Quixote
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
O Mal de D. Quixote
Romantismo
e Filosofia da História
na obra de
Raul Pompéia
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P927a
Pratta, Márcia Ap. Bertolucci (Márcia Aparecida Bertolucci)
Adolescentes e jovens... em ação!: aspectos psíquicos e
sociais na educação do adolescente hoje/Márcia Ap. Bertolucci
Pratta. -- São Paulo: Editora UNESP, 2008.
il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7139-872-6
1. Psiquiatria do adolescente. 2. Adolescentes - Condições
sociais. I. Título.
Editora afiliada:
Agradeço à Capes a bolsa concedida; aos colegas que
participaram das bancas de qualificação e defesa, es-
pecialmente ao professor Eduardo Faria Coutinho, que
gentilmente disponibilizou o décimo volume das Obras
de Raul Pompéia; a Evely Vânia Libanori e a Márcio
Renato Pinheiro da Silva, amigos nos momentos difíceis; a
Maria Lídia Maretti, a atenciosa orientação; e muito espe-
cialmente a Simone Tomiato Nunes, a quem dedico este livro.
“Quando Deus deixava lentamente o lugar de onde tinha
dirigido o universo e sua ordem de valores, separado o bem
do mal e dado um sentido a cada coisa, Dom Quixote saiu
de casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo.
Este, na ausência do Juiz supremo, surgiu subitamente numa
temível ambigüidade; a única Verdade divina se decompôs
em centenas de verdades relativas que os homens dividiram
entre si. Assim, o mundo dos Tempos Modernos nasceu e,
com ele, o romance, sua imagem e modelo.
Compreender com Descartes o ego pensante como fun-
dador de tudo, estar assim só em face do universo, é uma
atitude que Hegel, a justo título, julgou heróica.
Compreender com Cervantes o mundo como ambigüida-
de, ter que afrontar, ao invés de uma só verdade absoluta,
um monte de verdades relativas que se contradizem (verdades
incorporadas em egos imaginários chamados personagens),
possuir portanto como única certeza a sabedoria da incerteza
exige uma força não menos grande.”
Prefácio 11
Introdução 13
Eduardo F. Coutinho
Introdução
1 É interessante observar que Afrânio Coutinho (1982a, p.15) aponta o ano de 1883
como marco inicial das publicações e não identifica a fonte para as duas canções
recolhidas com a data de 1881.
2 Quando utilizarmos “canções sem metro” sem grifo e com iniciais minúsculas,
estaremos nos referindo ao coletivo dos poemas em prosa de Raul Pompéia, in-
dependentemente do fato de terem sido publicados no livro Canções sem metro.
16 MARCIANO LOPES E SILVA
Plano de navegação
Em defesa do realismo-naturalismo
Em defesa do impressionismo
O realce da diversidade
Balanço crítico
1 “personagens já não são nele mais do que um pretexto para a pintura, [...] A
intenção literária desapareceu totalmente” (tradução do autor).
54 MARCIANO LOPES E SILVA
tas, já que seu verdadeiro sentido provém, não de si mesmos, das minúcias
que os compõem, mas das reações que provocam no adolescente.
2 No segundo volume das crônicas, nas Obras de Raul Pompéia, Afrânio Coutinho
informa equivocadamente que o pseudônimo utilizado é “?”. Conferindo os textos
na Gazeta de Notícias, pudemos constatar que o pseudônimo utilizado era “R”.
68 MARCIANO LOPES E SILVA
Les paroles qui composent les vers, n’ont par elles-mêmes aucune mésure
déterminée [...]: ce qui est mésuré, ce n’est donc pas le vers, mais le temps,
et la science de la mésure, la Métrique, telle qui nous l’entendons dans son
sens vraiment général et scientifique, peut s’appliquer à toute mésure du
temps, quel qu’en soit l’agent rythmique, danse, chant ou parole.4 (Pompéia,
1982a, p.41)
4 “As falas que compõem os versos não possuem, por si mesmas, nenhuma medida
determinada [...]: o que é medido não é o verso, mas o tempo, e a ciência da medida,
a Métrica, assim como nós a entendemos em seu significado verdadeiramente
geral e científico, pode se aplicar a toda a medida de tempo, qualquer que seja o
agente rítmico, dança, canto ou fala” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 71
5 “Um poema engenhoso que, por meio de agradáveis lições, repreende os erros
dos homens” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 75
A crônica
6 O Grupo Grimm era formado por Castagneto, Caron, Garcia y Vasquez, Antônio
Parreiras, França Jr., Francisco Ribeiro, Thomas Driendl e pelo mestre alemão
Johann Georg Grimm (Alemanha 1846 - Palermo, Itália 1887). Para conhecer
mais sobre a relação entre Raul Pompéia e a pintura do grupo, leia-se o artigo “O
impressionismo romântico de Raul Pompéia” (Silva, 2004b).
O MAL DE D. QUIXOTE 81
[...]
De Eduardo de Sá, no Instituto Filotécnico. Exposição variada. Cabe-
ças, estudos de nu, paisagem, frutos. Espécie de inventário de atelier, do
pintor atualmente na Europa. Algumas telas concluídas e excelentes; por
exemplo, uma cabeça de negro com um gorro violeta, duas belas mestiças
de olhar calmo, um canto de mesa com uma porção de laranjas modeladas
em ouro. (ibidem, p.108)
O conto
– A morte sem frase, dizem que foi o voto de Sieyès contra o rei de
França, na Convenção. Prova-se que é falso, e que o sans phrase foi um
simples acréscimo do estenógrafo, para exprimir exatamente o laconismo
do parecer: – La mort.
“A vida sem frase, continuou ele, tenho eu pensado muita vez. E
imagino que menos sofreríamos, sem a pretensão de corporizar, exage-
rando, as sutilezas indefinidas do sentimentalismo, sem a sílaba que fixa
e prolonga o relâmpago caprichoso das nossas fraquezas de ternura, sem
O MAL DE D. QUIXOTE 95
Ao jantar, via-a pela segunda vez. Não nos falamos. Vi-a de longe,
ainda, eu em minha mesa, ela à outra.
Notei uma circunstância. Mudara de lado e evitava a indiscrição
catóptrica das projeções. Afundei tristemente o olhar no vazio do aço.
Reproduzia-se, apenas, a frente do cavalheiro, e a nuca, infinitamente, a
frente e a nuca. (Pompéia, 1983, p.112, o grifo é nosso)
pequenina cruz preta, mal se deixava reconhecer por uma carreira irregular
de pontas partidas. O retábulo gradeado de confidências, corroído e sujo,
parecia gasto de peneirar um século de culpas. (ibidem, p.117).
Ela era frágil; mentia, então, como os pássaros voam: defesa da fuga.
Não por mal. Mentia também porque era a Forma, forma e aparência.
Poder-se-á dizer, em rigor, que as superfícies mentem? Aparência era a
formosura que ela dava, aparência, o louro esplendor sincero de cabelos
em que se vestiam ambos, ali, no enlace amoroso. (ibidem, p.118)
9 “Neste mundo feliz de ser artificial, o decoro sufoca a vida e o ser desaparece por
detrás da aparência” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 101
10 O ensaio foi publicado no jornal Província de São Paulo em várias partes, con-
forme segue: “O romance como psychologia: as origens, parte I” em 20 de maio;
“O romance como psychologia: as origens, parte II” em 23 de maio; “O romance
como psychologia: o methodo” em 26 de maio; “O romance como psychologia: o
methodo, parte II” em 27 de maio; “O romance como psychologia: as escolas” em
14 de junho e “O romance como psychologia: a philosophia do naturalismo” em
29 de junho. Ao final deste último, há indicação de que o ensaio continuaria em
outras edições, mas, infelizmente, não conseguimos encontrar a continuação.
106 MARCIANO LOPES E SILVA
14 “Por sua vez, Baudelaire inventa na França uma forma breve, o ‘poema em pro-
sa’, cujo primeiro conjunto ele publica no jornal La Presse: isto para que a prosa
absorva da poesia as suas vantagens! Numerosos escritores da segunda metade se
esforçam da mesma maneira para desviar para fins estéticos a literatura de massa,
por meio do trabalho da ‘escritura artística’” (tradução do autor).
110 MARCIANO LOPES E SILVA
A surpresa romântico-simbolista
a eloqüência nas artes, uma vez que ele considera que a eloqüência é
“a emoção que se manifesta [e] que se transmite”, sendo constituída
na música, na poesia e na palavra, igualmente pelo ritmo. Além disso,
é sabido que o poema em prosa, cuja realização Pompéia buscou em
Canções sem metro, tem início entre os românticos com Gaspar de la
nuit (1842), de Aloysius Bertrand, e “la prose immatérielle et musicale
des Filles du Feu” (Echelard, 1984, p.98) de Gérard de Nerval.
Juntamente com o ritmo, na formulação da idéia de “eloqüência”,
a valorização das “imagens” é outro aspecto bastante romântico,
principalmente quando lembramos que Raul Pompéia ([198?], p.57)
apresenta, como modelo, seu uso por Victor Hugo: “O grande fator do
pitoresco, da prosa, como do verso, são imagens no ritmo. [...] e pode
mesmo desta sorte representar o gênio, como em Hugo tão freqüente-
mente”. A concepção de que a imagem é “a analogia, a comparação, o
puro pensamento antes de ser idéia” (ibidem) é platônica e romântica,
também lançando raízes no idealismo alemão. Para August Schlegel
(apud Wellek, 1967, p.38), por exemplo, a poesia “deve apresentar
‘Idéias’, isto é, pensamentos e sentimentos necessários e eternamente
verdadeiros, pairando sobre a existência terrena, em imagens”. Tais
idéias, adotadas por Pompéia e visíveis nos contos que analisamos,
afastam-no radicalmente da estética realista-naturalista, posto que ela
rejeita por princípio o símbolo e a alegoria em detrimento da exatidão
fotográfica e da objetividade científica. Todavia, sua postura não está
isenta de contradições quando considerada em relação aos ideários
estéticos do romantismo e do simbolismo.
Para a maioria dos românticos, assim como para os simbolistas, a
alegoria não era bem vista, sendo depreciada pelo seu caráter didático
e sua arbitrariedade em detrimento do caráter universal e místico do
símbolo, que é considerado uma totalidade luminosa cuja significação
é motivada, de tal maneira que nele a Idéia se revela num momento
de epifania. Tal atitude, que se encontra impregnada de misticismo
e religiosidade, encontra-se relacionada à crença nas analogias e ao
desejo religioso de transcendência. Entretanto, Raul Pompéia pro-
cura justificar a idéia de correspondência entre sons, cores, perfumes
e sentimentos, apoiando-se, assim como os pintores impressionistas,
114 MARCIANO LOPES E SILVA
Poesia só pode ser criticada por poesia. Um juízo artístico que não é,
ele próprio, uma obra de arte, seja em seu tema, enquanto exposição da
impressão necessária em seu devir, seja por meio de uma bela forma e um
tom liberal no espírito das velhas sátiras romanas, não tem, em absoluto,
direito de cidadania no reino da arte. (Schlegel, 1984, p.91)
Mas há uma outra razão possível e bem mais provável para a atitude
de inserir a reflexão estética no interior da obra de arte em detrimento
do seu exercício realizado exclusivamente no espaço destinado à crítica.
Considerando o público leitor e a função pedagógica (Eagleton, 1991;
Lima, 1980) que se esperava dela, uma vez que estava comprometida
com a formação da nova esfera pública burguesa, a solução encontrada
para evitar sua banalização foi a mesma que os poetas do simbolismo
e do decadentismo encontraram para evitar que sua arte se tornasse
mais uma mercadoria entre tantas na sociedade capitalista: torná-la um
conhecimento acessível somente aos iniciados, somente àqueles que ti-
vessem dispostos a digerir a fina iguaria da arte simbólica. Com relação
ao público leitor de que dispunha Raul Pompéia, a análise que segue,
retirada de uma crônica de Lívio de Castro datada de 1888 e publicada
no jornal Província de São Paulo, é bastante esclarecedora:
[...] observa-se o preenchimento, quer pelo fazer poético, quer pela consi-
deração crítica do poético, de um substrato religioso. [...] Restabelece-se a
comunicação com o alto, sem que a experiência “religiosa” seja socializada.
O criador aparece como um indivíduo exemplar, que nos ensina a prática
de um culto fundamental privado: o culto da estesia. A estética, campo
onde se sistematizam os princípios deste culto, consolida a restauração da
boa ordem, i.e., a negatividade, permanente em toda a modernidade, do
poético não incomoda à perpetuação do status quo, desde que é o alimento
de um culto, que se quer meramente privado. (Lima, 1980, p.223)
3
Os sentidos da História
Um romance romântico
[...]
O canto terceiro seria a notícia épica dos fatos do Amor, religiões,
com o argumento das filosofias, perseguições, martírios, num quadro da
Idade-Média. Serviria de remate a agonia do último Cruzado em São
João d’Acre, velho, esquecido desde muito da sua dama, negando Deus,
prevendo e lamentando um futuro a chegar em que a Vontade predo-
minaria inteiramente, vestida na frase de todos os disfarces, saudando
enfim a Morte, a terrível amiga e conselheira, que havia de sugerir um
dia a verdade da vida como sugeriu as crenças vácuas e as meditações
inanes... (ibidem, p.123).
Car l’oeuvre d’art est un cristal – [...] où les phrases rythmiques et sûres,
symboles encore, mais symboles purs, où les paroles se font transparentes et
révélatrices. (Gide, 1912, p.24)1
4 “Outra das noções cunhadas por Schlegel é o Witz, que corresponde à palavra
espanhola chiste, que entretanto contém aqui o sentido duplo do termo graça.
O Witz é para Schlegel a faculdade de criação livre do mundo que se sucede a
partir da disposição irônica. Como força de vinculação, o Witz dota este mundo
de finalidade e universalidade, e mantém nele a referência de totalidade ‘através
da tenaz orientação para um ponto’. Sua definição mais imediata é ‘explosão de
espírito compacto’, força da combinatória que confere coesão aos elementos
desagregados pelo deslocamento irônico” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 131
a sua vida à custa duma outra, de modo que a vontade de viver se refaz
constantemente com a sua própria substância e, sob as diversas formas que
reveste, constitui o seu próprio alimento. (Schopenhauer, [19--], p.192)
O esforço da matéria só pode ser contínuo, ele nunca pode ser realizado
nem satisfeito. É o que ele tem de comum com todas as forças que são
manifestações da vontade: a finalidade que ela atinge é sempre apenas o
ponto de partida de uma nova corrida, e isto até ao infinito. A planta, que
é uma destas manifestações, desenvolve-se e forma, do bolbo primitivo,
a haste, as folhas, as flores, os frutos: mas o fruto é ele próprio origem
dum novo bolbo, dum novo indivíduo, que recomeça a percorrer o velho
caminho, e isso eternamente. (Schopenhauer, [19--], p.214)
Serena o mar...
Torna o firmamento à limpidez da bonança. Ao mar, aos homens,
reapareceu, sem mácula, a amplidão do azul.
Sem mácula!
[...]
Estrela, nuvem – nuvem que passa, estrela que arde.
Sobre o céu eterno destaca-se bem a antítese destas criações diversa-
mente efêmeras do Mistério. Supremo ensino das cousas!
Em vivo contraste, sobre o fundo obscuro do tempo intérmino – a
nulidade real dos múltiplos aspectos cambiantes das existências.
O céu, como uma fábula, tem esta moralidade. (ibidem)
Atlântida! Atlântida!
Onde estão agora as florestas, as torrentes caudais, as cidades, os
reinos? Onde os homens, os rebanhos, as feras? Monumentos, grandeza,
poderio, exércitos, ciências, e as gloriosas artes?... Onde jaz sepultado o
gênio humano, fertilizador das regiões desaparecidas? Que é feito das
próprias ruínas? [...] E as montanhas, que suspeitávamos eternas, na
audaciosa majestade da pedra, familiares entre a águia e o raio, como
Júpiter Deus?! (ibidem, p.93)
para o seguro mútuo, pela força maior da união: nasceu a sociedade, nasceu
a linguagem, nasceu a paz e a primeira contemplação. (ibidem, p.156)
Mas era preciso que fossem leitos de amor as crinas de ouro e fogo dos
leões, e que houvesse marfim, metais luzentes, pedraria sobre a alvura
Láctea da carne amada, que não bastavam beijos para vestir; era preciso
deliciar a gustação, com o requinte das estranhezas. [...]
Urgiu ainda a fome, urgiu mais o amor e veio a guerra, a violência, a
invasão. Curvaram-se os cativos ao látego vencedor e foram abatidas as
escravas sob a garra da lascívia sanguinária [...] Formaram-se os ódios
de raça, as opressões de classe, as corrupções vingadoras e demolidoras.
(ibidem, p.156-7)
sob uma nova forma, e com ele a necessidade; senão é o fastio, o vazio,
o aborrecimento, inimigos mais violentos ainda do que a necessidade”
(ibidem, p.414). Por tais motivos, Schopenhauer considera que todo
esforço em busca da glória, da riqueza, do poder, da sabedoria e do
amor, em suma, toda busca de felicidade é vã e ilusória, conforme já
havíamos observado anteriormente.
A esperança reprimida
7 “Na ordem da consciência, o mais elevado de todos [os ideais], é a Justiça, pro-
priamente dita, regra de nossos direitos e nossos deveres; na ordem da inteligência,
lógica, matemática, etc., ela é igualdade ou equação; na esfera da imaginação, ela
tem o nome de ideal; na natureza, é o equilíbrio” (tradução do autor).
8 “não olhava senão o conjunto e negligenciava o detalhe, um detalhe que afeta
milhares de gerações, e milhares de milhões de homens!...” (tradução do autor).
9 “Não se confundam as oscilações da vida, tanto coletiva quanto individual, com
o desenvolvimento sustentado que implica a idéia de progresso: isto seria fazer
pueris ilusões. Haveria progresso se, desde que ela existe, a raça humana tivesse
aumentado continuamente em número, em tamanho, em força, em saúde, em
longevidade; como haveria decadência se o movimento fosse produzido em sentido
inverso, de uma maneira contínua, feita a abstração dos acidentes de força maior,
os quais convém desprezar” (tradução do autor).
146 MARCIANO LOPES E SILVA
11 “Que a fornalha queime, e que os pesados martelos, / Noite e dia e sem fim,
atormentem os metais!” (tradução do autor).
148 MARCIANO LOPES E SILVA
tais armas, se, por um lado, servem à opressão e à tirania, por outro,
podem servir à libertação, conforme podemos ler na citação que
segue, recortada da crônica “Cavaleiros andantes” – onde se afirma,
em conformidade com o pensamento de Proudhon, “a justiça civil da
dinamite” e “o direito internacional dos canhões”:
13 “Existe um direito real, positivo, incontestável da força, este direito é o mais antigo
reconhecido na história, o mais vivamente sentido pelas massas... Sem o direito
da força, toda a história é inexplicável, absurda, os tratados, nulos, a civilização,
uma tragicomédia... Direito e força não são idênticos... Mas a força faz parte do
ser humano, ela contribui para sua dignidade...” (tradução do autor).
150 MARCIANO LOPES E SILVA
que o gerou. Duro egoísmo viver das cinzas maternas! Mas está servido o
banquete. Os séculos foram sacrificados em holocausto aos vindouros.
Fostes!
Vindouros somos nós! (ibidem, p.90)
Suponhamos que nos seja permitido lançar um olhar claro sobre o domí-
nio do possível, para além da cadeia das causas e dos efeitos: o gênio da terra
surgiria e mostrar-nos-ia num quadro os indivíduos mais perfeitos, os inicia-
dores da humanidade, os heróis que o destino levou antes que a hora da ação
tivesse soado para eles. – Depois far-nos-ia ver os grandes acontecimentos
que teriam modificado a história do mundo, que teriam trazido épocas de luz
e de civilização supremas, se o acaso mais cego, o incidente mais insignificante
não as tivesse asfixiado à nascença. – Representar-nos-ia, enfim, as forças
imponentes das grandes individualidades que teriam sido suficientes para
O MAL DE D. QUIXOTE 155
fecundar toda uma série de séculos, mas que se perderam por erro ou por
paixão, ou ainda que, sob a pressão da necessidade, se empregaram inutil-
mente em indignos e estéreis causas, ou ainda que se dissiparam por puro
divertimento.Veríamos tudo isso e seria para nós um luto: choraríamos sobre
os tesouros que os séculos perderam. Mas o espírito da terra responder-nos-
ia com um sorriso: “A fonte donde emanam os indivíduos e as suas forças
é inesgostável e infinita, tanto como o tempo e o espaço, visto que, como o
tempo e o espaço, eles são apenas o fenômeno e a representação da vontade.
Nenhuma medida finita pode avaliar esta fonte infinita: do mesmo modo
cada acontecimento, cada obra asfixiada em germe tem ainda e sempre a
eternidade inteira para se reproduzir. Neste mundo dos fenómenos toda a
perda absoluta é impossível, assim como todo o ganho absoluto. Só a vontade
existe: ela é a coisa em si, ela é a fonte de todos estes fenómenos. A consciência
que ela toma de si mesma, a afirmação ou a negação que ela se decide a tirar
daí, tal é o único facto em si”. (Schopenhauer, [19--], p.239-40)
Desde que uma acção não caia na falta analisada mais acima de invadir
o domínio onde se afirma a vontade do outro, tendo em vista negá-la, ela
não é injusta. [...].
156 MARCIANO LOPES E SILVA
14 “um grito expresso por milhões de sentinelas, / [...] um farol a clarear milhões de
cidadelas” (tradução de Ivan Junqueira in Baudelaire, 1985, p.123).
O MAL DE D. QUIXOTE 157
15 “Sem dúvida, Senhor, jamais o homem vos dera / Testemunho melhor de sua
dignidade / Do que esse atroz soluço que erra de era em era / E vem morrer aos pés
de vossa eternidade!” (tradução de Ivan Junqueira in Baudelaire, 1985, p.123).
158 MARCIANO LOPES E SILVA
Qui travaille de ses mains, pense, parle et écrit tout à la fois; et si, dans
la république de l’esprit, il existe des places resérvées pour les intelligences
supérieures, l’homme de style doit céder la place à l’homme d’action.16
(Proudhon apud Pompéia, 1982, p.77)
16 “Quem trabalha com suas mãos, pensa, fala e escreve, tudo ao mesmo tempo; e se,
na república do espírito, existem lugares reservados para as inteligências superiores,
o homem de espírito deve ceder o lugar ao homem de ação” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 159
As alegorias da queda
1 Sobre a representação da infância na obra de Raul Pompéia, ver o artigo “Os pobres
infantes de Raul Pompéia e de Charles Baudelaire” (Silva, 2004a, p.49-59).
O MAL DE D. QUIXOTE 169
2 “um estilo que privilegia a associação de palavras pelo viés de imagens, sono-
ridades, campos lexicais, muito mais o ordenamento dos paradigmas do que a
associação puramente sintática, sintagmática, visando uma escritura denotativa,
um estilo analítico” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 171
tem valor em si, pois as coisas somente valem como mercadoria. Tudo
para ela deve ser revestido em ouro. Os sonhos, as cascatas, as auroras,
as montanhas, o ciciar dos córregos, os raios de sol e a formosura da
mulher. Tudo o que os românticos valorizam em seu próprio ser e que
deve ser objeto da mais pura contemplação só possui valor, para ela,
se passível de ser transformado em ouro, fonte de poder e de riqueza.
Entretanto, é importante observarmos que, após o seu monólogo, o
autor marca a sua posição ideologicamente contrária com a inserção
de uma voz masculina, que compara o discurso dela a uma horrível
“lagarta amarela do ouro, a sair por entre as rosas daquela boca!”
(ibidem, p.121). Com essa imagem, desvela-se o paradoxo entre a
beleza angelical exterior e a interioridade demoníaca da luxúria e da
ambição. Paradoxo que é materializado na alegoria da pomba sobre
a estrumeira. Aliás, a imagem citada inevitavelmente nos lembra
dois famosos textos: o conto “Boule de suif” de Guy de Maupassant
e o poema em prosa “Les yeux des pauvres” de Charles Baudelaire.
Com respeito ao conto de Maupassant, nos referimos especialmente
à seguinte passagem:
8 “No dia seguinte, um claro sol de inverno, tornava a neve reluzente. A diligência,
atrelada enfim, esperava diante da porta, ao passo que um exército de pombos
brancos, enfunados em suas penas espessas, com um olhar róseo manchado no meio
de um ponto preto, passeava gravemente entre as pernas dos seis cavalos, lutando
pela vida no esterco fumegante que eles espalhavam” (tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 177
Les chansonniers disent que le plaisir rend l’âme bonne et amollit le coeur.
La chanson avait raison ce soir-là, relativement à moi. Non seulement j’étais
attendri par cette famille d’yeux, mais je me sentais un peu honteux de nos
verres et de nos carafes, plus grands que notre soif. Je tournais mes regards
vers les vôtres, cher amour, pour y lire ma pensée; je plongeais dans vos yeux
si beaux et si bizarrement doux, dans vos yeux verts, habités par le Caprice et
inspirés par la Lune, quand vous me dites: « Ces gens-là me sont insupportables
avec leurs yeux ouverts comme des portes cochères! Ne pourriez-vous pas prier
le maître du café de les éloigner d’ici? » (Baudelaire, 1996, p.136)9
9 “Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não
somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto enver-
gonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os
seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão
belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e
inspirados pela Lua, quando você me disse: ‘Essa gente é insuportável, com seus
olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar
daqui?’” (Baudelaire, 1995, p.84-5, tradução de Leda Tenório da Motta).
178 MARCIANO LOPES E SILVA
Diz Kant (1993, p.51) que “a providência pôs em seu [da mulher]
peito sensações bondosas e benévolas”. Bondade que seria de esperar
da deusa do Amor – no entanto, não é o que se revela por parte das
mulheres tanto nesse poema como em “Les yeux des pauvres”. A
Vênus de Baudelaire, assim como a Regina de Raul Pompéia, é fria e
11 “Aos pés de uma Vênus colossal, um destes loucos artificiais, um destes bufões
voluntários encarregados do riso dos reis quando o Remorso ou o Tédio os obceca,
vestido com um traje vistoso e ridículo, a cabeça coberta de chifres e guizos, todo
amontoado junto ao pedestal, ergue os olhos cheios de lágrimas para a Deusa
imortal. / E seus olhos dizem: – ‘Sou o último e o mais solitário dos humanos,
privado do amor e da amizade, e nisto bem inferior ao mais imperfeito dos animais.
No entanto, fui feito, eu também, para entender e sentir a imortal Beleza! Tende
piedade da minha tristeza e do meu delírio!’ / Mas a implacável Vênus olha ao
longe, para não sei o quê, com os seus olhos de mármore” (Baudelaire, 1996, p.45,
tradução de Dorothée de Brüchard).
O MAL DE D. QUIXOTE 181
Do patético ao ridículo
12 “Que admirável dia! O vasto parque se pasma sob o olho ardente do sol, como
a juventude sob a dominação do Amor” (Baudelaire, 1996, p.46, tradução de
Dorothée de Brüchard).
182 MARCIANO LOPES E SILVA
Frágeis heroínas
Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol
das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça
e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este
homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho.
Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros
em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisti-
camente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica,
e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de
prata. (ibidem, p.86)
maternel qu’une lumière sans chaleur […] Et cependant, écoutez cette petite
histoire, où j’ai été singulièrement mystifié par l’illusion la plus naturelle.
(Baudelaire, 1996, p.160)14
14 “As ilusões, – me dizia um amigo, – talvez sejam tantas quanto as relações dos
homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece,
ou seja, quando enxergamos o ser ou o fato tal como existe fora de nós, experi-
mentamos um sentimento estranho, complicado em parte pela falta do fantasma
desaparecido, em parte pela surpresa agradável diante da novidade, diante do fato
real. Se existe um fenômeno evidente, trivial, sempre igual, e de natureza tal que é
impossível se enganar, é o amor materno. É tão difícil supor uma mãe sem amor
materno quanto uma luz sem calor [...] E no entanto, ouça esta pequena história
em que fui singularmente mistificado pela ilusão mais natural” (Baudelaire, 1996,
p.161, tradução de Dorothée de Brüchard).
15 “um pedaço da funesta e beatífica corda” (Baudelaire, 1996, p.167, tradução de
Dorothée de Brüchard).
190 MARCIANO LOPES E SILVA
16 “E então, de súbito, uma luz se fez em meu cérebro, e compreendi por que a mãe
fazia tanta questão de me arrancar o cordão e através de que comércio tencionava
consolar-se” (Baudelaire, 1996, p.167, tradução de Dorothée de Brüchard).
O MAL DE D. QUIXOTE 191
Decadência e sociedade
[...] la justice est nécessairement duelle [...]. C’est par le mariage que l’homme
apprend, de la nature même, à se sentir doublé: son éducation sociale et son
élevation dans la justice ne seront que le développement de ce dualisme...
(Proudhon, [19--a], p.318)19
O que lhe falta? Ele tem tudo, teve tudo. Ouro, saciedade, ventura,
honraria, sucesso. O programa da sua ambição traçou-se, executou-se. Viu
de tudo, tudo sentiu. Usou da inteligência ocidental e da sensualidade do
levante; provou o contato das neves polares e as temperaturas do Saara. As
mulheres beijaram-no, os homens lamberam-no. Nada lhe falta. E é disto
que padece o desgraçado. Como nada lhe falta, falta-lhe tudo. Falta-lhe
desejo. Desejar é viver e o mísero não deseja...
Todos dizem: eu aspiro. E ele não aspira. É um ente que não vive: –
Espreguiça-se...
Em torno da sua existência, gira apenas o aborrecimento farto, incolor,
mortífero.
Quando todos ouvem a música harmoniosa do universo e vêem o
colorido das cousas, só para ele, o mártir da saciedade, tudo é largo, vazio,
escancarado, entorpecido e nulo como um bocejo.
Estirando os braços e abrindo a boca, o pobre saciado assiste ao desfiar
dos seus dias, torturado lentamente pela implacável cor de vidro que o
persegue. (Pompéia, 1982a, p.117)
228 MARCIANO LOPES E SILVA
cândida”, “No mar” e “A Clarinha das pedreiras”. Por sua vez, a ade-
são ao sofrimento deles, embora tímida, ocorre em “De madrugada”,
“Mocinha”, “Último castelo”, “Olhos” e “É morto Pulcinella!...”.
Em “Fora de horas”, por sua vez, é difícil dizer se temos sátira ou
adesão. Mas essa incoerência torna-se compreensível quando con-
sideramos o perfil de cada personagem, a instância narrativa e o fato
de que o romantismo possui inúmeras e contraditórias facetas. Ao
fazê-lo, constatamos que os protagonistas são todos personagens-tipo
românticos que podem ser agrupados basicamente em dois grupos e
que a postura do narrador é uma variável dependente desses, ou seja,
do tipo de romantismo representado por eles.
No grupo dos que sofrem a sátira impiedosa do narrador, encontra-
mos dois tipos comuns à literatura romântica: o poeta ultra-romântico,
que faz versos doces e ingênuos, e as donzelas sonhadoras, que, por
sua vez, se subdividem em pálidas e ingênuas ou em morenas ardentes
e ambiciosas. O primeiro tipo pode ser encontrado em “Um vizinho
original” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1886,
série “Caricaturas reais”) juntamente com o tipo da donzela pálida e
ingênua. Nesse conto, o protagonista é caracterizado pelo narrador
como “magro, comprido, poeta e tísico, tudo em grande dose” (Pom-
péia, 1981c, p.167). Seus versos, doces e ufanistas como os de Casemiro
de Abreu, apresentam “estrofes idiliais, onde o leite e o mel corriam
pelos regatos e as cordilheiras eram legítimos pães de açúcar alinhados
como na Serra dos Órgãos” (ibidem, p.168). E a música de sua filha,
por sua vez, não era diferente: “Via-se na música da filha, o gênio do
pai. Estava presente todo o alfenim da magra sentimentalidade dos
vates da antiga escola. Era uma melodia a pingar melado; a enjoar
de doçura” (ibidem, p.168).
O leitor encontra um personagem-tipo semelhante ao protago-
nista de “Um vizinho original” no personagem Alexandre, de “A
Clarinha das pedreiras”. Seu ultra-romantismo se revela tanto pela
idealização que fazia de Clarinha como pelo discurso do narrador,
que o caracteriza com um “gênio impressionável” e com o hábito
de visitar a pedreira todas as manhãs para nela subir e apreciar a
paisagem do alto.
230 MARCIANO LOPES E SILVA
Quem o visse, à rua, enfiado no velho croisé como num tubo, espirrando
para baixo as mirradas canelas, para cima, um pescoço de garça, nodoso e
interminável, frágil apoio da cabecinha viva e inquieta, projetada para a frente,
com o longo cavaignac de poucos cabelos e os olhos fúlgidos arregalados, quem
o encontrasse hesitaria em tomá-lo por um oficial de justiça, por causa do
olhar extraordinário, [...] mal vestido, delgado, célere, como se tivesse medo
de chamar a atenção, fugitivo, quase fantástico. (Pompéia, 1981c, p.167)
O MAL DE D. QUIXOTE 233
Caminhando ao acaso, [...] fui dar com o banco de pedra onde outrora
sentava-me e do qual via passar o velho alto, de braços pendentes e ar
melancólico de pinheiro das montanhas, com a criança de branco, de sete
anos e grandes olhos pensadores...
[...]
Assim estava eu, quando senti que alguém pousava a mão sobre o
meu ombro.
Volto-me bruscamente. [...]
– O senhor! exclamei, com um espanto fácil de calcular.
– Eu mesmo, caro senhor... Reconheço-o, tal qual o senhor me re-
conhece.
– Parabéns ao acaso, que me fez reencontrá-lo... uma pessoa que
conheci em dias agradáveis de meu passado!... (ibidem, p.176)
Entretanto, Deus sabe que magia celeste lhes [sic] morava nos olhos,
que paraíso inefável. Ema guardava ali nas pálpebras, onde eu às vezes me
perdia extasiado, como se, realmente, se me soltasse o espírito para uma
região alheia a este mundo, vasta, iluminada, suavemente iluminada por
um clarão difuso de estrelas. (ibidem, p.177-8)
I
Top, um lindo perdigueiro malhado, era o cão de um meu vizinho; e
o meu vizinho um esquisito, desses homens que fazem não se sabe o que,
e vivem não se sabe como, isto é, cosendo o manto das aparências ricas,
com as misérias íntimas. Via-se-lhe a família a rir nas soirées, enfaixadas
nas sedas, e não se via se chorava, quando a chitinha doméstica substituía
os tecidos faustosos. O meu vizinho Ricardo, por seu lado, era alegre, de
uma alegria frenética, nervosa; isto em sociedade. Concentrado em seu
gabinete, era um abstrato meditador e um meditador triste.
II
Top não o abandonava nessas horas de melancolia; o generoso cão
entrava no quarto do dono e, pé ante pé, ia enrodilhar-se junto da poltrona
de Ricardo. Punha-se a fitá-lo, imóvel e interrogador. A melancolia do
dono parecia influir na existência do pobre animal.
Top ia perdendo visivelmente o curvilineado elegante das formas e co-
meçavam a emergir-lhe na pele umas saliências ósseas de mau desenho.
Era uma pena ver-se aquele homem e aquele cão, cruzando às vezes
um olhar morno e cheio de tristeza, isolados na meia sombra do quarto.
Felizmente ninguém surpreendia tais cenas.
III
Esta noite, um rumor despertou-me. Era a minha pêndula que dava
horas. Não me foi possível contar as pancadas. Saltei do leito e com um
236 MARCIANO LOPES E SILVA
IV
Saí.
V
Uma hora mais tarde, a minha curiosidade de passante foi atraída por
uma coisa extraordinária.
Eu costeava o cais da praia d... Num ponto em que o pequeno muro
de cimento faz uma entrada, recolhendo o mar num remanso onde as
algas apodrecem e dormem as ondas, vi uma sombra saltar do chão para
o muro e do muro para o chão, de um modo aflitivo, soltando como que
gemidos, espiando para o mar, tentando pular e com medo. A luz do dia
que chegava e as estrelas que fugiam deixaram-me ver. A sombra era
de um cão: o perdigueiro malhado do meu vizinho. Uma pancada forte
senti no peito.
VI
Encaminhei-me com pressa para o lugar. Antes de lá chegar, vi o cão
atirar-se para o lado do mar e sumir-se.
Corri. No ponto em que estivera Top eu inclinei-me. Descansei os
antebraços no cimento do cais e examinei o mar. Fazê-lo e recuar foi coisa
de um segundo. Lá embaixo boiava um cadáver de costa para cima, com os
braços abertos. Perto dele, o perdigueiro debatia-se tentando puxá-lo.
VII
Entretanto, brilhava a aurora vermelha como uma chaga, derramando
nas ondas as cores da tragédia.
Eu vi sobre o parapeito do cais um objeto branco. Era um envelope.
Fugi. (ibidem, p.70)
expectativas, ele não abre o envelope e, dessa forma, deixa o leitor sus-
penso em sua curiosidade. A surpresa, então, surge justamente desse
fato, ou melhor, da atitude de fuga que predomina sobre a curiosidade
de conhecer os motivos do suicídio. Tal efeito, acreditamos, leva o leitor
a se perguntar o porquê de ele fugir. E uma das possíveis respostas é o
medo; o medo de encontrar nas últimas linhas de Ricardo as mesmas
angústias que o faziam acordar nas madrugadas para passear pelo
cais. Em outras palavras, provavelmente o que ocorre, por detrás do
aparente distanciamento, é uma projeção dos sentimentos e angústias
do próprio narrador na figura do amigo.
“Mocinha” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de julho de
1888) é o conto em que o narrador mais se aproxima da objetividade
realista, embora seu protagonista também sofra do mal romântico.
Assim como Álvaro, do conto “Último castelo”, o protagonista
Arsênio desilude-se com os ideais do amor e da família burguesa ao
descobrir que sua esposa o traía. Embora procure agir de modo racional
e equilibrado, confiando “no seu temperamento avesso às soluções
teatrais, certo de que era incapaz de matar alguém, a si muito menos”
(Pompéia, 1981c, p.227), ele descarregará a bala do seu revólver na
própria fronte. Assim como Álvaro, prefere a morte ao ver seu ideal
prostituído, conforme expressa no bilhete deixado ao sogro: “O casa-
mento é a aliança da lei, mas é a confusão do sangue e do sentimento.
Desfeita a sinceridade desta união, a infâmia é exatamente persistir a
prostituição do registro civil” (ibidem, p.227).
Lembrando o estilo machadiano, nesse conto Raul Pompéia usa
a ironia resultante da justaposição de opiniões contrárias entre si,
abrindo mão da onisciência e se abstendo de afirmar seu ponto de vista
ou a verdade sobre os fatos, conforme ocorre no exemplo seguinte:
“Falavam dela, que era namoradeira e leviana. O estudante poderia
atestar que percorreu os transes da mais difícil escala de concessões”
(ibidem, p.222). Ou neste outro:
Meditando, porém, no incidente, compreendeu que a saia branca fora
a recíproca das ceroulas. Uma declaração positiva e originalíssima – a
permuta dos ridículos de intimidade, sutilmente e ousadamente proposta
para consolar da humilhação da madrugada.
O MAL DE D. QUIXOTE 239
Ou não fosse. Verdade é que três meses mais tarde, diante do altar de
mármore da Penha de Santo Antônio, permutavam-se entre ambos os
compromissos da intimidade consagrada. (ibidem, p.223)
Maria Olímpia leu e releu o bilhete; examinou a letra, que lhe pareceu
de mulher e disfarçada, e percorreu mentalmente a primeira linha de suas
amigas, a ver se descobria a autora. Não descobriu nada, dobrou o papel e
fitou o tapete do chão, caindo-lhe os olhos justamente no ponto do desenho
em que dois pombinhos ensinavam um ao outro a maneira de fazer de dois
bicos um bico. Há dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o
universo. (Assis, 1985, p.197-8)
4 Paolo Tosti (Ortona sul Maré, 5.4.1846 – Roma, 2.12.1916) foi um conceituado
professor de canto e um prolífico compositor de canções na tradição do romance
italiano do século XIX. Suas composições de estilo melódico e caráter langoroso
e melancólico fizeram as delícias dos salões no final do século XIX. Entre seus
primeiros sucessos estão Non m’ama piú e Lamento d’amore.
O MAL DE D. QUIXOTE 241
É claro que “o uso metódico do estilo indireto livre, [...] deixa inde-
terminada, tanto quanto possível, a relação do narrador com os fatos ou
pessoas de que fala a narrativa” (Bourdieu, 1996, p.132), contribuindo
para a criação de um distanciamento realista e, por conseguinte, para
um efeito de real. Entretanto, o fato de o trecho recortado não ser
acompanhado de nenhuma ironia e constituir o desenlace do conto é
extremamente significativo – uma vez que o desenlace é fundamental
para a criação do efeito de totalidade inerente ao modelo de narrativa
de efeito final. Nesse caso, tal efeito deverá provocar no leitor uma
profunda impressão de tristeza e melancolia juntamente com uma sim-
patia pela protagonista, resultando, por extensão, numa empatia por
seu ideal romântico de viver um amor que concilie corpo e alma, que
não seja subordinado ao frio cálculo do capitalista, mas ao sentimento,
à subjetividade e à elevação das almas predestinadas ao amor desde a
infância. Tal impressão, que deve resultar do desenlace, é preparada
242 MARCIANO LOPES E SILVA
Idéal, fleur bleue à coeuer d’or, dont les racines fibreuses, mil fois plus
déliées que les tressées de soie des fées, plongent au fond de nôtre âme pour
en boire la plus pure substance; fleur douce et amère! On ne peut t’arracher
sans faire saigner le coeuer, sans que de ce tige brisée suintent des gouttes
rouges!5 (ibidem, p.182)
5 “Ideal, flor azul em um coração de ouro, cujas raízes fibrosas, mil vezes mais
finas do que as tranças de fios das fadas, mergulham no fundo da nossa alma para
beber a mais pura substância, flor doce e amarga! Não é possível te arrancar sem
fazer sangrar o coração, sem que do seu talo quebrado brotem rubras gotas!”
(tradução do autor).
O MAL DE D. QUIXOTE 243
[...] os profetas armados triunfam pelas armas, não pelas profecias. Não
vence o justo; convence o ferro. A justiça é ideal; a força é o fato.
Na época presente, entretanto, chegamos à dissolução. A fórmula da
luta pela vida deu carta branca a todos os abusos; definitivamente poder é
poder. Desapareceu mesmo a hipótese dos profetas armados. Os inermes
embucham, quando não fazem, para que não sucumbam, da profecia um
mercado. (ibidem, grifos do autor)
O MAL DE D. QUIXOTE 245
Estranho sonho!
E eu vi nascer das trevas um clarão suavíssimo, semelhante ao luar
que vem do céu, rasgando uma por uma as bambolinas pesadas da tem-
pestade.
Era a luz de um olhar...
Nem tudo perecera!
Este simples clarão saciava-me como se fosse a concentração da vida
universal roubada aos seres, ou o espírito errante das constelações extintas!
(ibidem)
[...] a alegria ou a tristeza sem medida têm de assentar sobre qualquer erro,
sob qualquer ilusão; por conseqüência, com a condição de aí ver mais claro,
deve-se poder evitar estas duas espécies de sobreexcitação da sensibilidade;
uma alegria desmesurada (exultatio, laetitia insoles) é sempre no fundo esta
ilusão [...]. Sem ascensão, não há queda. Podemos evitar uma e outra com
a condição de tomar sobre si a decisão de olhar as coisas bem de frente,
de ver claramente a sua ligação, de evitar com constância emprestar-lhes
O MAL DE D. QUIXOTE 247
Uma questão que fica sem resposta é: qual o ponto de vista que
orienta a sátira? qual discurso que é rebaixado? Sua retórica é romântica,
pois o estilo é pomposo, carregado de enumerações gradativas e adjeti-
vos que expressam a emoção do narrador-protagonista, que não deixa
de tomar a si como alvo do próprio humor. Ao final, desfaz-se a ilusão
romântica de que a velhice é o “inverno” da vida. Mas será que tal idéia
é exclusiva do romantismo? Acreditamos que não, pois, de modo geral,
tal idéia é compartilhada por ele, pelo positivismo e pelo cristianismo
da mesma forma. É interessante observarmos que, no parágrafo citado,
alguns enunciados a respeito da velhice podem ser creditados tanto ao
naturalismo quanto à filosofia de Schopenhauer, na medida em que
ambos apresentam uma relação contratual com respeito à idéia de que
os instintos sexuais, na velhice, já deveriam estar aplacados – especial-
mente se considerarmos que a velha já era bisavó. É o que vemos no
início de seu devaneio, quando o narrador-protagonista considera que,
na velhice, “a criatura não é mais do que um tubo digestivo por corpo e
um terror por alma, o terror da morte que aí vem; quando, ao abandono
da cousa imprestável, [...] soma-se o egoísmo com que nos agarramos
a nós mesmos, esquecidos dos semelhantes” (ibidem).
“No mar” (sem data) também apresenta um narrador-protagonista
que aparentemente conseguiu se livrar do mal de D. Quixote. Du-
rante uma viagem à Europa, o adolescente Júlio conhece, por irônica
coincidência, uma moça chamada Júlia, que lhe pareceu um anjo sob
o luar no convés do navio. Mas, embora se mostrasse tímida, ela não
ofereceu nenhuma resistência ao abraço e ao beijo que o jovem lhe deu,
logo no primeiro encontro: “Saboreei num instante todas as alegrias
de um amante feliz; e perante a presença da lua, como um namorado
da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa Júlia um beijo...
demoradamente...” (Pompéia, 1981c, p.283).
O MAL DE D. QUIXOTE 253
(Benjamin, 1991, p.96-97) Uma poesia que faz isso jamais poderá
ser arte pura, destituída de qualquer relação com o mundo real. E
quando pensamos em seus textos de crítica, a mesma contradição se
apresenta, posto que eles “son brillantes ejemplos de un enfoque sintético,
tan distinto del analítico, y son la obra de un hombre preocupado por la
función pública de las artes y por sus leyes internas”2 (Hamburger, 1991,
p.16). Considerando, portanto, essas e outras contradições, a melhor
postura crítica para enfrentá-las é a de procurar nas tensões qualquer
possível verdade, por mais tênue que seja.
[...] não um híbrido a meio caminho entre prosa e verso, mas um gênero
de poesia particular, que se utiliza da prosa ritmada para fins estrita-
mente poéticos, e que lhe impõe por causa disso uma estrutura e uma
organização de conjunto, cujas leis devemos descobrir: leis não somente
formais, mas profundas, orgânicas, como em todo gênero artístico. (apud
Moisés, [19--], p.219)
EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Coordenação Geral
Marcos Keith Takahashi