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O MÁRTIR DO GÓLGOTA

Introdução

Doze anos havia que o mundo gozava de uma paz inalterável, desconhecida desde a morte de Numa Pompílio,
quando Deus, lançando um olhar de compaixão para a terra, determinou baixar a ela em fórma de homem, e de
derramar o seu sangue pelos crimes alheios.
Devia anunciar-se a sua vinda com grandes e assombrosos acontecimentos, e assim sucedeu.
Os ímpios idólatras do Olimpo do Homero, os adoradores sensuais de Venus, a prostituta, e de Mercúrio, o deus
dos ladrões, os corrompidos cortezãos do Capitólio, definhavam em languidez nos braços da indolência e do amor.
Aquela paz inalterável enchia-os de admiração, e um dia foram ao templo consultar o oráculo de Apolo para
saberem quanto tempo ela duraria.
O oráculo respondeu-lhes estas palavras: “Até que se dê o caso de uma Virgem dar à luz”.
Julgando, segundo a ordem natural, que seria impossível que semelhante vaticínio sucedesse, colocaram esta
inscrição na elevada porta: “Templo da paz eterna”.
Entretanto, a sibila Cumeia, a poetisa, inspirada, predizia a vida de Cristo na cidade ímpia dos sibaritas. Otávio
Augusto fez reunir o conselho e a profetisa foi interrogada. O César queria saber se nasceria outro homem mais
onipotente que êle. Esperava o imperador a resposta, quando um círculo de ouro apareceu em torno do sol.
No centro, rodeada de vividos raios, via-se uma Virgem que tinha nos braços um formoso menino.
A sibila então estendeu a mão par ao brilhante astro do céu, e exclamou com profética voz:
“- Aquele menino é mais onipotente que tu, adora-o”.
De súbito ouviu-se uma misteriosa voz que bradava: “Esta é a ara santa do céu”.1
Sucedia isto em Roma quando no Oriente, na Babilônia moderna, na populosa Selecucia, apareceu uma estrêla
que, fazendo sair os reis magos dos seus palácios, os conduziu com o fulgor do seu brilho à porta de um estábulo de
Belém.
Cumpria-se a profecia de Balaão: a estrêla de Jacó acabava de despontar nos céus.
Do Oriente chegavam alguns idólatras, que depositavam aos pés de um berço a primeira pedra do cristianismo.
A voz do anjo despertou nas suas cabanas os pastores, e êstes achavam-se junto de um leito aos pés do qual ia
morrer o mundo pagão.
Um menino, formoso como o sonho do justo, loiro como as espigas do Egito, agitava-se sôbre um montão de
palha sorrindo com doçura; filho de uma Virgem, nasceu em um presépio e estava destinado a redimir o mundo. O
recém-nascido era o Messias, que os profetas haviam anunciado.
Os terríveis deuses do paganismo, Molok, Tifon, Abriman, curvaram a torva fronte ante o Cristo, o Deus-
Homem, o Deus da nobreza e da mansidão que, envolto na túnica de mendigo, procurava o tugúrio do humilde para
viver com êle e ensinar-lhe estas palavras de confôrto: “Bemaventurados os que choram, porque êles serão consolados”.
Principiou então o homem a sentir dentro de si o germen de uma nova vida, e quando a fadiga o fazia cair
banhado em suor sôbre a charrúa, erguia ao céu os olhos cheios de lágrimas, e pedia a Deus fôrças para esperar o dia da
recompensa.
O escravo, sacudindo os grilhões, lançou um olhar em tôrno de si e permaneceu com o ouvido atendo, até que a
sua fisionomia se foi animando pouco a pouco, e um sorriso melancólico assomou aos seus lábios.
Despontava-lhe no coração a esperança; os grilhões caiam despedaçados aos seus pés, porque estas palavras
pronunciadas por Deus: “Todos somos irmãos” haviam chegado aos seus ouvidos.
Reuniram-se então os desgraçados em volta de Jesus Cristo, que, qual pastor das almas, atravessava a terra para
procurar os aflitos, afim de lhes enxugar as lágrimas, e derramar-lhes no coração angustiado a rica semente da fé cristã.
Onde uma creatura gemia, lá estava Cristo para a consolar. Onde se lamentava um enfermo, lá estava o Messias
para lhe devolver a saúde.

As suas palavras eram o manancial copioso da caridade e da consolação, manancial onde a humanidade colocou
os lábios sedentos, onde mitigou a sêde abrasadora que lhe minava o peito, exclamando ao mesmo tempo com
entusiasmo: “Creio em Vós, Senhor, porque entre os inumeráveis benefícios que a vossa vinda nos trouxe, um há que
eternamente guardaremos no coração: os Evangelhos, porque êles são os escolhidos entre os escolhidos, são o pão da
alma cristã, o divino facho que nos indica o caminho da glória, a tua santa doutrina enfim.”
Na Samaria, em Candam, na Galiléia, Betânia e Jerusalém, Jesus apareceu sempre como o anjo do bem sôbre a
terra. Viu-se rodeado de um povo que sedento de amor, lhe derramava flôres ante os pés, e que chamando-lhe seu Deus
e seu Rei, lhe pedia com as lágrimas nos olhos que lhe ensinasse a nova doutrina.
Sua fama, seus feitos, seus milagres, correram de boca em boca por todos os âmbitos do mundo, até que um dia
as palavras “todos somos iguais” chegaram aos ouvidos dos pontífices e pretores de Jerusalém.

1
Sôbre o Capitólio em Roma, onde existia em tempo da vinda de Cristo o palácio de Otávio Augusto, existe hoje o convento de
Santa Maria d1Arca-Coeli, d’onde provém a tradição que narramos.

1
Estremeceram os tiranos nos seus palácios e, fazendo girar os sangrentos olhos, procurarem o filho do povo que
ousava intitular-se Deus da humanidade, Rei dos judeus, e cujas palavras principiavam a transtornar a ordem das
cousas.
Por fim acharam-no, interrogaram-no e, ao ouvirem a santa verdade da sua doutrina, retiraram-se
envergonhados, murmurando estas palavras com enleio: “Com êste homem a ciência é impotente. Será o Messias?”
Desde então nos seus sonhos, nas suas bacanais, nas suas orgias, viram escritas estas palavras “O que fôr maior
entre vós será vosso servo.”
Em seguida calcularam as suas fôrças e a imensidade do perigo que os ameaçava e rugindo como os habitantes
das selvas africanas, com u’a mão continham as pulsações do coração, devorado pela consciência, enquanto que com a
outra assinavam a morte do Redentor.
A raivosa impotência e o cego orgulho dos tiranos fizeram com que se levantasse a Deus um cadafalso!
A tragédia divina teve o seu termo.
Cristo subiu ao calvário, exalou o último suspiro nos braços do lenho sagrado; foi dali tirado para o sepulcro, e
ao terceiro dia elevou-se ao céu em apoteose.
As suas lágrimas cairam como gotas de orvalho sôbre o coração da humanidade; e as suas palavras foram a fonte
da consolação, o seu sangue a semente preciosíssima da religião cristã, a cruz o sagrado sinal da redenção, a chave do
paraíso.
Haviam-se cumprido as profecias.
Os apóstolos da fé, os propagadores da nova lei, espalharam-se pela terra e, mão se importando como o martírio,
começaram a semear a palavra humanidade até então desconhecida no mundo.
O Cristianismo cresceu como uma bola de neve. Os circos de Roma, os tormentos da Índia, não puderam
esmagar-lhe a radiante e formosa cabeça.
Nero, Cômodo, Deocleciano, Maxêncio, todos êsses verdugos da humanidade, sacrificaram mais de um milhão
de cristões; porém o Cristianismo renasceu das suas cinzas como a ave fênix. Por toda a parte renasciam novos rebentos
da fé, que estendiam a sua nova e viçosa seiva pelo coração da humanidade.
Os filhos dos pagãos recebiam a água do batismo como maná celeste.
As mulheres, com a sagrada instituição do matrimônio cristão, tiveram uma posição social e uma família; e como
se todos êstes benefícios não bastassem para proclamar a divindade do Galileu, a ímpia Jerusalém, a cidade ingrata dos
fariseus, foi destruida pelas legiões de Vespasianos e Tito, sepultando nas suas ruinas um milhão de hebreus, que a
celebração da Páscoa havia reunido a profícia dos muros da cidade sacerdotal.
O Cristianismo, salvando a sociedade de uma ruina certa, abrigou no seu seio carinhoso os restos da civilisação e
das artes.
O plano deste livro abrange todos êsses grandes acontecimentos que o povo de Israel presenciou. Antes de o
principiar, tratámos de estudar as Sagradas escrituras, os costumes hebreus e as poéticas tradições do Oriente. Sem
faltar ao dogma, muitas vêzes havemos adotado o estilo poético, que não fica mal a um livro desta indole.
A fé e a religiosa admiração que nos inspira aquele que exalou o último suspiro no monte do Calvário, levou-nos
a escrever uma obra que nos assombrava ao concebê-la, e que hoje, vendo-a terminada, damos à luz com respeito e
veneração.
Que a julgue todo aquele que a ler, e longe de ter êste livro como uma obra importante, tenha-o só como um grão
de areia que colocamos na pirâmide imensa do Cristianismo, elevada pelas santas palavras do Mártir do Gólgota.

LIVRO PRIMEIRO

Que outra coisa é a Escritura senão uma Carta do Todo Poderoso aos homens?
Rogo-te que todos os dias estudes e me-Dites as palavras do teu Creador, aprendendo
assim a conhecê-lo, - (GREGÓRIO MAGNO,Livro IV, epist.39)

CAPÍTULO I

2
O POVO ERRANTE

Formoso céu da Galiléia: desgraçadamente os meus olhos não admiram ainda as poéticas cambiantes dos teus
crepúsculos.
Perfumadas faldas do Carmelo: o meu peito ainda não respirou o balsâmico aroma das tuas virações.
Frescas margens do Jordão: os meus lábios profanos jamais se humedeceram com o claro manancial da tua santa
corrente.
Cume sagrado do Calvário:os meus pés nunca pisaram as tuas caleinadas rochas, que um dia se humedeceram
com o sangue do Messias e com as lágrimas da Virgem.
Velutos Olivete, cujos cimos serviram de pedestal do Nazareno quando as nuvens celestes desceram do paraíso
para o tirarem da mansão dos homens: a brisa vespertina que agita as pequenas e aveludadas folhas das tuas oliveiras
nunca bafejou a fronte.
Imortal Líbano, magestoso fantasma de todos os tempos, que em teus mudos anais guardas a história
monumental: Balbek que os homens desconhecem, que fertilizas as terras de Blak com o húmido pó da tua neve, que
refrescaste os alvos cabelos do solitário Noé e presenciaste a tragédia divina do Gólgota, soltando um gemido doloroso,
cujo eco foi perder-se nas profundas brenhas das tuas quebradas: o balsâmico perfume dos teus cedros, o resplandecente
reflexo das tuas cordilheiras jámais me detiveram os passos para te admirar dos pintorescos vales de Zakle.
E tu, rainha da Asia, inacessível cume do Sabino, que ocultas a eterna neve das tuas cumiadas no tranquilo azul
do firmamento: os úmidos efúsivos que o vento da tarde arranca a tua cabeleira nevada, nunca me humedeceram os
vestidos, nem me cegaram os olhos.
Jamais tive a dita de te admirar, poética e formosa Palestina. Os meus olhos nunca se extasiaram ante a
contemplação dos campos de Zabulon, eternamente cobertos de violetas.
Invejo os viajantes ilustres, os peregrinos, cristãos que têem percorrido o dilatado solo, que foi ocupado pelas
doze tribos de Israel desde o monte Hermon até à torrente do Egito, desde as cordilheiras de Galaad até às tempestuosas
plagas do mar ocidental.
A história do teu povo tem sido o meu livro querido desde que a minha língua principiou a ligar as letras do
alfabeto.
Mai ai! Que é feito dos descendentes de Abraão e Jacó? O povo de Israel, tão sábio e valente, essa raça da qual
nasceram os profetas, essas tribos que imortalizaram o nome dos seus chefes, aonde existem? Qual é o ponto da terra
que ocupam? Onde se acha o seu lar doméstico? Qual é a sua pátria?
Deus nasceu entre êles, e o sangue do seu Deus que derramaram pesa-lhes sôbre a cabeça como uma maldição,
impelindo-os pelo mundo quais ligeiras arestas que o possante sôpro do vendaval arrasta sem rumo certo.
O aríete romano converteu as suas poderosas cidades em um montão de ruínas; a espada triunfante dos filhos
do Tibre cortou-lhes as cabeças, e as sombras terríveis de Vespasiano e de Tito pairam ainda sôbre os escombros
sangrentos de Jerusalém, perturbando o sono e arrancando lágrimas de luto e de vergonha aos descendentes dos
Macabeus.
A hora anunciada pelos profetas soou no incorruptível relógio do tempo; as águias e os corvos, que se aninhavam
nas escarpadas rochas do Líbano, submissas aos mandados de Deus, cairam então sôbre o solo da cidade maldita.
Com os curvos bicos e as garras aduncas despedaçaram sem piedade as entranhas dos deicidas; e os que
sobreviveram a tão horrível catástrofe legaram aos filhos uma maldição eterna, uma vida errante e miserável, que se
prolongará até a consumação dos séculos.
Cumpriram-se as profecias: o templo de Sião já não tem os seus soberbos pórticos; as suas portas de ouro já não
se abrem ante os passos do sacerdote hebreu; os descendentes de Jacó já não vão pressurosos fazer os sacrifícios ante
os altares do invisivel Deus dos seus antepassados, e as harpas e os saltérios das filhas de Judá já não entoam doces e
poéticas melodias ao Santo dos Santos.
Moisés, o intérprete de Jeová, o teu sábio legislador, o teu dogma, já não tornará a guiar-te pelo deserto.
Debalde esperas, povo maldito, a vinda do Messias! Em teu seio teve o teu berço: cuspiste-lhe no rosto,
derramaste-lhe o sangue, e a sua maldição esmaga com o seu pêso a prosperidade de teus filhos. Não esperes, não; não
esperes que os campos de Gabaon se cubram outra vez com os louros de Josué e com os despojos sangrentos dos cinco
reis comandados por Adonisec.
Aquela batalha, que durou três dias sem se ocultar o sol, só pudeste vencê-la pela vontade de Deus, e Deus
amaldiçoou a tua raça.
Por isso é que a bandeira dos Macabeus nunca mais tornará a tremular triunfante pela inimiga Samaria, nem os
valentes filhos de Matias volverão a erguer as suas tendas sôbre as altas cumiadas do Garizim.
Débora já não fará justiça à sombra das palmeiras de Efraim, nem o canto de Jael, a forte mulher, reanimará nos
combates o valor dos filhos de Judá.
Ester, a formosa, nunca mais tornará a salvar o seu povo do furor dos inimigos; nem Elias, o raio de Deus, fará
chover do céu para acender a lenha verde do sacrifício.
As tuas conquistas não se estenderão do Mediterrâneo ao Eufrates como no tempo de Davi, o ungido do senhor;
nem teus filhos gozarão mais em paz à sombra dos salgueiros as imensas riquezas que o florescente reinado do rei dos
Cânticos lhes proporcionou.

3
Salomão, o amado do Senhor, nunca mais enviará os seus navios a Ofir, terra do ouro, nem passeará pelas ruas
da cidade santa com o seu carro de bronze de Corinto, no qual se lia em letras de diamantes: “Amo-te, querida
Jerusalém”.
A rainha do Meio-dia, a bela Nicaulis, jamais tornará, atraída pela fama da tua opulência, montada no seu
dromedário de Efra, e resplandecente como um mar de ouro, esmaltado de prata e esmeraldas, a presentear o teu rei com
três elefantes carregados de aromas perfumes, ouro em pó e pedras preciosas.
As tuas naus nunca mais explorarão o comércio do mar Vermelho, nem das costas orientais da África, como no
tempo de Josafá; nem teus filhos acharão no destêrro outro Zrobadel, que os guie até aos abandonados lares para que
reedifiquem o templo derrocado dos seus antepassados.
Povo d’Abraão, o teu nome é um opróbio, a tua pátria um detêrro! Grande foi o castigo que Deus lançou sôbre a
tua raça porém o teu crime ainda foi maior, pois derramaste o seu sangue, quando êle havia escolhido o vosso país para
a sua morada entre os homens.
Tapaste os ouvidos às suas palavras, e fechaste os olhos aos seus milagres; e aquelas palavras e aqueles fatos
ainda retumbam, perturbando até o teu nome.
Deus quis acolher-te debaixo das suas asas, como a carinhosa galinha aos pintinhos, e tu sacrificaste-o em
recompensa do seu amor inexgotável.
“Jerusalém, Jerusalém! Em ti não há de ficar pedra sôbre pedra” disse Êle, e a sua promessa cumpriu-se.
Jerusalém, Jerusalém! A tua passada glória é um montão de escombros, sôbre os quais ainda adeja a terrível
maldição de Deus, repetindo sem descanso: Chora, chora, cidade ingrata!

CAPÍTULO II

SÓ NO MUNDO

O céu estava carregado, a noite escura, e frio o ambiente.


O solitário mocho, qual sentinela noturna, soltava de vez em quando dos altos ramos das árvores um monótono e
prolongado pio, cujo eco lúgubre se ia perder nas profundidades dos barrancos.
O interminável ranger dos dentes dos famintos chacais do bosque de Efraim, despertava do seu ligeiro sono os
ferozes lôbos das brenhas da tribo de Manassés, os quais enviavam aos seus terríveis companheiros, nas asas do vento,
noturno, úivos estridentes e prolongados.
De tempos a tempos a lua rompia as espessas nuvens que a encobriam, deixando cair um raio da sua luz
prateada sôbre as altas cumiadas dos montes da Samaria, que estendem o seu dorso sombrio de leste a oeste, quais
fantasmas negros e encadeados.
O monte Hebal, mais escarpado, mais sombrio e imponente que os seus irmãos, erguia-se no meio daquela
cordilheira como um gigante ameaçador, amaldiçoando a impiedade dos rebeldes samaritanos.
O vento norte começou a sibilar por entre as sarças e as fendas das rochas, e em seguida grandes montões de
nuvens repletas de eletricidade estenderam-se rápidamente desde as plagas do mar ocidental até às margens pacíficas do
rio Jordão.
O surdo e longíquo trovão começava a ribombar pelo espaço anunciando com a sua voz possante aos filhos de
Semer a próxima tempestade que ia estalar sôbre as tuas cabeças.
A atmosfera ia-se condensando, e do seu húmido seio começaram a cair grossas gotas de água sôbre a seca terra
dos adoradores do bezerro, e à qual os judeus chamaram Terra da iniquidade.
Tudo anunciava uma dessas terríveis tempestades, que com tanta frequência turvam o céu da Palestina. Os
relâmpagos começaram a suceder-se com rapidez, e o trovão, percorrendo o espaço, fazia redobrar a sua voz potente.
Sôbre o alto cume do monte Hebal, à borda de um profundo precipício, como o ninho de uma águia, viam-se os
negros e toscos muros de um castelo de mesquinha e tétrica arquitetura. Esta sombra fortaleza, ali levantava pela
atrevida mão dos cuteus depois da dominação dos assírios, era habitada por uma quadrilha de malfeitores.
O chefe desta quadrilha, mancebo de apenas vinte anos, valente e temerário, conhecedor do terreno, e que tinha
sido levado por uma vingança à vida aventureira de salteador de estrada, zombava dos soldados de Herodes, e carregado
de despojos voltava sempre para o seu covil inexpugnável, onde repartia pelos companheiros os roubos que fazia.
Um relâmpago iluminou momentaneamente o obscuro horizonte, e ao clarão azulado da sua luz viram-se uns
homens que deslisavam pela escarpada e resvaladia encosta do monte Hebal, em direção aos barrancos de Garizim.
Os viandantes noturnos caminhavam, deixando após si a fortaleza de Hebal, sem fazerem caso da tempestade
que rugia pelo espaço, e sem se importarem com as densas trévas que os envolviam, nem com o caminho perigoso pelo
qual seguiam com passo acelerado e seguro.
Um outro relâmpago iluminou por dois segundos o espaço. O seu livido clarão incidiu sôbre os misteriosos
caminhantes com tétrica e fantástica luz. Pode-se vêr então que eram oito. Os trajos, misto de romano e hebreu, as
fontes requeimadas pelo sol, as barbas hirsutas e incultas, davam-lhes um aspecto verdadeiramente feroz.
Ia entre êles um mancebo, imberbe por assim dizer: vestia uma túnica pardacenta como os nazarenos. Na cabeça
trazia um turbante alto com bandas de linho, e uma camisola de lã de camelo servia-lhe de manto.

4
Com a mão direita apertava a curta lança de três pontas dos soldados de Cesar, e de sua cinta pendia-lhe o
comprido punhal dos samaritanos. Era o chefe dos bandidos. O valor temerário que sempre demonstrara havia-o
elevado entre os companheiros ao posto de capitão, apesar dos seus poucos anos.
Tinha uma estatura esbelta e fisionomia franca e enérgica. Os seus olhos pretos, velados por longas e espessas
pestanas, ora despendiam olhares irresistíveis, quando a cólera lhe devorava o coração, ora doces e compassivos,
quando a quietação se lhe hospedava no peito.
Nem uma só linha se encontrava no seu semblante que inspirasse o sentimento da repugnância. Podia-se dizer
que era quase formoso.
Ao vê-lo caminhar no meio, daqueles foragidos de olhar torvo e asquerosamente vestidos, dir-se-ia que era antes
um prisioneiro que o chefe de semelhantes homens.
O jovem capitão dos bandidos samaritanos chamavam-se Dimas, nome que trinta e dois anos depois devia ser
imortalizado no cume de Gólgota pelo Martir da Cruz, o Redentor do homem.
Dimas era filho de um honrado ourives de Jerusalém. Desde os mais tenros anos havia demonstrado um carinho
sem limites para com todas as crianças de menor idade que a sua, um profundo respeito pelos cabelos brancos, e uma
extrema veneração pelos cadáveres. Como bom israelita cresceu, aprendendo o ofício paterno, andando sempre rodeado
de rapazes do bairro e com os quais repartia suas frutas e brinquedos.
Quando algum defunto era levado pela rua em que vivia Dimas, êle acompanhava o fúnebre préstito até o vale de
Josafá, oferecendo-se sempre a ajudar os coveiros a colocar o cadáver no sombrio sepucro.
Um dia Dimas ficou orfão; o filho chorou a repentina e inesperada morte do bondoso pai, e com os olhos ainda
humedecidos pelo pranto, dirigiu-se à casa de um pedreiro para que êste fizesse uma modesta sepultura às cinzas do
autor dos seus dias. O ajuste foi feito por mil e duzentos òbulos (trinta mil réis, pouco mais ou menos). Porém qual não
seria a surpresa de Dimas quando ao chegar em casa, onde ainda o cadáver descansava no leito da morte, viu um
fariseu, um centurião romano e um malsim, a confiscarem a pequena fortuna do falecido joalheiro!
- Que fazeis em minha casa? – perguntou Dimas com assombro.
- Tomo, com autorização da lei e do poder romano, o que teu pai devia, respondeu o velho.
- O sôpro da morte emudeceu a bôca a meu pai, porém nosso jurar elo Deus invisível de Abraão, de Isaque e
Jacó, que êle nunca me disse nada a respeito da dívida que agora reclamas.
- Um fariseu que tem as barbas brancas e que curva a fronte ante a ara de Sião nunca mente. Estes que me
acompanham são testemunhas do empréstimo, que fiz a teu pai e de certo que tudo quanto possui não chega às duas
terças partes do que me deve.
Dimas, aturdido, com o coração traspassado pela dôr e pela surpresa, não encontrava em si palavras com que
responder àquele velho, que o lançaria na miséria.
As testemunhas afirmaram a verdade das palavras do fariseu, e o malsim continuou a confiscar tudo que via, sem
se importar com a atitude dolorosa do pobre órfão.
- Pois bem; levem o meu erário, todos os meus vestidos, a minha cama, se querem; não me oporei a isso. Sou
jovem e robusto e o trabalho não me atemoriza; porém concedam-me ao menos um favor.
- Fala! disse o fariseu com lacônico acento.
- Empresta-me dois mil óbulos: eu os restituirei logo.
- Dois mil óbulos! estás louco, mancebo? Como poderás pagar tão enorme quantia?
- Se fôr preciso trabalharei para ti tôda a minha vida.
- Não posso servir-te.
- Vende-me como escravo, se queres.
- Um fariseu israelita não póde vender um descendente da sua raça.
- Pela santa sinagoga, suplico-te que não me negues o que te peço.
- Acabamos com isto! Exclamou o fariseu com evidentes sinais de mau humor.
- Pensa não que fazer! volveu Dimas rangendo os dentes ao ver a dureza daquele velho.
- Ameaçar-me?
- Unicamente te aviso.
- Desprezo-te.
- Olha que êsse dinheiro que te peço é para enterrar meu pai!
- Os pobres não precisam de sepulcros pois há valas comuns.
- Miserável! bradou Dimas, agarrando nervosamente o velho fariseu pelo pescoço, tu e meu pai descerão ao
mesmo tempo à sepultura.
As testemunhas arrancavam o fariseu das mãos de Dimas, não sem custo, e duas horas depois o jovem órfão era
posto em uma escura masmorra da torre Antônia.
Dimas tinha nesse tempo dezoito anos, idade em que as paixões e os sentimentos não se ocultam nem
comprimem. Ao vêr-se só no mundo, encerrado entre quatro húmidas e lôbregas paredes, chorou como criança, porque
se lembrava dos carinhos de sua mãe e do cadáver insepulto do velho autor dos seus dias.

CAPÍTULO III

AJUSTE É AJUSTE

5
Tanto a dôr como o prazer tem o seu têrmo, e ambos se dissipam quando o coração se enfastia ou endurece.
O pobre órfão acabou por não ter mais lágrimas. Três meses permaneceu, esquecido dos homens em húmida e
sombria prisão, sonhando com a anelada hora da xingança.
U’a manhã, o carcereiro anunciou-lhe à liberdade. Dimas correu a sua casa e, por um vizinho soube que o corpo
de seu pai havia ficado por sepultar durante seis dias, e que por fim os coveiros o haviam lançado a uma vala, onde se
enterravam os cadáveres de leprosos.
Dimas ouviu a repugnante narração sem proferir uma só palavra. Nem uma lágrima lhe assomou aos olhos. O
coração estava empedernido; a vingança crescia dentro do peito como a vermelha papoula no meio de um campo esteril
e requeimado pelo sol do Egito.
Durante o resto do dia e da noite, andou sem norte nem rumo pelas ruas de Jerusalém. Ao amanhecer notou que
se achava no bairro da Bezeta ou a Cidade Nova. Suas estreitas ruas sujas e torturosas, pertenciam à rica e opulenta
Jerusalém; porém nem o canto de Sion, nem os perfumes dos jardins de Herodes, nem o luxo da cidade de Davi,
chegavam até êles. Eram habitadas por modestos mercadores de lã, por industriosos armeiros, por gente, enfim,
dedicada ao trabalho e ao comércio.
Dimas, cansado, sem saber para onde havia de dirigir os passos, recostou-se a uma porta apenas cerrada.
Maquinalmente fixou os olhos nas folhas reluzentes dos punhais, que pendiam de uma espécie de mostrador formado
com fios de cânhamo.
Dimas desejou comprar um daqueles punhais e com o olhar no mostrador, começou a procurar a arma para
executar a sua vingança.
- Quanto custa esta navalha? perguntou indicando uma comprida folha de Damasco que pendia de um dos fios.
- Dois silcos de prata, é uma arma excelente, respondeu o cutileiro tirando-a do mostrador.
Dimas examinou-a por um momento; mas, lembrando-se de que não possuia um miserável óbulo, disse ao
vendedor:
- Queres fiar-me esta navalha? Dar-te-ei por ela vinte onças romanas, e isto antes que a lua nova alumie com os
seus raios o alto minarete da terra de Davi.
- E quem me responde pela tua palavra? Bem sabes que nunca te vi.
- Responde-te a memória de meu falecido pai, a quem vou vingar com est’arma, e sôbre cuja cabeça juro
entregar-te, caso não morra na emprêsa, a quantia que te oferecí, que é, como sabes, vinte vêzes maior que aquela que
me pediste.
As palavras de Dimas tinham um cunho de verdade irrefragável. O cutileiro compreendeu que se passava no
coração daquele moço o quer que fôsse de estranho e, por um dêsses impulsos inexplicáveis em um judeu, fiou-se na
palavra do matutino comprador, pois previa um negócio excelente naquela venda.
- Se me enganares, peor para ti! disse, entregando-lhe a navalha; se tiveres palavra, então que Jeová te proteja e
te salve dos perigos a que a tua vingança te vai expôr.
- Obrigado! falou o órfão. Mas antes de separar-nos, devo dizer-te o meu nome, para que conheças o teu
devedor. Chamo-me Dimas; algum dia ouvirás falar de mim, pois estou certo que êste nome há de soar bastante pelas
doze tribos.
E, sem esperar resposta, caminhou rua adiante, atravessou a porta das Cabras e foi sentar-se à sombra de um
robusto sicômoro, de cuja fruta comeu com apetite, pois bastantes horas havia que não tomava alimento algúm.
Em seguida empunhou o cabo da navalha, e vibrou um forte golpe no tronco da nodosa árvore. A folha da arma
enterrou-se umas três polegadas.
- Oh! Tem boa tempera! disse consigo, nem sequer dobrou a ponta: bem póde entrar toda a folha de um só golpe
na garganta ou no coração daquele que atirou com o cadáver de meu pai aos cães da vala dos leprosos.
Dois dias depois, junto à torre de Siloé, os soldados de Herodes encontraram o cadáver de um velho. Tinha uma
ferida profunda na garganta e outra, exatamente igual no coração. Sôbre a fronte qual estava escrito com sangue:
“Dimas vingou o cadáver insepulto do seu pai com a morte dêste fariseu e jura, pela sua memória, perseguir os
descendentes dêle até à quarta geração”.
Depois deste atentado, o jovem órfão fugiu da cidade sacerdotal, refugiando-se nos montes de Rama. O cadáver
profanado do autor dos seus dias impeliu-o a cometer o primeiro assassínio. A fome obrigou-o a praticar o primeiro
roubou.
Dimas arrebatou um cabrito a uns pastores. Daí em diante começou a vaguear como um malfeitor pela mais
fragoso dos bosques. De noite abandonava as guaridas incultas para assitar os indefesos caminhantes; porém nunca o
infeliz órfão, que aborrecia o sangue por instinto, empregou outras armas além da ameaça para despojar as vítimas.
Entretanto, a lua nova aproximava-se e Dimas não tinha pago ainda no cutileiro as vinte onças romanas que lhe
devia. Jurara pagá-las pela memória do insepulto cadáver de seu pai, e era necessário cumprir o juramento. Mas como,
se não possuia sequer u’a miserável moeda de cobre?
Dimas, sentado à borda de um estreito barranco, começou a meditar sôbre a sua sorte no futuro. Havia dado o
primeiro passo no caminho do crime. Suas proezas vandálicas não passavam ainda de miseráveis roubos, feitos a
pastores indefesos, com o fim único de aplacar a fome. Vivia só, errante; e meditando em sua consciência, começou a
compreender o que havia feito.
Era impossível retroceder e via que era indispensável que as suas aventuras fossem em maior escala.
- Salteador por salteador, disse consigo, busquemos então o ouro. Tanto se arrisca a vida roubando um sestércio
1 como um talento2 hebreu. Tanto se perde a honra roubando uma pomba como um boi.

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Após esta resolução, Dimas levantou-se, e agitando os compridos cabelos com um movimento enérgico de
cabeça, lançou um altivo olhar pela solidões que o cercavam e, afagando o cabo tosco da navalha, murmurou:

1
moeda de cobre de pouco valor.

- Quando se estima pouco a vida, o homem pode chegar a ser muito. Sim, é preciso que eu seja o rei dos
bosques, o terror de Israel.
Nesse tempo andava pelos montes da Samaria uma quadrilha de bandidos que, à sombra das contendas civis que
agitavam as tribos de Israel, cometiam com incrível audácia tôda a casta de crimes. Debalde Herodes enviava seus
soldados para os exterminar: os bandidos da Samaria eram invisíveis, apesar do coração da Palestina ser o teatro da suas
sangrentas expedições. A audácia dos bandidos samaritanos não tinha limites. As ruas de Jerusalém presenciaram
milhares de vêzes cenas de repugnante barbaridade, praticadas pelo punhal homicida dos indômitos habitantes do monte
Hebal.
Os mercadores do Egito, de Damasco, de Tiro, e Sidon, viam-se frequentemente assaltados ao meio dia nas
estradas mais concorridas.
As devastadoras correrias dos terríveis bandidos, estenderam-se desde a tribo de Judá, à tribo de Aser; e não
poucas vêzes, atravessando o Jordão, haviam levado o terror e o saque até aos bosques de Efraim. Os montes de
Samaria, com as suas profundas cavernas serviam-lhe de refúgio para se esquivarem às perseguições dos soldados de
Herodes. O sombrio e solitário castelo, que coroava o topo do monte Hebal, servia-lhes de quartel de inverno.
Dimas era valente: perdendo a esperança de reingressar na sociedade dos homens honrados, resolveu buscar a
dos ferozes salteadores da Samaria. Por conseguinte, depois de quatro dias de marcha forçada chegou à raiz do terrível
monte. Ninguém se atrevia a tanto naquele tempo. O desespêro centuplicava o ânimo do filho do ourives
jerossolimitano.
Dimas deteve-se a uns trinta passos da solitária fortaleza. A subida era escabrosa e fatigante. Desfalecido pelo
cansaço, o jovem hebreu sentou-se em uma pedra. Achava-se só: nem o canto das aves, nem a voz humana
interrompiam a solidão profunda dos precipicios que o rodeavam.
Dimas parecia o anjo do mal, quando depois da sua queda se sentou á borda do abismo a contemplar por um
instante a horrível mansão, que Deus lhe concedia em castigo da sua louca soberba.

CAPÍTULO IV

OS BANDIDOS

Nem uma só nuvem maculava o claro e formoso céu da Palestina. O sol no seu zeni, e banhava com a radiante
luz dos seus raios as escabrosas cordilheiras e as férteis planícies da Samaria. E, lá ao longe, para o levante, estendia-se
uma nuvem pardacenta que, à semelhança de uma longa cobra de gaze, mergulhava a cabeça enorme nas azuladas águas
do lago de Genezaré, enquanto a sua enroscada cauda ia abismar-se nas águas pesadas e malditas do mar Morto.
Esta cinta de flutuante renda, esta manga de pó que parecia brotar da terra, eras as névoas do Jordão que iam
subindo para o céu em vaporosas e húmidas emanações.
Dimas contemplou em silêncio o panorama grandioso que se dilatava ante os seus olhos. Sua vista fixava-se no
sombrio e solitário castelo, cuja fechada porta, ameias desertas e desmoronados muros, lhe davam o aspecto de uma
dessas mansões malditas, cujas tradições sangrentas afastavam com terror os tímidos habitantes das aldeias e os simples
e supersticiosos pastores.
Dimas, firme no seu propósito, depois de certificar-se de que o punhal permanecia oculto nas dobras da túnica,
desprendeu do cinto uma larga funda, formada de folhas de palmeira seca, colocou nela uma pedra de três polegadas de
diâmetro e, fazendo-a girar em tôrno da cabeça, atirou com o projétil para dentro do castelo
Esperou alguns instantes, porém ninguém assomou a cabeça pelas frestas dos torrões.
Dimas repetiu por três vêzes a mesma manobra, obtendo sempre o mesmo resultado.
- O castelo está solitário – penso. E aos seus lábios assomou um singular sorriso:
- Não seria mau que me apoderasse dos tesouros dêsses raposos barbados que fazem tremer só com os seus
nomes os ímpios e afeminados romanos, os torpes e covardes herodianos e, os indefesos mercadores do Nilo, do
Eufrates e do Jordão, pensou.
Dimas passou várias vêzes a mão pela fronte e, tirando a comprida navalha, principiou a afiar a ponta do
instrumento com que tinha vingado a morte do pai.
- Vamos, valor, Dimas! A morte é um instante: a vida é longa e pesada quando se tem fome e se dorme ao
relento.
Dirigiu-se resolutamente para o castelo, a cuja porta bateu três vêzes com uma pedra que apanhara no chão.
Ninguém respondeu. Então, seguro de que o castelo estava abandonado, examinou com atenção o muro que o cercava e,

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achando um pedaço derruido pelo qual se podia escalar a fortaleza mais fácilmente, começou a trepar pela muralha
com o punhal entre os dentes.
Se lhe tivesse fraqueado uma das mãos, se se despegasse uma pedra, com certeza sua morte seria inevitável, pois
o corpo, rolando no abismo, ter-se-ia desfeito em sanguinolentos pedaços de encontro às salientes arestas da rocha.
Por fim, depois de incalculáveis dificuldades, Dimas chegou à plataforma da muralha com o rosto inundado de
suor e a mãos ensaguentadas. Em vão percorreu depois os estreitos passadiços, as desertas habitações da tétrica
fortaleza: o desejado tesouro com que sonhara não lhe foi possível encontrar. Indubitàvelmente, os bandidos deviam ter
outro lugar onde ocultavam as rapinas. Depois de três horas de minuciosas buscas, Dimas desesperou de o encontrar.
- Tudo me indica, disse êle consigo, que esta guarida é habitada pelos bandidos samaritanos. Vi ossos frescos de
carneiro pelo chão e archotes resinosos apagados de fresco. É o mesmo: vim por ouro e não o encontro; esperarei que
regressem, e depois eles mo darão. De todo jeito preciso de um albergue e achei êste castelo.
Assim pensando dirigiu-se para uma estância que já antes tinha visto e que, segundo os seus cálculos, devia ser a
cozinha e a sala de jantar dos bandidos. Lá, começou cuidadosamente a revistar todos os escaninhos escuros da cozinha,
e não levou muito tempo a descobrir uma perna de carneiro suspensa em um gancho de ferro.
Seguindo avante nas suas investigações, achou algumas ânforas com água, diversos odes de vinho e alguns sacos
de milho em várias concavidades praticadas na parede, e que à primeira vista não tinha distinguido por causa da
obscuridade. Era a despensa dos bandidos, e Dimas tratou de aproveitar o tempo. Resolvido a esperar os salteadores,
encaminhou-se para o fogão, que se achava, segundo o costume dos hebreus, no meio da cozinha. Com grande alegria,
viu que entre as cinzas brilhavam algumas brazas,
A um canto da lareira havia algumas achas de lenha seca e archotes resinosos. Dimas reanimou o fogo e acendeu
um archote, porque naquele lugar a claridade era pouca. Depois colocou a perna de carneiro junto ao fogo e, enquanto a
assava, amassou um pão com a farinha amarela do milho e a água das ânforas.
Meia hora, depois, o moço aventureiro comia tranquilamente e bebia o delicioso sumo da uva, sentado na
cozinha do castelo. Achava-se nesta plácida ocupação o ousado Dimas, quando distinguiu um ruído surdo nas
profundidades da terra, mas continou a interrompida ceia, encolhendo os hombros com indiferença. O ruído
aproximava-se cada vez mais. Dir-se-ia que falavam muitos homens, arrastando ao mesmo tempo pesados fardos por
baixo da terra.
De repente ouviu-se um rumor áspero e singular no pavimento como se tivessem corrido um ferrolho ou uma
tranca de ferro humedecido.
O órfão continuou a comer como se nada tivesse ouvido; só por precaução pegou no punhal.
De repente abateu-se um pedaço do pavimento, e Dimas viu ao seu lado uma abertura de cinco pés de diâmetro.
Em seguida duas mãos apoiaram-se à borda daquela abertura e pouco depois, apareceu o corpo de um homem, que
saltou com ligeireza para dentro da cozinha.
Sem reparar em Dimas, porque depois de saltar inclinou o corpo para o buraco, estendeu os braços, aos quais se
agarram outras mãos. Puxou-as para si com fôrça, e outro homem saltou da cova à cozinha, como se a terra os
vomitasse, quatorze foragidos, de aspecto repugnante, de sujo e descomposto trajo.
O primeiro efeito que produziu nos bandidos a presença de um homem que tranquilamente comia na sua
impenetrável guarida, foi o da surpresas. Porém voltando a sim deram um rugido e desembainhando os compridos
punhais, arrojaram-se sôbre Dimas. Êste pôs-se em pé de um salto, e retrocedendo alguns passos com a navalha na mão,
bradou com firmeza:
- Vamos, companheiros! Os lobos não devem comer-se uns aos outros. Além disso a ingratidão é um defeito
desprezível. Pelo santo altar de Sion! Preparei a ceia para vos poupar trabalho, e quereis matar-me em paga do serviço
que acabo de vos prestar?
Os bandidos entreolharam-se com assombro.

CAPÍTULO V

DIMAS EMPENHA SUA HORA PARA PAGAR O SEU PUNHAL

Entre os salteadores, entre essa gente que arrisca a vida a todo momento e crava o punhal no peito do próximo
com a mesma indiferença com que esgota um copo de vinho, entre essa raça de miseráveis, que pululam nos presídios e
morrem no cadafalso, nada é tão digno de admiração, assombro e até respeito, como o valor pessoal.
Aquele moço imberbe, criança quase, fitava-os com olhar sereno e sorriso nos lábios. Tinha o coração e o
espírito tranquilo ante as afiadas lontas dos punhais que lhe ameaçavam a existência.
Só um homem ousado podia ter assaltado aquela mansão de horror, que êles habitavam, aquele teatro das suas
cenas vandálicas, o espanto dos camponezes samaritanos.
Essas reflexões perpassaram indubitávelmente pelas obtusas e selvagens imaginações dos bandidos e, sem o
poderem explicar, sentiram certa simpatia, certa admiração para com o atrevido mancebo que desafiava o seu poder, e
que tinha com a sua audácia cativado os corações daqueles homens empedernidos por uma vida de crimes e de sangue.
- Ninguém lhe toque! Exclamou um bandido cuja barba branca, gesto altivo e luxuoso trajo diziam claramente
que devia ser o capitão.

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E dirigindo-se ao jovem aventureiro, falou:
- Quem ès?
- Um companheiro vosso; um rapaz que quer encetar o lucrativo ofício que professais; que, admirado das vossas
proezas, deseja que o aperfeiçoes com o vosso saber nos segredos da arte.
Os bandidos soltaram uma ruidosa gargalhada.
- Rides? Atalhou Dimas imitando a hilaridade dos fascinoras. – Estimo, pois vejo que já principiamos a ser
amigos. Vou, portanto, pedir-vos um favor. Quereis emprestar-me vinte onças romanas?
Os bandidos entreolharam-se como querendo dizer: “não já dúvida, o rapaz está doido”. Só o capitão não
demonstrou espanto com as palavras de Dimas. Seus olhos, penetrantes como os da ave de rapina oculta nos matagais,
fitavam-se de um modo tenaz na franca e altiva fisionomia do mancebo.
- Compreendo o vosso espanto, volveu Dimas, vendo que ninguém lhe falava. Antes de pedir dinheiro devia ter-
nos explicado o motivo que me obriga a solicitar um empréstimo, logo pela primeira vez que tenho a honra de tratar
convosco; porém pelo sombrio Balaal, a quem todos pertencemos, suplico que vos senteis, e não me olheis com olhos
espantados.
Dimas contou em poucas palavras o que desde a morte de seu pai havia sucedido em Jerusalém e seus arredores.
Ao terminar a narração, o velho capitão, que até então só descerrara os lábios para impedir que a sua gente fizesse mal
ao atrevido hóspede, deu um murro terrível nos joelhos e, deitando nas mãos de Dimas um punhado de moedas de prata,
exclamou com voz sonora:
- Toma e paga a tua dívida, mancebo, pois é sagrada. Se fores ingrato, que Belzebu te envie às suas regiões
asquerosas, e sejas devorado por elas; se, porém, fores leal, então que Gad2 te eleve sôbre os raios da sua roda e te
proteja o corpo dos golpes do ferro homicida.
- Obrigado, capitão. Dimas te mostrará que não semeaste o benfício em terra infértil.
- O meu nome, repôz o velho capitão, é Abadon3 Sou samaritano; não esqueças, pois, o que vou dizer-te: com a
mesma facilidade estenderei a mão para proteger-te como para exterminar-te.
- Jamais o olvidarei. Agora dá-me licença para partir; antes de quatro dias será a lua cheia, e daqui a Jerusalém
há três longas jornadas.

1 Belsebuth ou deus das moscas, adorado pelos filisteus. Chamavá-se assim porque estava sempre coberto de moacas por causa de se achar incessantemente borrifado de sangue. (Lamy,
Aparato Bíblico, liv. III, Cap. I)
2 Ídolo da fortuna
3 Anjo exterminador

- A paz de Deus seja contigo durante a viagem, falou Abadon.


- E acrescentou, dirigindo-se a um dos bandidos:
- Uries1 , acompanha este rapaz pelo subterrâneo à estrada dos romanos.
- Devo-lhe vendar-lhe os olhos? Perguntou Uries ao seu capitão.
Abadon olhou um instante para Dimas: este manteve aquele olhar com tal nobreza e serenidade, que o capitão
respondeu:
- Não é necessário; fio-me na sua palavra; porém conduze-o pelo caminho comprido.
Uries levantou o alçapão e desapareceu por êle, acompanhado de Dimas. Ambos por espaço de meia hora
caminharam por um subterrâneo. O caminho era escuro, atmosfera pesada e salitrosa, refrescando com os seus vapores
as frontes de Dimas e de Uries.
- Por Jacó! exclamou Dimas, se não me dás a mão para guiar, com certeza vou deixar os miolos em alguma
destas rochas que ameaçam cair sôbre as nossas cabeças.
Segue-me sem receio; o piso é suave, e a abobada é tão alta que Golia e Saff, se vivessem, poderiam passar sem
inclinar a cabeça.
E dizendo isto, o bandido estendeu a ponta do seu manto a Dimas.
O jovem aventureiro sentia de vez em quando sôbre o rosto um ar fresco, que lhe indicava que alguns buracos
abertos na rocha permitiam a renovação do ar n’aquele subterrâneo.
São respiradouros essas correntes de ar que se sentem de tempos em tempos?
- São caminhos que vão ter a outras saídas. Oh! Se os soldados de Herodes chegam algum dia a descobrir a nossa
guarida, há de ter bastante trabalho para darem conosco.
Dimas compreendeu que tratava com homens prudentes e entendidos no ofício, e isto foi um motivo de jubilo
para êle. Por fim o bandido deteve-se, dizendo:
- Chegamos. Ajuda-me a erguer esta pedra....
Dimas obedeceu, e pouco depois via os raios da lua, que brilhavam como fios de prata sôbre o extenso vale que
se dilatava aos seus pés. O mancebo olho em tôrno para reconhecer o terreno.
- Não vejo o castelo, disse.
- Fica da parte oposto do monte.
Começaram a saltar da rocha em rocha em direção à planície. A noite estava clara e tranquila, e o zéfiro noturno
apenas tinha fôrça para gitar as folhas das árvores.

9
1 Fogo do céu.

- Tu, que has de ser prático no curso dos astros, sabes a que horas estamos da noite? perguntou Dimas.
- É cedo; achamo-nos apenas à cabeça de osgelis;1 antes que chegue a hora do cantar do galo poderás encontrar-
te em Betel.
Uma vez ali, caminha sempre para o nascente, marginando um arroio que te conduzirá ao Jordão, em seguida
torce em direção ao sul até encontrares Jericó; de Jericó a Jerusalém ninguém se perde, pois a estrada romana conduzir-
te-á à cidade santa. Porém vou dar-te um conselho. As estradas feitas pelos romanos, que Deus confunda, não nos
convém tanto como as veredas intransitáveis dos lobos. Acredita-me, mas vale caminhar só, pelos bosques, que
acompanhado pelas estradas do Cesar.
- Obrigado; seguirei teu conselho.
- Então a paz seja contigo; já chegámos ao lugar em que é preciso separar-nos. Segue êsse atalho que te
conduzirá a Betel. A noite está clara e, dormindo nós, a terra de Samaria está mais segura que o palácio do Idomeu.1
Antes de nos separar-mos quero fazer-te uma pergunta. Quando eu voltar, por onde devo introduzir-me no
castelo?
- Pela muralha, como fizeste hoje. Se não estivermos lá, espera.
- Esta bem. Até daqui a alguns dias.
- Que Jeová te guie, e que tudo saia à medida dos teus desejos.
- O mesmo te desejo eu.
Dimas tomou o atalho que conduzia a Betel, e Uries principiou a subir a encosta do monte em direção à sua
guarida.
Dimas, enquanto caminhava, dizia a si mesmo, acariciando as moedas de prata, que tão generosamente lhe havia
emprestado o velho capitão.
- A minha primeira aventura saiu melhor do que esperava. Com êste dinheiro poderei honrar a minha palavra e,
se encontrar o cadáver de meu pai, dar-lhe-ei uma sepultura digna dêle. Vamos, aceleremos o passo, pois, como diz o
rifão “quem paga descansa”.

CAPÍTULO VI

OS CADÁVERES

Dimas seguiu o conselho de Uries. Atravessando os atalhos mais ínvios, chegou à torrente do Cedron três dias
depois, e entrando na cidade sacerdotal pela porta judicial, dirigiu-se para a baixa Jerusalém, que era

1 Herodes o grande

onde morava o cutileiro. O confiado artista achava-se ocupado em afiar a ponta de um punhal, com o peito inclinado
sôbre um rebolo, e bem longe por certo de imaginar que o seu devedor viria interrompê-lo no trabalho a que se
entregava.
- A paz de Deus seja contigo; disse Dimas entrando.
- O cutileiro ergueu a cabeça, sem suspender o movimento do pé direito que fazia girar o rebolo, e fixou um
olhar indiferente no mancebo.
- Não me conheces? falou Dimas.
- Parece-me que já te vi em alguma parte.
- Há quinze dias, aqui, fizeste-me um favor, e venho pagar-te.
- Ah! Exclamou o vendedor de punhais, recordo-me.
- Por sinal que me ofereceste...
- Vinte onças romanas. Aqui as tens, ajuntou Dimas.
- Tirando da bolsa as moedas foi colocando-as sôbre u’a mesa.
O tilintar da prata impressionou agradávelmente os ouvidos do judeu, a julgar pelo sorriso que lhe animou o
rosto.
- Por Jacó e minha mãe! Não esperava que cumprisses a palavra!
- Fizeste mal em desconfiar.
- Tens razão; no entanto as tuas palavras indicam-me que fizeste fortuna, o que estimo.
- Herdaste de algum parente?
- Não.
- Encontrarias por fortuna algum tesouro no velho palácio de Salomão?
- Também não. A minha fortuna tem uma origem que não posso revelar; porém se não se riscar da tua memória o
meu nome, algum dia a saberás. Chamo-me Dimas, não o esqueças. Grava bem na memória as cinco letras de que o
meu nome se compõe.
- Deus de justiça! Porventura serás o assassino do sacerdote Isaac, d’esse velho avarento e de má condição, que
os céus confundam?

10
Sim, assassinei-o, porque assim devia fazê-lo: a navalha que me vendeste foi o instrumento de que me servi.
Agradeço-te em nome de meu pai, e em meu nome entrego-te as vinte onças romanas.
Dimas, sem esperar resposta, tomou pela rua adiante, deixando o cutileiro absorto e aturdido.
O jovem aventureiro encaminhou-se para o cemitério dos leprosos onde, segundo lhe tinham dito, haviam os
coveiros enterrado o cadáver do pai. Restavam-lhe na bolsa mais de dois mil óbulos e, firme no seu propósito, queria
dar honrosa sepultura ao autor dos seus dias. Porém tudo foi em vão: três horas de escrupulosas pesquizas empregou
naquela hediondo esterquilínio, e por fim perdeu a esperança de achar os restos do pai, que talvez houvessem servido de
pasto aos abutres e corvos que esvoaçam pela pesada atmosfera dêsses lugares tão repugnantes.
Duas grossas lágrimas assomaram-lhe às palpebras e erguendo os olhos ao céu, murmurou:
- Meu pai e senhor, tu foste bom durante a tua vida, e enquanto vivi ao teu lado fiz sempre por imitar a tua honradez.
Porque motivo ao veres a angústia de teu filho, não me chamas para que possa dar-te sepultura digna de ti?
- Tornou a curvar-se sôbre a terra, e com auxílio da navalha continuou a interrompida e penosa tarefa de
remover aquele montão de ossos e corrompidos cadáveres meio insepultos, que os seus pés calçavam.
- Dimas procurava o cadáver do seu pai como se aquela seca e estéril terra ocultasse um tesouro. O amor filial
fez-lhe esquecer que os raios abrazadores do sol lhe caiam perpendicularmente sôbre a cabeça. Aquele jovem moço
valente e formoso, coberto de suor, abstraído no trabalho, indiferente a tudo, era na verdade um filho modêlo.
- Cada cabeça que assomava à flor da terra era uma esperança; porém quando os seus olhos, ao buscarem as
feições queridas do velho pai, se encontravam com o lívido e decomposto cadáver de um desconhecido. Dimas então,
exalando um doloroso gemido, continuava a tarefa. Aquele gemido doloroso era uma esperança que lhe fugia do
coração, esperança vencida pela realidade de um desengano.
- Morto de fadiga, sem alento, o pobre aventureiro deixou-se cair à sombra de um salgueiro, sem esperança de
poder achar o cadáver do seu pai. Ali, só com a sua dôr, assaltou-o uma idéia terrível, e um sorriso feroz assomou aos
seus lábios.
- - Sim disse consigo, é isso; esta noite irei ao vale de Josafá: procurarei o túmulo opulento do fariseu, dêsse
velho cruel que infamou o cadáver de meu pai; arrancarei a lousa que o cobre, tirarei o corpo embalsamado dêsse
miserável, e deixa-lo-ei neste lugar imundo para que sirva de pasto às carnívoras raposas que lhe despedacarão a carne
maldita, enquanto o noturno onocrótalo1, pousando as férreas garras na sua impura fronte, batendo as negras asas sôbre
a sua insepulta cabeça, satisfeito o seu pio horrível, e preprará para o festim os dois estômagos, famintos de carne
humana.
-
-
1

-
-
- Dimas, depois de proferir tão terrível ameaça, meneou a cabeça, como se as furias com o seu ardente e impuro
hálito. Com os lábios entreabertos, os olhos brilhantes e encovados, o rosto decomposto, o belo semblante de Dimas
tinha o que quer fosse de terrível e infernal.
- - Eu era bom, falou, e tu, fariseu, impeliste-me para a senda do crime. Um mar de sangue estende-se aos meus
pés; minha vida será infame; minha morte, a cruz e o meu corpo feito em pedaços talvez seja exposto nas estradas. De
tudo isto tens a culpa, avarento de coração de pedra. Maldito sejas! Maldito sejas como a mulher impura até à décima
geração, a qual eu juro exterminar, enquanto o meu braço tiver fôrça para empunhar o punhal vingador!
- E Dimas, deixou cair a cabeça com abatimento sôbre as mãos. Assim permaneceu por bastante tempo. A brisa
da tarde começou a gemer por entre os ramos das árvores, e êle ainda permanecia imóvel.
- O zéfiro noturno suspirou por entre as plantas do campo, e Dimas não se movia do lugar onde estava.
- A lua banhou com os seus dúbios raios a cilíndrica e alta torre de David, e Dimas continuou na mesma atitude,
mudo e silencioso. As cegonhas, dos altos mirantes de Jerusalém, começaram a entoar os eus sentidos cantos, e um
mocho, pousando sôbre os ramos da árvore ao pé da qual se achava o jovem órfão, soltou ao vento o seu lúgubro e
tétrico pio.
- Então Dimas ergueu-se e olhou em tôrno de si, como se despertasse de um sono profundo. O rosto havia
perdido a ferocidade que pouco antes demonstrara. O olhar, triste e húmido ainda pelas lágrimas de fogo que derramara,
era doce e inofensivo.
- De repente, um suspiro angustioso e prolongado escapou-se-lhe do de seu peito.
- - Não... mil vêzes não! Jamais profanarei um cadáver, jamais deixarei sem proteção as crianças e os velhos. A
velhice e a infância serão sempre veneradas por Dimas o bandido. Perdôa, meu pai, vinguei-te em um corpo vivo.
Deixa-me respeitar a matéria inerte que serve de sustento aos vermes da terra.
- Dimas, durante as horas da triste meditação decorrida junto daquela árvore, mantivera uma luta horrível entre o
desejo da vingança e os bons e generosos instintos do seu coração juvenil; e o coração saira vencedor. Desistindo dos
seus planos, só um caminho se abria ante os seus passos: o dos montes de Samaria. Dirigiu-se, portanto, para êles,
chegando quatro dias depois, ao entardecer, junto dos muros da inexpugnável fortaleza dos bandidos e entro nela
como da primeira vez.
- Quando se achou dentro, dirigiu-se para a cozinha, e achou-a deserta. Estendeu-se no chão e esperou.

1
O onocrótalo é o corvo noturno dos hebreus e dos gregos. Têm nas fauces outro estômago qu enche depois de farto para ruminar a carne nos
momentos de fome. O seu pio é triste e horrível; às vezes com o pescoço na água imita o zurrar do onago.

11
Dimas tinha dezoito anos e o sono, nesta idade, não tarda a fazer cerras as palpebras. O jovem aventureiro
adormeceu com a mesma tranquilidade como se achasse debaixo do teto hospitaleiro da casa de seu pai, quando o sono
inocente da adolescência sorria sôbre a formosa cabeça.
Estava a noite bastante adiantada quando o alçapão, que os nossos leitores já conhecem, se abriu para dar
passagem aos companheiros de Abadon. Desta vez vinham carregados de despojos e, nas suas selvagens e ferozes
fisionomias, brilhava o contentamento.
Como na cozinha estava escuro, não repararam em Dimas. O capitão mandou acender luz, e pouco depois as
negras paredes coloriram-se dessa claridade avermelhada que os archotes resinosos expelem. Foi então que viram
Dimas, que dormia tranquilamente no duro e frio chão da cozinha.
Cumpriu a palavra, disse Abadon, dirigindo-se aos seus. Parece-me que poderemos tirar proveito deste rapaz.

CAPÍTULO VII

O BATISTMO DE SANGUE

O órfão de Jerusalém pertenceu deste aquele dia à terrível quadrilha dos samaritanos. Sua juventude, seu valor e
sua boa presença foram para os bandidos poderosos motivos para que todos o olhassem com certa deferência, que não
escapou à perspicacia do jovem aventureiro. Além disso, Abadon, velho encanecido no crime começou a tratá-lo como
filho. Seu coração empedernido nunca havia amado, e aquele belo e temerário moço, que o acaso tinha lançado no seu
caminho, havia-lhe feito sentir essa suave simpatia, êsse afan desinteressado e puro, que os pais sentem pelos filhos.
Dimas, medianamente instruido, nas Escrituras sagradas por um rabino, amigo inseparável de seu pai, tinha a
vantagem de saber ler e escrever o hebreu com bastante correção.
Algumas noites, quando os esculcas não traziam notícias favoráveis e era preciso permanecer encerrado na
inexpugnável guarida, Dimas, que tinha comprado em Sichem o Pentateuco1, lia-lhes as sagradas narrações que o
historiador dogmático, o insigne filósofo, o admirável teólogo, o inspirado profeta Moisés havia escrito para os
descendentes de Abraão.

A sublime inspiração do Eterno, que transmitiu ao povo israelita o seu ilustre caudilho e libertador, entretinha
agradávelmente aquele punhado de homens que o crime havia expulsado da sociedade, obrigando-os a viver nas
brenhas mais recônditas como as carniceiras feras do deserto.
As vêzes, quando Dimas, com meigo sentido acento lhes transmitia as sábias narrações do legislador do Sinai, os
ferozes bandidos prorrompiam em espontâneas aclamações, e a admiração para com o seu jovem companheiro
chegava até ao entusiasmo.
Então os bandidos aconselhavam Dimas abandonar o seu nome que nenhuma significação divina tinha entre os
hebreus, e tomar outro que expressasse uma condição celeste ou honrosa para aquele que o usasse.
Todos os sentimentos como um filho, gritava um bandido: ponhamo-lhe o nome de Davi2, que é o nome que lhe
corresponde. Não, não, dizia outro. Jeová enviou-o para o meio de nós, e portanto deve chamar-se Samuel3.
Dimas ouvia com o sorriso nos lábios as contendas dos seus companheiros, e acabava por convencê-los que o
nome posto pelo pai era melhor e o único que devia trazer um filho.
Assim decorreram alguns meses. Dimas foi insensivelmente incutindo naqueles corações algumas idéias
humanas, fazendo-lhes ver que nada podia engrandecê-los tanto aos olhos dos israelitas como converter as suas
vandálicas emprêsas em heroicas e temerárias proezas de soldados independentes.
Uma guerra de partido contra Herodes e os romanos era o que Dimas, a coberto dos montes de Samaria, queria
compreender; porém os seus ferozes companheiros não se decidiam a abandonar fácilmente os costumes antigos. O
roubo e o crime nutriam-se no seu peito impuro, contaminando-lhe o sangue, e quando se encanece em uma profissão,
adquirem-se certos hábitos que chegam a encarnar-se no mesmo ser, formando uma segunda natureza, que só abandona
o indíviduo quando exala o último sôpro da vida.
Dimas conheceu que para conseguir seu intento era preciso deixar correr o tempo e os acontecimentos, ou
rodear-se de nova gente por conseguinte resolveu esperar melhor ocasião.
Uma noite os bandidos souberam pelos seus esculcas que uma caravana que conduzia a Jerusalém preciosas
mercadorias de Tiro, havia acampado em um barranco das cordilheiras de Jope.
Abadon tratou de a assaltar, e saiu da inacessivel guarida, seguido dos seus terríveis companheiros.

1
Pentateucho, palavra grega que significa cinco volumes e que são: o Gênesis, o Exodo, o Levítico, os Números e o Deuteronomio. É o único
livro que os samaritanos veneram, tendo-o como divino e como único.
2
Amado
3
Posto por Deus

12
A noite estava clara e serena; brancas e vaporosas nuvens como pequenos blocos de neve deslizavam pelo
límpido horizonte, salpicando o diáfano azul do céu com as suas poéticas e caprichosas ondulações. As vêzes a lua,
como as virgens de Sião, lançava os seus dúbios raios através de um aéreo e delicado véu de renda. Era uma noite
formosa e poética, cheia de encanto, de mistério e doçura, e em que o céu sorria e a terra exalava os perfumes do seu
seio.
Uma noite serena dirige à alma o imenso tesouro de encantos cheios de volúpia, enquanto a beleza do dia só nos
fala aos sentidos. O sol arranca lágrimas dos olhos e a lua, suspiros do coração. A noite representa a bondade do
Criador, e o dia o poder e a fôrça de Deus; por isso, enquanto uma chora lágrimas doces e perfumadas como o rocio, o
outro fortalece e abraza a terra com os seus raios de fogo.
Sem as formosas brisas da noite, sem a viração perfumada do zéfiro noturno, o mundo seria um árido deserto,
um paramo inabitável.
Os salteadores deslisavam de rocha em rocha em direção ao ponto indicado pelos esculcas. Seria meia noite
quando se detiveram no cume de um outeiro.
Uriés, que era o mais conhecedor do terreno, separou-se dos companheiros para explorar as cercanias do outeiro,
pois segundo os seus cálculos, a caravana devia achar-se acampada por aqueles sitios.
O bandido, arrastando-se como uma cobra, chegou sem fazer barulho à borda de um barranco e, agarrando-se a
uns arbustos com as suas calosas mãos, inclinou-se sôbre o abismo para reconhecer o fundo do solitário vale, que se
dilatava para além do despenhadeiro. A noite estava clara, e a lua deixava ver os objetos sem dificuldades. Uriés langou
os olhos pelo vale, e em seguida foi reunir-se aos seus companheiros.
- Que há? Disse-lhe secamente o capitão ao vê-lo chegar.
A caravana, como nos disseram, respondeu Uriés com indiferença, acampou efetivamente no vale de Jope.
Todos dormem, camelos e homens, porém pareceu-me ver reluzir à luz da lua o quer que era semelhante aos capacete
romanos.
- Isso talves seja apreensão tua, atalhou outro bandido.
- Tenho bons olhos; já sabes que me engano poucas vêzes... mórmente de noite.
- Nada tem de singular, tornou a dizer Abadon, que em alguma cidade dos arredores se tenha reunido um ou
outro soldado à caravana.
- Quem sabe se os da caravana terão pedido um Sichem uma escolta? Interveio Dimas.
- E que devemos fazer? perguntaram diversos bandidos.
- Por Deus vivo! Que devemos fazer? Descer ao vale e, sejam romanos ou herodianos, levarmos as suas cabeças
para o nosso capitão como trofeu de vitória, exclamou Dimas cheio de ardor.
- Tens razão: desçamos à planície, repôs o velho capitão.
Pouco depois cairam de improviso sôbre o acampamento, envolvendo-o como em uma rêde. Os mercadores,
surpreendidos no seu primeiro sono, acordaram sobressaltados; o pânico apoderou-se dêles e só pensaram em fugir,
deixando em poder dos terríveis inimigos as cargas e os camelos. Porém não sucedeu o mesmo aos três soldados
romanos, que ao primeiro grito de alarma saltaram com presteza sôbre os cavalos, e armando as dextras com a curta e
terrível espada que os fizera senhores do mundo, arrojaram-se com ímpeto sôbre os bandidos.
Um romano, principalmente um romano da Palestina, no tempo de Herodes, julgar-se-ia desonrado se
retrocedesse diante de seis judeus, raça vencida e escrava, que os filhos do Tibre olhavam com insultante desprêzo. Os
legionários do Idumeu iam para Jerusalém. Tendo encontrado por acaso aquela caravana, haviam-se unido a ela por êsse
espírito sociavel, que predominava nos soldados do Capitólio.
Os romanos, soltando um grito de guerra ao qual se seguiram os nomes de Marte e Minerva, brandiram as
terríveis espadas sôbre as cabeças dos bandidos; porém aqueles israelitas não eram os covardes e fracos filhos da cidade
de Jerusalém: eram raios da montanha, soldados ferozes do deserto, cujo renome terrível de habitantes do monte Hebel
lhes fazia centuplicar as fôrças.
Os romanos não podiam fazer mais que bater-se até morrer, e assim o fizeram. Porém as suas mortes deviam
custar caro aos samaritanos.
Abadon, o velho capitão, ao querer cravar a sua lança no peito do cavalo de um dos seus inimigos, recebeu um
terrível golpe no pescoço, pelo qual se esvaiu em sangue, morrendo pouco depois. Dois bandidos mais tiveram a sorte
do seu chefe.
Dimas matou pelas suas mãos um dos legionários; porém ao mesmo tempo recebeu uma cutilada na cabeça que
o fez vacilar, e que indubitávelmente seria secundada, se Uries não viesse em seu auxílio cravando o punhal nas costas
do romano, que caiu do cavalo.
A lua, sempre clara e formosa, alumiou, com os seus dúbios e poéticos raios aquele combate, aquela cena do
sangue em que seis homens haviam exalado o último alento e seis ficado gravamente feridos.
Os bandidos, senhores do campo, dispunham-se a carregar os camelos com o mais rico da preza e a colocar em
outros os que não podiam pelo seu estado andar o caminho a pé; porém Dimas, que apesar do ferido não tinha perdido a
serenidade e o conhecimento deteve-os, dizendo-lhes:
Companheiros, antes de partir devemos dar sepultura aos mortos, com o que honraremos os corpos dos nossos
camaradas, não deixando além disso vestígios desta catástrofe que havemos experimentado, e que sempre poderia
alentar os nossos perseguidores.
Esta segunda razão convenceu os bandidos, que imediatamente se puseram a cavar uma vala. Pouco depois,
romanos e samaritanos jaziam sepultados para sempre debaixo do pêsado manto de terra. Os bandidos abandonaram o
lugar do combate, mudos e cabisbaixos.

13
Dimas caminhava ao lado dêles sem descerrar os lábios. Pelas suas faces rolaram lágrimas. O velho capitão
havia-lhe demonstrado um afeito franco e desinteressado, chamava-lhe filho, e o mancebo chorava pela memória do
segundo pai que acabava de perder.
Já o dia ia bem adiantado quando chegaram ao monte Hebal. A poucos passos da entrada subterrânea os
bandidos detiveram-se.
- Que devemos fazer aos camelos? Perguntou Uriés dirigindo-se a Dimas, como se êste fosse o chefe da
quadrilha.
Descarregai-os e, em seguida, voltai-lhes a cabeça para o lado do mar, daí-lhes a voz de marcha e que vão
para onde quiserem.
- Não seria melhor vendê-lhos amanhã em Bethel? disse um dos bandidos.
- Já disse que convém desorientar os nossos perseguidores, e êstes animais poderiam descobrir-nos.
- Tens razão, - ajuntaram vários salteadores.
Descarregados os camelos, foram os animais colocados como mandara Dimas, e os quadrúpedes largaram a trote
através do monte, em direção ao oeste.
Então os bandidos fizeram entrar a braço no castelo a rica preza, que tanto sangue lhes havia custado. Naquela
noite Dimas foi proclamado capitão e ao tomar o comando fez jurar três cousas aos seus subordinados: a primeira, que
amparariam sempre, mesmo com perigo de vida, tôdas as crianças de menos de dez anos; a segunda, que respeitariam
em todas as ocasiões, todos os velhos; a terceira e última, que nunca deixariam os cadáveres insepultos, havendo tempo
para cumprir tão santa tarefa.
Dimas fez compreender aos companheiros que, já que a sorte os lançara na vida de aventureiros, o que não era
muito honroso, forçoso era que a guerra à sociedade se fizesse em condições mais suaves; e visto que sua intenção não
era senão enriquecerem, se poderia conseguir sem necessidade do terror, ao abrigo da sua bandeira do partido que
como bons israelitas, deviam levantar em defesa da pátria aviltada pelos ímpios romanos.

As palavras de Dimas exaltaram os bandidos, chegando alguns dêles a sentir remorsos pelo sangue derramado e
pelo tempo perdido no roubo e no crime. Em seguida, olvidando o capitão morto, beberam à saúde do capitão novo até
cairem ao solo, embrigados.
Desde então a quadrilha de Dimas, apesar de viver ainda da rapinagem, começou a ser mais humana, chegando
com o tempo a fôrmar não uma quadrilha de salteadores, mas um grupo de homens livres, que amantes da lei, da
religião e da independência, faziam com suas espadas uma guerra terrível aos soldados do tirano Herodes.
Agora retrocedamos ao capítulo segundo deste livro, quando ao livido clarão do relâmpago vimos deslisar pelos
torturosos atalhos dos montes da Samaria oito bandidos de feroz aspecto, entre os quais caminhava um mancebo
armado com uma lança curto e envolvido em um manto de lã de camelo.
O mancebo era Dimas, que havia seis meses capitaneava os foragidos, alcançando de dia para dia mais afeto e
domínio nos seus corações.
Explicado o procedimento do moço bandoleiro, sigamo-lo, apesar da noite tempestuosa e das escabrosidades do
terreno.

CAPÍTULO VIII

UM GOLPE DADO EM FALSO

- Com que então, amigo Uries, dizia Dimas a um dos bandidos que caminhavam a seu lado, com que então
afirmas que a caravana egípcia, apesar do seu aspecto pobre e miserável, conduz um tesouro?
- O carregamento é de trigo fecundado pelas águas do Nilo; porém nos sacos do cereal estão ocultadas duas
caixinhas construidas em Alexandria, que encerram um tesouro. Uma vez repleta de ouro em pó; e outra, de pedras
preciosas; ambas são destinadas a Cesar. Seus condutores ignoram que entre o louro grão que transportam se esconde
uma verdadeira fortuna. O carregamento vai consignado a um rico negociante de Cesaréia, em cujo porto está um navio
romano ancorado, para transportá-lo à cidade dos cônsules.
- Boa deve ser a presa para que os meus lobos montanheses não te amaldiçoem por lhes teres feito abandonar o
castelo em uma noite como esta. Mas, por Deus vivo! Muito me admira que tão preciosos tesouro não seja escoltado por
gente armada.
- Os negociantes egípcios são desconfiados, odeiam os romanos e receiam ser roubados por aqueles mesmos a
quem confiam a guarda das suas caravanas mediante um salário.
- Não estarás enganado?
- Só Deus é infalível. No entanto, agouro um êxito feliz a expedição.
- Que parte ofereceste a quem te revelou o segrêdo?
- Nada ofereci; foi êle que fez as suas exigências; de maneira que, se nada lhe dermos, não faltaremos à nossa
palavra.
- Vejo que és astuto e prudente.

14
- Capitão, tenho quarenta anos, entrei no ofício de salteador quando apenas tinhas fôrças para levantar do chão
uma lança como essa que trazes na mão. Era criança ainda e o autor dos meus dias reconheceu que eu era um rapaz
aproveitável; portanto, serviu-se de mim dando-me a honrosa e delicada profissão de espião. Tomei como um
passatempo aquela ocupação e desempenhei-a com o afan com que a infância faz as cousas que lhe agradam. Aos doze
anos era eu um modêlo de astúcia, sagacidade e penetração. Não é imodestia. Dimas: todos os velhos bandidos da
Palestina tinham-se por modêlo, e designavam-se como uma maravilha da nossa arte. Não tenho sido capitão por dois
motivos: primeiro porque não sou ambicioso, e isto não quer dizer que tu o sejas; e o segundo, porque sendo simples
membro de uma quadrilha, posso servir melhor os meus companheiros e levar uma existência mais independente. Como
sabes, às vêzes ausento-me por dez ou quinze dias; durante êste tempo percorro as dozes tribos: sou judeu entre os da
Judéia, galileu entre os da Galiléia, e samaritano na Samaria. Quando me convém mudo tanto de nome como de raça.
Umas vêzes sou mercador, outras sacerdote; introduzo-me nas casas, e como tenho isso que chamam dom de agradar,
faço por ganhar a amizade e simpatia dos donos delas, descubro os seus segredos, apodero-me dos seus planos e
negócios, e quando a minha memória reúne uma boa quantidade de conhecimentos, volto ao velho castelo de Hebal,
onde os companheiros me esperam: informo-os depois de tudo, e êles saem a colher o fruto dos meus trabalhos,
evitando-lhes deste modo que passem a noite em um barranco, mortos de frio ou ensopados, esperando os Viandantes,
que muitas vêzes não trazem mais que um saco de negra cevada ou um punhado de farinha.
- És um sábio, Ureis, e os nossos companheiros fazem bem em dar-te duas partes nas prezas.
- Ah, meu caro Dimas! Os homens são muito ingratos. Estou certo de que, apesar do meu saber, qualquer dia, em
recompensa dos meus cuidados e desvelos, me pendurarão de uma árvore, como fizeram a meu pai que sabia tanto
como eu.
- Dimas sorriu-se ao ouvir as palavras do bandido, que era tido entre os seus camaradas, como o mais astuto da
quadrilha.
- Acredita, capitão, volveu Uries, o homem foi criado para não fazer nada; estuda com atenção o seu corpo, e
verás que os seus braços se prestam mais a estirar-se em preguiçosa atitude que a cavar a terra com pesada enxada. A
preguiça é natural; o trabalho é violento e impróprio. O homem, se se afadiga e trabalha, é porque crê que chegará um
dia em que não fará nada. Trabalhemos, pois, por algum tempo, e em seguida a regalada preguiça nos reterá entre os
seus amants e carinhosos braços.
- Uries terminou dando um bocejo que só um trovão espantoso fez acabar.
- Temos má noite, disse um dos bandidos.
- Piores foram as do dilúvio, atalhou outro.
- Se a prêsa fôr tão pesada como a atmosfera, então tudo correrá bem.
- Uries é um preguiçoso, e visto que nos fez sair do castelo em noite tão ruim, por certo que não foi com o fim
de nos fazer dar um passeio por êstes barrancos.
- Falai mais baixo, que chegámos, disse Uries, aproximando-se dos camaradas. Por aqui deve passar a caravana
quando a luz da aurora romper no Oriente.
Então o melhor será emboscar-nos, atalhou um outro bandido.
Vamos, rapazes, cada um procure ao abrigo de uma rocha um refúgio contra o mau tempo, interveio Dimas em
voz baixa. Embrulhai-vos nas vossas capas e cuidado com o sono. Ao primeiro grito de alarma, todos ao meu lado.
Os bandidos emboscaram-se do melhor modo que puderam nas salientes rochas de um estreito barranco.
Dimas e Uries, desprezando a chuva, colocaram-se, envolvidos nas mantas, junto a uma árvore corpulenta, à beira do
caminho por onde a caravana passaria.
Meia hora haveria que os bandidos se achavam acampados no baranco, quando o canto monótono do cuco
principiou a ouvir-se. Uries ergueu-se como o chacal que ouve os passos do caçador e os latidos do cão; que deu com o
rasto.
- Que há? perguntou Dimas sem altear a voz.
- Ignoro; porém aquele canto nada promete de bom.
- Nos nossos livros o cuco não é ave de mau agouro.
- Quem canto não é uma ave, mas um homem.
- Um homem! exclamou Dimas, empunhando a lança.
- Nada receies; é um amigo, um espião que me serve bem. Breve sairemos das nossa dúvidas.
E Uries imitou de modo admirável o grasnido estridente e desegradável do corvo.
Pouco depois um homem, salpicado de lama e escorrendo água, apareceu dizendo:
- A paz seja contigo, amigo Uries.
Dimas olhou com assombro para aquele homem que chegara até êles sem fazer o menor ruído.
- Contigo venha, amigo Adão, que notícias trazes?
Uma circunstância inesperada tirou-nos a prêsa. Os condutores da caravana caminham a estas horas em direção
a Jericó entre duas alas de terciarios romanos.
- Por Isaac, explica-te melhor e depressa! Exclamou Dimas com impaciência.
- Não sabeis ainda a nova, repôs o espião, que agita o povo de Israel, e faz estremecer o tirano Herodes no seu
palácio?
- Nas montanhas de Samaria só se ouvem os uivos dos lobos, redarguiu o jovem capitão.
- Pois bem, na cidade santa conta-se que três mago caldeus vieram a Judá em busca do Messias prometido. O
idumeu desejando apoderar-se dêsses estrangeiros, que chegaram à suas terras para alentar as esperanças do povo judeu
com falsas novas, espalhou seus soldados por tôdas as tribos. Os viajantes são detidos e interrogados; suas mercadorias

15
sofrem revista escrupulosa, e esta sorte coube aos egípcios que esperáveis por êste barranco, pois a estas horas
caminham para Jericó, custodiados pelos legionários do rei de Jerusalém.
- De modo que o tesouro... disse Dimas.
- Vai cair em poder de Herodes, atalhou o espião que, ao saber o seu destino, se apressara a remetê-lo para
Roma como uma manifestação do respeito, que lhe inspira a cidade ímpia.
Dimas encolheu os ombros, e disse com impassível entoação:
- A emprêsa malogrou; é preciso resignar-mo-nos a esperar ocasião melhor. No entanto, não deixaria de ser
conveniente continuar na pista da caravana.
- Sou da mesma opinião, disse Uries. Quem sabe? Herodes pode confiscar o trigo e pô-lo à venda, e nesse caso
o melhor negócio é comprá-lo.
- E podes encarregar-te dêsse assunto?
- Com todo o gôsto.
- Pois então, parte para Jericó; esperaremos notícias tuas no castelo.
- A minha bolsa está vasia, capitão.
- Recebe este cinto: contém doze minas hebreias, que te bastarão para comprar o carregamento; porém não
olvides o que pode tomar-se não se deve comprar, segundo os regulamentos da nossa profissão.
E Dimas, dizendo isto, entregou a Uries um cinto de couro que a sua farta túnica ocultava.
- Queres acompanhar-me Adão? perguntou Uries.
- Sim! Respondeu aquele fazendo um gesto de indiferença.
Depois, o jovem capitão reunio os companheiros, e disse-lhes em duas palavras o que se havia passado, e o que
decidira. Ninguém proferiu uma palavra, nem uma queixa; no entanto, os rostos dos bandidos manifestava-se
claramente o desgôsto daquele contratempo.
Uries e Adão tomaram o caminho de Jericó, e os bandidos dirigiram-se pragueiando para os monte da Samaria.
Tinha cessado a chuva; porém a noite continuava escura, ouvindo-se de vez em quando a longínqua e
ameaçadora voz do trovão.
Os bandidos caminhavam taciturnos e cabisbaixos, demonstrando o seu mau humor no mais pequeno
incidente. Tinham abandonado uma prêsa fabulosa, e voltavam molhados enlameados, sem aumentar os seus cabedais
com um miserável óbulo sequer.
Já perto do castelo de Hebal, ao atravessarem um fragoso barranco, ouviram passos.
Dimas fê-los parar e ocultar-se por detrás das sarças e das salientes rochas. Entretanto, pelo ínvio barranco que
ia ter ao lugar em que estavam os bandidos emboscados, caminhava um venerável ancião, envolvido no pardacento
manto dos galileus. Trazia um jumento pelas rédeas, e sôbre a modesta cavalgadura ia uma mulher jovem e um menino
de pouco meses.
A criança dormia no regaço materno, e estava cuidadosamente envolvida em uma capa côr de corinto: a mãe
chorava em silêncio, e o ancião orava em voz baixa.
O trovão continuava a ribombar por cima das cabeças dos pobres viandantes. De repente o ancião parou,
porque ao dobrar uma curva do barranco viu surgir um homem, que lhe pôs ao peito as afiadas pontas de uma lança,
bradando com voz torva:
- Alto ou morres!
O ancião recuou dois passos, a mulher exalou um grito e, estreitando o filho ao seio, exclamou:
- Deus de Sião, salvai o meu Jesus!
LIVRO SEGUNDO

ESTRELA DO MAR

Uma viagem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emmanuel, isto é , Deus
conosco. Êste filho, dado milagrosamente ao mundo, será um rebento do tronco de José,
uma flôr nascida da sua raiz. Será chamado o Deus forte, o Pai dos séculos futuros, o
Princípe da paz. Será levantado como um estandarte à vista dos povos; as nações virão
oferecer-lhes as suas homenagens, e o seu sepulcro será glorioso. (Profecias de Isaias)

CAPÍTULO I

MARIA

Começa o livro da Virgem. A inspiração de Zorrila, o gênio de Murilo, tornam-se pequenos ante a formosura
da Mãe aflita que chorou no cume do Gólgota a morte de seu filho. A grandeza de Maria é divina, e por isso não chega
a ela o talento humano.

16
Perdôa, pois, ó Virgem, se a minha insuficiência se atreve a narrar a tua história dolorosa. A fé cristã dá alento
às minhas mesquinhas fôrças; o teu nome glorioso dará côr às minhas pálidas idéias; em ti confio para levar a cabo a
penosa peregrinação que impús a mim mesmo.
Nazaré, a pátria de uma Virgem, o berço de um Deus, envolta ainda nas últimas sombras da noite, dorme
tranquila a um extremo do pitoresco vale de Esdrelon. A vontade suprema do Criador colocou-a no seio de duas colinas
que, mães carinhosas, a cingem com os seus robustos braços a fim de a livrarem das tormentas outonais.
Nazaré, azulada pomba do Oriente, que formaste o teu ninho à sombra de Hermon para te embriagares com o
perfume que te enviam os floridos campos de Canaam que foram em tempo o cubiçado jardim da tribo israelita de
Zabulon; modesta açucena dos vales, em cujo cálice depositou Deus a pérola do Oriente, o grão de ouro do
Cristianismo; ... Jerusalém, Séfora e Beiruth olharam-te com desprêzo porque se julgavam rainhas da Palestina, porque
ignoravam que tu estavas destinada a ser o ninho santo anunciado nas profecias, a fonte inexgotável da salvação da
alma, o sol esplêndido da fé e da esperança.
O rócio celeste cai sôbre os teus campos; Jeová sauda-te do seu trono de luz, e os anjos cantam o hino da
benvinda, porque as profecias vão cumprir-se.
Uma menina, formosa como a estrêla da manhã, acaba de respirar o primeiro sôpro da vida e de seu peito
virginal sai um gemido de dôr. E o primeiro de um Ente que nasce, de um Ente que vem ao mundo interceder
eternamente por nós.
Seu berço não se cobre com as ricas colchas do Egito, nem se atavia com o ouro da Pérsia. Os eus vestidos não
se perfumam com a essência do nardo, nem se acende mirra nem óleo balsâmico em turíbulos de prata, como se faz aos
principes hebreus.
Pobre e tosco linho lhe cobre os delicados membros; uma choça a alberga e humildes mulheres do povo
rodeiam o seu berço e recebem o seu primeiro sorriso.
No entanto, aquela débil criatura nasceu com o destino de ser Rainha dos céus, a mãe dos anjos, a Espôsa de
Deus. Os conquistadores da terra deporão os cetros aos seus pés, os reis curvarão ante Ela as altivas frontes, e os aflitos,
implorando a sua proteção irão adorá-la de joelhos ante os altares levantados pela fé cristã. Porque Ela será o bálsamo
universal das dôres humanas, a esperança do náufrago e a consolação dos tristes.
Seu nome glorioso será invocado nos momentos augustiosos da vida, porque Deus escolheu-a para gerar em
seu seio o Verbo Divino, que em fórma de homem há de remir com o seu precioso sangue os pecados nefandos da
humanidade. Porque Ela será “um tronco liso e brilhante em que nunca se encontrará, nem o nó do pecado original,
nem o cortex do pecado atual”1
O seu nome será para os aflitos “mais doce aos lábios que um favo de mel, mais apreciável ao ouvido que um
cântico suave, mais delicioso ao coração que a alegria mais pura”2
Porém, não adiantemos os sucessos. Sigamos as sagradas tradições do Oriente, e com elas à vista e a fé na
alma, Deus nos dará fôrças para levarmos ao fim a difícil peregrinação que impusemos a nós mesmos.

Em Nazaré, pequena cidade da baixa Galiléia, vivia um homem honrado, conhecido pelo nome de Joaquim, da
tribo da Judá e da descendência de Davi por Natã. Sua espôsa chamava-se Ana.
Ambos eram bons e observavam com a fé no coração os mandamentos de Jeová; porém o Senhor afastava
deles os olhos, e Ana era estéril depois de vinte anos de casada.
Joaquim podia quebrar aqueles infecundos laços, dando a sua mulher a carta de divórcio, que a lei dos fariseus
com tanta facilidade concedia.
Lei bárbara e desumana, em que as espôsas se convertiam em escravas e os maridos em despóticos senhores.
Ana, pois, vivia triste, porque a esterilidade era olhada em Israel como um opróbrio. Porém Joaquim amava a
espôsa, e vivia resignado entre o trabalho, a oração e a esmola. Pediam a Deus com fervor que lhe concedessem um
herdeiro, para se verem limpos da mancha que sôbre êles pesava; e Deus ouviu as suas súplicas, porque saiam de dois
corações puros. Ana sentiu agitar-se nas suas entranhas o germen de um novo ser, e louca de alegria, participou-o a seu
esposo.
Passou um lua e outro lua, e por fim em uma manhã do mês de Tirsi3 Ana foi mãe, e Joaquim apresentou aos
parentes e amigos uma menina, formosa como um anjo, loira como o ouro em pó dos mercadores do Egito.
Nove dias depois, segundo os costumes judáicos, reuniram-se todos na casa paterna para porém um nome à
tenra criança. O pai pôs-lhe o mais formoso, o mais sublime que ainda combinaram as letras do alfabeto, porque êle só
encerra um poema de ternura inexgotável.
Este nome era Mirian (Maria) nome que um língua siríaca significa Soberana, e na hebreia Estrela do Mar.
E como dar-lhe outro nome que melhor explicasse a alta dignidade da Virgem, que havia de gerar em seu seio
o martir do Calvário?
S. Bernardo disse: “Maria é com efeito aquela formosa e brilhante estrêla que brilha sempre sôbre o mar vasto
e tempestuoso do mundo”.

1
Santo Ambrósio
2
Santo Antônio de Pádua
3
Segundo a opinião de alguns orientalistas a Virgem Maria nasceu a 8 de setembro (Tori, primeiro mês civil dos judeus) do ano 734 de Roma e 21
antes de Cristo. A hora do seu nascimento foi ao amanhecer, e a dia sábado.

17
A mulher hebreia purificava-se solenemente no templo oitenta dias depois do parto, oferecendo no altar
sagrado um cordeirinho branco ou duas rolas, sendo pobre, ou uma côroa de ouro, sendo rica.
Ana era pobre, e ofereceu uma rola para o sacrifício; porém grata ao preciosíssimo dom que Jeová lhe
concedêra, empenhou a palavra de consagrar a filha ao serviço do templo, logo que aquela tenra flor soubesse distinguir
o bem do mal.
Ana criou Maria ao peito, porque Judá as mães tinham a obrigação de amamentar os filhos.1
Estranho a formosa criança desde os seus mais tenros anos aos brinquedos da infância, cresceu entre a
meditação e as tenras carícias de seus pais. Aos três anos era olhada com respeito por todos os humildes habitantes de
Nazaré. Nos seus olhos, azuis como o céu do Oriente, brilhava um reflexo de luz divina. Seus lábios, nacarados como as
pétalas dos cravos de Jericó, tinham sempre um sorriso de indefinível doçura para todos os que se acercavam dela. Os
abundantes aneis dos seus louros cabelos caíam como chuva de ouro sobr a modesta túnica de lã azul, que lhe cobria a
delicada carne.
Em certas tardes, na pintoresca estação da primavera, seu pai levava-a a passear pelos floridos jardins do vale
de Esdrelon. A formosa criança, sentada à sombra de um daqueles salgueiros, que tantas vêzes abrigaram as caravanas
arabes2, comprazia-se em estender a vista pelo claro e diáfano céu da Galiléia. Durante êstes momentos de
contemplação celeste, o pai não se atrevia a interrompê-la, pois, julgava-a inspirada por alguma revelação divina.
Ao voltar para casa, com as pequeninas mãos, brancas e finas como a flôr do terebinto, fazia um ramo de
narcisos, anêmonas e açucenas, e durante o caminho deleitava-se em aspirar o seu delicado perfume. Mutas vêzes o pai
colhia-lhe o dourado fruto do sicômoro e do platâno; a formosa criança guardava-o e, ao chegar à povoação oferecia-o à
mãe.
Maria chegou à idade fixada por seu pais para ser entregue, conforme haviam prometido, ao templo sagrado,
como uma das virgens de Israel. Os parentes de Joaquim dispuseram-se a acompanhá-la, pois segundo os costumes
hebreus deviam presenciar a sagrada cerimônia.
A humilde caravana saiu por conseguinte de Nazaré em direção a Jerusalém. Estava-se na estação das chuvas.
O Cison, seco durante os ardentes mêses do estio, arrastava sôbre o seu leito de areia vermelhas e túrbidas águas. Os
viandantes evitaram o perigo que o rio lhes oferecia, tomando as encostas balsâmicas do monte Carmelo e a fértil e
arenosa planície de Saron, semeada por tôdas as partes de laranjeiras, palmeiras e ábetos. Depois de alguns dias de
viagem, chegaram por fim à populosa cidade de Jerusalém, e entraram nela pela porta de Efraim.

CAPÍTULO II

A VIRGEM DE SION

Alguns dias depois os pais, seguidos de numerosos parentes e ataviados com os vestidos de gala, dirigiram-se
para o templo. Joaquim levava nos braços o cordeiro sem mácula que devia oferecer ao Senhor. A espôsa conduzia
Maria, sua filha. A menina levava nas suas pequeninas mãos, envolvida em uma toalha de alvo linho, a flôr de farina
indispensável ao sacrifício.
Ouçamos o que diz o abade Orsini da apresentação de Maria: “Atravessando o páteo exterior, onde qualquer
estrangeiro devia deter os passos sob pena de morte, o séquito aumentou com bom número de empregados do rei, de
fariseus, de doutores e damas ilustres que uma disposição oculta da Providência reunira por acaso nos pórticos de
Salomão. A comitiva deteve-se no estrado de mármore do chel3. Ali os fariseus estenderam os seus thephllins4, e
cobriram as frontes orgulhosas com um dos panos do seu talet5 de lã branca e fina, guarnecido de granadas purpurinas
e de cordões côr de jacinto. Os valentes capitães de Herodes envolveram-se nos eus ricos mantos presos com broches de
ouro, e as filhas de Sion velaram mais os rostos com os véus em respeito aos anjos do santuário.
“A divina donzela e a brilhante comitiva transpuseram a porta de bronze que fechava aos profanos o sagrado
recinto. A porta de Nicanor girou sôbre os gonzos para deixar passar a vítima, e ofereceu em perspectiva o tempo de
Zorobabel com as suas corôas votivas, as suas portas forradas de folhas de ouro, as suas paredes construídas de pedras
enormes e polidas, nas quais as mãos dos séculos haviam deixado essa côr de folha seca que distingue os antigos
edifícios do Oriente. Tudo era grande e venerável na casa de Jeová, e no entanto, apesar da sua magnificência, quanto
decaira do seu esplendor e santidade! Um não sei que de defeituoso e incompleto fazia-se sentir até nas cerimônias mais
imponentes. Os seus sacerdotes já não eram os ungidos do Senhor; a Arca santa havia desaparecido. Porém ia brilhar
um dia glorioso e o Oriente começava a iluminar-se.

1
Em todos os livros da Escritura não se encontram senão três amas: a de Rebeca, a de Mefibosél e a de Joás. Deve notar-se que Rebeca, a espôsa de
Isaac, era estrangeira; e os outros princípes
2
A caravana mais numerosa podia abrigar-se em torno dos seus troncos colosais (Lamart, Viagem á Palestina)
3
Espaço de dez covados entre o pátio dos gentios e das mulheres.
4
Tephilim, pequeno pedaço de pergaminho, sôbre o qual os fariseus escreviam com tinta feita de próposito versículos da Escritura, colocando-o
depois no braço direito ou ao meio da testa. Estava isto muito em voga no tempo de Cristo e era um sinal de distinção. (Bernage, Hist. dos Judeus,
livro VII, cap. VII
5
Talet, manto quadrado que os judeus levavam para fazerem a oração, e com o qual cobriam o rosto.

18
“Os sacerdotes e os levitas, reunidos no último degrau do estrado, receberam das mãos de Joaquim a vítima da
prosperidade
Êstes ministros do Deus vivo não tinha a fronte cingida de louro e de ápio verde, como os sacerdotes dos ídolos:
uma espécie de mitra arrendondada, de um espêsso tecido de linho, uma túnica comprida, também de linho, branca e
pouco farta, apertada por um cinto bordado a ouro, compunha o traje sacerdotal que não se usava senão no templo.
“Depois de ter deitado sôbre o ombro esquerdo as pontas flutuantes do cinto, um dos echaneos1 pegou no
cordeio cuja cabeça virou para o norte, e enterrando-lhe no pescoço o cutelo sagrado, pronunciou uma breve invocação
ao Deus de Jacó. O sangue, que caía em um vaso de bronze, ficou reservado para rociar os cornos do altar2.
“Feito isto, o sacrificador amontou em larga salva de ouro as entranhas, os rins, o fígado, a cauda e as mais
partes da vítima, que vários levitas lhe apresentavam sucessivamente3; depois de as ter lavado com cuidado na sala da
fonte, deitou sôbre a oferenda incenso e sal; em seguida, subindo com os pés descalços a suave escada que ia ter à
plataforma do altar dos holocaustos, fez libações de vinho e sangue, lançou à chama brilhante, a qual nenhum sôpro
humano havia acendido4 um pouco de flôr de farinha diluída em um copo de ouro com azeite do mais puro, e colocou
finalmente a oferenda da paz sôbre os ardentes lenhos que tinham saido do bosque de Sichem5 e que os oficiais
superiores do templo haviam examinado com cuidado e despojado das suas cascas.
“O resto da vítima, exceto o peito e a espádua direita que pertenciam aos sacrificadores, foi entregue ao esposo
de Sant’Ana, que dividiu pelos seus parentes mais próximos, segundo o costume do seu povo.
“Os últimos sons das trombetas sacerdotais ecoaram ao longo dos pórticos; e o sacrifício ardia ainda sôbre o altar
de bronze quando um ministro do templo desceu ao átrio das mulheres para determinar a cerimônia.
“Ana, seguida de Joaquim, levando sua filha nos braços, com a cabeça coberta por um véu, adiantou-se para o
ministro do Altíssimo e apresentou-lhe a jovem serva do Senhor, pronunciando comovida estas ternas palavras: “Venho
oferecer-vos o dom que Deus me fez”.
O sacrificador hebreu aceitou, em nome do Anjo, que fecunda o seio das mães, o depósito precioso, que a
gratidão lhe confiava, e abençoou os santos esposos, como Heli6, o pontífice, havia abençoado em outro tempo e em
circunstâncias idênticas o piedoso Elcana e sua ditosa espôsa. Em seguida estendeu as mãos sôbre a assembléia em que
se inclinava à sua benção pontificial7, exclamou: Oh Israel, que o Eterno dirija, sôbre ti a sua luz, e te faça
prosperar em tôdas as cousas e te conceda paz.
“Um cântico de gôzo e de ação de graças, harmoniosamente acompanhado pelas harpas sacerdotais, terminou a
apresentação da Virgem”.
Tal foi a cerimônia que teve lugar no templo de Sion nos últimos dias de novembro.
Zacarias, príncipe dos sacerdotes de Ain e parente de Joaquim e Ana, foi quem recebeu a meiga Virgem dos
braços de sua mãe, para depositar ao lado das suas companheiras na casa de Deus.
Desde aquele dia, as piedosas matronas, que eram responsáveis perante os sacerdotes pelo precioso depósito que
lhes era confiado, olharam com respeito para a terna adolescente, cuja bondade e formosura as subjugava. O seu retiro
no templo não foi uma clausura monástica. Os pais, que desde o momento da apresentação se domiciliaram em
Jerusalém, visitavam-na com frequência. Tôdas as tardes, quando os raios do sol começavam a iluminar com a
vermelha luz do crepúsculo as cordilheiras do Tabor, e as águias, abandonando os seus negros ninhos do Líbano,
pairavam com preguiçoso vôo sôbre os brancos e elevados minaretes de Jerusalém, Maria, coberta com pudico véu das
virgens, e seguida das suas companheiras, entoava com fervoroso acento junto ao altar, as orações de Extra; e Deus de
Sion indubitávelmente ouvia a sua doce súplica, que do pó da terra se elevava até o santuário do paraíso, expressa neste
poético e santo estilo:
“Oh Deus!, Que vosso nome seja santificado neste mundo que criastes segundo a vossa vontade: fazei reinar o
vosso reino: que a redenção floresça e que o Messias apareça sôbre a terra8.
Isto entoavam ao som das melodiosas harpas as virgens do templo, e o povo respondia-lhes com fervor,
inclinando as frontes para o chão: “Amém, amém!”
Em seguida repetiam os inspirados versículos do belo salmo dos profetas Ageu e Zacarias:
“O senhor levanta os que estão caidos, e ama os que são justos.
“O senhor protege os estrangeiros: Êle protegerá também a órfã e a viúva, e destruirá o caminho dos
pecadores.
“O senhor reinará em todos os séculos: o teu Deus, ó Sion, reinará em todas as gerações”.

1
Sacrificador ordinário
2
Nos quatros cantos do altar dos holocaustos havia quatro pilares pequenos e ocos, por onde se via o sangue das vítimas. Eram estes os cornos do
altar em que tanto fala a Sagrada Escritura. ( Hist. dos Judeus)
3
Besnage afirma que para o simples sacrifício de um cordeiro empregavam-se dezoito sacrificadores
4
Os judeus não se serviam nem do sôpro da boca, nem de foles para acenderem o fogo do altar; excitavam a chama derramando óleo sôbre os
carvões acesos. – (Hist. dos Judeus)
5
Território de Nauplus (Turquia asiática) único bosque d’onde se tirava a lenha para os sacrifícios. – (Correspondência do Oriente, tomo IV)
6
Gran sacerdote hebraico e descendente de Sansão, que morreu ao saber que os filisteus se haviam apoderado da Arca santa, no ano de 1112 antes de
Cristo.
7
Enquanto o pontífice dava a benção, o povo era obrigado a tapar dos olhos com as mãos, afim de não vêr a mão do sacerdote, cousa que não era
permitida. Os judeus imaginavam que Deus estava atrás do sacerdote, e os olhava através das suas mãos estendidas, e não se atreviam a levantar os
olhos para êle, porque ninguém pode vêr Deus e viver ao mesmo tempo. (Besnage, liv VII)
8
Esta oração é a mais antiga de tôdas as que os judeus conservam; alguns escritores respeitáveis afirmam que estava em uso antes de Cristo, e que os
Apóstolos a adotaram com preferência na Sinagoga.

19
Maria permaneceu no templo de Salomão até aos quinze anos, sendo modêlo de virtude e santidade entre as suas
companheiras.
As horas que os ofícios divinos lhe deixavam livres empregava-os em bordar, em outros lavores delicados e no
estudo dos livros sagrados. A sua habilidade sem par em fiar o linho, chegou até nós em uma tradição oriental, que
designa com o nome de Fio da Virgem1 essas rendas finas e delicadas que parecem desfazer-se ao menor sôpro. Aos
quinze anos, Maria era, segundo S. Dionízio Areopagita, contemporrâneo da Virgem, e que teve a incomparável ventura
de vêr a casta luz dos seus olhos e ouvir sua voz, formosa até ao deslumbramento, e que a teria adorado como a um
Deus, se não soubesse que havia um só.
Santo Epifânio, no século IV, descreve-a deste modo: “A sua estatura era mais que mediana; a tez, levemente
dourada, como a da Sulamita, pelo sol da sua pátria, tinha o explêndido matiz das espigas do Egito; seus cabelos
eram louros, os olhos vivos tirando um pouco a côr de azeitona2; tinha as sobrancelhas perfeitamente arqueadas
e do negro mais formoso; o nariz . de uma perfeição notável, era aquilino, os lábios rosados, o semblante
formosamente oval e as suas mãos delgadas e compridas”.
Por conseguinte Maria, segundo o parecer de alguns sábios correntadores da Escritura Sagrada, encerrava em si
só todos os ricos tesouros da beleza, caridade, valor e virtude, que o grandioso catálogo das mulheres da Biblía poderia
reunir.
Na pura e imaculada urna, que encerrava o seu espiríto, haviam-se reunido tôdas as perfeições que o Eterno pode
conceder à criatura.
A mãe de Deus não se concebe de outro modo. A importante, a dolorosa, a regeneradora missão a que estava
destinada, desde o momento em o seu seio virginal respirou na terra dos homens o primeiro sôpro da existência,
unicamente uma mulher bafejada pelo sôpro de Deus, a podia levar a cabo.
Por isso Deus, que a escolhêra para que o mundo a invocasse no porvir com o excelso nome de sua Mãe, fez com
que Maria fosser cásta como Suzana, bela e valorosa com Ester, a hebreia que evitou o extermínio dos seus
compatrícios, prudente como Abigeil, espôsa de Davi, previdente como a profetisa Débora, que soube governar o povo
israelita e salvá-lo da dominação dos cananeus, sofrida e reginada, enfim, como a mãe imortal dos Macabeus.
Terminaremos o retrato da Virgem, dizendo que Maria falava pouco, que era simples nas suas palavras e modesta no
seu porte; e não gostava de deixar-se vêr, apesar de jovem e formosa
Assim se achavam as cousas, quando no céu soou a hora de começarem as lágrimas a embaciar as límpidas
pupilas da Virgem. Aprouve a Deus dar princípio a terrível prova a que a destinára. Zacarias, gran-sacerdote e parente
de Maria, entrou uma tarde na sua ceia e disse-lhe:
- Cobre a cabeça com o teu manto, e segue-me
- Para onde, senhor?
- No seu leito de morte está um homem exalando o último suspiro da vida. Jeová o está chamando para a casa
dos vivo3, e antes de deixar os parentes para sempre quer abençoar-te.
- É meu pai, exclamou Maria na dôr mais cruel.
- Sim, é teu pai, respondeu o sacerdote, com acento religioso. Joaquim morreu, como morrem os justos: rodeado
da família, e ouvindo em tôrno de si as orações e os soluços dos parentes e amigos.
Maria fechou-lhe os olhos, e acampanhou com sua mãe o cadáver à última morada, segund o costume dos
hebreus. No entanto, êste golpe cruel não veio só; outro os seguiu, mais terrível, se é possível, que deixou a imaculada
Maria órfã e inconsolável. O seu coração começou a ser traspassado de crueis feridas, que foram o prelúdio de outras
mil que a esperavam.
A mortuária lâmpada ainda não se tinha apagado na habitação da viúva. O grosseiro camelote4 ainda envolvia as
formas da Virgem, que tinha os pequeninos pés descalços, quando um segundo emissário foi ao templo anunciar-lhe
que tinha a mãe a expirar. A jovem, acompanhada por uma das matronas do templo correu para junto do leito de sua
mãe. Era noite: junto à modesta porta da casa de Ana, Maria viu um carpideira acocorada, que lançava ao vento
gemidos.
- Mulher, perguntou a Virgem, por desgraça morreria a mãe da minha alma?
- Não, respondeu a carpideira, ainda vive; porém as minhas lágrimas anunciam, que a sua a última hora está
próxima.
O orvalho da manhã, ao cair do céu, encontrou a alma de Ana, que se elevava ao trono do Senhor. Maria estava
órfã, e por conseguinte, livre e senhora das suas ações. Ela porém escolheu a Casa de Deus como refúgio ao seus
despedaçado coração.
Sua dôr foi angustiosa, imensa, mas resignada. Do mais íntimo da sua alma virginal soltaram-se preciosas e
abundantes lágrimas, porque o seu coração, fonte de inexgotável ternura, jamais secou. Por conseguinte elevando ao céu
o rosto dolorido e os olhos lacrimosos, exclamava com doloroso acento, esgotando o calix da amargura:
- Oh! Jeová! Faça-me a vossa vontade!

1
Os tecelões franceses da Idade Média, em comemoração de Maria, levavam nas festividades um estandarte com uma Virgem e uma legenda que
dizia: Nossa Senhora, a rica.
2
As azeitonas na Palestina são de um verde azulado.
3
O sepulcro chama-se entre os judeus a “casa dos vivos”, para mostrar que a alma imortal aind vive depois de se separar da matéria. – (Besnage, liv
VII, cap. XXIV)
4
Túnica de luto de lã de camelo

20
Maria acendeu a lâmpada na Sinagoga, testemunha muda da sua dôr, que pedia orações para aquele que lhe dera
o ser; e jejuou por espaço de onze meses todas as semanas no mesmo dia em que ficara órfã.1 Maria, ainda que pobre,
teve tutores da ordem sacerdotal.
Zacarias, espôso de Isabel e pai de S. João Batista, o Precursor de Cristo, foi o tutor que Joaquim escolheu para
sua filha na hora da morte.

CAPÍTULO III

O ANEL DE OURO

Moisés disse: “Quem não deixar descendência em Israel, será maldito”.


Por conseguinte, a lei obrigava Maria a tomar esposo.
Os pais de Batista, dêsse mártir do capricho de uma rainha impura, viviam em Ain, pequena povoação situada a
duas léguas ao sul de Jerusalém. Não fazendo caso das repetidas súplicas da sua pupila, que se obstinava a passar o
resto dos seus dias no templo de Sion, convocaram todos os parentes da linhagem de Davi e da tribo de Judá.
Um descendente de Davi não podia substrair-se ao jugo do matrimônio. Os profetas haviam anunciado que de
um ramo verde e formoso sairia o Messias desejado, o Salvador de Israel. Aquele que devia colocar o estandarte dos
Macabeus sôbre os templos pagãos da ímpia Roma; e os judeus regosijavam-se de ver nos seus sonhos de vingança o
assombro e o espanto, com que os escravos do Tibre leriam estes rubros caracteres da sua gloriosa bandeira: Qual de
entre os deuses é semelhante a ti, ò Eterno?
Estas cousas eram a esperança do povo Israelita desde que os assírios, derrotando-o com suas vencedoras
legiões, o levaram cativo para as margens do Eufrates.
Israel chorou lágrimas de dôr na impura Babilônia; as harpas de Judá perderam as suas doces melodias, e os
vasos sagrados do templo de Sião foram depositados aos pés do ídolo Belo, como se Jeová pudesse tributar
homenagens aos deus sangrento dos babilônios.
Maria, pois, era uma esperança para o povo de Abraão. A violeta perfumada de Nazaré, o verde rebento do rei
dos Cânticos, devia unir-se a um homem da sua raça, cuja limpesa de sangue fosse tão pura, tão imaculada, como a que
girava pelas azuladas veias da Estrêla do Mar.
Segundo as sagradas tradições, vinte e quatro pretendentes aspiraram à mão da Virgem. Entre êles encontrava-se
José, o carpinteiro de Nazaré, e Agabuz, o nobre jerosolimitano.
José era pobre, humilde e ganhava o sustento com o trabalho das suas mãos. Teria quarenta anos,2 e a sua
veneranda cabeça achava-se coberta de cans.
Agabuz era jovem, rico e formoso. A sua linhagem das mais nobres, e a sua família das mais poderosas de Judá.
Um oferecia à virgem uma vida de privações; o outro uma existência de luxo e abundância. José dava-lhe o humilde
saio do pobre e o duro pão do jornaleiro. Agabuz ter-lhe-ia lançado aos pés preciosas telas do Egito, e adornado os seus
braços com ouro e pérolas da Persia.
Porém os sacerdotes desprezaram as riquezas, e escolheram o pobre carpinteiro de Nazaré. Deus havia-lhes
recordado o vaticínio de Isaias que dizia assim: Sairá uma vara da raiz de José, e da sua raiz uma flor preciosa”.
Depois de orarem, os pretendentes depositaram à noite vinte e quatro varinhas de amendoeira no templo. Uma
tradição antiga, contada por S. Jerônimo, refere que a seca vara de José, filho de Jacó neto de Natan, se encontrou verde
e florida no dia seguinte.
Agabuz, desesperado por êste prodígio que o céu lhe manisfestava, fechando-lhe todas as portas à esperança,
quebrou resignado a sua vara, e foi encerrar-se em uma gruta do Carmelo com os discípulos de Elias. Sua dôr foi
imensa; porém a fé, tão grande, como a dôr, fê-lo cristão, e morreu com as honras de santidade.
Os tutores declararam a Maria o nome e a classe do esposo escolhido, e Ela aceitou-o sem proferir uma queixa.
Os delicados trabalhos do templo, os perfumes da casa santa, iam ser trocados em breve pelas rudes e penosas fadigas
da mulher do pobre. Porém Maria, forte de espírito, confiava em que o Senhor lhe daria fôrças para suportar o pesado
encargo. Apesar de destinada a ser espôsa de um carpinteiro, contudo não se julgou aviltada porque todos os israelitas
eram artistas. Por mais alta que fosse a gerarquia deles, os pais tinha obrigação de ensinar um ofício aos filhos, a não
ser, dizia a lei, que quisessem fazer deles uns salteadores. Por outra parte José, ainda que pobre operário, descendia
de David; e nas outras veias, portanto, girava-lhe sangue dos reis.
Os esposórios de José e Maria celebraram-se com a poética singeleza dos tempos primitivos. O noivo, na
presença dos parentes e dos sacerdotes, ofereceu um anel de ouro liso e de pouco valor à futura espôsa, dizendo-lhe:
- Se consentes em ser minha espôsa, aceita esta prenda.

1
Este jejum era a abstinência completa de todo e qualquer alimento por espaço de 24 horas.
2
Alguns escritores atribuem a S. José oitenta anos na época do seu casamento; porém entre os hebreus, a união de um velho com uma jovem era
proibida nos termos mais humilhantes e vergonhosos; por conseguinte, em virtude de todos os pareceres e tendo em conta a lei, fixámos-lhe 40 anos
de idade.

21
Os escribas lavraram o contrato com esta lacônica fórmula: “Eu José, filho de Jacó, disse a Maria, filha de
Joaquim: Sê minha espôsa segundo a lei de Moisés e de Israel. Prometo honrar-te e prover ao teu sustento e ao teu
vestuário, segundo o costume dos maridos hebreus, que horam as mulheres e as manteem como convém à sua decência.
Dou desde já a quantia prescrita pela lei de duzentos zuces1, além do vestuário, dos alimentos e de tudo o que te seja
necessário, prometo-te a amizade conjugal, cousa comum a todos os povos do mundo.
Neste lugar assinava o marido e as testemunhas, e em seguida continuava o contrato. “Maria consentiu em ser
espôsa de José, e de própria vontade, conforme os seus bens, ajuntou à soma anteriormente indicada oitocentos zuces2.
Depois desta cerimônia deram-se louvores ao Deus de Israel, sendo no fim abençoados os dois esposos por um
sacerdote, que representava o pai de Maria.
Decorreram cinco mêses, durante os quais os parentes dos desposados prepararam a segunda cerimônia, que era
entre os israelitas a mais importante. Chegou por fim o dia aprazado, que era uma quarta-feira3 do mês de janeiro.
A lua dardejava seus raios de prata sõbre as plácidas águas do apertado mar da Galiléia, quando em alegre tropel,
por uma rua estreita de Jerusalém, se dirigiram para a casa de Maria muitas donzelas ricamente ataviadas. Os archotes
que as calosas mãos dos escravos empunhavam, alumiavam os passos das jovens banhando de clara e vermelha luz os
âmbitos escuros da rua. Os ricos cintos de ouro, as tiaras da Pérsia, e os diamantes das virgens, despediam à luz dos
archotes mil reflexos brilhantes como as estrêlas de uma noite escura. Um pálio, sustentado por quatro mancebos,
esperava a espôsa.
A Virgem apresentou-se no limiar da porta. As harpas e as flautas dos tocadores lançaram ao vento deliciosas
torrentes de harmonia, e os amigos e parentes agitaram em sinal de jubilo os ramos de palmeira e de murta que levavam
na mão.
A comitiva rompeu a marcha em direção ao templo. José ia adiante, rodeado dos seus alegres amigos.
A dança e os gritos de alegria começaram, e as mulheres, derramando essências sôbre os vestidos da espôsa, e
flôres pela terra que pisava, entoaram com tôda as fôrças dos pulmões:
- Bendita seja a descendente de Davi!
Como qualificar êste imenso prazer, esta entusiástica alegria, que transbordava de todos os corações, nas bodas
de duas criaturas tão humildes como José e Maria? Deus, sem dúvida que reservava tristezas para a Mãe de Jesus, quis
dar-lhe um dia de triunfo como a seu Filho, em troca das dolorosas lágrimas que devia derramar no cume do Gólgota.
O pálio recebeu os dois esposos debaixo do seu augusto docel: Maria levava o rosto coberto com um véu, e José
ia envolvido no seu talet.
- Eis aqui, disse José colocando um segundo anel no dedo médio de Maria, eis aqui o sinal da nossa união; tu és
minha mulher, segundo o rito de Moisés e de Israel.
- Lança um dobra da tua capa sôbre a tua serva – disse o sumo sacerdote com voz pausada.
- Obedecido serás, respondeu o patriarca desdobrando o talet, e cobrindo com êle a cabeça de Maria.
Depois um parente encheu de vinho uma taça de vidro, aplicou a ela os lábios e deu-a aos esposos para que
bebessem também.
Então o sacerdote lançou ao ar um punhado de trigo em sinal de abundância, e tomando a taça da mão dos
nubentes, apresentou-a a um menino de seis anos. Êste quebrou-a com uma varinha de prata. Tinham terminado a
cerimônia nupcial, e ia começar o festim.
Enquanto os convidados se entregavam ao buliçoso encanto da conversação, José disse em voz baixa a sua
espôsa:
- Tu serás como minha mãe, e hei de respeitar-te como ao mesmo altar de Jeová.
Sete dias duraram as festas; ao oitavo, os esposos abandonaram Jerusalém para se dirigirem a Nazaré. Alguns
parentes acompanharam-nos, segundo o costume, até à primeira paragem; ali despediram-se dêles com as lágrimas nos
olhos e sentimento no coração.

CAPÍTULO IV

O ANJO GABRIEL

Nazaré, a flôr da Galiléia, recebeu no seu amante seio os castos esposos.


Jesus, a rosa do campo, o lírio do vale, ia ser concebido nas virginais entranhas da Estrêla do Mar.
O Patriarca exercia a sua profissão de carpinteiro em uma loja de doze pés de largura e outros tantos de
comprimento, afastada da casa de Ana cousa de setenta passos.
Segundo uma antiga tradição do Oriente, José exercia o seu ofício em um local separado daquele em que sua
espôsa vivia. Caritativo em extremo, tinha levantado sôbre a porta da sua casa de trabalho uma espécie de coberto,
feito de ramos de palmeira, à sombra do qual os cansados viajantes tinham um banco em que podiam descançar, água

1
Um zuce teria o valor de 140 reis da nossa moeda.
2
Êste segundo dote era maior ou menor segundo a fortuna dos noivos.
3
Os judeus escolhiam a quarta-feira para o dia do casamento, julgando-o de bom agouro. Era uma superstição que se transformára quase em lei.

22
fresca com que mitigar a sede, saboroso pão amassado pela Virgem com que matar a fome, um teto hospitaleiro que os
livrava dos ardentes raios do sol, e um homem bom e afável que lhes oferecia a sua pobreza com o sorriso nos lábios.
Ali, segundo diz Orsini, o laborioso operário cosntruia arados, cangas e carros de lavoura, levantando algumas
vêzes as cabanas das aldeias. Ali, segundo S. Justino mártir, foi onde mais tarde o Homem-Deus ajudou seu pai em tão
penosos e rudes trabalhos.
O braço de José era forte, e mais de uma vez o santo operário derrubou a golpes do seu machado as robustas
árvores do Carmelo.
Entretanto Maria, a espôsa imaculada, a terna Virgem de Sion, moía com as suas delicadas mãos o grão de trigo,
e amassava a farinha em redondas tortas. Todos os dias, com o rosto coberto por um espesso véu, e a pesada ânfora1 dos
Nazarenos sôbre a débil cabeça, tomando o caminho dos Nopais, se dirigia a uma fonte2 pouco distante da povoação.
Terminados os afazeres da casa, a Virgem tomava o tosco fuso e o áspero linho e, entretida com o trabalho,
esperava a hora em que Jose devia chegar a casa. Então, sõbre uma mesa de pinho, branca e polida como a consciência
do artista que a construira, colocava Maria frutas saborosas e legumes secos, que constituim a frugal comida dos
descendentes de Davi.
Os hebreus são sóbrios até à inverossemelhança, pois em tempo de necessidade basta-lhes uma infusão de água
e um pedaço de pão negro para passarem o dia, sem que por isso se mostrem alquebrados nas horas do trabalho.
Durante a frugal refeição, que se verificava às seis horas da tarde, o sol no seu ocaso, enviava-lhes os últimos raios
através das nuvens brilhantes do céu da Palestina. Os rouxinois nas vizinhas ramagens soltavam os trinados gorgeios,
saudando a noite; e as melancólicas rolas do Carmelo arrulhavam nos ramos das árvores, chamando as suas errantes
companheiras para o ninho noturno.
Assim decorreram dois meses. O anjo da paz abrigava debaixo das suas niveas asas a modesta morada dos
futuros pais do Messias.
Um tarde3 José encaminhou-se para o monte. O crepúsculo vespertino só derramava sôbre o mundo essa dúbia e
vaga claridade que o sol deixa após si. A noite estava próxima e José não voltara ainda do Carmelo.
Maria esperava-o resignada debaixo de um caramanchão de açucenas e aromáticas madressilvas. Seus olhos
azuis dirigiam-se para o horizonte de Jerusalém, procurando no dilatado céu o ponto que, segundo seus cálculos, devia
achar-se sôbre o templo de Sion4. Seus lábios rosados, como os cravos dos Alpes, entreabriam-se silenciosos para
darem passagem a palavras sem ruido, formuladas no íntimo do seu virginal seio. Estas palavras era a oração da tarde
dirigida ao Deus de Jacó.
Os entrelaçados ramos do caramanchão abriram-se para passagem a um formoso adolescente, de cuja alva túnica
saim torrentes de luz. O anjo Gabriel, o emissário da bondade extrema de Deus, achava-se junto de Maria que, cheia de
temor e sobressalto, ficou como cravada no chão. O anjo iluminou a Virgem com um olhar celestial e disse com doce e
maviosa voz:
- Eu te saúdo, Maria, cheia de graça: o Senhor é contigo: Tu és bendita entre tôdas as mulheres.
Maria, com os olhos fitos no chão, não se atrevia a descerrar os lábios.
Assim como a flôr, que ao receber a gota do rocio que o céu lhe envia, abre as pétalas e curva o caule, assim a
casta Virgem de Nazaré, enquanto que o seu amantíssimo coração se abria para albergar nele as misteriosas palavras do
enviado do céu, curvava a fronte, temerosa de o ofender com a vista, ou talvez receosa, como Moisés “de ver o seu
Deus e morrer”.
- Nada receis, Maria, volveu o anjo com doçura, inclinando a fronte, pois tens a graça de Deus: Conceberás e
darás a luz um Filho a quem porás o nome de Jesus. Êle será grande e chamar-se-á o filho do Altíssimo. Deus lhe
dará o trono de seu Pai: reinará eternamente sôbre a casa de Jacó e o seu reino não terá fim.
- Como há de ser isso se não conheço varão? – disse Maria singelamente, não sabendo como conciliar o título de
mãe com o voto de virgem oferecido junto do altar do Sião.
“A virgem não duvida, diz S. Agostinho. Ela deseja instruir-se no modo como deve operar-se o milagre”.
- O espírito Santo descerá sôbre Ti, ajuntou o anjo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com o seu nome. Eis
porque o Fruto Santo que de ti há de nascer será chamado o filho de Sion.
O mensageiro de Jeová quis deixar uma prova da verdade das suas palavras à Virgem escolhida como a urna
santa, que devia ser por nove meses a depositária do Verbo Divino; e por conseguinte continou:
- Isabel, tua prima, concebeu um filho na senectude, e este é o sexto mês de gravidez daquela que era
reputada estéril, porque nada há impossível a Deus.
Maria, comovida ante os benefícios de Deus, julgando-se na sua grande modéstia indigna da escolha com o que
o Eterno a honrava, inclinou a fronte com humildade dizendo:
- Eis aqui a escrava do Senhor; cumpra-se em mim o que a sua palavra ordena.
O anjo desapareceu, e o Verbo Divino fez-se carne para padecer por nós o cruento martírio da Cruz. Maria,
desde aquele instante concebeu o pensamento de visitar sua prima, a quem tanto devia. Isabel era já de bastante idade e
Maria, caritativa em extremo. Ser útil aos semelhantes era o seu maior prazer.

1
Enormes vasos de barro de altura desmedida, que levavam à cabeça.
2
Hoje é conhecida esta fonte pelo nome de Fonte de Maria.
3
Sexta-feira 25 de março, segundo o padre Drexelius
4
Os povos orientais voltam-se para certo ponto do céu quando oram, chamando a isto, O kebla. Os judeus voltam-se para o templo de Jerusalém, os
maometanos para o de Meca, os sabeus par ao meio dia e os magos para o Oriente. – (Orsini)

23
Antes de transpôr os humbrais dos ricos parentes da rosa de Nazaré, diremos duas palavras a respeito do pai de
S. João Batista. Ouçamos o que diz Ataulfo da Saxônia, referindo-se ao texto de S. Lucas:
“No tempo de Herodes, rei da Judéia, havia um sacerdote chamado Zacarias, da família sacerdotal de Abia, uma
daquelas que por turno serviam no templo1. A mulher de Zacarias, chamada Isabel, era igualmente da raça de Arão.
Ambos eram tidos como justos aos olhos de Deus, pois aguardavam estritamente todos os preceitos e as leis do
Senhor. Um dia, depois de Zacarias entrar no templo para oferecer o incenso, apareceu-lhe o anjo do Senhor à direita do
altar dos perfumes. Tinha o rosto tão cheio de magestade, toda a sua pessoa manifestava um ar tão divino, que o
sacerdote perturbou-se e todo o seu corpo principiou a tremer. Foi preciso que o anjo o sossegasse, dizendo-lhe: Nada
receies, Zacarias; minha presença deve servir-te de alegria e consolação e não de temor; tuas súplicas chegaram ao céu,
foram ouvidas de Deus, e para que te convenças sabe que Isabel tua mulher, apesar de velha e estéril, te dará um filho
ao qual chamarás João, e que encherá de consolação todas as tribos de Isarel. O seu nascimento será para muitos outros
motivo de grande contentamento e presságio certo de uma futura grandeza. Será grande na presença do Senhor e
destinado a exercer um cargo sublime junto do Messias que virá. Será santificado desde o ventre materno e cheio do
Espírito Santo, e em todo o decurso da sua vida guardará uma abstinência rigorosa, jamais beberá vinho ou cidra.
Pregará com tanto zêlo, que converterá muitos filhos da sua raça ao seu Deus e Senhor. Êle precederá a vidna do
Redentor e irá adiante dÊle com o espírito e a virtude de Elias; pregará com tão próspero sucesso que os filhos
renovarão em seu peito a fé e piedade dos pais. Converterá os incrédulos e obrigá-los a seguir o caminho da prudência
dos justos, e preparará para quando vier o Senhor um povo perfeito, que receberá com docilidade os preceitos da sua
nova lei”.
Até aqui! Ataulfo da Saxônia.
Zacarias ouviu o anjo com grande alegria, porém a dúvida estava no seu coração. Aquelas palavras que ecoavam
com suavidade aos seus ouvidos, não eram acreditadas pela sua alma. O céu concedia-lhe na velhice a graça de um
filho: êste filho era o Batista, o precursor de Cristo, e o sacerdote ditoso sem dar crédito à revelação divina, exclamou:
- Eu sou velho, minha espôsa também. Como poderei saber que é verdade o que me dizes?
Os olhos do enviado de Jeová despediram um raio de luz celestes, que foi ferir a língua do incrédulo.
- Eu sou Gabriel, repôs o emissário celeste, um dos anjos que moram junto do trono de Deus, e de quem Êle se
serve para transmitir ordens. Êle enviou-me a ti, e já que duvidaste das minhas palavras surdo e mudo serás até ao dia
em que cumpra o que vim anunciar-te.
Zacarias ficou aterrado, e não pode terminar a semana do seu ofício no templo, por causa do castigo que Deus
havia lançado sôbre êle. Triste e aflito, abandonou a populosa Jerusalém, e atravessando uma parte da Galiléia, da fertil
Samaria e duas terças partes das terras de Judá, depois de cinco dias de marcha chegou à cidade de Ain, onde tinha uma
casa. Sua mulher Isabel recebeu-o com alegria. A venturosa mãe de João queria participar ao espôso, o favor que Deus
lhe havia concedido; porém o incrédulo sacerdote não pode ouvir suas palavras nem responder às perguntas. Lágrimas
corriam dos seus olhos. Amargos suspiros saiam do seu peito, porque Jeová tinha-o castigado.
Isabel lançou-se nos seus braços dizendo:
- O Deus de Jacó ouviu as minhas súplicas. Sou mãe! Sou mãe! Sinto nas minhas entranhas o germen de um
novo ser que se agita, e tu não me dizes nada?
Zacarias debalde tentou falar. Estava mudo.
Exalou um suspiro de angustiosa dôr, e caiu desfalecido aos pés de sua mulher.

CAPÍTULO V

A PAZ SEJA CONTIGO

Maria guardou no íntimo da alma a revelação que o anjo lhe fizera. Nada disse ao seu espôso porque, modesta
em extremo, temia que transluzisse nas suas palavras um rasgo de vaidade. Guardou, pois, o segrêdo como um tesouro
precioso que Deus lhe tinha confiado, esperando com santa resignação que os acontecimentos portentosos, que o céu lhe
anunciava, a conduzissem ao ponto escolhido pela superioridade divina. No entanto, participou a José o prazer que
sentia em visitar sua prima Isabel, e êle, que bom e benévolo se desvelava em satisfazer tudo quanto era grato à espôsa,
deu-lhe permissão para emprender a desejada viagem.
José era pobre, e não podia abandonar o trabalho; por conseguinte aproveitando a ocasião em que passavam a
Ain, pátria de Isabel, uns parentes seus, recomendou-lhes sua espôsa, e Maria partiu de Nazaré na estação das rosas.
José acompanhou sua espôsa até à distância de duas léguas da povoação, e depois, com o coração oprimido pela
ausência da Virgem, voltou para casa.
Isabel, a espôsa de Zacarias, tinha sido uma segunda mãe para a Virgem, desde que Ana e Joaquim a haviam
deixado órfã. Os benefícios recebidos pela criança durante sua permanência no templo de Sião, iam ser pagos pela
mulher na casa da velha Isabel.
A jovem e formosa viajeira, montada n’a modesta burrinha e rodeada de algumas boas mulheres, que com ela se
dirigiam para as montanhas da Judéa, abandonou em uma manhã a pátria adotiva.

1
Segundo o que estabelecera Davi, os sacerdotes judáicos estavam dividios em 24 turnos, cada um dos quais servia no templo uma semana. Cada
turno estava subdividido em sete partes. Zacarias era dos turnos de Abia. – (Prid Hist. dos Judeus)

24
A cidade Ain acha-se situada a um extremo da Judéia. O caminho áspero e montuoso expõe a cada passa a vida
do viandante. Alguns escritores afirmam que a Virgem fez a viagem sózinha: o que parece inverossímil, atendendo ao
ínvio e acidentado caminho que tinha de atravessar; e a que na Síria, segundo Volney e outros vários conhecedores dos
costumes orientais, ninguém viaja só, mas em comitivas ou caravanas, precaução necessária a um país aberto aos arábes
como a Palestina.
Como era possível além disso, que S. José, o varão prudente e reflexivo, tivesse consentido que a terna Virgem
de quinze anos, empreendesse uma viagem de cinco ou seis dias em um país sem mais pousadas que os grandes e
desmantelados cobertos, chamados Karavanserey, e onde os caminhantes se refugiam durante a noite, amontoados
como um rebanho de ovelhas? Nos rodeamos Maria de amigas e parentes durante a viagem à Judéia porque é mais
verossimil, atendendo ao caráter da viajeira e aos costumes dos judeus.
A caravana depois de atravessar as tribos de Issácar, Manassés, Samaria e Benjamim saudou as altas torres do
templo de Sião, e os esbeltos minaretes da cidade sacerdotal que deixou à sua esquerda; e chegou felizmente às
cercânias de Ain, sem que os ferozes habitantes da via sanguinária lhe detivessem o passo.
Um dos parentes, que formava parte da comitiva da Virgem adiantou-se a participar a Isabel a próxima chegada
de Maria. A que devia ser mãe do Batista achava-se em uma arruinada casa de campo, quando recebeu a fausta nova; e
cheia de contentamento correu ao encontro da sua jovem prima.
A virgem viu chegar a nobre anciã com o semblante alegre e cheio de felicidade, e inclinando para o chão a
fronte, disse com doçura:
- A paz seja contigo!1
Isabel sentiu no seu seio um movimento estranho. A voz suave e respeitosa de Maria tinha levantado um eco
melodioso no seu coração. O seu semblante reanimou-se como se ela tivesse retrocedido quarenta anos. Que misterioso
influxo, que santa sensação haviam introduzido no seu peito as palavras da Nazarena, para que a Isabel exclamasse
deste modo: “Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre!
E vendo que Maria conservando a sua humilde atitude não proferia palavras acrescentou:
- D’onde me vem a felicidade para que a Mãe do meu Senhor venha a mim? Logo que a tua voz chegou ao meus
ouvidos, meu filho saltou de alegria nas minhas entranhas; Tu és ditosa por seres crente, e o que te foi dito por parte do
Senhor assim será comprido.
Isabel, a imortal espôsa de Zacarias, ferida nos olhos da alma pelo sôpro misterioso de Jeová, tinha visto através
do ignorado futuro o trono de glória, que o Eterno reservava a sua prima.
Porém ouçamos as palavras da Virgem, o cântico poético e sublime do Novo testamento, o mais inspirado, o
mais harmonioso das Santas Escrituras, dêsse livro que tem sido e será eternamente, o inexgotável manancial da
inspiração cristã.
Maria respondeu a Isabel:
“A minha alma glorifica ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu salvador.
“Porque atendeu à humanidade da sua serva, e para o futuro serei chamada bemaventurada por tôdas as nações.
“A sua misericórdia estende-se de geração em geração sôbre os que o temem.
“Manifestou a fôrça do seu braço e aniquilou os que se enchiam de orgulho.
“Depôs os grandes do seu trono, e exalçou os humildes.
“Encheu de bens aos que estavam famintos, empobreceu os que estavam ricos.
“Lembrou-se da sua misericórdia, e protegeu Israel seu servo.
“Segundo a promessa feita a nosso pai Abraão e à sua descendência para sempre”.
O abade Orsino, que com tão poéticas e delicadas côres descreveu a Visitação de Maria, diz que a Virgem
permaneceu tres meses no país dos hetenses, e passou essa longa visita a curta distância de Ain, no fundo de um florido
e fértil vale em que Zacarias tinha a sua casa de campo.2
“Ali, foi, continua o abade Orsini, onde a filha de Davi, profetisa também e dotada de um gênio igual ao do
ilustre chefe da sua família, pode contemplar à vontade o céu estrelado, os bosques misteriosos, o vasto mar cujas
ondas agitadas ou tranquilas iam quebrar-se sôbre as plagas da Síria.
“O aspecto dessa natureza tão completa nas suas particularidades, tão hábilmente harmonizada no seu conjunto,
em que tudo é maravilhoso, desde o tecido da flôr e a asa do inseto até êsses mundos errantes que brilham nas trevas da
noite, excitaram a profunda admiração da Virgem para as obras grandiosas do Criador.
“Como é grande, pensava a Filha dos Profetas – como é grande Aquele que dá as suas ordens à estrela da manhã,
e que indica à aurora o ponto do céu em que aparecer; que subjuga o trovão e a quem o raio submisso diz ao
apresentar-se: Aqui estou... Como é grande!... E a sua bondade é igual ao seu poder!
“Ele é quem coloca no coração do homem a candura, e dá aos animais o instinto. Êle é quem olha pelas
necessidades incessantes da criatura, quem dá calor sob a areia ao ovo do avestruz, e vela sôbre o behemoth3 quando
dorme à sombra dos salgueiros da torrente; Êle é quem prepara ao corvo o alimento, quando os filhos andam errantes e
famintos grasnando pelas rochas dos despenhadeiros.

1
Esta saudação foi empregado por Cristo muitas vêzes, e hoje é muito comum no Oriente.
2
Neste vale possuía Zacarias duas casas. A entrevista efetuou-se na primeira, que está mais ao ocidente de Jerusalém, e o nascimento de Batista na
segunda.
3
Animal em que fala o livro de Job. Uns julgam que é o hipopótamo, outros o rinoceronte; porém segundo o Talmud dos judeus é o touro primitivo,
o qual consumia todos os dias a herva de dez montanhas, que tornavam a cobrir-se de nova vegetação durante a noite para o alimentar. Êste touro, no
dia do juízo, será comido pelos fiéis em um banquete presidido pelo Messias que, segundo êles, deve vir ainda salvá-los.

25
“Então, à imitação do Salmista, a Virgem Santa convidava a natureza inteira a bendizer com Ela o Criador. Nas
suas excursões através dos prados comprazia-se na contemplação das flôress, que encontrava ante os seus passos.
“Por detrás da elegante casa do Pontífice hebreu estendia-se um desses jardins, chamados paraizos entre os
persas, e cujo desenho os cativos de Israel haviam tomado do povo de Ciro e de Semíraris. Campeavam nele as mais
belas árvores da Palestina, amenisando os seus atrativos o suave perfume das laranjeiras e os arroios de cristalina água,
que serpenteavam por baixo dos ramos pendentes dos chorões.
“Ali era onde os ternos cuidados de Maria fizeram olvidar a Isabel os seus temores sôbre um sucesso, cuja
esperança a enchia de gôzo, mas que a sua idade avançada podia tornar funesto. Como devia ser grave e religiosa a
conversação destas santas mulheres!
Um, jovem, simples e ignorante do mal, como Eva ao sair das mãos do Criador: a outra, de avançada idade e
enriquecida com uma longa experiência, profundamente piedosa. Uma, trazendo no seu seio, por longo tempo estéril,
um filho que devia ser profeta e mais que profeta, e a outra a semente bendita do Altíssimo, o chefe libertador de
Israel.
Nas formosas noites de verão, quando o pálido brilho da lua alumiava a floresta, debaixo de uma copada figueira
ou dos verdes pâmpanos de uma ramada1 colocava-se a comida da família opulenta do mudo Zacarias, composta do
cordeirinho alimentado com a aromática erva da montanha, de peixe de Sidônia, de favos de mel silvestre, de saborosas
tâmaras de Jericó, que figuravam então até na mesa do César, de damascos da Armênia, de figos de Alepo e de pêssegos
do Egito.
O vinho das colinas de Engahdi, que o mordomo do príncipe dos sacerdotes guardava em cubos de pedra,
circulava em ricas taças que os criados enchiam com semblante alegre.
Maria, tão sóbria no seio da abundância como no da mediania, contentava-se com algumas frutas, um pouco de
pão, e um copo de água da fonte de Naphtoa.
Assim decorreram três meses, durante os quais Maria foi para a idosa Isabel uma filha terna e solícita.
Zacarias, entretanto, mudo e surdo por causa da sua dúvida ante o enviado de Jeová, esperava com santa
resignação que a bondade do céu descesse sôbre êle, devolvendo-lhe os preciosos sentidos que lhe tinha tirado.
Chegou finalmente o tão desejado dia, e Isabel deu à luz um formoso e robusto menino. Grande foi a admiração
e o assombro dos pacíficos habitantes de Ain ao verem aquela anciã, que com o rosto inundado de lágrimas de gôzo,
lhes mostrava o filho com que Deus a amerceara.
Os parentes reuniram-se, e tratou-se do nome que se devia pôr ao recem-nascido. Todos optaram pelo de
Zacarias; porém Isabel disse aos parentes com firme e segura:
- Não, meu filho será chamado João
Então, o velho sacerdote, a quem por sinais os parentes perguntavam, que nome devia pôr-se definitivamente a
seu filho, pediu uma taboinha encerada e um ponteiro, e escreveu estas palavras, com mão firme: “João é o seu nome”.
Os circunstantes entreolharam-se com assombro.
Zacarias era surdo-mudo. Como pois, escrevia o mesmo nome, que sua mulher acabava de pronunciar e que êle
não ouvira? Porém a expiação da culpa tinha terminado, e Deus, com o seu infinito poder, devolvia ao sacerdote hebreu
as preciosas faculdades de que o tinha privado por espaço de nove meses. Zacarias falava e ouvia como antes da
revelação do Anjo, e o povo comentava com assombro êste milagre.
Por fim, chegou a hora em que a Virgem Santa devia abandonar a casa dos seus parentes, e depois de abraçar e
abençoar o recem-nascido, voltou para Nazaré, acompanhada por alguns criados de Zacarias.
O nascimento do Batista foi festejado como o do flho de um príncipe hebreu. Os habitantes de Ain regosijaram-
se por espaço dalguns mêses com as festas, que o sacerdote fez em celebração de tão fausto acontecimento.
Alguns anos depois, os judeus, vendo que João era filho de um sacerdote rico e Jesús de um pobre carpinteiro,
tiveram em mais conta o primeiro que o segundo; pois o filho de Deus não foi para êles mais que um homem comum,
sem importância nem categoria alguma. A preponderância do Batista foi imensa. João tinha passado a sua vida no
deserto, enquanto que Jesus viveu obscuro em Nazaré até três anos antes da sua morte.
Porém quem, não sendo um Deus, teria podido levar a cabo, em tão curto tempo, a obra da redenção que salva a
humanidade?
Os muçulmanos, segundo o célebre helenista Herbelot na sua “Biblioteca Oriental”, conservam uma grande idéia
de S. João Batista, a quem chamam Yahia-bem-Zacarias (João filho de Zacarias). Saadi, no seu Guliston faz também
menção do sepulcro do Batista, venerado no templo de Damasco; nele fazia as suas orações, e refere as de um rei arábe
que foi ali em peregrinação.
O Califa Abd-el-Malek quis comprar esta igreja aos cristãos; porém tendo êstes rejeitado a quantia de quatro mil
dinar (dobras de ouro) que lhes tinha oferecido, armou a sua gente e apoderou-se à viva fôrça do templo que desejava
possuir.
Mais adiante tornaremos a ocupar-nos de S. João Batista.
Agora regressemos a Nazaré, onde nos esperam outros acontecimentos.

CAPÍTULO VI

1
Os hebreus gostam muito de comer debaixo das ramadas, já pelo calor excessivo naqueles climas, já pelo antigo costume dos seus antepassados, que
por tantos anos viveram debaixo das suas tendas durante as suas longas peregrinações – (Fleury, Costumes dos israelitas)

26
O EDITO DO CÉSAR

Formosas donzelas de Nazaré que abris o postigo das vossas janelas, quando a luz da alvorada vos envia do
Oriente os bons dias, vós não madrugais tanto como a casta espôsa de José o carpinteiro. Olhai... Lá vai ela! Sôbre a sua
divina cabeça que há de ver-se rodeada de anjos, descansa o pesado cântaro das nazarenas. Seus pés, ligeiros como os
da gasela, aos quais a lua já de servir de pedestal, deslizam pela senda que vai ter à fonte.
Pelas veias gira-lhe sangue de reis; porém, o trono dos seus antepassados desfez-se sob a pressão das garras da
águia romana, e a corôa descansa sôbre a fronte de um senhor estrangeiro. No entanto, a Virgem não se orgulha da sua
estirpe real: modesta e laboriosa, ocupa-se dos afazeres da casa. Maria recorda-se das palavras do salmista seu
antepassado: “A honra da filha de um príncipe consiste no interior da sua casa”.
A Virgem chega à fonte; algumas nazarenas, que a seguem, chegam também, e trocando a saudação dos
israelitas, dizem-lhe:
- A paz seja contigo.
- A paz seja convosco, respondeu-lhes Maria.
E, colocando o seu pesado cântaro sôbre a cabeça, torna a encaminhar-se para Nazaré pelo caminho dos Nopais.
Então as filhas de Nazaré reunem-se em tôrno da fonte. O estado da Virgem não escapou aos seus curiosos olhares.
Uma delas observa às outras que Maria está grávida; regosijam-se e tenciosam propagar a nova pela povoação.
Entretanto, José trabalhava na sua pequena oficina. O nobre e honrado patriarca nada sabe, porque os seus olhos
são cegos à malícia, e respeita sua espôsa como a uma virgem de Sião. Porém os dias passam, e o estado de Maria faz-
se cada vez mais visível. José não pôde dar crédito ao que os seus olhos vêem: uma tristeza, uma melancolia
inexplicável apodera-se do seu coração. O sono não desce sôbre as suas pálpebras, profundos suspiros saem do seu
peito, e a dúvida começa a estender o mortal veneno pela sua alma simples e reta.
U’a manhã, com o machado ao ombro, toma caminho do Carmelo. As profundas rugas da sua fronte acham-se
carregadas de negros pressentimentos. Com o corpo fatigado e a imaginação preocupada, senta-se à sombra de um
frondoso salgueiro, esquecendo-se do motivo que ali o conduz.
- Será verdade o que os meus olhos vêm? disse a si mesmo. Será possível que Maria, a imaculada Virgem, a
espôsa casta, a mulher de simples e puro coração, tenha esquecido os seus deveres? Como acreditar que tenha iludido a
boa fé do homem, que como pai carinhoso a admitiu em sua casa, respeitando os seus votos? Como acreditar que Maria,
desonrou os meus cabelos brancos? Oh! Não, não; não é possível semelhante cousa.
Então José, suspendendo o seu solilóquio, derramando um mar de lágrimas, permaneceu mudo e silencioso por
alguns instantes.
- Ela foi reconhecida grávida1 - tornou a murmurar o patriarca – todo Nazaré o sabe; os meus parentes já
vieram felicitar-me, e as suas palavras de jubilo e alegria foram setas que se me cravaram no coração, porque êles
ignoram o casto laço que nos une. Que hei de fazer, Deus de Sião?... Viverei debaixo do mesmo teto em que vive u’a
mulher adúltera? Hei de cobrir-me de infâmia faltando à lei? Taparei os ouvidos às palavras de Salomão, que nos disse:
Aquele que tem consigo uma mulher adúltera é um louco, um insensato?
Como devia sofrer aquele santo varão nos momentos de dúvida que o devoraram! Faltar à lei ou desonrar sua
espôsa, eram os dois caminhos que a sua crítica situação lhe apresentava.
A paixão dos ciumes é dura como o inferno, e o marido não perdôa, no dia da vingança. Isto disse Salomão.
A mulher adúltera deve morrer, escreveu o grande legislador dos hebreus no monte Sinai.
Os ciumes eram terríveis entre os israelitas: a história apresenta-nos exemplos cruentos. A suspeita só de um
crime, que odiavam, armava a mão do ultrajado espôso, e o ferro homicida tornava para a sua bainha manchado com o
sangue da mulher culpadaa. Diná, Tamar, Mariana, e outras muitas, são os exemplos que a história nos apresenta. O
bastardo, maldito até à décima geração, via-se privado de todas as prerrogativas, de todos os direitos concedidos aos
hebreus. Seus pés impuros não podiam entrar nas sinagogas; as assembléias nacionais fechavam-se para êles, e as
escolas do estado negavam-lhes as luzes da ciência.
Tôdas estas idéias agitavam-se tumultuosas na mente do patriarca, quando Deus, compadecido da sua angústia,
lhe mandou sôbre as pálpebras o fluido reparador do sono. José fechou os olhos, requeimados pelas lágrimas de fogo
que havia derramado à sombra do solitário salgueiro. Uma nuvem brilhante, côr de opala, desceu então do céu e
estendeu-se como uma rede sôbre a frondosa árvore. Seus flutuantes reflexos envolveram-lhe os ramos pendentes. Uma
voz doce e misteriosa saiu de entre as prateadas rendas da nuvem, dizendo:
- “José, filho de Davi, não receies ter contigo Maria tua espôsa, porque o que nela se gerou foi formado pela
virtude do Espírito Santo; Ela dará à luz um Filho a quem porás o nome de Jesús, porque será o Salvador do seu povo,
livrando-o dos seus pecados.”
O rosto de José, ao despertar de tão formoso sonho, transbordava de felicidade. Suas suspeitas haviam-se
desvanecido como as ligeiras nuvens ante o sôpro sutil da noite. Seu espírito vacilante, fortalecido e forte com as
divinais palavras da misteriosa revelação de Jeová, já não o atormentava. O braço, desfalecido e lânguido poucos
momentos antes, começou a vibrar golpes de machado sôbre os altivos pinheiros, como se quisesse recobrar com a
atividade as horas perdidas.

1
Os Evangelhos.

27
José adorou os misteriosos decretos do Eterno, e vendo em Maria, a mãe do futuro Redentor, envergonhou-se
das suspeitas que concebera.
Decorreram alguns meses. Os ventos do outono começaram a despejar os ramos das árvores das amareladas
folhas, e as névoas de outubro anunciavam as próximas neves, quando u’a manhã a trombeta de um arauto romano
encheu de curiosidade e desalento os pacíficos habitantes de Nazaré.
Assim, como as espantadas abelhas revoloteiam em torno da colmeia, assim os nazarenos se agitavam em redor
dos soldados romanos, ansiosos por saberem qual o motivo, que à indefesa povoação os conduzia, armados do escudo
de guerra e da lança do combate. A sua incerteza durou pouco, porque um centurião, agitando uma bandeira pequena,
indicou ao arauto que podia cumprir sua missão; êste levou aos lábios a comprida trombeta, e depois de tirar do bélico
instrumento duas prolongadas notas, pronunciou com voz clara e vibrante estas palavras:
Quirino, Governador da Síria por odem de Cesar Augusto, imperador de Roma, conquistador da Asia, do Egito,
da Síria, da Judéia, da Fenícia: manda e ordena que todos os hebreus da baixa Galiléia se vão inscrever por famílias ou
por tribos, passando às cidades dos seus maiores, para que no prazo de tres meses o Cesar saiba os súbitos que tem nos
países conquistados com o poder das suas legiões. Aquele que desobedecer sofrerá a multa de seis carneiros, sendo rico,
e sendo pobre será açoutado com varas. Que a vontade do senhor do mundo seja cumprida.
A curiosidade dos nazarenos estava satisfeita; porém, o edito do ímpio império (assim chamavam os hebreus
aos império romano) havia-os deixado tristes e com o coração comprimido. No entanto, era necessário obedecer. Que
podiam fazer os israelitas senão acatar as ordens do seu senhor? A monarquia hebrêa, tão altiva, valente, e estimada no
tempo do rei poeta, não era reinado de Herodes mais que um rebanho de servos, que lambiam a mão que os carregava
de grilhões.
- Nada de bom pode sair da Galiléia, haviam dito as Escrituras.
E os profetas designavam Belém de Judá como o lugar destinado ao nascimento do Messias.
José dispôs-se a empreender uma viagem para cumprir com as ordens de Cesar. Belém era a cidade dos seus
maiores. Os misteriosos decretos de Jeová conduziam-nos à cidade escolhida, sem que êle mesmo o suspeitasse. Os
idólatras romanos eram o instrumento de que o Eterno se servia, para que as profecias se cumprissem.
A neve começava a cair sôbre as montanhas da Samaria, e o solitário Líbano, envolvido no seu branco sudário de
inverno, enviava as suas gélidas brisas desde as margens do Leontes até às costas tempestuosas da Fenícia. As
encrespadas ondas do Mediterrâneo quebravam-se com furor sôbre as plagas de Tiro, Sidon e Berito; e as nuvens
senhoras do espaço transportavam as tempestades do inverno desde os confins da Betânia, até aos desertos a Iduméia.
Todavia o rigor da estação não deteve José na sua viagem. Longa era a distância, árido e perigoso o caminho que tinha
de atravessar; porém era preciso obedecer às ordens do Cesar. Pôs a confiança em Deus, e abandonou Nazaré em uma
manhã fria e chuvosa do mês de dezembro.
Era o ano 752 de Roma e 42 do império de Otávio Augusto1 quando o humilde nazareno abandonou a sua
modesta casinha e a tranquila paz do seu lar, para se dirigir com a sua virginal espôsa à cidade de David. Maria, como
tôdas as filhas do Oriente, ia montada em uma formosa jumentinha de branca e fina pele2 do galhardo animal pendiam
duas cestas de palma com as provisões da viagem e uma vasilha de barro para tirar água das cisternas. José caminhava
ao seu lado. Com uma das mãos conduzia a jumentinha pelas rédeas, e com a outra apoiava-se a um nodoso cajado.
O dia anunciava chuva; o céu começava a cobrir-se de escurar e espessas nuvens. José tirou dos seus ombros o
manto de pele de cabra e colocou-o sôbre as delicadas costas de sua espôsa, afim de a preservar da chuva que começava
a cair; e confiando em Deus prosseguiram a marcha em direção à cidade sacerdotal. Chegou á noite, e os santos
caminheiros hospedaram-se em um desmantelado Karavanseray que nas faldas do monte Naim servia de refúgio às
fatigadas caravanas da Galiléia e da Samaria.
Ali, afastados dos outros viandantes que pernoitavam ao abrigo do karavanseray, os pais de Messias passaram
as horas das trevas sem mais cama que a capa de peles, sem mais alimento que as duras e delgadas tortas dos nazarenos,
os figos secos e as uvas criadas nas margens do vale de Zabulon.

CAPÍTULO VII

O BERÇO DO MESSIAS

1
A época da vinda de Cristo não é dogma: é sómente o seu nascimento. A multidão de autores que escreveram sôbre este assunto, discrepa de
maneira notável. Deixando as várias opinões dos autores, por grande que seja a sua autoridade, seguiremos o que a Igreja diz no seu Martirológico:
“No ano 5099 da criação do mundo, quando no princípio criou Deus o céu e a terra; desde o dilúvio 2957; do nascimento de Abraão 2085; de Moisés
e da fuga do povo de Israel do Egito 1510; desde que Davi foi ungido rei 1032; cumprindo-se as sessenta e cinco semanas, segundo a profecia de
Davi; na Olimpíada 194; no ano 752 da fundação de Roma; no ano 42 do império de Otávio Augusto; estando em paz todo o orbe; na sexta idade do
mundo; Jesus Cristo, Deus Eterno e filho do Eterno Pai, querendo consagrar o mundo com a sua piedosa vinda, em Belém de Judá nasce da Virgem
feito homem”.
2
Os jumentos da Palestina são de notável beleza.

28
E tu, Belém chamada Efrata, tu és pequeno entre as cidades de Judá, porém de
ti sairá Aquele que deve reinar em Israel, e cuja geração teve princípio desde a
eternidade. – (Micheas)

Belém, pérola de Judá, tu, qual fatigada rola da Palestina, pousas nas cumiadas dos montes para respirar o
perfume dos teus tempos. Pelas tuas formosas colinas trepam os verdejantes pâmpanos, que te oferecem o sumo
delicioso, quando o sol do estio amadurece o transparente bago. Os bosques de oliveira e azinheiras também te
oferecem os seus frutos e a sua sombra durante as abrazadoras horas da canícula. As laranjeiras dos teus jardins
perfumante com a essência da sua flôr, e as anêmonas e os narcisos dos teus vales enviam-te os seus aromas e esmaltam
o teu solo com delicadas côres.
Cidade predileta, apreciada jóia que Deus contempla com amor do seu excelso império: tu foste o berço de um
pastor, que depois de conduzir os seus mansos rebanhos pelos teus pitorescos vales, levou o estandarte de Israel até as
margens do Eufrates. Tu serás o berço de um Deus que vem ao mundo ser o humilde Pastor das almas. Davi e Jesus
receberam no teu seio a primeira carícia de suas mães; e o primeiro sôpro da vida estava impregnado do suave aroma
dos teus floridos outeiros.
Belém, terra imortal, cidade santificada, desperta do teu sono, porque está a amanhecer o dia, e uma multidão de
dromedários trepa pela tua suave encosta.
Inocentes belemitas, assomai às janelas, porque os viajantes aproximam-se dos vossos pacíficos lares. O edito do
César fá-los deixar as suas casas e encaminhar-se para as vossas. Olhai para as ricas herdeiras da Palestina montadas
nas suas esbeltas e brancas jumentinhas: os seus mantos de púrpura de Tiro flutuam ao vento como as bandeiras de
Sião; os seus véus de transparente cambraia envolvem-lhes as cabeças, ocultando aos curiosos olhares o rosto das suas
donas.
Os cavalos árabes, esporeados pelos cavaleiros luxuosamente vestidos, relincham e caracolam, manifestando
assim o fogo do seu sangue e a pureza da raça.
Também se vêem liteiras de cedro e marfim com ricas cortinas de seda de Damasco, conduzidas por homens
cujos negros e longos roupões mostram a baixeza da sua classe e a opulência de senhor que conduzem: e velhos
veneráveis, com as pernas cruzadas sôbre as gibas dos camelos, e humildes caminheiros sem mais apoio que o nodoso
cajado, que as suas mãos comprimem.
Todos caminham para Belém, porque Cesar assim o ordenou. Porém como poderá uma cidade pequena, que
como um ninho de pombas descansa sôbre os outeiros da montanha, conter em seu seio tanta gente? Os belemitas
abrem as portas e oferecem aos forasteiros as suas casas, e a cidade enche-se de estrangeiros, que correm a inscrever os
nomes no grande livro de Cesar. Nas suas estreitas ruas agita-se como um formigueiro a multidão que a invadiu. A
cidade sacerdotal, a grande Jerusalém, não esteve nunca tão concorrida, tão animada, nas festas dos Asmos, como
Belém no dia 24 de dezembro do ano 5099 da criação do mundo.
José e sua espôsa, obedientes às ordens do imperador pagão, chegaram também naquela dia, depois de seis
jornadas penosas, a inscrever os nomes na cidade de Davi. O santo marido da Virgem deteve-se diante de um edifício
de paredes brancas e portas grandiosas, que se erguia a poucos passos da cidade. Aquela casa tinha-se preparado para
receber os viandantes ricos de Israel. A imitação das grandes pousadas da Pérsia, seu dono oferecia aos forasteiros, em
trôco de algumas moedas de prata, toda comodidade desejada em semelhantes casos.
José, coberto de pó, desfalecido pelo cansaço deteve-se a poucos passos de distância do branco edifício, e
deixando a espôsa à sombra de umas oliveiras, encaminhou-se só para a casa branca em procura de um aposento onde
pudesse hospedar-se. Pela larga abertura das portas via-se no interior revolver-se uma grande multidão de hebreus,
cujos luxuosos trajos mostravam a opulência da sua fortuna.
Um velho judeu de catadura repugnante, miserável vestuário e amarelada côr, achava-se sentado em um banco
de pedra a dois passos da porta principal. Diante dele via-se uma tôsca e suja mesa, sôbre a qual estava uma pequena
arca de ferro aberta, em cujo fundo brilhavam algumas moedas de prata e ouro. Sua mão descarnada apertava um
ponteiro, com o qual ia inscrevendo sôbre uma taboazinha encerada o nome dos seus hospedes.
- A paz seja contigo, bom velho, disse José saudando o judeu.
- Que queres?
- Minha espôsa e eu vimos escrever os nossos nomes no livro de Cesar; somos de Nazaré, e pedimos-te por
Jeová que nos concedas um pedaço de teto onde nos alberguemos.
- A minha casa está aberta para o viajante que paga a hospedagem.
- Nós, amigo, somos pobres; não temos um miserável sestércio.
- Nada de bom nos vem da Galiléia, redarguiu o judeu.
E voltando grosseiramente as costas a José, pôs-se a falar afávelmente com um romano, cujo cinturão de ouro e
brunido capacete apregoavam sua alta categoria militar.
José, exalando um suspiro, afastou-se daquela porta e foi juntar-se a sua espôsa.
- Entremos na cidade, respondeu a Virgem com doçura. Talvez lá achemos uma alma caritativa que nos hospede.
Os dois consortes dirigiram-se para Belém. Pobres como os errantes peregrinos que mais tarde deviam percorrer
a Palestina para adorarem o Santo Sepulcro de Cristo, José e Maria atravessaram as estreitas ruas de Belém, sem
encontrarem uma casa caridosa que lhes abrisse as portas.
O sol começou a ocultar-se e ainda os pobres nazarenos não tinham um telhado onde pudessem passar a noite,
que ameaçava ser fria e chuvosa. No entanto, a resignação via-se pintada nos seus semblantes, e nem uma só queixa
saiu dos seus lábios durante aquelas longas horas de angústia.

29
A casta espôsa, a imaculada Virgem, achava-se no último mês de gravidez, e José, ao vê-la sorrir ante a desgraça
e a pobreza que os cercava, sentia despedarçar-se o coração. O nobre operário batia a uma e outra porta, suplicando com
palavras doces que lhe concedesse, para passar a noite, o canto mais desprezível da casa.
- Não cabes aqui, galileu, respondiam-lhe os inopistaleiros habitantes de Belém.
E José, tornava a suplicar, e as suas súplicas eram desatendidas.
Terna Virgem de Sion, inexgotável fonte de caridade e ternura, mãe puríssima e imaculada que levas nas tuas
virginais entranhas o Verbo Divino e que não achaste um sorriso compassivo, nem mão carinhosa, nem casa
hospitaleira que te recebesse com amor, a Ti que és toda afeto e caridade! Jeová, nos seus misteriosos designios, quis
pôr à prova a tua inexgotável paciência, a tua incomparável resignação e a tua bondade. Já fatigados de andar, a noite
veio surpreender os santos forasteiros em um extremo da cidade. Ante os seus tristes olhos estendia-se a solitária
campina de Belém. Rodeava-os o silêncio da morte.
A lua com os seus melancólicos raios alumiava o santo grupo que imóvel e indeciso, não sabia para onde dirigir-
se. O uivo do lobo e o estridente regougar dos chacais começaram a ouvir-se nas vizinhas espessuras, anunciando a hora
de sairem dos seus covis.
Os santos esposos encontravam-se ao sul de Belém, e não muito longe da cidade que lhes tinha negado
hospitalidade, quando um raio claríssimo e brilhante da lua incidiu do céu sôbre um penedo que se achava a poucos
passos do lugar que ocupavam. Pela parte do norte a imensa fraga apresentava um ponto escuro, José aproximou-se para
reconhecer o terreno que o rodeava. De repente deu um grito de alegria. Aquela mancha escura da pedra era a entrada
de uma caverna bastante espaçosa que, estreitando-se para o interior, servia de curral aos rebanhos dos belemitas e
algumas vêzes de asilo aos pastores nas noites de tempestades. Os dois esposos deram graças ao céu por lhes ter
deparado aquela asilo selvagem; e Maria apoiando-se ao braço de José, foi sentar-se sôbre uma pedra nua que
formava uma espécie de assento estreito e incômodo.
Pouco a pouco seus olhos foram acostumando-se à obscuridade que os rodeava ; e então viram que não estavam
sós. Um boi manso e tranquilo ruminava pausadamente os últimos restos do seu jantar.
José colocou a jumentinha junto ao boi, em seguida estendeu o manto de peles aos pés da Virgem, e sentou-se
sem descerrar os lábios.
Maria, a imaculada nazarena, a filha de Davi, a imortal senhora nossa, deu à luz naquele miserável presépio, sem
socorro, o Messias prometido, o Rei dos reis, o Filho de Deus.
A terna mãe colocou o Divino, recem-nascido sôbre a palha da mangedoura e, ajoelhando aos seus pés adorou-o
como ao enviado do céu. José imitou sua espôsa.
A noite era fria, a caverna, húmida e desabrigada: acender luz era impossível; porém o manso boi e a inofensiva
jumentinha prestaram o suave e temperado calor da sua respiração para abrigarem o Divino Infante.
Entretanto Maria, inundada de lágrimas de prazer, contemplava o terno Menino, que lhe enviava um sorriso
carinhoso.
- Como vos hei de chamar? exclamou a Filha dos patriarcas inclinando-se sôbre seu Filho. Imortal? Eu
concebi-vos por obra divina! Devo aproximar-me de Vós com o incenso, ou oferecer-vos o meu leite? Serás
necessário que vos prodigalize os cuidados de mãe, ou que vos sirva como escrava com a fronte no pó?1
A lua, desfeita em mil raios de prata, caia sôbre tão terno e encantador quadro, esmaltando-o com a sua suave e
formosa luz.
Deus tinha nascido: a humanidade ia brotar do seu berço. Os deuses do paganismo resvalavam dos impuros
altares; os sacrificadores de Roma não achavam o coração das vítimas.
Uma estrêla apareceu no Oriente: Gabriel anunciava aos pastores o nascimento de Cristo.
Herodes, o cruel idumeu, estremeceu; e com êle toda Jerusalém. Todos êstes prodígios anunciavam um
acontecimento assombroso, que ia encher de contentamento o coração da aflita humanidade. Êste acontecimento era que
Jesus nascia em um presépio, que o Cristianismo brotava do seio de uma viagem em um pobre curral da cidade de Davi.

LIVRO TERCEIRO

OS PEREGRINOS DO ORIENTE

Hei de vê-lo, mas não agora, hei de olhar para êle, mas não de perto. De Jacó
nascerá uma Estrêla, e de Israel se levantará uma vara; e ferirá os caudilhos de Moab
e destruirá todos os filho de Seth.
E a Iduméia será propriedade sua: a herança de Seir cederá aos seus inimigos,
porém Israel procederá com esfôrço.
De Jaó sairá aquele que há de dominar e destruir as relíquias da cidade (Liv.
dos Números cap. XIV, Vaticinio de Balaão)

1
S. Basílio

30
CAPÍTULO I

OS PASTORES

Algumas choças humildes agrupadas pelo amor na raiz de um monte indicavam ás peregrinas caravanas que
aquilo era uma povoação. Esta povoação chamava-se o povo dos Pastores.
A meia légua de distância da cidade de Davi, os seus simples habitantes passavam a modesta existência
alimentando os rebanhos com a verde erva dos vales, e a sua esperança de israelita com (a anunciada vinda do Messias,
que havia de libertá-los do jugo estrangeiro.
Era o mês de dezembro, e o curso das estrêlas marcava meia noite.
Agrupados em redor de uma fogueira extinta, debaixo do frágil teto de uma choça, achavam-se alguns pastores
velando pelas suas adormecidas ovelhas. O frio era extremo. Entre os pastores via-se um velho de branca e comprida
barba, e em cuja venerável cabeça brilhavam a honradez e a virtude dos antigos patriarcas. Sentado sôbre uma pele de
carneiro, com os cotovelos sôbre os joelhos e a cabeça entre as mãos, achava-se imóvel como Ló, na presença do
enviado do Senhor.
- Má profissão é a do pastor, velho Sof, quando se tem que estar de vela em uma noite como esta.
- Tens razão, mancebo, respondeu o velho sem levantar a cabeça; porém Abraão foi pastor e era melhor que nós;
e isso deve consolar-te.
- Porém, êsse patriarca criava a lã dos seus rebanhos para seus filhos, enquanto que nós só trabalhamos para
pagar o tributo a Cesar e alimentar os vícios dos ímpios romanos que, em má hora, invadiram nossa terras.
- Os romanos, que Jeová confunda, riem-se dos sofrimentos dos judeus, disse outro pastor intervindo na
conversação.
- Como para êles não somos mais que um bando de escravos...
- Ai dos ímpios romanos! Ai dos torpes adoradores do sombrio Molok e da lúbrica Venus, se o Messias
prometido desce dos céus a salvar os filhos de Israel da escravidão!...
E ao pronunciar estas palavras, nos olhos da ancião na expressão do seu semblante, via-se algo extraordinário e
profético.
- Muito tarde, o Messias, bom velho, atalhou outro pastor. E, entretanto, o sanguinário Herodes trata-nos como
cães e ri-se da nossa dôr e das nossas esperanças.
- Respeitemos os decretos e desígnios de Jeová.
- Melhor seria se todos os israelitas corressem a unir-se com os bandos de homens livres da montanha para
expulsarem os estrangeiros de Judá.1
- Os assassinos e os salteadores, nunca podem devolver a liberdade aos filhos de Abraão. Só ao Messias é
permitido gular-nos na noite escura do nosso infortúnio. Esperemos, pois, a sua vinda.
- A paz de Deus seja convosco, disse uma voz doce e harmoniosa, a cujo acento se comoveu o coração do
ancião, que se pôs em pé.
- Quem é? Entre com Jeová, disse o velho pastor. Se fôres viandante e procuras albergue, entre e toma a minha
pele de carneiro par a tua cama; se tens fome, vem servir-te do pão do pobre e do leite das suas ovelhas.
O recenvindo entrou na choça. Era um adolescente de vinte anos. Os seus olhos eram azuis como as violetas de
Jericó. Seu olhar, doce e benévolo, como o de uma virgem do tempo de Sion. Seus cabelos, louros como as espigas do
Egito. Os lábios vermelhos como o pequeno fruto do terebinto. A fronte radiante como o céu da Palestina em um
formoso dia de janeiro. Uma túnica alvíssima como a castidade cobria-lhe o corpo em inumeráveis dobras. No meio do
peito brilhava-lhe uma estrêla formosa, cujos raios luminosos iluminaram com viva claridade os escuros recantos da
choça.
Aquela formosa aparição encheu de assombro os pastores.
- Quem és? – perguntou o ancião com espanto.
- Gabriel me chamo, e venho dar margens do Tigre guiando três reis magos do Oriente que abandonaram a
populosa cidade de Seleucia para me seguirem.
- Vens acaso livrar-nos da opressão dos romanos? – exclamou o velho pastor com alegria.
- Venho anunciar o Messias prometido, que acaba de nascer.
Os pastores olharam atônitos com receiosa curiosidade para Gabriel.
- Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens! Ajuntou o recem-chegado.
Do seu corpo saiam torrentes de clara e viva luz. Cânticos celestiais ecoaram no espaço, repetindo:
- Glória a Deus, paz aos homens! Glória nos céus, paz na terra ás criaturas de pensamento humilde e de
coração singelo.
Os pastores, assombrados e tímidos ante aquele prodígio, começaram a retroceder.

1
Estes bandos de homens livres sobressaltavam bastante a Herodes e aos romanos. Alguns tinham uma bandeira política; outros não eram mais que
hordas de assassinos que entravam às vêzes em Jerusalém, cometiam crimes horríveis á luz do meio dia e no meio das ruas. – (Flavius Josephus)

31
- Nada receieis, disse-lhes Gabriel, porque eu venho trazer-vos uma nova que será para todos motivo de
grande alegria. Hoje na cidade de Davi nasceu o Salvador que é Cristo. Eis aqui o sinal para o encontrardes; em
panos deitado em uma mangedoura encontrareis um menino; esse é o Messias.
O desconhecido mancebo dispunha-se a abandonar a choça, quando o velho pastor, prostando-se-lhes aos pés,
exclamou:
- Antes de abandonar-nos, dize ao menos quem és.
- Sou Gabriel, o anjo emissário de Deus sôbre a terra.
O anjo desapareceu, a brilhante claridades dissipou-se, os cânticos celestes cessaram. Então os pobres pastores
olharam uns para os outros com assombro.
- Abraão! Abraão! – exclamou o velho jubilosamente. Deus sem dúvida quer que os bons tempos voltem, pois os
anjos descem do céu a visitar os homens.
Os simples pastores, loucos de alegria, pela graça que Deus lhes concedia, sairam da choça; e deixando os
rebanhos sem mais guarda que a silenciosa noite, correram a despertar amigos e parentes para participar-lhes a
venturosa nova. O povo em massa abandonou os seus humildes leitos apesar do frio e do adiantado da noite, e
carregando em uma formosa jumentinha todos os dons que a sua pobreza tencionava oferecer ao recem-nascido,
encaminhou-se para Belém. O velho pastor ia adiante. Como Zorobabel, pôs-se à frente dos seus compatriotas para os
conduzir á terra desejada. O arrabil e os tamboris lançaram ao ar as suas pastoris melodias. As jovens dançavam, e os
rapazes soltando alegres cantos, faziam mais curta a distância que os separava do Cristo prometido. A alegre comitiva
chegou por fim a venturosa cidade que Deus tinha escolhido para pátria nativa do seu Filho. Os pastores detiveram-se
ante as primeiras casas para tomarem uma deliberação.
- Onde está o Messias? perguntaram as curiosas mulheres ao ancião. Queremos adorá-lo e depositar a nossa
pobreza aos seus divinos pés.
O velho pastor não sabia que responder. Belém, apesar de não ser uma cidade muito populosa, era-o bastante
para não se encontrar de pronto à meia noite uma criança recem-nascida. Um acontecimento sobre natural veio porém
indicar o que os pastores procuravam. Uma estrêla, lá do azul escuro do firmamento, dardejava um raio de formosa e
clara luz sôbre o negro pórtico de um curral.
Os pastores voltaram a cabeça, como levados por um impulso alheio à sua vontade, para o ponto onde incidia o
raio estelar.
- É aqui! Exclamaram todos com alegria e com uma certeza que admirava a êles mesmos. Entremos...
E penetraram no curral. Deitado em uma mangedoura, sem mais leito que um montão de palha, achava-se um
menino recem-nascido, formoso como devia ser o Filho de Deus, gerado nas virginais entranhas de Maria. Aquele
menino era o prometido Messias, o Homem-Deus que baixava à terra para morrer mártir pelos pecados da humanidade;
José e Maria, junto à mangedoura, contemplavam com afeto aquele sagrado depósito que Deus lhes confiava. A entrada
dos pastores fez-lhe afastar os olhos por um momento de seu filho.
- Senhora, disse o mais velho dos pastores, ajoelhando-se, Tu deves ser uma rainha visto que um anjo do céu nos
manda adorar teu Filho; aceita, pois, estas pobres oferendas que a teus pés vêm depositar os simples pastores. A
mesquinhez dos nossos dons é suprida pela boa vontade com que os trazemos. Assim, pois, julgarnos-emos ditosos se
os teus divinos lábios, ao depositarem o beijo maternal no Messias que dorme na palha, intercederem por nós com o
enviado de Jeová, com o Salvador do povo abatido de Israel.
Ao terminar o ancião as suas palavras, vários pastores depositaram aos pés da Virgem as humildes oferendas que
traziam, e uma donzela, colocando-lhe no regaço um cordeirinho, ajuntou:
- Oh! Mãe de Deus! Branca, como as neves eternas do Arará, é a côr deste cordeirinho que trago ao meu Senhor:
suave como os cabelos de Absalão é a lã que envolve as suas delicadas carnes; puro como o sorriso dos teus lábios,
doce como o olhar dos seus olhos é o seu coração; aceita-o, pois, Senhora, e com êle o gôzo e a alegria de meu pai Sof,
a quem Deus concedeu este imenso favor de prestar este pequeno tributo ao Cristo anunciado pelos profetas, antes de
exalar o último suspiro.

- Aceito, meus bons amigos, em nome de meu adorado Filho, com lágrimas de gratidão, os presentes que me
trazeis. Jeová, que está olhando por vós e lê nos vossos corações, vos recompensará como mereceis.
Maria e José receberam com carinhoso afeito os dons dos pastores simples. Enquanto que uns após outros se
ajoelhavam junto ao presépio, para beijarem a palha em que Jesus descansava, o arrabil e os tambores faziam ouvir as
suas campestres melodias, as donzelas dançavam alegres ante o Menino Deus e seus augustos pais, e os rapazes
elevavam louvores ao Deus de Sion.
A lua com os seus raios de prata alumiava aquele poético e singelo quadro, e o Eterno, do seu trono imortal,
abençoava os rústicos pastores que iam beber a primeira gota da fecunda água do Cristianismo ao pé do pobre berço de
seu Filho.
Os pastores abandonaram o presépio depois de terem adorado Jesus e, loucos de alegria, correram a espalhar a
boa nova por todos os contornos de Belém.
- O Messias nasceu! Bradavam com fé e entusiasmo os verdadeiros descendentes de Abraão. Está salvo Israel!
Glória a Deus nas alturas.

CAPÍTULO II

32
OS ÁRABES

A luz do dia flutuava indecisa por entre as sombras da noite. As pombas ainda não arrulhavam nos frescos
cedros do Líbano, quando uma caravana árabe que ladeava as faldas do Carmelo, se deteve à voz do seu chefe, junto à
fonte do profeta Elias. Os obedientes camelos dobraram as nodosas pernas, oferecendo desde modo fácil descida aos
seus senhores. Alguns árabes, envoltos nas brancas túnicas de lã, apearam-se e, estendendo sôbre a erva uns panos de
vistosas côres, sentaram-se cruzando as pernas junto a umas oliveiras. Os camelos estenderam o comprido pescoço e
aplicaram o focinho ao fresco manancial que brilhava ante os seus olhos e começaram a ruminar sossegadamente o
penso de favas secas que lhes tinham colocado em sacos pendentes das suas cabeças. Um dos árabes limpou uma pedra
e, colocando sôbre ela alguns punhados de trigo, começou a triturá-lo com outra pedra; depois, fazendo uma espécie de
massa com água da fonte e um líquido extraído de uma vasilha de barro, foi apresentar aos seus mudos companheiros
aquele estranho e frugal almoço. Comeram todos daquela massa e, elevando os olhos para o Oriente, murmuravam em
voz baixa uma oração. De repente os silenciosos árabes interromperam sua oração e, afastando os olhos do céu,
procuraram na terra alguma cousa que sem dúvida promovia sua curiosidade.
- Ouves, Hassaf? disse um dos árabes. Que dizes desta música campestre, misturada com o canto da voz humana,
que chega até nós através das sombras silenciosas da noite, e das palmeiras e das árvores da montanha?
- Digo que morreu algum desses orgulhosos descendentes de Abraão que sofrem o judo dos romanos, e que os
seus parentes o conduzem ao vale de Josafá.
- O eco que chega até nós não é o gemido triste e monótono das carpideiras; ouve...
- Tens razão. É um canto alegre e os gritos com que o acompanham são de contentamento.
- Parece que as vozes se aproximam de nós e, nesse caso...
- Vamos! Atalhou o outro, encolhendo os ombros. Os judeus perderam seu antigo valor; fanáticos crentes das
suas tradições e dos seus profetas, sua vida é uma esperança, e entretanto nascem e morrem escravos.
- Ibraim, sabes onde estamos? Perguntou Hassaf ao interlocutor.
- Junto à fonte de Elias.
- Pois bem, Elias era um raio do Deus dos israelitas, e êles vêm beber desta água porque dizem que endurece o
coração e aumenta o valor.
- Bem sei que nas grutas do Carmelo se refugiam os terríveis discípulos desse profeta; porém nunca atacam os
árabes, mas os romanos. Nossa frontes, tostadas pelo sol do Egito e pelo simun do deserto, agradam-lhes menos que os
rostos rosados e os perfumados cabelos desses mercenários do idumeu, que na sentina do mundo beberam o leite das
suas prostitutas amas.
- Confia menos no teu valor, atalhou Hassaf, e lembra-te de que êsses camelos que estão descansando, e a pesada
carga que levam são a única fortuna de nossos filhos.
- Uma caravana árabe que, como a nossa, conta quatorze condutores, não se rouba tão facilmente.
- Alá nos deixe voltar sãos e salvos à nossa terra e com o trigo bem vendido.
- Êle te ouça, responderam vários árabes, que até então não haviam proferido palavra.
A gritaria, a algazarra, o canto dos homens e os sons dos instrumentos, iam aproximando-se cada vez mais da
fonte, junto da qual haviam acampado os árabes. As sombras escuras da noite começavam a dissipar-se. Uma linha tíbia
e indecisa claridade anunciava os primeiros crepúsculos da aurora. Os árabes puseram-se em pé, ao verem uma sombra
deslisar-se por entre o mato.
- Quem vem lá? Perguntou Hassaf, empunhando o comprido punhal.
- Nada tema o árabe, respondeu uma voz.
E imediatamente apareceu um jovem entre os comerciantes do Egito.
- Que queres? volveu a perguntar.
- Água, respondeu lacônicamente o recem-chegado, aplicando a boca ao fresco manancial que deslisava entre os
camelos.
- Quem és? tornaram os árabes a perguntar.
- Um discípulo de Elias.
Então Hassaf aproximou-se de um dos camelos, introduziu a mão em uma cesta de palma, e tirando dela um
punhado de pêssegos secos, disse:
- Toma. Os árabes oferecem-te a amizade ao darem-te o fruto da sua terra; já sabes que quando um filho de Agar
reparte com um forasteiro a sua frugal comida, é porque a sua pessoa lhe é sagrada desde aquele instante.
- Bem sei, respodeu o jovem desconhecido, sentando-se entre os árabes e comendo sem receio.
Seu semblante, ainda que um tanto pálido, era formoso, pois seus grandes e negros olhos tinham uma viveza que
admirava. Um saio comprido de lã escura cobria-lhe o corpo e as sandálias de pele de lobo preservavam-lhe os pés das
espinhosas plantas do monte. Êste mancebo tinha o quer que era de extraordinário. Poderia ser tomado por um demente:
no entanto seu semblante respirava doçura e resignação, traços que formavam contraste com a sobriedade das suas
palavras e com o desalinho do seu vestuário.
Os árabes contemplaram-no em silêncio com êsse olhar frio e investigador dos filhos do deserto. O moço
estrangeiro continuava a comer com a mesma indiferença como se estivesse só em uma das sombrias cavernas do
Carmelo. Entretanto, o longínquo e alegre ruído dos árabes e dos cantos ia-se aproximando cada vez mais da fonte de

33
Elias. Os árabes começaram a distinguir por entre as árvores o grupo dos alegres e madrugadores pastores que para êles
se encaminhava. Os mercadores egípcios conheceram desde logo que aqueles novos hóspedes eram gente de paz.
- Alto! Alto! Gritaram os pastores agrupando-se em volta dos camelos.
- Sim, alto! Ajuntou uma pastora com alegre e sonora voz. Bebamos da água santificada pelo profeta Elias, e
continuemos a jornada, se os da caravana o permitirem.
- A água é do céu. Deus derrama-a sôbre a terra para aplacar a sêde dos homens. Maldito seja aquele que a negar
aos seus semelhantes! Afogado se veja por falta de água entre as áridas areias do deserto!.
O árabe que pronunciou estas palavras apresentou com gravidade um púcaro de ferro à pastora, a qual foi enchê-
lo na fonte, fazendo-o passar depois de mão em mão pelos seus companheiros.
- Aonde vão os pastores tão alegres e contentes? Perguntou um dos árabes da caravana.
- Vamos, respondeu um velho de branca e venerável barba, espalhar pelos povos da Galiléia a fausta nova de que
é vindo o Messias anunciado pelos profetas.
- Estás louco, ancião? replicou o árabe sorrindo.
- Estrangeiro, nunca tive o juízo tão são e os gracejos não ficam bem aos meus cabelos brancos.
- Pelo meu rei Aretas, hebreu, não te compreendo.
- O anjo Gabriel apareceu-nos na nossa choça. Eu o vi, e êstes que me seguem tiveram a mesma dita. A luz
celeste de Jeová caiu sôbre as nossas cabeças; o canto harmonioso dos anjos ecoou aos nossos ouvidos; a estrêla guiou
os pastores da serra até junto do berço do seu novo Rei, que deve libertar do opróbio o povo israelita.
Os árabes olharam com assombro uns para os outros. Aquêle velho era um visionário ou um profeta? O que
acabava de referir era uma verdade, ou uma ilusão fingida pelo desejo de todo o israelita? A curiosidade dos árabes não
podia ficar com aquelas dúvidas.
- Êsse Messias, êsse Rei desejado, e que dizeis que acaba de nascer, deve ser filho de um príncipe.Jerusalém
deve estar de festa....
- Não, árabe, replicou o velho pastor. O rei prometido teve por berço uma mangedoura e por palácio um curral.
Sua mãe não é uma princesa poderosa, mas sim Maria, espôsa de José, o carpinteiro de Nazaré.
Alguns árabes soltaram uma gargalhada estrepitosa; outros ficaram meditabundos. De repente, o misterioso
discípulo de Elias pôs-se em pé e, aproveitando um momento em que os árabes deliberavam em voz baixa, aproximou-
se do ancião, e pegando em uma das duas mãos, disse-lhe:
- Ancião, pela honra das tuas barbas, pelas cinzas de teus pais e pela paz de teus filhos, suplico-te que respondas
às minhas perguntas.
- Fala.
- Viste o anjo de Jeová?
- Como te estou vendo.
- Em que lugar teve lugar êsse prodígio?
- Em Belém de Judá.
- Obrigado, bom velho.
E o misterioso homem, rápido como o gamo perseguido pela matilha, perdeu-se por entre a espessura das
árvores.
Os pastores depois de saudarem os árabes seguiram monte acima amenisando o caminho com os seus cantares e
com o som dos rústicos instrumentos.
- Ouviste, Ibraim?
- Sim, Hassaf, porém rio-me das ilusões dos judeus, não há mulher na Palestina que, ao dar à luz um menino, não
o julgue o Messias.
- Porém esses pastores dizem que viram e falaram com o mensageiro de Jeová.
- O faminto sonha sempre com os delicados manjares dos festins de Baltazar; e os judeus sonham com o
Messias, que os deve libertar do opróbio que sôbre as suas cabeças lançou o estrangeiro.
- A dúvida é indigna de um crente como tu.
- Quando vejo os meus camelos enterrarem-se até os joelhos nas areias do deserto, digo comigo: Alá é grande!
Quando o furioso simun envolve com as suas nuvens de areia e fogo a minha espantada caravana, digo para mim: Alá é
poderoso. Quando ouço o canto das aves do paraíso, quando o aroma das flôres de um oásis me embriaga, digo também
comigo: Alá é bom e misericordioso! Então pressinto-o, vejo-o através do espesso véu que me venda os olhos. Mas o
filho de uma hebreia que nasce em um presépio, só me diz que nasceu um escravo mais dos romanos e feneceu uma
esperança dos israelitas.
Os árabes são muito dados à controvérsia. No entanto, Hassaf cruzando os braços, exclamou com acento quase
imperceptível:
- Eu verei êsse menino.
Pouco depois o dia dissipou com os seus formosos raios as últimas sombras da noite. A caravana dipôs-se a
continuar a interrompida marcha, e os obedientes camelos puseram-se em pé à voz de seus donos.
Deixemos, porém, os árabes caminhando com os seus camelos para Jerusalém e, retrocedendo um pouco, vamos
ao encontro de outros personagens que, como os pastores, eram conduzidos até o Menino-Deus pela vontade do Eterno.

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As trombetas lançam ao vento o toque de partida na populosa cidade de Seleucia. Os bárbaros soldados da
moderna Babilônia reunem-se debaixo dos altivos pórticos do palácio do seu velho rei. Nos seus robustos braços
brilham os braceletes de ouro, e nas suas calosas mãos a pesada lança ou o ligeiro arco. Fortes como o leão, ligeiros
como o gamo, os dromedários esperam deitados no meio da larga praça do palácio a hora da partida. As suas chatas
cabeças, ajaezadas com borlas de prata e seda, aspiram com delícia o ar puro da manhã.
Os escravos começam a colocar as tendas, os alforges de víveres e os odres de água para a viagem sôbre os
robustos e gibosos dorsos dos dromedários.
Os sátrapas com as suas brancas roupagens, os oficiais com o marcial e guerreiro aspecto, agruparam-se nos
primeiros degraus da escadaria, esperando o seu senhor afim de o saudarem antes da partida. O bélico som da trombeta
ressoa pela segunda vez ao extremo de uma das largas ruas que desembocam na praça do palácio. Todos os olhos se
dirigem para aquele ponto.
Os seleucianos abrem as janelas e perguntam com assombro o motivo daqueles aprestos militares que lhe
roubam o doce sono da manhã. Os medrosos pensam na guerra, temem pelas suas vidas e pelas dos seus parentes, e
olham com receio para o brilhante séquito que passa por diante das suas portas fechadas. Os valentes sentem pulsar o
coração ante o brilho das armas.
A frente da luxuosa comitiva cavalga sôbre um dromedário um jovem ataviado com os magnifícos ornamentos
das índias. Rico turbante recamado de esmeraldas lhe envolve a fronte; um penacho verde saí do centro de uma fivela
de brilhantes, descaindo-lhe sôbre as faces; fina é a lã do seu encarnado albornoz, rica é a faixa de seda azul com franjas
de ouro que lhe cinge a cinta; um comprido punhal de damasco pende-lhe ao lado, e as chinelas que lhe cobrem os pés
nús, brilham como o mar quando é ferido pelos raios da lua. Negro como a noite é a côr do seu semblante, que brilha
como as perólas de Bassorá aos raios do sol. Seus lábios grossos teem a côr de romã. Seus dentes são brancos como o
leite das camelas. Os grandes olhos assemelham-se a duas amoras colocadas em um círculo de neve; porém os olhares
são tristes e melancólicos.
Porque Belchior, rei peregrino, cometeu um crime horrendo, e implora o perdão dos céus. Por isso abandonou a
Judéia oriental que é a sua pátria. Por isso chegou a Seleucia para consultar os sábios a respeito do seu nefando crime. É
triste o seu olhar, triste a sua atitude, tristes as suas palavras. Seu sono é desassossegado, porque sempre ouve nele a
voz de uma irmã que lhe brada sem cessar:
- Belchior, restitui-me a honra! Maldito sejas infame incestuoso!
Porque Belchior desonrou sua irmã, e êsse crime oprime-lhe o coração, mata sua felicidade e afugenta-lhe o
sono. E assim como a errante caravana procura no deserto a fonte desejada, o oásis apetecido, assim Belchior percorre
a terra ancioso do perdão.
Gaspar, o rei mago, o profundo conhecedor da imutável ciência dos astros, recebeu-o com os braços abertos,
como o pai carinhoso recebe o filho desgarrado. As suas palavras de consolação derramaram a esperança no angustiado
coração do rei peregrino e os compridos cabelos brancos inspiram-lhe confiança sem limites.
- Corre, disse-lhe um dia, apronta a tua gente e os teus dromedários para uma viagem que devemos empreender
amanhã, e cujo termo ignoro ainda; aquela estrêla fulgente, que se move por entre as brancas nuvens, deve conduzir-nos
aos pés do rei de Judá, do anunciado Messias. Aquela estrêla é a que Jacó anunciou pela boca de Balaão.
Belchior obedeceu a Gaspar, e seguido dos seus negros escravos entrou antes de nascer o sol na larga praça onde
o rei sábio tinha seu palácio. Os soldados de Seleucia saudaram a chegada do estrangeiro, que seu senhor recebera como
a um filho. Pouco depois apareceram, nos arcos da praça, Gaspar e Baltazar. Os escravos fizeram uma como escada
como os seus corpos para os reis subirem até aos acastelados dorsos dos dromedários. Em seguida, a uma ordem do
mais velho, as trombetas tornaram a tocar os seus estridentes sons. A caravana começou a mover-se, e por fim tomou
por uma das largas ruas que conduziam à porta do Ocidente.
Os três reis magos iam adiante, falando amigavelmente. Atrás deles caminhava em silêncio o luxuoso esquadrão.
- Para onde irão? Perguntavam os seleucionos.
Ninguém o sabe; e, enquanto cresce a curiosidade, o veloz passo dos dromedários afasta-os da cidade, sem que a
multidão possa dar uma razão plausível do que vê. Finalmente, a comitiva desaparece, e os curiosos olhos não vêem
mais que as nuvens de pó que deixam após si os reis magos. As perguntas sucedem-se, os comentários e os absurdos
correm de boca em boca; porém a verdade ignora-se e a curiosidade fica burlada. Gaspar, Baltazar e Belchior, mas que
homens de guerra, são homens de ciência. Para onde irão, pois, os sábios reis? Os grupos dispersam-se, o sol anuncia
com os seus raios de fogo a hora do trabalho, e Seleucia torna a recobrar seu estado normal.
Entretanto, a esplêndida caravana caminha avante, sem rumo certo. Quando chegaram às ruinas da antiga
Babilônia, Gaspar deteve o dromedário e abrangeu com um olhar doloroso o resto da cidade favorita dos caldeus, que só
continha escombros em redor da soberba torre de Belo, e apresentava ruinas em volta dos mármores que em tempo de
pedestal à estatua altiva de Bres-Nemrod. Ainda ontem, por assim dizer, circulavam alegres seiscentos mil habitantes
pelas suas ruas e cem deuses eram adorados nos seus templos de mármore e ouro; e já hoje tudo aquilo não é mais que
uma mansão de espanto, um montão de entulho, que o furação espalha com o seu possante sôpro, e que só serve de
refúgio à selvagens feras do deserto. Seus frondosos jardins, seus elegantes palácios já não existem. Só no meio de tanta
desolação cresce uma árvore cujo nome é desconhecido aos viandantes, e a cuja sombra acampam as caravanas.
Ali o filósofo medida, o poeta canta, o crente ora, e todos pensam em Deus. Gaspar, à sombra da solitária árvore
das ruinas, elevou sua oração ao céu. Os soldados imitaram-no, porque, como êle, julgavam ouvir a voz do profeta
Isaias quando repetia no meio daquelas solidões: “Essa Babilônia, tão distinta entre os reinos do mundo e cujo
explendor tanto orgulho inspira aos caldeus, será destruida como Sodoma e Gomorra. Nunca mais tornará a ser
habitada; nem mesmo os árabes levantarão ali suas tendas, nem os pastores deixarão descansar seus rebanhos”.

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Terminada a oração como uma lembrança tributada aos senhores daquela rainha do mundo, a comitiva tornou a
empreender a interrompida marcha. Gaspar, o venerável ancião, não afastava os olhos do céu, onde uma estrêla, que os
raios do sol não podiam ofuscar, brilhava com estranho fulgor. Astro misterioso, núncio divino que, olvidando as
invariáveis leis que regem os globos, ora se suspende nos caprichosos flocos de uma nuvem nacarada, ora lança os seus
luminosos reflexos pelo límpido horizonte, que se entende ao longe como um imenso pedaço de gaze. Com marcha
irregular dirige-se para o Ocidente. Os reis caminham após ela atraídos por misteriosa fôrça.
- Sim, não me engano, Belchior, disse Gaspar estendendo o braço em direção à formosa estrêla que, como um
pequeno sol, caminhava sempre diante dos três reis, como se quisesse indicar-lhes o caminho que deviam seguir. Não
há nenhum astro no globo celeste que marque aquele rumo; aquela estrêla é completamente desconhecida dos
astrólogos caldeus.
- Sigamos a sua bela luz, exclamou Belchior com júbilo. Ela é a minha esperança, nobre ancião.
- Não a percamos de vista e ela marcará o termo da nossa peregrinação, disse por sua vez Baltazar.
- Assevero-vos, volveu Gaspar, que esta é a estrêla de Jacó, anunciada pelo profeta Balaão. Valor, amigos, ela
será para nós como a coluna luminosa que guiou os israelitas às desertas plagas do mar Vermelho.
E os reis magos seguiram com a fé no coração e os olhos no céu a caprichosa marcha do seu guia radiante.
Os dromedários andam mil estádios (40léguas aproximadamente) de sol a sol, como afirma Aristóteles. A estrêla
guiadora dos reis magos, colocada sempre à mesma distância dos ligeiros quadrúpedes, seguia a sua marcha sujeitando-
se à dos seus seguidores. Quando a noite estendia seu manto de sombras sôbre a terra, o divino facho, suspendendo a
marcha, indicava aos viajantes que havia soado a hora do descanso. Então ao verem a estrêla imóvel, suspensa sôbre
suas cabeças, os reis ordenavam aos escravos que levantassem as tendas; depois da frugal ceia, entregavam-se
tranquilos ao sono, que lhes devia reparar as forças para o dia seguinte. Passava a noite, o sol nascia, e a estrêla fulgente
tornava a empreender a silenciosa marcha sempre para Ocidente. A caravana seguia o farol misterioso uma e outra
jornada, sem dúvida porque Deus lhe alentava as esperanças. A estrêla, como uma rainha, indicava a hora do descanso,
o momento da partida. E assim decorriam os dias e as semanas.
“Qual era, pois aquela estrêla que nunca tinha aparecido no meio dos astros, e que depois ninguém mais a pôde
encontrar no firmamento? Não era isto uma linguagem magnifica do céu para cantar a glória de Deus e o parto de uma
Virgem?
O nascimento de Jesus foi grande, tal como devia ser o de um Deus. Os pastores abandonaram os seus rebanhos
para o adorar. Os reis do Oriente deixaram os régios palácios para empreender uma peregrinação cujo termo lhes era
desconhecido. Seleucia, a nova Babilônia, via-os partir com assombro. Nunca o filho de um conquistador da terra se viu
tão honrado como Jesus, o filho de um pobre carpinteiro, cujo berço era u’a mangedoura e o leito, um montão de pallha.
Os filhos dos reis recebem as homenagens por ordem real. Todos os que se humilham ante o seu berço são
tributários forçados ou escravos que lambem a mão que lhes forjou os grilhões, esperando a hora de poderem
despedaçar o mesmo ante que se humilham.
A incredulidade de alguns filósofos nunca pôde explicar os assombrosos acontecimentos que rodearam a vinda
do Filho do Homem.
Herodes, rei poderoso e altivo que assassinava os filhos e a espôsa sem que um só dos seus músculos se agitasse,
sabedor do nascimento de jesus, perturbou-se em si mesmo e com êle Jerusalém inteira. Em seguida reuniu os
doutores e sacerdotes para saber o que devia fazer, porque seu espírito tranquilo via surgir ante o seu poder a vingadora
imagem de um Deus forte, para transformar a ordem das cousas. Os falsos deuses cairiam, rolando, em pedaços, dos
altares. Os escravos quebrariam seus grilhões. Os verdugos da terra iam comparecer perante Deus para darem conta dos
seus crimes.
Jesus, filho de José, vinha recordar Joás, filho de Ocosias, e a lembrança de Atália afugentava o sono ao verdugo
da Galiléia.

CAPÍTULO IV

JERUSALÉM

Antes de penetrarmos no recinto da cidade santa volvamos um olhar para o seu passado. Êste capítulo deve ser o
itinerário que nos guie no decurso desta obra.
O povo hebreu precisava fundar uma cidade forte, que fosse a capital onde se assentasse o trono dos seus
senhores, o refúgio daquelas hostes que desde a saída do Egito corriam errantes em busca da terra prometida.
Adonisec, um dos cinco reis vencidos por Josué, fortifica-se com o seu povo, os jesubianos, no monte Sion.
Desta fortaleza inexpugnável desafia e escarnece o exército de Davi.
- Os coxos e os cegos, lhe brada Adonisec, são os que mandarei sôbre ti. Eles bastarão para exterminar-te.
Davi, o rei da guerra, o eleito do Senhor, despreza as bravatas de jesubeu; assalta a fortaleza, passa à espada a
guarnição, segundo o bárbaro costume de então, e o exército vencedor acampa sôbre os montess de Sion, Acra e Mória.
O rei contempla do cume o seu exército acampado. A lua ilumina com seus raios de prata aquele quadro sublime. Davi
empunha a harpa e eleva a Jeová o canto do triunfo. Os doces sons do instrumento, as vibrantes melodias da voz

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privilegiada do rei vão perder-se nas asas da brisa noturna, entre as florestas de Gaboad e nas côncavas rochas do
despenhadeiro dos Cadáveres. O dulcíssimo eco daquele canto chegou até nós. Diz assim:
“Os reis da terra conspiram reunidos contra nós; disseram-se em segrêdo: faremos desaparecer o nome Israel da
superfície da terra; mas o Deus forte preparou o meu braço para a batalha; persegui os seus inimigos e avancei sempre
até que os aniquilei; caíram-me por fim debaixo dos pés; dispersei-os como o pó ao sôpro do vento; submeti povos que
não conhecia; humilharam-se ante a fama do meu nome; o estrangeiro escondeu-se e tremeu no fundo do seu retiro”.
Davi deixa a harpa e deleita-se na contemplação da poética paisagem que se estende a seus pés. Seus olhos
fitam-se naquelas três montanhas entrelaçadas que têm gigantescos fossos criados pela palavra do que faz brotar o
mundo do nada, do que suspendeu o sol no firmamento, do que marcou limite às turbulentas águas do oceano.
Então vendo no Oriente o profundo vale de Josafá arrastando pelo seu leito as avermelhadas águas do Cedron, ao
Meio-dia o escarpado barranco do Geenon, e ao Ocidente o nome dos Cadáveres, exclamou com um gôzo inexplicável:
- Jerousch al Aim, mansão da paz, tu serás a cidade forte de Israel; eu te engrandecerei a ponto que as nações
hão de invejar-te. Eu elevarei pelo Norte, a tua parte mais fraca, uma tríplice muralha onde se despedace a cobiça de
teus inimigos.
Davi, o rei da guerra, edificou Jerusalém, Salomão, o rei da paz, engrandeceu. O jovem filho de Davi cingiu a
coroa no ano de 2970 da criação do mundo. O monte do Gabaon viu correr pelas suas resvaladias encostas o sangue de
mil vítimas sacrificadas a Jeová ante o altar de bronze de Moisés. O senhor apareceu-lhe em sonhos e disse-lhe:
- Pede o que quiseres, meu amado.
Salomão, pediu-lhe a sabedoria e Deus concedeu-lhe também a beleza, a riqueza e a glória. Salomão sobrepujou
os quatros filhos de Mocol, os primeiros poetas dos tempos. Compôs três mil parábolas, cinco mil cânticos e um
gigantesco livro sôbre as plantas e animais. Desde o cedro que cresce e perfuma os cumes do Líbano ate o hissope que
se estende pelas quebraduras dos muros. Desde a águia que desafia o sol com o seu olhar altivo até o diminuto peixinho
que se oculta nas esponjosas rochas do oceano.
Muitos destes livros perderam-se no decuso dos séculos que rolaram sôbre êles. Mas restam-nos os Salmos e os
Cânticos dos cânticos, cuja poesia se avantaja em perfume aos lírios de Gaalbó, em viço às rosas de Saaron, e em
brilho aos diamantes do Golconda. Estes livros bastam para imortalizar o seu autor.
Salomão chegou a ser o homem mais rico, mais feliz, mais glorioso do mundo; mas faltavam-lhe artistas
construtores para levar a cabo o pensamento de seu pai: edificar um templo a Jeová sôbre o monte Moria.
Hisan, rei de Tiro e Sidon, enviou-lhe os fundidores de bronze, os arquitetos, os artistas que lhe faltavam. Dez
mil homens começaram a devastar do Líbano os aromáticos cedros e sete anos depois o templo estava concluido. Os
jónios precisaram de duzentos e vinte anos para construirem o templo de Diana em Efeso. Deus havia-lhe cumprido a
sua palavra, porque aquela maravilha da arte era verdadeiramente um milagre. A fama levou pela dilatada terra o nome
o rei-poeta. As naus de Salomão percorreram os mares, levando para a sua cidade amada, tudo que havia de mais
grandioso, mais rico, mais surpreendente nos extensos países do universo.
A rainha de Sabá, a formosa Nicaulis, atraída pela fama de Salomão, quis conhecê-lo e deslumbrá-lo com a sua
riqueza. A soberana do Meio-dia chegou à cidade santa seguida duma comitiva deslumbrante. Ao pisar o pavimento do
palácio de Salomão, levantou a cauda do vestido coalhado de pedras preciosas, temendo molhar os pequeninos pés
cobertos de diamantes e safiras. O rei sorriu vendo o receio da princesa, pois o que ela julgara que era água, era cristal
brunido. Então Nicaulis disse-lhe:
- Ditosos os que alcançam a tua sabedoria, oh, rei! Ditosos os que te servem , oh! Senhor!
O reinado de Salomão durou quarenta anos com uma paz inalterável. O seu povo foi rico e felix. O glorioso
reinado de Davi, seu pai, empanou-o uma mancha: o adultério cometido com Betsabea, mulher de Uries, a quem matou
envergonhado da sua infâmia. O florescente reinado de Salomão foi também manchado pelos vicios e pelas falsas
religiões que predominaram. A riqueza atraiu a Jerusalém multidão de mulheres formosas de outros países, e Salomão,
adorando-as, acabou por adorar os seus ímpios deuses.
As samaritanas fizeram-no prostar-se ante o bezerro de ouro; mas Jeová, repreendendo a impiedade de Salomão,
anunciou-lhe que o seu reino iria para às mãos dum servo seu.
Então o povo hebreu dividiu-se: Judá conservou-se obediente a Roboão, filho de Salomão; Israel proclamou
Jeroboão. A decadência do povo escolhido por Deus começava a passos agigantados.
Roboão, Abia, Assa, Enjudá, Nadab, Baasa, Ela, Zamri, e Achab, em Israel, passaram sôbre a terra com as
débeis arestas que arrastam com seu furor o poderoso sopro do furação. Josafá foi uma poderosa trégua para o povo
hebreu. Mas breve a inumana Atália caiu sôbre as tribos como um açoite do céu.
Em vão Elias, raio de Deus, procura reunir aquêlo povo desgarrado. As suas palavras e os seus milagres são
desatendidos. Os descendentes de Abraão caminham para o abismo como uma torrente caudalosa.
Atrás de Elias aparecem sucessivamente Jonas, Oseas, Amós e Isaias. A vinda do Salvador é anunciada, porém
os ouvidos cerram-se para escutarem as proféticas palavras.
Ezequias, rei piedoso e valente, levanta a bandeira de Judá contra os assírios. Os anjos ajudam as suas hostes.
Deus volve olhos compassivos para o povo escolhido como no tempo dos fortes de Davi. Os nomes de Hachamoni,
Bamias, Sema, Jesboão e Fesdomoni recordam-se e renasce a esperança. Morto Ezequias por seus dois filhos, o ímpio
Manassés ocupa o trono de seu pai. Covarde, malvado e sanguinário, foge ante o exército assírio, esconde-se entre umas
sarças, mas é encontrado e conduzido escravo para Babilônia. Sucede-lhe Amon, tão ímpio, tão miserável como êle e
vinte anos depois Nabucodonosor cai sôbre Israel devastando com seu exército babilônio. Nabuzardan, um dos
príncipes do exército de Nabuco, incendeia por ordem do seu senhor o templo de Sion e a casa real, aos quatrocentos e
vinte e quatro anos, três meses e oito dias da sua fundação pelo rei dos cantares. Este dia era sábado. Também num

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sábado deviam destruí-lo os romanos, como veremos mais adiante. Nabuco levou cativo o povo de Israel e roubou os
vasos sagrados do templo de Sion. Jeová quis castigar aquela sacrilégio, e apagou a luz da razão na mente do feroz
babilônio. Nabucodonosor viveu sete anos como as bestas imundas.
Setenta anos de escravidão rolaram sôbre o aflito povo de Israel. O profeta Daniel consolava a amargura de seu
irmão: porém as harpas da donzela de Judá pendiam das árvores e não tinham melodias para o Santo dos Santos.
Uma noite, o afeminado Baltazar celebrava um banquete. Os vasos sagrados, iam ser profanados pelos lábios das
impuras cortesãs, pelos torpes adoradores do deus Belo e pelos servis sátrapas do rei Nabonido.
Na parede do salão onde se celebrava o banquete, mão misteriosa, ao tentar o primeiro brinde, escreveu estas três
palavras com as letras de fogo: Mane thecel phares. O pânico aterrou os impuros cortesãos, as luzes apagaram-se, a
terra estremeceu debaixo dos seus pés, e Baltazar, acovardado, chamou o seu amigo e profeta Daniel para que lhe
decifrasse aquele mistério. O profeta disse-lhe:
- Esta noite é a última da tua vida.
Dario e Ciro, com um exército de medas e persas, passavam poucas horas depois à espada os habitantes de
Babilônia. Ciro foi bom e clemente com o povo judaico; concedeu-lhe a liberdade e permissão para reedificar o
derruído templo de seus maiores.
Zorobatel guiou o seu povo até à cidade santa, e no ano seguinte tornaram a lançar-se os alicerces ao novo
edifício destinado ao Santos dos Santos.
Duzentos anos viveram os judeus sujeitos aos persas. Uma noite chegou até Jerusalém o estrondo da guerra, que
sobressaltou os seus tranquilos moradores.
Era Alexandre Magno, filho de Felipe, rei de Macedônia, o grande devastador do universo, que se aproximava
dos seus muros com a sua triunfal bandeira desfraldada para exterminar o povo hebreu para destruir Jerusalém como
tinha destruido Atenas. O nome de Jerusalém estava escrito na taboinha onde o conquistador macedônico apontava as
cidades que devia destruir. Jadus, grão sacerdote, ouviu os gritos lastimosos de Tiro e Sidon, viu as vermelhas chamas
da incendiada Gaza, e escutou o clangor fatal das trombetas macedonias. Então correu ao templo a implorar o favor de
Deus e Deus disse-lhe:
- “Sai ao encontro de Alexandre; lança flores e palmas a seus pés: abre-lhe as portas da cidade santa, e nada
temas”.
Jadus obedeceu e o conquistador embainhou a espada ameaçadora, vendo aquele povo que se prostrava ante êle,
e ajoelhou-se por sua vez aos pés do sumo sacerdote. Permenion, seu general o repreendeu dizendo-lhe:
- E acaso esse sacerdote do templo de Júpiter que visitaste no oasis de Amon?
- Escuta, lhe disse Alexandre: quando estava em Macedônia pensando na conquista da Ásia, o meu Deus
apareceu-me em sonhos. Vestia-se como esse ancião; cercava a sua fronte uma coroa de luz na qual reconheci a
divindade. “Não temas, me disse, passa sem medo o Elesponto. Eu caminharei à frente do teu exército e te farei senhor
do império dos persas.
Depois de Alexandre, decorreram cento e sessenta anos. Os seus principais capitães haviam repartido entre si os
povo conquistados por êle.
Antioco, da raça dos Eleidas, propôs-se a total ruína do povo de Abrão. Aqui torna a elevar-se até à epopéia o
povo de Israel.
Os filhos do velho Matatias, os gloriosos Macabeus, venceram em valor os fortes de Davi. A estes cinco irmãos
faltou um Homero que cantasse as suas gloriosas façanhas, mais dignas de renome que as do imortal Aquiles. A sua
bandeira, que ostentava por moto estas quatro letras, M. C. B. I., donde se crê tomaram o nome de Macabeus, passeou
triunfante pelas dozes tribos.
Eis aqui os nomes dos cinco heróis, que nos conservou a história: João, chamado Eadis; Simão, chamado Tasis;
Judas chamado Macabeu; Eleazar, chamado Abdon, e Jônatas, chamado Afus. Para descrever os heróicos esfôrços
destes cinco mártires da independência hebreia, entre os quais figurava seu pai Matatias, velho de cendo e quarenta
anos, seria preciso escrever um livro de mil páginas. Por fim sucumbiram à força numérica, que depois de muitas
derrotas enviou contra eles Demétrio, o Macedônio.
Judas Macabeu tinha enviado embaixadores a Roma pedindo a proteção daquele grande povo que começava a
assombrar o mundo. Quando regressaram, tinha Judas morrido rodeado dos seus valentes. O que tinha destroçado até o
último soldado do formidável exército de Demétrio, o que tinha cravado a cabeça e a mão de Nicanor à vista de
Jerusalém, o herói, o imortal filho da Palestina, já não existia. Desde então os romanos começaram a influir nos destinos
de Israel, acabando por fazer os judeus tributários do Capitólio. Pompeu, general romano, assaltou a cidade santa e
colocou Hircano, seu protegido, no reino de Israel, proibindo-lhe que usasse diadema.
As profecias de Jasó iam cumprir-se: a vinda do Salvador não podia tardar; o cetro de Judá tinha passado a mãos
estrangeiras. Alguns anos depois de um Idumeu ocupava o trono de Davi e Salomão. Jerusalém no tempo de Herodes,
conservava em grande parte o seu antigo esplendor. A muralha de Neemias rodeava-a com seus robustos braços de
pedra, e as suas trezes torres e doze portas ainda podiam desafiar o enfado dos estrangeiros.
Pela face oriental, costeando o vale de Josafá, e à vista do monte das Oliveiras, achavam-se as quatro portas do
Fiemo, a do Vale, a Doura e a das Águas. A primeira caía sôbre a fonte do Dragão, a segunda conduzia ao povo de
Getsemani, a terceira a Engadi e ao mar Morto, e a quarta ao Jordão e a Jericó.
A face meridional das muralhas tinha duas portas: uma conduzia ao monte Erego; a outra a Belém e Ebron.
Dominando o despenhadeiro dos Cadáveres pela parte do ocidente, achavam-se as portas dos Peixes, a porta Judiciária
e a porta Genat. Saindo pela primeira via-se uma distância de cinquenta passos o caminho que conduzia indistintamente
a Belém, Ebron, Gaza, Egito, Emaús, Jope ao mar. A segunda conduzia a Silo, Gabaon e ao monte Calvário tomando à

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direita, e à esquerda do sepulcro do pontífice Ananias. A terceira era uma dependência do palácio de Herodes;
permanecia quase sempre fechadas, mas, através da sua magnífica grade de ferro, podiam os curiosos contemplar os
elegantes jardins do Idumeu, com seus bosques de pinheiros, palmeiras e sicômoros, suas caprichosas fontes, seus
magníficos tanques por onde passeavam preguiçosamente esquadrões de cisnes, e viam-se correr bandos de gazelas pelo
meio daquelas deliciosas florestas.
Por último, ao setentrião, achavam-se as portas das três torres das Mulheres, a de Efraim e a do Ângulo. A
primeira desta conduzia a umas plantações das árvores frutíferas mui frequentadas naquela época pela gente moça nos
dias festivos; a segunda a Samaria e Galiléia; a terceira a Anatol e Bete, deixando à esquerda o tanque das Cobras e à
direita o monte do Escândalo.
Como dissemos, as torres eram treze, a saber: a das Fornalhas, a Angular, a de Ananiel, a Torre Alta, a de
Méa, a Torre Grande, a de Siloea, a de Davi, a de Psefine, e as quatro restantes que se chamavam Torres das
Mulheres.
Jerusalém dividia-se em quatro cidades separadas uma das outras por uma espessíssima muralha, para a tornar
mais inexpugnável em caso de ataque; mas todas elas se comunicavam umas com as outras.
A cidade de Davi ou superior, encerrava no seu circuito a montanha de Sion, o sepulcro de Davi e os palácios
dos reis de Judá, de Anaz e de Caifaz.
A cidade inferior gloriava-se com o templo, que ocupava aproximadamente a quarta parte; o palácio de Pôncio
Pilatos; a cidadela Antônia; o Xisto, espécie de monte de onde falavam ao povo os governadores romanos; o monte
Acha; o palácio dos Macabeus e o teatro fabricado por Herodes, o Grande, em honra do César, sôbre o qual descansava
uma águia de ouro, ave que trazia desvelados os verdadeiros israelitas.
A segunda cidade era habitada pelas pessoas de distinção, e nela tinha Herodes o seu palácio e os seus
magníficos jardins. A última chamava-se a cidade de Bezeta, onde viviam os negociantes de lã, caldeireiros, adelos e
quinquilheiros.
Tal era Jerusalém sob o poder de Herodes.
Agora entremos no seu glorioso recinto, destinado pela impiedade de seus filhos a ser até à consumação dos
séculos um montão de ruínas.
O seu nome enche o mundo; mas enche-o com a sua memória, porque no cume dum dos seus montes foi
sacrificado o Salvador do homem.

CAPÍTULO V

OS PEREGRINOS

O nascimento de Jesus foi um grito de alarme as divindades pagãs. Só Deus podia conseguir tão imenso triunfo.
Só da Deus era dado arrancar do coração do homem a peçonha que o erro nele havia introduzido.
Milton, esse grande poeta, esse sábio inglês que tanto honra a pátria que lhe foi berço, esse grande das suas
primeiras poesias descreveu, com essa admirável robustez que possuia, os erros do paganismo antes da vinda ao mundo
do Redentor dos homens.
Vamos extratar algumas das suas estrofes, servindo-nos da tradução do abade Orsini. Dizem assim:
“Os oráculos emudecem; nenhuma voz, nenhum murmúrio sinistro faz ressoar palavras falazes sob as abóbadas
dos templos. Apolo, abandonado, com um grito de desesperação, a colina de Deifos, não pode prognosticar o futuro.
Nenhum êxtase noturno, nenhuma inspiração secreta, saindo duma caverna profética, se faz sentir ao sacerdote de olhos
espantados.
“Sôbre as montanhas solitárias e ao longo dos murmurantes ribeiros, só se escutam pranto e lamentos. O gênio
vê-se forçado a afastar-se dos vales que habitava no meio dos pálidos choufos”.
“As ninfas, despojadas das suas grinaldas de flores, gemem à sombra dos espessos matagais. Os lares e as larvas
fazer ouvir as suas queixas noturnas na terra consagrada e sôbre os santos tetos. As urnas e os altares despedem sons
lúgubres e desfalecidos que espantam as flâmides ocupadas nos seus serviços e o mármore gelado parece cobrir-se de
suor enquanto cada deidade abandona o seu lugar costumado”.
“Peor e Baal fogem dos opacos templos com o deus arrojado da Palestina. Astarot, sob o nome de Lua, rainha
mãe do céu ao mesmo tempo, já não brilha cercada do santo resplendor das tochas. A Hamom de Lídia oculta as suas
pontas, e os filhos de Tiro choram em vão o seu Tamuz ferido. O sombrio Molok escapa-se deixando na sombra o seu
ídolo reduzido a negros carvões: em vão o ruído dos instrumentos e a dansa chamam um rei feroz junto de um forno
ardente. Os deuses do Nilo, da raça dos brutos, afastam-se também rapidamente o cão de Anúbio segues Isis e Osiris.
Por fim os reis Magos, depois de treze dias de viagem, viram ao longe os altivos minaretes, as galhardas torres e
as fortes muralhas de Jerusalém.
Perto do caminho que seguiam murmurava a clara corrente de uma fonte e os ilustres viajantes detiveram-se. A
uma voz do chefe do comboio os dromedários deitaram-se no chão e os reis apearam-se.
Então quatro escravos africanos estenderam uma rica alfombra de pano fino recamado de ouro sôbre a fresca
erva, e, sentando-se nela dos Magos, serviram-lhe em delicados cestinhos de palmas saborosas tâmaras e enroscados

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mich mich, frugal almoço dos orientais. Outros escravos encarregados dos dromedários deram a estes a sua ração de
favas secas.
De repente e quando mais tranquila se achava a luxuosa caravana dos reis, Gaspar pôs-se em pé e exclamou com
assombro:
O estrêla, a estrela desapareceu!
Melchior e Baltazar levantaram-se, apantando da boca as frutas que lhe iam levar as mãos. A estrêla tinha
desaparecido entre as flutuantes nuvens que se moviam sôbre a cidade tributária.
Os reis viram com dor, a sua radiante e misteriosa guia os abandonava, e, como o náufrago a quem escapa dentre
as mãos a táboa em que julgou ver a sua salvação, soltaram um grito de dôr. Mas um dêles estendendo o braço para
Jerusalém, interrompeu a silenciosa meditação dos seus amigos, dizendo:
- Prossigamos a nossa pobre peregrinação: a estrela desapareceu; mas não importa: diante de nós levanta-se uma
grande cidade digna de servir de berço ao Rei dos judeus; caminhemos para Jerusalém.
- Sim, sim, prossigamos o nosso caminho: a misteriosa estrela que nos conduziu desde o Tigre ao Jordão, não
pode ter-nos abandonado, sem um poderoso motivo, exclamou Baltazar.
- E depois, quem haverá na cidade dos pretores que não saiba onde nasceu o Messias? Basta perguntar-nos ao
primeiro transeunte que encontremos e estou certo de que nos conduzirá ao pé do berço Rei a quem buscamos.
Acordes os Magos, tornaram a montar nos ligeiros dromedários, e pouco depois entravam em Jerusalém pela
porta Judiciária. Mas, ai! A cidade não apresentava o buliçoso e alegre quadro que esperavam. As ruas viam-se
desertas, e as rosas, o mirto e o louro não alcatifavam o seu duro pavimento. As harpas dos hebreus não entoavam
alegres melodias; as donzelas de Sion não elevavam sentidos cantos a Jeová. A mirra e o incenso não se derramavam
ante os altares do templo. O óleo não ardia nas caçoilas, e as lâmpadas de ouro não alumiavam os ricos trajes dos
sacrificadores. Jerusalém muda, quase deserta, recebeu no seu recinto os peregrinos do Oriente. Algumas mulheres
curiosas, envoltas nos seus leves mantos, assomavam aos terraços para verem os viajantes.
Os reis tristes, desalentados, caminhavam rua adiante. A esperança ia esfriando no seu coração.
Pouco a pouco foram-se agrupando em torno da oriental cavalgata alguns curiosos.
Então, Gaspar, que ia adiante, inclinava-se sôbre o nervudo pescoço do seu dromedário, e, dirigindo-se aos
curiosos espetadores, dizia-lhes:
- Dizei-me, jerosolimitanos, vós sabeis onde se acha o Messias prometido pelos profetas, o rei dos judeus que
acaba de nascer?
Então a plebe olhava-se com espanto, e, não sabendo que responder aos viajantes, fazia um movimento de
ombros. Baltazar por sua vez perguntou aos que tinha mais perto:
- Onde está o Messias, o rei dos judeus?
- Em Jerusalém não há outro rei senão Herodes, o Grande, nosso senhor, lhe respondia um cavaleiro com
grosseiro acento.
- Nós vimos uma estrela desconhecida no céu, replicava Gaspar e essa estrela, não nos resta dúvida, é a que
predisse Balaão.
- A estrêla de Jacó ainda não nasceu para os israelitas, lhe replicou um fariseu.
- Devem ser loucos, murmurou um soldado romano, olhando com desdém os Magos.
- Demos parte ao nosso rei Herodes, tornou um escriba.
- Sim, sim, demos-lhe parte, exclamaram vários herodianos que se achavam entre a apinhada multidão.
Os reis, vendo que eram inúteis as suas perguntas, pois ninguém lhe indicava a casa do Messias, torceram por
uma larga rua que conduzia ao antigo palácio de Davi, e instalaram-se num dos seus arruinados pátios.
Aquele palácio, em tempo encantadora mansão dum rei sábio e poderoso, não era na época do nascimento de
Cristo mais que um montão de ruinas; porém, os Magos sabiam pela tradição hebraica e pelos vaticínios dos profetas
que do tronco de Davi devia nascer o Messias libertador do povo de Israel.
Perdida a estrela que com tanta insistência vinham seguindo desde os seus lares, restava-lhes uma esperança.
- Talvez sob o pórtico do rei Davi, disseram, encontraremos o Messias prometido; talvez junto daqueles
derruídos torreões, onde a harpa do rei poeta acompanhava com melancólico gemido os cantares do vencedor de Golias,
achemos algum indício que nos oriente.
E uma vez ali, mandaram levantar as tendas, e encerrando-se numa delas puseram-se a deliberar.

CAPÍTULO VI

HERODES, O GRANDE

No ano 3932 do mundo e 86 antes da vinda de Jesus Cristo, nasceu o sanguinário Herodes, terrível plagiador da
inumana Atália. A sua pátria foi Escalon, cidade marítima da Turquia Asiática, na Palestina. Negra como a sua alma,
fria como a sua impiedade, tempestuosa como as paixões que dominaram o seu coração, foi a noite em que do seio de
sua mãe nasceu para ser o açoite da Galiléia, o opróbrio da sua raça.
Os furações desencadeados saudaram a sua vinda ao mundo, fazendo estremecer os edifícios com o seu potente
sopro. As ondas mugidoras dos mares bramiram como se legiões infernais se agitassem no meio das suas águas. Os
ventos agitados fizeram tremer com o veloz ímpeto da sua carreira os altos ceiros e as robustas figueiras das cercanias

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de Escalon. Os rios sairam do leito, e, transbordando pelos campos a suas turbulentas e avermelhadas águas encheram
de pavor e miséria os infelizes moradores das aldeias. A natureza inteira soltava um gemido de dolorosa agonia
saudando o futuro tirano.
Herodes foi como a torrente transbordada que tudo derriba ante a sua passagem; como o raio que tudo incendeia
com a sua queda; como a peste que tudo mata com o seu hálito. Escravo das suas paixões, imperioso e colérico, chegou
à idade de vinte e cinco anos, trilhando um caminho de crimes e escândalos. Seu pai, Antipatro, que havia prestado ao
César vencedor de Pompeu e senhor de Roma serviços importantes no cerco de Alexandria, alcançou do ditador romano
o governo da Galiléia para seu filho Herodes.
A sua idade tocava nos vinte e quatro anos, quando subiu os primeiros degraus que deviam conduzi-lo ao trono
de Jerusalém.
Herodes era arrojado e ambicioso. Obstáculos não existiam para êle. Tinha sonhado uma coroa, e o crime, o
opróbio e a baixeza não lhe detiveram o passo. Para lograr o seu fim não teria retrocedido, ainda que se houvesse visto
obrigado a passar por cima do cadáver de seu pai, de seus irmãos, da sua raça toda.
Uma coroa, só uma coroa anciava a sua ambição, e, desprezando os obstáculos, seguiu o caminho que podia
conduzi-lo á reabilitação dos seus sonhos, com a fronte erguida. Mas a sorte foi-lhe contrária: vencido por Antígono,
seu rival, rei de Judá, viu-se forçado a refugiar-se com sua família e riqueza num castelo de Idumeia.
Herodes sufocava naquela canto da Arábia Pétrea. Quando algumas tardes, dos altos torreões da sua
inexpugnável fortaleza, com os braços cruzados sôbre o peito, o olhar tovo, estendia os sanguinários olhos por aquelas
soluções, soltando um rugido do fundo do seu agitado coração, costumava exclamar com áspero acento:
- Iduméia! Iduméia! Mansão dos chacais, pátria dos lobos, tu não és mais que um esqueleto e só apresentas às
minhas famintas fauces ossos para devorar; mas eu preciso duma terra onde o osso esteja unido à carne, para aplacar
este apetite que me consome. Jerusalém – Jerusalém! Tu é o prato que ambicioso no festim dos meus sonhos... eu serei
teu rei e tu minha escrava; sôbre tuas altivas torres ondeará o meu pendão de escarlate e ouro: teus filhos beijarão o pó
que levanta a fimbria do meu régio manto, e as tuas donzelas cantarão hinos de glória, ante as aras de Sion, pelo seu
senhor Herodes.
Por fim o desterrado de Iduméia abandonou uma noite a sua fortaleza, e, arriscando muito na sua atrevida
emprêsa, passou ao Egito para captar a vontade de Cléopatra. Herodes tinha calculado bem confiando as suas
ambiciosas esperanças à rainha do Egito, tão célebre pela sua formosura como pelos seus crimes. Só uma pantera podia
compreender os instintos dum tigre. As hienas acodem sempre aos gritos dos chacais. Herodes, recomendado por
Cléopatra e Marco Antonio, passou sem perder tempo á orgulhosa e degradada cidade de Roma.
O senado, ressentido com Antígono porque pedira auxílio aos partos, inimigos acérrimos de Roma, pôs-se da
parte do ambicioso Idumeu, que chegava às portas do Capitólio para implorar a sua proteção.
O vento da fortuna começou a soprar em favor dos dourados sonhos do verdugo de Belém.
Antonio apadrinhou as ambiciosas aspirações de Herodes, e, acendendo aos rogos da que mais tarde devia
compartir com êle o seu tálamo nupcial e o seu sepulcro, ofereceu ao seu recomendado a coroa tributária de Jerusalém.
Herodes, ao aceitá-la, converteu-se no primeiro escravo do Capitólio. O César romano era desde então o seu senhor.
Mas que lhe importava quando ia sentar-se sôbre um trono, quando a sua fronte ia coroar-se com o verde louro que o
senado entretecia para os seus favoritos?
Ativo em demasia e anelando o momento da sua elevação ao trono, levantou tropas sem perda de tempo, juntou
com o seu ouro legiões de mercenários na cidade do Tibre, e, acatando as ordens irrevogáveis de Antônio, deu o
comando das suas forças a Verutídio, favorito de César.. Feitos os aprestos militares e faminto de vingança, saiu com os
seus soldados da corte de Roma e encaminhou-se em marcha para Jerusalém.
Antigeno, avisado por um amigo dos preparativos de Herodes e do favor que lhe dispensa o César, aprestou a sua
gente e dispôs-se a castigar a ousadia dos seus inimigos das altas muralhas da cidade santa, que mais tarde o Mártir do
Calvário devia amaldiçoar.
Herodes atacou com fereza aqueles baluartes de pedra e aço que se colocavam ante êle como um obstáculo,
como uma vala à sua ambição.
O sangue correu a torrentes. José, irmão do sitiante, exalou o último suspiro num dos assaltos.
Por fim o cortesão de Cléopatra, o adulador do Capitólio, o escravo de César, entrou triunfante em Jerusalém e a
águia romana foi colocada sôbre o templo de Zorobabel. Milhares de habitantes pereceram ao sanguinolento fio das
espadas dos seus partidários. Nem um só dos Antígonos se livrou do seu furor, sobretudo se tinham bens que confiscar.
Roma pedia ouro e Herodes era escravo de Roma.
Tintas ainda as mãos com o sangue da feroz matança, correu ao templo a unir-se com a bela e jovem princesa.
Os jerosolimitanos enxugaram por ordem do seu novo senhor as lágrimas que lhes envermelheciam os olhos, e viram-
se forçados a cantar e dançar nas festas reais que celebrou o tirano. Um rosto aflito era uma sentença de morte. Uma
lágrima derramada custava uma cabeça. Maquinador astuto e receioso, para maior segurança concedeu alta dignidade de
sumo sacerdote a Aristóbulo seu cunhado, apesar dos seus poucos anos.
Aquele moço galhardo e querido dos israelitas, aquele desgraçado filho do cativo de Roma, havia nascido para
cingir a coroa que usurpara o esposo de sua irmã. O povo começou a mostrar-lhe o amor que por êle sentia, e Herodes,
cioso daquele afeto que êle não soubera inspirar, mandou afogar seu cunhado num banho em Jericó e fingindo depois
uma dor hipócrita pela sua morte, soube justificar-se aos olhos dos fariseus e altos dignitários de Jerusalém. O senado
de Roma atendeu nesta ocasião mais aos presentes do assassino que à justiça que pedia a inocência sacrificada.
Nunca monarca algum na terra derramou tanto sangue inocente, nem deu cabimento no seu peito a tão baixas
paixões, como Herodes, o Idumeu, a quem a história deu o glorioso cognome de Grande. Foi poderoso, carecendo de

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todas as virtudes que honram e engrandecem os monarcas. Cruel e sanguinário, regozijava-se com a dor das suas
vítimas. Fez morrer o velho Hircano, avó de sua espôsa, o qual lhe salvara a vida sendo governador da Galiléia.
Os anos e a alta dignidade de Hircano não detiveram o braço do seu ingrato assassino. O crime do pobre ancião
não era outro que o de suspeitar o seu verdugo que tinha recebido alguns presentes do rei dos árabes.
Sua espôsa Mariana, a princesa mais bela do seu tempo e que possuia um talento nada comum, morreu também
assassinada por ordem de seu marido, e pouco depois coube a mesma sorte a Alexandra, mãe da desgraçada Mariana.
Temeroso de que seu filho Filipe vingasse sua mãe, deu-lhe a morte, sem que a voz da natureza se levantasse
para o deter no fundo do seu coração.
O povo, indignado vendo aquele rio de sangue que fazia correr um bárbaro opressor, começou a agitar-se como
num campo de espigas sacudido por dois ventos encontrados. Herodes, protegido sempre de Roma, cortou aquelas
cabeças que se erguiam ante os seus passos desafiando o seu poder.
Uma coroa de louro, comprada no Capitólio com o ouro do rico e a indigência do pobre, manchava a sua fronte
cheia de remorso. Porque a sua vida era um remorso contínuo.
Os seus sonos eram sempre povoados de fantasmas aterradores, de visões horríveis que, girando em infernal
tropel pelo seu cérebro, lhe amarguravam sem cessar uma por uma as sangrentas horas da sua maldita existência.
Herodes não tinha para se opor à aberta rebeldia do seu povo mais que os seus sicários, os seus cortesãos e a
seita baixa, desprezível e diminuta dos herodianos, que, ao receberem do seu senhor ouro às mãos chias, tinham
pretendido elevá-lo sôbre o altar de Sion e adorá-lo como deus. Os fariseus, potentes e atrevidos, recusavam-lhe o
juramento de fidelidade. Os indómitos Essénios seguiam o exemplo dos fariseus.
Os jovens entusiastas, os valentes discípulos dos doutores da lei de Moisés, cheios de nobre indignação,
conspiravam desafiando a morte, à luz do dia, sonhando sempre no delicioso momento da vingança, no venturoso
instante da liberdade. Porque em Herodes só viam um verdugo, um inimigo cruel e ansiavam exterminá-lo.
A vida do rei tirano de Judá era um contínuo sobressalto. O punhal homicida ameaçava-o por todas as partes.
Um dia correu de boca a falsa notícia da sua morte e o povo acendeu fogueiras em sinal de rogozijo. Herodes apagou
aquelas fogueiras com o sangue dos que tinham tido o atrevimento de as acender.
No mais forte destas discórdias civis foi que os reis Magos chegaram a Jerusalém perguntando pelo rei de Judá
que acabava de nascer, pelo Messias anunciado pelos profetas, pelo Salvador do povo de Israel.

CAPÍTULO VII

A CARTA DE ROMA

Herodes havia transportado para Jerusalém o luxo e os costumes da cidade dos Césares. Os artífices gregos, de
cujas obras tanto gostavam então os patrícios romanos, viam-se com frequência contratados pelo rei tributário para
aformosearem os salões do seu palácio.
Fazia-se servir por grande número de escravos etíopes, desses filhos da abrasada Líbia que, fieis como os cães e
imutáveis como a bronzeada cor das suas faces, adoram os seus senhores como os deuses pagãos dos seus templos.
Para contrastar com estes, tinha outros de raça síria, de rosada cútis e doce expressão. Dava o nome de Cubiculo
à sua câmara, e o de Gineo à casa destinada a guardar as jóias e a coroa real.
Quando, rodeado dos seus mercenários, se entregava aos prazeres de Baco para afogar nos vapores do Falermo e
do Chipre os gritos da consciência, comprazia-se em invocar todos os deuses do Olimpo de Homero, sentindo a falta
das livres Bacantes dos bosques de Baia e do delicioso Creta que lhe serviam em compridos cornos de prata quando
celebravam os seus banquetes embriagadores.
Durante a sua permanência em Roma, os costumes sibaríticos dos libertos tinham-no fascinado e quis transportá-
lo para Jerusalém.
Roma era então a senhora do mundo: os seus patrícios achavam-se enfastiados de haurir gozos. Os seus
cortesãos tinham circos, teatros, jogos de palestra, onde o engenho podia ostentar as suas galas diante da formosura;
exercícios de Marte, onde o valor era aplaudido pela beleza. Contava nos seus templos mais de cem deuses, aos quais
queimava incenso e circos onde os gladiadores lutavam até vencer ou morrer, alimentando o sanguinário instinto do
povo com tão bárbaro espetáculo.
A vida era ali uma torrente de prazeres, um delírio embriagador e era um luxo gastá-la. O seu afã reduzia-se a
saciar os apetites do corpo, esquecendo-se da alma. A matéria estava sôbre o espírito.
A guerra e o amor eram os seus únicos desvelos, as suas ocupações favoritas; as orgias, o seu paraíso terreal; o
luxo, a sua paixão dominante; morrer no campo da batalha com a espada na mão, a melhor das mortes, o mais apetecido
triunfo, a fortuna mais cobiçada; o fastio, o cansaço, os inseparáveis companheiros dos seus viciados corações. Como,
pois transportar para Jerusalém essa desordem que marca sempre a decadência dum império poderoso?
A cidade santa, serena e tranquila como o mar de Galiléia, numa clara noite de estio; a mãe dos soberbos
descendentes de Abraão e Jacó, cujas modestas filhas, depois de adorarem o Deus de seus pais com a pura fé de seus
singelos corações, abandonam o sagrado templo, coberto o pudibundo rosto com o denso véu, e regressando as suas
casas, punham-se a fiar o linho e a educar os filhos que tinham criado com o leite dos seus peitos; não podia nunca ser
uma imitação de Roma, dessa sentina do mundo, a cidade santa, pudibunda pomba do Jordão, a modesta Jerusalém.

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Herodes nunca conseguiu a metamorfose que se propunha levar a cabo. Esparta nunca teria tido Atenas, ainda
que todos os tiranos do mundo lhe houvessem proposto. O Gólgota estava destinado a Jesus Cristo; Delfos a Apolo.

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Entremos no palácio de Herodes, e, atravessando alguns salões, nos achamos num aposento luxuosamente
adornado. Num leito de marfim, estendido sobre fôfas almofadas de pano de grã, acha-se o rei de Jerusalém.
Um mesa triangular de mármore de Paros, branca como a neve que coroa eternamente o cume do Sabino,
sustenta uma lâmpada de ouro que tem a forma duma águia com as asas estendidas. Uma luz clara e viva sai do bico do
animal, símbolo de Roma. Uma coroa de louro, colocada sôbre um pequeno coxim, achava-se junto à lâmpada.
Herodes, apoiada a cabeça entre as mãos como se quisesse ocultar o semblante, agita-se convulsivamente, vítima
de agudas dores que lhe despedaçam as entranhas. O rei veste uma túnica talar de côr de amaranto, a qual é apertada na
cintura, formando largas pregas por um cinto de couro com pequenas estrelas de prata.
Um barrete preto, bordado a ouro, sujeito á nuca como um solidéu, lhe cobria a parte superior da abundante
cabeleira preta, povoada de ásperas cãs. Entre os emaranhados caracóis que lhe iam descansar sôbre os ombros, brilham
dois grossos anéis de ouro que lhe pendem das orelhas. A barba grisalha, as espessas sobrancelhas, os olhos cavos e
brilhantes, a cor excessivamente morena e o ossudo e enrugado rosto, dão-lhe um ar de ferocidade incrível. Basta olhá-
lo para se convencer a gente de que aquele homem é cruel, de que aquela natureza de aço pode muito bem presenciar a
morte de tôda a sua raça sem estremecer nem mudar a côr do rosto.
Os seus pés, extremamente grandes, calçam a saliga romana semeada de pedras preciosas e botões de ouro. Não
mui longe do seu leito acham-se duas pessoas reclinadas preguiçosamente em ricos divãs de sêda com franja e bordados
de prata. São um homem e uma mulher. A mulher é Salomé, irmã de Herodes: tem quarenta anos e é formosa; mas as
suas feições participam da dureza das de seu irmão. O homem é Aleixo, esposo de Salomé, de rosto doce e olhar frio, de
estatura mediana e extremamente branco.
Ambos guardam silêncio, como se temessem interromper a silenciosa imobilidade do monarca.
Aleixo tem nas mãos um rolo de papiro. Salomé, de vez em quando, levanta-se do seu assento para deitar num
pequeno braseirinho de prata pós aromáticos de ervas do Líbano, que enchem de grato e penetrante perfume a
habitação. Depois tudo torna a ficar em silêncio; só a agitada respiração do Idumeu ou gemido de dor que lhe escapa do
peito interrompe de vez em quando aquela quietação.
Por fim Herodes levanta-se um pouco sôbre os almofadões. Aquele movimento executado pelo senhor põe em pé
os esposos favoritos que lhes assistem.
O assassino de Hircano afasta as mãos do rosto, e, separando alguns caracóis de grisalhos cabelos que lhe caem
pelo torvo semblante, lança em torno de si um olhar feroz. Aqueles parecem os do tigre que busca uma presa para
devorar. O seu rosto viu-se alumiado então pela brilhante luz da lâmpada. A sua larga e tostada testa é cruzada por
multidão de rugas. Em cada uma delas se oculta um crime, se agita um remorso.
Os pômudos avultados, o nariz curvo, a hirsuta barba e os pequenos e vidrosos olhos, dão-lhe ao semblante uma
expressão de ferocidade que esfriava o sangue de quem tinha a desgraça de contemplá-lo e incorrer no seu desagrado.
Sessenta anos se sepultam naquela natureza embotada de crimes. A sua velhice é repugnante e asquerosa.
Redondas e amareladas manchas lhe salpicam o rosto, emanações mortíferas da terrível enfermidade que o
consome: aquelas manchas pareciam os crimes que, cansados de devorar o coração, subiam ao rosto para que deste
modo fôsse tão feio o seu semblante como a sua alma.
Herodes, depois de ter abarcado com um olhar receioso e covarde tudo quanto o rodeava, deteve-se na coroa de
louro que se achava sôbre a mesa, e depois de a contemplar alguns segundos, exclamou com voz cavernosa e como se
falasse consigo:
- Meus filhos querem cingir quanto antes a minha coroa... Os empíricos desta cidade ingrata são seus
cúmplices... Oh! Se eu amanhã viver, se a ciência foi impotente para comigo, mandarei enforcar nos pórticos do meu
palácio toda essa caterva de avaros cendedores de saúde que deixam o seu rei morrer num canto da sua câmara.
E depois, dirigindo a palavra a seu cunhado, continuou:
- Ouves, Aleixo? Amanhã, não te esqueças, quero que enforques todos os médicos, porque a ciência é impotente,
sofro muito, muito; estas dores são terríveis: creio que tenho um áspide no estômago, outro no coração e outro no
cérebro, que me roem sem cessar: de que me serve ser rei sofrendo tanto?
Salomé, pegando então num frasco de prata, derramou algumas gotas numa taça do mesmo metal e foi apresentá-
la a seu irmão, dizendo:
- Isto te sossegará, meu irmão.
O enfermo pegou na taça e, depois de lançar um olhar para o líquido que lhe apresentavam, disse com voz
pausada:
- Bem sei que tu não me farás mal, porque me queres e teu esposo também: vós sois a minha única família; eu
desejo pagar-vos os vossos serviços; veremos.
E bebeu o contéudo da taça num só trago.
- Mas meus filhos, que estão em Roma continuou, porque não sacrificam de boa vontade uma galinha preta no
altar de Eucalápio para que eu recobre a saúde?
- Teus filhos, disse Aleixo com gravidade, acercando-se do leito do enfermo, em vez de anelarem o teu
restabelecimento, acusam-te ante o César Augusto.

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- Acusam-me! Tornou Herodes, sentando-se na cama; e de quê?
E Aleixo apresentou-lhe o rolo que tinha na mão.
Herodes aproximou-se quanto pode à luz da lâmpada, e desenrolando o papiro murmurou:
- Veremos que reclamam meus queridos filhos contra seu pai.
Um sorriso infernal lhe passou pelos lábios ao dizer estas palavras. Depois percorreu com a vista as linhas
escritas, dizendo ao terminar, com acento estranho e cruel:
- Ah!... Acusam-me ante o César de sanguinário e cruel; dizem que matei sem mais motivo que pelo prazer de
matar sua mãe Mariana e sua avó Alexandra; e, como sou um rei tributário, Augusto diz-me que vá defender-me em
pessoa perante o senado... Irei... irei, meus filhos, mas, aí de vós!
Dois raios de fogo brilharam nas pupulas de Herodes ao dizer estas palavras. Os seus dentes produziram um
ruído áspero e estranho ao tocarem uns nos outros, impelidos pela raiva; e as suas encarnadas mãos amassaram aquele
rolo de papiro que de Roma reclamava justiça.
- Meu irmão, exclamou Salomé com voz doce e carinhosa, esquece teus filhos e o César, pensa só na tua saúde.
- Salomé tem razão... Aleixo não devia ter-me entregue esta carta.
E Herodes lançou-a longe de si com manifestos sinas de desprezo.
- Era do imperador, respondeu, baixando a cabeça, seu cunhado.
- Sim, o imperador empuxou-se para escalar o trono que ocupo; mas eu mandei-lhe montes de ouro em paga. Sou
pois o rei de Judá e só eu administro justiça na terra que é minha. Se tenho cometido crimes, razão teria para isso... mas
eu irei a Roma defender-me quando puder... Que posso eu temer de meus filhos rebeldes... Nada. Se Augusto
desatender as minhas razões e os proteger, então... lutaremos, e Deus decidirá.
Um escravo etiope, negro como um gota de tinta e ricamente vestido, apareceu entre as cortinas que cobriam a
porta da estância.
- Verutídio, o liberto romano, general das legiões estrangeiras, diz que tem precisão de falar-te.
- Verutídio é meu amigo predileto; mas eu estou doente: não quero nada, ouves? Quero descansar, estar só.
- Isso lhe disse, senhor; mas obstinou-se em entrar, dizendo que era de alta importância o que tinha que
comunicar-te.
- Que entre pois esse importuno adorador de Cibele, que nunca depositou uma pomba nos altares da castidade, e
que não tem compaixão do seu doente soberano.
Herodes disse estas palavras em tom de mofa, e o etíope saiu para comunicar a ordem do seu senhor. Pouco
depois entrava o general romano na câmara do rei judeu; este estendeu-lhe uma mão, que o liberto beijo, mas por
cerimônia que por respeito.
O seu ar era marcial, altivo o seu semblante, e rico o manto, preso por um grosso florão de ouro cravejado de
diamantes colocado sôbre o ombro esquerdo. Verutídio pegou sem cerimônia num fofo almofadão que colocou junto do
leito do rei; e sentando-se nele exclamou, fazendo antes uma cortesia.
- Marte na guerra, Apoio na paz, protejam o amigo aliado do César, meu senhor.
- Eles te ouçam, lhe respondeu Herodes; e depois continuou: Que importante missão te conduz àminha estância?
- Rei de Jerusalém, deixa o teu leito, esquece as tuas doenças, porque na tua cidade acabam de penetrar três reis
Magos seguidos dum brilhante séquito, que, guiados por uma estrêla, dizem que vêm em busca do Rei de Judá, do
Messias anunciado pelos profetas, que acaba de nascer.
Herodes estremeceu, e escorregando do leito ficou em pé ao lado de Verutídio.
Salomé e Aleixo aproximaram-se para o sustentarem; mas êle repeliu-os; e, pegando numa varinha de metal que
tinha escondida debaixo dum coxim da cama, deu duas fortes pancadas numa folha de aço, a qual produziu dois sons
agudos e vibrantes que foram perder-se pelos dilatados âmbitos do palácio. Imediatamente Cingo, seguido duma
multidão de escravos, apareceu como por encanto na habitação do rei.
Cingo, o escravo favorito de Herodes, era um africano, negro como as asas do corvo, forido como um atleta.
Para aquele filho do lago de Shiat, não havia outro adeus, outra lei nem outra paixão que o seu senhor.
O monarca de Jerusalém amava o seu escravo como um membro do seu corpo; Cingo era o seu braço. Alguns
inimigos de Herodes intentaram comprar a fidelidade do feroz africano, que dormia aos pés do leito do seu senhor, com
a mão posta no cabo do punhal, e o ouvido atento como um cão leal; mas só tinham comprado a morte, porque Cingo
era incorruptível como as águas do mar.
Quando Herodes o viu aparecer à porta da câmara, sorriu-se pois sabia que para se chegar a êle era preciso antes
passar por cima do cadáver de Cingo. O Idumeu fez-lhe um sinal indicando-lhe que esperasse. O escravo inclinou-se
em sinal de acatamento.
- Onde estão esses reis que dizes? perguntou Herodes a Verutídio.
- Levantaram as suas tendas junto aos derruidos pórticos do palácio de Davi.
- Cingo, acende as teias resinosas, reúne os meus herodianos e traz-me esses estrangeiros.
Cingo saiu seguido dos escravos.
- Aleixo, tu reune os sumos sacerdotes e escribas da cidade, esses sábios conhecedores das profecias hebráicas, e
conduze-os a esta sala.
- Tu, meu bravo Verutídio, junta as tuas legiões, e acampa-as nos pórticos do meu palácio; e tu, minha querida
irmã, minha boa Salomé, consulta os médicos da cidade acerca da saúde de teu pobre irmão.
Todos partiram para executar as ordens do senhor de Jerusalém. Herodes ficou só, e depois duma breve pausa,
durante a qual permaneceu imóvel como se estivesse cravado na alfombra da sua habitação, deu um suspiro, e,
deixando-se cair no fofo leito, murmurou estas palavras:

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- Que Rei será esse que acaba de nascer?... Oh, pobre d’Ele se me cai nas mãos! E depois, estendendo a mão
sôbre a coroa que se achava na mesa de mármore, continou: Esta coroa é minha, o simples desejo de possuí-la custa a
cabeça. Pobre d’Ele se a olha com cobiça, se quer arrancar-ma da fronte!.

CAPÍTULO VIII

A SEMANA DE DANIEL

Uma hora depois Cingo tornou a entrar na câmara do seu senhor.


- Onde estão esses estrangeiros? lhe perguntou este.
- A luz da aurora os encontrará à porta do teu real palácio respondeu Cingo com um laconismo admirável.
- Que gente trazem?
- Pouca senhor: basto eu com os escravos da tua casa para os exterminar, se te apraz.
Herodes respirou.
- De onde vêm?
- Dois deles da Pérsia ou Selêucia, e o outro da Índia orienta segundo me informaram os seus soldados.
- Então quer dizer que os patriarcas persas não querem abandonar as suas tendas durante a noite?
- O dia não está longe?
Herodes escorregou da cama, e dirigindo-se a uma janela, abriu-a para olhar o céu.
- Está bem, disse: mas aqui não estamos sob os arcos do seu palácio; não pende a campainha dos suplicantes que
anuncia com seu timbre sonoro que um homem pede justiça ao meu senhor. Aqui estamos na Galiléia; eu sou o rei de
Jerusalém e posso castigar a sua desobediência.
Herodes, enquanto dizia isto, passeava, ocultando a sua agitação, pela câmara. Cingo imóvel como uma rocha
dos Alpes seguia com a vista as evoluções do seu senhor, esperando uma ordem para a executar.
Uma porta secreta abriu-se deixando um oco nas preciosas tapeçarias. O seu ranger imperceptível fez com que
Herodes virasse a cabeça com rapidez, porque em todas as partes via o punhal do assassino. Cingo empunhou o cabo do
largo punhal que lhe pendia, e avançou dois passos.
Aleixo apareceu então à porta.
- Esses homens esperam as tuas ordens, disse, dirigindo-se ao seu cunhado.
Pouco depois Herodes, com a coroa de louro na cabeça, a afetando uma tranquilidade de espírito que não sentia,
achava-se rodeado dos doutores da lei e dos príncipes dos sacerdotes.
Absortos os nobres anciãos ante o seu rei sem poderem compreender a causa daquela reunião, esperavam
silenciosos e graves ouvir da boca do seu senhor o que eles não podiam adivinhar.
Depois duma breve pausa, durante o qual Herodes procurou ler com um olhar escrutador do coração daqueles
anciãos, disse com doce acento e o sorriso nos lábios:
- Ilustres sábios sagrados sacerdotes que transmitis aos vossos povos as profecias dos profetas: se vos chamei a
tal hora ao meu palácio, é porque, na Judeia, eu, vosso rei, sou o primeiro súdito das sagradas leis de Moisés, e,
desejando render passagem ao vosso Deus invisível, quero perguntar-vos: em que lugar deve nascer o Messias?
Os sábios conhecedores das Sagradas Escrituras, ainda que absortos ante a inesperada pergunta, responderam
sem hesitar:
- Em Belém de Judá.
Herodes perturbou-se em si mesmo, permaneceu alguns instantes como aturdido e sem saber o que dizer, pois
aquelas profecias que via quase realizadas, desorientavam-no.
Os anciãos de Israel, perceberam o efeito que a sua resposta causara no tirano de Jerusalém, e, desejoso de
subjugar o favorito dos romanos, um deles continou deste modo:
- Herodes, sabe-o, já que segundo dizes és o primeiro súdito da lei de Moisés. A semana do profeta Daniel acha-
se próxima a expirar. A aurora feliz que deve iluminar com seus temperados raios a liberdade dos descendentes das
doze tribos de Israel, já começa a mostrar o seu refulgente disco no céu da Palestina. As profecias vão cumprir-se, e
Jeová dirige os seus compassivos olhos para a terra de Davi, e faz nascer a estrela de Jacó no Oriente.
A estas palavras proféticas pronunciadas pelo mais velho dos juízes, seguiram-se alguns instantes do sepulcral
silêncio.
A dúvida e o medo lutavam no coração do monarca, que, não encontrando palavras com que responder aquele
augúrio, se encerrava num vergonhoso silêncio. Por fim, sacudindo as idéias que o subjugavam, tartamudeou estas
palavras.
- Agradecido, sábios doutores, satisfizestes uma curiosidade que me preocupava há alguns dias. Jeová cumpra os
vossos desejos; agora podeis retirar-vos.
- Nós, responderam os sacerdotes, somos teus súditos; até que o Messias apareça entre os homens, manda e serás
obedecido.

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Estas palavras podiam tomar-se por uma ameaça; porém. Herodes, ou não o compreendeu assim, ou, preocupado
com a idéia do novo Rei de Judá que acabava de nascer, não quis fazer caso daquele insulto que lhe atiravam ao rosto
os seus súditos.
Os hebreus, saudando respeitosamente, sairam da câmara do seu rei. Herodes, ficou só, e pela sua mente
passaram em tropel, tomando forma, as profecias dos sacerdotes. Viu o Messias, o novo rei de Judá, levantar triunfante
o seu glorioso estandarte do Oriente ao Ocidente. Recordou as inumeráveis vítimas sacrificadas no altar da sua
desmedida ambição para consolidar o seu poder, e grossas gotas de suor começaram a correr-lhe pela rugosa fronte.
O sangue ilustre dos Macabeus tinha ocorrido em rios durante a monarquia. O carro de ferro do despotismo tinha
passeado em triunfo o seu orgulhoso senhor pelos dilatados confins de Judá esmagando debaixo do seu peso os
descendentes de Abraão. Montes de ouro depositados aos pés de Roma para conquistar a sua proteção, tinham cruzado
os mares de Escalon e Gaeta. Seus filhos, sua esposa, seus amigos e parentes, sacrificados ao fio da sua terrível acha a
menor desobediência; perdia a sua alma, a sua honra e o seu repouso vendo eternamente nos seus sonhos as
ensanguentadas sombras das suas vítimas, ouvindo sem cessar por todas as partes a maldição do seu povo, sentindo no
seu corpo a maldição de Deus com os terríveis e prolongados padecimentos de uma enfermidade mortal: E tudo isto
para quê?
Um rei da descendência de Davi acabava de nascer. E esse Rei poderoso e vingador ia-se levantar diante dele,
expulsá-lo do seu trono como um leproso imundo. Isto pensava, Herodes medindo a largos passos a sua câmara. O
sanguinário Idumeu tinha medo e esse medo foi o seu verdugo nos últimos anos da sua vida.
- Oh! não será!... exclamou com reconcentrado furor, parando diante da coroa, cujas folhas brilhavam aos raios
da luz que despedia a lâmpada. Tu serás minha e só minha, até a última hora!... E, se foi preciso para isso sacrificar a
raça israelita, eu armarei as minhas legiões, as minhas lanças trácias, os meus valentes germanos: os meus nobres
aliados sairão de Jerusalém e as trombetas de desolação anunciarão o seu último instante. Sim eu vos exterminarei como
Nabucodosonor: nem os mortos do vale de Josafá se hão de livrar do meu furor; dizem que o mar Morto se formou
sôbre as ruínas de Sodoma e Gomorra com a chuva de enxofre e fogo que o céu indignado lançou sôbre elas; pois bem,
a arenosa Palestina com o sangue dos seus sonhadores filhos se converterá dentro um pouco em outro mar que
denominarão os vindouros com o nome de mar de sangue.
E Herodes, como se houvesse esgotado as últimas forças do seu espírito enfermo, deixou-se cair desamparado
sôbre um almofadão, contraído o semblante e trêmulo o corpo. Desta abatida situação veio tirá-lo o seu escravo Cingo.
- Os estrangeiros esperam, disse com seu habitual laconismo.
- Vêm só?... perguntou o Idumeu, volvendo em torno de si os receiosos olhos.
- Assim o mandaste. A tua ordem é lei para mim, respondeu o escravo.
- Tu és bom, Cingo amigo... Tu amas o teu senhor, e o teu senhor não há de esquecer na sua última hora, que não
está distante, o que te deve.
- A minha vida é tua: diz-me que morra e me verás expirar sereno aos teus pés.
O rei estendeu uma das mãos a Cingo que este beijou com respeito.
Talvez o único ser que o amava na Palestina.
- Que respondo ao caldeus? Tornou o escravo, depois duma breve pausa.
Herodes escorregou da cama, foi colocar-se diante de um espelho, e, pegando numa redoma e numa esponja,
começou a tingir o cabelo e a barba, que adquiriram instantâneamente um brilho e um negro admirável.
- Esses caldeus poderiam desprezar-me vendo as minhas cãs; porque os velhos são fracos... E preciso enganá-los,
não é verdade, Cingo?
O escravo inclinou-se.
Quando o Idumeu viu terminado o seu adorno, um sorriso de satisfação lhe assomou aos lábios.
- Agora sou outro homem... Que entrem, mas que entrem sós, sem os seus soldados, ouves? eles sós.
Cingo saiu.
Herodes, procurando serenar o semblante, depois de cingir a coroa e colocar sôbre os ombros um rico e luxuoso
manto romano, foi sentar-se num dos divãs, tomando uma atitude nobre e magestosa.
Quando os três Magos apareceram à porta da câmara, Herodes era outro homem diferente do que acabava de ver-
se só com a sua consciência.
Antes de lhes falar esteve observando-os com vagar, como se quisesses ler-lhes nos corações.
Os Magos, que com os braços cruzados sôbre o peito tinham saudado o senhor de Jerusalém, esperavam as suas
ordens junto da porta, imóveis e silenciosos. Cingo lia nos olhos de seu amo e foi esconder-se com alguns companheiros
da sua escravidão entre as largas pregas das colgaduras da porta.
Ali esperava com a mão posta no cabo do punhal uma ordem de seu amo.
Herodes por fim dirigiu-se aos Magos, dizendo com pausada e melífluo acento:
- Entrai e sentai-vos, ilustres estrangeiros.
Os peregrinos da estrela obedeceram ao rei de Jerusalém.

LIVRO QUARTO

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CAMINHO DO EGITO

CAPÍTULO I

OS QUATRO REIS

- Sábios do Irã que chegastes às minhas terras em busca dum rei que acaba de nascer, eu vou saúdo, disse
Herodes, depois de contemplar um breve momento os caldeus.
Os discípulos de Zoroastro, os gentis adoradores do sol, inclinaram-se respeitosamente, e Gaspar, o mais velho
dos três, e conhecedor da língua hebraica, disse:
- A esperança de encontrarmos esse rei nos traz das margens do Tigre à tua cidade, que os deuses protejam; mas
as nossas esperanças desvaneceram-se como um sonho.
- Não vos compreendo, caldeus, respondeu Herodes que com melífuas palavras e hábeis giros, queria saber como
tinham chegado aqueles reis às suas terras; mas sempre tenho admirado os sábios da Pérsia. Por que, pois, não viestes
hospedar-vos no meu palácio, que é vosso? Por que antes de me verdes, levantastes ao vossas tendas nos derruidos
pórticos do rei dos Cantares?
- Deus,o grande Peregrino do céu, tem a sua tenda no sol; nós mortais peregrinos da terra, levantamos as nossas
tendas junto ao derruido palácio de Davi, porque desse tronco há de nascer o Salvador de Israel.
- Por ventura aos ilustres babilônios interessa a sorte dum povo que não é o seu?
- O que se anuncia aos homens com sinais do céu, interessa a humanidade inteira.
- Anunciou-se-vos a vós desse modo?
- Balaão predisse uma estrela que devia aparecer na época do nascimento dum grande rei, o qual estava
destinado a passar o seu estandarte vencedor do Oriente ao Ocaso.
- Mas essa estrela não a vimos em Judá: os meus sábios nada me disseram. Como, pois, me explicais uma coisa
tão estranha? Como, pois, se anuncia o Deus invisível dos hebreus, o verdadeiro Jeová, na terra dos pagãos, e não na
dos fiéis?
- Ninguém pode explicar aos incrédulos as misteriosas revelações do Criador do universo.
- A fé não falta a Herodes.
- Então crê que esse formoso astro surgiu no Oriente.
- Durante a noite?
- Noite e dia brilhou sôbre as cabeças dos nosso dromedários, guiando com a sua misteriosa luz os nossos
incertos passos, através de arenosa Palestina, desde Selêucia a Jerusalém.
- Mostrai-me o ponto do céu em que se acha essa estrela; quero vê-la.
- É impossível; o formoso astro abandonou-nos ao divisarmos os altos minaretes da tua cidade.
- E que augurais vós desse desaparecimento?
- Que aqui nasceu o rei que buscamos...
- E para que quereis encontrá-lo com tanto empenho?
- Para depositar aos seus pés ouro fino, colhido nas margens de Ninive, a grande, como a príncipe; mirra como a
homem e incenso como a Deus. Beijar os seus pés, render-lhe vassalagem e adorá-lo como merece um Anunciado dos
céus.
- Sábios caldeus, eu admiro a vossa ciência, respeito a vossa fé. Nada é tão grande para Herodes sôbre a terra,
depois de Deus, como um sábio... Já que o destino vos conduz por fortuna ao meu palácio, perdoai se a minha
ignorância vos incomoda pedindo-vos pormenores acerca dessa estrela que seguintes até Jerusalém.
Herodes, hábil político, fingiu aquela admiração, aquele acatamento à ciência, porque queria saber dos mesmos
Magos todo o acontecido desde a sua saída de Selêucia. Sagaz e astuto, procurou que os régios estrangeiros não
entendessem o sanguinário plano que lhe fervia no cérebro. Sabia que os reis da Pérsia a primeira coisaa que aprendiam
na sua infância era dizer a verdade.
A mentira tem-se como um opróbrio, como uma hedionda nódoa que empana o sangue e o brazão dos cavaleiros.
Certo Herodes da verdade da narração que iria ouvir dos caldeus, propôs-se tirar de todos os pormenores armas para o
seu plano.
Gaspar explicou cientificamente a lei invariável que rege os globos celestes. Fez-lhe compreender também que o
rumo marcado pela estrela que tinham seguido até ali, era estranho e sobrenatural. Disse que nunca nas regiões celestes
se tinha visto um astro das dimensões e brilho daquele que os trazia preocupados.
Herodes escutou com profunda atenção as palavras de Gaspar. Amável e lisongeiro, mais duma vez que se
mostrou pasmado antes as profundas palavras dos reis. Entretanto, os Magos nada suspeitavam. Como todos, esse
sábios que ilustram o mundo com as suas luzes, eram bons e ingênuos, e os seus corações nobres e generosos não
davam entrada à desconfiança e malícia.
O Idumeu havia-lhes armado um laço, e satisfeita a sua curiosidade, despediu os reis dum modo cortez e
lisonjeiro, dizendo-lhes:

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- Ide informar-vos exatamente desse Menino, e, quando o houverdes encontrado, fazei-me saber para que eu
também vá adorá-lo e celebrar um banquete de nascimento à usança do vosso país.
Os Magos saíram do palácio de Herodes, encantados do bondoso caracter do rei protegido do Capitólio.
Descendo a escada, Gaspar disse aos seus companheiros:
- Se o rasto de sangue humano que tinge a terra de Israel não o fizesse um assassino desprezível, julgaria que
este homem não é o que dizem.
Apenas os persas tinham abandonado a cãmara do rei de Judá, abriu-se uma porta, e, apartando mão invisível as
colgaduras que a cobriam, assomou por ela uma cabeça coberta de longos e macios cabelos pretos, cujo risonho e
expansivo semblante contrastava com a torva e taciturna face do rei tributário.
O novo personagem que assim se introduzia sem se anunciar no quarto do verdugo de Mariana, era um menino
de doze a quatorze anos, de altivo e formoso semblante.
O traje romano que vestia ficava perfeitamente ao seu talhe esbelto. Apesar dos seus poucos anos, pendia-lhe o
arco do braço, a aljava dos ombros e a espada curta da cinta.
A toga pretexta guarnecida de púrpura caia com magestade sôbre o corpo do adolescente, deixando adivinhar
debaixo das suas largas pregas e nascente musculatura de uma atleta. A sua fronte era altiva, o seu olhar sereno e
magestoso e através da fina epiderme do seu rosto viam-se as azuladas veias por onde circulava o seu sangue real.
Este menino chamava-se Aquiab, e era um dos inumeráveis netos de Herodes. Na família chamava-se o
Favorito; havia-se educado em Roma com o esplendor dum príncipe, às espensas de seu avó, que o amava de um
modo indizível, avivando com este afeto os ciúmes dos seus filhos, e particulamente de Arquelau, pai de Aquiab.

CAPÍTULO II

A Q U I A B

Herodes, o Grande teve nove mulheres, vinte filhos e um número ainda mais considerável de netos.
Sucessivamente coube a mesma sorte a Meltaca, Palada, Olimpiada, Fedra, Elpides, Roxana, Salomé, e outras
duas de cujos nomes não nos recordamos.
Estas esposas, expulsas vilmente do palácio do monarca, choraram nos seus desterros a indiferença do bárbaro
Idumeu, estreitando seus filhos contra os peitos feridos pelo dardo cruel da infidelidade de seu esposo. Um dia as
lágrimas esgotaram-se e o desejo de vingança brotou robusto e animoso nos peitos mulheris daquelas ex-rainhas
postergadas.
Aqueles olhos avermelhados pelo pranto, buscaram cobiçosamente uma coroa para seus filhos: viram a de
Herodes, à qual todas tinham direito, e então com as mãos, ainda contraídas pela raiva, começaram a afagar o punhal ou
o veneno que devia vingá-las e exterminar o tirano.
Herodes viu o perigo que o ameaçava; teve medo da sua numerosa família; viu cem punhais sôbre a cabeça
prontos a descarregar o golpe fatal e disse consigo: “Matemos: os mortos não se vingam”.
Sem embargo, era preciso buscar um pretexto para desculpar-se aos olhos de César, seu aliado, e de Israel, sua
escrava. Entre as princesas repudiadas, Mariana era a mais temível pelo seu claro talento e deslumbrante beleza.
Mariana foi acusada de ter mandado um retrato a Marco Antonio, com que se supôs em relações amorosas, e foi
morta. Pouco depois seu filho Alexandre, o mais querido do povo hebreu, o mais conveniente para cingir a coroa, sofreu
a mesma sorte de sua mãe.
O sangue derramado começou a espantar o sono do verdugo de Israel; a desconfiança incarnou-se na sua alma e
só se rodeava de escravos fiéis, aos quais o seu medo enriquecia. Três eunucos que nunca se afastavam do lado do rei,
chegaram a ser os seus favoritos: Silóe, seu copeiro, Ratt, que cuidava da sua comida, e Ferax, da sua cama.
A família de Herodes viu que aqueles três servidores formavam um muro impenetrável ante o corpo do tirano, e
comprou-os. Cingo descobriu esta venda na mesma noite que estava destinada como a última do seu senhor. Os eunucos
sofreram o tormento e declararam a conspiração. Alexandre, filho de Mariana, era o chefe, e morreu com os seus
cúmplices.
Mais tarde, como o leitor verá no decurso deste livro, caíram ao fio do cutelo ensanguentado de Herodes mais
seis filhos. O tirano quis afogar o grito incessante da sua consciência, que lhe recordava a sua crueldade para com seus
filhos, prodigalizando toda espécie de cuidados a seus netos. Muitas vêzes, na prolongada agonia dos seus últimos anos,
fez com que aqueles meninos, que a sua mão deixara órfãos, rodeassem o seu leito e entretinha-se em dispor os
casamentos daqueles infantes para mais tarde.
Entre os seus netos, o favorito era Aquiab, filho de Arquelau, a quem destinava a coroa de Jerusalém.
Só seis pessoas rodeavam o rei: Salomé, sua irmã, Aleixo, seu cunhado; Cingo, seu escravo; Vertúdio, general
legionário; Arquelau, seu filho, e Ptolomeu, o velho guarda-selos. Depois destes todos os habitantes de Israel eram tidos
como inimigos, excetuando os soldados mercenários e os vis herodianos.
Para Herodes a vida era um sonho de morte. O último dos subditos era mais feliz que o seu senhor.
Dados estes esclarecimentos, voltemos a encontrar Aquiab, no momento em que penetrava na câmara do rei.
- Graças a Marte que te deixaram só, querido avôzinho, disse o mancebo entrando precipitamente na habitação.

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Herodes voltou a cabeça, e, ao ver seu neto, apareceu-lhe um sorriso nos lábios.
- Como me achas? lhe perguntou com estouvamente o menino, dando uma viravolta para que o visse melhor.
- Estás mesmo um capitão de César. Mas a que vem esses aprestos militares em tempo de paz? Por que
abandonas o teu leito antes que o sol saúde com seus raios ou sepulcros do vale de Josafá?
- Se me prometes não ter enfadar comigo, vou dizer-to
E o jovem deteve-se, receioso de que o seu avô o reprendesse pelo que ia revelar.
- Fala; nada temas, Aquiab; já sabes que sou bastante condescendente contigo.
- Pois bem, senhor, Cingo, teu escravo favorito é muito meu amigo deste que tu o nomeaste meu mestre, e eu te
agradeço, porque Ptolomeu o velho guarda-selos da tua coroa, não sei o que me ensinava; rabugento e ralhados, nunca
metia uma seta no alvo, nunca pôde desarmar um escravo, e, sempre que pretendeu montar a tua água siríaca, o ardente
animal o atirou ao chão... Diz-me avôzinho, quanto tinheis guerra, Ptolomeu era valente?
Herodes, o feroz verdugo de Belém, era fraco ante aquele menino, como Sansão aos pés de Dalila.
- Ptolomeu é um servo fiel e proibo-te que lhe queiram mal, respondeu com doçura Herodes.
- Pois então deixemos o teu guarda-selos. Hoje não quero que te zangues comigo, e, tornando-te a falar de Cingo,
vendo este homem que eu cravara quatro flechas seguidas no alvo, exclamou, dando uma patada no chão: “Pela vida de
Júpiter Olímpico, meu príncipe, que de todo o coração sinto deixar-te agora que com tanta rapidez adiantas no exercício
das armas”.
- “Deixar-me? lhe disse.
- Amanhã passamos a Jericó; só os deuses sabem como encontrarei o meu discípulo quando regresse a
Jerusalém”.
- “Porque não me levas contigo? lhe tornei.
- “Príncipe Aquiab, Cingo não é mais que um escravo, me respondeu: teu avó é meu rei; pede-lhe a sua vênia,
que eu ficarei muito contente se te vir cavalgar ao meu lado”. Seguindo, pois, os seus conselhos e os meus desejos,
venho dizer-te: Avô, eu quero acompanhar-te a Jericó; não é verdade que tu também queres que Aquiab te acompanhe?
- É preciso que teu pai Arquelau o consinta.
- Ah! Pois então de certo não vou... Mas tu és o rei; aqui todos te prestam obediência; quem ousará contradizer
uma ordem tua?
Herodes, que como todos os adulados era fraco ante a adulação, passando carinhosamente a mão pela cara de seu
neto, disse-lhe:
- Irás.
O jovem deu um salto, e pendurando-se aos ombros de seu avô e cobrindo de beijos aquelas barbas encanecidas
que faziam tremer os hebreus, exclamou com infantil entusiasmo:
- Tu és bom; rei e senhor, muito bom para comigo; mas eu prometo-te ser um rapaz obediente e aplicado.
Arquelau, filho de Herodes, entrou naquele momento na câmara real. Trazia triste o rosto e o olhar inquieto. Seu
filho Aquiab perdeu a alegria à vista do pai.
- Senhor, disse Arquelau com voz agitada, dirigindo-se a Herodes; desde a torre dos ípicos ao vale de Josafá,
desde a porta de Efraim ao tempo de Sion, levantou-se uma voz de alarme, produzida pela chegada duns reis
estrangeiros que vêm em busca do rei de Judá que acaba de nascer. Pai, quem é esse Rei que vem usurpar-nos a coroa?
Herodes, que estremecia a cada palavra que pronunciava, procurou dominar-se dizendo:
- Nada temas, Arquelau; os sonhos dos judeus devem inspirar desprezo aos herdeiros de Herodes; e depois,
dirigindo a palavra a seu neto, continuou: Aquiab corre a dizer ao meu escravo Cingo que desejo partir imediatamente;
tu me acompanharás.
Aquiab beijou a mão de seu avô e saiu da câmara saltando de alegria. Quando Arquelau e Herodes ficaram sós,
disse este a seu filho, baixando a voz:
- Tu, meu filho, ficas em Jerusalém; eu parto para Jericó para fazer os preparativos duma viagem a Roma, onde
teus rebeldes irmãos me acusam; mas antes de partir escuta bem o que vou dizer-te e não esqueças que do cumprimenro
exato das minhas ordens depende que esta coroa que descansa sôbre a minha fronte passe amanhã à tua cabeça. Esse
sábios caldeus que semearam a inquietação na nossa cidade, tornarão a dar-me notícias desse rei que procuram. Então te
apoderarás deles e mos mandarás a Jericó presos entre dois muros de lanças.
- Serás obedecido, respondeu com prazer Arquelau, em cuja veia ardia o pobre sangue de seu pai. Entretanto,
dorme tranquilo; tu reinarás em Galiléia ainda que seja preciso para isso encher o Cedron de sangue humano.
Herodes, chegando-se à janela, pela qual começavam a entrar os raios de sol nascente, agitou um lenço, e
imediatamente ressou na praça o toque das trombetas. Depois pegando na vara de metal, tornou a tirar da folha de aço
três sons vibrantes. Salomé, Aleixo e Verutídio apresentaram-se à porta.
- E os médicos? Perguntou Herodes a sua irmã.
- Esperam na praça e acompanhar-te-ã a Jericó.
- Mas que te disseram?
- Como sempre, aconselham-te os banhos temperados de Calióre.
- Ora! Os médicos sempre acabam pelo mesmo; quando se vêm perdidos, entregam o corpo nos braços da
natureza. Vamos.
E sairam da câmara. Verutídio, o general romano, ia adiante. Herodes, apoiado nos braços de sua irmã e de
Aleixo, descia atrás, a larga escada do palácio. Depois, grave e carrancudo, seguia o guarda-selos do palácio, Ptolomeu.
Quando Herodes chegou ao pórtico, uma riquíssima liteira o esperava. Cingo abriu a portinhola, e pôs um joelho para
servir de estribo ao seu senhor. Ao seu lado achava-se Aquiab, montado numa galharda égua de raça siríaca. Um grito

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de viva el-rei ressou na praça. Herodes, depois de saudar com um sorriso seu neto e com um lenço os seus soldados,
disse ao seu escravo Cingo:
- Para Jericó!
- Para Jericó, repetiu Cingo ao guarda-seios, o qual transmitiu a ordem a uma centurião romano.
Então Salomé entrou em outra liteira com a sua escrava favorita. Aleixo montou num fogoso cavalo, e foi
colocar-se à direita da liteira de Herodes. Pouco depois o tirano de Judá saía pela porta Dória, rodeado das suas lanças
mercenárias, e, tomando o caminho de Betânia, dirigiu-se para as margens do Jordão, em procura da sua cidade favorita.
Deixemos o Idumeu prosseguir o seu caminho, abismado nos seus sanguinários planos, e tornemos a encontrar
os peregrinos do Oriente, os sábios de Selêucia.

CAPÍTULO III

A ADORAÇÃO DOS MAGOS

Quando os peregrinos persas saíram do pala´cio de Herodes, e dia achava-se indeciso nas nuvens do Oriente.
Imediatamente mandaram levantar tendas e com a esperança no coração abandonaram a capital da Judéia, saindo pela
porta de Damasco, enquanto que a cavalgada de Herodes se encaminhava para Jericó pela porta Dória.
Duas horas de marcha levaram os caldeus, cruzando vales e subindo empinados desfiladeiros; já o sol, em toda
sua plenitude, lançava sôbre a terra da Palestina a vivifante e clara cluz dos seus raios, quando se detiveram junto duma
cisterna (que hoje ainda existe, e é conhecida com o nome de cisterna dos magos), deixando beber aos seus
dromedários, das suas frescas e transparentes águas. De repene, quando mais distraídos se achavam na zênite um astro
luminoso que desceu como uma exalação sôbre as suas cabeças.
Os viajantes, sem se poderem contar, fazem um movimento de terror, crendo que um raio caía sôbre êles para os
exterminar.
Mas o fogo do céu não chega à terra; ficando suspenso no espaço, a pequena distância das suas cabeças, envia-
lhes as cambiantes irradiações dos seus formosos raios que esmaltam quanto tocam os seus brilhantes reflexos.
- A estrela, a nossa estrela! Exclamaram jubilosos os reis, levantando os braços para o céu com religioso
movimento.
- A estrela, a estrela! Repetem com louco entusiasmo os escravos e soldados da caravana.
- Prodígio dos céus! Misteriosa revelação dum Deus, que nós os discípulos de Zoroastro, não temos adorado,
exclamou Gaspar com fervoroso acento; guia-nos até ao berço do teu santo filho e eu beijarei os seus pés e adorarei o
seu corpo.
Então a estrela, como se houvesse esperado as palavras do rei idólatra para empreender a sua marcha, começou a
deslizar-se pelo espaço. Os reis seguiram-na. Deixando a terra aos seus dromedários, fitos os olhos na formosa estrela,
caminharam mais duas horas entre barrancos e precipicios sem se importarem do perigo que os ameaçava a cada passo.
Por fim o divino astro deteve-se por cima duma pequena cidade que descansava no topo duma colina.
Aquela cidade era Belém de Judá, pátria imortal, berço santificado do Redendor do homem.
Os reis dispunham-se a entrar em Belém, quando a estrela, como se houvesse desprendido da mão misteriosa que
a segurava no espaço, caiu do céu e foi colocar-se sôbre a desmoronada e arruinada porta dum estábulo. Os reis
julgavam encontrar num palácio o Messias; mas ainda que os assombrou o miserável lugar que a mensageira do céu
escolhia para deter o seu passo, puseram pé em terra e, ordenando aos seus escravos que lhes descalçassem as sandálias,
encheram as fontes com o pó do pobre umbral e entraram no estábulo.
O Menino-Deus achava-se estendido no sue humilde leito de palha; sua santa Mãe, ao seu lado, contemplava
com doce veneração a jóia do seu amor. O astro dos céus enviava-lhe os seus formosos raios, que caiam como um raio
de luz sôbre a Mãe e o filho.
Os reis caminharam até o pé da manjedoura com profundo respeito. Grande era a fé que os animava quando
dobranco o joelho foram beijar com respeito os pézinhos daquele Menino pobre e abandonado que nascera num
estábulo.
Os poderosos reis de Selêucia e Oriente, a cuja voz curvavam a cabeça os seus leais escravos; os idólatras
babilônicos, os sábios da Pérsia, rendiam vassalagem ante o Filho dum pobre carpinteiro de Nazaré. Não era isto um
sonho do Ginastan, mais verossímil, mas estranho que a fabulosa existência dessa raça de Dives e Peris, desses
gigantes que habitavam uma cidade formada de um só diamante e que as caprichosas falas do Cáucaso e do mar
Cáspio converteram em torrentes de cambiantes côres e em mares de brilhante luz só com o lhe tocarem com sua
varinha misteriosa?
Prostarem-se ante o Filho de um pobre operário três poderosos reis do Oriente, no tempo da vinda de Jesus
Cristo, era tão inversossímil, tão portentoso, como esgotar o Oceano à força de braços e converter o deserto de Saara
num vergel frondoso das margens do Eufrates! Só Deus poderia levar a cabo tão portentosa transformação. Só o Filho
de Deus podia conduzir junto do seu berço, com os pés descalços e o pó na fronte, Gaspar, Melchior e Baltazar.
Postos de joelhos ante Jesus, os potentes reis adoraram o recém-nascido como os príncipes do Oriente adoravam
então os seus deuses e soberanos.

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Abriram os ricos cofres que levavam e tiraram para depositar aos pés de Messias, ouro puro de Ninive a granel e
perfumes árabes do Iemem.
O sacríficio do sangue começou a ser abolido pelos mesmos pagãos que o veneravam. A branca novilha, o
inocente cordeirinho não dobravam o humilde colo ante o cutelo do sacrificador, nem dirigiram o seu doce e doloroso
olhar na ocasião de expirarem, para o deus que lhes tirava a vida. Jesus, desde o berço, desterrava da Sinagoga o sangue
e as vítimas. O Deus do perdão, da caridade, da tolerância, nascia entre os homens para se sacrificar por êles. Só uma
vítima reclamava a humanidade extraviada, para livrar-se da infalível perdição; essa vítima desceu dos céus para salvar
o mundo. A civilização cristã, o direito das gentes, a liberdade do homem, nasceram num estábulo. Por inspiração
divina, três reis bárbaros puseram a sua pedra fundamental. Os idólatras caldeus deram o primeiro passo sem o poderem
explicar a si mesmos, ao oferecerem como tributo da sua vassalagem ao Filho de Maria, ouro como príncipe da terra,
mirra, como homem e incenso como Deus.
Maria contemplava com indefínivel gôzo aquela adoração que os poderosos reis da Ásia tributavam ao seu
formoso Filho. Mãe extremosa, derramava doces e agradáveis lágrimas ante aqueles nobres estrangeiros que de tão
remotos climas iam beijar os pézinhos de seu adorável Filho.
José não se achava no estábulo quando teve lugar a adoração dos reis Magos. Com quanto gôzo haveria
contemplado aquela cena terna e assombrosa o casto e cândido carpinteiro de Nazaré! Mas o Eterno assim o havia
disposto. Sua prença naquele lugar talvez houvesse semeado a dúvida no coração dos reis peregrinos.
Gaspar e os seus companheiros eram homens de ciência e sabiam o hebreu; e depois de adorarem o Menino e
oferecerem o seu respeito e valia a sua santa Mãe, sairam do estábulo, caminhando de costas para a porta, e montando
nos seus dromedários puseram-se em marcha.
Antes da saída dos Magos, um árabe entrado em anos e um jovem hebreu, confundidos entre os escravos dos
caldeus, tinham-se introduzido no santo estábulo. Durante a adoração não apartaram a vista da misteriosa estrela, que
suspensa da abóbada da gruta, lançava seus fulgurantes raios sôbre a manjedoura em que dormia o Menino-Deus.
Apenas os reis sairam da caverna, o árabe encaminhou-se para o leito de Jesus, e, dobrando um joelho e cruzando os
braços sôbre o peito com veneração, beijou a palha que servia de leito, murmurando estas palavras em voz baixa:
- Tu és o Messias prometido... Tu és o meu Deus, o teu glorioso nome cravar-se-á no meu coração eternamente e
no de meus filhos e nos dos filhos de meus filhos...
E depois saiu do estábulo do mesmo modo que tinham saído os reis Magos.
O jovem hebreu fez o mesmo que o árabe; entrou, ajoelhou-se e beijou a palha do presépio. Depois saiu da gruta
murmurando estas palavras.
- O Messias nasceu; Jeová apiedou-se por fim dos descendentes de Jacó; creio nele e hei de adorá-lo enquanto
viver.
O árabe encaminou-se para Jerusalém abismado nas suas reflexões. Os hebreus, com a fisionomia
resplandecendo felicidade, dirigiram-se para o Monte Carmelo. O árabe era Hassaf, o caravaneiro do egito; o hebreu
Agabus, o pretendente de Maria, o misterioso personagem da fonte de Elias.
Entretanto, os reis Magos, fiéis à sua palavra, dirigiram a cabeça dos seus dromedários para Jericó, com o fim de
revelarem a Herodes tudo o que lhes havia acontecido. Deus, que lê no cerrado livro do coração humanao, viu a fé
singela, a honradez dos caldeus, e a miserável hipocrisia do tirano de Judá e quis salvar do perigo que os ameaçava os
primeiros, mandando-lhes um emissário misterioso que os informou dos sanguinários planos do rei de Jerusalém.
Esta revelação foi feita em sonhos, segundo o Evangelo, e no dia seguinte os discípulos de Zoroastro deram
graças Aquele cujas tenda está no sol, e em vez de tomarem as praias infecundas do lago Maldito, para encontrarem
o Jordão, fizeram torcer o rumo aos seus dromedários para o Grande Mar, e atravessando as perfumadas planícies que
beijam com seus frescos lábios o Bem-buier, dirigiram-se confiando em Deus às pitorescas ribeiras da Síria. Para
terminarmos o quadro do reis Magos, cuja importante missão junto ao berço de Cristo é de tanta monta para o
cristianismo, acabaremos este capítulo dando a conhecer aos nossos leitores algumas informações que sôbre o fim dos
ilustres peregrinos pudemos adquirir.
S.Tomé apóstolo passou à Índia a pregar o Evangelo, e os reis caldeus, que com esta missão percorriam o mundo
havia alguns anos, receberam o batismo das mãos do discípulo de Jesus Cristo. Mais tarde, cheios de fé, instruindo nos
santos mistérios da nova lei os indômitos moradoress dos bosques da Índia, Gaspar e Baltazar sofreram o martírio,
morrendo às mãos duma horda de ferozes e descridos idólatras. Melchior, o mais novo dos três, o que nos
representaram as Escrituras de cor negra ou escura, livrando-se da morte encaminhou-se para a Índia Oriental, sua
pátria, e foi refugiar-se na cidade de Cangranor. Uma vez ali, com suas riquezas fundou a cidade Caleêncio, e, com o
coração cheio de fé cristã, erigiu um soberto templo em honra e glória da Virgem Maria e seu glorioso Filho.
Desde então os caleêncios consagraram-se ao culto e piedae de Maria, aumentando de dia para dia com a
influência de Melchior o respeito e veneração para com a rainha dos céus. Culto que de geração em geração, e sempre
em aumento, se transmitiu até o século atual para que em tudo se cumprissem as profecias dos livros sagrados, que
dizem: que do Oriente havia de nascer a fé verdadeira do Messias anunciado pelos profetas.

CAPÍTULO IV

A ANCIÃO E A PROFETISA

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A lei de Moisés prescrevia à mulher hebreia a purificação no templo quarenta dias depois do parto. Maria para
cumprir a lei, abandonou a cidade de Davi e dirigiu-se a Jerusalém. A Virgem, com o Menino Jesus nos braços e
acompanhada de seu esposo, chegou aos degraus do templo. A Nazarena era pobre, e só podia oferecer em sacrifício
uma humilde rosa.
A Santa família esperava sob os altos pórticos da sinagoga a hora do resgate do seu Primogênito, quando um
ancião venerando a quem o Evangelo chama Simeão o homem justo, abrindo passagem por entre a gente, chegou até
onde estavam os Esposos, e, depois de se ajoelhar a seus pés, tomou o Menino nos braços, e elevandd-o à altura do
rosto, exclamou com indefinível gôzo:
“Agora é que Vós, senhor, deixareis morrer em paz o vosso servo; pois que os meus olhos viram o Salvador que
Vós nos destes e a quem destinais para estar exposto às vistas de todos os povos, como a luz das nações e a glória de
Israel”.
Os Santos Esposos escutaram absortos as palavras proféticass do velho Simeão, que com os olhos arrasados de
lágrimas permaneceu estático contemplando o cândido semblante do Menino-Deus.
- Oh! Mãe feliz prosseguiu a ancião depois duma pausa; teu Filho será o sol resplandecente que espantará as
trevas de Israel. Objeto de glória para uns, motivo de perdição para outros, o seu santo nome será o alimento do fraco, o
temor do forte; e Tu, que o trouxeste no teu seio, verás traspassada a tua alma maternal pela acerada ponta de cem
espadas.
Maria, cada vez mais admirada das palavras do ancião olhava-o sem despregar os lábios, como se através das
suas misteriosas palavras visse o doloroso futuro que os céus lhe destinavam.
Havia então em Jerusalém uma mulher entrada em anos chamada Ana, a Profetisa. Esta virtuosa viúva passava a
vida entre a penitência, o jejum e a oração; vivia continuamente no templo e era respeitada pelos judeus pelo seu saber,
como uma das suas sacerdotisas, como uma das suas profetisas.
Ana chegou ao templo na ocasião em que o Menino Jesus se achava ainda nos braços do ancião. A profetisa
detém o passo diante de Simeão. Seu rosto demuda-se, seu coração comove-se e exclama absorta do que sente:
- Que é isto, Deus invisível!...
Então os seus olhos fitam-se em Jesus... Um grito de alegria sai da sua boca e, caindo prostrada aos pés de
Maria, diz, estendendo os braços:
- Tu és a Mãe do Messias: deixa que beije os pés do teu Santo Filho.
Os jerossolimitanos, que respeitam o saber de Ana, foram-se agrupando em torno dela, ansiosos de ouvir as
palavras de júbilo que a vista daquele Menino lhe arrancava.
- Oh! povo de Israel! Exclamou a inspirada mulher derramando lágrimas de prazer e erguendo os olhos ao céu.
Oh, povo de Israel! Venturosos descendentes de Abraão e Jacó... Já sôbre a venturosa terra de Judá desceu o Deus forte,
o Deus poderoso que há de levar o vosso glorioso estandarte por todo o Oriente. Olhai-º.... É este... O vaso humano que
contemplam vossos felizes olhos, encerra o Ser imortal e poderoso de Jeová. Semeai flôres e palmas ante os passos de
sua Santa Mãe... elevai cânticos de hosana... pela glória do Filho... Fortess, poderosos escribas, espalhai tão faustosa
nova pelos dilatados confins da Palestina!... Filhos de Jerusalém, adornai-vos como na festa dos Ásimos, cantai como
na festa dos Tabernáculos, derramai óleos e essências como nas bodas dos príncipes; porque ainda tudo isso e quanto
façais em honra da sua anelada vinda, será pobre e mesquinho para obsequiar o Messias Salvador da sua oprimida raça!
E Ana, a inspirada profetisa, a virtuosa viúva, saindo do templo de Sion, começou a correr pelas ruas da cidade
sacerdotal anunciando a vinda do Messias, o nascimento de Deus.
As mulheres e os velhos que se achavam nos degraus do templo, absortos ante as palavras de Ana, apressaram-se
a beijar o humilde e grosseiro manto da Virgem Maria.
“Não só (diz S.Ambrósio) os anjos, os profetas e os pastores apregoam o nascimento do Salvdor do mundo, mas
também, os justos e os anciãos de Israel fazem brilhar esta verdade. Um e outro sexo, novos e velhos autorizam esta
crença, confirmada com santos milagres. Uma virgem concebe, uma mulher estéril pare, Isabel profetisa, O Mago
adora, uma viúva confessa êste maravilhoso sucesso e o justo espera-o”.
A hora de apresentar o Menino na sala dos primogênitos soou e José, deixando sua Santa Espôsa no átrio do
templo, entrou na casa de Deus com o seu Filho nos braços. Mas aí! Ali Jesus foi tratado como o último dos hebreus. O
sacerdote que recebeu a oferenda das mãos do pai, nem sequer se dignou dedicar um olhar ao Deus-Menino.
O judeu avarento e mau sacerdote olhava com desprêzo o pobre dom que o honrado carpinteiro ia oferecer ante o
altar dos holocaustos. A sêde de ouro endurecia o coração da maior parte dos rabinos daquela época gloriosa e imortal.
Jesus era pobre e, por conseguinte foi olhado como lixo do mundo.
O egoísta sacrificador recebeu das mãos de José as inocentes aves destinadas pelo Levíticio, murmurando
palavras grosseiras e intempestivas, às quais o glorioso patriarca cerrou os ouvidos, perguntando a si mesmo porque
pretendia aquele homem humilhá-lo tão duramente, quando a poucos passos dali, à entrada do templo, seu glorioso
Filho tinha sido a admiração dos que o rodearam.
Segundo Josefo nas suas Antiguidades Judaicas, e Besnage na sua História dos Judeus, o luxo e a avareza dos
príncipes dos sacerdotes de Jerusalém era incrível. Os pontífices enviavam os seus satélites pelos campos para
arrebatarem os dizímos: isto reduziu os simples sacerdotes a viver pobremente, sem outro alimento que figos e nozes,
não obstante, seus lábios não podiam produzir uma queixa, porque então os pobres e desatendidos levitas eram acusados
de insubordinação e entregues aos romanos. O governador Feliz encerrou um dia quarenta num cárcere, só por
comprazer aos príncipes da Sinagoga.

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Outra baixeza, outra úlcera moral havia encarnado no coração dos Judeus, mas repugnante, mais desprezível se
se quiser que a avareza: a vingança, “Aquele que não alimente o seu ódio e não se vingue, é índigno do título de
rabino”.
Esta máxima horrível e cruel praticavam-na com criminoso escrúpulo.
A vinda de Cristo ao mundo era uma necessidade, porque a ruína, o caos estavam próximos. Jesus foi o Salvador
do homem, o facho divino que veio derramar os claros raios da sua luz sôbre as espessas trevas que envolviam a
sociedade.
O imortal Balmes o disse; nós o repetimos com êle:
“Sombrio quadro, por certo, apresentava a sociedade em cujo centro nasceu o Cristianismo. Cheia de aparência e
ferida no coração com enfermidade moral, oferecia a imagem da mais asquerosa corrupção, velada com a brilhante
roupagem da ostentação e opulência. A moral sem base, os costumes sem pudor, sem freio as paixões, as leis sem
sanção, a religião sem deus, flutuavam as idéias à mercê das preocupações do fanatismo religioso e das cavilações
filosóficas. Era o homem um fundo mistério para si mesmo e não sabia estimar a sua dignidade, pois que consentia que
o rebaixassem ao nível dos brutos”.

“Enquanto grande parte da espécie humana gemia na mais abjeta escravidão, exaltavam-se com tanta facilidade
os heróis até os mais detestáveis monstros sôbre as aras dos deuses.

- -

“O Cristianismo apareceu, e sem procurar alteração alguma das formas políticas, sem atentar contra govêrno
algum, sem se ingerir em nada que fôsse mundano e terreno, trouxe aos homens dupla saúde, chamando-os ao caminho
duma felicidade eterna, ao passo que ia derramando às mãos cheias o único preservativo contra a dissolução social, o
germe duma regeneração lenta e pacífica, mas grande, imensa, duradoura, à prova dos transtornos dos séculos; e êsse
preservativo contra a dissolução social, êsse germe de inestimável melhoras, era uma doutrina elevada e pura
derramada sôbre todos os homens sem exceção de idade, sexo, condição, como uma chuva benéfica que se destaca em
suas torrentes sôbre uma campina seca e esgotada”.

- -

José terminada a cerimônia prescrita pela lei, saiu do templo e, reunindo-se com a sua santa Espôsa, abandonou a
cidade sacerdotal, e, tomando o caminho de Galiléia, dirigiu-se a Nazaré.

CAPÍTULO V

O BOSQUE HOSPITALEIRO

Foi curta a permanência dos santos Esposos na Galiléia. Simeão tinha vaticinado à gloriosa Mãe que um punhal
lhes transpassaria o peito; e estava escrito nos céus que as palavras do ancião deviam cumprir-se. O mês de fevereiro
achava-se próximo à metade da sua carreira, quando uma noite José se levantou assustado do seu leito. A voz de Jeová
tinha interrompido seu tranquilo sono. Estas misteriosass palavras tinham chegado aos seus ouvidos: “Levanta-te, toma
o Menino e sua Mãe, foge para o Egito e permanece alí até que eu te avise para a tua volta, porue Herodes busca o
menino para o matar”.
Ainda o eco misterioso da divina relevação soava nos ouvidos de José, quando precipitadamente chegou à porta
do quarto de dormir de sua Espôsa e lhe disse com voz agitada:
- Maria, desperta e deixa o teu leito, pega em teus braços o inocente Menino e prepara-te para fazer uma viagem
longa e penosa.
Maria, que se achav junto ao berço de seu Filho, correu a abrir a porta sobressaltada.
- Partir de Nazaré? perguntou a Virgem. E para onde?
- Para o Egito: Deus nô-lo ordena; Herodes busca nosso Filho para o matar.
Maria, correndo para o berço, abraçou Jesus, como se no seu seio se achasse mais seguro do punhal assassino, o
Filho das suas entranhas. O Menino acordou enviando um angélico sorriso que, como o raio de sol depois da tormenta,
tranquilizou o agitado espírito da Virgem. E logo, voltando-se para o Patriarca, que permanência respeitosamente junto
da porta, disse:
- Entra, José, e não temas: Jesus sorri, e o seu sorriso é como o arco-iris da tarde que dissipa as carregadas
nuvens.

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- Deus manda-nos executar o que te disse, tornou o ancião.
- Partamos, pois, e do céu Jeová vele por nós durante a viagem, disse Maria com santa resignação.
Os esposos aprontaram o mais necessário para a viagem. Mas, eram tão pobres!... A Santa Virgem meteu num
saco de linho alguns panos e peças de roupa indispensáveis, enquanto que José tirando da gaveta duma mesa de pinho
as suas parcas economias, as guardou cuidadosamente numa bolsa de couro.
Depois aparelhou a linda jumentinha branca que os havia conduzido a Belém dois mêses antes; colocando sôbre
seu dorso uma cesta com viveres e um odre de água e abrindo sem bulha a porta da casa, deixou da ramada o manhoso
animal e foi chamar a espôsa. A Trindade da terra saiu de Nazaré com as lágrimas nos olhos e a dor no coração,
quando os astros da noite se achavam no meio da sua misteriosa carreia. O Anjo havia-lhe anunciado um grande perigo,
mas não lhes tinha dito a maneira de o vencedem.
De Nazaré ao Egito mediava uma distância de 160 léguas. E depois, como atravessar o deserto com suas ondas
de areia, sem outra cavalgadura que uma modesta jumentinha? Os árabes que, como bando de abutres, se lançavam
sôbre as caravanas que não podiam resistir-lhes, não os ameaçavam também com suas compridas lanças e seus curvos
punhais, a êles, pobres, indefesos e abandonados viajantes, que não podiam apresentar contra o ferro inimigo senão as
suas lágrimas e súplicas?.
Já muito alto o dia,os viajantes, receiosos de que a luz do sol os entregasse aos seus inimigos, esconderam-se
num bosquezinho de palmeiras da tribo de Zabulon, cuja solitária e abundante sombra lhes oferecia abrigo durante as
horas do dia. O murmúrio dos regatozinhos que nutre o Cison durante as tempestades do equinócio, e o suave gemido
das brisas que se agitavam entre as bonitas copas das saborosas palmeiras, o terno e cadencioso canto dos passarinhos, o
mavioso arrulho da rola silvestre, acompanharam com seus melodiosos ecos a permanência dos fugitivos naquele vale
hospitaleiro. O sorriso do inocente Menino, o transparente céu, a aura embalsamada dos campos, começavam a
tranquilizar o angustiado coração de Maria, quando José, que se achava ocupado nos preparativos da frugal comida,
deteve os braços e ficou imóvel com o ouvido atento.
- Ouviste, Maria? Perguntou a Virgem.
A jovem Nazarena escutou um momento. Suas rosadas faces empalideceram e, instintivamente, apertou seu
Filho ao coração. O Menino não sorria; as rolas não arrulhavam; os passarinhos dos bosque suspenderam os doces
trinados na garganta e uma sombria nuvem escureceu o ardente disco do sol.
- Ouço, murmurou Maria, assim como o ruído de armas e passos de cavalos, no extremo oposto deste vale.
- Sim, para a montanha, pelo caminho romano que conduz às ribeiras de Efa; talvez sejam comerciantes de
Ptolemaída ou Tiro que regressam aos seus portos.
- Se fossem herodianos!... E Maria mal pronunciou estas sílabas, amedrontada Ela mesma de tal pensamento.
- Tranquiliza o espírito; este vale acha-se afastado do caminho.
Depois seguiu-se uma grande pausa. Os cavalos iam-se aproximando. Maria escondeu Jesus entre as flutuantes
pregas do seu manto hebreu e levantou os olhos ao céu em ademã suplicante. José, ao seu lado, estava mudo, triste, e
com o doloroso olhar fixo no ponto do caminho por onde deviam aparecer os viajeiros que tão terríveis receios
derramavam no seu coração.
De súbito, uma voz varonil, ardente e vibrante, chegou aos seus ouvidos. Esta voz humana era acompanhada por
um canto harmonioso e guerreiro, cujas notas chegavam claras e sonoras aos ouvidos dos fugitivos, quebrando-se nas
altas copas das palmeiras.
- São romanos, murmurou José; ainda que não compreendo bem as palavras, creio que cantam a canção do
famoso gladiador.
Maria não despregou os lábios; só pensava em seu Filho, que apertava carinhosamente ao seio. A voz ia-se
aproximando e pouco depois as brisas do campo levaram até aos ouvidos da Santa Família a canção romana.
Cessando a voz, as patas dos cavalos ouviam-se a pequena distância.Os fugitivos mal respiravam. Um momento
depois, os capacetes romanos e as lanças trácias dos cavaleiros brilhavam.
Maria teve mêdo, e, levantando os doces olhos ao céu exclamou com doloroso acento:
- Oh, doce palmeira que elevas tua linda copa até aos céus! Tu que te achas mais próxima de Jeová que esta
pobre Mãe, dize-lhe que não abandone meu inocente Filho.
Então sucedeu uma coisa extraordinária, sobrenatural: a árvore inclinou para a terra seus longos e fortes ramos,
cobrindo com sua verde abóbada a Santa Família. Os soldados de Herodes passaram junto da palmeira protetora sem
verem os que se escondiam entre o espesso cárcere de suas folhas. A uns trinta passos daquele lugar, entre o séspede há
um manancial de água cristalina e os soldados pararam e alguns puseram em pé em terra.
- A ordem não nos proibe que bebamos água quando tivermos sede e acharmos na passagem uma fonte, disse um
dos cavaleiros tirando o capacete e enchendo-o no manancial.
- Por Júpiter! Que a infamante pena das varas não havia de deter-me se tivesse sêde e achasse um manancial tão
claro como êsse que serpeia aos pés do meu cavalo.
- Que opinas tu da nossa mensagem, amigo Caio? disse um dos soldados depois de beber água, dando o capacete
cheio a outro que ainda permanecia sôbre a sela.
- Opino, Otávio amigo, que o tributário Herodes uivará como um cão raivoso quando nos vir regressar a Jericó
sem os reis Magos.
- A terra sem dúvida enguliu esses estrangeiros.
- Alegro-me, volto a Esculápio. Nós soldados da invicta Roma, não viemos à Palestina perseguir criancinhas e
encarcerar indefesos peregrinos.
- Herodes paga e manda na Judéia, replicou um herodiano da comitiva.

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- Roma protege-o, tornou o romano com império. O César, meu amo, será sempre o senhor do Oriente.
O herodiano mordeu os lábios de raiva e foi ocultar a sua perturbação no claro manancial da fonte.
O centurião deu pouco depois ordem de partir, e tomaram a bom passo o desigual e quebrado caminho que
conduzia às praias de Cesaréia, onde os enviava Arquelau, filho de Herodes, para evitar que os reis Magos embarcassem
naquela costa.
A medida que se iam afastando as patadas do cavalos as caídas folhas da palmeira tornavam a tomar sua posição
natural. Então pôde ver-se a Santa Família reclinada sôbre o caloso tronco da árvore protetora, e dormindo com o sono
tranquilo e doce dos justos.
Deus, sem dúvida para evitar à aflita Mãe uma hora de horrível e mortal angústia ouvindo a pouco passos a
conversação dos perseguidores de seu Filho, fez com que descesse sôbre êles o fluído misterioso e reparador sono.

CAPÍTULO VI

O BOM LADRÃO

Ao acordarem Maria e José do doce e vivificante sono que tinham desfrutado à sombra da hospitaleira palma, a
lua, traspassando com seus prateados raios as apinhadas folhas da árvore que lhes servia de tenda, banhava com sua luz
clara e tranquila a rosada fronte de Jesus. Um sorriso de indefinível ternura vagueava no rosto do Santo Menino e um
amoroso olhar dirigido à Mãe infundiu na Virgem todo o valor de que em tão penosa viagem precisava o seu espírito.
- É isto um sonho? dizia a Virgem apertando o Filho ao coração. Vive ainda a vida da minha vida? Deus de
bondade! Seus ímpios perseguidores não derramaram o seu precioso sangue?
- Maria, falou-lhe o espôso os anjos do Senhor nos anunciam o perigo e o evitam com seu infinito poder. Mas o
tempo é precioso e a noite deve ser amigo até que cheguemos às ribeiras da Síria, pois só alai começaremos a estar
seguros.
A Virgem, delicada açucena de frágil e quebradiça aste, revestiu-se desse valor que só possuem as mães quando
dele depende a vida de seus filhos, e abandonando o bosque hospitaleiro onde tantos receios tinham experimentado,
seguiu o espôso com a resignação duma mártir.
Em tão penosa viagem, quantas amarguras, quantos dissabores os esperavam! A moléstia de herodes, o ódio dos
israelitas aos soldados mercenários da opulenta Roma, tinham exacerbado os ânimos e de dia para dia engrossavam as
quadrilhas de malfeitores que infestavam o páis. Por tôda parte se cometiam roubos escandolosos, assassínios horríveis.
Transportar-se duma tribo a outra era correr iminente perigo. Os homens agrupavam-se e armavam-se para fazerem uma
viagem insignificante. Mais até caravanas de pacíficos comerciantes, pareciam destacamentos de soldados; e ainda
assim não estavam livres do perigo que os cercava por toda parte.
Maria e José chegaram depois de mil incômodos à rebelde e hostil Samaria. Durante as horas do dia refugiavam-
se nas profundas e ignoradas cabernas, e não poucas vêzes tiveram de deixar a passagem livre aos imundos animais que
nelas habitavam e que a Santa Família desalojava para se acoutar. A Virgem sofria tudo com resignação dos anjos e
com o valor dos mártires; porque aquela aflita Mãe só tinha um desejo, só a alentava uma esperança: salvar seu filho do
furor inimigo. Por isso atravessava à noite os espessos bosques e calcinados barrancos da Palestina. O estridente uivar
dos lobos era mais grato aos seus ouvidos que o estrondo das armas e o galope dos cavalos. Por tôda a parte sua
medrosa imaginação julgava ver um soldado romano que, com feroz sorriso, estendia os nervudos braços para lhe
arrebatar o amado Jesus.
Errantes, fugitivos como criminosos perseguidos pela lei, atravessaram a Galiléia e a parte da Samaria, fugindo
das cidades, evitando o contato da gente, caminhando de noite e refugindo-se nas profundas cavernas dos montes
durante as horas do dia.
Nunca mãe alguma sofreu tão contínuos receios, tão terríveis temores por seu filho, como a Santa Virgem por
Jesus. Parecia que o céu lhes retirava a sua proteção, ou punha à prova sua paciência e sofrimento.
Cada passo que dava a Santa Família para o termo da sua viagem, achava um perigo, um obstáculo e, contudo,
de todos êsses contratempos a misteriosa mão da Providência os tirava ilesos. Mas quanto lhe restava ainda sofrer antes
de chegarem ao Egito!...
Atravessaram as tribos da Palestina e, já quase livres do furor de Herodes se achavam nas praias da Síria, mas
ali não os esperam os arenosos desertos do Egito? Por ventura os santos viajantes poderão atravessar aquelas imensas
planícies de areia que, qual mar embravecido, sepulta as suas cálidas ondas caravanas inteiras de viandantes logo que o
simun estende pelo deserto o seu poderoso sôpro?
Aqueles caminhos semeados de cadáveres; aquelas estradas marcadas pelos esqueletos dos camelos e dos
comerciantes; aquelas terríveis soledades infestadas de bandidos cem vêzes mais selvagens e cruéis que os de Samaria;
onde não se acha nem uma árvore, nem uma gota de água, nem um pássaro que cante ao romper da aurora; onde não se
ouve mais que o grasnar do corvo que se lança sôbre o agonizante passageiro, ou o bramido da pantera que das suas
ignoradas cavernas farejou o cadáver do abrasado caminhante...
Como poderão os pobres Nazarenos atravessar tão dilatado caminho, sem outro auxílio que a sua modesta
cavalgadura, que se enterrará na movediça areia como o cadáver na sua cova para não tornar mais a sair dela?

55
Mas voltemos a Samaria, onde numa noite áspera, fria e chuvosa caminhavam os Santos Esposos e o Divino
Jesus por um profundo e solitário barranco, quando S. José, que ia adiante levando a modesta jumentinha pela arreata,
parou ante uma voz áspera e imperativa que gritou da concavidade duma penha:
- Alto ou morres!
José parou; Maria estremeceue, e, temerosa de que aquele homem tratasse de roubar-lhe o Filho, procurou
escondê-lo debaixo do seu manto. Era a primeira vez desde a sua saída de Nazaré que tinham visto interrompida sua
misteriosa viagem pela voz dos homens.
Antes que os modestos viajantes compreendessem o que lhes acontecia, viram-se rodeados por multidão de
homens que foram saindo dentre as matas e as quebradas do barranco. Os punhais achavam-se levantados sôbre as suas
cabeças, quando S. José, em tom doce e suplicante, disse:
- Que mal vos fizeram esta pobre Mãe e seu inocente Filho para levantardes os vossos punhais contra êles?
- Tens razão, ancião, disse uma voz varonil; êstes bandidos não tocarão num fio da vossa roupa; juraram-mo e
estou certo de que nenhum deles faltará ao juramento ainda que os satélites do feroz Herodes lhes apontassem uma cruz
levantada no Gólgota.
Dimas (pois era êle o que pronunciara aquelas tranquilizadoras palavras) abriu passagem por entre os seus
companheiros, e aproximando-se de S. José, que estava absorto, sem despregar os lábios, disse-lhe:
- Nada temas, ancião; as cãs da tua barba são uma garantia para a tua pessoa; quanto a essa pobre Mulher que
aperta o seu tenro infante, receiosa de que o ofendam, podes tranquilizá-la, que nenhum risco corre entre nós, se alguém
se atrevesse a ofendê-la, o nosso punhal daria conta dele. Mas a noite está fria; toma, oferece-lhe o meu matelô para
que se cubra.
E Dimas tirou sem afetação o manto de pelo de cabra que trazia sôbre os ombros e deu-o a José.
- Oh! Agradecido, agradecido, homem bom e caridoso; Jeová te premeie na hora da morte como mereces.
E José derramando lágrimas de reconhecimento cobriu sua Espôsa e o Menino com a capa do bandido.
- Agora, bom velho, segue-nos com a tua Espôsa; meu castelo está perto e deves aceitar a hospedagem que te
ofereço até que cesse a tempestade que ainda ruge sõbre as nossas cabeças.
Aceitando o oferecimento do bandido, algumas horas depois achavam-se instalados na cozinha do castelo, onde
Dimas fez acender uma fogueira para que secassem a roupa. O hospitaleiro facínora tratou seus hóspedes com
admirável solicitude. Serviu-lhes ceia abundante e pela sua própria mão fez-lhe dois leitos de peles e mantos para que
descansassem da fadiga da viagem.
Ao deixá-los sós, pediu licença para beijar o menino e Maria apresentou-lhe Jesus, dizendo-lhe:
- Beija-o, senhor, pois tu o protegeste.
Dimas imprimiu umbeijo na fronte do Messias, e depois, saindo da habitação com seus companheiros, disse-
lhes:
- Não sei o que senti no meu peito ao tocar com os lábios aquele Menino; mas parece que me acho como se todo
o meu sangue se houvesse purificado.
Pouco depois todos dormiam no castelo; somente as noturnas gralhas se agitavam nas bordas das muralhas e nas
fendas das rochas.
Quando na manhã seguinte, Dimas se encaminhou à habitação dos hóspedes, a Santa Família recebeu-o com um
sorriso de agradecimento. O bandido mandou preparar uma abundante refeição, e suplicou a Santa Família que saisse a
tomar o ar na plataforma do castelo.
- O dia está belo, lhes disse; subi comigo para que vosso Filho aspire o ar puro da montanha.
Os hóspedes seguiram Dimas, admirando-se da benevolência do bandido. Dimas, fascinado ante o olhar de
Jesus, não apartava os olhos daquele formoso Menino.
Vendo que nada lhe diziam do motivo daquela viagem que os obrigava a caminhar durante a noite como gente
perseguida pela lei, não quis perguntá-lo, respeitando o segrêdo que não lhe revelavam. Chegaram à muralha, e subiram
à plataforma do castelo. Dimas tomou nos braços a Jesus e, aproximando-se das seteiras, mostrou-lhes umas ovelhas
que pastavam junto aos fossos do castelo, dizendo-lhe com afável e complacente voz:
- Aquelas ovelhas que tranquilamente pastam à sombra dos muros são nossa; e aquele cordeirinho branco como
leite de sua mãe é teu; eu te dou para te lembrares da hospedagem que te ofereceu o facínora dos montes de Samaria.
Jesus sorriu como se houvesse compreendido aquelas palavras e suas pequenas e delicadas mãos começaram a
afagar a crespa e comprida cabeleira do bandido. A terna Virgem derramava em silêncio lágrimas de gratidão ao
contemplar aquele homem, envolto nas pesadas redes do crime, que com tanta benevolência tratava seu Filho. José,
chegando-se a Dimas, disse-lhe com acento suplicante.
- Se és bom, se no teu coração ainda não se extinguiu o amor aos desgraçados, porque não abandonas esta vida
de sobressaltos e crimes, que pode conduzir-te à perdição?
- Bom, ancião, lhe respondeu Dimas, enviando-lhe um sorriso benévolo: o caminho do crime é uma ladeira mui
resvaladiça e quando o homem dá o primeiro passo, é lhe impossível deter-se. Eu era bom; os homens fizeram-me mau
e rancoroso... agora é tarde.
A Santa Família permaneceu no castelo hospitaleiro até o pôr do sol. Durante sua permanência foram
obsequiados pelo caritativo capitão duma maneira delicada. Quando José foi buscar sua modesta cavalgadura, um
bandido, por ordem de Dimas, levou-a pelo freio à prota da fortaleza. Enquanto José ajudou a subir a Virgem, Dimas
pegou o Menino nos braços. Jesus, como se quisesse despedir-se do homem que com tanta bondade o tinha recebido em
sua casa, lançou os bracinhos ao redor do pescoço do facínora. Então Dimas ouviu uma doce voz e melodiosa, como o
som duma harpa aérea, ferida pelo zéfiro noturno, que lhe dizia ao ouvido:

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- Tua morte será gloriosa... e morrerás comigo.
Dimas ficou absorto, demudado, como se do fundo dum sepulcro se houvesse levantado a voz de seu pao. De
quem era aquele acento misterioso? Quem tinha pronunciado aquelas palavras? O Menino que tinha nos braços contava
apenas quatro meses.
Dimas sentiu que as fôrças o abandonavam e, receioso de que aquele Menino lhe caisse dos braços foi depositá-
lo nos de sua Mãe, que já se achava montada na jumentinha. Maria recebeu dos braços do bandido com um sorriso de
bondade o precioso Tesouro do seu coração, e depois, despendindo-se de quantos a rodeavam, deixou o castelo
hospitaleiro. Dimas, imóvel, com os lábios fitos nos Santos Viajantes, crendo ainda ouvir as misteriosas palavras,
permaneceu nos muros do velho castelo até que os últimos raios do sol se escondessem atrás do alto cume do Líbano.
Trinta e dois anos depois, Cristo, sôbre o Calvário, recompensava com estas palavras a caridade hospitaleira do
Bom Ladrão:
“Hoje, estarás comigo no Paraíso”.
A tradição sobre que baseamos a lenda que precede, diz assim:
“A Santa Família tinha passado adiante de Anatot, e caminhava de noite a fim de se subtrair a uma perigosa
vizinhança quando viu desembocar dum escuro, barranco uns homens armados que lhe impediram a passagem. O que
parecia ser o chefe desta quadrilha de bandidos, adiantou-se do grupo hostil para reconhecer os viajantes. O salteador,
que buscava sangue ou ouro, volveu um olhar de assombro para o velho sem armas, mui semelhante a um patriarca dos
antigos templos, e para aquela Mulher coberta com um véu que ocultava o Filhinho entre as pregas do manto. Êles são
pobres, disse o bandido para si depois de demorar os olhos alguns segundos sôbre o santo grupo que tinha diante de si; e
viajam de noite como fugitivos.
Talvez aquele bandido tivesse umfilho no berço, talvez a atmosfera de doçura e misericórdia que cercava José
Maria influisse sôbre aquela alma feroz; porque o terrível salteador baixou a ponta da arma, e estendendo a mão amiga a
José ofereceu-lhe hospedagem para a noite na sua fortaleza, suspensa no ângulo duma rocha, ninho duma ave de rapina.
Este oferecimento, foi aceito com confiança, e o teto do bandido foi para a Santa Família, nessa ocasião, hospitaleiro
como a tenda do árabe. No dia seguinte, pelo meio dia, a Santa Família, deixou a morada dos bandoleiros.
Esta tradição que segundo cremos, foi primeiro admitida por Sto. Anselmo, em nada afeta o dogma apostólico;
por isso lhe demos cabimento neste livro. O reverendo padre Ludolfo de Saxônia e o abade Orsini admitiram-na
também nos seus escritos.

CAPÍTULO VII

A CARAVANA

Gaza, cidade marítima do Oriente, pérola preciosa dos filisteus a cujos pés se arrastam preguiçosas as azuladas
ondas do Mediterrâneo, e em cujos altos minaretes geme o cálido sôpro do deserto: as caravanas respiram com avidez o
perfume dos teus campos e a fresca brisa das tuas tardes, antes de se internarem nas imensas solidões de areia de Etam e
Faraam. Porque Gaza é o último jardim da Palestina e o primeiro oásis do deserto. As pombas lhe enviam os lastimosos
e doces arrulhos das fendas de suas desmoranadas torres, onde vivem eternamente. Os rouxinóis cantam nas florestas,
as gazelas brancas correm nos montes, e as cabras de compridas lãs pastam nos prados.
Quando o árabe, com as pernas cruzadas sõbre o arqueado dorso de seu dromedário, lança um olhar investigador
pelo horizonte avermelhado e sem funfo; quando vê a seus pés estender-se seco, infecundo, maldito, aquele vasto areal
que o espanta; quando a sêde cresce e a esperança de achar um manancial se extingue, então reanima com um grito
selvagem a sua cavalgadura, fecha os olhos e sonha com os regatos, com a floresta amena, com os jardins da Pérsia.
Através daquelas ondas de fogo e areia que lhe secam as faces e lhe queimam as pupilas, costuma ver Gaza com
suas camponas, com suas palmeiras, com seus frescos mananciais e seus pacíficos habitantes, tão hospitaleiros, tão
inofensivos, tão amigos do forasteiro. E o árabe então canta, arrulha aquele sonho delicioso para infundir alento à sua
paciente cavalgadura. Gaza, então é para o árabe tanto como a sua pátria e ama os muros dela com a sua tenda e o seu
cavalo.
Mas, pelo contrário, quando a deixa para dirigir-se ao Eito; quando ao chegar às planícies da Síria volta a cabeça
para lhe dizer ao deus de despedida e não vê as suas palmeiras e os seus minaretes e o cálcio ambiente do deserto bate
na sua tostada fronte anunciando-lhe os perigos e incômodos que o esperam, então um doloroso suspiro lhe sai dos
lábios e talvez uma ládrima se lhe deslize pela bronzeada face.
Porque a cidade de Gaza é desde tempo imemorial o ponto de reunião das caravanas que vão e vêm do Egito.
Pode dizer-se que é a colméia dos caravaneiros; todos se reunem e levantam as tendas nas suas ribeiras. O seu porto é o
bazar de compra e venda; dali se espalham como as abelhas em busca de flores que libam para nutrirem com suas
essências o rico favo do seu negócio. Gaza está situada na encosta dum outeiro, cujas fraldas se vêm eternamente
acariciada pelas ondas do mar. Olhadas de longe, as suas alvas casas parecem uma manada de ovelhas que se
encaminham a tomar banho. Ciro, rei da Pérsia, a cercou e tomou depois de dois mêses de assédio (599 antes de Jesus

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Cristo), e desde então as suas torres derruídas servem de assento a seus pacíficos habitantes quando, nos ardentes mêses
de canícula, vão respirar a brisa da tarde à sombra das suas belas palmeiras.
A esta cidade, pois, foi que chegou uma manhã ao despontar do dia a Santa Família. Os trabalhos que os
viajantes galileus sofreram durante a jornada, foram incalculáveis. Seu refúgio durante a noite eram os desertos e
imundos silos, as escuras cavernas, os húmidos barrancos, os incultos bosques.
A tradição indica uma gruta nas cercanias de Belém, onde a Virgem passou só um dia inteiro, enquanto seu
espôso entrou, arriscando a vida em Jerusalém. Ignora-se o que buscava o patriarca na cidade de Herodes, seu
perseguidor; talvez alguma caravana que não encontrou; talvez vender alguma jóia de sua Espôsa para ajuda das
despesas de tão penosa viagem.
José parou junto dum sicômoro e, ajudando sua Espôsa a descer da modesta jumentinha, a fez sentar ao pé da
árvore. Então descarregou a jumentinha de todos os modestos objetos, único patrimônio da Família nazarena, e os foi
colocando ao redor da árvore.
Dimas tinha cumprido a palavra, porque um branco cordeirinho começava a saltar junto de Maria, a qual, com
doce e maternal solicitude, mostrava a seu Filho o presente do bandido.
- Maria, lhe disse José, depois de terminar o trabalho: Deus quis conduzir-nos sãos e salvos à porta do deserto;
Deus nos tirará a salvo das terríveis solidões que vamos atravessar em breve.
José, levando o modesto herbívoro pelo freio, encaminhou-se para a cidade de Gaza, que levantava os seus
esboroados muros e uns trezentos passos do lugar em que se achavam.
Maria ficou só com seu adorado Filho, sentada junto a um sicômoro. De seus olhos azuis cheios de bondade
desprendeu-se uma lágrima, a muda e silenciosa despedida que a Virgem enviava à pacífica cavalgadura que tão bons
serviços lhe havia prestado durante a viagem e da qual ia separar-se para sempre, pois seu espôso encaminhava-se a
Gaza com tenção de vendê-la.
A Virgem ficou só e, depois de enxugar a lágrima que lhe umedecia as faces, estendeu uma pele sôbre o céspede
e nesta modesta cama deitou o Menino. Depois começou a dispor sôbre as esteiras de palma algumas frugais provisões
para que, ao voltar seu espôso, pudesse servir-se do almôço.
Distraída com esta ocupação, Maria não reparou que, a pouca distância da árvore, em cujas vizinhanças
descansavam havia dez ou doze dromedários. Também não observou que uns homens iam e vinham a fonte próxima, e,
enchendo grandes odres daquela água, os colocavam cuidadosamente sôbre os arqueados dorso das ligeiras
cavalgaduras. Entre êsses homens achava-se um árabe entrado em anos, que parecia ser o chefe, pois dava ordens em
voz baixa sem se ocupar do ímprobo trabalho que fazia gotejar o suor na fronte dos companheiros.
O ancião passeava com os braços cruzados desde as tendas até umas ruínas próximas, junto das quais brotava o
manancial. Num destes passeios, seus olhos fitaram-se no sicômoro que servia de tenda à Virgem. O árabe viu Maria e
estremeceu visivelmente, como se n’Ela houvesse reconhecido alguma pessoa amiga. Depois permaneceu um momento
indeciso, mas sem apartar os olhos de Maria, a qual tão abstrata se achava com seu Filho, que não reparava que era
objeto de exame atento da parte do árabe.
Por fim o silencioso observador da Virgem fez um movimento com a cabeça, como o homem que aceita uma
resolução que o teve indeciso por alguns momentos e encaminhou-se para a árvore onde se achavam Maria e Jesus.
- Mulher, a paz seja contigo, disse.
- Árabe, ela te seja propícia, respondeu a Virgem.
- Perdoa, se com a minha pergunta te pareço indiscreto, tornou o árabe; mas a julgar pelo teu traje pareces-me
galiléia.
- Nazaré é a minha pátria.
- Nasceu teu Filho também na flor da Galiléia?
- Belém de Judá foi o seu bêrço.
- Então tu és Maria, a venturosa Mãe a quem os anjos de Abraão saúdam e os reis do Oriente rendem
vassalagem.
- Meu Filho foi o que mereceu tanta honra.
- Perdôa se torno a fazer-te uma pergunta: que esperas neste lugar, tão afastado da tua pátria? Para onde te
diriges?
- Espero meu espôso. Vou ao Egito.
- Ao Egito! Exclamou o árabe com espanto, não vejo os camelos nem o guia que deve conduzir-te.
- Deus é grande o misericordioso. Quem pode ler os seus desígnios? Só sei que vou ao Egito.
As misteriosas palavras de Maria, a doce e modesta dignidade do seu acento, comoveram o velho árabe, o qual
respondeu deste modo:
- Venturosa mulher a quem os reis rendem vassalagem, e que moras num estábulo e te dispões a entrar nos
imensos areais de Etam e Faraam a pé e sem guia, eu te venero, ainda que não te compreenda. Diz a teu espôso, que
Hassaf o árabe parte hoje para Heliópolis, a cidade do sol, donde se encaminhará para Alexandria, e lhe oferece a
amizade e os seus camelos. Se aceitar, ali na minha tenda o espero.
Hassaf que era o mesmo árabe da fonte de Elias e de Belém, saudou a Virgem e foi reunir-se com seus
companheiros. Uma hora depois regressou José da cidae de Gaza. O ancião estava triste. Maria recebeu-o com o sorriso
de bondade eterna.
- Que tens, meu espôso perguntou com doçura.
- É preciso que façamos a viagem, sós, sem um guia que nos indique os desconhecidos caminhos do deserto, sem
um camelo que encurte as imensas distâncias que havemos de atravessar.

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- Deus não esquece os bons, respondeu a Virgem com essa entoação das mulheres virtuosas que tem de
transmitir boa notícia; enquanto procuravas uma caravana que nos admitisse mediante um punhado de dinheiro, que
talvez seja o resto da nossa fortuna. Jeová enviou-nos um negociante caritativo que se oferece a conduzir-nos à cidade
do sol. Olha, continuou a Virgem, vês aquele ancião que passeia com os braços cruzados sôbre o peito, diante daquelas
tendas? Pois é o chefe da caravana que está acampada junto às ruínas; parte hoje para heliópolis e ofereceu-se para
conduzir-nos.
José, com o coração cheio de alegria, foi encontrar-se com o árabe e êste ofereceu-lhe um camelo para sua
Espôsa e seu Filho sem retribuição alguma.
- Judeu, lhe disse Hassaf, não te ofereço sinão um camelo, porque não tenho mais; todos os que vês acampados
em redor de te são meus, é verdade; mas tenho-os alugados aos negociantes de Gaza que conduzem as suas mercadorias
a Heliópolis, Cairo e Alexandria; muito o sinto, mas tu terás de caminhar a pé com os meus criados.
- Que importa, respondeu José com alegria, se minha Espôsa e seu Filho caminharem sem cansaço?
O patriarca esquecia-se dos incômodos que o esperavam no deserto. Maria e Jesus tinham uma cavalgadura, e
era tôda a sua ambição. O galileu colocou sôbre o animal que lhe emprestava o árabe a sua modesta bagagem, entre a
qual se achavam as ferramentas de carpinteiro, pois no Egito não se contava com outros recursos para prover às
necessidades senão com o que tinha em Nazaré, isto é, o trabalho.
Pouco depois, tudo estava pronto; os comerciante de Gaza reuniram-se com os egípcios e Hassaf o árabe mandou
levantar as tendas e empreender a partida.

CAPÍTULO VIII

O DESERTO

A tradição pouco ou nada diz do longo e perigoso itinerário que seguiram os santos viajantes desde Nazaré, sua
pátria nativa, até Matarié, a pitoresca aldeia do Egito que escolheram como pátria adotiva durante os seus sete anos de
destêrro.
Se se consultarem os eruditos cálculos dos cronologistas da Virgem, achar-se-ão diversas opiniões sôbre o modo
ou maneira de fazer, a perigosa viagem do Deserto. Desde a costa da Síria até Heliópolis emprega um camelo dez ou
doze dias, e, ainda que nada seja impossível para Deus, um viajante não poderá atravessar as imensas solidões de areia
do Deserto, a pé, sem empregar um mês na viagem.
Seguindo, pois, a opinião dos sábios escritores que julgam mais verossimil que a Santa Família se reunisse nas
costas da Síria com uma caravana para empreender a perigosa passagem do deserto e atendendo a que esta viagem devia
levar-se cabo pelo mês de março e que o equinócio da primavera estava próximo, tempo em que o simum percorre com
seu mortífero sôpro as solidões do deserto, nós adotamos êste meio por crermos ser o mais verossímil.
A caravana abandonou os arrabaldes de Gaza, e algumas horas depois os calorosos cascos dos dromedários
pisavam os infecundos campos da Síria. Apenas as primeiras baforadas do cálido ambiente do deserto batem no tostado
rosto dos caravaneiros, o árabe suspende a conversação, seu olhar escurece-se, sua fronte povoa-se de rugas e o seu
ademã torna-se grave e meditabundo.
Então, cruzando as pernas sôbre o tosco pescoço da cavalgadura e os braços sôbre o peito, fecha os olhos para
não ver aquelas imensas planícies de areia que se estendem ante seus olhos e cuja secura faz sêde só de olhar-se, e
dispõe-se a sonhar desperto com algum fértil e pitoresco oásis, com os transparentes e claros arrojos dos jardins de
Meca, ou com o doce amor de sua ansiosa família que o espera para recompensar os trabalhos de tão longa viagem com
seus carinhosos cuidados.
Porque o árabe, como todos os filhos do Oriente, é propenso a sonhar. Teme o deserto como ama os seus
costumes. A história recorda-lhe que as areias de Etam, Faraam e Saará são famintas sepulturas que recebem
diáriamente os desgraçados corpos de seus irmãos, a quem o simum envolve com suas impetuosas ondas de ardente pó.
A sêde que abrasa as entranhas, o simum que sepulta sob montes de areia que arrasta com seu poderoso impeto, a
certeira e mortífera flecha dos boucoles, as esfaimadas feras que espreitam ocultas entre as calcinadas rochas, o sol
abrasador que derrete com o fogo dos seus raios, a peste tão comum no deserto, são os po.
O árabe conhece os perigos a que se expõe, e aceita-os com valor peculiar do filho da natureza. Seu corpo é tão
forte como fantástica a sua imaginação. Sóbrios até a inverossimilhança quando as suas modestas provisões se exaurem,
basta-lhes um punhado de favas secas para passarem o dia.
O dromedário, esse dócil e ligeiro transportador do árabe no deserto, não é menos forte nem menos provado que
se dono. Com esse instinto do animal, sabe que nasceu para sobrelevar um trabalho penoso e ímprobo. Desconhece a
preguiça e numa um gemido de dor saai de seu abrasado peito. Quando suas fortes pernas vacilam sob o pêso da imensa
carga que o oprime, quando sua chata cabeça cai desfalecida para o chão e seus melancólicos olhos começam a fechar-
se cavados pela fadiga, então uma ligeira tremura lhe agita o corpo; isto indica a seu dono que a vida da fiel cavalgadura
vai extinguir-se. Então o árabe exala um suspiro e espera impassível alguns segundos. O camelo dobra as pernas e o
dono desce e transporta em silêncio tôda a carga da cavalgadura para as outras que o seguem. Fita a penetrante vista

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nos cerrados olhos do seu dromedário, tira o comprido punhal que lhe pende à cinta, enterra-o no pescoço do nobre
animal, e depois, apartando os olhos daquele sangue, corre a reunir-se com os seus companheiros e salta ligeiro como o
gamo sôbre o dorso de outro camelo. Nem volve a cabeça para olhá-lo, nem leva a menor dúvida sôbre se o nobre
condutor está morto. Sabe que seu punhal lhe evitou com a morte o padecer, porque os chacais e as feras do deserto o
devorariam em vida e o árabe evita ao seu fiel companheiro, já que não pode ser de outra maneira, que sinta as raivosas
mordeduras dos implacáveis inimigos.
Uma hora depois os chacais e as hienas, êsses covardes perseguidores das caravanas que nunca atacam os vivos
até que o repugnante cheiro dum cadáver fira o seu refinado olfato, lançam-se ao pobre e abandonado quadrúpede e
devoram-no sem piedade. O novo dia alumia um esqueleto, e aqueles ossos espalhados pela areia que os raios do sol
branqueiam, vão-se pouco a pouco convertendo em branca cinza que marca aos passageiros uma linha cinzenta sôbre a
vermelha areia do deserto, indicando o caminho que deve conduzi-los ao porto desejado. Os ossos insepultos são as
estradas do deserto, e também se acham ossos mais pequenos de diversa forma que pertenceram em outro tempo a seres
humanos.

- -

Chegou a noite e cesssaram os ardores do sol abrasador. A lua estendeu seu clarão de prata por aquelas
impotentes solidões e os árabes fizeram alto. Levantaram a tenda os negociantes, depois os condutores descarregaram
os camelos e, prendendo-os em círculo a umas estacas cavadas profundamenet na areia, começaram em silêncio a sua
modesta ceia de tâmaras e tortas de trigo assadas nas brasas.
A Santa Família estendeu junto duns secos matagais um pedaço de esteira de palma, que era o seu único leito.
Sua tenda era o dilatado firmamento recamado de estrelas que brilhavam sôbre as suas cabeças. Pobres, desválidos,
abandonados até do último dos criados da caravana, achavam-se talvez elevanddo sua oração da noite ao Deus de Sion,
quando o velho árabe, que se tinha mostrado seu protetor desde Gaza, se aproximou deles com uma caçarola de ferro na
mão.
- Galiléia, disse Maria, o árabe no deserto é sóbrio por necessidade, mas ama as crianças respeita as mães e é
hospitaleiro. Toma, hoje reparto contigo a minha ração de leite de camela. Talvez amanhã não possa dar-te nem uma
gota d’agua. E sem esperar resposta o árabe foi reunir-se com os companheiros.
Maria aceitou a fineza do velho egípcio, agradecendo do fundo da alma tanta generosidade.
A Virgem galiléia não pode cerrar os olhos durante a noite. A próxima vizinhança das esfaimadas feras do
deserto oprimia-ª . Seus uivos, os intermináveis lamentos chegavam a Ela amedrontando-a pela sorte de seu adorado
filho.
Os árabes acostumados à estridente e monótona harmonia que produzem as fauces das hienas ao bater uma na
outra, dormiam embrulhados em suas capas ao lado dos camelos, sem receio. Um só homem velava passeando ao redor
duma grande fogueira, que alimentava de vez em quando com as secas glestas que, pobres e venenosas, crescem de
espaço a espaço, para afugentas com as chamas asa feras da vizinhança.
A claridade da fogueira estendia-se por aquela solidão, banhando com sua vermelha luz como uma aurora boreal
um círculo bastante extenso, e a Virgem mais de uma vez julgou ver os vidrendos olhos dos chacais brilharem na escura
sombra que marcava a última distância onde o clarão da fogueira se extinguia.
De vez em quando a Mãe fugitiva estremecia e apertava sobressaltada ao peito o Filho das suas entranhas. Era
que a areia se movia debaixo do seu corpo, abrindo-se por fim para dar passagem a um repugnante lagarto ou a uma
asquerosa cobra, répteis imundos que tanto abundam no deserto; o olho perspicaz do árabe tem o instinto de conhecer
só pelo rasto que deixm, não só a que família pertencem, sendo também a idade, o volume, e fôrça e, o que é ainda mais
extraordinário, se aqueles vestígios são da véspera ou de poucas horas antes.
Quantas amarguras, quantos sobressaltos, quantos incômodos devia sofrer durante a perigosa e longa viagem a
delicada e terna nazarena!
Quando, depois de um dia abrasador por aquelas horríveis solidões de areia, sôbre as quais desaba um céu de
fogo, aquele palpável vento do deserto lhe açoitava o delicado rosto com suas pesadas nuvens de areia a ponto de lhe
fazer rebentar sangue; quando queimados os seus formosos olhos pelos raios do sol, abrasada a sua boca, estonteada a
sua mente pela sêde e pelo calor insofrível, julgava ver lá ao longe um lago claro e transparente como o da Galiléia,
rodeado de palmeiras e sicômoros, um delicioso oásis que a brindava com a sombra das suas árvores e as frescas águas
dos seus derosos inimigos com que lutam as caravanas que o atravessam, mananciais e, sem apartar a afanosa vista
daquele panorama enganador, seguia as volutuosas ondulações da folhagem, crendo ouvir entre o céspede e doce
murmúrio do arroiozinho que se deslizava a seus pés, e a noite que chegava, a caravana detinha-se, as tendas
levantavam-se, e à pálida luz da luz sentia a brisa da noite que a despertava daquele fagueiro sonho. Então maria soltava
um doloroso suspiro e inclinava a cabeça sôbre o peito virginal de seu Filho, como débil açucena que se dobra à
aproximação da chuva, receiosa de não poder resistir com seu delicado cálix aos mananciais que vão despenhar-se das
nuvens que se agitam sôbre ela.
José então alentava sua delicada companheira e ambos, com os olhos fitos no Menino Jesus, elevavam as suas
preces a Jeová. Pobres e humildes viajantes a quem a caridade dum árabe emprestara um camelo, careciam de tudo no
deserto; só a fé os animava para suportarem a viagem.
Por isso quando o grito selvagem do egípcio condutor da caravana exclama, com o prazer inexplicável do
náufrago que vê aproximar-se á frágil tábua que o sustenta, sôbre as espumantes ondas do navio salvador, Mokalteb!
Mokalteb! grito que todos repetem com prazer indefinível, grito ante o qual os sedentos dromedários partem a galope

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rasgado, abrindo as abrasadas ventas estirando o encurvado pescoço, ansiosos de pôr os adustos lábios no claro
manancial que seu delicado olfato pressente: então, homens e animais, amos e criados arrojavam-se com a desordem
irremediável da avidez, com a raiva natural do sequioso ante a água, sôbre aquele charco salvador.
A Santa Família era a última a aplacar a sêde. Por fim, depois de inúmeras fadigas, os santos viajantes divisaram
ao longe as planícies de Gizé, de cujo centro se erguem êsses gigantes de pedra cujas frontes não puderam desmoronar
os quarenta séculos que a destruidora mão do tempo tem feito rolar sôbre êles, êsses monumentos que o orgulho e a
soberba dos poderosos do egito edificaram com o suor e a vida dos seus vassalos: as pirâmides.
A vista dessas moles gigantescas, desses colossos, dessas histórias de granito que apregoam a grandeza de seus
antigos fundadores, as caravanas soltam um grito de alegria, porque brevemente os calosos pés dos seus dromedários
deslizarão sôbre os formosos e férteis prados esmaltados de flôres, e o perfume embalsamado dos campos lhes fará
esquecer o cálido e pesado sôpro do simum.
Então o árabe entoa seu monótono canto, seu rosto repele as sombrias côres, seus olhos pretos e penetrantes
buscam o fecundo Nilo, o rio santo que converte com suas inundações o Egito num belo jardim, porque Deus e as
negras areias do Nilo derramam sôbre aquela terra privilegiada todos os dons, tôdas as riquezas duma vegetação robusta
e poderosa.
A Santa Virgem começou a sossegar depois de doze dias de incessantes angústias, porque ao longe começou a
distinguir o céu do Egito, céu sem nuvens, horizonte triste por onde irradia um sol de fogo como a boca dum forno. A
pátria dos Faraós, onde os cadáveres disputam a matéria ao nada, onde a eternidade se faz palpável. As planícies de
Gizé, onde o soberbo Cheop levantou o colossal monumento, palácio da morte dedicado ao seu real cadáver, gigante de
granito em que cem mil homens trabalharam por espaço de vinte anos. O Egito, onde as adúlteras trazem o seu crime
escrito no rosto, onde o perjuro era castigado com a morte.
O Egito, onde o povo adora seu rei em vida como deus, e o julga depois de morto como ao último dos plebeus,
recusando-lhe muitas vêzes, conforme suas crenças, até as honras da sepultura; onde nos banquetes se passeava um
cadáver de madeira metido num rico ataúde, e mostrando-o aos alegres convidados lhes dia o dono da casa:
“Olhai para este homem, com quem vos parecereis depois de morto. Bebei, pois, agora e diverti-vos”. O Egito,
mescla de ilustração e barbaria onde se acreditava na imortalidade da alma, e se adorava ao mesmo tempo multidão de
deuses com cabeça de gato, ventre de crocodilo e garras de milhafre. O Egito, onde a arte havia chegado ao mais
sublime e a degradação ao mais abjeto; onde o homem fiava e se entretinha nas ocupações domésticas, e a mulher nos
negócios de fora; onde “tudo era deus, exceto Deus”, e onde “o grande estava confundido com o pigmeu”.
O perigo tinha terminado. Eis Heliopólis, a cidade do sol, com seus esbeltos obeliscos, seus galhardos minaretess
e as brunidas cúpulas de aço dos seus tempos pagãos, de onde os raios do sol arracam mares de luz que, em cambiantes
caprichosas, se estendiam sôbre a cidade como uma imensa cabeleira de prata e fogo. Heliopólis a cidade favorita de
Cléopatra, com suas agulhas sutis de pedra e bronze que se escondiam entre as risonhas nuvens do seu céu, com a sua
formosa e caprichosa fundadora ocultava a púrpura de Tiro do seu rio, as douradas tranças dos seus cabelos. Heliopólis,
onde a fênix ressucita coria a depositar os restos de seu pai sôbre o altar do sol. Heliopólis, em cujo centro se ergue o
famoso templo de On, onde Putifar exercia o sacerdócio do sol. Heliopólis, pérola do Egito, cidade natal de Moisés,
onde o profeta Onias levantara um templo a Jeová, procurando que a arquitetura egípcia se assemelhasse o possível à
Casa Santa de Jerusalém; somente, em sinal de inferioridade, o famoso candelabro de sete braços, do templo de Sion,
era no Egito representado por uma lâmpada de ouro.
Maria, a poética flor da Galiléia, estendeu os doces olhos por aqueles bosques e campos coalhados de violetas
silvestres. Uma lágrima do desterrado que recorda, à vista duma cidade populosa a sua humilde aldeia a sua pobre
casinha, os seus amigos da infância.
A caravana, antes de penetrar na cidade de Cléopatra, deteve-se.
Ao passar a Santa Família por baixo dos arcos de granito da porta principal de Heliopólis, todos os ídolos dum
templo próximo cairam de rosto por terra, saudando, aos descerem de seus profanos pedestais, o verdadeiro Deus que
chegava fugitivo a pedir hospitalidade aos idólatras egípcios.
Os divinos viajantes só se detiveram na cidade para agradecerem ao seu protetor e descarregarem do camelo os
seus modestos haveres.
José carregou sôbre os ombros as ferramentas do seu ofício e tudo o que possuía. Maria pegou na roupa e no
Menino e, saindo da populosa Heliopólis, onde a vida era demasiado cara para a sua pobreza, tomaram o caminho da
próxima aldeia de Matarié, formoso povoado sombreado de sicômoros, e no qual se encontra a última fonte de água
doce que há no Egito.
Os fugitivos gelileus pararam a duzentos passos do povo; a ninguém conheciam, pobre desterrados que iam pedir
hospitalidade entre os idólatras. Um frondoso sicômoro lhes serviu de tenda durante a primeira noite, porque José, como
chegou ao cair da noite a Matarié, não quis entrar antes da manhã seguinte num povoado onde ninguém o conhecia.
Pouco depois a Santa Família habitava humilde choça e ali, naquele miserável ninho, a virtuosa mulher respirou
em paz longe de Herodes, o inumano perseguidor de seu Filho.

LIVRO QUINTO

A DEGOLAÇÃO

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CAPÍTULO I

OS FILHOS DA VESTAL

Entretanto, Herodes esperava impaciente as notícias que seu filho Arquelau devia transmitir-lhe dos Magos.
Passavam os dias, e o feroz escalanita rugia como um leão que fareja a carne e vê que lhe escapa a presa que sonhou
devorar. Os soldados percorriam a Palestina, diariamene se enviavam novos destacamentos de mercenários em procura
dos caldeus e de Jesus, Filho da Nazarena; porém tudo era inútil; a terra ocultava-o às suas pesquisas; Deus estendia
sôbre êles o seu manto protetor e impenetrável.
Uma esperança animava ainda o vingativo coração do assassino de Mariana: era que seu filho não lhe havia
noticiado definitivamente a evasão dos caldeus.
No momento em que tornamos a encontrá-lo, Herodes achava-se reclinado sôbre uns almofadões de damasco, no
seu camarim de Jericó. Seu neto Aquiab, de pé, ao seu lado, entretinha-se olhando um mapa do mundo conhecido dos
antigos. Esta carta geográfica estava estampada sôbre uma pele de carneiro primorosamente preparada. Com cor
vermelha se viam marcadas as províncias conquistadas pelos romanos.
Herodes que, quando se achava com o neto costumava esquecer-se até da sua doença, com um ponteiro de ouro
entretinha-se em mostrar-lhe os pontos por onde o exército romano marchara durante a conquista. Aquiab prestava
profunda atenção às explicações do seu avô.
- Gostaria muito, exclamou o adolescente, que tu fosses um rei tão poderoso como o nosso aliado Otaviano
Augusto.
O Idumeu sorriu-se. O menino inocentemente tinha afagado um desejo que Herodes teria realizado até à custa da
sua honra.
- Olha, lhe disse Herodes colocando o ponteiro sôbre as linhas encarnadas, e como se não tivesse ouvido as
palavras do neto, estas pequenas águias marcadas com tinta azul, indicam os limites do império romano. Pelo Poente o
Oceano Atlântico, pelo Oriente o Eufrates, pelo Norte o Danúbio e o Reno, e pelo Meio-Dia as cataratas do Nilo, os
desertos da África e o monte Atlas. Isto é a Itália, que tanto sangue tem custado aos romanos desde Numa Pompílio até
ao César Augusto, nosso poderoso amigo. Aqui está a Espanha, país rico e povoado, cujos filhos ostentaram sempre um
valor heróico e um amor à sua independência sem exemplo. Isto é Sagunto, cidade grande e populosa, a aliada mais fiel
de Roma. Uma manhã Anibal apresentou-se ante os seus muros com um exército de 150.000 cartagineses e intimou-os
a renderem-se. Em plena como se achavam então, era aquilo uma infame traição. Sagunto era um povo de heróis, e
defendeu-se esperando socorros de Roma. Por fim viram que lhes era impossível manterem-se entre aquelas ruínas, que
o senado não corria a protegê-los, e, antes de se renderem, os saguntinos acenderam uma fogueira imensa no meio de
praça, e lançaram-se a ela homens e mulheres, velhos e crianças. Quando o vencedor Anibal entrou, Sagunto era um
montão de cinzas formado com ossos dos seus habitantes. Aquiab, ao ouvir o ato heroíco dos saguntinos, exclamou
entusiasmado:
- Povo valente, eu te saúdo e venero, o teu nome ficará gravado na minha memória.
- Não acabou aí o valor dos filhos da Espanha, continuou Herodes, mudando o ponteiro de lugar. Aqui está
Numância que, sitiada pouco depois por Scipião Africano, teve o mesmo valor que Sagunto. Os romanos foram então
iníquos como os cartagineses.
Herodes, sempre bom e condescendente com seu neto, entretinha-se ensinando-lhe deste modo ameno a história
militar das nações.
- Seguindo o meu ponteiro continuou Herodes, podes ver os dilatados reinos que possui Roma e que pagam
tributo ao nosso amigo Augusto. Isto é a África onde o atroz Massinissa, à frente dos seus pagamentos e apoderando-se
da cidade de Zama. Aqui está a Macedônia; o desventurado Perseu, seu último rei, foi conduzido a Roma por Paulo
Smlio, seu vencedor, onde morreu de fome entre as negras paredes dum calabouço. Isto é a Grécia e isto as Ilhas
Britânicas. Júlio César foi o primeiro que desembarcou sôbre as encrespadas rochas das suas praias, submetendo pouco
depois a Gália, Ásia, Síria, o Ponto, a Bitínia e o reino Pergamo. Seguindo esta linha encontrarás o Egito, onde Marco
Antonio, o amigo de César, chegou como conquistador e terminou escravo da rainha Cléopatra, que soube adormecê-lo
com os seus encantos. E isto, finalmente é a nossa formosa Judéia, reino que eu legarei a teu pai e que tu regerás algum
dia, como dono e senhor.
- E diz-me, querido avôzinho, exclamou Aquiab num ímpeto de infantil curiosidade, colocando os cotovelos
sôbre o mapa e acariciando a áspera barba de Herodes: êsses reis de Roma que são hoje senhores do mundo foram
sempre tão poderosos?
- Não, meu filho, seus domínios alargaram-se pelas conquistas. A origem de Roma tem uma história fabulosa, é
quase um conto.
- Oh! Pois já sabes que eu morro pelos contos e pelas histórias.
- Ouve-o, pois meu filho, e não esqueças que um rei, por pequeno que seja o seu reino, pode com o seu valor
convertê-lo em grande e poderoso.
Herodes abandonou a mesa e, estendendo-se no seu branco leito, fez com que seu neto se sentasse à cabeceira
sôbre uns almofadões, e depois continuou desde modo:

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- Amúlio reinava na cidade de Alba, situada no Lácio, província de Itália. Seus férteis campos, o céu azul,
sereno e o mar Mediterrâneo que beijava suas formosas praias, faziam-no uma das mais pitorescas e ricas províncias do
mundo. Amúlio tinha usurpado o trono a seu irmão Númitor, o qual chorava sua desgraça num calabouço com seus dois
filhos Lasso e Réa Silvia. Amúlio mandou assassinar Lasso, herdeiro de Númitor, e encerrou Réa num templo onde se
adorava a deusa Vesta. As vestais tinham obrigação de alimentar continuamente o fogo sagrado, e a que o deixava
apagar era condenada a ser enterrada viva. Além, disso, as vestais não podiam casar-se.
Por êste meio Amúlio segurava a coroa. Mas os deuses tinham disposto que a formosa Réa fosse roubada do
templo por um mancebo valente, que alguns dizem que era o deus Marte, a quem adoravam em forma de lança os filhos
de Alba. A desgraçada Réa caiu segunda vez em poder de seu tio Amúlio, e pouco depois deu à luz num cárcere dois
meninos, aos quais puseram os nomes de Remo e Rômulo. O rei ordenou a um dos criados de sua confiança que
lançasse ao Tibre aqueles dois meninos.
O criado partiu de noite para cumprir a triste missão que lhe confiara o amo; porém, ao chegar às margens do rio
que devia servir-lhe de sepulcro, pousou-os sôbre o molo céspede, ao tempo em que a luz, quebrando o denso véu de
uma nuvem, deixou cair do céu sua luz de prata sôbre as inocentes cabeças dos recém-nascidos. O criado, vendo as
doces fisionomias daqueles meninos, perturbou-se e teve medo de cometer crime tão horrendo. Então toma-os nos
braços e entranha-se no bosque vizinho, deixando-os sõbre um matagal, e corre ao palácio do seu senhor a dizer-lhe que
as suas ordens estavam cumpridas. A Providências velou desde aquele instante pelos dois meninos abandonados.
Uma loba, que tinha perdido seus filhos, levou-os à sua cova onde os alimentou com seu leite, a´te que um dia
foram achados por uns pastores. Remo e Rômulo cresceram entre os pastores, ocupando-se em apascentar cabras. Mas
Rômulo era violento; pelo motivo mais fútil armava uma pendência com os guardas de Amúlio. Um dia levaram preso
Remo, que imediatamente foi encerrado num cárcere.
Rômulo, sedento de vingar seu irmão, e perseguido pelos soldados do rei, vagueava pelas vizinhanças de Alba,
quando um acaso fez com que se encontrasse um dia com o velho Fáustulo, que ra o mesmo criado que lhes tinha
poupado a vida, enganando seu senhor. Falaram um com o outro, e então, ao saber Fáustulo, quem era Rômulo, lhe
contou sua história. Rômulo rugiu como uma hiena encerrada, num circulo de fogo e, ardendo em desejos de vingança,
conseguiu reunir alguns pastores atrevidos como êle. Entrando uma noite na cidade assassinou seu tio Amúlio e abriu os
cárceres de seu irmão e de seu avô Númitor, que havia quarenta anos definhava na sua lôbrega masmorra.
Acostumados a uma vida selvagem e livre, afogavam na cidade e, deixando a coroa a seu velho avô, sairam para
o campo ansiosos de levarem a antiga e independente vida de caçadores. Um dia em que os dois irmãos não sabiam que
fazer, ocorreu-lhes fundar uma cidade para viverem nela com seus companheiros à sua vontade. Procuraram e
escolheram lugar e ambos, com o ardor da juventude, começaram a abrir o fosso que devia marcar o muro do novo
povo. Então lhes ocorreu uma dúvida: qual dos dois poria o nome; e convieram em que aquele que visse maior número
de abutres ao voltar a cabeça. Remo disse que tinha visto dez; Rômulo asseverou que tinha visto doze. Daí surgiu
acalorada disputa, e Rômulo arremessando sôbre a cabeça de seu irmão um maço de ferro, deixou-o morto no lugar. Os
primeiros alicerces da cidade de Roma ensoparam-se em sangue fraticida.
Pouco tempo depois Rômulo foi aclamado pelos companheiros o primeiro rei de Roma. Tinha dezoito anos. A
nova cidade foi asilo de todos os vagabundos e criminosos dos países vizinhos. Nem uma só mulher se atreveu a
penetrar naqueles muros, onde viveram os homens sós até que uma estratégia de Rômulo deu origem mais tarde ao
rapto das Sabinas...

CAPÍTULO II

AS VÍBORAS DO ESCRAVO

Embevecidos se achavam na sua relação histórica o velho e o menino, quando u’a mão afastou a pesada
colgadura que cobria a porta da entrada do camarim de Herodes, e atrás desta mão apareceu entre as ondeantes pregas
de seda a figura de Verutídio, general romano. O valente mercenário levava o traje de campanha, com suas imensas
botas de couro e seu capacete de bronze. Sua barba e cabelo achavam-se cobertos de pó, e o manto de lã azul enrugado
e meio desprendido do grosso cravo de ouro que o segurava sôbre o ombro. Tudo indicava que tinha feito uma jornada
longa e a cavalo. Herodes, ao vê-lo entrar, afastou suavemente o neto. O romano aproximou-se com ademã familiar do
leito, e beijou a mão que lhe estendia o rei de Judá.
- Ah! Finalmente dignas-te vir ver êste pobre rei enfêrmo, meu valente general. Trarás novas desses caldeus?
- Senhor, lhe respondeu Verutídio, os habitanes, a quem Júpiter confunda, protegidos talvez pelo seu deus Belo,
conseguiram escapar das nossas pesquisas. Os silos do Carmelo, os bosques de Samaria, o deserto de Judá, a via
Sangrenta e as praias do mar Ocidental, foram examinados escrupulosamente pelos meus valentes soldados. Tudo em
vão: foi-lhes impossível topar o seu rasto.
Herodes abrangeu com um olhar o romano. Das suas pardas pupilas desprenderam-se faíscas de ira, e, deslizando
do leito, aproximou-se de Verutídio, apoiando-se no ombro do seu neto que, com a curiosidade peculiar das crianças,
escutva sem compreender as palavras do general, e sentia a agitação nervosa que a mão de seu avô lhe comunicava ao
corpo.
- E meu filho Arquelau que diz? perguntou o Idumeu de modo estranho, que gelou o sangue do neto.
- Teu filho, lhe respondeu o romano, acha-se no teu palácio de Jerusalém, entregando-se às fúrias do averno.

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- Oh!, a moléstia torna-me impotente! E Herodes levou a mão ao peito, rasgando a magnífica túnica escarlate,
como se um áspide o houvesse mordido no coração.
- A deusa Ceres aparte de mim os seus favores se teu flho Arquelau não sente neste momento tanto como tu o
misterioso desaparecimento dos Magos. Eu vi-os arrancar as barbas de raiva quando os teus herodianos regressaram
sem êles. Crê-me, senhor, nada desgosta tanto teu filho como achar obstáculos no cumprimento das ordens que lhe
comunicas.
- Ah! os caldeus faltaram à sua palavra, murmurou Herodes com nervoso acento; eu pretendia burlá-los e fui
burlado. Tanto pior para êsse Menino a quem o povo apelida o Messias. Por fortuna ainda não se perdeu tudo... os reis
fugiram, mas o menino cairá em meu poder... Cingo ainda não voltou... e Cingo tem olhos de lince e é intencionado e
precavido como os chacais. Ele me trará boas notícias...
Como se estas palavras fossem de uma pitonisa, correu-se um tapete da parede e a escura e feroz figura de
Cingo, o etíope, apareceu na câmara de Herodes.
Cingo vestia o pitoresco traje dos árabes da Nigrícia: seu alquicer listado, de vistosas cores, sua túnica preta com
ramos escarlates, o turbante de linho, davam um ar selvagem ao negro e reluzente rosto, cujas pronunciadas feições
tinha dureza feroz. Sôbre o peito passava-lhe um cordão de seda verde, em cujo extremo pendia um cabaça pequena
herméticamente tapada com uma folha de prata. Os pés descalços salpicados de barro e cobertos em pó. A mão direita
empunhava um grosso bordão de azevinho, à cintura apertava-se um cinturão de pele de camurça, do qual pendia uma
pequena cadeinha de bronze, e desta um punhal largo e curto que se perdia entre duas profundas pregas do alquicer.
Cingo era o executor secreto de Herodes, o espião de confiança do Idumeu. Quando o rei tinha necessidade de
saber alguma coisa ou de levar a cabo uma vingança, chamava-o à câmara e, depois de o informar dos seus desejos, o
fiel escravo deixava o seu traje de côrte, vestia-se do modo como descrevemos, e com a bolsa bem repleta de onças
romanas, a pé ou a cavalo conforme as circunstâncias, percorria os domínios de seu senhor como um simples
comerciante.
Se a vítima designada pelo rei devia morrer sem escândalo, então Cingo arrastava-se como uma cobra até o leito
do sentenciado, levantava a folha de prata da cabeça, e depositava-lhe sôbre o pescoço uma das víboras que encerrava o
ventre daquela redoma da morte. A mordedura era mortal; Cingo, contudo, permanecia pelas vizinhanças da casa até
que seus olhos vissem o cadáver da vítima. Então regressava ao palácio a participar a seu senhor que estava servido.
Herodes, ao ver o escravo, sorriu-se com ferocidade indescritível Cingo permaneceu impassível. Nem um só
músculo do seu rosto se agitou.
- Verútidio, meu amigo, exclamou Herodes, espera-me na antecâmara, que talvez precise dos teus serviços. E tu,
Aquiab, já são horas de tomares o banho; vai-te.
Aquiab beijou a mão do avó e saiu. Verutídio fez o mesmo, mas não sem volver antes um olhar de desprêzo ao
escravo negro, cujo favor para com o rei o desgostava altamente na sua qualidade de general e de romano. Herodes e
Cingo ficaram sós.
- Fala, disse o primeiro.
- Más são as novas que te trago, senhor.
Herodes soltou um rugido mas indicou com um gesto ao escravo que continuasse.
- Os judeus crêem chegada a hora da sua liberdade; por todas as partes se fala da vinda do Messias. E se
excetuarmos uns pastores de Belém e um ou outro hebreu, ninguém o viu, todos ignoram onde se acha. Jesus é o nome
do Menino e dizem que é o Rei de Judá; nasceu num estábulo de Belém. Mas devemos ter em conta que há uns seis
mêses nasceu outro menino em Ain que goza de tanta ou mais popularidade entre os israelitas, que Jesus. Êste menino
chama-se João e é filho do sacerdote Zacarias. Contam-se coisas pasmosas entre a plebe, destes dois Meninos.
- Pois bem, Cingo, emprega tuas víboras nesses dois Meninos.
- Isso não me foi fácil desta vez. Tôda minha astúcia, todo o dinheiro dispendido para averiguar seu paradeiro foi
inútil: não pude encontrá-lo; percorri casa por casa toda a cidade de Belém, e todos os seus habitantes me deram em
resposta, encolhendo os ombros: “Não sei de quem me falas... não o conheço”... Quanto a João, filho de Zacarias, esse
foi-me mais fácil saber onde está; e espero as tuas ordens.
- Então quer dizer que os belemistas se propuseram ocultá-lo? Pois tanto pior para eles... Eu tencionava arrancar
uma só espiga, e êles opõem-se, Cingo, será preciso segar todo o campo.
O escravo inclinou a cabeça em sinal de acatamento, ainda sem compreender as palavras do amo.
- A história é o grande livro que deve reger os reis, é a sabia mestra que os aconselha nas situações críticas da
sua vida. Os homens adulam o poder por medo ou por ambição; mas a história, franca como a verdade, aconselha sem
medo e sem cobiça. Seus exemplos devem servir para evitar as grandes catástrofes que ameaçam as cabeças dos
monarcas. Amúlio e Rômulo, Atalia e Jóas, vós sois os meus conselheiros nesta ocasião... ter-vos-ei presentes, o vosso
sangue guardará o meu, e as vossas coroas derribadas conservarão a minha sõbre a fronte.
Herodes dizia todas estas palavras para si próprio, dando largos passos pela câmara.
A presença de Cingo não impediu que murmurasse aquelas reflexões históricas que mostravam sem disfarce o
fundo da sua alma, porque Cingo era surdo e cego. Sua lealdade provada em cem ocasiões tinha-lhe demonstrado que
aquele escravo sem coração teria cravado na garganta o punhal que lhe pendia do cinto, se seu senhor o houvesse
mandado.
Por desgraça, os tiranos que passaram sôbre a terra com a fronte coroada como uma maldição, como um açoite
do céu, tiveram servos leais, fiéis executores dos seus horríveis desígnios, que não vacilaram em dar o sangue por êles.
Porque a ferocidade, o crime, o assassínio, costumam ter também seus admiradores; almas empedernidas, seres
degradados e repugnantes que lambem carinhosamente a ensanguentada mão do verdugo, e se sorriem com desprêzo

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ante as lágrimas da inocente vítima que implora ajoelhada a seus pés uma clemência que desconhecem. Cingo era uma
destas criaturas. Pelo seu senhor teria sacrificado seu pai. Herodes estava certo disto; por isso não tinha segredos para
aquele terrível e mudo agente das suas sentenças particulares.
O senhor e o escravo permaneceram alguns momentos sem pronunciar uma palavra. Herodes combinava talvez
naquele momento o plano de um crime monstruoso que encheu de assombro as nações: a degolação dos meninos
belemitas. Cingo esperava em silêncio as ordens do senhor. Um passeava pela estância, agitado com o semblante
decomposto; o outro, cravado na alfombra, imóvel, junto ao rico tapete da porta, parecia uma figura das que adornavam
a parede, que adiantara um passo cansada da sua eterna imobilidade. Desta situação veio tirá-lo o ardente e penetrante
som dum clarim, ao qual se seguiu pouco depois ruído de armas e pisadas de cavalos.
Herodes aproximou-se da janela que dava para a praça do palácio, e lançou um olhar; mas antes que tivesse
tempo para fazer uma idéia do que sucedia no pórtico do seu palácio de Jericó, uma voz que pronunciava o nome de
“pai! pai!” com alguma precipitação, lhe fez voltar a cabeça para o interior da câmara. Aquela voz era a de Antípatro, o
segundo dos seus filhos, a quem os nossos leitores vão ver pela primeira vez, e do qual nos havemos de ocupar no
decurso deste livro.
Antípatro teria vinte anos; era louro, efeminado e de estatura menos que mediana. Nos seus olhos azuis, claros e
rasgados, brilhava alguma coisa sinistra, seu nariz era direito e bem feito; as sobrancelhas arqueadas e extremamente
povoadas juntavam-se no extremo inferior da sua ampla testa, formando uma ponta aguda que caía sõbre o nariz. Sem
barba ainda, mostrava os lábios rosados e em extremo delgados; os dentes raros revelavam a falsidade e a astúcia; era,
enfim, um jovem formoso, cujo semblante teria inspirado desconfiança a um fisionomista. Seu traje usual, e ao qual
mostrava mais predileção, pois de nada serviam as repreensões do pai, era o dos babilônios, porque gostava de ostentar
os pequenos pés, brancos como o leite, em cujos dedos colocava profusão de anéis preciosos, pois o calçado reduzia-se
a uma sola de metal sôbre que se punha o pé, o que, preso por meio deste com uma correia encrustada de pedras
preciosas, deixava descobertos os dedos.
Um paletó de casemira branca, adornado de pequenas borlas de ouro e apertado na cintura por dois cinturões de
pano de grau, lhe cobria o corpo descendo até o peito do pé. Este paletó sem mangas e aberto pelo sovaco algumas
polegadas deixava completamente descoberto o braço, no qual Antipatro trazia como adorno grossos braceletes de ouro.
Um fio de brilhante à maneira de diadema lhe prendia os louros cabelos, e dele caíam duas fitas verdes que flutuavam
sôbre os ombros. Das orelhas pendiam-lhe grossos aros de ouro que se ocultavam entre os flutuantes caracóis.
Antípatro não trazia arma mas, em compensação seu traje estava perfumado como o duma cortesã de Roma.
Herodes odiava Antípatro, filho de sua primeira espôsa Doria, a jerossolimitana, vítima dos seus sanguinários
instintos O efeminado Príncipe tinha-se educado em Roma, onde ainda permaneciam Aristóbulo e Filipe, como
tributo da baixa adulação rendido ao César Augusto. Arquelau era o seu favorito; Antípatro era honrado com a sua
benevolência.
Herodes tinha também um filho de que nos ocuparemos mais adiante.
O rei, ao voltar-se a cabeça e achar-se com seu filho Antípatro ao lado, franziu o sobrolho; mas êle, antes de lher
dar tempo para que fizesse a pergunta que sem dúvida estava formando, exclamou com voz melíflua:
- Meu pai, Augusto manda-te de Roma um emissário a quem acompanham vários soldados pretorianos: queres
recebê-lo?
Herodes ficou um momento suspenso; depois aproximando-se de Cingo, falou-lhe em voz baixa e êste
desapareceu pela porta secreta. Antípatro, para quem não tinha passado desapercebido o aparte do pai com o negro,
mordeu os lábios, olhando dissimuladamente a porta por onde acabava de sair o etíope.
- Que entre êsse enviado de Roma, disse Herodes sentando-se nos almofadões, depois de colocar a coroa de
louro na cabeça e o manto de púrpura sôbre os ombros.
Antípatro fez uma saudação acompanhada dum sorriso e saiu da câmara do pai.
Pouco depois quatro escravos levantavam a pesada e larga cortina da porta do camarim de Herodes para que
passasse o mensageiro de Roma.

CAPÍTULO III

A LEI DAS DOZE TÁBUAS

Era êste homem de cinquenta anos. Seu rosto expressivo e bondoso era apuradamente barbeado. Cruzavam a
ampla testa essas rugas tão peculiares dos homens estudiosos a quem, esquecidos dos mentidos prazeres do mundo,
surpreende a primeira cã, curvados sôbre os livros. O cabelo grisalho caía-lhe sôbre os ombros, mostrando com a sua
aspereza indômita que o ferro dos cabelereiros romanos nunca se tinha introduzido nele para o domar em caprichosos
caracóis, conforme o costume da época.
Seu traje era extremamente simples, pois se reduzia à túnica laticlávias dos senadores, duma côr escura
guarnecida por diante com uma franja de púrpura, e ao coturno preto, espécie de calçado que lhe chegava até ao meio da
perna, adornado com um C de prata posto na parte superior do pe. Uma bolinha de ouro oca, na qual se via gravado um

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coração, lhe pendia do pescoço presa por uma cadeiazinha do mesmo metal. O braço esquerdo ocultava-se debaixo das
pregas da túnica, que, como as togas, se achava presa ao ombro direito por uma broche de prata formando multidão de
pregas sôbre o peito, onde colocava como num bolso o lenço. O braço direito, completamente nu, saía pela abertura do
vestido. A mão oprimia um livro bastante grosso, em cuja capa se lia em grandes caracteres romanos: Lei das Dozes
Tábuas.
- Saúde ao César Augusto, exclamou Herodes, vendo entrar na câmara o enviado de Roma.
- A paz seja contigo, rei de Judá, respondeu o patrono pondo a mão sôbre a bolinha de ouro que lhe pendia do
pescoço; Otaviano me envia, continuou, com esta carta para ti; e colocando um rôlo de papiro, em cujo extremo pendia
um sêlo de cera no qual se representava a imagem duma esfinge, sõbre a capa do livro, apresentou-o a Herodes.
Êste fez uma reverência, pegou no rôlo e começou a desdobrá-lo pausadamente. A segunda carta de Otávio
Augusto, imperador de Roma, dizia assim:
“Ao rei de Judeia, por nosso favor, Herodes, o Escalonita, do Capitólio: saúde.
Meu querido Idumeu; Roma tem uma lei conhecida pelos seus cidadãos com o nome do Lei das Doze Tábuas
ou dos Decênviros; se acaso não a conheces envio-te o patrono Mário Curcio Severo; é um sábio que desde já te
aconselha que tomes por defensor na acusação que teus filhos Aristóbulo e Filipe fazem contra ti pela morte de sua mãe
Mariana. Se seu cliente, pois, e confia em que os deuses não te hão de abandonar. Roma concede-te o tempo necessário
para a viagem, e o imperador teu amigo aconselha-te que não te demores, porque nenhum acusado, nem mesmo o
César, pode esquivar-se a comparecer ante os magistrados. Mário pode informar-te da lei IV durante a viagem, para que
sossegues. Espera-te teu imperador – Augusto”.
Herodes terminou a carta, procurando dominar as desencontradas comoções que lhe agitavam o coração.
Por um lado o César, o poderoso Otávio, o grande Augusto, o senho do mundo, chamava-lhe querido e amigo, e
por outro seus filhos acusavam-no perante os tribunais de Roma como assassino de sua espôsa.
- Com que então meus filhos acusam-se e requerem a minha presença em Roma?
E Roma não pode recusar-lhes o que pedem. Patrícios e libertos, nobres e plebeus, militares e sacerdotes, todos
enfim, quantos nas dilatadas províncias onde estende as asas e águia romana acatam a autoridade do César e dos
magistrados do seu império, devem acatar a lei escrita nas tábuas do Capitólio.
- Pois bem, romano, eu acato a lei, e nomeio-te meu patrono; lê-me a lei quarta dos Decênviros.
- Antes que eu te aceite por meu cliente, é preciso que conheças os deveres que unem até o dia da sua morte o
defensor e o defendido.
- Fala, pois.
O romano pousou o livro sôbre u’a mesa e, com um gesto indicou aos escravos que podia retirar-se. Quando
ficou só com Herodes disse-lhe:
- Postas as mãos sôbre leis que nos regem e a consciência nos deuses que nos protegem, vais jurar que, desde o
instante em que tomes por teu patrono, verás em mim a pessoa dum irmão, que nunca me acusarás perante os tribunais,
nem por pretexto algum poderás ser testemunha em coisa quem em meu dano redundar, e que a tua vida estará sempre
pronta a salvar a minha.
- Juro, exclamou Herodes, estendendo a mão sôbre o livro.
- Eu juro também, sem violência de espécie alguma, não te acusar e até não ser nunca testemunha contra ti, e
defender-te ainda com risco de minha vida e fortuna, sempre que precisares de mim. Se algum de nós faltar ao
juramento, o seu corpo ensanguentado sirva de vítima consagrada a Plutão e aos deuses infernais.
Mário Cúrcio fez uma pausa, durante a qual abriu livro da lei que deixara na mesa.
- Teus filhos acusam-te, disse o patronio com voz grave, porque dizem que assassinaste tua espôsa, sua mãe;
porém teus filhos, meu amado cliente, desconhecem que Roma e as suas leis olham com horror o filho que se rebela
contra a autoridade paterna. Ouve, pois, a lei quarta dos Decênviros, e depois dispõe-te a seguir-me. “Tábua quarta. Lei
sôbre os direitos do pai de família”.
Herodes ouvia seu patrono com profunda atenção; quase não respirava; teria dado a metade da coroa para poder
afogar com suas próprias mão os rebeldes filhos.
- A tábua quarta, lei sôbre os direitos do pai de família, continuou o patrono, concede aos pais o direito de vida e
morte sôbre os filhos. O pai por esta lei pode condenar seus filhos à prisão, a serem açoitados, a que trabalhem nos
labores do campo, e até se o merecerem ao suplício que julgar conveniente. O filho não poderá adquirir sem o
beneplácito de seu pai nenhuma propriedade nem emprêgo público e, se o fizer, olhado o dinheiro que produza como
pecúlio dos escravos.
Os filhos não se verão livres do poder dos pais até a morte deste, ainda que cheguem a ter netos. As filhas
casadas dependem só de seus esposos.
- Ah! pois então! exclamou Herodes sem se poder conter...
- Teus filhos são teus apesar da sua acusação.
O Idumeu pôs-se em pé, e, pegando numa varinha de metal, descarregou uma forte pancada sôbre um timbre
que se achava na caixinha de noite que em forma de águia estava à cabeceira do leito. Cingo apareceu na câmara.
- Convoca imediatamente meus filhos, meus irmãos, o general das minhas legiões e Ptolomeu, meu guarda-selos.
- Para onde hão de dirigir-se, senhor? perguntou o escravo, baixando a cabeça.
- Aqui, lhe respondeu Herodes com laconismo.
- Devo advertir-te, senhor, disse o patrono, que em Cesaréia nos espera um navio, que é o que me conduziu a
esta praça, e que me acompanha um manípulo de valites às ordens de Paulo Atme, o atrevido: o César Augusto previu
tudo para que os preparativos de viagem não te roubassem o tempo.

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- Descansa, partiremos amanhã ao despertar do dia.
Alguns momentos depois achavam-se reunidos, num dos espaçosos salões do palácio de Jericó, a família de
Herodes, o Escalonita, e algumas dignidades da sua coroa. O rei expôs-lhe brevemente o motivo de viagem; deu ordem
a Ptolomeu para que dispusesse tudo, indicando-lhe as pessoas que deviam acompanhá-lo. Encarrregou seu filho
Arquelau do governo do reino, para cujo efeito escreveu uma carta que entregou ao general Verutídio, pois Arquelau
achava-se em Jerusalém.
Entre os que as ordens de Herodes haviam reunido no salão, achava-se Paulo Atme, chefe do manípulo que de
Roma tinha escoltado o patrono Mário. Paulo era um desses filhos da guerra que crescem dentro da couraça em cima do
seu cavalo nos campos de batalha, ainda moço, pois não contava mais que trinta anos, e de simples soldado tinha
chegado a general legionário. Como todos os guerreiros romanos daquela época, tinha o olhar altivo e desdenhoso do
conquistador. Era ambicioso porque a história lhe recordava que a guerra tinha elevado muitos soldados às primeiras
dignidades do estado. Seu uniforme era a clâmide de viagem, espécie de capote de grão, guarnecido de púrpura. Dum
largo cinturão que lhe prendia o vestido pendia-lhe uma espada espanhola sôbre o lado esquerdo. O pé direito calçava
um borzeguim de metal, enquanto o esquerdo levava simplesmente um calçado ligeiro guarnecido de cravos, conhecido
com o nome de caliga, do qual tomou o nome o feroz e sanguinário Calígula.
Paulo estendeu desdenhosamente o olhar pelos âmbitos do salão enquanto Herodes dava as ordens para a viagem
e, cruzando os braços ficou em atitude indiferente. No extremo oposto do que Paulo ocupava, o efeminado Antípatro,
voltado de costas para o desvão duma janela, achava-se com os cotovelos apoiados no peitoril, escutando com suma
atenção as palavras do pai. De repente seus olhos toparam com a desdenhosa figura de Paulo, e o corado semblante de
Antípatro agitou-se. Seu primeiro movimento foi inclinar-se para diante como o homem que se dispõe a andar; mas logo
se deteve tornando a tomar a atitude indiferente que tinha.
Passaram-se alguns minutos, durante os quais o filho do rei não apartou seu doce olhar do pai. Depois, afeando
indiferença intencionada, abandonou a janela e pôs-se a passear pela sala, trocando frases hipócritas sôbre a temeridade
de seus irmãos com os que encontrava no caminho, procurando levantar a voz quando se achava perto de seu pai para
que êste as ouvisse. Assim continuou até chegar onde estava Paulo, e então, pondo a mão familiarmente no ombro do
filho do Tibre, disse-lhe em voz mui baixa.
- Eu julgava-te no campo de Marte vencendo homens e conquistando belas.
- Corpo de Baco!!! Antípatro! Por Júpiter “Stator” que me apraz encontrar-te, julgava-te na cidade santa dos
Macabeus, mas folgo de que te aches na cidade das rosas.
Devemos dizer que Antípatro, como todos os filhos de Herodes, se tinham educado em Roma; rasgo de adulação
servil que o rei tributário de Judá rendeu a Otaviano Augusto, o imperador.
Paulo conheceu-o na cidade pretoriana e fizeram-se amigos. Além disso Atme tinha por duas vêzes ido a
Jerusalém cobrar o tributo do César; de modo que eram antigos conhecidos.
- Se Paulo não esqueceu, continuou Antípatro baixando a voz, os nossos antigos costumes sibaríticos; se ainda
prefere o Cipre e o Falermo à água; se se lembra daquelas deliciosas noites que passávemos nas pequenas casinhas de
campo da via Ápia, de cujo terraço se via o sepulcro dos Sipiões; se ainda é amigo de Antípatro, esta noite ao começar a
vigília média me esperará junto à quarta coluna do pórtico do palácio.
E Antípatro, sem esperar resposta, separou-se de Paulo, receioso de que seu pai suspeitasse daquela
familiaridade.
- Sempre o mesmo, pensou Paulo: fino como uma dama e forte como um gladiador de César quando se trata de
beber e bulhar. Mas êste rapaz esquece-se de que cheguei hoje e devo partir amanhã. Ora! Um soldado não deve recusar
nunca meia dúzia de garrafas de Falerno, ainda que se lhe ofereçam na hora da morte. Irei, irei, que os desaires feitos a
Baco costumam custar caro.
Herodes despediu a côrte com o pretexto de que desejava descansar. Aquiab foi o último que lhe beijou a mão.
- Então partes amanhã, avôzinho? lhe disse.
- Sim, mas a minha demora em Roma será breve.
- E que vais fazer na cidade de César?
- Vou fazer com teus tios Aristóbulo e Filipe o que Amúlio fez com Rómulo e Remo, para que não me suceda o
mesmo que lhe sucedeu a êle.
E Herodes, dando em seu neto uma pancadinha no ombro, indicou-lhe que se retirasse. Ficando só, encaminhou-
se para o leito murmurando:
- Com meus filhos me servirá de exemplo Amúlio; com o novo Messias, com o rei de Judá, tomarei por modelo
Atalia.

CAPÍTULO IV

O NINHO DUM PRÍNCIPE

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Jericó dormia. Só o cadenciado murmúrio das águas do Jordão, ao lamber o verde céspede das margens com sues
húmidos beijos, interrompia a quietação sepulcral em que se acha envolta a cidade favorita do Idumeu. A lua tinha
emigrado do céu, mas em compensação nem uma só estrela tinha deixado de assistir aquele concílio noturno, e,
estendendo-se em numerosos esquadrões pelo escuro e dilatado horizonte, lançavam seus reflexos sôbre a terra como se
pretendessem encontrar nela a rainha da noite, que não estava no firmamento. O ambiente, embalsamado com as
emanações derramava-se pelos campos gemendo com doce melancolia entre as copas das árvores e o cálix entreaberto
das flôres.
Um homem envolto numa dessas capas triangulares dos hebreus saiu do palácio de Herodes e encaminhou-se
para os arcos da praça, contou as colunas, mas com as mãos que com os olhos e, ao chegar à quarta parou. Persuadido
de que se achava só, encostou-se à coluna tomando a atitude do homem que vai esperar. A princípio o misterioso e
noturno personagem conservou-se imóvel como incrustado na dura pedra do pórtico; mas logo enrolou na cabeça uma
das pontas da capa em cujo extremo pendia uma borla, como faziam os hebreus com o seu talet de linho ao entrar no
templo, e começou a passear debaixo do pórtico.
Assim decorreu coisa de meia hora, até que por fim outra figura humana apareceu no extremo oposto da praça.
Êste mudo passeante noturno ocultava o corpo sob as muitas pregas duma toga romana de côr escura.
- Paulo! disse o primeiro ao ver junto de si o outro.
- Antípatro! respondeu o da toga.
- Já pensava que não vinhas.
- Sou pouco forte no conhecimento das estrelas, e costumo enganar-me nas horas.
- É o mesmo; vamos lá.
- Vamos onde quiseres; mas advirto-te que ao amanhecer tenho que estar pronto para partir.
- Antes que termine a vigília matutina teremos terminado.
O filho de Herodes, o efeminado Antípatro, enfiou o braço no de Paulo, o soldado romano, e ambos se
encaminharam pelas tortuosas e estreitas ruas em busca dum dos bairros mais solitários e afastados da cidade, onde
pararam diante de uma casinha de modesta aparência.
- É aqui, disse Antípatro.
- Em boa hora, responde Atme com indiferença.
O filho de Herodes bateu de modo particular na porta, que se abriu imediatamente.
- Boa noite, Enoe, disse Antípatro ao entrar na casa, a uma jovem que, com um lâmpada na mão, alumiava aos
dois amigos.
- A paz seja contigo, senhor, e com quem te acompanha, respondeu Enoe com a entoação melodiosa das judias.
Paulo lançou um olhar à filha de Israel, e depois outro ao amigo como a perguntar-lhe quem era a moça.
Antípatro sorriu-se e êsse sorriso era uma resposta ao olhar de Paulo.
- Esperai, bons senhores, tornou Enoe; o corredor está escuro e vos alumiar-vos.
A judia fechou a porta e passou adiante caminhando por um estreito corredor. Os dois amigos seguiram-na em
silêncio e assim andaram cêrca de vinte e cinco passos, até que toparam com uma parede que lhes cerrrava a paisagem.
A filha de Israel pôs a mão na parede, e esta abriu-se jogo.
- Passai, lhes disse Enoe.
Paulo e Antípatro atravessaram aquele desvão que dava passagem para outro aposento. Então acharam-se num
camarim profusamente alumiado, que contrastava agradavelmente com a escuridão da primeira estância. Enoe tinha
desaparecido.
- Oh! pronunciou com profundo assombro Paulo, isto é maravilhoso: a luz sucede as trevas; a ostentação à
pobreza.
Vejamos o que causava a admiração do soldado pretoriano. Era uma habitação pequena, adornada com êsse
gosto requintado dos gregos, e que os romanos espalharam pelo mundo antigo, passeando a sua águia triunfante. As
paredes forradas de nacarada seda das Gálias, brilhavam como a flor de româ ferida pelos rios do sol poente. Quatro
lâmpadas de ouro suspensas do artezoado teto derramavam as claras ondas das suas chamas, alimentadas com azeite de
Mitelete, sõbre u’a mesa de alóes com embutidos de margim. A mesa era redonda e de um só pé ou manupudium,
como lhe chamavam os romanos, cuja forma caprichosa mostrava o bom gôsto do artífice construtor. Um leito de forma
triangular se estendia ao redor da mesa, onde os moles almofadões de cetim azul convidavam ao descanso e à preguiça.
Algumas peles de leopardo lançadas pelo chão serviam de alfombra, e nos quatro ângulos da habitaçãoa ardim quatro
braserinhos de prata, embalsamando o ambiente com o aroma da mirra e do nardo, que, exalado em branca e caprichosa
coluna de transparente fumo se elevava em espiral para a abóbada artezoada, desaparecendo, depois de perfumar a
habitação, por uma larga clarabóia.
A mesa estava posta para a ceia; a ausência da toalha (pois não se começaram a usar até meiados do reinado de
Augusto) supria a extrema limpeza da madeira, que reluzia como o ébano polido. Viam-se colocados sôbre ela quatro
jarrões de louça, de duas asas, brancos como o leite, e finos como o nâcar. No seu seio os vinhos conservavam-se
frescos e claros como os mananciais do Líbano. Êsses jarros tinham cada um seu pergaminho quadrado em que se lia a
espécie de vinho, o ano da sua colheita e o nome do cônsul ou ditador que governava a república romana quando se
colheu a uva.
Sôbre uma imensa torta de farinha de trigo descansava um cervato louro como ouro, cercado de ervas aromáticas
e passarinhos de pequenas dimensões. Ao redor deste prato seguiam-se outros de vidro que continham doces de
conserva e preciosas frutas. Uma ânfora de âmbar cheia de água e vinagre (bebida de que gostavam muitos romanos) se

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achava no extremo da mesa, e junto aos leitos duas grandes taças de ouro de larga boca incrustada com caprichosas
figurinhas de relevo, que se tiravam e punham durante a conversação alegre e animada dos pastores. Num extremo da
habitação via-se uma pia de mármore branco, e por cima desta duas escápulas de pau de laranjeira, de que pendiam duas
toalhas de finíssimo linho.
Paulo depois de ter passado revista com os olhos a tudo quanto o rodeava, fitou-os nos manjares, e, estendendo
os braços sôbre eles, exclamou com entoação cômica:
- O deus Pan, protetor do gado, prolongue a tua família, inocente cervadinho. O alegre Baco fecunde com o seu
calor divino os regalados campos da Itália, onde brota entre verdes pâmpanos o Sorrento, o Lágrima, o Falerno, o
Mássico, o Calvi, o Cesabo e o Sezano. E tu, buliçosa Comus, deusa dos banquetes e dos festins, derrama sôbre
Antípatro, meu anfitrião, todos os teus dons, e concede-lhe um estômago forte e incansável como o dos avestruzes, para
que nunca sinta os horrores da indigestão nas sua gloriosas batalhas sibaríticas.
- Assim seja! exclamou o filho de Herodes soltando uma gargalhada.
Então os dois amigos despojaram-se das peças de roupa que podiam incomodá-los durante a comida, e, depois de
lavarem as mãos na pia de mármore, enrolaram a toalha no pescoço e foram recostar-se no leito, ficando-lhe apoiado o
braço esquerdo e levantada a cabeça em proporção à mesa; e começaram a comer com os dedos do cervatinho,
arrancando com o indicador e polegar pedaços de carne com assombrosa facilidade.
- Mas Enoe? perguntou Paulo, que até então não tinha sentido a falta da judia. Por que não ceia conosco?
- Enoe, meu amigo, desapareceu como um sonho fantástico; mas juro-te pela deusa Cibela que a tornarás a ouvir
como uma realidade encantadora.
- Os deuses sabem quanto sinto a sua ausência.
- Ora, que te importa a ti essa escrava?
- Sou romano, e como tal supersticioso, e em todo o banquete em que o número dos convidados é menor que o
das graças ou maior que os das musas, antes dum ano o vinho costuma tornar-se sangue.
- A tua saúde, e à minha que sou teu amigo, exclamou Antípatro, levantando uma taça à altura da testa, como se
não quisesse dar ouvidos à superstição do companheiro, que o fizera empalidecer.
- À saúde do César Augusto. Pela glória de Roma e pela prosperidade dos filhos do Tibre.
Os dois amigos esvaziaram dum só trago as taças. E Paulo pegou noutro jarro para tornar a encher as taças.
Seus olhos fitaram-se no pergaminho que continha o nome a idade do vinho, e leu cheio de prazer o letreiro:
“Sorrento puro, ano 636 da fundação de Roma. Sendo ditador Lúcio Cornélio Sila” – Poder de Baco! – Tira-me
os pântanos da África, tu que com a tua Tábua de Prescrição inundaste de sangue as ruas de Roma, roubando o sono
dos patrícios, e foste devorado pêlos bichos antes de ser cadáver, levanta-te da tua cova e saúda um contemporâneo que
soube sobreviver ao teu sangrento reinado!.
Antípatro bebeu sem falar; indubitavelmente alguma idéia preocupava o efeminado filho de Herodes. E Paulo,
depois desse discurso histórico, tomou fôlego e disse com voz cavernosa e mofadora:
- Pelos sagrados bosques do divino Júlio, tornou Paulo aproximando de si um prato de conservas, que a não te
ver a meu lado a não saber que o meu cavalo cordovês rumina o seu penso nas cavalariças do palácio de Jericó, a não
estar plenamente convencido de que o Jordão se arrasta sôbre o seu leito de areia a poucos passos de nós, julgaria, ao
aspirar os gratos perfumes, que me embriagam, que me achava no banho aromático e fascinante duma patrícia romana.
Neste momento o silencioso Antípatro, sem que o seu alegre falador companheiro o observasse, apoiou o dedo
indicador da mão direita sôbre uma das molduras do leito, e a aguda vibração duma campainha de aço estendeu-se pelo
âmbito da sala.
- Ah! disse Paulo, volvendo os olhos em tôrno de si. Essa campainha anuncia-me outra nova surpresa; mas
advirto-te, querido anfitrião, que um romano do tempo de Augusto não se admira tão facilmente quando os fumos do
Sorrento e do Falerno começam a embriagar-lhe a cabeça.
- Não trato de surpreender-te, só quero cumprir a palavra, respondeu o filho de Herodes: lembras-te que prometi
que tornarias a ouvir Enoe como uma encantadora realidade?
- É certo.
- Pois bem, escuta e julga.
Neste momento começaram a ouvir as doces e melodiosas notas dum saltério. Sua poética e sentida cadência,
seus melodiosos acordes estenderam-se com arroubado acento pelos âmbitos da habitação. Paulo suspendeu o manjar
que ia levar à bôca. Estava extasiado. Aquilo era um sonho, um canto de Homero pôsto em ação ante seus olhos, uma
poesia de Virgílio recitada por um coro de deuses.
O saltério suspendeu um instante as suas notas, que imediatamente tornaram a ouvir-se;mas desta vez
acompanhada duma voz humana; voz de mulher, voz tão melodiosa, tão doce, tão melancólica como o gemido que
arranca o zéfiro das harpas aéreas suspensas dos tristes ramos dum salgueiro do bosque de Efraim. Aquela voz cantou o
seguinte:

Eu sou o rouxinol do escuro bosques,


E ao pálido clarão de áereos lumes
O peito meu exala
Dulcíssimos queixumes.

O pintassilgo sou que viu seu ninho


Junto ao do rio santo alvo licor:

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Meu canto é um gemido,
Quimera o meu amor.

Eu sou a pobre rola que do Líbano


Nas crespas rochas se aninhou errante
Se tenho a alma feridaa
Porque quereis que cante?...

Deixai que o peito meu dos seus amores


viva morrendo em solidão ditosa
Sem sol e sem rocio;
E, não, perfumes não peçais à rosa.

O canto e a música cessaram, os ecos do saltério e os gemidos harmoniosos da voz da mulher perderam-se como
os sonhos impalpáveis duma alma enamorada, deixando somente, após si, uma doce recordação vaga, melancólica,
indefinida, como o som dum ósculo de despedida enviado nas asas do zéfiro ao objeto do nosso amor.

CAPÍTULO V

DOIS AMBICIOSOS QUE FAZEM CASTELOS NO AR

- Quem é essa mulher que canta como uma bacante dos bosques da Baia ferida pela flecha do deus cego?
Exclamou Paulo num ímpeto de entusiasmo.
- Essa mulher, respondeu-lhe o seu amigo, é Enoe, minha escrava favorita, a solitária guarda desta casa, refúgio
nos meus momentos de fastio, consoloção da eterna melancolia que me devora, ninho enfim dum príncipe desgraçado.
- Tu, melancolia!... Tu, o bebedor incansável, digno rival de Marco Antonio, que encareceu os vinhos do Egito
nos banquetes de Cléopatra!
- O sorriso dos lábios nada tem com as amarguras do coração. O vinho embriaga e adormece as penas.
- Tens razão, bebamos: rubicundo Baco embeleza o presente e apaga o passado. Falemos de Enoe; interessa-me a
tua escrava; conta-me a sua história.
- Enoe não tem história: é uma violeta silvestre nascida nas margens do Nilo e transplantada para Judá antes de
abrir seu perfumado botão: comprei-a a uns árabes, e tenho-a nesta casa, tratando-a como uma irmã caridosa, e estou
certo de que essa pobre menina se deixaria matar por poupar-me um gemido.
- Tua irmã? perguntou com grande dúvida Paulo.
- Minha irmã, Atme, minha irmã! Juro-te pela memória de minha desgraçada mãe que não profanarei essa bela
sensitiva sem lhe dar antes o nome de espôsa.
E Antípatro, ao invocar a memória de sua mãe, estremeceu sensivelmente.
- Que tens? Perguntou Atme.
- Nada, meu amigo; quanto me lembro de minha mãe, vejo sangue diante dos olhos... Mas falemos de outra
coisa. Gostas de ouro?
Paulo admirou-se desta pergunta; mas deu esta resposta.
- A vida é cara em Roma, e a paz empobrece o soldado.
- Pois bem, eu posso enriquecer-te.
- Oferecimento é êsse que me admira. Saibamos o que me custa a fortuna que me ofereces.
- Jura-me antes, que, se não aceitares as minhas condições morrerá contigo o segrêdo dos meus planos.
- Juro-o pela minha espada de soldado.
- Agora troquemos os punhais e as taças, e escuta pois deste este momento Paulo Atme, o Atrevido, será irmão
de Antípatro.
Os dois desprenderam ao mesmo tempo as adagas de talim e tocaram-nas; depois, enchendo as taças,
ofereceram-na mutuamente.
- O sombrio Molok, o terrível Ariman perturbe os sonos e envenene o sangue do primeiro que violar a santa
aliança que nos une..., exclamou o filho de Herodes esgotando a taça que lhe havia apresentado o romano.
- O sombrio Molok... o terrível Ariman perturbe os sonos e envenene o sangue do primeiro que violar a santa
aliança que nos une, repetiu Paulo, imitando o seu companheiro.
- Brevemente o sol banhará com seus raios matutinos os altos minaretes da cidade e os âmbito do palácio de
Jericó. Então as trombetas dos legionários anunciarão aos adormecidos habitantes a partir do rei, meu pai. Tu, Paulo, à
frente de teu manípulo, deves escoltá-lo até Roma. Sabes a que vai meu pai à cidade de César?
- Por minha fé que não. Mandaram-me escoltá-lo e obedecer-lhe. Esta é a minha senha.

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- Pois bem, Paulo, meu pai vai a Roma, porque meus irmãos o acusam perante o senado como assassino da nossa
mãe; porém, com essa acusação assinaram sua sentença de morte.
- Herodes não matará nunca seus filhos: é pai.
- Não o conheces; a morte deles é certa e a minha não está longe; mas eu não sou dos que se rendem sem lutar e,
uma vez apagada no coração a voz da natureza, a luta será terrível e precisarei de ti, Paulo.
- Fala, respondeu o romano, vendo com desgosto que aquela ceia, que começara com tão bons auspícios, ia
terminar com uma conspiração.
Terminada em Roma a sua causa, meu pai voltará a Judá escoltado pelos soldados pretorianos. Se ao pisar as
praias da Palestina, meu pai deixar de existir, a coroa será minha e terás vinte talentos hebreus.
- Se eu não fizer parte da comitiva de regresso, não poderei servir-te.
- Sabes de antemão as ordens do César?
- Não; mas pode combinar-se que regresses a Judá com meu pai. Os soldados romanos aborrecem a paz: morrer
no campo de batalha é a morte melhor e mais gloriosa para os filhos do Tibre. Roma conta um crescido número de
legionários que, cansados da inação que os enerva, se acham dispostos a desembainhar a espada à voz do primeiro que
lhe ofereça um punhado de ouro. Deves ser esse homem. Se o César não te nomear chefe da escolta, podes introduzir-te
nas fileiras, comprando um dos centuriões, e ocupar o seu lugar; durante a viagem não te será difícil subornar alguns
soldados, e, logo que pises a terra de Judá, não há de faltar-te um pretexto para que um dos teus enterre a espada no
peito de Herodes. Eu, entretanto, em Jerusalém, reunirei os meus, e, quando chegares às suas muralhas, para ti o ouro,
para mim a coroa.
- O teu plano é arriscado: esqueces-te de que o César é o único que pode conceder-te a coroa de Judá?
- O César compra-se: meu pai assim o fez; posso também fazê-lo.
- Arriscas a cabeça neste jôgo.
- A morte de Herodes deve ser atribuída ao acaso, ou motivada pelo seu caráter irascível.
- Mas em Jerusalém ficam três filhos de Herodes três irmãos teus.
- Faze tu o primeiro e deixa por minha conta o mais. Vacilas?
- Sempre desprezei a vida. Mas a quantia que me ofereces fugir-me-á das mãos como um punhado de fumo: não
conheces a sêde insaciável de ouro dos meus compatriotas: nada lhes basta quando se trata de pôr preço às suas vidas:
se eu fosse o chefe encarregado da escolta, o negócio podia então levar-se a cabo com mais economia.
- Fixa tu mesmo a quantia, falou lacônicamente o filho de Herodes.
- Dize antes as condições. Aos homens da minha têmpera não basta ouro.
- Então, explica-te sem rodeios, e não esqueças que ambos juramos segrêdo no caso de não combinarmos.
- Se a conspiração te der a ti uma coroa, eu, nesse caso, exijo para mim o govêrno de uma das tribos de Israel.
Antípatro mordeu os lábios, mas não disse palavra. Paulo continuou com pausada e fria gravidade:
- Tu serás rei, eu o governador. Quanto à soma que devo perceber, se aumentará com mais doze talentos, que são
os que devem distribuir-se entre os soldados dos postos da Palestina, para que coadjuvem no movimento.
Antípatro como se houvesse tomado uma resolução repentina, disse sem vacilar:
- Aceito.
- Pois bebamos pelo bom resultado da nossa emprêsa.
Encheram as duas taças, e Paulo tornou:
- Pela prosperidade do futuro rei de Jerusalém, e pela fortuna do próximo governador da Galiléia.
Depois de esvaziarem as taças, Antípatro saltou do leito e, encaminhando-se para um dos extremos da estância,
tirou duma espécie de armário, embutido na parede mui dissimuladamente, uma bolsa de couro bastante grande, um
tinteiro e dois pedaços de papiro, objetos que colocou sôbre a mesa sem despregar os lábios.
- Nesta bolsa acharás duzentas minas hebraicas. Tens bastante para as primeiras distribuições de Roma?
- Creio que sim; mas....
- Compreendo-te. Nestes papiros podemos escrever as obrigações; tu ficas com um, eu com outro.
Antípatro estendeu o papiro e molhou a pena no tinteiro.
- Vejo que fazes o contrato com toda a legalidade de uma advogado; estimo.
Êles escreveram uma obrigação do que cada um devia fazer e receber na conjuração que se urdia contra o rei de
cidade santa. Terminada esta operação, cada um guardou cuidadosamente o pedaço de papiro que lhe pertencia. Ambos
estavam comprometidos; talvez ambos tivessem assinado a sua sentença de morte.
O resto da ceia foi silencioso. Os dois amigos comeram pouco, mas fizeram frequentes libações, talvez para
desvanecer com os vapores do vinho as idéias que lhes agrupavam a mente. Antípatro pensava na coroa que, segundo a
sua ambição, calculava dever-lhe descansar dentro em pouco na fronte. Paulo lembrava-se da frase fatalista dos
romanos do tempo de Augusto: “Não te sentes em nenhuma mesa em que os convivas sejam menos que as graças ou
mais que as musas”. O penetrante som duma campainha que se estendeu pela sala, tirou da sua profunda meditação os
dois amigos.
- Que significa êste som? perguntou Paulo.
- Que Enoe nos avisa de que o luzeiro da manhã apareceu no Oriente.
- Então é preciso que nos separemos.
- Sim, dentro em pouco as trombetas convocarão a comitiva.
- Saíamos, pois, e Júpiter nos dê boa sorte na emprêsa.
- Assim o espero. Valor e confiança!
- Mais fortemente se arraiga o valor num coração que a confiança!.

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- Pois não esqueças de que precisamos ambas as coisas.
Apertaram as mãos cordialmente, tomaram precauções e encaminharam-se para o palácio, mas por diferente
caminho. Pouco depois, a porta do camarim de Herodes abriu-se para dar passagem ao escravo Cingo, o qual se dirigiu
ao leito do seu senhor. O Idumeu não dormia.
- E então, Cingo? perguntou Herodes ao seu escravo.
- Não te havias enganado, senhor: Paulo e teu filho passaram a noite juntos.
- Onde? perguntou com indiferença Herodes.
- Em casa de Enoé, sua escrava.
- Já o sabes. Desde agora a tua obrigação é ser a sombra deste romano ambicioso; quanto a meu filho, desprezo-º
Que horas são?
- A aurora despontará em breve no Oriente.
- Avisa Ptolomeu e prepara tudo para partida. Tu vens comig.
Cingo saudou e tornou a sair do camarim por onde tinha entrado. Herodes tornou a deixar-se cair sôbre o mole
leito como se ninguém o houvesse interrompido.

CAPÍTULO VI

CLEÓPATRA E OS TRIÚNVIROS

Antes de penetrarmos na orgulhosa cidade do Capitólio e de percorrermos as ruas de Roma, dessa rainha do
mundo, desse arsenal da glória e da arte, antes de nos colocarmos diante da grave figura de Otaviano Augusto,
imperador dos romanos, os nossos leitores hão de permitir-nos que volvamos um olhar retrospectivo, desde a morte de
Júlio César até ao nascimento de Jesus Cristo.
Júlio, Crasso e Pompeu, depois de formarem o triunvirato, estenderam-se com suas poderosas legiões pelo
mundo, alargando pelas contínuas conquistas as possessões romanas. Porém a sorte começou a ser contrária ao avarento
Crasso e, nas planícies da Mesopotâmia, foi destroçado pelo rei dos partos, que, sabendo a sêde nsaciável de ouro que
acossava o feroz romano, fez com que lhe cortassem a cabeça e mandou que lhe deitassem ouro derretido na boca,
dizendo com ironia cruel: “Agora é preciso fartá-la deste metal de que não pôde saciar-se durante a vida”. A Itália
recebeu com um grito de dolorosa raiva a notícia da derrota das legiões de Crasso. O triunvirato estava desfeito: tardou
pouco que César e Pompeu se indispusessem. Júlio achava-se nas Gálias, Pompeu em Roma, e ambos conceberam o
ambicioso plano de governar a sós a república.
Júlio, levantando suas tendas a marchas forçadas, atravessou os Alpes e deteve o seu exército na margem dum
riacho. Pompeu, sabedor de que César avançava sôbre Roma, sai ao seu encontro rodeado dos senadores, entre os quais
se achavam Cícero e Catão de Útica. Os dois exércitos encontraram-se depois na Macedônia, a planície de Farsália.
Trava-se a peleja; o sangue romano tinje o largo campo que ocupam os combatentes, esquecendo no seu furor que são
irmãos. César vence Pompeu, a quem salva a ligeireza do seu corcel. Chega à praia, entra num navio, o vento favorece-
o e chega ao Egito, onde a rainha Cleópatra e seu irmão Ptolomeu lhe cortam a cabeça e a remetem numa caixa ao
vencedor Júlio, como prova de sua covarde submissão.
César, clemente, perdoa aos partidários do seu inimigo, mas Catão de Útica, dá-se à morte por suas próprias
mãos para não sobreviver à república que julgava perdida nas mãos de Júlio César. Recebe César o
ensanguentado crânio de Pompeu, e, não podendo esquecer de seu sogro e amigo, chorou sôbre aquela cabeça insepulta,
e castigou Ptolomeu. Entra em Roma, onde se fez aclamar ditador, como Sila, por dez anos. Distribui trigo e dinheiro
ao povo; dá espetáculos de gladiadores; converte o campo de Marte num lago imenso, onde os romanos correm ébrios
de prazer a presenciar os simulacros navais com que os obsequeia o vencedor Júlio.
O povo esquece que a república têm um senhor, e dá a êste o sobrenome de Divino. Adora-o como a um dos seus
deuses, e crê-se feliz. Mas Bruto e Cássio, amigos de Pompeu, rudes e leais republicanos, não dormem e afiam o punhal
que deve livrar a pátria do ditador.
César é avisado pelos amigos do perigo que o ameaçava. Vê o seu povo feliz, lembra-se da sua clemência para
com os inimigos, das suas conquistas que tanto engrandeciam o nome romano, e vive tranquilo. Marco Antonio e
Lépido conduzem Júlio a uma galeria do seu palácio, e estendendo os braços para o firmamento mostram-no como sinal
precursor dalgum grave acontecimento. O povo agrupa-se nas praças e comenta a seu modo aquele misterioso sinal
do céu.
Passa a noite, nasce o sol, e César, com o seu manto de púrpura, sem armas, encaminha-se a pé para o senado,
rodeado dos amigos. Mas, apenas transpõe o pórtico da assembléia, cem punhais saem dentre as pregas das togas dos
senadores. César não se perturba; vê o perigo, desafia-o; mas ao sentir-se ferido, volta a cabeça e vê um amigo, o seu
querido Bruto, e exclama com inexplicável sentimento: também tu, Bruto! Então cobre a cabeça com o manto e cai
atravessado, sem vida, aos pés dos seus assassinos.
Marco António, rude e valente soldado, amigo de acampamento do desgraçado Júlio, corre com Lépido ao lugar
da catástrofe. Mandam levar o ensanguentado corpo do ditar para a praça pública, e colocam-no sôbre um leito de
marfim para que o povo possa ver seu protetor. O povo enfurece-se e os assassinos fogem de Roma, para morrerem
mais tarde na batalha de Felipos, nos Campos da Grécia.
Cícero, o sábio orador, acha-se já salvo na popa de uma galera; mas teme o enjôo e faz-se conduzir a sua casa de
campo, numa liteira. Os soldados de António encontram-no, cortam-lhe a cabeça e colocam-na no senado sôbre a

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tribuna dos discursos: sarcasmo cruel e sangrento do feroz António, que arrancou lágrimas de dor aos sábios de Roma
e Grécia.
Marco e Lépido tornaram a Roma vencedores dos conjurados. Então apresenta-se- lhes um moço de apenas
dezoito anos, de caráter tímido e pacífico, compleição delicada, rosto pálido e doce, e que coxeava da perna esquerda.
Era um sobrinho de Júlio César, que o havia nomeado seu herdeiro. Os ferozes soldados olham-no com desprêzo, e
admitem-no no triunvirato, que era o segundo de roma. Marco António e Lépido admitiram a cooperação daquele jovem
enfermiço, como um escárnio; mas aquele jovem, delicado como uma violeta, belo como uma sensitiva, chamava-se
Otaviano Augusto e foi mais tarde o imperador mais poderoso do mundo.
Armaram-se as legiões; Marco e Otaviano encaminharam-se à frente delas para a Grécia, onde Cássio e Bruto
tinham levantado um poderoso exército. Venceram-nos na batalha de Felipes. Lépido entretanto ficou em roma;
covarde e preguiçoso, inepto para governar aquela poderosa nação, comete mil torpezas. Otaviano convence a Marco
de encaminhar-se ao Egito, com a metade do seu exército, enquanto êle se dirige a Roma; e Marco Antonio que era
valente mais preguiçoso e gostava dos prazeres da mesa e dos gozos de Baco, aceitou a proposta com a idéia de
descansar das fadigas do acampamento, pois a conquista das ribeiras do Nilo era extremamente fácil para aquele
caudilho.
A rainha Cléopatra vê ameaçada a sua coroa com a aproximação dos romanos, e, ao invés de fugir ou preparar-se
para o combate embarca numa galera coberta de ouro e pedraria, cujas velas eram de púrpura e os remos de prata,
e sai ao encontro da armada inimiga.
Cléopatra, molemente reclinada em ricos almofadões, na coberta da sua embarcação, debaixo dum riquíssimo
pálio de brocado e de ouro, aspirava com voluptuosa preguiça o perfume do incenso que ao seu lado queimavam
quarenta formosas mulheres vestidas com todo o luxo e esplendor do Egito, enquanto doze meninas disfarçadas de
amores agitavam sôbre a encantadora cabeça de sua soberana vistosos leques de plumas, purificando o ambiente com
suas ondulações. Marco Antonio, à vista daquela encantadora aparição ficou fascinado como se a deusa das espumas lhe
houvesse enviado suas ninfas para o receberem. Desde aquele momento o amor com que o brindaram os braços da
astuta rainha prendeu-o nas suas rede, e esqueceu-se de Roma, de sua espôsaa Otávio e do seu dever, para pensar em
Cléopatra.
Augusto, indignado com o comportamento de Antônio, ordenou-lhe que castigasse os partos, que começavama a
tornar-se insolentes; mas Antônio e as suas legiões, tinham-se enervado na côrte do Egito, os partos destroçaram-nos, e
Antônio correu a esconder a vergonha nos braços de Cléopatra. Otaviano Augusto propôs-se vingar Roma e sua irmã e
dirigiu-se, com um exército considerável, ao Egito.
Antônio, falto de valor para esperar o seu contrário, fugiu com a sua cúmplice logo que avistou a frota de
Augusto, retirando-se para Alexandria, onde atravessou o peito com sua espada. Cléopatra, receiosa da vingança de
Augusto, encerrou-se num sepulcro grande como uma casa, onde fez conduzir Marco Antônio, que se achava malferido,
introduzindo-o por uma janela, atado com cordas. Duas horas depois Antônio tinha deixado de existir, e Otaviano, sem
vencedor, achava-se em presença de Cléopatra.
- Dispõe-te a seguir-me a Roma com o manto de púrpura sôbre os ombros e a coroa na cabeça; far-te-ei entrar
pela via Triunfal diante do meu carro vencedor.
A rainha nada disse. Seus olhos, negros como a noite, lançaram um olhar de ódio e desprêzo ao romano. Quando
se viu só, chamou Iras, sua escrava favorita, e disse-lhe, entregando-lhe um punhado de ouro:
- Toma, procura o camponês a quem encomendei o último adôrno do meu reinado.
Do fundo do mar começaram a alçar-se as trevas anunciando a noite aos habitantes de Alexandria, quando Iras,
envolta num manto, abandonou o grandioso mausoléu de Cléopatra, e, atravessando algumas ruas, chegou ao campo e
parou á porta duma choça. Ali havia um homem.
- Cumpriste as ordens da minha senhora? disse.
- Sim, escrava, lhe respondeu o homem entregando-lhe um açafate cheio de figos, e cuidadosamente coberto com
pâmpanos e flôres.
Iras deu ao campônes uma bols de seda cheia de moedas de ouro, e retirou-se. Nos olhos do campônes brilhou a
alegria e a cobiça, e enquanto acariciava com suas calosas mãos a bolsa da rainha, murmurou:
- Para que quererá Cléopatra as víboras, e porque me terá dado tanto dinheiro por elas? As rainhas têm caprichos
inexplicáveis!
Entretanto, Iras chegou ao panteão onde a esperava sua senhora. A rainha pegou no açafate e disse à escrava:
- Vai-te, quero estar só.
Quando Iras se retirou, Cléopatra examinou o açafate. Entre os figos achava-se um pedaço de cana verde,
cuidadosamente fechado com dois tacos de raiz de salgueiro. A rainha agitou a cana que produziu um leve ruído, como
se dentro houvesse algum corpo pesado. Um sorriso de prazer brilhou-lhe no formoso semblante. Pousou o açafate
sôbre os brancos almofadões do leito e vestiu-se com o traje mais rico, mais resplandecente. Pôs a coroa e estendeu-se
no leito.
Então tirou um dos tacos de cana e aplicou o vegetal a seu branco e mórbido peito. Uma víbora estendeu a
esverdeada cabeça, agitando com rapidez a venenosa língua. A rainha soltou um grito. O réptil agarrara a sua carne.
Cléopatra fechou os olhos e esperou a morte, talvez pensando no amante, talvez pensando no assombro que a presença
de seu cadáver havia de causar a Otaviano, seu vencedor.
No dia seguinte os soldados de Augusto acharam-na morta com a coroa na cabeça e reclinada no leito, como se
dormisse. Augusto mandou enterrar os corpos de Antônio e Cléopatra no mesmo monumento, e voltou a Roma, onde,
ao vêr-se único senhor da república, tomou o nome de imperador.

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Aquele jovem débil e enfermiço, de olhar doce e caráter pacífico cujo coxear Antônio imitava quando os vapores
de Falerno o transtornavam, reuniu em si todos os poderes, todas as dignidades da república. Agripa e Mecenas,
Horácio e Virgílio, foram desde então seus amigos favoritos. Restabelecida a paz no mundo, querido do seu povo,
admirado dos reis seus tributários, foi bom e bondoso para com todos; perdoou aos inimigos e encheu-os de favores; foi,
enfim, um grande rei, um pai do seu povo, um carinhoso e tolerante aliado das nações, e um protetor incansável das
letras e dos domínios que lhe pagavam o tributo.
Neste estado se achavam as coisas, quando num estábulo da cidade de Belém de Judá nasceu o Redentor do
mundo. Augusto consultou a Sibila, e misteriosos sinais apareceram no céu. Não é nosso intento por certo reproduzi-los
aqui, pois que podem consignar-se em outro lugar; mas Roma está enlaçada com Israel. Augusto e Tibério, seu
sucessor, foram imortalizados pela vinda de Jesus Cristo. Herodes o Grande, essa sombria figura dos Evangelhos e esse
açoite de Judá, vai penetrar na cidade dos pretores, donde o veremos sair para levar a cabo o crime mais odioso, mais
repugnante que manchou as páginas da história.
Antes, pois, que o terrível Idumeu, atravessando a via Apía e a antiga muralha de Túlio Ostílio, penetre pela
porta Capena na cidade do Capitólio, antes que se lance aos pés do imperador Augusto no monte Célio, detenhamos o
olhar no palácio de César.
Um grupo de soldados velhos e encanecidos nas batalhas passeava no primeiro átrio do vestíbulo e, na praça que
precedia a fachada do edifício, via-se uma ou outra liteira e empregados da casa. Um homem, quase ancião, vestido
modestamente com a toga dos patrícios, saiu do palácio de César e saudou com amabilidade, levantando a aba das
largas vestes, os que se achavam na praçazinha. Todos se inclinaram com mostras de respeito.
O homem da toga transpôs sozinho o arco do vestíbulo, e encaminhou-se com passo tranquilo para a larga rua
que se estendia diante do monte Célio. Seu rosto tinha uma expressão de indefinível bondade; a cabeça, coberta de cãs,
inclinava-se levemente para o peito, como os ramos duma árvore carregada de fruto. Sua estatura mediana, seu físico
delicado e o seu ademã humilde, não mostravam nada de extraordinário. Atentando-se um pouco, podia ver-se que
aquele ancião coxeava levemente da perna esquerda. De vez em quando algum transeunte parava para o olhar como que
a reconhecê-lo. Então o homem da toga sorria-se com bondade confundindo-se entre a multidão, e continuava o
caminho procurando evadir-se aos olhares, investigadores que lhe dirigiam.
Assim cruzou grande parte de Roma, e, atravessando a via Sacra; chegou ao monte Esquilino e ao Viminal. Ao
entrar neste bairro, retirado da populosa cidade, o rosto do misterioso transeunte entristeceu-se visivelmente, e parou
lançando um olhar carinhoso sôbre uma casa de modesta aparência, inteiramente fechada.
Algumas árvores de folha amarelada erguiam às copas por detrás dos muros, como os ciprestes num cemitério
abandonado pelos vivos, para enxugar uma lágrima e, depois, soltando um suspiro, exclamou:
- Pobre Virgílio! Tuas flôres já não perfumam teu apaixonado acento; as aves não cantam sôbre as copas das
tuas árvores, ouvindo teus doces versos. Os deuses imortais arrancaram-te da terra para te levarem para o céu. Êles te
sejam propícios.
Depois prosseguiu o caminho em direção a u’a magnífica casa de campo, cujos extensos jardins se achavam a
pequena distância da casa de Virgílio. Do centro do edifício erguia-se uma torre que dominava toda a propriedade e
grande parte dos quatorzes bairros em que Roma se achava dividida no tempo de Augusto.
O homem da toga entrou nos jardins e, percorrendo aquela dilatada rua de árvores, chegou ao vestíbulo da casa,
onde sôbre um pedestal de pedra rústica se erguia uma elegante estátua de mármore.
Aquela estátua tinha certa semelhança com o homem da com o homem da toga, que passou a seu lado. Ao
transpor o umbral da porta um escravo, que sentava num tamborete de madeira, pôs-se em pé. Junto do escravo via-se
um mastim prêso com uma grossa cadeia de ferro e, por cima do cravo que a segurava à parede, lia-se “Cuidado com o
cão”.
O homem que entrava acariciou a cabeça do cão com familiaridade; êste fechou preguiçosamente os olhos,
estendeu o pescoço e levantou a cauda em sinal de carinhoso reconhecimento. Em seguida entrou em casa, subiu por
uma escada ao andar principal, atravessou várias salas em que encontrou diferentes criados que se inclinavam diante
dele, parou a uma porta e, empurrando-a achou-a num quarto onde havia dois homens. Um deles ocupava-se em folhear
um volume; o outro, estendido num leito, parecia enfermo, a julgar pela palidez das faces. Por tôdas se viam grossos
volumes espalhados até pela cama do enfermo. Dir-se-ia ser a habitação o gabinete dum sábio ou dum historiador. O
enfermo era Mecenas; o que folheava o livro, Agripa; o que acabava de entrar, Otaviano Augusto, imperador de Roma.

CAPÍTULO VII

- Saúde ao César, exclamaram a um tempo Mecenas e Agripa.


- Para ti a quisera eu, meu querido administrador.
- Ah! A minha, poderoso Augusto, é u”a menina malcriada que há algum tempo anda descontente por dentro do
meu ser.
E Mecenas, dizendo estas palavras, procurou sentar-se no leito. César tinha-se sentado sem cerimônia ao lado de
Agripa.

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- Sabes, querido genro, disse Augusto dirigindo-se a Agripa, que esta manhã minha filha Júlia me repreendeu
pelas horas que te roubou do seu lado? A pobre Júlia não sabe que nos ocupamos em colecionar as obras dos nossos
queridos amigos Horácio e Virgílio, para enriquecer com elas minha biblioteca grega e latina do templo de Apolo.
- As mulheres são egoístas, senhor; nenhuma delas compreende sacrificar um instante de felicidade pelo público,
disse Mecenas.
- E todavia, nada lhes agrada tanto como exigir sacrifícios dos homens, tornou Agripa.
- Deixando as mulheres tais quais elas são, tenho que dar-vos uma boa notícia, disse o César. O nosso mui
querido Pisão, prefeito da cidade, conseguiu afinal compilar num volume as obras da Síbila Cúmea, e desde amanhã os
numerosos frequentadores do teatro Marceio poderão lê-las na minha biblioteca, Otávio.
- Os deuses me concedam vida suficiente para ver terminada a nossa obra! terminou Mecenas.
- Pois então toca a trabalhar!
E Augusto, Mecenas e Agripa puseram-se a folhear volumes que colocavam depois com ordem em uma estante,
formando antes um índice em longos pedaços de papiro que se achavam estendidos na mesa.
Aqueles três homens passaram grande parte do dia nesta ocupação bibliográfica, enriquecendo com os seus
trabalhos as duas bibliotecas fundadas por Augusto O bondoso imperador desviava de vez em quando os olhos dos
livros para os fitar no pálido semblante de Mecenas. Depois, aquele olhar encontrava-se com o de Agripa seu genro, e
ambos faziam um imperceptível movimento contristado. Otaviano Augusto dizia sempre, quando nomeava seus quatro
amigos Horácio e Virgílio, Mecenas e Agripa:
- O meu maior desgôsto será sobreviver-lhes.
A morte dos seus dois poetas favoritos encheu-o de dor porque, folheando seus versos passava as horas
melhores da sua vida. Quando, algum tempo depois, a morte lhe arrebatou Mecenas e Agripa, que tão bons conselhos
lhe haviam dado durante seu longo reinado. Augusto chorou e sua desconsolação foi tão grande que deixou crescer a
barba e, cortando o trato com os homens, passou os últimos anos da vida a instruir seu sobrinho Tibério nos deveres
dum bom rei.
Enquanto êsses ilustres personagens se ocupavam com o afã e interesse dum antiquário, em colecionar os
volumes para os transportarem para a biblioteca, Herodes, seguido dum crescido número de escravos e duma luxuosa
comitiva, entrava em Roma pela via Triunfal e, atravessando o Tibre pela fonte Janículo, dirigia-se ao palácio de César
Augusto.
O Idumeu chegava à cidade do Capitólio chamado pelo imperador para defender-se da acusação de seus filhos.
Herodes montava um cavalo de raça siríaca; a sua direita cavalgava Mário, seu patrono; à esquerda, Cingo, o escravo
negro. Seguiam-no alguns escravos luxuosamente vestidos e uma liteira recamada de ouro, com as varas de prata.
Depois seguia-o Paulo Atem com seus trezentos cavaleiros romanos, e em último lugar uma récua de possantes machos,
que conduziam as tendas, a bagagem e alguns presentes que o rei tributário trazia da Palestina ao imperador.
Quando César Augusto regressou à casa, achou Herodes e sua comitiva esperando no amplo vestíbulo. A
humildade e modéstia do poderoso Otávio, que caminhava a pé e vestia como o último dos cidadãos da república,
contrastava com o luxo insolente e afetado do escalonita, do rei tributário de Judá, do primeiro escravo de Roma.
Augusto recebeu Herodes com a amabilidade que tinha por costume e fez com que se hospedasse em sua casa. O
baixo adulador Idumeu, que devia a cora a Marco Antônio, esquecendo-se do seu protetor tão depressa como Augusto
se fez senhor do império do mundo depois da batalha de Ácio, implorou e obteve, à força de ouro e baixezas, a proteção
do sobrinho de Júlio César. Imitando Aristóteles II, rei de Jerusalém, que depois de consideráveis somas deu uma vida
de ouro a Pompeu, seu vencedor, o escalonita, desejando ter sua parte o senhor do mundo na questão promovida por
seus filhos, e sabendo a insaciável sêde de ouro que predominava entre os romanos no seu tempo, trouxe infinitos
presentes para os juízes e uns cachos de pérolas para o César, entre os quais se achava um de grande valor e dum gosto
delicado, pois o artífice tinha colocado algumas pérolas negras e bronzeadas misturadas com as brancas, imitando dum
modo prodigioso a aproximação da víndima.
Herodes, como era astuto, não se esqueceu de transportar de Jerusalém dois grandes caixões de livros hebraicos
para as bibliotecas do César, presente que Augusto agradeceu. Quando, na seguinte manhã Herodes pediu licença a
Augusto para apresentar-lhe os presentes, o Idumeu entrou na câmara do seu senhor.
- Este cacho de pérolas, ilustre César, lhe disse, trouxe-os de Judá para que os mandes colocar na vide de ouro de
Aristóbulo, meu antecessor, para que Roma veja que a vide de Judéia dá fruto nas mãos do teu servo Herodes.
Desde então, Augusto propôs-se, escudado com a lei quarta das Tábuas, conceder a Herodes todos os direitos
que como pai tinha sôbre seus filhos.
Avisados Alexandre e Aristóbulo de que seu pai se achava em Roma para defender-se da acusação, prepararam-
se para a defesa. Mário, patrono de Herodes, era um desses legistas que com o poder da palavra, e o engenho dos seus
escravos para a defesa, fazem do mais desprezível delinquente o heroi mais simpático e digno da terra, Herodes foi
defendido com tal maestria, com tanta eloquência, com tal lógica, que o tribunal viu no Idumeu um homem de honra, e
na sua desgraçada Mariana uma mulher corrompida e adúltera. Teve-se em conta a lei hebraica que manda matar as
esposas que esquecem os deveres e Herodes foi absolvido depois de vinte dias de debates.
O tribunal, por conselho de Augusto e querendo que se respeitasse a lei das Doze Tábuas, entregou os filhos ao
pai, para que obrasse com êles como lhe aconselhasse o coração.
Enquanto isto acontecia o manípulo Paulo Atme não se descuidava. Diariamente concorria ao campo de Marte
em busca de aventureiros que recrutasse na sua pequena legião.
Cingo, escravo de Herodes, fiel ao seu senhor, astuto como uma cobra, espiava o romano sem que êle o
percebesse, chegando a tal extremo sua astúcia e fingimento, que Paulo, crendo na palavra do etíope, o julgava um

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inimigo irreconciliável de Herodes e não teve inconveniente em confiar-lhe todo o plano. Esta confiança perdeu-º Tudo
estava preparado: a partida marcada pelo César, era no primeiro dia das Calendas de junho e Paulo estava nomeado
chefe da escolta que devia levar a Jerusalém o rei tributário.
Quatro galeras do César esperavam no porto marítimo de Civita-Vecchia para os transportar às praias de
Cesaréia. Tudo estava pronto e, na véspera da partida. Augusto com o seu caráter conciliador, quis que Herodes e seus
filhos jantassem com êle, crendo que por êste meio se reconciliariam aquelas desinteligências de família.
O Idumeu fingiu durante o banquete uma bondade uma tolerância para com seus filhos, que estava mui longe de
sentir. Ao terminar o banquete, solicitou de Augusto uma conferência secreta e ambos passaram a uma sala retirada.
Quando Herodes se viu só com Augusto, tirou uma folha de pergaminho dentre as pregas da túnica e apresentou-se ao
César.
- Que é isto? perguntou Otávio fitando os olhos no escrito. Mas antes que Herodes lhe respondesse, exclamou
com doloroso acento!
- Ah! Ainda há no meu império quem conspire contra as ordens que dito!. Com que esses revoltosos filhos de
Marte, confiando na minha clemência, conspiram contra os reis que eu protejo! Esta bem, Herodes, está bem! Eu
agradeço-te a descoberta, que em honra da verdade mais competia a Pisão, prefeito geral da cidade, que a ti, que és
forasteiro.
- O nome de Cingo que aparece nesta lista, deve excluir-se do castigo, porque Cingo é o meu escravo favorito.
Perderia gostoso a vida por obedecer às minhas ordens: pois prevendo eu desde Jericó que meu filho Antípatro e Paulo
estavam de acôrdo, mandei ao meu escravo espiar o último durante a viagem e a sua permanência na cidade do Tibre.
- Nas conjurações, amigo Herodes, lhe respondeu Augusto, os reis que como eu não gostam de derramar sangue,
dirigem-se ao cabeça, para castigar. Os reis sanguinários são bestas ferozes que os novos deveriam esmagar como as
víboras venenosas.
Augusto conhecia a ferocidade do Idumeu e acentuou as últimas palavras. Herodes baixou covardemente os
olhos para o chão. Depois destas palavras, Augusto encaminhou-se para a porta e, levantando o reposteiro chamou um
dos seus litores, dando-lhe ordens em voz baixa. Uma hora depois, o reposteiro tornou a levantar-se para dar passagem
a dois soldados romanos; um deles era Paulo Atme; o outro, um velho que vestia o uniforme de centurião. Augusto
deteve um momento o olhar no semblante de Paulo, que estremeceu levemente, e depois disse-lhe, estendendo-lhe o
pergaminho que lhe havia apresentado Herodes.
- Pelos deuses do Capitólio, pela honra de teus pais e pela glória da águia, que serve de cimeira ao estandarte do
teu manípulo, exijo-te que me digas se é certo o que diz este pergaminho.
- É certo, César.
- Só Augusto levanta legiões em Roma, exclamou o imperador com voz ameaçadora; ninguém mais que eu tem
direito a conceder as coroas tributárias nos meus domínios. Tu faltas à lei; morre pois, como soldado!
E Augusto, tirando a espada que pendia do cinturão de Paulo, disse-lhe com voz enérgica, apresentando-lhe pelo
punho:
- Toma.
Paulo não esperou que lhe repetissem a ordem: sem vacilar, sem se deter, compreendendo o que o César lhe
queria dizer entregando-lhe sua própria espada, com um valor digno de melhor sorte, atravessou o peito, caindo
ensanguentado sôbre a alfombra do pavimento.
- Assim devem morrer os traidores que ameaçam a existência dos reis a quem concedo hospitalidade no meu
palácio, tornou Augusto, afastando os olhos do cadáver de Paulo.
E depois, vendo que as duas testemunhas, Herodes e o centurião, nada diziam ante aquele drama sangrento,
continuou, dirigindo-se ao velho soldado:
- Tu, meu leal Antoninho, escoltarás o rei a Jerusalém, obedecendo suas ordens como as minhas próprias.
Prepara-te, pois, para te achares amanhã, quando a luz da aurora saúde Roma, com tua centúria, no embarcadeiro do
Tibre: e , voltando-se para Herodes, continuou: podes confiar nêle; é um velho e leal servidor, que pelejou comigo no
Egito.
Pouco depois os litores mandavam enterrar o cadáver de Paulo.

LIVRO SEXTO

CAPÍTULO I

FANTASIA

O sol desaparecia atrás das azuladas montanhas que servem de pedestal ao templo de Júpiter. O bosque do
divino Júlio, agitado pelas brisas da tarde, sacode os empoados loureiros, que perfumam o ambiente com sua aroma. A
violeta abre o cálix esguendo-se para o céu, e o magnólio das Índias inclina o seu corpo de margim para a terra. As

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palmeiras e os pinheiros estendem suas sombras para o Oriente em busca da noite. Os rouxinóis, ocultos nos frondosos
espinheiros, batem alegres as azinhas e as tranquilas caudas, esperando que o zéfiro noturno lhe roce as penas para
enviarem ao Criador o canto das trevas.
Os pastores conduzem seu inocente gado ao aprisco e o laboratório camponês regressa ao lar, sentado no duro
dorso dos pacientes bois, com o rosto coberto de suor e pó. As montanhas de Albano, rodeadas de seus filhos, e
sentadas debaixo do tosco coberto das suas choças, entoam alegres o poético canto da noite, prelúdio amoroso que
indica o regresso de seus maridos. As naus do Tbre, ancoradas, enrolam sôbre a coberta os toldos de lona que livraram
os trpulantes durante o dia dos raios do sol, e as ligeiras andorinhas giram alegres em derredor dos galhardos mastros. E
lá ao longe, coberta por um céu de côr plúmbea envolta numa densa névoa, ergue-se Roma, essa cidade que enche com
o seu nome o universo, e da qual o mundo foi uma província. Cem templos pagãos se erguem altivos no seu seio: o sol
os banha a todos com os seus derradeiros raios. A paz, a moleza enervou o braço dos seus soldados. Vênus adormeceu o
valor dos seus heróis.
A via Ápia, êsse bazar do amor e da galanteria, êsse ponto de reunião onde o soldado se converte em sibarita,
onde o epigrama substitue a espada, e o perfume a couraça; esse passeio favorito da elegante sociedade de Roma, onde
fervilha a juventude, superficial, escrava da moda no tempo de Augusto, é onde vamos deter-nos um momento. Se o
cendor Ápio Cláudio Crasso se houvesse levantado do sepulcro no tempo de Augusto, indubitavelmente teria
reconhecido aquele caminho que êle traçara quatrocentos anos antes.
Já não era por onde chegavam à Europa as preciosidades da Ásia e África; era antes um elegante arrabalde de
Roma. As casas de campo tinham-se convertido em esplêndidos palácios; os túmulos em elegantes e colossais
mausoléus. O silêncio da morte, a majestosa frialdade das urnas funerárias, importavam mui pouco à elegante e viciada
juventude de Roma.
Cícero havia dito: “Desde que os homens não são tão singelos, os oráculos emudeceram?
Roma, pois, começava a rir-se até dos seus deuses.
A via Ápia tinha-se convertido no teatro das suas aventuras amorosas. Os vivos falavam de amor sentados sõbre
as cinzas dos mortos. O banco de pedra que rodeava o sepulcro de Sipião, serviu mais duma vez de cadeira a Ovídio
para recitar à juventude a sua Ars amandi. As patrícias juntavam-se ao pé do mausoléu de Ápio, sentando-se sôbre
ricos panos de brocado de ouro. Ali esperavam os seus amantes com o voluptuoso olhar na direção do campo de Marte,
e, agitando um leque de penas e aspirando os perfumes de um frasco de essência, agurdavam com a cabeça
preguiçosamente apoiada no mármore do sepulcro.
Os cavaleiros percorriam a via Ápia desde as cercanias de Albano, até às muralhas de Roma e pouco lhes
importava que o precipitado galope dos seus ligeiros cavalos numidas perturbasse o pesado sono da morte. Cupido
impelia os corações para Vênus, e o amor, quase sempre egoísta, esquecia tudo menos o gôzo, as esperanças, os
voluptuosos sonhos.
Naquele pamatório da corte de Augusto falava-se de modas, discutiam-se as pomadas e os perfumes que
suavizam e embelecem a cútis, a largura das túnicas, o peso dos anéis, a dimensão dos mantos e os adornos do calçado.
Ali se travavam acaloradas disputas sôbre o corte dos cabelos e o maior ou menor comprimento da barba.
Por tôda parte se viam ligeiros eisium com suas caixas de vime, carros tirados por três mulas ajaezadas com
peles de leopardo e multidão de cascavéis de prata. Por todo lado, andavam os redos, trazidos das Gálias, com suas
quatro rodas douradas, seus coxins de púrpura e seus flutuantes panos de seda arrastando pelo chão, onde, sentadas com
a gravidade duma estátua de pedra, iam as matronas vestidas com sua estola branca como a neve de Arará, envoltas em
finíssimos mantos escarlates que flutuavam à mercê do vento mostrando os roliços braços cheios de braceletes.
Ali se viam as patrícias com suas coroas de diamantes, mostrando ao descer da carruagem os pequeninos pés
nus, perfumados com a pomada de lentisco e violeta. Os escravos estendiam um pano das Gálias junto da carruagem,
para que a senhora não tocasse nunca o imundo pó da terra com os pés. Então aquelas lânguidas sensitivas do Tibre,
aquelas formosas filhas do amor e da preguiça, davam alguns passos apoiando as mãos nos nervudos ombros dos
escravos, como se lhes faltasse alento para caminharem sós e, sentando-se num flácido almofadão, começavam a
brincar com umas bolinhas de âmbar, que tinham o duplo privilégio de perfumar o ambiente e as mãos.
Mas não eram só as mulheres que caminhavam desde modo; os homens, os descendentes daqueles bravos que
tinham conquistado o mundo, também buscavam o apoio que sustentasse as suas cansadas fôrças. Não era estranho
encontrar no meio daquela alegre e replandecente reunião o impassível filósofo, que envolto no seu velho manto olhava
com desprêzo essa vaidade da terra e o suplicante mendigo, que se deleitava junto o repugnante cheiro de seus farrapos
com o aromático perfume das cortesãs.
Mas estes fantasmas que a ciência e a miséria faziam passar diante dos sonolentos olhos das corrompidas
cortesãs, dissipavam-se depressa. Ao mendigo lançavam uma moeda, ao filósofo, um sorriso de desprêzo; depois, a
nuvem dissipava-se, o prazer chegava e o deus cego, fazendo-lhes esquecer a alma, apresentava-lhes em cheio os
encantos da matéria.
Assim passava duas horas a elegante sociedade de Roma, até que o sol, escondendo-se completamente atrás das
encostas do Ocidente, deixava o império à noite, que estendia o seu lúgubre manto sôbre os túmulos e os palácios da via
Ápia. Ai aquele lugar ficava deserto, Roma tornava a receber em seu seio seus alegres filhos. Os prazeres não tinham
terminado.
A noite tinha também seus encantos na cidade do Tibre.
Os bufões da Grécia, as bailarinas de Cádis, os gladiadores da África, o cômico Pilades, o mímico Bátilo, os
tigres, os leões, os elefantes, os leopardos, chegavam diariamente à pátria de Rômulo para entreterem o ócio dos
afortunados filhos da loba.

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Augusto tinha fundido sua baixela, conservando somente um vaso, herança de seu tio Júlio César, e cento e
cinquenta milhões de sestércios se gastaram em teatros, hipódromos e na via Flamínia. Augusto quis ver feliz o povo e
o sábio imperador não encontrava obstáculo para conseguir.
Mas não entremos em Roma; detenhamo-nos um momento na via Ápia. A lua, clara e radiante, subia serena por
um céu sem nuvens, banhando com seus raios os túmulos e os elegantes palácios da via Ápia, pouco antes tão
concorridos. U’a mulher, ou melhor, um fantasma em forma de mulher, caminhava em direção a Roma. Seu longo
cabelo ruivo caía-lhe sôbre os ombros, flutuando à mercê do vento da noite. Uma túnica preta presa na cintura por um
cinturão de aço era seu traje. Sua fronte era cercada por uma coroa de folhas secas. A mão direita apoiava-se num
báculo de abeto, e na esquerda podia ver-se uma varinha de metal, em cujo extremo figuravaa uma espécie de vaso
formado por cinco cabecinhas de víboras. Ia descalça e parecia muito cansada. Parou um momento. Aquela mulher,
extremamente morena, tinha uma formosura selvagem. Os olhos pretos como a noite, sombrios como o remorso,
agitavam-se nas órbitas lançando olhares ameaçadores. A fronte altiva e ampla, os lábios grossos e tingidos de um
carmim vivíssimo, o nariz perfeitamente delineado e reto, davam aquele semblante alguma coisa de lúgubre e medonho.
Dificilmente teria podido dizer-se a idade daquela viageira que, com passo moderado, percorria os túmulos da
via Ápia a tal hora da noite. De vez em quando erguia os olhos ao céu, e entreabrindo os lábios, um rugido de ira lhe
saia do peito. Mas, breve, com se um poder misterioso lhe houvesse castigado a soberba, exalava um gemido,
inclinando a fronte para a terra e murmurando estas palavras:
- Ai dos deuses do Olimpo de Homero! Ai dos áugures da cidade do Tibre! A lagoa Estígia agita as águas, a
esfinge de Gizet cai do seu pedestal e afunda-se nas areias do deserto. Ai de nós, que não podemos sentar-nos na trípode
do tempo de Delfos!.
Depois desta dolorosa lamentação exalava um suspiro profundo, extenso, e continuava o caminho, que
interrompera entre lamentos. Assim chegou a um túmul que se erguia solitário na borda do caminho, e sentou-se no
banco de pedra, e apoiou a fronte no mármore do mausoléu estremeceu ao sentir o contato da fronte da estrangeira; mas
ela, profundamente abismada na sua dolorosa meditação, não percebeu aquele acontecimento sobrenatural. A
estrangeira continuava exalando fundos suspiros, quando uma voz, que parecia romper do fundo do túmulo, lhe falou
assim:
- Quem vem perturbar com seus gemidos o sepulcral silêncio da morte?...
- Eu, disse a estrangeira erguendo-se.
- E quem és tu?
- Uma estrangeira que vem do centro do mundo, que deixou atrás de si o golfo de Corinto, e que caminha em
busca da orgulhosa Roma. Venho de Delfos.
- Viste o oráculo de Apolo, visitaste o templo da musas?
- Sim, mas quem és tu que me diriges a palavra do seio dum túmulo?
- A lua banha com sua luz clara a lápide mortuária do meu túmulo... lê se sabes.
A estrangeira desviou-se alguns passos do mausoléu, onde pode ver esta inscrição, gravada no mármore:

VIAJANTE:
DETÉM O PASSO, E SAÚDA AS CINZAS
DO CENSOR
ÊLE TRAÇOU O CAMINHO ONDE
TE ACHAS, E FZ, O AQUEDUTO DAS
ÁGUAS ÁPIAS. ROMA AGRADECIDA
LHE LEVANTOU ESTE MAUSOLÉU.
ADEUS. – APLAUDE

- Tu és Ápio, o censor, o que escreveu a lei das Doze Tábuas?


- Sabes se os romanos se regem ainda por elas?
- Ainda estão penduradas nos muros do Capitólio: teus contemporâneos as gravaram em doze tábuas de ouro.
- Em que ano nos achamos da fundação de Roma?
- No ano de 752.
- Então há quatrocentos anos que descanso neste túmulo. – Quem rege a república romana?
- Roma não tem república.
- E sofrem-no os patrícios!...
- Sim, porque o seu Imperador Otaviano Augusto é senhor do mundo.
A voz do túmulo guardou silêncio por um breve espaço; depois continuou deste modo:
- Quem és tu que tens o poder de agitar as minhas cinzas, e dar voz ao meu espiríto? Perteces à família dos
deuses?
- Sou a sibíla Cúmea.
- A sibíla Cúmea, a sibíla de Tarquínio abrindo os fossos do Capitólio sôbre a rocha Tarpeia, a vender os livros
sibilinos?
- Sou a mesma.
- Como gozas duma ancianidade tão dilatada? Não cortaram as Parcas o fio da tua vida?
- Sim, morri: o velhor Quiron conduziu minha alma pela lagoa Estígia; visitei a caverna da morte e vi as três
parcas: Laquesis, de cujos dedos brotam milhares de fios; Cloto, que sustenta eternamente o fuso; e Átropos, com suas

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incansáveis tesouras de diamante que cortam sem cessar o fio da vida. O meu caiu também sob o corte incansável da
sua arma fatal.
- Como, pois, ouço a tua voz, se deixaste de existir?
- Ah! respondeu a sibíla exalando doloroso lamento. Têmis ordenou a suas filhas que renovem por breves dias o
fio da minha existência; pois sou portadora da última missão do oráculo de Delfos, do divino Apolo, que já não
responde às perguntas que lhe fazem. Os deuses pagãos estremecem e caem derrotados dos seus pedestais, fugindo
precipitadamente para a caverna de Plutão, onde chorarão eternamente sua impotência. O Titã do Cáucaso, o ladrão
divino, o soberbo Prometeu, rompeu cadeias de diamante e viu morrer sôbre o seu ensanguentado peito o corvo
insaciável. Júpiter, rei dos deuses e dos homens, vacila no seu trono de marfim; o cetro cai-lhe das mãos; os raios
queimaram-lhe a fronte; a águia fecha as asas e a Formosa Ebe chora sem consolação, a seus pés. Juno, sua espôsa e
irmã a um tempo, não ouve os rogos das recém-casadas e afasta os olhos das mães primíparas. Minerva cerrou o livro
da sabedora. Vesta viu como espanto apagar-se o fogo sagrado. O escudo de Palas quebrou-se em três pedaços. Vênus,
filha do amor e da formosura, chora a ingratidão de Eros, seu cupido favorito. Réa viu morrer os leões do seu carro e
cair as torres da sua coroa. A serpente de Saturno já não morde a cauda, nem a foice está nas mãos dele. Diana percorre
os bosques atribulada, porque as suas flechas são impotentes contra os gamos. Marte sentiu mêdo no coração. A
formosa cabeleira de Apolo encaneceu numa noite; sua sonora lira quebrou, e as nove musas, filhas de Júpiter e
Mnemosine, choram amargamente percorrendo os montes Piério, Hélicon e Parnaso.
- Cessa, cessa! Exclamou a voz do túmulo, fantasma evocado do averno; espírito infernal, que vens turbar com
tuas palavras o tranquilo sono da morte. Vai-te, deixa-me repousar em paz e não te deleites em pintar-me a ruina dos
deuses do Olimpo.
A estrangeira pôs-se em pé soltou doloroso suspiro, e, tomando o caminho de Roma, disse:
- Dorme em paz, Ápio; mas, se a tua alma vagueia errante pelas regiões do desconhecido em busca dum perdão
que não podem conceder-te os deuses pagãos, dirige-a para Israel, terra prometida onde nasceu o verdadeiro Deus, o
Salvador do mundo, o Messias anunciado pelos Profetas.
- E que nome tem esse Deus?
- Jesus se chama; Redentor do mundo será.
Então ouviu-se um gemido no seio do túmulo; a lua escondeu-se atrás do recortes duma nuvem de Ápio Cláudio
Crasso, caiu ao chão feita em pedaços; os mármores estremeceram e a sibila Cúmea, inclinada a fronte para o chão,
apoiado o corpo no cajado que lhe servia de árrimo, encaminhou-se para Roma, pronunciando estas palavras:
- Ai dos deuses do Olimpo de Homero! Ai dos áugures da cidade do Tibre! A lagoa Estígia agita suas malditas
águas; a esfinge de Gizet cai do seu pedestal e afunda-se nas areias do deserto. Ai de nós, que não poderemos sentir-nos
na trípode do templo de Delfos!... Porque o Deus verdadeiro nasceu em Israel; porque o Redentor dos homens desceu à
terra para derrotar os deuses pagãos.

CAPÍTULO II

O ORÁCULO DE DELFOS

Enquanto a sibila Cúmea se encaminhava para Roma pela via Ápia, dois cavaleiros percorriam a larga rua de
Juno em direção ao monte Palatino. A julgar pelas manchas de barro que lhes salpicavam os flutuantes mantos e as ricas
peles de leopardo dos cavalos, a chuva devia tê-los incomodado pelo caminho.
Um dos cavaleiros era moço, teria vinte e quatro anos, de estatura mediana, e parecia distinto, pelo ar marcial e
desenvolto com que montava. Era de pálido e gracioso rosto, ainda que no conjunto se lhe notava certa rigidez nas
feições, lhe dava um ar sombrio e taciturno. A claridade da lua pôde ver-se que o mancebo levava uma cobra do
diâmetro de duas polegadas enroscada no pescoço, cuja chata cabeça acariciava de vez em quando com a mão ou com o
extremo inferior da barba, perfeitamente feita.
Chamava-se Tibério e era sobrinho de Augusto e estava destinado a ser imperador de Roma. O indivíduo que
cavalgava a seu lado parecia um atleta e chamava-se Macron; era o escravo favorito do futuro tirano, do que mais tarde,
baldão da humanidade, havia de matar u’a mãe porque chorava a morte do filho que lhe mandara degolar e havia de
arrancar os cabelos e soltar gritos de desespêro porque Cartúcio se matou no cárcere antes que lhe chegasse a nova da
morte do tirano.
Os dois cavaleiros chegaram ao pórtico do palácio de Augusto, e apearam. Os soldados do César rodearam os
forasteiros, estranhando-lhes a franqueza com que se introduziam no palácio do seu senhor a tal hora da noite.
- Que? Já me não conheceis, lobos caducos! Disse Tibério imperiosamente. Tão depressa se apagou da vossa
memória a fisionomia do sobrinho do vosso senhor? Nesse caso, aconselho-vos a que depositeis um coração de pomba
aos pés de Esculápio para que vós refresque a memória e vos abra os olhos.
Dizendo isto atirou as rédeas do cavalo ao escravo Macron.
- Saúde a Tibério, nosso general! exclamaram alguns soldados inclinando-se.
- Graças sejam dadas a Júpiter imortal, lhes respondeu Tibério.
E, tirando a cobra que se lhe enroscava no pescoço, a entregou ao escravo dizendo, depois de acariciá-la.

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- Macron, toma a minha favorita guarda-ª Meu ilustre tio sente, sem razão, repugnância para com êstes répteis.
Todos os grandes homens têm coisas pequenas. Júlio César, nosso parene escondia-se nos subterrâneos do palácio
quando as nuvens troavam sôbre Roma. Augusto, meu tio, estremeceu só à vista duma cobra.
Macron pôs com impassibilidade a cobra no peito, e, enquanto Tibério subia as largas escadas do palácio,
encaminhou-se para as cavalariças, seguido dos corcéis.
Quando Tibério chegou à antecâmara do imperador, disse lacônicamente a um dos litores que vio ao seu
encontro:
- Dize a César que Tibério está aqui.
- Meu querido tio tu quiseste que abandonasse a minha rocha solitária para me estabelecer no teu palácio de
Roma, e os teus desejos são ordens para Tibério. Aqui me tens, falou êle.
- Os anos começam a dobrar-me o corpo para a terra, querido sobrinho, lhe disse Augusto. Preciso dum braço
jovem e robusto que dirija o império depois da minha morte, e quero colocar-te na frente a coroa e nos ombros o meu
manto imperial.
- Eu sou o teu primeiro escravo, senhor, lhe disse; manda; mas preferiria a solidão da minha rocha de Rodes ao
bulício de Roma.
- Chamei-te, pois, continuou Augusto desatendendo as palavraas de Tibério, porque desejo instruir-se nos
deveres de um rei clemente e justiceiro. A paz, meu filho, deve ser o primeiro cuidado dos reis.
Tibério tornou a inclinar-se.
Estiveram falando por espaço duma hora. Augusto mandara que o sobrinho se estabelecesse no seu próprio
palácio numa câmara contígua à sua. Quando o imperador lhe disse que podia retirar-se, pois que no dia seguinte
continuariam a conversação, Tibério falou:
- Senhor, antes de nos separarmos quisera interceder por um desgraçado que geme num cárcere, na praia do
Ponto Euxino, recordando na sua solidão os encantos de Roma, os gôzos da via Ápia.
Augusto franziu o sobrolho: um olhar de cólera lhe passou como raio pelos olhos, sempre bondosos. Sua rugosa
mão travou do braço de seu sobrinho, apertando-o com uma força incrível para os seus anos; um tremor lhe agitou o
corpo, e depois, com uma pausa cruel disse, olhando com severidade a Tibério.
- Ovidio Nason, o poeta cínico, o corruptor da juventude romana, ainda que dotado por Apolo dum númem
fecundo e criador, morrerá encerrado nos cárceres de Sarmácia; não tornes a interceder em seu favor. Roma e os seus
prazeres não existem para êle.
Augusto despediu Tibério com um gesto. O imperador ficou um momento taciturno, com os braços curvados
sôbre o peito e os olhos no chão, como se o nome de Ovidio, o cantor inspirado da Ars amatória, de Medea e do poema
A Batalha de Acio, lhe houvesse evocado na mente dolorosas recordações.
Desse atitude veio tirá-lo um litor anunciando-lhe que uma mulher estranha e coberta de pó, que dizia vinda de
Delfos, mostrava grande empenho em falar-lhe, apesar do adiantado da hora.
- Que quer de mim essa estrangeira? perguntou o César.
- Diz que vem falar-lhe da parte do oráculo de Delfos.
Augusto estremeceu.
- Disse-te o nome?
- Sim, mas todos nos rimos; deve ser uma louca; diz que se chma a sibila Cúmea.
- Abri-lhe as portas, exclamou Augusto estremecendo; deixai passar a enviada do oráculo de Delfos.
Cúmea, apoiada no cajado, entrou na câmara do imperador. Oito litores com suas varas de sarmento na mão
ficaram junto da larga cortina da porta, como esperando a ordem do seu senhor. A sibila, com passo grave, fatídico,
misterioso, chegou a colocar-se até três côvados de Augusto.
- Tu já não és, Augusto, lhe disse Cúmea, com uma voz grave que parecia sair do túmulo, o rei mais poderoso e
grande da terra, porque nasceu o teu Senhor em Belém de Judá. Eis aqui a última revelação de Apolo, antes de
emudecer para sempre, antes de descer ao inferno para uma eternidade.
A sibila partiu a varinha de aço que levava na mão e as víboras de metal que lhe adornavam o extremo agitaram-
se; e, tirando um papiro enrolado, pô-lo nas mãos de Augusto. O César, sobressaltado, agitado desenrolou o papiro e
pôs-se a ler com voz insegura estes três versos, últimas palavras do oráculo de Delfos:

Me puer hebrae, divos Deus ipse gubernans,


Credere sedem jubet, tristemque reddire sub óreum.
Aris ergo lime tacitis abscedite nostris.

Apenas Augusto, pronunciara a última palavra dos três versos do oráculo, quando Cúmea, estendendo o braço
para o Oriente exclamou:
- De Israel brota a luz que há de dissipar as trevas. Ai dos cegos idólatras do Olimpo! Ai dos deuses pagãos!
Jesus mandou-os emudecer, e caem ante o seu glorioso nome dos soberbos pedestais para baixarem ao infernor!
Augusto apertava o papiro entre os dedos, tremendo ante o fatídico eco da sibila. Grossas gotas de suor lhe caíam
da fronte. Cúmea continuou:
- Já cumpri a última missão do oráculo; Átropos, corta o fio da minha existência!...
A sibila soltou um gemido doloroso, extenso. O cajado desprendeu-se-lhe das mãos; os olhos fecharam-se-lhe, e
caiu em cheio sôbre a alfombra.

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Augusto, espantado, saiu da estância apertando os fatídicos versos com mão trêmula. Os litores abalançaram-se a
levantar a sibila; mas, ao porém as mãos sobre o corpo de Cúmea, só acharam um esqueleto envolto no escuro roupão
que a cobria. O pânico apoderou-se dos servidores do César, e fugiram daquela estância. Entretanto Augusto chegava ao
camarim de Herodes; e o Idumeu, vendo-o entrar com o semblante descomposto, sentou-se os almofadões do leito,
sobressaltado.
- Dize-me, lhe disse o imperador sem lhe dar tempo, sabes alguma coisa desse Rei poderoso, desse novo Deus de
deuses que os oráculos dizem ter nascido em Belém de Judá?
Herodes, sossegando da surpresa que aquela visita lhe causava, explicou a Augusto a chegada dos caldeus a
Jerusalém, o rumor do povo hebreu, e as semanas de Daniel comentadas pelos rabinos. O César ficou pensativo, e disse:
- Tu, parte amanhã; procura-me êsse menino, êsse Jesus anunciado pelos profetas, e manda-o a Roma escoltado
como um Rei poderoso; quero que entre pela via triunfal no meu carro de ouro, quero tributar-lhe as honras do triunfo.
Herodes prometeu buscar aquele Menino e cumprir as ordens do César. Quando Augusto, pouco depois, se
deixava cair no leito, agitado e febricitante, com o papiro que encerrava os três versos do oráculo de Delfos na mão, um
litor, entrou para dizer-lhe que a sibila Cúmea tinha morrido.
- Pois bem, respondeu Augusto, enterrai o cadáver nos fossos da muralha, e não torneis a interromper-me; quero
está só.
- Senhor, tornou o litor com uma entoação que mostrava o mêdo de que se achava possuido, não é um cadáver, é
um esqueleto.
- Pois enterrai o esqueleto!
Os litores foram executar as ordens do César: mas o esqueleto da sibila Cúmea tinha desaparecido.

CAPÍTULO III

UM CORAÇÃO DE HIENA

Como acontece sempre, à noite sucedeu a luz da aurora, e Herodes abandonou a casa de Augusto para
empreender a viagem para Jerusalém seguido dos escravos, ainda sobressaltado com as últimas palavras do imperador.
O idumeu, astuto e precavido, havia solicitado do imperador, alegando a sua pouca saúde que o obrigava a permanecer
sentado a maior parte do dia, que a viagem se fizesse por mar, embarcando no Tibre. O César acedeu, e ordenou que as
galeras se achassem no embarcadeiro de Roma.
A acusação de seus filhos Aristóbulos e Alexandre, a conjuração de Antípatro e Paulo para o assassinar, tinham-
lhe feito conceber um desses planos ferozes que com tanta facilidade se arraigavam no seu perverso coração.
“Meus filhos, tinha dito consigo, conhecem-me, e durante a viagem por terra tentarão escapar-se, o que não é
muito difícil; mas por mar é outra coisa, pois ninguém me impede que os amarre à proa da galera, de onde não poderão
mover-se contra minha vontade”.
Herodes mandou conduzir seus filhos até às margens do Tibre numa liteira custodiada pelo seu fiel escravo e,
mandou embarcá-los na mesma galera que devia transportá-lo. As galeras esperavam a comitiva para celebrar as
cerimônias do costume antes da partida. As embarcações estavam ataviadasss como para uma festa. Multidão de
grinaldas de flôres e vistosas bandeiras pendiam do mastro grande, da proa e da popa. As três ordens de remeiros,
sentados nos bancos com as pás levantadas três côvados sôbre a amarelada superfície do rio, esperavam o sinal do
comitre para empreenderem a partida. Sôbre o castelo da popa achava-se o comandante, o piloto e o galinheiro. Este
tinha na mão uma gaiola em que se viam alguns pintos, animais indispensáveis para se celebrarem os auspícios...
Herodes subiu ao castelo da popa, e principioui a cerimônia, sem a qual não podia uma embarcação abandonar o
porto. O comitre descarregou uma forte pancada com o grosso bordão que tinha na mão sôbre uma tábua. Todos em pé
elevaram sua oração aos deuses imortais. Depois o galinheiro deitou dois punhados de trigo junto da gaiola e abriu as
portas, deixando em liberdade os inofensivos animais, que se atiraram com aavidez ao cobiçado grão. Então um ancião
venerável de branca barba e de estranho e vistoso traje se adiantou até colocar-se junto da gaiola. Estava vestido com
uma túnica listada de púrpura escarlate, prêsa por colchetes de ouro. Um barrete cônico de fundo branco com os signos
cabalísticos pretos lhe cobria a venerável cabeça. A sua dextra empunhava uma varinha curva de metal.
Êste ancião era uma áugure, espécie de sacerdotes encarregados de profetizar o futuro, por quem os romanos
tinham uma veneração sem limites.
Depois duma pequena pausa, durante a qual examinou com atenção como comiam os pintos, o ancião levantou
os olhos ao céu com fanática e supersticiosa atitude e, tocando um dos pintos com o extremo da vara, exclamou alto
para que o ouvissem os tripulantes das três galeras que se achavam ao redor:
Os pintos comem com avidez... o grão cái-lhe dos bicos espalhando-se pelo chão... Bom agouro!... Bom agouro!
Um grito de prazer ressou nas galeras. Então sacrificaram algumas vítimas, por felicidade da viagem. Se alguém
houvesse espirrado durante a cerimônia à esquerda do comandante, ou alguma andorinha houvesse passado, revoando
por cima da embarcação, suspender-se-ia viagem. Tal era, na época, o fanatismo dos romanos.

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O áugure, vendo que a cerimônia havia terminado sem interrupção e vendo além disso, o céu limpo e claro, deu
permissão ao chefe para que as galeras saissem do porto. Então o áugure foi transportado a margem numa espécie de
canoa, e durante a curta passagem acompanharam-no as beções e os brados dos tripulantes. Depois o comandante deu
ordem de partir. O comite deixou cair pela segunda vez o bastão sôbre a tábua, e as pás dos remeiros, como dirigidas
por uma só mão, caíram a um tempo nas águas do rio.
As galeras, empuxadas pela corrente e pelos remos, começaram a deslisar sôbre as amareladas águas do Tibre
em direção ao mar Tirreno. Apenas desembocavam no mar, armaram-se as velas, porque o vento era favorável.
Herodes estava deitado em moles almofadões dum toldo de tela, que se colocara para livrar o ilustre passageiro
dos raios do ardente sol de junho. Os dois filhos, viagiados por Cingo e seus companheiros, achavam-se na proa da
mesma galera. Ainda que o tribunal tivesse pronunciado a sentença em favor do pai, concedendo-lhe todos os bárbaros
privilégios da lei IV. Herodes, fingindo seguir os conselhos de Augusto, mostrara-se com seus filhos, durante os últimos
dias de permanência em Roma, de uma amabilidade tal que César julgou terminadas as questões enfadonhas de família.
Livre da conjuração de Paulo, graças ao incansável zêlo de Cingo e navegando para a costa, segurou da gente
que o escoltava, apenas a quilha da sua galera rasgou as águas do Mediterrâneo, mandou os escravos para maior
segurança porém uma cadeia ao pescoço de seus filhos.
O comandante da frota e o centurião Antônio olharam com repugnância aquele ato de barbaridade paternal, mas
não se atreveram a opor-se. Aristóbulo e Alexandre conheceram desde aquele momento o desastroso fim que os
guardava; mas, jovens e valentes não permitiram a seu pai ver-lhes nos lábios senão um sorriso de desprêzo.
A frota chegou sem tropêço, depois de alguns dias de viagem, à costa de Fenícia. Herodes viu do castelo da popa
da sua galera as altas cordilheiras do Líbano, e mandou que o piloto atracasse no porto de Berito, que se via a duas
milhas do mar, nas praias do Mediterrâneo ocidental. O piloto dirigiu a proa das embarcações para a costa e, um hora
depois os remadores, abandonando os bancos, atracaram os navios nas estacas e argolas do embarcadouro de Berito.
Herodes falou ao comandante da flotilha que queria seguir a viagem em liteira e, depois de distribuir uma
quantia considerável pelos tripulantes, desembarcou na praia, seguido de Antônio com a sua centúria. Então a escolta do
rei tributário e os habitanes de Berito, que tinham acudido atraídos pela curiosidade, presenciaram uma cena terrível,
cruel e inumana. Herodes achava-se deitado molemente nos almofadões da sua liteira falando com o escravo Cingo,
enquanto desembarcavam os cavalos da centúria que deviam escoltá-los até Jerusalém.
- Cumpre as minhas ordens, Cingo, e aviemo-nos, disse Herodes ao escravo; tenho desejo de entrar em
Jerusalém e ver meu filho Antípatro.
Cingo afastou-se da liteira e foi reunir-se com os escravos, que cuidavam das bagagens e dos presos, esperando
as ordens do amo. Sem que ninguém compreendesse o motivo, seis dos escravos, com maravilhosa rapidez, cravaram na
móvel areia uns cavaletes de madeira em forma de forcas, e, antes que os espectadore pudessem entender algo, aqueles
malvados, cegos instrumentos do feroz escalonita, lançaram um laço corrediço aos pescoços dos infelizes Alexandre e
Aristóbulo e arrastando-os com incrível ferocidade, os enforcaram à vista de todos, sem que ninguém se atrevesse a
evitar aquele ato de barbaridade.
Aqueles desgraçados príncipes lançaram horríveis maldições durante a prolongada agonia da sua morte. Mas seu
pai, em cujo coração não existia nenhum sentimento belo nem humanitário, presenciou a execução com indiferença. O
povo e os soldados romanos soltaram um grito de horror. Então Herodes, estendendo o corpo o mais que pôde pela
portinhola da liteira, exclamou com voz forte e vibrante:
- Romanos! Fenícios! Ouvi: esta é a justiça que o rei de Jerusalém manda fazer nas pessoas de seus rebeldes
filhos! Para Jericó!
Isto disse Herodes; suas palavras gelaram de espanto os ingênuos habitantes de Berito e os rudes soldados do
Capitólio. Depois correu as cortinas da liteira e deixou-se cair nos almofadões. A comitiva pôs-se em movimento pela
via Romana que atravessando a Galiléia e a Samaria, conduzia à cidade favorita do Idumeu.
Os dois cadáveres, pouco depois balanceavam-se em silêncio sôbre as areias da praia. Os corvos do Líbano
farejaram a carne morta e, abandonando suas côncavas rochas, começaram a revoar, soltando estridente grasnidos sôbre
as forcas.
O pai brindava-os para o festim com os cadáveres de seus filhos; mas os habitantes de Berito frustaram-lhes as
carnívoras esperanças, dando sepultura ignorada e humilde àqueles dois príncipes desventurados.

Herodes chegou à sua cidade favoritta. Durante o caminho Antônio e sua centúria, aterrados com a cruel
vingança daquele pai bárbaro, seguiram tristes a liteira do seu novo senhor como se fosse o cadáver dum general
querido, morto no campo da batalha. A ordem que tinham era de obedecer Herodes. Aqueles soldados rudes e curtidos
na guerra obedeciam sem replicar, mas com repugnância.
Quando o Idumeu chegou a Jericó, mandou Verutídio com a sua legião sobre Jerusalém, a cidade santa.
O general romano devia apoderar-se de Antípatro e transportá-lo a Jericó carregado de cadeiras; mas o príncipe
rebelde, sabendo que seu pai lhe frustara os planos, antes que os soldados romanos chegassem às muralhas de
Jerusalém, julgou-se perdido e saiu da cidade, disfarçado, durante a noite, e, graças à velocidade do cavalo, conseguiu
salvar-se do perigo que o ameaçava. Alguns cúmplices de Antípatro foram levados para os cárceres da tôrre Antônia,
corregados de ferro.
Quando o feroz Herodes soube que seu filho se evadira, teve um acesso de ira terrível. Aquele monstro,
esquecendo-se da dignidade real, rasgou os vestidos e, atacado de terríveis dores de estômago, que sofria, revolveu-se
pelo chão, lançando espuma e blasfemias. Mais que um monarca, parecia um porco, mais que um homem, assemelhava-

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se a uma besta imunda, devorada pelas mordeduras dos insetos venenosos. Quando o escalonita era atacado daqueles
acessos de furor, só duas pessoas se atreviam a falar-lhe: seu neto Aquiab e o seu escravo Cingo; porque era perigoso
tratá-lo naqueles momentos.
- Aquiab! Aquiab! Gritou-lhe o feroz Idumeu, cravando os espantados e vidrentos olhos no menino, que tremia
ao seu lado. Se algum dia chegares a pôr uma coroa na cabeça, lembra-te da história do Amúlio e Remo e Rõmulo...
Mata, meu filho, mata!... Porque os usurpadores sempre usurpam com o poder a vida aos reis.
O menino, que era o enfermeiro do avô, crendo que aqueles gritos eram filhos das agudas dores que sentia,
trêmulo e aturdido, pegou num copo, e, esvaziando nele o contéudo duma garrafa, foi oferecê-lo ao avô, dizendo:
- Bebe; isto te sossegará.
- Ah! exclamou o enfêrmo; tu também queres envenenar-me!
Esta desconfiança fez corar o jovem. Duas lágrimas se lhe desprenderam dos olhos, e como resposta aplicou aos
lábios o copo, bebendo metade do contéudo.
- Bebe, avôzinho, tornou a dizer-lhe.
Herodes, envergonhado, bebeu o resto do líquido, e depois disse, procurando ameigar a voz.
- Vai-te, Aquiab, vai-te! Quero estar só com Cingo.
O menino saiu, depois de beijar a testa do velho.
Então Herodes sentou-se, e, cravando os fosfóricos olhos em Cingo, disse-lhe, estendendo o braço para a porta:
- A Belém, Cingo! A Belém, e que não fique nem um belemita de dois anos para baixo em todos os seus
contornos! Sou o rei de Judá e quero que por minha morte a coroa passe a meus filhos e aos filhos de meus filhos!
Cingo saiu. O Idumeu, quando se viu só, murmurou:
- Augusto quer que lhe mande Jesus como um rei para lhe tributar as honras do triunfo... quererá dar-lhe a minha
coroa?
E começou a afagar a coroa que sempre tinha ao lado e a sorrir-se de modo feroz dizendo:
- Não irá a Roma, não irá a Roma: os mortos nem reinam, nem falam, nem se vingam.

CAPÍTULO IV

CÂNTICOS DE ALEGRIA

Cantal, aves do Oriente, das altas copas das árvores que vos servem de ninho. Estendeu as asas de variadas cores,
que já o zéfiro matinal roça com seus delicados beijos as vossas macias plumas. Rosas de Jericó, aromáticas ervas do
Carmelo, delicadas açucenas de Zabulon, violetas do Jordão, estendei sôbre a terra o perfume dos vossos cálices, porque
já a delicada aurora derrama sôbre vós o cristalino rocio que vos sustenta e aformoseia. Perfumai o ambiente, alindai a
terra, porque o céu puro e radiante se sorri sobre vós, a brisa murmura melancólica entre as verdes ramas das palmeiras
de Jerusalém.
Nunca dia tão belo, tão risonho, estendeu sôbre a fértil Palestina os seus radiantes esplendores, a sua poética e
formosa melodia. Os homens abandonam suas casas com o primeiro raio de sol que vêm saudá-los, e encaminham-se
alegres para os seus campos com o espírito tranquilo e o semblante risonho. Porque um céu sem nuvem espanta os
pesares; porque o sol quando nasce sem manchas que o obscurecem, sem nuvens que o ocultem, derrama sôbre os filhos
do trabalho um bem estar, uma alegria inexplicável.
A poética harmonia da manhã que nasce, ao inimitável canto das aves que a saudam, ao inebriante aroma das
flores que a perfumam, ao delicioso sopro da brisa que geme acariciando as copas das árvores, às nuvens de púrpura e
prata que precedem o sol, une-se para mais embelezar os encantos do dia, o alegre canto das mulheres de Belém e
Ramá, que ao som de pastoris instrumentos se dirigem prazenteiras e ataviadas par a cidade de Davi, como se fôssem à
festa dos asimos da cidade santa.
Onde se encaminham com os seus mais luxuosos trajes?... Porque levam todas um tenro infante nos braços que
sorri como a luz da aurora às doces carícias e aos alegres cantares de suas mães? Que novidade ocorre em Belém, que
por tôda parte se dirigem para o seu empinado cume as mulheres de Judá, cheias de prazer?
Um ancião envolto no largo e raiado alquicer dos habitantes da praia do Mar Vermelho seguia o caminho que
conduz à infecunda Idumeia; vê as mulheres que caminham para êle em sentido oposto. Os cantos, os gritos de alegria,
os risonhos semblantes chamam-lhe a atenção e detêm-lhe o passo. Apoiado no seu grosso bordão de cedro, para na
margem do caminho e espera-as.
- Mulheres de Judá, lhes diz com trêmulo acento,onde correis em alegre companhia tão de manhã, com vossos
tenros primogênitos nos braços?
- Ancião, responde a mais faladora de todas, quem ignora em Belém e seus arredores o regozijo das mães?
- Eu sou estrangeiro... Minha tenda levanta-se na Arábia Pétrea e hoje passo pelas tribos de Israel como as aves
de emigração em busca do ninho.
- Dirige os teus passos para o templo de Sion; vem conosco e te faremos participante da nossa imensa alegria.
- Não posso; meus filhos e minha espôsa esperam-me nas praias do mar Vermelho. Cada sol que morre arranca
uma lágrima a seus olhos... aquela lágrima é uma recordação tributada à minha memória... Mas contai-me o motivo do

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vosso contentamento, para que eu nos serões do inverno o refira a meus filhos quando ao calor da fogueira lhes narre as
aventuras das minhas viagens.
- Não podemos deter-nos; em Belém nos esperam antes que termine a vigília matutina: disso depende o futuro de
nossos filhos.
- Então não vos detenho... a paz seja convosco.
- Contigo vá, honrado estrangeiro.
O ancião encaminhou-se para os montes da Judéia. As mulheres alegres e jubilosas começaram a subir as faldas
do monte, em cujo topo descansa a pátria imortal de Davi, o santo berço de Jesus.
Retrocedamos algumas horas para sabermos a origem da alegria e contentamento das belemitas.
Ao cair da tarde do dia antecedente, Cingo, o feroz escravo de Herodes, chegou com um forte destacamento à
cidade de Belém. O bélico som da trombeta anunciou aos pacíficos belemitas que ia publicar-se algum edito do César
ou do seu rei Herodes. Não se enganavam: um arauto, com clara e vibrante voz, disse estas palavras que se foram
repetindo como um eco por todos os extremos da cidade:
“Eu, Herodes, rei da Judéia, governador geral das doze tribos de Israel, pelo presente edito, mando e ordeno: que
todas as mães de Belém e suas cercanias que tiveram filhos varões de idade de dois anos para baixo, que se apresentem
com seus filhos nos braços no átrio da piscina grande de Belém, amanhã, durante a vigília matutina para perceberem o
prêmio que me apras conceder-lhes pelo precioso dom de primogenitura que o Deus de Sion lhes concede para honra de
seus nomes e aumento e glória da sua raça. A mãe que, desobedecendo este edito, faltar à hora e ao lugar citado, será
castigada com a separação de seu filho. Cumpra-se minha real vontade. Eu, Herodes”.
Estas palavras percorreram a cidade de Davi e suas cercanias, enchendo de prazer os corações das mães, que
sonhram durante a noite no brilhante futuro que o seu rei destinava a seus filhos. Como faltar ao chamamento, quando a
pontualidade era premiada e a falta castigada com separação dos filhos? Mas aí, mães infelizes, que, desconhecendo a
inaudita barbaridade do rei, corriam jubilosas a pôr seus cândidos cordeiros sob o machado dos verdugos!
O lugar destinado para a horrível matança era um largo pátio, rodeado de muros. Cingo, o encarregado de levar a
efeito as ordens secretas do escalonita, rodeado dos seus terríveis companheiros, esperava o momento da matança. As
inocentes mães começaram a entrar no sangrento matadouro. Os meninos sorriam-se nos seus braços, e elas saudavam
com amabilidade os verdugos, mostrando-lhes prazenteiras o adorato fruto das suas entranhas; e assim foram chegando
uma após outra, até que se encheu o loca. Então Cingo estendeu um olhar de sangue sôbre aquele quadro de maternal
amor, que se agitava em tôrno de si; julgou chegado o momento de executar as ordens de seu senhor. U’a mãe se
aproximou para perguntar-lhe quando se lhe distribuiria o galardão prometido. Aquela infeliz levava dois meninos; o
menor dormia; o maior já de dois anos, sorria apoiado no seu braço.
- Quando se distribuem os prêmios, senhor? Perguntou a mãe inocente. Tenho pressa; os serviços de casa me
aguardam.
- Agora mesmo ficarás livre e senhora da tua vontade, respondeu Cingo; e, estendendo o nervudo braço, antes
que a mãe infeliz desse por isso, apoderou-se do tenro pimpolho, e arrancando-o do seu braço, arremessou de encontro
ao ângulo do muro.
A mãe abriu os olhos com espanto e, soltando um grito horrível, aterrador, caíu sem sentidos. Aquele grito foi o
sinal da matança.
Onde achar cores bastante poderosas para a bosquejar o quadro dos mártires belemitas, com a verdade horrível e
sangrenta, quando só com trazer à memória tão incompreensível barbaridade, exala um grito de espanto o coração e
uma lágrima de dor brota nos olhos? Sto. Agostinho, com o seu fecundo e poderoso gênio, sua santa e elevada
inspiração, com os inimitáveis rasgos da sua imortal pena, descreveu o quadro da degolação com uma verdade, com um
sentimento a que é mui difícil aproximar-se.
Ouçamos, pois, por um momento o africano convertido, o poderoso autor da Confissão e da Cidade de Deus. A
sua narração, é clara como a luz do dia, sintética como a dor, inspirada como as lágrimas que brotam das almas
doloridas. Diz assim:

CAPÍTULO V

LAMENTOS DE DOR

Grande martírio! Cruel espetáculo! Desembainha-se o alfange sem haver causa que o desembainhe.
Ensanguenta-se furiosa a inveja sem que ninguém lhe oponha resistência, e recebe a ternura dos golpes que não tinha
podido provocar. A amarga queixa das mães superava o triste gemido dos degolados cordeirinhos. Arrancava os cabelos
a infeliz mãe quando os ferozes verdugos lhe arrebatavam dos amorosos braços a metade da alma.
U’a mãe vendo desconsolada que, despadaçando-lhe a prenda do seu coração, a deixavam com vida, dizia ao
verdugo:
- “Para que me deixas? Se há culpa, essa é minha. Minha, não ouves? Se não há delito e é só pelo prazer de
matares, então junta o meu sangue ao de meu filho, e livra-me deste modo da dor que sinto.

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“Outra, aflita mãe dizia: A um buscais, e amuitas destruir; e a êsse que buscais nunca encontrareis. Outra infeliz,
apertando contra o dolorido coração o corpo ensanguentado do filho, exclamava levantando os chorosos olhos para o
céu:
- “Vem, já, Salvador do mundo! Por mais que te busquem a ninguém, temes: veja-te o tirano e não tire a vida a
nossos queridos filhos”.
Até aqui Sto. Agostinho.
O sangue inocente tingia a terra. A dor de algumas mães era tão intensa, tão terrível, que se sentavam no chão
com os despedaçados corpos dos filhos nos braços e começavam a embalá-los e a cantar-lhes para os adormecerem.
Aquelas desgraçadas tinha os olhos sem lágrimas, o sorriso nos lábios, e cantavam, porque tinham perdido a razão.
Outras, mais varonis e menos resignadas com a sua sorte, ao verem maltratados os queridos pedaços das suas entranhas,
arrojavam-se contra os verdugos como as panteras feridas, e caiam depois duma luta desesperada, afogadas no seu
sangue, sôbre o cadáver dos filhos.
Mais de sessenta belemitas sacrificadas ao furor de Herodes, jaziam degolados no largo do pátio da piscina. O
quadro era horrível, espantoso, sem exemplo. A história recorda-o como assombro.
A cruel matança tinha terminado, e os verdugos dispunham-se a abandonar aquele imenso bazar de sangue e dor,
quando viram uma mulher que se dirigia para aquele local com um menino nos braços. Aquela infeliz, ignorante do que
a esperava, ia-se aproximando-se para o matadouro dos inocentes entoando alegres cantares. De vez em quando elevava
à altura da fronte os delicados pézinhos do infante, apoiando-os sôbre o rosto e beijava-os. O menino ria-se das ternuras
que ela lhe manifestava. Cingo saiu ao encontro daquela mulher e, sem despregar os lábios estendeu a calosa mão e
agarrou o menino por uma perna. A inocente criaturinha ficou pendente da mão do verdugo com a cabeça para baixo. A
mão soltou um grito de surpresa; o menino rompeu em amargo choro.
- Ai de ti, miserável escravo, exclamou a mulher com as feições horrivelmente contraídas, se tocas num só
cabelo desse menino!
- Nada temas, lhe respondeu Cingo sorrindo-se dum modo feroz; quanto a êle, não me denunciará aos juízes de
Jerusalém.
- Treme, infame, tornou a mulher, a quem dois satélite de Cingo tinham segurado: êsse menino é o herdeiro da
coroa de Judá, é filho de rei, e está destinado a ocupar o trono.
Ao ouvir estas palavras, no escuro semblante de Cingo, brilhou uma alegria feroz.
- Ah! com que, êste menino é o Rei de Judá? Pois êste mesmo procuramos; o sangue derramado podia muito
bem ter-se evitado; e, fazendo girar o menino como um malinete sôbre a cabeça, o despediu pelo ar com toda a sua
fôrça.
Seus companheiros soltaram uma gargalhada horrível, e apararam nas mãos aquele corpo que o chefe lhes
enviara pelo ar. Um deles separou com a espada a tenra cabeça do inocente corpo, e apresentou-a ao cehfe, dobrando
um joelho o chão dizendo com incalculável cininos:
- Cingo, eu te apresento a cabeça dum rei: não te esqueças de me dar o galardão.
A infeliz mulher não pôde resistir ao sangrento espetáculo, e caíu de costas, sem sentidos.
Cingo atou a cabeça do menino numa ponta do manto, e saiu. As mães ficaram sós naquele lugar de horror e
sangue. Espantadas, chorosas, sem compreenderem o que lhe acontecia, permaneceram horas e horas junto dos restos
despadaçados dos filhos, como se mão poderosa as prendesse a pesar seu naquele lugar.
Chegou a noite, e a lua clara e formosa derramou a chuva de prata que lhe brota da fronte sôbre aquele campo de
sangue. Dir-se-ia que o astro luminoso das trevas por vontade suprema brilhava com mais claridade que nunca, para que
as almas dos belemitas chegassem ao céu guiados pelos seus tíbios e radiantes resplendores.
Os pais regressaram à casa, terminadas as quotidianas fadigas do campo. A sua dor, o seu assombro foi grande
ao saberem a horrível tragédia acontecida durante a sua ausência. Mas ai! Aqueles infelizes e indefesos lavradores, que
outra coisa podiam opôr ao furor de Herodes e ao poder dos romanos, que as suas lágrimas? Choraram.... sim, lágrimas
de fogo; lamentos de dor inexplicável se ouviram em Belém e suas cercanias, que chegaram até aos sepulcros dos
mortos; e êstes uniram as sus lágrimas e lamentos comos que lhes tinham sobrevivdo para presenciar a inexplicável
cena da degolação dos inocentes.
Belém, pátria de Davi, berço de Deus, foi a mãe dos primeiros mártires do Cristianismo.
O sorriso daqueles anjos, imolados pelo custeio dum rei sanguinário, cai ainda benéfico e fecundo como o rocio
matinal sôbre as flôres, adoçando as amarguras das almas cristãs que curvam a fronte ante o lenho santo que semeou a
fecunda semente da liberdade do homem, da caridade e da mansidão.

CAPÍTULO VI

• SANGUE NO ROSTO

Os verdugos de Belém chegaram à cidade santa ao cair da tarde. Cingo distribuia entre os seus ferozes
companheiros o preço do seu horrível morticínio, e aqueles miseráveis espalharam-se pela cidade, ansiosos por afogar
com os vapores do vinho o remorso do crime que acabavam de perpetrar.

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Naquela noite os habitantes de Jerusalém, a cujos ouvidos tinha chegado a notícia do sangrento drama,
presenciaram cenas de incrível cinismo. Os companheiros de Cingo percorriam as ruas ébrios, fazendo alarde da sua
brutal ferocidade, e disputando entre si o número de vítimas que imolara a sua cruel espada. Um deles mostrava o braço
coberto de feridas aos seus amigos, dizendo:
- Eu cortei vinte cabeças, vêde aqui os dentes das mães.
Os companheiros soltaram uma feroz gargalhada; mas no meio daquelas risadas selvagens, incompreensíveis,
flutuava uma coisa sombria. Era o terrível fantasma do remorso que cravara as envenenadas setas nos corações
daqueles miseráveis assassinos.
Mais tranquilo que os seus satélites, o escravo favorito encaminhou-se para o palácio de seu senhor. Como
sempre, penetrou no quarto de dormir de Herodes pela porta secreta. O Idumeu passeava agitado, quando Cingo entrou
na câmara. Um sorriso feroz lhe apareceu nos lábios.
- Cingo...
- Estás obedecido.
- Todos?
- Todos, respondeu o escravo com o seu acostumado laconismo.
Herodes exalou um suspiro do fundo do coração.
- Se havermos de dar crédito a uma das mulheres que ficaram chorando em Belém, tornou Cingo com uma frieza
cruel, o Rei de Judá não deve inspirar-te o menor receio: eis aqui a sua cabeça. E o escravo, desdobrando a ponta do
manto, apresentou a cabeça do menino que tão cruelmente arrebatara dos braços da última belemita.
Herodes pousou aquele membro insepulto sôbre u’a mesa, e começou a examiná-lo em silêncio. As envidraçadas
pupilas do Idumeu fitavam-se com estranha tenacidade no lívido semblante daquela cabeça ensanguentada. De vez em
quando esfregava os olhos, como se algume estorvo lhe impedisse de examinar à sua vontade aquelas feições
inanimadas.
- É estranho, murmurou, parece que já vi esta cara...
Cingo nada dizia. Orgulhoso por ter desempenhado tão fielmente a terrível missão de seu senhor, esperava
impassível a recompensa que, segundo o costume, devia seguir o serviço prestado.
Herodes, sempre preocupado com o exame da cabeça e como se uma dúvida o atormentasse, pegou pelos cabelos
ensanguentados o crânio do menino e aproximou-se da janela, como se quisesse, com os últimos raios do sol poente,
desvanecer as dúvidas que sentia. Neste momento ergue-se o pesado reposteiro que cobria a porta, e uma mulher pálida,
ensanguentada e com os olhos inchados, apresentou-se na sala.
A mulher soltou um rugido reconhecendo Cingo. Herodes voltou a cabeça.
- Tu aqui, Rebeca! perguntou o rei com estranheza.
- Sim... eu! Exclamou a mulher com um rouco e nervoso acento. Eu... que venho entregar ao rei de Jerusalém o
corpo de seu filho, para que o uma com a cabeça que tem nas mãos!
E Rebeca lançou aos pés de Herodes o mutilado tronco dum menino que levava escondido debaixo do manto.
- Ah! exclamou o Idumeu, retrocedendo alguns passos. Então esta cabeça?...
- É a de teu filho, do filho que confiaste aos meus cuidados, que eu alimentei com o leite do meu peito; teu filho,
que êste infame assassinou por ordem tua!
E Rebeca estendeu o braço na direção de Cingo.
Herodes soltou um grito e deixou cair a cabeça, que rolou pelo chão produzindo um ruído oco e frio. Depois
levou as mãos ao rosto para ocultar aos olhos o cadáver do último fruto do seu amor; porém aquelas mãos estavam
tintas com o seu próprio sangue, e aquele sangue manchou-lhe o rosto.
O escravo não despregou os lábios; esperava a sua sentença, e através da sua negra pele empalideceu. Rebeca,
qual a sombra do remorso, terrível, ameaçadora, permanecia no meio da sala, sempre com o braço estendido na direção
do etíope.
- Deixai-me! Deixai-me! gritou o rei com acento ameaçador depois de um momento; mais levai êsse corpo
ensanguentado da minha presença. Sua vista abrasa-me os olhos e faz-me arder o coração.
Rebeca levantou o destroçado corpo do menino, embrulhando-o na saia e depois lançando um olhar ameaçador
ao escravo, exclamou em tom profético.
- Ai do assassino dos primogênitos de Judá! Seu nome será maldito pelos séculos dos séculos, e na hora da sua
morte, as fúrias do inferno se deleitarão em despedaçar-lhe as entranhas com as línguas de fogo!
Rebeca saiu da câmara do rei, apertando contra o peito o cadáver do inocente mártir. Cingo ia também sair,
quando Herodes exclamou, levantado-se:
- Espera...
- Senhor, castiga-me; sou digno de tua cólera. E Cingo inclinou a cabeça, como se esperasse o golpe que devia
vingar o seu rei.
- Não temas, Cingo, a fatalidade colocou debaixo do fio da tua espada o pescoço de meu filho. Culpa é do deus
inimigo da minha raça, e não tua, mas escuta. O sangue derramado será inútil se não conseguirmos apoderar-nos do
filho de Zacarias e do rebelde Antípatro: ao teu zêlo confio a tranquilidade do meu reino. Corre, procura, não poupes
meio para que se realizem os meus desejos. Enquanto viverem João e Jesus, enquanto Antípatro gozar liberdade, e
coroa vacila-me na cabeça, o poder escapa-me das mãos... o punhal dos meus inimigos ameaça-me por tôda parte, o
meu sono é intranquilo, a minha vida uma agonia lenta e prolongada que me consome... Porque tu bem sabes, Cingo...
esta cruel moléstia que me devora alenta os meus inimigos... Para onde dirijo os olhos, vejo-os erguerem-se
ameaçadores cobiçando o meu cetro e os meus tesouros... Por tôdas as partes levanta a cabeça a conjuração. Os fariseus,

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os essénios, cada via mais terríveis e provocadores, conspiram até no templo de Sião e nas ruas da cidade santa. Esse
dois Meninos que se livraram do meu castigo, servem-lhes para concitar os ânimos dos israelitas. Mas tu destruíras a
esperança dos hebreus. Corre... corre... pois só em ti confio. Os romanos são indolentes... e fazem-se pagar mui caro os
serviços que me prestam... além de que, êstes negócios deve fazer-se em segrêdo e deve preferir-se a noite ao dia: é
mais calada.
Herodes deteve-se, seus encovados e envidraçados olhos fitaram-se de modo tenaz no impassível semblante do
escravo, como se quisesse surpreender o efeito de suas palavras; mas o etíope, acostumado a obedecer cegamente,
encaminhou-se para a porta. O rei deteve-o, travando-lhe o braço. Aquela familiaridade fez estremecer o escravo.
- Se tu consegues apresentar-me as cabeças de João e Jesus, prometo-te em recompensa um talento hebreu, e
devolvo-te a liberdade.
Herodes disse estas palavras vagarosamente e como deixando-as cair no coração de Cingo.
O escravo respondeu com impassibilidade:
- Éros, escravo de Marco Antonio, imortalizou o seu nome morrendo aos pés do seu senhor; a minha única
ambição é imortalizar o meu morrendo por ti.
Herodes estendeu uma das mãos áquele bravo e leal servidor, que não tinha outra vontade que a do seu amo.
Cingo beijou aquela mão o que rei estendia, e nos seus negros e penetrantes olhos, mas suas grosseiras e toscas feições
pôde distinguir-se claramente a imensa alegria em que transbordava o seu coração.
- Parte, e não esqueças que te espero.
- Nunca descanso quando o meu senhor me encarrega de alguma coisa.
O escravo saíu do aposento, caminhando de costas até à porta. O rei de Jerusalém ficou alguns momentos imóvel
no meio da câmara. De repente o semblante tornou-se-lhe lívido e desfigurado, os olhos escovaram-se-lhe, e todo o
corpo se lhe contraiu dum modo horrível. Algumas manchas de côr púrpurea lhe assomaram ao rosto, e a boca,
contraída pela dor, soltou um prolongado gemido. Levou as mãos ao estômago, e o corpo agitado por uma convulsão
nervosa, caiu sõbre a fofa almofada, gritando:
- Socorro... Socorro!... que morro!
Herodes revolvia-se pelo chão, como um condenado. Pela boca saiam-lhe borbotões de espuma, e um tremor
convulsivo lhe agitava o corpo. Dir-se-ia que o sôpro do inferno lhe queimava as entranhas. A família correu
precipitadamente e levou-o para o leito. Os médicos rodearam-no, prestando-lhe auxílio mas a moléstia havia se
declarado sem máscara; tinha um câncer no estômago, e êste horrivel mal havia de conduzí-lo ao sepulcro brevemente,
depois de o fazer padecer de modo incalculável.
Deus, farto dos crimes do feroz Idumeu, começava-o a castigar, dando-lhe uma agonia longa e dolorosa. A
Providência é muda, invisível; mas sua mão poderosa e santa reparte do céu os bens e os males com justiça
irrepreensível.

CAPÍTULO VII

PRELÚDIOS DA MORTE

Cingo era homem de clara e rápida imaginação para conceber e coordenar os golpes de mão que lhe incumbia
seu senhor. Bastavam-lhe alguns minutos para formar o plano que devia seguir na árdua missão que se lhe confiava.
Chegou ao andar baixo do palácio, e, percorrendo um corredor, entrou na estância destinada aos escravos. Uma vez ali,
escolheu quatro homens de sua confiança e mandou-lhes que tirassem das cavalariças cavalos e que deitassem sôbre os
ombros o alquicer dos comerciantes árabes, sem esquecerem o punhal damasceno no cinto.
Feitos os preparativos esperou impassível que o sol dobrasse as encostas do Ocidente, e então com o favor das
trevas saiu seguido dos seus satélites da cidade santa. Uma vez no campo, informou os companheiros da importante
missão que lhe havia confiado o rei; depois, com êsse silêncio que precede os assassinios, encaminharam-se para o sul
de Jerusalém, em busca da cidade de Ain, pátria do Batista.
Cingo havia calculado o modo de executar seu plano. Tinha dito consigo: João é estimado mais pelos israelitas
que Jesus: apoderemo-nos primeiro de João. Quanto a Antípatro, filho de Herodes tinha esperanças de o achar em
Jericó, em casa da escrava Enoé.
Ain dista só duas léguas compridas da cidade santa; mas como o caminho era montanhoso, e a noite escura, os
perseguidores do filho de Isabel chegaram quase no meio da noite aos arrabaldes da cidade. Cingo ordenou que um dos
seus companheiros ficasse guardando os cavalos num bosquezinho próximo da cidade, enquanto êle acompanhado dos
três restantes, se dirigia para a casa de Zacarias.
O terrível drama de Belém tinha aterrado as mães de Judá. Quando a noite cobriu com suas espesas sombras o
sangrento quadro, quando se acharam com os mutilados corpos dos filhos nos braços, sentados num dos cantos de suas
casas, quando seus ignorantes esposos regressaram do campo, ansiando por suavisar as fadigas dum dia de penoso e

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improbo trabalho, com o sorriso e os beijos de seus filhos, e encontraram a incrível realidade ante os absortos olhos, a
dôr, a desesperação, as lágrimas e os gritos de raiva e vingança foram incalculáveis.
Naquele mesmo dia, poucas horas antes, mal o sol raiara, êles tinham abandonado suas casas para se dirigirem ao
campo. “A manhã era formosa. O ambiente perfumado com ervas aromáticas do Carmelo, o céu azul e sereno de Judá,
o sorriso de seus filhos que nos braços de suas espôsas assomaram às janelas para lhe dizerem o adeus quotidiano, tudo
lhe anunviava um dia de trabalho, mas feliz e alegre.
Mas aquele céu sem nuvens, aquela manhã risonha tinha sido substituída por uma noite de dor, dor tanto mais
terrível, tanto mais inconsolável, quando estavam mui longe de esperar.
Mas ai! Aqueles pais desgraçados, aqueles infelizes israelitas acabaram por chorar, como suas espôsas, sôbre os
ensaguentados cadáveres dos filhos. Povo sem caudilho, raça envilecida pelo jugo estrangeiro, punhado de servos que a
orgulhosa Roma encadeava a seus pés, eram então os descendentes de Abraão, Isaac e Jacó.
Aquele povo privilegiado, aquela família de heróis escolhida por Deus para o berço do Verbo Divino, já não
contava entre seus filhos um Moisés que os ilustrasse, um Elias que fizesse chover fogo do céu sôbre os inimigos, um
Davi, que os elevasse, um Salomão que os enriquecesse e um Josué que, fazendo parar o sol na sua carreira, os cobrisse
com os louros do vencedor.
Seu último chefe, o heróico Judas, Macabeu, o famoso adailde de Israel, o caudilho invencível de Judá, ao
derramar a última gota de sangue pela independência de seu povo, tinha forjado as cadeiras às doze tribos de Israel, e
desde então a ignominiosa nódoa da escravidão se esculpia com opróbrio nas suas frontes abatidas.
As setenta semanas de Jacó tinham-se completado. O Mestre anunciado pelos Profetas descera dos céus. A raça
humana contava entre os seus filhos o Salvador do mundo. Mas os judeus esqueceram os seus Profetas, fecharam os
olhos à luz e os ouvidos à verdadeira e, escarrando na Santa face de Cristo, levantaram sôbre o Gólgota, um madeira
para o crucificarem.
U’a maldição terrível pesa desde então sôbre a miserável raça dos descridos. Sem pátria e sem lar, sem leis que
os protejam, sem templos santos que os admitam nos seus seios para implorarem ante Deus ofendido o perdão de suas
culpas; raça maldita e desprezível, sua sorte é vaguear errante pela larga superfície até a consumação dos séculos.

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Até à pacífica e tranquila habitação de Israel tinham chegado os dolorosos lamentos dos belemitas. A nobre
velha, temendo pela sorte do filho, comunicou seus temores a uma das suas criadas, que nascera em sua casa. Zacarias
achava-se em Jerusalém exercendo os ofícios de seu sacerdócio; mas Isabel não recúa no seu propósito, e, apenas o
último reflexo do dia desapareceu atrás das montanhas de Judá, abandonou o lar, levando nos braços o pequeno Batista
e, seguida de sua fiel criada, chegou ao Carmelo e estabeleceu-se numa das suas profundas e ignoradas grutas. Um
punhado de folhas secas serve de leito às duas mulheres e ao santo precursos de Cristo. Mas nada as arreda; ali ao
menos julgam-se livres do furor de Herodes.
Perguntam por João e a pergunta fica sem resposta, porque todos ignoram seu paradeiro, ameaçam com a morte
os criados, e estes lançam-se aos pés dos verdugos derramando lágrimas.
Cingo precisava duma vítima para aplacar a raiva do seu senhor. Pergunta pelo velho sacerdote e diz-se-lhe que
se acha de semana no templo de Jerusalém.
Parte de Ain, chega a Jerusalém, penetra na câmara de Herodes pela porta secreta com o fim de informar da sua
desgraçada missão, e detém-se ante o espetáculo que se lhe apresenta aos olhos.
O Idumeu estendido no leito, soltando blasfêmias entremeadas de dolorosos gemidos, revolve-se sôbre os
almofadões. Em poucas horas o semblante do enfêrmo desfigurou-se espantasomente. Seu corpo exala um cheiro
repugnante. Multidão de úlceras cancerosas lhe macham a lívida pelo do rosto. Um suor pegajoso, imundo, sulca a
fronte, e seus olhos encovados e embaciados dirigem, olhares vagos e amortecidos em tôrno de si. Salomé, sua irmã,
agita um leque de penas sôbre a cabeça do enfermo para refrescar a atmosfera, enquanto Aleixo, seu cunhado, borrifa de
vez em quando com essências olorosas a cama e o corpo de Herodes.
Num extremo da sala acham-se sentados quatro anciãos ao redor de uma mesa. Uma lâmpada de prata derrama
luz sôbre um grosso volume que se acha aberto. Esse anciãos são os médicos do rei que deliberam em voz baixa.
Ouçamos o que dizem:
- A moléstia descobriu-se por fim: é um câncer no estômago: o mal é terrível, incurável.
- Nunca devem perder-se as esperanças, replicou outro; o médico tem o dever de arrebatar a presa à morte.
- Nos nossos livros não existe o remédio para o câncer, tornou o primeiro.
Além do Jordão, tornou o segundo, acham-se os banhos quentes de Caliroe; suas águias, que vão cair no mar
Morto, são medicinais e gratas ao paladar: o meu parecer é que o rei se banhe em Caliroe. Se isto não o salva, então
preparem o lençol de linho para lhe envolver o corpo, porque a morte é certa.
- Ainda nos falta tentar, disse um outro, os banhos de azeite aromático. As úlceras da pele cerrarão, e o cheiro do
corpo desaparecerá.
- Tudo é inútil, replicou o primeiro; mas o nosso dever é aconselhar, e opto pelos banhos de Caliroe.
- O rei tem sessenta anos: com esta idade e com esta moléstia, o médico mais sábio só pode enganar a morte por
alguns dias; aconselhemos, pois, os banhos de Caliroe.
Este parecer, que foi o dum ancisão que não tinha despregado os lábios até então, foi aprovado pelos
companheiros e, depois de trocarem frases em voz baixa, um dos médicos aproximou-se do leito do enfêrmo.

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- Que opina a ciência, amigo Joaquim, deste pobre enfêrmo? Perguntou Herodes vendo acercar-se o médico
favorito.
- A ciência opina, senhor, que deves tomar os banhos de Caliroe.
- Mas eu sofro horrivelmente! É preciso que busqueis alguma coisa que minore os meus padecimentos. Se não
para que sois médicos? Para que vos pago, para que vos tenho em minha casa? Pedi ouro, mas daí-me saúde; já que
estudastes o remédio dos males do corpo, apagai este inferno que me devora as entranhas!
- A ciência aconselha os banhos.
- Mas a ciência responde-me pelos resultados?
- O futuro está nas mãos do Deus invisível.
- Deixais o meu corpo nos braços do acaso?
- Não; a prática é a nossa mestre, e ela nos aconselha o que nós te aconselhamos.
- Então não vês, desgraçado, que mal posso mover-me? Meu corpo incha a cada momento, as úlceras alargam a
cada instante, minha carne apodrece. Como queres que me ponha a caminho, se todos os tormentos do inferno nada
serão comparados com os que vou sofrer durante a jornada?
- Uma liteira conduzida pelos teus escravos pode transportar-te, sem que sofras com isso mais do que agora.
- Está bem, tornou Herodes, entrego-me nas vossas mãos; fazei de mim o que vos aprouver, mas salvai-me a
vida. Porque não quero morrer ainda... entendeis?
- Então manda que se prepare tudo para o novo sol.
- Ptolomeu! Ptolomeu! exclamou Herodes dirigindo a palavra ao velho guarda-selos; bem ouves, dispõe tudo: a
luz da aurora não deve suprender-nos em Jerusalém.
As ordens de Herodes nunca se demoravam; todos foram saindo da habitação para se prepararem para a jornada.
De vez em quando Herodes estremecia, e, cobrinho o rosto com a colcha, murmurava:
-Passai, ensanguentados fantasmas, não quero ver-vos, não quero... não, não, não!

CAPÍTULO VIII

A PROFANAÇÃO

O rei fico só, deitado no leito. A lâmpada lançava seus raios melancólicos sobre a face lívida e contraída do
enfêrmo. O semblante do Idumeu causava horror. Aquele enfêrmo, apesar do leito de marfim, das suas colchas do
Egito e dos almofadões de damasco, parecia um velho asqueroso e repugnante. O remorso imprime uma nódoa
espantosa no rosto do criminoso.
Cingo, que permanecera oculto atrás das pregas duma cortina, entrou na sala apenas viu que se achava só o seu
senhor. O escravo, andando nas pontas dos pés para não fazer barulho, acercou-se do leito do seu senhor.
Neste momento Herodes tinha os olhos fechados; parecia um cadáver. O escravo contemplou-o alguns instantes.
Aquele negro infame, homem cruel e sanguinário que imolava com o punhal assassino tôdas as vítimas que lhe indicava
o amo, parecia comovido ante o leito do senhor. Seus olhos humedeceram-se e um áspero e prolongado suspiro se
escapou de seus grossos lábios. O escravo adorava ao senhor. Seu amor sem limites o teria colocado como um deus no
altar de Sion; porque, para Cingo, o rei Herodes era tudo no mundo.
O enfêrmo abriu os olhos e viu a negra figura.
- Ah! És tu, meu leal Cingo, disse com voz desfalecida. Não sabes! Os médicos desconfiam, a ciência é
impotente, e deixam-me morrer, mas ai deles! O meu último suspiro será a sua sentença de morte.
- Senhor, lhe disse o escravo: se a saúde, se a vida pudesse transmitir-se como a riqueza, tua não morrerias,
porque eu te daria a minha vida e saúde para te salvar.
- Bem sei, Cingo, bem sei, tu és bom e leal; eu não te hei de esquecer na hora da minha morte.
- Vai-e e não te ocupes de outra coisa; a tua saúde é para mim mais que a liberdade e a fortuna.
- Tu não és meu escravo, és meu amigo, meu confidente.
- Senhor...
- Quando me vir livre desta horrível enfermidade, hei de nomear-te general das legiões herodianas, hei de dar-te
carta de homem livre, e terás um palácio em Jerusalém e outro em Jericó.
- Deixa-me teu escravo. Só ambiciono servir-te, ainda que esta noite me foi impossível cumprir as tuas ordens.
- Não te compreendo.
- Isabel, espôsa de Zacarias, fugiu de casa levando João.
- Para onde? perguntou Herodes assentando-se como se aquela notícia o houvesse curado dos padecimentos.
- Ignoro. Mas tenho um meio de descobrir o seu paradeiro.
- Fala.
- Zacarias é sacerdote. Acha-se de semana no templo.
- Na cidade?
- Sim, em Jerusalém.
- Que o pai nos indique o lugar onde se acha escondido o filho.
- Recusar-se-á: os israelitas são teimosos.
- Então... e Cingo afagou o cabo do seu punhal.

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- É verdade, Cingo; com êsses sonhadores eternos, com essa raça teimosa e atrevida de Abraão, os reis que
ocupam o trono de Jerusalém é preciso que joguem o todo pelo todo. Só a morte extermina os inimigos
irreconciliáveis... Mata, Cingo, mata, se for preciso.
Ao outro dia os aclamadores de ofício, os baixos herodianos que anelavam elevar seu senhor sõbre o altar do
santo templo como um deus saudaram Herodes com furiosos e repetidos vivas, apenas se apresentou na praça para se
dirigir aos banhos de Caliroe.
Herodes não era covarde; mas nos últimos dias da sua vida teve mêdo a dois fantasmas que se levantaram na sua
febril imaginação a toda a hora. Era a rebelião, que o cercava por todas as partes, e os meninos aclamados em voz baixa
pelos israelitas como os próximos libertadores das doze tribos. Isto tirava-lhe o sono.
Antes de deixar a cidade santa, quis mostrar às legiões a sua munificiência, o seu esplendor para com os leais
servidores do seu trono, distribuindo cinquenta drácmas a cada soldado e duzentas a cada capitão, sem contar muitos
dons que distribuia aos seus amigos.
Seguro por esta parte da fidelidade das suas legiões, porque o exército então clamava por seu senhor o que com
mais largueza pagava as aclamações, saiu da cidade santa seguido dum brilhante acompanhamento, no qual se achava
parte da sua família e os quatro médicos da câmara.
Cingo ficou em Jerusalém. O negro devia derramar sangue inocente e manchar com êle, a casa de Deus. O santo
sacerdote Zacarias, pai do Batista, sábio, preceptor da Virgem, estava sentenciado à morte.
Os verdugos não recuaram ante o horroroso e sacrílego crime. Cingo e seus infames companheiros
apresentaram-se no templo de Sion com o punhal homicida na dextra.
O velho sacerdote achava-se desempenhando os santos ofícios do átrio interior da casa de Jeová.
Os verdugos perguntaram-lhe por seu filho; êle que ignorava e seu paradeiro, respondeu ingenuamente que
estava em casa de Ain, e que se ali não se achava êle não o sabia.
Esta resposta singela e verídica foi tomada por uma negativa zombeteira e desprezadora, e o pobre velho caiu aos
pés dos assassinos, banhando no seu sangue inocente. Os fiéis fugiram com horror da casa de Deus ante aquela
assassinato sacrílego.
A notícia correu com a velocidade da desgraça por todos os cantos da cidade. Alguns pacíficos comerciantes
fecharam as lojas. As patrulhas de soldados romanos passeavam pelas ruas. Alguns mancebos mais atrevidos
mostravam aos soldados, em sinal de ameaça, os punhos fechados, porque aquele crime manchava a moradia de Deus,
enchia de espanto os medrosos, de ódio e vingança os valentes filhos da abatida raça de Israel.
Trinta anos, depois, esta morte sacrílega e injusta fez exclamar ao Mártir do Gólgota estas palavras: “Sôbre vós
cairá o sangue inocente derramado na terra; desde o do justo Abel, até o de Zacarias, a quem tiraste a vida entre o altar e
o templo”.
A morte de Zacarias foi o sangrento epílogo com que terminou a terrível tragédia dos mártires de Belém. O
sangue do justo, manchava os mármores da casa do Santo dos Santos.
Não estava longe o dia em que o sangue de Deus devia correr pelas ásperas ladeiras do Gólgota.

LIVRO SÉTIMO

A ÁGUIA DE OURO

CAPÍTULO I

A VIA SANGRENTA

Herodes chega a Caliroe, e os banhos daquela águas medicinais, tão célebres então, pioram-lhe a saúde.
Uma ordem real convoca todos os médicos da Palestina em tôrno do enfêrmo. A ciência discute, enquanto que o
mal caminha e devora o corpo. Por fim adota-se o banho de azeite aromático, e os escravos conduzem o senhor, do leito
ao banho; porém o miserável verdugo de Israel apenas é submergido no suave líquido, perde os sentidos, e os que o
rodeiam, crendo chegada a última hora, soltam desconsolados gritos.
A família e os médicos acodem: Herodes é quase um cadáver. Imediatamente é envolvido num lençol perfumado
e conduzido para o leito, e ali, à força de desvelos e cuidados, conseguem reanimá-lo e o enfêrmo, entreabrindo os olhos
vidrados, exala um apagado suspiro. Seus lábios lívidos agitam-se convulsivamente como se quisessem falar; mas todos
os esforços são inúteis. Por fim depoi duma hora de angustiosa e horrível luta, as palavras que se afogam na garganta
chegam líquidas à língua, e Herodes exclama com voz desfalecida:
- Tenho fome... muita fome... Daí-me alguma coisa que comer, porque morro.
Salomé consultou com um olhar os médicos; mas êstes que perderam a esperança de o salvar e que temem
desobedecer às ordens de um rei bárbaro e cruel que pode mandá-los degolar na sua presença, respondem que se lhe dê

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de comer tudo quanto quiser. Então os escravos assentam o rei no seu leito e servem-lhe um jantar esplêndido. Herodes
lança-se aos manjares. Quanto mais come mais sente fome e pede mais; aquele miserável, castigado pela culta mão de
Deus, inspira dó no último dos seus escravos. Finalmente, rendido deixa-se cair na cama, derribando sôbre a colcha as
viandas e o vinho.
Herodes estava ébrio e, na sua embriaguez, pede em altos gritos que o transportem para o seu palácio de Jericó.
Todos temem desobedecer-lhe, e as suas ordens, cumprem-se imediatamente. Chega a Jericó, mas em que estado!
Sua boca só se abre para blasfemar ou dizer que tem fome e sede. As extremidades incharam-lhe, e a pele
tornou-selhe lívida, não pode mover-se sem o auxílio dos escravos. Montões de bichos brotam das úlceras que lhe
mancham o rosto. Seu hálito pestífero mostra a podridão de que está cheio o corpo, e a sua respiração fatigada dá um
claro indício de que o câncer vai minando interiormente aquela existência que com penosas dores se despede do maldito
corpo que a encerra.
Proibe-se a entrada no quarto do rei a toda a gente; e os escravos; crendo que o seu senhor morreu, espalham esta
nova, que corre a Judéia, enchendo de júbilo quantos a ouvem.
Deixemos por alguns instantes Herodes sob a salvaguarda dos médicos, e fixemos a nossa atenção num cavaleiro
que a todo galope corre por uma das tortuosas e pedregosas veredas dos montes de Judá. Impossível é imaginar-se
caminho mais tétrico, mas sombrio, mais espantoso.
Profundos barrancos, rochas escarpadas que ameaçam a vida do viajante, profundas covas abertas no seio
daquelas áridas montanhas pelos espantosos abalos da terra, eterno e impenetrável refúgio dos bandidos árabes e das
selvagens feras, encontra por todas as partes o intranquilo olhar do viajante. A natureza não possui teatro mais
terrivelmente disposto para o crime que os barrancos das montanhas de Judá.
O punhal do assassino deu um nome àquelas solitárias veredas: a via sangrenta . O noturno cavaleiro parece
prático no caminho que percorre, e o cavalo inspira-lhe confiança completa, pois as rédeas lhe flutuam ao vento sôbre o
robusto e reluzente pescoço. De vez em quando o aéreo véu duma nuvem rompe-se, e um raio da lua cai do céu,
banhando com sua doce e prateada luz as escuras sinuosidades do caminho. Então o cavaleiro embuca-se no pano da
sua capa, como se temesse ser reconhecido por aquelas solitárias árvores e agrestes rochas que se erguem aos lados do
caminho.
O ardente corcel, alheio às comoções que agitam o coração do dono, que a tais horas da noite cruza tão
solitários caminhos, continúa galopando com incansável e impertubável regularidade.
Assim decorrem duas horas. O nobre animal mostra com seu penoso respirar que começa a sentir-se fatigado. Os
ilhais batem-lhe com precipitada violência, e um suor espumoso começa a manchar a fina pele do peito. De súbito o
cavaleiro, que lançou em torno de si um olhar escrutador para reconhecer o lugar em que se achava, pega nas rédeas,
puxa-as com fôrça para si, e o cavalo detém o galope; apoiando-se com fôrça sôbre o quarto traseiro, fica parado junto
dum espesso arbusto ao pé do qual nasce uma estreita senda que conduz a um barranco.
Deve ser aqui, murmurou em voz baixa o cavaleiro.
Depois põe pé em terra, e, passando as rédeas pelo braço direito, começa a descer em direção ao barranco,
seguido pelo dócil animal. Deste modo andaram cavaleiro e cavalo mais de quinhentos passos. Uma vez ali detiveram-
se.
O sítio não era por certo o mais a propósito para se visitar à meia noite. Achava-se no fundo de um precipício.
Multidão de choupos e espinheiros cresciam entre as gretadas rochas. Um monte em forma de ferradura cerrava a
passagem no extremo do barranco, e as duas paredes laterais daquela espécie de anfiteatro tinha uma elevação
prodigiosa.
As palmeiras, as sarças e as giestas eriçavam as empinadas fraldas dum espinheiro, ficou imóvel como se lhe
importasse reconhecer o terreno. Persuadido depois de alguns momentos de que era aquele o lugar que buscava,
começou a trepar pela empinada encosta que se erguia ante êle, cerando o barranco. Os primeiros cinquenta passos deu-
os sem dificuldade; porém, logo se viu obrigado a servir-se das mãos para não cair. De vez em quando suspendia a
penosa ascensão para tomar folego.
O suor caía-lhe em fio pela fronte, e algumas gôtas de sangue manchavam as pequenas e branca mãos do noturno
cavaleiro: mas nem um suspiro de cansaço, nem um grito de dor se escapava de seus lábios, quando, ao agarrar-se a
alguma rocha, um espinho lhe feria as mãos. Por tão penosa senda adiantava pouco, porque precipitar-se ou querere
vencer a distância com passo ligeiro teria sido despenhar-se.
O homem que por tal caminho viajava e a tais horas da noite, devia ser um desses homens de coração aos quais
não arredam nunca a fadiga nem o perigo, por grandes que se levantem. E, num desses curtos intervalos em que a lua,
rompendo as transparentes garças das nuvens, mandava um dos seus claros e argênteos raios sõbre as densas sombras da
terra, pôde ver-se que o noturno viajeiro era um jovem do rosto doce e delicado, sem buço, sem dureza no olhar, quase
uma criança, louro e branco como uma donzela do templo de Sion.
Pelo meio do monte se acharia na sua perigosa subida, quando se deteve, vendo que um arbusto arrancado das
entre-abertas rochas que lhe deram o ser, cedeu ao colocar sôbre ela a mão. Reconheceu segunda vez o terreno, e como
se aquilo houvesse sido um sinal, sentou-se numa pedra e tirando um pequeno tubo de metal, dentre as pregas do
vestido, levou-a à boca e pôs-se a tocar uma música hebraica muito em voga naqueles tempos, sobretudo na popular e
tradicional festa dos asmos.
Imediatamente um rouxinol cantou a poucos passos do cavaleiro; que se pôs em pé, e, como se o vomitasse a
terra, um homem se levantou dentre as matas.
O cavaleiro, ao ver levantar-se uma sombra ao seu lado, empunhou por precaução a espada que lhe pendia do
talim.

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- A águia tem asas, disse o homem aproximando-se do cavaleiro.
- E Abraão venábulos, respondeu êste como se fosse uma senha.
- Israel quer a saúde, tornou o homem.
- Porque está enfêrmo, o que a tira, respondeu o cavaleiro.
- Ajuda-me tu, repetiu o homem.
- Começa tu, disse o cavaleiro.
Então o homem deu alguns passos, e agachou-se, agarrando com seus robustos braços uma rocha. O cavaleiro
fez o mesmo. Pouco depois a boca duma gruta chou-se aberta antes êles.
- Entra, disse o homem; só tu faltas.
O cavaleiro entrou sem despregar os lábios naquele abismo que se lhe abria diante dos pés; mas a escuridão era
tão completa, que se deteve sem se atrever a dar um passo. Desta indecisão o tirou uma mão que na escuridão lhe travou
do braço e começou a conduzi-lo naquele negro e intrincado abismo.
O cavaleiro não pode dissimular um estremecimento nervoso que lhe produziu o contato daquela mão invisível.
- Tens mêdo? perguntou uma voz.
- Estremecer não é ter medo; julgava-me só, e a tua mão ao tocar-me o braço fez-me o efeito duma víbora; o leão
agita-se também quando um formiga lhe toca nas pálpebras.
- Mais vale assim, tornou a voz; pensava que te havia assustado.
- Gente dura é a que se alberga neste sítio.
- A rudeza nada tem que ver com o valor: guia e cala, que é o teu dever.
O homem invísivel cerrou os lábios e continuou a guiar o cavaleiro. Esta marcha subterrânea durou
proximadamente um quarto de hora. Por fim pararam, e o misterioso guia empurrou com o ombro o ângulo duma rocha,
que girou como montada sôbre um eixo.
- Entra, disse ao cavaleiro.
Este entrou numa caverna espaçosa alumiada por uma imensa lâmpada de ferro de três bicos.
A picareta dirigida pela mão do homem não tinha entrado na escavação daquela montanha, se se exceptuar a
porta giratória da entrada. Aquele subterrâneo de altas e arqueadas bóbadas alumiadas pelas oscilantes chamas da
lâmpada, era um desse silos, uma dessas cavernas que com tanta frequência se encontram nos montes de Israel, e que
tantas vezes serviram de refúgio, durante as contendas civis e religiosas do povo hebreu, aos bandidos, aos homens
livres, aos apóstolos da nova lei, e ultimamente aos cruzados e aos peregrinos cristãos.
Quando o cavaleiro entrou na espaçosa gruta, parou: ao princípio nada viu: mas pouco a pouco seus olhos,
percorrendo os largos âmbitos onde não chegavam os reflexos da luz, puderam distinguir um grupo de homens que,
sentados no chão, conversavam em voz baixa.
O viajante caminhou alguns passos, e ao ruído das suas pisadas os moradores da gruta voltaram a cabeça.
- É êle, disse um dos companheiros, e, todos se puseram em pé.
- Caudilhos de Israel, começo por pedir-vos perdão pela minha tardança, disse o cavaleiro saudando com uma
ligeira inclinação de cabeça; o homem que como eu é perseguido pelos cães de Herodes, não dispõe das horas, senão do
acaso.
- Sabemos, disse um dos homens da caverna, os perigos que te rodeiam, e desculpamos-te de todo o coração a
tardança de algumas horas.
- Eu vo-lo agradeço.
- Assim possa um dia agradecer-te a ti o povo hebreu.
- A sua felicidade será a minha se chegar a governá-lo.
- Senta-te entre nós, pois nós te admitimos como um irmão que vem derramar o sangue nas aras da liberdade da
pátria.
Os nosso leitores terão sem dúvida reconhecido no noturno cavaleiro Antípatro, o fugitivo filho de Herodes. O
jovem princípe sabia que a sua cabeça se achava posta à preço por seu pai, e procurava salva-la do perigo que a
ameaçava, buscando nas cavernas de Judá os rebeldes e encarniçados inimigos do seu perseguidor.
Antípatro, pois, tomou assento entre aqueles misteriosos revolucionários. Digno filho do rei de Jerusalém,
procurava uma coroa sem lhe importar passar por cima do corpo de seu pai, contando que o conseguisse, porque
Antípatro não desmentia a raça de Herodes. Tinha o mesmo sangue, os mesmos instintos, a mesma ferocidade.

CAPÍTULO II

A CONJURAÇÃO

Dissemos que eram quatro homens que se achavam na caverna esperando Antípatro, filho de Herodes. Três deles
são desconhecidos e passarão pelas páginas deste livro rápidos como uma exalação; o outro é conhecido, e
acompanhar-nos-á até ao cume do Calvário.
Os nomes dos desconhecidos são: Sedoc, Judas e Matias; são três doutores da Lei, e inimigos irreconciliáveis
dos romanos; o outro é o jovem bandido de Samaria, Dimas, o malfeitor, hospitaleiro da Virgem. Sedoc é assénio e tem
fama de adivinho entre a gente do povo; mas é apenas um velho que encaneceu no estudo e na meditação. Seu pai

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profetizou a Herodes, quando era menino, que seria rei de Jerusalém, e como esta profecia se realizou a família ficara
como hereditária; todos era adivinhos.
Josefo diz-nos que Herodes protegia os essénios e a explicação que disso nos dá é tão curiosa que merece ser
contada:
“Um assénio chamado Manaém viu Herodes estudar na escola com outros meninos da sua idade, e vaticinou-lhe
que chegaria a reinar algum dia sôbre os judeus; e como o jovem estudante hesitasse em crê-lo, Manaém, dando-lhe
uma pancadinha no ombro, recordou-lhe a sua palavra profética, traçou-lhe os deveres dum grande rei, e ao mesmo
tempo anunciou-lhe que a sua impiedade para com Deus e a sua injustiça para com os homens mancharia a prosperidade
e grandeza do seu império. Quando Herodes foi rei, lembrou-se da predição do essénio, e mandou-o chamar para
perguntar se reinaria pelo menos dez anos: Reinarás vinte, trinta, respondeu Manaém; e o novo soberano dos judeus
despediu o seu profeta com grandes honras, e desde então mostrou-se sempre mui favorável à comunidade essénia”.
Sedós era filho de Manaém, e a fama de seu pai ficara hereditária nele.
Judas e Matias tinha grande influência entre os discípulos, e quanto a Dimas, já o sabemos com a gente contava,
e a felicidade e respeito que pelo seu valor lhe tinha os seus soldados.
Informamos de quem eram os personagens da caverna, prossigamos a narração. Sedoc, o essénio, o mais velho,
foi quem rompeu o silêncio.
- Mancebo, tu que vens da cidade santa, dize-nos que se passa nela?
- Jerusalém chora como sempre, respondeu Antípatro; as filhas de Israel quebraram os saltérios e penduraram as
harpas no tronco das palmeiras.
- Os jerossolimitanos chorarão eternamente enquanto a águia dos ímpios estender as asas de ouro sôbre a casa de
Deus, disse Matias.
- A águia quebra-se e os ímpios exterminam-se, disse por sua vez Dimas.
- Não esqueçais que o povo e Israel teme as legiões do César, tornou Sedoc.
- Mas tende presente que o rei tributário se acha nas últimas horas de vida, disse Antípatro, que outro rei deve
substituí-lo quanto expire, e que eu sei respeitar a lei de Moisés e venerar o templo de Jeová, Deus invisível e
verdadeiro. Os bons tempos de Josué, Davi e Salomão ainda podem tornar para os descendentes de Jacó, se um rei justo
empunhar o cetro de Judá; eu venho oferecer-vos o meu sangue e os meus parciais para a empresa; dizei, pois, se me
admitis como amigo.
- Pensa, mancebo, que se Israel desembainhar a espada será a primeira vítima, teu pai, lhe disse Sedoc com voz
grave.
- Meu pai deve ter expirado a estas horas; mas no caso de viver no dia da batalha, por ventura não sacrificou êle
minha mãe e meus irmãos? Não me persegue com o intento de sacrificar-me? Pois então, cale a voz da natureza e fale o
ódio que busca na luta: olho por olho, dente por dente, como disse o legislador de Israel, o sábio Moisés.
- Irmãos, aceitais a fraternidade deste mancebo? perguntou Sedoc.
- Que jure sõbre as leis de Israel, disse Matias.
- Sim, que jure, repetiram Dimas e Judas.
- Seja, murmurou o essénio; levantando-se, encaminhou-se a um dos extremos da caverna, de onde voltou com o
volume da Lei da mão.
Êsse volume não era um livro, mas dois cilindros de madeira. Sedoc sentou-se de novo entre os companheiros, e
Matias desceu a lâmpada de modo que a chama banhasse com seus raios a fronte do ancião.
Então o essénio, pegando os cilindros pelas pequenas manivelas da parte posterior, levantou-os sôbre a cabeça e
começou a fazer girar as rodas de modo que o pergaminho ou papiro onde estavam escritas as leis de Moisés fossem
saindo dum cilindro e, depois de rolar-lhe pela fronte, iam esconder-se no outro cilindro. Esta operação fez-se com a
pausa suficiente para que Matias lesse os versículos hebraicos da lei em voz grave e pousada.
- Estas são, disse Sedoc, as principais leis do hebreus, que o Senhor Deus nosso reduziu a dez capítulos, e que
estão escritas nas Tábuas do profeta Moisés. Há um capítulo para cada dedo da mão; não os esqueças, revolve-os na
memória e escreve-os nas tábuas do teu peito.
Matias começou a ler as sábias leis espalhadas pelo sábio legislador do Sinai no Exodo e no Levítico.
Antípatro, sem levantar os olhos do chão, murmurava com imperativo fervor um amém no fim de cada versículo.
Sedoc, impassível, fazia girar o cilindro; e Judas e Dimas, imóveis como duas estátuas de pedra, só agitavam os lábios
para dizerem um assim seja logo que o eco da última letra do amém de Antípatro se perdia nas concavidades da
caverna.
Esta cerimônia durou pouco mais de uma hora, e por fim, o cilindro deixou de girar sob a vista de Sedoc; a
leitura da lei de Moisés tinha terminado, e Antípatro, pondo uma das mãos sôbre o volume que lhe apresentava o velho,
e outra sôbre o coração, jurou não faltar enquanto vivesse àqueles dez capítulos ditados por Jeová.
Então os quatro israelitas levantaram-se e, pondo as mãos sôbre a cabeça do jovem princípe, exclamaram:
- Já és nosso irmão... a tua carne é a nossa carne, como a nossa é a tua; e teu sangue nos será tão prezado desde
este dia como o que nos gira pelas veias.
- Apedrejado seja eu como os blasfemos, devorado pelos cães se veja o meu corpo como os réprobos, sem luz
fiquem os meus olhos, sem harmonia os meus ouvidos e sem palavras a minha língua, se faltar a essas leis do meu
Deus, que vi, ouvi e exaltei, tornou a murmurar Antípatro.
- Amém!... tornaram a dizer os quatros companheiros.
Depois, houve uma pausa. Os cinco conspiradores rezaram em voz baixa para que Deus santificasse aquele laço
fraternal que em prol da liberdade e da pátria acabavam de apertar.

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- Agora, disse o essénio, cada qual revele a seus irmãos aquilo com que conta para o dia do levantamento; e
dirigindo-se a Antípatro disse-lhe: fala tu primeiro que és o mais moço.
- Eu conto com a minha bolsa bastante repleta de moedas de ouro; com este dinheiro e a minha qualidade de
príncipe, creio reunir alguns parciais nas margens do Jordão, que arrisquem a vida a minha voz pela liberdade do povo
hebreu.
- Eu, disse Dimas, estarei onde me designeis com os meus terríveis companheiros samaritanos, disposto a morrer
à vossa voz.
- Pela minha parte ofereço, disse por sua vez Matias, os quarenta discípulos que recebem em Jerusalém a minha
inspiração. Gente moça e atrevida, fará o que eu lhe mande no momento do perigo; o seu Deus e a sua liberdade os
levarão ao combate com a espada na dextra, o sorriso nos lábios e a fé no coração.
- Eu também, replicou Judas, ofereço como Matias os meus discípulos, e respondo com a cabeça pelo seu valor e
patriotismo.
- Eu pela minha parte exaltarei os ânimos do povo jerosolimitano, exclamou Sedoc; e quando outra coisa não
possa êste pobre velho, derramará até à sua última gota o seu sangue pelo seu Deus e pela sua pátria. Agora só falta
marcar o dia, a hora e o lugar em que se deve dar o grito de liberdade.
- Tu és como o mais velho o mais prudente; a ti compete pois dirigir o movimento, disse Dimas.
- Permití-me que vos diga, meus irmãos, tornou Antípatro com melíflua voz, que a moléstia de meu pai poderia
auxiliar os nossos planos, e não devemos desprezar esta ocasião.
- Dentro de cinco dias, disse Sedoc, deve celebrar-se em Jerusalém a festa das sortes. Multidão de israelitas
acudirão de todas as partes para adorarem o seu Deus nos átrios do santo templo. Nesse dia como as cerimônias
hebraicas permitem que de toda parte cheguem forasteiros a Jerusalém, os soldados romanos e os herodianos dormem
tranquilos fiados na nossa fé. Nesse dia, pois, os nossos parciais, com a arma escondida entre as pregas dos mantos,
confundidos com a multidão que encherá as ruas, não é fácil nem que sejam reconhecidos nem que chamem a atenção
dos mercenários de Herodes: creio que o dia das sortes será conveniente par ao nosso plano...
Os quatro responderam afirmativamente com a cabeça.
- Seja o dia das sortes então já que, como a mim, vos apraz. Escolhamos a hora e a senha para darmos o grito de
rebelião. Quando o sumo sacerdote ler no livro de Ester aquele versículo que diz: “E assim foi enforcado Aman no
patíbulo que tinha preparado para Mardoquéu, e cessou a ira do rei”, então dos discípulos de Matias e Judas farão em
pedaçõs a águia de ouro que mancha a casa de Deus, e isto será o sinal do combate.
- Quando cair a águia que pousa sôbre o pórtico do templo, os meus soldados desembainharão a espada pela
pátria, exclamou Dimas entusiasmado.
- O mesmo prometemos à frente dos nossos discípulos derribar esse padrão de ignomínia que rouba o sono aos
judeus descendentes de Jacó.
- Agora, o Leão de Judá afie as garras como em outros tempos, e o glorioso estandarte dos Macabeus tremula,
agitado pela aura da liberdade, sôbre o abatido povo de Israel.
Os cinco conspiradores abandonaram a caverna depois de fazerem o segundo juramento. Era dia.
Então começaram a descer, não sem custo, pela encosta daquele escabroso e sombrio monte. Chegaram ao fundo
do barranco e detiveram-se. Ali deviam separar-se.
- Deus seja convosco, disseram uns aos outros.
- A celebração das sortes seja tão propícia aos judeus de agora, como o foi para os judeus no tempo de Ester,
exclamou Sedoc.
Depois Dimas, ligeiro como umgamo desapareceu da vista deles, dirigindo-se à Samaria. Antípatro, montado no
seu fogoso corcel, tomou o caminho de Jericó; e os três doutores da lei dirigiram-se com tranquilo passo á cidadae de
Jerusalém.

CAPÍTULO III

O TEMPLO DE SION

Enquanto o Eterno não concedia morada fixa aos judeus para lhe elevaem um templo estável, as doze tribos de
Israel serviram-se dum portátil, durante os seus longos anos de errante peregrinação.
O povo israelita não reconhecia então outro rei senão Deus. Moisés era a providência que o dirigia, transmitindo-
lhe as ordens de Jeová. Por isso erguiam no meio do seu acampamento o santo Tabernáculo, como a tenda de um rei. E,
em tôrno daquele templo improvisado com telas, peles e leves tábuas, colocavam nos arraiais dos levitas, e nos seus
quatro extremos plantavam as suas bandeiras, para proteger a casa de Deus, as valentes tribos de Judá, Ruben, Efraim e
Dan.
As oito tribos restantes dormiam tranquilas debaixo das suas tendas, vendo flutuar os estandartes sôbre as suas
cabeças.
Aquelas telas que agitavam o ar do deserto tinham esculpidas as insígnias das tribos. Judá ostentava um leão,
símbolo da fereza; Ruben um homem, como rei dos animais; Efraim, um boi, imagem da fôrça; e Dam uma águia com
uma serpente enroscada aos pés, imagem da astúcia e da sabedoria.

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Quando o sábio legislador mandava levantar os arraiais, os levitas desfaziam o templo com prodigiosa rapidez,
pois cada um tinha a seu cargo um pano ou uma tábua dos que formavam as paredes.
Chegou por fim o venturoso reinado de Davi. O jovem monarca conhece que o povo precisa duma cidade forte
que o defenda dos inimigos. Seu olhar de águia fita-se nas montanhas de Sion, de Acra e de Mória, como se fitava
pouco antes, armado da funda, na colossal figura de Golias, o gigante filisteu.
As escarpadas rochas do vale de Josafá atraem-no: fala às suas tribos, e oferece o posto de general do exército
ao primeiro que as escale, Joab, sobrinho do rei, escala o muro no meio duma nuvem de flechas, e a espada de Israel
degola a população jebusea. Davi fica senhor de Jerusalém; seu reinado cresce como se a mão invisível de Deus
derramasse sôbre seus vassalos os seus eternos dons, e o rei pensa em elevar um templo a Jeová.
Tudo está pronto: plantas e material; porém Davi morre, e seu filho Salomão tem a glória de pôr em obra o
pensamento do pai.
O monte Mória é escolhido para berço da casa de Deus e, sete anos depois, o templo de Sion brilha e refulge aos
raios do sol como um astro. Cinco séculos giram em tôrno dos seus soberbos muros, que caem convertidos em ruínas
ante os formidáveis soldados de Nabucodonosor. Os babilônios apoderam-se das riquezas do templo e, lançando uma
cadeia ao pescoço do desgraçado rei Joaquim, cegam-lhe os olhos e transportam-no cativo com o seu numerosopovo
israelita para a orgulhosa cidade dos sátrapas, onde o deus Belo é adorado.
Jeremias chora nos seus sentidos e poéticos cantos a escravidão de sua raça: mas enfim, Zorobabel alcança a
liberdade de seu povo, e torna à frente dele a estabelecer-se na cidade santa. Segundo templo se eleva no monte Mória
no mesmo lugar que o primeiro. Os israelitas acodem pressurosos a adorar o Deus invísivel ante seus sagrados altares;
mas o tempo, com seu poderoso hábito, desmorona seus altivos pórticos, seus soberbos muros.
Seis séculos descarregaram as tempestades, chuvas e furações sôbre o gigante de pedra que serve de morada ao
Deus de Sion, e Herodes o Grande cinge a fronte com a coroa tributária de Jerusalém, e torna a reedificá-lo tal como
vamos bosqueá-lo aos nossos leitores servindo de descrição que Josefo, o historiador judeu, nos deixou:
“Tinha o templo cem côvados de largo e cento e vinte de alto, altura que com o andar do tempo ficou reduzida a
cem côvados pelo desaprumo dos alicerces. Era de maravilhar a dureza e brancura das pedras do edifício, não menos
que as suas dimensões, pois tinham vinte e cinco côvados de comprimento, oito de altura e doze de largura.
“As artes tinham desenvolvido tôdas as suas riquezas na arquitetura daquele monumento, que parecia o palácio
dum rei e o mais famoso que ainda se viu debaixo do sol. Ricos tapetes recamados de flôres de púrpura decoravam os
pórticos; nas cornijas das colunas pendiam cepas de ouro com seus pâmpanos, e cachos. Tinha o templo dez portas;
quatro ao norte, quatro ao sul, duas ao oriente, e o lado que olhava ao ocidente estava tapado; tôdas de duas folhas, cada
uma com trinta côvados de altura e quinze de largura; estavam os quícios chapeados de ouro e prata; uma só o estava de
cobre de Corinto, mas aquele cobre superava em valor todos os metais; o frontispício do monumento, coalhado de ouro,
reluzia como brasa aos raios do sol nascente.
“O interior do templo, dividido em duas partes, assombrava pelo seu rico ornato: sôbre a porta do primeiro
recinto sagrado via-se uma vida de ouro, do tamanho de um homem, com cachos do mesmo metal; um tapete babilônico
de cinquenta côvados de altura e dezesseis de largura cobria as portas, por onde se passava para o segundo recinto; o
azul, a púrpura, o escarlate e o linho, mesclados naquele tapete, representavam os quatro elementos: o azul, o ar; a
púrpura, o mar de onde sai; o escarlate, o fogo; o linho a terra que o produz. Ajudada pela ciência, a arte havia
representado naquele grande véu o círculo da esfera celeste, menos os doze signos. Passado o seguindo recinto, e na
profundidade do templo, acha-se o Santo dos Santos.
“Rodeavam o templo, sustentadas por fortes paredes, largas e altas galerias. Um outeiro, a leste do monumento
religioso tinha-se convertido em terrado de quatro fachadas, cujas enormes pedras estavam unidas entre si com chumbo;
uma triple galeria, que atravessava profundo e dilatado vale ou precipício, ligava o templo com o bairro ocidental da
cidade; cento e sessenta e duas colunas da ordem corintia de vinte pés de circunferência cada uma, sustentavam em três
fileiras aquela triple galeria”.
Esta obra, que não fazemos mais que indicar incompletamente, porque ainda conhecendo os sítios nos é
impossível desentranhar a obscuridade da descrição que faz dela o historiador judeu, devia ser uma construção
prodigiosa.
“Ao norte do templo, a torre dos Asmoneus, reedificada por Herodes e semelhante ao seu palácio, tomou o nome
de Antônia, em memória do benfeitor do rei. Uma abóbada subterrânea conduzia da torre Antônia à porta oriental da
casa de Deus; nesta fortaleza era que se guardava a vestidura solene do sumo sacerdote sob os dois selos do pontífice e
do tesoureiro.
“No dia da dedicação do templo, Herodes, seu restaurador, oferecia pela sua parte trezentos bois em sacrifício.
Uma águia colocada sobre a porta principal do santuário perturbava a piedosa, alegria dos israelitas, forçados a devorar
como um ultrage aquele sinal profano”.
Com o maior gôsto ofereceríamos a iconografia do templo de Jerusalém para que os nossos leitores pudessem
fazer uma idéia mais aproximada do grandioso templo imortal, que recebeu no seu seio o Filho de Deus; mas a índole
do nosso livro não nos permite deter-nos nos pequenos pormenores descritivos, pelo que desistimos, contentando-nos
com o ligeiro bosquejo que fizemos.

CAPÍTULO IV

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A FESTA DAS SORTES

O sol estendia sôbre a cidade santa os puros raios da sua fronte numa manhã do mês de Adar, mês que
conservava nos anis de Israel um recordação de dor e outra de prazer; mês em que nos diasa 7 e 8 se jejua pela morte do
seu mestre Moisés, e a 14 e 15 se celebra a festa chamada Porim ou das Sortes, em memória de ter alcançado a bela
Ester do rei Assuero que revogasse a sentença de morte que contra os judeus de todas as partes havia assinado, por
conselho do seu favorito Aman.
O favorito tinha deitado sortes para ver o dia que devia começar a terrível matança; mas, felizmente para o povo
hebreu, a formosa rainha consegue salvá-lo do cutelo homicida e perder o iniciador de tão terrível pensamento.
Um povo imenso circulava pelas ruas. As casas eram insuficientes para albergar a multidão de forasteiros que
acudira para ouvir da boca do sumo sacerdote os belos versículos do livro de Ester, sua salvadora, que deviam ler-se no
santo templo. Apinhadas massas de homens, mulheres e crianças se encaminhavam para a cidade inferior, ansiosa por
encontrar um lugar comodo nos grandes átrios das nações, porque nesses dias de solenidade religiosa nem a todos era
permitido penetrar no atrio dos israelitas.
O pórtico oriental ou de Salomão parecia um imenso formigueiro que engulia aquela apinhada corrente de gente
que pela porta Susan se introduzia nos átrios, para se deter diante da segunda porta chamada Coríntia, diante da qual se
levantavam duas terríveis colunas, cujas latinas e gregas inscrições proibiam, sob pena de morte, penetrar no templo aos
gentios e imundos. Andando um pouco mais, a multidão teria encontrado a porta superior, e atrás desta o átrio dos
sacerdotes: mas naquele recinto era vedado ao povo penetrar. A alegria era geral e brilhava em todos os rostos. A gente
foi-se colocando o melhor que pôde e revestindo-se dessa paciência buliçosa do povo nas festividades que nada lhe
custavam, e esperava o aparecimento do sumo sacerdote.
Entretanto, não estava ociosa a multidão, pois os homens inscreviam com pedaços de carvão ou gesso sôbre os
bancos, e sôbre as pedras que levavam de propósito, um nome:êste nome era o de Aman; e as mulheres e crianças
começaram a agitar sôbre as cabeças pequenos maços de pau e martelos de ferro.
Chegou por fim a hora em que o sumo sacerdote devia começar a cerimônia. Era este um ancião de respeitável e
nobre semblante, alta e magestosa figura e vestia uma túnica talar côr de jacinto, guarnecida no extremo inferior de
sessenta e duas campanhas de ouro e outras tantas granadas que produziam sonido vibrante e harmonioso, ao menor
movimento do sacerdote.
Um pano de trinta centímetros, bordado de torçal branco, lhe cobria o peito, em cujo centro brilhavam de um
modo deslumbrante doze pedras preciosas com os nomes dos doze filhos de Jacó. Este rico peitoral era prêso na cintura
por duas fitas que marcavam o talhe e nos ombros por dois rosetões de ouro, onde também se viam incrustados os
nomes dos filhos de Jacó, de modo seguinte: no dia direita, os seis mais velhos e no da esquerda, os seis mais moços.
Terrminava este traje magestoso uma espécie de tiara ou barrete com uma lâminia de ouro cheia de inscrições hebraicas,
presa por uma fita de côr azulada. Nos pés nada levava, ia descalço.
O sacerdote abençoou o povo, e abrindo um volumoso livro que tinha na mão, dispôe-se a ler em voz alta. A
multidão guardou tal silêncio que, se um estrangeiro houvesse passado naquele momento pelas vizinhanças do templo,
o teria julgado desabitado. O sacerdote, com voz grave e pausada, falou desta maneira ao povo:
- Ouvi, ouvi, ouvi, o livro de Ester, filha de Abigail, sobrinha de Mardoqueu, da tribo de Benjamim, mulher de
Assuero, rei da Pérsia.
Aqui fez uma pausa e leu os dois primeiros capítulos do livro, no meio de religioso silêncio.
Enquanto a poética e interessante narração do livro de Ester só se reduzia à desobediência da rainha Vasti,
espôsa de Assuero, ao decreto para que as mulheres obedecessem a seus maridos, e à descrição da formosa judia que
arrebatou de amor o coração do monarca persa, ninguém se moveu do lugar; mas, ao chegar ao final do capítulo
terceiro, quando o favorito Aman, indignado de Mardoqueu não curvar a cabeça como um escravo, concebe um plano
de aconselhar ao seu senhor que extermine a raça judáica, e o rei seja o decreto; quando, depois de deitar sortes sôbre o
dia da matança fica consignado o dia treze do mês duodécimo, chamado Adar, e o sacerdote leu com as lágrimas nos
olhos o versículo 15, que diz: “Os correios que foram enviados apressaram-se a cumprir a ordem do rei, e logo se afixou
em Susan, côrte de Assuero, o edito na ocasião em que o rei e Aman celebravam um banquete, e todos os judeus que
havia na cidade estavam chorando”; então o sacerdote suspendeu a leitura, e todo o povo rompeu num lamento que
durou alguns minutos. As mulheres rasgavam os vestidos, os homens arrancavam os cabelos, os rapazes agitavam em
som de ameaça os martelos e os maços. Desde então, cada vez que dos lábios do leitor sacerdote saía o nome de Aman,
os assistentes descarregavam furiosas pancadas com os martelos sôbre o mesmo nome que pouco antes tinham inscrito
com carvão e gesso, exclamando todos:
- Sumido seja o teu nome: o nome do malvado seja destruído.
A dor dos judeus mudou-se em estrondosas alegria quando o sacerdote leu o versículo 10 do capítulo VIII que
diz: “E assim foi enforcado Aman no patíbulo que tinha preparado para Mardoqueu, e cessou a ira do rei”.
Tocava seu têrmo a leitura do livro de Ester quando um acontecimento veio perturbar a solenidade religiosa da
festa das sortes.
- Abaixo os ídolos dos ímpios! exclamaram várias vozes que figuravam sair da parte superior dos pórticos do
templo.
- O leão de Judá quer ser livre, responderam outras vozes que saíram da multidão que enchia o átrio das nações.

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Neste momento, a águia de ouro que Herodes colocara como uma baixa adulação a Roma sôbre a entrada
oriental do templo caiu, rolando em pedaços aos golpes de alguns jovens hebreus que, armados de martelo, tinham
subido ao alto pórtico. Um clamor universal se seguiu a este rasgo da audácia. Este grito tinha várias entoações: umas
de alegria, outras de assombro, as mais, de espanto. As mulheres, as crianças e os velhos fugiram com medo para suas
casas. Os soldados de Antípatro, os bandidos de Dimas e os discípulos de Sedoc, Matias e Judas, agruparam-se nos
átrios, e as espadas ocultas brilharam aos raios do sol. Por outra parte a curiosidade tinha formado seus grupos de
espectadores que esperavam o resultado daquele motim, indecisos ainda em tomar parte nele.
A notícia, como acontece sempre em semelantes casos, correu com rapidez por todos os âmbitos da cidade. Por
fim deteve-se no Palácio de Herodes, e foi pousar nos ouvidos de seu filho Arquelau e do seu general Verutídio. A
trombeta das legiões reuniu os soldados do Tibre. Verutídio e Arquelauu desembainharam as espadas e, montando a
cavalo, encaminharam-se para o lugar onde o motim começava a levantar a cabeça, com intenção de fazerem pagar caro
o atrevimento.
Apenas os soldados de Herodes apareceram diante do templo, os sediciosos agruparam-se em redor de seus
chefes. Os gritos tinham cessado; mas começara o perigo. Os valentes israelitas abarcaram com um olhar aquela legião
coberto de aço que se aproximava deles. Compreenderam o perigo que os ameaçava, pois os soldados legionários do
Idumeu eram o quíntuplo das suas forças.
Os inimigos podiam-lhes apresentar os largos escudos de couro ante a ponta dos punhais e eles só apresentavam
os peitos cobertos com a simples túnica, muro humano onde iam cravar-se para sairem ensanguentadas até ao punho as
cortadoras espadas dos romanos.
Dimas compreendeu que aquele batalhão de aguerridos soldados que avançava para eles com o seu aspecto
marcial e ameaçador podia esfriar o valor dos companheiros. O sangue excita os combatentes; o estrondo das armas, os
gritos dos que lutam no combate, reanimam o valor, e Dimas conhecia tudo isso e receioso de que os seus parciais
retrocedessem ante o perigo, tirando o comprido punhal com a mão esquerda, arremessou com toda força a azagaia, a
qual foi cravar-se no peito de um centurião que caminhava adiante dos soldados do Capitólio. O Centurião soltou um
grito e caiu, banhado em sangue, do seu cavalo. Aquele grito foi o sinal do combate.
Os israelitas detiveram a primeira investida dos romanos; de ambas as partes se faziam esforços de valor: Israel
defendia à casa do seu Deus; Roma lutava por vencer os profanadores da sua águia triunfadora. O sangue corria com
abundância pelos átrios.
Aquela luta era o último esforço de um povo que combate pela sua liberdade; a última tentataiva do escravo
desfalecido para arrancar a pesada cadeia que o sujeita ao despótico jugo de seu tirano opressor. A luta, era desesperada,
raivosa, sem quartel. O ferido não tinha quer esperar clemência do vencedor, porque era inútil.
Por fim os israelitas foram cedendo ante a força numérica dos romanos. Alguns combatentes, vendo a
superioridade dos inimigos, começaram a buscar a salvação na fuga. Antípatro foi um dos primeiros a abandonar
vergonhosamente o campo de batalha. Aquele príncipe efeminado e sedicioso perdia pela sua falta de valor uma coroa e
arriscava a vida, que o medo lhe fez olhar naquele instante com mais afeição do que devia.
Um hora de luta encarniçada bastou aos soldados de Herodes para provarem aos sediciosos israelitas que o seu
plano malograra. Mais de cem homens se revolviam pelo chão, manchados com o sangue que lhes manava das feridas.
Quando o home se persuade de que é impotente contra o perigo que o ameaça, o valor apaga-se e a idéia da
salvação individual toma grandes proporções no ânimo. A Dimas bastou um olhar para compreender que tudo se tinha
perdido, e, tirando uma trompa de caça que lhe pendia da cinta, aplicou-a aos lábios. Aquele som reuniu em torno dele
como por encanto todos os soldados da sua companhia que restavam com vida.
- Tudo se perdeu, disse com raivoso acento. Para Samaria, para Samaria! Siga-me quem puder; e, derribando
com o terrível punhal quantos se achavam na passagem saiu do templo seguido dos seus companheiros e abandonou a
cidade.
Pouco depois tudo tinha terminado.
Os habitantes de Jerusalém chegavam-se com medo às janelas para verem passar uma legião de herodianos que
conduziam entre duas fileiras de lanças, Sedoc, Judas e Matias, e quarenta dos seus valentes discípulos. Estes mártires
da liberdade caminhavam carregados de cadeias, com o traje em desordem, o rosto decomposto e manchados com o
sangue dos seus vencedores.
Arquelau e Verutídio caminhavam à frente da coluna, iam a Jericó apresentar ao terrível Herodes os prisioneiros
de guerra, aqueles infelizes de quem Deus era a sua única esperança; mas essa esperança é a última do crente; por isso
cai como um bálsamo santo sobre o coração dos desgraçados.

CAPÍTULO V

A CLEMÊNCIA DE HERODES

No dia seguinte, quando o rei enfêrmo sou que os revoltosos de Jerusalém carregados de cadeias no hipódromo
de Jericó esperavam as suas ordens, mandou que o vestissem e o transportassem numa liteira aonde estavam os
prisioneiros.

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Herodes, cruel por natureza, sanguinário por prazes, quis cerva-se na dor daquele punhado de israelitas. Sedoc,
Matias e Judas alentavam o desfalecido espírito dos seus discípulos que, moços e cheios de vida, começavam a
empalidecer ante a morte que lhes pairava sobre as cabeças.
A chegada de Herodes causou desagradável impressão nos prisioneiros. O séquito real deteve-se a poucos passos
do grupo dos rebeldes e Cingo descerrou as vermelhas cortinas de seda de Tiro que fechavam a liteira, para que o seu
senhor estendesse a cabeça.
- São aqueles? perguntou o rei do escravo, de um modo desprezador?
- Não vejo meu filho.
- Evadiu-se! Sabes que essa palavra me incomoda? Vejo com dor que te tornas desastrado nos negócios
importantes.
- Quando a peça se perde, o podengo não desespera enquanto não perdeu o rasto.
- De modo que tu tens o rasto?
- Ainda mais, senhor; espero topar com o javali dentro em pouco, esta noite.
- Pois se tal fôr a tua fortuna, encerra-o bem e avisa-me logo. Mas não esqueças de que nós, os velhos, temos
alguma coisa de criança, e nos agastamos quando não cumprem o que nos prometem.
Cingo saudou e Herodes dirigiu o olhar para o grupo dos prisioneiros.
- Ingratos! exclamou depois duma pausa, com uma entoação sentida e bondosaa como a que costumam empregar
os pais para repreender algumas inconveniências do filho a quem mais querem. Ingratos! Eis a paga que recebo, em
troca dos benefícios que derramo às mãos cheias sobre eles. Eu reedifiquei o seu templo, eu abro os meus celeiros
quando a fome os cerva ameaçadora e cruel, eu sacrifico com a fé do crente ante o altar do Deus invisível dos seus
maiores, eu tenho esgotado os meus tesouros para pensionar os seus poetas, levantar teatros, circos e cidades,
engrandecendo com o auxílio da arte a terra de Israel; e eles, filho desnaturados, rebelam-se contra seu pai enfermo,
com uma ingratdião incrível... A minha mão benfeitora, sempre estendida para semear o bem, esperava uma lágrima de
agradecimento e um beijo de afeto... e como víboras cruéis vêm cravar o seu venenoso ferrão, empeçonhando os
últimos dias da minha vida.. Deus o quer!
Herodes soltou um suspiro. Os prisioneiros, ante aquela doce e paternal reconvenção do seu senhor, sentiram-se
tão comovidos que, agrupando-se em derredor da liteira, se lançaram aos pés do rei, pedindo o perdão das suas culpas.
Sedoc, que não tinha inclinado a orgulhosa fronte ante Herodes, admirado da estranha clemência daquele tirano, dirigiu-
lhe a palavra dessa maneira:
- Eu sou Sedoc, filho de Manaém, o advinho, e agradeço-te em nome destes moços que se prostram a teus pés
admirados da tua real clemência.
- Ah! exclamou o Idumeu fitando o penetrante olhar naquele velho. Por ventura possuis tu o mesmo dom de teu
pai? És, como ele, desses inspirados que vaticinam o futuro e leem no misterioso livro do porvir?
- Assim o crê o povo, respondeu o essénio.
Sedoc deu alguns passos e tornou a deter-se.
Seu olhar de águia abrangeu com tenacidade o cadavérico rosto de Herodes, fez uma leve pausa como se
decifrasse um enigma e depois, estendendo a mão, disse com voz profética:
- A página da tua vida apresenta-se muito escura no porvir; as letras estão apagadas, mas observo um sinal que
me diz que antes que a lua nova apareça em todo o seu esplendor sobre as tranquilas águas de Tiberiades, exalarás o
último sôpro da tua vida.
Herodes guardou silêncio. Dir-se-ia que a profecia de Sedoc tinha lhe aniquilado a língua. Teve medo daquele
que, percursor da morte, se erguia ante ela para lhe apontar a cova. O pai tinha-lhe profetizado uma coroa; o filho, o
sepulcro.
O Idumeu lançou um punhado de moedas de prata sobre aqueles infelizaes que tremiam a seus pés e deu ordem
que o conduzissem ao seu palácio. Ao sair do circo, o rei agitou o lenço em sinal de perdão. Os conspiradores soltaram
um grito de alegria; mas aquela clemência de Herodes era um cruel sarcasmo, uma sangrenta burla.
O infame Idumeu mostrava-lhes o céu só pelo prazer de os abismar no inferno; oferecia-lhes uma esperança para
lhes tornar mais amargo o desengano. Porque nos sanguinários cálculos do verdugo de Mariana jamais entrara o perdoar
os rebeldes israelitas. Por isso, esquecendo os seus padecimentos, preocupado com uma idéia de sangue, tão frequente
nele, chegou ao palácio e chamou o guarda-selos, dizendo:
- Ouve, Ptolomeu: que pena te parece que devia impor-se a êsses rebeldes?
- A clemência é a maior virtude dos reis, lhe respondeu o velho servirdor.
- Sim, ouviu-o dizer, a clemência é uma grande coisa; mas com o carater dos hebreus, a clemência é um
inconveniente.
- Salomão disse que a benevolência é como o rócio, tornou Ptolomeu.
Herodes dirigiu-lhe um olhar terrível, que fez tremer o guarda-selos.
- Salomão, disse com entoação fria o cruel Herodes, era um sábio, e pensava como costuma pensar essa família
de loucos pacíficos que divagam pelas ruas, e que o vulgo denomina com a palavra de sábios; mas eu não tenho talento:
mais que um homem de letras, sou de armas; e o meu dever é castigar a rebelião que levanta a cabeça para perturbar a
paz dos seus súditos.
- Tu és o nosso senhor, tua vontade é lei: manda e serás obedecido.
Ptolomeu disse estas palavras com todo o medo que poderia dize-las um cortesão que vê em risco a sua vida.
- Quantos são os sediciosos? perguntou Herodes depois duma pausa.
- Cerca de oitenta.

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- Pois olha, escolhe quarenta, os que mais te incomodem, e fá-los morrer asseteados no hipódromo, quanto aos
três chefes da expedição, o mais prudente é queimá-los vivos e espalhar depois as cinzas. A má semente convém
exterminar pela raiz.
Ptolomeu dispunha-se a abandonar o quarto do rei, receioso de que terrível sentença o alcançasse quando
Herodes o deteve:
- Ah! esquecia-me. Os outros podes deixar livres para que apregoem a clemência de Herodes. Vai e dize aos
meus escravos que me sirvam a ceia.
O guarda-selos saiu da câmara real, e meia hora depois o rei ceiava tranquilamente com seu filho Arquelau, seu
neto Aquiab e o seu general Verutídio.
As ordens de Herodes foram cumpridas no dia seguinte. Os primeiros alvores do crepúsculo oriental cairam
sobre o circo de Jericó, banhando as altas colunas do real edifício levantado com o ouro de Herodes para entreter a
plebe com os ferozes espetáculos que tanto entusiasmavam o povo do Tibre.
O inocente canto das aves juntou-se com os dolorosos gemidos dos quarenta discípulos, que por espaço de duas
horas serviram de alvo aos atiradores herodianos. Sedoc, Matias e Judas foram queimados na presença dos
companheiros. O feroz idumeu tinha lavado com um mar de sangue o insulto que os israelits haviam feito a Roma.
Pouco depois, quando o morticínio de Berito, Belém e Jericó chegou a saber-se no Capitólio, quando o clemente
César soube que Herodes, depois de assassinar seus filhos, degolava os primogênitos da cidade de Davi, o ilustre
vencedor de Cléopatra, o prudente imperador dos romanos, exclamou com indignação estas palavras que a história
consignou como um padrão de infâmia que mancha as páginas do tempestuoso reinado de Herodes.
- Esse miserável com coroa é um infame sem coração. Vale mais ser porco que filho de Herodes.
Deixemos o rei ceiando na sua câmara, rodeado dos filhos e do general, e sigamos Cingo que caminha
favorecido pela escuridão da noite por uma das ruas desertas de Jericó.
O escravo vai só e envolto num manto cinzento, que enrola à maneira de alquicer na sua enorme e áspera cabeça.
A cinquenta passos, e seguindo o mesmo caminho, destacavam-se quatro vultos entre as sombras da rua. Todos
caminhavam sem fazer bulha,, como as cobras que deslizam pelas margens do rio para surpreender os ninhos das
cercetas.
O escravo para diante duma porta de mesquinha aparência, e apalpa com as mãos as tábuas como procurar
fechadura. Então, com um instrumento começar a forcejar, mas sem que o mais leve ruído, interrompa a silenciosa
tranquilidade da noite. A porta cede e fica aberta diante do etíope.
As quatro sombras reunem-se com o negro, e este diz em voz baixa:
- Entremos.
Os punhais brilham nas mãos dos misteriosos companheiros de Cingo, e imediatamente desaparecem todos no
estreito e escuro corredor que comunica com o interior da casa.
Cingo detem-se e, aplicando os lábios no ouvido de um dos companheiros, murmura uma frase que só aquele a
quem é dirigida pode ouvir.
Êsse deteve, tornou a desandar o andado, e, embuçando-se no manto, foi sentar-se de cócoras sobre o tosco
degrau da porta.
Os outros quatro seguiram avante, caminhando pelo escuro corredor com as mãos estendidas como se temessem
topar nas paredes que os rodeavam.
Aonde iam?... Vamos vê-lo.

LIVRO OITAVO

A AGONIA

CAPÍTULO I

A DUPLA CADEIA

Retrocedemos algumas horas.


Tomemos o fio da nossa narração desde o momento em que o príncipe Antípatro, vendo perdida sua causa
abandonou o templo, buscando na fuga a salvação da vida ameaçada tão de perto pela vencedora espada dos romanos.
Um homem, surdo ao próximo estrondo dos combates, insensível ao grito de dor dos moribundos, achava-se
sentado junto ao umbral duma porta de miserável aparência, numa das vielas do novo bairro de Beceta. Segurava com a
dextra as rédeas de um fogoso corcel impaciente ao seu lado. A bronzeada côr das suas faces, o largo alquicer de
variegadas côres com que encobria o corpo e o receioso e estúpido olhar de seus pequenos e fundos olhos, diziam

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claramente que aquele homem era um desses seres degredados que a Arábia arrojou do seu seio e que arrastam toda a
vida a pesada cadeia da escravidão sem o sentirem, nem compreenderem o afrontoso jugo que, como uma maldição do
céu, pesa sobre eles, de pais a filhos, séculos e séculos.
O jovem príncipe, coberto de sangue e suor, entrou precipitadamente na indicada rua e, aproximando-se ao
homem do cavalo arrancou-lhe as rédeas da mão, e ligeiro como um lince saltou sobre o robusto dorso do inquieto
animal dizendo ao mesmo tempo que deitava algumas moedas de prata no chão:
- Escravo, és livre, celebra a tua alegria e a minha desdita com esses siclos que semeio a teus pés. E, enterrando o
acicate nos ilhais do corcel, partiu a galope rasgado.
O escravo deitou-se de bruços no chão e começou a apanhar as moedas com avidez. Aquilo era uma fortuna para
ele; nunca seus olhos tinham visto tanto dinheiro junto e aquele dinheiro era seu. Tanta emoção transtornava-o e nem
reparou em dois cavaleiros que penetraram na rua e que passaram diante dele.
- Eh! gritou um dos cavaleiros desviando o cavalo para não o atropelar.
- Eh! bom homem, tornou a gritar o mesmo; quem é aquele cavaleiro que desempedra a rua?
- Ignoro, mas deve ser pelo menos filho de um rei, respondeu o árabe.
- É meu irmão, disse um dos cavaleiros, dirigindo-se ao outro.
- O mesmo creio, respondeu o primeiro.
- Então, Cingo, já sabes o teu dever.
- Nunca o esqueço, meu príncipe.
- Mercúrio empreste ao teu corcel suas asas.
- Assim o espero.
Então Arquelau, pois era ele, fez voltar o corcel em direção ao templo e Cingo, o escravo favorito de Herodes,
partiu em seguimento de Antípatro.
O árabe ficou só no meio da rua olhando com espantados olhos em torno de si.
- Belzebu vos guie, exclamou um hebreu encostando-se ao muro para não derribado.
- Estão loucos, murmurou outro.
- Dize antes que fogem da refrega, falou por sua vez um rapazote.
- Ora, quem não conhece na cidade o efeminado filho e o sombrio escravo de Herodes?
A conversação tornou-se geral mas em voz baixa, e os cavaleiros perderam-se no espaço.
Uma hora de carreia desesperada à mercê dos cavalos levavam os dois cavaleiros, sem que por isso houvesse
podido evitar a terrível perseguição de que era objeto, nem o outro encurtar a distância que o separava do que com tanto
empenho perseguia.
Cingo conheceu que o galope dos cavalos era tão igual, que nada adiantaria, pois só no caso em que seu inimigo
desse um tropeção poderia conseguir alcança-lo.
Então recorreu a um meio usado entre os filhos do deserto; reduzia-se a aliviar o seu corcel da carga inútil e
estender-se o cavaleiro sôbre o pescoço do animal, para que seu corpo, ao cortar o ar na carreira, não entorpecesse o
passo.
Cingo, resolvido a levar a cabo a sua estratégia, agarrou-se com força, às crinas do cavalo, e, com risco de cair,
conseguiu tirar-lhe a sela e a manta e mais arreios, deixando dentro em pouco o cansado animal em pêlo.
Então deitou-se sôbre o pescoço do animal, e este relinchou. Breve Antípatro percebeu que o seu perseguidor
ganhava terreno, e julgando impossível salvar-se e não tendo bastante valor para se virar contra ele, ocorreu-lhe a idéia
de se deixar cair do cavalo e esconder-se num dos espessos matagais que por tôda parte o rodeavam.
Firme na sua resolução, reconheceu o terreno com um olhar, e vendo que um cotovelo que formava o barranco
que seguia era o mais conveniente para que a sua manobra não fosse descoberta, foi escorregando para o quarto traseiro
do animal, e deixou-se cair ficando direito no chão.
Esta manobra foi executada com tanta rapidez, que Cingo não pôde ve-lo por causa do quebrado do terreno.
Antípatro teve cuidado de picar a ancar do cavalo com a adaga que tinha na mão ao cair, de modo que o corcel,
livre do pêso do dono e ferido pelo ferro, redobrou o veloz galope.
O príncipe escondeu-se no mato, e pouco depois viu, oculto entre as ramas, passar como uma sombra fantástica a
negra e sombria figura de Cingo, estendida sobre o cavalo. Passou-se um quarto de hora, e as pisadas dos cavalos
perderam-se ao longe.
Cingo, sempre estendido sobre o pescoço do corcel, esperava impaciente o instante em que os cavalos se
juntassem para apoderar-se do inimigo.
Antípatro começou a respirar quando o eco das pisadas se perdeu ao longe. Mais tranquilo sobre o perigo que tão
de perto o ameaçava, começou a ocupar-se do presente. Negro e borrascoso era o que o cercava, e mais terrível ainda o
porvir que a sua esquentada mente divisava ao longe.
Na terrível noite do seu infortúnio só aparecia uma estrela que do céu tempestuoso da sua desgraça lhe enviava
os suaves e tranquilos raios da sua luz pura e formosa.
Aquela estrela era Enoé, à escrava favorita.
Quando cansada a mente, desfalecido o espírito, Antípatro sentia que o seu ser languia devorado pelo fastio,
voava para o lado de Enoé em busca duma vida que iam consumindo as discórdias da sua família. Então o amor de
Enoé em busca era o misterioso amuleto que o reanimava.
Amar e ser amado... compreender a balbuciante linguagem dos ósculos, decifrar as expressivas frases sem rúido
dos olhares, sentir os doces efeitos de um suspiro embalsamado com o aroma do coração que no-lo envia, ter um seio
amigo onde reclinar a fronte carregada com os negros pensamentos que agrupa o infortúnio, ter enfim um ninho de

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amor onde possa esquercer-se a perfídia dos homens, o bulício do mundo, que maior ventura, para que mais felicidade
sobre a terra enquanto não chega a hora da eterna recompensa?
Por isso Antípatro, que ao esconder-se entre o mato do barranco se julgou o homem mais desgraçado do
universo, começou a tranquilizar o seu tempestuoso espírito, porque a lembrança de Enoé lhe desceu sobre a fronte
como um bálsamo consolador, como uma harmonia celeste. Pensou no seu amor e julgou-se menos desgraçado.
Um pensamento lhe assaltou a mente, e disse para si:
- Enoé ama-me: corramos para o seu lado, a sua casa será o meu porto de salvação, as suas lágrimas a benéfica
consolação que ambicionam as minhas dores; os seus doces e enamorados cantos tornarão ao meu espírito a paz de que
tanto precisa, porque o amo é o remédio universal das penas da alma.
Tomada esta resolução, saiu do seu esconderijo; e, como nenhum ruído se percebia em torno dele, depois de se
orientar quanto ao lugar que ocupava e ao caminho que devia seguir para Jericó, pôs-se a andar, servindo-lhe de guia o
preguiçoso Jordão que a pouca distância dali se arrastava sobre o seu leito de areia.
Algumas horas depois, já de noite, o príncipe, fugitivo bateu à porta da escrava, e esta abriu-a rapidamente.
Enoé era, como já dissemos, uma menina de dezoito anos, tão formosa, tão cheia de vida como pode ser uma
donzela nascida nas margens do rio santo. Amava seu senhor como acontece às escravas egípcias, que se enamoram dos
que as compram, isto é, com um respeito que tem muitos pontos de contato com a adoração.
- Só um sentimento agitava o doce e terno coração daquela menina: o amor. Só um nome sabia balbuciar a sua
encantadora boca: Antípatro.
Costumava lembrar-se da pátria; mas um olhar do seu senhor, tinha o poder de fazer-lhe esquecer tudo.
Quanto a seus pais, mal os tinha conhecido. Antípatro entrou em casa de Enoé, e esta pegando-lhe na mão de
pois de a beijar, conduziu-o ao seu camarim favorito. Só ali a formosa egípcia pôde reparar no deplorável estado do
amante. Roto, ensanguentado, com o cabelo em desordem, a face comovida e pálida, os olhos encovados e
envidraçados, aquele formoso moço tinha envelhecido dez anos num só dia.
Enoé deu um grito ao vê-lo daquele modo, e lançou-se-lhe nos braços. Antípatro pagou aquela afetuosa recepção
com um beijo e um sorriso e antes que a escrava lhe dirigisse a palavra, disse-lhe:
- Querida Enoé, tenho uma fome horrível: há mais de vinte horas que não como, e contra o meu costume vi-me
forçado a correr a pé uma distância considerável. Oh! os meus delicados pés derrame uma prova da sua fortaleza; mas
com essa prova dilacerante, olha.
E Antípatro, que se tinha deixado cair sôbre um coxim indiciu os pés a Enoé.
- Esta ajoelhou-se e respeitosamente os beijou.
- Oh! disse-lhe o príncipe levantando-a com carinho, deixa agora os meus pés e ocupa-te do meu estômago,
minha querida.
Enoé saiu da câmara enxugando as lágrimas. A pobre menina não tinha despregado os lábios. O seu amor não
tinha encontrado palavras bastante expressivas para mostrar-se com tôda a beleza do seu sentimento, e recorreu à muda
eloquência das lágrimas e dos olhares, patrimônio exclusivo das almas sensíveis, dos corações amantes.
Antípatro viu sair a escrava, e acompanhou-a com um olhar doce e carinhoso.
- Pobre menina, disse consigo, só os deuses lares poderiam revelar-te o teu futuro, quando os escravos de meu
pai me lancem ao pescoço a cadeia opressora que preparam!
Um suspiro seguiu estas palavras.
Depois, apartando com a pequena não os desordenados cabelos que lhe caiam pela testa, recostou-se no leito e,
apoiando os cotovelos nos almofadões, deixou cair a cabeça entre as mãos, ficando naquela posição por alguns
momentos.

CAPÍTULO II

ONDE SE PROVA QUE NÃO É DIFÍCIL


ADORMECER NOS BRAÇOS DUM ANJO
E ACORDAR NOS DUM DEMÔNIO

Enoé tornou a entrar no camarim, conduzindo uma bandeja com Carne e duas garrafas de vinho.
Antípatro não levantou a cabeça: um inferno lhe refervia no cérebro, um mundo de idéias o preocupava; e
quando um homem se acha num desses períodos críticos da vida, nada sente, nada vê, senão o que o preocupa e aturde
naqueles instantes.
A tímida donzela não se atrevia a interromper o silêncio, a imobilidade do seu senhor. Em vão se afanava por
descobrir a origem daquela profunda dor. Mulher enamorada, participava das dores do amante sem as compreender,
sofri com ele; mas, receiosa de o molestar, sofria em silêncio. Então passou-lhe uma idéia pela mente. Seus úmidos e
formosos olhos fitaram-se numa pequena e leve harpa que pendia dum prego. Seus mãos apoderaram-se daquele
instrumento, e depressa uma doce melodia que chega ao coração do jovem príncipe lhe faz a voltar a cabeça.
- Ah! estás ai, Enoé?

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- Espero as tuas ordens, senhor.
- Canta, pois, minha bela: a tua doce voz faz-me bem. Sou tão desgraçado!
- Tu não és minha serva, és minha doce amiga; podes cantar o que te agrade; só devo advertir-te que sou um
príncipe mui desgraçado a quem a morte persegue mui de perto.
Enoé, estremeceu. Antípatro começou a comer distraidamente, e Enoé, depois de procurar uma canção análoga
às circunstâncias, atreveu-se a dizer:
- Senhor, na história do teu povo acha-se um rei chamado Ezequias que, próximo à morte, salvou a vida pela fé
que lhe inspirava o Deus dos seus maiores. O profeta Isaias lhe anunciou mais quinze anos de vida, quando ele só
esperava viver um instante. A voz do profeta, o relógio solar de Acaz retrocedeu seis graus e o sol subiu de novo ao
horizonte da parte do Oriente. Queres que preludie o canto de agradecimento que elevou ao seu Deus o rei Ezequias?
- Ouçamos o canto do rei.
Enoé começou um acompanhamento que tinha um doçura, uma variação indefível e, pouco depois, a sua voz
argentina começou a cantar a poética prosa de Isaias desta maneira:
“No meio dos meus dias, entrarei pelas portas do sepulcro: vejo-me privado do resto dos meus anos. Já não verei
o senhor meu Deus na terra dos que vivem. Não verei mais homem algum, nem os que morarem em doce paz.
Tira-se-me o viver, vai-se dobrar a minha vida como a tenda dum pastor: quando a estava ainda urdindo, então
Êle ma cortou; de manhã à noite acabarás comigo, ó Deus meu.
Esperava viver até ao amanhecer: o Senhor como um leão forte havia quebrado os meus ossos; mas pela manhã
dizia: antes de anoitecer acabarás, ó Senhor, a minha vida.
Estava eu como um filhinho de andorinha; gemia como as pombas; debilitaram-se-me os olhos de olhar sempre
para o alto do céu. A minha situação, Senhor, é mui violenta; toma a teu cargo a minha defesa.
Mas que é que digo? Como me tomará Êle sob o seu patrocínio, quando Êle mesmo foi o que fez isto?
Repousarei, ó Deus meu, diante de Ti com a amargura da minha alma todos os anos da minha vida.
Ó Senhor! Se isto é viver e em tais apuros se acha a vida da minha alma, castiga-me, rogo-te, e castiga-me, e
vivifica-me.
Vêde como se mudou em paz a minha amaríssima aflição; e Tu, ó, Senhor, livraste da perdição a minha alma,
lançaste para trás das costas todos os meus pecados.
Porque não hão de cantar as tuas glórias todos os que estão no sepulcro, nem hão de entoar os teus louvores os
que estão em poder da morte, nem aqueles que descem à cova esperavam ver o cumprimento das Tuas verídicas
promessa.
Os vivos, Senhor, os vivos são os que Te hão de tributar louvores, como eu faço neste dia; o pai anunciará a seus
filhos a Tua fidelidade nas promessas.
Cessou o canto: Antípatro, ainda preocupado como se escutasse o doce eco da voz de Enoé, ficou alguns
momentos sem despregar os lábios.
As palavras do rei moribundo tinham-lhe chegado até ao fundo do coração, e êste pulsava de modo estranho para
ele.
Por fim, deslizando do leito e pegando num leque de penas, começou a abanar-se e a passear distraído pela sala.
De súbido os olhos do senhor encontraram-se com os da esrava, e então o senhor foi sentar-se aos pés da
formosa egípcia, que lhe apresentou o regaço para que reclinasse a cabeça.
Antípatro aceitou o oferecimento enviando um sorriso a Enoé, e depois disse-lhe:
- Fizeste bem em recordar-me a prece do rei Ezequias. Desde este momento prometo-te ocupar-me um pouco
mais de Deus e um pouco menos dos homens.
- Meu príncipe: de Jeová emana todo o bom e consolador; dos homens todo o azíago e penoso. Deus é a fonte do
bem que vivifica o foco de luz que ilumina; pensa n’Êle e serás feliz, ama-o e terás ventura sôbre o pó da terra.
- Vejo, querida Enoé, que a tua alma é tão bela como o rosto. Bendito seja o instante em que os meus olhos te
viram pela primeira vez. Bendito seja o dia em que formamos este pequeno ninho onde tu, branca pomba do Nilo, me
fazes esquecer com teus doces arrulhos de amor as terríveis tempestades que agitam minha vida.
- A felicidade é a filha predileta do amor. As ternas avezinhas são felizes porque amam; fazem suas tendas nos
flutuantes ramos das árvores, donde erguem seu canto matinal para o Deus que fecunda o grão que as sustenta. Como
nada ambicionam, seus sonos são tranquilos, os cantos são alegres; quando a noite se aproxima, enquanto a mão dá
calor com o corpo aos frágeis ovozinhos, o pai enamorado corre a pousar as delicadas plantas sobre o industrioso ninho,
e depois de acariciar com o bico as suaves penas com que a natureza adornou a cabeça da amada companheira,
adormecem, olhando-se mutuamente com amor. Um raio de sol, uma gota de orvalho, algumas sementes espalhadas
sobre a terra do paraíso que escolheram para amar-se, é tudo que ambicionam para o dia seguinte; e Deus eterno velador
do criado, nunca deixa sem realizar as esperanças das aves, porque esperam tudo d’Êle, e só n’Êle confiam. Por que,
pois, não imita o homem as aves para ser ditoso?
- Porque o homem, Enoé, pertence a uma raça maldita e ambiciosa que olha o amor como um passatempo ameno
da vida e a ambição, como o grande todo das suas aspirações. Porque o homem luta e devora-se para engrandecer-se
com os despojos das duas vítimas, e o seu faminto orgulho nunca se farta ainda que reúna montes de ouro e a vaidade
nunca se contenta, ainda que veja curvar-se-lhe o corpo sob o peso das dignidades. Mas eu te juro, minha Enoé,
regenerar-me. Tuas palavras levantaram um eco dulcíssimo no meu coração. Essas preciosas lágrimas que se
desprendem dos teus negros olhos apagarão com seu úmido orvalho a memória do que fui. O teu amor e só o teu amor
será de hoje em diante a minha maior fortuna, meu constante pensamento. Que vale uma coroa de ouro quando queima
a fronte que oprime, comparada com a que as tuas formosas mãos podem tecer-me de rosas embalsamadas com o

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perfume dos teus beijos e com o aroma dos teus suspiros! Oh! reconheço que fui um insensato! Gozem embora meus
irmãos da herança maldita de meu feroz pai. Elevem-se sobre o sangrento trono de Jerusalém os da minha raça. Que me
importa? A minha pátria será desde hoje a que tu escolheres, a minha fortuna o teu amor, o meu palácio uma tenda onde
nos recolhamos ambos, a minha ambição a tua felicidade, o meu tesouro o teu coração, os teus beijos e os teus formosos
cantos.
- Antípatro, Antípatro, murmurou a escrava acariciando a loura cabeleira do seu amanate com as pequenas mãos;
a tua felicidade começa se o teu coração sente o que acaba de exprimir a tua língua. Porque o amor é o paraíso
antecipado dos mortais.
O príncipe hebreu selou com um beijo as palavras da sua amada.
Enoé, cheia de felicidade com o risonho porvir que lhe proporcionava o amor, apoderou-se do leque de penas de
Antípatro, e começou a abaná-lo como se quisesse afugentar da mente do seu amado, o resto de sombrios pensamentos
que o agitavam.
- Amanhã, continuou o príncipe, quando fortalecido o meu corpo com o descanso, chegar a noite que é a
protetora dos desgraçados, reuniremos a nossa pequena fortuna e partiremos para o Egito. Como os árabes do Iemen,
levantaremos a nossa tenda nasa férteis margens do rio santo. Tu, minha formosa Enoé, te ataviarás como as desposadas
de Israel, para que eu te contemple eternamente com amor e beba a minha felicidade nos teus olhares. A côr de jacinto,
de que tanto gosto, será o teu calçado. Na tua esbleta cintura colocarei com as minhas mãos o branco cinto de linho, e
um manto finíssimo de branca lã cobrirá tuas delicadas formas. Eu adornarei de jóias a tua nevada fronte, e as tuas
orelhas com ricos brincos de coral. As tuas delicadas mãos amassarão tortas de flor de farinha como as princesas de
Davi; eu a teus pés te adorarei como a rainha da formosura e do amor. Porque te amo, Enoé, mas dum modo
desconhecido para mim até este momento. Porque tu és uma necessidade da minha vida, um segundo ser do meu corpo,
a metade desta minha misteriosa alma que se agita no meu ser.
A voz de Antípatro ia-se enfraquecendo pouco a pouco.
Algumas frases entrecortas seguiram as palavras de amor, e depois um beijo, um nome e um suspiro se
escaparam dos lábios do príncipe. Depois ficou dormindo nos braços da escrava. Aquela natureza delicada não pôde
resistir por mais tempo, e pagou o seu tributo ao sono.
Enoé continuou abanando com o leque a formosa cabeça do amante. O amor da contemplação brilhou com todo
o seu fogo nas negras pupilas da egípcia.
A formosa estrangeira não se atrevia a mover-se para não acordar o seu senhor.
Assim decorreu uma hora.
Antípatro, embriagado de amor tinha feito promessas que estava longe de cumprir, porque era ambicioso. Enoé
nada lhe tinha perguntado: conhecia o amante e esperava com a resignaçã da mulher enamorada que o tempo e as suas
carícias lhe fizessem desistir das suas temerárias empresas.
O príncipe tinha adormecido nos seus braços, e o sono ia revelar-lhe com a sua rude franqueza o que o amor não
se tinha atrevido a comunicar-lhe desperto.
- Filho de reis, balbuciava em sonhos Antípatro, o teu lugar é um trono... a vida é nada quando se arrisca por uma
coroa... role o meu crânio insepulto se os anéis de ouro do diadema de meu pai não marcaram com o seu contato a pele
da minha fronte. Um trono... um povo ajoelhado a meus pés, e cem legiões que curvem a cabeça e desembainhem a
espada à minha voz... isso ambiciono ... Mas a desgraça acaricia-me com suas descarnadas mãos, e a fortuna vira-me as
costas enojada... Maldito... Maldito... seja o matador de minha mãe... o seu podre sangue circula pelas minhas veias e
queima-me o coração... mas ah! a morte sorri sobre a sua cabeça... está pálido como um cadáver... estende os longos e
amarelados braços sobre a coroa e retira-os com horror, porque encontrou outras mãos que acariciavam as suas folhas
de louro... são as mãos de seu filho, de meu irmão Arquelau... mas eu tenho ainda escondido entre as pregas da túnica
um punhal cuja ponta está envenenada com a peçonha que me vendeu um árabe... e esse punhal se sepultará na garganta
de meu irmão, e a sua coroa será minha... eu serei rei... Oh! que belo será ser rei!
Antípatro soltou uma gargalhada, e Enoé começou a chorar em silêncio; duas horas decorreram; Enoé ainda
chorava, e o seu amante adormecido nos seus braços, preso dum pesadelo horrível, continuava a revelar-lhe todos os
segredos ambiciosos do seu coração.
A pobre menina estava tão preocupada, e absorta na dor do amante, que não percebeu uma porta abrir-se atrás
dela, e um homem entrar no camarim andando em ponta de pés sobre a mole alfombra para não fazer bulha.
Aquele homem era um negro de feroz semblante. Um sorriso de prazer horrível separou seus grossos lábios,
deixando ver duas muralhas de marfim. Sua dextra oprimia um longo punhal e a esquerda, uns cordões de seda.
Atrás do negro apareceu outro homem, e atrás deste outro, e atrás outro. Eram quatro; o negro ia adiante, e
chegou até onde estava a escrava.
Antípatro dormia com a formosa cabeça reclinada no seio da sua amada, e esta chorava em silêncio e agitava o
leque de penasa refrescando a ardente fronte do seu senhor.
De repente Enoé soltou um grito terrível, mas afogado, porque uma mão rude e calosa caiu brutalmente sobre a
sua nacarada bôca.
Antípatro abriu preguiçosamente os olhos, e no seu semblante plantou-se com as côres mais vivas o assombro e
o terror.
- Ah! formoso príncipe, disse Cingo com insultante entoação: por fim consegui pôr-me em contato com a tua
bela pessoa.
- Miserável! exclamou Antípatro cheio de ira.

103
- Não tens de que enfadar-te, meu amo, respondeu o negro colocando a ponta do punhal sobre o coração de
Antípatro, fazendo sinal aos seus para que o atassem com os cordões.
- Covardes, porque não me matais dum só golpe? Tornou o jovem, forcejando por desembaraçar-se dos
perseguidores.
- Porque isso é incumbência do meu senhor, teu pai.
Antípatro, a quem os seus inimigos tinham atado e pôsto em pé, dirigiu um terrível olhar à escrava Enoé,
chorando ao seu lado, aturdida com o que estava vendo.
- E quanto te valeu, miserável escrava, lhe disse com tom de desprezo, entregar a minha pessoa aos meus
inimigos? Responde.
- Eu sou inocente, Antípatro, êsses homens forçaram a minha porta, eu nada sabia.
- Mentes! Mentes!...
Enoé quis lançar-se aos pés do amante;mas o irritado mancebo repeliu-a dizendo:
- Maldita seja a mulher que esquece os juramentos e põe preço à liberdade do amante.
Enoé deu um grito e caiu desamparada aos pés de Antípatro. Êste apartou a vista com desprezo daquela mulher
que ele julgava culpada e, voltando-se para Cingo, disse:
- Tira-me quanto antes desta casa.
- Conduzi-o aonde sabeis, disse o negro aos seus.
Os três homens saíram levando atado o pêso. O negro ficou um momento no camarim; pôs-se a contemplar o
desmaiado corpo de Enoé.
- É formosa como uma virgem do templo de Sion, esbelta como uma garça do mar de Tiberiades. Pobre menina,
perdeu o seu protetor. Bem posso sê-lo, desde agora.
E dizendo isto, tomou nos braços Enoé, como se fosse uma criança, e saiu pelo estreito corredor, atrás dos
companheiros.

CAPÍTULO III

AS MAÇAS E O MENINO

Decorreram alguns meses desde os últimos acontecimentos.


A moléstia de Herodes agravava-se. O ilustre enfêrmo apenas conta alguns intervalos de sossego, durante os
quais se ocupa em formular seu testamento e dar ordens excêntricas que tem sobressalto a família e os poucos cortesãos
que o rodeiam.
Com assombro dos rabinos e altos dignitários de Jerusalém e Jericó, o idumeu, cuja origem plebéia o atormenta,
mandou queimar os livros hebraicos em que consigna a cronologia dos príncipes de Israel.
- Por este meio, diz a posteridade ignorará que a minha raça não era tão ilustre como a de Davi.
Na ocasião em que tornamos a apresentá-lo em cena, acha-se como de costume deitado na cama. Ptolomeu,
sentado junto duma mesa, escreve nuns grandes pedaços de papiro as ordens que lhe dita o senhor.
- Lê-me o último testamento, lhe diz com voz apagada.
Ptolomeu leu o que segue com voz grave:
- “Distribuo o meu reino, porque assim é minha vontade, da maneira seguinte: Deixo por sucessor no reino e
coroa de Jerusalém meu filho Antípatro.
- Não...não é isso, gritou o enfêrmo, estendendo a mão.
- Senhor, atreveu a dizer o guarda-selos, há três dias tu mesmo me ditaste o que acabo de ler.
- Não te digo o contrário; mas agora mudei de parecer. Pega na pena e escreve de novo; quero testamentar de
outra forma. Nomeio por meu sucessor meu filho Arquelau, o qual é minha vontade e desejo que cinja a coroa depois da
minha morte.
Ptolomeu escreveu, encolhendo os ombros e fazendo um gesto de desgosto, mui dissimulado, receioso de que
seu senhor o descobrisse.
- A meu filho Antípatro, continuou Herodes, nomeio tetrarca da Galiléia e da Pétrea. A Felipe dou a
Traconitide,a Gaulonita e a Betânia, que elevo à dignidade de tetrarquia; a Salomé, minha irmã, dou a Jámmia, Azote e
Fasaclide, com cinquenta mil moedas de dinheiro constante.
Ptolomeu, quando acabou de escrever a última frase, disse, levantando a cabeça:
- Contante...
Aqui uma pausa, durante a qual o guarda-selos permaneceu imóvel com a pena suspensa sôbre o papiro,
esperando que seu senhor ditasse.
- Agora continua a copiar as doações que faço aos meus amigos e à imperatriz dos romanos, como está no
testamento antecedente, pois não quero alterar essa parte.
O secretário escreveu e, terminando, foi apresentá-lo a Herodes. Leu o rei com sossêgo o testamento. Depois
selou-o e tornou a entregá-lo a Ptolomeu, o qual, enrolando-o, o introduziu-o num canudo de prata que colocou num
armário de marfim, na alcova do enfêrmo.

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O guarda-selos ficou imóvel, ao terminar, esperando novas ordens.
- Agora, Ptolomeu, pega na pena e escreve o que vou ditar-te; é um pensamento novo que surpreenderá os
israelitas.
No macerado semblante de Herodes brilhou um sorriso de selvagem alegria. Seus pequenos e encovados olhos
injetaram-se de sangue e disse desta maneira:
- Eu, rei de Jerusalém e de todo o território que compreendem as doze tribos de Israel, desde as fronteiras do
Líbano às desertas praias da Idumeia, desde as ribeiras do mar ocidental às rochas do monte Galaad, mando e ordeno
que no prazo de quinze dias, desde aquele em que se afixe e publique êste edito, todos os primogênitos dos meus
estados que descendam de famílias ilustres e nobres corram ao hipódromo de Jericó onde desejo trnsmitir-lhes minha
última vontade para o bem do povo hebreu e descanso do meu espírito, que desfalece oprimido pelos males do corpo.
Os que desobedecerem à minha ordem, serão considerados réus de lesa-magestade, e o rigor da lei cairá sobre eles.
Cumpra-se o meu edito. – Eu Herodes, rei de Jerusalém. Dado no meu palácio de Jericó aos sete dias do mês de Sabat e
ano trinta e seis da minha coroação no senado de Roma.
- Está pronto, senhor, disse o guarda-selos.
- Agora encarrega-te da publicação desse edito. Hoje mesmo podem estender-se os arautos pelo meu reino.
Ptolomeu saudou e saiu da câmara do rei, não sem levar no peito alguma curiosidade sobre aquela medida
extrema que acabava de ditar-lhe o seu senhor.
- Que canto tão sublime teria escrito o meu amigo Virgílio se existisse! exclamou Herodes quando se viu só. A
posteridade poderá admirar o meu sublime pensamento nas graves páginas da história. Porém um poema tê-lo-ia
imortalizado mais. Minha morte jamais se apagará da memória dos israelitas e quem sabe, talvez que inventem alguma
festa para celebrar o aniversário. Que surpresa vai causar-lhes a realização desta idéia! Sim, eles chorarão a minha
morte, ah, ah, a morte do seu rei, de seu querido idumeu como me chamam, ah, ah, ah...
Herodes começou uma risada convulsiva que um forte acesso de tosse deixou por terminar. Quis pedir socorro;
mas a voz apagou-se-lhe na garganta, produzindo um ronco estranho, como a última blasfêmia de um condenado a
quem a morte fecha a boca antes de a terminar.
Então cravou as unhas na rica colcha do Egito que lhe cobria o leito, e com o rosto livído e os olhos chamejantes
como um hidrófobo, começou a deslizar da cama, fazendo inauditos esforços. Caiu, não sem trabalho, sobre a alfombra
e continuou a difícil caminhada arrastando-se pelo chão em direção à porta.
Neste momento o menino Aquiab apareceu à porta da câmara do rei. Trazia o jovem príncipe um cestinho de
palma cheio de maças. Ao ver o avô naquele estado soltou um grito, e o cestinho escapou-se-lhes das mãos, rolando
pelo chão as maçãs.
- Avô, meu avô, exclamou Aquiab correndo, com os braços abertos, para onde estava Herodes.
O rei, lançando sanguinosa espuma pela boca, estendeu o descarnado braço em direção a u’a mesa onde se viam
algumas redomas de vidro. O menino, compreendendo, deitou parte do livídos lábios do enfêrmo. Este bebeu com
avidez e logo grossas gotas de suor começaram a deslizar-lhe pela fronte.
- Ah! exclamou o enfêrmo depois da horrível luta. Todos me abandonam, todos me esquecem! Julgava sufocar,
julguei que tinham soado a áultima hora da minha vida... Aquiab, tu me salvaste.
Entretanto o menino, com grande esforço pôde colocar o rei no leito.
- Eu não te abandono nunca, meu avô; e uma prova disso é que te trazia êste cestinho de maças, porque sei que é
a tua fruta favorita. São muito boas, eu provei uma. Oh! Quando eu for rei, recompensarei os lavradores dos campos de
Damasco, que tão boas maçãs fazem produzir às suas árvores.
A verbosidade do terno adolescente encantava o velho monarca.
- Bem sei, meu filho, que me amas, lhe disse acariciando a sedosa cabeleira do menino, e olhando-o de modo
estranho. Tu és para mim como o raio do sol que aquece o entumecido corpo dos velhos num dia de inverno; teu sorriso
aplaca as doress do meu corpo; tua voz afugenta os tétricos pensamentos que se me agrupam na mente; porque eu sofro
muito meu filho. Tenho sonhos horríveis, que se me erguem na mente como somras malditas, como espetros evocados
dos sepulcros... e sobretudo muita fome; mas uma fome devoradora, insaciável, cruel, que não me deixa um só instante,
que nunca se aplaca, que jamais cessa.
O menino calava, porque as palavras do avô lhe causavam medo; e, depois, olhava-o com olhos tão espantados,
tão fosfóricos, e a sua voz tão rouca, tão estranha, que o pobre adolescente não se atrevia a respirar.
- Olha, Aquiab, continuou o enfêrmo atraindo-o para si: tenho um tesouro grande, muito grande, sepultado no
fundo dum barração que ninguem conhece senão eu, porque os quatro escravos que me ajudaram a enterrá-lo... cortei-
lhes a cabeça para que não revelassem o segredo: porque os mortos não falam, meu filho, tem-no presente para quando
fores rei... Pois bem, esse tesouro é teu... todo para ti, porque com muito ouro os reis consolidam a coroa sobre a fronte.
Eu te direi onde o acharás, mas é preciso que cuides muito de mim e espies teu pai e teus tios, e todos os que me
rodeiam, porque querem envenenar-me.
Herodes olhou em tôrno de si com receio. Aquiab estava pálido e tremia. As pernas quase se recusavam a
sustentá-lo, porque o horrível cheiro que se desprendia do corpo do enfêrmo lhe ia transtornando a cabeça. Percebera o
rei a agitação do neto, e um sorriso espantoso lhe passou pelos lábios.
- Tens mêdo? perguntou; e por que tens mêdo?
- Eu não tenho mêdo, respondeu o menino com voz apagada; mas as tuas palavras fazem-me mal.
- Ah! As minhas palavras fazem-te mal, tu vinhas trazer-me um cestinho de maçãs criadas nos campos de
Damasco... e essas maçãs... essas maçãs... – E Herodes parou um momento e olhou seu neto como se quisesse lêr-lhe no

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fundo da alma. – Apanha as maçãs e trá-las aqui em cima da cama; quero vê-las, tocá-las e comê-las, porque tenho
muita fome... ah... dá-me uma faca, anda, traze as maçãse a faca...
Aquiab apanhou as maçãs, pô-las em cima da cama, e depois, pegando ma faca de prata da mesa onde se
achavam os medicamentos, foi entregá-la a Herodes.
- Uma, duas, três, quatro, cinco, seis... seis maçãs, disse Herodes contando-as e olhando às furtadelas o neto; que
bonitas são, coradas como a flor do terebinto, finas como a seda da Síria! Não é verdade que são muito lindas?
- Muito, avôzinho, respondeu o menino mais tranquilo e quase reposto do mêdo.
- Pois olha, tu vais comer três, ouves? três; eu, as outras.
- Mas eu já não tenho vontade de mais, trouxe-as para ti. São tão bonitas que ao vê-las neste cestinho disse
comigo; vou pegar nelas e levá-las ao avôzinho, e ele me agradecerá.
Herodes ficou um momento estudando as palavras do neto e depois disse:
- Pois bem, comamo-las ambos, eu quero-o, ouves?
- Então obedeço; e o menino pegou numa maçã e começou a comê-la.
Certo Herodes de que seu neto não tratava de envenená-lo, começou a corta outra e comeu-a com a avidez que
tinha por costume, e depois, outra. Ao chegar à terceira, os dentes cerraram-se-lhe, e uma forte dor de estômago lhe fez
soltar um grito aflitivo.
Os receios tornaram a atormentá-lo, e obrigou o menino a comer a maçã que ele acavaba de morder.
Aquiab obedeceu. Persuadido o rei de que as fortes dores que sentia não eram filhas senão de sua horrível
moléstia, começou a revolver-se no leito como um demente num acesso de furor.
- Sim... sim, exclamou agitando a faca em redor de si; êste mal que me devora é insofrível; far-me-á padecer
demasiado e dum modo cruel alguns dias, talvez alguns meses, depois matar-me-á, porque não há esperança para mim.
Tenho fome, e apenas levo o alimento à boca parece que um punhal me rasga as entranhas. Devora-me a sêde, a água
cai-me no estômago como chumbo derretido... a vida é uma carga penosa. A vida é um mal quando não produz um
bem... pois então para que a quero! Eia, valor e acabemos com ela. E dizendo isto fez menção de enterrar no peito a faca
que tinha na mão.
Aquiab soltou um grito e precipitou-se sôbre seu avô.
Então começou uma luta desesperada, Herodes procurava desprender-se dos braços do neto para cravar o punhal
no coração, e o generoso adolescente, pendurado no pescoço do avô, impossibilitava-lhe o levar a cabo aquele suicídio.
- Socorro, socorro! gritava Aquiab. O rei quer matar-se! Guardas... escravos... meu pai, aqui aqui!.
- Cala-te, louco! A vida estorva-me, cansa-me, lhe repetia o rei lançando espuma pela boca. Cala-te, não vês que
eu quero acabar duma vez esta agonia lenta e dolorosa?
Herodes, ainda que enfraquecido pela moléstia, era mais forte que o neto; assim, é que tinha, apesar dos esforços
do menino, podido desviá-lo do peito e ferir-se, ainda qual levemente, e algumas gotas de sangue mancharam o leito
real.
Salomé, Aleixo e Ptolomeu correram à câmara de Herodes seguidos por escravos e soldados.
O bondoso Aquiab, repelido pelo avô a alguns passos da cama já não podia impedir o crime; mas felizmente
Aleixo lançou-se sobre o rei, e, arrebatando-lhe o punhal das mãos salvou-lhe a vida.
Herodes, vendo frustada a tentativa, cego de raiva, caiu sem sentidos sobre o leito.
- Sai vós, exclamou a irmã do rei dirigindo-se aos escravos e soldados; mas chamai imediatamente os médicos,
porque o rei creio que morreu.
Os escravos sairam sem voltar as costas.
Então Aquiab informou seus tios do que tinha acontecido, e todos cercaram a cama procurando auxiliar o
enfêrmo.
Naquela noite espalhou-se por Jericó a notícia de que o rei, cansado dos seus padecimentos, pusera termo à vida
cravando um punhal no coração. Esta nova voou por toda parte com a rapidez do costume.
O príncipe Antípatro, que gemia num calabouço desde a noite em que o terrível Cingo e arrancou dos braços da
escrava, ouviu através da grossa porta da prisão várias vozes que falavam com calor.
Aplicou o ouvido à fechadura e ouviu estas palavras pronunciadas através da parede, que o privava da liberdade.
- Alguma coisa importante sucede na cidade quando se reforça esta torre com mais vinte praças.
- Assim o creio: visto que o rei Herodes acaba de pôr termo a seus dias cravando um punhal no coração.
- Ah!...
- Eu creio, amigo Cocels, que aquele velho leproso fez bem em matar-se; quando o homem não pode beber nem
amar, a vida é um estôrvo.
- Tens razão, Heráclio, eu peço aos deuses imortais de Roma que, como primeiro sintoma da velhice, me enviem
o último suspiro da minha vida.
- Ah! esquecia-me dizer-te que a sentinela que esta noite dormir no seu posto, tem pena de morte. As rondas
serão mais frequentes: já o sabes.
- A vista disso, dá-lhes um pouco de cuidado o prêso da torre alta.
- Sciu!... Cocles... o soldado romano recebe o seu soldo e obecede.
- Tens razão, Heráclio, o tempo dirá por quem devem desembainhar-se as nossas espadas.
- Em Roma, a morte dum imperador é sempre uma fortuna para as suas legiões, porque o novo rei espalha ás
mãos cheias o ouro entre os soldados.
- Nós podíamos estabelecer também esse costume na Judéia: não são tres os herdeiros?
- Sim, mas...

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O príncipe tornou a lançar-se sobre o montão de palha que lhe servia de leito. Pouco depois, a pesada porta girou
e um homem entrou no calabouço, fechando a porta atrás de si. Levava uma laterna numa das mãos e na outra, uma
cesta de palma.
Era Cingo, o negro, que aproximando-se do miserável leito do desgraçado príncipe, pousou ambas as coisas no
chão, dizendo com voz pausada.
- Boas noites, meu príncipe.

CAPÍTULO IV

O LIVRO DE JÓ

Antípatro assentou-se sôbre a palha e disse com naturalidade.


- Ah! és tu, Cingo? Alegro-me de ver-te; esta solidão cansa-me... Que queres! Sou um homem efeminado... a
quem desde pequeno acostumaram a viver com alguma comodidade e neste calabouço não tenho muitas, por certo.
- O homem deve acostumar-se a tudo, senhor.
- Sim, é verdade, mas eu não posso; prefiro uma punhalada no coração, como a que meu pai deu em si hoje, a
dormir numa cama dura e comer alimentos maus.
- Ah! como sabes?
- Ouvi-o através da porta, que um soldado o contava a outro. Meu pai fez o que eu faria se tivesse um punhal.
- Matar-te-ias, senhor?
- E porque não? A morte é um instante, e nunca a temi... mas os sofrimentos físicos horrorizam-me. Vejo com
desgosto que os deuses imortais me voltam as costas, me abandonam. Eu não tenho o mau gosto de crer no Deus
invisível dos rabinos da cidade santa; o livro de Jó causava-me um sono horroroso quando minha mãe mo lia sendo
menino, para me inclinar à paciência. Calcula, pois, querido Cingo, o aborrecimento deste desgraçado príncipe, que
passa só entre estas quatro paredes vinte e três das vinte e quatro horas do dia.
- O rei, meu senhor, é justo castigando as tuas rebeldias.
- Por Júpiter, que nem tu mesmo crês o que dizes! Herodes justo, o matador da virtuosa Mariana, o assassino de
meus irmãos, o verdugo de Belém, Justo! Ora, Cingo, tu estás mangando. Ainda que seu filho Antípatro fosse tão
manso como um cordeirinho, seu pai ter-se-ia desfeito dele: estava escrito.
- Tu exageras.
- Será como dizes... mas ocorre-me fazer-te uma pergunta. Ès ambicioso?
- Quem não é? respondeu o escravo encolhendo os ombros.
- Tens ocasião de enriquecer, se te apraz.
- Move-me a curiosidade as tuas palavras.
- Vou ser claro contigo. Os inimigos devem atacar-se de frente.
- Eu sou um inimigo?
- Ao menos o tens sido até agora. Mas não te acuso. Quando o escravo cumpre o meu dever, é tão honrado como
o seu senhor. Tu podes erguer a fronte sem vergonha.
- Voltemos à fortuna.
- Pois ganha a tens, se me servires nesta ocasião.
- Que devo fazer?
- Abrir-me a porta do meu cárcere.
- Isso é ser traidor.
- Meu pai morreu.
- Assim o dizem os propagadores de novas na cidade, mas... e Cingo ficou pensativo, como o homem que duvida
ao tomar uma resolução.
Antípatro julgou ver alguma esperança na indecisão do escravo.
- A tua mão pode transportar-me das trevas à luz, da morte à vida; o favor, como compreendes, é grande. Pede
sem medo.
- Eu sou homem que gosto de meditar as coisas; peço-te um dia para me decidir.
- Um dia é um século nesta ocasião.
- Compreendo a tua impaciência a abato doze horas.
- Meu irmão Arquelau será então rei de Jerusalém, e a tua generosa proteção me seria inútil.
- Ora! Doze horas passam-se num momento.
Esse momento é a morte da minha esperança, porque a primeira vítima de Arquelau ao subir ao trono serei eu.
- Dorme, meu príncipe, dorme sossegado, enquanto eu medito as tuas propostas. E Cingo encaminhou-se para a
porta.

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- Compreendo que não queres enriquecer nem ser meu amigo, deixo entregue aos deuses o meu futuro; mas se te
palpita no peito um coração, se compreendeste alguma vez o amor, essa paixão que é a nossa vida e a nossa morte, essa
misteriosa essência que ninguém sabe o que é, mas que ao espalhar-se pela nossa alma nos enche de dor e de prazer; se
amaste, enfim, Cingo, responde pelo teu amor, que é de Enoé?
- Enoé... e quem é Enoé?
- Tu... não a conheces? exclamou Antipatro deixando cair sílaba por sílaba, com pausa, dos lábios, e estudando o
efeito que faziam suas palavras no escravo.
- É a primeira vez que me chega esse nome aos ouvidos... E Cingo deu outro passo em direção da porta.
- Espera, escravo, exclamou o príncipe com voz imperiosa. Se o teu bárbaro senhor te manda cravar-me o punhal
na garganta, aqui a tens, não te demores.. fere e cumpre o teu dever; mas antes de me dares a morte, arranca com uma
palavra esta dúvida que, como uma cobra, se me enroscou no coração. Dize-me se a escrava em cujos braços me
surpreendeste, foi tua cúmplice.
- Eu não a conhecia nem a conheço; os meus soldados espiaram-te, descobriram a tua guarida, e eu surprendi-te;
esta é a história.
- De modo que Enoé...
- Enoé é tão inocente como tu. Já o sabes.
Antípatro deu um grito de alegria e deixou-se cair sobre o montão de palha, exclamando:
- Agradecido, escravo, agradecido, agora, se não aceitas as minhas condições, dize a meu feroz que, ao começar
o seu reinado, deve sacrificar, como é costume, vítimas ante os altares: que não se esqueça de que eu devo ser a
primeira.
Cingo saiu do cárcere, e, pouco depois, da torre. Ao chegar à rua apagou a lanterna e encaminhou-se para o
palácio. O escravo deteve-se junto da porta do camarim de Herodes e aplicou o ouvido.
O rei não estava só: ouviam-se as vozes de várias pessoas que conversavam. O escravo levantou o extremo da
larga cortina que cobria a porta e observou o que se passava no interior da câmara real.
O idumeu estendido no leito, olhava com olhos espantandos um ancião venerável, que lia um grosso volume,
sentado à cabeceira da cama. Salomé, sua irmã, e Aleixo, seu cunhado, de pé junto ao leito, tinham os olhos fitos no
real enfermo. Aquiab, sentado aos pés do velho, entretinha-se a desfiar a grossa, franja da colcha do Egito, que cobria a
cama.
- Rabino, exclamou Herodes com voz enfraquecida: os médicos abandonam meu corpo, mas recomendam meu
espírito aos sábios. Tu o és; recebe-o, pois, sob o teu amparo, e os deuses imortais te premeiem.
- Só Jeová, o deus invisível de Abraão e Jacó, pode proteger os filhos de Israel, respondeu o velhor. Os deuses
pagãos do Olimpo, os ídolos de barro e vil metal, fabricados pela mão do homem, não podem atrair o bem e o mal sobre
a raça humana.
- Oh! bom velho, lê o teu livro, se é que com a sua leitura podes tranquilizar as minhas pernas, e deixa os deuses
e as crenças religiosas de lado.
O velho rabino abriu o livro, e leu deste modo com entoação afetada e fanhosa:
- “Livro de Jó. Capítulo primeiro. Havia na terra de Hus um varão que se chamava Jó, e era de coração são e
reto: temia a Deus e fugia de tudo o que pudesse ter a menor sombra de mal. Tinha sete filhos e tres filhas, e os seus
bens consistiam em sete mil ovelhas, tres mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentos...
- Ela, acaba, rabino, exclamou Herodes; basta dizer que o meu compatriota Jó, era rico mas não tanto como eu.
- Moisés não escreveu este livro santo, respondeu o judeu sem se pertubar, para que tu o talhasses por onde se te
antolhasse.
Moisés escreveu esse livro para os desgraçados: eu respeito o grande legislador, mas quero que comeces pelo
capítulo terceiro, quando Jó amaldiçoa, o dia do seu nascimento... ouves, rabino? Eu sou o rei, eu to mando.
A fronte do velho cobriu-se duma cor incendiada; mas um olhar suplicante de Salomé bastou para que o severo
judeu encolhesse os ombros e começasse a virar folhas com a msema tranquilidade que se não tivesse havido a
precedente disputa.
- “Livro de Jó. Capítulo terceiro, tornou com a mesma entoação. E passados os sete dias, abriu Jó a boca e
amaldiçoou o dia do seu nascimento. E falou desta maneira: Pereça o dia em que nasci, e a noite em que de mim se
disse: Foi concebido um homem sobre a terra! Converta-se em trevas aquela dia!... Não o tenha Deus em conta lá do
alto, nem de luz seja alumiado!...
Herodes, torva a face e preso o corpo dum tremor convulsivo, escutava em silêncio a leitura desse grande poema
do deserto, desse grito de dor sublime, imutável.
Suas descarnadas mãos esfregavam a rica colcha e horríveis gestos, descompunham o seu cadavérico semblante.
O rabino, inspirado com a leitura do livro santo, que tantas vezes tinha feito ouvir na Sinagoga, ia
insensivelmente levantando a voz até tomar um timbre grave e magestoso, que fazia estremecer o coração do enfêrmo.
O velho leitor conheceu que ao rei chegavam os efeitos da sua leitura, e quis aproveitar as boas disposições do
monarca. Para o não fatigar, julgou conveniente, pois era seu ofício ler os livros santos aos enfêrmos, e sabia-os de cor,
ir saltando capítulos e ler-lhes só os versículos que mais em harmonia estivessem com as circunstâncias agravantes do
enfêrmo.
Assim é que, sem que o percebesse Herodes, pulou algumas folhas e tornou a ler no versículo V do capítulo VII,
que diz assim:
“Ferve a minha carne em bichos; asquerosas crostas cobrem todo o meu corpo; a minha pele sêca vê-se toda
encolhida e enrugada. Se concebo alguma esperança de achar descanso, quando de noite me recolho a repousar,

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consolando-me com gemidos, e buscando alívio aos meus males com lágrimas e suspiros, então cheio de sobressalto me
vejo acometido de espanto com as imagens e sonhos que me perturbam a alma.
Eu não tenho esperança de viver; compadece-te Senhor, de mim, e cesse já o castigo. Não é muito o que te peço,
pois que é tão pouco o que me resta viver.
Que é o homem para que mereça que Tu ponhas nele o teu coração, e o olhes como alguma coisa grande?
- Basta!... Basta... velho miserável! exclamou Herodes, estendendo os punhos ameaçadores para o rabino, que se
levantou do seu coxim todo assustado, vendo o rei daquele modo. Tu profetizas-me a morte e comprazes-te na minha
agonia!... Pois bem responde, já que tanto sabes e que tanta fé tens nos teus livros: quantos dias te restam a ti de vida?
O rabino ficou pálido como um agonizante. Herodes, com os olhos fitos no aturdido velho, ria-se de maneira
cruel.
Salomé, Aleixo e Aquiab tremiam, conhecendo que o pobre leitor ia receber uma sentença de morte dos lábios
do rei.
De repente, reanimou-se a fisionomia do rabino, e, ajoelhando-se junto da cama de Herodes, disse com voz
severa e clara:
- Mui poucos, senhor, porque te ofendi segundo parece, e a minha vida está pendente dos teus lábios; a minha
estrela pode eclipsar-se quando à tua rale vontade se antoje.
Herodes humanizou a dura expressão do semblante, e, deixando-se cair sobre os almofadões, disse com tom de
desprezo.
- Vai-te... eu perdôo-te, mas leva esse livro que de nada serviu aos meus males.
O rabino saiu. Salomé e Aleixo aproximaram-se do enfêrmo; que lhes disse:
- Ide-vos todos, quero estar só com as minhas dores... para nada preciso de vós, de nada me servis.
Todos sairam: Herodes ficou só.
Cingo,que tudo tinha ouvido, oculto atrás da cortina decidiu-se a entrar na câmara desobedecendo à ordem do
seu senhor. Chegou-se ao leito e esteve contemplando alguns segundos o enfêrmo.
Pelas toscas faces do escravo rolaram duas lágrimas. Porque aquele homem feroz, aquele verdugo que matava
sem tremer a um sinal do seu rei, amava o seu senhor como a um filho querido, e teria dado até a última gota do seu
sangue, para devolver-lhe a saúde.
Herodes abriu os olhos e viu ao seu lado o escravo favorito. No rosto do enfêrmo brilhou um raio de alegria e
estendeu uma das mãos, que o escravo cobriu de beijos. Uma lágrima ficou na mão do rei, e este disse-lhe:
- Choras, Cingo?
- Sim pela primeira vez na minha vida, porque tu morres senhor.

CAPÍTULO V

ONDE SE PROVA QUE O AMOR


DOMESTICA AS FERAS

- És um servidor leal, Cingo, e quisera antes de exalar o último sôpro de vida recompensar os teus serviços.
Dize-me, que ambicionas? Que queres? Pede, estou pronto a satisfazer os teus desejos.
- Só anelo servir-te até que morras, e depois partirei para a África, pois quisera morrer sob aquele sol que me viu
nascer.
- Pouco ambicionais.
- Os filhos da Líbia são sóbrios, senhor; o seu cavalo, as suas armas, a sua tenda e uma mulher que alegre com os
seus cantares, as ardentes sestas do estio, é tudo o que ambicionam, tudo o que anelam.
- Amanhã receberás uma quantia de ouro, em recompensa dos teus serviços.
- Agradecido, senhor; mas não me trazia à tua câmara o afã da riqueza, venho da torre e vi teu filho Antípatro.
- Ah! E que diz o preso? Resigna-se com a sua sorte?
- A estreiteza do calabouço afoga-o; a liberdade é a rainha do seu pensamento, a mais bela imagem dos seus
sonhos.
- Nunca, enquanto eu viver.
- A notícia da tua morte espalhou-se pela cidade, e, traspassando as grossas paredes do seu cárcere, chegou-lhe
aos ouvidos. Teu filho ofereceu-me meio reino se lhe abrir as portas do cárcere.
- E tu? ... perguntou Herodes, assentando-se.
- Eu corri os ferrolhos da porta, guardei a chave, e venho consultar-te sobre o que devo fazer?
O rei ficou um momento pensativo. As rugas da fronte afundaram-se-lhe, e uma sombra e feroz expressão lhe
passou pelo semblante.
- Antípatro tem rosto de mulher e coração de aço. É um desses ambiciosos que nunca cedem, uma dessas víboras
que é necessário esmagar para que não os empeçonhe. Enquanto ele viver, nem eu nem seu irmão Arquelau teremos
tranquilidade no nosso reino. Cingo, matarás esta noite meu filho. Lance a história desse novo e horrível crime,

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executado à hora da minha morte, sobre mim, nada me importa; sua morte é uma necessidade; mas procura que morra
sem escândalo, e que o seu corpo seja sepultado no velho castelo de Hircanion.
- Que morte se lhe deve dar? perguntou o escravo, como se tratasse da coisa mais natural do mundo.
- Nada de sangue; emprega as tuas víboras; dizem que esses animais peçonhentos, apenas nascem, devoram suas
mães e se devorariam uns aos outros se não fosse cegos. Antípatro é uma víbora: solta pois as tuas víboras sobre eles.
- Far-se-á como desejas. Dize-me o dia e a hora.
- Esta noite. Amanhã uma lousa de pedra deve cobrir seu corpo eternamente. Parte, e não te esqueças de que é a
última ordem que recebes do teu senhor, porque a minha vida se apaga; a ruim matéria decompõe-se por instantes, e o
espírito não tardará a evaporar-se deste vaso quebrado e fugitivo.
- Parto, pois, a obedecer-te.
O escravo saiu da câmara do seu senhor, e encaminhou-se para sua humilde habitação, situada no último andar
do palácio de Herodes. Subiu preocupado a estreita e alta escada e, parando diante duma porta, tirou a chave e abriu-a,
fechando cuidadosamente depois de entrar.
Nada tinha de luxuosa a habitação do negro. Uma lâmpada de ferro espalhava sua tênue claridade pelas
pardacentas e desmanteladas paredes. Uma mulher saiu ao seu encontro. Aquele mulher era Enoé. Cingo passou por
junto dela como se não a houvesse visto, e, soltando um doloroso suspiro foi sentar-se sôbre um velho e roto coxim, que
se via no meio do pavimento.
Houve um momento de pausa. A egípcia contemplava o africano, e este imóvel como uma estátua da dor, com a
cabeça escondida entre as mãos, nada lhe dizia.
- Que tens, escravo? lhe perguntou Enoé.
A doce voz da egípcia fez-lhe levantar a cabeça.
Cingo fitou os negros olhos da jovem: daqueles olhos desprendiam-se algumas lágrimas.
- Por que choras? tornou a perguntar-lhe.
- Porque tenho um inferno no coração... porque te amo e a tu aborreces-me... porque te vi...
- Enquanto o meu senhor gemer num cárcere, a minha língua só saberá abaldiçoar-te; rompe as suas cadeiras e
êste ódio que encerra por ti o meu peito, se extinguirá.
- Ontem tencionava comprazer-te, hoje é-me impossível.
- Então o príncipe morreu?
- O príncipe vive... mas a sua morte acaricia com os descarnados dedos os louros cabelos da sua formosa cabeça.
- Tu juraste-me salvá-lo: costumam em África faltar à sua palavra os homens da tua raça?
- Nunca, escrava; na Etiópia o juramento é sagrado. Olha, Enoé, continuou Cingo, procurando adoçar o mais
possível o seu acento. Lá na Líbia, no extremo oriental do deserto de Saara, acha-se a região de Nigrícia, cujas altas
cordilheiras, alfombradas de ervas aromáticas, prendem com seus robustos braços o pacífico lago de Tchad. Os filhos
daquelas ribeiras tem a côr da cara, negra como a noite, o coração ardente como o sol do seu céu, altivo como as
palmeiras dos seus oásis, bravo como os leões dos seus areais, e livre como o vento que areja os seus aduares. Amam e
aborrecem a ponto de matarem ou morrerem pelas pessoas que lhe comovem o peito, porque a sua única paixão é o
amor e o ódio; nos seus abrasados campos criam-se peçonhentas ervas e víboras de mortal picadura para os seus
inimigos; nos seus jardins, tâmaras, plátanos e óleo aromático para os que amam. Quando a lua espelha a sua cabeleira
de prata sôbre as tranquilas águas do seu lago, estendem na macia pele de leopardo à porta da sua tenda, fazem assentar-
se nela a mulher que adoram, e deitados a seus pés recitam-lhe os cantos de amor dos seus poetas mais popularess. Oh,
Enoé... Enoé! As noites nas margens do Tchad são tranquilas como o sono das virgens, formosas como o paraíso ondem
moram as huris da África, claras como os mananciais do Líbano. É aquela a minha pátria; o primeiro sol que me feriu a
pupila arrancando-lhe uma lágrima é o que ali brilha. Eu tenho ouro suficiente para ser o mais rico, o mais poderoso dos
povoadores do lago. O meu braço é forte como um cedro; o meu coração bate com um vigor que não desmaia; o meu
amor por ti cresce e aumenta: ama-me, e serás a rainha de Tchad e eu, teu escravo: veja eu nos teus divinos olhos um só
reflexo de amor, e beijarei o pó que levantarem teus pequenos pés.
Cingo, com olhar suplicante, as mãos juntas e prêso o corpo dum tremor convulsivo, lançou-se aos pés da
egípcia.
- Escravo, exclamou Enóe com indignação, retrocedendo alguns passos, as mulheres da minha raça nunca se
unem com os homens da tua. A sua lei o proíbe.
- Medita bem murmurou o negro, afogando um rugid: eu tenho respeitado o teu corpo... vivendo debaixo do
mesmo teto, um ao lado do outro: sendo tu formosa e jovem e amando-te eu, não me tenho atrevido a ofender-te nem
com um olhar: mas o teu desprezo pode exacebar-me. Sou mais forte que tu e estás em meu poder. Pensa-o bem, Enoé,
pensa-o bem!...
- Eu era feliz, respondeu a egípcia sem se comover com a ameaça do negro, tu, como o anjo do mal, envolto nas
sombras da noite introduziste-te na minha morada e roubaste-me a felicidade. Depois, vendo-me só e desvalida,
apoderaste-te de mim e encerraste-me nesta mansão maldita. Eu sou a pomba, tu és o gavião; podes despedaçar-me,
porém não esperes que a minha garganta harmonize arrulhos de amor para ti. As mulheres como eu amam uma só vez
na vida... Não o esqueças... a violência redobrará o desprezo que me inspiras.. Agora faze o que melhor te agrade.
- Pela última vez, exclamou o negro, contendo a raiva, queres partilhar comigo a minha fortuna? Queres vir para
a África e ser minha espôsa?
- Nada quero sem Antípatro.
Cingo abarcou com um olhar aquela tenra jovem que com tanto valor se defendia, e murmurou em voz baixa:
- Tu o queres... seja.

110
Encaminhou-se para um dos extremos da habitação, e, abrindo um pequeno armário, tirou dele uma cabaça
fechada herméticamente por uma tampa de prata.
- As víboras! exclamou Enoé com horror; qual é o teu intento?
- Lembra-te das minhas palavras. Nos meus areais criam-se peçonhentas ervas e víboras de mortal picadura para
os inimigos; frescos oásis, saborosas tâmaras e delicados perfumes para os amigos.
E o negro, dizendo isto, saiu precipitadamente do quarto, deixando absorta e agitada a infeliz egípcia.
Enoé, um tanto reposta depois de um momento, correu à porta que estava fechada. Então, deixando-se cair sôbre
o velho coxim, cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
O feroz sorriso de Cingo, as palavras ameaçadoras que tinha pronunciado e sobretudo aquelas víboras que por
espaç de alguns dias tinha visto alimentar com cuidado, tudo lhe fazia temer alguma catástrofe.
Aquele homem feroz tinha-se enamorado para desgraça dela: tinha ciúmes. O seu amante achava-se sob a guarda
dele, e tudo devia temer-se.
- Se mata Antípatro, disse a egípcia como se falasse consigo, eu saberei vingá-lo.
Aquela resolução pareceu tranquilizá-la. Depois esperou uma hora, e duas, e três, e Cingo não vinha.
Nasceu o dia, caiu o sol sobre os ferros da sua janela, e o escravo não tornava. A ansiedade de Enoé era terrível.
Um mundo de idéias fervia no cerébro daquela menina enamorada. Sua febril imaginação apresentava-lhe o amante
morto, e o feroz negro contemplando-lhe o cadáver com sorriso satânico.

LIVRO NONO
AS VÍBORAS

CAPÍTULO I

UM SONHO DE AMOR

Deixemos por alguns instantes a egípcia, e sigamos o africano, a quem a desesperação dos ciúmes e o hidrópico
desejo de vingança que lhe devorava o coração, prestavam asas para chegar quando antes à prisão do desventurado
príncipe.
Cingo podia matar o rival impunemente, satisfazer uma vingança sem que a consciência, êsse juiz terrível e
secreto dos homens, viesse mais tarde roubar-lhe o sono e amargurar-lhe a existência, porque Herodes, o sangrento
monarca de Israel, colocava a garganta de seu filho sob o punhal do escravo. Assim é que uma alegria selvagem, um
prazer feroz, inexplicável, reanimava o ódia do africano. Nunca com maior prazer, com maior afã tinha corrido a
executar uma ordem. Salvar o príncipe, poupar-lhe a vida, conceder-lhe a liberdade, teria sido faltar ao dever para um
escravo tão servil, tão fiel como Cingo. O desgraçado destino do príncipe estava nas suas mãos, e Antípatro não tinha
outro futuro que a morte.
“Mata meu filho, e enterra-o sem pompa nem cerimônia alguma no velho castelo de Harcanion”. Estas eram as
palavras do idumeu, e Cingo corria a cumpri-las. A espécie de morte não fazia ao caso, de uma víbora, tudo era morrer.
O resultado daquela missão terrível era um cadáver.
Cingo chegou diante da pesada porta do cárcere e deteve-se. Pela primeira vez na sua vida sentiu que o coração
lhe batia de um modo estranho e novo para ele. Aquele crime era do rei ou seu? Sem o explicar fez a si próprio esta
pergunta.
Sua consciência erguia-se dentro do seu ser pela vez primeira na vida. Sua voz estranha e poderosa agitou-o,
como o primeiro sôpro de uma tempestade agita enxarvias de um navio, arrancando-lhe um gemido inexplicável.
- Ora! disse consigo querendo tranquilizar-se, o rei mandou, eu obedeço: entremos.
Descerrou os pesados ferrolhos; e entrou no calabouço.
Antípatro, no montão de palha que lhe servia de leito, dormia profundamente. A bela e efeminada cabeça do
príncipe tinha uma desordem encantadora. O negro parou para o contemplar a dois passos da cama. Os dourados
cabelos caíam-lhe em grossos cachos pela branca e fina garganta como a cabeleira duma mulher. Um sorriso cheio de
amor voluptuoso, resvalava da boca do jovem adormecido e seus nacarados lábios agitavam-se como se beijassem um
objeto adorado.
Cingo julgou advinhar os sonhos do príncipe, e levou a mão ao coração.
Antípatro dormia e ia revelar a Cingo os pensamentos mais recônditos do seu coração. Ouçamos o que sonhava:
- Olha Enoé, dizia numa voz balbuciante como se o amor lhe agitasse o coração: eu julguei-te culpada... que
queres... o homem à quem açoita sem cessar com suas ásperas refregas o vento do infortúnio, pensa mal, desconfia de
tudo, e torna-se receioso e taciturno... que louco fui, pensando que tu, meu amor, podias ter-me vendido aos meus
inimigos! Quando essa idéia bastarda me passava pela mente, eu esquecia que poucos dias antes me tinhas jurado amor
eterno pela memória de teus pais. Então não compreendia, como agora que sei que és inocente que uma menina como tu
não pode vender o homem que lhe entregou o coração sem ser mais pérfida que Dalila, mais infame que Tamar, mais

111
criminosa que Atália. Mas esse agravo que te fiz, eu te juro que saberei recompensá-lo... porque, ouve e não o digas a
ninguém, Enoé, guarda este segredo, porque estou rodeado de inimigos. Meu pai morreu, e um escravo a quem ofereci
muito ouvo, virá esta noite abrir as portas do meu cárcere e dar-me a liberdade... e amanhã, quando a luz da aurora
brilhar sobre os ferros da estreita janela do meu cárcere, a essa hora em que o rocio cessa de cair sobre as flôres, e as
violetas abrem os seus cálices para darem o aroma do seu seio ao zéfiro oriental, eu serei livre, correrei a buscar-te, e
apertar-te ao coração. Que vale um reino comparado com o teu amor! Desde agora só serás a minha ambição. A minha
coroa será o teu amor eterno; o meu reino o teu peito enamorado; os meus vassalos, os meus suditos, os teus ardentes
beijos.
Cingo levou a mão ao coração.
O príncipe soltou um suspiro voluptuoso. Depois parecia escutar uma resposta, pois agitava a cabeça e sorria
com um prazer, com um gozo indefinível. Cingo, cravado no duro pavimento do cárcere, com os olhos injetados de
sangue, o semblante descomposto e o corpo trêmulo, contemplava o adormecido príncipe, lançando-lhe um sorriso
feroz, sanguinário e, enquanto com a mão apertava o peito devorado pelos ciúmes, com a outra agitava a pequena
cabaça das víboras, com o fim sem dúvida de assanhar com aquela prolongada sacudida os venenosos répteis que se
mexiam no seio daquele vegetal.
Antípatro continuou depois duma breve pausa:
- Oh! nunca... nunca! Meu amor é uma fonte inesgotável que me brota no coração, que não se exaurirá nunca, -
será a minha última palavra ao adormecer, à noite. Amo-te – a última coisa que pronunciará a minha língua: na ocasião
de morrer, será também – amo-te, amo-te, minha Enoé.
Cingo resolveu aplicar aos lábios do príncipe a abertura da maldita jaula das víboras.
O príncipe agitou os lábios como se quisesse dar um beijo, murmurando: Amo-te, amo-te, minha Enoé!
Neste momento sairam da cabaça três ou quatro cabecinhas de víboras, agitando as venenosas línguas com um
rapidez incrível.
Antípatro estremeceu e os seus lábios trêmulos continuavam a agitar-se sem perceber que as víboras enterravam
neles uma e outra vez as peçonhentas setas desuas mortais línguas.
O escravo estava horrível naquele momento. O mais leve descuido, a mais pequena picadura daquelas víboras
que ele aplicava à boca do príncipe, espalhava uma peçonha mortal pelo sangue, à qual se seguia uma morte rápida e
desesperada.
Conheceu que não podia gozar mais sem grave risco, porque as víboras, ainda que cegas, têm um ouvido tão
fino, uma elasticidade tão prodigiosa, que matam com a picada um cavalo no mais rápido da carreira, colocando-se pelo
eco das pisadas no lugar por onde tocou com a ponta deste as cabeças das répteis, os quais imediatamente se retiraram,
escondendo-se no fundo da jaula. Então fechou com a tampa e pendurou a cabaça na cintura. Passaram alguns
momentos sem que Antípatro despertasse; mas aquele curto espaço agitou-se, mostrando o seu mal estar, sobre o úmido
leito.
A fronte foi tingindo primeiro duma cor lívida; depois, de pronto enegreceu dum modo horrível, e por fim uma
cor amarelada, com manchas escarlates, lhe foi pintando o rosto.
Então deu um doloroso suspiro e abriu os olhos.
Viu Cingo e quis levantar-se; mas não pode mover-se: fez segundo esforço, mas como o primeiro foi em vão.
- Por Júpiter, tornou o príncipe, creio que ainda estou dormindo: escravo, honra a tua mão apertando a minha e
ajuda-me a pôr-me em pé.
Cingo não se moveu nem estendeu a mão que lhe pedia o filho do seu rei. Sabia que era inútil, porque a mote se
assenhoreava daquele corpo.
- Que, não me ouves! exclamou o príncipe com espanto; ou é que teus ouvidos se tornaram tão entorpecidos
como os meus membros.
- Tu não podes mover-te mais desse leito de palha, disse o negro comprazendo-se com a próxima agonia do seu
rival.
- Que não posso mover-me! exclamou Antípatro; vou desmentir as tuas palavras, escravo insolente e... Não pode
acabar a frase: um grito estranho, terrível, agudo lhe saiu do peito como se um prego ardendo se lhe houvesse cravado
no cérebro; o rosto desfigurou-se de modo horrível; todos os seus membros tomaram uma elasticidade monstruosa, e
abrindo espantosamente os olhos que se tinham encovado nas órbitas, expirou depois de se revolver pelo chão alguns
momentos, preso de uma convulsão horrível.
Cingo, com a frieza do homem endurecido no crime, pôs uma das mãos, no coração do cadáver e disse:
- Meu príncipe, tu já não podes realizar os teus belos sonhos de amor; quem sabe se Cingo, o escravo, realizará
os seus?
Depois encolheu os ombros, e volvendo um olhar de triunfo para o cadáver, saiu do cárcere.
Algumas horas depois o povo corria pelas estreitas ruas de Jericó, aglomerando-se em uma rua para ver passar
um séquito fúnebre. Adiante ia Cingo montando num soberbo alazão: levava o airoso traje dos escravos etíopes do rei;
atrás dele caminhavam quatro homens vestidos de preto, cujos amplos roupões lhes chegavam até aos pés. Conduziam
uma espécie de liteira descoberta em que descansava o cadáver do príncipe Antípatro.
Fechavam a marcha fúnebre doze soldados romanos.
As mulheres judias, segundo costume, rompiam em lamentos ao verem passar o cadáver.
Êstes lamentos chegaram até à habitação de Enoé, a egípcia, e a curiosidade levou-a até à janela. Reconheceu o
cadáver do seu amante, soltou um grito e caiu desmaiada no duro pavimento do quarto.

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O séquito saiu da cidade, chegou ao castelo de Hircanion, e o corpo do malogrado príncipe, segundo a ordem de
Herodes, foi enterrado modestamente num dos seus subterrâneos.
O rei continuava enfêrmo: era quase um cadáver; mas ao ver seu escravo favorito, levantou-se nos braços e
disse-lhe:
- E meu filho?
- Já não existe, senhor.
- Agradecido, leal escravo.
Cingo saudou.
- Toma, esperava-te, e por isso mandei Ptolomeu trazer-me esta quantia de ouro.
E Herodes estendeu ao seu escravo um pesado saco repleto de moedas.
- Senhor... murmurou Cingo beijando a mão que o enriquecia.
- Agora és livre, tornou o rei.
- Nunca, enquanto viveres.
Herodes indicou-lhe que podia retirar-se, e o escravo obedeceu.
O feroz idumeu, ficando só, volveu um olhar de prazer para a coroa que tinha na mesa do quarto; depois
adormeceu com o sorriso nos lábios.
No seguinte dia, quanto os cortesãos entraram, a saber da sua saúde, disse-lhes com tranquilidade inexplicável:
- Esta noite dormi muito bem; havia muito tempo que não gozava um sono tão doce, tão tranquilo; creio que
estou melhor.
Felizmente, aquele pai feroz, aquele rei inumano enganava-se: aquele repouso era o repouso da morte, o sossêgo
do sepulcro que chegava para a sua maldita existência.

CAPÍTULO II

A AGONIA DUM VERDUGO

Os príncipes e os nobres de Israel reuniram-se em Jericó, obedecendo ao edito do seu terrível senhor, e
Ptolomeu, que era o encarregado de os receber, ia-os conduzindo ao hipódromo, donde lhes era proibida a saída até
nova ordem de Herodes.
Os hebreus, a quem a barbaridade de seu rei trazia atemorizados, perguntavam-se em voz baixa a causa daquela
reunião; mas era um segredo que ninguém sabia.
Assim decorreram quatro dias mortais. O valor dos Macabeus tinha-se extinguido no coração dos filhos de
Israel. Sofreram o afrontoso jugo que sobre eles pesava, com as lágrimas nos olhos, e o vergonhoso silêncio do medo
nos lábios. Mais de dez mil judeus se tinham reunido em poucos dias no hipódromo. Em outro tempo, cento e sessenta
anos antes, bastaram oitocentos campeões ao terrível Judas Macabeu, para combater com Bachides e Alcino, que
marchavam contra Jerusalém à frente de vinte mil soldados. O caminho de Galgado, os campos de Masselot,
presenciaram o fabuloso arojo do filho de Matias. O hipódromo de Jericó foi testemunha do afrontoso medo dos
descendentes daqueles heróis que venceram os seleucíades. A Judas faltou um Homero para ser o herói mais grandioso,
mais fabuloso do mundo. Quanto aos príncipes de Israel, sua covardia era tantaaa, que bastava uma ordem de Herodes
para os fazer tremer. Mais tarde a maldição de Deus devia espalhá-los pelo universo como uma raça maldita.
Deixemos por alguns instantes os nobres de Israel chorando sua sorte, e entremos pela última vez na câmara do
rei tributário.
Quatro eram as pessoas que cercavam o leito do moribundo: Salomé, sua irmã; Aleixo, seu cunhado; Aquiab, seu
neto e Arquelau, seu filho. Os médicos despedidos num momento de furor pelo real enfêrmo, esperavam na câmara
próxima talvez a sua sentença de morte. Gritos de desêspero, espantosas blasfêmias, ameaças terríveis lhe rebentaram
da contraída e repugnante boca.
- Não, quero morrer, não quero! exclamava, revolvendo-se no leito de púrpura, como um possesso, e lançando
olhares espantosos em redor de si como se quisesse com eles absorver a vida dos que o rodeavam. Eu sou o rei, o
senhor, o dono de Israel! A vossa saúde é minha, preciso dela, ouviu? Daí-me eu mando que vos crucifiquem no mais
alto da torre Antônia, para que os vossos corpos sejam pasto das vorazes aves de rapina.
- Sossega, meu irmão, lhe dizia Salomé, limpando o suor que inundava a fronte do monarca. A ciência ainda não
perdeu a esperança de te salvar: confia, espera.
- Confiar, quando a impotência dos médicos se mostrou clara como a luz do dia! Esperar, quando os frios dentes
da morte fizeram prêsa nas minhas entranhas e as estão arrancando do seu lugar!
Herodes fez um violento esfôrço para levantar-se e, não podendo conseguir seu intento, deixou-se cair no leito.
O silêncio de morte que reinava na câmara real, só era interrompido pelo respirar rouco e fatigaado do enfêrmo.
Aleixo indicou a sua esposa que fizesse beber ao rei do líquido que continha uma taça de ouro e esta, depois de
repetidas e carinhosas súplicas, conseguiu que o enfêrmo obedecesse.

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- Obedeço-te, minha irmã, disse o rei depois de ter bebido; mas tudo é inútil: sei que morro; a minha vida foge
por instantes deste frágil vaso em que se encerra. O meu único sentimento ante a morte certa que me acaricia, a minha
horrível desesperação ao abandonar a vida, não é a minha morte; é o gosto, o prazer, o grito de alegria com que será
saudada pelo povo hebreu... Mas eu sou o rei. Não é verdade que sou o rei, e que nas doze tribos ninguém se atreverá a
desobedecer-me?
- Quem pode duvidar disso, senhor! lhe respondeu a irmã. Enquanto viveres, no teu reino não haverá outra lei
que a tua vontade.
- E depois de morto se acatarão as tuas últimas disposições, disse por sua vez Aleixo.
- Não é verdade que sim?
E Herodes tomou sua irmã pelo braço e aproximou-se do leito como para estudar no seu olhar o que acabava de
dizer.
Salomé empalideceu, porque o mau cheiro que lançava o corpo do rei era insuportável. Dissimuladamente cobriu
o rosto com um lenço embebido em essência, fingindo limpar as lágrimas.
- Pois que ainda se cumprem as minhas ordens, continuou com fatigada voz Herodes, aproximai-vos todos; e tu,
Aleixo, escreve neste pedaço de papiro selado com o meu anel, porque vou ditar-me a minha última vontade.
- Dita, senhor, já te escuto.
- Querido Aleixo, o que vou ditar-te é o pensamento mais feliz que a minha real cabeça tem tido durante os seus
trinta e nove anos de reinado: tu verás, tu verás. Sófocles teria escrito uma grande tragédia se lhe houvesse ocorrido: tu
verás, tu verás. E Herodes soltou uma gargalhada horrível que fez estremecer os que a ouviram.
- Escreve, continuou Herodes: “É minha vontade que o povo de Israel, que me aborreceu em vida, me chore
depois de morto: e como isto parece algum tanto impossível, atendendo ao ódio que me tem, apesar dos benefícios que
de mim tem recebido, mantdo que morram degolados no hipódromo de Jericó os treze mil judeus que ali se acham
reunidos, tão depressa como eu expire, para que as suas famílias, chorando sua morte, chorem ao mesmo tempo a
minha”.
Aleixo escrevia sem respirar; mas a mão tremia-lhe e a cor do rosto tinha desaparecido.
- Que vos parece o meu recurso?
- Senhor... murmurou Salomé.
- Basta, irmã, basta; conheço a tua intenção, mas já sabes que sou inflexível; quero que se cumpra a minha
vontade, entendeis? E ai do que incorrer no meu desagrado! Ai do que desobedecer as minhas ordens!
- Será obedecido, senhor, disse Arquelau com severidade.
- Agradecido, meu filho; essa obediência anuncia-me em ti, que és o meu sucessor, um reinado digno do meu.
Aleixo apresentou o papiro, e o rei assinou e selou com a mão convulsa, exclamando:
- É o meu presente de morte... o povo de Israel verá que na última hora da minha vida lhe dediquei o meu
derradeiro pensamento.
Aleixo enrolou o pergaminho e entregou-o a Arquelau, dizendo:
- Toma, senhor; quando fores rei cumpre a vontade de teu pai.
- Agora façamos a última experiência desse Herodes, pois que os médicos não acham o remédio para este mal
que me devora, colocai-me numa liteira e conduzi-me rodeado dos meus escravos à praça pública.
- Isso é impossível, meu irmão! A tua moléstia pode piorar.
- Ora, eu sou um cadáver que fala e sente ainda por acaso.
- É que não compreendemos que bem possa fazer-te medida tão estranha!
- Ah! não o compreendeis? Pois eu vo-lo direi. Os caldeus tem fama de sábios, não é verdade?
- Sim meu irmão, de toda parte do mundo correm os homens de saber à moderna Selêucia a admirar esses sábios,
conhecedores do globo celeste que com tanta precisão marcam o misterioso rumo das estrelas; mas...
- Pois olha, irmã os caldeus não tem médicos: quando um deles se acha gravemente enfêrmo e a sua família
perde a esperança, colocam-no numa liteira fechada por vidros e conduzem-no à praça pública, e todos os que passam
tem obrigação, sob penas mui severas, de se aproximar do enfêrmo e de se informar da espécie de mal que sofre, e
então, se há algum que se achou no mesmo caso, indica aos seus parentes o método que seguiu para recobrar a saúde.
- Isso é um absurdo, murmurou Aleixo.
- Será o que quiseres; mas advirto-te que em nenhuma parte do mundo chegam a maior velhice os homens que
nas margens do Eufrates, na terra de Ur e na Arábia Feliz: porque ali curam-se pela experiência e caridade, e não pela
ciência e interesse.
- Perdoa, senhor, se não te obedecemos nesta ocasião, atreveu-se a dizer Arquelau; seria uma imprudência.
Herodes, acostumado a ser obedecido durante o seu reinado até nas coisas mais absurdas, olhou seu filho com
assombro, e depois exclamou:
- Quem se opõe aqui a minha vontade?
- Eu, disse com energia seu filho, sem baixar os olhos. Eu porque creio que é um dever de filho e subdito leal,
desobedecer-te!
- Tu, tu! exclamou de modo feroz: e, dirigindo-se a seu cinhado continuou: Leva esse borracho!
Arquelau, que mais tarde mostrou que não tinha tão negra a alma e tão sanguinário o coração como seu pai,
cruzou os braços, e com serenidade imprópria da situação disse:
- Os insultos convertem-se em louvores quando se tributam a um homem que cumpre o seu dever: Aleixo não
me porá as mãos na roupa, porque Aleixo sabe que não deve obedecer-te.

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Herodes passou as mãos pelos olhos. Depois cobriu a cabeça com a colcha e começou a maldizer que o cobria, e
saltou da cama repente atirou longe de si a roupa que o cobria, e saltou da cama ao chão; mas estava fraco e não pode
ter-se em pé, caindo depois de cambalerar um segundo sobre a macia alfombra.
Todos correram a levantá-lo mas ele repeliu-os com um ademane de cólera. Seu rosto estava mais horrível que
nunca; suas palavras eram um ruído rouco e ininteligível; tremia como se o frio interior lhe gelasse o sangue, e, um
copioso suor lhe corria por todo o corpo. Salomé correu para a estância próxima em busca dos médicos: mas, quando
estes chegaram, o auxílio da ciência era inútil. Herodes, o idumeu, o açoite de Israel, o verdugo dos hebres, tinha
finalmente morrido.
Sua agonia foi terrível como um castigo de Deus: pode dizer-se que durou dois anos. Seu corpo foi devorado
pelos vermes. Nos últimos momentos da vida, acossado pelos remorsos e pelas agudas dores do mal que o devorava,
fazia com que os seus inumeráveis netos lhe rodeassem o leito de morte, comprazendo-se em arranjar casamentos
daqueles pimpolhos reais, a quem o seu punhal sanguinário deixara órfãos.
O idumeu solicitava as carícias daquele punhado de crianças como se delas dependesse sua felicidade eterna:
mas o rosto úlcerado e fétido do enfêrmo repugnava as crianças que mostravam sua repulsão com a franqueza peculiar
dessa idade em que tudo se diz porque se ignora o valor das palavras. Deus quis negar-lhe até o carinho daqueles anjos.
A sua morte foi um grito de alegria para Israel. Só um ente choru a morte daquele tirano. Cingo, seu escravo. A
família não derramou uma lágrima, não exalou um suspiro de dor.
O enterro de Herodes foi faustoso. A tradição só recordava um que lhe parecesse: o de Salomão.
Arquelau mostrou grande esmero nas honras funerárias a seu pai. Pôs o cadáver num leito de ouro bordado de
pérolas e pedras preciosas; o estrado era guarnecido de púrpura; o corpo vestido de brocado de ouro, tinha uma coroa na
cabeça e um cetro real na mão direita; ao redor da cama estavam os filhos e parentes: depois iam adiante todos os da sua
guarda, um esquadrão de gente trácia, de alemães e franceses, todos armados e em ordem de guerra, todos os outros
soldados seguiam os seus capitães depois mui convenientemente; quinhentos escravos e libertos levavam perfumes; e
assim foi levado o corpo, caminho de duzentos estádios ao castelo de Herodion, onde foi sepultado conforme as suas
ordens.
E, cousa estranha, Herodes, o velho lobo de Israel, o coração malvado que nunca se fartava de derramar sangue,
o feroz verdugo dos hebreus, amava as artes com delírio.
Durante o seu desgraçado reinado, levantou o ruidoso templo de Zorobabel; edificou as cidades de Sebasto e
Cesaréia em honra de Otaviano Augusto; reparou os monumentos de Atenas, reedificou em Rodes o templod e Apolo
Pítio; construiu palácios em Ascalon, banhos públicos em Trípoli, Damasco e Ptolemaida; cercou de muros a cidade de
Bíblio, e fez bolsas, aulas, templos e praças em Tiro, Berito, e Sidônia; deu prêmios nos jogos olímpicos e pensionou
em Roma; fez teatros, aquedutos e belas lagoas.
Isto lhe valeu o cognome de Grande. Seus crimes disputaram-lhe este glorioso apodo, recordando as celébres
palavras de César Augusto quando soube a terrível vingaça de Berito: “Mais vale ser porco que filho de Herodes”.

CAPÍTULO III

O REI MORREU! VIVA O REI!

Herodes morreu ao amanhecer, e às doze horas daquele mesmo dia, Arquelau seu filho, seguido dos chefes
legionários e, de todas as dignidades da côrte de seu pai, apresentou-se no hipódromo.
A guarda pretoriana sabia o régio acontecimento, e tinha pronunciado em voz baixa o grito de – O rei morreu! –
e esperava o seu novo senhor para o aclamar e receber a paga da sua submissão.
Os infelizes judeus tremeram ante o séquito real; os soldados romanos, empunhando as armas, formaram para
saudar a sua fidelidade. Ptolomeu desenrolou com sossego um longo pergaminho, e indicando com um gesto que
guardassem silêncio, leu em voz grave o testamento do defunto rei, no qual se nomeava seu filho Arquelau, herdeiro da
coroa; mas exprimindo que isto seria depois que o César Otaviano Augusto, seu protetor o confirmasse.
Lida a última vontade de Herodes, ressoou por todo o anfiteatro o grito de – Viva o rei Arquelau! O jovem
monarca saudou com amabilidade a multidão. O gôzo, o prazer, saltavam-lhe aos borbotões pelo semblante. Era rei pela
vontade de seu pai, e esta vontade confirmava-a a espontânea aprovação dos seus soldados. Restava em verdade um
obstáculo por vencer: que o César confirmasse o testamento; porém Arquelau sabia de sobejo que o ouro que Israel
havia tempo que abrandava o coração dos senhores de Roma.
Entretanto os soldados legionários juraram-lhe fidelidade como a seu pai, e Arquelau, que seis anos mais tarde
devia cair do trono pela crueldade, quis uma vez na sua vida mostrar-se clemente para conquistar por este meio o apreço
dos israelitas. Mandou seu tio ler a última sentença de seu pai, e o temor, o assombro estendeu-se por entre os pobres
presos. Os desgraçados rasgavam os vestidos com desesperação. Outros caiam chorando aos pés de Arquelau, pedindo-
lhe com gritos de medo a vida que seu pai com tão incrível desumanidade mandava tirar.

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Arquelau, no meio daquela desordem, daquela confusão, daqueles lamentos intermináveis, agitou o pergaminho
no ar e mandou que guardassem silêncio.
Calou-se a aterrada multidão, e ele falou deste modo:
- Nobres de Israel! Ilustres primogênitos de Judá, nada temais! O meu reinado, se é que ao César nosso senhor
lhe apraz que eu vos governe, não começará com um crime tão horrível, com um assassínio tão espantoso. Eu quero o
vosso amor, e não o vosso ódio; quero as vossas bençãos, e não as vossas ameaças; meu pai sentenciou-vos à morte, eu
salvo-os a vida. Sois livres! Podeis abandonar o hipódromo quandos vos aprover!
E dizendo isto, rasgou o pergaminho e fez voar pelo ar os pedaçõs. Seria impossível descrever o entusiasmo
daqueles infelizes.
Caminhar para a morte, e encontrar-se com a vida, é uma alegria que não tem palavras com que descrever-se.
Arquelau foi levado em triunfo ao palácio e seu reinado teve um começo que bem depressa desmentiu o pobre e
perverso sangue que lhe corria pelas veias.
Herodes, o Grande, foi conduzido ao sepulcro com um luxo, uma ostentação tão desusada naqueles épocas, que
os israelitas costumavam dizer: “Quem comesse como o rei Assuero e fosse enterrado como o rei Herodes!”
Assuero deu banquetes que duraram cem diasss. Arquelau fez festas pela memória de seu pai, em toda Israel, e o
número das carpideiras que acompanhavam o cadáver subia a cinco mil; mas naqueles lamentos, aquelas lágrimas
compradas com o ouro das suas vítimas, não subiram ao céu.
Os primeiros cuidados do novo rei, ao tomar as rédeas do poder, foram mandar emissários a Roma, carregados
de presentes, para inclinar o César em seu favor, e procurar o tesouro que, segundo a voz pública, o idumeu havia
enterrado.
Os embaixadores foram mais felizes que os buscadores de ouro. Otávio Augusto reconhceu Arquelau como rei
da Judéia; mas o tesouro não pode encontrar-se.
Um rei pobre acha-se mais exposto a ser restronado que um rei rico.
Arquelau tinha comprado o exército legionário à força de ouro. A bolsa dos soldados do Tibre estava repleta; a
do rei, vazia; era pois indispensável recorrer aos impostos. Israel sentiu o primeiro golpe real que caia atroador sobre as
suas arcas.
Gemeu e pagou. O primeiro decreto do seu novo rei custava-lhe ouro; o segundo ia custar-lhe sangue.

CAPÍTULO IV

FOGO ENTRE CINZAS

Cingo tinha terminado sua missão em Israel ao pé do túmulo de Herodes.


Livre e rico, pensou na pátria. O seu leal servilismo, o seu caráter enérgico e selvagem, o favor de que tinha
gozado durante doze anos ao lado do idumeu, tinham-lhe criado inimigos na Judéia.
Arquelau, o jovem rei, odiava-o; assim é que, quando lhe pediu licença para abandonar a terra de Jacó, o jovem
monarca, encolhendo os ombros, respondeu-lhe com desprezo:
- Vai-te quanto te aprouver; para nada preciso de ti.
O negro mordeu os lábios, curvou a cabeça e saiu da câmara real sem murmurar, aquele desprezo queimava-lhe
o coração. Teria dado toda a fortuna para arrancar a língua aquele mancebo que o ofendia.
Desde aquele dia, pensou na pátria, no ardente sol da África, nas selvagens caçadas do deserto, na tenda do
árabe, nas tranquilas noite de Tchad e na bela liberdade dos filhos da Líbia.
Resolvido a não servir de instrumento a nenhum tirano ansiando lançar-se nos braços da voluptiosa preguiça tão
encarnada no sangue dos filhos da África, começou a fazer preparativos de viagem.
Tudo estava pronto oito dias depois. Dois fornidos dromedários esperavam nunca casa dos arrabaldes de Jericó o
momento da partida.
A viagem era longa, mas Cingo não esqueceu nada; a tenda, os odres para a água, as caixas para as provisões, as
macias peles para a noite, os matelots, para os aguaceiros, e os cães guardadores do sono.
E, no entanto, não partia, porque uma coisa o preocupava a ponto de roubar-lhe o sono: Enoé.
A formosa egípcia viva com ele, na casinha do arrabalde, dócil, submissa, obediente; mais que um ser vivo,
parecia um autômato desde a morte de Antípatro. Nunca despregava os lábios. Sua eterna melancolia, sua imobilidade,
seu retraimento, desconcertavam o negro que não se atrevia a molestá-la nem com a sua conversação. Ela não ignorava
que o amante tinha sido assassinado por Cingo e, contudo seus lábios não pronunciaram uma queixa. Chorar,
permanecer horas e horas acocorada num canto do aposento com as mãos cruzadas sobre os joelhos e os olhos pregados
no chão era a sua vida.
Falto de resolução ante a dor e recolhimento de Enoé, Cingo não se atrevia a empreender a viagem. Partir sem
ela era de todo o ponto impossível, porque a amava com delírio; e deixá-la na Judéia era deixar a metade de sua vida,
todas as suas ilusões, todos os seus belos sonhos de felicidade. Esperar uma recompensa para o amor que lhe devorava o
peito, era quase impossível. Cingo começava a sentir um vácuo no cérebro. Receiou endoidecer, e uma noite, resolvido
a arriscar o todo pelo todo, sentando-se ao lado da escrava, falou-lhe deste modo:
- Sabes Enoé, que vou deixar a terra de Israel?

116
- Fazes bem, se não tem encantos para ti.
- A ave do deserto quer liberdade; e tu, Enoé, que queres?
- Eu?... nada... Sobra-me tudo porque me falta ele.
- Muito o amavas.
- Era a minha vida.
- O tempo e a distância dizem que são grandes remédios para as doenças do amor.
- O amor que vive na alma, morre no sepulcro e torna a renascer no paráiso.
- Que faria eu para consolar as tuas penas?
- Chorar comigo.
- As lágrimas afrontam os homens.
- Mas embelezam a mulher.
- Se tu me amasses, Enoé!... – Cingo deixou cair esta frase a medo.
A egípcia levantou os formosos olhos do chão, e fitando-os com indefinível melancolia no negro, exclamou,
depois de exalar um doloroso suspiro.
- Amar-te! Pode-se amar duas vezes na vida? Não há mais que um amor: o primeiro, como não há mais que uma
existência, a que recebemos ao nascer.
- Os poetas da minha terra escrevem muitas histórias em verso pondenrando a excelência do segundo amor.
- Pobres homens! O que eles julgavam amor era vaidade: o que julgavam segundo, era o primeiro.
- Mas o homem que conseguiu apoderar-se do teu coração já não existe.
- E que importa? Por ventura, ainda que a terra o cubra com a sua capa impenetrável, ainda que o sepulcro
encerre as suas cinzas para as guardar no profundo silêncio da morte, ainda que eu não o veja com os olhos do corpo,
deixo de o ver sempre com os olhos da alma? O amor da realidade não existe, mas o amor das recordações ergue-se
maior, mais belo no meu coração, na minha memória.
E Enoé juntou as mãos e ergueu os olhos ao céu como se através do teto da habitação visse nos céus a imagem
querida do príncipe de Israel.
- Tu aborreces-me, Enoé, murmurou Cingo, e esse ódio, esse desprezo que te inspiro mais reanima o fogo de
amor que o teu doce olhar me acendeu no peito.
- Aborrece-te! Oh, pobre de mim! O ódio não me cabe no coração, porque todo ele está cheio de amor.
Enoé mentiu; e se o negro não estivesse tão aturdido, teria visto passar pelos olhos da egípcia alguma coisa
extraordinária.
- Pois bem: se não me aborreces, se te inspira compaixão o eterno sofrimento que a tua frieza me causa,
exclamou Cingo com o entusiasmo do náufrago que vê junto de si uma esperança de salvação, esta mesma noite partirás
comigo para a África.
- Irei onde me mandes, respondeu com doçura Enoé; a tua vontade é a minha. Tu respeitas a minha dor, eu devo
obedecer-te.
Cingo pôs-se empé; passou as mãos pelos olhos como se duvidasse do que ouvia, e depois, estendendo uma da
mãos a Enoé, disse-lhe com o tom medroso de uma criança a quem seu pai repreende:
- Se fosses tão boa que me deixasses apertar a tua mão em sinal de amizade, de simpatia...
Enoé apertou a mão do negro com a sua, e este imprimiu nela um respeitoso beijo. Enoé estremeceu, como se um
botão de foto a houvesse queimado; mas o negro era tão feliz, que nada observou.
- Se queres, Enoé, partiremos quando o luzeiro matutino erga a sua formosa luz por cima dos cumes de Judá.
Tudo está preparado. Eu não me atrevia a empreender a viagem receoso de ofender-te, porque a tua vontade é a minha
lei... que querer! Amo-te como um louco. Em África serei teu escravo; a minha fortuna será tua. Tu serás a senhora, eu
serei o servo. Agradar-te, satisfazer os teus desejos será o meu único afã. Os deuses, propícios a minha paixão, façam
com que um dia brotem dos teus rosados lábios palavras de amor para mim.
Cingo esperava impaciente uma resposta, porque a condescendência, a bondosa resignação da egípcia lhe
deixava entrever uma esperança.
- Partiremos a essa hora, se é que assim te apraz, respondeu sem levantar os olhos do chão.
- Tu não podes imaginar o bem que me fazem as tuas palavras: partir para a minha pátria e partir levando-te ao
meu lado, para que mais ventura! Oh, que boa és! Não se porque me diz o coração que hei de ser muito feliz.
Enoé exalou um suspiro. Cingo, louco de alegria começou a reunir tudo o que julgava indispensável para a
viagem.
A egípcia olhava de vez em quando para o negro; mas os seus olhos fitavam-se as vezes com tenacidade na
cabaça que lhe pendia do citno: dir-se-ia que com seu olhar queria aprouver as pequenas víboras que se agitavam no
seio daquele vegetal.
- Olha, Enoé, vou deixar-te só alguns instantes; preciso de encher os odres de água e carregar os dromedários:
logo volto; procura achar-te pronta para a partida.
Cingo saiu entoando uma canção do seu país. Enoé permaneceu imóvel no mesmo lugar, somente, erguendo os
olhos ao céu, exclamou depois de soltar um doloroso suspiro.
- Oh! Quanto tardas, momento desejado! Antípatro, Antípatro! Confia! O meu valor não desmaia, a minha
memória está fresca como no dia da tua morte.
Depois voltou à sua habitural posição: triste, imóvel, chorosa, como a estátua da amargura, com os olhos no chão
e as mãos cruzadas sobre os joelhos.

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CAPÍTULO V

O CANTO DO CISNE

Algumas horas depois, Cingo e Enoé abandonaram a cidade de Jericó.


O negro etíope, armado duma lança trácia e dum curto sabre de Damasco à cinta, com o seu traje árabe e o
semblante risonho, montava um poderoso cavalo, presente de seu defunto senhor. A seu lado, embuçada num manto
ralado, Enoé cavalgava encastelada num dromedário, e atrás deste um camelo de carga levava sobre o robusto dorso os
petrechos de viagem, a tenda e a fortuna de Cingo.
Caminhavam ao lado do negro dandos saltos e ladridos de alegria tres cães enormes de raça caldeia, que tão
importante papel desempenhavam nas batalhas.
Apenas sairam da cidade, tomaram a via Roma que, atravessando a Samaria da Galiléia, conduz os viajantes do
interior às ribeiras do mar Ocidental, onde Cingo esperava achar alguma navio de transporte que o levasse para a costa
da África.
- Que manhã tão bela, Enoé! dizia Cingo. Tudo sorri em torno de nós; só tu conservas essa eterna melancolia que
me desespera. Não podes comrpeender o que eu faria para ver-te alegre e feliz!
Cingo calou-se, porque Enoé respondeu as suas palavras com um suspiro.
- Vês aquelas nuvenzinhas cor de opala que assomam pelo Oriente? tornou a dizer o negro. Pois na minha terra,
quando meus irmãos de dispõem a elevar a sua oração matinal e vem a saida do sol procedida por aquelas nuvenzinhas,
tem-no por bom agouro, e as caravanas prontas para atravessar o deserto empreendem sua penosa viagem com a alegria
no rosto, a esperança no coração e os cantares nos lábios. Canta, sim, Enoé, ri, deita, fora a tristeza, porque os deuses
imortais nos asseguram uma feliz viagem.
- Sim, tens razão, Cingo, devo cantar. Quando era menina levantava-me com a alva e juntava os meus tristes
trinados com os dos pássaros que andavam na margem do rio santo. Vou ver se me lembro duma canção da minha
infância.
- A tua voz encantadora ressoa no espaço, levantando um eco dulcíssimo no meu coração. Canta, Enoé, canta. Eu
te escuto.
Houve um momento de silêncio, durante o qual a egípcia parecia recordar os versos do canto da sua infância.
Por fim, precedido dum prolongado lamento, canto o seguinte romance com uma entoação triste como o gemido
dum cisne moribundo:

Aonde vais, ò meu Dario?


Edna, á guera me vou,
Pois já o exército persa
Em nossas terras entrou.
Não vás, não me deixes;
Peço-te pelo nosso amor,
Pelas cinzas de minha mãe,
Pelo nosso Deus protetor.

Nos plainos de Gizé


Já suas tendas levantou
Um exército estrangeiro
Que a nossa hora manchou.
Nada temas, Edna, minha.
Eu voltarei... E porque não,
Se Júpiter me presta amparo
E Minerva proteção?

Edna choa, Dario parte;


A triste dos olhos prantos solta,
Porque passam dias após dias
E o seu amado não volta.

Desde então a donzela


Em vão procura o amante!
Triste tem o seu olhar
Triste o seu semblante!
Triste é o eco da sua voz,

118
Que pelos bosques de Nicot
Repetindo vai: - Dario! Dario!

Porque me deixaste tão só?


Oh! Volta volta... volta
Peço-te pelo nosso amor,
Pelas cinzas de minha mãe,
Pelo nosso Deus protetor.

Calou-se a egípcia. Sua voz perdeu-se ao longe como gemido do zéfiro entre os espessos ramos dos salgueiros.
Duas lágrimas lhe escorregaram pelas ternas faces. Sua formosa cabeça caiu sobre o peito, dobrada como a pura
sensitiva aos ardentes raios do sol do meio dia.
Os dois cães que saltavam ao redor do seu camelo,apenas se extinguiu o triste som da voz de Enoé, soltaram um
prolongado e fúnebre uivo, que foi perder-se, fatidicamente entre as concavidades dos barrancos.
Cingo era árabe e, portanto supersticioso. A canção de Enoé, o uivo dos cães, fê-lo estremecer, e sentiu que o
sangue das veias se lhe gelava. Então, não achando palavras na língua, quis desimpressionar-se do fatídico estupor que
o itnha sobre-encolhido e, cravando o acicate nos ilhais do corcel, partiu a galope, fazendo na sua carreia mil evoluções
que mostravam que era um cavaleiro consumado. Os camelos imitaram o galope do cavalo, os cães saltaram em redor
dos camelos; todos corriam apressados sem despregar os lábios, preocupados, tristes, meditabundos. A canção de Enoé
tinha produzido efeito melancólico.
A aurora daquela viagem tinha-se apresentado risonha, tranquila. Mas aquelas nuvenzinhas cor de opala tinham-
se transformado em pardas nuvens de cor feia e achumbada. Quando o sol saiu, não pode lançar sobre a terra os seus
raios vivificadores, porque estava nublado.
Entretanto Cingo, corria e corria, mais para se aturdir que por correr, e atrás dele os camelos, levantando as
cabeças, aspirando o ar e mostrando os dentes; e os enormes cães, ora adiante, ora atrás da pequena caravana,
galopavam também, dando saltos e ladridos.
De repente rasgaram-se as nuvens e um raio cruzou o ar, deixando após de si uma serpente de fogo.
O cavalo de Cingo encabritou. Os dromedários lançaram um sôpro medroso, augurando a próxima tempestade.
Um trovão surdo e longínguo rolou nas nuvens, e algumas densas e grossas gotas caíram sobre a terra.
O negro conteve o cavalo e parou. Os camelos fizeram o mesmo. Os cães deitaram-se no chão com a língua
dilatada, a respiração fatigada e os ilhais batendo.
- Dentro em pouco a água cairá sobre nós a torrentes, Enoé; é preciso pôr pé em terra e levantar a tenda, disse
Cingo.
- Como quiseres; respondeu a egípcia com indiferença.
O negro pôs pé em terra, prendeu o cavalo ao tronco duma árvore e, aproximando-se do dromedário de Enoé,
tocou-lhe com a lança nos nodosos joelhos, e o dócil animal deitou-se para que a egípcia descesse.
Com rapidez assombrosa, o negro levantou a tenda, colocando-a junto à fralda dum outerinho, resguardada do
levante, que trazia sobre eles a tempestade.
Depois estendeu uma das peles e disse à escrava:
- Entra: a lona da tenda tem uma preparação que repele a água. Debaixo do seu teto achar-te-ás tão abrigada da
chuva como no palácio dum rei.
Depois prendeu os camelos junto do cavalo e mandou aos cães que não se movessem: e os cães, acostumados a
vigiar o sno da caravana, foram deitar-se a vinte passos da árvore que servia de refúgio aos herbívoros, como se a hora
da sua atalaia houvesse chegado.
Cingo entrou na tenda onde já se achava Enoé, e fechou atrás de si a porta de lona com as fortes correias de pele
de touro.
Parecia que as nuvens só esperavam que o negro terminasse a tarefa para descarregareeem sobre a terra as
ferventes cataratas que encerravam nos seus flutuantes bojos.
Poucos minutos bastaram para que o dia, que se apresentava belo, claro, cheio de poesia e de luz, se convertesse
num dia de horrível tempestade, de furiosos ventos, de mares de água.
No Oriente estas mudanças de tempo são mui comuns.
Os dromedários e o cavalo chegaram-se ao tronco da árvore que lhes servia de tenda, para se livrarem da água
que o céu derramava sobre eles. Os cães não se mexeram do lugar que lhes tinha indicado seu dono.

CAPÍTULO VI

DEBAIXO DUMA TENDA

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Cingo contemplou-a alguns instantes mais, fazendo um movimento de ombros como o homem que se decide a
revestir-se de paciência, sentou-se também, ainda que um pouco desviado da companheira de viagem.
- A tormenta durará pouco, disse quase falando consigo mesmo. Mas corremos muito, e algum descanso não será
mau para os camelos e para o cavalo... Se estás cansada, passaremos parte da noite nesta tenda.
- Eu só tenho direito a obedecer, respondeu Enoé.
- És muito cruel.
- A condescendência é crueldade na tua terra, africano?
- Não; mas a indiferença despadaça os corações ardentes e apaixonados como o que sinto bater no peito.
- E que me importa a mim que o teu coração se despedace quando o meu está feito cinzas desde o instante em
que o meu senhor desceu ao sepulcro?
Cingo abriu os olhos desmedidamente, pôs-se em pé, e cruzando os braços sobre o agitado peito, exclamou com
ira reconcentrada:
- Sabes que as tuas palavras podem converter a mansa ovelha em lobo feroz?
- Isso é uma ameaça?
- É uma advertência que pode servir-te muito.
- O rei poeta, o pai de Absalão, o dos longos cabelos, disse: “As repreensões suaves quebram a ira: as palavras
duras excitam o furor”. Não esqueças estas palavras do sábio Salomão.
- Oh! Que mais humildade queres no homem que te ama? disse o negro juntando as mãos com ademã suplicante.
- Que mais resignação esperas da mulher que te aborrece? respondeu a egípcia lançando-lhe um olhar altivo que
fez estremecer o negro.
- Enoé, Enoé, lembra-te que estamos sós; que sou o mais forte, e que a té o poderoso estrondo da tempestade é
em meu favor, porque apaga a voz humana.
Enoé encolheu os ombros e fechou os olhos inclinando a cabeça sobre um almofadão e murmurando:
- Ora! Tu não me farás mal; sei-º.. deixa-me dormir; incomoda-me a conversação; estou cansada.
Cingo, desorientado ante aquela jovem, soltou um rugido e deixou-se cair num dos extremos da tenda,
escondendo a cabeça entre as mãos, sem dúvida para não a ver.
Entretanto, Enoé, triste como sempre, tranquila como nunca, continuava reclinada sobre o seu coxim com os
olhos fechados.
Para um homem como Cingo, uma mulher como Enoé era a desesperação. O feroz negro, vendo-se sempre
vencido, derrotado por aquela fraca menina, estava fora de si. As idéias sucediam-se em tropel naquela imaginação
inculta, selvagem.
Tão depressa pensava em obrigá-la a obedecer pelo poder da força, como lhe ocorria cair-lhe aos pés e chorar
com ela a morte do venturoso príncipe que ainda depois de morto reinava no seu coração. Há tempestades no cérebro
que devastam e deixam sinais no ser humano como a passagem do furação num campo de espigas.
Cingo, apesar do minguado espaço da tenda, passeou, ou para melhor dizer; deu voltas como a hiena em redor
dum cadáver desenterrado.
- O vinho é bom conselheiro nos casos graves da vida, tornou; e depois os seus vapores consolam e fazem
esquecer-nos as penas: bebamos, pois.
Dirigiu-se a um dos extremos da tenda, desatou um odre e deitou uma porção de vinho numa ânfora de barro.
Depois tomou um punhado de tâmaras da caixa de provisões e uma pedaço de torta, e foi sentar-se junto da porta
onde tinha posto a pele e um coxim. Uma vez sentado, bebeu um grande trago de vinho e olhou para Enoé.
- Queres tâmaras? disse estendendo-lhe a mão cheia daqueles frutos.
A egípcia não respondeu.
- Terás adormecido?
Ao fazer a si próprio esta pergunta, a julgar pelo brilho dos seus olhos e pela expressão de prazer que lhe
assomou ao semblante, algum pensamento horrível lhe tinha passado pela mente; mas imediatamente fez um gesto de
indiferença com os lábios e tornou a beber com avidez, murmurando:
- Ora! O tempo é um grande remédio para a moléstia de que em pedaço. Respeitemos o luto do amor... e
bebamos...
Depois destas reflexões, um tanto mais tranquilo, Cingo procurou uma posição mais cômoda e continuou
fazendo repetidas libações. Os vapores do vinho começaram a produzir efeito; mas Cingo bebia e Enoé fingia dormir.
De repente os cães começaram a ladrar de modo desesperado. Cingo, com uma voz rouca e presa dos borrachos
murmurou:
- Que é isso Moloch? Que há, Tifon? Há algum curioso pelas vizinhanças, leais sentinelas? Mordei, despedaçai,
mas não me quebreis a cabeça com os vossos desagradáveis gritos.
Os cães continuavam com mais força os seus ladridos.
- Vejamos o que há, tornou o negro. E. não sem alguma dificuldade, pôs-se em pé e, pegando na lança, saiu da
tenda.
Enoé abriu os olhos ao ver-se só; pôs-se em pé, percorreu a tenda com precipitação, procurando alguma coisa
que não encontrava e depois, tornando a colocar-se na mesma posição, disse, fechando os olhos:
- Espera, espera, meu amor, que eu não durmo nunca.
Cingo, apoiado na lança, percorreu as vizinhanças da tenda; mas não encontrou nada.
A tempestade havia-se dissipado; os raios do sol da tarde ainda brilhavam.

120
Para o norte destacavam-se ao longe as tétricas montanhasa de Samaria como um esquadrão de gigantescos
fantasmas. A tempestade ainda pairava sobre os altos cumes, encaminhando a sua terrível cólera para s costas
ocidentais.
Cingo tornou a entrar na tenda, cambaleando, e deixou-se cair sobre a pele. Alguns momentos depois dormia
profundamente.
Sua respiração forte e pausada mostrava a qualidade do sono que a produzia. Cingo dormia o sono pesado e
profundo do borracho.
A egípcia abriu os formosos olhos. Um raio de sol, entrando pela porta da tenda, banhava a negra e selvagem
cara do escravo.
- Cingo, Cingo! disse Enoé em voz baixa.
O negro permaneceu na mesma posição.
Então a jovem levantou-se e, aproximando-se ao dormente, tornou a repetir o mesmo nome; mas desta vez com
voz mais forte e aplicando os lábios ao ouvido do adormecido.
O negro estremeceu, porém seus lábios permaneceram cerrados.
- Dorme, disse consigo Enoé, dorme profundamente.
Cingo tinha deixado as armas ao alcance da mão, e Enoé pegou um punhal.
Depois, pondo-se de joelhos ao lado do negro, com uma das mãos agarrou a pequena cabaça que continha as
víboras, e com a outra em que tinha o punhal, cortou o cordão de seda que a prendia ao cint.
Senhora daquela arma terrível, pôs-se em pe, dizendo:
- Olho por olho, dente por dente. Agora és meu, africano feroz. A tua morte é certa como a de Antípatro, a quem
vou vingar. Amanhã, Belzebu, o asqueroso deus das moscas, mandará as suas repugnantes legiões para que saboreim a
podre substância da tua carne envenenada.
Rápida como uma pantera saltou por cima do corpo do negro, e colocando-se à porta da tenda, destapou a
cabaça, e deitou todas as víboras no peito de Cingo.
Os venenosos répteis começaram a estender-se, agitando a língua, por todo o corpo; duas delas se enroscaram no
pescoço do negro e lhe cravaram os ferrões na carne; outra foi picar-lhe nos lábios; outra nos olhos.
Com a alegria feroz da leoa que acaba de despedaçar a hiena que lhe surpreende na cova dos cachorros, enoé se
afastou da tenda, e desprendendo os dromedários e o cavalo do tronco da árvore, montou no seu e deu o grito de partida.
Os dóceis camelos tomaram com passo grave a primeira senda que se abria ante eles. O cavalo seguiu os
camelos saltando e relinchando. Os cães, com o olhar fosfórico, procuravam seu amor e, não o vendo, encaminharam-se
para a tenda com esse instinto leal tão próprio da raça canina.
Ao chegarem à porta encontraram o corpo do negro que se revolvia pelo chão, lutando por sacudir o seu pesado
sono do vinho.
Os cães estenderam o pescoço, e dilataram os narizes cheirando o corpo do amo; mas de repente sacudiram as
orelhas e retrocederam alguns passos, soltando um lastimoso uivo.
Tinham visto as víboras; o seu imperceptível silvo horrorizava-os. O leão foge da víbora; todos os animais da
criação, inda os mais ferozes, as temem e evitam o seu encontro, cendendo o campo porque a sua picadura é a morte, e
eles o sabem por um secreto instinto.

CAPÍTULO VII

MELODIA FÚNEBRE

Os uivos dos cães e as terríveis picadas das víboras acabaram de despertar o negro, que fazendo um violento
esforço para sacudir o pesado e horrível sono que o subjugava, se pôs em pé e olhou em torno de si com os olhos
espantados.
- Enoé? perguntou a si mesmo. Onde estarás? E levou ambas as mãos ao rosto para esfregar os olhos, receoso de
não ver bem que o tinha na frente.
Então encontrou entre os dedos um corpo estranho que sentiu frio, e atirou de si com repugnância, soltando um
grito horrível, desesperado, atroador, que foi seguido de outro, não menos espantoso, que soltaram os cães, pois uma
das víboras tinha ido cair sobre a cabeça dum deles, que instanteneamente se sentira ferido pelo mortal ferrão.
-As víboras! As víboras! exclamou desesperadamente correndo para fora da tenda. Onde está Enoé? Miserável
mulher! Eu preciso afogar-te entre os braços antes que o veno que me corre pelo sangue me esfrie o coração.
E Cingo correu louco, desalentado para a árvore onde tinha deixado o cavalo.
E os cães seguiram-no ladrando funebremente.
E Enoé, a uns cem passos da tenda, montada no seu camelo, encaminhava-se para os vizinhos bosques de
Samaria, cantando com melancólica voz o romance de Edna e Dario.
Cingo levantou a cabeça, viu Enoé, soltou um grito de alegria, correu à tenda, passou por cima das víboras,
empunhou a comprida e pesada lança, tornou a sair ao campo e arremessou-se no encalço da egípcia.

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Esta, sem deixar o patético canto, meteu a cavalgadura a trote. O negro viu-a afastar-se de si, como uma visão
fantástica.
A raiva, a desesperação, cresceram-lhe no peito vendo que aquela mulher que o tinha burlado se escapava, à sua
vingança. Mais que um figura humana, parecia um espectro infernal lançado à carreira.
A espuma brotava-lhe da contraída boca. Os olhos encovados e reluzentes tinham uma imobilidade espantosa.
As pernas, fracas pelo vinho e trêmulas pelo veneno que lhe empeçonhava o sangue, mal podiam sustê-lo.
Caia, mas tornava a levantar-se pela sua poderosa força de vontade, e a cada queda soltava blasfêmias a que os
cães faziam coro com os uivos.
E Enoé corria adiante, e Cingo corria atrás, e ladravam os cães dum modo horrível, saltando em torno do amo.
- Espera, espera, Enoé! gritava com infernal entoação. Eu preciso antes de morrer atirar-te ao rosto a minha
língua empeçonhada. Espera, espera! E tu, Sátis, deusa terrível da morte, detem-lhe o passo com teu envenenado hálito.
Mas Enoé, sempre a igual distância como se tivesse o maravilhoso poder de medir o terreno que a separava do
seu perseguidor, cantava com impassibilidade.
- Maldita sejas! Maldita a que te trouxe nas entranhas, maldito o fruto do teu ventre se um dia conceberes, até a
quarta geração! exclamou Cingo soltando um rugido.
E que exalava o último sopro da vida, e arrojando com fúria sobrenatural a pesada lança que tinha na mão, caiu
desamparado e rolou por uma ladeira, despedaçando o rosto ao cair com os pedregulhos que juncavam o terreno.
A lança passou silvando por cima da cabeça de Enoé, mas a egípcia não se moveu; viu cair Cingo; cessou o
canto e deteve a cavalgadura, e erguendo os olhos ao céu com dolorosa atitude, murmurou em voz baixa:
- Meu amor, já estás vingado.
Depois, querendo certificar-se mais, dirigiu a cabeça do dromedário para o lugar onde tinha caído o negro, e
chegando a dois passos do ensanguentado corpo, deteve-se de novo.
O etíope estava horrivelmente desfigurado. Tinha morrido; mas ainda tinha os olhos abertos e agitavam-se-lhe as
pálpebras com espantosa precipitação. Os três cães lambiam-lhe as mãos e o rosto, uivando sempre.
- Sim, já não existe, murmurou Enoé; sua morte foi horrível, espantosa. O meu pobre Antípatro devia ter sofrido
muito pois morreu do mesmo modo que este miserável escravo. Oh! quando penso que tu, meu príncipe, senhor do meu
coração, morreste sem que os meus lábios cerrassem tuas formosas pálpebras, abandonado dos homens e talvez dos
deuses imortais, creio que a minha vingança foi pequena!...
Enoé deteve-se um momento. Depois apartou os olhos do cadáver e elevou-os ao céu, exclamando:
- Deus do Olimpo, cerrai o vosso formoso paraíso ao espírito deste malvado! Lares protetores da minha família,
guiai pela senda da vida, esta dozenla abandonada!
Enoé fez passar o camelo por cima do corpo inanimado de Cingo e continuou seu caminho à mercê da
cavalgadura.
A esta seguiram o camelo e carga e o cavalo. Os cães, mais leais, ficaram junto do cadáver.
Depois, nada: sombras, silêncio, solidão!... porque Enoé já não cantava, e os cães morreram sobre o cadáver do
dono, envenenados como ele pelas mortais víboras.

CAPÍTULO VIII

UM CAVALHEIRO QUE ROUBA EM DESPOVOADO

Deixemos os mortos e sigamos Enoé, que há três horas caminha sem rumo.
Se a vista e o passo do dromedário não fossem, uma mais perspicaz, e o outro mais seguro que o do homem,
indispensavelmente o modesto e valente herbívoro que conduzia a egípcia teria caido em algums dos profundos
precipícios que marginavam o caminho que à sua vontade seguia; mas isto acontece poucas vezes. Um árabe dorme
sobre o acastelado dorso do seu camelo com a mesma tranquilidade que à sombra duma palmeira ou sob o pavilhão da
sua tenda.
Enoé, abismada em suas reflexões deixara o prudente animal caminhar a seu bel prazer, porque lhe era
indiferente qualquer ponto da terra.
Caminhava, pois, ao acaso, sem pensar no que faria no dia seguinte: na sua imaginação só existia o ontem, isto é:
Antípatro e o seu amor.
Jovem e enamorada, só no mundo, tinha cometido um crime para vingar o seu amante. Sua imaginação
entusiasta, ardente, julgava um dever o que acabara de executar. Não matar Cingo, teria sido para ela uma covardia...
mais que isso, uma ingratidão, uma falta de amor.
Estava pois, tranquila; não tinha remorso; não a amedrontava o que pudesse sobreviver-lhe, porque não pensava,
como dissemos no futuro. O presente e o passado, isto é o seu amor sentido e o seu amor chorado, era tudo o que lhe
ocupava a imaginação. Tinha dezoito anos. Só havia amado o príncipe Antípatro, de quem era escrava, escravidão que
mais de uma vez tinha abençoado, afagando os louros e sedosos cabelos do amante.

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Abismada na recordação do seu amor, caminhava Enoé à mercé da cavalgadura, quandao esta deteve o passo ao
voltar de um barranco, e levantou bruscamente a cabeça. Este movimento inesperado fez perder o equilíbrio à jovem, e
indubitavelmente teria caído ao chão se mão vigorosa não houvesse obrigado o camelo a abaixar o arqueado pescoço,
com o que tornou a ficar sentada tão aprumada e segura como antes.
Enoé viu à claridade da lua um homem moço e belo parado diante da cabeça do seu dromedário.
Com a mão esquerda segurava o camelo, travando-lhe o freio de cânhamo. A direita empunhava uma azagaia
curta de três puas. O vestuário era uma espécie de capa curta e um turbante com bandas que caiam sobre os ombros. A
barba era pouca e mui rala, sem dúvida por causa da juventude.
Nada tinha de temível aquela aparição à meia noite e num barranco solitário.
- Boas noites, Enoé, disse o estranho com amabilidade e com voz doce e melíflua como a dum cortesão da rainha
Cléopatra.
- Conheces-me? perguntou a egípcia com assombro.
- Sim, pois já que sei o teu nome.
- E quem és?
- Sou um cavaleiro que rouba em sítio despovoado.
- Um ladrão?
- Esse é o qualificativo que se dá nas cidades aos homens que tem o meu ofício; mas não me ofendo com isso.
Mercúrio foi ladrão e hoje é um deus dos pagãos; é bem verdade que a tais crentes não fica mal um deus tão desonrado.
- Tu és judeu, pois que falas com desprêzo dos deuses do Olimpo.
- Só Deus é Deus, Enoé. Tu és egípcia e lá na vossa terra levantam-se pedestais e sacrifica-se a essas divindades
pagãs fabricadas pela mão do homem; porém eu sou hebreu e só venero o Deus invisível de Abraão e Jacó, porque este
Deus é o único. Ele só é verdadeiro.
- E qual é o teu intento, ao impedir-me a passagem?... Vens pelo ouro que presumes conduzem os meus
camelos?
- Venhor servir-te de guia, por ser teu amigo, teu irmão.
- Mas eu não te conheço... Como sabias tu que eu passaria por este lugar, quando, desde que o sol se escondeu,
caminho à mercê do meu camelo?
- Compreendo o teu espanto, e vou satisfazer a tua curiosidade enquanto não chega a minha gente. O lugar em
que te achas é Samaria. Este barranco conduz a Siquen; é um atalho muito conhecido pelos camelos e dromedários das
caravanas. Suas rochas calcinadas pelos raios do sol e pelo casco das cavalgaduras, tem sido feridas mais duma vez
pelas pisadas da que te conduz. Agora, informada do terreno que pisa o teu dromedário, continuo a minha relação, pois
desejo satisfazer o espanto que leio no teu semblante, formoso como o duma virgem de Sion, sobretudo neste momento
em que a lua reflete sobre a tua fronte.
Esta galanteria fez corar Enoé, sem que ela compreendesse o motivo. O misterioso personagem continuou.
- Sou, pois, como te disse, um bandido, capitão de uma quadrilha de bandoleiros que infesta este país. Tenho
espiões em toda parte onde o comércio se explora, e não sai caravana de uma cidade de Judá sem que eu o saiba. Há
alguns dias os meus agentes trouxeram-me a nova de que o escravo favorito do defunto rei Herodes, a quem Deus Jacó
confunda, fazia os preparativos para empreender uma viagem para as costas de Tiro, com o fim de embarcar naquelas
águas para a África, sua pátria. Sem ser eu um sábio da Grécia, calculei que Cingo, o escravo não abandonaria a corte,
sendo pobre, como um galileu da montanha, sem outro patrimônio que o seu matelot de pêlo e o seu surrão de pele de
cabra. Eu achava-me em Jericó; sabia que todos os nomes de Israel se encontravam no hipódromo; confiava que nos
seus corações não se teria extinguido de todo a recordação da sua passada glória e o amor à sua independência, e queria
contribuir para a salvação da minha pátria; mas enganei-me; os descendentes de Matatias já não serão mais que
escravos covardes e efeminados. Mas isto não satisfaz a tua curiosidade; desculpa se divaguei... Achava-me, pois, como
te disse, em Jericó, e soube quando Cingo saiu da cidade montado no seu cavalo e levando dois dromedários de carga,
num dos quais ias tu. Então corri a um bosquezinho próximo, onde quatro homens de minha confiança me esperavam, e
seguimo-vos a longa distância. Depois sobreveio a tempestade; levantou Cingo a sua tenda, e ambos vos abrigastes
nela; fácil nos teria sido então assaltar-vos mas eu prefiro a noite ao dia para executar essa tarefa. Como com a chuva e
com a terra úmida os cães têm mais faro, farejaram o nosso rasto e ladraram. O escravo, inquietado pelos ladridos, saiu
para reconhecer o terreno; mas nada viu e tornou a encerrar-se na tenda. Eu conheci que os cães eram um inconviniente
para vos surpreender e mandei um dos meus que lhes deitasse uma perna de carneiro; porque o cão farto rastreia menos.
Enquanto os cães comiam, deslizei-me por entre os arbustos e fui pôr-me atrás da vossa tenda. Do meu esconderijo
ouvia a vossa conversação. Então soubre que teu eras Enoé, a escrava favorita do malogrado príncipe Antípatro; e como
eu queria muito a este moço, propus-me salvar-te do furor do etíope. Depois vi que ele bebia e que tu não te mexias
fingindo dormir. Por fim os vapores do vinho venceram Cingo e então tu...
O bandido deteve-se e, depois de uma pausa durante a qual Enoé nada disse, continuou:
- Tu então vingaste teu amante; eu montei num cavalo, partir a galope e vim colocar-me neste barranco onde te
conduziu o dromedário. Eis porque sei o teu nome e porque me achas no meio do teu caminho como uma aparição; mas
não temais; eu sei respeitar a mulher e ai do que tocasse num só fio de tua roupa! Dimas, o bandido, saberia castigar o
seu atrevimento.
- Não sei porque tuas palavras me inspiram confiança; sou teu priosioneira. Conduze-me aonde te aprouver.
- Não, és minha amiga. As mulheres, as crianças e os velhos tem um asilo no meu castelo. Nada tema. Serás livre
no dia em que queiras e conduzida por mim ou pelos meus companheiros ao lugar que tu nos indiques. Antípatro bateu-
se ao meu lado contra os ímpios. Eu saberei respeitar a sua memória na tua pessoa.

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- Agradeço-te em seu nome, generoso bandido.
- Cumpro um dever. Agora segue o passo do meu cavalo, que a distância que temos que percorrer é longa.
Dimas foi para seu cavalo: montou e, aproximando-se de Enoé, disse-lhe:
- Vamos.
Uma hora antes de amanhecer chegaram ao castelo de Hebal, Enoé entrou sem medo na tétrica fortaleza.
Apenas passaram a porta, alguns bandidos se aproximaram para a ajudar apear.
- Meus amigos, lhes disse Dimas com doçura, apresentovos minha irmã. Tratai-a como merece.

LIVRO DÉCIMO

OS DESTERRADOS

CAPÍTULO I

ARQUELAU

Nesse tempo as nações conquistadas pelos filhos do Tibre não eram mais que províncias romanas sujeitas ao
capricho e à vontade dos Césares. O mundo era uma numerosa família de escravos que curvavam a cabeça com
medroso ademã entre um só senhor: o César romano. Estas províncias eram governadas por tributários régulos que
lambiam vergonhosamente a mão que os humilhava.
Morto Herodes, o Grande, Otaviano Augusto dirigiu seus reais olhares para a Judéia e à sua onímida vontade
pareceu conveniente que aquele reino desgraçado e envilecido se dividisse em quatro tetrarquias tributárias a Roma.
Nomeou Arquelau tetrarca da Judéia, isto é, alguma coisa mais que tetrarca e um pouco menos que rei; a Abissínia, e a
Galiléia, deu-as a Herodes Antipas, e a Felipe concedeu a Ituréia e a Traconitide.
Ficaram os três irmãos contentes, parecia, com a imperial distribuição, e Arquelau, o mias favorecido pelo
César, crendo-se senhor da sua vontade, começou a mostrar sem rebuços seus instintos ferozes e sanguinários.
Os distúrbios civis seguiram-se como era natural às tropelias reais.
Joazar, sumo pontífice dos hebreus, foi substituído pelo ouro de Eleazar, seu irmão, e pouco depois as dobras de
Josué decidiram Arquelau a conferir-lhe a alta dignidade de que privara Joazar. A lei da Judéia foi escarnecida pela
ambição do tetrarca, porém o sanguinário sucessor de Herodes cortou a cabeça dos alvorotadores, e o terror selou os
lábios dos decontentes.
A avareza, aos abusos arbitrários de Arquelau, faltava um escândalo que decidisse os israelitas a tomar vingança
daquele podre pimpolho do Idumeu, que se apresentava mais cruel, mais vingativo que seu pai.
Arquelau tinha uma esposa. Chamava-se Mariana. O povo amava a soberarna porque era bondosa com os aflitos
e mais de uma vez tinha consegido desviar o ferro homicida da trêmula garganta da vítima. Mariana era formosa,
prudente, e amava o povo.
Um dia Arquelau viu Cléfira, viúva de seu irmão Alexandre e de Juba, rei de Mauritânia. Cegou-o sua formosura
e, desatendendo os santos vínvulos que o uniam a Mariana, repudiou-a barbaramente e casou-se com Cléfira.
Esta infâmia arrancou um grito de indignação ao povo de Judá. Herodes tinha repudiado sua primeira esposa e
assassinou a segunda. O filho não estava muito longe de imitar o pai. Os nobres de Israe, ainda que amedrontados,
reuniram-se num dos profundos silos do Carmelo.
Sublevar o reino era empresa vã, atendendo ao acovardado espírito que se apoderara dos descendentes de Jacó.
Outra tentativa nas ruas de Jerusalém só custaria sangue, e Arquelau estaria, no seu direito, derramando-o pela
tranquilidade do seu reino.
Então um ancião levantou a voz e disse à assembléia:
- O raio de Elias não se acha entre nós: o valor de Judas Macabeu apagou-se no coração dos filhos de Israel. O
Deus invisível abandona-nos porque o templo de Sion é profanado e a lei de Moisés calcada como um feto imundo.
Nada espereis do nosso povo que treme amedrontado sob as pregas da sua rota capa, roendo o osso podre que lhes atira
aos pés esse rei avarento que nos governa e empobrece. Só um homem pode salvar-nos, porque esse homem é poderoso
como David, sábio e clemente como Salomão: esse homem é o César Otaviano Augusto, o senhor do mundo. Arquelau,
o verdugo de Judá, é rei por praga sua. Recordai as palavras do Imperador, quando lhe concedeu a etnarquia: -
“Concedo-te o governo da Judéia e Abissínia, mas com a condição de que has de ser clemente e bondoso com os teus
súditos. Pai e não verdugo dos judeus, quero ver-te. Se assim não obrares, a minha amizade se trocará em justiça e a
minha cólera imperial cairá sobre tua cabeça”. – Isto disse o César. Isto mandou que se noticiasse ao oprimido povo de

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Israel. Irmãos, só o César Augusto pode livrar-nos do verdugo que esvazia as nossas arcas, escarnece as nossas leis,
profana os nossos templos e derrama o nosso sangue.
Este discurso foi recebido com um grito de entusiasmo e o venerável ancião foi convidado pelos companheiros
para indicar o que se devia fazer.
Então decidiu-se que partisse com muito segredo uma comissão para Roma, para informar o César da sua
desgraçada sorte.
Quando os secretos embaixadores do aflito povo de Israel chegaram à cidade de Tibre, Augusto recebeu-os com
a bondade própria do seu caráter. O imperador respondeu, quando o velho rabino terminou a sua dolorosa relação.
- As tuas lágrimas e as tuas cãs são para mim uma garantia, ancião: o oprimido povo de Israel encontrará em
mim um protetor. Descansai, pois nada aborreço tanto como os tiranos, nada me inspira mais repugnância que os
verdugos coroados: as víboras esmagam-se.
Os judeus lançaram-se aos pés de Augusto, derramando um mar de lágrimas aos pés daquele rei magnânimo e
generoso.
Augusto, depois de os consolar, disse-lhes dirigindo-se ao mais velho:
- Ouvi dizer que na vossa terra nasceu o Messias, anunciado pelos profetas.
- Assim se assevera em todo Israel, senhor, lhe respondeu o rabino.
- Viste-o, ancião?
- Tive a felicidade de beijar os seus divinos pés no templo de Sion.
- Em que tribo de Israel vive esse Deus homem?
- A perseguição de Herodes obrigou-o a emigrar para o Egito, e não voltou à pátria: durante sua penosa viagem
os anjos de Abraão guiaram sua cavalgadura; os deuses pagãos do Cairo, de Alexandria e de Hermópolis cairam
quebrados em pedaços dos seus pedestais; as árvores abaixaram suas frondosas ramas para lhe servirem de tenda, e as
fontes brotaram das secas rocas de Matarié.
- A Herodes dei o encargo de procurar esse Menino, disse Augusto.
- E Herodes degolou todos os da sua idade, na santa cidade de Belém.
O César, depois de saber algumas particularidades da infância de Jesus, despediu os embaixadores, dizendo-lhes:
- Se algum dia encontrardes esse Deus, homem ou menino, e eu não houver morrido, dizei-lhe que o senhor de
Roma quer adorá-lo. Agora, parti tranquilos; não esquecerei o que vos prometi.
Algumas semanas depois, mandou um emissário e fez comparecer o feroz Arquelau ante o senado de Roma. O
clamor dum povo pôde mais que a soberba dum rei. Arquelau foi destituído da sua dignidade, seus bens foram
confiscados e o César mandou-o desterrado para Viena do Delfinhado, doze anos depois do nascimento de Jesus Cristo:
a Judéia foi desde então província imperial.
Mas era preciso que um homem a governasse em nome de Roma, e Capônio foi escolhido por Otaviano
Augusto.
O novo governador quis explorar depressa demais o filão que abrira ante a sua cobiça, e aquele abuso de
confiança atraíu-lhe o desagrado de César. Capônio caiu do poder e foi substituí-lo Marco Ambibio, que, falto de saúde,
pediu a aposentadoria e deixou o bastão a Pôncio Pilatos, célebre mais tarde pela sentença e morte de Jesus Cristo.
Herodes, o Grande, para que não se cumprisse a profecia de Jacó, de que o salvador de Israel viria quando o
trono de Judá estivesse ocupado por estrangeiro, mandou queimar os livros genealógicos dos reis de Judá para que
pudesse justificar-se que ele não era oriundo daquela nação. Porém a sua empresa foi vã e o bárbaro atentado,
infrutífero. A profecia tinha-se cumprido.
A Judéia não era mais que uma província de Roma quando nasceu o Salvador do mundo no miserável estábulo
de Belém.
O César mandou recensear os judeus porque eram seus súditos, e José e Maria foram conduzidos por ordem dum
estrangeiro à cidade predestinada pelos profetas para servir de berço ao ungido do Senhor, ao Messias prometido.

CAPÍTULO II

OS SANTOS EMIGRADOS

Atravessemos o deserto e passando, sem nos determos pelas planícies de Gizé, se ergueu a pirâmide de Chops,
entremos no Egito povoado.
Rodeemos os soberbos muros e as altivas portas da cidade do sol. Não detenhamos o olhar nas altas agulhas de
Semíramis, nem aos brunidos minaretes de Hermópolis, a bela.
As cúspides dos seus templos pagãos brilham como um mar de prata quando o sol os fere com seus raios; mas
que nos importa a nós o estrondo das cidades nem os soberbos edifícios da pátria dos faraós, da terra dos Logidas?
No extremo oriental do povoado, e um pouco separada do pequeno grupo de casinhas que forma, vê-se uma
humilde cabana com teto de palha. A poucos passos da porta estende os seus ramos um robusto sicômoro, como se
quisesse abrigar com seus frondosos ramos aquele miserável ninho que se coloca à sua protetora sombra.

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U’a mulher moça e formosa, de olhar doce e sereno, de fronte casta, de cabelos louros e humilde ademã, está
sentada junto do tronco desta árvore. Uma túnica de lã de cereja, apertada na esbelta cintura por um cordão, e um
pequeno turbante delinho branco, são as peças de que se compõe o seu modesto traje. Suas mãos brancas e pequeninas
agitam com assombrosa rapidez uns pauzinhos que pendem de fios extremamente finos.
Esta Mulher ocupa-se a fazer rendas da Palestina, com tanto afã procuradas para cobrir os rostos das virgens de
Israel. De ez em quando desvia os olhos do trabalho que a preocupa, e dirige um olhar doce e carinhoso para o pequeno
povoado de Matarié, detem-no um segundo como se esperasse alguma coisa, e depois, soltando um suspiro, prossegue a
interrompida tarefa. Já a luz do dia, vencida pelas sombras da noite, se acha próxima a desaparecer, e ainda a formosa
jovem continua a trabalhar.
A solitária jovem torna a dirigir os formosos olhos para Matarié. Um sorriso de amorosa bondade lhe resvala
pelos lábios.
- Ah! exclama com apaixonado acento; lá vêm.
E, esbelta como a jovem palmeira do Iêmen, magestosa, como a rainha Ester, põe-se em pé.
Um Menino de seis a sete anos, corado como uma rosa dos Alés, formoso como o sorriso da aurora, e um ancião
venerável como os cumes do Sabino, vem pela vereda que conduz à árvore da cabana. O velho leva um pesado
machado ao ombro, e o tenro infante, um feixinho de lenha pendente das espáduas.
A Jovem do sicômoro sai ao seu encontro, jutam-se os tres, e saudam-se com amorosa cordialidade. Então a
mulher toma nos braços o tenro adolescente e leva-o até à porta da cabana; o ancião que os segue levanta os olhos ao
céu, e no seu bondoso semblante pintam-se as doces comoções que agitam o seu belo coração.
Aquele tenro e formo Infante veste simplesmente uma túnica de lã de cor escura. Seus longos cabelos castanhos
caem-lhe com magestade sobre os ombros, e o olhar de suas pupilas azuis resplandece como a luz do dia.
Uma pobre mesinha de pinho que reluz como prata brunida, pela extrema limpeza da sua madeira, acha-se
preparada no meio do limitado espaço da cabana.
Frugal é a ceia: mas a paz e o amor moram debaixo daquele modesto teto, e dão graças quotidianamente ao Deus
invisível de Abraão com lábios fervorosos pela sua eterna bondade. O ancião abençoa, com patriarcal acento, a comida,
e todos se preparam para a ceia.
- Quanto trabalhaS, José exclama a Mulher pondo um prato de verduras cozidas diante do ancião.
- Bendigamos a Deus, Maria, que assim o dispôs, responde José; mais me condoo deste tenro infante.
- Nunca o cansaço me entorpece os membros. Sou tão feliz vivendo no seio da vossa pobreza! Minha fortuna é o
vosso amor, disse por sua vez o menino.
E a sua voz tem um eco dulcíssimo que chega até ao mais recôndito da alma, causando um bem indefinível.
- Filho do meu coração, exclamou Maria depositando um amoroso beijo na fronte do Menino; o pão do destêrro
é amargo como a folha do loureiro, negro como as asas do corvo, duro como as pedras angulares do templo de Sion. E
Tu, alma da minha alma, ser do meu ser, depósito sagrado que Jeová me concede para mitigar as minhas penas, Tu, o
formoso Menino, que tens a majestade dos reis de Israel na fronte, o sorriso dos Anjos de Abraão na boca, e o reflexo
do Deus invisível de Moisés no olhar, sofres e padeces os rudes embates da nossa pobreza, sem que uma queixa ou um
suspiro saia dos teus lábios.
- Mãe, respondeu o Menino com admirável gravidade, Deus, meu pai, assim o escreveu. Acatemos sua vontade:
esperemos a hora designada.
- Oh! meu Jesus! As tuas palavras ressoam como as harpas de Sion no fundo da minha alma; eu te venero, eu te
bendigo, porque Tu és o bálsamo universal das minhas dores.
A Santa Família pôs fim à sua modesta ceia e, dirigindo os chorosos olhos para Jerusalém, entoaram o cântico de
graças e orações da noite.
Depois, José fechou a porta; a Virgem foi buscar o descanso na sua pequena habitação; Jesus estendeu no seu
quarto o leito de esteiras, e o Patriarca descansou sobre o pobre montão de palha que lhe servia de cama.

CAPÍTULO III

ONDE APARECE EM CENA UM RÉU DE MORTE

Passou uma hora, e duas, e três. E a noite ia muita alta, e todos dormiam o sono dos justos, na cabana.
Uma nuvem branca e brilhante como a espuma dos mares desceu do céu e um mancebo louro como as espigas
que fecundam o rio santo saiu dentre as nuvens.
Branco era o seu vestido. Uma estrela brilhava-lhe no meio da fronte. Um raio de luz divina lhe saía dos olhos
azuis.
A celeste visão chegou com passo mesurado à cabana e deteve-se. Sua passagem tinha deixado após si um rasto
brilhante e luminoso como a quilha dum navio sobre a superfície dum mar tranquilo.
- Eu sou Gabriel, emissário predileto do Senhor, disse o anjo com celestial acento,que chegou à tua porta, ò José,
para dizer-te: “Levanta-te, José, e toma o Menino e sua Mãe, e vai para a terra de Israel, porque são mortos os que
queriam matar o Menino”.

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Gabriel cessou de falar, inclinou a formosa cabeça sobre o peito, e permaneceu nessa atitude alguns minutos.
Depois envolveu-o a nuvem entre as suas pregas e, abandonando a mansão dos homens, elevou-se
magestosamente ao céu, repetindo:
- “Levanta-te, José, toma o Menino e sua Mãe, e vai para a terra de Israel”.
Levantou-se José, e participou a Maria a revelação do anjo Gabriel.
No dia seguinte os humildes desterrados abandonaram o povo hospitaleiro de Matarié.
Ao chegarem ao deserto, a fronte de José escureceu-se e os olhos de maria cobriram-se de lágrimas. Jesus pelo
contrário: um sorriso resplandecente lhe assomou aos lábios. Caminhava a pé junto do nobre ancião que lhe servia de
pai.
Três dias depois chegaram, ao cair do sol, à torrente do Egito.
Só lhe faltava atravessar a estéril Idumeia para se acharem na formosa terra de Judá. Buscando refúgio onde
passar a noite, viram uma caverna a poucos passos do lugar que ocupavam.
Jesus entrou adiante e um misterioso raio de luz, iluminou aquelas escuras e socavadas rochas.
Ali, sem outros leitos que os pobres vestidos, encostadas as cabeças nas duras pedras, dormitaram com o coração
alegre, pois em breve iam ver as altas torres da cidade santa.
À meia noite, dois homens se apresentaram à porta da caverna. Um deles vinha do Egito; o outro das terras de
Judá.
- Dimas! disse o que chegou primeiro.
- Gestas! falou o segundo.
E ambos entraram na caverna.
- Queres que acendamos luz? perguntou Dimas a Gestas.
- Para quê? Pode-se falar perfeitamente sem ela, e nós omos aves noturnas destinados a viver na escuridão.
- Tens razão. Mas sentemo-nos; estou cansado.
Os dois homens sentaram-se no chão.
Os santos Viageiros continuavam a dormir sem darem pela companhia.
- O teu emissário, disse Dimas depois duma pequena pausa, disse-me que querias transportar-te a Samaria com a
tua gente.
- É verdade. O deserto está pouco concorrido, e os meus soldados, que cobiçam o despojo e anelam a orgia
depois do combate, aborrecem-se de esperar os dias de sol a sol emboscados nas escalvadas rochas e venenosos
arbustos de Etam e Param. Assim, pois, querem que os leve para um páis mais abundante. Como tu és o chefe dos
montes de Samaria, quis saber se nos darias hospitalidade ou, para melhor dizer, se queres que a tua guarida seja nosso
refúgio e repartamos os despojos como bons camaradas.
- Nunca recusei hospitalidade aos homens que batem à miha porta. Aqui está a minha mão.
- Podes vir quando quiseres; minha gente não pegará em armas contra a tua gente.
Neste momento ouviu-se um profundo suspiro que saía do extremo da caverna.
Gestas leou a mão ao cinto para encontrar o punhal, e disse, baixando a voz:
- Aqui está gente.
- Também me parece, respondeu Dimas.
- Espera, acenderei luz.
Gestas tirou uma corda enxofradaa que trazia enrolada na cinta e, saindo da caverna, procurou duas pederneiras.
Depois esfregou com violência as duas pedras e o extremo da corda, até que se inflamou, despedindo uma chama
amarelada e um cheiro acre e desagradável.
Armado desde archote entrou na caverna, e ambos começaram a revistá-la.
Dimas foi o primeiro que viu o Viajantes adormecidos, e estremeceu como se os reconhecesse.
- Eis aqui um despojo que não esperava, disse Gestas; e fez ademã de dirigir-se à Virgem.
Dimas travou-lhe do braço e deteve-o, dizendo-lhe:
- Ouve, Gestas, ao ver esta pobre gente senti o coração dar saltos.
- Pois bem, que é que queres? disse Gestas.
- Eu não deixo perder a ocasião, assim como não a deixarão perder os romanos, quando me apanhem.
- Rogo-te pelo que mais ama na terra que respeites seu sono.
- O que eu mais amo na terra é o dinheiro.
- Pois bem, não lhe toques e eu dou-te vinte dracmas de prata.
- É pouco, respondeu Gestas com cobiça.
- Ajunto a essa soma este cinturão de couro e este punhal de Damasco.
Gestas examinou os objetos.
Dimas, vendo que ele vacilava, continuou.
- Se recusas o que te proponho, então está entendido que te disputarei a presa.
Esta razão decidiu Gestas a aceitar.
Neste momento ouviu-se uma voz do fundo da cavern, que dizia:
- Dimas, Gestas, vós morrereis comigo; um à minha direita, e outro a minha esquerda.
Os bandidos sairam atemorizados da caverna.
Dimas dirigiu-se para a Iduméia murmurando em voz baixa:
- É Jesus, Filho de Maria: reconheci-º
Quanto a Gestas, dizia para si:

127
- Este Dimas não sabe fazer contrato; para não depenar uma família de mendigos deu-me vinte dracmas e o seu
punhal. Creio que a vantagem está da minha parte, se viver ao seu lado.
Alguns dias depois a Santa Família chegou “a Nazaré para que cumprisse o que tinham dito os profetas: que será
chamado Nazareno”.
Com quanta alegria, com quanto regozijo viram os desterrados do vizinho monte as modestas chaminés da sua
aldeia, os tranquilos prados onde correu a sua infância, a fonte onde apagavam a sede nos ardentes dias do verão!.
A Santa Família chegou a Nazaré depois de mil perigos e sobressaltos. A viagem era longa, porém o Deus
invisível guiou os seus passos no deserto.
O regozijo dos parentes foi indescritível. José achou sua modestia casinha, e estabeleceu-se com alegria
incalculável. Maria bendisse a Deus, e Jesus, levantando os olhos ao céu, deu graças ao Eterno, remediado dos
desgraçados.

CAPÍTULO IV

A FESTA DOS ÁZIMOS

Filhos de Israel, povoadores das doze tribos descendentes de Abraão e Jacó, disponde-vos a abandonar os vossos
lares; escolhei no vosso rebanho o cordeirinho sem mancha, são de carnes, branco de pele e tenro de um ano; vesti-vos
com vossas túnicas mais novas; envolvei-vos nos vossos mantos mais finos, e enrolai no pescoço o curto talet de linho
cor de jacinto!
Recordai as palavras do Senhor, que vos disse por Moisés:
“O cordeiro há de ser sem defeito, macho, e dum ano. Reservai-o até ao dia quatorze deste mês, em cuja tarde o
imolará toda a congregação dos filhos de Israel. E tomarão do seu sangue e rociarão com este as duas ombreiras e a
padieira da casa em que o comerem. E as carnes, as comerão aquela noite, assadas ao fogo, e pães ázimos com ervas
amargas.
“Nada dele comereis cru, nem cozido em água, mas somente assado ao fogo; a cabeça, com as pernas e as
assaduras. Não ficará nada dele para a manhã seguinte; se sobrar alguma coisa a queimareis no fogo. E o comereis deste
modo: tereis cingido os rins e metido o calçado nos pés, e um cajado na mão, e comereis depressa por ser a Páscoa do
Senhor.
“Porque eu passarei aquela noite pela terra do Egito, e ferirei todo o primogênito da dita terra sem poupar
homem ou besta, e dos deuses do Egito tomarei vingança, Eu o Senhor. O sangue vos servirá de sinal na casa onde
estiver, pois Eu verei o sangue e passarei de largo sem que vos toque a praga exterminadora, quando eu ferir a terra do
Egito”.
Vinde, chegai em boa hora, pastores de Betânia e de Manassés, rebeldes samaritanos, marinheiros fenícios,
lavradores de Zabulon e Judá, montanheses do Líbano e da Galiléia. Jerusalém vou espera adornada com os atavios
duma desposada, e suas altivas portas estão abertas para vos receberem.
Mas não vos esqueçais de trazer convosco as primícias da colheita, porque a vossa mão deve depositar no templo
de Sion a espiga verde de cevada para que o sacerdote lhe sacuda os grãos e os toste ao fogo, e os triture depois com
uma pedra para que a sua farinha misturada com incenso e azeite seja oferecida em sacrifício sobre o santo altar. Por
espaço de sete dias comereis o pão sem fermento, e o que assim não fizer, maldito será por Deus, e morto a mão armada
há de vê-lo a família.
Para que se cumpram os preceitos da lei, revistai os cantos de vossa casa, não seja que os ratos hajam escondido
algum bocado de pão fermentado e a maldição de Jeová caia sobre vós.
Jerusalém! Jerusalém! Cidade eterna, Matrona augusta! Jerusalém, Jerusalém! Peróla da Palestina, cobiçado
florão do Oriente entoa o canto de Hosana, adorna os teus soberbos muros de bandeiras, enfeita com palmas e mirto os
ameiados torreões da chata porta de Damasco, de Efraim e de Débora, porque os povoadores das dozes tribos vem para
ti em alegres caravanas.
Pelas escabrosass veredas do Sul, chegam os montanheses de Judá e Sion com suas túnicas roxas e suas mantas
azuis como o céu. Do Leste descem os moradore de Gad e Rubens, e as fímbrias das suas achumbadas vestiduras
acham-se ensopadas nas águas do Jordão.
No norte baixam os povoadores do Líbano e Zakle, recolhendo na passagem os habitantes das tribos de Asser e
Neftali e Zabulon, e ao atravaessarem a hostil Samaria, recebem com paciência os insultos e o escárnio dos filhos de
Sem, dos ímpios adoradores do bezerro, da família que vegeta na casa maldita da impiedade.
Os pobres galileus, com suas túnicas pardas e brancos turbantes, caminham fatigados em busca do Santo dos
Santos.
A lei, com tanta exatidão praticada, proibe-lhe a mistura nas grandes festividades. Por isso as mulheres
caminham adiante, num grupo, e os homens atrás, a uma distância de quinhentos passos. Mas detenhamos um momento
o olhar para contemplarmos o modesto grupo das nazarenas.
Vede-a! Aí vai a Virgem Mãe, a Estrela do Mar, a Flor da Galiléia, a que em breve será fonte de ternura
imaculada.

128
Seu olhar é doce e amoroso como o da fazela; sua fronte, clara e radiante como o disco da lua; seu sorriso
bondoso, como a caridade cristã. Todos a rodeiam com amor; sua pobreza é muita; mas o seu coração, inesgotável fonte
de bondade, perene manancial de virtudes, a exalta e eleva sobre os seus, e é amada e querida como a filha dum príncipe
desterrado que semeia o bem a mãos cheiras entre os hospitaleiros moradores que lhe abriram as portas para a
receberem.
Junto da Santa Virgem, e com saborosa prática entretidas, caminham Joana, esposa de Chus; Salomé, mulher de
Zebedeu, e outra que mais tarde devia consignar-se nos Evangelos, com o nome de Altera Maria.
Atrás deste grupo de mulheres que o sangue do Crucificado imortalizou, vêm os galileus. José, o humilde
carpinteiro de Nazaré, vai entre eles. Jesus caminhava ao lado do pai, rodeado de alguns jovens da sua idade, entre os
quais se achavam os filhos de Zebedeu, Tiago, impetuoso como a torrente do Egito durante as estações equinoxiais, e
João, formoso e inofensivo como o cordeiro de Isaias.
Os pescadores de Betsaida, apelidados mais tarde por Jesus “filhos do trovão”, caminhavam também a seu lado,
e os filhos de Alfeu, Judas, Simeão, José e Joaquim, seguiam os galileus, olhando com desprezo o Filho do carpinteiro,
a quem deviam adorar e proclamar como seu Deus.
Tiago, ensoberbecido com sua posição e seus estudos, com o seu semblante frio, ser ar melancólico, o rosto
pálido e a longa cabeleira, castanha, sempre que Jesus lhe dirigia a palavra, não se dignando responder, enviava-lhe um
sorriso desdenhoso.
Tiago ignorava que mais tarde chegaria a ser Bispo de Jerusalém pelas doutrinas daquele Jovem que caminhava
ao seu lado e que ele olhava com indiferença.
E Jesus? Jesus, como tudo possuia, nada afetava, porque só se finge o que se não tem.
Sua conversação era adequada aos seus curtos anos, e seus jovens parentes, segundo a carne os quais mais tarde
devia fazer apóstolos da fé, escutavam-no com assombro crescente, sem perceberem o magnético poder das duas
palavras.
Rudes pescadores, a quem a luz do seu Divino Mestre, esclarecendo-lhes o cérebro, outorgou a eloquência
sublme e santa que devia conduzi-los ao martírio para selarem com o sangue a doutrina do Redentor, caminhavam para
Jerusalém ignorantes ainda do imortal futuro que lhes preparava aquele adolescente que viam a seu lado.
Por fim chegaram à cidade santa depois de quatro dias de viagem. A família de José instalou-se nos pórticos do
templo, onde comeram, segundo a lei, o cordeiro sem mancha, o pão sem fermento e as ervas amargas. Terminados os
sete dias que prescrevia a lei, os galileus abandonaram a cidade e encaminharam-se para Nazaré.
Bastante entrada noite, detiveram-se as mulheres que iam adiante, na casa desmantelada que devia servir-lhe de
albergue durante a noite.
Maria volveu um olhar para o alegre grupo de galileus que se aproximava. A rosada cor das frescas faces da
Virgem começou a desaparecer. José tinha chegado, e Jesus não estava com ele.
- E meu filho? perguntou.
- Não saiu contigo da cidade? falou, estremecendo por sua vez, o santo Patriarca.
Maria estendeu os olhos em torno e, não vendo Jesus soltou um grito doloroso. Era o grito da mãe que julga
perdido seu filho no meio dum caminho deserto, no príncipio duma noite sem lua, num país onde as feras assaltam com
violência o indefeso caminhante.

CAPÍTULO V

O MENINO PERDIDO

A desolação da Mãe ao ter certeza de que seu Filho se tinha perdido foi imensa. Em vão a consolavam os
parentes, fazendo-lhe promessas de percorrerem a cidade em sua procura. Um mar de lágrimas lhe brotava dos
formosos olhos, e aquelas lágrimas se esgotavam, porque sua alma pura, imaculada, começava a ser o perene
manancial das dores
Antes que a luz da aurora destacasse os objetos confundidos pelas sombras da noite, Maria acompanhada de
alguns de sua família, se encaminha para Jerusalém com o semblante descomposto pelo pranto, o coração despedaçado
pela pena e dor.
Aquele caminho foi a primeira rua da sua amargura. Qual rôla enamorada que busca seus filhinhos de ramo em
ramo, assim Maria andava e desandava o caminho perguntando a todas as mulheres que via pelo seu Filho amado.
As palavras do salmista, pronunciadas pela sua boca, tinham um sentimento e amargura indefiníveis.
- Haveis, por ventura, visto Aquele a quem tão deveras adora a minha alma? lhes diz com olhos arrasados de
lágrimas e as mãos juntas com dolorosaa atitude; mães que tendes filhos, buscai pelo Deus de vossos maiores.
Absortos, compadecidos da profunda dor da jovem galiléia, os caminhantes suspendem seus alegres cantares,
detêm o passo, sentem-se enternecidos e perguntam-lhe como Salomão:
- Que tem o teu Amado sobre os outros amados, ó tu, a mais formosa entre todas as mulheres? Que há no teu
Querido sobre os outros queridos, para que assim nos rogues que o busquemos?

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- Oh, filhas de Jerusalém! Se soubésseis quem é o Amado da minha alma, quem é o Bem que choro perdido, não
estranhareis que assim vos rogasse para que me ajudásseis a buscá-lo.
Maria chegou alterada a Jerusalém; percorreu as ruas; bateu com trêmula mão às portas dos seus parentes e
amigos;mas ali seu Filho adorado não aparecia.
Seus parentes, ao abrirem-lhe as cerradas portas de suas casas, a receberam com o sorriso nos lábios dizendo-lhe
com fraternal doçura.
- Oh! Ditosos somos, Maria, pois regressais ao nosso lar com graça e formosura.
- Não me chameis Noemi, lhes diz, chamai-me Mara, porque o Todo Poderoso me encheu de amargura. Há tres
dias era feliz e ditosa: meu Filho sorria ao meu lado; o calor dos seus olhares chegava ao meu coração dando-lhe vida; e
hoje choro meu Filho perdido, e busco-o e corro, e em vão me canso... meu Filho não aparece, Jesus não se encontra.
Enquanto a Mãe dolorosa procurava o Filho perdido com as ânsias da agonia no coração, as lágrimas nos divinos
olhos e a desconsolação pintada no puríssimo semblante, Jesus tinha-se instalado nos pórticos da Sinagoga, que mais
tarde deviam servir-lhe de tribuna para pregar a sua nova lei, e os doutoresss e fariseus escutavam absortos as suas
divinas palavras e os seus maravilhosos conceitos.
Aqueles anciãos, mudos, absortos, vencidos, impotentes ante aquele tenro adolescentes que se havia apresentado
ante eles com a humildade do pobre e o modesto traje dos galileus da montanha:
- Quem é este Menino? perguntavam em voz baixa. Em que sinagoga aprendeu o que sabe? Que rabino, que
doutor da lei lhe ensinou esssas perguntas a que nós não sabemos responder, e às quais eles mesmo dá uma solução tão
clara, tão profunda, tão irrecusável? Que move a sua língua com tão prodigiosa fecundidade? Daniel seria vencido pela
sua palavra, e Salomão quebraria a sua pena escutando-º
Jesus parava nos seus discursos de quando em quando.
Então ninguém se atrevia a interrompê-lo; mas todos o observavam com interesse, e curiosidade crescentes.
Seus longos cabelos cor de bronze antigo, partidos ao meio da sua larga e luminosa testa, lhe caíam em grossos e
graciosos caracóis, sobre os ombros. Nos seus azuis e melancólicos olhos brilha uma faísca de luz divina, que
aprofundava, ao deter-se, as mais recônditas dobras da alma.
Os doutores, vendo-o chegar aos degraus da Sinagoga, imaginaram ver Davi no momento em que Saul o viu ir
pequenino e sereno receber a unção santa. Mas naqueles olhos, naquela fronte, naquela ademã, havia alguma coisa mais
que a sagrada inspiração que aformoseou as feições do rei poeta, porque Jesus encerrava no seu o Espírito incomparável
de Deus.
Tanta magestade, tanta formosura, tanto saber num Menino, encheu de pasmo e admiração os sábios doutores do
templo. Os anciãos, receiosos duma nova derrota, não se atreveram a dirigirlhe a palavra quando Maria, seguida de
José seu esposo, chegou aos degraus da Sinagoga.
A aflita Mãe soltou um grito de júbilo ao ver seu filho; mas toda a alegria do seu coração se converteu em
surpresa vendo-o sentado entre os doutores da lei, a Ele, um Menino de doze anos.
Era aquele o Menino que ela procurava? Nunca sua Mãe, o tinha ouvido falar daquele modo! Era Jesus, sim,
Jesus, seu Filho, sua alma.
- Filho, porque obraste assim conosco? Olha como teu pai e eu te procuramos.
- Porque me procuráveis? Não sabeis que nas coisas do meu Pai me convém cuidar? respondeu Jesus.
Jesus queria dizer-lhe, com estas palavras: Tudo deve abandonar-se por Deus.
Sua mãe o compreendeu e, unindo-se de novo à Família, saíram da cidade e encaminharam-se para Nazaré.
Pelo caminho, aquela Mãe amorosa lhe perguntou.
- Onde comeste e dormiste estes tres dias, Filho Adorado, faltando-te o cuidado de Tua Mãe?
- Deus não esquece os pobres, e a hospitalidade tem as portas abertas para todo o desvalido que se chegue a elas
com a fé na alma.
Jesus tinha mendigado o sustento pelas ruas de Jerusalém.
Era o primeiro assomo da mansidão que ia pregar em breve da pobreza que ia defender dentro em pouco.
Chegaram a Nazaré, onde Jesus Cristo cresceu em sabedoria, caridade e graças, esperando a hora da sua dolorosa
peregrinação sobre a terra do homem.

CAPÍTULO VI

OS FUNERAIS DE AUGUSTO

Dois imperadores imortalizou o Mártir de Gólgota: com o seu nascimento, Otaviano Augusto; com a sua morte,
Tibério Cláudio Nero.
Sendo estes dois príncipes de alguma importância na narração deste livro, deixemos as pacíficas e sombrias
ribeiras do Jordão e nos transportemos por alguns momentos a Roma.
A cena que vamos bosquejar ocorria no monte Célio, no palácio de Augusto, tres anos depois que Jesus
surpreendera com suas perguntas os doutores de Jerusalém.
Otaviano Augusto achava-se gravemente enfêrmo.

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Deitado sobre os moles almofadões do seu leito de púrpura, pálido como um cadáver que se dispõe a empreender
o caminho do sepulcro, o César ocupava-se em regular os seus negócios e escrevia as últimas disposições com mão
trêmula e cansada.
Os médicos não encontravam enfermidade a combater. A ciência via a morte na dolorosa melancolia, na grave
expressão, no pálido semblante do imperador; mas não podendo combatê-la afastava-se daquele leito, confusa e
humilhada, confessando a sua importância.
O mal de Augusto estava no espírito. Debilitado pela avançada idade, recebeu o golpe mortal que o levou ao
sepulcro, quando soube a catástrofe irreparável de Varo e suas legiões.
Augusto, como todos os conquistadores da terra, sonhava sempre com o canto do mundo que não lhe pertencia,
ainda que este fosse o mais pobre, o menos produtivo do globo terrestre.
Seu poder era intenso. O mundo então conhecido pode dizer-se que pagava tributo à águia romana; porém os
seus olhares dirigiram-se a contemplar com a cobiça dos usurpadores um trato de terra, selvagem e escabrosa que lhe
tinha escapado.
Aquele páis chamava-se a Germânia, povo separado da Gália pelo caudaloso Reno. O César, pensando sempre
no que possuia, enviou suas legiões sob o comando do general Varo, homem de limitado talento e de desmedida
avareza.
Um moço chamado Armínio, duma das famílias mais nobres e poderosas da Germânia, de grande valor e da
habilidade rara para a guerra, desejando sacudir o jugo dos romanos e farto da crueldade e avareza do general
estrangeiro, fingiu-se seu amigo,e prometendo-lhe descobrir o lugar onde tinham as riquezas ocultas, conseguiu
conduzi-lo com uma parte considerável das suas legiões a um dos bosques de que então estava coberto aquele país.
Armínio tinha reunido naquele lugar algumas tribos címbrias, que só esperavam o sinal para se lançarem contra
os romanos, como lobos famintos. Chegou a noite, e a horrível matança dos estrangeiros com ela.
Varo, ante tão inesperada derrota, vendo-se perdido, como Bruto, na batalha de Felipe, atravessou o peito com a
espada para não cair nas mãos dos inimigos. Armínio, orgulhoso do seu triunfo, levantou uma tribuna no meio do
sangrento campo de batalha; dali, depois de arengar aos soldados, mandou que fossem degolados todos os prisioneiros,
negando-lhes até sepultura.
Tres legiões imensas de soldados veteranos pereceram naquela bosque. Só puderam salvar-se alguns, que
levaram a infausta nova às margens do Tibre.
Augusto, sabedor da catástrofe, vestiu-se de luto, deixou crescer a barba e o cabelo em sinal de desconsolação, e
começou a sentir-se doente. Às vezes passava horas com os olhos no chão, braços caídos e atitude dolorosa, repetindo
sem cessar: Varo, Varo, restitui-me as minhas legiões.
A consternação foi grande em Roma ao saber-se a notícia. Criam ver os germanos passando o Reno e dirigindo-
se para a Itália a marchas forçadas. Porém Armínio contentou-se com a sua vitória e com sacudir o jugo estrangeiro.
Já dissemos que o César morreu de paixão. No momento em que o apresentamos achava-se sentado no leito,
escrevendo as últimas disposições.
No seu semblante bondoso, nos grandes e doces olhos, ainda maiores pela magreza da face e pelo círculo
azulado que os cercava, via-se a magestade daquele republicano que cingira a fronte, com a coroa imperial. Junto do
leito via-se um homem de larga fronte, nariz aquilino, lábios delgados e extremamente juntos e olhar torvo e receioso.
Esse ovem era um tirano: chamava-se Tibério, e estava destinado a governar o mundo.
Bastava deter-se a gente um momento ante aquela fronte altiva, para compreender a astúcia, a reconcentração e a
inveja que encerrava no coração aquele homem.
Otaviano, casado, duas vezes, não tinha filhos varões e, desejando que o império ficasse em poder da sua família,
fitou os olhos em Tibério, filho de Lívia, sua segunda mulher, e casou-o com Júlia, sua filha e viúva do seu amigo
Agripa.
Tibério, taciturno e desconfiado, jamais teve amigos e nunca acreditou nos favores do sogro; vivia retirado no
seu castelo, suspenso sobre as rochas na praia, donde sonhava com seu império, cometendo atos de barbaridades na
vizinhança para entreter, segundo dizia, o aborrecimento que o matava.
- Tibério, disse-lhe Augusto deixando a pena e olhando-o com bondade; mandei-te chamar porque me sinto
morrer, e pensei em ti para que me sucedas no poder.
Tibério sentiu o coração bater de modo violento; mas o rosto não mudou. Abaixou a cabeça em sinal de
acatamento.
- Desde este momento, continuou Augusto, adoto-te como filho. O povo e o senado cumprirão minha última
vontade, escrita nestes pergaminhos. Serás o imperador de Roma, o senhor do mundo. Se conseguires fazer a felicidade
de teus súditos, os deuses imortais velarão pela tua real pessoa e pelos teus vastos domínios; e não esqueças nunca meu
filho, que é mais prejudicial a um rei ser mau e sanguinário que ser clemente e justiceiro. Sê pai do teu povo; repele de
ti o ofício do verdugo, que envilece e desonra.
- Tua vida, que os deuses conservem por longos anos para o bem do teu povo, será um exemplo quando a pesada
carga que me confias caía sobre os meus ombros. Eu serei digno de ti: juro-o pelo nome de meu pai.
- Escuta, Tibério: eu adoto-te como filho; porém tu, por tua vez, quero que adotes também Germânico, neto de
Otávia, minha irmã, e espôso de Agripina, flha do meu maior amigo. É um moço leal e valente que, dirigido por ti, será
um grande general. Jura-me pelos deuses lares que serás o protetor, o pai desse moço, e morrerei contente.
- Eu o juro.
- Guarda o meu testamento e prepara os meus funerais, porque o novo sol alumiará meu cadáver.

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Tibério beijou a mão do César deixando nela uma lágrima: primeira e última que derramou durante a sua vida.
Otaviano Augusto não se tinha enganado: duas horas depois expirava.
Tibério esteve contemplando o cadáver um instante. Depois aplicou os lábios à boca do defunto imperador.
- A alma dos moribundos está nos lábios, exclamou Tibério dirigindo-se aos que o rodeavam: eu recebi a de
Augusto. – E depois, tirando-lhe um anel e pondo-o no dedo médio, exclamou com voz grave e dolorosa.
- Otaviano Augusto, imperador romano, morreu.
- Morreu, Morreu! repetiram os presentes caindo de joelhos e apoiando a cabeça no leito do cadáver.
Decorreu uma hora, durante a qual reinou o maior silêncio na habitação. Tibério levantou-se e chegando os
lábios ao ouvido do cadáver, disse com voz vibrante:
- Otaviano Augusto, levanta-te do teu leito mortuário.
Tornou a decorrer outra hora, e Tibério tornou a repetir:
- Otaviano Augusto, levanta-te do teu leito mortuário.
O mesmo silêncio reinou na sala; e decorrida outra hora, Tibério pela terceira vez repetiu:
- Otaviano Augusto, levanta-te do teu leito mortuário.
Decorreram alguns segundos, e o novo imperador disse, dirigindo-se aos que o rodeavam.
- Chamei-o e não me responde: é morto o César. Apresentai ao senado o seu testamento. – E entregou a um dos
senadores os pergaminhos que o nomeavam herdeiro.
Um liberto, apresentou a Tibério, numa pequena bandeja de ouro, um triente, pequena moeda do valor de seis
maravedis. Tibério pegou-a e pô-la na entreaberta boca do cadáver, para que com ela pagassse a passagem a Caronte,
barqueiro dos infernos.
O corpo de César, foi entregue aos escravos embalsamadores, que o lavaram com água quente e o perfumaram, e
os encarregados do templo de Vênus, Libitina apresentaram aos parentes do imperador uma riquíssima mortalha de
púrpura e ouro.
O ramo de ciprestes se pendurou sobre a porta da casa mortuária, e o cadáver de Otaviano foi posto num leito de
marfim no vestíbulo da casa, com os pés fora do leito, para denotar que estava pronto a empreender a última viagem.
Feito isto, as carpideiras começaram a chorar e a arrancar os cabelos, lançando de vez em quando flores e folhas
de louro sobre o corpo do seu imperador.
César esteve oito dias exposto. Alguns jovens da nobreza, vestidos de branco em sinal de luto, de pé e graves, ao
lado do féretro, enxotavam as importunas moscas que pousavam no rosto do seu senhor.
Os funerais foram explêndidos, suntuosos.
Rompia a marcha multidão de coros de flautas e trombetas; seguiam-nos as carpideiras; iam, em seguida, os
cômicos e bufões, um dos quais arremedava quanto podia o defunto, executando com seus companheiros de farça
alguma cena análoga à vida do que já não existia. Depois seguiam os libertos, e Tibério, por vaidade, tinha dado
liberdade a todos os escravos do César para que o número fosse excessivo. Aos libertos seguiam-se as imagens do
defunto e de seus antepassados, presas a umas varas compridas e postas em quadros, com o vestido que traziam em
vida.
Depois o cadáver do César, estendido no leito e coroado, e com os despojos das suas conquistas, era levado por
oito senadores.
Fechavam a marcha fúnebre algumas centúrias de tropa escolhida, com as bandeiras baixo e dando pancadas
com as armas do som du’a marcha, em sinal de desconsolação.
O séquito fúnebre chegou ao Forum, e pousou-se o cadáver sob a tribuna dos Discursos. Um magistrado,
parente do defunto, saiu à rostra e ali pronunciou o panegírico de Augusto e uma oração fúnebre. O orador terminou, e
o cadáver foi conduzido, para ser queimado fora da cidade, no lugar marcado pela lei.
As andas com o cadáver foram colocadas sobre a pira, e os parentes pegaram fogo à lenha seca, virando a cabeça
para outra parte, para mostrarem sua repugnância.
O povo orou com fervor para que os ventos favorecessem o progresso das chamas, enquanto os parentes
lançavam perfumes sobre o fogo, e vestidos, armas e objetos de valor que o defunto tinha apreciado emvida; as tropas
desfilaram tres vezes ao redor da pira, com as bandeiras para baixo e dando pancadas com as armas. Depois apagaram o
fogo com vinho, recolheram as cinzas e encerraram-nas numa urna de ouro, e soltando uma águia, exclamaram todos.
- Leva para o céu a alma do César!
Augusto havia construído em vida o seu sepulcro, no campo Márcio, entre a via Flamínia e o Tibre. Aquele
sepulcro, levantado no meio de bosquezinho, era uma obra de arte. Os baixos-relevos representavam em mármore a
história de Augusto.
Sôbre a polida lousa que cobria as cinzas do César, lia-se este epitáfio:

V.F.
DEDICADO AOS DEUSES MANES.
AQUI JAZ
OTAVIANO AUGUSTO
IMPERADOR DE ROMA
E SENHOR DO MUNDO

132
Os romanos, em Augusto tinham perdido um imperador sábio, um general valente.
Tibério, hipócrita e receioso, antes de se aclamar imperador, comprou alguns senadores e, certo dos seus votos,
recusou o império; porém eles lançaram-lhes aos pés pedindo-le com as lágrimas nos olhos que não os abandonasse.
Subiu ao trono, envolveu-se na púrpura por um rasgo de bondade às súplicas do senado, e para render um
tributo de admiração e respeito a Otaviano, quis que o honrassem como a um deus e lhe erigiu em Roma um soberbo
templo, proclamando-se sacerdote da nova divindade com outros cavaleiros e senadores.
Senhor do império e mandando a seu capricho aquele grande povo conquistador do mundo, mudou o seu antojo
os governadores das províncias romanas e os generais das legiões que acampavam nas dilatadas fronteiras, para
segurança do estado.
Então soube por um dos seus espiões, que um adolescente chamado Jesus de Nazaré tinha confundido os
doutores de Jerusalém e que se murmurava na Palestina que aquele jovem descendente de Davi era o Messias,
anunciado pelos profetas. Julgou ameaçada a conquista de Israel, pois não tinha esquecido o furor de Herodes contra um
Menino galileu, nem os vaticínios da sibila Cuméia e os portentosos acontecimentos que, pela época do nascimento de
Jesus, tinham sucedido em Roma e no Egito.
Um homem desconfiado e avarento como Tibério não podia deixar em dúvida um acontecimento tão importante.
Escreveu a Valério Gratos governador da Galiléia, uma carta, dizendo-lhe: “Valério; dize-me o que souberes de um
jovem de Nazaré chamado Jesus, pois interessa a Roma saber desse jovem a verdade e o que se pode temer d’Ele”.
Valério respondeu:
“A Tibério Augusto, imperador de Roma, o seu súdito Valério Gratos.
Jesus não deve inspirar-te receio. É filho dum pobre carpinteiro que passa os dias fabricando arados e tetos de
cabanas. Os judeus sonham com o seu Messias há tres mil anos. Suas esperanças duram tanto tempo como a sua
escravidão. Nem Roma nem o grande Tibério devem temer nada do Filho dum artista que não tem duas geiras de terra
de seu, e a quem os parentes olham com indiferença. Eu te afianço, Tibério; Jesus é um cordeirinho inofensivo que
crese debaixo do teto de colmo duma humilde cabana, e que deixará de existir no dia em que te aprouver.
Tibério, tranquilo, esqueceu bem depressa Jesus. O soberbo imperador ignorava que aquele Menino era Deus
que baixava à terra a destruir os seus ídolos e a regenerar o homem com o seu sangue.
Dois anos depois, sucedeu a Grato, no governo da Palestina, Pôncio Pilatos, nome que a sentença contra o Mártir
do Gólgota imortalizou.

CAPÍTULO VII

A HORA ANUNCIADA

Os anos rolavam um após outro pelo declive interminável do tempo. Nazaré dormia à sombra das palmeiras
como uma ave de arribação que descansa das fadigas de penosa viagem.
Jesus crescia na modesta cabana de seus pais, esperando a hora da peregrinação. Maria era feliz vendo o Filho,
tranquilo e bondoso, sob o humilde teto da sua morada. Jesus, que durante o dia se ocupava nos rudes trabalhos de seu
pai, Jesus, que era dotado duma dignidade régia, duma alma elevada e reflexiva, durante a noite de pé no terraço da casa
buscava o descanso contemplando longas horas as altas montanhas, os dilatados bosques de Canaã. “O que vinha mudar
as crenças no mundo, nada tinha que aprender dos homens, disse Orsini, e não podia ser mais que sua própria obra; era
uma vara vigorosa, respirando o ar livre por todos os poros, e não recebendo outra humidade que a do rocio do céu”.
Maria nunca interrompeu as longas meditações de seu Filho. Seu silêncio, sua resignação, eram sublimes rasgos
daquele coração amante e dolorido. Sabia que seu Filho, durante as horas de soledade e recolhimento, falava com Deus;
que um abismo se abria debaixo dos seus pés, e que a redenção do homem ameaçava a preciosa vida de seu Jesus
amado.
Algumas vezes, cansada de o esperar corria em sua procura, faminta de contemplar o formoso semblante. Então
a fronte de Jesus, que era cruzadaaa por uma profunda ruga, em cujo seio descansava a idéia santa de redenção,
reanimava-se à vista de sua Mãe, e um sorriso de bondade lhe assomava aos lábios.
O Filho de Deus seguia em silêncio sua Mãe, com a modéstia, com a humildade de que tantas vezes mostras deu,
percorrendo a terra dos homens.
S. Bernardo não admira menos a dignidade da Virgem, que a humildade de Jesus.
“Este Deus, diz a quem estão submetidos os anjos, a quem obedecem os principados e potestades, está sujeito a
Maria. Admirai o que mais quiserdes destas duas coisas: ou a assombrosa humildade do Filho, ou a eminente dignidade
da Mãe, quanto a mim, uma e outra me assombram, e são a meus olhos grandes portentos. Que um Deus obedeça a uma
mulher, é uma humildade sem exemplo: que uma mulher mande a um Deus, é um grau de glória que não tem igual”.
Jesus, desde a manifestação no templo de Jerusalém, até aos trinta anos da sua idade, em que abandonou Nazaré,
viveu oculto e obscuro na pobre oficina de seu pai, trabalhando pelo seu mesmo ofício e esperando a hora do seu
evangelho.
Cristo correspondeu ao excessivo amor de sua Mãe com uma ternura sem limites.
Maria, sempre zelosa do seu amor e profunda conhecedora dos livros sagrados do seu tempo, instruía seu Filho
nas leis inquebrantáveis de seus maiores.

133
“Ela lhe fala de Deus (diz o padre Ebiuef no seu livro das Grandezas da Virgem) como se fala às crianças; fala-
lhe de amar e adorar a Deus: diz-lhe que é seu Deus e seu pai, e suas palavras lhe entram aos poucos na alma pelos
sentidos, que se abrem e desenvolvem diariamente. E quando Ele começa a ser um tanto mais robusto. Ela lhe canta e
lhe faz aprender os hinos que a piedade da lei tinha destinado nos louvoress de Deus. Oh, santa e feliz escola em que
Maria ensina e Jesus aprende”!
Ia Jesus completar vinte e nove anos quando o anjo da morte estendeu as impalpáveis asas sobre a modesta
choça, e José, o patriarca de Nazaré, fechou os olhos à vida.
A dor de Maria e a de seu santo filho foi grande, porque José o homem justo, era adorado por quantos tiveram a
fortuna de o conhecer. O pobre carpinteiro e descendente de Davi, foi conduzido humildemente à última morada,
levando à testa do seu simples enterro o Filho de Deus com as lágrimas nos olhos e o choroso olhar no chão.
Um ano depois, Jesus como o bordão do viajante, a túnica parda dos galileus sobre os ombros, a fronte serena
como o mar da Galiléia, saiu de Nazaré e encaminhou-se com passo grave e mesurado para as margens do Jordão.
A hora amada já tinha soado nos céus, e Deus havia-lhe dito: Parte, prega a tua nova lei, e morre pelo homem; e
Jesus dando um doloroso abraço em sua Mãe, que banhada em lágrimas o detinha temerosa de perdê-lo, havia
abandonado a paz do lar, o carinho de sua amorosa Mãe, para receber os insultos do homem e as dores da cruz.
Nas margens do Jordão, a pequena distância de Jericó, vivia um homem chamado Batista. O poder de sua
palavra conduzia às margens do rio santo multidão de israelitas, que se afastavam do seu lado depois de receberem as
águas batismais sobre as cabeças, espalhando pelas tribos a fama daquele homem que tinha crescido nas desertas
cavernas do Carmelo e cuja eloquência se avantajava à dos profetas.
Jesus quis receber o batismo antes de começar a dolorosa peregrinação. Aquele Cordeiro sem mácula desejava a
limpeza do corpo como o último dos hebreus.
U’a manhã abandonou o humilde lar antes que a luz da aurora enviasse o orvalho aos campos de Zabulon.
Maria viu-o partir, sentiu que o coração se lhe despedaçava e, ao vê-lo de longe entranhar-se nas estéreis
montanhas de Jericó, cobriu a casta cabeça com o véu e ficou imóvel, como a estátua da dor, sobre o terraço da sua
casa.
O Cristianismo erguia-se duma humilde cabana de Nazaré. Pobre, solitário, sem outro apoio que o seu bordão,
seguia seu caminho com os olhos no chão e o pensamento em Deus.
Quem senão o Eterno podia levar a cabo a grande obra, a assombrosa revolução de idéias que se efetuou no
mundo no breve espaço de tres anos?
O Cristianismo flutuava nas amorosas pupilas do solitário Viajante, na santa palavra do pobre galileu,
“manancial obscuro, gota de água desconhecida, em que dois passarinhos não teriam podido apagar a sede: que um raio
de sol teria podido secar, e que hoje, semelhante ao grande oceano dos espíritos, tem enchido todos os abismos da
sabedora humana, e banhado com suas águas inesgotáveis o passado, o presente e o futuro”.

LIVRO UNDÉCIMO
O ANJO DAS TREVAS

CAPÍTULO I

AO AMANHECER

Amanhecia a aurora. As névoas da noite começavam a dissipar-se, pressentindo a aproximação do sol. O mar de
Genezaré tranquilo como o sono duma virgem, acariciava com suas suaves ondulações as agrestes ribeiras que o
prendem. O diáfano céu da Galiléia sorria sem uma nuvem sobre os férteis campos de Cafarnaum e Godara.
As pombas dos bosques de Jabes batiam as robustas asas arrulhando entre os espessos ramos das árvores.
O vento da manhã agitava docemente os altos penachos das palmeiras de Betsaida, e os pescadores do lago,
carregados com as redes, abandonavam as humildes cabanas, dirigindo-se com preguiçoso passo em busca das suas
barcas.
As aves, essas eternas, incansáveis madrugadores do bosque e do espaço, esses cantores sonoros da natureza,
enviavam seus mil harmoniosos ecos, suas infinitas modulações ao sol que ia nascer.
Na margem do lago erguia-se magestosa uma cidade moderna, recém-construída, cidade dedicada por Herodes
Antípas a Tibério, chamada Tiberiades.
Tinha fortes muralhas de granito, palácios de mármore, jardins preciosos, um circo para entreter o ócio dos
soldados mercenários, e vinte torres cilíndricas para defender-se das invasões estrangeiras.
O verdugo de Belém tinha dedicado a Augusto a cidade e torres em prova de vassalagem. Seu filho Antípas
seguiu a mesma marcha para captar as simpatias do senhor de Roma, seu aliado.
O sol rompeu por fim. Seus brilhantes raios banharam com a formosa luz os altos minaretes da cidade nova e a
tranquila superfície do mar da Galiléia.

134
As sentinelas que passeavam pela muralha com sonolento passo, assomaram para verem sair por uma das portas
que dava para o mar uns homens que, a julgar pelos longos roupões negros à usança de Roma, deviam ser escravos.
Oito destes homens conduziam uma riquíssima liteira de cedro com embutidos de nacar e prata.
As cortinas, de pele duma cor forte, simetricamente fechadas por anéias de prata, pelos quais passava uma
varinha de metal, e o balanço grave e pesado da liteira, mostravam que dentro devia viajar alguma pessoa.
Como guardando as portinholas da liteira, caminhavam dois homens luxuosamente vestidos com longos roupões
e turbantes de linho à moda hebraica. Atrás da liteira seguiam doze escravos que conduziam pesadas caixas de madeira
pregadas com redondos e grossos cravos de bronze. Finalmente via-se sair um pelotão de soldados com apetrechos de
guerra. Eram soldados romanos.
Quando a comitiva chegou à margem do lago, parou: um dos hebreus levantou um extremo da cortina e trocou
alguma palavra com o personagem que viajava na liteira. Depois, dirigindo-se aos escravos, disse com voz de mando:
- Para os barcos!
Os escravos deixando a liteira no chão, e pegando uma das caixas, levaram-na até à margem do lago, onde se
viam barcas guardadas por alguns soldados. Tiraram da caixa finíssimos panos de Tiro e três almofadões de seda com
riquíssimas franjas de ouro.
Com rapidez incrível, levantaram na popa duma daquelas barcas uma espécie de dossel, dentro do qual
colocaram os tres almofadões, uma alcatifa da Pérsia e quatro perfumadores de prata.
Então o homem que tinha recebido e dado ordens entrou na tenda, encheu os perfumadores de mira e pegou-lhes
fogo. Breve um perfume fino, delicioso, se estendeu dentro daquela tend improvisada.
- Aos remos! tornou o homem do turbante.
Doze homens se asssentaram nos bancos do lado e empunharam os remos, com as pás levantadas um côvado da
superfície da água.
- Conduzi vós o tetrarca, disse o homem aos oito escravos que estavam livres.
Estes obedeceram e momentos após uma das portinholas da liteira achava-se perfeitamente unida à popa da
barca.
O mesmo que tinha dirigido toda esta manobra, abriu a cortina da liteira e disse:
- Estás servido.
Então abriu-se a portinhola, e um homem de trinta e seis a quarenta anos de idade, barba preta, olhar de águia e
pômulos salientes, saltou da liteira ao barco. Vestia simplesmente uma longa túnica de pano verde com uma franja de
seda carmezim em volta da fímbria. Levava um barrete chato na cabeça por baixo do qual saíam longos e abundantes
cabelos pretos. Entre o cabelo podiam distinguir-se as grossas argolas que trazia nas orelhas.
Este homem chamava-se Herodes Antípas, e era tetrarca da Galiléia, filho de Herodes, o Grande.
Chamá-lo-emos, desde agora, Antípas. Tão depressa se viu ele sob o rico tendal que os escravos lhe tinham
preparado, voltou-se para a liteira e disse:
- Vem, Rute; mas não te esqueças o saltério: a música me deleita.
Uma jovem formosa, cujo rosto, extremamente moreno, resplandecia de modo notável, assomou a cabeça pela
portinhola da liteira. Estava completamente envolvida num finíssimo manto de casemira que, subindo até a cabeça, se
enrolava, afina, no pescoço. O extremo do manto era uma boria de seda azul que caía sobre o peito. Debaixo daquela
imensidade de pregas adivinhavam-se as formas du-estátua grega.
Rute saltou também para o barco. Ia descalça, como as mulheres caldéias, mas nos dedos dos pés brilhavam
multidão de anéis.
Os braceletes que lhe apertavam os torneados braços eram de ouro, formando simplesmente uma argola, onde
podia ver-ser um H e um T feitos com esmeraldas. Levava na mão direito um saltério extremamente pequeno e, na
esquerda, um bordãozinho de prata que formava um gancho no extremo.
Antípas e Rute, sua escrava favorita, que apenas contava dezoito anos, entraram para baixo da tenda, e sentaram-
se nos almofadões.
Quando o tetrarca desapareceu atrás do flutuante pavilhão da tenda, os doze escravos impeliram a barca para a
água.
O homem encarregado das manobras disse laconicamente.
- Remai para Betsaida.
Os doze remos caíram a um tempo sobre as águas do lago, tornando-se a levantar imediatamente.
A barca rasgou o seio do tranquilo lago com a delgada quilha. Uma chuva de gotas caiu dos remos obre a serena
superfície da água.
Depois, suave, rápida como a garça marinha que persegue o inocente peixinho, partiu a barca em direção ao
nordeste do lago, deixando na retaguarda a moderna cidade de Tiberíades.
O resto da comitiva embarcou imediatamente nas duas barcas que se achavam ancoradas, e seguiu a brilhante
esteira que deixava após de si a embarcação do seu senhor.

CAPÍTULO II

UM CONVÊNIO INFAME

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Quando o sol se achava no meio da sua carreia, os remeiros de Antípas alçaram as pás. O barco parou.
Aqueles infelizes escravos estavam mortos de cansaço e cobertos de suor. Seis horas remaram sem descansar,
mas por fim a proa do seu barco tocara as desejadas praias de Betsaida.
Imediatamente, esquecendo o cansaço, se lançaram á água, e, em breve, a liteira se aproximou à popa da frágil
embarcação, para que Antípas e sua escrava subissem.
Todos saltaram em terra, excetuando seis homens que ficaram a guardar as barcas. A comitiva, levando a liteira
do seu senhor aos ombors, atravessou as ruas de Betsaida. Os moradores assomavam às estreitas janelas cheios de
curiosidade. Antípas que tinha nas veias o podre sangue de seu pai, não concedeu nem uma hora de descanso aos seus
escravos. Os infelizes viram-se obrigados a comer a ração de torta de milho e de figos secos, andando. Assim
atravessaram o espesso bosque de Jabes.
Entretanto, o tetrarca de Galiléia, preguiçosamente reclinado sobre os moles almofadões, quase dormindo,
deleitava-se ouvindo a doce voz da escrava e o harmonioso som do saltério.
A escrava terminou uma estrofe e ia pousar o saltério no regaço.
- Pelos manes de tua mãe, pelo tempo de Belo, a quem adoras, te rogo, Rute querida, que tornes a repetir essa
estrofe.
Rute, pegou no saltério e cantou a estrofe seguinte, acompanhada duma melodia doce, sentida como o lamento
duma mãe que chora sobre a sepultura de seu filho:

Porque, senhor, te empenhas meu canto em prolongar?


A garça prisioneira não canta qual soía
Cantar lá pelo espaço sobre o dormente mar;
Seu canto entre cadeias é canto de agonia!

Ah! Bem se vê, exclamou o tetrarca, que os poetas da Selêucia embalaram teu berço; tu és poetisa, fazes versos
como Safo, aspiras talvez que te chamem a musa undécima, como os habitantes de Lesbos chamaram a Safo a décima
musa. Pobre menina, não te desejo a sorte que teve a heroína do promontório de Leucades. Se encontrarem algum Faon
que te despreze, não te deites ao mar.
Rute só disse:
- Canto mais, senhor?
- Não: podes deixar o saltério e dormir; eu vou fazer o mesmo.
E o tetrarca cobriu a cabeça com o extremo do manto escarlate.
Rute exalou um suspiro, e cobrindo o rosto com o seu albornoz de casemira, incinou a cabeça sobre o
almofadão.
Depois, o senhor e a escrava guardaram silêncio.
Naquele mesmo dia a comitiva do tetrarca, ao cair do sol, entrava na cidade de Gaulon, residência de Filipe, seu
irmão, tetrarca da Ituréia.
Herodes Antípas foi recebido por seu irmão Filipe e por sua esposa Heródias, sua sobrinha, com grande regozijo.
Antípas ia a Roma oferecer a nova cidade de Tiberíades ao imperador.
Heródias, tão formosa como infame, tinha uma filha que apenas contava quatorze anos de idade, com a beleza
fascinante de sua mãe.
Antípas encheu-a de carícias e presentes e convidou a uma entrevista sua mãe, a quem amava em segredo havia
algum tempo.
Filipe, seu irmão, era bom e confiado.
Quando, depois do fetim toda a gente se retirou a descansar das fadigas do dia, Filipe acompanhou seu irmão à
estância que lhe tinha destinado.
Nunca Antípas tinha mostrada mais afeto, mais deferência a Filipe, que naqueles breves instantes que
permaneceram sós falando das suas tetrarquias. Fez promessas que encheram de prazer o coração do irmão.
- Quando sais para Roma? perguntou Filipe.
- Amanhã, ao despontar da aurora.
- Desconfia de Tibério, meu irmão: a serpente favorita que trazia sempre enroscada no pescoço foi devorada
pelas formigas. Trasílio, seu astrólogo vaticinou-lhe que aquilo queria dizer que ele seria morto pela multidão. Êste
agouro fê-lo arisco e receioso. Encerrado na fortaleza de Caprera, não vê senão inimigos em todos os que se lhe
aproximam: o medo da morte faz-lhe cometer crimes.
- Nada temo respondeu Antípas; Tibério é meu amigo; eu sou o seu mais fiel aliado.
Depois despediram-se.
Antípas ficou só, e começou a passear pela habitação.
De vez em quando chegava-se a uma janela e permanência contemplando o escuro horizonte recamado de
estrelas.
Assim transcorreram duas horas. O tetrarca começava a impacientar-se. Por fim ouviram-se leves passos no
corredor que conduzia à habitação do ilustre hóspede. Antípas chegou-se à porta e, aplicando o ouvido, escutou um
momento. “É ela”, disse consigo, E abriu a porta.
Heródias entrou na habitação, e ambos foram sentar-se num cômodo divã.
A criminosa espôsa de Filipe tinha uma formosura resplandecente, lábios vermelhos como a flor da romã, olhos
negros como uma noite de tempestade, e o nariz aquilino como o de Cléopatra, as sobrancelhas povoadas e terminando

136
em arco sobre a texto, a tez morena mórbida, o colo redondo e perfeitamente unido aos ombros, a fronte larga e
provocadora; tudo dizia que a cólera daquela mulher devia ser terrível.
- Cumpri a minha palavra, disse Heródia ao amante.
- Teu irmão dorme: nada receia.
- Tanto melhor: o que ignora não sofre.
- Sim, mas amanhã o saberá.
- Que me importa se te tiver na Galiléia, no meu palácio, roreada dos meus soldados? Eu sou mais forte: não irá
buscar-te, assevero-te. Se me declarar guerra, tanto pior para ele. Conquistarei as suas cidades e me pagará tributo. Nada
deve importar-te meu irmão.
- Tens razão... Falemos. Vais a Roma?
- Amanhã.
- Tão cedo!
- Tenho precisão de ver Tibério, meu aliado.
- Quando tencionas regressar às tuas tribos?
- Ignoro.
- Então nada podemos convencionar.
- Por que não? Eu procurarei mandar-te emissários que te indiquem o dia em que deves achar-te na ribeira de
Cafarnaum e, uma vez ali, nada temas, estarei ao teu lado.
- Eu só temo uma coisa: que tu não me ames.
- Pode um homem sem amar faltar assim ao dever mais sagrado? Não és tu minha sobrinha e mulher de meu
irmão há tempo?
- Todavia, tua esposa...
- Minha esposa!... Ora! Quem faz caso disso? Repudiei-a, remeti-a carregada de presentes a seu pai Aretás, rei da
Arábia. Quem sabe se esse velho bárbaro me enviará as suas legiões? Mas antes que atravessem o deserto de Manalem,
Pilatos, meu aliado, lhe cortará o passo.
Heródia deu um grito de alegria. Seus negros olhos brilharam de modo inexplicável. Dir-se-ia que suas pupilas
deitavam faiscas.
- Ah! exclamou. Já não deve temer nada de tua esposa? Agora sim, creio que me amas.
- Fizestes mal em duvidar.
- Eu amo ou odeio; via uma mulher moça ao teu lado, e amava-te; os ciúmes são filhos do amor.
Heródias pegou numa das mãos de Antípas, e olhando-o com firmeza como a ler-lhe no coração, perguntou:
- Amas-me, não é verdade? O teu coração é meu, como o meu é teu. Em breve serei tua esposa, e este amor não
será segredo para ninguém.
- Assim o espero.
- Dize-me a verdade. Que farás então de Rute, tua escrava?
- Será tua escrava e farás dela o que te aprouver.
- Por que a trazes contigo?
- Rute é para mim uma mulher, é u’a musa, um cisne que canta para me adormecer e embevecer os meus sonhos;
quando os doces acordes do seu saltério e as vibrantes notas de sua garganta me chegam aos ouvidos, penso em ti, única
mulher que amo, e então o amor das recordações bate as asas sobre a minha fronte, e sou feliz.
Heródias guardou silêncio como se duvidasse; mas o olhar sereno de Antípas pareceu tranquilizá-la.
- Vou pedir-te uma coisa. Dá-me Rute, tua escrava.
Antípas não vacilou em responder:
- É tua.
Heródias beijou a mão que apertava as suas.
Aquela mulher infame, aquela adúltera coroada, ambicionava um trono maior, mais esplêndido que o que lhe
tinha cabido em sorte. As tribos de Gad e Ruben eram mais ricas que as de Manassé e Betânia. O bosque de Efraim
parecia-lhe mais grandioso que o de Jabes, a tetrarquia de Ituréia, onde reinava seu esposo era um deserto areal
comparada com a rica e frutífera Pereia, onde reinava seu amante.
Depois, Antípas era rico, imensamente rico; edificava cidades tinha a soldo soldados mercenários, e era amigo de
Tibério, o maior imperador do mundo.
Heródias não vacilou. Ao separar-se do amante tinha celebrado com ele um contrato infame. A adúltera jurou
abandonar o esposo tão depressa como o emissário de Antípas fosse dizer-lhe:
- Partamos: o meu senhor te espera.
Duas luas depois, a essa hora em que os pescadores de Cafarnaum retiram as suas redes do mar, um barco com
uma só vela latina e seis remadores chegou às ribeiras. Duas mulheres, completamente ocultas nums compridos e largos
mantos judaicos saltaram do barco à praia. Um homem vestido à romana saltou depois delas, levando um cofrezinho
debaixo do braço.
Deram algumas moedas aos remadores e, com passo receoso chegaram a uma casinha de modesta aparência,
situada a um tiro de pedra da cidade.
Daquela casa saíram oito escravos com uma liteira. As duas mulheres entraram na liteira. O homem que as
acompanhava montou um soberbo cavalo que também tiraram da casa.
Depois todos se puseram em movimento em direção a Tiberíades.

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De vez em quando uma cabeça infantil, rosada como as folhas de uma papoula silvestre, assomava a uma das
janelinhas da liteira.
O caminho que seguia a silenciosa comitiva era áspero e tortuoso. Ao voltar de um cotovelo viram um homem
de pé sobre uma rocha. Era moco: teria trinta anos. Trazia o cabelo apartado ao meio da fronte, como os galileus; ia
descalço, e vestia uma túnica parda sem costura, e um manto judaico cor de corinto.
Seu rosto era formoso e o olhar de seus olhos azuis, doce como o duma moça moribunda. Tinha a barba
repartida em forma de forquilha.
A fronte, que irradiava como o mar ferido pelos raios da lua, era pura como o perfume duma violeta. Através
daquela fronte parecia adivinhar-se alguma coisa que fazia estremecer a alma e subira oração aos lábios. Apesar da
humildade do traje havia naquele silencioso caminhante alguma coisa da magestade dos reis e da grandeza de Deus.
Firme sobre a rocha que lhe servia de base, com as duas mãos apoiadas num bordão contemplava com
melancólicos olhos o fértil vale de Zabulon que se estendia a seus pés.
A poética luz crepuscular da tarde banhava com suas suaves cores o formoso panorama que o tinha embebido.
As pisadas do cavalo que precedia a liteira, ressoando sobre as duras pedras, fizeram-lhe voltar a cabeça.
Ao fitar o olhar na liteira, um raio de luz divina apareceu nos seus grandes e formosos olhos. As mulheres
assomaram a cabeça para o verem melhor. Os olhos do homem da penha encontraram-se com os olhares das incógnitas
viajeiras.
O rosto duma delas cobriu-se subitamente de rubor, e escondeu a cabeça envergonhada atrás da cortina da liteira.
Os lábios do homem da túnica agitaram-se como a murmurar algum oração.
A mulher, que tinha corado, julgou perceber uma voz doce que dizia:
- Desanda o andado, torna para tua casa, recorda a tua lei que diz: Será morta a pedradas a mulher adúltera.
A viajeira tremeu.
- Que tens, minha mãe? perguntou-lhe a jovem, que sem dúvida observava a agitação de sua mãe.
- Viste aquele homem? Seus olhos resplandecem como o Efod do sumo sacerdote; o seu olhar penetra docemente
até o fundo da alma como uma repreensão carinhosa que julgamos justa; na sua fronte pareceu-me encontrar a
magestade de Davi e a inteligência de Salomão... Quem será este homem? Que fará imóvel sobre aquela pedra?
- Que nos importa a nós, minha mãe, esse pobre viandante? exclamou a jovem com alegre acento.
A mãe inclinou a cabeça sobre o peito como se alguma idéia a preocupasse. Talvez pensasse no crime, na
infâmia que acabava de cometer, porque aquelas duas viajeiras, outras não eram senão Heródias e sua filha, que iam
reunir-se com Antípas, tetrarca da Galiléia.

CAPÍTULO III

O BATISTA

Nas margens do Jordão, não longe das montanhas de Gelboé, e como que a cinco milhas de Jericó, sobre as
mesmas ribeiras do rio santo, ergueu-se uma cidade pequena que o cristianismo imortalizou, pertence à tribo de Ruben,
e chama-se Betabara.
Ali corriam todas as tribos de Israel a ouvir a inspirada palavra dum homem que tinha passado a vida no deserto,
comendo mel silvestre e gafanhotos. Chamava-se João e não trazia outro vestido que um curto sáio de pele de camelo
atado na cintura. Sua fronte, tostada pelo sol e pelo vento dos furações, era larga e despejada como a de Elias; nos olhos
pretos brilhava um raio de luz divina.
Sua voz, quando repreendia, era poderosa como o bramido da tempestade; quando os conselhos brotavam da sua
boca, eram doces como o arrulho da rôla.
João, sendo muito criança, foi salvo do furor de Herodes por sua mãe Isabel.
Conta a tradição que, quando a mãe do Batista soube a terrível matança de Belém, fugiu com seu filho nos
braços. Perseguida por vários soldados, corria por áspera montanha, como a amedrontada corça. De repente observou
que o caminho se cerrava ante os seus passos.
Achava-se num profundo barranco; rochas inacessíveis adiante; atrás, os infames perseguidores já com o cutelo
levantado sobre sua cabeça.
- Deus de Abraão e de Jacó! exclamou Isabel com voz espantada. Tu me disseste por teus anjos que o fruto do
meu ventre era o precursor de Messias. Se o deixar morrer, o que me disseram os teus emissários era falso.
Então abriu-se uma rocha em cujo fundo resplandecia uma grande claridade, e uma voz lhe disse:
- Entra.
Isabel entrou: a rocha tornou a fechar-se: os soldados arremessaram-se sobre aquele muro que lhe cerrava a
passagem, roubando-lhe a presa, descarregando inutilmente as cintilantes espadas sobre a dura pedra e fugiram
espantados. João Batista, o precursor de Cristo havia-se salvado como o Filho de Maria, do furor dos seus
perseguidores.
O deserto foi desde então sua morada. As feras respeitaram o corpo daquele que, fugindo dos homens, se
refugiava entre elas, do que mais tarde havia de lançar sobre a cabeça do Filho de Deus as águas do batismo.
O nome de João e o maravilhoso poder das duas palavras estenderam-se por todos os âmbitos da Palestina. A
nova que o Batista pregava tinha duas bases, profundas, humanitárias: a esmola, e o desinteresse.

138
Sentado numa rocha, à sombra duma árvore, aquele homem de apeans trinta anos, sereno como um céu sem
nuvens, magestoso como os cedros do Líbano, cuja consciência reta como o tronco duma palmeira de Betânia, rodeado
duma multidão que, sedenta das suas palavras, corria a ouvir a sua voz, dizia-lhe com um acento que penetrava o mais
recôndito dos corações:
- Raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira que ainda não chegou? Fazei dignos frutos de penitência, e
não digais: Temos por pai Abraão... Porque vos digo que Deus pode fazer destas pedras filhos de Abraão. A machada
está colocada junto à raiz das árvoress, pois toda a árvore que não der fruto será cortada e deitada ao fogo.
E, abrangendo com olhar compassivo a enorme multidão que o ouvia, dizia-lhe com acento magestoso:
- O que tem dois vestidos, dê um ao que não o tem: e o que tem para comer faça o mesmo com o faminto.
Uns soldados que tinham parado para ouvir a palavra daquele homem, comovidos pela sua voz que levantava
ecos dulcíssimos no coração, perguntaram-lhe também:
- E nós, que faremos?
- Não maltrateis ninguém, não calunieis e contentai-vos com o vosso soldo.
Chegaram uns publicanos para que os batisasse e sentando-se entre a turba com sorriso zombeteiro e acento
provocador, lhe perguntaram:
- Mestre, que devemos fazer nós?...
O Batista deteve o olhar no rosto daqueles homens. Aquele olhar cheio de luz divina penetrou nos corações dos
publicanos que percorriam as tribos cobrando o tributo romano, e baixaram a cabeça como se não pudesse resistir ao
brilho daqueles olhos que os repreendiam.
João soltou um doloroso suspiro, e disse-lhes:
- Não exijas mais do que se vos mandou exigir.
- Não és tu o Messias?
- Não és o Cristo?
- Não és tu o salvador de Israel? lhe perguntava o povo em redor.
João respondia a estas perguntas.
- Eu, em verdade, batiso-vos em água; mas virá outro mais forte que eu, e de quem não sou digno de desatar uma
correia das sandálias. Ele vos batisará com o Espírito Santo e o fogo. O crivo está na sua mão, e limpará a sua eira e
guardará o trigo em seu celeiro, e a palha a queimará com fogo que nunca se apagará.
Um dia em que João se achava no meio dos discípulos e rodeado de imensa multidão que corria a ouvir suas
palavras, viu vir pela margem do Jordão, seguindo a corrente um homem, moço como ele, e a quem não se lembrava de
ter visto entre o seu auditório. Aquele homem levava o cabelo repartido ao meio da testa como os filhos da Galiléia, ia
descalço e vestia uma pobre túnica de lã. No seu rosto formoso brilhava uma mansidão suprema e uma doçura infinita.
Caminhava com passo tranquilo e com a radiosa fronte inclinada para o chão.
Ninguém o conhecia.
O precursor olhou o Galiléu; e depois curvando a cabeça sobre o peito, como se o deslumbrasse alguma luz
celeste exclamou com acento comovido.
- Tu és o Messias.
Jesus, pois era este o homem que exaltava com a sua presença o espírito de João, disse por sua vez com um
acento dulcíssimo e curvando a fronte com humildade:
- João, que as águas do batismo caiam sobre a minha cabeça.
- Eu devo ser batisado por Ti, e Tu vens a mim?... exclamou o precursor com grande admiração dos ouvintes.
- Assim nos convém cumprir toda a Justiça, tornou Jesus.
João obedece às súplicas do Galileu, e derramou sobre a sua santa cabeça as águas do batismo.
Nesse momento sublime uma claridade diáfana apareceu no espaço. Um raio de luz pura e bela, como tudo o que
brota do céu, caiu sobre a humilde cabeça de Jesus, e sua fronte cobriu-se dum resplendor celeste.
O Espírito Santo, em forma de pomba, desceu dos céus e pousou na cabeça do que mais tarde devia morrer na
Cruz.
Então uma voz do céu chegou à terra dizendo:
- Este é meu Filho amado, em que pus toda a minha complacência.
Jesus considerou a sua missão santificada, e chamou-se desde então Cristo, isto é, ungido, consagrado.
Depois deste movimento sublime, o Nazareno, com passo tranquilo, abandonou a vizinhança de Betabara e,
guiado pelo Espírito Santo, encaminhou-se para o deserto, onde devia jejuar quarenta dias antes de empreender sua
penosa peregrinação, e onde o anjo que anda nas trevas devia humilhar ante as humildes palavras do Galileu o
orgulhosa e maldita fronte.

CAPÍTULO IV

AS PALAVRAS DE UM JUSTO

139
Os doutores de Jericó, os fariseus de Jerusalém, professavam um ódio profundo ao Batista. O epíteto de
feiticeiro, possesso do espírito mau, juntavam-se com as diatribes que lhe dirigiam até nas mesmas sinagogas.
Recusavam-se a receber as águas do batismo e aconselhavam diariamente a Pilatos, governador de Jerusalém, e
ao tetrarca da Galiléia, que se apoderassem daquele homemque fomentava a sedição do povo.
- Se não quereis prendê-lo, diziam, ponde-lhe uma mordaça.
Um receio deteve então Antípas: o povo, que amava João como um profeta; o povo que corria a escutar as suas
inspiradas palavras e que lhe dava o nome de Messias, salvador de Israel, suplicandolhe que lhe concedesse o batismo.
João soube com indignação a infame libertinagem da adúltera Heródias.
Filipe tinha querido recobrar sua criminosa espôsa; porém Antípas, seu irmão, colocou as suas lanças
mercenárias na torrente de Joboc, e os soldados de Filipe, menos em número e em valor, não se atreveram a passar os
últimos limites do deserto de Manaim.
Filipe devorou em silêncio o agravo; Israel soltou um grito de indignação. O receio emudecia todas as línguas
porque Israel era então um rebanho de escravos.
João, criado no deserto, livre como o vento que levanta as penas da águia no espaço, busca os criminosos que
esqueciam o seu crime nos braços do prazer.
João soube por um dos seus discípulos que o tetrarca e sua infame esposa se achavam com toda à corte na
moderna cidade de Libíada na margem oriental do Jordão, a pequena distância do castelo de Macheronte.
As festas solenes da dedicação daquela cidade tinham reunido dentro dos seus recentes muros grande número de
curiosos.
João, seguido dos seus discípulos, entrou na Libíada, onde o prazer assentava os seus arraias, onde a alegria
ocupava todos os corações. Seu aspecto grave, meditabundo, silencioso, augurava algum acontecimento importante.
João chegou à larga praça onde Antípas tinha o seu palácio. A curiosidade reunia naquele lugar uma multidão
imensa. O traje estranho do precursos, seus longos cabelos estendidos em desordem sobre os ombros e costas, a
magestosa atitude daquele venerável cabeça e o brilho ameaçador dos olhos, transmitiam um medo inexplicável à
multidão que o rodeava.
Por fim ressoou nos pórticos do palácio o marcial som duma trombeta. Aquela voz de metal anunciava que o
tetrarca ia sair com a sua corte, como tinha por costume todas as tardes.
João ergueu a cabeça como o leão que ouve no deserto o gritpo selvagem do camelo. Seus olhos fitaram-se na
porta do pátio.
Breve se viu sair uma luxuosa cavalhada. Adiante via-se o tetrarca montado num cavalo branco de raça siríaca: a
seu lado cavalgava, numa égua espanhola sua nova esposa Heródias. Atrás seguiam alguns centuriões romanos e vários
dignitários da tetrarquia.
João sereno como um herói de Esparta ante o perigo, grave como o remorso, adiantou-se alguns passos direito a
Antípas.
- Que irá fazer? perguntavam em voz baixa as pessoas.
João continuava sem se deter.
- Escuta, Antípas, exclamou o Batista com voz firme e grave, e tu também, mulher de Filipe: não é lícito reteres
a espôsa de teu irmão. Ai dos que abriguem debaixo do seu teto a mulher adúltera. Malditos serão pelo Deus invisível
de Israel. Torna Heródias para Ituréia; o leito de teu esposo ainda está quente: êle te espera; abre os ouvidos à minha
voz que ensina o dever. Maldita seja e morta a pedradas a adúltera!
Os olhos de Heródias despediram raios de cólera. Com que prazer teria pulverizado aos pés do seu cavalo o
homem que se levantava ante ela como um remorso!
Antípas, pálido, abatido, só pode articular estas palavras:
- Afasta!
João afastou-se e a comitiva, triste e assombrada, continuou o seu caminho.
As festas, pertubadas pela última cena, terminaram naquele mesmo dia.
Desde então Heródias uniu-se com os doutores e os fariseus para perder o Batista. Antípas resistiu o princípio,
recusando-se a satisfazer os desejos de vingança que ardim no coração da esposa; porém cedeu enfim, e João foi
arrebataddo do seio dos seus discípulos e conduzido aos calabouços do castelo de Macheronte.
O crime de sedição era o delito de que o acusavam; mas atrás deste pretexto via-se o ódio de Heródias e a inveja
dos fariseus.
Os discípulos de João alcançaram de Antípas uma graça: que se lhes permitisse entrar no cárcere de seu mestre.

CAPÍTULO V

A TENTAÇÃO

Jesus depois do batistmo, retirou-se para os montes da Judéia, onde permaneceu quarenta dias.
Uma noite que, com a fronte encostada a uma penha dava graças ao Pai celestial que lhe havia dado forças para
resistir as necessidades do corpo, estremeceu a terra debaixo de seus pés.

140
O Nazareno ergueu a fronte. Um homem se achava junto dele, contemplando-o, com os braços cruzados sobre o
peito, ostentava uma profunda cicatriz na fronte. Seus olhos azuis, extremamente claros, tinham alguma coisa sinistra e,
no fundo das pupilas, brilhava-lhe a pavorosa luz do raio.
Seus longos cabelos, agitados pelo vento do deserto, despediam um resplendor fosfórico. Era formoso, porém na
sua formosura havia uma coisa de infernal. Os lábios sorriam-se, mas no seu íntimo pintava-se a desesperação e a ira.
Sua estatura era meio côvado mais elevada que a do homem mais alto. Seu vestuário era simplesmente um sáio
preto atado na cintura por uma correia; estava descalço e, quando movia os pés, deixava após de si um vestígio azulado
que apagava imediatamente.
Jesus estremeceu levemente quando seus olhos se fitaram no misterioso personagem que parecia ter saido da
terra.
- Filho do homem, conheces-me? disse o misterioso personagem.
- Sim; tu eras o arcanjo mais formoso do céu; o resplendor do sol brilhava-te na fronte, o sorriso do crepúsculo
oriental nos lábios; mas um dia rebelas-te contra Deus, e o seu sopro vingador arremessou-te das alturas do céu aos
abismos malditos da terra.
- Sou o rei do Averno, o senhor do mundo, tornou Lusbel levantando a maldita fronte.
- Sim, tu és o que anda nas trevas.
- Esse nome me dão as escrituras.
- Também te chamas pais dos ímpios;mas o teu orgulho é insensato. Só ao nome de meu Pai a tua cabeça se
curva e o teu corpo se arrasta.
- Pois bem, se és Filho de Deus, dize a estas pedras que se convertem em pão.
- Está escrito, disse Jesus, que não vive o homem só de pão: mas sim da palavra de Deus.
- Deita-te daqui a baixo.
O arcanjo levou pelos ares a Jesus e, colocando-o na ameia mais alta do templo de Jerusalém, disse-lhe:
Jesus respondeu-lhe:
- Está escrito, não tentarás o Senhor, teu Deus.
Jesus e Lusbel, arrebatadas por um turbilhão de vento, correram pelo espaço fora com a rapidez do furação. Por
fim pararam no cume du’a montanha altíssima que formava tres cabeças, o grupo de Himalaia.
- Debaixo das nossas plantas, disse o arcanjo, temos o monte mais alto do universo. Sabes o seu nome?
- Sim, chama-se Dawalagiri, respondeu Jesus com uma voz tão doce, que contrastava com o rouco acento do
anjo da trevas.
- Vais ver passar aos teus pés todos os reinos da terra.
Então ouviu-se um estremecimento profundo.
A montanha maldita, como se se houvesse conveertido em eixo da terra, fazia girar, com rapidez incrível, o
mundo.
Lusbel, agitava de vez em quando os ruivos cabelos, que despediam faiscas de luz sinistra.
Jesus olhava com olhos compassivos o anjo tentador.
- Olha, lhe disse por fim Lusbel, o panorama que gira debaixo dos teus pés. Essa imensidade de terra que se
encaminha para nós, tão depressa estéril como feraz, cruzada por todas as partes de rios e lagos, é a Ásia. Adiante está a
terra da Promissão. Deus prometeu-a a Abraão e a escolheu para teu berço. Não sentes a olorosa fragância dos cedros
do Líbano? Olha os altos cumes do Sabino, cobertos eternamente de neve: vês um fantasma gigantesco com os braços
cruzados sobre o peito? É Sem, filho de Noé, o tronco de onde saem esses quinhentos milhões de habitantes que
povoam um milhão de léguas quadradas de terra. Adiante vem a Palestina, como lhe chamam os romanos ou terra de
Canaan, como lhe chamam os fundadores. Vês aquele lago que encerram umas colinas, Genezaré? Vês aquela
monstruosa serpente que se arrasta sobre o seu leito de areia; é o Jordão! Seguindo a corrente podes ver o Mar Morto,
sepulcro móvel que encerra no seio a depravação dos filhos de Gomorra, Sodoma e Adama. Tua raça conquistou aquela
região aos jebuseus: a prêsa foi repartida em doze tribos: em vão a voz do profeta lhes recordava o dever, ensinando-
lhes as palavras da sua lei; em vão Elias levantava a voz no Carmelo; as terras conquistadas pelas guerras tingiram-se
mil vezes com sangue inocente; Gelboé está manchada com o sangue de Saul; o Gólgota manchar-se-á com o teu. Olha
bem aquele montão de casas, templos e palácios que se vão aproximando. Vês aquele pequeno povoado agrupado num
extremo do pitoresco vale de Zabulon? É Nazaré teu ponto de partida; à sua direita, e olhando para o Norte, está
Cafarnaum, de cujas ribeiras sairão os teus discípulos mais queridos. Seguindo a corrente de Jordão para o Sul, está
Jericó, destruída por Josué, e mais adiante, encravada no centro da tribo de Benjamim, acha-se Jerusalém, que te
coroará a fronte de espinhos, te escarrará no rosto e te verá morrer.
Lusbel deteve-se. O silêncio do Nazareno irritava-º Sacundindo a longa cabeleira ficou um momento com os
braços cruzados e o gesto altivo.
Entretanto foram passando rios, montes e cidades, e chegou a Armênia quase encerrada pelo Ponto-Euxino e mar
Cáspio, cortado pelas cordilheiras do Cáucaso, de cujo cume tinha desaparecido Prometeu, o ladrão divino.
Os rios Circo, Aranes, Tigre e Eufrates estendiam sua fecundantes correntes por toda parte.
O arcanjo contemplava Jesus em silêncio, e entretanto o mundo continuava girando em redor da fralda do
Dawalairigi, e passou a Mesopotâmia, essa grande planície encerrada entre o Tigre e o Eufrates, com a cidade de Aran,
onde viveram Abraão e Jacó; Cunaxa, onde Ciro, o moço, foi derrotado por seu irmão Artaxeres; a Assíria, com a sua
esplêndia Ninive, fundada por Nino; a Arbela em cujos plainos Alexandre venceu a Dario.

141
Olha agora, tornou Lusbel, aquilo é Babilônia, onde os homens adoravam cem deuses; aquela torre é a de Babel;
onde se ergue como um gigante no meio das ruínas. O meu alento inspirou aos babilônicos aquela obra colossal, triste
memória da soberba do homem.
A terra de Medos com seu clima temperado seus ares puros e sua eterna primavera, passa também perfumando o
ambiente.
O divino Galileu ouvia outra vez a voz do arcanjo, que dizia:
- Aparece a Índia; esse triângulo de terra cuja vegetação poderosa não tem igual no mundo. Suas canas são
árvores, suas árvores, bosques, seus rios encerram ferozes caimães, crocodilhos carnívores. Pelas suas selvas se
arrastam monstruosas cobras de vinte côvados. Os gigantescos elefantes percorrem suas planícies. Os leopardos, as
panteras e os leões albergam-se nos seus incultos barrancos. A terra dá duas colheitas por ano, e o torturoso Ganges
dizima os habitante com sua pútridas emanações. Para onde dirigires os olhos verás a grandeza, e vida e a morte. A
Ìndia, avó do gênero humano, sem o seu tifo e o seu cólera invadiria o mundo. Vês aquele fantasma que caminha
adiante daquela extensão quadrada de terra seca no centro, verde nos extremos: Pois é Cam. Aquela terra chama-se
África; sob o seu sol abrasador respira uma raça de homens negros como a noite, bravos como os leopardos de seus
desertos. Chega o Egito; mais de trinta milhões de homens estão sujeitos ao capricho da natureza. O Nilo é a sua vida, a
sua fortuna, o seu celeiro. Se o meu hálito secasse os ignorados mananciais de onde brota aquele rio, em breve
Elefantina, Alexandria, Hormópolis, o Cairo e outras vinte mil cidades seriam um montão de ruínas; os seus férteis
campos, os seus formosos jardins, um deserto seco e estéril. O Egito passou por sua vez com suas pirâmides, seus
obeliscos, seus desertos, seus vergéis e seu Nilo fecundante.
Outro fantasma apareceu no espaço arrastando seu longo sudário pela terra e, com o olhar fito num ponto
longínquo que resplandecia como o mar banhado pela lua. Era Jafet. Seguiu-o a Europa: a Itália foi estendendo o belo
panorma do seu solo compreendido entre o Adriático e o mar Tirreno; Mántua com seu lago resplandecente; Napóles
com o seu radiante golfo; Pompéia, vítima do Vesúvio; Cures, pátria de Numa Pompílio; Roma, senhora do mundo,
rainha da arte, recostada sobre o Tibre; Caudion, a das forças caudinas; Grotona, a dos homens esforçados, e cem mais
que passaram coroadas de glória resplandecente e de formosura, impregnadas de perfumes, ante o dolorido olha de
Jesus.
O arcanjo, com o braço estendido, fazia girar o mundo.
Por fim passou a Europa, antiga, apresentando aos olhos divinos de Jesus a Gália, a Germânia, a Panónia, com o
seu Danúbio, a Sarmácia e as Ilhas Britânicas.
O mundo antigo tinha girado ao redor do Himalaia.
Mas o arcanjo permanecia ainda com o braço estendido, e outra vez se ouviu sua voz, atroando o espaço.
- Olha, lhe disse, vês aquela imensidade de água que caminha para nós? Pois esse mar chamar-se-á o vasto
Oceano. Um homem atrevido atravessará essas imensas solidões de água. Os sábios lhe darão o apodo de louco; mas o
louco dará um mundo novo ao mundo velho.
E a América passa também com seus bosques impenetráveis, seus rios que parecem mares, suas magestosas
cataratas, suas férteis planícies, seu Chimborazo, seu Niágara e seu Mississipi, suas cordilheiras, seus Andes, e sua
poderosa vegetação.
- Essa terra ignorada tem as entranhas de ouro; é rica até o inverossimil; um aventureiro conduzirá às suas praias
milhões de homens impelidos pela cobiça, tornou Lusbel. Pois bem, tudo o que viste me pertence: é teu se ajoelhado aos
meus pés me adorares.
Jesus levantou os olhos ao céu. Depois abrangeu com um olhar compassivo o arcanjo tentador, e, com voz doce
e melodiosa falou:
-Não tentarás o Senhor, teu Deus. Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás.
Então estremeceram as entranhas do monte. Um grito espantoso atroou o espaço, abriu-se a terra, e o arcanjo
tentador caiu com estrondo nos seus profundos abismos, soltando uma blasfêmia horrível.
Jesus ajoelhou-se. Duas lágrimas lhe deslizaram dos olhos; erguia ao céu compassivo o olhar. Sua doce voz
também ergueu-se à mansidão de seu eterno Pai, dizendo:
- Perdoa ao soberbo. Da us fronte imaculada brotava a puríssima luz da manhã, e o orgulho submergiu nas
profundidades do abismo. Perdoa ao soberbo.
Cesssou a santa voz.
A aurora estendeu suas nacaradas cores e as aves começaram o seu canto de boa vinda.
Jesus continuava orando. Quando o primeiro raio do sol dissipou as trevas achava-se de joelhos sobre um alto
pico dos montes de Judá.

LIVRO DUOCÉCIMO

O PASTOR DAS ALMAS

CAPÍTULO I

142
A NOVA LEI

Chateaubriand disse: “Jesus Cristo apareceu no meio dos homens cheio de graça, verdade e doçura, porque veio
a ser o mais degraçado de todos os mortais. Suas palavras comovem; todos os seus prodígios fá-los em favor dos
miseráveis, dos desgraçados aflitos”.
Jesus, depois do deserto, encaminhou-se para a Galiléia. Sua santa missão vai começar.
Humilde pastor de almas, busca por toda a parte a ovelha desgarrada para a reconduzir ao redil. Para encarnar os
seus preceitos no coração dos desgraçados, escolhe o apólogo ou a parábola. A natureza é o grande livro que se abre
diante os olhos do povo.
Para onde quer que dirija os passos, uma multidão sedenta de ouvir a autoridade da sua palavra, ansiosa de
escutar a doçura da sua voz e de sentir a consoladora luz do seu olhar, o rodeia com amor e lhe chama seu Mestre, seu
Deus.
Nos lábios do santo Peregrino nunca se esgotam as palavras de consolação. Sua eloquência apostólica busca os
similes nos objetos que o cervam, para que aquelas naturezas simples o compreendam.
Apresenta o menino como modelo de inocência; a viúva pobre que deposita dinheiro na urna das esmolas, como
exemplo de caridade. Vendo as flores dum prado, exorta o povo a que confie na Providência, que mantém as plantas e
alimenta as tenras avezinhas. Em presença dos frutos sazonados dum campo, ensina a julgar o homem pelas suas obras.
Na primavera assenta-se sobre uma colina e instrui a multidão que o rodeia, comparando os objetos que se
estendem ante os seus olhos.
Mas não adiantemos a marcha dos sucessos.
Jesus, depois do deserto tornou a Nazaré, sua pátria. Era o dia de sábado, e encaminhou-se para a sinagoga. Os
sacerdotes deram-lhe o livro de Esaias.
Jesus leu onde diz:
“O espírito de Deus está sobre mim. Para dar boas novas me enviaram; para curar a todos os que crêem de
coração.
Para anunciar aos cativos redenção e aos cegos vista. Para pôr em liberdad os oprimidos; para publicar o ano
favorável do Senhor e o dia do galardão”.
Jesus enrolou o livro, e devolvendo-o ao sacerdote assentou-se no meio da multidão que o rodeava.
Por um momento contemplando com amor aquele povo, no meio do qual tinha crescido. Por toda parte
encontrava rostos conhecidos; mas também por toda parte observara olhares carregados, como se o repreendessem por
achar-se naquele lugar.
Os murmúrios de desgosto começaram a ouvir-se em redor do humilde Nazareno. Por fim um profundo e
doloroso suspiro saiu dos divinos lábios do futuro Mártir; e falou desta maneira.
- Hoje cumpriu-se a Escritura. A profecia de Isaías que ressoou aos vossos ouvidos, será cumprida.
A dulcíssima voz de Jesus penetrou em todos os corações.
O Filho de Maria continuou a falar-lhes, e a força misteriosa das suas palavras maravilhava-os.
- Não é este o filho de José, o carpinteiro? perguntavam.
- Se é, como diz, o Messias, porque não faz entre nós o que contam que fez em outras partes? tornou outro.
- Dizem que cura os cegos.
- E os possessos...
- Que o poder da sua palavra levanta os paralíticos do seu leito...
- Nas bodas de Canaã convertou a água em vinho, exclamava outro.
- Se fosse certo tudo que dizem, fá-lo-ia na sua pátria...
- Como há de ser um profeta o filho de um carpinteiro?
- Chama-se o Cristo.
- Nada bom sairá da Galiléia, disseram as Escrituras. Não é ele Galileu?
Jesus escutava com infinita bondade todos estes comentários.
Por fim falou desta maneira, e à sua voz extinguiram-se os murmúrios:
- “Em verdade vos digo que nenhum profeta é aceito na sua pátria. Muitas viúvas havia em Israel no tempo de
Elias, quando se fechou o céu por tres anos e seis meses, quando houve uma grande fome por toda a terra. Mas a
nenhuma delas foi enviado Elias senão à viúva Sarepta, filha de Sedônia. Muitos leprosos havia em Israel no tempo de
Eliseu, o profeta: mas nenhum deles foi limpo senão Naaman, da Síria”.
Os nazarenos, indignados ante a verdade destes exemplos que Jesus arrancava da história para repreender a sua
incredulidade, começaram a ameaça-lo. A doçura de Cristo irritava-os, chegando por fim no seu cego furor a expulsá-lo
da Sinagoga.
Jesus foi arrastado pela multidão ao cume de um monte. Algumas mãos ímpias empurraram-no para o
precipitarem no abismo. Porém Ele, sereno ante o perigo, humilde ante o insulto, tranquilo ante a ameaça, abarcava com
um dulcíssimo olhar aquela turba louca, rogando em silêncio a seu santo Pai por ela.
O poder da sua mansidão humilhou os soberbos. Cristo passou pelo meio deles e; com passo firme, começou a
descer pela encosta do abismo, por um lugar por onde homem alguma se tinha atrevido a baixar.

143
Alguns dias depois chegou a um ponto situado no extremo setentrional do lago de Genezaré ao povoado de
Cafarnaum, isto é, da consolação. Ali sara um endemoninhado, e cura das febres a sogra de Simão.
O povo atropal-se para ver o divino Mestre.
Todas as tardes, à hora emque os últimos raios do sol poente se estendem sobre o tranquilo mar de Tiberíades,
Jesus, sentado numa rocha, rodeado duma multidão sequiosa das suas palavras, que penetravam em todos os corações,
chama a si os aflitos, os desgraçados.
Oh! Quantas recordações da sua doce e infinita bondade conservam as santas ribeiras daquele lago escolhido por
Deus! Ali acudiam os enfermos que saravam só pelo poder da palavra do Redentor. Ali foi onde isse ao paralítico:
“Levanta-te, pega no teu leito, e vai para tua casa”. E o paralítico levantou-se e pegou no leito, dando graças ao Deus
cuja bondade infinita acabava de reanimar a sua inerte matéria.
Ali tamb´me foi onde uma tarde mandou lançar as redes a Simão Pedro, e as redes saíram das águas repletas de
peixes a ponto de se romperem as malhas. E dois barcos se encheram quase até se afundarem nas águas.
Então Simão Pedro, absorto ante o prodígio que tinha à vista, lembrando-se de que na noite antecedente havia
lançado inutilmente as redes ao lago, caiu aos pés daquele Homem maravilhoso, e pondo a fronte no pó, exclamou com
medroso acento:
- Senhor, perdoa os meus pecados!
Jesus então estendeu a mão protetora sobre aquela cabeça que se humilhava, e disse:
- Nada temas. Chamas-te Simão, chamar-te-ás Pedro, e daqui em diante serás pescador de homens.
A fama e os milagres de Jesus, estenderam-se com prodigiosa rapidez pelas doze tribos.
Entretanto o ungido do Senhor recrutava nas ribeiras de Genezaré os seus apóstolos, os modernos propagadores
da sua nova lei. Rudes pescadores haviam de comover o mundo com o poder da palavra, sempre inspirada pelo divino
Mestre. A Pedro segue André, seu irmão. Mais adiante os filhos de Zebedeu vêm passar Jesus, na ocasião em que se
ocupavam a consertas as redes. Jesus chama-os, e Tiago e João abandonam seu pai para seguirem o Homem cujas
palavras arrebata, cujo olhar seduz.
Pouco depois, seguido sempre por toda parte da multidão, Jesus detém os passos no cume de um monte.
Ali escolhe os seus apóstolos: Pedro, André, João, Tiago, Filipe, Mateus, Tiago de Alfeu, Simão, chamado
zelador, e Judas Iscariotes, que mais tarde devia vender o seu Mestre.
Estes foram os homens venturosos escolhidos pelo Salvador do mundo. Homens imortais que, com a palavra
regeneradora nos lábios, percorreram mais tarde a terra em busca do martírio.
Jesus os conduziu a um plano. Sentou-se sobre a terra do campo e, abrangendo com olhar bondoso os soldados
da sua nova lei, começou a falar-lhe deste modo:

CAPÍTULO II

AS BEM AVENTURANÇAS

Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino dos céus.


Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque sereis fartos.
Bem-aventurados os que agora chorais, porque rires.
Bem-aventurados sereis quando os homens vos aborrecerem e apartarem-se de vós e vos ultrajarem...
Jesus inclinava de vez em quando a radiosa fronte para o chão. Mas em breve tornava a ouvir-se a sua dulcíssima
voz que dizia:
Aí de vós os que estais fartos, porque tereis fome!
Aí de vós os que agora rides, porque chorareis e gemereis!
Mas digo-vos a vós que me ouvir: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos querem mal.
Bendizei os que vos maldizem e orai pelos que vos caluniam.
Ao que vos ferir numa face, apresenta-lhe também a outra e ao que vos tirar a capa, não lhe impeçais levar
também a túnica.
Daí a todos os que pedirem; e ao que tomar o que é vosso não lhe torneis a pedir.
O que quiserdes que façam convosco os homens, isso mesmo fareis vós com eles.
Se amardes os que vos amam, que merecimento tereis?
Se fizerdes bem, aos que vos fazem bem, que merecimento tereis?
Se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que merecimento tereis? Os pecadores também fazem isto.
Amai, pois, os vossos inimigos, fazei bem, daí emprestado sem esperar por isso nada, e o vosso galardão será
grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para os ingratos e maus.
Sede, pois, misericordiosos como vosso Pai é misericordioso.
Não julgueis e não sereis julgados, não condeneis e não sereis condenados, perdoai e sereis perdoados.
Daí e dar-se-vos-á medida boa e apertada; porque com a mesma medida com que medirdes, se vos tornará a
medir.
Por que como podereis dizer: deixa-me, irmão, tirar-te o argueiro do teu olho, não vendo tu a trave que há no
teu?... Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e depois verás para tirar o argueiro do olho de teu irmão”.

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Sublime doutrina, digna somente de um Deus que desceu do paraíso para derramar o seu sangue pelo homem e
fazer da raça humana uma família.
Todos filhos de Deus, todos irmãos; eis aí uma frase que encerra por sí só um poema de indefinível ternura, de
inesgotável amor.
Jesus depois de instruir os seus discípulos, entrou na cidade de Cafarnaum, onde curou o criado do centurião
romano.
Cristo, incansável no desempenho da sua sublime missão, procurava com terna solicitude os desgraçados para
chorar com eles.
A viúva de Naim vê levantar-se o cadáver de seu adorado filho. A mão de Jesus havia tocado o féretro, e a sua
voz tinha dito: “Levanta-te”.
- Deus visita o seu povo, exclamou a multidão absorta ante tão grande milagre.
- Um grande Profeta se levantou entre nós, exclamaram os discípulos em voz baixa.
A fama deste milagre correu até os confins da Judéia. João Batista ouviu no seu cárcere o assombroso
acontecimento que preocupava o ânimo dos israelitas e mandou dois dos seus discípulos em busca do Messias.
- És tu o que há de vir, ou esperamos outro? lhe perguntaram.
- Dizei a João o que ouvistes e vistes: que os cegos vêm, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos
ouvem, os mortos ressucitam e aos pobres anuncia-se o Evangelho.
Um dia Jesus encaminhava-se para a Galiléia, e era preciso atravessar a hostil Samaria. Os raios abrasadores do
sol caíam perpendicularmente sobre a terra.
Jesus sentiu-se fatigado.
A cidade de Siquém distava coisa de um quarto de hora do lugar em que o Nazareno se achava. Era esta herdade
que Jacó tinha dado a José, comprada aos filhos de Hemer por cem cordeiros.
Junto desta herdade havia um poço de água viva,onde as mulheres de Siquém iam buscar água. Jesus ficou junto
daquele manancial. Os discípulos dirigiram-se à cidade em busca de mantimentos.
Jesus ficou só. Um pensamento profundo germinava naquela fronte divina. Seus grandes olhos azuis, fitos na
profunda abertura do poço, pareciam ler na transparente e clara superfície do manancial algum mistério.
De súbito estremeceu. Sua nobre cabeça levantou-se como a copa da galharda palmeira depois do último sopro
do furação. Volveu um olhar cejio de perdão e bondade para Siquém, donde caminhava em direção à fonte uma mulher
com uma ânfora de barro à cabeça e uma comprida corda enrolada na esbelta cintura e no braço esquerdo.
Era uma formosa moça: teria vinte e quatro anos... Seus olhos resplandeciam; seus lábios grossos e nacarados
respiravam sensualidade e paixão.
As faces, morenas como as da Sunamita e mórbidas como as de Abigail, ostentavam saúde; descobriram que
aquela mulher encerrava um coração faminto de prazeres.
Longas tranças de negros cabelos lhe caíam sobre os redondos ombros da túnica de lã cor de amaranto.
Aquela mulher chamava-se Sar. Os Evangelos só a consignam com o nome de sua pátria. Chamava-se a
Samaritana.
Sara, chegando ao poço pouso o cântaro, dirigindo um olhar desdenhoso para aquele homem silencioso que a
contemplava com olhos compassivos. Seu traje e seu penteado mostram claramente a sua raça.
Era um Galileu, gente que os samaritanos olhavam com profundo desprezo. Sara encheu a ânfora, e Jesus disse-
lhe com doce acento:
- Dá-me de beber.
Sara, a formosa Samaritana, perguntou com admiração:
- Como! Tu... um judeu, pedes água a uma mulher de Samaria! Quando teve o teu povo trato com o meu?
- Se soubesses, respondeu Jesus com doçura, quem é o que te diz “dá-me de beber”, tu lhe pedirias e ele te daria
água viva.
A mulher samaritana volveu um olhar em torno de si como procurando um objeto, e, não o encontrando, fez esta
pergunta com riso mofador:
- Não tens com que tirá-lo e o poço é fundo. Onde está essa água que me ofereces? És tu, por ventura, maior que
nosso pai Jacó, que nos deu este poço?
- Todo aquele que bebe a água deste poço, replicou Jesus, tornará a ter sede: mas o que beber da água que eu lhe
der, jamais terá sede.
A mulher, escutando absorta aquelas palavras, e quase subjugada ante a magestade de Jesus exclamou:
- Senhor, dá-me dessa água, e assim evitarei vir todos os dias a este manancial, tornando para Siquém fatigada
com o pêso do cântaro.
O Salvador quis mostrar àquele mulher que Êle era mais que homem.
- Vai, lhe disse, chama teu marido, e vem com ele.
- Não tenho marido, respondeu Sara, baixando o rosto para o chão, envergonhada ante o olhar puríssimo de Jesus
que lhe recordava a sua vida passada.
- Bem disseste, tornou o Nazareno; não tens marido; porque cinco tiveste, e o que agora vive contigo não é teu
esposo.
A Samaritana levantou os olhos, confusa, para olhar aquele homem que parecia saber sua história silenciosa.
- Senhor, vejo que és profeta, lhe disse. Eu sei que vem o Messias que se chamará Cristo e, quando vier, nos
declarará todas as coisas.

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Jesus, que lia no coração daquela pecadora um vivíssimo desejo de conhecer a verdade, disse-lhe simplesmente
estas palavras:
- Eu sou o Messias, que falo contigo.
Sara caiu aos pés do Redentor como se a luz de seus divinos olhos a houvesse deslumbrado. Afogados soluços
lhe saíam do peito, e um mar de lágrimas lhe corria pelas morenas e frescas faces.
- Mulher, continuou Jesus, não está longe o dia em que um só Deus será adorado em toda a redondeza da terra,
dum modo perfeito. Os sacrifícios dos samaritanos e dos judeus serão abolidos. A fé da nova lei se derramará por toda
parte como a benéfica chuva sobre os campos para os fecundar. O Deus verdadeiro não se achará sujeito ao lugar que
escolham os homens. Estará por toda parte: a errante caravana, ao atravesar as secas areias do deserto, o encontrará, se o
buscar. O pobre náufrago, no meio dos irritados mares, e encontrará, se n’Ele confiar. O enfermo prostrado no leito da
dor, o perdido caminhante, o aflito, o faminto, o deserdado, todos enfim, os que vivem sobre a terra, o encontrarão se o
invocarem com fé; porque Ele é o verdadeiro Deus e está em todas parte; no ar tíbio que mexe o melancólico penacho
da palmeira, no cálix duma flor, na fonte que sussura ao pé das colinas, no canto misterioso das aves, nos radiantes raios
do sol que iluminam e vivificam. Porque é espírito, e é mister que o adorem em espírito e verdade.
Ainda permanecia aos pés de Jesus a Samaritana, escutando as palavras do divino Mestre, como se fosse o eco
harmonioso du’a música celeste, quando chegaram os discípulos que tinham ido a Siquém comprar víveres.
A presença du’a mulher naquele lugar admirou-os mais ninguém se atreveu a dizer ao Mestre: que perguntou
ou que diz ela
Sara, ao ver-se rodeada dos apóstolos, abandonando o cântaro, foi precipitadamente à cidade participar o
venturoso encontro que tivera na herdade de Jacó.
- Vinde, clamava Sara a todos os que encontrava pelo caminho. Vinde ver um homem que revelou tudo o que
tenho feito, na minha vida: será acaso o Cristo.
Enquanto esta mulher alvoroçava os habitantes de Siquém que, cheios de curiosidade se encaminhavam para a
fonte de Jacó, os Apóstolos, apresentando ao seu Mestre as provisões, lhe pediam que comesse, mas Jesus rejeitava a
comida, dizendo:
- Eu tenho para comer um manjar que vós não sabeis.
Só um murmurou em voz baixa:
- Ter-lhe-ia trazido comida aquela mulher?

LIVRO DÉCIMO TERCEIRO

CAPÍTULO III

A SAMARITANA

Alguns dias depois, a mulher de Siquém, à quem havia falado Jesus no poço de Jacó, estava sentada em sua casa
e chorava. A voz poderosa e triste, severa e ao mesmo tempo consoladora que lhe havia dito: “Oh! Se conhecesses o
dom de Deus!” Aquela voz ressoava-lhe incessantemente nos ouvidos, e retraía-lhe o coração dos longos extravios.
Sonhos de inocência desvanecida, secretos arrependimentos, não confessados ainda a ela mesma, lhe
perturbavam o espírito. Repassava na imaginação os seus dias que se tinham deslizado entre a febril embriaguez das
paixões, e o rubor corava-lhe por um momento a face, que logo empalidecia de novo com a amargura das recordações.
E aquele pobre coração, por tanto tempo cheio dos sentimentos tumultuosa da terra, volvia-se apesar seu, para o
que tanto amava, porque a graça o tinha surpreendido no meio duma afeição mais profunda e ardente que quantas até
então o tinham agitado; e o seu coração palpitava ainda sob o peso dos novos pensamentos que lhe germinavam no
peito, junto dos que não a tinham de todo abandonado, e a sua alma gemia na turbação e na angústia.

II

- Safan não virá, dizia consigo no meio da inquitação do espírito; ele foi vender seu gado e a herança para se
estabelecer para sempre ao meu lado. Eu exigi-lhe esta prova de amor. Queria eu que tudo deixasse por mim, como eu
teria deixado por ele todos os bens da terra... mas como renunciar aos do céu, agora que brilharam a meus olhos! E
agora, que vai ele pensar, achando-me tão outra do que me deixou?
Mas, prosseguia, e crescia a palidez do seu rosto e o seu seio se levantava mais agitado, quem pode prever se
voltará? Um ano de constância talvez o tenha cansado. Por outra parte, uma esposa jovem e bela, ornada sem dúvida, ai!

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de toda a sua inocência, o aguarda ao lado de seu pai... Quem sabe? Talvez não volte mais. Melhor seria isto que termos
que separar-nos... para não nos vermos mais. Oh, meu Deus! Mui fraca sou ainda! Custar-me-á a vida!

III

Assim falava Sara, a bela samaritana, conhecida até então em Siquém por seus infortúnios e pelo atrativo das
suas graças, às quais poucos homens sabiam permanecer insensíveis. Mas hoje o formoso semblante está escurecido
pelas lágrimas, e Sara vê-se abismada em amargas recordações juntas com previsões ainda mais amargas.
- Ah! Se ele houvesse escutado, como eu, a voz de Cristo, sua alma se teria certamente comovido como a minha,
e ambos juntos seguiríamos o Salvador, para escutarmos sempre as palavras que fazem levantar os mortos dos seus
sepulcros e os pecadores do abismo dos seus pecados. Mas querer-me-á acreditar, a mim, pobre mulher, sem ciência
nem autoridade? Oh meu Deus! Eu não espero senão a Vós!

IV

Ao cair daquele dia, depois duma lua de ausência, apareceu Safan, à porta da casa de Sara, e abriu-a sem
dificuldade. Ao entrar na habitação baixa em que morava a jovem, deixou a aljava e o bordão de viagem, e, dirigindo-se
a ela, disse-lhe com um tom que manifestava uma forte comoção.
- Sara, já me tens de volta ao teu lado... Disse adeus, como tu quiseste, a meu pai, a minha pobre mãe, a meus
irmãos, ao teto que me viu nascer, à que me estava destinada para esposa. Rompi todos os laços que podiam afastar-me
de ti... Vem, Sara! Faça-me o teu amor esquecer tudo quanto deixei por ti!
Sara permanecia trêmula, longe dele, e não caminhava. As sombras começavam a subir pelo horizonte: um
derradeiro raio de sol ao morrer atravessou as grades da janela, iluminando os negros cabelos de Sara e dourando-os
com um brilhante reflexo. Mas seu rosto estava na escuridão. Aproximou-se Safan e olhou-a: estava inundado de
lágrimas.
- Que sucedeu? tornou um tanto bruscamente o jovem. Donde vem tão estranha recepção? Não, tu não me
recebias assim... Foi talvez demasiado longa a minha ausência para a constância dum coração de mulher? Fala, ao
menos.
Um suspiro de Sara foi toda a resposta. Estas palavras do amante fizeram-lhe conhecer toda a profundidade da
sua abjeção, pois podia crê-la capaz de o esquecer tão depressa.
Safan examinava-a com olhos de suspeita. Continuou, pois, e a sua voz trêmula na cavidade do robusto peito:
- Dize-me, obrei mal em deixar tudo pelo teu amor? ... Oh! Se assim o pudesse crer... di-lo, di-lo, Sara! Tão
depressa vais vingar meus pais e a minha jovem prometida do inesperado abandono em que os acabo de deixar? Meu
pai, a quem Deus abençoe e console, meu pai, o sábio ancião, já me disse que tu os vingarias um dia a todos; mas eu, na
minha cegueira e no meu amor insensato, não quis crê-lo. E tu és a que tão depressa deves convencer-me? - E olhava
Sara, e os seus olhos exprimiam uma desconfiança mista de cólera e de dor.
- Safan! exclamou ela. Eu amo-te sempre! Oh! sim, sempre o bastante para morrer por ti se tiveres necessidade
da minha vida.
- Então!... disse Safan.
- Durante a tua ausência passaram-se aqui, nestes lugares, algumas coisas... das quais eu teria querido que fosses
testemunha, Safan, e estas coisas me deram a conhecer que outros pensamentos, mui diferentes dos da terra, devem
encher o espírito das criaturas de Deus.
Safan em pé, com os braços cruzados e contraídos, olhava aquela mulher comovida e palpitante e, não sabendo
ler no fundo da sua alma que casta de agitações a perturbavam, num terrível acesso de furor exclamou:
- Ah, coração de mulher, mais inconstante que as ondas movediças do mar! Que extravio de pensamentos, que
vertigem se apoderou de mim para dar crédito às tuas palavras? Oh, desdita! Sou um insensato!
- Safan, querido Safan, não me amaldiçoes, exclamou ela pondo-se de joelhos diante dele e beijando-lhe as mãos
com imensa dor. Não me oprimas, não me mates com esse menos prezo que leio nos teus olhos. Não, não creias, não
mudou o meu coração: é teu, amo-te a ti unicamente, e nunca o possuirá outro. Mas escuta: brilhou a minha vista uma
nova e súbita luz que me fez ver a minha pequenez e miséria. Compreendi, senti mistérios desconhecidos, cuja
sublimidade me aterrou. Uma voz me falou. Ó, Safan, se tu também conhecesses o dom de Deus!.
- Que queres dizer-me? Essas palavras são para mim incompreensíveis.

Safan tinha-se deixado surprender por carinhosas palavras du’a mulher bela e apaixonada. Tinha-se entregado
sem defesa às suas sedutoras graças. Subjugado pelos seus encantos, nada lhe havia custado a resolução de romper por

147
ela todos os vínculos que unem os homens entre si. Tudo tinha rompido bruscamente e sem pensar, a fim de seguir sem
peias as suas inclinações.
Quando fazemos um sacrifício das nossas mais queridas e inocentes afeições para as pormos aos pés de um ídolo
que cremos nos aparta deles, sentimos o maior tormento que pode devorar a alma do homem. Safan viu naquele
momento sua velha mãe chorando e dizendo-lhe o último adeus; seu pai, enfermo e oprimido de pesares, e seus irmãos,
fiéis aos antigos costumes, seguirem-no com severo olhar, ao dizer-lhe o último adeus. Tornava a ver também a sua
prometida esposa, a bela e encantadora Ilida, que escondia as lágrimas á sua partida.
Sem o saber, trouxera a Siquém um coração irresoluto com imagens de uma pura felicidade e recordações e
remorsos que queria esquecer nos fogos de uma paixão ardente. Ai! Sara viu num só olhar tudo o que se passava no
coração de Safan, pois sentia-se duplamente iluminada pelo amor e pela dor.

VI

- Ó, Safan! exclamou chorando com amargura. Poruqe não te opuseste, quando, louca, eu, te exigia tão grandes
sacrifícios? Eu cria pagar-tos com uma vida inteira de amor, com uma existência toda consagrada a ti, pois eu amo-te
como nunca, como jamais amei.
- Se tu me amasses...
- Oh, meu Deus, sim, eu amo-te! Mas, continuou baixando os olhos cheios de lágrimas, o Cristo, o Salvador
desceu à Siquém; fez-nos ouvir a sua palavra divina, e a sua voz comoveu-me a alma até ao mais profundo dela.
Safan sorriu-se de modo estranho.
- Já não me acreditas, tornou Sara, oprimida por um grande peso. Perdi o direito de persuadir-te. Não o teria tido
senão para tua perdição? Ah! Porque não te achavas aqui? Por que me deixaste? Terias visto e sentido como nós o poder
irresistível que exerce. Ele falou e todos emudeceram para escutá-lo. Curou aqueles que sofriam, e o seu límpido olhar
penetrava até o fundo da consciência e perturbava-a como um raio do sol perturba a água, à qual a um tempo aquece e
ilumina:
- Mas, disse Safan bruscamente, onde nos levará este discurso?
- Pois bem, replicou Sara com voz segura: reconhecei a minha culpa e dela me arrependi.
- Com quem? exclamou Safan em tom de profundo desprezo.
Duas lágrimas saltaram dos olhos de Sara a este insulto inesperado.
- Tu não me acreditas! Ah! bem o mereci. O terrível castigo dum procedimento insensato é o não poder inspirar
confiança. Que direi eu agora, se não dás o minímo crédito às minhas palavras? Vamos procurar Eliezer: as suas
simples palavras talvez te convençam; mas ei-lo que chega.

VII

Com efeito, um ancisão inclinado sob o peso dos anos chegava dos campos. Era Eliezer, tio de Sara e pai dos
jovens que sucessivamente tinha morrido depois de a terem tomado por esposa. Eliezes era um ancião entendido,
singelo nas suas palavras, e cujas ações tinham sido boas diante de Deus. Suas cãs eram por todos respeitadas, porque a
experiência consumada é a coroa dos velhos e a sua glória consiste no temor de Deus.
- Safan, meu filho, benvindo seja! disse ao mancebo estendendo-lhe a rugosa mão.
Levantou-se este com respeito à velhice. Mas não respondeu. Este afetuoso acolhimento não deixou de o
surpreender, e causou-lhe certa sensação no coração; porque Eliezes, sabendo que um filho de Israel não podia ser
esposo duma samaritana, tinha vituperado fortemente as sua relações com a sobrinha. Há bondades que fazem pressentir
a desgraça.
-Posso o teu regresso restituir a paz a Sara! continuou o velho: oito dias há que não sabe senão chorar, e os seus
olhos convertem-se em rios de lágrimas.
E sem dúvida conhecerás a causa de tão profundo pesar? disse em amargo tom o jovem hebreu.
- Ah! A causa, disse Eliezes sentando-se junto de Sara, a causa desta pena é e será a alegria de muitos: um
homem apareceu entre nós, e a sua boca ensinava a sabedoria. A graça divina e a força fluíam dos seus lábios, como cai
o orgulho da manhã sobre a terra. Ele derramou a luz sobre quantos o escutaram com reto e sincero coração. A Sara
devemos a sua vinda. Bendita seja ela para sempre! Acrescentou lançando sobre a bela Samaritana um olhar benévolo e
paternal. Bem sabes, continuou que eu e ela sofremos juntos muitos pesares, e eu a acusava alguma vez de ter esquecido
muito depressa seus esposos por um novo amor... Mas se sofri muito por ela, por ela também me veio a consolação.
Bendita seja! Por ela, Safan, se levantou de repente diante de mim a esperança de outra vida no sepulcro. Já se
dissiparam os meus temores e se aclararam as trevas que me enchiamd e horror: a velhice, meu filho, já não é para mim
aquele mal débil e pesado que conduz à morte. É o áspero e duro da verdade, mas iluminado por um raio do futuro, que
conduz a uma vida imperecedoura. Oh, minha filha! Bendita sejais para sempre!

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VIII

Safan olhava Eliezes, que, perdido nos seus pensamentos, parecia penetrado para com Sara de um inefável
reconhecimento. O jovem hebreu não compreendia as suas palavras. Eliezes prosseguiu.
- Terão passado poucom ais de oito dias. Minha filha tinha saído da cidade à sexta hora do dia, para ir, segundo
ela me contou, tirar água da fonte de Jacó. Um homem estava sentado junto do poço. Parecia fatigado, e descansava à
sombra das palmeiras; no seu modo de vestir fácil era reconhecer a sua nação, era um galilei; seu ar era plácido e
magestoso; e só com ver a sua nobre serenidade, vinham vivos desejos de ajoelhar a seus pés. Isto foi o que Sara nos
disse ter sentido, e depois o exprimentei eu mesmo. Quando minha filha se aproximou da fonte, o estrangeiro pediu-lhe
com acento cheio de doçura que lhe desse de beber. Admiranda Sara pela confiança que lhe manifestava, pois, já sabeis
que o ódio divide as nossas duas nações, respondeu-me: “Senhor, tu és judeu, como me pedes de beber, a mim que sou
samaritana? Os judeus não tem comércio com os samaritanos.
Então Êle respondeu, e esta resposta comoveu profundamente o coração de minha filha: “Se tu conhecesses o
dom de Deus, e se soubesses quem é que te diz: dá-me de beber, tu mesma talvez lho houvesses pedido, e êle te daria
água viva”.
- Que quer isso dizer? interrompeu Safan. Tinha, pois, esse homem, sendo viajante, um vaso bastante grande
para tirar água do poço de Jacó? E duma profundidade considerável...
- Isso mesmo é o que lhe fiz notar, disse por seu turno Sara, e respondi-lhe com surpresa: “Senhor, se não tens
nada com que tirar água, e o poço é tão profundo, donde terias tirado água viva? És tu maior que nosso pai Jacó, que
nos deu este poço, de cuja água bebeu ele mesmo e também seus filhos e seus rebanhos?” Mas ele me respondeu:
“Qualquer que beba desta água terá ainda sede, mas o que beber da que eu lhe der se converterá para ele num manancial
que brotará dele até à vida eterna.
E Sara ficou pensativa, como se aquela voz e aquelas palavras ainda lhe ressoassem nos ouvidos.
O ancião baixando a voz e dirigindo a palavra a Safan, que permanecia imóvel com aquela narração, disse:
- Sara sentia-se perturbada no seu interior, e lhe disse com uma espécie de movimento involuntária:
“Senhor, dá-me dessa água para que eu não tenha mais sede, nem haja de vir aqui mais para a tirar”. E o
estrangeiro lhe disse então: “Vai chama teu esposo, e volta aqui.
Sara, permanecia absorta em profundas reflexões, seguia com atento ouvido cada uma das palavras de Eliezer, e
exclamou de repente:
- Sim, Safan, o Senhor me disse que te chamasse, e ainda que deva custar-me à felicidade e o gôzo da minha
vida, eu te chamarei com todas as vozes do meu coração, até ao dia em que me respondas: Aqui me tens.
E Sara escondeu o rosto entre as mãos; as lágrimas corriam-lhe através dos formosos dedos.
- Foi-me preciso dizer-lhe a verdade, e confiei-lhe com vergonha e rubor, prosseguiu. “Eu não tenho esposo”, lhe
disse, e Ele me respondeu. “Com razão dizes que não tens esposo”; e a voz do que assim me falava era uma voz cheia
de harmonia compassiva. E eu exclamei como perdida: “Senhor, eu bem vejo que tu és um profeita”. E fiquei
aniquilada diante d’Êle. Estava abismada de pasmo pelas revelações que acabava de fazer-me acêrca da minha vida
passada, e dos laços que nos uniam, Safan. Todavia, esforcei-me para recobrar os sentidos, a fim de não perder as suas
palavras, e ainda o ouvi dizer: “Deus é espírito e vida, e é preciso que os que o adoram o façam em espírito e verdade”.
Safan olhou para o ancião, como para pedir-lhe uma explicação das elevadas doutrinas que ele não compreendia;
mas Eliezes parecia perder-se abismado nos seus pensamentos; seus olhos levantados para o céu indicavam de que
natureza eram as suas reflexões. Sara continuou:
- Eu atrevi-me a dizer-lhe, balbuciando: “Sei que breve deve vir o Cristo ou o Messias. Quando tiver vindo,
anunciará todas as coisas”. Mas, Safan, Êle me respondeu e o meu coração estremece ao pensá-lo e a minha boca mal
ousa repetí-lo: “Sou eu mesmo. Eu, que te estou falando”.
Safan e o ancisão olharam-se; sentiram gelar-se-lhe o sangue.
- A estas palavras fugi como espantada, e ao mesmo tempo arrobada de alegria. Deixei ali o meu cântaro, e vim
aqui correndo e arquejando e dizendo a quantos encontrava pelo caminho: “Vinde ver um Homem que me disse tudo o
que tenho feito. É o Cristo, o Messias”.
- E que fizeram os que chamavas? disse Safan. Deram créditos tão facilmente às tuas palavras?
Sara não respondeu: foi Eliezer o que disse:
- Grande número de habitantes de Siquém, e eu com eles, saímos pressurosos da cidade, e fomos ao seu
encontro. Êle estava ainda sobre a montanha, rodeado dos seus díscipulos. Ao vê-lo detivemo-nos a alguma distância,
sem nos atrevermos a passar avante. O sol banhava-o com a sua luz, porém Êle parecia brilhar com raios interiores,
mais fulgurantes que todos os resplendores do céu; os nossos olhos ficaram deslumbrados com a sua presença. De longe
o ouvimos conversar com os seus díscipulos. Êles lhe pediam que tomasse o alimento que lhe tinham levado; porém Êle
respondia-lhes com imponente gravidade: “Não dizeis vós: dentro de quatro meses virá a ceifa? Agora vos digo Eu:
Levantai-vos e olhai os campos que já branqueiam e estão para segar-se. O que segar receberá o seu salário, e colherá
frutos para a vida eterna, para que tão contente fique o que semeia, como o que lhe colhe as messes”.
- Que queria dizer com isso exclamou Safan, e de que ceifa queria falar? Não compreendo essas figuras.

149
- Nas nossas almas é que semeia as suas palavras, e para o céu sem dúvida que quer colher o fruto, respondeu o
velho samaritano. Ah! se aqui estivesse, Safan! Os que o ouviram creram n’Êle, porque o poder e a persuasão manavam
dos seus lábios com abundância.
- Permaneceu muito tempo em Siquém?
- Dois dias esteve entre nós. Durante este tempo a sua palavra divina germinou nas nossas almas, e a metade do
povo crê n’Êle. E não pelo que nos disse Sara, senão porque o vimos nós mesmos, e sabemos que é o Salvador do
mundo.
- Safan! O Senhor disse-me que te chamasse. Oh! não te faças surdo à sua voz.
- A sua voz não chegou aos meus ouvidos, respondeu o mancebo, e o que me dizem um velho crédulo e uma
mulher que facilmente se impressiona, não pode comover-me. Além disso, acrescentou como procurando fortalecer-se
na sua incredulidade, o Cristo prometido aos verdadeiros filhos de Israel como teria conversado por tanto tempo com
samaritanos, cujo culto é para nós abominável? tornou Safan.
- Esquecia-me de dizer-te ainda, tal é a minha perturbação, que para sair das dúvidas que fizeste nascer no meu
espírito respeito ao nosso culto e à nossa crença, disse com timidez ao Senhor: “Nossos pais adoram sobre esta
montanha em que nos achamos, e os da tua nação nos dizem que em Jeusalém é que se deve adorar”. E Êle respondeu-
me: “Crê-me, mulher: breve há de vir o tempo em que vós não adorareis a Deus nem nesta montanha nem em
Jerusalém: vós adorais o que não conheceis; mas só adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus”.
- Disse isso? Murmurou Safan, em cujo peito os desvairos da mocidade tinha enfraquecido, mas não de todo
extinguido a fé de seus pais; Êle disse a verdade: a salvação do mundo deve sair do meio do povo escolhido de Deus.
- Também nos disse, prosseguiu Eliezer: “Não julgueis que Eu tenha vindo para abolir a lei e os profetas. Não
vim para os abolir, senão para os cumprir”. E mandou deixar tudo para o seguir; mandou viver segundo os pensamentos
elevados do espírito, e não segundo os desejos insensatos da terra; manda a doçura e o perdão das ofensas; quer o
desapêgo das riquezas, e diz: “Daí ao que vos pede, e não vireis o rosto ao que quer pedir-vos emprestando. Não peçais
os vossos bens ao que vo-los tirou. Perdoai e sereis perdoados. Finalmente, o que quiserdes que façam os homens por
vós, fazei-o também por êles”. Esta é a lei que prega.
- Oh, lei de amor e de mansidão infinita! exclamou o ancião num rapto de piedosa gratidão. Oxalá não tardes a
reinar no mundo e a derramar por toda parte tuas benignas influências!

IX

Safan escutava com grande pasmo. Por momentos o seu espírito parecia interessar-se nestas coisas tão novas
para ele, mas por momentos também meneava a cabeça e se entrincheirava na sua incredulidade.
- Também nos disse o Salvador, continuou Eliezer: “Saberás que se disse: Amarás o teu próximo, aborrecerás o
teu inimigo: eu porém digo-vos: amai os vossos inimigos: fazei bem aos que vos aborrecem: abençoai os que vos
maldizem: rogai pelos que vos perseguem e por aqueles que vos caluniam.
Safan fez um gesto de comoção profunda. Eliezer reparou no seu movimento, e continuou.
- O Salvador acrescentava com uma mansidão que se comunicava à alma, levando a ela a sua doçura e paz;
“Vosso Pai celestial não faz nascer o sol para o bons e para os maus? E não faz cair a sua chuva sobre os justos e os
pecadores?
- Não acabava de cair a sua palavra divina sobre uma pecadora indigna de ouvi-la? exclamou Sara. Ó tu Safan, ó,
tu, nascido em Jerusalém, filho da promessa! Não te deixarás levar pelo chamamento do Messias quando nós,
amaldiçoados pelo teu povo, repelidos pela lei, nos levantamos da nossa abjeção para o seguirmos?

Mas Safan permanecia inquieto e indeciso. E de repente, para fazer vacilar as resoluções da jovem samaritana,
disse:
- Sara, no dia em que me resolva submeter-me a essa nova lei de que acabas le falar-me, ou ainda tão somente
seguir a lei severa dos meus pensamentos, é preciso que renuncie ao teu amor, que volte a meu pai, e que lhe diga: Dá-
me agora a esposa que me tinhas prometido.
- Bem o sei, disse Sara, e as lágrimas lhe cobriram o rosto; ali bem sei que terão de romper-se os nossos laços...
Mas a ti ao menos, teu pai, tua mãe, tua família te acolherá com gosto... Tu acharás a felicidade numa união pura e
santa, acrescentou redobrando as lágrimas e soluços... Os males não serão sernão para mim, que ficarei só e aflita. Mas
eu confio em que não me faltará valor, e como o Senhor vê a minha miséria, terá compaixão da sua pobre serva, e
abreviará a duração das suas penas em paga da sua submissão.

150
- Não Sara, exclamou Safan, voltando com toda a ternura para aquela mulher a quem amava, e cujas lágrimas
testificavam o amor que lhe tinha; não, não, crê-me, deixa esses pensamentos demasiado elevados para o teu espírito e
severos em demasia para a minha juventude. Enxuga as lágrimas. Esqueçamos tudo, o tempo que foge, e os que podem
vituperar-nos, e a nós mesmos! A vida é curta e é preciso empregá-la segundo o nosso coração e desejo. Adeus por
hoje; faze com que amanhã o teu rosto resplandeça como a nova aurora, e o júbilo renascerá em nosso peito como
renasce cada manhã em toda a superfície da terra.
E Safan afastou-se para romper uma conversação que o feria no fundo da alma e lhe deixava o coração
descontente a despeito de si mesmo; porque a verdade nunca se mostra de todo em vão, e a sua vida perturba ao menos
aqueles a quem não esclarece inteiramente. Eliezer, ao vê-lo partir, seguiu-o com a vista e disse a Sara:
- Valor, minha filha! A felicidade, se é que há na terra, consiste mais no cumprimento dos deveres que na
satisfação dos desejos.
Mas a velhice ter-se-á esquecido tanto do passado, que já nem sequer saiba o que a juventude chama felicidade,
quando ela pode também muitas vezes enganar-se neste ponto? O dever é inflexível como ele mesmo; é de ferro, e
rompe e despedaça o coração como a morte. Fôrça é aprender a cumpri-lo em todo o seu rigor, mas sem esperar que se
nos converta em prazer. Assim o sentiu Sara, e chorava copiosamente. Diante de Safan tinha contido a dor; mas agora a
jovem desfazia-se em soluços.
- Oremos, exclamou que Deus dá indubitavelmente à sua criatura a força necessária para o cumprimento dos
sacrifícios que lhe impõe! Peçamos-lhe a sua graça que dá força; por mim só, bastante o conheço, não posso fazer mais
que gemer.

XI

O jovem hebreu regressara a Siquém descontente, voltado o pensamento, sem o advertir, para o que deixara,
pronto a desprezar a mulher por quem abandonara o seu país e todos os seus, dispoto a acusá-la pela mínima suspeita,
para desculpar talvez a si mesmo as suas recordações.
Mas a sua vista, a sua beleza, a sua dor, o desejo que manifestara de romper os frágeis laços que os uniam, tudo
reanimava o seu amor. Ele amava-a perdidamente; e depois, quando entregava a alma a este amor, a doutrina severa,
mas tão sublime e elevada d’Aquele a quem chamam o Messias; os remorsos daquela a quem amava, remorsos
poderosos para combater a sua ternura; as palavras e Eliezer; aquela voz secreta que fala no fundo do coração e sempre
protesta dentro de nós contra as paixões desordenadas, tudo se mancomunava para introduzir-lhe a perturbação no
espírito, e a sua alma flutuava num oceano de dúvidas e incertezas.
Oh, meu Deus! Só em Vós se encontra o repouso!

XII

Dois dias se passaram durante os quais Safan e Sara não se tornaram a ver. Safan anda errando pelo campo; tão
depressa procura Sara nos lugares onde muitas vezes a encontrava, nas planícies ou debaixo das palmeiras da fonte de
Jacó como se entranha na sombra do monte através das ásperas veredas; conversando consigo mesmo acêrca das
palavras que escutou da boca do ancião e de sua filha, mas depois, cansado do esfôrço do seu espírito confuso, busca de
novo aquela por cujo amor deixaria ainda outra vez o que já tinha deixado, e que parecia fugir obstinadamente dele.
Sara, entrentanto, constantemente pede, Aquele de quem vem todo o dom perfeito, que ilumine e faça descer
sobre ela a sua fôrça e socorro. Depois de ter derramado abundantes lágrimas, depois de ter deposto as suas humildes
súplicas aos pés do Eterno, levanta-te a jovem u’a manhã, chama um criado fiel, faz-lhe tomar sandálias, um nodoso
bordão, fala-lhe longo tempo em segrêdo, e fá-lo partir antes da aurora, dizendo-lhe:
- Vê, Micas, informa-te com exatidão, e vem dizer-me em que lugar poderemos encontrá-lo.
Depois de o mensageiro ter partido, pôe-se de joelhos, e ora ainda longo espaço. Levanta-se, e sai ao encontro do
jovem hebreu.

XIII

- Safan, Deus nos separa, lhe diz com voz que pretende conservar firme e treme apesar de seus esforços. Minha
vida foi sempre desgraçada: cinco irmãos quiseram um após outro unir a sua sorte com a minha, seguindo o costume de
se unir o irmão com a viúva de seu irmão para lhe dar sucessores. Todos cinco pereceram de morte imprevista e
violenta: um, pelo fogo do céu, outro nas águas, os outros na última guerra... Um filho, doce esperança da minha vida,
que Fanuel, último de meus esposo, me deixara morreu-me também nos braços... E quem o acreditará? Tantas dores
ainda não me cansaram a alma; e quando Eliezer, a quem os mesmos judeus chamaram o bom samaritano, te conduziu à
nossa habitação coberto de feridas que te haviam feito uns ladrões nos desfiladeiros das nossas montanhas, a minha
alma voou inteira para ti. Depois de longa solicitude e cuidados, quando pudeste ver-me tive a fraqueza de comunicar-te

151
a minha ternura, e apesar do quanto desgosta aos teus patrícios uma mulher de Samaria, tive a arte ou felicidade de
fazer-me amar por ti... E amo-te tanto!
Deteve-se, porque o pranto a sufocava.
- Pois bem, pois bem! exclamou Safan. Se é uma falta o amar-se, esta nos é comum! Não posso arrepender-me
de haver-te amado.
- Pois eu arrependo-me, disse Sara através do pranto.
- Arrependes-te! disse Safan. Então tu já não me amas?
- Arrependo-me, e amo-te, Safan. Se tu conhecesses o dom de Deus!
- Mas qual é esse dom de Deus que vem despedaçar os corações?
- É amá-lo sobretudo e com todo o amor. É esperar o seu reino e guardar a sua lei. É, finalmente, Safan, chorar
pelas faltas duma vida culpada, e arrancar o coração se for necessário, para não cometer outra culpa.
Safan olhou Sara com olhos inquietos e disse:
- Eu não creio no teu arrependimento nem nas tuas fingidas dores. És ainda demasiado moça para pensares na
penitência e a tua alma demasiado ardente para rejeitar o amor. O que eu creio é, outro soube agradar-te e que queres
abandonar-me. Podes fazê-lo, Sara, porque não te une comigo vínculo algum. As leis do teu país e ainda mais as do
meu, que condenam o teu culto, se oporiam a uma união legítima entre nós. Mas antes de seguires as tuas novas
inclinações,quero que ao menos saibas bem o que fazes, e qual será a minha sorte. Escuta-me! Meu pai e minha mãe,
depois de terem empregado todos os seus inúteis esforços para vencerem a minha resolução de deixar tudo por ti,
desterraram-me da sua venerável presença. Diante de mim repartiram os seus bens entre meus irmãos, e deserdaram-me.
É se não pronunciaram contra a minha cabeça a maldição dos filhos rebeldes, foi porque Ilida, a esposa que eles me
tinham escolhido, se lançou entre mim e eles, e lhes pediu o meu perdão.
- Safan! exclamou sara. Por mim arrostavas tantos infortúnios! Oh! Deus tenha compaixão de nós!
- A tua lembrança tinha-me armado contra tudo quanto se opunha ao nosso amor. Eu era forte: tinha um valor
que tocava em fereza, e para vir para aqui, para viver ao teu lado abandonei amigos, pais e pátria. E quando chego com
o coração dilacerado por todas as dores, que encontro no meu regresso? Sara, Sara, eu vim com todo o fogo da minha
juventude, e ardendo em esperanças. Que fizeste da minha vida? Que fizeste do futuro que me brilhava há pouco diante
dos olhos? Tudo pereceu, tudo se submergiou, tudo devoraram os teus caprichos; e agora abandonas-me... Ai de mim!
- Oh! Não fales assim! Meu Deus!... Meu Deus!... Que não possa dar-te eu a minha vida, o meu sangue, para
indenizar-te de tantas penas, de tantos sacrifícios de que sou causa! Pois eu amo-te mais que a vida, mais que a luz dos
olhos. Mas, ah! não posso amar-te mais que a Deus poderoso e bom que te chama, que nos quer a um e a outro ao seu
lado, e que por alguns instantes de dores sofridas na terra, nos promete uma eternidade passada no meio de gozos
infinitos... dos quais apenas pode dar-nos uma débil idéia a imensidade das nossas penas. Safan, Safan, tu foste forte
diante dos teus pais pelo amor da tua pobre Sara. Ó amado da minha alma! Eu sou forte contra ti pelo amor que te
consagro. Porque quero que a tua alma, tão forte e tão bela, conheça e adore o Deus de todo o amor, de todo o poder e
de toda a beleza.
- Sara, os teus lábios são eloquentes, exclamou Safan, olhando-a com certo pasmo de júbilo; mas não demasiado
belos para ensinarem outra cousa que o amor. Escuta-me; é nosso o porvir; algum dia, entre os gelos da velhice, nos
lembraremos dessas palavras; mas hoje, se é verdade que ainda me amas, se é verdade que nenhum outro amor veio
desterrar-me de teu coração, não pensemos senão na felicidade de viver um para o outro.
- Deus nos separa, disse Sara afastando-se suavemente.
- Não, não, Sara, se tu me amas, não te deixarei mais...
- Oh, meu Deus! exclamou Sara levantando ao céu os olhos rasos de lágrimas. Não era bastante o ter de
espedaçar só o meu coração... é também forçoso dilacerar o seu!... Perdão, meu Deus, ou fazei-me mais forte!
E Sara, escapando a Safan, fugiu aflita para ir chorar longe daquele cuja presença e cujas palavras podiam ser
demais poderosas contra as sua novas resoluções.

XV

Entretanto voltou o criado.


- Jesus tomou o caminho da Galiléia, disse a Sara. A sua passagem é assinalada por prodígios que espalham o
pasmo e a admiração entre o povo.
- Louvado seja o Senhor, e Êle te recompense pela tua diligência e zelo, disse Sara; mas a palidez espalhou-se
pelo seu rosto. Foi com Eliezer ter com Safan, de quem fugia desde a sua última entrevista.
- Safan, disse ao jovem hebreu, antes de renovar penosas discussões, venho pedir-te uma graça, esperando que
não te negarás às minhas súplicas. Desçamos todos três à Galiléia, até encontrar-mos o Salvador.
Safan pareceu surpreendido, e não respondeu.
- Êle te chamou, Safan, continuou o jovem com valor; e as suas palavras perderam o seu poder passando pelos
lábios duma infeliz pecadora como eu: a sua voz que vence todos os corações, não deixará de comover e mudar o teu,
quando te soar aos ouvidos. Partamos, pois.
Safan parecia indeciso. Não obstante, disse:
- Consinto em ir, se me prometes que não me despedirás do teu lado, quando estivermos de volta.

152
Sara vacilou, e não deu resposta, porque temia o efeito das suas palavras. Eliezer foi o que disse:
- Partamos em todo caso, meus filhos, e na volta se fará conforme a vontade d’Aquele que tem na mão todos os
corações.
Pensou que ao menos, durante a viagem, não podia fugir dele a bela samaritana, e consentiu na partida.

XVI

No dia seguinte, ao despontar da aurora, partiram ambos acompanhados do velho Eliezer, qu desejava ouvir mais
uma vez a palavra do Salvador.
Micas guiava o carro, em cada aldeia e em cada povoado encontravam pessoas reunidas, conversando pasmadas
acêrca das maravilhas que presenciaram com seus próprios olhos. Diziam:
- Um grande Profeta se levantou entre nós, e coisas novas e maravilhosas se preparam para nós e para nossos
filhos. Esperemos a luz do mundo que se eleva em Israel.
- Quem o acreditará? Este homem tão santo, cujos preceitos são a mesma sabedoria, deteve-se a conversar com
pecadores, e com mulheres cuja vida não é a mais pura. Que pensar d’Êle.
E Sara baixava o véu sobre o rosto, chorava, e dizia consigo: Oh! Se Êle não falasse aos pecadores, se não
fizesse brilhar a sua bondade nas trevas do espírito do culpado, que seria de mim hoje? De mim, pobre pecadora,
indigna de levantar para Êle os olhos!

XVII

Os viajantes continuavam o caminho: Eliezer e Sara dando graças a Deus pelas suas misericórdias e Safan
escutando a todos e cada um em silêncio, iam imersos num abismo de reflexões cuja profundidade só teria podido
sondar o que fez o coração do homem.
No terceiro dia chegaram a um pequeno povoado da Galiléia que o Salvador tinha deixado na véspera; a
multidão estava apinhada ainda nas ruas, comovida, e referindo com um misto de admiração, terror e amor os seus
milagres e a sua divina bondade.
Tinha curado o filho dum centurião que estava para morrer. Tinha também curado a sogra de Simão, um dos seus
discípulos, e outros muitos enfermos ou tolhidos, que se mostravam ao povo como provas vivas dum poder
sobreumano. Êste se livrara das suas doenças, aquele dos seus pecados. Todos cantavam com júbilo os louvores de
Deus: uns por terem recobrado a saúde do corpo débil, outros por terem alcançado aquela paz quevem de Deus e com
cuja doçura não há coisa que seja comparável.
Interrogava Sara quantos encontrava e o que deles ouvia lhe enchia a alma de imenso respeito.

XVIII

- Safan, dizia ela, não sentes uma tremura dentro de teu ser? Não sei o que me sucede; mas parece que o mesmo
ar se comove, que a natureza toda se acha enternecida pela presença do Senhor. Parece-me que Jesus deixou o seu
suavíssimo perfume na atmosfera que nos rodeia: o ar ondula de amor em torno de nós, e faz-me vibrar no seio todas as
cordas do coração.
Safan não respondeu e seu semblante ia-se tornando mais sombrio ante aquele transporte de Sara, que fazia
transluzir os mesmos pensamentos. Eliezer sentado entre os dois num espesso feixe de palha, disse ao jovem:
- Meu filho, como não sentiria o que sente Sara, tão viva sempre nas comoções, quando os seus ossos já velhos
estremeceram desde que vi Aquele cuja vinda transformou a face do mundo?
Safan esteve calado tenazmente, até exclamar:
- Mas um ancião sábio e experiente como tu, como pode cegar-te a ponto de crer que um homem obscuro e
pobre, saído de pais obscuros e pobres como ele, pode ser o Salvador prometido de Israel? Não sabes que o Messias
prometido desde o princípio a nossos país há de ser um príncipe forte e poderoso? Esqueceste-o? Este domará os
inimigos do seu povo, levantá-lo-á de sua abjeção e mifará brilhar com nova glória a nação escolhida. Onde está, pois, a
coroa? Onde está o cetro de tão indomável conquistador? Onde estão seus guerreiros, seus carros, seus corcéis, seus
inumeráveis exércitos? Quantas batalhas tem dado? Que inimigos tem vencido para que nós proclamemos assim a sua
vitória?
- Verdade é que o seu poder não é aquele que no nosso orgulho tínhamos esperado loucamente, disse Eliezer. Na
minha cegueira esperava eu, como tu, um homem poderoso e forte pela espada, e a sua força não está na espada. É
clemente, doce, prescreve a paz como um belo preceito, e só a sua vista espalha e inspira. As suas mãos estão
desarmadas, Safan, convenho nisso: Êle é só e sem dominação aparente, e, não obstante, à sua voz obedecem os ventos,

153
as tempestades, a própria morte. Que conquistador exerceu ainda tal poder, e que pensas que possa ser um homem a
quem os ventos e o mar estão sujeitos?
Safan estremeceu; contudo, replicou com certa aspereza:
- Ainda que obrasse todas essas maravilhas e muitas outras mais, que nos importa a nós? E que alegria e que
prazer podem causar-nos essas coisas?
- Bem se vê, meu filho, que a juventude e as suas paixões ardentes e tumultuosas sufocam em ti graves
pensamentos. Mas se contasses como eu noventa invernos, e tivesses visto, desaparecer uma após outra todas as tuas
afeições, se conhecesses bem toda a inconstância da coisas da vida, se sobretudo visses aberta diante de ti a sepultura
que o tempo te tivesse cavado lentamente, ah, meu flho! meu filho! como bendirias o que vem dizer-te com uma
autoridade sustentada por inumeráveis milagres, que vai começar para ti uma vida nova além do sepulcro!
- Ah, meu pai! falou Sara: esta vida nova que aformoseia a tua esperança, enche também de celestial claridade a
minha. Porque, eu, que vivi entregue a todas as paixões, eu, que senti despedaçado o coração pelas proceiosas
tempestades da alma, que lhe direi quando chegue para mim essa vida que nos oferece na eternidade e me faz tremer?
- Espera, disse o ancião, o arrependimento absolve. Não nos disse o Senhor que há mais alegria no céu pela volta
dum pecador convertido, que por cem justos que perseveraram na justiça?
Mas Sara sentia o coração cheio de agitações e sustos.

XIX

Depois de alguns dias de caminho, os viajantes, saindo duma estreita garganta de montanhas, acharam-se ao lado
do lago Genezaré. Detiveram-se, possuídos de misteriosa admiração, à vista daqueles lugares, escolhidos na eternidade
para serem inundados pela palavra divina.
O dia já declinava, e os penhascos pelos quais acabavam de descer projetavam sua sombra pela planície que se
estende até à praia. As ondas tranquilas refletiam o azul puríssimo do céu, e pareciam deter os seus murmúrios para não
perturbarem a deliciosa paz daqueles lugares.

XX

Eliezer quis descer à planície e aproximar-se do lago. Mas a multidão estava agrupada, e o carro não pôde passar
muito adiante.
E a voz, uma voz que bendiz, que penetra no fundo do coração de cada um, fazia-se ouvir, e as almas estavam
irresistivelmente comovidas como a natureza. Oh! Quem ouviu alguma vez elevar-se aquela voz no seu coração e pôde
resistir-lhe? Ela doma os mais rebledes. Safan já não falava, já nada via; escutava. Sim, escutava, e o seu peito respirava
com custo: sentia-se oprimido. Vendo que o carro, apesar de todo o esfôrço de Micas, não podia andar mais, saltou dele
e disse ao ancião e a Sara:
- Esperai-me aqui; quero chegar até Êle, e depois voltarei.
- Vai, Safan! Não voltarás. O que ouve as palavras de Deus e recolhe-as no coração, não volta; vai, corre e nunca
retrocedas.
- Vai, vai, disse Sara, e compreendo o teu coração o que escutarem teus ouvidos.

XXI

O carro acomodou-se à sombra da montanha, e a voz chegava até os viajantes.


- Meu pai, escutemos, disse Sara; façamos com que as suas palavras nutram o nosso espírito como o maná que
alimentava em outro tempo os israelitas no deserto.
- Escutemos, disse o ancião, e possam as suas divinas lições germinar em nós até à vista eterna.

XXII

E ambos diziam:
- O que fizemos nós para merecer ter nascido neste tempo e ouvir estas palavras divinas, nós, os prevaricadores
da lei de Deus?
E a voz dizia: “Eu vim para os pecadoes e não para aqueles que não tem necessidade de penitência. Vim para
salvar judeus e gentios”.
E cada um dos pensamentos recebia assim sua resposta, como se o Salvador não houvesse falado senão com eles.
Sua alma alimentava-se e engrandecia-se. E permanecia em muda admiração e adoração, louvando o Eterno com
imenso amor e infinito reconhecimento. E os céus e todas as criaturas, elevando as vozes que falam quando tudo caia,

154
diziam no meio de um arroubamento divino: Glória a Deus! Glória a Deus na terra, e no mais alto dos céus! Entretanto
o sol tinha desaparecido por trás das montanhas. A voz de Cristo tinha cessado; a multidão feliz tinha-se dispersado,
levando consigo as palavras de salvação que deviam estender-se por todo o universo. Safan não aparecia. Que será feito
dele? As horas passam, a noite caminha, e não o traz aos que o aguardam. Oh, Safan, Safan!

XXIII
O jovem hebreu ficou só na praia, sentado numa pedra. A lua ilumina-lhe a fronte inquieta. A água do lago, há
pouco tão pacífica começa a agitar-se e vem banhar-lhe os pés com surdos gemidos. A copa das árvores da ribeira
dobra-se ao impulso de um vento borrascoso. Mas nem o sussurro do vento na folhagem, nem o das ondas, nem o surdo
mugido das águas que se encrespam, ao longe, nada lhe chega aos ouvidos. Sua alma já não está nele, toda ela se acha
n’Aquele a quem acaba de ouvir. As palavras que lhe ressoam sempre no interior, levantam e acalentam por sua vez
todas as tormentas do coração.
Tinha já decorrido metade da noite. A tempestade crescia; Eliezer e Sara inquietos pela sua longa ausência,
desceram do carro e foram em sua procura, divagando longo espaço sem o encontrarem. Finalmente descobrem-no, com
a cabeça escondida entre as mãos, e perdido num abismo de idéias e de sentimentos tumultuosos, e várias vezes o
chamaram sem poder conseguir que os ouvisse.
Quando os viu junto de si, levantou-se, foi para eles, e lançando-se aos seus pés, exclamou!
- Perdão, Sara! perdoa-me o ter arrastado a tua juventude até ao abismo em que ambos caimos. Perdoa ainda
mais o ter-te resistido miseravelmente, quando vinhas chamar-me às altas verdades que tarde conheci. Tua alma, mais
terna e melhor que a minha, compreendeu mais depressa os mistérios de amor e mansidão admiráveis que contêm as
doutrinas do Salvador. Bendita sejas tu, Sara, tu, a quem já não me atrevo a chamar amada, bendita sejas tu por teres
vindo chamar-me e conduzir-me à luz! Sempre viverá a tua memória no meu coração! Porque és o anjo da minha
salvação! Tu me guiaste, a pesar meu, para o princípio e fim de toda a criatura. Bendita sejas! Adeus, Sara! Um dia
tornaremos a ver-nos nas moradas eternas; mas hoje deixo-te para colocar-me sob a autoridade d’Aquele que me chama.
Ele diz que se deixe tudo para o seguir; continuou o jovem, e eu deixarei tudo e lhe direi: “Aqui me tens: pequei contra
ti; já sou digno de ser chamado teu filho, trata-me porém, como o último de teus servos”.
- E o Senhor te abençoará, disse Eliezer, e o seu coração de Pai se alegrará, “porque seu filho morreu e
ressuscitou, estava perdido e encontrou-se”.
Sara chorava com dois prantos: nela se juntavam a tristeza e o prazer mas o prazer superava a dor.
- Eu não verei meu pai, nem minha mãe, nem minha esposa! falou Safan. O Salvador diz que tudo se há de
deixar para o seguir. Deixando-te a ti, deixarei tudo... Não eras tu para mim mais que tudo?...
Sara, juntando as mãos, prorrompeu num transporte involuntário.
- Oh, Deus poderoso! Vós tiveste compaixão da minha fraqueza! Graças sem fim Vos sejam dadas! Na Vossa
misericórdia ainda poupastes a minha pena! Pois só a Vós o cederia eu! A Vós só! Adeus, Safan, amado da minha alma,
adeus...

XXIV

E dos dois separaram-se apontando para o céu, único que dá forças para deixar tudo na terra para tornar a
encontrá-lo nele.
E os ecos das soledades, comovidos, ainda pelo divino hosana, repetiram mil vezes harmoniosos: Glória a Deus!
Glória a Deus sobre a terra e no mais alto dos céus!

CAPÍTULO IV

PAX HUIC DOMUI

Jesus entretanto continuava sua divina peregrinação. Suas palavras eram a luz que dissipava as trevas. A fama
dos seus milagres saía-lhe ao encontro por toda parte. Velhos, mulheres, moços e crianças corriam a encontrá-lo
sequiosos de ouvir a sua nova lei, e a infinita misericórdia do futuro Mártir caía sobre os desgraçados como o orvalho
matutino sobre os campos.
As praias do mar de Tiberíades, as ruas de Cafarnaum, os pitorescos vales de Zabulon, a florida tribo de Asser, e
a fiel Galiléia foram as prediletas do seu coração. As costas da Fenícia, Tiro, Sidon e outras infinitas cidades
presenciaram com assombro os milagres do Divino Mestre, e ouviram a santa doutrina do Messias prometido pelos
profetas.
- Corramos, diziam os leprosos, pois, se os seus divinos olhos nos banharem com a luz, ficaremos limpos.
- Vêde, por ali passa, diziam os paralíticos; se conseguirmos alcançá-lo, se tivermos a felicidade de beijar o
extremo da sua santa túnica, os nossos membros tornarão a adquirir a perdida força.

155
E sofrendo mil fadigas, arrastando-se pelo chão, chegavam aonde estava o pastor das almas e diziam-lhe:
- Jesus!... Mestre!... Tu és o Messias, sara os nossos corpos.
E a fé lhes devolvia a saúde.
- Avisai-nos quando estiver perto, diziam os cegos aos que os acompanhavam, para que caiamos de joelhos aos
seus divinos pés!
E os cegos lançavam-se aos pés de Jesus e lhe pediam com fé que dissipasse as trevas em que viviam envoltos. E
Jesus, sempre compassivo, sempre amigo dos deserdados, colocava a ponta do dedo sobre as cerradas pálpebras, e as
pálpebras se abriam, e a luz tornava às mortas pupilas.
- Senhor, Filho de Davi, lhe dizia a cananeia caminhando sempre atrás do Divino Mestre, tem piedade de minha
filha.
E Jesus, querendo experimentar a fé daquela pecadora descendente dos idólatras gregos, encerrava-se num
piedoso silêncio, e continuava o seu caminho sem despregar os lábios sem voltar a cabeça.
Mas a cananeia, sempre incansável, seguia as pisadas do Nazareno, repetindo:
- Senhor, Filho de Davi, verdade é que a minha raça pertence às nações condenadas; verdade é que os meus
maiores são idólatras e desprezam o verdadeiro Deus que é teu Pai; verdade é que a religião que professamos é
grosseira e ímpia... mas Tu, Senhor, terás piedade desta pobre Mãe, porque tu és um manancial inesgotável de bondade
e de mansidão; porque dos teus santíssimos lábios brota eternamente a palavra perdão, porque tu desceste à terra,
Médico divino, para curar os enfermos do espírito; porque os cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus
amos; salva minha filha, Senhor pois Tu podes.
Jesus, compadecido de tanta constância, de tanta fé, deteve o passo, e abrangendo com um olhar cheiod e doçura
aquela humilde pecadora, disse-lhe:
- Mulher, grande é a tua fé; faça-se como desejas.
E a piedosa cananeia não duvidou; e ao chegar a casa a sua amada filha saiu a recebê-la, porque se achava curada
da sua moléstia.
- Senhor, salva-nos, que perecemos! lhe bradam mais tarde os seus discípulos, vendo-o docemente adormecido
numa barca, enquanto os ventos desencadeados silvavam e o mar embravecido ameaçava submergir a frágil embarcação
nos abismos.
Então Jesus reprende a sua pouca fé: ergue os radiosos olhos para o céu, e manda aos ventos e às águas que se
acalmem. O sol apareceu no céu: as águas aplacam-se, e alegria e a tranquilidade tornam a albergar-se em todos os
corações.
- Quem é Este a quem os ventos e o mar obedecem? exclamam.
Mais tarde, caminha milagrosamente sobre a superfície das águas, e estende mão protetora a Pedro, seu
discípulo, repreendendo a sua pouca fé, para o salvar. Entretanto, tendo chegado a hora de instruir os seus apóstolos,
uma tarde que se achava na esplanada dum monte situado entre Cafarnaum e Betsaida, sentou-se Jesus numa pedra. Os
seus doze discípulos, sempre sedentos de escutar a divina palavra, sentaram-se também em redor d’Ele.
Então Jesus começou a falar-lhes deste modo:
“Não possuais ouro, nem prata, nem dinheiro nas vossas faixas. Não leveis nada para o caminho, nem bordão,
nem alforges, nem pão, nem tenhais duas túnicas. E em qualquer casa em que entreis, saudai-a dizendo: Paz huie
domui (a paz seja nesta casa). E se aquele casa foi digna da paz evangélica, a paz virá sobre ela; e se não for digna, a
paz voltará para vós e fugirá dela.
E todo o que não vos receber e não ouvir as vossas palavras ao sairdes da casa ou da cidade, sacudi o pó de
vossos pés.
Não esqueçais que eu vos envio como ovelhas ao meio dos lobos. Sede, pois, prudente como serpentes, e simples
como pombas. Não temais os que matam o corpo, temei o que pode lançar a alma no inferno.
E todo o que der de beber a um daqueles pequeninos tão somente um copo de água, em verdade vos digo que não
perderá o galardão”.
Mais tarde, Jesus executou o milagre dos pães e dos peixes. Depois apresentou um menino como modelo,
dizendo:
Deixai aos meninos que venham para Mim, porque deles é o reino dos céus.
Imediatamente brotaram de seus divinos lábios estes mandamentos:
Não matarás, não cometerás adultério, não mentirás, não dará falso testemunho. Honra teu pai e tua mãe, e ama o
teu próximo como a ti mesmo”.
Enquanto a sublime doutrina de Cristo levantava ecos dulcíssimos no coração dos israelitas, Jesus dizia aos seus
discípulos:
- Não toques a trombeta para fazeres emola como fazem os fariseus em Jerusalém. O que fizer a mão direita não
deve sabe-lo a esquerda; e se um olho vos encandalizar, tirai-º Orai com a porta fechada dizendo deste modo:
Pai nosso, que estás nos céus; santificado seja o teu nome.
Venha a nós o teu reino: seja feita a tua vontade assim na terra , como no céu.
O pão nosso de cada dia dá-nos hoje, senhor.
E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós pecadores aos nossos devedores.
E não deixeis cair em tentação; mas livra-nos do mal. Amém.
Enquanto as suas belas parábolas enchiam de júbilo os desgraçados, inundando de fé as almas dos modernos
filiados na nova lei, em Jerusalém, na cidade ingrata, reuniam-se os doutores do Sinédrio, cegos de raiva, para

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combinarem a maneira de perder aquele transformador das coisas estabelecidas pela lei, e que se atrevia a chamar-
se o Messias prometido, o rei dos judeus.
Entre esses fariseus achava-se Nicodemos, que poucos dias antes tinha procurado Jesus durante a noite, e Jesus o
tinha instruído. O supremo conselho atroava as altas abóbadas do Sinédrio, pedindo uma pronta vingança contra o
transformador público. Um dos fariseus agitava na mão um pedaço de pergaminho dizendo:
- Ouvi, ouvi, sábios doutores, o que Jesus diz aos sacerdotes e fariseus de Jerusalém.
E, desenrolando o pergaminho, pôs-se a ler com voz estentórea:
“Raça de víboras, ai de vós os fariseus, que limpais o exterior do prato e do copo, enquanto o vosso interior está
cheio de imundicie e de maldade! Néscios! O que fez o que está fora, não fez também o que está dentro?
Mas ai de vós, fariseus, que dizimais a erva boa e traficais com a justiça e com a lei de Deus!
Ai de vós, fariseus, que gostais dos primeiros assentos nas sinagogas e vos comprazeis em ser saudados na
praça!
Ai de vós que sois como os sepulcros cobertos de erva que não o parecem, e os homens anda por cima!
Ai de vós, doutores da lei, que carregais os vossos próximos com cargas que não podem levar, e vós nem sequer
com um de vossos dedos tocais as cargas!
Ai de vós, que edificais sepulcros aos profetas que vossos pais mataram, dando a entender que consentis nas
obras de vossospais! Porque eles os mataram e vós os enterrais.
Ai de vós, doutores da lei, que vos levantastes com a chave da ciência! A vossa inveja e o vosso orgulho vos
tornam indignos de entrar aonde proibistes aos outros que entrassem.
Qual de vós pode ajuntar à sua estatura um côvado?
Qual de vós pode tornar branco um de seus cabelos?”
Ao terminar o rabino a leitura do pergaminho, levantou-se um murmúrio de indignação na assembléia.
- Sábio conselho exclamou Caifás com irritada voz. E havemos de consentir que um embaucador percorra as
nossas tribos chamando-se Filho de Deus e afrontando-nos publicamente a toda a hora?
- Não, não, prenda-se! Castigue-se! – exclamaram várias vozes.
- Diz que ele é a perfeita salvação e que ressuscitará ao terceiro dia.
- É um blasfemo!
- É preciso procurar esse homem.
- Quem sabe onde se acha?
- Ontem entrou na cidade. Os jerosolimitanos presenciaram a audácia desse galileu que se apelida Filho de Deus.
Armado dum látego expulsou dos degraus do templo os vendedores, dizendo: “Não façais da casa de Meus Pai uma
caverna de ladrões”.
- Sábios doutores. Até quando ajuntou Anás, havemos de tolerar que um miserável se apelide o Salvador do
homem? Prendei-o, e terminemos tão enfadonha questão. Os seus absurdos humilham a dignidade do nosso tribunal.
Onde aprendeu esse homem? Quem foi o seu mestre? Como se concebe que os velhos renasçam? Não o esqueçais,
doutores: Jesus é um transformador público, um falso profeta que busca entre a plebe mais abjeta um nome e uma
posição que não pode dar-lhe o berço. Senão vêde a gente que a rodeia: leprosos, mendigos, miseráveis, enfim. Não o
esqueçais, doutores, as Escrituras o disseram: “Nada bom sairá da Galiléia, e Jesus é filho de Nazaré.
Estas palavras de Anás que era o inimigo mais terrível de Cristo, decidiram o conselho, e dispôs-se que alguns
rabinos saissem em buca de Jesus para o prenderem. Os fariseus designados abandonaram o sinédrio, desejando agradar
a Anás. Então um homem entrado em anos levantou-se e fez ademã de que queria falar. Aquele homem pertencia à seita
dos fariseus: chamava-se Nicodemos. Eis aqui o que disse com voz firme e ademã severo:
- Sábios doutores, para julgar esse Homem é preciso ouv´-lo; ouvi a Jesus, e as suas palavras vos comoverão. Eu
procurei-o durante a noite; discuti com Ele por espaço de muitas horas. A sua fronte resplandece como a de Moisés; a
sua palavra persuade como a de Elias. Ignoro onde aprendeu o que sabe; mas eu, que encaneci no estudo da lei, vi-me
obrigado a curvar a cabeça e a confessar-me vencido ante esse Nazareno, filho de um pobre artista. Se não é o Messias,
então será preciso confessar, ainda que vos pese, que é o sábio mais profundo da terra, o homem maior do universo. Eu
creio-o Enviado de Jeová. Porque nos seus olhos mora a bondade de Deus, na sua fronte resplandece a divindade
sublime do Santo dos Santos.
O conselho escutou com profundo assombro as palavras de Nicodemos. O espanto dos doutores foi grande vendo
a defesa que de Jesus fazia um dos seus, reputado entre eles por um sábio. Nicodemos, vendo que ninguém lhe
respondia, continuou:
- Sábios rabinos, por ventura a nossa lei julga um homem sem o ter ouvido, primeiro e sem se informar do que
fez?
Então Anás, indignado, cego pela ira, levantou-se do seu assento, e estendendo o punho fechado para
Nicodemos, disse-lhe com voz atroadora:
- És tu também galileu? Esquadrinha as Escrituras e entende que da Galiléia nunca se levantou profeta algum.
Nicodemos ergueu a fronte, olhando ao mesmo tempo com dolorosa compaixão a cólera de Anás, que acabava
de lhe atirar ao rosto um insulto em vez de uma resposta. Chamar galileu a um fariseu era o maior agravo que se lhe
podia fazer.
Nicodemos, apesar disso, não se comoveu.
- Anás, lhe disse, acabas de atirar-me ao rosto uma grosseia ignomínia; mas perdoo-te e rogo-te que estudes as
nossas Escrituras, para que aprendas, se não sabes, que Naum e Josias são reconhecidos na nossa lei como profetas e
nasceram na Galiléia.

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Anás empalideceu de raiva.
Nicodemos acabava de dar-lhe um dura lição.
Felizmente para Anás as palavras do defensor de Jesus, que tinham produzido profunda sensação no conselho,
esqueceram-se; porque naquele momento entraram no sinédrio os fariseus que tinham ido prender Cristo.
- Prendeste-o? perguntaram alguns doutores.
- Não, rabinos, responderam os emissários. Nem nós nem os soldados que nos acompanhavam nos atrevemos a
tocar num só fio das suas vestes; ouvimo-lo falar, e nenhum homem fala como Ele fala. As suas palavras fazem
estremecer o coração.
- Será o Messias? murmuravam alguns em voz baixa.
Entrentanto Jesus continuava pregando no templo, e um dos discípulos disse-lhe:
- Meste, foge, pois bem se vê que tratam de prender-te.
Jesus respondia-lhe com a sua dulcíssima voz, com a sua mansidão infinita:
- Não temais. A minha hora não chegou.
E continuou tranquilo a instruir todos quanto se aproximavam d’Ele ansiosos por escutar as suas divinas
palavras.

LIVRO DÉCIMO QUARTO

O CASTELO DE MÁGDALO

CAPÍTULO I

A PÉROLA DA BETÂNIA

Sir era um pobre judeu respeitado em todo o Israel pelo seu ilustre nascimento e pela retidão do seu coração. Sua
mulher, Eucária, era tida entre as filhas de Abraão como o modelo mais perfeito da esposa.
Sir e Eucária tiveram três filhos: um varão e duas meninas. Chamava-se o primôgenito Lázaro. Chamavam-se
suas irmãs Marta e Maria. Sir era rico. Possuía um castelo, antigo residência de seus maiores em Galiléia, perto do lago
de Genezaré. Este castelo, nomeado com o nome do seu fundador, chavama-se o castelo de Mágdalo.
Eucária tinha levado em dote a seu mairod Sir um horto riquíssimo pela abundância das suas palmeiras, situado
em Betânia (casa das âmaras), na msema fralda do monte das Oliveiras. A felicidade sorria sobre este casal. Sem uma
dor que empanasse o sol venturoso da felicidade conjugal, Sir e Eucária viram chegar o seu primogênito à idade viril.
Quando nas formosas estações vernais os dois esposos se sentavam à sombra das suas palmeiras rodeados de seus
filhos, os habitantes de Betânia exclamavam ao passar:
- Ali está a honra de Israel! Que família tão venturosa!
Sem embargo, a venerável fronte do velho Sir enrugava-se mais de uma vez, e no fundo daquelas rugas
vagueavam sinistros pensamentos. Então costumava pensar:
- Deus de Abraão e de Jaco! Dou-te graças porque permitiste a êste pobre velho que veja as barbas no rosto do
seu primogênito. Mas rogo-te de todo o coração que cortes o fio da minha existência, antes que minha rebelde filha
manche a honradez da minha fronte.
A filha que assim o preocupava nos momentos de soledade chamava-se Maria, jovem de dezoito anos e formosa
como um crepúsculo do mês de maio. Era a mais jovem dos três irmãos, e aquela a quem o velho Sir mostrava mais
preferência apesar do seu caráter estouvado e exigente. É verdade que Maria tocava harpa e saltério e cantava como um
serafim. Tinha um cabelo tão formoso, que quando desatava as tranças loiras deixando-as flutuar sobre os ombros, o
extremo de seus preciosos cabelos tocava-lhe os delicados pés.
Em Israel davam-lhe o nome de pérola da Betânia. Os mais ricos primogênitos de Jerusalém solicitavam sua
mão. A esperança de possuir a formosa filha de Sir conduzia-os diariamente da Cidade Santa, à pitoresca Betânia,
montados nos seus soberbos corcéis da Síria, ricamente ajaezados.
- Escolhe, exclamava seu pai, entre todos esses pretendentes o que mais te agrade.
- Sou muito moça, dizia ela.
Mas, os seus sorrisos, os seus olhares, repartiam-se por igual entre os solícitos mancebos. A esperança animava
com seu tíbio calor vinte corações a um tempo. Em vão Lázaro, o prudente, e Marta, a laboriosa, admoestavam sua irmã
mais nova. Os rogos dos irmãos era desatendidos como as súplicas dos pais.
Estando assim as coisas, a morte bateu as implacáveis asas sobre a morada de Sir, e a virtuosa Eucária soltou nos
braços de seus filhos e de seu esposo o último suspiro. Desde então o velho Sir, com a veneranda barba pousada no seio,
os dolorosos olhos fitos no chão, passava horas cismando. Em vão Lázaro e Marta procuravam dissipar a eterna
melancolia do pai. Uma tarde, Sir fez sinal aos filhos para que se sentassem a seu lado, de pois disse-lhes:
- Meus filhos: sinto o frio da morte circular-me pelas veias... vou morrer. Conheço-os, e dou graças ao Santo dos
Santos... pois a vida era para mim uma carga enfadonha desde que a minha adorada Eucária me abandonou. Amai-vos
como bons irmãos que sois, e não vos esqueceis de honrar as cinzas de vossos pais.

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O velho Sir parou. O cansaço da morte afogava-lhe as palavras no peito. O estertor da agonia era cada vez mais
rouco e cansado. Lázaro, com um dos criados, conduziu o velhor Sir para o leito. Os filhos rodeavam-no derramando
copiosas lágrimas. O velho deteve os olhos em sua filha Maria.
- Maria, lhe disse com uma fadiga que ia em aumento, em breve de meus lábios sem calor fugirá o último sopro
de vida. Ouve este pobre velho que te fala da borda do sepulcro, e não esqueças as suas palavras. A modéstia, a virtude
e a honradez, quando se entrelaçam são a coroa de mais preço com que se pode ornar-se à fronte duma donzela. Lázaro,
teu irmão mais velho, será desde a minha morte teu pai... obedece-lhe... sê humilde para com ele, imita tua irmão Marta;
eu serei feliz na eternidade.
Depois, o ancião de Betânia deixou cair a cabeça sobre os travesseiros; mal estendeu asa descarnadas mãos como
para abençoar seus filhos, e expirou.

CAPÍTULO II

O JARDIM DO AMOR

Lázaro e Marta tinham caráter retraído e modesto. Gostavam mais do pacífico retiro do lar, do que do buliçoso
estrondo das festas. Isto irritava a estouvada Maria, que, sempre se achava pronta para as diversões e prazeres.
Lázaro repreendia sua irmã com doçura; porém Maria, cerrando os ouvidos aos conselhos, passava a maior parte
do dia à janela ostentando a sua formosa cabeça carregada de perfume e de pérolas.
Estes gênios tão diametralmente opostos caminhavam para uma luta que não se fez esperar. Todas as noites
Lázaro encontrava, ao recolher-se, noturnos amantes que rondavam sua casa. As pendências sucediam-se com
frequência. Em Betânia, começou a murmurar-se da irmã de Lázaro.
Um dia um homem caiu ferido debaixo da janela da formosa loura. No povo levantou-se um grito de indignação.
Murmuravam em voz baixa o nome do morto e do matador. O primeiro pertencia a uma família de Jerusalém. O
segundo era um centurião romano, favorito do governador Pilatos.
Lázaro, com o semblante severo do homem honrado, chamou sua irmã e disse-lhe:
- Maria, isto não pode continuar assim; não posso tolerar que se manche o nome sem nódoa de meu pai. Tens
muitos pretendentes; escolhe um esposo.
- Não vendo a minha liberdade. Se os homens se matam porque cobiçam a minha formosura, não é culpa minha;
a minha honra está limpa como a luz do sol. Mas se não te agrada o meu proceder, amanhã podemos separar-nos. O
castelo de Mágdalo será à minha residência, pois me pertence. Tu e Marta podeis ficar em Betânia, já que tanto vos
enfada o meu procedimento.
- Pensa bem, Maria, tornou Lázaro; és moça, separando-te de nós, corres para tua perdição.
- Só se perde quem quer; a vossa modéstia, o vosso retraimento, enfastiam-me como vos enfastia o meu gênio
alegre e comunicativo; é melhor a separação.
Nada puderam as súplicas de Lázaro e os rogos de Marta. Maria acompanhada de alguns criados e duma velha
que lhe tinha servido de ama, partiu de Betânia e foi estabelecer-se na antiga fortaleza de Mágdalo, situada na Galiléia,
perto do lago de Genezaré, onde foi conhecida com o nome de Maria Madalena. Desde esse momento Maria julgou-se
livre e absoluta senhora da sua vontade. Os olhares severos de seu irmão, os conselhos incessantes da laboriosa Maria,
já a não molestavam. Seu coração ardente propôs-se fazer do velho castelo de Mágdalo um paraíso. Escolheu para
criadas as quatro donzelas mais formosas de Cafarnaum.
Maria tinha no peito um coração faminto de comoções. Sua alma impressionável, sua imaginação ardente e
volúvel como a mariposa, nunca achavam um homem como tinha sonhado. Os seus olhares cheios de amor repartiam
diariamente entre os seus adoradores mentidas esperanças que alentavam a fé e o entusiasmo dos pretendentes. Todos
os jovens que rendiam culto ao prazer, à música, à preguiça, tinha francas as portas do castelo de Mágdala. Diariamente
se dançava à sombra das densas ramadas do jardim, e a formosa Madalena, rodeada das suas donzelas enlouquecia os
adoradores fazendo-lhes ouvir os dons privilegiados da sua voz e as dulcíssimas notas do seu saltério.
Era impossível resistir aos encantos que a natureza tinha entornado sobre a formosa castelã de Mágdalo. Tinha a
magestade e beleza da Vênus; seus olhos límpidos e azuis como o céu da Fenícia, nacarados, um pouco entreabertos,
pareciam ouvir eternamente um ósculo aos seus amantes. No seu redondo rosto destacava-se uma covinha que parecia
feita pelo dedo voluptuoso de Adônis. Seu corpo tinha a magestade de Débora e as formas acabadas de Medeia. A arte
grega só teria desejado uma coisa em Madalena: transformar a carne em mármore da Itália.
Todas as tardes Madalena descia ao jardim. As suas donzelas estendiam um riquíssimo tapete da Pérsia junto
dum corpulento sicómoro, ao redor do qual colocavam quatro braseiros de ouro, e a mirra, e o incenso perfumavam com
suas tíbias emanações o ambiente. Madalena sentava-se debaixo daquele verde docel, com cabeça languidamente
apoiada nos moles coxins de seda das Gálias com franjas de ouro, e o harmonioso saltério sobre os joelhos.
Então uma das suas criadas abria a porta do jardim e começava a côrte do amor. Madalena repartia por igual os
seus ardentes olhares e os amorosos sorrisos ao ver-se rodeada dos amigos íntimos, os quais, com as mais delicadas

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súplicas e as frases mais polidas, instalavam com ela para que lhes fizesse ouvir os encantos da voz; e então cantava
alguma canção, enlouquecendo o auditório com a doçura da sua voz e a ardente expressão do seu semblante.
As flôres e os hosanas choviam sobre aquela jovem, rainha da formosura e do amor. Madalena então
resplandecia de felicidade: parecia a rainha Sara no meio da sua côrte.
Quando mostrava achar-se fatigada, mandava às donzelas que dançassem ao redor da árvore, e finalmente,
seguida da sua côrte, transportava-se a um lugar do jardim dedicado aos jogos de pela.
Os romanos tinham-se saturado nos costumes gregos, levando-os depois pelo mundo conquistado pelas suas
legiões. A juventude alegre da Palestina, os efeminados descendentes dos fortes de Israel, os que transigiam com o
império ímpio, adotaram as diversões e as modas dos romanos, zombando das ameaças que os rabinos ou doutores da
lei lhes faziam das sinagogas.
Madalena era, na época que vamos descrevendo, mais que uma modesta filha de Israel, uma patrícia romana.
Nos seus jardins tinha mandado construir o sphoeristerium dos romanos, onde jogava, antes de tomar o banho, com os
amigos a triagonal, jogo de pela que os jogadores formavam em triângulo, e, atirando a pela uns aos outros perdia o
que a deixava cair. A falta cometida por uma das jovens, era satisfeita permitindo que o venturoso moço que tivera a
fortuna de lhe fazer perder, lhe beijasse a mão.
Madalena, seguida da sua côrte, depois da música e a dança, encaminhava-se para o sphoeristerium. Ali,
ansiosos os pretendentes por ganhar o prêmio estabelecido pela formosa Madalena, serviam-se de todos os recursos
imagináveis para lhe fazerem perder o jogo e beijarem aquela linda e macia mão tão cobiçada.
Madalena, ágil como um corça, flexível como uma serpente, com os penetrantes olhos fitos no mancebo que se
dispunha a enviar-lhe a pela ou o volante, defendia a cobiçada prêsa, rindo-se como uma doida quando o acaso a punha
em risco de perder. Então o cansaço acendia as formosas côres da rosa dos Alpes aquelas faces, e o seu semblante,
recobrando que era preciso, como da luz do sol desviar dele os olhos.
Madalena empregava a arte de agradar com mestria. Às vezes ao ver ir para ela o volante, escondia as mãos atrás
das costas, deixando-o cair sem oposição alguma. Então ouvia-se um grito de inveja, e o afortunado mancebo chegava-
se a Madalena para receber o galardão.
A formosa castelã estendia a mão, e, enquanto o feliz moço imprimia os lábios, costumava dizer-lhe em voz
baixa:
- Não ganhaste; mas beija-me, que é o mesmo.
O sol escondia-se, e, com grande sentimento da reunião, Madalena despedia-se dos amigos e, atrás do último
convidado, fechava-se a porta do jardim. O castelo de Mágdalo, muito silencioso, rodeado de árvores seculares, ficava
só quando a noite estendia as suas sombras pelo Oriente. Então fechavam-se todas as portas, e alguns criados velavam
da alta ataláia, porque esta fortaleza distava cêrca de uma hora de Cafarnaum. Sem embaraço, estas sentinelas tinham
uma ordem da senhora, como se verá mais adiante.

CAPÍTULO III

O FILHO DO TROVÃO

Madalena, ficando só, encaminhava-se para a sala do banho, seguida da sua donzela favorita, rindo-se como uma
doida da esperança dos amantes. Ao sair do banho perfumava o cabelo com essência de rosmaninho, e vestindo-se com
luxo deslumbrante dirigia-se a um pequeno camarim, onde resplandecia o luxo dos gregos. Naquele camarim havia uma
pequena mesa de mármore com a ceia servida. Uma lâmpada egípcia, em forma de esfinge, alumiava a habitação.
Cômodos divãs de seda azul rodeavam as paredes. Um leito de marfim coberto com um conopeo (cortinado de seda)
servia de sobrecéu aos moles almofadões de seda cor de romã.
Este camarim tinha uma janela que dava para o campo. A lua penetrava por ela, ao mesmo tempo que os
perfumes inebriantes que exalavam os braseiros saiam ao seu encontro. Madalena, voluptuosamente reclinada na sua
mole cama, com os olhos fitos nas molduras do teto, parecia esperar alguma coisa.
Assim decorreram duas horas: a donzela, imóvel junto da janela; Madalena, recostada no leito. Por fim ouviu-se
junto de janela ruído de passos que se detinham; depois no alto do castelo uma voz, que disse:
- Guardai as flechas!
Estas palavras foram repetidas por tres vezes, mas por uma vez diferente que se ia perdendo no espaço.
Madalena sentou-se, e um sorriso de indefinível prazer lhe assomou aos formosos lábios. A donzela, caminhando um
passo para a sua senhora, parecia esperar. Madalena, fez-lhe um sinal com a mão e foi sentar-se no divã, perto da janela.
Pouco depois ouvia-se no meio do campo o som melodioso duma lira que tocava u’a música. Aquelas notas, que,
no meio do silêncio da noite, subiam à janela de Madalena impregnadas com o perfume religioso dos campos, tinham
uma melancolia que enchia de doce harmonia o aposento, levantando um eco amoroso no fundo da alma.
Madalena fechou os formosos olhos como se quisesse recolher melhor aquelas harmoniosas notas, e murmurou
em voz baixa estas palavras:

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- Ah! Boanerges! Tu tocas lira como Terpandro e Enpédocles; mas eu tenho o fogo de Cléopatra nos olhos e a
sedução de Betsabé nos lábios.
Apenas Madalena disse estas palavras, a lira cessou por um momento, e uma voz fresca e varonil cantou lindas
estrofes.
Apenas se extinguiu o último acento do noturno canto no espaço Madalena fez sinal à donzela e, esta tirando
dum pequeno armário, feito no pedestal duma estátua de Adonis, uma escada de seda, prendeu-a fortemente à janela, e
deixou-a cair depois, para a parte de fora. Depois olhou para sua ama.
- Vai-te, lhe disse Madalena.
A donzela obedeceu. Um momento depois entrava um homem pela janela. Teria vinte anos. Era formoso, ainda
que de feições um pouco efeminadas.
Vestia uma túnica curta até o joelho duma fazenda de lã escura, atada na cinta por um cinturão de couro, de que
pendiam dois objetos: ao lado esquerdo um largo punhal de Damasco; e ao lado direito uma flauta pequena, de metal,
de tres buracos. Quando saltou pela janela, tinha a cabeça descoberta, e na mão um barrete de pele de raposa que
terminava em ponta. Pelas pernas enrolavam-se-lhe umas correias de pele de cabrito, e seus pés calçavam umas
sandálias bastante toscas. Pendente das espaldas, como se fosse aljava dum caçador índio, levava uma pequena lira
perfeitamente colocada dentro duma saca de tela.
Este homem, a quem chamaremos desde agora Boanerges (filho do Trovão), era um desses cantores ambulantes
que se alugam para os banquetes e entêrros, cujas melodias tocadas tanto serviam para o prazer como para a dor.
Quando Boanerges saltou pela janela, depois de recolher a escada que lhe tinha servido para subir até ao
aposento, foi ajoelhar-se aos pés de Madalena e esta, estendendo-lhe a mão, deixou que o noturno cantor imprimisse
nela um beijo.
- Boas noites, meu querido Boanerges, boas noites, meu querido mestre, lhe disse a senhora de Mágdalo com
dulcíssimo acento. Não era necessário que houvesse cantado a última estrofe ameaçando-me com a morte para que eu te
abrisse a minha janela. O Deus de Jacó não permitia que eu seja nunca a causa da morte do melhor tocador de lira das
doze tribos, do meu bom mestre, a quem o divino Apolo colocaria sem vacilar, se o ouvisse, o sistro com a cigarra na
mão e o rouxinol na cabeça.
Boanerges que se tinha sentado aos pés de Madalena, inclinou a cabeça em sinal de agradecimento pelas
lisonjeiras frases que lhe tributava, e beijou pela segunda vez a mão da castelã, que ainda conservava entre as suas.
- Agradeço-te, formosa senhora minha, disse o cantor com voz doce com as notas da sua lira; e peço-te perdão
por ter demorado esta noirte a minha chegada.
- Oh! Esta noite fizeste vibrar a corda da tua lira como nunca.
- Julguei encontrar-te aborrecida.
- E talvez por isso entoaste o sombrio canto do filho do Trovão, que tanta celebridade adquiriu na Galiléia.
- Esse canto é a minha história: o que se sente exprime com dobrada paixão.
- Vós, os poetas, sabeis regular perfeitamente as palavras para que produzam efeito.
- A ceia espera-nos, disse Madalena, levantando-se.
Boanerges levantou-se também.
Então o cantor e a castelã foram sentar-se nos ricos divãs que rodeavam a mesa ao uso hebraico. A ceia era
frugal. Consistia em dois assados, doces de conservas e frutas secas. Durante a ceia apenas proferiram uma ou outra
palavra. Boanerges comeu pouco, ocupava-se mais em servir a senhora de Mágdalo.
Esta mulher, que tinha alcançado dos filhos de Israel o epíteto de Pecadora; aquela órfã desenvolta, que rendia
culto à formosura e que desprezava os clamores do vulgo, nunca tinha concedido aos seus adoradores outra coisa que
olhares de amor e promessas ilusórias que jamais se realizavam. Comprazia-se em atormentar os amantes. Tinha o
corpo virgem e a alma corrompida.
Seu coração, sedento de comoções, sentia um vácuo que o amor dos homens não podia encher. Aquela alma
ardente, insaciável, estava destinada pelo Supremo Ser que rege os destinos da criatura a amar mais tarde, com o
entusiasmo e a fé dos mártires, o Homem-Deus, que descia à terra para salvar com o seu sangue o gênero humano.
- Boanerges, disse Madalena, a estrela matutina não tardará muito a aparecer no Oriente. É tarde: o sno vence-
me; cumpre com o patuado: recebe a recompensa prometida e vai-te.
Então Madalena fechou os olhos e dispôs-se a dormir. Boanerges esprendeu a flauta de metal que pendia do
cinto, e começou a tocar uma melodia doce e sentida como o arrulho da rola namorada. Enquanto o noturno cantor
tocava, a donzela tinha os olhos fitos no rosto de Madalena. Por fim levantou a mão, indicando ao músico que
cessasse, e disse-lhe em voz mui baixa:
- Dorme.
Então Boanerges chegou-se ao leito, levantou com cuidado o extremo do flutuante cortinado, e depositou um
manso ósculo na fronte nacarada da formosa senhora de Mágdalo. Os lábios do cantor enamorado tinham passado pela
fronte de Madalena ligeiramente, como a asa de uma andorinha sobre a tensa superfície dum lago.
- Toma e vai-te, tornou a donzela, dando uma moeda de ouro ao cantor.
Boanerges rejeitou aquela esmola com alívio ademã, dizendo:
- Guarda para ti êsse ouro, como sempre; mas não digas à tua senhora que eu o tenho recusado desde o primeiro
dia.
Boanerges encaminhou-se para a janela e saltou por ela. A criada recolheu a escada e tornou a metê-la na
pequena coluna que servia de base à estátua de Adonis. Depois foi sentar-se sobre uns coxins do leito da sua senhora.

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CAPÍTULO IV

BARRABÁS

Naquela mesma noite e à mesma hora em que Boanerges pulsava a sua lira ao pé da janela de Madalena, num
estreito barranco das vizinhanças de Cafarnaum achava-se um homem de aspecto feroz e miserável catadura fortemente
atado com correias ao tronco duma palmeira. Blasfêmias horríveis, maldições ímpias, ameaças espantosas saima da
imunda boca daquele homem, que fazia esforços inauditos para quebrar as ligaduras que o prendiam à árvore.
Oito homens de rosto crestado pelo sol, barbas hirsutas, cercavam a palmeira acompanhando com alegres
gargalhadas os desaforados gritos do miserável preso.
A julgar pelos seus vestuários e por algumas azagáias e flechas espalhadas pelo chão, e pelas compridas e largas
facas que lhes pendiam dos cintos, aqueles homens eram um desses bandos de malfeitores que infestavam as doze tribos
na época que nos ocupa.
- Canta, Barrabás, canta! Tua voz é alguma coisa parecida com a do onocrótalo quando desenterra os cadáveres,
disse um daqueles bandidos, dirigindo-se ao homem que estava amarrado à árvore.
- Covardes! Covardes! Clamou Barrabás, deitando pela boca espuma de raiva. Soltai-me e vereis, tornou
Barrabás.
- Oh! Se te soltassemos deitarias a correr, para escapar à justa vingança dos nosso valentes capitães Dimas e
Gesta;mas não tenhas cuidado, não te soltaremos ainda que nos lances ao rosto a tua imunda saliva.
- Não me soltais porque me tendes medo.
Os bandidos soltaram em coro uma gargalhada.
- Só as mulheres e crianças, disse uma voz varonil podem temer-te, miserável assassino.
Os bandidos voltaram-se precipitadamente, exclamando com respeito:
- O Capitão!
- Que fez esse? perguntou o homem que tinha aparecido tão improvisadamente entre os bandidos, indicando
Barrabás.
O que fez esta pergunta era um homem de cinquenta anos, de barba branca e rosto venerável.
Chamava-se Dimas, e em nada se teria conhecido à infamante profissão que exercia.
- Já sabes, capitão, disse um dos bandidos indicando Barrabás, que este descobriu a nossa guarida aos soldados
de Pilatos, o governador. Infame! Por um punhado de ouro faz-nos perder a nossa querida fortaleza de Hebal! Tu,
capitão, depois da terrível refrega daquela noite em que o nosso bom companheiro Uries perdeu a vida e tu recebeste
uma cutilada no ombro, recomendaste-nos que apanhassemos este traidor; Gestas recomendou-nos o mesmo; e hoje
caiu-nos felizmente nas mãos: surpreendemo-lo numa caverna da vizinhança do lago; acabava de assassinar vilmente
um pobre velho que se recusava a entregar-lhe umas quarenta moedas de prata, fruto da sua colheita. Quando nós
entramos na caverna, o pobre velho revolvia-se num lado de sangue; como se nada houvesse feito, sentado numa
pedraa, se entretinha em contar o dinheiro sem fazer caso dos lamentos do velho, o qual nos disse antes de morrer que
Barrabás o tinha ferido. Nós então apoderamo-nos dele, e como nos tinha dado ponto de reunião neste barranco,
apresentamos-to para que faças o que melhor te aprouver deste miserável.
Dimas, que tinha escutado a narração do bandido com os braços cruzados sobre o peito e os olhos fitos em
Barrabás, que tremia de medo, disse secamente.
- As víboras esmagam-se para que não envenenem a carne sã com suas mordeduras. Degolai-º
O bandido que tinha falado tirou o largo punhal da bainha e disse aproximando-se da árvore:
- Vou fazer a honra a esse lobo de o degolar: sinto-o pelo meu punhal, que nunca se verá, ainda que o afie, limpo
de tal nódoa.
- Dimas, és um covarde, exclamou Barrabás; se me achasse só contigo nos montes de Judá, me deixarias a
passagem franca e tirarias o turbante para me saudar.
E dizendo isso cuspiu no rosto do capitão. O olhar bondoso de Dimas despediu um raio de luz sinistra. Seu rosto
tingiu-se de cor de sangue, e, tirando rapidamente o punhal da bainha, exclamou com voz de trovão:
- Soltai esse homem!... Soltai-o!...
E, como visse que ninguém lhe obedecia, correu para Barrabás, e cortando as ligaduras que o tinham preso à
árvore, tornou a exclamar: - Já és livre! Livre como eu... Daí-lhe um punhal. Defende-te, porque vou matar-te.
Dimas levantou a fronte com altivez, e com o olhar de leão irritado esperou o adversário. Barrabás, ainda que
solto, não se mexia do lugar. Os olhos e o gesto de Dimas, aterravam-no.
- Defende-te, miserável, repetiu o capitão; - e para excitar o valor do seu adversário deu-lhe uma terrível
bofetada, que ressoou no silêncio da noite.
Barrabás caiu ao chão como se houvesse recebido um golpe de maça na cabeça. Pela asquerosa bôca saía-lhe
uma torrente de sangue
- Oh! exclamou cobrindo a cara com as mãos; de que te serve correr sempre atrás desse falso profeta que se
levantou em Israel com o nome de Jesus? Como te mostras tão admirador da sua nova lei? Porque aprendes as suas
parábolas de cór, e os seus mandamentos, se não os praticais? “Perdoai aos vosso inimigos; dizia uma tarde em que o
ouvi nas vizinhanças de Naim; “socorrei os desvalidos, protegei os fracos... “ Isto dizia, e tu o escutavas imóvel como a

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torre de Davi; e contudo, humilhas-me porque tens mais força do que eu, porque estás entre os teus, que te vingarão se
te matar; covarde, covarde, covarde!
E Barrabás batia com a cabeça no chão. Dimas embainhou o punhal. Seu semblante serenou subitamente. As
palavras daquele homem ressoaram-lhe no fundo do coração. Os olhos tornaram a adquirir o doce e compassivo olhar
do costume, e com uma voz suave como a dum mártir que olha para a morte sem a temer, e a chama, disse lançando
uma bolsa cheia de moedas aos pés de Barrabás:
- És livre, vai-te: perdoo-te a vida e o insulto.
- Livre! exclamou Barrabás apanhando as moedas e levantando-se de um salto, ligeiro como um gato montês.
- Sim, livre.
- E posso retirar-me?
- Para onde quiseres. Invocaste o nome do Messias, do Salvador de Israel, do Mestre divino: eu, em seu nome,
perdoo-te. Vai-te!
Barrabás olhou em redor com assombro e tartamudeou com medroso acento:
- Queres escarnecer de mim? Dizes-me vai-te, e quando me for, me arrojarás a azagaia pelas costas.
- Vai-te, miserável: eu desprezo-te; as minhas armas não se mancharão com o teu impuro sangue.
Os bandidos que cercavam Dimas exalaram um murmúrio de desaprovação.
Barrabás apoderou-se da bolsa que Dimas lhe tinha lançado aos pés, e deitou a correr. Alguns bandidos fizeram
menção de o seguir; porém, Dimas gritou-lhes com voz imperiosa:
- Ninguém se mova! Deixai-o!
Entretanto Barrabás, com rapidez incrível, tinha trepado pela empinada ladeira do barranco. Depois desapareceu.
Dimas reuniu em torno de si os seus bandidos.
- Ouvi-me, lhes disse: eu vou separar-me de vós por alguns dias. Gestas, meu amigo, dirigirá entretanto as vossas
empresas. Espera-vos no asilo da água nos montes de Judá: bem sabeis, no extremo da via Sangrenta. Ide, pois reunir-
vos com ele.
E o prudente capitão, sem esperar resposta, pegou na azagaia que tinha posto no chão pouco antes, e
encaminhou-se para o lago da Galiléia, que se achava ao norte do barranco.

CAPÍTULO V

OS PRIMEIROS CANTOS DO CISNE DA GALILÉIA

Os nossos leitores lembrar-se-ão do capítulo que com a epígrafe de Um cavaleiro que rouba em despovoado,
deixamos consignado num dos livros precedentes. Dimas ao apresentar Enoé aos seus companheiros, dissera-lhes:
O célebre bandido dos montes de Samaria cumprira a palavra à escrava favorita do desgraçado príncipe
Antípatro. Desde então Enoé foi a irmã de Dimas, e os seus companheiros respeitaram-na.
Algums meses depois, numa noite de tempestade, em que o trovão e o relâmpago cruzavam ameaçadores pelos
ares, Enoé, no velho e desmantelado castelo de Hebal, deu à luz um menino, formoso como o primeiro sorriso da
aurora. A egípcia confiou ao generoso bandido que aquele menino era filho do príncipe Antípatro, e Dimas jurou ser seu
protetor enquanto vivesse. Os bandidos puseram ao tenro pimpolho o nome de Boanerges, porque nascera numa noite
de trovões e relâmpagos.
Seis anos permaneceu Enoé na fortaleza. Dimas respeitou sempre aquele sensitiva enamorada da memória dum
morto. Os bandoleiros respeitavam a dor de Enoé, e amavam com toda a força de seus rudes corações o menino
Boanerges.
Enoé tocava citara, lira e saltério, de modo admirável. Sua voz era clara como a estrela que precede o dia, doce
como o favo das abelhas, apaixonada como o arrulho da rôla. Os bandidos chegavam a ponto de chorar ouvindo os seus
cantares. Mas Enoé, a quem chamavam pelo respeito que ises inspirava, Sara, era boa e condescendente com aqueles
desgraçados. Ela preparava sua frugal comida e amassava diariamente as suas tortas de farinha. Curava suas feridas e
passava a noite de vela à cabeceira dos seus leitos de folhas sêcas. Um dia Dimas disse-lhes:
- Enoé, não podes permanecer mais conosco sem correres grave risco. No dia em que os soldados do tirano de
Jerusalém descubram a nossa guarida, serás crucificada. E sendo inocente, como és, dos crimes que cometemos, não
quero expor-te.
Enoé encolheu os ombros mostrando que tudo lhe era indiferente. Dimas lembrou-lhe então que tinha um filho, e
Enoé, abraçando Boanerges, respondeu:
- Tens razão, meu irmão; para onde hei de ir?
- Esta noite partiremos; comprei-te uma modesta casinha perto de Cafarnaum, na margem do lago da Galiléia.
Aquele páis é tranquilo e ali não correis perigo nem tu nem teu filho. Eu irei ver-vos sempre que as minhas ocupações o
permitam. Bem sabes que nunca hei de abandonar-te.
Enoé beijou a mão daquele homem generoso, que o acaso lhe tinha deparado e alguns dias depois achava-se
estabelecida na sua nova habitação de Cafarnaum, Enoé, na solidão do seu retiro, ocupou-se só na educação de seu

163
amado filho. A natureza tinha dotado Boanerges de um coração de fogo e de uma inteligência clara. Sua mãe pôs um
dia a lira na mão do menino e ele chegou a ser um grande músico.
Deus tinha-lhe dado a inspiração dos poetas. Boanerges, aos quatorze anos, tocava lira e cantava com a mesma
doçura que uma virgem do templo de Sion. Uma noite Enoé chorava com os olhos fitos nos tições do lar. Era o
aniversário natalício de Boanerges.
Aquela pobre enamorada talvez pensasse no seu infeliz amante.
Boanerges tinha a lira na mão e pôs-se a tocar uma melodia tão triste como o coração de sua mãe. Enoé levantou
a cabeça. Não conhecia aquele canto: mas não disse nada. Sem saber como, Boanerges pôs-se a cantar:

Eternamente nos teus olhos o pranto vejo, senhora.


Dize-me, mãe querida, porque chorais?
Se a causa das tuas mágoas é o filho que te
Então, recebe a minha vida, e não chores mais!

- Quem te ensinou essa canção? perguntou Enoé enternecida.


- As tuas lágrimas.
- És então poeta? tornou a perguntar com certo orgulho aquela mãe.
- Ignoro: senti o que cantei.
- Oh, Deus te abençoe! E Enoé abraçou ternamente o filho cobrinddo-lhe o rosto de beijos e lágrimas.
Boanerges, como os rouxinóis da espessura, como as cotovias no espaço, cantava sem saber a razão disso,
porque, como as aves, recebia dos dons de sua inspiração do céu. Dimas, pela sua parte, ensinou aquele menino, a quem
amava como filho.
A fama levou o nome do Filho do Trovão pelas doze tribos, Boanerges começou a fazer excursões com a lira às
costas pelas cercanias de Cafarnaum. A tribo de Zabulon foi o seu primeiro teatro. Os que o ouviam exclamavam com
espanto:
- Canta como um cisne.
Os israelitas, propensos a pôr apelidos, chamaram-lhe em breve o Cisne da Galiléia. Boanerges cantava sempre.
- A minha amada morreu lhe dizia um.
E Boanerges cantava à dor.
- Minha esposa deu-me um primogênito, lhe dizia outro.
E o cisne da Galiléia, cantava ao prazer.
Uma noite muito escura, Boanerges ia por um tortuoso caminho em direção a Cafarnaum. De repente um
homem, como se nascesse da terra, levantou-se ante ele. Aquele homem pôs-lhe a afiada ponta dum punhal ao peito e
gritou-lhe em voz de mando:
- Alto!
- Eh! Devagar, bom homem, respondeu Boanerges sem se perturbar; tira-me a tua arma do peito. Que lucrais
com matar o Filho do Trovão, o Cisne da Galiléia?
- Boanerges!... exclamou o homem retirando o punhal.
- Conheces-me?
- Algumas vezes te acalentei sobre os joelhos.
- Ah! Então pertences aos bravos que capitaneia o generoso bandido da Samaria... Sabes onde se acha?
- Segue-me.
O bandido conduziu Boanerges a uma gruta. Ao redor duma fogueira achavam-se dez ou doze bandidos. Tolos
voltaram a cabeça, e ao reconhecerem o jovem trovador soltaram um grito de alegria. Dimas saiu ao seu encontro e deu-
lhe um abraço.
- Que é isso Boanerges? Está por desgraça tua mãe enferma? Sucedeu alguma coisa em tua casa?
- Felizmente acha-se boa.
- Então?... tornou Dimas como estranhando encontrá-lo naquele lugar àquelas horas.
- Venho das bodas que se celebraram esta manhã numa aldeia das margens do lago, e a noite surprendeu-e no
caminho.
- Então ficarás conosco; daqui a tua casa há tres horas, e a noite está escura.
Boanerges ficou com os bandidos. Depois da ceia pediram-lhe que lhes fizesse ouvir a doçura da sua voz e a
harmoniosa da sua lira. O trovador perguntou-lhe que queriam que cantasse. Um dos bandidos disse:
- Canta-nos alguma coisa do nosso ofício, que possamos aprender e cantar nos momentos de perigo; uma canção
que reanime o nosso valor, com as que Davi dirigia aos seus guerreiros.
Boanerges meditou um momento. Depois improvisou-lhes um canto guerreiro que se tornou popular em Israel.
Boanerges era um poeta que percorria a terra conquistada por Davi com a lira na mão. Assim chegou à idade das
paixões. Um dia apresentou-se um homem à porta da sua cabana.
- És tu o cisne da Galiléia? lhe disse.
- Assim costumam chamar-me os aduladores, respondeu o poeta.
- Pois uma senhora deseja ouvir-te... hoje dá um banquete aos seus amigos; queres vir? Pagar-se-te-á bem. É a
estrêla de Mágdalo, a pérola de Betânia.
- Ah! exclamou o poeta; dizem que é muito formosa.

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Sua fronte tem a brancura do lírio, seus olhos o azul do céu, seus cabelos o brilho do ouro; seus lábios são dois
terebintos unidos pela mão duma deusa, respondeu o emissário.
- És poeta? lhe perguntou Boanerges.
- Não, sou pintor; retratei esta pérola de Betânia, porque precisava dum modelo para Helena e ela deu-me o
encargo de procurar.
- Então espera que dê um adeus à minha mãe e partiremos.
Boanerges foi ao castelo de Mágdalo. Durante o banquete, amenizou o prazer da mesa com a doce harmonia da
lira e o terno encanto da sua voz. Todos os seus versos eram dirigidos à senhora de Mágdalo. O músico-poeta
embevecido ante a deslumbrante formosura de Madalena.
Ao terminar o festim, Madalena fez com que Boanerges a acompanhasse até o gabinete que os nossos leitores já
conhecem, e disse-lhe:
- Na verdade és um cisne; nunca ouvi nada que se te avantaje. Estou satisfeita, e dou-te os agradecimentos pelos
versos que me dedicaste: pede o que quiseres e concedo-to.
Boanerges respondeu com toda a veemência do seu coração impressionável:
- Quero o teu amor!
- Pedes muito, mancebo, respondeu, sorrindo-se, Madalena, que não desgostara da altivez do músico.
- Que é preciso para o alcançar?
- Merecê-lo.
- Indica-me o modo, e por difícil que seja eu o conseguirei. Quando um homem como eu deseja alguma coisa,
não lhe importa jogar a vida para ganhá-la.
Madalena sentiu por aquele jovem altivo, alguma coisa desconhecida até então ao seu coração, e disse-lhe:
- Ouve, pois, o que quero. Todas as noites, quando os galos anunciem nos seus cantos a meia noite, acharás uma
escada pendurada à minha janela: subirás por ela.
- Ah! exclamou o poeta, crendo que Madalena ia recompensar o seu amor.
- Espera, tornou Madalena. Ainda não terminei. Com as vibrações da tua lira recrearás os meus ouvidos durante
a ceia. Depois acalentarás o meu sono.
- E que recompensa receberei pelo prazer de ver-te?
- Quando dormir permito-te que me deposites um ósculo na fronte, e depois a minha criada te entregará uma
moeda.
- Rejeito a moeda; admito o ósculo, respondeu precipitadamente o cantor.
- Quero que admitas ambas as coisas. Quero experimentar se me amas, se tens suficiente valor para fazer todas
as noites o mesmo.
- Isso é um tormento.
- Só por esse preço poderei talvez amar-te amanhã. Aceitas?
- Poderei falar-te do meu amor?
- Só quando improvises, ao som da tua lira.
- Aceito.
- Então vai-te, e até amanhã.
Boanerges havia tres meses, que, sem faltar uma noite, ia ao castelo de Mágdalo. Toda as noites depositava um
respeitoso ósculo na fronte de Madalena. Esperava a recompensa da sua constante paixão; porém Madalena não amava
ninguém.
Enoé, com essa delicada sagacidade das mães, conheceu que seu filho não era feliz. Ao ver o seu desalento quis
reanimá-lo, e então lhe contou a história de seu pai. Boanerges soube que lhe corria pelas veias sangue real.
Explicados estes antecedentes, tornemos a encontrar Dimas. O bandido, quando depois de conceder a liberdade
ao miserável Barrabás, se encaminhou para o povo de Cafarnaum, residência de Enoé, a egípcia. Isto sucedeu na mesma
noite em que Boanerges cantou a Madalena a canção da Formosa Pecadora

CAPÍTULO VI

LUZ NA ALMA.

Dimas parou enfim diante duma casa de pobre aparência situada namargem do Lago de Genezaré, e a mui
pequena distância da cidade de Cafarnaum, e deu com o coto da azagaia tres pancadas compassadas na frágil madeira
da porta.
- Quem bate a estas horas? disse uma voz de mulher no interior da casa.
- O que deseja entrar, respondeu Dimas de fora.
Isto sem dúvida era uma senha convencionada, pois imediatamente se abriu a porta. Dimas entrou, e sentando-se
num banco disse.
- Boas noites, Enoé.
- Bemvindo sejas, Dimas.
- E teu filho? perguntou o bandido.
- Meu filho não volta à casa sem que no céu assome a estrela matutina.

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- Onde passa as noites?
- Ignoro.
- Ama talvez?
- Isso presumo.
- Devia procurar averiguá-lo.
- O amor verdadeiro é pouco comunicativo; rejeita a liberdade e escolhe um cárcere onde não penetram os raios
do sol, a alma.
- O que êle ama mais no mundo é sua mãe.
- O filho tem um amor imenso que mata o amor da mãe; é o que sente pela mulher que o fascina. O Mestre
Divino, o Messias que percorre a terra de Israel, disse: “Pela esposaa deixarás teus pais.
- É verdade, murmurou Dimas ficando dolorosamente com os olhos fitos no chão, como se aquela citação que
acabava de pronunciar a egípcia lhe houvesse recordado algum pensamento doloroso.
Houve um momento de silêncio. Enoé pensava em seu filho; Dimas, em Jesus. Por fim a mãe de Boanerges disse
com a sua voz doce e apaixonada:
- Que tens irmão? O teu olhar é triste como o gemido dum moribundo.
- Tenho, Enoé... que ouvi pela terceira vez a palavra do Mestre de Galiléia.
- Estiveste em Betânia?
- De lá venho.
- Está ali Jesus?
- Vi-o à porta da cada de Lázaro, sentado à sombra duma palmeira. Mutidão de gente o rodeava; todos os
desgraçados das vizinhanças que buscavam a consolação dos seus males no poder divino da palavra desse Homem
extraordinário, que traz escrita na fronte a magestade de Deus, que tem a luz dos céus nos olhos e a sabedoria dos
profetas nos lábios. Ao redor de si tinha crianças: umas sentadas sobre os joelhos, outras ao seu lado; sua mão
acariciava como um pai amoroso aquelas cabecinhas. Estava falando. Um silêncio sepulcral reinava em redor dele. Nem
o zéfiro se agitava entre os ramos altivos da palmeira, nem as aves cantavam. Parecia que a natureza havia calado os
seus mil ruídos para o ouvir. Os meninos olhavam-no sem compreender. Detive os passos para o escutar também. Jesus
fitou os formosos olhos na minha pessoa, e enviou-me um sorriso cheio de bondade. Senti aquele sorriso penetrar-me
no fundo da alma, e uma voz terna, amorosa, que me dizia: “Dimas, afasta-te do caminho que segues; não entesoures
para ti na terra onde tudo consome a traça; entesoura no céu, onde nem os homens roubam, nem a traça consome”. Um
estremecimento estranho me agitou o corpo; a luz dos olhos escureceu-me; senti um ruído espantoso nas fontes e baixei
os olhos envergonhado.
Dimas deteve-se. Pela fronte corriam-lhe grossas gotas de suor; o corpo tremia, e a voz ia-se apagando pouco a
pouco.
- Esse homem é Deus, disse pausadamente Enoé.
- Sim, minha irmã, Deus, que baixou à terra dos homens para se salvar. O que escuta uma só vez a santa bondade
da sua doutrina, não duvida; a fé brota no seu coração. Jesus leu no meu , pois pela segunda vez me ressoou a sua voz
nos ouvidos, dizendo: “Dimas, vejo a tua fé; a tua morte será gloriosa; exalarás ao meu lado o último suspiro, e comigo
entrarás na mansão de meu Pai”.
- Que queria dizer-te com isso? perguntou Enoé.
- Ignoro... Mas há mais de trinta anos, eu era muito moço, quando uma noite dei hospitalidade no meu castelo a
uns pobres viajantes que levavam um Menino de tres meses: aquele Menino chamava-se Jesus, e apesar da tenra idade,
ao despedir-me d’Êle ao dar-lhe um beijo na fronte, que resplandecia como a porta do templo de Sion, disse-me ao
ouvido: Dimas, tu morrerás comigo. Já ouviste, Enoé, falar um menino de tres meses.
- Oh! Nunca!
- Pois aquele menino falou, e é hoje um homem que se chama Emanuel (Deus, conosco).
- Dimas, desde que Jesus percorre as tribos, os cegos vêm,os coxos andam, os mortos ressuscitam, murmurou
com voz profética Enoé.
- Sim, Deus está entre nós. Eu sinto uma voz secreta que grita no fundo do meu ser. “Detém o passo, afasta os
olhos da terra, e olha para o céu. Tenho remorsos, Enoé. A vida que por espaço de trinta e quatro anos lev, pesa-me
sobre o coração, e decidi desviar-me do caminho do crime: abdiquei todo o sinistro poder que se achava nas minhas
mão, nas de Gestas.
- Ah! Agradecida, meu irmão, não sabes o prazer que me causam as tuas palavras; temia ver-te nas mãos dos
soldados de Pilatos
- Desde amanhã seguirei os passos de Jesus. Êle perdoará as minhas culpas, que são muitas, e me fará bom em
paga da fé que sinto no coração.
Dimas e Enoé ficaram silenciosos. Aqueles dois corações rasgaados pelo amor e outro pelos remorsos,
esperavam tudo do Pastor de almas que percorria a terra dos homens em busca do martírio.

CAPÍTULO VII

O FESTIM DE MACHERONTE

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Vede-o, ali está: é Macheronte, gigante de granito que das fronteiras da Judéia ameaça eternamente os árabes
rapaces que habitam as solitárias praias do mar Morto. A lua, derrama os puros raios da sua fronte sobre seus altos
muros e denegridas torres.
Que sucede em Macheronte? Aquela fortaleza erguida ali pela mão poderosa dos senhores de Israel para deter as
invasões do faminto árabe; aquele escudo de guerra onde tantas vezes se espedaçou a flecha do filho do deserto; aquele
montão de rochas inexpugnáveis cuja entranhas o avarento Antípas sepultava os seus tesouros, converteu-se na mansão
do prazer, da preguiça, da voluptuosidade, do amor? Porque em vez do grito de guerra se escutam os doces acordes da
música, o apaixonado canto dos trovadores de Israel?
Porque o mês de Elul chegou ao meio da sua carreira, e Herodes Antípas reuniu no seu inexpugnável castelo de
Macheronte, os mais valentes oficiais das suas legiões, os mais nobres herdeiros da Galiléia para celebrar um
esplêndido festim por seu aniversário natalício.
No festim de Macheronte as mulheres ostentavam diademas de pérolas à moda da Pérsia, redezinhas de
esmeraldas, coroas de ouro, e algumas, no impudico e mal coberto colo, mostravam gargantilhas de diamantes para
chamarem para aquele ponto os lúbricos olhares dos mancebos. A maior parte daquelas bacantes da Palestina que
esqueceram a voz profética de Jeremias, tem as cabeças dos dedos tingidas da cor purpurina da rosa silvrestre, e as
sobrancelhas e liras, as maviosas flautas e as penetrantes cítaras, enchem com suas mágicas harmonias os âmbitos do
amplo salão de Macheronte.
Mais de cinquenta convidados de ambos os sexos se acham em volta da esplêndida mesa a que preside a
impudica Heródias. Os vinhos da Itália começam a embriagar a cabeça dos sibaritas de Israel.
Os olhares provocadores das mulheres fascinam os ardentes cérebros dos jovens convidados.
- Brindo, exclama um centurião romano quase embriagado, pelas lágrimas do rei Areias e pela desconsolação de
sua filha.
Este ímpio brinde foi seguido de uma hosana de entusiasmo. As lágrimas da mulher de Antípas, tão vilmente
repudiada, faziam rir a côrte do miserável tetrarca da Galiléia. Heródias agradeceu com um olhar ao romano aquele
brinde. Aquela miserável adúltera estava preocupada durante o banquete. Um pensamento horrível lhe fervia no
cérebro. Só esperava uma ocasião oportuna para o realizar.
Neste momento abriu-se a porta. Heródias soltou um grito de prazer. Todos dirigiram os olhos para a porta.
- Oh! exclamou Antípas fascinado; é Salomé minha adorada filha adotiva; que formosa está! Parece uma ninfa
surgindo dentre as espumas do mar. Adiante, minha filha, adiante só um anjo faltava nesta festa deliciosa para que o
festim tivesse alguma coisa de celestial.
Salomé, a filha de Heródias, caminhou alguns passos, e ao chegar ao lugar que ocupava Antípas apresentou-lhe a
fronte para que o beijasse. Aquela menina contava apenas quinze anos; sua formosura era provocadora, fascinante,
longos caracóis negros e lustrosos lhe caíam sobre os ombros; o seu corpo, apenas coberto até à cintura por um véu de
finíssima faze de romã, deixava ver o roliçós braços e nascentes seios aos cubiçosos olhares dos convidados. Trazia
uma saia branca que lhe chegava até ao tornozelo, e outra saia de seda azul por cima, um pouco mais curta. Ricos
braceletes lhe brilhavam nos braços, e um primoroso diadema de diamantes lhe rodeava a cabeça. Os brincos que lhe
adornavam as pequenas e rosadas orelhas eram simplesmene dois fios de pérolas. Nas pequeninas mãos agitava uma
pandeireta com cascavéis de ouro.
Depois de receber o beijo de seu pai adotivo, olhou Salomé para sua mãe. Os olhos deHeródias resplandeciam de
prazer. Sua filha estava radiante de formosura. Sua presença no salão tinha eclipsado o brilho às mais formosas. Aquela
jovem era, mais que uma realidade, um sonho fantástico. Antípas, embelezado na contemplação da sua afilhada, tinha
fiado com a taça na mão.
Heródias, fez sinal a Salomé, e a jovem pôs-se a tocar pandeireta e a dançar diante do tetrarca da Galiléia. Seria
impossível descrever os ademãs desonestos, a impudica desenvoltura daquela jovem que, amestrada por sua adúltera
mãe, arrastava aos pés daquela côrte corrompida, o mais precioso o mais caro para uma jovem: o pudor da adolescência.
Os aplausos, o entusiasmo aturdia com seus impuros gritos aquela menina corrompida. Salomé dançava, sem
trégua e sem mostrar fadiga. O suor corria-lhe pela fronte coradaa pelo cansaço. Por fim caiu quase desfalecida nos
braços de Antípas. Este apertou-a ao coração, ébrio de prazer. Naquele momento de entusiasmo, e quando dava à jovem
na afogueada face o beijo de agradecimento, disse-lhe com infinita alegria:
- Formosa e incomparável Salomé! Tua cintura é flexível como a tenra palma que cresce nas margens de um
lago, quando a agita o zéfiro da manhã; teus olhos tem o brilho irresistível do diamante ferido pelos raios do sol. Os
gênios da graça e do amor não podem formar outra mais bela que tu. Pede, minha filha, pede o que quiseres que eu te
prometo debaixo da palavra de honra que concedo, ainda que me pedisses metade do reino.
Salomé procurou sua mãe.Heródias abraçou sua filha com um entusiasmo que nunca sentira.
- Já ouviste, exclamou Salomé, o que me disse teu esposo, meu senhor? Que te parece que lhe peça, minha mãe?
Pede-lhe a cabeça do Batista.
A jovem correu para Antípas. Alguns cortesãos o rodeavam, elogiando a graça irresistível de Salomé. Ao verem-
na chegar abriram passagem. A filha da infame adúltera, ajoelhou-se aos pes do tetrarca.
- Venho, senhor, lhe disse, reclamar o oferecimento que há pouco me fizeste. Peço, senhor, a cabeça de João
Batista, sobre um prato.
Estas palavras produziraaam um efeito mágico. Os miseráveis cortesãos de Antípas, aplaudiraaam com
entusiasmo o criminoso capricho de Salomé. O tetrarca tinha dado a palavra, mas vacilava.

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- Tenho a tua palavraa, senhor, que é sagrada, tornou a desenvolta jovem.
- É verdade, disse um cortesão, adulador desprezível da adúltera Heródias; tu, senhor, disseste-lhe que pedisse o
que quisesse, e essa jovem desinteressada, quase heróica, pede a cabeça desse transformador da ordem pública, desse
andrajoso, que fazendo crer que era inspirado pelo Santo dos Santos, embaucava as tribos pondo em grave risco a
tranquilidade da Galiléia.
A maior parte dos cortesãos apoiaram as palavras do seu companheiro, Antípas, ainda que com alguma
repugnância, chamou um oficial do castelo, e disse-lhe:
- Desce ao calabouço de João e manda a uma salão que lhe corte a cabeça. Põe sua cabeça num prato e depois
entrega-a a esta menina.
Então, barbaridade inaudita, Heródias faz um sinal aos músicos e empunhando uma taça, convidou os convivas a
um brinde, dizendo:
- Pela graça da dançarina, pelos encantos irresistíveis de Salomé, minha filha.
Todos esgotaram a taça, exceto Antípas, em cujo rosto se pintava o remorso. O festim continuou com a mesma
alegria, com a mesmo entusiasmo. Que importava para aqueles infames e a vida dum homem, como João Batista?
Entretanto, num tétrico e úmido calabouço, onde não penetrava a luz do dia, um homem ainda moço gemia entre
as grossas cadeias que o prendiam a um banco de pedra. Aquele homem chamava-se João Batista; era o Santo Precursor
de Cristo. Na noite do festim que bosquejamos, dormia com o sono tranquilo do justo, sobe as duras pedras que lhe
serviam de leito. Aos seus ouvidos não chegava o báquico estrondo do banquete, celebrado na parte alta do castelo.
Havia sete meses que esperava em vão, dia após dia, ver quebradas as suas cadeias. Dois pensamentos lhe
preocupavam a imaginação: os milagres do Messias, cuja fama tinha chegado até o seu cárcere, e ver a luz do sol.
Quandos os algozes entraram no cárcere, João dormia tranquilamente. O ruído das armas, o clamor dos archotes
acordou-º O oficial encarregado de tão horrível sentença estava pálido. João dirigiu-lhe um olhar cheio de compaixão.
- Vens, lhe disse, anunciar-me a hora da minha liberdade?
- Venho, disse baixando os olhos para o chão, anunciar-te a hora da tua morte.
João não se inquietou. Um sorriso cheio de santa resignação lhe assomou os lábios.
- Faze, pois o que te mandam, disse sem levantar a voz. Só sinto morrer sem beijar os divinos pés de Cristo, que
percorre a Galiléia pregando a nova lei. Mas dize à tua ama e ao adúltero Antípas, que pelas terras de Israel vai o que há
de vingar a minha morte; que eu deploro, no último instante desta vida passageira, que eles me tiram, o fim que lhes
está reservado. Antípas, Heródias e Salomé sua filha morrerão em terra estrageira, abandonados de Deus e dos homens.
Agora fere, verdugo, fere sem receio, que eu te perdoo.

CAPÍTULO VIII

O SONHO DE UM ASSASSINO

Quando terminou o festim, o oficial encarregado da terrível sentença, apresentou a Salomé a cabeça de João num
prato, dizendo-lhe:
- Toma formosa jovem, o prêmio que cobiças pelas tuas graças.
- Aqui tens, minha mãe, o que me pediste.
Heródias tirou o pano e pôs-se a contemplar a lívida cabeça do Batista. Depois tirou um alfinete de ouro do
cabelo, e entreteve-se em picar aquela língua que lhe tinha chamado adúltera. A mulher de Marco Antonio tina feito o
mesmo à língua de Cícero. Parace incrível tanto rancor, tanta ferocidade, no coração de uma mulher.
Entretanto, Antípas tinha-se deitado. Em vão procurava o covarde assassino de Macheronte conciliar o sono. Mil
sombras ensanguentadas lhe passavam pela mente. O oficial tinha-lhes dito as últimas palavras de João, e a serenidade
com que tinha visto brilhar a arma homicida sobre o pescoço.
Antípas, o assassino, conseguiu por fim adormecer. Mas ai! então se apresentou ante os olhos da sua febricitante
imaginação o horrível futuro que o esperava. Viu em sonhos um poderoso exército que, atravessando as altas
cordilheiras do monte Hermon, parava na planície deAubanitide. Aqueles soldados, de rosto tostado pelo sol do deserto,
vestiam brancos alquiceres que flutuavam à mercê do vento. Em suas calosas mãos brilhavam os curtos alfanges e as
leves lanças. Seus cavalos corriam com a rapidez do vento.
Aquele exército era comandado por um ancião de nobre semblante e barba branca. Tinha um estandarte negro na
mão esquerda, e um pesada acha de armas na direita. Um capacete de ferro, ao redor do qual brilhavam as folhas duma
coroa de ouro, lhe cobria a cabeça. O cavalo que montava obedecia à voz. As rédeas eram inúteis. O estandarte tinha um
letreiro. Os cerrados olhos de Antípas leram aquele letreiro que dizia: “Aretas, rei da Arábia, vingará sua filha”.
Grossas gotas de suor caíam da fronte do adormecido tetrarca da Galiléia, porque aquele nome era o do rei cuja
filha acabava de repudiar para se unir com a mulher de seu irmão, com a vingativa Heródias. O exército árabe, que se
encaminhava a vingar a filha do seu senhor, deteve-se nos campos de Betânia e a cêrca duma hora da cidade de Gaulon.
Antípas viu outro exército que saía da cidade. Adiante daquele exército, montado num cavalo negro como a dor
e impaciente como a ira, via-se um homem vestido com trajes dos senhores hebreus. Aquele homem chamava-se Filipe;
era o esposo escarnecido de Heródias, o irmão de Antípas. Filipe e Aretas falaram com calor por longo espaço debaixo
duma tenda. O miserável verdugo de João viu como aqueles dois caudilhos apertaram a mão um ao outro, e ouviu este
juramento: “Guerra de extermínio a Herodes Antípas!”

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Depois os dois exércitos, o árabe adiante e o de Filipe atrás, encaminharam-se para o Jordão em som de guerra.
Ao chegarem à margem oposta do Corazin vadearam o rio, e, como o simun, se estenderam desvastando tudo pelas
pacíficas tribos de Nefetali até Zabulon.
Antípas ouvia o lamento dos seus súditos, cujas gargantas eram segadas pelo alfarge do invasor. Estas maldições
lhe chegaram aos ouvidos: Maldita seja a mulher adúltera! Deus castigue os galileus porque permitem que os governe
um rei covarde e vicioso. Maldito seja Antípas, maldita seja Heródias, maldita seja Salomé!
Entretanto, Aretas e Filipe conquistando cidades e talando campos, chegaram a Tiberíades. Antípas, teve medo e
fugiu com sua esposa e sua infame afilhada. De noite rodeado dum punhado de mercenários romanos, expostos a cair
cem vezes cada dia em poder dos invasores, chegaram à torre de Stralon. A força de ouro, a lancha de um pescador,
correndo mil riscos, os transportou a Tiro. Esta viagem custou-lhes muitas noites, temiam navegar de dia. Heródias
enfermava; porém, dum mal estranho, desconhecido. Antípas via de dia em dia apagar-se a beleza daqueles olhos que
lhe tinahm feito cometer uma infâmia.
Salomé, encerrada na sua for, amaldiçoava aquele monarca desterrado. Por fim chegaram a Roma.
Antípas tinha uma esperança: Tibério, mas ai! Tibério tinha deixado o cetro de Roma. Outro reinava em seu
lugar. Chamava-se Calígula. Devia o império a um oficial chamado Machon, que, audaz e temerário, tinha afogado o
seu senhor Tibério debaixo de um montão de almofadas sentando-se sobre elas dizendo com burlesca entoação: Eis
aqui um tirano que morre por falta de ar, e não deixava respirar ninguém no império.
Quando Antípas soube que reinava Calígula, teve medo, porque Calígula era um louco que erguia templos às
suas amantes, que semeava com pó de ouro as areias do circo onde os gladiadores se despedaçavam para entreter o seu
ócio, que fazia puxar os carros os senadores, e que só em dezoito horas fez matar no hipódromo quinhentos ursos e
trezentas panteras e leões. Mas Calígula, de insensato, de louco, transformou-se depois da sua grave enfermidade no
mostro desprezível, assassino mais soez.
O seu primeiro crime foi monstruoso. Potísio, vendo enfermo o imperador, ofereceu a sua vida aos deuses se
salvassem o jovem Calígula; e Calígula, crueldade incrível, mandou, vendo-se restabelecido, que cumprisse a promessa.
Potísio foi passeado pelas ruas de Roma. coroada a fronte de louro, e depois arremessado da Rocha Tarpeia.
Calígula, louco sanguinário, covarde assassino, a quem fazia tremer a idéia da morte, tinha o capricho de se
apresentar em público com a barba de ouro imitando os falsos deuses da antiguidade. Porque Calígula, extravagante e
mentecapto, mandou construir uma cavalariça de mármore branco para o seu cavalo, cobriu-o com púrpura real,
adornou seu pescoço com fios de pérolas, servia-lhe cevada em pratos de ouro, fazia-lhe beber vinho na sua própria
taçaa, nomeou-lhe cavalheiro para seu serviço, e finalmente elevou-o à categoria de consul. Porque Calígula comprava
todo o grão das colheitas para que o povo morresse de fome, e exclamava de vez em quando: Ai! Se o povo romano
não tivesse mais que uma cabeça e pudesse cortar-se dum só golpe!...
Antípas, no seu horrível sonho, via todas estas coisas que ainda pertenciam ao domínio do futuro.
O covarde fugitivo da Galiléia apresentou-se temeroso ao tirano de Roma, e o tirano disse-lhe:
- O destêrro e a miséria são a morte mais dolorosa que pode dar-se a um rei. Tu ajudaste a conspiração de Sajan,
rei dos partos, contra Tibério. Pois bem, teu irmão Agripa é teu delator; eu dou-lhe as tuas riquezas e o teu reino, e
desterro-te com tua família para um canto de Espanha.
Antípas via tudo isto com a verdade aterradora dum pesadelo. Salomé abandonou aqueles pobres desterrados que
tinham fome e que viviam numa miserável aldeia da Serra Morena. Heródias foi atacada da lepra, e contagiou seu
esposo. Este mal isolou-o da gente. Os dois chegaram a odiar-se; por fim a morte pôs termo a tão miserável vida.
Mas o sonho de Antípas era pertinaz como a desgraça. Depois de mortos, viu como os seus corpos foram pasto
das aves de rapina. Viu Salomé cair num rio gelado e ficar com a cabeça foram e o corpo submergido no fundo. Salomé
fazia esforços horríveis para sair daquela situação desesperada; porém o cortante fio de gelo foi pouco a pouco segando
a garganta. Antípas viu a formosa cabeça da sua afilhada rolar por sobre a gelada superfície do rio, e o corpo afundar-se
nas profundidades da água. A cabeça tinha os olhos abertos, e a língua falava e dizia:
- Maldita, maldita seja a que me trouxe nas entranhas! Ela me disse: “Pede a cabeça de João”, e João era um
escolhido do Deus verdadeiro. Maldita, maldita seja a mulher rancorosa, pois por ela morro degolada! Mãe, tu querias a
cabeça do Batista; pois bem: toma também a minha.
E Antípas viu rolar aquela cabeça insepulta, que se chegou a ele dando-lhe um beijo. Então acordou. O suor
inundava-lhe o corpo. O medo fazia-lhe estremecer as carnes. A luz do dia que penetrava por uma janela do castelo
começou a serena-lo.
- Ah! exclamou. Que sonho tão horrível se fosse certo!
Aquele sonho devia cumprir-se alguns anos depois da morte do Nazareno.

CAPÍTULO IX

A APARIÇÃO

Transcorreram alguns dias. Madalena acabava de abandonar o leito. Durante a noite, a formosa donzela de
Mágdalo tinha tido um sonho fatigante. Desejando respirar o ar puro dos acmpos encaminhou-se para a janela. O sol
banhava com seus raios as árvores do jardim.

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Madalena, com os braços apoiados no peitoril da janela, respirava o perfumado ambiente do seu jardim,
deixando vaguear pelo espaço o indeciso olhar. Madalena parecia deleitar-se ouvindo os suaves trinados das aves,
aspirando o aroma das flores que subia até a sua janela, e contemplando o formoso panorama que se estendia ante seus
olhos. De súbito seu olhar parou num grupo de homens que por uma estreita vereda caminhava para o castelo.
Atrás daqueles homens viam-se caminhar algumas mulheres que levavam crianças pela mão. O grupo de
caminhantes chamou a atenção de Madalena. Seus olhos fitaram-se nos dois que abriam a marcha. Um era moço: teria
trinta e dois anos, e era formoso; mais uma formosura que fascinava. O outro, algum tanto mais entrado em anos, tinha
a barba branca.
Conversavam em voz baixa. O moço parecia fazer compreender ao velho alguma coisa que este não entendia. O
velho escutava com respeito o moço. Aquilo parecia estranho a Madalena, porque em Israel as cãs tinham em tudo a
preferência. Os dois viajantes detiveram-se a poucos passos do castelo, à sombra dum corpulento terebinto.
Madalena pode ver melhor aqueles homens que tinham chamado sua atenção. Nunca os cobiçosos olhares
daquela mulher tinham visto em ser tão perfeitamente belo. O fitar de seus olhos azuis era irresistível. A magestade de
sua nobre fronte tinha alguma coisa que não pertencia à terra. A barba, de côr castanha e separada em forma de
forquilha no extremo, era finíssima como a sede de Damasco.
Madalena, imóvel, absorta contemplava aquele homem sem poder compreender o que sentia.
Assim descorreram alguns segundos. Os caminhantes foram-se reunindo em redor do terebinto; porém ficavam
respeitosamente afastados alguns passos do moço da barba. Por fim este fez um gesto para falar, e encostou o corpo ao
tronco da árvore. Todos se assentaram no chão, para o escutarem.
O silêncio era profundo. Madalena julgou ver alguma coisa que resplandecia em torno daquele homem. Ainda
que a janela estava bastante afastada do lugar que ocupava o terebinto, Madalena ouviu a voz do misterioso orador. A
voz levantou-lhe um eco no fundo da alma. Estremeceu-lhe o coração dum modo estranho, tremeu-lhe o corpo apesar
seu. O homem dizia assim:
“Não há coisa encoberta que não se descubra com o tempo, nem coisa escondida que não se saiba.
As coisas que disseste nas trevas, serão ditas à luz do dia.
Mais é a alma que a comida, e o corpo mais que o vestido.
Qual de vós, por muito que o pense, pode ajuntar a sua estrutura um côvado?
Pois se não podeis o que é menos, poruqe andais afanosos pelas outras coisas?
Vede como crescem os lírios, que nem trabalham nem fiam; pois diga-vos que nem Salomão em toda a sua
glória, se vestiu como um deles.
Não andeis, pois, afanosos pelo que haveis de comer e beber.
Buscai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas.
Vendei o que possuis, e daí esmola. Fazei bolsas que não envelheçam, entesourai nos céus, onde o ladrão não
chega nem rói a traça. Porque onde está o vosso tesouro, está inteiro o vosso coração.
Quando fordes convidado para bodas, não vos sentes no primeiro lugar, não seja que ali haja outro convidado
mais honrado que vós.
Não convideis os ricos quando deres um banquete, porque esses o podem retribuir; convidai os pobres, os
paralíticos, os cegos e os coxos.
E sereis bem-aventurado, porque não tem como que corresponder-vos, mas sereis galardoado na ressurreição dos
justos”.
Aquele Homem continuou a falar po espaço de uma hora, enquanto descansavam os que o seguiam. As suas
palavras, sempre cheias de bondade, de mansidão, de ternura, comoviam de um modo maravilhoso o coração de
Madalena. Por fim pôs-se em pé, e levantando a cabeça, fitou os olhos cheios de pureza em Madalena. A pecadora de
Mágdalo não pôde resistir aquele olhar. Então lhe pareceu perceber uma voz que lhe dizia:
“Toma a cruz, e segue-me, mulher pecadora. Eu desci à terra para salvar o enfêrmo do corpo e alma”.
Madalena viu como aquele Homem abandonava a benéfica sombra do terebinto, seguido dos seus companheiros.
Parecia-lhe eu um perfume delicioso lhe penetrava no coração. Não se atrevia a mover-se do vão da janela.
O homem tinha desaparecido e Madalena escutava ainda as suas palavras, e via-o com todo o resplendor da sua
beleza sobrenatural, em pé, imóvel, junto da árvore. Por fim pôde arrancar-se daquele lugar, e, ao voltar a cabeça viu
um homem que, a poucos passos dela, no meio do seu camarim, a contemplava com doloroso gesto. Madalena soltou
um grito retrocedendo até topar com a parede da janela, porque aquele Homem era o mesmo que acabava de
desapareceer pelo caminho de Cafarnaum.
- Não temas, Madalena, lhe disse com uma voz cheia de doçura e mansidão.
- És tu uma sombra ou um realidade? perguntou com medroso acento Madalena.
- Sou Jesus de Nazaré, que vem dizer-te: Ovelha desgarrada, torna o teu aprisco... Teu irmão Lázaro e tua irmã
marta esperam-te com os braços abertos em Betânia. Deus perdoa as tuas culpas, porque desceu à terra a salvar os
pecadores.
Madalena cobriu o rosto com as mãos, como se o resplendor que despedia a fronte de Jesus a cegasse. Quando
descobriu o rosto, Cristo tinha desaparecido.
Naquela noite Boanerges foi como de costume, ao pé da janela da Pecadora de Mágdalo; mas a janela
permaneceu fechada. Em vão o Filho do Trovão arrancou da sua lira as mais doces notas: Madalena não ouviu o cantor.
A luz da aurora surpreendeu o músico junto dos muros de Mágdalo. O jovem amante deixou-se cair desfalecido sobre o
brando céspede do campo, e chorou.
- Madalena, pensava, zombou deste amor que me abrasa o peito.

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Já mui entrado o dia, viu sair do castelo duas mulheres. Ambas levavam o rosto coberto com o véu das virgens
de Israel e encaminharam-se a pé para Cafarnaum. Boanerges julgou reconhece-las; mas, duvidando, permaneceu um
momento indeciso. Quando andaram um bom pedaço, saiu do esconderijo e seguiu-as.
As mulheres chegaram a Cafarnaum. Pararam diante duma casa de modesta aparência em que se notava bastante
animação. Viam-se entrar e sair algumas pessoas. As duas mulheres que tinham saido do castelo de Mágdalo
perguntaram a um velho que se achava sentado à porta:
- Dize, bom velho, não é esta a casa de Simão, o fariseu?
- É, respondeu o velho.
- É certo que Jesus janta hoje nesta casa?
- É certo o que dizes.
- Agradecida, nobre ancião, e perdoa se te faço terceira pergunta. Está dentro o Cristo?
- Está.
Então uma das mulheress tirou o véu que lhe cobria o rosto e entregou-o à companheira.
Boanerges, que as tinha seguido e as observava oculto entre a multidão, reconheceu-a: era Madalena. A que ia à
casa de Simão, o fariseu, a donzela de Mágdalo? Por que perguntava com tanto afã pelo jovem profeta chamado Cristo?
Porque não lhe tinha aberto a janela na noite precedente?
Boanerges sentiu ferver-lhe no cérebro um inferno de idéias. Os ciúmes erguiam-se terríveis, ameaçadores,
naquela mente inflamada pelo amor. Entretanto, Madalena, com os formosos cabelos soltos pelas costas, e na mão uma
taça de ouro cheia de precioso unguento, penetrou em casa de Simão.
Jesus, os seus díscipulos, e algumas pessoas distintas da cidade, achavam-se ao redor de uma mesa. A comida
tocava o seu têrmo.
A entrada da mulher pecadora, tão desvantajosamente conhecida na Galiléia, produziu um murmúrio de
indignação. Como se atrevia a penetrar naquela casa, modêlo de honradez, a jovem que presidia aos escândalos de
Mágdalo?
Madalena, afligida pelo remorso da sua vida passada, pouco serena ante o desprêzo dos convidados, ajoelhou-se
aos pés de Jesus.
Cristo não voltou a cabeça para a olhar. Continuava em voz baixa conversando com o seu parente João, e com o
seu díscipulo Pedro. Nem as conjecturas dos convidados nem as lágrimas da Pecadora o distraiam.
Madalena, entretanto, derramava o precisio unguento sobre os pés do Messias, enxugando-os depois com
amorosa e terna solicitude com seus macios e finos cabelos. Então um dos convivas não pôde conter-se e disse ao que
estava ao seu lado, em voz baixa:
- Se esse Homem fosse profeta, bem saberia quem é e qual é a mulher que lhe toca, porque é pecadora.
Então Jesus levantou os amorosos olhos para os fitar em Simão, seu hospedeiro, que era o que tinha falado, e lhe
disse:
- Simão, quero dizer-te uma coisa. Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros e o outro
cinquenta; mas como não tivessem com que pagar-lhe, perdoou-lhe a ambos. Qual dos dois deve amá-lo mais?
Simão meditou um momento, e depois disse:
- Penso, Mestre, que aquele a quem mais lhe perdoou.
- Retamente julgaste, respondeu Jesus.
- E voltando-se para a mulher, disse a Simão:
- Vês esta mulher... Entrei em tua casa: não me deste água para os pés; mas esta com as suas lágrimas banhou-
me os pés e os enxugou com seus cabelos.
- Não me deste o ósculo; mas esta, desde que entrou não tem cessado de beijar-me os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo: mas esta com unguento me ungiu os pés.
Pelo que te digo: que perdoados lhe são seus muitos pecados, porque amou muito. Mas aquele a quem menos se
perdoa menos ama.
E disse a ela:
- Perdoados te são os teus pecados.
Alguns convivas murmuravam em voz baixa:
- Quem é este que perdoa os pecados?
Jesus, sem os escutar, disse à mulher.
- A tua fé salvou-te; vai-te em paz.
Madalena saiu por fim, lançando as ricas e preciosas galas aos pobres que estavam sentados junto à porta
esperando a saída de Jesus. Depois, no meio do assombro que produziu o seu procedimento, encaminhou-se para o seu
castelo. Então Boanerges a tornou a seguir. Quando julgou que ninguém podia ouvi-los, apertou o passo, e, colocando-
se diante de Madalena, disse-lhe:
- Detém-te, Maria!
Madalena e sua criada detiveram-se. Boanerges estava pálido com um convalescente.
- Esta noite, continuou, permaneci debaixo da tua janela. O sol ao nascer surpreendeu as lágrimas dos meus
olhos: porque chorei senhora. Já te arrependes da promessa que fizeste?
Boanerges, respondeu Madalena baixando os olhos: entre nós terminou tudo. Deus desceu à terra para ensinar-
nos, a nós pecadores, os gôzos da vida eterna. Toma tu, meu amigo, a cruz como eu, e segue-o, porque ele é a fonte da
vida luz.
Boanerges sentiu alguma coisa desconhecida no fundo da alma. Seus lábios cerraram-se.

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Madalena continuou o caminho.
Boanerges não teve valor para a deter; mas ai! aquele moço, todo amor, todo entusiasmo, era um cadáveer. Então
quis correr atrás daquela mulher que aformoseara os seus sonhos. Madalena tinha desaparecido. Apagou-se-lhe a luz
dos olhos, e exclamando com a dor duma alma despedaçada: “Minha mãe!” caiu no chão sem sentidos.
Uma hora depois, um homem montado num cavalo parou junto do corpo exânime do Filho do Trovão. Inclinou o
corpo para o chão para reconhecer se era um morto. Depois apeou-se.
- Pelos cornos do altar de Sion! Exclamou o cavaleiro. É o Cisne da Galiléia!
Pôs a mão sobre o coração de Boanerges.
- Ainda bate, tornou. Este rapaz percorre as tribos ao som da sua lira. É um entusiasta das musas. Façamos um
aboa obra: o que não é muito entre as muitas más que me pesam sobre a consciência.
Getas, era ele, colocou o corpo de Boanerges na garupa do seu cavalo e, montando depois encaminhou-se para
Cafarnaum, onde vivia a mãe de Boanerges.

CAPÍTULO X

Madalena fechou desde aquele dia as portas do seu castelo. Os seus alegres visitadores fizeram mil conjecturas
sobre aquele mudança inesperada.
Pouco tempo depois o antigo castelo de Mágdalo tinha mudado de dono. O novo proprietário era um rico
cavaleiro de Cafarnaum que enriquecera com as cobranças dos pobres contribuintes da Galiléia.
Madalena distribuiu todos os seus bens pelos necessitados. Com a consciência mais tranquila, encaminhou-se
para Betânia em busca de seus irmãos, para lhe pedir perdão pelas suas passadas culpas.
Entretanto, dois díscipulos de João chegaram às margens do lago de Genezaré, com a infausta notícia da morte
de seu mestre. Jesus, com alguns dos seus díscipulos, embarcou numa pequena barca, atravessando o lago da Galiléia;
encaminhou-se para o deserto de Betsaida, onde permaneceu alguns dias.
Madalena chegou a Betânia e, ao achar-se perto da porta daquela honrada casa que a vira nascer, caiu de joelhos
beijando humildemente o pó da terra.
Marta, a laboriosa, viu uma mulher que soluçava com a fronte colado no chão. Marta chamou Lázaro, e disse-
lhe:
- Vem, meu irmão; junto da nossa porta jaz uma mulher prostrada; deve estar doente, socorramo-la.
Os irmãos sairam, seu contentamento e seu pasmo foram imensos ao reconhecerem Madalena.
- És tu! exclamaram cobrindo-a de ternas carícias.
- Sim, eu sou Madalena, a jovem alegre e estouvada que após os prazeres mentidos e vãos do mundo abandonou
um dia este tranquilo lar; Madalena, que chora eternamente arrependida as suas culpas; Madalena, que vos pede perdão
de joelhos e que vem servir-nos. Porque lhe ressoou na alma a voz de Deus, e vendeu as suas terras para dar aos pobres,
despiu as galas que a enloqueciam, e só anela tesouros no céu, como lhe disse o Messias que derrama a luz e a fé pelas
terras de Israel.
Lázaro, apertou ao peito sua irmã vendoá tão arrependida. Marta chorava de alegria.
Madalena foi desde aquele dia a admiração de Betânia. Sua humildade não tinha exemplo. Assim decorreu um
mês. Jesus apareceu uma manhã em Betânia, seguido dos seus díscipulos e, como sempre, foi pedir hospitalidade a
Lázaro. A laboriosa Marta preparava tudo com a limpeza e prontidão que lhe eram proverbiais; porque, como mais
velha, fazia as honras da casa. Madalena, sentada a seus pés, ouvia-o com doce arroubamento. Os olhos da pecadora
arrependida contemplavam o divino rosto do futuro Mártir. Marta, numa das vezes que foi na cozinha à mesa,
repreendeu a irmã docemente, e dirigindo a palavra de Jesus, lhe disse:
- Senhor, não vês que a minha irmã me deixar servir só? Diz-lhe, te rogo, que venha ajudar-me.
Jesus levantou a cabeça, e enviando um sorriso cheio de bondade a Marta, disse-lhe:
- Marta, Marta, muito te apressas e conturbas com o cuidado de muitas coisas. Contudo, uma só coisa há que seja
necessária. Maria escolheu por certo a melhor parte, que não lhe será tirada.
Marta, ainda que não compreendia mui claramente as palavras do Mestre divino, não tornou a ocupar-se de sua
irmã. Naquela mesma tarde partir Jesus para a Galiléia. Ia despedir-se de sua mãe.
Entretanto, Madalena empregava as horas em fazer obras de caridade, em chorar as suas culpas passadas e
esperar tudo d’Aquele que lhe dissera: “Toma a cruz e segue-me”.
Um tarde, achava-se Madalena ajoelhada junto do sepulcro de seu pai, cujos conselhos tinha desatendido em
outro tempo. Seus olhos, cheios de dolorosas lágrimas, o seu rosto macerado pela penitência, tinham sofrido mudança
assombrosa. Dificilmente a teriam reconhecido os seus antigos adoradores.
Madalena chorava com a fronte apoiada no frio mármore do sepulcro. Um homem que entrara furtivamente no
jardim chegou até onde estava a pecadora arrependida e parou. Era Boanerges. Seu formoso semblante também tinha
sofrido pasmosa metamorfose. Pálido, macerado, com os olhos encovados e o olhar melancolicamente distraído, como o
homem a quem preocupa uma idéia fixa, já não era o jovem em cuja fronte resplandecia a altivez, em cujas pupilas
brilhava a luz misteriosa do gênio. Por espaço de uma hora permaneceu contemplando Madalena. Por fim disse-lhe
deste modo:
- Maria, eis-me aqui outra vez.

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Madalena levantou a cabeça. A presença do seu antigo adorador não a comoveu, porque para aquela alma tão
solenemente contrita só existia um pensamento: a vida eterna prometida pelo divino Mestre.
- Vai-te, Boanerges, lhe disse: o passado deve ser um sonho para ti como o é para mim. O porvir é todo o meu
afã. Deus tocou-me a alma com sua clemente mão. Vai-te.
- Nunca, senhora, respondeu o cantor. Enquanto me restar um sôpro de vida, hei de amar-te; o teu amor é para
mim como o ar que respiro, como o pão que me alimente. Podes não amar-me; podes, se assim te apraz, aborrecer-me.
Para que eu te ame não preciso do teu amor.
Madalena levantou-se e encaminhou-se para casa com passo tranquilo. Boanerges, juntando as mãos com gesto
suplicante, disse-lhe:
- Amo-te, Madalena, amo-te como nunca, e o teu desdém vai-me esgotando a vida: sinto-me morrer; tem pena de
mim.
- “Toma a cruz e segue-me”, disse o Salvador de Israel. Segue-o tu também Boanerges; despreza esta vida
passageira pela que Êle nos prometeu na eternidade.
Maria entrou em casa. Boanerges, inclinando a cabeça sobre o braço, chorou como uma criança.
Quando o sol começava a esconder-se atrás das montanhas do ocidente, enxugou as lágrimas e abandonou os
jardins de Madalena.

CAPÍTULO XI

A DESPEDIDA

Três anos havia que Jesus tinha abandonado Nazaré para espalhar pela terra de Israel a frutífera semente da sua
divina palavra.
Maria achava-se separada de seu filho. Terna, amorosa Mãe, que chorava em silêncio a triste soledade do seu
coração! Na dor, Deus tinha-lhe concedido três amigas que nunca a abandonavam. Chamavam-se estas Maria Cleofas,
mãe de Joaquim e de Simão; Maria Salomé, mãe dos filhos de Zebedeu; e Susana, espôsa do mordomo do tetrarca da
Galiléia.
Muitas vezes a aflita Mãe do Redentor do mundo costumava dizer às solícitas amigas:
- Corramos, irmãs; meu filho acha-se em Galiléia. Corramos a ouvir, confundidas entre a absorta multidão, as
divinas palavras de meu filho.
E então, aquela Mãe escolhida por Deus para trazer nas suas entranhas o fruto bendito da Redenção, velado o
rosto sob o espesso véu das filhas de Israel, e oculto o corpo atrás da gente que rodeava seu filho, escutava embelezada
o que mais tarde devia morrer no Calvário transpassando-lhe o coração de amargura.
Entretanto, a hora marcada por Deus aproximava-se. Jesus chegou às vizinhanças de Cafarnaum, de regresso da
sua última viagem. Numa vereda que conduzia à cidade, encontrou sua Mãe, acompanhada das três inseparáveis amigas
que nunca a abandonavam. A mãe lançou-se chorando aos pés de seu filho. Jesus levantou-a com doçura. Os díscipulos
e as mulheres separaram-se do terno grupo, que se tinha refugiado à sombra duma árvore.
Então, entre aquela amorosa Mãe e aquele Filho que caminhavam para o martírio, passou-se uma cena, um idílio
mavioso, cujas doces palavras se perfumaram com a puríssima essência das rosas de Zabulon:
- Saúde e paz, minha Mãe, lhe disse Jesus.
- Disseram-me, Filho e Senhor, que te diriges à cidade que mata os profetas, à ímpia Jerusalém, respondeu
Maria.
- Deus meu Pai, o ordena: a hora aproxima-se, devo cumprir as Suas ordens. A minha morte está decretada nos
céus, donde desci de boa vontade para morrer pelo homem. O meu sangue levará em breve a culpa cometida. O meu
sangue será a semente que há de dar amanhã o fruto à humanidade.
- Leva-me contigo, faz com que o meu peito exale o último suspiro com o teu.
- Tu, minha Mãe, hás de sobreviver-me mas não temas: será por breves instantes. No cume do Gólgota, pomba
solitária e dolorida, acalentarás com teus dolorosos gemidos a amargura da minha morte. Todos me deixarão; tu só,
ajoelhada ao é do lenho, confundirás as tuas lágrimas com o meu sangue. Porque tu, humilde violeta de Nazaré,
nasceste para sofrer agudíssimas dôres na terra do homem, e perfumar no céu a dolorosa agonia da raça humana. Porque
tu, rosa puríssima do vale de Zabulon, palmeira solitária de Betsaída, prestarás eternamente a tua benéfica sombra aos
desgraçados. Porque tu, arca selada onde se encerra a infinita clemência de Deus, serás o farol do perdido navegante, a
luz reanimadora que guia o passo do cansado peregrino; o teu nome glorioso será invocado nos momentos de
amargura, e a tua pureza resplandecerá eternamente com os raios luminosos do sol.
Maria chorava em silêncio, sem se atrever a interromper seu santo Filho.
- Não chores, mulher, lhe tornou Jesus, que breve nos tornaremos a reunir na morada eterna. Já o disse: a nossa
separação será curta, porque eu sou a tua essência e tu o meu alento; porque a minha vida está depositada na tua mesma
vida. No livro imortal está este mistério que talvez não o compreendas.

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- Ah, Senhor! exclamou a Mãe dolorosa. Revoga a tua setença; compadece-te da minha dor e amargura; lembra-
te que sendo Menino te alimentei com o suco dos meus peitos; que abrigado no meu seio te levei para o Egito; que o
meu maior prazer nas horas de agonia era beijar-te a fronte, branca como os cumes do sabino, pura como a gota do
orvalho que se esconde no perfumado cálix dos lírios do vale. Então na tua boca rosada como as rosas de Jericó,
vagueava um sorriso que era todo o meu encanto, toda a minha felicidade. Se tu partes, se me deixas, que vai ser desta
pobre Mãe abandonada?
- Cessa, Mãe e Senhora; do sacro céu desci a morrer pelo bem da humanidade; as tuas entranhas foram a taça
perfumada que recebeu o Verbo Divino. Não rogues mais; minha hora aproxima-se. A cruz me espera.
Jesus, acompanhado de alguns díscipulos, tomou o caminho do Jordão. Sua Mãe e as três Marias o seguiram a
uma distância respeitosa. As bondosas mulheres consolavam em vão, durante o caminho, a Mãe aflita.
No dia seguinte Jesus achava-se rodeado, como sempre do imenso auditório que ouvia as suas palavras, quando
se apresentou um homem coberto de pó e com as sandálias do viajante nos pés e o cajado do caminhante na mão. Vinha
de Betânia.
- Senhor, lhe disse o caminhante, Lázaro, meu amo, está doente; Maria e Madalena enviam-se para que te diga
que só Tu podes devolver-lhe a saude.
Jesus respondeu ao emissário;
- Essa doença não é para morrer, senão para glória de Deus, e para que seja glorificado o Filho de Deus por ela.
- Vinde, pois, lhe dizia o mensageiro.
Porém Jesus, que amava muito a família de Lázaro, ficou quatro dias naquele lugar. Durante este tempo, instruiu
os seus díscipulos, dizendo-lhes:
- O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens, e o farão morrer, e depois de morto, ressuscitará ao
terceiro dia.
Os díscipulos, não o compreenderam, guardaram profundo silêncio. Jesus pegou um menino e disse-lhes:
- Qualquer que recebe um destes meninos em meu nome, a Mim recebe. E todo aquele que escandalizar um
destes pequeninos que crêm em Mim, mas valeria que lhe atasse ao pescoço uma pedra de moinho, e o deitassem ao
mar.
Se a tua mão te escandaliza, corta-ª. Mas vale entrar maneta na outra vida, que ter duas mãos e ir para o inferno,
para o fogo que nunca pode apagar-se.
Se o teu pé te escandaliza, corta-o fora.
Se o teu olho te escandaliza, tira-o fora.
Os díscipulos ouviam-no absortos e assombrados.
Jesus continuou:
- “Filhos: quão difícil coisa é entrar no reino de Deus confiando nas riquezas!
Mais fácil coisa é passar um camelo pelo fundo duma agulha, que entrar um rico no reino dos céus.
- “Quem poderá salvar-se?” lhe perguntavam em voz baixa os apóstolos.
- “Para Deus todas as coisas são possíveis”.

CAPÍTULO XII

LÁZARO, VEM A MIM!

A multidão se agrupava à porta duma casa de Betânia, ansiosa por ver o cadáver dum homem justo e honrado,
que acabava de morrer. Nunca um mendigo implorara uma esmola diante daquela porta, sem que u’a mão o socorresse.
O sequioso encontrava a água com que matasse a sede devodora; o faminto, o pão desejado. E Deus-Homem, o Mestre
divino que percorria as terras de Israel, muitas vezes se hospedava sob o teto daquela casa caritativa. O povo de Betânia
adorava-º Mas Lázaro tinha morrido, e o povo chorava.
A gente, pois, esperava junto da porta para ver passar o cadáver do benfeitor do povo, do amigo do Messias; pois
naquela hora devia ser enterrado no mesmo jardim de sua casa, no sepulcro de pedra cosntruído pelos seus maiores. No
interior da casa ouvia prolongado lamento das carpideiras de ofício, e o melodioso e triste prelúdio das flautas fúnebres.
Um dos parentes de Lázaro, cuja barba branca e austero semblante lhe dava direito para dirigir a cerimônia
fúnebre, levantou-se enxugou as lágrimas, e disse às pessoas que rodeavam o cadáver:
- Conduzamos ao sepulcro os restos de Lázaro.
Todos se levantaram. Quatro mancebos pegaram pelos quatros cantos da cama que sustentava o corpo de Lázaro,
e levantaram-na. Então a comitiva saiu da casa. Os músicos iam adiante, depois as carpideiras, logo o cadáver, e por fim
os parentes e amigos. Aquela comitiva aumentou consideralvemente ao transpor a porta. O entêrro penetrou no jardim.
A lousa do sepulcro estava tirada. Quando o séquito fúnebre chegou junto da porta do sepulcro, um dos da comitiva
entrou nele e examinou o primeiro e segundo vestíbulo. Depois saudou e disse:
- Lázaro pode entrar na casa dos vivos.
Lázaro foi colocado no sepulcro.
Quando a pesada lousa cobriu a abertura ocultando o corpo de Lázaro, redobraram os lamentos.

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- Se Jesus houvesse estado conosco, se houvesse vindo ao nosso chamamento, Lázaro não teria morrido! dizia
Marta, chorando copiosamente.
Decorreram quatro dias. Durante este tempo, como Betânia só distava um quinze estádios de Jerusalém, muitos
amigos do defunto corriam a consolar as aflitas órfãs. U’a manhã disse-lhes um destes solícitos amigos.
- Jesus abandonou a Judéia e vem para esta terra. Vós, que tanto o amais, pedi-lhe que faça um milagre. O
Mestre foi grande amigo de Lázaro e o nome de Lázaro tem uma significação na Escritura, que deve alentar a vossa
esperança.
Apenas acabara o jerossolimitano de pronunciar as precedentes palavras, quando as duas irmãs viram entrar pela
porta de casa um homem que diza:
- Raboan viu-o: Joséf curou-se da surdez: corramos que já chega a nós. Está nos hortos vizinhos falando com os
seus díscipulos.
- Jesus vem a Betãnia, irmã, disse Madalena.
- Eu sairei em sua procura; fica tu a cuidar da casa.
Marta pegou no manto e saiu em busca de Cristo. A gente que encontrava na passagem, indicou-lhe o caminho
que seguia o Mestre. Não tardou muito a vê-lo. Como sempre, caminhava com magestoso e ao mesmo tempo humilde
passo, rodeado de crianças e mulheres. Quando Marta o viu, correu ao seu encontro e, caindo ajoelhada a seus pés,
disse-lhe:
- Senhor, se tivesse estado aqui, meu irmão não teria morrido!
- Ressuscitará teu irmão! lhe disse Jesus.
- Bem sei, tornou Marta, que ressuscitará na ressurreição do último dia.
- Eu sou a ressurreição e a vida, replicou Jesus com acento doce e tranquilo. O que crê em Mim, ainda que tenha
morrido viverá, e todo aquele que vive e crê em Mim nunca morrerá. Crês isto?
- Oh! disse com ardente fé Marta. Eu sempre cri que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, vivo, que vieste a este
mundo.
Jesus continuou em direção à aldeia de Betânia. Marta seguia-º Quando chegaram à porta do horto onde estava
enterrado Lázaro. Cristo, vendo Maria Madalena ajoelhada junto das pedras do sepulcro de seu irmão e chorando
amargamente, sentiu o ânimo aflito.
Algumas mulheres e parentes choravam também junto do sepulcro de Lázaro. Jesus, vendo tanto dor pela perda
do homem honrado e justo e lembrando-se de quer, em outro tempo, fora aquela casa o seu asilo seguro, quis fazer o
maior milagre que presenciaram os homens; e aproximando-se do sepulcro, disse, dirigindo-se aos que o rodeavam:
- Onde o pusestes?
- Vem, Senhor, e o verás, lhe responderam.
E Jesus chorou.
Disseram então os judeus? – Vêde como o amava.
- Pois Este que abriu os olhos do que nasceu cego, não poderia fazer com que este não morresse? falou outro.
- Tirai a lousa! disse Jesus aproximando-se da gruta que encerrava o corpo de Lázaro.
- Senhor, exclamou Marta, sem compreender o grande milagre que Jesus ia operar aos olhos de quantos o
rodeavam; Senhor vêde que cheira mal, porque é morto há quatro dias.
- Não te disse que, se cresses, verias a glória de Deus? tornou Jesus. Tirai, pois, a lousa. E Jesus, erguendo os
olhos ao céu falou: - Pai, graças te dou porque me ouviste. Eu bem sabia que sempre me ouves. Mas pelo povo que está
em torno o disse, para que creiam que Tu me enviaste.
Então Jesus, adiantou-se, e estendendo a mão em direção à gruta, disse com tom profético:
- Lázaro, vem para fora
Então sucedeu uma coisa sobrenatural. A porta do sepulcro caiu ao chão sem que ninguém lhe tocasse. Os que se
achavam presentes retrocederam alguns passos, porque viram sair o cadáver envolto no seu lençol e faixas mortuárias,
coberto o rosto com o sudário branco.
Como se levantara aquele corpo do chão, sendo um defunto e tendo os braços e aos pés presos pelas tiras de
pano? Ninguém o podia explicar; mas o que não duvidavam era que Jesus dissera: “Lázaro, vem para fora”; e Lázaro,
abandonou o sepulcro, obedeceu à voz do Salvador.
- Desatai-o e deixai-o ir, disse Jesus.
Lázario havia recuperado a vida.
Milagre portentoso, inolvidável. Os judeus cortaram as ligaduras de Lázaro. Enquanto todos rodeavam o que
pouco antes fôra um cadáver, enquanto as mulheres tocavam com assombro o corpo daquele homem que fôra por quatro
dias um defunto, Jesus desapareceu, seguido, como sempre, dos seus díscipulos.
De todas as partes sacudiram, ansiosos de conhecer o homem a quem o Messias dispensara um favor tão grande.
Êste fato maravilhoso chegou aos ouvidos dos fariseus, que tremiam nos seus palácios ante aquele profeta que
transformava a ordem das coisas, e que ameaçava destruir seu poder. Caifás, sumo pontífice aquele ano, disse no
sinédrio:
- Jesus é um transformador público: será preciso que a sua obra termine no cume do Gólgota.
No dia seguinte as três Marias e Susana, a mulher do mordomo do tetrarca, chegaram a Betânia. Marta, Lázaro e
Madalena deram-lhe hospitalidade em sua casa. Maria perguntou por seu Filho.
- Partiu para Jerusalém, onde faz amanhã a sua entrada.
A Mãe amorosa respondeu:
- Eu também, sem que êle me veja, quero presenciar seu triunfo.

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- Desde este momento, Mãe e Senhora, exclamou Madalena, a nossa missão é não o abandonar, porque os
perigos o cercam.
- Partiremos amanhã.
Sim, partiremos.
Maria, Mãe de Deus, Maria Cléofas, Maria Salomé, Maria Madalena e Susana, apenas o alvor do novo sol
banhou as altas palmeiras de Betãnia, encaminharam-se para Jerusalém, onde tantas lágrimas deviam derramar, onde
tantas dores deviam sofrer.

LIVRO DÉCIMO QUINTO

O CAMINHO DAS FLÔRES

CAPÍTULO I

A GRUTA DE JEREMIAS

O mês de Adar tocava sem fim. A noite estava escura, o céu nebuloso. O vento frio e úmido silvava nas fendas
das rochas e nos entrelaçados ramos dos espinheiros. Seriam onze horas da noite, quando alguns soldados sairam do
palácio do governador Pilatos e; chegaram à porta de Efraim, onde o “quem vem la”? duma sentinela os deteve.
- Abre-nos a porta, disse um dos soldados levantando a voz; trazemos uma ordem de Pilatos.
Pouco depois a porta ficava franca, e a partida, que se compunha de dez homens armados de lanças e espadas
saiu seguindo um homem desarmado que vestia uma túnica de lã à moda dos hebreus. O homem, que parecia um guia,
tomou caminho a Efraim e, apesar do escuro da noite, seu passo seguro e rápido mostrava a prática que tinha. Um dos
soldados disse ao que tinha ao lado, em língua germânica.
- Já sabes de que nos encarregou o centurião a respeito deste homem!
- Nada temas, lhe respondeu; a minha lança, se fugir, lhe buscará o coração pelas costas; se se defender, pelo
peito.
Depois caminharam, sem dizer mais palavras, coisa de um quarto de hora, o judeu adiante, os soldados atrás.
O guia parou.
- Que sucede? lhe perguntaram os soldados em língua hebraica.
- Nada, respondeu o guia.
- Então porque páras?
- Porque devemos torcer à esquerda. O monte está à esquerda do caminho de Efraim.
- Pois vamos pela esquerda, tornou o soldado.
- É que a noite está tão escura, que não vejo o atalho que conduz à gruta.
O guia tomou resolutamente pela esquerda e todos se calaram e o seguiram. Alguns momentos depois, tornou a
parar.
- Creio que me enganei!
- Pelo César, meu senhor, que se antes de meia hora não nos conduzes à gruta de Jeremias, esta noite é a última
da tua vida, Barrabás, exclamou o soldado.
E dirigindo-se a um companheiro, ajuntou:
- Ata-lhe uma corda ao pescoço e faze com que apresse o passo picando-lhe o costado com a ponta da lança.
Os soldados ataram uma corda ao pescoço de Barrabás.
- Agora, anda, acrescentou o soldado que parecia ser o chefe da partida.
Poucos momentos depois entravam numa gruta.
- Aqui, ao menos, não se sente o ar frio da noite. Acendei um archote e examinai todos os cantos desta maldita
cova, onde tão amargamente se lamentou em outro tempo o profeta Jeremias.
A gruta compunha-se de tres corpos. As paredes gretadas tinham profundas cavidades, suficientemente largas
para que um homem se escondesse nelas sem ser visto.
- Colocai-vos na gruta do melhor modo possível e o mais próximo da entrada, para que não escapem; eu estarei
com este réptil, no segundo vestíbulo. Ai do que adormecer! E sobretudo, chegando a hora, cuidado de não matar
ninguém; é melhor que o espetáculo se dê no Gólgota. É preciso divertir a plebe de vez em quando!
Enquanto os soldados de Pilatos esperavam emboscados o momento de se lançarem sobre a presa, explicaremos
nos sucintamente alguma coisa que o leitor não sabe.
Na noite em que Gestas, o bandido encontrou Boanerges desmaiado no caminho ia justamente a Cafarnaum à
casa de Enoé, onde lhe tinham dito que se achava Dimas, seu companheiro. Gestas depositou nos braços da aflita mãe,

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Boanerges, que recobrou em breve os sentidos; Enoé à cabeceira da cama de seu filho, lhe prodigalizava toda a espécie
de carícias.
- Disse-me a nossa gente que deixas o ofício, querido Dimas, falou Gestas.
- Disseram-te a verdade, amigo Gestas.
- Fazes mal. Remorde-te a consciência? Tu não és rico...
- Para que quero eu o dinheiro? Se o tivesse reparti-lo entre os pobres, como aconselha o divino Mestre...
- Aflige-me a tua obstinação.
- E a mim a tua cegueira
- Não insisto mais, mas vou pedir-te um favor. No dia 7 do mês de Adar, dia em que todos os israelitas celebram
o rigoroso jejum pela morte de Moisés, à meia noite, devo reunir-me com toda a gente no barranco de Garizim, em
Samaria; eu prometi-lhes que tu acudirias à reunião para dispores as correrias do mês de Nisan, pois desde o dia 1, que é
o jejum pela morte dos filhos de Aarão, até o dia 15 em que se celebra em Jerusalém a festa da Páscoa, todos os
habitantes das tribos se põem em movimento, como sabes, desejosos de cumprir a lei. A nossa companhia deve dividir-
se em tres pelotões: um ocupará o monte da Judéia; outro as ribeiras do Jordão, percorrendo desde Jericó a Tiberíades, e
o terceiro, que é o mais exposto, deve percorrer as vizinhanças da cidade, tão depressa deve achar-se no vale de Gebn-
Hinon, como nas escarpadas veredas do caminho de Emais, percorrendo a torrente do Cedron, ao longo do vale de
Josafá. Este é o meu pensamento e espero que a presa será esplêndida: mas alguns recusam-se; a desordem começa a
tomar incremento, e eu rogo-te que vás à reunião para alentar o seu valor, que decai desde que nos abandonaste.
Dimas resistiu; por fim, cedendo aos rogos de Gestas, prometeu-lhes que iria à reunião.
No dia 7 do mês de Adar, a essa hora em que o sol esconde atrás das encostas do Ocidente os últimos raios, um
homem caminhava com receioso passo por uma barranca do monte Garizim. Tinha um aspecto feroz. As barbas e
cabelo seram vermelhos e áspero como a cedosa juba do leão. A testa deprimida, os beiços grossos, o nariz achatado e
os olhos extremamente pequenos davam-lhe um aspecto de ferocidade selvagem. O seu vestuário asqueroso, coberto de
lama e sangue, não tinha feito nem côr. Levava um largo punhal na mão direita, e um cabrito recem-degolado agarrado
pelos pés e lançado sobre o ombro.
Aquele miserável, era Barrabás; acabava de ferir um pastor para roubar algumas moedas de cobre e um cabrito.
Barrabás corria, para fugir.
Quando cheou ao extremo do barranco, procurou entre as matas a entrada duma cova e introduziu-se nela.
Aquele lugar ignorado que habitavam de vez em quando as feras e os bandidos de Samaria, pareceu tranquilizar o
agitado espírito de Barrabás. A caverna era imensamente grande. No primeiro vestíbulo desembocavam cinco galerias
abertas pela mão da natureza, na mesma rocha. Barrabás introduziu-se numa delas, perdendo-se dentro em pouco entre
as sombras. Depois decorreram algumas horas, e quatro bandidos, entraram na cova, e acenderam uma fogueira. Pouco
depois apresentaram-se outros quatro, e depois até dezesseis. Finalmente Dimas e Gestas entraram na caverna. Todos se
sentaram ao redor da fogueira.
- Queridos companheiros, disse Gestas, os meus rogos não conseguiram nada: Dimas está resolvido a abandonar-
nos.
Houve um momento de silêncio.
- A profissão do bandoleiro é para gente moça, disse Dimas, interessado com a dolorosa atitude de seus antigos
camaradas. Quando as cãs assomam à barba, o homem precisa descansar e pensar em Deus.
- Tu és forte e moço, disse Gestas.
- Tenho cinquenta e cinco anos; mas não é a idade que me oprime; é a consciência. A palavra de Deus ressoa-me
no fundo da alma; não insistas, é-me impossível seguir-vos.
Os bandidos não se atreveram a refutá-las.
- Cumpra-se a tua vontade, murmurou Gestas.
- Assim seja, disseram quase em côro os outros.
- Agora, por minha vez, tenho que pedir-vos um favor, disse Dimas:
- Fala, escutamos-te, respondeu Gestas.
- Jesus de Nazaré irá este ano à cidade santa celebrar a Páscoa, acrescentou Dimas; é provável que os doutores de
Jerusalém, que querem perdê-lo, procurem apoderar-se da sua santa Pessoa, e neste caso eu tornaria a empunhar a
azagaia para defender o Salvador de Israel; jura-me tu, amigo Gestas, que no dia 14 do mês de Nisan, à meia noite em
ponto, estarás na gruta de Jeremias disposto a receber e cumprir as ordens que eu te transmitir?
- Lá estarei sem falta, respondeu Gestas com voz firme.
- Que Deus conserve tua memória.
- Não temas que esqueça, se vier, a palavra que agora te dou pelas cinzas dum pai.
Dimas levantou-se e disse:
- Agora, permiti que me retire.
E Dimas saiu da caverna. Gestas, vendo-se só com os companheiros, informou-os do plano que deviam seguir.
Se os bandidos não estivessem tão preocupados, indubitavelmente teriam visto dois olhos que brilhavam na escuridão.
Eram os de Barrabás, que tinha ouvido tudo.
Alguns dias depois, um destacamento de soldados germanos dos que serviam Pilatos, apanhava um assassino que
se chamava Barrabás. Êste nome era pronunciado com repugnância em Israel, feroz e imundo. Os mesmos bandidos o
repeliam do seu seio, porque o seu punhal mais de uma vez se assanhara contra as débeis crianças, contra as indefesas
mulheres, contra os pobres velhos. Indubitavelmente a cruz era o futuro que esperava aquele infame.

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Barrabás foi encerrado num cárcere subterrâneo da torre Antônia. Um dia queixando-se ao carcereiro da raça de
favas cozidas que lhe davam por único alimento, fez-lhe a seguinte proposta:
- Tenho muita fome! Quando era livre, comia um cabrito todas as manhãs, ainda que fosse cru. A morte é
preferível à fome. Se dobras a ração até o dia em que o juiz romano me mande crucificar, comprometo-me a entregar-
vos os dois bandidos mais temíveis da Palestina: Dimas e Gestas.
O carcereiro participou o oferecimento a Pilatos. Aceita a proposta, saíram de Jerusalém guiados por Barrabás,
foram emboscar-se na intrincada gruta de Jeremias e esconderam-se depois de apagarem o archote, esperando o instante
de se lançarem sobre a presa. O silêncio era sepulcral. Nem o vento da noite gemia entre os espinhos, nem o mocho
piava sobre os secos ramos das árvores. Assim decorreu uma hora.
- Dimas! ouviu-se uma voz.
- Gestas! respondeu o que esperava.
- Estamos ambos sós?
Gestas deu um salto e desembainhou o punhal. Dimas não se moveu do lugar.
- É inútil, disse a mesma voz que os tinha sobressaltado, que trateis de defender-vos; olhai em redor de vós.
Gestas e Dimas viram-se cercados de soldados. Barrabás saiu duma das galerias com o capitão romano que trazia
um archote aceso na mão. Gestas e Dimas entregaram-se.
- Vendeste-me Dimas? perguntou Gestas.
Dimas respondeu a esta pergunta com um olhar desdenhoso.
- Não foi ele, fui eu, disse Barrabás soltando um gargalhada. É tão grato ir ao Gólgota, acompanhado de antigos
amigos!
Os soldados ataram fortemente os tres bandidos, e sairam.
- Não se perdeu a noite, querido Nacor, disse um soldado ao companheiro.
- Não, por certo; tendo estes tres morcegos nos cárceres da torre Antônia, a Palestina poderá dormir sossegada.
- Ora! O pássaro engaiolado pode fugir; mas o pássaro morto já não voa.
- Tens razão, a crue é o melhor cárcere do mundo.
Depois entraram em Jerusalém, e os presos foram depositados, carregados de ferros, nas úmidas masmorras da
torre Antônia.

CAPÍTULO II

O DIA 13 DE NISAN

Cidade santa, a muito amada de Salomão, por motivo da celebração da Páscoa, apresentava aspecto
surpreendente. A muralha de Neemias encerrava entre os seus braços de tosca pedra um aumento de mais de duzentas
mil pessoas.
Jerusalém, manancial das crenças israelitas, abrigava em seu seio todos os filhos de Abraão, que acudiam
guiados pela fé dos seus maiores a cumprir os preceitos da lei.
O cordeiro pascal esperava a hora do sacrifício.
Os sacrificadores, armados do cutelo matador, olhavam com indiferença a paciente vítima.
Os sacerdotes, ataviados com suas resplandecentes e sagradas vestiduras, sacudiam as verdes espigas no degrau
do templo de Sion.
De toda parte vinham mercadores ambulantes, cuja indústria nômade segue a multidão, prestando animação com
suas destemperadas vozes às romarias e festas populares.
Todas as casas estavam repletas de forasteiros.
As tendas levantadas no mercado das Madeiras apresentavam aspecto pitoresco.
Durante os tres dias da primeira e mais popular festa dos hebreus, reinava na cidade sacerdotal uma liberdade
sem limites. As portas da cidade permaneciam abertas e a multidão entrava e saía livremente sem que os soldados do
juiz romano cruzassem as lanças sobre o peito dos transeuntes.
Viam, pois, por toda parte, robustos dromedários conduzindo sobre os encurvados dorsos os seus nobres donos;
pacientes asnos seguiam com tardo passo os inquietos corcéis; homens, mulheres e crianças que, em fervente enxame,
se agitavam dum para outro recindo da cidade, buscando onde se hospedassem. Jerusalém, contemplada de lugar
eminente, parecia um imenso formigueiro, remexido pela cauda duma serpente. Mas que importavam os incômodos da
peregrinação aos filhos de Jaco? O importante, o necessário, o preciso para eles era celebrarem a liberdade da sua raça,
era santificarem o memorável dia em que os descendentes de Abraão foram visitados pelos anjos do Senhor para
sacudirem o jugo do Faraó.
Neste estado se achava Jerusalém na noite de 13 de Nisan, quando dois homens envolvidos em compridos
mantos penetraram pela porta das Águias que era a mais próxima do monte das Oliveiras. Os dois homens caminhavam
com passo receoso, escondendo parte do rosto com os panos do manto. Um era moço; teria ao muito trinta e quatro anos
de idade. A túnica, cor de corinto carregada, e o manto pardo, caiam-lhe com certa elegância sobre o bem formado

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corpo. O rosto era formoso, a cor do cabelo louro claro, e a barba muito pouco visível. Os olhos dum azul puríssimo,
respiravam bondade. Nos seus lábios via-se sempre um sorriso carinhoso. Este homem chamava-se João, filho de
Zebedeu. O outro, que caminhava ao seu lado era mais velho: teria cinquenta anos. Sua barba, grisalha e áspera, o nariz
aquilino, o olhar altivo e as feições pronunciadas, davam-lhe um ar de audácia aventureia que muitas vezes se tornaram
sombria. O traje era igual ao do companheiro: chamava-se Pedro, e era filho de Jonas.
Quando os dois noturnos e silenciosos judeus passaram a porta das Águias e se acharam na cidade de Davi,
torceram à direita, e atravessando parte do arrabalde de Ofel, internaram-se na cidade até chegarem ao palácio de
Caifás, donde diretamente chegaram à piscina grande de Sion.
Durante esta caminhada, os silenciosos viajantes dirigiram olhares prescrutadores por toda parte, como se
procurassem alguma coisa. Quando chegaram à piscina grande pararam.
- Irmão, disse Pedro a João, vês ali o que procuramos?
- Sim, agora põe o cântaro sobre a cabeça.
- Sigamos, pois, esse homem.
- Sim, e cumpramos o que nos ordenou o Mestre.
Esta conversação era a respeito de um homem cujo traje dizia bem claramente que era alguma criado de casa
abastada. O homem, depois de encher o cântaro na piscina, encaminhou-se para uma rua situada entre o palácio de
Caifás e o lugar onde debaixo da quadrúpla tenda fora depositada a arca à volta do deserto. Pedro e João seguiram o
homem do cântaro; mas depressa este, conhecendo a espionagem de que era objeto, parou, e encarando os díscipulos de
Jesus, disse:
- Porque seguis os meus passos?
- Prossegue teu caminho, irmão, e não temas; o que pode mandou que sigamos os teus passos, disse João.
A doçura daquela voz dissipou os receios do homem do cântaro. Caminharam e o homem do cântaro parou
diante de uma casa de antiga construção.
- Esta é morada de meu amo, disse o criado.
- Entra, pois, e dize-lhe que aqui o esperam dois homens, tornou João.
O criado obedeceu, e os dois discípulos de Jesus encostaram-se aos muros do vestíbulo, dispostos a esperar. Em
breve se apresentou um homem de aspecto venerável que trazia a túnica branca dos essênios. Um criado o precedia
com um archote aceso na mão.
- Diz o meu servo que procurais o dono desta casa.
- Sim, irmão, responderam ao mesmo tempo os dois apóstolos.
- Sou eu, pois; que me quereis?
- Somos dois discípulos de Jesus da Galiléia, continuou Joaõ, que nos disse: “Ide à cidade e encontrareis um
homem que leva um cântaro de água; segui-o até à casa onde entrar, e dizei ao pai da família da casa: “O Mestre te diz:
Onde está o aposento em que tenho de comer a Páscoa com os meus discípulos? E ele vos mostrará uma grande sala
adornada; prepara-a ali”. Nós, seguimos as ordens do Salvador, entramos há pouco na cidade santa, vimos teu criado,
seguimo-lo, e aqui nos tens.
- Na minha casa de Betânia passou a última Páscoa o Cristo. Já não vos lembrais de mim?
- Sim, disse Pedro, reconheci-te: tu és Heli, cunhado de Zacarias e de Hebron. É esta a tua casa?
- Não, é a casa de Nicodemos, o Fariseu, e de José de Arimatéia. Eu alugueia-a para que Jesus celebre a ceia
convosco. Segui-me e vos mostrarei o aposento destinado à ceia pascal.
Heli tomou o archote das mãos do servo e entrou, seguido de João e Pedro, em sua casa.
João e Pedro subiram ao andar principal da moderna casa construída sobre as ruínas do antigo circo dos fortes de
Israel. Um pigmeu se tinha levantado sobre a ossada dum gigante. A sala destinada ao cenáculo estava dividida em tres
partes por umas cortinas imensas de pano de Tiro e ricos tapetes da Pérsia. Estas repartições estavaam profusamente
iluminadas com lâmpadas e serpentinas de bronze. As paredes estavam pintadas de branco desde a altura dum homem
até ao teto e a parte inferior coberta de tapetes. Multidão de tornos, à maneira de ganchos, rodeavam estes tapetes. Ali é
que os convidados deviam pendurar a roupa. Na peça do centro via-se uma mesa imensamente comprida, cercada de
leitos primorosamente trabalhados. Nesta mesa havia treze talheres.
- Será aqui, disse laconicamente Heli.
Os dois discípulos inclinaram-se e, como nada mais tinham de fazer, pediram licença para se retirarem e
participar o que tinham visto ao seu Mestre.
- Ide, lhe disse o hospedeiro, e saudai o Mestre em meu nome dizendo-lhe que o espero.
Os dois emissários do Redentor sairam daquela casa pela porta das Águias e encaminharam-se para Betfagé,
onde os esperava o divino Mestre.

CAPÍTULO III

HOSANA NAS ALTURAS

Jesus, no caminho de Jericó a Betânia, tinha parado alguns instantes para que descansasse a gente que o seguia.

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- Vamos a Jerusalém, disse aos seus discípulos, e serão cumpridas todas as coisas que escreveram os profetas do
Filho do Homem, que será escarnecido, açoitado e cuspido. E depois de o açoitarem lhe tirarão a vida e ressuscitará ao
terceiro dia.
Os apóstolos, em cujos corações vivia rica e poderosa a fé, guardavam silêncio sobre alguma coisa que não
compreendiam. Quando Jesus chegou à aldeia sacerdotal de Betfagé, mandou dois dos seus discípulos a Jerusalém.
Estes eram João e Pedro, os que deviam seguir o homem do cântaro, como deixamos explicado no capítulo precedente.
Jesus, com os apóstolos, passou a noite de 13 em Nisan na aldeia. No dia seguinte, quando os raios do sol começaram a
estender-se sobre as copas das oliveiras de Getsemani, Cristo disse aos discípulos:
- Ide ao lugar que está em frente de vós e achareis um jumentinho preso, no qual não montou ainda homem
algum; desprendei-o e trazei-º
Os discípulos trouxeram o jumentinho; puseram os mantos sobre o paciente lombro do animal, e Jesus
montou,dizendo:
- Agora vamos a Jerusalém.
Todos se puseram a caminho.
Entretanto, a notícia de que o Messias salvador de Israel se aproximava da cidade, correu com rapidez. Uma
multidão imensa se agrupava, para o ver passar, na embocadura da estrada de Betânia. Os homens levavam palmas nas
mãos; as mulheres espalhavam flores para alfombrar o caminho que em breve devia ser santificado pelo Cristo. Por toda
parte se ouviam brados de hosana, exclamações de entusiasmo, cânticos de alegria.
E os homens, as crianças e os velhos repetiam com entusiasmo: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor!
Hosana, hosana, Paz no céu e... glória nas alturas!”
Cinco mulheres colocadas numa pequena eminência dirigiam, ansiosas, os olhares para o lugar por onde devia
vir o filho de Davi. Uma daquelas mulheres levava um largo manto azul que a cobria. No seu formoso semblante
brilhava a felicidade, o gozo, a alegria. Era ela a Mãe amorosa do Mestre divino. Confundida com a multidão, rodeada
das suas leais companheiras, que nunca a abandoram, queria deleitar-se com o triunfo d’Aquele que trouxera nas
entranhas. Felicidade passageira, gozo momentâneo, que devia tornar-se breve em dolorosa amargura!
Seus olhos puros e radiantes como a tênue luz da aurora, iam em breve converter-se em mananciais inesgotáveis
de pranto.
De vez em quando via-se entre a alegre multidão um ou outro homem de rosto carrancudo, de olhar ameaçador:
era um fariseu, um inimigo irreconciliável d’Aquele que baixara à terra a tirar-lhe o manto da asquerosa hipocrisia, e
que lhes chamavam raça de víboras. Entre o entusiasmo geral, só os romanos se mostravam indiferentes. Soldados
mercernários, só adoravam Tibério, que lhes pagava. Para estas planta exóticas, na Palestina, tudo era indiferente,
exceto o ouro e a guerra.
A águia romana tinha feito prêsa da cidade santa. Suas robustas asas estendiam-se sobre o templo de Sion, e eles
deixavam dormir as espadas nas bainhas e o escudo num prego à cabeceira da cama, confiando em que a vítima não se
escaparia. A romaria maior, a festa religiosa mais popular de Israel, era-lhes indiferente.
Mai ai daqueles desgraçados descendentes de Abraão se houvessem soltado um grito de ódio, ou uma ameaça
contra o senhor de Roma, porque então aqueles indiferentes filhos da guerra teriam desembainhado as espadas e as
cabeças judaicas teriam caído como as espigas sob a foice do segador!
- Vêde-o! Lá vem, dizia um homem aos que o rodeavam. Eu era cego de nascimento: Jesus pôs-me o dedo sobre
as cerradas pálpebras e, imediatamente, vi a luz querida do sol. Bendito seja o Senhor, que vem a nós!
- Eu estava entrevando havia dez anos numa cama, ajuntou outro: “Deixa o leito e levanta-te”, disse; e levantei-
me, e me vi bom, forte, e ágil como me vedes. Bendito sejas Jesus! Ele é o Messias verdadeiro, o Filho prometido de
Adonai.
- Ei-lo ali. Meu Jesus! exclamou Maria, estendendo um braço em direção ao caminho de Betânia.
O povo começou a mover-se. Todos queriam vê-lo passar. Todos desejavam tocar-lhe as vestes, porque davam
saúde ao corpo. Todos anciavam ouvir-lhe as suas palavras, porque eram a fonte da consolação, o fecundo manancial da
fé.
Jesus aproximou-se dos muros da cidade santa humildemente montado num jumento, rodeado dos discípulos e
dum povo faminto do amor e consolação.
E as pessoas gritavam: “Hosana! Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!”
E todos se comoviam ao vê-lo, e diziam: “Quem é este?”
E alguns respondiam: “Este é Jesus, o Profeta de Nazaré da Galiléia”.
- Que fez esse homem para que todos o adorem? perguntava um soldado de Pilatos a uma mulher.
- A sua voz aplaca as tempestades, os seus pés caminham sobre a superfície das águas sem que o seu corpo se
afunde, e quando a sua palavra diz aos mortos: levantai-vos” os mortos levantam-se e vivem como tu e como eu.
O soldado punha-se então na ponta dos pés para o ver passar e, sem poder da razão disso, exclamava com os
outros:
- Hosana nas alturas! Bendito o que vem nome do Senhor!
No meio do contentamento, do entusiasmo geral, os fariseus e os doutores da lei que tinham acudido impelidos
pela curiosidade a ver Jesus, murmuravam:
- Desconfiemos desse Galileu que faz milagres que ninguem pode fazer.
- Devemos prendê-lo antes que Israel se levante e venham os romanos e nos destruam como uma manada de
ovelhas, disse outro.
Mas ninguém se atrevia a pôr a mão no jovem Mestre.

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Jesus, cuja humildade era infinita, cuja mansidão era inesgotável, dirigia em redor de si olhaares de doçura e
sorrisos de amor divino. Quando chegou junto aos soberbos muros da cidade deicida, deteve o passo da modesta
cavalgadura.
O povo apinhou-se em redor dele e guardou profundo silêncio, porque Cristo tinha mostrado com seu olhar que
ia falar e as suas palavras eram um tesouro inapreciável para o povo de Jacó.
O chão estava semeado de flores, palmas e mirto. O silêncio foi tal que até as aves que saltavam de ramo em
ramo suspenderam os seus trinados. Os raios claros e brilhantes do sol caíam como chuva de ouro sobre a formosa
cabeça de Jesus. Ao olhá-lo, estremeciam todos, porque notavam no jovem Mestre alguma coisa da divindade de
Jeová.
Jesus chorava com a radiosa fronte inclinada sobre o peito. Depois dum momento de doloroso silêncio, ergueu os
olhos, e disse dirigindo-se à cidadem, com uma voz que chegou até os últimos, com a mesma vibração, com a mesma
clareza que aos primeiros:
- Jerusalém, Jerusalém! A minha alma estremece de dor, contemplando os teus soberbos muros. Oh, cidade
ingrata, a quem tanto tenho amado e distinguido! Eu quis recolher teus filhos como a galinha o faz aos seus
pintainhos, e tu pretendes dar-me a morte... O teu louco orgulho, a tua vã soberba há de perder-te, pobre povo da
Judéia. Serás serva; a águia imperial estende o seu vôo pelo orbe; suas robustas garras rasgarão o pudibundo véu das
tuas virgens, e a coroa de louro dos teus senhores se manchará como o lodo da terra. Hostes estrangeiras percorrerão as
doze tribos de Israel; as tuas altivas torres cairão ao choque das armas; o ar trará a peste no seu seio; tuas mulheres serão
violadas: porque virão dias contra ti em que os teus inimigos te cercarão com trincheiras, e te porão cego, e te
apertarão por toda parte, e de derribarão em terra, e não deixarão em ti pedra sobre pedra.
Cessou a voz angustiosa de Jesus.
Doloroso pranto corria dos olhos dos ouvintes.
A comitiva continuou a interrompida marcha e as palmas tornaram a agitar-se, e as flores tornaram a cair ao spés
do Messias, e os coros das virgens ressoaram no espaço, repetindo ao som dos saltérios e das harpas:

De flores e palmas o solo junquemos.


Teçamos coroas de mirtoe laurel,
Que hoje abre o céu suas portas
Ao Deus de Israel.

CAPÍTULO IV

PÔNCIO PILATOS

Enquanto Jesus caminhava em triunfo para o templo de Salomão, na cidade de Beceta, o tetrarca de Galiléia, o
infame Antípas, acossado pelos remorsos, julgava que Jesus era o Batista que tão infamemente mandara degolar em
Macheronte. Herodes tremeu no seu palácio, porque o clamor entusiástico da entrada de Jesus em Jerusalém lhe
chegava aos ouvidos.
Herodes, que por uma questão de família estava de mal com Pilatos, governador romano, não se atreveu a enviar
um dos seus cortesãos ao juiz estrangeiro para que castigasse a insolência daquele transformador da ordem pública que
tinha alvoroçado Jerusalém.
Deixamos, pois, o assassino de João lutando com todo o medo e com os remorsos, e entremos no palácio do
governador romano. Naquele bairro erguia-se a inexpugnável cidadela Antônia, que Herodes, o Grande, reedificou em
honra do triúnviro Marco Antônio, e cujo nome tinham respeitado os seus sucessores Augusto e Tibério.
Aos pés deste gigante de granito e de mármore, encostado ao flanco setentrional, achava-se um palácio, palácio
que era quase uma povoação pelas suas imensas edificações, habitado na época de Jesus Cristo pelos juiz romano.
Seiscentos soldados viviam entre a cidadela Antônia e o palácio. O espanhol Pôncio Pilatos havia seis anos que
daquelas ogivais janelas, daquelas robustas torres, vigiava o sono dos descendentes dos Macabeus. Tibério tinha pôsto
toda a sua confiança naquele soldado mercenário. Pilatos era homem de ação, valente até à temeridade. Seu sono era
leve como a Águia. Sabia que o povo de Jerusalém o odiava e estava sempre pronto para repelir qualquer insurreição.
Mais duma vez a espada dos aventureiros do Tibre, durante o governo de Poncio, tinha derramado o sangue
israelita pelas ruas de Jerusalém. Na história do seu governo achavam-se tres grandes charcos de sangue que Tibério
aplaudiu do solitário ninho de Capreia, para onde se tinha retirado.
O primeiro, foi em um dia em que o povo de Jerusalém viu entrar pelas portas de Damasco uma legião
estrangeira que levava nos estandartes a efígie de Tibério. O povo sublevou-se, porque aquilo era contrário à lei. Esta
sublevação fez desembainhar a espada a Pôncio, e as mães e as esposas de Jerusalém choraram amargamente. O
segundo, foi quando extraiu violentamente do tesouro sagrado todo o dinheiro para fazer um aqueduto. Pôncio ouviu da
sua guarda bramir o povo e, armando-se da espada, saiu a impor-lhe silêncio. O terceiro motivo foi o mais injusto de
todos: o sangue correu em abundância pelas vizinhanças do templo de Sion. Os israelitas não queriam reconhecer outro
senhor que Adonai, e recusaram-se a brindar em honra de Tibério. Pôncio castigou pela terceira vez os rebeldes.

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Desde então, o sono do governador era desassossegado. Sempre se achava disposto a sufocar o grito de liberdade
que tão pronto está a pronunciar um povo escravo.
Este homem, cuja energia o tirano de Roma admirava, cujo valor e firmeza o último dos soldados conhecia,
pouco depois da entrada de Jesus em Jerusalém devia cobrir seu nome de opróbrio com um rasgo de fraqueza
inqualificável. Ele ainda não tinha completado os quarenta anos. O seu ademã era altivo e marcial quando o capacete
lhe oprimia a fronte e a couraça o peito; mas quando deixava os apresos de guerra, quando perfumava o cabelo e se
vestia com túnica laticlávia, então o soldado desaparecia sob a forma dum cortesão de Roma.
Tibério amava este servidor, que se unira em casamento com uma parente um tanto remota, bela, rica e nobre,
por cuja influência o senhor do Tibre lhe concedera o governo da Judéia. Esta romana chamava-se Cláudia Procia.
Pilatos, que, velava sempre, viu duma seteira da cidadela Antônia que o povo corria e se apinhava pelo caminho
do monte das Oliveiras. Como a cidade estava infestada de forasteiros e, além disso, dizia-se que um homem, um
sedicioso, percorria as tribos pregrando máximas estranhas. Pôncio começou a receiar e, chamando um centurião, disse-
lhe:
- Flávio, indubitavelmente ocorre alguma coisa estranha na cidade. Sabes o hebraico com um rabino de Jericó;
disfarça-te em judeu e vai ver o que há.
Algumas horas depois, Pôncio viu entrar no seu camarim o espião Flávio, pálido e demudado.
- Senhor, um Homem a quem não chegaram em prodígios todos os deuses do Olimpo de Homero.
Pilatos soltou uma gargalhada.
- Não te ririas se, como eu, o houveras visto; se, como eu o houveras ouvido.
- Quem é, pois, esse homem a quem dás as condições de Deus? perguntou Pôncio.
- Jesus de Nazaré! disse Flávio baixandos os olhos.
- Ah, o Galileu, o que cura as enfermidades, o que dá vida aos mortos, vista aos cegos e agilidade aos paralíticos!
Por Esculápio, que é prodigioso tudo o que d’Êle se conta, e a não ser fábula, merecia que os seus compatriotas o
colocassem sobre os cornos do altar! Mas fala, Flávio, fala: dá-me conta do que viste...
Flávio falou desta maneira:
- Senhor: Indubitavelmente esse Homem pertence à família dos deuses. Suas palavras penetram até ao fundo das
almas. Basta que com a mão toque a cabeça de um enfermo, para que o mal desapareça. Eu vi-o abrir a porta do templo
com uma só palavra, e com outra secar uma figueira. Os sábios do sinédrio, os doutores de Jerusalém, saem-lhe ao
encontro, fazendo mil perguntas, que ele desfaz com uma só palavra. Tanto que os seu saber os humilha e deserjam
perdê-lo. Quando chegou ao templo, as escadas estavam cheias desses vendedores de vítimas. Jesus, com um açoite na
mão, expulsou-os dali, dizendo: “Não façais da casa de meu Pai uma caverna de ladrões”. Eu temi que os mercadores
castigassem o seu atrevimento, porque pagam aos sacerdotes um aluguel por aqueles degraus, mas todos os obedeceram
sem descerrar os lábios.
- Um homem contra tantos! exclamou Pilatos.
- Sim, um Homem cujo olhar é irrresistível, cuja fronte brilha como a aurora, e cuja magestade tem algo que faz
estremecer,
Pôncio meditava. Flávio continuou:
De pé sobre os degraus, disse coisas extraordinárias. Uns homens lhe apresentaram uma mulher chamada em
adultério, que, segundo a lei de Moisés, devia morrer à pedradas. Disseram-lhe: “Tu, que sabes tanto, que opinas que
façamos a esta criminosa?” Então Jesus guardou silêncio e pôs-se a escrever com a ponta do dedo indicador alguns
carateres na areia. Ninguém se atreveu a interrompe-lo; por fim, levantando a majestosa cabeça, e abrangendo com um
olhar cheio de ternura aquela infeliz que chorava disse, com uma voz que uma vez ouvida não pode esquecer-se:
“Aquele de vós que esteja sem pecado que atire a primeira pedra”. Eu vi aqueles homens fugirem envergonhados como
se fossem criminosos, como se as palavras de Jesus lhes houvessem recordado que eles também tinham culpas e crimes
que ocultar. O Messias levantou a adúltera e disse-lhe: “Mulher, onde estão os que queriam matar-te? Ninguém te
condenou? Nem eu também! Vai e não peques mais”.
- Esse Homem sabe mais que os doutores do sinédrio? disse Pilatos.
- Como os fariseus o perseguem por toda a parte para o prenderem, vendo que o povo gritava em redor de Cristo:
“Viva Jesus de Nazaré, rei da Judeía! se aproximaram dizendo-lhe: “Tu, que sabes tanto, diz-nos se é justo pagar
tributos ao César”.
Pôncio, ante esta pergunta, levantou os olhos. Tinham dito: “Viva Jesus, rei da Judéia”, e pinham ao seu arbítrio
o tributo romano.
Flávio continuou:
- Eu aproximei-me mais para ouvir melhor a resposta de Jesus que, dirigindo um olhar desdenhoso aos fariseus,
lhes disse: “Porque me tentais? Mostrai-me u’a moeda. Apresentaram-lhe uma, e Jesus colocando-a na palma da mão,
tornou a dizer. “Que efígie, tem ela? “A do César”, lhe disseram. Pois bem, replicou Jesus, daí a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus”.
- Êsse homem é indubitavelmente o açoite dos fariseus, disse Pôncio, desses hipócritas especuladores do
fanatismo hebreu. Continua, Flávio, continua, pois vejo que Jesus não é inimigo de Tibério.
Senhor, disse Flávio, o Galileu falou, disse muitas parábolas e todas causaram profunda sensação; e depois,
seguido dos seus discípulos e du’a multidão imensa, saiu da cidade pela porta Dória.
- E onde ia?
- Segundo ouvi, ao horto das Oliveiras.

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Pilatos despediu Flávio e, mais tranquilo, foi reunir-se com sua esposa Cláudia, que passeava pelos jardins do
palácio.

CAPÍTULO V

PROFECIAS

Naquela mesma tarde, Jesus, sentado numa rocha no monte das Oliveiras, dirigia um olhar doloroso à Jerusalém.
Os apóstolos, sentados também em redor de seu jovem Mestre, comentavam em voz baixa as divinas parábolas do
futuro Mártir. Ninguém se atrevia a interromper aquela dolorosa meditação. O clamor longínquo da cidade chegava a
eles nas asas do vento. Os raios de sol caíam como um par de ouro sobre os altos muros e a douradas portas do templo
de Sion. Duas lágrimas, que brilhavam como duas pérolas de Bassora feridas pelos raiosd a lua, desprendiam-se dos
divinos olhos do Nazareno.
Jesus levantou a radiosa fronte, e exalando um doloroso suspiro, estendeu a mão para a cidade, dizendo como
profético acento:
- Vês aqueles grandes edifícios, aquelas torres altivas que desafiam as nuvens? Pois de tudo isso não ficará pedra
sobre pedra que não seja derribada.
Os discípulos então perguntaram-lhe com certo temor.
E quando sucederá isso? Que sinal haverá quando todas essas coisas comecem a cumprir-se?
- Tende cuidado que ninguém vos engane disse Jesus, porque muitos virão em meu nome, dizendo: Sou eu.
Porque se levantará gente contra gente, e reino contra reino, e haverá terremotos pelos lugares, e fome. Isto será o
princípio das dores. Mas guardai-vos vós mesmos, porque vos entregarão nos conselhos, e sereis açoitados nas
sinagogas, e comparecereis ante os governadores e reis para que deis testemunho da minha doutrina. E em todas estas
coisas convém que seja pregado o Evangelho a toda a gente. E, quando vos levarem para vos entregar, não premediteis
o que haveis de dizer, dizei o que vos for dado naquela hora, porque não sois vós os que falais, senão o Espírito Santo.
Então o irmão entregará o irmão à morte, o pai, o filho; os filhos se levantarão contra os pais e os matarão. E sereis
aborrecidos de todos, pelo meno nome. Mas o que perseverar até o fim, esse será salvo. E quando virdes a abominação
da desolação e os exércitos romanos entrarem no templo para destruirem, profanando a casa de Deus, então os que
estiverem na Judéia fugirão para os montes, e o que estiver no campo, não volte atrás para tomar o seus vestido.
Jesus fez uma pequena pausa, e continuou exalando segundo suspiro:
- Mas ai das grávidas e das que criem naqueles dias!... Rogai, pois, que não sejam estas coisas no inverno,
porque serão dias de espanto e tribulação, como nunca foram desde que Deus fez as criaturas até agora. Porque se
levantarão falsos profetas e darão sinas para enganar.Estai de sobreaviso. Eis que tudo isto vô-lo disse de antemão.
Porque naqueles dias de tribulação se escurecerá o sol, e a lua não dará esplendor, e cairão as estrelas do céu, e virá o
Filho do Homem nas nuvens com grande poder e glória, e enviará os seus anjos e juntará as suas legiões dos quatros
ventos desde um cabo da terra até outro cabo do céu. Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo
isto se cumpra. Estai de sobreaviso; velai e orai, porque não sabeis quando será esse tempo. Não seja que quando vier
de repente, vos ache dormindo.
Jesus guardou silêncio. O pranto corria dos seus olhos. Os apóstolos, ante aquela terrível profecia, estavam
absortos. O Nazareno, que não desviava o doloroso olhar de Jerusalém, tornou pela terceira vez a falar, e disse:
- Dias de luto, de pranto, de dor, te esperam, cidade ingrata! O sangue de teus filhos regará teus férteis campos.
Sobre as tuas ruínas se amontoarão os milhares os cadáveres insepultos. Os abutres e os corvos virão em imensos
esquadrões pousar sobre as tuas desmoronadas torres. Seus curvos bicos, suas afiadas garras despedaçarão sem piedade
as entranhas dos deicidas, e os que sobreviverão a tão espantosa catástrofe, como débeis grãos de mostarda espalhados
pelo poderoso sopro do furação, se dispersarão pelo universo errante e perseguidos, para nunca se unirem. Nem os
filhos dos filhos de seus filhos, deixarão de ser errantes e peregrinos, sobre cujas frontes pesará a maldição de Deus
pelos séculos dos séculos.
Os apóstolos tremeram pela sorte que estava reservada aos seus descendentes. Só um rosto se vi sereno,
imutável; só numa fisionomia se notava a dúvida. Judas não crendo nas palavras do seu Mestre, procurava ocultar um
sorriso que pugnava por lhe assomar aos lábios. A ambição de Judas não tinha limites. A caridade de Jesus fazia-lhe
mal. Recebedor das esmolas. Recebedor das emolas que os piedosos israelitas faziam aos pobres soldados de Jesus
Cristo, obedecia sempre com repugnância ás ordens do Mestre quando se tratava de dar alguma das moedas que, como
tesoureiro dos apóstolos, descansavam no fundo da sua bolsa de peles de lebre.
Judas conhecia tão bem cmo Tiago os livros hebraicos. O seu talento era claro, a sua palavra fluente. Colérico e
irascível, seu rancoroso coração irritava-se pela menor contradição. Receiava de tudo, e a dúvida, que tinha lançado
profundas raízes na sua alma, fê-lo incrédulo e sarcástico.

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CAPÍTULO VI

O GRANDE SINÉDRIO

Seriam oito horas da noite. Multidão de sacerdotes, escribas e rabinos conversavam com bastante agitação no
grande sinédrio situado no templo de Sion, entre o átrio dos sacerdotes e o átrio dos Israelitas. Este temível tribunal dos
hebreus, este memorável lischathagasith (conclave de pedra) tinha ao redor uma bela varanda de bronze, e a forma de
semi-círculo, e estava colocada de modo tal que parte pertencia ao átrio dos sacerdotes e a outra ao átrio dos israelitas.
O presidente supremo do sinédrio, chamado Hanasci (principal ou primeiro) sentava-se no centro do semi-círculo para
que pudessem vê-lo e ouvi-lo todos sem incômodo. Sentava-se a sua direita um ancião chamado Ab (padre do sinédrio)
e à sua esquerda outro denominado Hacan (sábio).
Segundo o Talmud dos judeus, os julgamentos civis de pouca monta eram feitos por três juízes; e os criminosos
em que se tratava da pena capital estas sentenças era a porta da cidade. Os juízes sentavam-se no chão, e os litigantes
estavam de pé, ao redor. O povo podia ouvir e apreciar a retidão dos juízes, aprovando ou desaprovando as sentenças
pronunciadas pelos paletohs (executores da sentença).
O tribunal maior ou o grande sinédrio era o que julgava as desordens das tribos, a audácia dos falsos profetas e
tudo o que dizia respeito a questões religiosas. Este tribunal achava-se ao templo. O número dos juízes era de sessenta e
um.
Na noite de que nos ocupamos, isto é, naquela mesma em que Jesus celebrava a Ceia eucarística em casa de Heli,
achavam-se reunidos no sinédrio todos os príncipes dos sacerdotes, exetuando Nicodemos e José de Arimatéia, os quais
não tinha sido convocados por terem defendido o Nazareno poucos dias antes.
Caifás presidia aquela noite ao supremo tribunal. Anás, seu genro, receoso de que alguns anciãos quisessem
deferir a causa para depois de terminada a festa dos Asmos, porque segundo a lei não lhes era lícito tirar a vida a
ninguém no dia festivo da Páscoa, nem exerce o juízo das almas, tinha comprado alguns membros cujos nomes a
história nos conservou. São os seguintes: Sumus, Datam, Gamabel, Levi, Neftali, Alexandre, Siro, Roboam e Amer.
Estes nove sacerdotes, que eram os mais furiosos do sinédrio unidos a Caifás e Anás que, além de serem os
presidentes, odiavam de morte a Jesus, achavam-se dispostos a saltar po cima da lei, que reinava no sinédrio era grande.
As curas milagrosas que Jesus tinha feito ao povo traziam-nos inquietos. Era indispensável acabar com aquele homem
audaz que ameaçava derrotar o seu poder. Mas como? O Profeta galileu podia com uma só palavra insurgir as tribos.
Seu partido era imenso e os sacerdotes temiam que a espada dos romanos interviesse, como doutras vezes, nos seus
negócios. Viam seu poder ameaçado e meditavam a morte do Nazareno.
Naquele momento de confusão e dúvida em que todos falavam e o medo e o temor não os deixavam entender-se,
apresentou-se no sinédrio um executor das sentenças e disse:
Ilustre senado, no átrio das Nações espera um homem a vossa licença para entrar; diz que se chama Judas e que
é discípulo do falso Profeta que transtorna a paz da cidade santa.
Os sacerdotes olharam uns para os outros perguntando-se que queria aquele homem, discípulo de Jesus. Anás, o
mais resolvido de todos, e inimigo encarniçado de Cristo, sem esperar que os seus companheiros decidisse, exclamou:
- Conduz esse homem até aqui.
Pouco depois, Judas Iscariotes achava-se no grande sinédrio diante dos terríveis e rancorosos inimigos do Mestre
Divino. Todos os olhares se fitaram no recém-chegado. Judas volveu em torno de si os olhos, mostrando uma agitação
espantosa.
Dir-se-ia que aquele homem tinha corrido muito; sua respiração era cansada; agitava os lábios como se a língua
se lhe pegasse ao paladar. Todos os seus movimentos mostravam medo, cansaço, desgosto. Os sacerdotes
contemplaram-no uns instantes, ignorando se era aigo ou inimigo. Por fim Anás rompeu o silêncio, perguntando:
- Discípulo de Jesus, que te traz ao sinédrio?
Judas levantou a fronte com orgulho como se as palavras de Anás o tivessem ferido:
- Chamo-me Judas: nunca tive medo, entendeis? Mas soube que vos achaveis reunidos para tratar de um negócio
que vos importa muito, e pensei: Vamos lá. Os juízes querem prendê-lo e não se atrevem; pois bem, eu atrevo-me, se
me pagarem bem. Se quereis prender Jesus, eu vô-lo entregarei.
- E que segurança nos ofereces? disse Anás, que viu naquele homem o que em vão buscara durante o dia.
- Tu és seu discípulo e todos os seus discípulos se deixariam crucificar por Ele.
- Todos, menos eu; por isso venho dizer-te: Que me dás e entrego-te? O que te prova que em vez discípulo, sou
seu inimigo.
Anás falou em voz baixa com os sacerdotes.
- Está feito o contrato, falou depois.
- Quando me dareis o dinheiro?
- Quando nos entregares Jesus.
- Esta noite, antes da vigília média. Virei aqui dizer o lugar onde podereis encontrá-lo.
- Cumpre tua parte e nós cumpriremos a nossa; mas ai de ti se nos vende! falou Anás.
Judas ia sair do sinédrio quando Caifás o deteve dizendo:
- Espera.
- Que queres? replicou o Iscariotes com receoso acento.
- O tribunal não pode permanecer aberto tantas horas: sabes tu onde vive meu sogro Anás?

184
- Vive no baixo Jerusalém, no monte Acra, respondeu Judas; de tua casa à de Heli apenas há duzentos passos.
- Pois bem, ali te esperamos.
Juda saiu do sinédrio, e atravessando a esplanada do baixo Jerusalém, subiu ao monte Acra, e parou diante duma
casa grande antiga. Dois homens passeavam diante da porta.
- É esta a casa do pontífice Anás? perguntou.
- Sim, respondeu um dos homens.
Judas continuou o caminho e, chegando ao mais alto da cidade de Sion, entrou numa casa, a casa que Nicodemos
e José de Arimatéia haviam alugado a Heli. Era o santo cenáculo onde Jesus se achava reunido com os seus discípulos.
Entretanto os sacerdotes fizeram o juramento de um jejum forçoso se Jesus de Nazaré caísse nas suas mãos e
fosse crucificado.

CAPÍTULO VII

A ÚLTIMA CEIA

Jesus e os discípulos achavam-se reunidos no salão que lhes prepara Heli. O cordeiro pascal fumegava em cima
da mesa. O Nazareno indicou quepodia começar o sacrifício.
Os apóstolos deitaram-se nos leitos que rodeavam a mesa da parte exterior; pela interior serviam os criados a
ceia. Jesus ocupou o leito do centro. João, o discípulo favorito, o apóstolo de doce sorriso, de olhos azuis, eloquente
palavra e coração generoso, sentou-se à direita. Ao lado de João sentaram-se Tiago Maior, filho de Zebedeu e irmão de
João; Tiago Menor, primo de Jesus por parte de sua Mãe; Bartolomeu; Tomé, o incrédulo, que não creu nas chapas de
Jesus sem as tocar.
Pouco depois devia sentar-se, junto de Tomé, Judas o traidor, o filho da aldeia de Iscariote.
Da parte oposta, sentaram-se junto de Jesus: Pedro, André, Judas Lebbe, o discípulo mais fiel; depois Simão,
Mateus, e finalmente Felipe, que não esperava nada de bom de Nazaré.
Na mesa só havia tres pratos. O do centro cotinha o cordeiro pascal. A direita estava um prato de ervas amargas,
à esquerda outro de ervas doces.
Heli tinha começado a trinchar o cordeiro, pois servia à mesa em honra dos seus hóspedes, quando Judas,
inquieto como homem a quem persegue de perto o remorso, entrou no cenáculo. Jesus dirigiu um olhar cheio de doçura
ao discípulo que acabava de vendê-lo e Judas, sem se atrever a olhar o Mestre Divino, foi assentar-se a um extremo da
mesa ao lado de Tomé, o incrédulo.
Jesus tocou com os lábios o vinho que lhe acabava de deitar Heli, e depois disse a oração que lhes tinha ensinado
no monte, e que começa assim: Pai nosso que estás nos céus. Depois começou a santa ceia. O futuro Mártir estava
triste. De vez em quando o seu doloroso olhar fitava-se com amorosa ternura naquele punhado de seres que tanto
deviam padecer por Êle.
Judas não desviava os olhos do prato, receoso de se encontrar com o olhar do Mestre.
Por fim, Jesus exalou um doloroso suspiro, e rompeu o silêncio, dizendo:
- Em verdade vos digo, que um de vós me há de entregar.
Os discípulos olharam-se uns aos outros com olhar cheio de profunda tristeza, de mudas perguntas que se
dirigem. Aqueles corações puros não podiam compreender tal maldade. Vender Cristo! Vender seu Mestre!... Era
impossível! João disse:
- Mestre, serei por desgraça eu esse miserável que tu dizes?
- Sou eu acaso? perguntou com energia Pedro.
- Eu por ventura.
- Acaso cabe a mim essa desgraça?
- Serei eu esse infame?
Todos, indignados, lhe dirigiam a mesma pergunta.
Judas, abismado na sua vergonha, comia e calava. Jesus continuou:
- O que mete comigo a mão no prato, esse é que me entregará.
Ao dizer Jesus estas palavras achavam-se no prato as mãos de Judas Iscariotes. Cristo contemplou um momento
a perturbação do traidor e o assombro dos outros e disse com a sua bondade nunca desmentida:
- O filho do homem há de ser entregue, como está escrito; mas ai daquele por quem for entregue! Mais lhe valera
não ter nascido!
Todos os olhos se fitaram em Judas, o único que não tinha dirigido a pergunta a Jesus. O Iscariotes conheceu que
era preciso dizer alguma coisa:
- Sou eu, por ventura, Mestre?
O Nazareno deteve um momento o doce olhar na carregada e ameaçadora fronte do discípulo. Em seus olhos
meigos e amorosos apareceu uma lágrima, e com uma voz que ressoou até o mais recôndito das almas dos discípulos,
disse simplesmente:
- Tu o disseste, Judas.

185
E Jesus entregou ao traidor um pedaço de pão, símbolo da reconciliação. Judas pegou maquinalmente no pão que
lhe oferecia o Mestre. Seus olhos, injetados de sangue, a boca meio aberta pela comoção, a testa enrugada, mostravam a
horrível luta que estava sustentando o seu espírito. Percorreu com olhar estúpido os semblantes dos companheiros.
Todas as fisionomias respiravam uma severidade acusadora.
Judas não pôde suportar aqueles juízes silenciosos, mais terríveis. Desceu do leito, possuído duma vertigem.
Colocou-se no meio do cenáculo, deitou com fôrça ao chão o pão que ainda tinha na mão, e saiu precipitadamente da
sala.
Houve um momento de pausa. Aquela cena tinha comovido os discípulos. Jesus, tranquilo e esquecendo o
perigo, partiu o pão, e distribuindo-o entre os discípulos, disse:
- Tomei e comei, este é o meu corpo.
Os discípulos comeram em silêncio.
Depois Jesus tomou o cálice, aplicou-lhe os lábios e entregou-o aos discípulos, dizendo:
- Bebei todos, porque este é o meu sangue, que será derramado para bem de muitos e remissão de pecados.
Os discípulos beberam. Depois entoaram o hino do profeta, que começa assim:
- Levanta-te! Levanta-te! Sacode o pó: senta-te, Jerusalém; desata as ataduras do teu colo, escrava filha de Sion.
Debalde fostes vendidos, e sem prata sereis resgatados. Quão formosos são sobre os montes os pés do que anuncia a
paz: do que diz a Sion: reinará o teu Deus!
Alegrai-vos e cantai, desertos de Jerusalém: porque o Senhor consolou o seu povo. Olhai que o meu servo será
exaltado ante ti e sublimado sobremaneira.
Quem crerá o que nos ouça contar?
E subirá como uma vergôntea que brota duma terra estéril, e não saberá bom parecer nele , sem formosura; vê-
lo-emos e não nos dignaremos olhá-lo, tão desfigurado e serão grandes os tormentos que padecerá por nós.
Em verdade Ele tomará sobre si todas as nossas enfermidades, (os nossos pecados) e carregará com as nossa
dôres: por nossa causa se verá coberto de chagas; será afligido pelos nossos crimes, e morrerá no meio de cruéis
sofrimentos, sem despregar os lábios, como o cordeiro que conduzem ao sacrifício, e sôbre os seus ombros carregará o
pêso das nossas iniquidades”.
Quando terminaram o hino do profeta, Jesus fez segunda libação, oferecendo depois o cálice aos seus
discípulos. Jesus então desceu do leito e, tirando o manto que lhe embaraçava os braços, encaminhou-se com passo
tranquilo para o extremo da sala onde se via uma toalha, duas ânforas de cobre e uma bacia do mesmo metal. Dois
criados de Heli entregaram a toalha a Jesus, que a cingiu à cintura. O Nazareno aproximou-se de Pedro e disse-lhe:
- Amado Pedro, vou lavar-te os pés.
- Tu vais-me lavar os pés? exclamou Pedro.
Pedro opunha-se. Aquela humildade do seu Mestre não estava ao alcance da sua inteligência. Jesus, com a
mansidão nunca desmentida, disse-lhe estas palavras:
- Quando o Espírito Santo inundar de luz a tua inteligência, saberás porque faço estas coisas e outras muitas que
agora ignoras. O que não me obedecer será excluido do número das minhas ovelhas.
Jesus lavou um por um os pés dos seus discípulos. Depois deixando a toalha e pondo o manto pardo sobre os
ombros, tornou a sentar-se no leito e disse-lhes deste modo:
- Meus amados, o que fiz convosco, deveis vós fazer com vossos irmãos para ganhardes o reino dos céus. Em
verdade vos digo, o servo não é maior que o senhor, nem o enviado é maior que o que o enviou; se isto fizerdes, se
comprenderdes a necessidade que tem o homem de humilhar-se ante o seu semelhante por pequeno que seja, bem-
aventurados sereis se o fizerdes.
Ninguém se atreveu a interromper o divino orador.
Jesus continou:
- Meus filhos, ainda permanecerei algumas horas, entre vós; mas depois me procurareis e não me encontrareis;
porque onde Eu vou, não podeis vós ir. Um mandamento novo vou vou dar, não o esqueçais nunca: Amai-vos uns aos
outros assim como Eu vos amei. Não afasteis de vossos corações a caridade, que nisso vos conhecerei por meus
discípulos. Nunca deis entrada em vossos peitos à avareza; tratai os homens como vossos irmaõs, que o são. Se à noite
ao retirardes-vos às vossas casas achardes um dinheiro nos bolsos, levantai-vos, sai de casa sem temerdes nem a chuva,
nem o vento, nem o frio, procurai o necessitado, daí-lhe, e depois entregai-vos ao sono, doce e benfazejo do que semeia
o bem na terra.
Jesus deteve-se. Inclinou a radiosa fronte para o peito e um suspiro se lhe escapou dos lábios.
Pedro cujo caráter nobre e impetuoso não estava conforme com a separação que acabava de anunciar-lhe o
Mestre, aproveitando aquela breve pausa, acrescentou:
- Senhor, disseste que onde Tu vais não poderemos seguir-te; porque não te posso seguir eu? A minha alma e
vida são tuas dispõe delas;não creias que me arreda o perigo. Que maior alegria que morrer por ti?...
Jesus contemplou com amoroso olhar a Pedro, e disse-lhe com um sorriso cheio de ternura.
- Darás a alma por Mim?... Em verdade, em verdade te digo que não cantará o galo esta noite sem que me tenhas
negado três vezes.
Pedro ouviu aquelas palavras com um assombro imenso. Como era possível que ele negasse tres vezes a Jesus,
seu Mestre, seu muito amando Senhor? Aquela dúvida atormentava-o a um ponto indizível.
Jesus continuou:

186
- A paz vos deixo, a minha paz vos dou. Não se perturbe o vosso coração nem se acovarde. Todos vós, meus
amados discípulos, padecereis esta noite por Mim, porque está escrito: Ferirei o pastor e se dispersarão as ovelhas
do rebanho. A minha morte está próxima. Mas depois que ressuscite irei adiante de vós à Galiléia.
A tristeza dos discípulos era imensa.
Jesus, pai amoroso, via aproximar-se o instante terrível da separação, e as lágrimas lhe vinham aos olhos. Por
fim fez um esfôrço e levantando-se do leito, disse com voz firme aos discípulos:
- Vamos, a hora aproxima-se.
Sairam do cenáculo. Jesus ia adiante; os discípulos atrás. A noite estava escura. Ao transpôr o umbral da casa de
Nicodemos, o Nazareno ouviu um gemido. Voltando a cabeça viu duas mulheres ajoelhadas aos dois lados da porta.
- Mãe! Madalena! disse. Que fazeis aqui?
- Queriamos ver-te sair, Filho amado! exclamou a Santa Virgem com doloroso acento. Jesus deu a sua Mãe um
beijo. Era o último que devia dar-lhe na terra, onde ia padecer o doloroso Calvário da morte.
Madalena beijou em silêncio o extremo do manto do Mestre Divino.
Jesus e Maria permaneceram um momento abraçados. Os dolorosos soluços daquela Mãe sem igual entristeciam
os silenciosos apóstolos.
Pouco depois, Heli dava hospitalidade em sua casa àquelas duas mulheres cuja amargura era sem igual.

LIVRO DÉCIMO SEXTO


O CAMINHO DE SANGUE

CAPÍTULO I

AS TRÊS GOTAS DE SANGUE

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Jesus e seus discípulos saíram de Jerusalém pela porta Dória e, passando a torrente do Cedron, tomaram a
estreita vereda que conduz ao monte das Oliveiras.
Seriam dez horas da noite. O vento soprava frio, impetuoso, como um rouco lamento da natureza quebrando-se
nas rochas do vale dos Cedros. Os mochos entoavam seu tétrico canto do sepulcro dos Profetas. A lua, triste e pálida
como nunca, começava a elevar a fronte por trás do monte Erego. Espessas nuvens percorriam o ar anunciando uma
próxima tempestade.
O doloroso silêncio de Jesus, que caminhava adiante com a fronte inclinada para o chão, e a tristeza da noite,
oprimiam o aflito espírito dos apóstolos.
Tinham caminhado uns mil passos além da torrente do Cedron, quando Jesus parou diante duma quinta chamada
Getsemani. Aquela quinta, cujo terreno fértil S. Jerônimo designa com o nome de Vallis pinguissima, estava recostada
na fralda oriental do monte das Oliveiras. Então Jesus disse a Simão, Bartolomeu, Tadeu, Felipe, Tomé, André, Mateus
e Tiago Menor:
- Ficai neste cerrado: Eu vou ora ali. – E estendeu o braço na direção do monte. Velai e orai a fim de não cairdes
em tentação; e vós, Pedro, Tiago Menor e João, segui-me.
Jesus, seguido dos seus discípulos favoritos, entrou por uma abertura que havia no muro da terra que cercava o
jardim. Depois caminharam coisa de uns sessenta passos. Um raio da lua caiu sobre a fronte de Jesus. Pedro fez
observar aos amigos a palidez do Mestre. O Galileu falou:
-Vós, que me tendes seguido por tôda a parte, só vós podeis ver a minha fraqueza sem duvidar. Esperai-me aqui;
estas oliveiras, as mais velhas do monte, vos servirão esta noite de tenda.
- Pois que, deixas-nos, Senhor? perguntaram os discípulos.
Jesus estendeu o braço na direção duma gruta, cuja entrada se achava meio escondida pelas sarças.
- Eu vou ali, lhe disse.
E caminhando alguns passos entrou na gruta com o coração oprimido. Uma vez dentro, prostou-se por terra, e
colando a fronte no pó começou a orar.
Uma tradição, antiga como o mundo, refere que os pais do gênero humano, quando foram expulsos do Paraíso,
se refugiaram naquela gruta.
Mais tarde, segundo outra tradição, Adão e Eva, os desterrados do Paraíso, foram gozar, o eterno sono da morte
sobre o solitário cume do monte Gólgota, onde segundo se crê estão enterrados naquela gruta.
Jesus orava com a fronte colada no pó, quando ressoou nos âmbitos da gruta o som duma trombeta. As abóbadas
estremeceram, a terra tremeu, porque aquele som tinha o poderoso acento do trovão, o eco espantoso do furação
desencadeado. A sua voz os mortos devem um dia agitar-se nos seus sepulcros. O seu acento poderoso encherá o
universo, e a terra, abrindo largas bocas, lançará do seu seio milhões de esqueletos. Porque a trombeta que aterrou Jesus
na gruta será a que deve evocar os mortos no dia do juízo final.
Quando o eco da trombeta se perdeu nos escuros âmbitos da gruta, ouviu-se uma poderosa voz, que dizia:
- Filho dos homens! Escutai a voz do que tem a chave da eternidade: ouvi a palavra d’Aquele que refreia a fúria
dos mares e torna em brando zéfiro o sopro devastador do furação. Escutai o acento do que dá luz ao sol, fruto aos
campos, aroma as flores; ouvi a palavra do Ser infinito que empresta chamas ao inferno e poder à morte: e se existe
debaixo da azul imensidade uma criatura que queira morrer pelo gênero humano, se dá um homem que se atreva a
suportar a morte mais dolorosa que ainda sofreu ser algum desde o justo Abel até o presente, se há uma criatura que
queira aparecer ante a presença de Deus, que responda: O Eterno a espera.
- Senhor, exclamou Jesus, o meu corpo acha-se pronto para o sacrifício: pereça eu, rasguem-me os homens a
carne em pedaços, se a minha dolorosa morte há de salvar o gênero humano.
Então um raio de luz explêndida desceu dos céus. Aquela luz banhou com seus divinos raios o corpo de Jesus,
que permanecia orando com o rosto colado no chão. Depois tornou a unir-se a abóbada, e as trevas reinaram pela
segunda vez na gruta.
Aquele raio de luz celestial encheu de valor o coração de Jesus. Pôs-se em pé e disse em voz sossegada:
- Cumpra-se o que de cima emana: estou pronto.
Então abriu-se a terra e apareceu na gruta o arcanjo tentador. Trazia o vestuário brancos dos assenios, e o sorriso
irônico dos réprobos lhe brilhava nos lábios.
- Eis-me aqui, disse o arcanjo; pela segunda vez venho oferecer-te a minha proteção; a tua hora aproxima-se.
Estás resolvido a morrer para salvar as iniquidades do gênero humano?
- Sim, respondeu tranquilamente Jesus; o meu sangue lavará o pecado da humanidade. Minha cruz será a chave
da redenção.
O arcanjo exalou um rugido de ira. A impassibilidade do Nazareno irritava-º
- Escuta, disse, a sangrenta história dessa raça que queres salvar com o teu sangue inocente. Depois do aleivoso
assassinio de Caim, passemos sem nos deter por um imenso mar de sangue que cobrem as gigantescas asas do divino
universal. O castigo de Deus estava próximo. Os raios da cólera divina ainda se viam na terra quando nasceu um
Nemrod que foi o maior ladrão que desde o princípio pisara a terra dos homens; porque Nemrod, privando a todos da
liberdade, se erigiu senhor pela fôrça e se fez adorar como Deus, sendo um miserável assassino. Seguindo a história do
povo escolhido por Deus, encontramos o incesto das filhas de Lo, a raiva de Esaú a seu irmão Jacó, a atroz perfídia de
Simeão e Levi, a infame venda do casto José. O ruído das cadeias, os lamentos de dor, nunca cessam. Adonibecé corta
os pés e as mãos a cinquenta senhores, e ata-os debaixo da sua mesa, dizendo que aqueles lamentos o ajudavam a fazer
a digestão. Abimelec, para cingir a coroa, degola sessenta irmãos, e o persa Artaxerxes VIII, pelo mesmo motivo,
assassina oitenta e cinco entre irmãos e parentes. Dalila, vende seu esposo Sansão. Heli perde Israel pela sua torpeza.

188
Saul é devorado pela inveja. Atalia degola os primogênitos de Judá. Aman é incestuoso, Absalão traidor e Adonias,
fratricida. Salomão, seu pai, chora amargamente nos últimos anos da vida a perfídia de seus filhos. Atrás do rei poeta,
seguem-se em Israel dezenove tigres com a fronte coroada: a terra tinge-se com o sangue das vítimas. O povo
empobrece com a cobiça dos seus tiranos, e a virtude foge envergonhada da nação escolhida. Depois segue-se
Aristóbulo, que matou à fome sua mãe; Hircano, que quis usurpar a coroa a seu pai, e a guerra civil devasta a Judéia. O
estandarte vencedor de Pompéu percorre as tribos, saqueando os indefesos descendentes de Jacó, e, por último,
Herodes, o Grande, cai sobre Israel como um açoite. Seu terrível cutelo nada respeita: corre o sangue até no seu próprio
palácio e o de suas mulheres e seus filhos mistura-se com o dos inocentes belemitas e o do seu oprimido povo. O
mesmo templo de Sião mancha-se com o do justo Zacarias. Com o teu, ó Jesus! se ensopará em breve o cume do
Gólgota. E por essa raça de incestuosos, de fraticidas, de verdugos e assassinos vais sacrificar-te?
Lusbel soltou uma terrível gargalhada, que fez estremecer as abóbadas da gruta.
Na fronte de Jesus brotou uma gota de suor.
Aquela gota suava sangue. Erguendo os olhos cheios de doce resignação ao céu, murmurou esta frase:
- Meu Deus, cumpra-se a tua vontade!
Lusbel interrompeu sua gargalhada e exalou um grito de dor. A mansidão de Cristo despedaçava-lhe o coração.
Tomou alento, como o que se prepara para lutar, e disse:
- Pois que, para convencer-te, não te bastam os crimes célebres que tem perpetrado essa raça maldita que queres
salvar, escuta; Deus concede-me só três horas para pôr-te á prova, breve espaço por certo. Para te recordar as infâmias
do homem, seriam necessários mil dias com suas noites; mas aproveitarei o tempo. Já ouviste a história criminosa do
povo predileto do Senhor. Agora irei revelando a ventura de outros países. Cambises, cego pela ambição, sepultou um
imenso exército nos desertos, areais da África, Artabano assassina Xerxes e acusa Dario, que morre degolado por seu
irmão Artaxerxes. Siatira, mulher cruel manda matar sua sogra Perísatas. A concubina Aspásia, revela a seu senhor
Artaxerxes II,que um de seus filhos a requestra, e aquele pai cruel executa uma horrível matança, de três filhos
legítimos e cento e doze bastardos. A este bárbaro sucedeu o assassino de Artaxerxes III, que extinguiu a sua numerosa
família. Quinto Cúrcio assassina vinte e seis irmãos. O punhal embota-se na mão do seu eunuco Bogoas; mas o tirano
grita-lhe: Mata, mata!... Algum tempo depois o veneno de Bogoas vinga as vítimas de Cúrcio. O eunuco, afeiçoado à
morte experimentara segunda vez o veneno no seu novo senhor; mas é descoberto e obrigado a esgotar a taça e morre.
Depois, lhe corta o fio da existência. Se diriges os olhos para a moderna república de Roma, que acharás? Sangue, como
em tôda parte. Rômulo mata seu irmão Remo. Numa Pompílio, sendo um farçante faz-se adorar pelo seu povo. Túlio
Hostílio, mais que homem, é um lobo carniceiro que alarga as fronteiras da Itália. Tarquinio Prisco ajunta doze povos à
república e morre às mãos de seus filhos. Túlia, espôsa de Tarquínio, o soberbo, obriga seu marido a matar a mãe, e
depois esmaga o cadáver debaixo das douras rodasa de seu carro. Ápio Cláudio enamora-se brutalmente da casta
Virgínia, e não podendo conseguir uma carícia, manda-a degolar numa praça na presença de seu pai. Mário e Sila, com
suas tábuas de proscrição, derramam tanto sangue do mais querido de seus amigos pelas ruas de Roma, que o Tibre
transborda, e Augusto, Marco Antonio e Lépido sacrificam os seus partidários, mas reinam juntos e devoram-se mais
tarde; e Tibério , o senhor de Roma, manda crucificar as mães só pelo crime de terem chorado a morte de seus filhos.
Mas o prazo vai terminar: não posso deter-me a relatar os crimes de Nero, de Calígula, de Como e outros assassinos
ilustres que existirão amanhã; nem os de Orestes que mata sua mãe, nem os de Medeia, que assassina seus filhos, nem
os de Tiest, que os come. Nada quero dizer-te de Anteno, que edificou uma pirâmide com os crânios dos estrangeiros
que passavam pelas sua terras; nem de Manassés que mandou serrar pelo meio o profeta que há cerca de nove séculos
profetizou a dolorosa morte que te espera.
Lusbel parou. Jesus tornou a dizer:
- Senhor, faça-se como desejas.
Um grito atroador saiu da imunda boca do demônio tentador, que disse:
- E não desprezas essa raça?
- Não... Morrerei por ela, respondeu Jesus.
Naquele momento segunda gota de sangue rebentou da divina fronte de Jesus.
- Jerusalém! Jerusalém! Prepara-te para presenciar a mote do Justo. Sua dor será imensa, sua agonia, dolorosa,
sua morte, cruel; mas o seu sangue purificará o gênero humano... e vós, cuja fé inquebrantável, apóstolos de Jesus, vos
leva após os passos do divino Mestre, preparai-vos para o futuro martírio que vos espera. Vós sereis a semente cristã
que se estenderá pelo campo do universo; mas a vossa morte será terrível cruel, horrorosa.
Depois ressoou um pavoroso trovão. O arcanjo tinha desaparecido. Jesus caiu de joelhos e pôs-se a orar. Terceira
gota de sangue lhe tingiu a fronte. A abóbada da gruta tornou a abrir-se. A luz do céu banhou segunda vez o corpo do
Mártir, e os anjos entoaram este canto.
- A tua dor sublime, o teu sangue inocente, dará a paz ao universo. Glória a Jesus sobre a terra! Glória ao senhor
nos céus!

CAPÍTULO II

O TREVO DA JUDEIA

189
Jesus continuava orando com a fronte colada no pó. Deus ouvia as súplicas, todas em favor da humanidade. Seus
rogos foram atendidos, e o sangue que oferecia pelo pecado alheio admitido.
Quando Jesus se levantou, uma das gôtas de sangue que lhe tingiam a pura fronte, caiu no cálix duma pequena e
modesta flor que se achava a seus pés. Ia sair da gruta, pois a hora da sua prisão se aproximava, e queria antes despedir-
se dos seus tres discípulos favoritos, quando ouviu uma voz imperceptível, que lhe dizia:
- Senhor, inclina os teus divinos olhos para a terra e olha-me; teus castos lábios, não há muito, tocaram-me as
inodoras folhas; o precioso sangue da tua fronte caiu no meu cálice sem perfume. Eu sou a planta mais humilde e
modesta de Israel. Ninguém me olha, ninguém me colhe com amor, porque não tenho virtude alguma; mas Tu podes
fazer-me imortal concedendo à minha família uma gota de sangue em cada uma de suas pequenas e brancas folhas, e
um pouco de perfume de tuas divinas palavras na semente que me fecunda. Senhor, não te vás sem conceder-me o que
te peço!
Jesus inclinou os olhos para o chão.
Aquela voz nascia do cálice duma flor.
Compadecido o Nazareno ante a súplica daquela débil planta, disse-lhe:
- Já que presenciaste a minha amargura, já que Deus te concede por um momento o dom da palavra, o meu
sangue esmaltará desde esta noite as tuas brancas folhas, e a essas três manchas ajuntarei a coroa de espinhos que hei de
cingir amanhã na cidade, e o delicado perfume dos lírios do vale do Babulon.
- Senhor, Senhor, bendito sejas! tornou a tenra florzinha.
Desde então cresce nos campos uma flor silvestre, que ostenta em suas brancas folhas três manchas de sangue
que entrelaçam uma coroa de espinhos.
Esta flor chama-se trevo da Judeia.
Jesus saiu da gruta e encaminhou-se para as velhas oliveiras onde tinha deixado os discípulos. Dormiam
profundamente. Cristo esteve-os contemplando em breve espaço e estremeceu. Tinha escutado o ruído de armas pelo
caminho de Cedron, e a luz dos archotes resplandecia na escuridão da noite. Vinham prendê-lo. Sua hora aproximava-
se. Inclinou-se para o chão e, pegando por um braço a João, sacudiu-o brandamente, dizendo:
- Pedro, Tiago, João, levantai-vos, porque estão perto os que vêm por Mim.
Os apóstolos levantaram-se. Naquele momento o resplendor dos archotes banhou a modesta parede do horto de
Getsemani. Os apóstolos viam caminhar aquelas luzes, ouviam o ruído das armas e as pisadas que se aproximavam, e
olhavam Jesus como perguntando-lhe que era aquilo.
Jesus sorriu-se de um modo doloroso, e disse-lhes:
- Estai alerta, porque se aproximam os que hão de prender-me.
Seria uma hora da noite.
- Os que vão prender-te? disse Pedro com assombro. Oh! Isso não sucederá: tenho a espada pendente do cinto;
na granja de Getsemani temos oito amigos decididos e nós três, onze: quem se atreverá a tocar-te? Ai dos que te
ponham a mão sobre o ombro!...
- Pedro, exclamou Jesus, tudo o que vai acontecer-me, está escrito lá em cima. É vontade de Meu Pai. Tu não
farás nada.
- Saiamos ao encontro dos que vêm prender-me.
Jesus caminhava adiante, triste, mas sereno. Saía ao encontro dos seus inimigos, como para lhes evitar trabalho.
Quando estava perto da parede, voltou a cabeça e chamou João, que se colocou ao seu lado.
Jesus pôs amorosamente uma das mãos sobre o ombro do discípulo favorito e disse-lhe:
- Quando me achar em popder dos meus inimigos, dirigir-te-ás à porta Dourada. Ali está minha Mãe com as
santas mulheres que a acompanham. Eu tenho-te sempre querido como a um irmão; minha Mãe, como a um filho;
depois da minha morte, toma-a por Mãe, que Ela te tomará por filho. A ti a recomendo, porque são muitas as dores que
lhe resta sofrer.
João deixou cair a cabeça dolorosamente sobre o peito do seu Mestre. Abundantes lágrimas lhe rebentavam dos
olhos, azuis como o céu. Depois continuaram o caminho: Jesus, adiante; os três discípulos, mudos, comovidos, atrás.
Quando chegaram a uns vinte passos de Getsemani, Jesus viu Judas, que caminhava adiante da multidão. Parou e exalou
um suspiro, dizendo:
- Eis o que me vendeu.
Inclinou a fronte para o chão e esperou.
Tiago, aproveitando o momento, correu a acordar os companheiros. Pedro, com a espada escondida debaixo do
manto, olhar ameaçador e fronte alta, colocou-se ao lado do Mestre disposto a tudo. João chorava em silêncio
recordando as últimas palavras de Jesus.

CAPÍTULO III

SOU EU!

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Retrocedamos algumas horas. Tomemos a narração desde o momento em que Judas, deitando ao chão o pão que
Jesus lhe havia entregado, saiu desesperadamente do cenáculo arrancando os cabelos e gritando:
- Sou um miserável!
Como dissemos, a casa de Heli distava uns duzentos passos do palácio de Anás, onde se tinham reunido os juízes
para esperarem o traidor. No vestíbulo achavam-se alguns soldados mercenários aquecendo-se ao redor de um largo
braseiro, porque a noite estava fria. Aqueles filhos da guerra maldiziam em voz baixa o medo e receio do sumo
sacerdote, que os tinha em vela; mas a disciplina obrigava-os a permanecer naquele posto, esperando ordens.
Depois do vestíbulo achava-se uma ante-sala quadrada onde estavam os criados do sinédrio e os sacerdotes
comentando também em voz baixa, o acontecimento da noite, que assim os tinha velando e sem esperança de dormirem.
Passando esta ante-sala, achava-se um comprido corredor alumiado com archotes resinosos, colocados numas
braçadeiras de ferro nas paredes. Depois, levantado uma pesa cortina de pano de Tiro, entrava-se no salão de cerimônias
do pontífice Anás.
Este salão, coberto de tapetes e sem outros móveis que uns divãs de seda amarela e u’a mesa sobre que se viam
pedaços de papiro e apresto de escrever, uma bolsa de couro, parecendo cheia de prata, estava pobremente alumiada por
duas lâmpadas de bronze. Aquela opaca claridade não deixava ver bem os rostos miseráveis que deviam conduzir, cegos
de ira, ao cume do Gólgota, Jesus de Nazaré.
Judas chegou ao vestíbulo da casa de Anás, agitado e trêmulo como o homem que vai cometer uma ação infame.
O soldado que passeava por diante da porta com a lança no braço, ao ver aquele homem de má catadura, cruzou a lança
diante dele, proibindo-lhe a entrada.
- Esperam-me, disse Judas. Por que me deténs?
- Romano, deixa-o passar, disse um dos criados do pontífice: esse homem é o que o entrega.
- Espera-me um instante, disse o soldado; e entrou no salão onde os sacerdotes se achavam reunidos em número
de mais de quarenta.
A tardança do discípulo traidor, tinha-os impacientes. Era tal o desejo de verem Cristo no Gólgota, que cada
minuto que passava era para eles um tormento. Quando entrou o arauto e disse: “Judas espera”, ouviu-se uma
exclamação de gozo.
- Fa-lo entrar, disse Anás; e foi sentar-se com três fariseus junto da Mesa.
Pouco depois, levantou-se a cortina e Juda entrou no salão.
- Vens, pois, entregar-nos o teu Mestre? lhe perguntou Anás.
- Está claro! A que havia de vir? Está perto desta casa; apenas o separam uns duzentos passos de vós, mui
sossegado, em casa de Heli, celebrando a Páscoa.
- E toleramos, sábios sacerdotes, exclamou cheio de ira Anás, que esse Galileu celebre a Páscoa em quinta-feira?
- Ora! disse Judas em tom de desprêzo. Não tendes tolerado que cure os enfermos ao sábado? Que vos admira
pois? As vossas leis, os vossos costumes, olha-os com desprezo. Ele segue um caminho novo que a vós não convém, e
tratais de desfazer-vos d’Ele; creio-o justo e por isso venho unir-me convosco.
- Explica, pois, o teu plano: os soldados que pediste esperam-te, disse um ancião.
- Não há pressa; este negócio deve levar-se com cuidado, pois do contrário podia serv-vos fatal.
- Crês tu que Jesus e os seus discípulos se defenderão?
- Jesus não é homem de guerra, é de paz. Ele mesmo apresentará as mãos para que as ateis. Quanto aos seus
discípulos, excetuando Pedro, os outros bastante farão em chorar a sorte do Mestre.
- Então que esperamos? perguntou um sacerdote.
- Que Jesus saia de Jerusalém, disse Judas. A cidade está cheia de forasteiros; muitos deles, e particularmente os
da tribo de Zabulon, os moradores das praias do mar da Galiléia, conhecem-no e querem-lhe como a um profeta. Um
grito de Jesus armaria mil braços para o defenderem. Acreditai-me: neste negócio não convém precipitar-nos.
- Mas se sai de Jerusalém escapa-se das nossas mãos, exclamou Anás.
- Eu sei onde dorme esta noite, e ali o pilharemo desprevenido.
- Aquele a quem eu der um beijo é Jesus.
Anás tornou a perguntar:
- A que horas tencionas sair com os soldados
- Quando a noite se achar no meio da sua carreira. Preciso de vinte homens?
- Nós também te acompanharemos, disseram alguns anciãos.
Anás chamou um criado e disse-lhe em voz baixa:
-Malco, tu és um servidor; irás com Judas prender Jesus. Se Judas nos trair, apodera-te dele.
- Tendes-me perguntando muitas coisas, e nada me dizeis da paga. Tornais atrás com o prometido?
Anás não respondeu; mas pegando na bolsa de couro que estava em cima da mesa, deitou-a aos pés de Judas
dizendo:
- Ai tens a recompensa prometida.
Judas pegou na bolsa, e contou com vagar o dinheiro que continha.
Judas saiu para o vestíbulo acompanhado de Malco, e pegando num banco aproximou-se do braseiro onde
estavam os soldados.
- Deixai-me aquecer, meus amigos, disse-lhes, porque estou frio como o gêlo.
Um romano levantou-se do assento, e travando do braço de Judas, disse-lhe com áspero tom:
- Não profanes o honroso nome da amizade, miserável judeu: um traidor como tu não deve sentar-se ao lado dos
soldados de Tibério.

191
E, empurrando-o bruscamente, repeliu-o do lugar que ocupava.
O mau apóstolo levantou-se, por fim, do banco e, dirigindo-se a Malco, disse-lhe:
- Já são horas. Vamos.
Malco entrou no salão e disse a Anás o que Judas lhe recomendara.
- Atai-o e parti, disse o pontífice.
- Nós o acompanharemos, acrescentaram alguns anciãos, que talvez ignorassem que iam desonrar suas cãs
naquela noite.
A comitiva percorreu em silêncio as desertas ruas de Jerusalém; saiu pela porta Dória em busca do caminho do
Cedron e da granja de Getsemani.
- Veja o homem a quem buscamos, disse Judas.
- Mas ali vejo dois homens: qual deles é?
- Aquele a quem eu der um beijo na face.
Jesus aproximava-se dos soldados com passo magestoso e ademã sereno. Judas adiantou-se alguns passos. O
clarão dos archotes alumiava os semblantes dos infames opressores de Jesus. Aqueles rostos tinham alguma coisa de
infernal. Os anciãos que iam na comitiva cobriram o rosto com o extremo do manto, como envergonhados da ação que
iam cometer e que lhes desonrava as cãs. Jesus parou. O apóstolo traidor chegou até onde estava o Mestre, e disse-lhe
com acento carinhoso:
- Deus te guarde, Mestre.
- Amigo, a que vieste? lhe perguntou Jesus.
Judas lançou os braços em volta do pescoço de Jesus e imprimiu um beijo carinhoso na face d’Aquele a quem
acabava de vender tão miseravelmente.
Jesus, vendo o tropel que se aproximava, perguntou com carinhosa voz:
- A quem buscais?
Malco e alguns anciãos responderam-lhe:
- A Jesus Nazareno.
- Sou Eu, disse com magestade Cristo, adiantando-se um passo.
Os soldados retrocederam e em alguns foi tal o aturdimento que caíram ao chão.
Jesus estendeu o brao na direção dos soldados e, imediatamente, todos se puseram em pé.
O Nazareno perguntou segunda vez:
- A quem buscais?
- A Jesus Nazareno, disseram algumas vozes com temor.
- Disse-vos que sou Eu. Se me buscais a Mim, deixai esses. E indicou com um gesto os apóstolos, que
contemplavam com temor aquela cena.
Neste momento, Malco, com os cordéis na mão esquerda, aproximou-se de Jesus e pôs-lhe a mão direita sobre o
ombro. Pedro não pôde suportar o atrevimento daquele miserável que ousava pôr a mão no Mestre e, tirando a espada,
descarregou uma terrível cutilada em Malco, que o fez cair ao chão de costas dando um grito doloroso. O arrôjo de
Pedro produziu um momento de pânico entre os perseguidores de Jesus. Alguns soldados apelaram para a fuga,
temendo, sem dúvida, que os outros discípulos tomassem parte na refrega. O decurião romano desembainhou a espada,
e disse com toda a força dos pulmões.
- Sois soldados de Tibério, e fugis diante de um homem! Covardes! Ai do que não cumpra o seu dever! A pena
das baquetas lhes cairá nas costas!
Esta ameaça deteve os fugitivos, que se agruparam ao redor do decurião. Entretanto, Jesus tinha dito a Pedro:
- Mete a espada na bainha! O cálix que me deu meu Pai, não tenho de o beber?
Depois, inclinou-se para o chão, pôs a mão na ferida de Malco, e curou-º
Malco tivera a orelha arrancada, e achava-se bom, como se nada lhe houvesse sucedido. O miserável, em vez de
agradecer o milagre que nele acabara de operar Jesus, atirou-se como uma hiena a Ele e começou a atá-lo.
Enquanto o atacavam disse-lhes com doçura:
- Como a um ladrão saistes para prender-me, com espadas e paus, e quando estava convosco ensinando
no templo, não me prendieis... Mas é preciso que se cumpra a Escritura.
Os discípulos tinha desaparecido, exceto Pedro e João, que, escondidos atrás de uma árvore, observaram,
transpassados de dor, os insultos que prodigalizavam ao Mestre.
A comitiva saiu de Getsemani. Ao passar a torrente Cedron, Malco empurrou brutalmente Jesus para que saltasse
o regato. O Nazaareno caiu de joelhos sobre uma duríssima pedra. Um doloroso gemido lhe saiu do peito: um trovão
prolongado, ressoou no espaço. Os verdugos agruparam-se com temor. Um dos criados lançou ao chão o archote que
levava na mão e deitou a correr, possuido de pânico. Malco puxou com força a corda; mas coisa estranha! Jesus em vez
de cair de costas, pôs-se em pé. O seu formoso semblante, pelo qual começava a correr o suor que em breve devia ser
tão copioso, respirava uma doçura, uma mansidão infinita.
Os anciãos, os soldados e os criados de Anás, que desde a saída de Getsemani não tinham cessado de dirigir-lhes
palavras grosseiras e insultos miseráveis redobraram seus horríveis gritos ao entrar na cidade.
Mário Cúrcio, o decurião romano, disse em voz baixa a um dos soldados que se achava ao seu lado:
- Creio que o preso vale, pelo menos, tanto, Ele só, como todos os hipócritas rezadores da sinagoga que
especulam com o fanatismo do povo. Pilatos, não devia empregar seus soldados nestas intrigas sacerdotais...
A comitiva tornou a entrar em Jerusalém e, tornando a fralda do monte Dória, chegou junto da esplanada do
cerro de Acra, e parou à porta da casa de Anás.

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CAPÍTULO IV

OS MILHAFRES E A POMBA

Caifás desempenhava no ano da morte de Jesus as funções de sumo sacerdote de Jerusalém; mas por deferência
com seu sogro Anás, cuja idade era muito adiantada, conveio-se em que tão depressa Jesus caísse nas mãos dos seus
perseguidores, fosse conduzido à casa deste último.
A comitiva que conduziu o Nazareno desde a granja de Getsemani, tão depressa chegou diante do átrio da casa
de Anás, começou a soltar gritos de entusiasmo e alaridos de prazer.
Os gritos de – “Abram caminho! É Jesus, o falso profeta, o embaucador, o feiticeiro!” – e outros mil insultos que
os criados do sogro do pontífice prodigalizavam ao Nazareno à porta da rua, cessaram de repente apenas um dos criados
de Anás se apresentou e disse que o seu senhor esperava o réu. Jesus penetrou no salão. O cruel Malco empurrava-o
bruscamente, dando-lhe punhadas nas costas.
Todos os juízes fitaram o rancoroso olhar no manso Cordeiro que tinham diante. O rosto de Jesus estava
demudado, seu manto feito em farrapos, e a barba ensopada de sangue. Anás, vendo o futuro Mártir, sentiu transbordar-
lhe o ódio no coração.
- E és Tu Jesus de Nazaré? lhe disse descarregando uma terrível punhada sobre a mesa. Tu, um miserável
mendigo! Tanta audácia num homem! Juízes: eis o que se chama o Messias, o que se instituia rei da Judéia, o que se
atreve a ameaçar-nos com a ruína do templo, o que nos chama raça de víboras!... E és Tu o que queres fazer o que
ninguém tem feito?... Com que autoridade dizes tudo isso? Responde, fala, hipócrita Galileu.
Jesus, que tinha fortemente atados os braços atrás das costas, levantou com humildade a cabeça, e disse:
- Por que me perguntais a mim? Perguntai aos que ouviram o que Eu lhes disse e ensinei; eles bem sabem
o que Eu disse.

Apenas Jesus acabou de falar o miserável Malco, que se achava ao seu lado, levantou a mão e deu-lhe uma
terrível bofetada. Jesus caiu no chão.
Jesus levantou-se. Sua face tinha impressa, como uma vermelha papoula, o guante do covarde verdugo. Duas
lágrimas se lhe desprenderam dos olhos, e olhando o seu esbofeteador dum modo cuja bondade e compaixão nunca
poderia exprimir bastante nem o pincel do pintor, nem a pena do poeta, disse:
- Se falei mal, mostra-me em que? e se falei bem, dize-me porque me bates.
Aquele miserável, que faltava ao respeito que se deve às leis e aos juízes, aquele verdugo que tão iniquamente
tratava Jesus, não foi admoestado por nenhum homem do tribunal. Parece incrível que o ódio cegue os homens a tal
ponto! Os sacerdotes buscavam Jesus para o julgar. Encontraram-no e a lei via-se caleada. O último dos criminosos que
gemiam nas úmidas masmorras da cidadela Antônia, teria encontrado um defensor, teria sido amparado pela lei.
O ódio dos homens amesquinha-os, às vezes, até ao crime, e leva-os quase sempre à loucura.
A humildade de Jesus irritou de tal modo Anás, que, levantando-se do seu assento e esquecendo a compostura
que lhe impunha o cargo que desempenhava, começou a gritar:
- Levai-o à casa de Caifás! Ali está reunido o tribunal e o esperam as testemunhas que o acusam! Não quero ver
na minha presença esse miserável.
- Vamos, falso Profeta, exclamou Malco, cuidado com a língua na presença do pontífice, se não queres que a
minha mão te afague pela segunda vez a face.
Então um soldado pôs uma cana nas mãos de Jesus, passando-a barbaramente pelos cordéis que lhe prendiam os
pulsos.
- Já tens cetro, disse Malco soltando uma brutal gargalhada; vamos ao pontífice para que te ponha a coroa.
E tirou Jesus do salão quase a rastos.
Ferocidade incrível – Jesus, o manso cordeiro caiu sobre a dura lage e, ao levantar-se o seu formoso semblante
achava-se coberto de sangue.
Aquele sangue e aquela cana irrisória que promoveu a hilaridade dos verdugos, deviam ser mais tarde a semente
da redenção, o cetro do mundo.
Entretanto em casa de Caifás, possuídos du’a mesquinha paixão de vingança, achavam-se reunidos multidão de
anciãos, escribas, sacerdotes e fariseus. Nicodemus achou-se também naquela assembléia. Mudo, num extremo da sala,
esperava o Nazaareno, do qual se nomeara em segredo, defensor. De vez em quando os olhos de Caifás encontravam-se
com a impassível figura de Nicodemus. A presença do amigo de Jesus no salão desconcertava o pontífice, que se valera
de subterfúgios indignos da sua dignidade para o prender. Ali estavam também testemunhas falsas.
O Nazareno era esperado com impaciência. O ódio cegava a razão dos juízes. A lei ia calcar-se julgando o que
cuidavam um transtornador da ordem pública.
Pedro, que temendo o furor dos soldados, se escondera atrás dumas árvores no momento da prisão, tão depressa
desapareceu a comitiva levando o Mestre, cobrou ânimo. O valor tornou a reanimar-lhe o coração e, embuçando-se no

193
manto encaminhou-se para Jerusalém, resolvido a saber o que acontecera. Ao atravessar a torrente do Cedron, topou
com um homem que reconheceu por um discípulo de Jesus.
- Quem és? lhe disse.
- Sou João, discípulo de Jesus, lhe respondeu o homem com admirável serenidade, atendendo às críticas
circunstânciaas por que passavam.
- Sigamos o Mestre, tornou Pedro.
- A pobre Mãe e a arrependida Madalena, que acabo de deixar no vale de Josafá, pediram-me o mesmo.
- Então vamos.
Os dois apóstolos entraram em Jerusalém. Em breve os gritos dos verdugos lhe fizeram encontrar a comitiva.
Algumas janelas começavam a abrir-se. O povo perguntava a causa daquel alvoroço.
Jesus tinha muitos amigos no arrabalde de Ofel. Ninguém, contudo, se atreveu a defendê-lo.
Roto o vestido, o rosto ensanguentado, pálido pela dor e pelo cansaço, caminhava quase desfalecido entre os
seus verdugos. Quem podia reconhecê-lo naquele estado? Era aquele Homem que, pouco antes, rodeado de gloriosa
admiração, tinha entrado pisando flores na cidade santa?
João e Pedro choravam em silêncio sob as pregas dos mantos, vendo-o passar.
Por fim, Jesus chegou à casa do pontífice Caifás.
Os dois discípulos entraram também confundidos entre a multidão. De um extremo da sala podiam ver, ouvir
tudo sem inspirar suspeitas. Depois todos os olharess tinham um ponto onde se reconcentrassem: o humilde Mártir.
Caifás, vendo entrar Jesus, exalou um grito de satisfação. Era o tigre ao ver a indefesa presa, a hiena em presença
da ferida onça, o lobo ante o manso cordeiro.
Naquele momento Nicodemus procurou no salão talvez um amigo que se pusesse com ele da parte de Jesus. José
de Arimatéia, que acabava de entrar, ainda não tinha sido convocado, levantou o extremo da capa fazendo-lhe ao
mesmo tempo um sinal de inteligência. Aqueles dois homens tinham-se compreendido. Não sem muito esforço
procuraram reunir-se.
A multidão que rodeava a casa do pontífice era imensa. Ia-se julgar um Profeta, um Deus: isto era curioso.
Caifás cravou os negros olhos em Jesus. O sumo sacerdote, que teria uns quarenta anos de idade, e cujas feições
extremamente pronunciadas tinham alguma coisa de feroz, vestia uma túnica branca, e um largo manto cor de absinto,
cujas franjas de ouro lhe corriam pelos ombros. Sobre o peito brilhava-se o efod do sacerdote, e na cabeça descansava-
lhe a tiara do pontífice. Era o terceiro poder de Jerusalém: governador depois de Pilatos, tetrarca depois de Herodes.
- Aproximai-me esse embaucador, disse com voz de trovão.
Malco obrigou Jesus a caminhar até o pontífice.
Jesus em pé diante do tirano, pálido, desfalecido, tinha o olhar docemente fito num ponto da sala, onde estavam
os seus dois discípulos favoritos, Pedro e João.
Caifás chamou as testemunhas. Alguns homens apresentaram-se diante do tribunal. Nicodemus, ao ver aqueles
homens, não pode dominar a indignação que lhe inspiravam e, adiantando-se um passo, disse:
- Caifás, não dês crédito a esses homens! Pensa que Jesus, em vez de ser um falso Profeta, pode ser um Enviado
do nosso Deus, um escolhido do Santo dos Santos.
- Nada bom sairá da Galiléia, disseram as escrituras, e Jesus é galileu, exclamou Caifás.
- Sim, mas Jesus nasceU em Belém, e a Escritura diz:
- “Sairá um Profeta da raça de Davi e da cidade de Davi”.
- És tu o defensor desse Homem? perguntou o pontífice.
- Sou fariseu, respeito a lei. Se Jesus é culpado, medi-o com a mesma medida que aos outros homens. A lei deve
ser reta como a torre de Davi, firme como as rochas do Sinai.
Caifás, colérico, pôs-se em pé segunda vez e dirigiu-se às testemunhas depois de enviar um olhar de desprezo a
Nicodemos.
- Falai vós, lhe disse. Que sabeis desse embaucador?
- Nós, disseram várias testemunhas, ouvimo-lo dizer: Eu destruirei o templo feito à mão, e em três dias
edificarei outro não feito a mão.
- Não respondes alguma coisa ao que atestam contra ti?
Jesus abrangeu com um olhar de compaixão as testemunhas, e guardou silêncio.
- Que fale, que se defenda! gritavam alguns.
Jesus guardava silêncio. Os murmúrios cresceram. Caifás gritou com acento ameaçador:
- És tu o Cristo, o Filho de Deus bendito?
- Eu sou, respondeu humildemente Jesus; e vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus e
vir com as nuvens do céu.
Como se as palavras do dulcíssimo Jesus houvessem sido um insulto lançado ao pontífice, este começou a dar
gritos rasgando as vestes e arrancando as barbas.
- Blasfemou!... Blasfemou! bradava Caifás, levantando as mãos e fazendo gestos indignos do honroso cargo que
desempenhava. Para que precisamos, já de testemunhas? Agora ouvistes a blasfêmia; que vos parece?
- É réu de morte! É réu de morte! gritavam vários anciãos.
- A cruz! A cruz para o blasfemo! repetiam os fariseus. Então houve um momento horrível. Todos gritavam,
todos os rostos estavam alterados. Caifás dirigiu-se aos sacerdotes; o povo uivava pedindo uma vítima. Ninguém se
entendia.

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Nicodemus cobriu a cabeça com o manto, para não ver os ferozes rostos dos juízes, para não ouvir as terríveis
blasfêmias dos seus companheiros. José de Arimatéia imitou o amigo, e ambos sairam do salão precipitadamente,
murmurando:
- Fujamos deste lugar onde a lei empunha o punhal do assassino, onde os juízes tem o aspecto dos verdugos.
João também abandonou sobressaltado a sala.
Ao passar junto a Pedro, disse-lhe:
- Jesus está perdido; corro a consolar sua Mãe.
Pedro, absorto, aterrado com o que acabava de presenciar, foi esconder-se entre a multidão, receioso que o
reconhecessem.
Entretanto a raiva, o frenesi tinha-se apoderado dos que rodeavam Jesus. Uns escarravam-lhe no rosto, outros
açoitavam-no com varas e os soldados descarregavam-lhe terríveis bofetadas sobre a divina face. Jesus entregue à plebe
soldadescas, foi na casa do pontífice objeto da mais sangrenta mofa.
- Faz um milagre, falso Profeta! lhe dizia um.
- Adivinha como se chama o que te dá esta bofetada, sábio! repetia outro.
As gargalhadas, os gritos, os uivos atroavam aquelas malditas abóbadas. Nunca o homem mais desprevízel da
terra se vira tão cruelmente escarnecido pelos seus juízos. O último dos criminosos tem sempre um amigo que o
respeite; a lei; e alguém que se compadeça dele. Jesus. o Redentor do homem, o purissímo lírio de Nazaré, o Salvador
de Israel, achou-se só com sua dor nas mãos dos seus ferozes verdugos. Pedro, aturdido, medroso, e sem compreender o
que via, procurou abandonar a sala e foi refugiar-se no átrio da casa do pontífice, onde alguns criados se aqueciam ao
redor de uma fogueira. Ocupou um assento ao lado daquela gente que comentava com alegre alvoroço o acontecimento.
- Oh! O ilustre pontífice Caifás estará contente com os seus servos, dizia um criado. Ao abandonar o salão, disse-
lhes: Soldados, eu vos entrego este Rei; tratai-o como merece. E os soldados postaram-se bem.
- É costume romano, e que chegou a Israel, disse outro, que as legiões celebrem com regozijo a subida dum
imperador.
- Estou certo, objetou um terceiro, que a esses imbecis não ocorre coroar o novo Rei!
- Enganas-te, Nacor; Malco teve uma boa idéia. Coroaram-no de espinhos.
Esta frase terminou com uma gargalhada. Então aproximou-se u’a mulher que exercia o mister de porteiro. Teria
trinta anos; era alta, morena e de ademãs desenvoltos. Levava uma roça na mão esquerda e um fuso na direita.
- Muito madrugas hoje, Rebeca, lhe disse um dos que a rodeavam.
- Boa! Deitou-se alguém nesta casa esta noite? respondeu a mulher. E fitando os penetrantes olhos na imóvel e
atemorizada figura de Pedro, continuou, pondo a mão no ombro do apóstolo, e desviando um pouco o manto para lhe
ver melhor a cara:
- Não estavas tu com Jesus Nazareno?
Todos os olhares se fitaram nele. Pedro estremeceu; mas era preciso dar uma respostas e respondeu perturbado:
- Mulher; nem o conheço, nem sei o que dizes.
Pedro, não se julgando seguro naquele lugar levantou-se e saiu do átrio. Ao transpor o umbral parou. Então
ouviu o penetrante canto dum galo. A mulher seguiu Pedro e tornou a dizer aos que estavam à porta:
- Esse homem é dos de Jesus.
- Porque me persegues? respondeu Pedro. Não te disse já que o não conheço?
Alguns homens o cercaram; mas no meio dos insultos que começavam a levantar-se, ouviu Pedro segunda vez o
canto profético do galo. Um dos presentes disse, aproximando-se do apóstolo:
- Por que negas que o conheces? Receca tem razão: tu és galileu como ele, e vimos-te no templo, ouvindo suas
patranhas.
Pedro julgou-se perdido. Sua razão ofuscou-se e o medo pôs-lhe na língua palavras e juramentos que mais tarde
deviam causar-lhe dolorosas lágrimas de arrependimento.
- Não o conheço, disse: o Deus de nossos maiores não dê ouvidos às minhas súplicas, se tendo tido contato com
esse Galileu de quem falais.
Este juramento pareceu tranquilizar os que o rodeavam. Pedro abandonou aquele lugar; mas, apenas teria
caminhado doze passos, quando o galo cantou pela terceira vez. Então lembrou-se das proféticas palavras do Mestre e
amargo e doloroso pranto lhe correu dos olhos.
O dia começava a despontar. Pedro escondeu-se no vão duma porta. Os servos do pontífice, que tinham pôsto a
Jesus uma coroa de nabka cujos agudos espinhos se lhe cravavam dolorosamente na fronte, e um velho tapete sobre os
ombros para imitar a púrpura dos imperadores, cansados de executar a sangrenta zombaria, dispunham-se a arrastar o
prêso à casa de Pilatos, procurador romano, que devia assinar a setença, como único juiz que tinha direito de vida e
morte sobre os réus. Um centurião deteve a comitiva, dizendo:
- Ainda é muito cedo para incomodar Pilatos; esperai que o sol possa iluminar o rosto do Réu, e do juiz. Os
fariseus tem medo de o sentenciar de noite.
Então Jesus foi encerrado num quarto que recebia a luz por um grande. Uma teia de ábeto alumiava aquela
habitação. Ao seu vermelhoe oscilante clarão, podiam ver-se Jesus e os soldados que o guardavam. Alguns curiosos iam
contemplá-lo através dos ferros da grade, aonde lhe prodigalizavam toda a casta de insultos.

CAPÍTULO V

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O SUICIDA

João havia-se reunido com a Virgem e Madalena a poucos passos da casa do pontífice Caifás. A Mãe de Jesus e
a dolorosa castelã de Mágdala tinham passado parte da noite sentadas no madeiro, à porta dum carpinteiro. Ali
esperavam, com o coração traspassado de dor e os olhos cheios de lágrimas, que João lhes participasse o resultado da
sentença.
- Que é de meu Filho? exclamou Maria com doloroso acento.
João não pôde responder. A profunda amargura do discípulo foi para aquela Mãe uma revelação terrível.
Decorreu um breve momento sem que ninguém se atrevesse a interromper aquelas lágrimas, aqueles soluços. No meio
daquele silêncio ouviu a Virgem numa casa próxima, que permanecia fechada, o estridente som duma serra que cortava
madeira, e a pancada seca dos martelos que batiam pregos. Aquelas pancadas retumbavam de modo doloroso no
coração de Maria. Pouco depois viram dirigir-se um homem para aquele lugar, parar diante da casa e bater.
- Quem é? disse de dentro uma voz varonil.
- Abre, Jacó; sou eu, Malco, servo do sumo pontífice, respondeu o de fora.
O ruído cessou, e um homem com um lampeão na mão abriu a porta.
- A paz seja contigo, honrado carpinteiro, disse Malco. Meu senhor manda perguntar-te como vão os trabalhos.
- As cruzes de Dimas e de Gestas estão se acabando; ai asa tens: só falta pôr-lhe o apoio para os pés.
- É que venho encomendar-te outro trabalho, tornou Malco. Precisamos de outra cruz para outro réu, um falso
profeta.
- Ah! Pois então será preciso que nos esmeremos. Disse-te de que madeira a quer o tribunal?
- Da mais pesada, da mais vil e desprezível que se conheça na Judéia.
- Então fá-la-emos de carrasco ou di enzinha; esta é a árvore que mais abunda em Israel. Agora falta o tamanho.
- Para que o povo veja melhor o réu, fá-la-eis de pés mais alta que a dos dois bandidos.
- Então terá quinze pés de comprimento e o cruzeiro oito, não te parece?
- Põe, então, mãos à obra.
- Tres horas bastam-me para a terminar.
A poucos passos da casa, havia um grupo de gente que rodeava um homem. Este gritava com toda a força dos
pulmões, dizendo:
- Sim... Sim... eu sou Pedro, antes Simão! sou galileu, discípulo de Jesus, verdadeiro Profeta! Sou um dos seus
apóstolos; rasgai-me as vestes, despedaçai-me as carnes! Que vos detém? Se há pouco, por um covarde escrúpulo, pude
negar o meu Mestre agora arrependo-me, reconheço-o, admiro-o e adoro-º
- Este homem está louco, disse um soldado.
E o povo foi deixando só a Pedro, em cujos olhos ainda não tinham secada as lágrimas. Maria, João e Madalena
reuniram-se com Pedro, e este conduziu-os pelo estreito corredor da casa do pontífice, em cujo extremo se achava Jesus
encerrado. A Mãe dolorosa viu seu Filho através dos varões duma janela. Mal o conheceu; tal o tinham posto os seus
bárbaros verdugos. Caifás tinha mando deixar livre a entrada para a plebe ver e insultar à sua vontade o Nazareno.
Maria chegou aflita e sua presença naquele lugar, fez emudecer os curiosos. A Virgem caiu de joelhos junto à grade,
exclamando de modo indefinível:
- Filho da minha alma!
A dois passos da grade via-se um grupo cuja dor era imensa, Madalena, João e Pedro choravam, dirigindo
através da grade olhares dolorosos para Jesus.
- Eu não tenho deixado de ver-te, minha Mãe, desde o momento da nossa separação, disse o Mártir; bendita serás
entre as mulheres como bendito será o fruto do teu ventre, que hoje é objeto de zombaria e escárnio.
Naquela dolorosa cena as lágrimas substituiram as palavras; dor profunda, imensa, indescritível; cruel amargura
a que a pena do homem não dará nunca o elevado sentimento de que foi digna.
Entretanto, no átrio da casa do pontífice, um homem cujo olhar tosco e receioso inspirava desconfiança,
perguntava aos soldados com preocupada e intranquila voz:
- É certo que Jesus foi sentenciado à morte?
- Tão certo como nós estarmos aqui esperando que amanheça para o levarmos à casa do juiz romano, responde
um soldado.
- E não amaldiçoou ninguém? Não disse que um traidor o vendera?
- Jesus suportou tudo com uma humildade incompreensível e pediu a Deus o perdão dos seus inimigos e juízes.
Judas, pois êste era o homem que fazia as precedentes perguntas, afogando um doloroso gemido, saiu do átrio e
encaminhou-se , ocultando-se na sombra, para a cidade de Davi. A medida que se ia afastando da casa do pontífice, seu
passo era mais precipitado, sua respiração mais cansada. Quando chegou à rápida ladeira da porta de Sion, quase corria.
A bolsa que pendi doc into do apóstolo traidor, fazia soar no fundo as trinta moedas de prata. Quanto mais corria,
mais lúgubre e ameaçador era o argentino som do dinheiro, que levantava um eco doloroso no coração do miserável.
Judas reconheceu naquele grupo de anciãos alguns dos juízes do sinédrio, e parou. Um horrível sorriso apareceu
em seus lábios. Seus olhos brilhavam de modo sinistro. Grossas gotas de suor lhe saíam da fronte e o cabelo e a barba
eriçavam-se-lhe por momentos.
- Vêde o que o vendeu! disse um dos anciãos.
- Sim, eu fui o infame, o miserável, o traidor; este dinheiro queima-me as mãos; tomai-o, tomai-o, para nada o
quero.

196
Judas estendeu a bolsa aos anciãos, mas eles retrocederam mostrando repugnância.
- Esse dinheiro é teu, disse um; tu o ganhaste, nós não podemos aceitá-lo.
- Pois bem, eu ofereço-o como uma dádiva ao templo, tornou o judeu.
- Esta dádiva mancharia a dignidade do Santo dos Santos.
- Aceitai, miseráveis! gritou Judas. Que maior mancha para o Deus invisível de Israel que as vossas orações?
E dizendo isto, atirou com as moedas aos pés dos sacerdotes e, descendo as escadas do templo, dirigiu-se
desesperadamente para a porta Dourada.
Judas correu muito, por fim parou a poucos passos da fonte de Sion, situada entre a porta dos Peixes e a porta
Grande. Ali, à borda dum precipício, crescia um sicômoro cujos robustos ramos se inclinavam para o abismo: um destes
ramos parecia um pau duma força. Judas fitou nele os espantados olhos, e sorriu-se de modo horrível, como sorri o
suicida em presença da morte, com o sorriso de Satanás.
- A vida, disse com cavernosa, é um gemido interminável, quando se tem, como eu, um inferno no coração. Ela,
pois, valor, lancemos fora uma carga tão penosa.
Judas desatou uma corda que levava ao cinto, atou um extremo ao ramo do sicômoro, e fez no outro extremo um
laço corrediço. Depois pôs uma pedra em cima de outra debaixo da árvore. Subiu, com uma impassibilidade digna de
melhor causa acima daquelas pedras com muito cuidado para que não caíssem. Meteu a garganta no laço corrediço e
empurrou a pedra com o pé, soltando uma horrível blasfêmia, cujo eco aterrado foi perder-se nas concavidades do
abismo. Depois o corpo de Judas, horrivelmente desfigurado, bamboleou sobre o abismo. Era um cadáver.
No dia seguinte quatro homens cortaram a corda, e o corpo de Judas caiu no barranco. Desceram a levantá-lo, e
levaram-no para uma das vertentes do monte do Mau Conselho, onde os sacerdotes tinham comprado um pedaço de
campo com o dinheiro de Judas para o enterrarem. Aquele campo chamou-se desde então Had ed adom, preço do
sangue. O sicômoro que servira de fôrça ao mau apóstolo, permaneceu em pe, suspenso sobre o abismo, por espaço de
mil e quatrocentos anos. Durante essa longa idade, nem um caminhante, nem um pastor, nem um árabe, se sentaram à
sombra daquela árvore maldita.

CAPÍTULO VI

A FAMÍLIA DE BELI-BETH

A pequena distância da Porta dos Juízes, na rua que mais tarde o mundo cristão devia denominar Rua da
Amargura, via-se uma casa de modesta aparência, sôbre cuja porta começavam a estender-se os delicados braços duma
parreia cujas verdes folhas formavam um frondoso tendal. Debaixo desta abóbada verdejante, via-se o local dum poço e
um banco de pedra.
Seram três horas da madrugada. Na estreita habitação achava-se uma mulher sentada à cabeceira duma cama,
onde jazia enferma uma velha. Junto via-se um berço, onde dormia um menino que apenas teria doze meses de idade.
A julgar pelo escudo, couraça, espada, capacete e lança que pendiam de uns pregos da parede, aquela habitação
devia ser de um soldado. E com efeito, Samuel Beli-Beth era o seu dono; a velha enferma, sua mãe; o menino no berço,
sua filho. A mulher que se achava junto da cama, era uma pobre vizinha cujo coração caritativo está sempre disposto a
fazer bem aos semelhantes. Chamava-se Seráfia, e em breve o seu nome devia imortalizar-se na via dolorosa do
Nazareno.
Beli-Beth era judeu. Apenas o buço lhe apontava no rosto quando sentou praça numa legião romana.
Soldado mercenário, tinha percorrido grande parte do mundo sob a águia triunfante do Tibre. Sem fé, sem
crenças religiosas, o seu Deus era a guerra, os seus amigos a lança e o capacete. Serviu Otaviano Augusto nos últimos
anos do seu reinado, depois Tibério. Ria-se dos deuses do Olimpio e do Santo dos Santos. Tinha força do atleta e foi
elevado à dignidade de centurião. Beli-Beth comandou por espaço de alguns anos cem homens e, no exército adquiriu a
reputação de valente. Por fim, em Jerusalém, pediu licença ao juiz Pilatos e contraiu casamento com uma jovem
jerosolimitana.
Beli-Beth juntou suas economias de soldado como o dote de sua mulher, e dedicou-se ao comércio de cereais.
Sua nova profissão aborrecia-o porém, amava entranhavelmente sua jovem esposa, e suportava o aborrecimento
dirigindo de vez em quando algum olhar aos seus aprestos militares, que, cobertos de pó e mofo, permaneciam
pendurados na parede da casa. Beli-Beth teria quarenta anos; era alto, fornido, e de feições pronunciadas, ainda que
bastante regulares. Tinha fama de questionador e irascível entre os amigos, os quais lhe puseram o opodo de Beli-Beth
em atenção à sua vida errante e inquieta. Sem embaraço, Samuel havia recolhido em casa sua velha mãe, que jazia
numa cama sofrendo uma paralisia geral que a tinha privado da fala e do ouvido. Aquela pobre velha, surda e muda,
nem sequer podia agradecer os sacrifícios que por ela fazia seu filho.
Quis a sorte que Samuel perdesse a querida esposa e ficasse com um menino de dez meses, de modo que o
soldado se achou só com sua mãe seu filho. Então uma vizinha, a caritativa Seráfia, amiga da defunta espôsa de Samuel,
ofereceu-lhe os seus serviços.
Na noite de que nos ocupamos, tinha Samuel saído de casa desejoso de saber o motivo das vozes e do barulho
que interrompia o sono dos habitantes de Jerusalém. Informado de tudo, regressou à casa quando Jesus foi prêso, por
ordem de Caifás.

197
- Que sucede na cidade, Samuel? perguntou Seráfia.
- Que Jesus Nazareno, o embaucador, o charlatão, foi prêso pelos sacerdotes, respondeu Samuel.
Seráfia estremeceu e, levantando-se do assento que ocupava, disse de um modo significativo:
- Isso não é possível, se não estão loucos os sacerdotes.
Samuel soltou uma gargalhada.
- Não te rias, Samuel; êsse homem é um Profeta; e tua mulher não teria morrido se lhe houvesse pedido com fé a
saúde.
- Olha, Seráfia, respondeu Samuel, eu era quase uma criança quando, abandonando o ofício de sapateiro, tomei
as armas nas legiões romanas e saí de Israel. Sabes o que me induziu a essa resolução? Não foi outra coisa que o
fanatismo dos meus compatriotas. Não há judeu que não sonhe com o Messias anunciado pelos profetas. Pobre gente,
sofrem o jugo romano, esperando o maná do céu!
Samuel soltou segunda gargalhada, e continuou:
- Amanhã teremos um grande dia: o cume do Gólgota será concorrido. Eu gosto muito desses espetáculos; mais
que das funções do hipódromo... ora verás... ora verás, amiga Seráfia, como nos divertiremos com esse feiticeiro que se
apelida filho de Deus.
- Os fariseus não se atreverão a crucificar um homem que não faz mal a ninguém.
- Ora, se eu tivesse tão certa a imortalidade como a morte de Jesus, viveria tanto tempo como o sol. Julgas tu que
pode um homem como eu crer nos deuses do Olimpo ou no Messias de Israel? Isso fica para vós, pobres fanáticos. Eu
vi Jesus esbofeteado, escarrado, escarnecido, coberto o rosto de sangue, feita em pedaços a roupa; Malco pôs-lhe a mão
na cara: porque não fez um milagre na preseça de todos? A ocasião era propícia: podia ter confundido os juízes e não o
fez; embaucador! Oh! Quando amanhecer será conduzido aojuiz romano. Digo-te que vamos ter um dia divertido: eu
não perderei nada. Felizmente, para ir ao Calvário deve passar por esta casa... Mas, deixando esse mago embaucador,
como está minha mãe?
- Dorme.
- E meu filho?
- Dorme também.
- Sim, sim, a velha tem o sono pesado, prelúdio da morte, e o menino o sono da infância; só eu vivo. Não é
verdade Seráfia, que a minha sorte é bem aziaga? Esse silêncio que me rodeia é horrível. Se ao menos minha pobre mãe
não tivesse perdido o uso da palavra!
Samuel aproximou-se da cama de sua mãe e do berço de seu filho. Seráfia retirou-se.
Samuel sentou-se junto do berço do filho e esteve-o contemplando por alguns momentos.

CAPÍTULO VII

CLÁUDIA PROCLA

Retrocedamos. O sol acabava de nascer. Seus raios saiam como uma chuva de ouro sobre os mármores brunidos
da cidade Antônia e da cilíndrica torre de Davi.
Pôncio Pilatos passeava pelo camarim. Nisto abriu-se uma porta e apareceu u’a mulher moça e formosa.
- Ah! disse o governador. És tu Cláudia? A que devo a felicidade de ter vêr cedo? Mas estás agitada... pálida!
Que tens?
- Tive um sonho horrível... espantoso! disse Cláudia.
- Repele os teus receios, Cláudia, respondeu Pôncio sorrindo-se. Eu bem sei que esta triste cidade de Jerusalém
não é muito do teu agrado: mas que queres? O teu parente Tibério diz que precisa que um homem como eu o represente
em Israel, e é mister resignarmo-nos a viver neste destêrro até o dia em que tenha piedade de nós, que espero seja
breve... Enquanto não chega esse momento, vive tranquila, teu esposo e as suas legiões velam por ti e, além disso, os
judeus conhecem que são impotentes ante a espada trinunfante dos filhos do Tibre.
- Não é isso, Pôncio, exclamou Cláudia que, apesar das palavras de seu marido, não recuperava a tranquilidade.
O que neste momento me sobressalta, o que me aflige, não é uma insurreição: é um sacrilégio, um deicídio, uma coisa
horrível, espantosa, que vão cometer os sacerdotes, e que não quero que sanciones com a tua aprovação.
- Minha Cláudia, estranho as tuas palavras: rogo-te, pois,que te expliques.
- Conheces Jesus Nazareno?
- Ah! sim! Esse Galileu que percorre as tribos curando enfêrmos; esse homem extraordinário que prega uma lei
nova; o que diz que os homens são irmãos; que o último será o primeiro no reino de seu Pai, e não sei quantas coisas
mais, cuja significação não compreendo. Mas que tem que ver esse Homem com o teu sobressalto?

198
- Pois Jesus foi preso esta noite pelos teus soldados! Nunca homem algum se viu tão cruelmente maltratado.
Desde quando escarram os filhos do Tibre no rosto e arrancam as barbas dos seus indefesos prisioneiros?
Pilatos olhou com assombro sua espôsa. Ele ignorava o que ouvia.
- Como sabes isso? lhe perguntou. Saiste da cidadela?
- Não, já te disse que tive um sonho horrível.
- Não creio nos sonhos, querida Cláudia.
- Pois eu vi uma horda de homens ferozes que, armados de lanças e paus, saiam pela porta das Águias à meia
noite. Entre esses homens iam soldados teus, e anciãos e sacerdotes do conselho. Chegaram ao horto das Oliveiras. Ali
estava Jesus orando como de costume. Ao verem-no, arremessaram-se sobre Ele como lobos famintos. Jesus com a sua
imutável mansidão, deixou atar as mãos atrás das costas. Depois conduziram-no à cidade, à casa do pontífice. Pelo
caminho as sangrentas zombarias, os crueis golpes prodigalizaram-se com criminoso luxo. Jesus sofria tudo, dizendo
com dulcíssima voz. Perdoa-lhes, meu pai: não sabem o que fazem. Pôncio, Pôncio, em Jerusalém, vai cometer-se
um crime espantoso. O sangue do inocente Galileu cairá sobre o teu nome, manchando-o eternamente. Tu és juiz
romano, só tu tens direito de vida ou de morte sobre os judeus. Eu venho rogar-te que não sejas cúmplice de tão nefando
crime.
- Repele vãos temores, lhe respondeu Pilatos um tanto preocupado. Juro-te que eu defenderei Jesus, caso ele não
tenha conspirado contra Tibério, meu senhor.
- Não esqueças que tenho a tua palavra.
- Confia: a setença de Jesus, se não for inimigo do império, não se assinará.
Pilatos tirou do dedo um grosso anel em cuja preda se achava gravada a cabeça de Tibério, e entregou-o à
espôsa.
- Estás contente? disse-lhe.
- Oh, sim, estou contente, porque vou evitar-te uma infâmia.
Apenas Pôncio Pilatos acabava de dizer estas palavras, quando Caio Ápio, centurião da guardaa pretoriana,
entrou no gabinete. Caio Ápio era espanhol, como Pilatos, e ambos filhos de Taragona. O governador tinha em Caio um
amigo leal e um súdito fiel.
- Senhor, os sacerdotes trazem-te um réu para que o julgues, disse Caio.
Neste momento, chegaram ao gabinete do governador as confusas vozes do povo, que da praça pedia justiça.
- Caio, bradou Pôncio, abre todas as portas do palácio; que entrem essas hienas.
Caio correu a executar as ordens do seu senhor. Cláudia saiu da câmara; mas antes recordou ao espôso que lhe
dera a palavra de respeitar a vida de Jesus. Poucos momentos depois, tornou a aparecer Caio Ápio. Os gritos
continuavam com dobrada fúria.
- Senhor, disse Caio, os juízes do sinédrio, os sacerdotes e os fariseus, recusam-se a entrar no palácio, porque
não querem manchar a consciência entrando no dia de Páscoa em casa de um homem que adora os deuses do Olimpo.
- Miseráveis hipócritas! exclamou Pilatos. Raça desprezível e vil, que toca as trombetas para dar um miserável
dinheiro de cobre ao mendigo, e rouba em silêncio um talento hebreu.
É como neste momento os gritos de “ – Justiça! Saia o governador! Apareça Pôncio Pilatos” – lhe chegavam
com mais força aos ouvidos, continuou:
- Está bem. Já que eles não querem vir a mim, irei eu a eles. Caio, forma a minha guardaa pretoriana nas escadas
do palácio, coloca o meu trono portátil debaixo do primeiro pórtico, e põe dois porta-estandartes ao pé dos degraus.Vou
ver o que querem de mim esses cães danados.
Caio obedeceu. O povo abrandou um tanto os seus ferozes clamoress em vista do aparato guerreiro que o juiz
romano ostentava. Ápio colocou dois porta-estandartes no primeiro degrau do palácio. Aqueles soldados, gravaes,
ameaçadores, com a pele de leopardo sobre as espaldas, a brunida couraça e o estandarte com a águia imperial
inspiravam-lhe respeito.
Dentro em breve correu a notícia de que o juiz romano ia apresentar-se.
Jesus, entretanto, achava-se no meio da praça, sofrendo os insultos e golpes da plebe.
Por fim apareceu Pilatos. A presença do governador reanimou os instintos sanguinários e ferozes da plebe.
Pôncio Pilatos estendeu em direção à praça um pequeno bastão de ouro que levava na mão, indicando que queria falar.
Um silêncio profundo se estendeu pela praça. O governador abrangeu com um olhar de desprezo aquela multidão e
depois, dirigindo outro de compaixão ao réu, disse:
- Justiça! A cruz para Jesus Nazareno! exclamaram mil vozes a um tempo.
Pilatos estendeu segunda vez o bastão, e disse:
- De que delito acusais esse homem?
Entre os sacerdotes houve um momento de vacilação, buscando como devia expor ante o juiz romano os crimes
imaginários do Nazareno. Por fim escolheram um homem que se prestou a tão degradante comissão. Tinha voz
ostentória e estatura elevada. Esse homem, que caminhou até chegar junto dos estandartes, chamava-se Beli-Beth.

CAPÍTULO VIII

DE PILATOS PARA HERODES

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Samuel Beli-Beth agarrou brutalmente pelo ombro direito a Jesus e conduziu-o quase a rastos até junto dos
degraus onde estavam os estandartes.
Depois, dando-lhe uma terrível punhada nas costas, disse:
- Juiz romano, o povo pede justiça, e espera-a de ti, porque só tu tens direito de vida e morte sobre os súditos do
ilustre imperador Tibério. Este homem é filho do carpinteiro José e Maria; todos o conhecem perfeitamente. Diz, sem
embargo, que é Rei de Judá, Filho de Deus e não sei quantos sacrilégios que não é decoroso recordar. Há três anos que
percorre as tribos embaucando as pessoas simples; não respeita a lei de nossos maiores, e cura ao sábado as doenças do
próximo. Isto, como vês merece a morte, e isso espera de ti o povo que enche a praça.
Beli-Beth tornou a assentar segunda punhada no peito de Jesus. O povo aplaudiu-º. O miserável judeu fez uma
cortesia, agradecendo.
- Se Jesus não cometeu mais crimes que os que acabas de relatar, disse Pilatos, eu, que represento Roma, não lhe
acho culpa suficiente para o castigar.
- É um malfeitor, um conspirador, um blasfêmo, gritou Caifás, aproximando-se dos degraus. Se não fôsse um
criminoso não to haveríamos trazido.
- Se esse Homem pecou contra a vossa lei, tornou Pilatos, julgai-o vós. Que tem que ver Roma com as vossas
questões religiosas? Tolera-vos o vosso templo, permite-vos que rezeis nas vossas sinagogas e nada mais. Julgai-o vós.
- A pena de morte, bem o sabes, Pilatos, que o reservaste a vós, disse Caifás, como direito de conquista; nós não
podemos sentenciar Jesus, e o seu crime merece a morte.
- Pois bem, acusai-o de crimes que que mereçam a cruz: estou pronto a ouvir-vos; mas em tudo o que me
dissestes nada achei digno de morte...
- Pilatos, no que te dissemos tens motivos para sentenciar Jesus; lembra-te que Tibério declarou réu de morte em
cruz afrontosa todo feiticeiro, e este homem cuja endemoninhados e faz outros mil sortilégios.
A Pilatos, que era homem justo e reto, ainda que um pouco timido e político, começava a desagradar o nome de
Tibério naquele negócio; e, desejando acabar depressa, mandou um litor, que fizesse subir Jesus ao Pretório.
Ao ver o Nazareno, Pilatos contemplou alguns segundos a sua mansidão. No divino olhar de Jesus havia tal
bondade, que o juiz não pode deixar de murmurar em voz baixa:
- Este Homem não pode ser criminoso: tem no rosto a beleza da alma.
Depois perguntou-lhe com acento carinhoso:
- És tu o Rei dos Judeus?
Jesus respondeu, fitando os formosos olhos nos de Pôncio:
- Dizes isso por ti mesmo ou disseram-te outros de Mim?
Pilatos meditou, porque a voz de Jesus lhe tinha produzido na alma uma doce sensação e disse:
- Sou eu acaso judeu? A tua nação e os pontífices te puseram nas minhas mãos. Por que desejam a tua morte
com tal empenho?
- O meu reino não é deste mundo, disse Jesus; não devo, pois, inspirar receio ao teu senhor. Se dêste mundo
fôsse, os meus ministros pelejariam para que não fôsse entregue aos judeus.
- És tu Rei? disse Pilatos.
- Tu dizes que o sou, respondeu Jesus; Eu para isso nasci, mas venho reinar nos corações dos justos, transmitir-
lhes a luz divina da graça e da verdade: todo aquele que ama a verdade, escuta a minha voz.
- Mas que verdade é essa de que me falas?
Jesus não respondeu. Então Pilatos, disse ao povo, levantando a voz:
- Nenhum delito acho neste homem.
A opinião de Pilatos irritou os fariseus, que começaram de novo a soltar maldições.
- Meditas o que dizes, exclamou Caifás, crendo que a vítima lhe escapava das mãos. Jesus na Galiléia praticou
toda a casta de sacrilégios.
- É galileu Jesus? perguntava Pilatos.
- Sim, de Nazaré.
- Pois então levai-o a Herodes, tetrarca da Galiléia, que se acha no seu palácio de Jerusalém por causa das festas
da Páscoa; que julgue ele, dizei-lho da minha parte. Não é decoroso que eu me intrometa nos crimes dos seus súditos.
E depois entrou no seu palácio. Sua espôsa, esperava-o na ante-câmara.
- Estás contente comigo? lhe perguntou Pôncio.
- Pôncio, creio que foste fraco nesta ocasião: devias ter arrebatado Jesus das mãos dos seus verdugos.
Entretanto Jesus era conduzido ao palácio de Herodes, que se achava na cidade de Beceta, a pequena distância
do de Pilatos. O que com mais encarniçamento maltratava Jesus era Beli-Beth, que gritava como um energúmeno ao seu
lado, dando-lhe desapiedados golpes.
- Mago feiticeiro, faz um milagre, concedendo-me a mim a imortalidade, e a minha mãe, que é muda, o uso da
palavra!
Jesus voltou uma vez a cabeça, junto do palácio de Herodes, e dirigindo-se a Beli-Beth, disse:
- O filho do homem vai-se... mas tu esperarás que volte.
Beli-Beth soltou uma gargalhada.
A comitiva continuou a caminhada, parando em frente ao palácio de Herodes. Aquele rei vérdugo, monarca
assassino, receoso e cruel, tinha edificado seu palácio-fortaleza com um luxo, e magnifiência incríveis.

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O palácio era construído de mármore em côres. Os muros tinham uma altura de trinta côvados; e, como se aquela
muralha nãoa fôsse bastante para a segunda do assassino de Belém, três torres, as mais altas que então se conheciam no
universo, protegiam o palácio. Mais que um palácio, era um povoado. Seus imensos jardins, seus amplos salões,
admiravam os viajantes. Herodes Antípas, o matador do Batista, achava-se neste palácio quando um dos seus servos foi
dizer-lhe que Pilatos, o juiz romano, lhe enviara Jesus Nazareno para que o julgasse como a sua reta justiça tivesse por
conveniente. Herodes tinha vivos desejos de conhecer Jesus, cuja fama lhe chegara aos ouvidos. Dirigiu-se à sala das
audiências mandando que introduzissem o Réu e os acusadores à sua presença.
Quando Jesus entrou na sala, achava-se Herodes sentado no trono. O Galileu que durante a noite precedente e
parte da manhã não tinha levantado os olhos do chão, sem abandonar nem um momento sua admirável mansidão, tão
depressa se viu diante do assassino de João Batista, fitou nele o olhar. Herodes suportou aquele olhar por um momento,
e depois disse:
- Não podeis imaginar, respeitáveis sacerdotes, quanto vos agradeço o apresentar-me este Homem. Há tempo que
a fama dos seus milagres me ressoa nos ouvidos, e desejo vivamente ver com meus olhos um dêsses prodígios que traz
alvoroçados os habitantes de Zabulon. Aproxima-te Profeta, e não temas; e, pois que os prodígios estão em tuas mãos,
mostra-me as tuas habilidades. Confunde a minha pouca fé. Vamos, faze um milagre.
Jesus dirigindo um olhar de compaixão ao tetrarca, guardou silêncio.
- És mudo? tornou Herodes. Por que não falas? Por que não me confundes? Chega-te a essa janela de onde se vê
a cilíndrica torre de Davi, e dize-lhe que te saúde. Esqueces que sou o tetraca de Galiléia, exclamou Herodes cheio de
ira, e que o teu silêncio pode custar-te caro?
O Nazareno sorriu-se docemente.
- Miserável, disse o tetrarca, desprezas as minhas ameaças! Estás louco! Faze um prodígio ou, do contrário, o
rigor da minha ira te cairá sobre a cabeça.
O Mártir permaneceu impassível e mudo com os olhos fitos no rosto do tetrarca.
- Faço mal em irritar-me contigo, disse Herodes. Sem dúvida, ilustre Rei, julgas-me inferior à tua pessoa e
desprezas-me. É justo; mas devo advertir-te que eu não me acho disposto a perdoar-te e aclamar-te meu Senhor, mas até
prometo adotar-te como Deus, se lograres ressuscitar teu nobre avô Davi. Faze esse milagre e caio de joelhos aos teus
pés.
Jesus nada respondeu. Então Caifás, o mais encarniçado inimigo de Jesus, que o seguira até ao palácio de
Herodes, adiantou-se alguns passos e colocando-se junto do Réu, exclamou:
- Ilustre tetrarca, este Homem é um embaucador; ofereces-lhe uma coroa por um milagre, e não o faz.
- Ora! Para que precisa Jesus da coroa? Não a tem de espinhos na cabeça? Que falta lhe faz o cetro? Não o tem
de cana nas mãos? Só lhe resta a túnica branca dos reis do teatro. Pois, daí a Jesus Nazareno a túnica, e levai-o a Pilatos
para que lhe penha sobre os ombros o manto de púrpura dos imperadores.
Depois, descendo do trono, abandonou a sala da justiça, mandando que levassem dali aquele Homem.

CAPÍTULO IX

DE HERODES A PILATOS

Pilatos já se julgava livre do grave compromisso de sentenciar Jesus,quando ouviu na praça altas vozes. Chegou-
se a uma janela e, com desgôsto e assombro, viu que lhe levavam segunda vez Jesus. Caio Ápio entrou para dizer-lhe
que um criado de Herodes desejava falar-lhe.
- O tetrarca envia-te Jesus, respondeu Caio.
- Porque não o sentencia?
- Sem dúvida não lhe acha crime para isso.
- Que entre esse Homem.
Pouco depois o criado de Herodes achava-se em presença do governador.
- Meu amo envia-me, disse o criado, para dizer-te que te agradece o teres-lhe enviado Jesus Nazareno, e que
desde este momento te roga dês ao esquecimento todo o passado, e o reconheças como um amigo e um súdito fiel e leal
do Augusto Tibério.
- Dize a teu amo que pode contar desde agora com a minha amizade, e que fico muito honrado se me conta no
número dos amigos.Mas, por que torna a remeter-me Jesus? Por que não o julga, sendo galileu?
- Porque meu amo crê que esse Homem, mais que criminoso é um louco.
- Pilatos! Saia o Governador! Sentencie o Galileu! A cruz para o Nazareno! – gritava a alvorotada multidão da
praça desaforadamente.
Pôncio estremeceu. Aqueles gritos levantaram-lhe um eco doloroso na consciência. Já o dissemos: Pilatos era
fraco, e a sua fraqueza ia manchar-lhe para sempre o nome. A história do juiz romano ia escurecer-se com uma nódoa
indelével.
- Oh! Essas hienas acabarão por devorar o indefeso Cordeiro que lhes caiu nas mãos! exclamou Pilatos; e,
dizendo isto, encaminhou-se para o terraço do palácio ou ponte do Xisto, de onde falava ao povo.
- Israelitas, lhes bradou, que quereis de mim?
- A morte, o Gólgota, a cruz para este Homem, gritou a multidão com raivoso acento.

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- Apresentaste-me esse Homem, como pervetedor do povo, e eis que interrogando-o eu diante de vós não achei
n’Êle culpa alguma daquelas que lhe imputais; remeti-vos para Herodes, e também o tetrarca não o julga criminoso. Se
nada se provou que mereça a morte, por que o quereis matar? Assim, soltá-lo-ei depois de o ter açoitado.
Pilatos sentou-se junto de uma mesa que tinha mandado levar para o terraço, e escreveu esta sentença em língua
latina:
“Despi, atai e açoitai com varas a Jesus de Nazaré por sedicioso e menosprezador da lei de Moisés, acusado
pelos sacerdotes e príncipes da nação. – Litor, vai e entrega as varas”.
Esta sentença foi uma infâmia. Se Jesus, era inocente, como acabava de decidir Pilatos, porque o sentenciava a
um castigo tão afrontoso? Em vão mais tarde lava as mãos para se limpar do afrontoso baldão que ia cair sobre o seu
nome, desprezado pelas gerações vindouras.
O litor pegou no criminoso papiro que levava a sentença de Jesus e correu a buscar os verdugos e o Réu.
Pilatos retirou-se do terraço, afrontado de sim mesmo. Temia encontrar Cláudia, sua espôsa.

LIVRO DÉCIMO SÉTIMO


O GÓLGOTA

CAPÍTULO I

A COLUNA DAS AFRONTAS

O Litor desceu os degraus do palácio com a afrontosa sentença na mão, seguido de seis salões, cujo rosto
amarelado, miserável catadura e magro corpo, revelavam a origem egípcia; homens degradados na repugnante profissão
de tormentadores públicos.
Apenas o litor lhes aponteou Jesus, lançaram-se sobre Ele e conduziram-no quase a rastos para baixo dos
pórticos onde se achavam as colunas dos ultrages.
Teriam estas escassamente cinco pés de altura, e uns grossos anéis de ferro para atar os braços do réu, de modo
que as costas apresentassem toda a largura para que os golpes não fosse infrutuosos.
O sentenciado devia receber quarenta açoites com varasa de aveleira formando feixes. Destes quarenta açoites,
perdoava-se um para que não se descontasse em prejuízo do paciente. Vergonhosa clemência que horroriza e indigna o
mundo ilustrado!
Estes trinta e nove golpes davam-se; treze nas costas, treze no ombro direito e treze no esquerdo.
Os saiões amarraram terrivelmente Jesus na coluna, rasgando-lhe a veste pelas costas até mostras as carnes.
Naquele doloroso momento o semblante de Jesus respirava mansidão infinita; seus olhos contemplavam com
dulcíssima expressão os verdugos.
O litor fez um sinal com a mão, e o verdugos começaram sua afrontosa e terrível tarefa.
- A cruz! O Gólgota para Jesus! Crucificai-o! Crucificai-o!
Pilatos, aturdido com aquela gritaria infernal, mandou um arauto que tocasse o clarim de silêncio.
Tão depressa as ardentes notas do bélico instrumento se estenderam pelas âmbitos da praça, o povo calou-se.
Todas as gargantas emudeceram. O silêncio foi universal.
Naquele momento horrível só se escutava o assobio das varinhas espinhosas ao caírem sobre as ensanguentadas
costas de Jesus, e os dolorosos gemidos do divino Mártir, murmurando:
- Perdoai-lhes, meu Pai: não sabem o que fazem!
Jesus, entregue ao furor dos soldados romanos e dos ferozes verdugos, sofreu o que nenhum homem jamais
sofreu. Aqueles idólatras ajoelharam-se diante d’Êle para o venerarem por escárnio, como Rei. Quando o desataram da
coluna Jesus caiu desfalecido aos pés dos verdugos.

202
- Deus te salve, Rei da Judéia! exclamava um, açoitando o rosto de Jesus com as duras e ensanguentadas correias
que ainda conservava na mão.
- Glorioso Messias! exclamava outro, escarrando na divina face do Nazareno. Faze um milagre! Enriquece-me!
pois boa falta me faz.
Guardava Jesus profundo silêncio ante tão atrozes insultos.
Os costumes, as leis, tinham sido violadas, e, sem embargo, ainda se cevavam de um modo cruel na indefesa
Vítima que se acha a seus pés.
Esta fraqueza produziu um grito de júbilo enre os verdugos.

CAPÍTULO II

“ECCE HOMO”

Jesus jazia no chão, cercado dos seus verdugos que lhe escarravam no rosto e maltratavam o corpo, quando de
pronto se levantou sobre os joelhos e logo se pôs em pé.
Como os gritos da multidão redobrassem ao invés de diminuirem mandou Pilatos que cobrissem os ombros do
Réu, com um manto de púrpura e o conduzissem à sua presença.
O juiz romano pensava por este meio irrisório aplacar o furor do povo.
Pilatos mandou que Jesus, amparado por dois soldados, fosse levado à varanda do seu palácio, para que o povo o
visse com o manto de púrpura, coroa de espinhos e cana na mão.
- Vêde-o, israelitas! Gritou Pilatos. “Ecce Homo”! Bastante castigado está pelos seus crimes. Que vos importa
que este Homem viva depois da afronta que acaba de receber?...
- Ao Gólgota!... Ao Gólgota!... Crucificai-o! Crucificai-o! clamava o povo.
Caifás, cujo rancoroso coração temia que Jesus se livrasse da morte, subiu até o último degrau do palácio, e
gritou com voz desaforada.
- Pilatos, o teu dever é respeitar a nossa lei e castigar os inimigos do César. Jesus chamou-me filho de Deus:
merece, pois, a morte, pela nossa lei. O segundo delito de Jesus é o crime de rebelião contra Tibério, e merece morte na
cruz. Crucificai-o tu, que é a quem compete.
O nome de César fez estremecer Pilatos. Tibério era cruel, e castigava os crimes de rebelião tentados contra a sua
pessoa, de um modo terrível. Pôncio começou a temer que aqueles furiosos sacerdotes o envolvessem em alguma
calúnia de fatais consequências para ele. Fez aproximar-se Jesus, e disse-lhe:
- Defende-te. Bem ouves o que de ti dizem.
Jesus guardou silêncio. Neste instante, um criado de Cláudia acercou-se de Pilatos e disse-lhe:
- Senhor, tua espôsa me manda dizer-te que não esqueças a tua promessa; que respeites a vida do Nazareno,
porque é um homem justo.
Pôncio Pilatos chegou a desorientar-se.
Fez um último esforço para o salvar. Entre os hebreus havia o costume de dar liberdade nos dias de Páscoa a um
criminoso.
A poucos passos do palácio do juiz romano achava-se o cárcere e numa das masmorras, carregado de cadeias,
jazia um criminoso, um ladrão, um assassino, cujo só nome assustava a gente honrada. Devia morrer na cruz passadas
as festas, e chamava-se Barrabás.
Pilatos chegou segunda vez à varanda e indicou que ia falar. O povo calou-se.
- Judeus, lhes disse: Interroguei pela terceira vez Jesus, e a minha consciência diz-me que é inocente e não
merece a morte. Entre vós existe o costume de conceder a liberdade a um criminoso nestes dias. Quereis que se solte
Jesus?
- Faz morrer Jesus! Solta-nos Barrabás! exclamaram os sacerdotes.
Pilatos tornou a retirar-se da varanda. Apesar da sua fraqueza de caráter, repugnava-lhe matar Jesus. Fez o
último esforço: interrogou novamente o Réu; mas o Réu continuava encerrado no seu sublime silêncio.
- Porque não me respondes? lhe disse Pilatos. Não sabes que na minhamão está a tua morte ou a tua vida?
Jesus, que não se tinha defendido, ao ouvir as palavras do juiz romano, dirigiu-lhe um olhar, e disse com pausado
acento:
- Nenhum poder terias sobre mim, se não te fosse dado do Alto.
As palavras, o acento, o olhar de Jesus, tudo naquele Homem tinha uma magestade tão sublime, que Pilatos
sentiu uma coisa extraordinária dentro do seu ser.
Jesus naquele momento, parecia-lhe um Deus.
Suas mãos, assinando a sentença de morte d’Êle, manchavam-se para uma eternidade. Seu coração, pouco antes
indeciso e fraco, resistiu-se de valor, e tornou a chegar à varanda, resolvido a salvar o Acusado.
Esta resolução irritou de um modo horrível os sacerdotess e a plebe. Caifás, que formava à frente daquelas feras,
falou:
- Pilatos, lembra-te que esqueces os teus deveres. Jesus proclamou-se Rei dos Judeus, usurpando uma dignidade
que pertence a Tibério, teu senhor e nosso, por direito de conquista. Esse homem que defendes é inimigo do César.

203
Sendo seu defensor, tornas-te seu cúmplice. Salvando-lhe a vida, atentas contra a glória do augusto imperador de Roma.
Ai de ti, Pilatos! Ai de ti, se o teu procedimento neste dia chega aos ouvidos do senhor do mundo, do imortal Tibério!.
Pilatos tremeu, ouvindo as palavras do Pontífice. Fraco e covarde, rendeu-se ante as ameaças daquele sacerdote
perigoso, e cometeu a infâmia de dizer com trêmula voz:
- Pois bem, já que o quereis, seja: eis aqui o vosso Rei, a quem quereis matar!
Então o povo gritou:
- O nosso rei é o César Tibério; a ele só rendemos acatamento. Jesus é um iniigo de Deus e do imperador.
Pilatos tremia ouvindo pronunciar o nome de Tibério, mas repetiu pela última vez:
- Que o sangue do justo caia sobre a consciência do assassino.
- Caia o seu sangue sobre a geração presente e sobre os filhos dos nossos filhos, disse Caifás.
Pilatos desceu ao pátio onde estava o tribunal chamado pelos hebreus Gabbatha, e pediu uma bacia de água.
Pouco depois, apresentaram-se dois criados com a bacia e a toalha. Traziam também a Pilatos o anel que sua
espôsa Cláudia lhe devolvia, com estas palavras:
“Pôncio, Deus te perdoe o sacrilégio que vais cometer. Devolvo-te o teu sêlo e a tua palavra”.
Pilatos pegou no anel maquinalmente, e mandou ao criado que lhe deitasse água nas mãos.
Depois que as lavou, voltou-se para os fariseus e sacerdotes, e disse-lhes:
- Tomo o céu por testemunha de que sou inocente na morte desse Justo! A cólera celeste caia sobre os seus
verdugos.
- Amém! replicaram os sacerdotes.
Depois, Pôncio Pilatos sentou-se numa cadeira junto da mesa; Jesus de pé ao seu lado: os soldados rodeando o
mártir, e os ferozes sacerdotes e o povo em frente.
Era sexta-feira, e seriam aproximadamente dez horas da manhã. O juiz romano escreveu com mão trêmula.
“Nós, Pôncio Pilatos, governador de toda a província da Judéia pelo sacro império romano; estando no nosso
tribunal e sala de audiência; ouvidas as acusações criminais dos sacerdotes, escribas e fariseus, a comoção e clamor do
povo contra Jesus de Nazaré; concordando todos e dizendo como alborotou e comoveu toda a cidade e povo, ensinando
doutrians novas contra a lei de Moisés; fazendo-se autor duma nova lei; pretendendo levantar-se Rei, e como tal sendo
tido o atrevimento de entrar triunfante com ramos e palmas na cidade; e por ser menosprezado a justiça e autoridade do
imperador Tibério, proibindo aos vassalos lhe pagassem tributo; mas o que causa ainda maior escândalo é que se
gloriou e disse muitas e diferentes vezes que era Filho de Deus, sendo Homem de baixa condição, filho de um pobre
artista, e de uma Mulher chamada Maria.
Portanto, tendo considerado muito bem, e examinando a verdade das sobreditas acusações, achando-se
gravíssimos os seus delitos, julgamos que deve ser condenado e sentenciado, como de fato o sentenciamos a ser
conduzido pelas ruas castumadas da cidade de Jerusalém com uma cadeia e corda ao pescoço, levando Êle mesmo a
cruz, acompanhado de dois ladrões, para maior afronta, até à montanha do Calvário, e ali seja crucificado na sua cruz.
Os dois ladrões estão igualmente pendentes das suas cruzes um à direita e outro à esquerda, residindo no meio
como Rei, para que seja exemplo e escarmento de todos os malfeitores, e em voz alta pelo pregoeiro,para que chegue ao
conhecimento de todos e ninguém possa alegar ignorância alguma. – Pôncio Pilatos”.
O juiz romano entregou o escrito aos sacerdotes dizendo:
- Tomai, cumpra-se como desejais.
Depois entrou no palácio.

CAPÍTULO III

A RUA DA AMARGURA

Junto da cidadela Antônia achava-se o cárcere. Uma mulher acocorada no umbral da porta chorava
amargamente, com a cabeça escondida nas pregas do manto.
Ao seu lado, de pé, triste, imóvel, achava-se um moço com uma citara pendente do ombro. Era Enoé e o moço
era Boanerges, seu filho, que esperavam para ver o seu protetor, o bandido Dimas.
Um litor seguido de quatro soldados parou diante da porta do cárcere. Enoé levantou a cabeça. Um carcereiro
saiu ao encontro do litor e este apresentou-lhe um papiro, que dizia:
“O carcereiro entregará ao litor os dois bandidos Dimas e Gestas”.
- Ah! Com que finalmente os crucificam, disse o carcereiro, dando voltas ao molho de chaves que lhe pendia da
cinta.
- Quando o sol se achar no meio da carreira, serão cravados no cume do Gólgota.
- Mais digno dessa sorte era Barrabás que Dimas! tornou o carcereiro.
- O povo assim o quer.
- Morre também com eles o Nazareno?
- Sim, entre dois ladrões, segundo diz a sentença.
Enoé, que escutara absorta o precedente diálogo, vendo que os soldados se dispunham a entrar no cárcere, pôs-se
em pé, e, adiantando-se para o litor, deteve-o, dizendo-lhe:

204
- Pois que, vão crucificar Dimas? O homem melhor de Israel?
E como Enoé colhera maquinalmente com a mão nervosa o manto do litor, este disse aos soldados.
- Afastai esta mulher.
Enoé, repelida pelos soldados, caiu nos braços de seu filho.
Pouco depois, Dimas e Gestas saiam do cárcere conduzidos pelos soldados.
Boanerges, cobriu o rosto de sua mãe com o corpo, para que não o visse.
Dimas saudou Boanerges enviando-lhe um olhar de despedida.
Quando os réus chegaram à praça, a multidão saudou-os com um grito de prazer. No meio da praça as afrontosas
cruzes esperavam os réus. Doze verdugos, soldados das fileiras romanas, rodeavam os instrumentos do patíbulo. O
povo, para não se manchar com seu contato, deixava um espaço entre eles e os saiões.
Como cães danados, como carniceiras hienas, lançaram-se sobre Jesus, e, arrancando-lhe o manto de púrpura que
pouco antes lhe tinham pôsto sobre os ombros, vestiram-no com o antigo traje para que fosse reconhecido de todos.
Trinta soldados, capitaneados por Caio Ápio, esperavam junto aos degraus da cidadela Antônia o momento da
partida. Era a guarda de honra que devia acompanhar Jesus ao Gólgota.
Os quatro brucianos, os miseráveis desertores que, depois de abandonarem as fileiras dos romanos, exerciam em
castigo a degradante profissão de verdugos, fizeram o sinal de que o Réu estava vestido e pronto. Então ouviu-se uma
trombeta, e depois uma voz que disse:
- Cumpra-se a sentença.
Esta era a voz de Longuinhos, que devia romper a marcha adiante de quatro soldados a cavalo. Os calabreses,
mais compassivos, puseram as cruzes sobre os ombros dos bandidos Dimas e Gestas, sustentanto-as pelos extremos
para que não fosse a carga tão pesada. Mas os brucianos, miseráveis desalmados, colocaram o pesado lenho sobre o
ombro direito de Jesus, dizendo:
- Já que és Filho de Deus, leva só a carga e faze um milagre, para que te não seja pesada.
Jesus estava débil, pálido, desfalecido. Mal podia ter-se em pé. Ao receber sobre os amantíssimos ombros o
pesado e afrontoso lenho, seu corpo dobrou-se como a frágil cana impelida pelo rijo sopro do furação.
Os verdugos riram-se daquela fraqueza. O povo, vendo o Mártir pronto a encetar o caminho do suplício, agitou-
se como um imenso formigueiro, soltando gritos de prazer.
A comitiva seguiu o caminho do Calvário, ao lúgubre som das trombetas. Longuinhos, seguido de quatro
soldados a cavalo, ia adiante, afastando a gente com a lança. Seguia-se um pregoeiro e dois trombeteiros.
O primeiro devia ler a sentença em todas as bocas de rua do trânsito.
Caminhavam depois os soldados a pé, apetrechados com os arreios de guerra, capacetes, escudos, coraças e
espadas.
Atrás destes soldados iam Dimas e Gestas com a cruz às costas, e rodeados dos auxiliares dos verdugos, que lhes
sustentavam o pesado extremo do lenho. Logo seguia, deixando espaço, um jovem luxuosamente vestido á romana,
levando uma águia de ouro bordada no peito. Levava na mão um bastão comprido, no extremo do qual via-se uma
atabuinha de cedro com este letreiro em samaritano, grego e latim:

“JESUS DE NAZARÉ, REI DOS JUDEUS”

Atrás deste jovem ia Jesus, rodeado de verdugos, com uma corda atada à garganta.
Um menino, formoso como as alvoradas de maio, louro como as espigas de agosto, risonho como o canto da
cotovia, caminhava confundido entre os verdugos. Levava sobre os débeis ombros uma cesta com pregos, martelos e
tenazes e ia cantando alegremente.
Jesus dirigia seus compassivos olhos para aquele inocente pimpolho carregado com os cruéis instrumento da sua
morte.
O Nazareno com a mão direita procurava diminuir o peso enorme do afrontoso lenho, e com a esquerda
levantava a comprida túnica para não tropeçar nas duras e desiguais pedras das ruas.
Jesus não tinha comido nem bebido desde a ceia do dia precendente. Além disso, seu sangue tinha corrido com
abundância: a sêde e a febre devoravam-no: porém seu Pai dos céus lhe emprestou forças para suportar tão fatigante
peregrinação.
Os passos que distam desde o palácio de Pilatos ao monte Gólgota, um milhão de vezes tem sido contados com
religioso escrúpulo pelos peregrinos cristãos, que, cheios de fé, tem acudido a Jerusalém de todos os países do mundo, a
orar sobre o monte Calvário, Aquele que sofreu pela raça humana: são mil trezentos e vinte e nove passos, ou três mil
trezentos e três pés.
A plebe, instada pelos fariseus e sacerdotes, seguia Jesus, uivando, escarrando da sua cruel agonia.
Aos oitenta passos tropeçou Jesus numa pedra, faltaram-lhe as fôrças e caiu. A multidão soltou um grito de
alegria. A divina fronte do Galileu tinha batido no duro pavimento da rua.
Os saiões puxaram as cordas para o levantarem; os soldados deram-lhe duríssimos golpes com as hastes das
lanças para refazerem suas desfalecidas forças.
Jesus levantou-se fitando os formosos e doces olhos no céu.
Seus divinos lábios murmuraram uma frase que ninguém pode compreender e, ao redor da sua puríssima fronte
apareceu uma auréola de resplandecente luz.
- Saudai o Rei dos Judeus! exclamou um. Não vedes como se levanta para olhar o povo, para agradecer ao
numeroso acompanhamento que o segue ao Calvário?

205
- Dize-nos, falso Profeta, exclamou outro, enterrando-lhe a coroa de espinhos como o coto da lança, porque com
a queda se lhe desviara um pouco da fronte; dize-nos quando cairá o templo; quando virão as tuas legiões de anjos
defender-te. Por Júpiter, que deve ser uma grande batalha a que se der então! Pelejar com os homens é vulgar: mas com
os anjos, isso já muda de figura. Só peço aos deuses do Olimpo que me concedam essa glória!
Esta horrível gargalhada foi repetida pela multidão. Jesus continuou o doloroso caminho repetindo em voz baixa:
- Perdoai-lhes, meu Pai: não sabem o que fazem.
Entretanto a Virgem Maria dissera a João.
- Corramos ao Calvário! Quero ver meu filho!
As santas mulheres e o discípulo favorito de Jesus foram juntos. Maria colocou-se na Via Sacra, num ponto por
onde ia passar o Filho.
Ali caiu de joelhos. Madalena, Maria Cléofas, Maria Salomé e João rodearam-na. Era em vão querer consolar
aquele coração dilacerado.
A gritaria, o barulho ia-se aproximando.
Jesus tinha caminhado mais sessenta passos desde a primeira queda, quando encontrou sua Mãe, que fazendo um
esforço sobrenatural, se lançou aos pés de seu Filho.
Alguns soldados pretenderam repeli-la com as lanças.
A Virgem sofreu aqueles duros golpes sem apartar os chorosos olhos da triste imagem do seu Jesus amado.
Então passou-se uma coisa horríve. Um miserável verdugo, um daqueles brucianos escolhidos pelas suas
infâmias para sacrificadores, pegou num punhado de pregos da cesta que levava o rapaz, e, atirando-os ao rosto de
Maria, dissera-lhe:
- Toma, Galiléia: ai tens o presente de morte que te faz teu filho, o Profeta de Nazaré.
Jesus quis correr em socorro de sua Mãe. Mas ai! os pés enredaram-se-lhe na túnica, e segunda vez caiu ao chão,
batendo com a divina fronte nas duras pedras da rua.
- Filho da minha alma! exclamou a Virgem, com um desses gritos que só podem sair do coração de u’a mãe.
Jesus, sereno, pálido e vacilante, dirigiu um doloroso olhar a sua mãe, e levantando-se disse-lhe com voz
dulcíssima:
- Salve, Flôr de amargura! Salva, Estrela puríssima da manha! Salve, minha Mãe!
Mas antes que os lábios da Mãe depositassem um beijo na dolorida fronte do Filho, os ferozes verdugos
afastaram-na bruscamente. Maria caiu desfalecida nos braços de Madalena. João cobriu com seu manto o corpo
daquela Mártir.
A enamorada donzela de Mágdalo, dirigiu um olhar cheio de amor e amargura para Jesus, e a comitiva continuou
a interrompida marcha.
A multidão rugia em derredor do Mártir, dando gritos de – Viva Barrabás! Morra o Galileu! – E Jesus, o
mansíssimo Cordeiro, o Amigo dos aflitos, o Redentor dos homens, caminhava oprimido sob o peso do afrontoso lenho,
repetindo:
- “Jerusalém! Jerusalém! Quantas vezes quis congregar os teus filhos como a galinha congrega os pintainhos
debaixo das asas, e não quiseste!”
Jesus teria caminhado a metade da dolorosa estrada, quando parou pela terceira vez, falto de alento. As pernas
fraquejavam-lhe.
Alguns pobres do arrabalde de Ofel e algumas mulheres a quem a bondade e os milagres de Jesus tinham curado
as doenças, choravam amargamente seguindo os passos do Mártir.
Jesus levantou maquinalmente a formosa e dolorida cabeça. A poucos passos do lugar em que se achava, viu-se
uma casa, sobre cuja porta estendia os seus verdes ramos uma formosa parreira. Ali havia um poço e, em cima do bocal,
um cântaro cheio de fresca e transparente água.
Junto do poço, pôsto em pé sobre um banco de pedra, via-se um homem de elevada estatura e feições
pronunciadas. Era Samuel Beli-Beth.
- Hosana ao que vem em nome do Deus invisível de Israel morrer pelo homem! exclamou Beli-Beth em tom de
mofa. Ah! Ah! Ah! O Gólgota vai ficar honrado com o teu suplício. Chorai, hipócritas jerossolimitanos! Chorai pelo
Mago, pelo falso Profeta, pelo Embaucador!
E aquele miserável ria-se como um condenado.
- Samuel, disse Jesus, tenho sede! Dá-me dessa água! Samuel, permite-me por caridade que descanse um
momento à sombra dessa parreira. Não posso com a fadiga: deixa que descanse alguns instantes no banco da tua horta!
- Anda, feiticeiro maldito; teu contato murcharia os verdes pâmpanos da minha parreira.
- Samuel, repeitu Jesus, ainda podes salvar-te! Ajuda-me a levar a cruz até o Gólgota.
- Ah! ah! exclamou Samuel. Não és Filho de Deus. Pois então, porque não chamas os anjos?... Anda,
embaucador; anda, feiticeiro; e empurrou brutalmente Jesus, que caiu pela terceira vez a porta daquele miserável sem
caridade, nem coração, nem clemência.
Jesus levantou-se lentamente. Colocou o pesado lenho sobre o ombro, olhou de um modo compassivo Samuel e
disse:
- Tu o disseste. Ofereci-te o paraíso de meu Pai, e disseste-me anda, quis dar-te a água que aplaca a sede eterna,
e disseste-me anda, pedi-te um assento para te dar um trono na mansão dos céus, e disseste-me anda. Pois bem, Samuel
Beli-Beth, Eu logo descansarei; mas tu andarás sem cessar até que Eu volte. Os séculos futuros te chamarão o
Judeu Errante; e teu passo não se deterá nunca; serás imortal, mas a imortalidade será o teu maior castigo. Prepara as

206
tuas sandálias; prepara o teu bordão de viagem. Infeliz! Disseste-me anda; pois tu andarás até à consumação dos
séculos. Anda, anda, Samuel Beli-Beth; maldito como a tua pátria, vaguearás pelo universo até o dia do juízo final.
Samuel passou as mãos pelos olhos como se visse alguma coisa sobrenatural. Uma auréola de luz que apareceu
ao redor da fronte do Nazareno havia-o cegado. As pernas fraquejaram, e viu-se obrigado a sentar-se no paiol da porta,
para não cair.
Neste instante u’a mulher saiu da casa da frente com um lenço na mão. Era Seráfia. Aproximou-se do divino
Galileu, cujo rosto se achava banhado de suor e sangue, e ajoelhou-se diante d’Ele dizendo:
- Senhor, meu Jesus, permite que esta humilde pecadora limpe o teu divino rosto com este lenço tecido pelas
suas maõs.
Seráfia limpou o suor que inundava o rosto de Jesus.
- Deus te pague, mulher caritativa, disse Jesus. Vê agora o que te deixo no lenço.
Seráfia soltou um grito de alegria. Algumas mulheres a cercaram. No lenço tinha ficado impresso por três partes
o rosto do Mártir. Cada um dos crudelíssimos espinhos da sua coroa despedia um raio de luz. Seráfia estava absorta.
- Seráfia, deixa o teu nome e toma o de Verônica, pois nas tuas mãos deixo a minha verdadeira imagem.

CAPÍTULO IV

A CRUZ

Ao mesmo tempo que o decurião Longuinhos saia pela porta Judiciária precedendo a comitiva de Jesus, um
homem chamado Simão, natural de Cirene, na Líbia, e israelita de religião, entrava com seus dois filhos Alexandre e
Rufo.
Simão vinha do campo e encostou-se para não ser atropelado. Depois entrou na cidade. Caio Ápio, que durante o
doloroso caminho não desviava os olhos de Jesus, vendo-o desfalecer por instantes, dirigiu-se a um dos soldados, e
disse-lhe:
- Observai! Jesus não pode com o enorme peso do lenho. Bom homem, disse olhando para Simão, ajudai-o antes
que morra!
Simão recusou-se; mas Caio, pegando num feixe que o Cirene levava às costas, disse-lhe:
- Obedece ao César.
O Nazareno enviou-lhe um olhar compassivo. Continuou a caminhada e passaram a porta Judiciária, por onde
tantos réus tinham saído para morrer no Gólgota. Passaram a porta do Vale dos Cadáveres, e deixando à esquerda o
sepulcro dos Profetas, pôs Jesus a sua divina planta na pedregosa vereda que conduz ao monte das Caveiras.
Ai, caiu pela quarta vez desmaiado. Simão deixou a cruz e correu a levantar o Nazareno.
Um grupo de mulheres que esperava o jovem Mestre para o ver passar, vendo em tão doloroso estado o que seis
dias antes entrara coberto de flores e de bênçãos por um caminho de rosas e de plantas, pôs-se a chorar.
Jesus ergueu a fronte, abatida pela dor, manchada pelo sangue, e disse-lhes:
- “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! chorai por vós e por vossos filhos; porque virão em breve dias em
que dirão: Bem aventurados as estéreis e os ventres que não conceberam e os peitos que não amamentaram!”
Uma senda estreita e tortuosa, semeada de grossas e duras pedras, conduzia ao cume do Gólgota, desde o lugar
em que as chorosas mulheres se ajoelharam aos pés de Jesus.
Este caminho teria setenta passos.
Jesus gastou cêrca de um quarto de hora para subi-lo.
Já perto do cume, caiu pela quinta vez.
Os verdugos, como se achavam próximo do lugar do suplíce, descarregaram-no do pêso da cruz.
A comitiva rodeou o cume do Calvário, e os saiões prepararam-se para exercer seu ignominioso ofício.
Caio Ápio despediu Simão, agradecendo-lhe; mas Simão pareceu não ter ouvido a ordem do romano, e
permanecia cravado junto ao corpo desfalecido de Jesus.
Simão afastou-se alguns passos. Em seus olhos apareceu uma lágrima.
Alguns passos acima do lugar em que Jesus se despediu do homem venturoso de Cirene, achava-se a pequena e
pedregosa esplanada do Gólgota, onde o Cordeiro de Deus devia ser sacrificado entre dois ladrões
Os brucianos estenderam a cruz no chão; os calabreses começaram a abrir os buracos.
Gestas maldizia sua morte; Dimas, com os olhos fitos no Nazareno, mirava-º
Quando os quatro saiões tiveram os cravos, os martelos e a cordas preparadas junto da cruz dirigiram-se a
Cristo, e pegando-lhe asperamente de um braço, arrastaram-no até o lugar onde devia ser crucificado.
Terminadas estas operações que o povo contemplava com criminoso interesse, os verdugos começaram a despir
Jesus, rasgando a roupa, que se pegara à carne por causa das feridas que cobriam o corpo do Mártir. Quando chegaram à
túnica inconsútil que a Santa Virgem tecera por suas próprias mãos, e que, segundo a tradição, foi a única que trouxe
Jesus por espaço de trinta anos, pois crescia com o corpo, um dos verdugos disse aos seus companheiros.

207
- Creio que não devemos rasgar esta túnica. Seria conveniente que a tirássemos inteira, porque a poderíamos
vender a algum dos fanáticos que crêm que este homem é o Messias.
- Dizes bem, esfolemo-lo, pois tem na pegado ao corpo.
As feridas de Jesus eram tantas, que a dor que sofreu durante aquela operação foi crudelíssima. Então Jesus,
ensanguentado, desfalecido, dirigiu em torno de si os doloridos olhos, buscando um olhar de compaixão e só encontrou
as horríveis gargalhadas dos ferozes verdugos e os miseráveis motejos da plebe.
De repente ouve um grito atrás de si; volve a cabeça; vê uma mulher que sobe precipitadamente ao cume do
Gólgota seguida de duas mulheres e de um homem; reconhece-a; é sua mãe, é Maria, é a Virgem dolorosa, que
arrancando o casto véu que cobre a sua virginal cabeça, corre a cobrir com ele o nu e dilacerado corpo de seu Filho, áta-
lho nos rins, beija depois a pálida fronte do Filho das suas entranhas sem que os saiões se oponham, porque a dor
daquela Mãe era imensa, incomparável.
Os verdugos colocaram Jesus sobre o afrontoso madeiro.
Iam pregá-lo. Maria soltou um grito sem exemplo vendo os cravos e o martelo nas mãos do verdugo. Cristo,
estendido sobre a cruz, enviou um sorriso de amor a sua Mãe. João e Madalena arrancavam daquele lugar a Maria,
conduzindo-a a um gruta que se achava a poucos passos.
De repente ouviu-se um ruído seco, dilacerante. Era o cravo que, penetrando a carne, pregava a mão direita de
Jesus no vergonhoso madeiro. Quatro vezes caiu com força sobre o duro cravo o terrível malho e seu som, seco,
aterrador, chegava ao coração de Maria ferindo-o como a ponta de um punhal.
O sangue saltava ao rosto do verdugo. Jesus agitou-se dolorosamente sobre o madeiro.
A mão esquerda foi, por fim, pregada. Os cravos tinham nove polegadas , eram triangulares e a cabeça redonda.
A ponta ensanguentada saiu pelo outro lado da cruz.
Faltavam os pés, e colocaram-nos sobre o ponto de apoio um por cima do outro. Dois cravos esperavam a carne
para a penetrarem.
Dez marteladas terminaram o horrível martírio. Jesus ficou pregrado, e foi levantado à vista das nações. Então
ressoou um grito de entusiasmo ao redor do Gólgota.
Pilatos tinha mandado pôr uma tabuinha na parte mais alta da cruz com este letreiro:

JESUS NAZARENO, REI DOS JUDEUS

Caifás, que tinha presenciado tudo rodeado dos seus amigos e fariseus, apenas leu o letreiro aproximou-se de
Caio Ápio e disse-lhe com voz descomposta:
- Tira aquela tábua, onde diz que aquele Condenado é nosso Rei, e põe: Jesus de Nazaré, que se diz Rei dos
Judeus.
Caio enviou um olhar desdenhoso ao pontífice, que se dirigiu a Pilatos.
- O escrito, escrito. Saí de minha casa, e não espereis que se mude nem uma só letra, disse Pilatos.
Entretanto, Jesus exclamava com moribundo acento: Perdoai-lhes, meu Pai, não sabem o que fazem.
Alguns homens do mais soez da plebe, que se tinham reunido com os verdugos, escarneciam desapiedadamente
do Filho de Davi.
- “Eh! Tu que destróis o templo de Deus, lhe disse um e em três dias o reedificas, salva-te a Ti mesmo. Se és
Filho de Deus, desce da cruz!
E aqueles miseráveis riam-se e zombavam.
- Vêde que Profeta, que salva a todos e não pode salvar-se a Ele mesmo!
- Não és Rei de Israel? grita outro. Pois desce da cruz e crerei em Ti.
O bandido Gestas, pregado na cruz à esquerda do Galileu, voltou a cabeça para olhá-lo, e disse-lhe com
desprezo:
- Se Tu és Cristo, salva-te a Ti mesmo e a nós.
- Gestas, exclamou Dimas com dolorosa e triste voz, não blasfêmes, não duvides do poder de Deus. Regozija-te
da glória que te cabe por morreres ao lado do Messias verdadeiro. Nós, na verdade aqui estamos sofrendo a sorte
afrontosa da cruz com justiça, pois pagamos a pena que merecem os nossos crimes. Mas Jesus nunca fez mal a
ninguém.
E voltando a cabeça para o Nazareno, Dimas continuou:
- Senhor, lembra-te de mim quando fores ao teu reino.
Cristo dirigiu-lhe um doce olhar e disse-lhe:
- Em verdade te digo, que hoje estarás comigo no Paraíso.
Entretanto, ao pé da cruz tinha surgido uma disputa.
Os miseráveis brucianos, os cruéis verdugos que haviam despojado Jesus das vestiduras, tinham tirado uns dados
e estavam jogando a túnica inconsútil do Nazareno.

CAPÍTULO V

TUDO ESTÁ CONSUMADO

208
Maria, a Flôr de pureza, a virgem imaculada, não pôde permanecer muito tempo na gruta para onde a tinham
conduzido os amigos. Quis tornar a ver seu Filho.
Os rogos de João, as súplicas de Madalena, foram vãos. Saiu, por fim, e pouco depois caía ajoelhada aos pés de
Jesus, e abraçava-se ao cruel madeiro, com a alma dilacerada de dor e de angústia.
Entretanto o sol escurecia, sem que uma só nuvem atravessasse o firmamemto. A terra ia tomando uma côr
pálida, triste, como o doloroso semblante do Mártir. As aves buscavam precipitadamente refúgio nas frondosas árvores
do vale do Cedros. As trevas da noite lutavam por usurpar o cetro ao pai do dia. Jesus, vendo que sua hora se
aproximava, deixou cair para sua Mãe um doloroso olhar.
Seus olhos, cheios de doce e amorosa expressão encontraram-se com os olhares angustiosos dos três únicos seres
que o tinham acompanhado até o cume do Gólgota: sua Mãe, Maria Madalena e João, seu discípulo favorito.
O angustioso olhar da Virgem parecia pedir-lhe fôrças para suportar tão bárbara agonia.
Jesus estremeceu e disse, dirigindo-se a sua mãe:
- Mulher, ai tens teu filho; e com um movimento de cabeça indicou-lhe João.
- João, ai tens tua mãe!
Jesus ergueu os olhos ao céu, como se buscasse seu Pai no pálido e triste horizonte que se estendia sobre sua
cabeça ensanguentada e, exalando um doloroso grito, disse:
- Eli! Eli! Lamma Sabacthani?
E os verdugos, ao escutarem estas palavras, exclamaram em tom de mofa:
- Chamas Elias para que venha livrar-te? Mas dize-lhe que não se detenha no caminho.
Maria abraçada ao afrontoso madeiro, não afastava os doloridos olhos do angustioso rosto de seu Filho.
Jesus agitou a cabeça com agonia e, neste momento, um relâmpago azulado atravessou os dilatados âmbitos do
espaço.
Cem mil espectadores levantaram os olhos para o céu depois de passarem as mãos por eles.
Não havia nuvens; mas o sol ostentava a palidez dos cadáveres e os muros da cidade, e as cristas dos montes, e
os seios dos barrancos tingiam-se de um resplendor estranho, que gelava o sangue nas veias e oprimia o espírito.
Cessou o trovão, como se a natureza suspendesse seu enfado, e Jesus, abrindo a boca, exclamou com moribunda
voz:
- Tenho sêde.
Longuinhos, que se achava próximo de Jesus, embebeu uma esponja em mirra e vinagre, bebida horrível que
davam aos condenados para lhes entontecer o cérebro e minorar as dôres, e chegou-a brutalmente a divina boca de
Jesus.
O Nazareno voltou o rosto para o Ocidente, exalando um doloroso suspiro. Os elementos responderam com sua
poderosa voz a este gemido do Redentor.
A terra tornou-se de côr achumbada e no céu apareceram algumas estrêlas. Prolongados e longínquos trovões se
sucederam com rapidez, e o raio cruzava em todas as direções. O temor, o assombro, a admiração começou a espalhar-
se entre os espectadores.
Longuinhos, que se achava perto da cruz, a custo podia segurar o cavalo que, espantado e receioso, trabalhava
para despedir-se da sela o cavaleiro.
Jesus tornou com moribundo acento:
- Tudo está consumado.
Os trovões redobraram: a escuridão entendeu-se pelo espaço; a pavorosa luz do raio dilatou-se pelo éter.
Por fim soou na eterna mansão do Ser Supremo a hora em que o Homem-Deus devia morrer pela raça humana.
O Cordeiro sem mácula ia morrer, e soltando um gemido emudeceu a natureza. Seus lábios abriram pela última vez e
estas palavras pronunciadas em voz baixa, mas que chegaram aos ouvidos dos enfêrmos que se achavam em Jerusalém,
saíram da sua boca:
- Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!
Jesus inclinou a cabeça e, exalando um suspiro, soltou o último alento.
Naquele momento o estridoroso trovão retumba em mil partes ao mesmo tempo; o vale de Josafá ilumina-se com
a azulada luz do raio; os sepulcros dos profetas quebram-se em pedaços; as sepulturas abrem-se, os mortos saem das
covas. O templo de Sion inclina-se como para saudar o último suspiro do Redentor, e o véu do Santo dos Santos rasga-
se com espantoso estrondo.
A noite substituiu o dia; as estrelas, o sol.
Os soldados que rodeavam o Mártir retrocederam, proclamando a sua divindade. As mulheres e os velhos
ergueram as mãos ao céu, aterrados ante o universal estrondo que lhes anunciava com a poderosa voz da natureza que
acabavam de presenciar um deicídio. Uma terrível escuridão reina por toda parte.
Os vivos vêm os cadáveres pelas ruas e os pálidos esqueletos inclinam-se para saudar os parentes.
No meio desta desolação geral, dois homens permaneciam no cume do Gólgota com a fronte erguida e o olhar
provocador.
Ambos fitaram os altivos olhos no corpo sem alento de Jesus. Um chamava-se Longuinhos e outro Samuel Beli-
Beth.
Beli-Beth! Nazareno! Não me respondes? É o mesmo: escuta as minhas palavras. Eu rio-me da voz da
tempestade e desprezo essa raça covarde que foge espantada quando vibra o raio sobre as suas cabeças; a minha nunca

209
se inclina. Se és homem vencer-te-ei, estou certo; se és Deus, advirto-te de que me acho pronto para a luta; disseste que
eu seria imortal; pois bem; só os deuses são imortais; eu sou deus, comece a luta.
Samuel abandonou o Gólgota soltando terrível gargalhada.
Longuinhos descarregou uma terrível lançada no lado direito de Jesus. A acerada ponta abriu uma larga ferida no
peito do Nazareno. Por aquela ferida rebentou uma fonte de sangue e água, que correu como um arroio pela lança de
Longuinhos, umedecendo-lhe as mãos.
Longuinhos sentiu ao tocar aquele sangue alguma coisa estranha. Maquinalmente a lança caiu-lhe das maõs, e
esfregou os olhos. O sangue de Jesus tocou-lhe as pálpebras e Longuinhos viu com espanto que tinha recobrado a vista.
Então soltou um grito, e descendo do cavalo, exclamou:
- Milagre! Milagre! Jesus, Deus meu, eu creio na tua infinita providência!
E, caindo aos pés de Jesus, adorou-º

CAPÍTULO VI

CAIO ÁPIO

Os trezentos mil espectadores da tragédia divina, tão depressa a terra lhes tremeu sob os pés e o sol ocultou a
brilhante fronte como envergonhado do crime que acabava de cometer-se, dispersaram-se.
Atropelando-se uns aos outros entraram na cidade e, escondendo-se nos mais escuros cantos de suas casas,
repetiam com covarde acento:
-Era verdade que Êste era Filho de Deus e matamo-lo.
Os covardes jerossolimitanos fechavam as portas e janelas, porque alguns mortos que tinham saido dos sepulcros
corriam pelas ruas, graves, silenciosos como os túmulos que tinham encerrado os seus corpos.
Entretanto ao redor da cruz, onde ainda permanecia pregado Jesus, agrupava-se com amor um grupo doloroso de
onde devia brotar brevemente a fecundante fonte do Cristianismo.
Daquele punhado de israelitas reunido no cume do Calvário, ia nascer o perfume imortal e salvador que há
desenove séculos fortalece com sua essência o grande espírito da humanidade.
Maria, a Mãe dolorosa, era o precioso vaso que reunia as flôres abatidas do Evangelho.
Madalena, Maria Salomé, João, Pedro e outros discípulos choravam amargamente ao pé da cruz, quando viram
subir pelas desertas fraldas do Gólgota, José de Arimatéria e Nicodemus, seguidos de quatro criados.
Os dois amigos de Cristo tinham alcançado do juiz romano licença para darem sepultura ao corpo do Mártir;
eram responsáveis para com Pilatos pelo cadáver de Jesus.
José de Arimatéia levava finíssimo lençol de linho e Nicodemos cem libras de mirra e aloés para ungir e
embalsamar o corpo de Cristo, segundo o costume dos judeus.
José fechou o sepulcro com uma enorme pedra e, como tudo estava terminado, regressaram a Jerusalém, onde os
chamava a celebração da Pásacoa.
A noite estendeu suas sombras sobre a cidade santa. A muralha de Naim encerrava em seus braços de pedra
cêrca de um milhão de almas. Os filhos de Galiléia, os habitantes da praia do mar de Tiberíades, pregoavam em voz alta
pelas ruas da cidade maldita, que os fariseus e os escribas, com o horrível crime que acabavam de perpetrar,
indubitavelmente chamariam a cólera de Deus sobre o povo de Israel. O descontentamento espalhava-se por todas as
partes.
Os fariseus temeram que os partidários do Galileu roubassem o corpo do Crucificado, fazendo depois crivel a
ressurreição que profetizara e os fizeram reunir no sinédrio.
O concílio acordou que era preciso que Pilatos lhes desse certo número de soldados para guardarem o sepulcro,
que eles temiam fosse violado pelos amigos de Jesus.
Imediatamente foram escolhidos doze soldados e um decurião para guardarem o cadáver de Jesus.
Já se dispunham a abandonar o conclave de pedra quando Caio Ápio se apresentou às portas da assembléia.
- Miseráveis! lhes disse Caio Ápio. Em vão procurais opôr-vos a vontade de Deus, cujo filho crucificastes no
Gólgota, porque tudo o que Êle vos prometeu se cumprirá. A sua maldição, que retumba no espaço e cujo eco sentis na
consciência, vos espalhará pelo orbe como um punhado de areia ao poderoso sopro do furação. Malditos serão os filhos
de vossos filhos, porque vós matastes o profeta verdadeiro. Os filhos do evangelho povoarão em breve as dilatadas
regiões do mundo. Os soldados abandonarão a lança e empunharão a cruz. Os lavradores deixarão o arado e
empunharão a cruz. Os deus pagãos cairão feitos pedaços nos templos, e este santuário, que tendes manchado, será
convertido em pó, como disse Jesus, antes que acabe a presente geração. Malditos! Malditos! Malditos sereis!
Caio Ápio saiu do templo sem que ninguém se opusesse. Suas palavras tinham sobressaltado os sacerdotes e os
fariseus.

210
Naquele momento, no interior do Santo dos Santos, cujo véu se tinha rasgado, justamente à mesma hora em que
Jesus soltou o último suspiro, ouviram-se vozes que nunca se pôde saber quem pronunciou, as quais diziam: Partamos
deste lugar.
Caifás fez esfôrço para reanimar os companheiros. Logo partiram alguns sacerdotes seguidos dos soldados,
chegaram ao jardim de José de Arimatéria e levantaram a pedra do sepulcro. Ali estava o cadáver de Jesus.
Em presença dos sacerdotes tornou a colocar-se a enorme pedra, e pelas suas próprias mãos foram seladas as
juntas.
Quatro soldados com a lança no braço se colocaram à porta do sepulcro.
Os sacerdotes sairam do jardim, e já no campo, Caifás disse aos que o cercavam:
- Agora estou tranquilo. Se é Deus, que quebre a lousa do sepulcro e ressuscite, o que é difícil que suceda.

CAPÍTULO VII

OS MORTOS FALAM

Samuel Beli-Beth, depois de apostrofar Jesus na agonia, desceu do Gólgota e começou a caminhar sem saber
para onde, como impelido pela aterradora voz da consciência.A escuridão era completa; o temor dos habitantes de
Jerusalém tão grande, que a gente se atropelava pelas ruas.
Samuel parecia insensível ao espanto geral. Seguia seu caminho com a fronte inclinada e como se a maldição de
Deus lhe pessase sobre a cabeça.
Sem o perceber, atravessou grande parte da cidade de Beceta e, torneando as fraldas do monte Mória, achou-se
nas portas das Águas. Parou fatigado no vale dos Cadáveres, que conduz ao sepulcro de Absalão.
Ali limpou o suor que lhe inundava a fronte e, erguendo a cabeça, retrocedeu dois passos, aterrado.
Os profetas achavam-se sentados sobre os seus sepulcros com os descarnados braços na direção do Gólgota.
Aqueles esqueletos envoltos nos brancos sudários, que se levantavam das sepulturas para chorarem a morte de Deus,
aterravam Samuel, que os olhava com olhos espantados.
O trovão, rugia-lhe sobre a cabeça; a terra tremia-lhe debaixo dos pés. Então, ao resplendor dum relâmpago,
pôde ver que os esqueletos se puseram em pé que dos seus olhos sem luz corriam lágrimas de sangue. Caiu de joelhos, e
estendendo as mãos em direção aos mortos, murmurou com voz aterradora:
- Perdão!... Perdão!...
Os profetas responderam-lhe com a voz espantosa dos sepulcros:
- Anda!
Imediatamente, em toda extensão do vale de Josafá, se escutou um gemido, cujo eco repetiu de modo fúnebre:
- Anda, anda, anda!
Samuel pôs-se em pé possuido de um pânico horrível.
Então viu umas letras de fogo esculpidas sobre as pedras do sepulcro, que diziam: Absalão.
- Piedade! exclamou Samuel juntando as mãos.
O esqueleto de Absalão estendeu o braço em direção ao Gólgota e disse:
- Anda!
Os mortos do vale de Josafá tornaram a repetir por três vezes:
- Anda, anda, anda!
Samuel com o cabelo eriçado, olhos encovados, a testa coberta de suor, começou a caminhar como impelido por
mão misteriosa.
A terra parecia escapar-lhe debaixo dos pés e parou como para tomar um fôlego; mas apenas tinha detido o
passo, a pedra dum sepulcro que se achava ao lado caiu em pedaços e o cadáver do profeta Zacarias saiu do túmulo,
repetindo:
- Anda!
E outra vez, os mortos tornaram a repetir dos seus sepulcros:
- Anda, anda, anda!
Samuel continuou seu caminho, caindo fatigado depois de meia hora de caminhada junto duma árvore. Ali, só
com sua dor, com a cabeça entre as mãos, permaneceu longo tempo.
O remorso devorava-lhe o coração e quis novamente implorar a clemência divina: mas apenas os lábios
abrasados pela febre pronunciavam a palavra perdão ouviu uma voz que lhe repetia sobre a cabeça:
- Anda, maldito como eu, anda, anda!
Ergueu os olhos para vêr quem era o que o perseguia e ameaçava em tão desertos lugares, e viu à luz de um
relâmpago o corpo de um homem enforcado que se agitava sobre o precípicio.
Aquele cadáver era o de Judas.
Samuel abandonou aterrado o lugar, encaminhou-se para a cidade e entrou pela porta Estercolária; atravessou do
mesmo modo o arrabalde de Ofel, a esplanada do templo, passou sem se deter parte da cidade de Beceta e chegou por
fim, à sua casa.

211
Então viu com horror que um esqueleto se achava sentado no poial da sua porta. Fitou os olhos espantados
naquele espectro dos túmultos, soltou um grito, e disse com medroso acento:
- Sara, Sara! Minha espôsa, tu também deixas o sepulcro para amaldiçoar-me?
O espectro respondeu com doloroso acento:
- Samuel, Deus permite-me que abandone por um instante o sepulcro e que venha despedir-me de ti e dizer-te:
Anda, maldito de Deus, anda até a consumação dos séculos!
A visão desapareceu.
Samuel desfalecido, entrou em casa e foi refugiar-se junto ao berço do filho, que apenas contavadoze meses.
Ali ao menos julgava-se seguro dos mortos. Fitou os aterrados olhos no formoso menino que dormia no berço;
mas, naquele momento, o menino levantou-se, e pondo-se em pé, estendeu a mãozinha em direção ao Gólgota, e disse
com voz doce e sonora, que devem ter os anjos:
- Samuel Beli-Beth, anda, anda, anda!
Samuel retrocedeu até tocar com a cama da sua velha mãe; que, muda, paralítica, havia muitos anos, pôs-se em
pé, e disse com claro acento:
- Anda, anda, anda, maldito de Deus!
Samuel não pôde resistir a tanta comoção e caiu desamparado no chão. Naquele momento ouviu-se uma pancada
na porta da rua, logo outra, depois outra.
Estas três pancadas pausadas, sem que ele pudesse compreender a causa, reanimaram subitamente, o espírito
aterrado do judeu. Pôs-se em pé e perguntou:
- Quem é?
Uma voz que não tinha nada da terra, respondeu:
- O que Deus envia. Abre.
- Entra, se queres, respondeu Samuel, que parecia ter recobrado a passada energia.
A porta abriu-se. Um jovem que quando muito teria dezesseis anos de idade, branco como o leit, louro como o
ouro, formoso como as rosas de Saron e vestido com um túnica resplandecente, entrou em casa de Samuel. Levava um
bordão de viagem na mão, e do do corpo irradiava uma auréola de luz.
- Quem és? perguntou Beli-Beth.
- Sou Gabriel, o enviado do Senhor, o mensageiro do Paraíso, que venho entregar-te o bordão do viajante e
dizer-te que a tua hora chegou: Anda!
- Então era Deus? exclamou dum modo indescritível Samuel. Então era Deus? E recusei-lhe a água que me
pedia! Ah, maldito, maldito, maldito, seja o meu nome!
O arcanjo repetiu:
- Samuel, a hora chegou. Anda!
- Por caridade, permite que dê um beijo na fronte desse pobre menino que se acha no berço.
- Anda! Repetiu Gabriel.
- Deixa que dê a minha mãe o ósculo de despedida.
- Anda, anda! tornou o enviado de Deus.
- Estou cansado; deixa que respire um quarto de hora; corri muito desde que Jesus soltou o último suspiro.
- Anda! Anda! Anda! repetiu o Arcanjo; mas de um modo tão enérgico, que Samuel baixou a fronte, pegou no
bordão que lhe apresentava, atou as sandálias e exalando um doloroso suspiro, saiu de casa para nunca parar, para
caminhar eternamente.
Jacó Besnage, autor protestante, na sua História dos Judeus, conta três judeus errantes; o primeiro chamou-se
Samer, e foi amaldiçoado por Deus por ter fundido o bezerro de ouro no tempo de Moisés, o segundo, com o nome de
Cataflio que foi porteiro de Pilatos; e o último chamado Assuero, sapateiro de ofício, que tinha a loja na rua que depois
de chamou via Dolorosa, recusando a Jesus um pouco de água quando caminhava para o Calvário.
Feijó, no tomo segundo das suas Cartas eruditas, falando extensamente sobre o judeu errante, diz que no de 1129
apareceu o judeu errante na Inglaterra, em 1547 em Hamburgo, em 1575 em Madrid, em 1609 em Viena, em 1610, em
1612 em Astran, em 1643 em Paris, em 1694 em Moscou, e finalmente indica-se nos fins do século XVII em Londres
pela segunda vez, como assegura uma carta da duquesa Hortência de Mazzarino, irmão do célebre cardeal do mesmo
sobrenome.
Acrescenta Feijó, que um homem astuto e sagaz, instruído na história em oito ou nove línguas, que vida mais
agradável podia escolher que a de se fingir judeu, o errante, chamando a atenção dos príncipes e pessoas poderosas, ou
que estranho seria que depois o imitassem outros embusteiros?
Em todo o caso, se a tradição é uma fábula, como deve crer-se, é preciso convir que em nada pode representar
com tanta exatidão o disperso povo de Israel, que nunca pôde reunir-se, como esse homem, amaldiçoado por Deus em
cujos ouvidos ressoa claramente o anda, anda, anda! da tradição.
Nós demos-lhe uma forma fantástica, porque em anda afeta o dogma, assim como nos servimos dum nome que
ninguém cita, em vista dos diferentes pareceres que desde o célebre historiador Matias de Paris (o primeiro que deu à
luz a tradição do judeu errante no ano de 1299) até nós se tem adotado.

CAPÍTULO VIII

TRÊS DIAS DEPOIS

212
Quatro soldados da sinagoga, encostados as suas lanças guardavam o sepulcro de pedra que encerrava o divino
corpo do Salvador.
Aqueles mercenários de Roma, emprestados por Pilatos aos sacerdotes israelitas riam-se muito do receio dos
fariseus. Formando um grupo a uns doze passos do sepulcro achavam-se mais oito homens. O dia não estava longe. O
avermelhado resplendor de duas teias alumia a enorme pedra do sepulcro.
- Para isto viemos nós? dizia um dos soldados, dirigindo a palavra aos companheiros.
- Só os judeus são capazes de pôr sentinelas ao redor dum cadáver. Fanáticos! respondeu outro.
- Felizmente, disse o primeiro, o prazo desta guarda enfadonha terminará brevemente.
- Sim, depressa se completarão os três dias que teme a sinagoga.
Quando surgir o sol, que não está longe.
- Sabes, disse um que até então não tinha despregado os lábios, que seria coisa surpreendente que se realizasse o
medo desses velhos rabinos?
- Com certeza! Ver voar um homem pelos ares!
Os soldados romperam numa gargalhada; mas ao mesmo tempo ouviu-se um doloroso gemido no centro da terra.
- Ouviste? disse um deles.
- Sim, a terra tremeu debaixo dos nossos pés.
Então houve um breve silêncio; mas depressa os soldados, envergonhados do seu medo, tornaram a rir.
- Bonito fôra que os filhos da guerra, os adalides de Tibério, se pusessem a chorar de medo como covardes
mulheres! exclamou o decurião da fôrça.
A aurora começava naquele momento a estender suas róseas cores pelo espaço. Apesar das gargalhadas e da
chacota da soldadesca, desde que tinham sentido o estranho estremecimento da terra não tornaram a despregar os lábios,
notando-se em todos os semblantes certa expressão de desgosto.
Subitamente, fez-se escuro.
Antes que os soldados pudessem compreender aquele acontecimento inesperado, tornou a gemer e estremecer o
centro da terra. Aquele eco subterrâneo, pavoroso, parecia aproximar-se da superfície com incrível rapidez e, como a
maré, crescia, reforçando sua aterradora voz. De repente saltou a pedra que cobria o sepulcro em mil pedaços e uma
chama esplêndida brotou do seio do túmulo.
Alguns soldados caíram aterrados ao chão; outros apelaram para a fuga, encaminhando-se para Jerusalém. A
profecia acabava de cumprir-se. Cristo ressuscitava dentre os mortos ao terceiro dia. Abandonava o túmulo para tornar a
aparecer sobre a terra dos vivos. O túmulo que encerrava o seu divino corpo achou-se vazio. Um anjo apareceu sentado
na borda do sepulcro. Os seus olhos brilhavam como os serenos raios do sol. Seus vestido, branco como as nuvens de
Arará, resplandecia como a fronte da lua numa noite serena. As quatro sentinelas que tinham caído meio mortas,
levantaram-se retrocedendo com assombro na presença do anjo.
Este estendeu o celeste braço em direção a Jerusalém e disse, com dulcíssima voz.
- Ide a Jerusalém e contai o que vistes.
Os soldados obedeceram. O anjo ficou só na gruta. Ao mesmo tempo umas mulheres saíam de Jerusalém.
- Corramos, dizia uma delas, e derramentos sobre o seu puríssimo corpo estes preciosos aromas. Hoje completa-
se o terceiro dia, e os soldados da sinagoga poderão deixar-nos vê-lo, já que está morto. Corramos, seus discípulos e sua
amorosa Mãe também não faltarão.
A que assim falara era a enamorada donzela de Mágdalo.
Chegaram ao sepulcro. Madalena entrou só, primeiro. O dia ainda estava indeciso às portas do Oriente.
Aproximou-se do sepulcro, e vendo a pedra levantada do seu lugar, não retrocedeu; mas introduzindo a formosa cabeça
na gruta, soltou um grito:
- Levaram o Senhor!
Então correu a participar a triste notícia aos seus amigos, Pedro e João encaminhavam-se para aquele lugar.
Madalena saiu-lhes ao encontro, dizendo:
Levaram Jesus; que faremos agora?
Os apóstolos, cheios de assombro penetraram na gruta. O sepulcro estava vazio. Madalena tinha dito a verdade.
Pedro examinou atentamente o sudário que se achava colocado num extremo do sepulcro, e disse, dirigindo-se a
João:
- Observa bem que o corpo do nosso Mestre não foi roubado com precipitação; porque nesse caso não se teriam
entretido em desatar as tiras de pano. Cristo ressuscitou dos mortos, como disse.
- Corramos a participar tão faustosa nova a nossos irmãos, disse João.
Madalena caiu de joelhos junto do sepulcro. Seu amor imenso precisava de verter um mar de lágrimas sobre
aquela pedra abandonada: mas ao fitarem-se os formosos olhos no fundo do sepulcro, viram dois mancebos vestidos de
branco, cujos corpos despediam um perfume inebriante.
Um deles estava sentado no mesmo lugar em que três dias antes tinham pôsto a cabeça de Jesus. O outro achava-
se no lugar onde estavam os feridos pés de Cristo.
- Mulher, porque choras tão amargamente? lhe perguntou o mancebo, sentado à cabeceira.
Madalena, contemplando com sobressalto aquele formoso mancebo, respondeu-lhe:
- Choro porque tiraram o meu Senhor e não sei onde o puseram.

213
Apenas pronunciara estas palavras Madalena sentiu atrás de si um ruído que lhe fez voltar a cabeça, e viu um
homem que lhe pareceu o hortelão do jardim onde se achava.
- Mulher, a quem procuras? lhe disse o homem.
Madalena sem levantar os joelhos do chão, juntou as mãos com gesto suplicante e disse:
- Se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.
Madalena observou no olhar daquele homem alguma coisa de sobrenatural que lhe sobressaltava o espírito.
Jesus, pois este era o que se achava junto da arrependida pecadora, compadecendo da sua dor, pronunciou com a voz
que tão docemente ressoava nos ouvidos da desgraçada durante a pregação do evangelho:
- Maria!
Madalena conheceu Jesus. Soltou um grito, e lançando-se-lhe aos pés exclamou com apaixonado acento:
- Mestre!
Jesus recuou, dizendo:
- Não me toques; ainda não subi a meu Pai; mas vai a meus irmãos e dize-lhes o que viste.
Tinha aparecido a Madalena primeiro que aos Apóstolos, mas depois que a sua Mãe, a quem dedicou a sua
primeira visita ao ressuscitar. Entrevista venturosa foi esta para aquela Mãe aflita; cena doce, felicidade imensa, com a
qual recompensou o Redentor do mundo a incrível amargura que sofrera a Flor de Nazaré, a Estrela do mar. Madalena
voltou pressurosa a Jerusalém. Encontrou os dois apóstolos que poucos momentos antes tinham observado detidamente
o vazio sepulcro e, com gozo indefinível que lhe transbordava na alma, lhes diz:
- Cristo ressuscitou, eu o vi, como vos vejo a vós. Ouvi a doce voz que me comoveu o coração, enchendo-o de
alegria e de gôzo.
Pedro e João creram o que Madalena lhes disse; mas ao participarem-no a seus irmãos, a dúvida achou cabida
em alguns deles.
Naquela mesma tarde, dois discípulos de Cristo caminhavam tristes e meditabundos de Jerusalém para a aldeia
de Emaus, que dista duas léguas da cidade santa. Falavam com doloroso acento dos tristes acontecimentos daqueles
dias.
A morte de Jesus, seu jovem Mestre, era o motivo da conversação.
- Sim, Lucas, dizia um deles, Jesus Nazareno era um Homem sem igual, um grande Profeta.
- Amigo Cléofas, respondeu Lucas, Cristo foi poderoso conosco, e amado de todo o povo. Os fariseus
cometeram um crime horrível.
Neste momento, apareceu-lhes um desconhecido, que disse:
- A paz seja convosco: de que falais, irmãos?
Contaram-lhe os acontecimentos que o povo jerossolimitano presenciara tres dias antes, e que umas mulheres
tinham trazido a surpreendente notícia a Jerusalém de que Jesus ressuscitara dentre os mortos.
O viajante misterioso notou a dúvida na palavra dos apóstolos e, como já se achassem perto da aldeia, disse-lhes:
- Vejo que a dúvida se alberga no vosso coração: fazeis mal. Crêde tudo o que vos disserem do Messias que
pregou convosco o Evangelho.
Pouco depois chegaram a Emaus e os apóstolos convidaram o viajante para comer com eles.
O viajente aceitou. Mas tão depressa se sentou à mesa, pegando num pão sem fermento, partiu dele dois pedaços,
e dando um a Lucas e outro a Cléofas, disse-lhes:
- Tomai o meu corpo.
Os apóstolos estremeceram e creram reconhecer o Mestre; mas o estranho desapareceu. Era efetivamente Cristo,
o Mártir do Gólgota.

CAPÍTULO IX

A ASCENÇÃO

Cristo, depois da sua resssureição apareceu primeiro a sua mãe; logo, a Madalena, depois às piedosas mulheres
Maria, mulher de Cléofas, Joana, mulher de Chusa, intendente que foi de Herodes; Salomé, mãe de João e Tiago, e a
outras que o seguiam no tempo da pregação.
No mesmo dia da triunfante ressurreição, os apóstolos, excetuando Tomé, achavam-se reunidos no cenáculo e
Pedro referia com ardente fé o assombroso acontecimento da ressurreição de Cristo.
O sol acabava de esconder os últimos raios do Ocidente, e duas lâmpadas de bronze alumiavam a habitação.
Tôdas as portas estavam fechadas, pois o receio de serem surpreendidos pelos soldados da sinagoga não era estranho
nos apóstolos.
A dúvida tinha cabimento na alma de alguns daqueles futuros mártires; já começavam as réplicas entre eles,
quando Cristo apareceu no meio do cenáculo sem que nenhuma porta se abrisse para lhe dar passagem. O assombro dos
apóstolos foi grande.
- A paz seja convosco, disse com aquela voz que penetrava até o mais fundo dos corações; sou Eu, não temais.
Os assombrados discípulos mal podiam dar crédito ao que viam. Pedro, reposto do seu assombro, e crendo-se o
mais pecador por o ter negado três vezes, caiu aos pés do Cristo, e juntando as mãos com gesto suplicante, exclamou:

214
- És Tu, Mestre! És Tu o Cristo! És Tu o Messias! Ah, Senhor!
- Sou Eu, lhes disse Deus; e depois estendeu a mão sobre os apóstolos, encheu-os da sua divina essência e disse-
lhes:
- Recebei o Espírito Santo: aqueles a quem perdoardes os pecados, perdoados lhe são: e aqueles a quem o
retiverdes, retidos lhes são.
Depois disto desapareceu do mesmo modo que aparecera, sem se saber por onde.
Oito dias depois achavam-se os apóstolos reunidos no mesmo lugar e com a porta fechada. Os escribas e os
sacerdotes tinham comprado à força de ouro o silêncio dos soldados guardadores do sepulcro, para que o assombroso
acontecimento da ressurreição não se divulgasse.
Os apóstolos eram acusados como ladrões do corpo de cristo. No sinédrio meditava-se a maneira de os prender, e
aquele punhado de ovelhas agrupava-se durante a noite para tratar da pregação do evangelho.
- Para que Tomé creia, meus irmãos, é preciso que o veja e que o toque.
Então apareceu Cristo, entre eles e, como da primeira vez, disse-lhes com doçura:
- A paz seja convosco.
Jesus, com passo tranquilo e olhar sereno, foi-se aproximando de Tomé, que o olhava com olhos espantados.
Quanco chegou mui perto dele, disse-lhe:
- Aproxima-te do teu Mestre, mete aqui o dedo, examina esta chaga, sonda depois a do lado, e não sejais por
mais tempo incrédulo, mas fiel.
Tomé, que tinha escutado as palavras de Jesus e visto as feridas que o Mestre lhe mostrava, caiu confundido a
seus pés, exclamando com doloroso acento:
- Perdão, pela minha dúvida, Senhor e Deus meu: o martírio não poderá com seu doloroso tormento apagar a luz
vivíssima da minha fé.
- Porque me viste, Tomé, creste, lhe disse Jesus; bem-aventurados os que não viram e creram.
Jesus, tornou a desaparecer do cenário. Por espaço de quarenta dias percorreu a Galiléia, mostrando-se a muita
gente. O lago de Tiberíades presenciou depois da ressurreição os novos milagres de Cristo.
Os apóstolos que, receiosos do furor dos sacerdotes, se tinham retirado a Cafarnaum, julgando-se ali mais
seguros, tornaram a ver o Mestre divino um dia em que pescavam nas suas barcas, mandando-lhes Ele que
regressassem a Jerusalém sem receio dos fariseus, pois não havia de faltar-lhes o socorro do Alto.
Os apóstolos, fieis ao que lhes tinha mandado o Mestre, chegaram a Jerusalém, e prepararam uma comida em
casa de José de Arimatéia, no santo cenáculo. Onze se achavam sentados à mesa quando Jesus tornou pela quarta vez a
aparecer. Durante a ceia instruiu-os no que deviam fazer.
- Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda a criatura! Ensinai a toda gente, batisando-os em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes que guardem todas as coisas que eu vos mandei guardar, praticar e
cumprir, para serdes eternamente felizes; e estai certos que Eu permanecerei em vossa companhia até à consumação dos
séculos.
Terminada a comida, Jesus levantou-se e disse aos discípulos:
- Segui-me! Chegou a hora de abandonar a terra o que desceu do céu.
Cristou saiu do cenáculo. Sua Mãe, as piedosas mulheres que nunca a abandonavam e mais de cento e vinte
discípulos, reuniram-se aos apóstolos. Todos seguiam Jesus, que se encaminhou com tranquilo passo para o povoado de
Betânia. Ao chegar ao cume do monte das Oliveiras, o Nazareno parou.
Todos os que o seguiam fizeram o mesmo. Jesus dirigiu um olhar amoroso, primeiro a sua Mãe, que se achava
quase ao seu lado; depois aqueles fiéis que deviam pregoar em breve a milagrosa ascenção; e, por último, ao grandioso
panorama que o rodeava, pois do cume do monte distinguia o sombrio mar Morto, o clarão do Jordão, e as gigantescas
palmeiras do vale do Jericó. Depois, inclinando a divina fonte sobre o peito, ficou pensativo.
Todos os rodeavam sem se atreverem a interrompe-lo. De súbito, o corpo de Jesus encheu-se dum resplendor
vivíssimo. Da sua divina fronte brotaram raios da luz. Uma harmonia dulcíssima se ouviu no espaço, e uma nuvem
nacarada foi descendo do céu até tocar com sua transparente fimbria os cabelos de Jesus.
A voz dos anjos cantavam o hino da glória; o hosana dos céus ressoou aos ouvidos dos apóstolos, que caíram
ajoelhados aos pés do seu Mestre.
Então Jesus estendeu os braços sobre aquelas cabeças inflamadas pela semente fecundante do Evangelho e
abençoou os futuros mártires do Cristianismo. Depois foi-se elevando suavemente em presença dos discípulos, que o
olhavam com infinito gozo.
Por muito tempo viram Jesus, rodeado de anjos, elevar-se ao céu. Quando o corpo do divino Mestre, do Deus-
Verdade, desapareceu, quando Jesus, abandonando a terra penetrou pelas portas do Paraíso para sentar-se á direita de
Deus Pai, os apóstolos ficaram estáticos, absortos, imóveis, com os olhos fitos no céu, como se o assombroso
acontecimento que acabavam de presenciar lhes houvesse roubado a faculdade vital de toda criatura. Dir-se-ia que o seu
estático arroubamento os convertera em estátuas.
Dois formosos mancebos, completamente vestidos de branco e que tinham uma palma na mão direita e uma
pequena cruz na esquerda, apareceram no meio dos apóstolos.
Um deles disse-lhe com a voz dos anjos:
- Varões de Galiléia, que fazeis neste lugar olhando para o céu? Os desgraçados vos esperam. Ide, pois, percorrei
o mundo, contai o que vistes, porque o vosso Salvador, meu Deus, que acaba de subir ao céu na vossa presença, voltará
algum dia a cumprir o que vos prometeu.
Os anjos desapareceram.

215
Então os apóstolos, como fortalecidos com as misteriosas palavrasm, agruparam-se como para transmitirem a fé
dos seus corações.
Aquelas flores do evangelho preparavam-se para perfumar o mundo com o aroma das palavras do Mártir.
Aqueles soldados de Jesus Cristo, anelando semear a frutífera e benéfica semente do Cristianismo, estenderam as mãos
sobre o lugar onde pouco antes se tinham firmado os pés do Mestre, e juraram percorrer o universo pregando o
Evangelho, e morrer pela fé do Cristo.
E cumpriram o juramento.

CAPÍTULO X

O SEPULCRO DAS ROSAS

Alguns anos depois uma pequena e veloz barca fendia com a deigada proa as águas transparentes e azuladas do
mar Icário.
Duas mulheres, formosas como aquele mar que se estendia ante os seus olhos, e um homem, cuja doce
fisionomia expressava a bondade do coração, achavam-se sentados no banquinho de popa do barco, contemplando as
costas pitorescas da Asia Menor, semeadas de plátanos e açucenas.
Os três viajantes vestiam o traje judaico, pobres desterrados que buscavam em solo estranho a paz de existência.
A barca chegou à praia, e os viajantes saltaram sobre a finíssima alfombra de areia que separa a cidade de Efeso do mar.
- Quão belo é este solo! Quão brilhante o firmamento! Quão claro o mar que o acaricia! exclamou o homem,
embevecido na contemplação da paisagem.
- João, meu filho, disse uma das mulheres; lembra-me o formoso solo da Galiléia, o transparente lago de
Tiberíades, o pitoresco jardim de Zabulon.
- É verdade, murmurou em voz baixa o homem.
- Pobres desterrados! tornou a mulher.
A SS. Virgem, Maria Madalena e João, o discípulo favorito de Jesus, pois estes eram os viajantes, entraram na
cidade de Efeso.
O ódio insaciável dos fariseus a Jesus tinha-os feito emigrar, dispersando os apóstolos da fé pelo mundo.
A misteriosa Flôr do Evangelho, a Mãe do Mártir do Gólgota, sem mais parentes sobre a terra que João – seu
filho adotivo, e Madalena, sua inseparável amiga, viu passar um, outro e outro sono, em país estrangeiro, sentada à
sombra duma daquelas frondosas árvores que aformoseiam as vizinhanças de Efeso, e com os dolorosos olhos no mar
Icário, como procurando no seu longínquo horizonte as palmeiras da Galiléia, céu da sua pátria.
Durante aqueles momentos de doce contemplação, enquanto Maria e Madalena vagueavam por esse mundo
encantador dos sentidos que tanto embevece a amargura do desterrado, João, o modesto pescador de Betsaida, o
amoroso discípulo de Cristo, ocupava-se em escrever um livro cuja maravilhosa ciência, cuja poesia inesgotável devia
ser imortal.
Uma nova desgraça fez rebentar de novo as lágrimas dos olhos da Virgem. Madalena, a doce amiga, a
enamorada de Jesus, deixou de existir. A Virgem e João companharam aqueles restos queridos à última morada e, desde
então, a soledade do seu destêrro foi mais dolorosa, mais sombria. A virginal Açucena de Nazaré começou a pensar
novamente na Pátria.
Pressentia o fundo do coração que seu Filho ia enfim chamá-la à mansão eterna. Uma noite que João escrevia ao
lado do seu leito, disse-lhe com voz carinhosa:
- João, meu filho, pressinto que a minha vida se acha próxima a extinguir-se, e antes quero visitar o templo de
Jerusalém.
João, que não tinha outra vontade senão a de sua Mãe adotiva, preparou tudo para a viagem, e poucos dias depois
embarcaram no porto de Mileto, numa galera que ia dirigir a proa para a Europa, fazendo escala em Sidon. A Santa
Virgem, durante a viagem de regresso à pátria, contemplava com indefinível gôzo as costas pitorescas que passavam
ante seus olhos aproximando-se da cidade querida. Por fim a galera chegou a Sidon. Os remeiros levantavam cansados
as pás das águas, e a Santa Mãe pisa enfim a terra desejada.
Quando os viajantes chegaram a Jerusalém, hospedaram-se na cidade de Sion numa modesta casa levantada
perto do arruinado palácio de Davi.
Em breve souberam que Tiago era Bispo de Jerusalém, e que quase todos os apóstolos tinham regressado à
cidade santa, depois de terem semeado em outros países com proveitoso fruto as sublimes palavras do Evangelho. João
correu a participar a chegada da Mãe de Jesus aos apóstolos e em breve a modesta Flôr de Galiléia se viu rodeada
daqueles santos varões, cujo amor a Ele e a seu Filho era inesgotável. Maria, cansada da viagem recebeu os fieis
recostada num leito de pobre aparência.
Seus bondosos olhos encheram-se de lágrimas na presença dos santos varões, que com tão carinhosa solicitude a
rodeavam. Pedro, o apóstolo ancião, o homem da fé, disse-lhe, pegando-lhe na mão:
- Maria, nossa Mãe, não te separarás nunca mais do nosso lado!

216
- Pedro! murmurou a Virgem com desfalecido acento. A minha hora aproxima-se, e meu Filho espera-me: logo
cerrarei os olhos à vida terrestre.
Algumas horas depois, quando a noite estendia pelo firmamento as sombras, quando os débeis clarões de uma
lâmpada banhavam com sua vacilante luz a habitação que ocupavam os apóstolos, Maria deu um suspiro e,
pronunciando o doce nome de seu Filho, fitou os moribundos olhos no bispo de Jerusalém, dizendo:
- Por que me olhas assim, Tiago?
Tiago, afogando a profunda dor que lhe devorava o peito, respondeu:
- Ah, nossa Mãe! Porque vendo o teu divino rosto, creio ver o imortal Mestre, o meu bom Jesus.
Maria sorriu-se e disse:
- Quanto desejo vê-lo!
Depois, exalando um gemido, elevou a sua alma à região do Paraíso. A Virgem deixara de existir; mas a
formosura do seu rosto era tamanha, as rosas de suas faces tão puras, que os apóstolos ficaram estáticos contemplando-ª
Quando os apóstolos se convenceram de que a Mãe de seu Mestre havia morrido, acenderam a lâmpada
funerária, derramaram sobre o seu santo corpo preciosos aromas, velando durante a noite o precioso cadáver. Um aroma
inebriante perfumava a estância, e os cânticos dos santos enchiam de harmonia o espaço.
No dia seguinte, o corpo embalsamado da Virgem foi colocado sobre um leito de flores, e coberto com um véu
fúnebre tecido pelas donzelas de Sion.
Os apóstolos conduziram-no aos ombros ao horto de Getsemani, onde lhe estava destinada a sua derradeira
mansão sobre a terra.
As piedosas mulheres de Jerusalém tinham coberto de rosas o sepulcro destinado a Maria. Os filhos do
Evangelho depositaram no fundo do sepulcro o corpo da Mãe do seu Mestre. Três dias permaneceram velando aqueles
restos queridos, que uma lousa cobria para sempre.
Um homem fraco, pálido, coberto de pó com a barba quase branca e com todos os sintomas dum ente que sofreu
muito, chegou ao horto de Getsemani no dia terceiro ao cair da noite. Os apóstolos fitaram os olhos naquele home, que
parara fatigado junto do sepulcro de Maria.
- Quem morreu? Que fazeis vós aqui? perguntou o viandante.
Aquela voz fez palpitar todos os corações, e os discípulos pronunciaram ao mesmo tempo um nome: Tomé!
- Sim, sou eu, meus irmãos, lhes disse, que venho novamente reunir-me convosco. Tão desfigurado me achais
que não me conhecestes senão quando vos falei. Mas respondei-me: a quem guardais nesse sepulcro?
- A Maria de Nazaré, a Flôr mística do Evangelho, a Mãe do Redendor do Mundo, disse Pedro com voz pausada
e grave.
Tomé aproximou-se do sepulcro, e dirigindo-se a Tiago, que se achava junto da pedra, disse-lhe:
- Deixa, meu irmão, que veja pela última vez o divino rosto da Estrela do Mar, da Flôr da Amargura.
Então dos discípulos levantaram a pedra.
Todos os olhares se dirigiram para o fundo do sepulcro. O cadáver da Virgem tinha desaparecido.
A concavidade do túmulo estava cheia de flôres, cujo delicioso aroma se espalhou embalsamando o corpo.
A Virgem Mãe tinha-se elevado ao céu em corpo e alma como seu divino Filho.

EPÍLOGO

217
NEM PEDRA SOBRE PEDRA

Quarenta anos depois que o Homem-Deus exalou no cume do Calvário o seu derradeiro alento, Jerusalém era um
montão de ruínas.
A profecia do Lírio de Nazaré havia-se cumprido.
Os descendentes de Abraão e de Jacó, quais débeis arestas que esparge com o seu sôpro o poderoso furação,
haviam-se espalhado pelo universo, chorando a sua vergonha e a sua dor.
Era uma manhã do mês de Nisan, desse mês venturoso em que os filhos de Israel abandonavam as tribos para
celebrarem a festa do cordeiro pascal na mui amada cidade de Salomão, na mui querida Jerusalém.
As harpas de Sion, já não ressoavam no Santo dos Santos, nem as alegres donzelas de Galiléia levantavam as
tendas ao redor das muralhas de Nain.
O vale dos Cedros era um solitário páramo semeado de cadáveres e ruínas, e os corvos e as águias do Líbano,
abandonando as quebradas rochas, pairavam sobre a cidade maldita, depois de devorarem as entranhas dos deicidas.
Um homem, ou antes um velho, curvado sob o pêso dos anos, branca a barba, branco o cabelo, triste e
melancólica a face, como se o grito da consciência lhe levantasse ecos dolorosos no fundo da Alma, encostado ao
bordão do viajante, ladeava a pedregosa falda do monte dos Cadáveres até encontrar uma estreita vereda que conduzia
ao crime. Quando pôs o pé na vereda parou, buscou com afanoso olhar um ponto da terra, talvez recordações, e crendo
encontrá-lo, caiu de joelhos beijando com veneração as empoadas pedras. O misterioso viandante beijava com fervoroso
ardor a terra que quarenta anos antes, santificara com a sua terceira queda o Mártir Galileu.
Ali, naquele mesmo lugar, a venturosa mão de Simão Cireneu ajudara a Cristo a levar o pesado madeiro.
- Sim, sim, foi aqui, murmurou o viajante com apagada voz, foi aqui onde disse: “Mulheres de Jerusalém, não
choreis por mim, chorai por vós e por vossos filhos”; e as mulheres choraram; e a profecia cumpriu-se; e as mães depois
de devorarem seus filhos enlouquecidas pela fome, invejaram as estéreis; e o templo, reduzido a pó, já não abre suas
portas como em outro tempo ante os passos do sacerdote hebreu: porque Ele amaldiçoou a cidade, e a cidade maldita é
um montão de ruínas cuja grandeza esparge o vento do deserto. Oh! Senhor Deus de bondade e misericórdia, Rei dos
reis, eterna Fonte de clemência, volve os olhos para mim; condoi-te da minha agonia, e faze com que a morte introduza
o seu sôpro exterminador nas minhas veias.
O viajante exalou um doloroso gemido, pôs-se em pé e tomando a tortuosa senda, chegou ao cume do monte dos
Cadáveres. Ali tornou a ajoelhar-se, e seus lábios beijaram o buraco onde em outro tempo esteve cravada a cruz de
Cristo. Com o rosto colado às duras pedras, o corpo inclinado, orava em silêncio o misterioso ancião, insensível a tudo,
menos à sua dor.
Seu abatimento impediu que visse outro homem que vinha pelo mesmo caminho de Emaús em direção ao
Gólgota. Teria uns sessenta anos. Trazia o traje dos peregrinos cristãos, e pendia-lhe do ombro uma pequena citara.
Brancos e brilhantes caracóis de cabelos lhe caíam sobre os ombros e costas, e barba longa e branquíssima como a neve
lhe descansava sobre o peito. O peregrino, sem estranhar que outro homem estivesse orando no cume santificado com o
sangue do Mártir, ajoelhou-se e orou também.
Depois da muda oração, aquelas duas cabeças veneráveis ergueram as maceradas frontes para o céu. Nos olhos
do peregrino da citara refleia-se a esperança: no olhar do ancião do bordão, a dor.
Depois desta cena muda, sentaram-se ambos sobre as pedras.
O ancião da citara dirigiu um olhar ao ancião do bordão e disse-lhe:
- A paz seja contigo.
- Contigo venha, irmão, respondeu o velho.
- És judeu?
- Nasci em Jerusalém.
- És cristão?
- Pregando a fé de Cristo percorro o mundo, porque só assim espero o perdão das minhas culpas. És tu cristão?
- Sim, e, como tu, percorro há trinta anos as tribos, cantando ao som da minha citara, as belezas do Evangelho.
- Jerusalém não existe, exclamou o ancião do bordão, estendendo o braço com doloroso gesto para as ruínas.
- Nem pedra sobre pedra resta da cidade santa: Jesus havia-o profetizado.
- Estiveste dentro dos seus muros durante o sítio? A dor dos seus filhos seria imensa.
- Grande foi, meu irmão, tornou o velho da citara. A celebração da Páscoa, continuou, havia reunido dentro dos
muros da cidade sacerdotal mais de um milhão e trinta mil almas. Os filhos de Jacó preparavam o pão sem fermento e
as ervas amargas, os inocentes cordeiros balavam nos pátios do templo. A alegria e o contentamento enchiam todos os
corações. Eu percorria, pobre viandante, as buliçosas ruas da cidade cantando as glórias do Salvador, e a gente repelia-
me, dizendo: “Longe daquia cristão: a tua voz incomada-nos”. Sem embargo, eu cantava sem fazer caso do seu
desprezo. Chegou a noite e fui refugiar-me à sombra dum sicômoro no Vale dos Cedros; mas não pude dormir, porque
um ruído estranho como o da tempestade que se aproxima no meio dum bosque me chegava aos ouvidos. No dia
seguinte, quando Jerusalém despertou, um grito de terror, de assombro, de espanto rompeu de todas as gargantas.
Numeroso exército cercara as muralhas de Naim, e as máquinas de guerra dos romanos começavam a romper em
pedaços os fortes muros. Os israelitas aprestavam-se para a defesa, defendendo palmo a palmo os lares; mas ao mesmo

218
tempo, dividido dentro da cidade em três bandos, quando o inimigo suspendia os ataques, pelejavam eles entre si,
esquecendo o perigo que os ameaçava e a necessidade que tinham de conservar o sangue que derramavam.
O ancião da citara parou. O viajante que o escutava com religioso silêncio, articulou em voz baixa:
- Pobre povo de Israel, maldito, maldito estás como eu!
O narrador continuou:
- Vespasiano era o general dos soldados do Tibre. O seu valor batia inutilmente de encontro aos fortes muros
levantados por Davi e o tempo decorria sem que a águia triunfante dos filhos da loba tremulasse sobre o monte santo de
Sion. Então Roma teve necessidade de um imperador, e chamou Vespasiano, cuja espada tanta glória tinha conquistado.
Tito, seu filho, continuou o cêrco da cidade. Diariamente sacrificava os prisioneiros judeus à vista dos sitiados, alguns
era reenviados à cidade com as mãos cortadas. A peste, estendeu sobre Jerusalém seu hálito mortal, chegando a ponto
de as mães comerem seus filhos. O templo caiu convertido em pó e, quando a cidade não foi mas que um montão de
ruínas, quando um milhão de cadáveres insepultos juncavam o solo maldito, quando os corvos pairavam sobre a cidade
impia. Tito entrou, triunfante em Jerusalém e o povo judeu pobre, fraco, humilhado, dispersou-se pelo mundo sem
pátria, sem lar, sem religião, sem lei.
O ancião da citara guardou silêncio e duas lágrimas se lhe desprenderam das pálpebras.
- Eu estava então em Roma, disse por sua vez o outro ancião. A entrada triunfante de Tito foi esplêndida.
Trezentos escravos judeus luxuosamente vestidos puxavam-lhe o carro; mil donzelas de Israel cantavam hinos de glória
em torno do vencedor. Roma, louca de contentamento, semeou de flôres o caminho do seu herói. As feras do hipódromo
fartaram-se de carne hebraica para entreterem o ócio da plebe. As areias do circo tingiram-se com o sangue dos filhos
dos deicidas, como oito anos antes se tinha tingido com os dos mártires do Evangelho.
- Viste morrer os confessores? perguntou o ancião da citara.
- Sim, tive a desgraça de apreciar o atroz martírio dos filhos do Evangelho. Nero, monstro incompreensível, que
construira palácios ao seu macaco favorito e mandou abrir as entranhas de sua mãe, para ver o lugar que tinha ocupado
antes de nascer, tocou fogo numa noite à cidade de Roma. Eu vi-lhe a tela incendiária na mão. Observei-lhe nos
delgados lábios o sorriso de infernal prazer. A cidade ardeu, e este crime foi atribuido aos cristãos, que não tinham
cometido outro delito que moderar os seus costumes e não assistir aos ferozes espetáculos do circo. A matança foi
horrível. Os dolorosos gemidos das vítimas enlouqueciam de prazer o feroz assassino, que percorreu disfarçado em
condutor de carro o lugar do martírio, atropelando gente. Nos seus próprios jardins foram queimados cristãos untados de
pez e postos ao redor duma mesa para que alumiassem em lugar de brandões o banquete que celebrou o monstro Nero.
Pedro, também foi crucificado como seu Mestre mas, por humildade pediu aos verdugos que pusessem a cabeça para
baixo e os pés para cima: morreu com o valor incompreensível dos mártires.
O ancião parou, para tomar folego, e então o peregrino falou por sua vez:
- Os primeiros apóstolos da nova lei do Nazareno todos têm selado a fé com o martírio. Eu vi também Tiago
Maior quando regressou da sua expedição à Espanha, onde com tanto proveito pregara o Evangelho. O miserável
Herodes, Agripa, a pedido dos hipócritas sacerdotes da sinagoga, como ao Batista, lhe mandou cortar a cabeça.
- Depois de Mateus converter na Etiópia, tornou o ancião, um sem número de virgens à religião cristã, os ciúmes
do rei bárbaro decretaram sua morte, expirou com o glorioso nome do seu Mestre, percorrendo a Arábia, Tomé quis
derribar o falsos ídolos, e morreu também às mãos dos sacerdotes.
- Ah! Não és tu só quem teve a desventura de presenciar o desgraçado fim dessa flôres do Evangelho, disse o
peregrino. Eu vi também os ferozes escribas arrojarem do alto do templo Tiago Menor, primeiro Bispo de Jerusalém. A
altura era imensa: fechei os olhos aterrado para o não ver, e, ao abri-los, vi com assombro que Tiago levantava os
braços ao céu dando graças a Deus. Estava vivo, quase são. Mas naquele momento, um miserável judeu lhes esmagou a
cabeça com um malho de ferreiro.
- Ai! exclamou o ancião. Tu só presenciaste o fim de dois desses mártires. Eu vi morrer nove. Na Albânia,
cidade da Armênia, vi matar Bartolomeu, horroroso espetáculo que me gelou o sangue nas mãos e que fazia rir seus
ferozes verdugos. Depois achava-me numa cidade da Grécia, que ergue os muros na praia do mar Jónico. O que corria e
corria com afã; eu, impelito também pelo povo cheguei numa larga praça, no meio da qual vi um homem atado aos pés
e atados a uma cruz de forma estranha. O povo dizia: André, o cristão, um gênio; vêde, vêde que cruz que inventou par
que lhe sirva de suplício. E o verdugos queimavam com bárbara complacência o corpo do apóstolo. Oh! Dois dias com
suas noites durou aquele bárbaro tormento, até que enfim a morte pôs termo a tanta dor. Eu sai então da cidade impelido
sempre pela voz aterradora que já cinquenta anos me ressoa no fundo da alma. Andei muito, dia e noite sem cessar, e
cheguei à região da Frígia na Ásia Menor. Mas apenas penetrei numa cidade, vi um homem coberto de sangue, com os
dolorosos olhos no céu e as mãos cruzadas sobre o peito; parecia confundamente embevecido numa oração, e outros
homens desapiedados que arremessavam enormes pedras sobre ele. Era Filipe, o apóstolo de Jesus. Horrorizado,
abandonei aquela terra, e depois de andar muito cheguei à Pérsia, e na cidade de Sauster, Simão e Tadeu, que nunca se
tinham separado, morriam também apedrejados, com as palavras do Evangelho nos lábios. Da Pérsia dirigi-me a Roma.
Ali o feroz e covarde Domiciano soube que um homem chamado João, judeu de nação, pregava o Evangelho, mandou-o
deitar numa caldeira de azeite a ferver. Aquele homem sorria e saiu ileso daquela horrível prova. O verdugo,
envergonhado, mas não convencido daquele milagre, desterrou o apóstolo para a ilha de Patinon. Este mártir chamava-
se João em outro tempo.
O peregrino que tinha escutado com assombro a crônica do ancião, olhava-o cheio de curiosidade. Aquele
homem tinha alguma coisa sobrenatural. A um tempo inspirava respeito e lástima. De repente, o ancião sentado e com
cabeça pendida para o peito, ergueu-se com se uma víbora houvesse mordido no coração. Pôs-se em pé e, empunhando
o bordão, levantou os olhos ao céu com dolorosa expressão. Seus lábios agitaram-se como que propunha uma súplica

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em voz baixa. Pouco a pouco seu melancolico semblante foi-se reanimando e por fim exalando um suspiro disse,
frisando os olhos do peregrino.
- Irmão, a misteriosa voz do anjo, manda-me prosseguir meu interrompido caminho. Vamos separar-nos para
sempre, mas antes dize-me o teu nome, para que este momento de trégua que Deus me concedeu no cume do Calvário,
nunca se apague da minha mente.
O peregrino preocupado com a palavra do ancião, disse com voz insegura:
- Em outro tempo, quando eu era moço, quando apenas a barba me apontava no rosto, chamava-me Boanerges
ou Cisne da Galiléia mas quando perdi a esperança do meu coração, quando minha querida mãe soltou, poucos dias
depois da morte de Jesus, o último suspiro nos meus braços fiz-me cristão. Pedro lançou-me sobre a cabeça as águas do
batismo, e comecei a percorrer as tribos pregando a fé de Cristo ao som da minha citara; hoje chama-me o Cantor do
Evangelho.
- Não aparte Deus de ti a sua santa misericórdia, disse o ancião d
dispondo-se a abandonar o Gólgota.
- Espera , tornou o peregrino, antes de nos separar-nos dize-me por tua vez, porque nunca se detêm as tuas
plantas intranquilas.
- Eu sou Samuel Beli-Beth, o maldito de Deus, o homem mortal destinado a vaguear eternamente e ouvindo sem
cessar como agora, nos ouvidos a aterradora voz do anjo que me repete continuamente: - anda, anda, anda! – até a
consumação dos séculos. Os séculos futuros me conhecerá com o nome de Judeu Errante.
O peregrino ficou aterrado poruqe aquelas palavras foram pronunciadas com um voz espantosa.
O ancião empreendeu a interminável jornada, e descendo do cume do Calvário sem entrar na cidade passou ao
longe da muralha, deixando à esquerda o Monte Acra, o sepulcro de Jesus, a torre Ípica e o palácio de Davi.
Quando se achou no caminho de Belém dirigiu os passos para os desertos areais da Iduméia.
O peregrino, resposto um tanto do assombro que aquele homem maldito lhe causara, despreendeu a citara do
ombro, e levantando os olhos ao céu, como se dela esperasse a inspiração, entoou um hino de louvor ao Mártir do
Calvário.

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