A obra Cem Anos de Solidão, publicada em 1967, de Gabriel García Márquez, se
apresenta como uma metáfora da condição terceiro-mundista que impregna a América Latina com o rótulo do subdesenvolvimento social e tecnológico. Embora esse conceito não seja um consenso, esse rótulo político se torna nocivo quando se expande genericamente para a esfera da cultura. Essa rotulação assume contornos de equívoco, portanto, uma vez que engloba dentro de uma mesma designação pejorativa, países diferentes e conceitos conjunturalmente distintos, como economia regional e global, cultura e aculturação e desenvolvimento tecnológico e social. Esse é um panorama sucinto da realidade latino-americana. Entretanto, a ficção, notadamente através da literatura, nos oferece um excelente exercício de reflexão sobre essas questões. E é no horizonte desse paradigma ficcional, que nos permitimos algumas elocubrações sobre alguns aspectos de nossa identidade, ou seja, nossa latinoamericanidad. Em linhas gerais, percebemos que, se retiradas as alegorias que são estruturadas sobre a linguagem no desenrolar da história do centro onfalógico “Macondo” e de seus demiúrgicos personagens, a narrativa de García Márquez ficaria restrita ao lugar-comum de ser apenas mais um enredo que envolve a saga dos fundadores de uma cidade. No entanto, García Márquez, ao impor a Macondo e à estirpe dos personagens de sobrenome Buendía um viés predominantemente relacionado à extinção, faz com que a história de Macondo assuma contornos disfóricos, o que atribui à obra características de uma antiepopéia, negando a própria estrutura grandiloqüente e heróica que deveria ser a tônica dos Cem Anos de Solidão, enquanto saga de heróis. Com esse procedimento ele obtém um duplo efeito: eleva sua obra ao patamar de texto literário, dialetizando, de um lado, com os pressupostos políticos, e, de outro lado, com os ditames estéticos europeus, oferecendo um estilo disfórico-alegórico como alternativa estética e sociológica da condição latino-americana. Negando, enfim, a força do opressor histórico na instituição estética desse “signo da negação”, acredita-se, talvez, que o autor intente conseguir subverter a sensação psíquica de falência étnica, cultural e política que o opressor infundiu na consciência coletiva do homem latino-americano através dos séculos de dominação. O final trágico da história ficcional permite depreender que o resultado imediato desse embate ideológico dentro da América Latina real (metaforizada pelo suburgo Macondo), é o surgimento, na cena social global, de um retrato político-cultural caricaturizado: os Estados Unidos produzem um super-homem de aço e voador para os representar na “liga da justiça”, enquanto que a América Latina institui o “Chapolim Colorado”, um adulto infantilizado, vestido à moda dos super-heróis, que nos representa em horário de programação infantil na televisão, catequizando nosso futuro através das crianças. O super-homem de aço norte-americano é vulnerável apenas à “criptonita”, material que existe somente em outro planeta. O Chapolim Colorado já nasce com perfil senil, ignoto, satírico, o que o torna vulnerável de nascença a qualquer coisa no nosso planeta. Instaura-se, assim, a dinâmica do herói norte-americano e do anti-herói latino-americano subdesenvolvido, deixando mais evidente as margens do rio sócio cultural que separam os norte-americanos do restante do continente. Vemos, então, que a conseqüência direta de uma submissão historicamente ingênua é a de que os neocolonizadores engessam o futuro da América Latina dentro dos limites inconsistentes de suas próprias incompetências.