seja no pensamento
político de Platão, na avaliação de Políbio a respeito da decadência
da Grécia, seja na de Tito Lívio sobre a decadência de Roma (cf. Le
Goff, 1996, p.375ss.). Posteriormente é retomada no século XIX com
tal intensidade que se encontrará presente nos mais diversos setores
da intelectualidade européia, incluindo tanto as alas conservadoras
como as revolucionárias, cujo melhor exemplo, no caso, é dado pelo
pensamento de Proudhon. Tal fato pode parecer estranho à primeira
vista, pois, como sabemos, é constantemente reafirmado pelos manuais
de literatura o predomínio das idéias evolucionistas e da ideologia do
progresso nas principais sociedades européias, assim como na bra-
202  MARCIANO LOPES E SILVA

sileira, ao final do século XIX. Todavia, tanto o desenvolvimento da


filosofia da história como o das ciências modernas – especialmente as
biológicas – deram ensejo a tal contradição.
Desde o Renascimento, o fixismo da sociedade medieval é abalado
pela expansão econômica e marítima que, aliadas, levam à descoberta
de novos continentes e povos radicalmente diversos daqueles existentes
no Velho Mundo. A crença na capacidade humana de interferir na na-
tureza e expandir seu domínio por outras terras, assim como o choque
cultural resultante da descoberta de povos considerados bárbaros e
primitivos colocaram em xeque a crença nos valores religiosos que
garantiam a imobilidade do mundo medieval. Com o desenvolvimento
de uma nova classe confiante nos seus poderes de transformar o mundo
e construir riquezas antes não sonhadas, engendra-se o pensamento
iluminista que, no combate à Igreja e ao poder centralizador e aristo-
crático das monarquias de direito divino, será marcado principalmente
por uma postura laica e progressista.
A necessidade de compreender as brutais diferenças culturais,
de justificar o processo de expansão e dominação econômicas, assim
como de traçar uma ação política voltada para a construção de uma
nova ordem social, levou os filósofos iluministas e demais pensadores
do século XVIII a refletirem sobre a natureza humana, os valores de
cada sociedade e o grau de evolução delas. Dessa problemática decorre
a importância que cada vez mais será conferida aos estudos históricos
e culturais realizados em uma perspectiva científica, pois guiados pela
razão – o que resultará na atitude positivista do século XIX. Nessa
perspectiva, Montesquieu dá o primeiro passo, no âmbito do iluminis-
mo, para a criação da “filosofia da história” com a sua obra O espírito
das leis (1748), em que elabora “a doutrina de que todos os elementos
constitutivos de uma determinada sociedade estão entre si numa
situação de estrita correlação” (Cassirer, 1992, p.285). No entanto, é
Voltaire quem, segundo Löwith (1991, p.15), de fato inaugura essa
nova ciência com a obra Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações
e sobre os fatos principais da história desde Carlos Magno a Luis XIII
(1756). Com ela, Voltaire deixa de considerar a vida política e o Estado
como sujeitos da história (diversamente do que fazia Montesquieu) e
O MAL DE D. QUIXOTE  203

passa a privilegiar o conceito de “espírito”, o qual “engloba toda a vida


interior, todo o conjunto de transformações a que a humanidade deve
se submeter antes de alcançar o conhecimento e a verdadeira autocons-
ciência” (Cassirer, 1992, p.292). Com isso, ele queria transformar a
história em uma ciência análoga à física de Newton, tornando-a capaz
de determinar as leis responsáveis pelo progresso humano:

Em vez dessa enorme acumulação de fatos [feita pelos historiadores


de então], em que um jamais deixa de contradizer o outro, dever-se-ia
reter somente os mais importantes e os mais seguros a fim de colocar um
fio condutor na mão do leitor e para que ele fique em situação de formar
um juízo acerca da ruína, renascença e progressos do espírito humano, e
desse modo aprenda a conhecer o caráter e os costumes dos diversos povos.
(Voltaire apud Cassirer, 1992, p.291)

A busca de respostas para o sentido da existência humana não era


novidade, mas, pela primeira vez, procurava-se erigir uma explicação
secularizada com base na idéia de progressão linear do tempo e de con-
tínuo aperfeiçoamento da humanidade como resposta ao sofrimento
e aos absurdos da vida. Tratando-se do mundo ocidental na Anti-
guidade, a história se restringia, para os gregos, ao campo da política
e a vida humana era regulada pelo tempo cíclico e mítico do cosmos.
Posteriormente, para os judeus e cristãos da Idade Média, “a história
era principalmente uma história da salvação e, como tal, preocupação
exclusiva dos profetas, pregadores e mestres” (Löwith, 1991, p.18),
de modo que o destino da humanidade e das nações ficava, em última
instância, subordinado aos desígnios divinos. E é nessa perspectiva
que tanto o messianismo judaico quanto o cristão elaboraram suas
escatologias, inaugurando a idéia de uma história universal e progres-
siva voltada para um único fim. Entretanto, ao secularizar a história,
por irônico paradoxo, os pensadores iluministas abriram caminho
tanto para a conquista do mundo pelo homem quanto para a dúvida
e para o medo, uma vez que a salvação e o paraíso não mais estavam
garantidos por um eschaton divino. Por isso, com a secularização da
história, a idéia de decadência passa a ser o outro lado inevitável da
moeda do progresso.
204  MARCIANO LOPES E SILVA

Mesmo para o pensamento positivista, o medo da decadência não


estava descartado. Se o evolucionismo, por um lado, despertava uma
excessiva confiança no avanço da humanidade, por outro, também
abria uma brecha para a emergência do pessimismo. Afinal, havia duas
fortes razões para isso: 1) a seleção natural que leva ao aperfeiçoamento
das espécies também pode levá-las à extinção, caso não se adaptem
às mudanças do meio em que vivem; 2) no processo de hereditarie-
dade, os genes responsáveis por traços físicos e/ou comportamentos
considerados “selvagens” também podem ser transmitidos aos seus
descendentes – fenômeno que era chamado de “atavismo”.
É interessante observar que as teorias evolucionistas forneceram
“munição” tanto para aqueles que afirmavam a superioridade da “raça
branca”, e assim justificavam o colonialismo, como também serviu
àqueles que contestavam a sociedade moderna, entre os quais se encon-
travam desde conservadores, como Hippolyte Taine e Charles Ferré,
até homens progressistas como Auguste Comte, Max Nordau, Émile
Zola e o famoso criminalista Lombroso, que, em seu livro O homem
branco e o homem de cor (1871), considerava os brancos europeus como
sendo “o ápice evolucionário da espécie humana e a personificação dos
dons morais e intelectuais do homem” (Herman, 1999, p.126).

Os cientistas mais preocupados com a degeneração eram, com pou-


cas exceções, fortemente progressistas e até mesmo socialistas em suas
opiniões políticas. Estavam longe de serem os conservadores defensores
do status quo, como costumam ser apresentados por alguns historiado-
res. Lombroso, por exemplo, era membro do Partido Socialista Italiano
e construiu sua carreira combatendo a pobreza e a desnutrição entre os
meeiros agrícolas mais pobres, o que fez com que ganhasse a antipatia da
aristocracia e dos proprietários rurais. [...]
Max Nordau, o autor do influente Degeneração, era um democrata
igualitário e admirador da Revolução Francesa. Detestava a aristocracia, o
esnobismo social, a religião e as riquezas herdadas quanto amava a ciência
e a razão. Muito disso poderia ser dito sobre muitos dos principais eugenis-
tas, que tomaram impulso a partir da teoria da degeneração. Ernst Haeckel
era membro fundador da Liga Nacional da Paz, bem como da Sociedade
para a Higiene Racial, enquanto Karl Pearson, diretor do Laboratório
O MAL DE D. QUIXOTE  205

Galton, era socialista. De fato, a ameaça da degeneração tornou-se uma


das questões sobre a qual socialistas, radicais e liberais do fim do século
XIX concordavam plenamente. (ibidem, p.121)

A miséria e a criminalidade resultantes do rápido desenvolvimento


do capitalismo industrial e bancário eram fatores de depreciação do
meio e, como tais, estavam concorrendo para a maior probabilidade
de seleção de genes que determinassem características adaptadas a
tais condições, genes que, por necessidade, selecionariam caracte-
rísticas físicas e mentais consideradas “selvagens”. Daí o aumento
da criminalidade e a dissolução da moral, dos bons costumes e das
tradições, que conferiam estabilidade e segurança às sociedades pré-
industriais. Assim pensavam a maior parte dos cientistas, tais como
Benedict Morel, considerado o fundador da escola francesa da teoria
da degeneração, e seus seguidores que, além das causas hereditárias,
também consideravam “que as forças ambientais poderiam ser até
mais importantes que a hereditariedade para disparar o processo de
degeneração, muito mais visível entre as classes inferiores” (Her-
man, 1999, p.131). Por conseguinte, as idéias de progresso e seleção
natural não garantiam a existência eterna das civilizações ou mesmo
da humanidade, visto que até imensos e brilhantes impérios, como
Roma e Egito, ou os gigantes e poderosos dinossauros haviam desa-
parecido do planeta, deixando apenas ruínas e ossadas como provas
de sua existência.
Tais conclusões pessimistas não eram total novidade, pois já po-
diam ser encontradas décadas antes no Ensaio sobre a desigualdade
das raças humanas (1851) de Joseph-Arthur de Gobineau. Para ele,
que é tido como o pai do “arianismo”, a raça branca é a mais evoluída
e refinada de todas. Entretanto, considerava que ela se corrompera e
estava em vias de desaparecimento diante de “um processo de cor-
rupção, simbolizado pela miscigenação racial” (Herman, 1999, p.68).
Segundo seu ponto de vista, “a civilização européia não possuía uma
progressão linear ascendente da barbárie à civilidade ou da escravidão
à liberdade. [...] A história passa a ser [portanto] um ciclo interminável
de guerras, miscigenação e conquistas” (ibidem, p.69).
206  MARCIANO LOPES E SILVA

No Brasil, o impacto dessas teorias também foi muito forte. Em


um país novo que precisava se consolidar política e economicamente,
necessitando, para tanto, construir uma identidade nacional, elas não
poderiam ser ignoradas. Todavia, a aplicação dos seus conceitos e mo-
delos interpretativos no contexto sócio-histórico brasileiro não poderia
resultar em conclusões animadoras. Conforme observa Renato Ortiz
(1986, p.14), as teorias raciais possibilitavam, sob um ponto de vista
político, “à elite européia uma tomada de consciência de seu poderio
que se consolida com a expansão mundial do capitalismo”, mas quando
aplicadas ao contexto nacional da época, colocavam sérios problemas
aos intelectuais brasileiros.
Raciocinando com base nas teorias evolucionistas de Darwin e
Spencer, assim como nas teorias da degeneração, a conclusão inevi-
tável era que “o estágio civilizatório do país se encontrava assim de
imediato definido como ‘inferior’ em relação à etapa alcançada pelos
países europeus” (ibidem, p.15). E, de acordo com tais princípios, não
haveria perspectivas de melhora, posto que a miscigenação acarretasse
em degeneração racial, prevalecendo os caracteres das raças inferiores
sobre os das raças superiores. Também não seria muito diferente acaso
se considerassem a filosofia da história traçada por Auguste Comte
ou o historicismo de Hippolyte Taine, elaborados de acordo com o
positivismo e a idéia do determinismo de raça, momento e meio.
Em As origens da França contemporânea, Taine argumentava, por
exemplo, “que os ‘germes’ [termo usado no século XIX para genes]
destrutivos haviam entrado na corrente sangüínea da França por meio
das multidões revolucionárias de 1789” (Herman, 1999, p.131), cau-
sando instabilidade política e crise social. Em razão disso, afirmava que
“France est entrée dans un état de décadence” (apud Peylet, 1986, p.17),
que podia ser comparado ao estágio final do Império Romano. Auguste
Comte, por sua vez, desenvolveu uma filosofia da história que, similar
à de Hegel (1999), via o progresso como resultante do desenvolvimento
do espírito humano, de modo que, coincidentemente, as civilizações
mais evoluídas eram as européias, cuja etnia era branca. E sua teoria,
como já foi dito, também não apresentava perspectivas otimistas com
relação ao Novo Mundo e, em especial, à realidade brasileira, visto que,
O MAL DE D. QUIXOTE  207

segundo os três graus de desenvolvimento considerados por Comte,


a imensa maioria da população brasileira, que era negra e índia, se
encontrava ainda nos estágios fetichista e politeísta do estado teológi-
co, enquanto os portugueses teriam, no máximo, atingido o segundo
estado – que é o metafísico. Em contrapartida, a civilização francesa
é a que se encontrava mais adiantada, sendo o melhor exemplo do
último estado – o positivo.
Não devemos, porém, sobrevalorizar as explicações científicas e
biológicas para a compreensão da idéia de decadência, que tanto mar-
cou o final do século XIX. O pessimismo da filosofia de Schopenhauer
e sua releitura por Nietzsche, a decepção com o terror da Revolução
Francesa e com a postura imperialista de Napoleão, a frustração popu-
lar com as revoluções fracassadas que marcaram o século XIX (Saliba,
1991; Talmon, 1967) e a permanência da visão de mundo romântica
também contribuíram em muito para a disseminação dessa idéia e dos
sentimentos de melancolia e tédio que a acompanharam. Mesmo por-
que, tratando-se da obra ficcional de Raul Pompéia, a temática racial
quase não se faz presente e a idéia de decadência não se fundamenta
em teorias biológicas, conforme vimos até o momento.
Apesar de fervoroso abolicionista, Raul Pompéia não usou a lite-
ratura ficcional como instrumento de combate a favor da causa, salvo
nos contos “O hino auriverde” (Pompéia, 1981c, p.99-101), de 1883, e
“50$000 de gratificação” (ibidem, p.155-7), de 1885. Aliás, o primeiro
está longe de se encontrar entre os seus melhores textos em razão da
excessiva carga de sentimentalismo romântico. A mesma ausência
ocorre nas suas crônicas poéticas. Entre elas, encontramos apenas uma
em que a temática da miscigenação é tratada: “O carnaval no Recife”
(a seguir, na íntegra), publicada na Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro),
em 10 de março de 1886, com o subtítulo “Impressão de viagem”. No
entanto, a temática racial é tratada de modo subliminar, pois o tema
que se encontra em primeiro plano é o do entrudo. Nela, Raul Pompéia
utiliza uma mesma alegoria já desenvolvida na crônica “Filosofia carna-
valesca”, também publicada na Gazeta da Tarde, em fevereiro de 1882
(Pompéia, 1982d, p.339-40), e por intermédio da qual compara o povo
ao rio e ao mar, cuja torrente d’água representa a energia da luta.
208  MARCIANO LOPES E SILVA

Às quatro da tarde começa.


O povo alvoroçado derrama-se pelas ruas.
Encarapitam-se às guarnições de ferro das pontes, formando ver-
dadeiros cachos humanos, cujo aspecto caprichoso a placidez das águas
reproduz em grandes manchas escuras incertas que o refluxo do rio não
consegue dissolver. Apinham-se ao longo das calçadas e em toda a linha
do cais; enchem as praças.
Às janelas, de todos os andares de todos os prédios, as senhoras
debruçam-se, olhando, sobre a multidão, massa preta confusa de ombros e
chapéus que se agita, produzindo um vasto zumbir de vozes e de passos.
Pouco a pouco, começa negra multidão a pontear-se de cores claras.
Aqui vermelho, acolá verde, roxo àquela esquina, azul mais adiante,
branco em muitos lugares. Multiplicam-se os pontos e as cores, surgem,
na onda do povo, como estrelas, ao cair da noite, uns após outros, aos
grupos, às porções, alinhados, dispersos.
Em meio do povo abrem-se sulcos e por aí desfilam intermináveis
bandos de homens e mulheres fantasiados. Vão chegando os maracatus.
Antes das seis horas, o carnaval tem conquistado a cidade.
A massa viva dos transeuntes perde o primitivo aspecto geral de ne-
grume, à invasão das cores claras que surgem de repente, como nascidas
da calçada. Modifica-se de todo a fisionomia das ruas e das praças.
Dominava a cor preta, o caleidoscópio transformou-se; vai dominando
agora o branco.
Por toda parte o maracatu.
O uniforme desses originalíssimos bandos de foliões é uma combi-
nação do branco com todas as cores possíveis. O branco em dous terços,
na proporção.
De cima, do alto da janela, vê-se como inundação aquele tumulto
de refolhadas vestes brancas, gorros brancos que dançam, braços que
se elevam, alçando pandeiros, amplos calções nitentes que saracoteiam,
pantufos de neve que saltitam e uma tempestade de fitas multicores,
doudejantes sobre os grupos, como iriados coriscos.
Presencia-se então o conflito das duas cores opostas. O preto e o bran-
co, confundem-se, como no entremeado das tábuas do xadrez, ou separam-
se distintos em zonas sem mescla, como na bandeira prussiana.
Giram em turbilhão, comprimem-se, repelem-se, tentam de parte a
parte rechaçar a cor adversa e conquistar o domínio exclusivo das ruas.
Não dura muito o combate.
O MAL DE D. QUIXOTE  209

Notavam-se já em diversos pontos repentinas explosões de alva


poeira.
As explosões tornam-se mais freqüentes. Rebentam de todos os cantos.
Alvacento nevoeiro espalha-se em transparente camada sobre o povo.
Começa o entrudo do polvilho.
As insolências das águas nos nossos entrudos fluminenses, mal dão
idéia do arrojo da irreverência, do polvilho e da maisena do entrudo
pernambucano.
Não pode mais resistir a cor preta. O reforço do polvilho vem dar
vitória decisiva ao branco.
O nevoeiro alvacento engrossa-se. Ombros e chapéus primitivamente
negros, alvejam agora como se lhes caísse a neve por cima.
Não se distingue mais o maracatu no meio do povo.
Não há mais chapéus, não há mais ombros. Não se distinguem braços
nem pandeiros.
À medida que se vai cerrando o crepúsculo, um daqueles límpidos
crepúsculos do Norte, cerra-se igualmente a tempestuosa nuvem de
polvilho.
Uniforme brancura opaca e imóvel substitui a perspectiva acidentada
da multidão em tropel.
Dos elevados pontos de vista nada mais se percebe através da nuvem.
Ouve-se apenas lá embaixo o alarido do povo em festa e a música
selvagem e rude do maracatu, meio africana meio indígena, barulhos
de guizos, roncos de buzinas, trovoadas de tambores. (Pompéia, 1983,
p.42-4)

Para pensarmos no significado atribuído à miscigenação racial


nessa crônica, é imprescindível considerarmos o nível estético de
elaboração, que prima não somente pelo uso da alegoria, como tam-
bém pelo estilo impressionista. Para tanto, é importante observarmos
o trabalho com as cores, a suavidade e a dinâmica das pinceladas
que, inicialmente partindo do preto, vão aos poucos se iluminando
e dando passagem a diversas cores rumo ao branco, que é a presença
de todas elas. A luta entre os dois pólos opostos não constitui apenas
um exercício estético impressionista, mas também pode ser lido como
alegoria das lutas sociais. Por um lado, pode representar a opressão
das elites brancas sobre os deserdados, cuja cor escura (sejam negros,
210  MARCIANO LOPES E SILVA

mulatos ou índios) os identifica com o povo brasileiro; por outro lado,


pode representar a união de todas as raças, miscigenação formadora
da identidade nacional conforme propunha Sílvio Romero, para
quem a mistura racial poderia levar a uma depuração dos caracteres
negativos das raças ditas inferiores. Em seu estudo sobre O método
crítico de Sílvio Romero, Candido (1988, p.106) considera que ele
conseguiu apreender:

[...] o caráter verdadeiro da civilização brasileira: não apenas fusão étnica,


que nunca foi integral, mas aquilo que hoje chamaríamos aculturação,
processo social advindo do contato das etnias formadoras, que ele não
só distinguiu perfeitamente, como erigiu em critério interpretativo por
excelência, dando-lhe o nome sugestivo de mestiçagem moral e pondo-o
na base da sua teoria da literatura pátria.

Essa perspicácia, no entanto, não impede Sílvio Romero de ser


preconceituoso e contraditório, oscilando entre uma postura revolu-
cionária e outra conservadora, sustentáculo da famigerada “ideologia
do branqueamento”:

Ora achava o mestiçamento um bem, pois de outro modo não haveria


adaptação do branco ao trópico; ora, com mais pessimismo, julgava-o um
mal inevitável, quase humilhante. As mais da vezes, contudo, tomava
como fato consumado e se alegrava com as perspectivas de branqueamento
final – teoria que foi o primeiro a expor no Brasil. (ibidem, p.98)

É muito interessante tal ambigüidade, pois dela resulta que o pro-


cesso de branqueamento da multidão representado na crônica tanto
pode ser interpretado como alegoria da ideologia do branqueamento,
no caso de o branco ser uma metonímia das elites, assim como alegoria
da união de diferentes raças na formação multiétnica do povo brasileiro,
visto que o branco é a união de todas as cores segundo as leis da física
óptica – o que Raul Pompéia muito provavelmente sabia, visto seu
conhecimento da teoria física das vibrações e seu gosto pela pintura.
Dessa ambigüidade infernal resulta, segundo as palavras do próprio
autor (em sua crônica sobre a alegoria, já vista no segundo capítulo),
O MAL DE D. QUIXOTE  211

a necessidade de interpretar “não o sentido oculto que a alegoria en-


cerra, mas o duplo sentido possível, a dubiedade esperta, contida nas
frases neutras, ao saber ao mesmo tempo de Deus Nosso Senhor e de
Satanás” (Pompéia, 1983, p.373).
Descartada a variável genética, pouco provável se considerarmos o
jacobinismo radical de Raul Pompéia, que pregava contra a imigração
e a presença portuguesa na economia e na política nacionais (Queiroz,
1986; Carvalho, 1987), consideremos as variáveis socioeconômica e
cultural como causas ou índices do movimento de decadência.
Entre os fatores socioeconômicos, encontramos em Canções sem
metro a industrialização e o capitalismo como elementos promotores da
miséria social e humana. Vimos que a postura com relação à indústria
é ambígua, pois se, por um lado, ela é, em grande parte, associada à
destruição da natureza e à desumanização, por outro, ela é vista como
necessária ao progresso material. Ambigüidade que não se apresenta
em relação ao comércio e, mais especialmente, ao capitalismo bancário,
então em pleno desenvolvimento não somente na Europa. Lembremos
que, no Brasil, tínhamos o desenvolvimento da especulação financeira
já ao final do Império, febre que levou a uma onda de arrivismo cujo
ápice desastroso se encontra no Encilhamento. E é interessante não
encontrarmos nos contos de Raul Pompéia tais motivos tematizados,
salvo com respeito à presença da indústria, visto que no final do século
XIX ela era ainda muito incipiente.
A degradação resultante da exploração capitalista, por sua vez, é
tratada de modo alegórico em seus contos, assim como em O Ateneu,
em que o comércio e o lucro constituem motivos constantes, especial-
mente na prática pedagógica desenvolvida por Aristarco e ironizada
inúmeras vezes por Sérgio. Aliás, o motivo da decadência é impor-
tantíssimo nesse romance, visto que o colégio constitui uma alegoria
do Brasil no momento de decadência do Império, assim encerrando
um ciclo da história brasileira. Tal visão é explicitamente esboçada na
primeira conferência do professor Cláudio, durante a sessão de abertura
do Grêmio Literário Amor ao Saber, em que representa “a nação como
um charco de vinte províncias, estagnadas na modorra paludosa da
mais desgraçada indiferença” (Pompéia, 1981b, p.151):
212  MARCIANO LOPES E SILVA

Por entre os raros caniços, emergem olhos de sapo, meditando a van-


tagem daquela paz sombria, indolência negra, em que chega a ser vigor de
vontade estrebuchar quatro arrancos através da onda grossa em busca da
fêmea. A arte significa a alegria do movimento, ou um grito de suprema
dor nas sociedades que sofrem. Entre nós, a alegria é um cadáver. [...] O
pântano das almas é a fábrica imensa de um grande empresário, organização
de artifício, tão longamente elaborada, que dir-se-ia o empenho madrepórico
de muitos séculos, dessorando em vez de construir. É a obra moralizadora
de um reinado longo, é o transvazamento de um caráter, alagando a perder
de vista a superfície moral de um império – o desmancho nauseabundo,
esplanado, da tirania mole de um tirano de sebo!... (ibidem, p.152)

A idéia de que a comparação do Império com um charco representa


a fase final de um ciclo da história brasileira se completa ao final da
conferência, que ocorre após o tumulto que a interrompe. Ao retomar
a palavra, o professor Cláudio assim descreve o futuro da nação:

O orador na tribuna, erecto e calmo, promontório sobre a tormenta,


esperava que o alvoroço chegasse a termo. Apenas viu arrefecer o furor dos
impropérios: “Corramos um véu sobre o cenário desolador”, continuou;
“venha em socorro a esperança de um renascimento...” E por aí habilido-
samente conduzindo a oração, acabou por um quadro de futuro, armado
em aurora sobre a tribuna, pórtico de luz, jorrando um deslumbramento
que extasiou os ouvintes com o encanto dos vaticínios felizes, levando o
sopro da viração matutina as nuvens do desânimo esfumadas antes sobre
o panorama. (ibidem, p.154)

Conforme se vê, segue-se à decadência do Império um novo perío-


do, de renascimento. Período esse que é o da desejada República, não
nomeada de modo explícito por razões óbvias. E aqui encontramos um
importante ponto de diferença entre O Ateneu e Canções sem metro,
assim como entre a idéia de decadência presente em cada uma dessas
obras. Na primeira, Raul Pompéia realiza uma obra desprovida de
qualquer nacionalismo ufanista. Em conformidade com a aspiração
universalizante do romantismo alemão e da literatura simbolista,
Canções sem metro apresenta-se como uma obra que busca representar
a história universal, ou, mais propriamente, ocidental, não se prendendo
O MAL DE D. QUIXOTE  213

a problemas nacionais. Sua vocação é universal e transcendente. Diversa


é a realização de O Ateneu. Sem deixar de ser universal, ele é também
um libelo contra o Império e uma sátira às elites do Segundo Reinado.
Enquanto a primeira pensa o movimento histórico de modo amplo, a
segunda pensa de modo mais estrito, dando ênfase à reflexão sobre a
história do Brasil. E nesse ponto vemos como a visão de decadência
na obra de Raul Pompéia assume matizes particulares com relação ao
decadentismo francês pelas diferenças conjunturais entre a sociedade
brasileira e a francesa. Para Proudhon, assim como para os decadentistas
e os simbolistas, a sociedade européia se encontrava em um momento de
decadência correspondente à crise do capitalismo, que era considerado,
então, no seu auge. Sobre isso é significativo o manifesto decadente es-
crito por Anatole Baju (1972, p.35) aos leitores do jornal Le décadent:

Dissimular o estado de decadência em que chegamos seria o cúmulo


da insensatez.
Religião, costumes, justiça, tudo decai, ou logo sofre uma transfor-
mação inelutável.
A sociedade se desagrega sob a ação corrosiva de uma civilização
delinqüescente.
O homem moderno é um insensível.
Afinamento de apetites, de sensações, de gosto, de luxo, de prazer;
nevrose, histeria, hipnotismo, morfinomania, charlatanismo científico,
schopenhaurismo em excesso, tais são os pródomos da evolução social.
[...]
A decadência política nos deixa frígidos.
Ela continua, aliás, conduzida por esta seita sintomática de politiquei-
ros cuja aparição era inevitável nessas horas enfraquecidas.

No Brasil, o capitalismo industrial e bancário estava no início. O


que se encontrava em queda, aqui, era a ordem imperial e a economia
escravocrata. Disso decorre a confiança ainda existente, na obra de
Raul Pompéia, no poder regenerador da indústria e da democracia.
Diferença conjuntural que possibilitou a crença no mito da América
e do Brasil como terras prometidas, regeneradoras do Velho Mundo,
então considerado decadente.
214  MARCIANO LOPES E SILVA

Diversamente se apresenta a temática da decadência nos contos,


que se situam no meio do caminho entre as duas veredas trilhadas em
Canções sem metro e em O Ateneu. Neles encontramos tanto a reflexão
crítica sobre conflitos que extrapolam os problemas específicos da so-
ciedade brasileira, valendo para a sociedade burguesa em geral, como
encontramos a sátira a problemas e situações caracteristicamente na-
cionais. Em comum às duas vertentes, a escolha de questões de ordem
moral que giram em torno do amor e do casamento.
A corrupção moral considerada uma das causas ou índices da
decadência encontra-se, conforme já dissemos, tanto na avaliação de
historiadores da Antiguidade a respeito da queda do Império Romano,
assim como entre a obra de historiadores iluministas. Tratando-se da
sociedade ocidental do final do século XIX, a degradação dos costu-
mes é associada especialmente à instituição do casamento, visto ser
fundamental para a consolidação da nova ordem burguesa advinda da
revolução industrial e econômica que instaura a modernidade. Nesse
cenário, a defesa do casamento monogâmico e desprovido de erotismo
não é privilégio de conservadores e/ou da Igreja – seja católica, seja pro-
testante. No século XIX, a defesa dessa instituição, assim como de uma
rígida moralidade e da posição subalterna das mulheres, constitui quase
uma obsessão social (Gay, 1990) e é feita até mesmo por pensadores
revolucionários, tais como Marx e Proudhon. Para o segundo, que nos
interessa especialmente, visto ser um interlocutor de Raul Pompéia,
o casamento e a família são as grandes instituições responsáveis pela
justiça e pelo equilíbrio sociais, pois, segundo ele, a única forma de a
idéia de justiça se tornar positiva e imperiosa é materializando-se no
organismo da parelha conjugal, visto que:

[...] la justice est nécessairement duelle [...]. C’est par le mariage que l’homme
apprend, de la nature même, à se sentir doublé: son éducation sociale et son
élevation dans la justice ne seront que le développement de ce dualisme...
(Proudhon, [19--a], p.318)19

19 “a justiça é necessariamente dual [...]. É através do casamento que o homem aprende


da natureza mesmo, a se sentir duplo: sua educação social e sua elevação para a justiça
nada mais são do que o desenvolvimento deste dualismo” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  215

Para que o matrimônio seja possível, é necessário o amor, o que, na


opinião de Proudhon, nada mais é do que o impulso para o ideal cuja
materialização se encontra na mulher, “personificación de la conciencia
del hombre [...] encarnación de su juventud, de su razón y de su justicia,
de lo que existe en él de más puro, más íntimo, más sublime” (Proudhon,
[19--b], p.134).20 Disso resulta que “la corrupción de las sociedades no
empieza por las generaciones que han amado, sino por las que no han ama-
do aún o han reemplazado el amor por el goce”21 (ibidem, p.140). E nesse
ponto, reencontramos tanto a idéia de decadência ligada à corrupção
moral como a idéia do eterno feminino de Goethe e dos românticos,
que viam na mulher a encarnação divina da beleza e do amor.
Quando apontamos aqui as afinidades estéticas e ideológicas entre
Raul Pompéia e Proudhon, não queremos dizer que o segundo tenha
influenciado o primeiro. Tal conclusão, além de cometer o equívoco
do etnocentrismo, também pecaria por desconsiderar que os valores
do casamento, da família, da submissão feminina e da castidade estão
disseminados na sociedade, encontrando-se presentes em diversas
ideologias. No século XIX, tais valores são compartilhados por cató-
licos e positivistas, que constituem grande parte da elite brasileira na
época, assim como por escritores realistas e naturalistas, por um lado,
e românticos, decadentistas e simbolistas, por outro. Entretanto, o
uso da alegoria e a conseqüente rejeição ao realismo fotográfico, assim
como o uso da ambientação romântico-impressionista, são aspectos
relevantes que, juntamente com a escolha do eterno feminino, revelam
o afastamento de Raul Pompéia dos valores estéticos do receituário
realista-naturalista, aproximando-o dos simbolistas, românticos e
decadentistas, assim como de Proudhon e de Schopenhauer no que
diz respeito ao valor atribuído à alegoria e à relação estabelecida entre
decadência social e corrupção da moral e dos costumes. E o mesmo vale
com relação à arte de Baudelaire. Aliás, a intertextualidade com ela é

20 “personificação da consciência do homem [...] encarnação de sua juventude, de


sua razão e de sua justiça, do que nele existe de mais puro, mais íntimo, mais
sublime” (tradução do autor).
21 “a corrupção das sociedades não começa pelas gerações que amaram, mas pelas
que não amaram ainda ou que trocaram o amor pelo gozo” (tradução do autor).
216  MARCIANO LOPES E SILVA

muito forte, conforme pudemos ver. O uso da alegoria, a contradição


entre interioridade e aparência, entre o ideal e a realidade que o nega,
o movimento de ascensão e queda, a melancolia, a dor das ilusões
perdidas e a ironia amarga não somente sugerem como também con-
firmam a existência de uma forte afinidade estético-ideológica entre
Raul Pompéia, o poeta francês e os artistas ligados ao decadentismo
e ao simbolismo, que o tomaram como um dos fundadores destes
movimentos em oposição ao naturalismo, conforme podemos ler no
texto L’école décadente de Anatole Baju (1989, p.89): “Contudo, este
movimento literário não data de hoje: Baudelaire poderia ser chamado
seu verdadeiro predecessor. Encontramos nas Fleurs du mal o germe
de todas as belezas que admiramos e sobretudo a idéia que presidiu a
concepção da escola decadente”.
Charles Baudelaire e Raul Pompéia utilizam várias formas com-
posicionais em comum (analogias, alegoria, ironia, a narrativa fabular,
o movimento estilístico de ascensão e queda) subordinadas às idéias
de decadência e desilusão que orientam uma forma arquitetônica
caracterizada pelo efeito final epifânico, ou, em outras palavras, pelo
efeito de totalidade. Entretanto, apesar da profunda afinidade estético-
ideológica entre ambas as obras e a forma arquitetônica comum, há uma
diferença na maneira como as desilusões são vivenciadas na memória
dos narradores e transmitidas ao leitor. Nos poemas em prosa de
Baudelaire, o narrador relata experiências pessoais ou de amigos que
possuem um significado especial, uma experiência da qual podemos
extrair uma moral, assim como fazemos com as fábulas e as parábolas.
Nos textos de Raul Pompéia, as narrativas também são exemplares,
mas o narrador não afirma isso e nem explicita diretamente qualquer
moral que delas possa se depreender, deixando ao leitor a tarefa de
decifrar as alegorias, assim como a possibilidade de ser tocado pelas
epifanias dos efeitos finais.
No fragmento que destacamos do poema em prosa “La corde”, a
pretensão do narrador ao revelar uma verdade surpreendente ao leitor
é explícita, uma vez que ele, antes de passar a palavra ao amigo pintor,
afirma que a história que contará é exemplar para desmistificar as ilu-
sões mais naturais. O mesmo ocorre em “Les yeux des pauvres”, cuja
O MAL DE D. QUIXOTE  217

moral irônica já transcrevemos, e em “Le joujou du pauvre”, texto em


que o narrador afirma que apresentará ao leitor um divertimento ino-
cente, algo provavelmente raro, posto que: “Il y a si peu d’amusements
qui ne soient pas coupables”22 (Baudelaire, 1996, p.100). Ao afirmar a
raridade da experiência a ser relatada, ele imprime um caráter exemplar
e moral à sua narrativa, de modo que “elle pourrait désormais être lue non
plus seulement comme référence à une chose vue, mais aussi comme une
sorte de conte moral, d’apologue, ou de parabole”,23 conforme observa
Franck Bauer (1997, p.22) em seu estudo sobre as operações realizadas
para a transformação da crônica jornalística “Morale du joujou” no
poema em prosa “Le joujou du pauvre”. E a moral invariavelmente
servida com amarga ironia nos textos analisados é sempre a do desen-
gano, a do desencanto resultante de uma aparência enganadora e de
um ideal ilusório. Ou não será irônico propor que o divertimento de
aprisionar um animal não seja algo desprovido de culpas, ou seja, de
pecados? Para que assim seja, tal atitude deve ser regida unicamente
pelos instintos, não existindo uma dimensão espiritual que os negue
como inferiores. Mas tal opção é deveras amarga e inaceitável para
uma sociedade cristã, visto que reduz a inocência à condição animal
como última e essencial da natureza humana.
Nos textos de Pompéia o caráter da revelação é diverso e qualquer
conclusão moral exige muito mais esforço interpretativo do leitor.
Embora a desilusão com os ideais seja um tema recorrente e central,
em seus textos há uma transcendência inexistente nos poemas em prosa
do poeta francês. Apesar da desilusão, os ideais não são rejeitados,
mas servem à evasão, pois continuam a viver na memória do narrador
e/ou dos protagonistas, remetendo-os (e o leitor, por extensão) para
um mundo e um tempo utópicos, conforme ocorre mais visivelmente
em “O perfume dos bolos” e em “Olhos”. No primeiro, embora
tenham passado seis anos da morte de Berta, e o vendedor dos bolos

22 “Há poucos divertimentos que não sejam culpáveis” (tradução do autor).


23 “ela poderia de agora em diante ser lida não somente como referência a uma coisa
vista, mas também como uma sorte de conto moral, de apólogo, ou de parábola”
(tradução do autor).
218  MARCIANO LOPES E SILVA

no tempo da enunciação seja um menino maltrapilho e com olhos de


cão escorraçado, para o narrador “a portadora dos bolos continua a ser
Berta, a menina azul” (Pompéia, 1981c, p.125). Para o velho senhor
melancólico do segundo texto, o mundo idílico da infância perdida
e o paraíso celeste continuam a morar nos olhos de Ema, embora ela
viva apenas na lembrança dele. Daí a necessidade de contar para o
narrador e este para o leitor a história dela, pois assim eles a mantêm
viva na memória. Diversamente ocorre nos textos de Baudelaire, em
que a memória serve para a transmissão de uma experiência negativa
e desmitificadora, que não deixa margem para qualquer idealização
ou transcendência, conforme podemos ver nas ironias apontadas,
especialmente naquela que antecede e anuncia, em “Le gâteau”, a
desilusão do promeneur:

[...] grâce à l’enthousiasmante beauté don’t j’étais environné, en parfaite


paix avec moi-même et avec l’univers; je crois même que, dans ma parfaite
béatitude et dans mon total oubli de tout le mal terrestre, j’en étais venu à ne
plus trouver si ridicules les journaux qui prétendent que l’homme est né bon.
(Baudelaire, 1996, p.80)24

Nos textos de Pompéia, a ironia é romântica e não cética, porque


muito mais ambígua, assim permitindo ao leitor o movimento dia-
lético da dúvida e da necessidade de superar quaisquer das leituras
possíveis, posto que “le mouvement de l’ironie fait que l’esprit ne peut
s’arrêter à un seul terme, et accomplit un incessant va-et-vient entre le
fini et l’infini, le déterminé et l’indéterminé, tel que chaque négation
suscite immédiatement une syntèse créatrice”25 (Bourgeois, 1974, p.31).
Dessa forma, o leitor é colocado ante o impasse dos ideais degradados,

24 “graças à entusiasmante beleza que me rodeava, em perfeita paz comigo mesmo e


com o universo, eu acredito até que, em minha perfeita beatitude e em meu total
esquecimento de todo mal terrestre, sou levado a não mais achar tão ridículos os
jornais que afirmam que o homem nasceu bom” (tradução do autor).
25 “o movimento da ironia faz com que o espírito não possa se deter em um só termo
e produz um incessante vai-e-vem entre o finito e o infinito, o determinado e o
indeterminado, de modo que cada negação suscite imediatamente uma síntese
criativa” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  219

representados pelas mulheres e pelas crianças mortas e/ou prostituí-


das, e da necessidade de buscá-los, uma vez que eles são reafirmados
na identificação sentimental que o narrador apresenta com elas. Ao
buscar preservá-las intactas na memória, ele procura mantê-las vivas
além da sua própria experiência, transmitindo aos leitores a imagem
delas como possíveis exemplos, embora fugazes, do ideal neste plano
de existência – o que é totalmente impossibilitado pela ironia noire
de Baudelaire. Tal paradoxo, que fundamenta a ironia romântica, é
visível em “O perfume dos bolos” e especialmente em “A andorinha
da torre”, em que a morte da menina e a do avô podem ser interpreta-
das tanto como alegorias da falência dos ideais como da libertação da
alma, que, num movimento de ascese e elevação, abandona os corpos
em direção ao céu – o que é sugerido pela simbologia da andorinha e
pelo olhar do seu avô em direção à torre da igreja e depois para o alto,
após ver a neta morta. É ainda interessante observar que o narrador
afirma lembrar dessa história ao ouvir os sinos tocarem e não de todo o
aparato pomposo e rico presente no interior das igrejas católicas. Essa
afirmação, que evidentemente não se apresenta à toa, sugere que ele
reconhece a pureza da alma e a religiosidade ideal entre os humildes e
os pobres e não no poder da Igreja, que se revela, entre outras coisas,
na ostentação dos seus cultos e imagens.
Aliás, outro aspecto que imprime aos textos de Raul Pompéia uma
transcendência inexistente nos de Baudelaire é o uso intenso do símbolo
na construção das alegorias. Embora, do ponto de vista romântico, elas
sejam condenáveis pelo seu teor didático, privilegiando o particular em
vez do universal, o uso dos símbolos recupera essa última dimensão,
exigindo a identificação imediata da idéia na imagem, o que deve pro-
vocar no leitor a revelação luminosa da epifania antes de qualquer en-
tendimento racional da alegoria. Lembremos que Berta é antes de tudo
a “menina azul” e que Rita era conhecida por todos como a “andorinha
da torre”. A pureza espiritual delas cristaliza-se nessas imagens que,
independentemente de qualquer fracionamento analítico das partes,
inscrevem-se na memória com a força imagética dos símbolos.
Perante tais análises e considerações, somos inclinados a consi-
derar que a figura da criança apresenta na obra de Baudelaire o valor
220  MARCIANO LOPES E SILVA

de alegoria, assim como na de Raul Pompéia. Nas duas obras há uma


representação da infância tensionada pelo mito romântico da infância
dourada, conforme analisamos no artigo “Os pobres infantes de Raul
Pompéia e de Charles Baudelaire” (Silva, 2004a), mas a tensão não
prevê espaço para a transcendência nos poemas em prosa de Baudelaire,
diversamente do que ocorre nos textos de Pompéia. Enquanto a tensão
resulta num paradoxo constituinte de uma ironia noire no primeiro
caso, ela é constituinte de uma ironia romântica no segundo. Ante
o desencanto com os ideais românticos frustrados pelo capitalismo,
ambas as ironias expressam a dor e as ruínas por meio da figura da
criança pobre e explorada. Motivo já comum na poesia romântica e
posteriormente reiterado na poesia simbolista, conforme podemos ver,
por exemplo, no poema “Melancholia” de Victor Hugo, no homônimo
de Cruz e Sousa e no poema em prosa “Pauvre enfant pâle” de Mallar-
mé, todos os três citados como epígrafes do presente capítulo.
Explicar de forma conclusiva as causas da diferente representação
do desencanto pela memória e os diferentes usos dela na formação de
uma consciência histórica é impossível, embora possamos considerar
várias hipóteses. Se, por um lado, a resposta pode estar em diferenças
de ordem subjetiva, por outro, pode residir tanto no diferente grau
de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e na França como na
diferença das forças internas aos campos literários, uma vez que o
decadentismo e o ideal da arte pela arte foram mais fortes na França.
Diversamente, no Brasil, a exigência nacionalista de consolidar uma
identidade nacional conferiu um peso e uma duração maiores ao ro-
mantismo conservador. De qualquer forma, apesar das diferenças, em
ambas as obras, a narração se propõe como memória do desencanto,
pois calcada na sabedoria da experiência. Memória que busca recalcar
o desejo do ideal e os mitos que lhe são inerentes, no caso da literatura
de Baudelaire; memória que tenta manter vivos os ideais e os mitos que
lhe são inerentes como força utópica na busca de uma superação das
limitações e das aporias históricas, como parece acontecer nos textos
de Raul Pompéia. No primeiro caso, um “romantismo desromantiza-
do”, conforme expressão de Hugo Friedrich (1991); no segundo, um
romantismo desencantado, mas renitente.
5
O mal de D. Quixote
e as doenças do romantismo

“Je suis le ténébreux. – le veuf, – l’inconsolé,


Le prince d’Aquitaine à la tour abolie :
Ma seule étoile est morte, – et mon luth constellé
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.”
(Gérard de Nerval, “El desdichado”)

“– Et de longs corbillards, sans tambours ni musique,


Défilent lentement dans mon âme; l’Espoir,
Vaincu, pleure, et l’Angoisse atroce, despotique,
Sur mon crâne incliné plante son drapeau noir.”
(Charles Baudelaire,
“Spleen LXXVIII”, Les fleurs du mal)

“Era assim que eu esperava amar, era assim que eu podia


morrer sem saudades da vida, suspirando de amor! Sou um
doido, meus Deus! Por que mergulhar mais o meu coração
nessa lagoa venenosa das ilusões?”
(Álvares de Azevedo, Noite na taverna,
palavras de Penseroso a Macário)

“Foi um tempo de febre:


A imaginação tinha arreganhos, consumia-se em delírios
chochos. Indicava leis de moralidade buscando origem no
sobre natural; fazia das altas virtudes um apanagio com-
222  MARCIANO LOPES E SILVA

mum. Aos grandes viciosos dava um colorido sympathico,


deixando margem á benevolencia; e creando os arrependi-
mentos sublimes, espalhou as regenerações. ”
(Cyro de Azevedo, “O Naturalismo III”,
Gazeta de Notícias, 1884)

Além dos poemas em prosa analisados no capítulo anterior – “A


pomba e a estrumeira” e “Coração” –, são também reveladores da
temática da decadência e da desilusão as canções sem metro “Vigílias
de ouro” e “Vítima do incolor”, assim como o conto “O mal de D.
Quixote” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 de julho de 1883). Se
destacamos este último, não é apenas em razão da figura simbólica do
cavaleiro andante, “martyr de l’idéal que les romantiques s’accordaient à
voir dans le héros de Cervantès”1 (Bourgeois, 1974, p.26). O destaque
dado justifica-se especialmente porque ele inaugura, na obra de Raul
Pompéia, um tema (o conflito entre o romântico e o positivo) e duas
alegorias (“a doença do romantismo” e o “coração extirpado”) que
serão recorrentes e fundamentais para a compreensão da mundividên-
cia dominante em sua obra. Ambas as alegorias colocam em questão
o romantismo e devem ser compreendidas em conjunto, pois estão
intimamente associadas – embora nem sempre apareçam juntas.
Além do mais, a alegoria do coração extirpado tem uma importância
especial por três motivos: primeiro, porque nos lembra inevitavelmente
o modo como Raul Pompéia pôs um ponto final em sua vida, em 1895;
segundo, porque nos remete ao tema do suicídio – presente em pelo
menos quatro contos seus;2 e, terceiro, porque ela reaparece seis anos
depois em um enigmático poema em prosa (“Coração”, 1889) asso-
ciada a outra importante alegoria: a da pomba prostituída pelo ouro,

1 “mártir do ideal que os românticos, em comum acordo, vêem no herói de Cer-


vantes” (tradução do autor).
2 Os textos são “Correspondências íntimas II” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro,
26 de março de 1882); “De madrugada” (Gazetinha, Rio de Janeiro, 9 de fevereiro
de 1882); “Último castelo” (Diário Mercantil, 18 de maio de 1884) e “Mocinha”,
(Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1888). Todos se encontram no
volume 3 (Contos) das Obras de Raul Pompéia (1981c).
O MAL DE D. QUIXOTE  223

presente no poema em prosa “A pomba e a estrumeira”3 datado do


mesmo ano do conto “O mal de D. Quixote”: 1883. A recorrência da
mesma alegoria no início da obra e depois, nos anos de maturidade, em
1889 (após a publicação de O Ateneu e da seção “Pandora” na Gazeta
de Notícias), é um índice de que ela é muito importante e de que a outra
também deve sê-lo, visto estarem associadas. Em suma, os motivos
para destacarmos “O mal de D. Quixote” a ponto de nomearmos a
presente tese de forma homônima podem ser assim sistematizados:

• Primeiro: a expressão “Mal de D. Quixote”, utilizada para aludir à


idéia de que o romantismo era uma doença, expressa talvez o maior
conflito da obra de Raul Pompéia: a relação de amor e ódio com
respeito aos ideais e valores românticos, especialmente àqueles do
amor, da arte pura e da luta revolucionária em defesa da justiça e da
liberdade – que poderiam ser grafados com iniciais maiúsculas.
• Segundo: porque a alegoria do coração extirpado, que antes obser-
vamos no poema em prosa “Coração”, aparece primeiramente no
conto “O mal de D. Quixote”.
• Terceiro: porque a alegoria do coração extirpado nos remete tanto
ao motivo literário do suicídio, presente em pelo menos quatro
contos seus, quanto ao próprio suicídio do autor.
• Quarto: porque o conto foi escrito em 1883, o que demonstra que os
temas do desencanto e das “doenças do romantismo” já eram impor-
tantes para ele desde os primeiros anos de sua produção literária.

Em “Raul Pompéia, contista”, Eugênio Gomes (1958a, p.269) afir-


ma que “O mal de D. Quixote” é uma “obra de afogadilho, deixando
a impressão antes de um esboço”, pois “a intensidade nesse gênero [o
conto] não pode ser obtida mediante excessiva redução, a ponto de
acabar convertida em um instantâneo” (ibidem, p.268). Entretanto, sua
opinião é contraditória, pois antes de fazer a crítica apontada, baseando-

3 Os dois poemas em prosa citados (“A pomba e a estrumeira dourada” e “Coração”)


são analisados em “As ilusões perdidas de Raul Pompéia: a pomba e a estrumeira
dourada” (Silva, 2003a).
224  MARCIANO LOPES E SILVA

se nos critérios pertinentes ao referido gênero, ele mesmo considera


que o texto tem o aspecto de poema em prosa. E talvez em razão dessa
contradição, não percebe que a redução da narrativa ao mínimo – em
busca do instantâneo capaz de gerar o efeito final epifânico – é justa-
mente um dos procedimentos que caracteriza o gênero poema em prosa
tanto na obra de Raul Pompéia como na de Baudelaire.
Outra incompreensão de Eugênio Gomes e de outros críticos
(conforme vimos na Introdução) se encontra na avaliação de que o
tema da loucura em “O mal de D. Quixote” demonstra a influência
do naturalismo na obra de Raul Pompéia. Conforme já afirmavam
os formalistas, nenhum tema é propriedade exclusiva de uma escola
ou estilo de época, pois, na maioria, eles atravessam as sociedades e
o tempo variando de valor conforme os procedimentos utilizados e,
acrescentamos, as visões de mundo que dão forma às arquiteturas dos
textos em que se encontram. Tal é o caso dos temas da efemeridade
(que, na obra de Pompéia, se relaciona ao da decadência) e da loucura,
que, no texto em questão, assim como em outros, é elaborado com base
em procedimentos característicos do estilo romântico.
Outro procedimento que tanto Pompéia quanto Baudelaire utili-
zam na elaboração dos poemas em prosa é a eliminação – ou redução
drástica – da fábula e da intriga, seja em troca de um estilo dramático,
seja, então, de outro que hoje entendemos como característico da
crônica. Em comum a ambos os estilos, encontramos o diálogo com
o leitor ou a enunciação de uma experiência pessoal direcionada para
um Outro. Tratando-se de “O mal de D. Quixote”, vemos que o
texto é quase inteiramente um monólogo, embora ele esteja repleto de
vozes, sendo tensionado pelos discursos do positivismo e das ciências
médicas, de um lado, e pelo do romantismo, de outro. Por sua vez, o
narrador se limita à apresentação do personagem e de alguns poucos
comentários, sem apresentar o sumário de fatos que componham
uma trama e, por conseguinte, uma narrativa propriamente dita. O
resultado é um texto predominantemente dramático.
O personagem patético em questão é um tipo romântico, o que se
revela, entre outras coisas, pelo fato de estar enlouquecido pelo “cora-
ção”, figura que constitui uma metáfora para o sentimento e o idealismo
O MAL DE D. QUIXOTE  225

românticos. Para curar-se, deseja que o médico o arranque do peito,


pois ele “produz, na família, o enamorado, um tolo; na sociedade, o
herói, outro tolo; na literatura, o sentimental, outro tolo; na filosofia, o
melancólico, mais um tolo” (Pompéia, 1981c, p.112), sendo, portanto,
“uma víscera perfeitamente tola” (ibidem, p.111). Para ele, as pessoas se
dividem entre aquelas que são românticas e aquelas que são positivas,
e as primeiras são cômicas e ridículas como D. Quixote, “cavaleiro da
Mancha, eternamente bom, mas eternamente tolo!” (ibidem, p.115):

O positivo é o sério, é o grave, é o normal, é o burguês, é o vulgar, é o


comum, é o tranqüilo, é o prudente, é o fecundo; é o almoço de todas as
manhãs e o jantar de todas as tardes; é a herança para a prole. Fora disso,
o exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idea-
lista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente; o pão nosso de cada dia,
no mais restrito sentido dominical; o tolo, o desfrutável, em suma.
É sempre o mesmo abismo de ridículo, ameaçando o sério e o positivo.
E procuremos o que nos faz pender constantemente para o abismo do
desfrute... É a víscera, é a víscera fatal!... (ibidem, p.112)

Para não se tornar um palhaço no circo da vida, a solução proposta


pelo protagonista em sua loucura é o riso positivo, ou seja, o riso do
sátiro, a gargalhada do cético que, distante na arquibancada, emite
vaias e não se comove com o grotesco e o ridículo do palhaço que
naufraga no palco. Em contrapartida à loucura do romantismo, o
bom caminho proposto pelo protagonista se encontra na seriedade da
ciência, do positivismo e do comportamento burguês acompanhados
de uma boa gargalhada cínica.
Apesar de defender a gargalhada cínica e o riso do sátiro, entretanto,
esse “louco” é incapaz de rir. Por isso, ao encarnar esse paradoxo na
linguagem, que é grandiloqüente e exaltada, recheada de adjetivos,
comparações, figuras de sonorização e metáforas, sua fala termina por
carregar em si a negação do discurso científico e racional, assim se trans-
formando em paródia do mesmo – o que sugere, pela ambigüidade,
uma relação de amor e ódio com o romantismo: “a angústia de quem
crê nos ideais românticos, no idealismo platônico, mas não encontra
mais solo fértil para as suas crenças e aspirações” (Silva et al., 1997,
226  MARCIANO LOPES E SILVA

p.318). Em outras palavras, sua retórica romântica e emocionalmente


desequilibrada trai o elogio a tudo que é positivo, sério, normal, co-
mum, tranqüilo, racional e, portanto, tipicamente burguês.
É ainda mais importante observarmos a posição do narrador em re-
lação ao personagem. A rejeição ao teor positivista da “teoria” também
se encontra nos seus enunciados, pois ele se distancia criticamente por
meio da ironia. Antes mesmo de passar a palavra ao protagonista, ele
a caracteriza de modo ambíguo: primeiro a qualifica como “notável”,
por se sustentar em “uma sólida corrente de argumentação”; depois,
afirma que ela tem “ares de teoria” (expressão que per si é irônica) e
constitui um “estranho disparate”:

Singulares são, em última análise, todas as manias de louco; entretan-


to, a do caso a que aludo, possuía a notável qualidade de consistir numa
cousa que tinha seus ares de teoria, através da qual uma sólida corrente
de argumentação arrastava o espírito demente ao mais estranho disparate.
(Pompéia, 1981c, p.111)

Ao afirmar que a “mania” do “louco” possuía “ares” de teoria e se


revelava um “estranho disparate”, o narrador desestabiliza a signifi-
cação eufórica da palavra “notável”. Se durante a primeira leitura da
frase ela pode ser tomada como um adjetivo significando “importante”
ou “excelente”, após o término dessa leitura isso não mais é possível.
Ao saber que a “mania” é um disparate, o leitor é convidado ou a con-
siderar o adjetivo “notável” como significando apenas “observável”
ou a considerar um acento irônico em sua pronúncia – o que passa a
qualificar depreciativamente a “teoria”. Dessa forma, ele marca seu
posicionamento distanciado e crítico em relação ao protagonista e induz
o leitor a receber o monólogo como um texto estranho e disparatado,
predispondo-o a observar o paradoxo que o constitui: a presença
do discurso racionalista do positivismo, das ciências médicas e do
realismo-naturalismo na voz de um louco, cuja eloqüência é recheada
de retórica ultra-romântica.
A tensão resultante entre os discursos que se confrontam de modo
polêmico na voz do paciente possibilita, conforme já dissemos, a lei-
tura irônica capaz de reconhecer nos disparates da “teoria” a paródia
O MAL DE D. QUIXOTE  227

ao discurso do positivismo e das ciências médicas – significação que é


reforçada, no efeito final da narrativa, pela decisão absurda do médico
em concordar com o pedido do paciente, aceitando extrair-lhe o coração
como solução para seus sofrimentos. Dessa forma, a prepotência do
discurso científico é satirizada de modo equivalente ao que ocorre em
algumas narrativas machadianas, tais como “O alienista” e “Conto
alexandrino”. Se, por um lado, o romantismo é uma doença, por
outro, sua ridicularização e mesmo sua total rejeição em detrimento
dos valores positivistas e burgueses é também uma doença. E ambas
levam à loucura.
É importante observarmos que a solução encontrada pelo prota-
gonista de “O mal de D. Quixote” é a mesma encontrada por Regina,
a rainha das mil virgens, que vimos no poema em prosa “Coração”.
A diferença é que ela consegue arrancar – simbolicamente, é claro – o
seu coração. Ao fazê-lo, ela se livra da doença do romantismo, mas
se torna vítima de outra, que poderíamos nomear como o “Mal do
incolor”, conforme sugere a canção sem metro, a seguir transcrita na
íntegra, que leva o título de “Vítima do incolor”:

O que lhe falta? Ele tem tudo, teve tudo. Ouro, saciedade, ventura,
honraria, sucesso. O programa da sua ambição traçou-se, executou-se. Viu
de tudo, tudo sentiu. Usou da inteligência ocidental e da sensualidade do
levante; provou o contato das neves polares e as temperaturas do Saara. As
mulheres beijaram-no, os homens lamberam-no. Nada lhe falta. E é disto
que padece o desgraçado. Como nada lhe falta, falta-lhe tudo. Falta-lhe
desejo. Desejar é viver e o mísero não deseja...
Todos dizem: eu aspiro. E ele não aspira. É um ente que não vive: –
Espreguiça-se...
Em torno da sua existência, gira apenas o aborrecimento farto, incolor,
mortífero.
Quando todos ouvem a música harmoniosa do universo e vêem o
colorido das cousas, só para ele, o mártir da saciedade, tudo é largo, vazio,
escancarado, entorpecido e nulo como um bocejo.
Estirando os braços e abrindo a boca, o pobre saciado assiste ao desfiar
dos seus dias, torturado lentamente pela implacável cor de vidro que o
persegue. (Pompéia, 1982a, p.117)
228  MARCIANO LOPES E SILVA

“Vítima do incolor” (Jornal do Comércio, São Paulo, 13 de agosto


de 1883) apresenta o outro lado da melancolia. Não a melancolia de
quem vê seus ideais ruírem, mas a de quem arrancou seu “coração”
e se saciou dos prazeres materiais. É a melancolia do burguês que,
desprovido de valores espirituais, não consegue encontrar nenhuma
transcendência nos bens e prazeres que tem ao seu alcance. Tristeza
que atormenta Crisélio, protagonista do poema em prosa “Vigílias de
ouro”, cujos dois últimos parágrafos apresentam uma alegoria similar
à da pomba sobre a estrumeira:

Crisélio vencera, entretanto. Venceram acaso como ele os outros que


vencem, perseguidores anelantes da glória, da glória das artes, da glória
cívica?... Ele entretanto tinha alcançado um grau de culminação. Como
impelido pelo desejo deste pensamento foi-lhe o olhar, último vestígio de
sua alma, deter-se numa pilha de moedas crespa das serrilhas louras, que
ele tinha em frente e que um relâmpago de pesadelo mostrou-lhe altíssima
como uma torre. Exatamente sob essas moedas, constância fria de eunuco
em guarda ao sentimento, estava presa uma carta de amor, vertiginoso
convite, súplice, rastejante, coleante como uma carícia de angorá, e a que
o banqueiro tivera de negar-se.

E uma lágrima desceu-lhe a face, – amarga como aquele transe de


suplício, mas igualmente indefinível, absurda mesmo, porque não era
absolutamente lágrima de amor. (Pompéia, 1982a, p.173-4)

O mal e suas manifestações

Analisando os contos de Raul Pompéia, pudemos observar que


são vários os protagonistas que sofrem do “Mal de D. Quixote” – o
que não surpreende. Entretanto, inicialmente nos pareceu intrigante
o fato de que os narradores não apresentavam sempre uma mesma
postura em relação a esses. De modo semelhante ao que vimos no
capítulo anterior, sua atitude varia entre a adesão romântica e a sátira
ao romantismo, de tal modo que os protagonistas se apresentam ora
patéticos, ora cômicos. A sátira ao romantismo se faz presente em
“Um vizinho original”, “O piano”, “A mona do sapateiro”, “História
O MAL DE D. QUIXOTE  229

cândida”, “No mar” e “A Clarinha das pedreiras”. Por sua vez, a ade-
são ao sofrimento deles, embora tímida, ocorre em “De madrugada”,
“Mocinha”, “Último castelo”, “Olhos” e “É morto Pulcinella!...”.
Em “Fora de horas”, por sua vez, é difícil dizer se temos sátira ou
adesão. Mas essa incoerência torna-se compreensível quando con-
sideramos o perfil de cada personagem, a instância narrativa e o fato
de que o romantismo possui inúmeras e contraditórias facetas. Ao
fazê-lo, constatamos que os protagonistas são todos personagens-tipo
românticos que podem ser agrupados basicamente em dois grupos e
que a postura do narrador é uma variável dependente desses, ou seja,
do tipo de romantismo representado por eles.
No grupo dos que sofrem a sátira impiedosa do narrador, encontra-
mos dois tipos comuns à literatura romântica: o poeta ultra-romântico,
que faz versos doces e ingênuos, e as donzelas sonhadoras, que, por
sua vez, se subdividem em pálidas e ingênuas ou em morenas ardentes
e ambiciosas. O primeiro tipo pode ser encontrado em “Um vizinho
original” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1886,
série “Caricaturas reais”) juntamente com o tipo da donzela pálida e
ingênua. Nesse conto, o protagonista é caracterizado pelo narrador
como “magro, comprido, poeta e tísico, tudo em grande dose” (Pom-
péia, 1981c, p.167). Seus versos, doces e ufanistas como os de Casemiro
de Abreu, apresentam “estrofes idiliais, onde o leite e o mel corriam
pelos regatos e as cordilheiras eram legítimos pães de açúcar alinhados
como na Serra dos Órgãos” (ibidem, p.168). E a música de sua filha,
por sua vez, não era diferente: “Via-se na música da filha, o gênio do
pai. Estava presente todo o alfenim da magra sentimentalidade dos
vates da antiga escola. Era uma melodia a pingar melado; a enjoar
de doçura” (ibidem, p.168).
O leitor encontra um personagem-tipo semelhante ao protago-
nista de “Um vizinho original” no personagem Alexandre, de “A
Clarinha das pedreiras”. Seu ultra-romantismo se revela tanto pela
idealização que fazia de Clarinha como pelo discurso do narrador,
que o caracteriza com um “gênio impressionável” e com o hábito
de visitar a pedreira todas as manhãs para nela subir e apreciar a
paisagem do alto.
230  MARCIANO LOPES E SILVA

Quanto à personagem-tipo da donzela pálida e sonhadora, o lei-


tor também encontra outra equivalente no conto “O piano”. Nele, a
protagonista, mesmo sendo feia, ingenuamente sonhava conseguir
um marido valendo-se, para isso, dos seus dotes musicais – idéia que
o narrador satiriza, assim como sua ingenuidade em acreditar que os
dotes musicais poderiam ofuscar a sua feiúra:

Maria das Dores ficou velha.


O pai dava festinhas em casa. Os rapazes apareciam.
A menina tocava piano.
Não fizera muito progresso, é certo; mas a arte é longa, já o disse
Goethe, e o piano custa.
Maria das Dores, animada por um dito amável de qualquer rapaz,
fantasiava logo ideais castelos... sonhos deleitosos de ménage... vida de
família... filhinhos... ternuras... Quase esquecia o nariz e os olhinhos pretos
muito unidos e o queixo. (ibidem, p.171)

Rachadinha, que já vimos no capítulo anterior, também apresenta


um perfil semelhante ao de Maria das Dores, pois também é uma don-
zela sonhadora que se entrega às ilusões românticas. Nesse caso, em vez
de a evasão ocorrer por meio do piano, ela se realiza pela interminável
leitura de folhetins – um outro grave sintoma do mal de D. Quixote
que o narrador não deixa de satirizar:

Lia muitos jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do


ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo
à indústria da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de
serem lidos, baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando
as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma si-
tuação dramática que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e ia
desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin.
Com uma tal facilidade de critério, não custa compreender como
a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os dias sem
atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal,
abstruso e confundido. (ibidem, p.238)

No conto “Fora de horas” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 4 de


setembro de 1888, seção “Pandora”), o protagonista Emílio não está
O MAL DE D. QUIXOTE  231

em luta contra o mal de D. Quixote, mas sua experiência amorosa com


uma viúva lhe servirá como vacina para esse mal – conforme informa o
narrador na abertura da narrativa: “O último amor de Emílio foi uma
viúva, antes um capricho feito viúva, ou melhor ainda, um demônio
feito capricho. / Mme. Lamour, Mme. Lamort, ninguém lhe sabia
exatamente o nome” (Pompéia, 1981c, p.228). A experiência de amar
uma fêmea fatal, uma “viúva negra” cujo nome ambíguo revela a
mistura entre amor e morte, é sugerida pelo narrador como a causa de
um provável endurecimento de toda e qualquer capacidade de Emílio
idealizar uma mulher como “Anjo” e, portanto, de amá-la segundo os
moldes românticos.
Mme. Lamour, ou talvez Lamort, tinha dois amantes, os quais, por
seu gosto, possuíam “predicados opostos e incompatíveis” (ibidem,
p.229), de maneira a satisfazer tanto o desejo de possuir como o de
ser possuída, tanto sua porção dominadora e sádica de mãe como sua
porção dominada e masoquista de fêmea no cio. Por isso, um “devia
ser delicado, adolescência franzina, temperamento febril e fraco, que
se lhe entregasse como a uma tortura” (ibidem). O outro devia lhe dar
“o amor forte de um largo peito, o desejo de grande fôlego, a carícia
constringente da saúde, da força, que enlaça, que macera e afoga um
amor brutal, que a punisse da perversa delícia do outro” (ibidem).
Mme. Lamour, a mulher concebida segundo os ideais de pureza do
amor romântico e de um amante delicado, de um poeta das doçuras
tropicais; Mme. Lamort, a mulher segundo o naturalismo, que ama,
em seu amante, a saúde, a força e a carne, bem conforme propõe
Carvalho Júnior, em seu poema “Profissão de fé” – onde afirma que
se deve amar na mulher “a exuberância dos contornos, / As belezas
da forma, seus adornos, / A saúde, a matéria, a vida enfim” (apud
Ramos, 1959, p.18). Ironicamente, para o poeta ultra-romântico, que
a concebe como “L’amour”, ela será “La mort”; para o naturalista que
a vê como a morte, ela será “L’amour”. Para o frágil poeta romântico, a
narrativa apresenta, ao final, a morte na solidão e no frio da madrugada.
A ambientação na imagem final, a seguir, contrasta radicalmente com
a luxúria gótica que caracterizava o quarto da “viúva negra”, surgindo
como possível efeito o retrato melancólico, mas resignado, da morte do
232  MARCIANO LOPES E SILVA

ingênuo idealismo romântico. É digna de nota a aparência do rapaz,


índice de que já se encontrava doente antes de morrer de frio. Prova-
velmente tísico, visto a referência ao sangue na boca.

No dia seguinte, atravessado à porta, sobre o mármore do limiar,


achou-se o corpo inerte de um rapaz, muito moço, imberbe ainda, belo,
apesar da morte e da magreza extrema. Tinha sangue nos lábios e pousava
em sangue a face lívida.
Ao redor, as roseiras, as begônias, na manhã clara, choravam as últimas
gotas da chuva da véspera. (Pompéia, 1981c, p.230)

Já no segundo grupo, encontramos as antíteses dos personagens-


tipo já descritos. Em oposição ao “poeta das velhas brisas”, encon-
tramos o homem elegante, solitário e melancólico. Esse tipo, que já
pudemos observar no personagem do pintor Carlo Giacometo, de “O
modelo do anjo”, também se encontra presente em “De madrugada”
e “Olhos” (Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 6 de maio de 1886). Este
último, aliás, se apresenta como o reverso de “Um vizinho original”,
posto que o protagonista também possui uma filha donzela e feia.
Entretanto, ela não sofre do “bovarismo” que vemos no comporta-
mento de Rachadinha. Diversamente, apresenta-se melancólica, não
alimentando as ilusões de um bom casamento que a tirasse da pobreza.
E por essa antítese ser muito significativa – visto que o tratamento
dado pelo narrador aos dois pares de personagens-tipo é radicalmente
diverso –, vale a pena compararmos as caracterizações que faz deles.
Observemos, no primeiro par, a descrição do poeta tísico – de “Um
vizinho original” – e de sua antítese: o protagonista de “Olhos”. Em
seguida, a caracterização de sua filha Ema, que pode ser contrastada
com a caracterização de Maria das Dores, que vimos antes.

Quem o visse, à rua, enfiado no velho croisé como num tubo, espirrando
para baixo as mirradas canelas, para cima, um pescoço de garça, nodoso e
interminável, frágil apoio da cabecinha viva e inquieta, projetada para a frente,
com o longo cavaignac de poucos cabelos e os olhos fúlgidos arregalados, quem
o encontrasse hesitaria em tomá-lo por um oficial de justiça, por causa do
olhar extraordinário, [...] mal vestido, delgado, célere, como se tivesse medo
de chamar a atenção, fugitivo, quase fantástico. (Pompéia, 1981c, p.167)
O MAL DE D. QUIXOTE  233

Era um comprido velho, magro, de longos braços, pendentes como


esses ramos dos pinheiros, que as gravuras representam debruçados às
escarpas, sobre catadupas, ou sobre abismos. Rigorosamente trajado de
preto, cismador e melancólico, produzia-me o mesmo efeito das lutuosas
paisagens setentrionais.
Ao lado dele, em violento contraste de cor, vestida de branco, numa
toilette refolhada de musselina, com um laço negro, a prender os cabelos,
caminhava uma menina.
[...]
A menina era graciosa, mas feia. Devia ter sete anos. Aparentava
trinta, com aquele arzinho de senhora e o rosto moreno, magro, de maçãs
pronunciadas e olhos rasgados, pensadores, como desiludidos há muito
dos enganos da infância. (ibidem, p.175)

O protagonista de “Olhos” também sofre do mal de D. Quixote,


que nele se manifesta pela melancolia – tristeza resultante da destruição
dos seus ideais românticos, conforme podemos concluir pela análise
da história que ele conta e que constitui a segunda, porém principal,
narrativa do conto. Nela, ele narra que perdera a esposa e depois a filha,
quando ela tinha dezesseis anos, mas que se resignara com o fato, pois
era feia e, sendo assim, “ninguém havia de amá-la” (ibidem, p.177).
Entretanto, o dado mais significativo – e deveras irônico – é que, apesar
de fisicamente feia, ela possuía uma bela alma, luminosa e plena de vida,
que se revelava pelos olhos. Neles, ele via “o clarão difuso das estrelas” e
se “perdia extasiado”, recuperando, pela memória, a felicidade perdida
de sua infância campestre – que, significativamente, se opõe ao presente
vivido no meio urbano. Repare, leitor, como a lembrança do passado
é envolta numa atmosfera plena de luz, de tal modo que se misturam
as formas do idílio e do sublime em sua representação:

Nasci na roça, muito longe do torvelinho detestável das praças... Os


olhos da criança, profundo espelho das minhas saudades, mostravam-me
o brilho das manhãs da minha mocidade... Eu via-lhe dentro das negras
pupilas, a vivenda alegre de meus pais, a verde paisagem onde correram
os meus folguedos de menino, a revoada das narcejas sobre a lagoa...
Morava solitário e triste numa rua estreita e escura. Nos dias chuvosos,
vivíamos num crepúsculo desagradável. A lembrança da minha mulher
234  MARCIANO LOPES E SILVA

e dos dias felizes da família, cruciavam-me, especialmente, nesses dias


anuviados... Pois, era bastante um olhar da minha adorada Ema, um
olhar! E as trevas fugiam, das nuvens de chuva coavam-se para mim um
dia claro... [...] Nos olhos dela eu via o céu imenso e as andorinhas, muito
alto, em chusma, brincando como sorrisos no azul. (ibidem, p.177)

Diversamente do que vimos em “O piano”, o narrador confere


ao protagonista o direito à palavra e não satiriza os seus sentimentos
românticos – o que é bastante revelador de sua simpatia por ele e
da importância que dá à sua história. Tal empatia também pode ser
deduzida com base em outros três importantes detalhes: primeiro, o
narrador, assim como o senhor melancólico, gosta de passear sozinho
pelo parque; segundo, ao fazê-lo, lembra-se com saudade dele e de sua
filha, mesmo decorridos dez anos que não mais os vê; e, terceiro, revela
um grande contentamento em reencontrá-lo, conforme podemos ver
no recorte a seguir:

Caminhando ao acaso, [...] fui dar com o banco de pedra onde outrora
sentava-me e do qual via passar o velho alto, de braços pendentes e ar
melancólico de pinheiro das montanhas, com a criança de branco, de sete
anos e grandes olhos pensadores...
[...]
Assim estava eu, quando senti que alguém pousava a mão sobre o
meu ombro.
Volto-me bruscamente. [...]
– O senhor! exclamei, com um espanto fácil de calcular.
– Eu mesmo, caro senhor... Reconheço-o, tal qual o senhor me re-
conhece.
– Parabéns ao acaso, que me fez reencontrá-lo... uma pessoa que
conheci em dias agradáveis de meu passado!... (ibidem, p.176)

Em suma, a simpatia que o narrador tem pelo senhor melancólico,


o fato de ouvi-lo com atenção, de lhe passar a palavra e de não satirizar
a sua história, assim como a informação subentendida de que também
não é mais feliz, posto que os dias agradáveis se encontram no passado,
sugerem fortemente que ele se identifica com o personagem, com-
partilhando seus valores e sua melancolia. Não contestando de forma
alguma o discurso dele, resta, ao final do conto, o sentimento sublime
que resulta do efeito final da narrativa do pai de Ema.

Entretanto, Deus sabe que magia celeste lhes [sic] morava nos olhos,
que paraíso inefável. Ema guardava ali nas pálpebras, onde eu às vezes me
perdia extasiado, como se, realmente, se me soltasse o espírito para uma
região alheia a este mundo, vasta, iluminada, suavemente iluminada por
um clarão difuso de estrelas. (ibidem, p.177-8)

Essa mesma adesão tímida, que se esconde por detrás de um apa-


rente distanciamento, pode ser vista em “De madrugada” (Gazetinha,
Rio de Janeiro, n.32, 9 de fevereiro de 1882), que transcrevemos a
seguir, na íntegra:

I
Top, um lindo perdigueiro malhado, era o cão de um meu vizinho; e
o meu vizinho um esquisito, desses homens que fazem não se sabe o que,
e vivem não se sabe como, isto é, cosendo o manto das aparências ricas,
com as misérias íntimas. Via-se-lhe a família a rir nas soirées, enfaixadas
nas sedas, e não se via se chorava, quando a chitinha doméstica substituía
os tecidos faustosos. O meu vizinho Ricardo, por seu lado, era alegre, de
uma alegria frenética, nervosa; isto em sociedade. Concentrado em seu
gabinete, era um abstrato meditador e um meditador triste.

II
Top não o abandonava nessas horas de melancolia; o generoso cão
entrava no quarto do dono e, pé ante pé, ia enrodilhar-se junto da poltrona
de Ricardo. Punha-se a fitá-lo, imóvel e interrogador. A melancolia do
dono parecia influir na existência do pobre animal.
Top ia perdendo visivelmente o curvilineado elegante das formas e co-
meçavam a emergir-lhe na pele umas saliências ósseas de mau desenho.
Era uma pena ver-se aquele homem e aquele cão, cruzando às vezes
um olhar morno e cheio de tristeza, isolados na meia sombra do quarto.
Felizmente ninguém surpreendia tais cenas.

III
Esta noite, um rumor despertou-me. Era a minha pêndula que dava
horas. Não me foi possível contar as pancadas. Saltei do leito e com um
236  MARCIANO LOPES E SILVA

fósforo iluminei o mostrador do relógio. Eram quatro horas. Boa hora de


levantar-se para quem gosta de o fazer bem cedo. Contrariei com esforço
a preguiça da madrugada, que me entorpecia, e preparei-me para o pas-
seio. Devia ser agradável. Ao menos divertido. À hora em que o Rio de
Janeiro salta n’água da Guanabara, para os seus mergulhos higiênicos,
sempre se tem o que ver...

IV
Saí.

V
Uma hora mais tarde, a minha curiosidade de passante foi atraída por
uma coisa extraordinária.
Eu costeava o cais da praia d... Num ponto em que o pequeno muro
de cimento faz uma entrada, recolhendo o mar num remanso onde as
algas apodrecem e dormem as ondas, vi uma sombra saltar do chão para
o muro e do muro para o chão, de um modo aflitivo, soltando como que
gemidos, espiando para o mar, tentando pular e com medo. A luz do dia
que chegava e as estrelas que fugiam deixaram-me ver. A sombra era
de um cão: o perdigueiro malhado do meu vizinho. Uma pancada forte
senti no peito.

VI
Encaminhei-me com pressa para o lugar. Antes de lá chegar, vi o cão
atirar-se para o lado do mar e sumir-se.
Corri. No ponto em que estivera Top eu inclinei-me. Descansei os
antebraços no cimento do cais e examinei o mar. Fazê-lo e recuar foi coisa
de um segundo. Lá embaixo boiava um cadáver de costa para cima, com os
braços abertos. Perto dele, o perdigueiro debatia-se tentando puxá-lo.

VII
Entretanto, brilhava a aurora vermelha como uma chaga, derramando
nas ondas as cores da tragédia.
Eu vi sobre o parapeito do cais um objeto branco. Era um envelope.
Fugi. (ibidem, p.70)

Nesse conto da série “Microscópicos” e pertencente aos primeiros


anos de produção de Raul Pompéia (Gazetinha, Rio de Janeiro, 9 de
fevereiro de 1882), podemos ver de modo exemplar como se esconde, por
O MAL DE D. QUIXOTE  237

detrás de uma narrativa realista, um narrador essencialmente romântico


que luta por se distanciar da melancolia que abate o protagonista de modo
a não contraí-la ou, talvez, não revelá-la – de sua parte – ao leitor.
O estilo realista predomina no conto e revela-se no distanciamento
do narrador, que evita tecer comentários sobre os fatos e envolver-se
emocionalmente com o protagonista, o que seria natural, pelo fato de
ser amigo dele e testemunha dos fatos. Esse distanciamento também se
realiza pelo estilo, bastante objetivo, mesmo nos dois fragmentos iniciais,
que estão centrados na caracterização de Ricardo e seu cão. A economia
chega ao seu ponto máximo no quarto fragmento, composto de uma
única palavra: “Saí”. No entanto, esse distanciamento se trai ao final,
pois no último fragmento não temos mais a presença do personagem
Ricardo, estando o efeito final da narrativa centrado no próprio narrador.
Ora, se considerarmos que o fio condutor de uma narrativa é dado pelas
peripécias do protagonista e que a surpresa em uma narrativa de efeito
final deve residir justamente nesse efeito, teremos de considerar o conto
falho em sua estrutura – salvo, é claro, que o verdadeiro protagonista
não seja o personagem Ricardo, mas sim o próprio narrador.
Em uma primeira leitura, o leitor é conduzido a considerar Ricardo
como protagonista e o motivo do suicídio como o tema central. Afinal,
de acordo com a economia e a objetividade propostas por Edgar Allan
Poe (1985b), nos ensaios “Filosofia da composição” e “O princípio
poético”, todos os elementos, desde a primeira frase, devem conver-
gir para o efeito final almejado. E considerando a caracterização do
personagem Ricardo e de seu cão, somos induzidos a esperar alguma
tragédia no final da história, seja seu suicídio seja sua morte por doen-
ça, uma vez que ele definhava a ponto de “emergir-lhe na pele umas
saliências ósseas de mau desenho” – fato que é sugerido pela relação
de espelho que o cão mantém com seu dono. Entretanto, já no final
do quinto fragmento, um bom leitor poderá concluir que ele havia
cometido suicídio baseado no motivo do cão fiel – o que se torna claro
no fragmento seguinte, que é o penúltimo. Dessa forma, tal surpresa se
desfaz, deixando de se associar ao efeito final que, diversamente, está
centrado na figura do narrador. Esse, no fim, foge ao encontrar, sobre
o parapeito do cais, o envelope com a carta do suicida. Contrariando as
238  MARCIANO LOPES E SILVA

expectativas, ele não abre o envelope e, dessa forma, deixa o leitor sus-
penso em sua curiosidade. A surpresa, então, surge justamente desse
fato, ou melhor, da atitude de fuga que predomina sobre a curiosidade
de conhecer os motivos do suicídio. Tal efeito, acreditamos, leva o leitor
a se perguntar o porquê de ele fugir. E uma das possíveis respostas é o
medo; o medo de encontrar nas últimas linhas de Ricardo as mesmas
angústias que o faziam acordar nas madrugadas para passear pelo
cais. Em outras palavras, provavelmente o que ocorre, por detrás do
aparente distanciamento, é uma projeção dos sentimentos e angústias
do próprio narrador na figura do amigo.
“Mocinha” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de julho de
1888) é o conto em que o narrador mais se aproxima da objetividade
realista, embora seu protagonista também sofra do mal romântico.
Assim como Álvaro, do conto “Último castelo”, o protagonista
Arsênio desilude-se com os ideais do amor e da família burguesa ao
descobrir que sua esposa o traía. Embora procure agir de modo racional
e equilibrado, confiando “no seu temperamento avesso às soluções
teatrais, certo de que era incapaz de matar alguém, a si muito menos”
(Pompéia, 1981c, p.227), ele descarregará a bala do seu revólver na
própria fronte. Assim como Álvaro, prefere a morte ao ver seu ideal
prostituído, conforme expressa no bilhete deixado ao sogro: “O casa-
mento é a aliança da lei, mas é a confusão do sangue e do sentimento.
Desfeita a sinceridade desta união, a infâmia é exatamente persistir a
prostituição do registro civil” (ibidem, p.227).
Lembrando o estilo machadiano, nesse conto Raul Pompéia usa
a ironia resultante da justaposição de opiniões contrárias entre si,
abrindo mão da onisciência e se abstendo de afirmar seu ponto de vista
ou a verdade sobre os fatos, conforme ocorre no exemplo seguinte:
“Falavam dela, que era namoradeira e leviana. O estudante poderia
atestar que percorreu os transes da mais difícil escala de concessões”
(ibidem, p.222). Ou neste outro:
Meditando, porém, no incidente, compreendeu que a saia branca fora
a recíproca das ceroulas. Uma declaração positiva e originalíssima – a
permuta dos ridículos de intimidade, sutilmente e ousadamente proposta
para consolar da humilhação da madrugada.
O MAL DE D. QUIXOTE  239

Ou não fosse. Verdade é que três meses mais tarde, diante do altar de
mármore da Penha de Santo Antônio, permutavam-se entre ambos os
compromissos da intimidade consagrada. (ibidem, p.223)

Ao servir como estratégia para a criação da dúvida, ao mesmo tem-


po em que sugere a verdade das denúncias anônimas, o uso da ironia
observável vai reiterando o motivo do adultério que, ao final, provocará
o suicídio de Arsênio. Ao ler a carta anônima que a denunciava, Moci-
nha reage “com grandes olhos pacíficos” (ibidem, p.225), um traço de
amargura no canto da boca e uma lágrima, que “saltou-lhe da pálpebra
e escorreu pelo seio até a camisa” (ibidem). Sobre a lágrima, lemos:
“Qual a significação daquela lágrima? Seria a dor da injúria grosseira a
uma consciência limpa? Mas supunha ter distinguido mais que simples
desgosto na expressão queixosa” (ibidem). Ao usar o discurso indi-
reto livre, o narrador dá voz às dúvidas do protagonista e se isenta do
compromisso da onisciência, deixando em pé a ambigüidade do ato e a
contraditoriedade das possíveis respostas. Para melhor demonstrarmos
a proximidade estilística no uso da ironia como estratégia de distancia-
mento crítico, convém compararmos o primeiro recorte a seguir com
outro que retiramos do conto “A senhora do Galvão” de Machado de
Assis, pois ambos se apresentam muito semelhantes:

Arsênio sentou-se à beira do colchão. A vista parou-lhe eventualmente


sobre o tapete onde dormiam como a dona os exíguos pantufos de marro-
quim cor de bronze. No desenho de lã, fugia tempestuoso o galope de um
búfalo das savanas de sólidos chifres curtos. (ibidem, p.224)

Maria Olímpia leu e releu o bilhete; examinou a letra, que lhe pareceu
de mulher e disfarçada, e percorreu mentalmente a primeira linha de suas
amigas, a ver se descobria a autora. Não descobriu nada, dobrou o papel e
fitou o tapete do chão, caindo-lhe os olhos justamente no ponto do desenho
em que dois pombinhos ensinavam um ao outro a maneira de fazer de dois
bicos um bico. Há dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o
universo. (Assis, 1985, p.197-8)

Nos dois contos encontramos ironias observáveis utilizadas com o


fim de criar a dúvida ao mesmo tempo em que, de modo sutil, afirmam
240  MARCIANO LOPES E SILVA

a verdade da denúncia. No caso do narrador machadiano, nem tão


sutilmente, posto que a menção explícita à ironia do acaso soa como
um sutil deboche para com a leitora (ou o leitor) que ingenuamente
acredita na pureza do amor e na inocência do acusado.
Em “É morto Pulcinella!...” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro,
15 de agosto de 1886, “Suplemento Literário” n.6), quem sofre do mal
romântico é a protagonista Amélia, que, diversamente das personagens
femininas vistas até o momento, é uma mulher da elite. Sua melancolia
resulta do fato de ser obrigada pelo pai a casar com um homem que
não ama e se revela de modo pungente no momento em que ouve uma
canzonetta de Tosti.4 Em uma noite, quando se encontrava só e triste, a
audição dessa canção provoca uma epifania reveladora das ilusões perdi-
das: “Amélia reconheceu a canção de Tosti, a original canção de Tosti, [...]
crueldade do acaso! Exatamente a elegia de Pulcinella que lhe recordava
a mais saudosa das ilusões perdidas!” (Pompéia, 1981c, p.183).
Os valores românticos de Amélia também são perceptíveis pela
caracterização de Armando, que ela ama e conhece desde a infância.
De modo indireto, ele é caracterizado como um artista romântico pelo
narrador, o que se depreende do seu gosto pela canzonetta de Tosti e pela
pintura que faz da protagonista, representada “na rica toilette de baile
cetim pérola com que se fazia retratar, coberta de rosas, como uma ale-
goria da primavera” (ibidem, p.186). Além desse aspecto, a concepção
que Amélia tem do amor e do casamento é outro elemento importante
na sua caracterização como heroína romântica. Para ela, o casamento é
concebido como um contrato firmado sobre o amor, divergindo, dessa
forma, de seu pai, que o concebe apenas como negócio. Ao seu ideal
romântico, contrapõe-se o pragmatismo insensível do pensamento das
elites – onde se misturam os valores da aristocracia decadente aos valores
de uma burguesia ascendente com falsos fumos de nobreza.

4 Paolo Tosti (Ortona sul Maré, 5.4.1846 – Roma, 2.12.1916) foi um conceituado
professor de canto e um prolífico compositor de canções na tradição do romance
italiano do século XIX. Suas composições de estilo melódico e caráter langoroso
e melancólico fizeram as delícias dos salões no final do século XIX. Entre seus
primeiros sucessos estão Non m’ama piú e Lamento d’amore.
O MAL DE D. QUIXOTE  241

As oposições apontadas já seriam suficientes para indicar uma


provável simpatia do narrador para com a protagonista, uma vez que
é a figura desse que determina a organização da narrativa e, por conse-
guinte, imprime seu direcionamento ideológico. Mas, para não deixar
dúvidas, é importante observarmos que há momentos em que ele deixa
transparecer sua adesão ao drama vivido por ela pela caracterização
direta que faz dos antagonistas. Ao caracterizar o pai de Amélia, afirma
que é um “homem despótico e violento”, e ao descrever os retratos de
sua família, o faz de modo sarcástico, caracterizando-os como “pasma-
dos nas molduras, seculares, de uma pasmaceira de defuntos, contritos,
no seu papel inofensivo de múmias a óleo” (ibidem, p.187). Por fim,
outro aspecto a ser considerado é a escolha do discurso indireto livre,
pois confunde o enunciado dele com o de Amélia – o que sugere que
o narrador se identifica com ela:

Pobre Pulcinella, morto de Amor e de Ideal!


Morrem assim os corações!
E Amélia imaginava quantos, quantos! Não trazem no peito o cadáver
importuno de um coração que tiveram. (ibidem, p.188)

É claro que “o uso metódico do estilo indireto livre, [...] deixa inde-
terminada, tanto quanto possível, a relação do narrador com os fatos ou
pessoas de que fala a narrativa” (Bourdieu, 1996, p.132), contribuindo
para a criação de um distanciamento realista e, por conseguinte, para
um efeito de real. Entretanto, o fato de o trecho recortado não ser
acompanhado de nenhuma ironia e constituir o desenlace do conto é
extremamente significativo – uma vez que o desenlace é fundamental
para a criação do efeito de totalidade inerente ao modelo de narrativa
de efeito final. Nesse caso, tal efeito deverá provocar no leitor uma
profunda impressão de tristeza e melancolia juntamente com uma sim-
patia pela protagonista, resultando, por extensão, numa empatia por
seu ideal romântico de viver um amor que concilie corpo e alma, que
não seja subordinado ao frio cálculo do capitalista, mas ao sentimento,
à subjetividade e à elevação das almas predestinadas ao amor desde a
infância. Tal impressão, que deve resultar do desenlace, é preparada
242  MARCIANO LOPES E SILVA

desde o início do texto pela epígrafe, que afirma a contraditória beleza


do ideal e a impossibilidade de se arrancá-lo do coração sem que haja
dor e sofrimento:

Idéal, fleur bleue à coeuer d’or, dont les racines fibreuses, mil fois plus
déliées que les tressées de soie des fées, plongent au fond de nôtre âme pour
en boire la plus pure substance; fleur douce et amère! On ne peut t’arracher
sans faire saigner le coeuer, sans que de ce tige brisée suintent des gouttes
rouges!5 (ibidem, p.182)

Por fim, vejamos o conto “Último castelo”, em que a tensão entre


a simpatia e a sátira ao protagonista romântico é extremamente reve-
ladora da tensão ideológica que perpassa a obra de Raul Pompéia.
Em “Último castelo” (Diário Mercantil, 18 de maio de 1884),
encontramos a história da destruição dos ideais do amor familiar ali-
mentados pelo protagonista Álvaro, “poeta trovejante e indomável, que
sabia talhar estrofes imortais em blocos de lava quente, transpirando
ainda a vitalidade renitente da ignição das crateras!” (Pompéia, 1981c,
p.151). O humor satírico se encontra especialmente no uso do exagero
por parte do narrador. Pela caracterização indireta, ele realça de ma-
neira hiperbólica os traços que Edgar A. Poe e Arthur Schopenhauer
consideravam reveladores do “gênio”, tais como o “magnetismo
incompreensível, embora irresistível, [...], que se manifesta nos mais
simples gestos” (Poe, 1985a, p.163) e são resultantes de “uma vasta
potência mental num estado de proporção absoluta” (ibidem, p.163-4).
No entanto, o estilo satírico não ocorre em todo o conto, pois esse pode
ser dividido em três partes segundo o movimento de ascensão, apogeu
e queda de Álvaro – que após viver o paraíso dos seus ideais de amor
e casamento os vê destruídos pelo adultério da esposa.

5 “Ideal, flor azul em um coração de ouro, cujas raízes fibrosas, mil vezes mais
finas do que as tranças de fios das fadas, mergulham no fundo da nossa alma para
beber a mais pura substância, flor doce e amarga! Não é possível te arrancar sem
fazer sangrar o coração, sem que do seu talo quebrado brotem rubras gotas!”
(tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  243

Na segunda parte, que corresponde à realização dos ideais e é ex-


tremamente curta, o narrador troca a linguagem hiperbólica e grandi-
loqüente por outra mais lírica, estabelecendo uma interdiscursividade
(Fiorin, 1999) com o gênero “conto de fadas”: “Uma vez, saciado da
boêmia, sonhou ardentemente as alegrias do lar, as doçuras da família,
os poemas vivos do amor conjugal, a paternidade e todos os enlevos
que advêm.” (Pompéia, 1981c, p.151). Na seqüência, a comparação
do sonho ao “castelo” reforça a mesma interdiscursividade: “Foi este
castelo o mais rico que lhe agitou o espírito em toda sua vida...” (ibi-
dem). Mas após a menção ao casamento e três curtíssimos parágrafos
de referência ao tempo idílico em que nele viveu, Álvaro descobre
que a esposa o traía. Tem início, então, a terceira parte da narrativa.
Desesperado, ele vê seu “doce ideal de família [...] cair aos pés como
um anjo prostituído!” (ibidem, p.153), tornando-se, desde então, um
ser melancólico. Na busca de um remédio para a sua dor, entrega-se ao
vício como forma de esquecer os ideais que o alimentavam: “Álvaro,
desalentado, pediu socorro ao vício. [...] qualquer cousa que atordoasse
e aniquilasse! Contanto que não lhe fosse dado assistir em si mesmo ao
desmoronamento que lhe destroçava as boas ilusões antigas” (ibidem).
Retorna, então, o estilo grandiloqüente do primeiro momento, mas,
diversamente, com o provável objetivo de realçar a altura da queda.
A imagem patética de Álvaro, possivelmente louco e apontando para
o vazio, constitui uma alegoria da ruína do gênio romântico em luta
com o mundo positivo. A possibilidade de o alvo do seu dedo – e do
seu ódio – ser a esposa somente põe em relevo uma possível leitura
irônica: ela, que para ele encarnava o ideal do amor familiar e da fe-
licidade, paradoxalmente transforma-se no motor da sua ruína. E aí
novamente temos o motivo da queda associado ao do paradoxo entre
o ser e a aparência.
Apesar do uso da sátira na caracterização de Álvaro, o sentimento
do narrador é ambíguo, de tal forma que o exagero caricatural também
pode ser tomado como um procedimento voltado para a exaltação da
grandeza do personagem. Em outras palavras, o mesmo caráter que
provoca dó e riso também é motivo para a sua admiração – conforme
podemos ver pelo menos em duas passagens do texto. Nelas, o narrador
244  MARCIANO LOPES E SILVA

afirma a grandiosidade do gênio de Álvaro e, por tal motivo, também


prevê com lástima a sua ruína. A primeira ocorre logo na abertura
do conto – já preparando o efeito final que vimos: “Álvaro, o grande
Álvaro devia realmente sucumbir, esmagado sob as ruínas d’alguma
das soberbas construções levantadas à força de imaginação” (ibidem,
p.150). A segunda ocorre no final da primeira parte, dessa vez desta-
cando a oposição fatal entre a grandeza de Álvaro e a mediocridade do
comportamento positivo dominante:

Um cérebro constituído desta sorte não pode necessariamente fra-


ternizar com a parvoíce poderosa e grosseira das misérias da vida. Há de
viver em esfera superior, à parte, ou sucumbir, afogado em vulgaridade,
nessa vulgaridade uniforme, imensa, que enche o quadro social e que é
rasa como um pântano, estéril como um deserto.
O grande Álvaro devia acabar esmagado pelos escombros rodianos
d’algum dos castelos de sua imaginação... (ibidem, p.151)

Feito o diagnóstico da “doença romântica”, podemos considerar


que o “vírus” causador do mal romântico é o do Ideal. Mas como
todo vírus, ele pode assumir diversas formas: Deus, Beleza, Verdade,
Liberdade, Justiça, Amor, Bondade; muitos podem ser os nomes, mas
o mal é sempre um. A origem da dor é sempre a busca da perfeição, a
transcendência rumo ao mundo das Idéias. “Suprema Bondade foi a
mais sublime criação do instinto artístico. O bem é ao mesmo tempo o
belo, o justo, o verdadeiro, Ideal dos ideais” (ibidem, p.208). Por eles,
especialmente pelo Amor e pelo Belo, deveriam guiar-se os homens.
Entretanto, ambos são degradados pela voracidade do Ventre, pelo
egoísmo e pela cobiça, desde os mais remotos tempos.

[...] os profetas armados triunfam pelas armas, não pelas profecias. Não
vence o justo; convence o ferro. A justiça é ideal; a força é o fato.
Na época presente, entretanto, chegamos à dissolução. A fórmula da
luta pela vida deu carta branca a todos os abusos; definitivamente poder é
poder. Desapareceu mesmo a hipótese dos profetas armados. Os inermes
embucham, quando não fazem, para que não sucumbam, da profecia um
mercado. (ibidem, grifos do autor)
O MAL DE D. QUIXOTE  245

Entre todos os ideais, a Idéia de Justiça surge em Canções sem metro


como um dos mais terríveis “vírus”, pois em nome dela é que foram
feitas inúmeras revoluções em meio à história. Ao longo da obra, o de-
sejo de revolução social e política é o “vírus” que mais constantemente
aparece. Seguem-se a ele os do Amor e do Belo, tão recorrentes nos seus
contos e poemas em prosa, mas também ilusórios na medida em que
se confrontam com um mundo regido pelo colonialismo e pela livre
concorrência. Atitudes que são justificadas pela idéia darwinista da luta
pela sobrevivência como fator de seleção natural e evolução da espécie.
Nessa sociedade não há mais espaço para a arte pura e sua apreciação
desinteressada, não há mais sentido na busca pela perfeição, no desejo
de representar o Belo em sua eternidade. Na modernidade, tudo que é
sólido desmancha no ar, no lugar da perfeição clássica, o que importa
é o sempre eternamente novo, a contraditória “tradição da ruptura”,
quando não, simplesmente, a reprodução banalizante dos clássicos, a
arte que se compraz com seu valor de mercado em detrimento da busca
da perfeição. É o que constata Carlo Giacometo em “O modelo do anjo”.
Também não há mais lugar para a bondade e a pureza de sentimentos,
conforme constata o pai de Ema, em “Olhos”. Sem dinheiro é impos-
sível qualquer felicidade e todo amor degrada-se. Casamento sem di-
nheiro: prisão, miséria, sofrimento, corrosão... Este tema surge de modo
satírico nos contos “Antes e depois” (ibidem, p.27), “Correspondências
íntimas I” (ibidem, p.49) e “Estou roubado” (ibidem, p.173, da série
“Caricaturas reais”). No lugar do amor, está o interesse pragmático.
A mulher torna-se mercadoria nos negócios, garantia de casamentos
que atendem a interesses políticos e/ou econômicos. Eis a causa do
sofrimento da protagonista no conto “É morto Pulcinella!...”.
Mais forte do que a Idéia de Justiça são as do Amor e do Belo, pois
fundamentais para a existência daquela. Isso é muito perceptível tanto
na recorrência das figuras de crianças e meninas que morrem ou são
prostituídas como na seguinte imagem do poema “Ilusão renitente”,
de Canções sem metro. Mesmo após o cataclismo que dá fim à “comédia
das formas, das superfícies, das ilusões” (Pompéia, 1982a, p.59), o
homem continua acreditando no amor, esperançoso de uma redenção
e uma transcendência:
246  MARCIANO LOPES E SILVA

Estranho sonho!
E eu vi nascer das trevas um clarão suavíssimo, semelhante ao luar
que vem do céu, rasgando uma por uma as bambolinas pesadas da tem-
pestade.
Era a luz de um olhar...
Nem tudo perecera!
Este simples clarão saciava-me como se fosse a concentração da vida
universal roubada aos seres, ou o espírito errante das constelações extintas!
(ibidem)

As vacinas do riso e da ironia

Conforme apontamos, a postura dos narradores com relação aos


personagens varia de acordo com o tipo de romantismo que os con-
tamina. Para aqueles ultra-românticos, que vivem num mundo de
ilusões e sonhos, os narradores reservam o riso atacante (Hutcheon,
2000) da sátira – conforme propõe o protagonista de “O mal de D.
Quixote”. Em contrapartida, para aqueles que, embora contaminados
pelo romantismo, sabem que seus sonhos são impossíveis e, para so-
breviver, buscam a salvação numa postura resignada e aparentemente
estóica, os narradores reservam sua simpatia e solidariedade – conforme
acontece com relação aos personagens de Amélia, Ema e seu pai. E
aqui novamente encontramos outro ponto de afinidade entre a obra de
Raul Pompéia e a filosofia de Schopenhauer, posto que, para ele, todo
desejo leva ao sofrimento, e a única maneira de evitar a dor da queda
– que tanto vimos no capítulo anterior – se encontra na indiferença e
na serenidade estóicas.

[...] a alegria ou a tristeza sem medida têm de assentar sobre qualquer erro,
sob qualquer ilusão; por conseqüência, com a condição de aí ver mais claro,
deve-se poder evitar estas duas espécies de sobreexcitação da sensibilidade;
uma alegria desmesurada (exultatio, laetitia insoles) é sempre no fundo esta
ilusão [...]. Sem ascensão, não há queda. Podemos evitar uma e outra com
a condição de tomar sobre si a decisão de olhar as coisas bem de frente,
de ver claramente a sua ligação, de evitar com constância emprestar-lhes
O MAL DE D. QUIXOTE  247

as cores com que as queremos vestidas. A moral estóica reduzia-se a este


ponto principal: manter a alma livre duma ilusão semelhante e das suas
conseqüências. (Schopenhauer, [19--], p.419-20)

Mesmo propondo a moral estóica como a melhor atitude perante a


vida, a filosofia de Schopenhauer apresenta uma contradição semelhan-
te àquela que vimos em relação ao personagem de Álvaro. Assim como
o narrador de “Último castelo”, Schopenhauer (19--, p.242) admira
o talento e o caráter do grande artista que traz em si a marca do gênio,
pois “a genialidade consiste numa aptidão para se manter na intuição
pura e aí se perder, para libertar da sujeição da vontade o conhecimento
que lhe estava originariamente submetido”. E assim como o narrador
do conto “Último castelo”, o filósofo também vê no gênio o oposto do
homem vulgar, “esse produto industrial que a natureza fabrica à razão
de vários milhares por dia” e que é “incapaz, pelo menos duma maneira
contínua, desta percepção completamente desinteressada, sob todos
os pontos de vista, que constitui a contemplação” (ibidem, p.243). E
por ser assim, considera que a genialidade apresenta um parentesco
com a loucura, o que pode resultar na melancolia:

Com efeito, os loucos quase nunca se enganam nada acerca do que


está imediatamente presente; as suas divagações relacionam-se sempre
com o que está ausente ou passado, e, por conseguinte, dizem respeito
apenas à relação daquilo que está ausente ou passado com o presente. Por
conseqüência, a sua doença parece-me atingir sobretudo a memória; não a
suprime contudo completamente [...]; ela rompe antes o fio da memória;
quebra o encadeamento contínuo e torna impossível qualquer lembrança
do passado regularmente coordenada. Suponho que um louco evoca uma
cena do passado e dá-lhe toda a vivacidade duma cena verdadeiramente
presente: existem lacunas numa tal lembrança; o louco preenche-as com
ficções; essas ficções podem ser sempre as mesmas e tornarem-se idéias
fixas ou então modificarem-se de todas as vezes como acidentes eféme-
ros; no primeiro caso, é a monomania, a melancolia; no segundo caso, a
demência, fatuitas. (ibidem, p.251)

Álvaro, assim como o louco do conto “O mal de D. Quixote”, tam-


bém carrega as marcas do gênio. Note-se que a caracterização da loucura
248  MARCIANO LOPES E SILVA

de Álvaro se enquadra perfeitamente na interpretação que o filósofo


alemão faz da doença. A violenta dor moral que o atormenta, e também
ao “louco” do nosso conto-chave, não o abandona em momento algum,
de tal modo revelando-nos que o seu passado se faz constantemente
presente. E a representação desse processo se encontra na cena final,
uma vez que, em sua demência, Álvaro aponta para o vazio – assim
revelando ver algo que somente se encontra em sua memória, em sua
obsessão, na idéia fixa da traição cometida por sua esposa.
Diversamente de Álvaro e Ricardo (do conto “De madrugada”),
Amélia e o pai de Ema abandonam seus ideais, arrancando-os do
coração para seguirem vivendo, numa resignação próxima da atitude
estóica. Entretanto, tal postura não os livra do mal da melancolia,
uma vez que a causa da dor persiste na memória deles. A recusa dos
ideais considerados ilusórios não os salvaguarda da dor resultante da
perda deles, da dor por ver seus mais elevados valores e sentimentos,
que permanecem vivos na memória, serem jogados na lata de lixo da
história. Daí talvez resulte o fato de que a atitude de resignação estóica
perante o mundo não seja a melhor solução para quem cresceu e se
tornou maduro tendo como guia de conduta os ideais românticos.
Afinal, as fronteiras entre a resignação estóica e a melancolia não são
tão resistentes e nem tão bem demarcadas. Conforme afirma o próprio
filósofo, o resultado das reflexões a respeito da natureza humana e do
universo como regidos pela Vontade cega, que em última instância
nada mais é do que o egoísmo da matéria, somente pode resultar, na
melhor das hipóteses, em um amargo e melancólico humor:

E de toda esta série de reflexões nasce um humor um pouco melan-


cólico, a aparência dum homem que vive com uma única grande mágoa
e que portanto desdenha o resto, pequenas dores e pequenos prazeres; é
já um estado mais nobre do que essa caça perpétua a fantasmas sempre a
mudar, que é a ocupação da maioria. (Schopenhauer, [19--], p.421)

Sem dúvida, esse humor melancólico e estóico se encontra na obra


de Raul Pompéia e pode ser observado especialmente nos ditos sarcás-
ticos e irônicos que permeiam seus contos e atingem uma força ainda
maior quando se encontram nos efeitos finais das narrativas, conforme
O MAL DE D. QUIXOTE  249

acontece em “O mal de D. Quixote”, “O Natal” e “14 de julho na


roça”, ou nas imagens finais dos poemas em prosa, conforme vimos
em “A pomba e a estrumeira”, “Coração” e “Vigílias de ouro”. Mas o
riso discreto e de “canto de boca”, típico do humour noir, não é aquele
proposto pelo louco do conto “O mal de D. Quixote”. Para ele, o que
vale é a gargalhada da sátira, aquele riso destrutivo e ácido que vimos
ser dirigido aos personagens ultra-românticos ou então àqueles que são
alvo da zombaria política, conforme acontece no transcorrer do conto
“14 de julho na roça” ou nos romances O Ateneu e As jóias da coroa.
No meio do caminho entre os risos noir e satírico encontra-se ainda
um outro, nem tão ácido, nem tão melancólico. Riso da autocrítica
romântica que, por meio da autoparódia, vacina contra o mal sem
destruir totalmente os “vírus” do amor romântico e dos ideais da velha
escola. Esse riso, que não é novo e que, no contexto brasileiro, tem
seu melhor representante na poesia de Álvares de Azevedo (Camilo,
1997; Alves, 1998), pode ser encontrado em quatro contos nos quais os
narradores também são protagonistas: “Como nasceu, viveu e morreu
a minha inspiração” (A Comédia, São Paulo, 4 e 5 de abril de 1881),
“Uma ambição” (A Rua, Rio de Janeiro, 13 de abril de 1889), “Amor
de inverno” (A Rua, Rio de Janeiro, n.7, 25 de maio de 1889) e “No
mar” (sem data e fonte identificadas).
Em “Uma ambição”, o idealismo e a sensibilidade fantasiosa do poeta
romântico são contrapostos ao pragmatismo e ao poder econômico do
homem “positivo”. De um lado, ou melhor, no primeiro andar, com os
pés no chão da realidade, encontramos a figura do “pesado argentário,
sólido como um alicerce” (Pompéia, 1981c, p.231); de outro, ou melhor,
na água-furtada do terceiro andar, distante do chão e metaforicamente
próximo às nuvens, encontramos o narrador-protagonista em sua “qua-
lidade de artista e pobre” (ibidem, p.231). Logo no início da narrativa,
ele afirma que contará ao leitor a história de como se curou do mal ro-
mântico. Para fazê-lo, teve de lutar contra o desejo de casar com a viúva
e proprietária da pensão. Luta que foi tanto mais difícil na medida em
que ela preferiu seus poemas aos presentes do argentário. Porém, após
duas vezes ser pedido, por ela, em casamento, o poeta foge “com a maior
coragem” (ibidem, p.236), pois os vizinhos teciam comentários sobre
250  MARCIANO LOPES E SILVA

sua infidelidade ao primeiro marido e, por isso, temia que acontecesse


o mesmo consigo. Passado mais de um ano, retorna ao local e ouve do
taverneiro da esquina a afirmação de que ela traía seu novo marido
“miseravelmente”. Então, fica feliz por não ser o “corno”, ou seja, a
“vítima”, e conclui estar curado do mal romântico, apesar de sentir inveja
do argentário, que ocupara seu lugar no coração da proprietária.
É interessante, contudo, observar que, para se livrar dos ideais do
amor puro, fiel e virtuoso, o narrador-protagonista rebaixa a mulher
à condição de infiel e devassa e vê no amor apenas suas manifestações
carnais e voluptuosas, conforme o discurso do realismo-naturalismo. O
resultado é aquele texto híbrido e contraditório que vimos caracterizar
a voz do louco em “O mal de D. Quixote”, uma vez que desenvolve
uma argumentação positiva mediante uma retórica romântica marcada
pelo exagero e pelo tom patético do estilo dramático.

Ter como meu o paraíso terrestre, no círculo resumido de um anel de


aliança! Possuí-la! Poder estendê-la no linho da cama, e contar lentamente,
longamente, contar a palmos, sobre a carne branca, a extensão infinita
do meu domínio! Impor-me como um senhor, galgá-la, cavalgar-lhe as
convulsões de revolta: És meu anjo! demônio! Quebrar as asas ao anjo;
arrancar as garras ao demônio. Pertences-me, visão! Abre-te, inferno!
Rasga-te, firmamento. És minha, viúva! és minha! és minha! és minha!
Ah!... mas depois? Amar-nos-íamos muito, muito, um amor de afogar,
por algum tempo... Depois, eu, magro, iria cansando... Ela, incansável na
chama eterna do seu temperamento... riria, talvez, de ver calcinar-me a
fogueira... Riria, ou, pior ainda, teria compaixão! Que miséria, um marido
sem prestígio no leito... Ainda em cima, sem prestígio na casa, pela pobre-
za... [...] Talvez me nutrisse o elemento nervoso do meu temperamento.
Realmente, o caso é mais para nervo, que para fibra de músculo. Depois,
a paixão alimenta. Ela é tão bela, tão bela, tão ardente, aquela escultura
de carne e lava!... (ibidem, p.233-4)

É quase impossível lermos essa passagem sem que venha à memória


o poema “É ela! É ela!”, de Álvares de Azevedo, que, segundo Cilaine
Alves (1998, p.161-2), já era uma paródia ao uso do eco que ocorre no
Canto IV de A confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães.
Da mesma forma que no poema de Álvares de Azevedo, o conto de
O MAL DE D. QUIXOTE  251

Raul Pompéia produz o efeito cômico com base no jogo de construção


e desconstrução da heroína romântica, que, ao invés de ser de extração
elevada, é uma personagem vulgar – o que é característico dos gêneros
baixos, segundo a poética clássica. Mas o que chama ainda mais a atenção
no texto de Pompéia é o detalhe de que o pathos do narrador-protagonista
decorre da contradição presente na dualidade anjo-demônio que carac-
teriza a representação da mulher na literatura romântica (Leite, 1979).
Tal dualidade, que, por exemplo, sustenta o conflito da protagonista e
a tensão narrativa em Lucíola, de José de Alencar, é, no conto de Pom-
péia, explorada em seu aspecto cômico. E a paródia ao texto romântico
possibilita tanto a crítica da representação dilacerada e contraditória da
mulher como a da fraqueza física (que também é satirizada nos contos
“Um vizinho original” e “Fora de horas”) e da posição submissa do
poeta ultra-romântico conforme os moldes do amor cortês.
Muito semelhante ao narrador-protagonista do conto anterior é o
do conto “Amor de inverno”. Nesse, ele resolve que, para se divertir,
buscará amar uma velha, pois é mais difícil de se obter o seu amor. Esse
“é o amor que custa; pelo menos, o amor que precisa que o busquemos
para vir: mil vezes mais apreciado que o amor que vem ao nosso encon-
tro” (Pompéia, 1981c, p.243). Diversão que também se justifica por
levar uma alegria e um prazer a quem já entrou no inverno da vida:

Quem sabe? Haverá, talvez, um vivo prazer em ir a gente abrir uma


réstea estival de claridade no firmamento nublado desses dias! Espera, S.
Medardo, padroeira dos dias úmidos... guarda o aguaceiro um pouco...
que eu vou mandar àquela pobre, de presente, uma nesgazinha de bom
tempo... (ibidem, p.243)

Ao final do conto, entretanto, conclui: “Pois senhores, fala-se em


juventude... primavera... primavera... fala-se em verão... Não acredi-
tem, meus amigos, não acreditem no inverno” (ibidem, p.247).
Por meio do fato narrado, o protagonista desfaz a crença em que os
velhos não têm mais desejos e que a carne esteja morta. E, ao fazê-lo,
afronta inúmeros valores importantes para a sociedade, especialmente
os valores de pureza e sabedoria que o cristianismo atribui aos velhos
com suas cãs:
252  MARCIANO LOPES E SILVA

Era isso mesmo que me enchia a imaginação havia momentos. Tinha


encontrado o sonho. Uma mulher que passava, na sua velhice, esquecida do
amor, esquecida do sexo, na idade positiva e anestésica das desilusões. [...]
inventar então para mim um amor novo de ressurreição; criar outra vez a
mulher e fruir aquela segunda virgindade; cuspir no adjetivo venerando, in-
cendiar de paixão o amianto rebelde dos cabelos brancos. (ibidem, p.245)

Uma questão que fica sem resposta é: qual o ponto de vista que
orienta a sátira? qual discurso que é rebaixado? Sua retórica é romântica,
pois o estilo é pomposo, carregado de enumerações gradativas e adjeti-
vos que expressam a emoção do narrador-protagonista, que não deixa
de tomar a si como alvo do próprio humor. Ao final, desfaz-se a ilusão
romântica de que a velhice é o “inverno” da vida. Mas será que tal idéia
é exclusiva do romantismo? Acreditamos que não, pois, de modo geral,
tal idéia é compartilhada por ele, pelo positivismo e pelo cristianismo
da mesma forma. É interessante observarmos que, no parágrafo citado,
alguns enunciados a respeito da velhice podem ser creditados tanto ao
naturalismo quanto à filosofia de Schopenhauer, na medida em que
ambos apresentam uma relação contratual com respeito à idéia de que
os instintos sexuais, na velhice, já deveriam estar aplacados – especial-
mente se considerarmos que a velha já era bisavó. É o que vemos no
início de seu devaneio, quando o narrador-protagonista considera que,
na velhice, “a criatura não é mais do que um tubo digestivo por corpo e
um terror por alma, o terror da morte que aí vem; quando, ao abandono
da cousa imprestável, [...] soma-se o egoísmo com que nos agarramos
a nós mesmos, esquecidos dos semelhantes” (ibidem).
“No mar” (sem data) também apresenta um narrador-protagonista
que aparentemente conseguiu se livrar do mal de D. Quixote. Du-
rante uma viagem à Europa, o adolescente Júlio conhece, por irônica
coincidência, uma moça chamada Júlia, que lhe pareceu um anjo sob
o luar no convés do navio. Mas, embora se mostrasse tímida, ela não
ofereceu nenhuma resistência ao abraço e ao beijo que o jovem lhe deu,
logo no primeiro encontro: “Saboreei num instante todas as alegrias
de um amante feliz; e perante a presença da lua, como um namorado
da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa Júlia um beijo...
demoradamente...” (Pompéia, 1981c, p.283).
O MAL DE D. QUIXOTE  253

Tais fatos, que apresentamos resumidamente, acontecem na primeira


e mais extensa parte do conto, toda ela narrada em estilo ultra-romântico.
Entretanto, toda idealização assim construída é desfeita na segunda
parte, em que a imagem do anjo, que o narrador concebera com respeito
à formosa Júlia, se desfaz abruptamente, produzindo o movimento de
queda que se faz sentir no estilo, então vazado em moldes realistas. Ao
descobrir que a linda moça não possuía a pureza imaginada, o narrador
não esbofeteia o marinheiro que lhe mostrou a realidade, não briga com
ela ou com o amigo “solteiro e folião”, que a recebera na intimidade do
aposento, e nem sequer se desespera. E para demonstrar que superou
o mal romântico, ele encerra a narrativa com o seguinte comentário –
que ocupa toda a terceira parte: “Momentos depois pensa o leitor que
eu estava resolvido a suicidar-me?... / Dei uma gargalhada” (ibidem,
p.284). Contrariamente ao que faria um “namorado da antiga escola”
(ou seja, a romântica), e conforme o espírito positivo, sua atitude é a
do riso, assim como propõe o louco em sua “teoria”. E a maneira que
encontra para se curar é a de divertir-se com a narração de sua própria
ingenuidade, assim realizando a autocrítica por meio da paródia ao estilo
romântico. Procedimento que também se encontra em “Como nasceu e
morreu minha inspiração”, conto que apresenta a intertextualidade com
o poema “O laço de fita”, de Castro Alves, e com os poemas “Namoro
a cavalo” e “O lenço dela”, de Álvares de Azevedo.
No poema “Namoro a cavalo” (Azevedo, 1999, p.287-8), o poeta,
novamente estudante, sai devidamente arrumado para visitar a donzela
que então cortejava, mas no caminho cai do cavalo e tem suas calças não
somente sujas de barro, como também rasgadas. Ao final, é rejeitado
por ela, que lhe fecha a janela na cara ao vê-lo em estado tão lastimá-
vel. Semelhante incidente acontece no conto de Pompéia, em que o
narrador-protagonista, que mora em uma república de estudantes,
tem a manga da sua camisa manchada por um pingo de tinta – o que o
impede de ir ao baile, onde veria a garota pela qual estava enamorado.
A ironia do texto resulta do fato de que o pingo caiu em sua manga bem
no momento em que, possuído da inspiração divina, ia escrever um
soneto para ela. Resultado: não vai ao baile e perde a sua inspiração.
Mas essa ironia, no caso, é divertida, porque em nenhum momento o
254  MARCIANO LOPES E SILVA

narrador-protagonista relata os fatos com real pesar. Diversamente,


ironiza a si mesmo e ao romantismo que o movia, rebaixando sua ins-
piração por meio do exagero da linguagem, presente no elevado tom
patético e no valor dos poetas e das musas que invoca, o que contrasta
comicamente com o prosaísmo da situação:

– Bravo! Já estou quase deitando verso de improviso! Exclamei eu,


notando a minha exaltação. Venha papel! Venha pena! Cérebro, soma-te
com o teu companheiro, o coração! Não briguei desta vez como é de vosso
costume... somai-vos um com o outro e vertei nesta folha de papel algu-
ma cousa que não horrorize a Petrarca... Espírito de Dante, eu te evoco!
Vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste Beatriz! Dirceu,
corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi todos!
Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a
imortalidade na memória dos homens!... (Pompéia, 1981c, p.21)

O tom exageradamente exaltado e o excesso de clichês românti-


cos produzem o efeito cômico e paródico, que se torna evidente no
momento em que o narrador-protagonista, indignado com o fato de
não mais poder ir ao baile, trata os poetas e as musas como “corja”,
comparando-as a sirigaitas e eles a um bando de moleques idiotas e
traquinas: “[...] eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-
me do quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os
idiotas irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas
públicas” (ibidem, p.22). O efeito final fica ao encargo da desilusão
de saber que ela nem sentiu a sua falta, trocando-o por outro, e
pela imagem do “laço de fita azul”, que, diversamente do “laço de
fita” do poema homônimo de Castro Alves, ou do “lenço” (motivo
equivalente ao do laço de fita), presente no poema “O lenço dela”,
de Álvares de Azevedo (1999, p.331), não lhe traz boas e românticas
recordações. Muito pelo contrário, razão pela qual ele é guardado
pelo narrador-protagonista como um talismã que deverá protegê-lo
contra o mal romântico:

A minha querida (soube-o depois) nem perguntou por mim na festa.


Esteve alegre. Encontrou quem lhe agradasse (um sujeitinho com quem
vai se casar). Melhor. Já estou consolado da desgraça, um mal que me
O MAL DE D. QUIXOTE  255

veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O aborrecimento que


hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmavam naquela
tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava.
Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo, ergo: ganhei... Estou na
expectativa de um fim de ano esplêndido.
Mais uma palavra. O laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.
(ibidem, p.23)

Embora os diferentes matizes do humor que encontramos, que vai


do riso da sátira, em sua função atacante, ao riso noir e cético, podemos
considerar que o humor e a ironia servem como defesa contra o mal
romântico de iludir-se e a conseqüente loucura que pode advir. Aliás,
esse distanciamento dos narradores é obtido especialmente por meio
da ironia, constantemente observada nos textos, que com freqüência
surge da contradição entre o ideal e o real, revelando-se, nesses casos,
não apenas como um tropo de retórica, mas especialmente como uma
forma particular de estilo, conforme observa Beth Brait (1996, p.27)
a respeito da ironia romântica:

[...] o nascimento da situação irônica como um deslocamento entre o real


e o imaginário, a lúcida intencionalidade do ironista que tende a tornar-se
um observador crítico, a máscara do poeta que guarda uma certa trans-
parência, diferenciando-se radicalmente do mentiroso ou do hipócrita,
são alguns dos componentes de uma postura poética em que a ruptura
da ilusão constitui o eixo central das relações que se estabelecem entre o
produtor, a obra e o receptor.

A alegoria, que observamos especialmente no capítulo anterior, e a


ironia – conforme apresentada aqui – estão intimamente ligadas nos tex-
tos de Raul Pompéia. A imagem da pomba e da estrumeira constitui um
excelente exemplo de como a alegoria se entrelaça com a ironia român-
tica, posto que, nela, a ironia não somente resulta “d’un décalage entre le
réel et l’imaginaire”6 (Bourgeois, 1974, p.31), como também se encontra
em posição estratégica ao final da narrativa, de modo que a revelação da
situação irônica, voltada para o rompimento da ingenuidade, favorece

6 “de uma defasagem entre o real e o imaginário” (tradução do autor).


256  MARCIANO LOPES E SILVA

“le détachemant, la prise de conscience de l’absurdité du monde tel qu’il


se présente immédiatement à nous”7 (ibidem). Os narradores reconhe-
cem a dissolução dos ideais românticos no confronto com a realidade,
mas, estrategicamente, procuram permanecer distantes, ocultando a
sensibilidade romântica por meio da ironia, máscara que os protege
do ridículo e lhes confere o distanciamento crítico exigido não somente
pela crítica realista-naturalista dominante na época, mas também pela
própria postura romântica predominante no primeiro romantismo
alemão. Segundo Schiller (1991, p.70), a sátira “toma como objeto [...]
a contradição da realidade com o Ideal” de modo irônico, mantendo
um movimento dialético capaz de conjugar os sentidos contraditórios
sem se definir por algum deles, conforme vimos em inúmeros contos
no capítulo anterior e nos poemas em prosa de Canções sem metro.
Por tais motivos, a ironia na obra de Raul Pompéia não tem ape-
nas a função “atacante” (Hutcheon, 2000) necessária à crítica social e
política. Ao servir como máscara, ela também apresenta uma função
“distanciadora” (ibidem) propícia à autoproteção, servindo como me-
canismo de defesa necessário à sanidade mental perante uma realidade
marcada pelo caos do arrivismo e da exploração. O riso amargo dessa
ironia, que do ponto de vista de Schopenhauer pode ser considerada
resultante da incongruência entre a razão e o entendimento (Alberti,
1999, p.173), constitui uma tentativa de buscar um distanciamento
sem emoção, uma serenidade capaz de anular os pólos do amor e do
ódio ao romantismo. Mas isso não invalida que esse riso também seja,
por sua vez, uma tentativa de superar o impasse ante as contradições
do real e as aporias românticas. Por isso a ironia surge freqüentemente
no encerramento das narrativas de efeito final. Associada à surpresa
reveladora da defasagem entre o real e o ideal, ela também se constitui
em um poderoso instrumento de revelação das hipocrisias sociais e da
alienação do homem moderno. E a tomada de consciência dos fatos é
e sempre será o primeiro passo em qualquer caminhada que almeje a
construção de uma outra realidade.

7 “o desprendimento, a tomada de consciência do absurdo do mundo tal como ele


se apresenta imediatamente a nós” (tradução do autor).
5
Um Romantismo dilacerado

“O bienheureux travail d’un esprit glorieux


Qui tire un si gain d’un si petit dommage !
O bienheureux malheur plein de tant d’avantage,
Qu’il rende le vaincu des ans victorieux !
[...] Il mourut poursuivant une baute aventure ;
Le ciel fut son désir, la mer sa sépulture :
Est-il plus beau dessein, ou plus riche tombeau ?”
(Phiplippe Despostes,  “Icare”)

“En vain j’ai voulu de l’espace


Trouver la fin et le milieu;
Sous je ne sais quel oeil de feu
Je sens mon aile qui se casse;

Et brûlé par l’amour du beau,


Je n’aurai pas l’honneur sublime
De donner mon nom à l’abîme
Qui me servira de tombeau.”
(Charles Baudelaire, “Les plaintes
d’un Icare”, Les fleurs du mal)

“A poesia tem asas de cera.”


(Narrador do conto
“Ambição”, de Raul Pompéia)
258  MARCIANO LOPES E SILVA

Ao final deste percurso, parece-nos inegável o fato de que a obra


de Raul Pompéia não somente é animada por uma visão de mun-
do romântica, como também possui inúmeros textos cujo estilo é
romântico ou simbolista. Mesmo naqueles em que encontramos o
distanciamento e a objetividade do realismo ou a sátira impiedosa a
personagens-tipo do romantismo, a perspectiva sob a qual se realizam
tais obras é romântica. Nelas, tanto a objetividade realista quanto o
riso sarcástico da sátira funcionam como máscaras, de modo seme-
lhante ao que acontece com os parnasianos e o Flaubert da maturidade
na opinião de Löwy & Sayre (1995, p.48), que consideram a “impas-
sibilidade” dos mesmos como “uma estratégia de autodefesa” contra
o racionalismo pragmático do liberalismo.
No carrefour de estilos e ideologias do fin du siècle XIX, Raul Pom-
péia bebeu da visão de mundo romântica especialmente da taça dos
simbolistas e decadentes, cujos movimentos lhe eram contemporâneos
e em muito devedores dos românticos de Jena e dos poetas ingleses.
Contudo, a idéia de decadência não lhes era exclusiva, pois se espalha-
va pela sociedade e adentrava o pensamento e a arte dos naturalistas,
conforme observa Otto Maria Carpeaux (1964, v.6, p.2590-1) em sua
História da literatura ocidental.

O sentimento da decadência, que é mais uma maneira de fugir da


realidade, é fortalecido pelos muitos naturalistas-apóstatas que se associam
aos simbolistas: Huysmans, Garborg, Hanson – todos eles frustrados na
luta pela realidade. Essa reação psicológica é tão forte que simbolismo
e decadentismo se confundem no conceito de poesia e mentalidade do
“fin du siècle”. É um sentimento de bancarrota coletiva. Uma civilização
demite-se dos seus próprios fundamentos intelectuais para submergir no
antiintelectualismo.
Isso não é próprio do romantismo francês. Mas é próprio daqueles
outros romantismos que exerceram influências sobre o romantismo
francês: do inglês e do alemão. Com efeito, as influências estrangeiras são
muito fortes no simbolismo francês, até predominantes. O simbolismo
francês está mais perto de Novalis e Keats do que de Lamartine e Hugo; o
seu único precursor autêntico na França é Nerval. Mas a escolha daquelas
influências estrangeiras obedeceu a normas especiais, estabelecidas pelo
O MAL DE D. QUIXOTE  259

parnasiano Baudelaire. Considerado dentro da literatura européia, o


simbolismo francês continua o romantismo anglo-germânico.

Carpeaux, assim como inúmeros outros críticos e teóricos já apon-


tados no início deste trabalho, considera o simbolismo um movimento
que deu continuidade ao projeto romântico. Entretanto, é necessário
fazer a ressalva quanto à contraditória opinião de que Baudelaire seja
parnasiano, pois, poucas páginas adiante, encontramos a seguinte ava-
liação sobre a sua obra, que contraditoriamente ressalta as afinidades
e características românticas da mesma.

Em Baudelaire aprenderam os simbolistas certo idealismo filosófico


ou teosófico como base da poesia autêntica. Admitia-se como poesia só
aquilo que se baseava nesse idealismo, quer dizer a poesia de Novalis e
Poe ao lado da música de Wagner e da teosofia de Swedenborg; não é acaso
que são quatro preferências de Baudelaire. Mais tarde, os simbolistas
chegaram a apreciar Keats e conhecer Nietzsche, dos quais Baudelaire
também teria gostado. E quase todos esses elementos já se encontram em
Villiers de L’Isle Adam. (ibidem, v.6, p.2593)

A afinidade entre a obra de Raul Pompéia e a de Baudelaire é


muito forte, até mesmo em suas contradições internas. Assim como
Baudelaire não foi um artista coerente, oscilando entre l’art pour l’art
e outra moralmente comprometida, conforme demonstra Michael
Hamburger (1991, p.11-16), também Raul Pompéia se apresenta como
um artista contraditório e dilacerado. Sinal dos tempos modernos, sem
dúvida. Afinal, desde os primórdios do romantismo, a dissociação do
“Eu” e a temática do duplo não estão presentes apenas na literatura,
mas também na vida dos artistas e daqueles homens sensíveis que, na
luta por se adaptar às exigências de uma sociedade regida pela racio-
nalidade pragmática, desenvolvem diversas máscaras sociais. Atitude
já visível no distante século XVIII, quando lembramos que o imagi-
nativo E.T.A. Hoffmann, escritor, músico, pintor e diretor de teatro,
era, à noite, um “boêmio dissoluto, bebedor apaixonado – protótipo
do artista romântico”, enquanto, durante o dia, era “um funcionário
modelar, um dos juízes mais honrados e – em tempos difíceis de reação
260  MARCIANO LOPES E SILVA

política – dos mais independentes dos que houve jamais na Prússia”


(ibidem, v.4, p.1766).
Quando passamos da vida para a literatura, os exemplos se multi-
plicam. A dissociação da personalidade está em contos de Théophile
Gautier (“A morte enamorada”), de Edgar Allan Poe (“William
Wilson”), nos romances O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de
Stevenson e O retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, assim como
no próprio modelo literário da narrativa de efeito final desenvolvido
por Edgar Allan Poe, que conjuga o imaginário fantástico e as paixões
típicas do artista romântico com o racionalismo e a planificação que
caracterizam a prática do empresário e do burocrata.
Talvez o leitor conteste a citação de O retrato de Dorian Gray como
exemplo de obra que tenha por tema a dissociação da personalidade,
argumentando que seu principal tema é a defasagem entre o ser in-
terior e a aparência, especialmente a física. Sem dúvida, são temas
diversos, mas relacionados na medida em que a não-coincidência
entre ambos é reveladora do lado sombrio da natureza humana, porção
do inconsciente que foge ao controle da racionalidade e traz em si os
impulsos primitivos abafados – mas não totalmente contidos – pelos
séculos de civilização. Desse prisma, o lado satânico de Dorian Gray,
que se revela aos olhos dos homens apenas no retrato, enquanto para
a sociedade ele permanece com a aparência bela e imaculada de um
jovem adolescente, não é diverso do lado satânico do Dr. Jekyll, que se
revela graças à poção química por ele inventada. Em ambos, o paradoxo
que os caracteriza descortina a terrível verdade de que as mais belas
e respeitáveis aparências podem esconder a mais maléfica e egoísta
das almas. Tema que vimos em “Les yeux des pauvres”, de Charles
Baudelaire, e nos textos “A pomba e a estrumeira” e “Impenitência”,
entre outros, de Raul Pompéia. Dessa perspectiva também podemos
compreender a observação de Carpeaux com respeito aos textos fan-
tásticos de Hoffmann. Segundo o crítico, a obra do romântico alemão
apresenta o interessante contraste “entre o naturalismo do ambiente
e o pavor das aparições [...] é a invasão da vida burguesa e normal
pelas criaturas e monstros do ‘lado noturno da Natureza’” (1962, v.4,
p.1767). E além dessa dissociação, há uma outra também observada
O MAL DE D. QUIXOTE  261

por Carpeaux que é resultante das contradições entre os ideais estéticos


do artista e as condições de produção impostas pelo mercado:

Em Hoffmann separam-se os caminhos. De um lado, a transformação


do romantismo em mero espetáculo, comercialmente explorado, para as
grandes massas de leitores; de outro lado, a subida para as alturas onde o
pensamento de Novalis se encontra com a arte de Baudelaire. (ibidem)

Se a dissociação da personalidade de Hoffmann, entretanto, pode


ser vista como “sintoma de um romantismo de evasão extremo” (ibi-
dem, p.1766) resultante da dualidade entre o escritor industrializado
de existência diurna e o escritor romântico de existência noturna, o
mesmo não se pode dizer de Baudelaire e Raul Pompéia. Com respeito
a eles, a dissociação entre vida e obra ocorre de forma diversa.
Embora Baudelaire tenha defendido a bandeira da l’art pour l’art,
argumentando que a arte não tem moral, em L’art romantique afirma:

Le gôut immodéré de la forme pousse à des désordres monstrueux et


inconnus... La passion frénétique de l’art est un chancre qui dévore le reste ;
et comme l’absence nette du juste et du vrai dans l’art equivaut à l’absence
d’art, l’homme entier s’évanouit ; la spécialisation excessive d’une faculté
aboutit au néant.1 (Baudelaire apud Hamburger, 1991, p.14)

Desse aspecto, a poesia de Baudelaire também é contraditória. Se


não é moral, também não é condizente com a atitude de quem busca a
evasão. Como se evadir com poemas que desnudam o lado mais cruel e
podre da realidade, que nos lembram a cada instante a distância entre
os ideais e o mundo que nos cerca? Como se evadir por meio de uma
poesia que, na opinião de Walter Benjamin, revela a face hipócrita
da história mediante uma técnica equivalente à dos conspiradores?

1 “O gosto imoderado pela forma incita a desordens monstruosas e desconhecidas...


A paixão frenética da arte é um cancro que devora o resto, e como a ausência cabal
do justo e do verdadeiro na arte equivale à ausência da arte, o homem inteiro se
desvanece; a especialização excessiva de uma faculdade desemboca no nada”
(tradução do autor).
262  MARCIANO LOPES E SILVA

(Benjamin, 1991, p.96-97) Uma poesia que faz isso jamais poderá
ser arte pura, destituída de qualquer relação com o mundo real. E
quando pensamos em seus textos de crítica, a mesma contradição se
apresenta, posto que eles “son brillantes ejemplos de un enfoque sintético,
tan distinto del analítico, y son la obra de un hombre preocupado por la
función pública de las artes y por sus leyes internas”2 (Hamburger, 1991,
p.16). Considerando, portanto, essas e outras contradições, a melhor
postura crítica para enfrentá-las é a de procurar nas tensões qualquer
possível verdade, por mais tênue que seja.

Casi desde el principio, Baudelaire fue considerado progresista y


reaccionario, original y trivial, clásico y moderno, cristiano, satanista y
materialista, orfebre consumado y mal escritor, moralista riguroso y hombre
incapaz de sinceridad. La mayor parte de los desacuerdos básicos sobre las
actitudes y intenciones de Baudelaire se deben a sus propias contradicciones;
y tenía bastante conciencia de esas contradicciones para hacer una defensa
general “del derecho en el que todos estamos interesados: el derecho a con-
tradecirse uno mismo”. La verdad que encierra la obra de Baudelaire no
pude extraerse de tal o cual confesión, ni de tal o cual verso convincente,
sino de las tensiones, cuya clave más segura son sus propias contradicciones.3
(Hamburger, 1991, p.12)

Tal postura também é a melhor que podemos assumir ante a obra de


Raul Pompéia, pois, conforme vimos, ela também apresenta inúmeras
contradições que, não por coincidência, são semelhantes às existentes

2 “são brilhantes exemplos de um enfoque sintético, tão distinto do analítico, e são


a obra de um homem preocupado com a função pública das artes e com suas leis
internas” (tradução do autor).
3 “Quase desde o início, Baudelaire foi considerado progressista e reacionário, original
e trivial, clássico e moderno, cristão, satânico e materialista, ourives consumado e
mau escritor, moralista rigoroso e homem incapaz de sinceridade. A maior parte
dos desacordos básicos sobre as atitudes e intenções de Baudelaire se devem a suas
próprias contradições; e tinha bastante consciência dessas contradições para fazer
uma defesa geral ‘do direito no qual todos estamos interessados: o direito de se con-
tradizer a si mesmo’. A verdade que encerra a obra de Baudelaire não pode extrair-se
de tal ou qual confissão, nem de tal ou qual verso convincente, mas das tensões, cuja
chave mais segura são suas próprias contradições” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE  263

na obra e na vida de Baudelaire. Contradições e dilaceramentos que são


tanto internos quanto externos com respeito à literatura na medida em
que resultam da dissociação entre arte e vida, assim como do confronto
entre diferentes visões de mundo. E nesse confronto se revela o inter-
discurso em que as diversas formações discursivas em luta (positivista,
romântica, liberal etc.) se confrontam e atualizam sua memória discur-
siva – conforme propõe a Análise do Discurso (AD) de linha francesa.
Entretanto, nossa relação contratual com essa visão teórica esbarra na
questão do sujeito. Parece-nos muito embaraçosa a apropriação que a
AD francesa faz dos escritos de Bakhtin na medida em que sua reflexão
sobre o papel da consciência do autor na realização da obra artística se
opõe radicalmente às idéias formuladas por Foucault (1987) e Pêcheux
(1988) quanto à autoria e à posição do sujeito; idéias que ainda persistem
nessa linha teórica. Por isso permanecemos com Bakhtin, para quem o
autor é o responsável por dar uma forma arquitetônica à obra de arte,
possuindo a liberdade de manipular os diversos discursos, unidades
estilísticas, formas composicionais e gêneros discursivos de acordo com
seus valores cognitivos e éticos, assim promovendo o diálogo renova-
dor dos discursos e, por conseguinte, das visões de mundo. Em outras
palavras, consideramos que o escritor não se apropria de uma língua
pronta e nem reproduz inconscientemente os discursos circulantes,
mas os (re)constitui por meio do exercício da criação verbal. E é dessa
perspectiva que julgamos mais adequado pensar as tensões existentes
na obra de Raul Pompéia, encarando-as não apenas como contradições
formais internas, mas também como questões históricas que, para serem
devidamente compreendidas, não podem prescindir da figura do autor
e das condições materiais de produção.
No campo da crítica, os textos mais teóricos publicados na seção
“Pandora” constituem um momento especial em meio à produção
de crônicas sobre arte e cultura escritas por ele. Produção que se ca-
racterizava, de modo geral, pela divulgação das obras e eventos com
o intuito de valorizar as atividades artísticas, integrando-as entre
as práticas de consolidação de uma cultura e um Estado nacionais.
Assim como Charles Baudelaire, Raul Pompéia oscila entre a crítica
engajada e o esteticismo, entre uma concepção da arte que afirma sua
264  MARCIANO LOPES E SILVA

imoralidade, negando-lhe a função de educar ou corrigir, e uma prática


artística socialmente comprometida com uma reflexão crítica sobre a
sociedade e a história.
Considerando o momento político e o público leitor existente, a
publicação de textos críticos e especialmente teóricos que consideravam
a literatura em sua autonomia constitui, por parte de Raul Pompéia,
um contra-senso com respeito à atividade educativa que exercia nos
jornais. Não satisfeito em teorizar sobre a arte dentro da obra, conforme
faz nas conferências do professor Cláudio, e o que seria o suficiente
segundo os princípios românticos de que a crítica deve ser interna à
poesia, Raul Pompéia reafirmou suas posições em pequenos artigos
cujo estilo e propósitos antes nunca realizara e que depois também não.
Tal atitude nos parece, salvo engano, mais decorrente da necessidade
de se defender do que de uma preocupação exclusivamente teórico-
crítica. Não acreditamos ser uma coincidência o fato de a maior parte
de esses textos ser de 1888, ano de publicação de O Ateneu. É muito
difícil não considerarmos a condenação que Raul Pompéia faz da crítica
que avalia a obra considerando a intimidade e a vida do autor como
não sendo um lance defensivo contra aqueles que julgaram O Ateneu
segundo o ponto de vista biográfico, afirmando ser uma obra vingativa
e cheia de ressentimento. Não queremos afirmar aqui a falsidade de
suas posições, mas o fato de que a afirmação do caráter amoral da obra
literária constituiu para Pompéia, assim como para Baudelaire, muito
mais um mecanismo de defesa contra os moralistas e a reação das classes
dominantes caricaturadas do que realmente uma defesa convicta do
descompromisso social e ético da obra de arte.
O engajamento que contradiz o ideal de l’art pour l’art se revela
na militância nacionalista que exercia por meio da imprensa, na sua
defesa por uma escola brasileira de paisagistas, no apoio à arte com-
prometida com a perenização de personagens e feitos históricos e na
utilização da sátira, conforme ocorre em O Ateneu e As jóias da coroa
e em alguns contos. Especialmente engajado é o inesperado final de
O Ateneu, em que o incêndio do colégio constitui uma alegoria do
uso da força revolucionária para promover a derrubada do Segundo
Império. Equivocam-se aqueles críticos que consideram o desfecho
O MAL DE D. QUIXOTE  265

do romance como despropositado e falso ou que o consideram movido


unicamente por razões psicológicas, ou seja, como uma vingança,
“uma desforra contra tudo o que o escritor sofrera no internato”
(Broca, 1981, p.42). Nada mais natural em uma obra alegórica do
que um final também alegórico. Aliás, a dimensão alegórica, assim
como acontece na obra de Baudelaire, é outro aspecto contraditório
com relação à profissão de fé de l’art pour l’art presente no ideário
estético do movimento simbolista. Em ambas as obras, o uso da
alegoria revela a face hipócrita da história. Em ambas, ela e a ironia
romântica são utilizadas para demonstrar a angustiante defasagem
entre a Idéia e sua realização neste mundo, entre os ideais e suas
insatisfatórias realizações históricas. E nesse ponto encontramos
outra grande tensão na obra de ambos: tensão que diz respeito à
crise da religiosidade no mundo moderno, pois revela a contradição
entre o desejo de religação com o cosmos e a descrença em qualquer
transcendência espiritual ou unidade harmônica.
Raul Pompéia, assim como Baudelaire, parece realmente crer nas
analogias universais. Encontramos, em sua obra, o abundante uso das
comparações e das equivalências entre os diversos níveis de elaboração
textual visando a uma criação orgânica, uma obra construída segundo o
princípio romântico da totalidade. Entretanto, a presença da metafísica
negativa de Schopenhauer contradiz a crença numa visão harmônica
do universo. Em ambas, tal dilaceramento se expressa esteticamente
na coexistência contraditória entre analogia e ironia que, segundo
Octavio Paz (1984, p.100-1), são irreconciliáveis:

Ironia e analogia são irreconciliáveis. A primeira é filha do tempo


linear, sucessivo e irrepetível; a segunda é manifestação do tempo cíclico:
o futuro se insere no tempo do mito, e ainda mais: é seu fundamento; a
ironia pertence ao tempo histórico, é a conseqüência (e a consciência) da
história. A analogia converte a ironia em mais uma variação do leque de
semelhanças, porém a ironia rasga o leque. A ironia é ferida pela qual san-
gra a analogia; é a exceção, o acidente fatal, no duplo sentido do termo: o
necessário e o infausto. A ironia mostra que o universo é uma escrita, cada
tradução desta escrita é diferente, e que o concerto das correspondências é
um galimatias babélico. A palavra poética acaba em uivo ou silêncio.
266  MARCIANO LOPES E SILVA

É inegável que esse paradoxo romântico resulta – em grande dose


– do embate com o capitalismo e o positivismo dominantes ao final do
século XIX, e ao segundo coube desmantelar a metafísica e a religião
nas consciências, conforme observa Octavio Paz. No entanto, tratando-
se da obra de Raul Pompéia, não parece apropriado considerar que a
ironia seja “filha do tempo linear”, uma vez que a consciência cética
que lhe dá forma se encontra na filosofia da história de Schopenhauer.
Nesse caso, a ironia não se contrapõe ao tempo mítico de qualquer
concepção idílica do universo, mas, diversamente, revela a falência do
mito do progresso inerente à concepção linear de tempo histórico, seja
ela positivista ou hegeliana. Em suma, a ironia, assim como a alegoria,
expressa o luto pela morte de todas as teleologias redentoras. No lugar
da religião, temos a revolta de um Lautréamont e a melancolia de quem
vê acumularem-se ruínas ao longo da história.
O uso da alegoria como instrumento de revelação da barbárie e
de resgate dos desejos revolucionários silenciados pela historiografia
dominante apresenta especial força em Canções sem metro, onde o pro-
cedimento encontra sua excelência em razão do caráter explicitamente
histórico e filosófico da obra. Assim como Les fleurs du mal, a narrativa
de Canções sem metro também se articula como uma serpente que de-
vora a si mesma, impossibilitando ao seu leitor extrair dela qualquer
conclusão moral e/ou ideológica fechada. Aliás, a ironia presente em
todos os poemas impede a evasão e/ou a catarse por meio do sublime,
sendo fundamental para que a obra não se torne trivial, ou seja, didática
e/ou ideologicamente ingênua. Assim procedendo, Raul Pompéia,
tal como Baudelaire, não subordina a arte a qualquer fim moral ou
político, mantendo sua autonomia – que nesse caso não se confunde
com aquela autonomia proposta pelos defensores da “arte pura”. E,
conforme vimos, essa postura não implica evasão ou imoralidade.
Portanto, acreditamos que é nessa dolorosa tensão entre o ideal e sua
ausência, entre a Idéia e sua deturpação, que parece residir o melhor
caminho para a criação de uma arte que seja autônoma, mas que não
se deixe seduzir pelo canto de sereia de l’art pour l’art.
O mesmo acontece em muitos de seus poemas em prosa e contos,
nos quais a ironia romântica e o riso da sátira constituem não somen-
O MAL DE D. QUIXOTE  267

te mecanismos de crítica e reflexão, mas também de autoproteção


contra atitudes ingênuas. Por meio delas, Raul Pompéia – mais do
que Baudelaire, cujo ceticismo é mais forte – coloca o leitor em uma
incômoda posição: a de ter que buscar uma solução para o impasse da
tragédia dos ideais, pois, não podendo aceitar a miséria e a hipocrisia
que o cercam, também não encontra saída nos ideais tão acalentados.
Mas tal saída é por demais angustiante ou até mesmo ilusória, uma vez
que leva o artista a comportar-se – conforme critica Anatol Rosenfeld
(1976) – como um malabarista que desempenha seu espetáculo sobre
uma corda bamba. Em outras palavras, se não ocorrer o vai-e-vem
entre o finito e o infinito, o determinado e o indeterminado, de modo
que cada negação suscite imediatamente uma síntese criativa, a ironia
romântica fracassará, restando nada mais do que um riso amargo e
cético, niilista em última instância.
Nesse aspecto reside uma das mais profundas tensões da obra de
Raul Pompéia. Tensão que opõe o “romantismo revolucionário” de
Victor Hugo e de Proudhon ao “romantismo da desilusão” (Lukács,
2000) ou, o que não é muito diferente, ao “romantismo da resignação”
e do estoicismo proposto por Schopenhauer, posto que a resignação
é o primeiro passo para a aceitação do status quo e para “a convicção
trágica [...] de que a decadência social é inevitável” (Löwy & Sayre,
1995, p.110). Tensão que, no plano das formas composicionais, se ma-
nifesta na presença simultânea do sublime, das analogias e da retórica
condoreira ao estilo de Victor Hugo paralelamente à ironia amarga
que encerra todos os poemas e que nem sempre permite o movimento
dialético da ironia romântica.
Quando pensamos na relação entre a obra e seu autor, vemos que as
tensões apontadas novamente reaparecem. Considerando que, na obra
literária de Pompéia, o pessimismo schopenhaueriano é mais forte do
que o otimismo revolucionário, parece um contra-senso a fervorosa
atividade política de Raul Pompéia. A polêmica com Proudhon, que
chega ao ponto da paródia que satiriza a crença na evolução humana
como decorrente dos momentos de ruptura revolucionária, encontra-se
em flagrante contradição com o jacobinismo de Raul Pompéia. Conside-
remos o fato de que a idéia de decadência era bem-vinda nos momentos
268  MARCIANO LOPES E SILVA

de luta pela abolição da escravatura e pela instauração da República,


uma vez que possibilitava a construção de um discurso que apontasse
na monarquia do Segundo Império a fase final desse regime no Brasil.
Entretanto, na perspectiva dada pela filosofia de Schopenhauer, as revo-
luções tendem a ser inúteis na medida em que a história, sendo cíclica,
levará o processo revolucionário a corromper-se em nova barbárie e
assim infinitamente. Portanto, podemos considerar que, em sua prática
como jornalista e militante político, o ideal revolucionário e a filosofia
de Proudhon deveriam falar mais alto do que a metafísica negativa do
filósofo alemão, ou, ao menos, Raul Pompéia necessitava acreditar nisso.
Caso contrário, não encontraria forças para a atividade política e, talvez,
nem mesmo para seguir vivendo. Como explicar então que o mesmo
não ocorra em sua obra literária? Estaria aí um sinal de debilidade dessa
obra, de contradição entre sua visão de mundo e sua criação artística?
Acreditamos que não, pois consideramos que a tensão e a complexidade
existentes expressam seu amadurecimento, uma vez que o autor não a
sujeita aos interesses políticos imediatos, nem ao monologismo de uma
crença assumida como visão pessoal de mundo.
Graças a uma posição de exterioridade com respeito à obra (Bakhtin,
1992), Raul Pompéia conseguiu dar vazão a diferentes discursos sem
se identificar exclusivamente com algum deles, conseguindo mesmo
construir, em inúmeros casos, obras ideologicamente abertas e, nesse
sentido, talvez polifônicas. Para tanto, reiteramos, a ironia é um recurso
muito importante, especialmente na medida em que se afasta de sua
função atacante, ou satírica, em direção à ambigüidade da ironia ro-
mântica. Desse ponto de vista, Canções sem metro e aqueles textos em
que a moral se apresenta indeterminada e contraditória são artistica-
mente superiores àqueles em que a ironia atacante deixa clara a posição
ideológica do texto e do seu autor. O mesmo vale para aqueles em que
temos a auto-ironia, pois ela permite que o narrador consiga, mesmo
quando é protagonista, assumir uma posição de exterioridade – ou de
exotopia – com respeito às suas próprias idéias e sentimentos. E não
devemos considerar automaticamente que o discurso do narrador, es-
pecialmente o do narrador-protagonista, seja pura expressão das idéias
do autor. O narrador é uma criação literária, tão personagem quanto
O MAL DE D. QUIXOTE  269

os heróis, de modo que o autor também se encontra, em relação a ele,


numa posição na qual detém um excedente de visão.
Por fim, quando avaliamos a obra de Raul Pompéia em relação ao
romantismo e à história da literatura no Brasil, as tensões observadas
ganham outros matizes, revelando a singularidade da sua obra no
contexto nacional. E o aspecto mais interessante é, dessa perspectiva,
a maneira como ela dialoga com aquela tradição que Afrânio Coutinho
(1968) chamou de “afortunada”, ou seja, com aquela literatura e crítica
literárias que se pautaram, antes de tudo, pela preocupação naciona-
lista. Diversamente do que ocorreu no romantismo e até mesmo no
arcadismo, quando pensamos na sua poesia indianista, a obra ficcional
de Raul Pompéia não procura afirmar a identidade brasileira ou a sua
originalidade ante a européia pelo destaque dado à cor local. Aliás, o
problema da nacionalidade raramente aparece como central nos textos.
Ele evidentemente se encontra em O Ateneu, mas em um segundo plano
com relação à crítica estabelecida ao Segundo Reinado em nome da
luta republicana. Em Canções sem metro, tal questão inexiste, visto a
dimensão universal e filosófica da obra. Nos contos e nos poemas em
prosa, ainda mais do que acontece em O Ateneu, ela está relegada a um
segundo ou terceiro plano, surgindo apenas na medida em que os per-
sonagens e/ou as situações nos remetem à realidade brasileira. Neles,
o tema central é a problemática que envolve a desilusão com os ideais
e a defasagem entre a Idéia e sua realização terrena. Tema que, aliás, é
o mais importante de toda a sua obra ficcional, o que lhe confere uma
universalidade antes não atingida pela literatura romântica brasileira,
muito mais preocupada com a afirmação de um caráter nacional.
Nesse sentido, sua obra revela um salutar amadurecimento que
se deve, acreditamos, tanto aos novos ventos simbolistas quanto aos
novos ventos do realismo e do naturalismo, uma vez que todas essas
correntes contribuíram para desenvolver o gosto por uma literatura de
teor psicológico, mais voltada para a representação do meio urbano,
que é, conforme sabemos, mais cosmopolita do que aquela que se atém
à representação do meio rural. E quando os personagens-tipo repre-
sentativos da nacionalidade brasileira surgem, geralmente são alvo
da sátira desmi(s)tificadora do nacionalismo ingênuo e conservador
270  MARCIANO LOPES E SILVA

existente na poesia açucarada e ufanista do romantismo consagrado por


José de Alencar e Casemiro de Abreu. Sem abandonar a perspectiva
romântica, Raul Pompéia tece a crítica aos romantismos anteriores,
resgatando o caráter crítico, filosófico e universal presente em suas
origens inglesas e especialmente germânicas.
Na busca da renovação literária, Raul Pompéia critica o roman-
tismo, mas não o rejeita. Para tanto, tem sabedoria e equilíbrio seme-
lhantes aos de Machado de Assis (1937b), posto condenasse tanto os
exageros românticos quanto os naturalistas, o que fez especialmente
nos ensaios “O Primo Basílio, de Eça de Queiroz” e “A nova geração”
(Assis, 1937c, p.180), de onde extraímos a passagem a seguir:

Não se póde exigir da extrema juventude, a exacta ponderação das


cousas; não há impor a reflexão ao enthusiasmo. De outra sorte, essa geração
teria advertido que a extincção de um grande movimento litterario não im-
porta a condemnação formal e absoluta de tudo o que elle affirmou; alguma
cousa entra e fica no pecúlio do espírito humano. Mais do que ninguém,
estava ella obrigada a não ver no romantismo um simples interregno, um
brilhante pesadelo, um effeito sem causa, mas alguma cousa mais que, se
não deu tudo o que promettia, deixa quanto basta para legitimal-o. Morre
porque é mortal. “As theorias passam, mas as verdades necessárias devem
subsistir”. Isto que Renan dizia há poucos meses da religião e da sciencia
podemos applical-o á poesia e á arte. A poesia não é, não póde ser eterna
repetição; está dito e redito que ao periodo espontaneo e original succede a
phase da convenção e do processo technico, e é então que a poesia, necessi-
dade virtual do homem, forceja por quebrar o molde e substituil-o. Tal é o
destino da musa romantica. Mas não há só inadvertencia naquelle desdém
dos moços; vejo ahi também um pouco de ingratidão. A alguns delles, se é
a musa nova que os amamenta, foi aquela grande moribunda que os gerou;
e até os há que ainda cheiram ao puro leite romantico.

Em sintonia com o que Machado de Assis propõe nos ensaios citados


e no seu famoso “Instinto de nacionalidade” (Assis, 1937a), Raul Pom-
péia rejeita a prática do inventário, da reprodução fotográfica, a lascívia e o
fisiologismo da doutrina naturalista do mesmo modo que recusa o lirismo
excessivamente subjetivo e sentimental das duas primeiras gerações
O MAL DE D. QUIXOTE  271

românticas no Brasil. Coloca de lado as suas “virgens pálidas, cloróticas


/ Belezas de missal que o romantismo / Hidrófobo apregoa em peças
góticas” – conforme exorta o poeta Carvalho Junior (apud Amaral, 1996,
p.73) no soneto “Profissão de fé” – e no lugar delas representa a mulher de
carne, osso e espírito atormentado pelo desejo, pela opressão masculina e
pela carência de afeto. Se, nos poemas em prosa, os perfis femininos são
antes de tudo arquétipos, representações alegóricas do ideal, nos textos
de feições realistas, Raul Pompéia lhes descobre a alma, perscrutando
com o olhar analítico o que se esconde por detrás das polidas aparências.
É o que vimos no conflito vivido por Amélia em “É morto Pulcinella!..”
e o que também podemos ver no excelente “Dia de gala”, publicado em
A Semana (Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1887).
Nesse conto, o narrador novamente desvenda a contradição entre
o ser e a aparência, mas não com o intuito de revelar a defasagem entre
o ideal e a realidade, conforme faz na maioria dos seus textos. Nele, a
análise psicológica retira a máscara da personagem revelando o desejo
sexual reprimido pela moralidade e o fetiche pela farda dos oficiais – o
que ele faz sem condená-la moralmente e sem se comprometer com a
adesão explícita ao seu comportamento, tido como execrável pela moral
dominante. Para tanto, vale-se daquela conhecida ironia machadiana
na qual o narrador onisciente abre mão desse poder demiúrgico em fa-
vor da dúvida desestabilizadora das “verdades” opressoras incrustadas
no senso comum: “Era duplamente dotada de fibra e de imaginação;
com este aparelho arma-se uma criatura terrível, ou deliciosa: pontos
de vista” (Pompéia, 1981c, p.197).
Conforme vemos, alguns textos de Raul Pompéia, como é o caso
ainda de “Mocinha”, “Na madrugada” e “O Natal”, se aproximam
em boa medida do realismo crítico e psicológico de Machado de As-
sis. Isso se deve principalmente ao fato de buscarem a verdade sob as
aparências, procurando revelar através das fendas o que se esconde
por trás da máscara que plasma a “alma exterior” do cidadão (cf. Bosi,
1982). Mas essa afinidade com a narrativa machadiana é acompanhada
de outra: a tradição romântica. Isso é evidenciado pelo dialogismo com
as obras de Álvares de Azevedo, Baudelaire, Cruz e Souza, Gonzaga
Duque, Rocha Pombo e Nestor Vítor.
272  MARCIANO LOPES E SILVA

É interessante observarmos que o tema que consideramos central na


obra de Raul Pompéia assim como seu cosmopolitismo e sua autocrítica
romântica já se encontravam em grande medida na obra de Álvares
de Azevedo. Conforme lemos no ensaio “A educação pela noite”
de Antonio Candido (1989a, p.14), “a dimensão cosmopolita é um
pressuposto aceito e conscientemente incorporado como ato legítimo
e necessário”, e a discussão sobre o amor, o “contraste entre a pureza
e a impureza, entre a aspiração a relações idealizadas e a realidade
decepcionante” (ibidem, p.12), eram importantes temas de Macário.
Muito da crítica que encontramos nos contos de Raul Pompéia em
relação ao ufanismo nacionalista e à evasão também já estavam nos
poemas satíricos (conforme apontamos no capítulo anterior), assim
como em Macário, visto que o personagem de Penseroso encarna não
somente o poeta nacionalista, mas especialmente o lírico que almeja
a transcendência por meio da poesia. Segundo Candido, “Para este
[Macário], morto Penseroso, isto é, perdida a possibilidade de pureza
e ideal, resta esta via feroz onde o homem procura conhecer o segredo
da sua humanidade por meio da desmedida, na escala de um compor-
tamento que nega todas as normas” (ibidem, p.16).
Com respeito ao fato de que a afinidade com a obra de Baudelaire
constitua um argumento a favor de que a obra de Pompéia se inscreva
na tradição romântica, poder-se-ia contra-argumentar com a informa-
ção de que Baudelaire foi lido e incorporado, entre os poetas brasileiros
do final do século XIX que reagiram ao romantismo, como um poeta
realista, conforme observa Antonio Candido (1989b, p.27):

[...] foi um grande instrumento libertador esse Baudelaire unilateral ou


deformado, visto por um pedaço, que fornecia descrições arrojadas da vida
amorosa e favorecia uma atitude de oposição aos valores tradicionais, por
meio de dissolventes como o tédio, a irreverência e a amargura.
O ponto de apoio desta atitude foi a luta contra o Romantismo declinan-
te, que deu lugar a escaramuças entre partidários da tradição e renovadores.
Estes, que integraram o que desde o começo se chamou Realismo Poético, e
também Realismo Social, queriam poesia progressista em política e desmisti-
ficadora com relação à vida afetiva. O Victor Hugo de Les châtiments serviu
de estímulo para o primeiro aspecto; Baudelaire, para o segundo [...]
O MAL DE D. QUIXOTE  273

Raul Pompéia, entretanto, não incorpora Baudelaire da mesma


forma como fez a maioria dos poetas brasileiros identificados com o re-
alismo, o naturalismo e mesmo com o decadentismo. Aprofundando a
proposta de estudo presente no texto “Os primeiros baudelairianos” de
Antonio Candido (1989b), Glória Carneiro do Amaral (1996) estuda
a obra de Carvalho Junior, Teófilo Dias, Fontoura Xavier, Vicente de
Carvalho, Wenceslau de Queiroz e Cruz e Souza, chegando a conclusão
idêntica àquela já apresentada por Candido: nossos baudelairianos
fizeram uma leitura redutora da obra do poeta francês na medida em
que o “aclimataram” em razão de seus interesses históricos e estéticos.
Ao traduzirem Baudelaire, especialmente os poemas de As flores do
mal, os poetas apontados – salvo Cruz e Souza – filtraram sua obra por
“uma visão naturalista que ignora os aspectos filosóficos e religiosos
na sua temática amorosa, como a obsessão com pecado, remorso e
culpabilidade. O erotismo metafísico d’As Flores do Mal transmuta-
se em sexualidade fisiológica, como mandava o figurino naturalista”
(Amaral, 1996, p.300).

O universo poético baudelairiano articula-se sobre uma visão exis-


tencial sólida. E a importação cultural, funcionando apenas como moda
literária, é que permite que o poeta francês, marginalizado socialmente,
com seu discurso submetido ao julgamento da ordem vigente, possa
ser assimilado pela sociedade burguesa do Brasil. A deformação a que
o submeteram nossos poetas fez com que ele se tornasse aceitável para
o nosso contexto. De uma certa forma, acabou despido do que pudesse
ser ameaçador. A integração cósmica do mal em todas as reentrâncias da
existência humana desaparece no nosso baudelairianismo, que tende a
uma compartimentação dos diversos aspectos. Imitou-se o novo, sem se
abalar o velho. Os nossos baudelairianos revestiram de provincianismo
o primeiro poeta da modernidade. (ibidem, p.302-3)

A atitude descrita não é a que vimos na obra de Raul Pompéia.


É claro que ela não apresenta as mesmas dúvidas religiosas nem
o mesmo satanismo existente na obra de Baudelaire, mas quando
considerarmos o grau de compreensão da visão de mundo existente
nela e a maneira como ele dialoga com suas principais questões,
274  MARCIANO LOPES E SILVA

somos levados a concluir que Raul Pompéia se coloca muito além


dos poetas citados. Excetuando Cruz e Souza, embora sua obra
não tenha o mesmo alcance filosófico, os demais apresentam uma
visão de mundo positivista e restringiram seu contato com a obra
de Baudelaire à leitura de Les fleurs du mal, não explorando a maior
modernidade de linguagem existente em seus Petits poèmes en prose.
Muito diversamente faz Raul Pompéia, visto que busca renovar a
linguagem poética incorporando inúmeros valores estéticos simbolis-
tas e aproveita das suas leituras de Baudelaire aquilo que é, no nosso
modo de ver, essencial na obra do poeta francês: o dilaceramento do
ser no mundo moderno, angústia decorrente da defasagem entre os
ideais e a realidade, assim como da velocidade do tempo que tudo
rapidamente corrói e mata.

Baudelaire desenvolve o tema romântico da revolta e da evasão até


o mais alto grau do trágico. De forma que o segredo da ação decisiva de
seu livro sobre a sensibilidade moderna encontra-se nesta concordância
fundamental, e que se demorou tanto a perceber, entre os sentimentos e
as aspirações aos quais ele deu forma e a alma obscura e sequiosa de seu
século. “Baixo romantismo”, foi dito sobre o assunto; conservemos o
epíteto mas com o seu sentido mais profundo que chega ao próprio âmago
do ser. (Raymond, 1997, p.17)

Sobre essa interpretação da obra de Baudelaire, Raymond (1997,


p.17) também cita a opinião de Robert Vivier, que ele retira de
L’originalité de Charles Baudelaire:

[Baudelaire] retorna às correntes abortadas do romantismo, elementos


que ainda não haviam chegado a uma afirmação literária completa. É o
caso de um certo sonho exótico, carregado de voluptuosidade indolente,
esboçado pelo século XVIII de Parny e de Bertin; é o caso do Spleen pres-
sentido por Gautier, Sainte-Beuve, O’Neddy; desses sarcasmos revoltados
em que Baudelaire soube congelar e endurecer as rebeliões simplistas de
um Borel; é o caso desta atmosfera ao mesmo tempo cotidiana e profunda
em que as coisas mais humildes revelam a tragédia eterna, atmosfera dos
Tableaux parisiens dos quais as Poésies de Joseph Delorme haviam apresenta-
O MAL DE D. QUIXOTE  275

do alguns prenúncios. É o caso, enfim, deste apetite imenso e desesperado


da morte que, de 1830 a 1840, se apossou de tantos seres mais ou menos
obscuros após ter-se mantido incubado a partir do fúnebre alvorecer do
romantismo inglês, sob o desenvolvimento majestoso das melancolias à
moda de Chateaubriand e Lamartine. Baudelaire acolhe todos esses dados
em sua obra e atribui-lhes o lugar e a importância que lhes destinam as
necessidades de sua inspiração.

Percorrendo essa trilha estético-ideológica no campo da literatura


brasileira, veremos ainda que Raul Pompéia apresenta afinidades
com Gonzaga Duque, Nestor Vítor e Rocha Pombo. A temática da
degenerescência e do conflito entre os ideais e a realidade, que Massaud
Moisés observa nos romances Mocidade morta (1899) e Horto de mágo-
as (1914), de Gonzaga Duque, e No hospício (1905), de Rocha Pombo,
subordina-se a uma visão de mundo romântica, o que as aproxima
da obra de Raul Pompéia, especialmente de O Ateneu e seus contos.
Entre eles, o mais significativo para expressar esta afinidade talvez
seja No hospício, obra em que Rocha Pombo aproveita os motivos da
doença romântica e da loucura como estratégia discursiva para dar
voz, por meio do protagonista Fileto, aos ideais e valores românticos
desprezados pela sociedade.

Fileto parece a própria encarnação do artista simbolista, o seu arqué-


tipo vivo e agitante. Louco lúcido, ou falso louco, exilado da realidade
contingente, e apenas voltado para um universo de quimeras e visões,
suas idéias localizam-se no limite entre a intuição divinatória e o dispa-
rate caótico. Não obstante, sente-se que há nelas um quê de moderno ou
avançado que nos obriga a reexaminar a alienação do seu autor: tem-se a
sensação de que sua loucura, meio verídica e meio postiça, é ainda assim
uma “representação” do espírito simbolista. Com efeito, Fileto constitui
um símbolo imbuído de “loucura” consciente de viver em meio a símbolos
[...] seu internamento no hospício é uma imposição mais profunda do
que faz crer a maldade do seu pai; é também uma metáfora: para sonhar
com a redenção do homem num futuro melhor, não tinha como fugir à
sua condição de visionário de esferas transcendentes, ou seja, tinha de
afastar-se do convívio humano. (Moisés, [19--], p.257)
276  MARCIANO LOPES E SILVA

No que se refere ao estilo, o uso da técnica impressionista e a quase


ausência de enredo em detrimento do registro das impressões, dos
monólogos interiores e da análise psicológica são outros aspectos que
aproximam No hospício e os demais romances citados de O Ateneu e
muitos dos contos de Raul Pompéia. Sobre o estilo em Mocidade morta,
Massaud Moisés novamente faz observações que revelam o quanto
esse se aproxima do existente em O Ateneu:

[...] as descrições às vezes derivam para a pormenorização “científica” de


Zola, mas no geral se beneficiam de soluções francamente simbolistas.
Verdadeiras sarabandas de cor, luz e música, é que volta e meia presencia-
mos em toda a fabulação. “Correspondências”, estesias raras, excitações
dos sentidos aos cromatismos e às sonoridades, luz e sombra, gradações,
“manchas” e contrastes, etc., enfim, tudo quanto reflete literariamente
uma vocação de pintor, como a de Gonzaga Duque. (ibidem, p.243)

[...] um romance não se agüenta sem dramas que se revelem na ação,


desenrolada diante do leitor, ou lembrada, mas sempre ação.
Bem por isso tem-se a impressão de que Gonzaga Duque estruturou
o romance como se pintasse um amplo painel social, isto é, construiu-o
numa série de “manchas” sociais, justapostas e interligadas por conti-
güidade, sem obediência de maior à noção causalidade. As superfícies
cromáticas que integram o políptico romanesco se aglutinam em razão
de representarem situações que coexistem lado a lado no contexto social
que lhes serviu de ponto de partida. (ibidem, p.245)

A opção pelo poema em prosa aproxima mais ainda Raul Pompéia


desse grupo, afastando-o da tradição realista. Embora Raul Pompéia
não tenha teorizado sobre o gênero, não esclarecendo o que considerava
como tal em sua produção literária, somos inclinados a acreditar que
um dos procedimentos que distinguem seus poemas em prosa dos
contos é o uso da alegoria aliada a uma linguagem elaborada em seus
diversos níveis – sonoro, semântico, rítmico e imagético – de modo
a tornar o texto pleno de simbolismo. Daí a importância das corres-
pondências e sua afinidade com Baudelaire. Muito mais do que nos
poemas de Les fleurs du mal, é nos poemas em prosa do Spleen de Paris
que Raul Pompéia buscará a vitalidade para a renovação literária que
O MAL DE D. QUIXOTE  277

almejava. Desse aspecto, podemos dizer que os poemas em prosa de


ambos são concebidos conforme descreveu Suzanne Bernard:

[...] não um híbrido a meio caminho entre prosa e verso, mas um gênero
de poesia particular, que se utiliza da prosa ritmada para fins estrita-
mente poéticos, e que lhe impõe por causa disso uma estrutura e uma
organização de conjunto, cujas leis devemos descobrir: leis não somente
formais, mas profundas, orgânicas, como em todo gênero artístico. (apud
Moisés, [19--], p.219)

À medida que os procedimentos de escritura do poema em prosa


invadem os contos, as fronteiras entre ambos se diluem. E ao fundi-
los, Raul Pompéia torna os contos mais sintéticos, mais subjetivos,
mais carregados de um olhar impressionista e mais densos. Assim
como os poemas em prosa, ou os contos de efeito final de Edgar Allan
Poe, eles passam a ter uma organicidade muito grande. Nesse sentido,
Raul Pompéia une o olhar crítico realista à sensibilidade romântico-
simbolista, o que o coloca a meio caminho entre essas duas tendências
no que diz respeito ao plano estilístico.
Por essas razões, é muito difícil, senão impossível, inserir a obra
de Raul Pompéia dentro de um estilo de época. Sem preconceitos, ele
conheceu e sugou o conhecimento das mais variadas teorias e ten-
dências de pensamento que lhe foram contemporâneas. Sintonizado
com seu tempo, sabia que o romantismo que havia vingado nas terras
brasileiras estava condenado. Assim como Machado de Assis, sabia
que a brasilidade da nossa literatura não está na cor local que traduz
um ufanismo ingênuo, mas na maneira de olhar para o mundo que
nos cerca e na representação de dramas “universais” por intermédio
de personagens e situações comuns ao nosso cotidiano. Assim como os
escritores realistas e naturalistas, estava interessado em diagnosticar a
sociedade, em ver por detrás das máscaras sociais. Mas, diversamente
desses, a atitude de desvelar o que se esconde por detrás delas tam-
bém implicava dramatizar a angústia resultante da perda dos ideais
românticos, a angústia platônica de quem vê a enorme distância entre
a realidade e a Idéia, cuja beleza atemporal é devorada pelo tempo
voraz da modernidade.
278  MARCIANO LOPES E SILVA

Angústia de quem vê Saturno devorando seus filhos e não mais


crê na possibilidade de um paraíso, seja no céu, seja na terra. E é esse
drama que move sua criação e dá alma à sua obra, aproximando-a
indubitavelmente da tradição romântica, cuja renovação no final do
século XIX ocorre por meio da arte dos simbolistas e decadentistas. Por
isso, a situação é diversa quando deixamos de pensar a obra somente
em termos estilísticos e passamos a considerar em primeiro plano sua
dominante ideológica: a crítica ao capitalismo, a angústia decorrente
do desencanto e da mecanização da vida, do frio cálculo que move o
lucro, do desespero de ver os ideais de liberdade, beleza, justiça, amor
e solidariedade serem jogados na lata de lixo da história; o desejo de
resgatá-los juntamente com os projetos utópicos para, desse modo,
reencantar o mundo por meio da poesia. Tudo isso revela o quanto
sua visão de mundo está impregnada pelo romantismo. Especialmente
do romantismo alemão que, por ser extremamente filosófico, pode se
conciliar com muitos dos valores e atitudes que animaram o realismo
do século XIX. Até mesmo as contradições que dilaceram sua obra
apontam nesse sentido, uma vez que, ideologicamente, ela oscila entre
o romantismo utópico e revolucionário e outro da desilusão, que tanto
pode levar à resignação como ao niilismo.
Conforme vemos, a prática crítica de compreender as obras artísti-
cas exclusivamente em razão dos estilos de época pode resultar em um
esforço vão. Esses podem ser misturados de acordo com os desejos e
objetivos do autor. Assim como o romance é pluriestilístico, a narrativa
curta e até mesmo a poesia também podem. Se quisermos compreender
uma obra a fundo, não basta identificarmos seus estilos, pois é neces-
sário reconhecermos a dominante ideológica que a orienta, a idéia que
representa, conforme diria Benjamin. Caso contrário, ficaremos na
aparência, na superficialidade. Além disso, a filosofia da história que
está por detrás da crítica tradicional prevê um desenvolvimento linear
e teleológico das épocas e, por conseguinte, dos estilos. Impregnada de
positivismo, essa visão da história da literatura não dá conta do fato de
que esses se transformam juntamente com as condições materiais de
produção e organização das sociedades que, por sua vez, fazem que as
visões de mundo também se renovem. Também não consideram que
O MAL DE D. QUIXOTE  279

as idéias podem retornar, ou melhor, podem ser retomadas de modo a


implodir com o continuum da história. Afirmar que o romantismo mor-
reu, conforme fazem alguns críticos, por exemplo, é desconhecer que
os valores que lhe dão forma se mantêm vivos até os dias de hoje.
Dizer que o simbolismo é uma “nova maré romântica” é, mesmo
que a contragosto, reconhecer que a visão de mundo que orienta o
novo estilo continua sendo romântica. Portanto, considerando que a
observação da dominante ideológica que orienta a obra de um autor
deve ser o principal critério para a compreendermos na sua relação
profunda com a história e a sociedade, acreditamos que a obra de Raul
Pompéia representa um dos pontos altos da arte e do pensamento
românticos no Brasil do século XIX. No seu interior, destaca-se Can-
ções sem metro, visto que almeja a condição de unir história, filosofia,
tragédia e epopéia em uma narrativa poética capaz de recriar a trajetória
humana ao longo dos séculos. E mesmo que ela não tenha logrado o
êxito esperado, constitui a única tentativa brasileira de tão arrojado
empreendimento – o que não pode ser esquecido.
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SOBRE O LIVRO
Formato: 14 x 21 cm
Mancha: 23,7 x 42,5 paicas
Tipologia: Horley Old Style 10,5/14
Papel: Offset 75 g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)
1ª edição: 2008

EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Coordenação Geral
Marcos Keith Takahashi

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