Resumo
A vivência do cotidiano das aulas de educação física permite observar aulas predominantemente,
quando não exclusivamente, práticas, desprovidas de momentos de reflexão e discussão.
Professores que, embora trabalhem com turmas mistas, insistem em separar os alunos, a partir do
gênero (masculino e feminino). Contudo, é preciso considerar que este cenário reflete concepções e
práticas historicamente construídas, as quais são influenciadas pelo contexto sócio-político e
cultural de um dado período. O retrospecto histórico da educação física permite observar que com a
sua obrigatoriedade no ensino secundário, disseminava-se, durante o governo Vargas, no contexto
da rede escolar o método de educação física oficial que ficou conhecido como “Regulamento nº 7”
ou “Método do Exército Francês”. Este estudo objetiva desvelar os processos de ensinar e aprender
na educação física escolar na cidade de São Paulo no governo ditatorial de Getúlio Dornelles
Vargas, na perspectiva dos sujeitos que vivenciaram tal momento histórico enquanto alunos e que
posteriormente formaram-se em cursos superiores de educação física e atuaram como professores
no ambiente escolar formal público e/ou privado. Na tentativa de apreender as experiências dos
sujeitos, recorrer-se-á as lembranças de dois professores de educação física, tendo como referencial
teórico a história oral. A análise dos depoimentos possibilitou desvelar alguns aspectos envolvidos
nos processos de ensinar e aprender educação física neste período histórico, dentre os quais
destacam-se: a utilização do método francês, caracterizado como rigoroso, nas aulas de educação
física no âmbito escolar mesmo após o término do regime ditatorial de Vargas e a permanência ao
longo dos anos de práticas legitimadas neste momento histórico, e que se perpetuaram, sendo ainda
hoje desenvolvidas pelos professores de educação física, como as demonstrações de ginástica no
Dia da Independência e o desenvolvimento das aulas separadamente para meninos e meninas.
Introdução
*
Referência: CORRÊA, Denise A. Ensinar e aprender educação física na “era Vargas”: lembranças de velhos
professores. In: VI EDUCERE - CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - PUCPR - PRAXIS, 2006, Curitiba.
Anais... Curitiba: PUCPR, 2006. v. 1. (ISBN 85-7292-166-4).
2
1
Trata-se de análise preliminar de fontes documentais e orais da pesquisa em desenvolvimento no curso de doutorado realizado no
Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC/SP, acerca da educação física escolar durante o regime ditatorial de
Getúlio Dornelles Vargas no Brasil no período de 1930 a 1945.
3
“A Educação Física Higienista preocupada com a saúde, perde terreno para a Educação
Física Militarista que subverte o próprio conceito de saúde. A saúde dos indivíduos e a
saúde pública, presentes na Educação Física Higienista, de inspiração liberal, são relegadas
em detrimento da ‘saúde da pátria’” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1988, p.26-27).
a qual “(...) também se constituiu sob forte influência militar, pois parte de seu corpo docente foi
treinado nos cursos do Centro Militar” (p.73).
BETTI (1991) ainda acrescenta que a Escola Nacional de Educação Física e Desportos da
Universidade do Brasil, fundada em 1939, a qual também regulamentou a exigência de habilitação
para o exercício da profissão foi estruturada com base na Escola do Exército e seu primeiro diretor
foi um major também proveniente daquela escola militar.
Tais considerações remetem a um retrospecto histórico imbuído de significados que se
expressam nos questionamentos acerca da identidade da educação física, especialmente aquela
desenvolvida no ambiente escolar.
Ainda que décadas tenham se passado e novos conceitos tenham sido discutidos na área na
tentativa de romper com essa herança histórica, observações cotidianas das aulas de educação física
na escola suscitam inúmeras inquietações quanto à estrutura; aos conteúdos eleitos; às opções
metodológicas; ao posicionamento de professores e alunos.
Observa-se que pressupostos e conceitos acerca da educação física vigentes no período
histórico da citada “Era Vargas” parecem configurados no processo de ensino e de aprendizagem e
longe de estarem superados, insistem em figurarem-se como possibilidades de trabalho de muitos
professores.
A esse respeito e referindo-se às tendências que marcaram historicamente a educação física
GHIRALDELLI JÚNIOR (1988) ressalta que:
Procedimentos Metodológicos
Os relatos coletados junto aos sujeitos da pesquisa serão submetidos à análise qualitativa,
utilizando como referencial teórico a história oral, no sentido de apreender as experiências dos
sujeitos que vivenciaram e participaram do processo de construção do momento histórico a ser
investigado, estabelecendo relações com as experiências vivenciadas no momento histórico
presente.
Nesta pesquisa serão analisados os depoimentos de dois sujeitos, os quais serão
identificados como Professor A e B, que vivenciaram o período histórico aqui denominado “Era
6
Vargas” enquanto alunos e que, em meados da década de 50, formaram-se em cursos superiores de
educação física e posteriormente atuaram como professores no ambiente escolar formal público
e/ou privado.
A história oral, de acordo com MEIHY (1998), parte da idéia do passado em movimento,
cujo processo histórico não está acabado, percebendo-o como algo que tem continuidade, num
constante refazer-se no presente. Para o autor, a razão de ser da história oral está em considerar a
presença do passado no presente imediato das pessoas.
O relato dos sujeitos acerca de experiências vivenciadas no passado, enquanto
representações de vida expressas na oralidade, são documentos portadores de elementos para o
desvelar de um dado momento histórico, pois como menciona DANTE (1992) a história oral
compreende a representação do passado, a palavra daquele que viveu a história assume, portanto,
um papel muito significativo.
FRISCH (1996) aponta a relevância dos “processos de recuperação e reapropriação deste
passado”, uma vez que a essência do percurso trilhado pela história oral não se restringe ao ato de
lembrar em si, mas à “influência do passado rememorado sobre o presente” (p.81).
Considera-se, assim, que os depoimentos não são vazios. Eles estão carregados de
subjetividades e de significados. Neste sentido, os relatos não são substitutos de fontes
documentais, eles são portadores de valores próprios e validados como uma documentação histórica
valiosa.
Brasil, colocando fim ao período denominado República Velha. Tratava-se de substituir o poder
oligárquico, da chamada “política do café com leite”2, reajustando-se às novas necessidades
econômicas que nasciam com a sociedade urbano-industrial. Assumiu a chefia do Governo
Provisório até 1934, quando é eleito indiretamente presidente pela Assembléia Nacional
Constituinte. (OLIVEIRA, 1996)
É, no entanto, somente em 1937, que ocorreu o Golpe de Estado de Vargas, momento em
que se iniciou, propriamente, o que se convencionou chamar de Estado Novo, perdurando até 1945,
com sua deposição do poder.
O fortalecimento da raça, o tipo físico pré-determinado, o desenvolvimento anátomo-
fisiológico e o nacionalismo foram os conceitos defendidos na ditadura estadonovista de Getúlio
Dornelles Vargas, de forte tendência nazi-fascista. Eram comuns aulas de educação física no âmbito
escolar com caráter disciplinarizador e nacionalista, aulas estas que eram dirigidas por oficiais do
Exército brasileiro (GONÇALVES JUNIOR e RAMOS, 2005).
Para GONÇALVES JUNIOR e RAMOS (2005) neste quadro político, econômico, social e
cultural que vivia o Brasil, forjou-se a ginástica militarista. Era objetivo primordial preparar a
juventude, especialmente a masculina, para o combate, a vitalidade, a coragem, o heroísmo e para a
guerra ou, em outras palavras, preparar o “cidadão soldado”, colaborando no “processo de seleção
natural”, eliminando os fracos e valorizando os fortes, com o intuito último de depuração da raça.
Deste modo, como salienta LENHARO (1986):
“O corpo está na ordem do dia e sobre ele se voltam as atenções de médicos, educadores,
engenheiros, professores e instituições como o exército, a Igreja, a escola, os hospitais. De
repente toma-se consciência de que repensar a sociedade para transformá-la passava
necessariamente pelo trato do corpo” (p. 75).
SÉRGIO (1994) afirma que a educação física se consolida neste contexto histórico e:
“veio acrescentar ao exclusivo cuidado pelas almas, específico das teocracias, uma atenção
simultânea pelos corpos, quer visando a saúde, quer assumindo características pré-militares.
(...) O espírito precisava de um corpo destro e, por isso, o adestrava!” (p.70).
2
Trata-se de forma de poder assente e alternado em termos de Governo Federal entre os grandes fazendeiros, de um
lado os criadores de gado e produtores de leite do estado de Minas Gerais, e, do outro, os cafeicultores do estado de São
Paulo (GONÇALVES JUNIOR e RAMOS, 2005).
8
“(...) não se resume numa prática militar de preparo físico. É acima disso, uma concepção
que visa impor a toda sociedade padrões de comportamento estereotipados, frutos da
conduta disciplinar própria ao regime de caserna” (p.18).
O relato de um dos depoentes a respeito de sua experiência com o método francês quando
cursava a graduação em educação física em meados da década de 50, revela a permanência do
Método Francês anos após o término do regime ditatorial de Vargas. Seu relato corrobora,
inclusive, as afirmações acerca do caráter disciplinador do método francês comparado a outro
método, o qual denomina de sueco. Como descreve o professor A:
“Na primeira parte da aula ele usava pequenos jogos para o aquecimento, utilizando os
bancos suecos, partes do plinto, colchões de ginástica de solo, arcos, enfim um estilo
completamente diferente do método francês, tornando as aulas alegres, movimentadas, os
alunos se sentiam mais soltos, mais a vontade. (...) Não era aquele movimento rígido do
método francês não. Era uma ginástica mais balanceada, mais gostosa. Começaram assim a
introduzir o método sueco... até então eu nunca tinha ouvido falar dele.”
“Na própria escola de educação física, a gente teve experiência com outros métodos, né?
No início era só método francês realmente, então a gente assimilou essas outras
alternativas, né? Estudou essas outras alternativas e... teve oportunidade de por em prática
essas outras alternativas, então eh... não era mais aquele, aquele... método único que... era
cansativo eh... até os alunos gostavam muito pouco, né?
“Afirma-se então, neste período, em toda França, um desejo de que a educação física possa
contribuir de forma significativa na preparação dos exércitos. Criam-se os batalhões
escolares e proliferam os exercícios militares espetaculares com caráter de exibição sem
qualquer interesse pedagógico. Predomina o interesse propagandístico de uma França forte
e unida” (p.130).
A este respeito, o colunista Affonso Romano de Santa’anna relata uma cena protagonizada
por ele no ano de 1944, que ilustra este sentimento nacionalista e patriótico que caracteriza o
período:
“O fato é que eu marchei diante do ditador. Perninhas finas, cabeça grande, espanto e
ingenuidade nos olhos, sete aninhos, e lá vou eu de tênis e uniforme azul e branco, aluno do
Grupo Escolar “Fernando Lobo” (...) marchando diante do palanque em que estava Getúlio
Vargas.” (SANTA’ANNA, 2004, p.27).
10
Interessante notar que nestes eventos muito comuns durante o governo Vargas, além da
efetiva participação das escolas, havia ainda a exibição de exercícios ginásticos, como relata o
colunista:
“Houve um tempo em que havia esse ritual que mobilizava todas as cidades – a parada (...)
Os colégios da cidade entravam numa disputa para ver quem mais brilhava com bandeiras,
bicicletas, flâmulas e ginastas (...)” (SANTA’ANNA, 2004, p.27).
“As escolas estaduais do interior do Estado de São Paulo, recebiam todos os anos, um plano
de demonstração de ginástica rítmica para treinarem e se apresentarem no Estádio do
Pacaembu, em São Paulo, durante a semana da Pátria. Nós éramos selecionados pelo nosso
professor e treinávamos durante o horário das aulas de educação física o referido plano.
Quando chegava na semana da Pátria, vínhamos de trem para São Paulo onde, na estação da
Luz já havia um ônibus enviado pelo DEF (Divisão de Educação Física) para levarmos ao
estádio do Pacaembu, onde ficávamos alojados. Lá, o (...) responsável pela demonstração
determinava um aluno do terceiro ano da Escola de Educação Física para assumir a turma e,
a partir dali, começávamos os treinamentos até o dia da demonstração no dia 7 de
setembro.”
Por outro lado, para o gênero feminino, era reservada a preocupação com a economia
doméstica (para manutenção da casa), as noções de enfermagem/primeiros socorros (para
atendimentos aos feridos em eventual combate) e a maternidade.
GOELLNER (2003) menciona que na perspectiva da mulher-mãe, configura-se a
prescrição de atividades físicas “autorizadas” para a mulher (ginástica) circunscrevendo suas
práticas corporais a espaços determinados (privado lar) e a tempos previstos (entre as tarefas do
lar) distanciados daqueles exclusivamente masculinos (futebol – público - rua). “Delimitam-se,
pois, domínios sociais através de códigos sexuais” (p.77).
A segregação espacial e temporal entre os gêneros masculinos e femininos, se insere no
ambiente escolar, especialmente nas aulas de educação física, cujos objetivos e métodos
expostos anteriormente, não se adequariam se aplicados coletivamente para meninos e meninas.
Desta maneira, nota-se através dos relatos dos dois professores uma dinâmica de aulas
exclusivamente dicotômica, desenvolvida separadamente para meninos e meninas, sendo que
para os primeiros o professor era do gênero masculino e para as segundas quem ministrava as
aulas era do gênero feminino.
Tal situação é expressa no depoimento do Professor B quando aponta que:
“As professoras davam aula para as meninas e... os professores para os meninos (...) No
Estado também as aulas eram separadas (...) No Estado mesmo eu realmente só dei aula pra
turma masculina.”
“Era separado. Aliás, mesmo... quando eu trabalhei com educação física posteriormente,
né? Eu trabalhei durante 24 anos e 11 meses na rede oficial, na rede estadual, eu nunca dei
aula pra turma mista nem pra turma feminina, sempre era o professor com os meninos, com
os alunos e a professora com as alunas. E... há um ano e pouco... só tive uma experiência
numa escola particular, escola comercial particular onde as turmas eram, eram separadas
também, masculino e feminino, mas eu dei aula pra uma turma... pras turmas femininas de
educação física, mas ainda assim eram separadas, né? As aulas eram separadas.”
Considerações Finais
REFERÊNCIAS
BRASIL (Presidente) 1930 1945 (G. Vargas). Mensagens presidenciais 1933-1937, Getúlio Vargas.
Brasília, Câmara dos Deputados, 1978. 748p. (Documentos parlamentares, 126)
CANTARINO FILHO, M.R. Educação física no estado novo: história e doutrina. Brasília:
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, 1982.
DANTE, M. Claramonte Gallian – pedaços da guerra: experiências com história oral de vida de
Tobarrenhos. 1992. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo. (Mimeo).
MEIHY, J.C.S. Manual de história oral. 2. ed., São Paulo: Loyola, 1998.
ROSÁRIO, A. T. do. O desporto em Portugal: reflexo e projecto de uma cultura. Lisboa: Instituto
Piaget, 1996.
SANT’ANNA, A. R. de, Também marchei para o ditador. In: Imagens da Era Vargas: artigos,
fábulas e memórias. São Paulo: SESC, 2004.