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PRELIMINARES
Este artigo pretende analisar textos doutrinários e manifestações dos órgãos colegiados
da Justiça do Trabalho sobre a relação entre trabalhadores religiosos e as instituições
religiosas para as quais prestavam serviços.
Dessa análise busca-se evidenciar as tendências legislativas e doutrinárias majoritárias
no transcorrer do período republicano estudado. O corte epistemológico é realizado na análise
prioritária das reclamatórias trabalhistas propostas por trabalhadores pertencentes a
denominações não católicas, e dentre estas, principalmente, as denominações evangélicas
neopentecostais.
Para este artigo, irrelevante a nomenclatura eclesiástica atribuída ao trabalhador
religioso, conceituando-se este como aquele que está à frente da denominação que representa,
ou, aquele que tem como única fonte de sustento pessoal e familiar o que recebe da
instituição religiosa que representa.
Uma abordagem genealógica sobre os textos legais mostra-se adequada, pois a análise
genealógica proposta tem como vantagem a percepção de que o fenômeno que se pretende
analisar não aparece em um momento mágico na história; ao contrário, o pensar sobre o fato
social da maneira como ele é concebido hoje é o mesmo que observar um rio que, ao
percorrer a História, recebe água dos mais variados afluentes ideológicos.
A pesquisa genealógica, como nos diz Foucault (1979), antes de se prestar para indicar
a origem dos fatos, apresenta as circunstâncias que propiciaram não o surgimento, mas a
eclosão de um modus. Este agir já se fazia presente mesmo antes de ser constatado. Todavia, é
a eclosão, o tornar-se generalizado ou útil para o contexto analisado, que permite à pesquisa
genealógica demarcar o seu instante inicial de estudo.
Para a análise genealógica dos julgamentos de reclamatórias trabalhistas entre o
trabalhador religioso e a denominação a que está ligado observa-se que é relevante
compreender o modo como se constituiu o seguimento evangélico no Brasil, mais
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Bacharel em Direito. Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Teologia da PUCPR.
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Rubens Alves (1981, p. 129) indica a chegada dos primeiros grupos protestantes no
início do século XIX. Esses grupos evangélicos iniciais pensavam a religião trazida como
integrante exclusivamente de sua cultura, não pretendendo nem integrá-la nem deixar-se
mesclar pela cultura religiosa existente no Brasil, a qual era quase totalitariamente católica.
É com a chegada dos grupos evangélicos vindos dos Estados Unidos da América do
Norte que aporta no Brasil um protestantismo missionário proselitista caracterizado pela
conceituação do Catolicismo como “paganismo mascarado” (ALVES, 1981, p. 131). A
contrapartida católica em defender-se através de perseguições aos protestantes que se
estabelecem no Brasil influencia na demarcação dessa divisão entre protestantes e católicos
(ALVES, 1981, p. 131).
Desse embate entre católicos e protestantes, Rubens Alves apresenta-nos dois fatos
relevantes para este estudo: primeiro, que o pensamento católico era inquestionável nas
instituições civis brasileiras; segundo, que com a chegada do protestantismo missionário, o
embate fez com que este se aliasse àquilo que poderia abrir-lhe caminho; alianças essas que
contrastavam com o pensamento dominante e culminaram por influenciar o próprio
protestantismo:
trabalhador religioso.
GENEALOGIA LEGISLATIVA
A Lei, uma vez publicada, deve atingir a todos que sob sua jurisdição se encontram.
Não pode ser analisada a priori com as suposições que constituem cada cidadão
individualmente. Todavia, embora o romantismo jurisdicional tenda a idealizar a formação da
Lei fora de seu contexto social para depois aplicá-la, é inegável que tanto legisladores quanto
julgadores possuem posicionamentos pessoais que abarcam uma ideologia sobre a qual
firmarão seus posicionamentos.
Embora o tempo se encarregue de apresentar novas interpretações ao texto legal que
permitem maior amplitude social à letra da lei, essas posições ideológicas da Lei não ficam
desapercebidas ao se observar o contexto social que antecede ou segue ao texto legal.
O Pe. Eugênio Carlos Callioli, Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia
Universidade da Santa Cruz em Roma, apresenta, no decorrer da evolução legislativa
nacional, duas tendências em relação à postura do Estado em face do “fator religioso”
(CALLIOLI, 2002, p. 9):
a) Aconfessionalidade: período entre a Proclamação da República e a Constituição de
1934, no qual a produção legislativa tende a laicização, o que, todavia, flexibiliza-se pouco a
pouco;
b) Reaproximação: período iniciado com a Constituição de 1934 até o presente. A
legislação permite o desenvolvimento das entidades religiosas. O Estado tende, agora, a
aproximar-se das entidades religiosas visando uma cooperação quando os interesses de ambos
coincidam.
Sobre estas tendências deve-se sempre ter em mente a existência de dois grandes
campos religiosos da incidência legislativa: o católico e o protestante.
Ainda sobre o ordenamento legislativo brasileiro e a sua relação com a religião,
Callioli ressalta a umbilicalidade existente entre a Igreja Católica e o Império, sendo a Igreja
tida, à época, como um “departamento ordinário do governo” (CALLIOLI, 2002, p. 10).
Compreender a Igreja como mero “departamento do governo” ressalta tanto a união
Estado/ Igreja quanto a ingerência daquele nesta por uso dos direitos do padroado (MATOS,
2009).
Entre a Constituição do Império e a Proclamação da República (1824-1889) o Brasil
sentia os ventos de movimentos europeus como o “iluminismo, a maçonaria, o liberalismo
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Por fim, havia artigos (art. 103, 106, 141) que dispunham que o Imperador e outros
agentes políticos deviam se comprometer a manter a Religião Católica Apostólica Romana:
Art. 103 – O Imperador, antes do ser aclamado, prestará nas mãos do presidente do
Senado, reunidas as duas câmaras, o seguinte juramento: “Juro manter a religião
católica apostólica romana, a integridade, e indivisibilidade do Império, observar e
fazer observar a Constituição política da nação brasileira e mais leis do Império, e
prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber”.
(BARRETO, 1971, p. 27/28).
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A grafia dos textos das Constituições do Brasil citadas foi mantida em conformidade com a obra indicada.
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Art. 179 – 5.º) Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que
respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública. (BARRETO, 1971, p. 42).
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
b) Princípio da Cooperação: Indica que tanto Estado quanto Igreja interessam-se pelo
Ser Humano, e, embora a esfera de atuação de cada um possa ser peculiar, o cuidado do Ser
Humano não prescinde a nenhum dos dois. Os textos dos quais este princípio pode ser
depreendido são o art. 19 da Constituição Federal e o art. 5º, VI:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(como pode ser observado pela jurisprudência majoritária) que o trabalhador religioso não
possui vínculo empregatício com a instituição a que esteja ligado.
Ressalva deve ser feita, na questão legislativa, ao recente e ainda não internalizado
Acordo entre Brasil e Santa Sé (BALDISSERI, 2009), que trata dos trabalhadores religiosos
católicos e será posteriormente mencionado neste artigo como paradigma da compreensão
jurídica da mudança de concepção da religiosidade pós-moderna.
GENEALOGIA DOUTRINÁRIA
Durand salienta que o trabalho dos religiosos para as suas ordens não visa a
obtenção de um salário. A retribuição que recebem os clérigos por tais serviços não
tem natureza salarial. A atividade ou trabalho é simplesmente o acessório, cujo
principal é o “aperfeiçoamento moral ou a prática de caridade para com o próximo.
(NASCIMENTO, 1987, p. 336-337).
GENEALOGIA JURISPRUDENCIAL
as normas que disciplinam as relações entre o pastor, o templo e seus fiéis têm sua
fonte de inspiração no Poder Espiritual. O pastor protestante, a exemplo do padre da
Igreja Católica Romana, sem atividade leiga, vive de espórtulas tiradas das
prebendas, donativos dos crentes. Confundir espórtulas com salários,
contraprestação de serviço, importa em deformação da crença religiosa, em farsa de
princípios, no reconhecimento de trabalho mercenário. O pastor é carente de ação no
foro trabalhista pela inexistência de relação empregatícia. (Ac. 687/62, TRT, 1ª Reg.,
LTr., 30:184). (NASCIMENTO, 1987, p. 338).
MUDANÇAS DE PARADIGMA
Uma nova compreensão do trabalho religioso começa a ser vislumbrada tanto pelo
Judiciário quanto pela doutrina. Essa mudança de posicionamento, todavia, não se pauta em
nova perspectiva sobre o trabalhador religioso, mas no desvirtuamento das instituições
religiosas, situação que ganha maior relevância nas denominações evangélicas
neopentecostais.
Esse desvirtuamento se caracteriza pela compreensão de que o objetivo de certas
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instituições religiosas não fica restrito à propagação da fé, mas visa contraprestações
financeiras na prestação de seus serviços religiosos (ROSSI, 2008, p. 108-116).
Embora o fenômeno neopentecostal tenha surgido no Brasil com maior amplitude na
década de 1970, com o surgimento da terceira onda (ROSSI, 2008, p. 108-116), a
compreensão desse desvirtuamento pelo judiciário é mais recente.
Rodrigo Carelli (2004, p. 85) elenca acórdão do TST que, apesar de entender o vínculo
inexistente, vislumbra a possibilidade deste em caso de desvirtuamento da instituição
religiosa:
CONCLUSÕES PRELIMINARES
REFERÊNCIAS
BARRETO, Carlos Eduardo (Org.) Constituições do Brasil. 6. ed. rev. e atual.. v. 1 e 2. São
Paulo: Saraiva, 1971.
BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
BRASIL, Leis. CLT Saraiva e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 35. ed. atual. e
aum., 2008.
CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Formas atípicas de trabalho. São Paulo: LTr, 2004.
FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
MATOS, Alderi Souza de. Breve história do protestantismo no Brasil. Disponível em:
http://www4.mackenzie.br/6994.html?&L=0. Acesso em: 29 jun. 2009.
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva et al. Manual do trabalho voluntário e religioso:
aspectos fiscais, previdenciários e trabalhistas, São Paulo: LTr, 2002.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Jesus vai ao McDonald’s: teologia e sociedade de consumo.
São Paulo: Fonte Editorial, 2008.
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