Anda di halaman 1dari 10

Você tem Fome de quê?

Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 59

Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares

Liliane Calil Guerreiro da Silva1


Lídio de Souza2
Resumo

O objetivo do presente estudo foi indicar os principais elementos geralmente associados ao surgimento e
manutenção dos transtornos alimentares mais comuns, a anorexia nervosa e a bulimia. A partir de uma breve
revisão da literatura, identificou-se a interação de uma diversidade considerável de fatores freqüentemente
associados aos referidos transtornos: a conjuntura de escassez e abundância alimentar; a difusão de um ideal de
beleza e de corpo saudável; estímulos sociais ao consumo alimentar; disfunções hormonais e de
neurotransmissores; a construção da identidade social de gênero; hábitos alimentares culturalmente construídos
e a associação de sobrepeso com doença. Dado o complexo quadro identificado, conclui-se que somente uma
abordagem multiprofissional, que reconheça a importância dos diversos fatores envolvidos nos transtornos
analisados, tanto no plano teórico quanto no plano das intervenções, poderá fornecer uma compreensão mais
adequada dos referidos problemas e possibilitará intervenções mais realistas e com maior probabilidade de
sucesso.
Palavras-chave: transtornos alimentares; anorexia nervosa; bulimia nervosa; abordagem
biopsicossocial.

Whato to Eat? Biopsychosocial Approach to Eating Disorders


Abstract

The objective of the present study was to indicate the main elements generally associated to development of the
most common eating disorders, nervous anorexia and bulimia. From a brief review of the literature an
interaction of a considerable diversity of factors frequently associated with the referred disorders was identified:
the context of scarcity and alimentary abundance; the diffusion of an ideal of beauty and healthy body; social
stimuli of food consumption; hormonal and neurotransmitter associated disorders, the construction of a gender
social identity; culturally constructed eating habits and the association of overweight with disease. Given the
complex framework identified, it was concluded that only a multi-professional approach, that recognizes the
importance of the diverse factors involved in the analyzed disorders, both on the theoretical and on the
intervention levels, can furnish a more adequate comprehension of the referred problems and allow more
realistic interventions with a higher probability of success.

Keywords: eating disorders; anorexia; bulimia; biopsychosocial approach.

1
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: lilianecalil@ig.com.br
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
lidio.souza@uol.com.br

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 60

.
A condição básica para a sobrevivência dos seres detalhes e a seguinte afirmação do governador
humanos é a satisfação de um conjunto mínimo de romano Aulus: “A gula é a mais bela das virtudes
necessidades nutricionais, mas o ato de comer não romanas, mais que qualquer outra, fundou o
pode ser perfeitamente compreendido se resumido a império” (p. 157). Se prestarmos um pouco de
indicadores nutricionais na medida em que se atenção, verificaremos que tais práticas guardam
encontra associado de forma inquestionável à alguma semelhança com sintomas característicos
natureza cultural do homem. Desde que nasce, o da bulimia, como veremos adiante. Veríssimo
bebê se defronta com as regras definidas pela (1998) também relata, no plano ficcional, o
cultura, inclusive com aquelas construídas em torno controle que o mundo dos sabores e aromas
da alimentação e de seus rituais. É na cultura que se exerce sobre um grupo de amigos cujas reuniões
aprende o que se come, com quem se come, quando, periódicas para jantares requintados não se
como e onde se come e, certamente, o quanto se alteram nem em função das sucessivas mortes que
come. A variabilidade alimentar identificada nos ocorrem após cada um dos jantares.
diferentes grupos sociais humanos indica que o ato
alimentar implica necessariamente em valoração Os hábitos alimentares são, desta forma,
simbólica. indicativos importantes do modo de vida e dos
valores de um determinado povo. Os tabus
Esses padrões encontram-se entranhados na cultura alimentares, os tipos de alimentos consumidos e a
de tal forma que até mesmo nos contos de fadas, os forma de distribuí-los reflete as regras de
temas giram muito freqüentemente em torno da funcionamento social e de detenção de poder
comida: o medo de ser comida (em Chapeuzinho dentro dos grupos sociais.
Vermelho), a falta de comida (em João e o Pé de
Feijão) ou a escassez de alimento associada à gula Num sistema capitalista, com uma distribuição
em “João e Maria” (Cashdan, 2000). desigual de rendas, e, por conseguinte, de
alimentos, constatamos um paradoxo: a
Muitos contos foram originados na Europa, entre os coexistência da fome com a obesidade, ambos
séculos XVII e XVIII, e circulavam entre as pessoas considerados importantes problemas de saúde
mais humildes. Abordavam o comer voraz e pública. Neste sistema, a fome não decorre da
excessivo, que caracterizava a gula como “desvio de simples escassez, no dizer de Felinto (2000) ela
conduta”, e os personagens sempre acabavam sendo surge como um pecado do capital: “A fome
punidos. Não poderia ser diferente, pois a Europa moderna... As latas de leite Ninho... seguiam
neste período padeceu de uma fome generalizada e desfilando umas atrás das outras, inatingíveis, na
neste contexto muitas famílias eram obrigadas a pequena imaginação da minha irmã. Não haveria
tomar medidas drásticas, como abandonar as leite por semanas, por meses talvez” (p.109).
crianças, para sobreviver. Os contos refletiam a
situação vivenciada naquele momento histórico. Neste contexto o alimento ganha a dimensão de
fetiche, de objeto de consumo e, em torno e
A gula, apesar de considerada como um dos sete através dele, circula grande soma de
pecados capitais, foi assimilada em determinadas investimentos e se produz riqueza. O ato de
culturas como objeto de status social e insígnia de comer não se destina simplesmente a suprir as
poder. Um exemplo disso eram os banquetes a que necessidades físicas, mas torna-se cada vez mais
se submetiam, no império romano, César e sua requintado, objeto de desejo, veículo de
corte. Horas e, não raro, dias eram dedicados às modismos, e em conseqüência, pode induzir os
regalias alimentares, sendo comum a prática de indivíduos a um consumo muito superior ao
empanturrar-se de comida, vomitar e, em seguida, necessário, frenético e impulsivo.
continuar a longa refeição. Em Figueiredo (2000)
encontramos este procedimento descrito com

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 61

O ritmo de vida contemporâneo principalmente nos muito embora se possa afirmar que a dicotomia
grandes centros urbanos, ao destruir os rituais que natureza versus cultura seja uma falsa questão.
existiam até pouco tempo atrás em torno das
refeições, não rompe apenas com os horários e a Segundo Bussab & Ribeiro (1998), os aspectos
qualidade/quantidade de alimentos consumidos, mais complexos da cultura também têm base
fazendo com que se coma produtos de qualidade psicobiológica e focalizam o desenvolvimento
discutível, em horários inadequados. Produz uma humano na dialética entre natureza e cultura, o
mudança drástica também nos padrões de que impõe alta complexidade à solução dos
sociabilidade. Tanto é assim, que pesquisa problemas humanos. Afirmam que
desenvolvida por Garcia (1997) identificou
tentativas de assemelhar, durante as refeições, a rua o ser cultural do homem deve ser entendido
com o ambiente familiar: como biológico. Há mais do que um jogo de
palavras na afirmação de que o homem é
As manifestações de afetividade que compõem as naturalmente cultural, ou ainda, de que a chave
representações sociais da alimentação no meio para a compreensão da natureza humana está na
urbano transferem para o convívio da “rua” cultura e a chave para a da cultura está na
elementos predominantes do convívio doméstico. natureza humana. O homem é a um só tempo,
As pessoas geralmente preferem sair para comer criatura e criador da cultura. (p.176).
acompanhadas por aqueles que têm maior ligação
afetiva, valorizam a comida caseira e criam A aceitação desta premissa se reflete
vínculos nos lugares onde habitualmente fazem necessariamente no modo de abordar os
suas refeições. O vínculo afetivo também é problemas humanos, exigindo cuidados
consolidado no ato alimentar. (p. 458) metodológicos e analíticos que procurem
contemplar a sua complexidade. Enfoques
Se por um lado constatamos o estímulo para tradicionais, e reducionistas, que priorizam o
consumir mais, por outro temos que concordar que biológico, o psicológico ou o cultural, negando a
os valores relativos à beleza física mais difundidos dialética acima referida, dificilmente poderão ser
nas sociedades ocidentais encontram-se vinculados considerados suficientes.
à estética do corpo magro, que também se relaciona
às necessidades de consumo. O ideal a ser atingido
é o de mulher magra o suficiente para servir de Nossos objetivos neste artigo são indicar alguns
cabide às roupas dos grandes estilistas. dos principais elementos geralmente implicados
no surgimento da anorexia nervosa e da bulimia e
Diante deste paradoxo, estímulos ao consumo de destacar que somente uma abordagem
alimentos e necessidade de dieta rígida para manter biopsicossocial, que reconheça a importância de
um corpo esbelto, vemos surgir muitas alterações de diversos fatores de ordem biológica, psicológica e
ordem alimentar, e entre elas podemos destacar: a sócio-cultural, poderá fornecer uma compreensão
anorexia nervosa e a bulimia. mais adequada dos referidos problemas e
possibilitará intervenções mais realistas e com
A literatura especializada tem nos mostrado que é maior probabilidade de sucesso.
significativa a dificuldade em se estabelecer com
nitidez quais são os aspectos biológicos e os sócio- Anorexia e Bulimia
culturais que contribuem para o surgimento e a
manutenção dos quadros de anorexia nervosa e A anorexia (cujas raízes gregas e latinas
bulimia. O confronto entre o biológico e o cultural significam “falta de apetite de origem nervosa”)
nos parece inevitável, suscitando nas atuais geralmente aparece no começo ou no meio da
discussões a questão clássica entre o que é adolescência e em 90% das notificações acomete
influência da cultura e o que se associa a uma mulheres. Uma moça ou mulher jovem pára de
característica mórbida invariável (Weinberg, 2001), comer e às vezes começa a fazer exercícios físicos

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 62

de forma compulsiva. Seu peso diminui e sua saúde do que a maioria das pessoas comeria neste
se deteriora rapidamente, mas ela insiste em negar intervalo e sensação de perda de controle sobre o
que seu comportamento apresente riscos para a ato de comer durante o episódio;
saúde. Ela pode afirmar que se vê ou que se sente b) comportamentos compensatórios recorrentes,
gorda, embora todo mundo perceba que está magra. inapropriados para evitar o ganho de peso, como a
auto-indução de vômito, abuso de laxantes,
A bulimia - “apetite insanável de origem nervosa” é diuréticos, jejum ou exercício excessivo;
definida por dois ou mais episódios de binge eating
(crises de voracidade) em que a pessoa consome c) os itens (a) e (b) ocorrem no mínimo duas
rapidamente grandes quantidades de comida, acima vezes por semana, por três meses;
de 5.000 calorias, a semana toda, por um período de d) a auto-avaliação é indevidamente influenciada
três meses. Essas crises são às vezes seguidas de pela forma e peso corporal;
vômitos (intencionais e mecanicamente provocados)
ou purgação (o uso de laxantes ou diuréticos) e e) o distúrbio não deve ocorrer exclusivamente
podem alternar com períodos em que a pessoa durante episódios de anorexia nervosa.
pratica exercícios compulsivamente e se abstém de
comer. Os sintomas podem se desenvolver entre o Aspectos biológicos
início da adolescência até os 40 anos, mas
normalmente são mais graves durante a Um dos fatores associados aos distúrbios
adolescência. alimentares são as disfunções identificadas na
atividade dos hormônios e dos
Os principais critérios diagnósticos adotados pela neurotransmissores, que mantêm o equilíbrio
American Psychiatric Association (DSM IV; 1995) entre dispêndio de energia e ingestão de
são: alimentos. Essa regulação constitui um processo
complexo que envolve diversas regiões do cérebro
Anorexia nervosa: e vários sistemas orgânicos. As vias nervosas que
descendem do hipotálamo, na base do cérebro,
a) recusa em manter o peso mínimo para a idade e controlam os níveis de hormônios sexuais,
altura, por exemplo, perda de peso e manutenção tireóide, e a secreção do hormônio adrenal,
deste em menos de 85% do esperado, ou ausência cortisol, os quais exercem influência sobre o
do ganho de peso esperado para aquele período de apetite, sobre o peso corporal, sobre o estado de
crescimento, levando a um peso menor do que 85% ânimo e também sobre as respostas ao stress. Os
do esperado; neurotransmissores serotonina e norepinefrina
b) medo intenso de ganhar peso ou tornar-se gorda, são encontrados nessas vias hipotalâmicas.
mesmo estando abaixo do peso;
Estudos farmacológicos revelam a importância da
c) distúrbio na maneira de vivenciar sua forma ou serotonina como um modulador dos padrões de
peso corpóreo: influência indevida da forma ou consumo “normal” de alimentos. As substâncias
peso corpóreo na auto-avaliação, ou negação da que atuam de modo seletivo sobre o sistema
seriedade do baixo peso atual; serotoninérgico exercem importantes efeitos sobre
d) nas mulheres pós-menarca, a menorréia. a conduta alimentar. No âmbito dos pacientes
com transtornos alimentares observam-se
alterações da serotonina cerebral e de seus
Bulimia nervosa: metabólitos. Os transtornos da conduta alimentar,
a) episódios recorrentes de comer compulsivo. Um por sua vez, podem ser corrigidos, ao menos
episódio de comer compulsivo é caracterizado por parcialmente, mediante a administração de
comer, em um curto período de tempo, uma substâncias serotoninérgicas (Silva, 1994).
quantidade de comida que é definitivamente maior

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 63

Observa-se também a participação da leptina,


hormônio produzido em células adiposas brancas, Viertler (2000) analisou o contraste dos padrões
que uma vez na corrente sangüínea, interage com de beleza entre os índios brasileiros da tribo dos
receptores próprios em vários centros Bororo e do Alto-Xingu, e verificou que os
hipotalâmicos. Hoje em dia, investiga-se a hipótese primeiros consideravam belas as mulheres de
de que a obesidade possa resultar de uma corpos finos, esbeltos e contidos por firmes faixas
diminuição da sensibilidade do organismo aos em torno do abdome, enquanto os segundos
efeitos da leptina. Negrão (1998) realizou estudo valorizavam a brancura da pele, corpos gordos e
para verificar se há uma diferença no padrão de membros grossos. Observou que esses padrões
secreção diária de leptina entre os sexos. Concluiu guardavam relação com hábitos de vida e cultura,
que as mulheres necessitam do dobro da sendo os Bororo caçadores coletores, tinham que
concentração plasmática de leptina, quando se movimentar em busca de alimentos enquanto
comparadas aos homens, indicando que uma os Alto-xinguenses mantinham-se com habitação
possível resistência à leptina pode contribuir para fixa e estilo de vida sedentário.
que as mulheres sejam mais suscetíveis que os
homens a transtornos acompanhados de alterações Numerosos estudos populacionais têm
neuroendócrinas. documentado que a maioria das adolescentes e
mulheres jovens avaliadas em nossa sociedade
não está satisfeita com a sua imagem corporal,
Outra hipótese é que os distúrbios alimentares
embora só a minoria esteja realmente com
sejam influenciados pela atividade das encefalinas e
sobrepeso. Melin & Araújo (2002) citam estudos
endorfinas, substâncias similares aos opiáceos
que identificaram a tendência das mulheres a se
produzidos no corpo.
avaliarem com maior peso do que realmente
apresentam:
Como a maioria dos distúrbios psiquiátricos,
existem também indicações de que a anorexia e a Em geral, os homens estão mais satisfeitos com
bulimia fazem parte do histórico familiar. A taxa de seus corpos e os percebem com menos distorção.
anorexia entre mães e irmãs de mulheres anoréxicas Eles tendem a se considerar com sobrepeso
é de 2% a 10%. Num estudo comparativo, a quando estão cerca de 15% acima do peso que as
anorexia foi constatada em 9 de 16 gêmeos mulheres já consideram sobrepeso. Num estudo
univitelinos de pacientes anoréxicos, mas apenas recente, somente 2% dos homens se percebiam
em 1 dos 14 gêmeos fraternos. erroneamente com sobrepeso, enquanto 40% das
mulheres percebiam um excesso de peso
Aspectos psicossociais inexistente. Essas diferenças justificam
especulações sobre a contribuição dos fatores
culturais para o desenvolvimento dos TA em
Considerando-se a sua complexidade, uma
homens e mulheres (p. 74).
abordagem destes fenômenos focalizando-se apenas
aspectos biológicos e fisiológicos seria por demais
Embora se possa verificar que o padrão de beleza
reducionista. Os transtornos alimentares exigem
feminina valorizado atualmente seja o da mulher
uma abordagem multidisciplinar que os considerem
magra, pode-se observar também que nem sempre
como fenômenos culturais e como um problema
foi assim. Variações associadas a mudanças nas
social.
expectativas culturais têm sido insistentemente
apontadas em alguns estudos: hoje se valoriza a
Se por um lado as mulheres ocidentais têm
esbeltez enquanto no passado as rechonchudas
aumentado de peso a cada geração, por outro, o
eram o objeto de desejo, fato abundantemente
corpo apresentado como ideal em termos de saúde e
demonstrado nas artes plásticas. No entanto, o
beleza permanece magro e esbelto. Preocupações
formato ideal contemporâneo do corpo feminino
relacionadas à imagem corporal e ao peso são então,
muito freqüentes em mulheres na cultura ocidental.

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 64

estaria se tornando tubular, substituindo o formato Aos 15 anos, após afirmar ter tido visões de
“violão” (Queiroz & Otta, 2000). Cristo, decidiu preservar sua virgindade e devotar
sua vida a ajudar os pobres. Morreu aos 33 anos,
Ao analisar as curvas do corpo dos modelos da provavelmente por inanição, e mais tarde foi
revista Vogue entre 1901 e 1993, tomando como beatificada pela igreja católica.
indicador a proporção do busto em relação à
cintura, Barber (citado em Queiroz & Otta, 2000) O jejum prolongado da mulher anoréxica pode
identificou, nesse intervalo de tempo, uma redução significar resposta a pressões sociais para atingir
nas curvas dos corpos dos modelos, associando tal determinados padrões estéticos, ter uma
mudança à elevação do nível de instrução e à maior performance física admirável, o que lhe conferiria
participação da mulher na economia. sucesso nas relações sociais, no campo
profissional e na escolha do parceiro. Esta
Quanto mais intensa a pressão social para a estética resposta expressaria a anulação do corpo,
do corpo esbelto, mais provável se torna o inclusive retardando o processo e
aparecimento de alterações alimentares, desenvolvimento da sua sexualidade, em função
principalmente se existir a crença de que controlar o da diminuição dos hormônios sexuais que ocorre
apetite é o caminho para atrair admiração e alcançar com a desnutrição.
sucesso social e nas relações amorosas.
Observamos a prevalência da anorexia na
Duas pesquisas citadas por Fleitlich (1997), adolescência e isto nos leva a articulações da sua
estudaram a puberdade como fase de risco para o gênese com o período do desenvolvimento e
desenvolvimento dos transtornos alimentares. O formação da identidade social. A puberdade é um
objetivo do primeiro estudo foi examinar a período de mudanças físicas importantes e os
associação entre o estágio de maturação sexual e jovens terão que readaptar sua imagem corporal,
sintomas de transtorno alimentar. Participaram do juntamente com sua imagem global e seu papel
estudo 939 meninas do 6º e 7º anos de quatro social, o que não ocorre imune a múltiplos
escolas da Califórnia. A média de idade foi de 12,4 conflitos. Ao se defrontar com estes conflitos, a
anos e 40% eram brancas. Os resultados mostraram decisão de não comer pode ser a única forma de o
que 4,3% das pacientes eram sintomáticas. No adolescente demonstrar alguma autonomia para
segundo estudo foram focalizados os aspectos decidir sobre aspectos da sua vida e do seu corpo.
cognitivos, comportamentais e psicoemocionais de A alimentação é algo que ele pode controlar.
adolescentes, buscando delimitar grupos de risco Além disso, como o estudo desenvolvido por
para o desenvolvimento de comportamentos Behar, Barrera & Michelotti (2001) identificaram
alimentares alterados. Os dados foram coletados que neste período as mulheres jovens são mais
junto a 122 meninas de 12 a 18 anos, estudantes de suscetíveis às pressões exercidas pelas
duas escolas de Nova Iorque. Evidenciou-se que expectativas sociais relacionadas aos papéis
30% dos sujeitos tinham preocupações anormais sociais femininos. A esse respeito Blowers,
com as proporções corpóreas e 4% eram Loxton, Grady-Flesser, Occhipinti & Dawe
patologicamente fixadas no peso. (2003) constataram que as mulheres jovens
percebem como maior a pressão para serem
Duas idéias relacionadas à anorexia nervosa são o magras exercida pelos meios de comunicação, os
jejum e a negação da feminilidade. O jejum quais possuem forte associação com a pressão da
prolongado, um hábito reconhecidamente religioso família e do grupo de amigas. Ou seja, a pressão
que tinha a finalidade de demonstrar sua força difundida pelos meios de comunicação torna-se
moral e pureza espiritual, foi geralmente praticado mais efetiva quando associada a outras fontes de
por homens, mas também por algumas mulheres pressão do cotidiano.
nobres, na Europa Medieval. A mais famosa dessas
mulheres foi Catarina de Siena, nascida em 1347.

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 65

Um fato interessante é que dentro do quadro de Somenzi (1996) relata um caso de transtorno
anorexia existem pacientes que negam estarem alimentar na infância sugerindo sua relação com
preocupados com seu peso e aparência corporal, abuso sexual. Há argumentos correlacionando o
alguns afirmam que têm problemas familiares, que abuso sexual com posterior desgosto com a
sentem falta de apetite, ou que não sabem explicar feminilidade e sexualidade, o que pode afetar a
seus comportamentos. Sob o aporte de investigação percepção da imagem corporal e predispor ao
da comunicação humana e sistemas humanos, desenvolvimento e manutenção dos transtornos
entende-se a anorexia e a bulimia como uma alimentares.
história de mensagens desencontradas.
Relacionam-se às dificuldades na transposição das Castillo (1990) reitera que as alterações do
etapas entre o início da adolescência e a idade desenvolvimento nas primeiras etapas de vida e a
adulta, vivenciadas num contexto familiar rígido, falta de interações apropriadas entre a criança e
que dificulta mudanças de papéis. A anorexia seus pais ou cuidadores, são importantes aspectos
representaria então um protesto. Seguindo este para a gênese de muitos transtornos do apetite e
referencial, Paleo (1994) explica: da conduta alimentar.

Nestas famílias, se observa, em termos gerais que Um outro aspecto que poderia estar na gênese
há um desajuste entre a filha que deseja tornar-se social tanto da anorexia quanto da bulimia, é a
independente dos pais e eles que não conseguem associação entre sobrepeso e doença. Além de
entender e aceitar. Ela parece reclamar através de associar o sobrepeso à culpa, por ter se submetido
sua conduta o direito de libertar-se, disputando
à tentação da gula, a vinculação do status de
através do ato de alimentar-se, o poder com os
pais. Os pais, por sua vez, não conseguem saudável a um corpo magro e esbelto acaba, por
entender e apenas vêem que ela não come, vomita conseguinte, gerando naqueles que possuem
e se desnutre. Percebemos então, problemas no aumento de peso o estigma de potenciais doentes,
sistema de comunicação intrafamiliar, pois, o que sofredores, necessitados de tratamento e
uma parte emite não é recebido pela outra e vice- candidatos à morte prematura. Então, segundo
versa. O ato terapêutico consiste em resgatar e esta concepção, aquele que é gordo tem que sofrer
esclarecer o novo critério de crenças que surge no porque optou pelo prazer alimentar e ser
sistema familiar. (p. 16). demasiadamente indulgente com o seu apetite,
comendo além do necessário. E nada melhor para
É importante assinalar que a anorexia pode ocorrer aplacar a culpa e procurar eliminar o estigma do
inclusive em bebês, o que complica que dietas bastante restritivas, purgações e
consideravelmente o seu quadro de significações. exercícios exaustivos.
Lemes, Morais & Vítolo (1997) citam uma pesquisa
que identificou formas de anorexia que ocorrem no Os tratamentos enfatizam sobremaneira a
bebê. Os autores se referem à anorexia na infância reeducação alimentar do adulto, mas, dada a
como um acontecimento cotidiano na prática complexidade que se configura, as mudanças não
médica, sendo inclusive, um dos primeiros podem depender exclusivamente dos sujeitos
problemas a ser reconhecido pelo pediatra como de afetados pelo problema, pois as escolhas
origem psíquica. Eles distinguem dois tipos de alimentares não estão inteiramente sob o seu
anorexia no segundo semestre de vida da criança: domínio consciente.
anorexia simples, que surge como uma reação ao
desmame, a uma modificação alimentar ou a um Sabemos que a formação destes hábitos está
incidente patológico benigno grave, que provoca intrinsecamente ligada à cultura e aos
uma anorexia passageira; e a anorexia complexa, condicionamentos alimentares construídos desde a
que se caracteriza pela intensidade do sintoma e por infância, no âmbito familiar e no meio social,
sua resistência aos métodos habituais de tratamento. onde sofrem interferência direta e indireta dos
meios de comunicação, que constroem

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 66

necessidades específicas que beneficiam os complexo, reflete apenas parcialmente os fatores


mecanismos de mercado e de consumo, em última considerados mais importantes na literatura da
instância. área.

Juntamente com a propagação da cultura do doce, Para um melhor entendimento das conexões entre
do chocolate, do sanduíche, do salgadinho, do fast fatores psicossociais e os transtornos alimentares
food enfim, constatam-se índices cada vez mais mais comuns na nossa cultura, a bulimia e a
altos de obesidade infanto-juvenil. O fato tem anorexia, é fundamental a rejeição de modelos
chamado a atenção de pediatras e endocrinologistas, reducionistas, que geralmente focalizam o
que alertam para os efeitos nocivos do consumo problema no próprio sujeito e o medicalizam, e a
exagerado de carboidratos e gorduras e estimulam adoção de uma perspectiva que contemple o
campanhas de saúde pública para o seu controle. problema na sua complexidade bio-psico-social. É
urgente ampliar as investigações, de modo a
Diante destas necessidades alimentares de segunda observar a sua ocorrência nas diferentes culturas,
ordem, quase que impostas pelo modo de vida e bem como analisar as variações das apresentações
pelos meios de comunicação, já bem assentadas no clínicas em conexão com as implicações de ordem
adulto, identificamos o dilema do bulímico que cede social.
momentaneamente a um grande impulso e
voracidade pela comida, para logo em seguida, Os especialistas relatam que o tratamento da
sentir-se culpado, com medo da ruína, do insucesso, anorexia pode ser frustrante para a equipe de
da rejeição, da discriminação social e da doença. Os saúde, para os familiares e para o próprio sujeito,
sentimentos negativos associados à percepção pois a recuperação é, em geral, prolongada e
subjetiva da obesidade levam o bulímico à produção difícil. Tem sido preconizado o uso de
de vômitos e à purgação para se redimir da sua antidepressivos e terapia cognitiva/
fragilidade e falta de autocontrole diante dos comportamental e observam-se, na anorexia,
alimentos, com conseqüências inevitáveis para a sua recidivas em torno de 25%. Em relação à bulimia
saúde e conforto. chega-se a uma remissão total dos sintomas em
50% dos casos, após períodos de 6 meses a 5
Considerações Finais anos.

Como observamos, o quadro em que se inserem os Entretanto, as evidências sobre a eficácia do


transtornos focalizados articula uma multiplicidade tratamento são limitadas. Muitas mulheres com
de fatores, indicando que é impossível dissociá-los anorexia e também bulimia não são tratadas e uma
do contexto histórico e cultural, centrando a atenção parcela das que iniciam o tratamento abandonam
apenas no sujeito e na sua fisiologia. Os transtornos os estudos de acompanhamento de longo prazo,
se articulam com a conjuntura de escassez e principalmente as que têm recaídas. Sem dúvida,
abundância alimentar; com a difusão de um ideal de identificar em cada caso os fatores relacionados
beleza e de corpo saudável, inatingíveis pela ao problema e proporcionar atendimento
maioria das pessoas; com estímulos sociais ao multiprofissional, pode representar um avanço no
consumo alimentar; com disfunções hormonais e de tratamento destas pacientes.
neurotransmissores; com a percepção distorcida do
peso e da configuração corporal; com a construção Considerando que os transtornos alimentares
da identidade social de gênero; com mudanças na representam um amplo campo de investigação,
percepção do próprio corpo e da auto-estima em onde a variedade dos fatores envolvida na sua
decorrência de abuso sexual; com hábitos gênese abre portas para o entendimento mais
alimentares culturalmente construídos e profundo das inter-relações entre alterações
compartilhados; entre outros. É importante biológicas e os diversos condicionantes de ordem
considerar que embora o quadro aqui esboçado seja psicológica, cultural e social, as abordagens

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 67

psicossociais são, atualmente, as estratégias mais aflição, e que o fato de serem magras não
recomendadas. A probabilidade de sucesso é maior, significa automaticamente obter uma
pois englobam desde a reeducação alimentar através autoconfiança maior, ser bonita ou sexualmente
das orientações nutricionais, o acompanhamento atraente (p. 1009).
médico-clínico e especializado cuidadoso, o uso
criterioso de psicofármacos e as terapias de apoio Como objetos de estudo, a anorexia e a bulimia
psicológico e familiar. possibilitam e exigem que nos adentremos nos
intrincados mecanismos que envolvem a mulher
Considerando a radicalidade com que a bulimia e a nas suas relações com padrões e pressões sociais
anorexia se manifestam nas mulheres, relacionados à beleza, à sexualidade, à imagem
principalmente nas jovens, Behar, Barrera & corporal, aos estímulos ao consumo, à aquisição
Michelotti (2001) adotam a perspectiva de de autonomia e liberdade, e ao desempenho de
terapeutas feministas e propõem uma terapia que papéis sociais que lhe permitem atrair admiração e
consideram diferenciada: obter sucesso, aspectos relacionados à construção
da cidadania das mulheres. Os conteúdos
que dê destaque às influências sócio-culturais que simbólicos associados à anorexia e à bulimia são
compõem os transtornos alimentares e que algumas das respostas possíveis para as perguntas
reconheça a transcendência da auto-estima, o muito bem formuladas na canção Comida, de
autocontrole e a força destas pacientes. As autoria de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e
mulheres devem aprender a valorizar seu corpo e Sérgio Britto: “Você tem sede de quê? Você tem
sentir-se confortáveis com eles, percebê-los como fome de quê?”.
fonte de prazer ao invés de objetos de sofrimento e

Referências Bibliográficas

American Psychiatric Association (1995) Manual de diagnóstico e estatística de distúrbios mentais. 4a.
edição (DSM-IV).

Behar, A. R., De La Barrera, C, M. & MICHELOTTI C, J. Gender identity and eating disorders. Rev. méd.
Chile. [on-line]. Sept. 2001, vol.129, no.9 [citado 28 Setembro 2003], p.1003-1011. Disponível na World
Wide Web: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script =sci_arttext&pid=S0034-
98872001000900005&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0034-9887.

BLOWERS, L.C., LOXTON, N.J., GRADY-FLESSER, M., OCCHIPINTI, S. & DAWE, S. (2003) The
relationship between sociocultural pressure to be thin and body dissatisfaction in preadolescent girls. Eating
Behaviors 4, 229–244.

BUSSAB, V.S.R. & RIBEIRO, F.L. (1998) Biologicamente Cultural. In L. Souza, M.F.Q. Freitas & M.M.P.
Rodrigues (Orgs) Psicologia: reflexões (im) pertinentes (pp. 175-194). São Paulo: Casa do Psicólogo.

CASHDAN, S. (2000) Gula – onde as migalhas de pão vão dar. In S. Cashdam. Os 7 pecados capitais nos
contos de fadas – como os contos de fadas influenciam nossas vidas (pp. 85-106). Rio de Janeiro: Campus.

CASTILLO D., C.C.M. (1990) Apetito y nutrición. Rev. Chil. Pediatr., 61 (6): 346-353.

FELINTO, M. A fome. (2000) In E. Sader (Org.) 7 pecados do capital (pp.107-119). Rio de Janeiro: Record.

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia
Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares 68

FIGUEIREDO, G. (2000) Gula. In Otto L. Rezende (Org.) Os 7 pecados capitais (pp. 135-167). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil.

FLEITLICH, B.W. (1997) O papel da imagem corporal e o risco de transtornos alimentares. Ped. Moderna,
33 (1/2): 56-62.

GARCIA, R. W. D. (1997) Práticas e comportamento alimentar no meio urbano: um estudo no centro da


cidade de São Paulo. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):455-467.

LEMES, S. O; Moraes, D.E.B. & Vítolo, M. R. (1997) Bases psicossomáticas dos distúrbios nutricionais na
infância. Rev. Nutri. PUCCAMP, 10 (1): 37-44.

MELIN, P. e ARAÚJO, A. M. (2002) Transtornos ranstornos alimentares em homens: um desafio


diagnóstico. Rev Bras Psiquiatr, 24(Supl III):73-6

NEGRÃO, A. B. (1998) Diferenças na secreção de área de leptina em homens e mulheres: possíveis


implicações na neuroendocrinologia dos transtornos alimentares. Rev. Psiq. Clin., 25 (4): 184-190.

PALEO, M. Del C. (1994) Anorexia – bulimia nerviosa – aportes de investigações sobre el tema visto desde
la matéria – “comunicacion humana y sistemas humanos”. C. M. Publicación Médica, 7 (1), 16-19.

QUEIROZ, R.S. & OTTA, E. A. (2000) Beleza em foco: condicionantes culturais e psicobiológicos na
definição da estética corporal. In R.S. Queiroz (Org). O corpo de brasileiro – estudos de estética e beleza
(pp. 13-66). São Paulo: Ed. SENAC.

SILVA, H. (1994) Serotonina y transtornos de la conducta alimentaria. Rev. Chil. Neuro-psiquiat., 32, 7-17.

SOMENZI, L. (1996) Transtornos alimentares e sua relação com abuso sexual na infância: relato de um
caso. Rev. Psiquiatr. R.S., 18 (3), 367-373.

VERÍSSIMO, L.F. (1998) O clube dos anjos. Rio de Janeiro: Objetiva.

VIERTLER, R.B. (2000) A beleza do corpo entre os índios brasileiros. In R.S. Queiroz (Org.) O corpo do
brasileiro – Estudos de estética e beleza (pp.153-181). São Paulo: Ed. Senac.

WEINBERG, C. (2001) Por que estudar a história da anorexia nervosa? Bol. de Transt. Afet e alimentares
(S.P.), 3, 5-6.

Recebido em: 2/10/2003

Aceito em: 19/03/2004

Revista de Psicologia da UnC, vol. 1, n. 2, p. 59-68


www.nead.uncnet.br/revista/psicologia

Anda mungkin juga menyukai